Scintilla vol. 8, n. 1
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Scintilla vol. 8, n. 1
EDITORIAL SCINTILLA Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011 1 ENIO PAULO GIACHINI 2 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011 EDITORIAL SCINTILLA REVIST A DE FIL OSOFIA E MÍSTICA MEDIEV AL REVISTA FILOSOFIA MEDIEVAL ISSN 1806-6526 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 1-206. jan./jun. 2011 Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSB Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM Curitiba PR 2011 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011 3 Copyright © 2004 by autores Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. FAE – Centro Universitário IFSB – Instituto de Filosofia São Boaventura SBFM – Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval O IFSB é mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ) Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PR E-mail: [email protected] ou [email protected] Reitor: Nelson José Hillesheim Diretor geral do Grupo Bom Jesus: Jorge Apostolos Siarcos Pró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo Resende Pró-reitor administrativo: Regis Ferreira Negrão Diretor do Instituto de Filosofia São Boaventura: Dr. Jairo Ferrandin Editor: Dr. Enio Paulo Giachini a) Comissão editorial Dr. Emanuel Carneiro Leão, UFRJ Dr. Orlando Bernardi, IFAN Dr. Luiz Alberto de Boni, PUCRS Dr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFG Dr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSC Dr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP) Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina) Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia) Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP) Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España) Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College Estocolmo (Suécia) Dr. Ulrich Steiner, FFSB Dr. Jaime Spengler, FFSB Dr. João Mannes, FFSB b) Conselho editorial Dr. Vagner Sassi, FFSB Dr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEG Dra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJR Dr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PR Dr. Joel Alves de Souza, UFPR Dr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJ Revisão e editoração: Equipe interna Diagramação: Sheila Roque Capa: Luzia Sanches A partir de 2009 a Scintilla compõe o banco de dados da EBSCO – http://www.ebscohost.com/titleLists/hlh-coverage.htm Catalogação na fonte Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia São Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro Universitário Franciscano, v.1, n.1, 2004Semestral ISSN 1806-6526 1. Filosofia – Periódicos 2. Medievalística – Periódicos. 3. Mística – Periódicos. CDD (20. ed.) 105 189 189.5 SUMÁRIO EDITORIAL ........................................................................... 7 Enio Paulo Giachini ARTIGOS ............................................................................... 9 A árvore de Porfírio: Comentários à Isagoge ....................... 11 Marcos Aurélio Fernandes Duns Scotus sobre a credibilidade das doutrinas contidas nas Escrituras .................................................................... 45 Roberto Hofmeister Pich Liberdade e predestinação. A novidade de Lorenzo Valla ................................................................................. 95 Paula Oliveira e Silva A obra sermonária de Santo Antônio e um olhar sobre a exegese bíblica medieval .................................................. 115 José Antônio de C. R. de Souza COMENTÁRIOS ...................................................................... 147 Introdução à leitura espiritual, hoje ................................... 149 Hermógenes Harada TRADUÇÕES .......................................................................... 165 As teorias da escritura contidas nos frutos, isto é, as considerações que alimentam o entendimento e o afeto e, primeiramente, as que alimentam o entendimento ......... 167 O reto caminho e o modo de receber os frutos da escritura, ou como, pela ciência e pela santidade, se chega à sabedoria ........................................................................ 181 S. Boaventura DEPOIMENTOS ...................................................................... 195 Frei Hermôgenes Harada: a universalidade do vazio ........... 197 Sérgio Wrublevski Uma despedida ................................................................. 199 Alberto da Silva Moreira EDITORIAL EDITORIAL Enio Paulo Giachini Alguns dos artigos do presente número de Scintilla estão focados na leitura e modo como os medievais liam os antigos. Temos uma leitura da obra sermonária de S. Antônio, feita por José A. de C.R. de Souza, uma análise de algumas doutrinas escriturísticas em Duns Scotus, por Roberto H. Pich, uma leitura da “árvore de Porfírio: Comentários a Isagogé”, por Marcos A. Fernandes; uma análise dos escritos de Lorenzo Valla, por Paula Oliveira e Silva. Como é nosso propósito, continuamos a publicar escritos póstumos de Frei Hermógenes Harada. Sobre essa temática temos então aqui “Introdução à leitura espiritual, hoje”. E, mais dois depoimentos sobre Fr. Hermógenes, feitos por Prof. Sérgio Wrublevski e Prof. Alberto da S. Moreira. Encerra essa edição uma tradução de dois textos de S. Boaventura, tirados do Exaemeron e traduzidos aqui por Fr. Ary Pintarelli. A título de remissão aos artigos, apresentamos algumas idéias bastardas sobre a leitura. Ler é uma atividade de labuta pela abertura de sentido da vida de quem e do que se lê. A leitura se torna fecunda quando esse “de quem lê e do que se lê” coincidem. Leitura dos antigos é, então, um espreitar as próprias possibilidades, “radicalmente outras, mas longamente preparadas silenciosamente no subterrâneo da época anterior”. A leitura, enquanto empenho de escuta, é um concentrar-se na espera de abertura de novas possibilidades. A leitura originária, talvez, não se restrinja ao escrito, grafado, registrado. Leitura é disposição de abertura e de possibilitação esperançosa de renovação da doação nova e inusitada do real. Como tal, essa espera e empenho se dão por toda parte, e a toda hora, talvez, mesmo e sobretudo na distraScintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011 7 EENIO NIOPPAULO AULOG GIACHINI IACHINI ção, onde nos permitimos ser colhidos pela vida e não proativamente ler, colher, recolher. “Esse concentrar-se no ponto de salto e o início do novo mundo, no entanto, se dão na atualidade presente, não, porém, na superfície do tempo atual, onde o público e a sociedade estão tomados de anseios, inquietações, confusões acerca dos temas fundamentais da vida, ameaçados por infindas crises, convulsões, guerras, e-versões de costumes, de moral, por consumismo e perda de identidade humana; mas bem retraído da publicidade, bem no fundo do subterrâneo do tempo presente na tenaz e silenciosa labuta do pensar”. Destacamos igualmente algumas idéias centrais do texto de S. Boaventura, tirado do Exaemeron, onde ele aborda basicamente duas coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o aprendiz, à época, estudar. Assim como o corpo sem alimento perde a força, a beleza e a saúde, da mesma forma a alma sem o conhecimento da verdade adoece, se obscurece, fica disforme e instável em tudo; é necessário, portanto, que seja alimentada. Na segunda parte do texto, Boaventura resume um modo de abordagem e leitura das fontes de alimento do intelecto. O estudo está condicionado por quatro diretivas: quem estuda deve ser ordenado, ser assíduo, encontrar complacência no que faz e ser comedido. A seguir, quanto à ordem de importância, apresenta também as quatro fontes de leitura dos estudos e qual sua mutua implicação para os estudos. A maneira de estudar deve ter quatro condições: ordem, assiduidade, complacência e medida. – A ordem é proposta de diversas maneiras pelos vários [mestres]; mas é preciso proceder ordenadamente, para não tornar secundário o que é principal. Portanto, existem quatro tipos de escrituras, dos quais é preciso ocupar-se de maneira ordenada. Os primeiros livros são as Sagradas Escrituras...; os segundos livros são os originais dos santos; os terceiros, as sumas dos mestres; os quartos, os livros das doutrinas mundanas ou dos filósofos. Assim, literalmente, desejamos uma boa leitura. 8 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011 ARTIGOS A ÁRVORE DE PORFÍRIO... A ÁRVORE DE PORFÍRIO: COMENTÁRIOS À ISAGOGE Marcos Aurélio Fernandes * Porfírio, nascido em Tiro (Fenícia), pelo ano 232-3, foi discípulo de Longino, em Atenas, e, depois, a partir de 263, em Roma, de Plotino, de quem escreveu a vida e organizou os escritos, após a morte deste em 270. Em Roma, após anos de estudo com Plotino, Porfírio entrou em uma grave crise depressiva, que o colocou à beira do suicídio e foi mandado por Plotino para tratamento na Sicília. É lá que vêm à luz os seus mais importantes escritos: comentários a Aristóteles, Platão e a Homero. Por volta de 299, Porfírio retorna a Roma, onde, presumivelmente, assumiu o lugar de Plotino. Teve como discípulo mais importante Jâmblico. Cerca de 301, publica as Enéadas, escreve a “Vida de Plotino” e as “Sentenças sobre os inteligíveis”, como introdução ao pensamento plotiniano. Perto de 302 se casa com uma viúva, Marcela. Depois de 10 meses de matrimônio a abandona, para dedicar-se aos “problemas dos gregos”. A ela escreve uma carta, uma coletânea de sentenças éticas retiradas da tradição clássica, e que foi considerada o testamento moral da antiguidade. Segundo testemunho de Lactâncio, Porfírio ainda participou do Consilium Principis, que aconteceu em Nicomédia, onde se reuniram intelectuais da elite romana, com o objetivo de afrontar a questão dos cristãos e que prepa- * Professor de História da Filosofia Medieval na Universidade Católica de Brasília e no Instituto São Boaventura (ISB – Brasília). Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 11 MARCOS AURÉLIO FERNANDES rou a grande perseguição de Diocleciano. Faleceu em data incerta (c. 304-5). Os escritores cristãos dizem que Porfírio fora cristão quando jovem, e que abandonou o cristianismo para se dedicar aos cultos herméticos e caldeus. Provavelmente encontrou-se com Orígenes, grande escritor cristão, que morreu em Tiro em 253. Numa época em que a perseguição aos seguidores de Cristo chegou ao seu máximo, escreveu 15 livros Contra os Cristãos, dos quais só se conhecem fragmentos deixados pelos defensores do cristianismo, como Eusébio de Cesareia e Jerônimo. Embora reconhecesse Jesus como um homem muito piedoso e um sábio judeu e estimasse o Deus do judaísmo, desprezava os cristãos e considerava estarem em erro. Agostinho, na Cidade de Deus, escreveu contra esta posição de Porfírio (XIX, 23), também contra a sua concepção dos demônios como mediadores entre os deuses e os homens (IX, 23.26-32). Apesar disso, Porfírio foi um dos neoplatônicos que mais influências exerceu sobre a Idade Média, graças, sobretudo, aos seus comentários aos escritos de Aristóteles. Ao contrário de Plotino e na linha do medioplatonismo, Porfírio tinha a tendência de conciliar Platão e Aristóteles. O fio condutor desta tendência de conciliação consistia em ver na lógica aristotélica o pórtico de acesso para a teologia (metafísica) platônica: “Aristoteles logicus, Plato theologus”. Platão seria o melhor intérprete da verdade e Aristóteles o melhor intérprete de Platão. Nesta tendência, salientavase a correspondência entre o eidos transcendente e separado (chôristòn eidos) e o eidos imanente na matéria (énylon eidos), ou seja, entre a ideia platônica e a forma aristotélica. Entretanto, Porfírio foi além da tendência medioplatônica de considerar Aristóteles apenas como uma propedêutica a Platão. Tentou, na verdade, uma síntese do pensamento aristotélico e platônico também em nível metafísico, abrindo, assim, um caminho que será percorrido mais tarde por vários pensadores medievais, na linha de Agostinho e de Boécio. Na sua concepção acerca do Primeiro Princípio, busca uma posição intermédia entre a 12 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... henologia (doutrina acerca do Uno) platônico-plotiniana e a ontologia (doutrina do ente enquanto ente), de matriz aristotélica. Deus, o Primeiro Princípio, recebe, assim, as características do Uno absoluto de Plotino e do Ente Supremo, Substância Primeira, Ato Puro e Pensamento que se pensa a si próprio (nous noeseos), de Aristóteles. A maior influência do pensamento de Porfírio na Idade Média vem de seus comentários aos textos lógicos de Aristóteles. Uma obra que teve uma fortuna significativa para a história da filosofia posterior, especialmente a medieval, foi a “Isagoge” (“Introdução”). 1 O “Isagoge” como comentário introdutório às categorias de Aristóteles Para Porfírio, a filosofia se articulava em ética, física e metafísica. A lógica servia como propedêutica a todo o estudo da filosofia. Na lógica, Porfírio comentava o “Órganon” (“Instrumento”) de Aristóteles e o diálogo “Crátilo” de Platão. O mesmo método de aproximar Platão e Aristóteles se dava também nas outras “disciplinas” filosóficas. Assim, na ética comentava a “Ética” e a “República”; na física, a “Física” e o “Timeu”; e na epóptica – palavra que significa “Contemplativa”, “Teorética”, “Esotérica” – ou metafísica, a “Metafísica” e o “Parmênides”. Entre os escritos do “Órganon”, Porfírio preferiu comentar as “Categorias” e o texto “Sobre a Interpretação”. O problema das “categorias”, desde Porfírio e Boécio, passou a ser um dos mais importantes da investigação filosófica. A palavra “categoria” vem do grego, katêgoría, que significa, na linguagem ordinária, “acusa”. O uso ordinário da palavra remontava ao fenômeno do falaruns-com-os-outros na convivência pública da Pólis. O espaço privilegiado, aberto à discussão, onde os cidadãos discutiam os destinos da Pólis era a “ágora”, a praça, o fórum, o espaço público onde acontecia o intercâmbio de mercadorias, de opiniões, bem como os discursos enScintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 13 MARCOS AURÉLIO FERNANDES dereçados ao público, as assembleias, os julgamentos etc. Daí o verbo “katêgoreîn”, que significava, originariamente, dizer alguma coisa publicamente na cara de alguém, daí, acusar em público, acusar numa assembleia ou num julgamento. Aristóteles assumiu este verbo da linguagem ordinária e deu a ele uma conotação lógico-filosófica. “Katêgoreîn” passou a significar, num juízo, atribuir um predicado a um sujeito e “katêgoría” tomou o significado de “predicado” de uma proposição. Aristóteles usou a expressão “katêgoriai toû ontos” para dizer aqueles predicados mais abrangentes e originários que se podem atribuir ao ente enquanto ente. A tradição chamou as categorias do ente de “gêneros supremos”, por serem gêneros que não podem se tornar espécies de outros gêneros. Trata-se de predicados universais, que se referem ao ente enquanto ente, isto é, ao ente no seu todo. São chamadas, em latim, de “praedicamentum”, predicamento – de praedicare: dizer diante de, dizer publicamente, proclamar. A lista das categorias ou predicamentos varia na obra de Aristóteles. Na obra dedicada a este problema – Categorias IV, 1 b – se apresenta a lista mais completa, constando de dez tipos de predicamentos do ente: 1. Ousía (substantia - substância) – aquilo que responde à pergunta “tí to on?”: o que é o “sendo” (o ente)? É o “ti estin” (o que é) do ente, o seu ser certo “quê”, sua vigência e presença, seu vigor de ser, seu modo de ser a entidade que ele é: o que é em si, o que repousa em si mesmo, o que subsiste em si mesmo. Como tal, é o substrato (hypokéimenon – subjectum) das manifestações, propriedades ou atributos de uma coisa. Na dimensão da linguagem, é o sujeito: aquilo de que se fala ou de que se predica, em primeira instância. Ex.: “Sócrates”. 2. Póson (quantitas – quantidade) – o que é inerente a uma coisa por si mesma, devido à sua matéria. Ex.: “Sócrates é de um metro e setenta de altura”. 14 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... 3. Poión (qualitas – qualidade) – o que é inerente a uma coisa devido à sua forma. Ex.: “Sócrates é branco”. 4. Prós ti (relatio – relação) – o que é inerente a uma coisa, mas não por si mesma, e sim por referência a outra coisa. Ex.: “Sócrates é pai de três filhos”. 5. Poû (ubi – onde) – o lugar natural de uma coisa no universo. Ex.: “Sócrates é cidadão de Atenas”. 6. Pôte (quando – quando) – ocasião, momento, o que se dá como medida extrínseca à coisa, a partir do tempo. Ex.: “Sócrates foi morto em 399 a.C.”. 7. Kheîsthai (situs – situação, posição, disposição, ordem) – o modo como o sujeito em questão está situado, posto, disposto. Ex.: “Sócrates está sentado”. 8. Échein (habitus – atinência) – o modo como o sujeito em questão tem a ver com, se relaciona com ou se atém a determinada coisa. Ex.: “Sócrates está calçado”. 9. Poieín (actio – atividade) – o que o sujeito faz, o pôr em obra, o atuar e agir de um sujeito. No caso, o sujeito é princípio da ação. Ex.: “Sócrates ensina à juventude”. 10. Páschein (passio – passividade) – o que o sujeito sofre, o ser atingido ou afetado por. No caso, o sujeito é o alvo ou fim de uma ação. Ex.: “Sócrates foi condenado à morte”. Já na antiguidade havia três linhas de interpretação a respeito do estatuto das categorias. Havia uma interpretação ontológica, que tomava as categorias como divisões originárias do ser do ente; uma interpretação linguístico-gramatical, que tomava as categorias como modalidades segundo as quais se estrutura a língua e às quais correspondem as partes do discurso: substantivo, adjetivo, verbo, advérbio etc.; e uma Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 15 MARCOS AURÉLIO FERNANDES interpretação lógica, que via nas categorias os termos mais gerais aos quais se podem reconduzir os termos de um enunciado, melhor dizendo, os predicados atribuíveis aos sujeitos. A questão era: qual seria o “medium”, isto é, o elemento no qual as categorias vigoram: o ser do ente, a língua e a linguagem ou o pensamento e o conceito? Porfírio, segundo o seu propósito de uma “Eisagogé” (Introdução) e seguindo uma tradição presente na escola peripatética (Boeto, sucessor de Andrônico de Rodes; e Hermínio, mestre de Alexandre de Afrodísia), toma o fio condutor da interpretação lógica, por ser ela a intermédia, ou seja, ela inclui a dimensão da língua e da linguagem e remete para a dimensão do ser e do ente. A obra em que Porfírio discute o problema das categorias é usualmente conhecida em forma abreviada sob o título de “Isagoge”. O título completo soa assim: “Eisagogé eis tais Aristotélous katêgoríais, perì tôn pénte phônôn”1, literalmente, “Introdução às Categorias de Aristóteles: acerca das cinco vozes”. Trata-se, em primeiro lugar, de uma introdução. Introdução a quê? A resposta pode ser dada em diversos níveis: como uma introdução ao problema das categorias em Aristóteles; como uma introdução à lógica; e como uma introdução à filosofia. Com efeito, a lógica era a propedêutica à filosofia; Aristóteles era considerado o pensador que abria o acesso à compreensão dos “mistérios” tratados por Platão, e o “Órganon” em geral e as “Categorias” em especial eram considerados o ponto de partida do estudo das obras de Aristóteles. De que se trata, porém, quando o título fala de “cinco 1 Cf. PORFÍRIO. Isagoge. Texto greco a fronte / versione latina di Boezio. A cura di Giuseppe Girgenti. Milano: Rusconi, 1995. A introdução desta obra pelo organizador desta edição italiana serviu como um estímulo importante para o autor deste comentário e abriu perspectivas importantes de interpretação. Sejam dados os créditos, porém, também a outros textos de que o autor se serviu na elaboração do presente texto: ROVIGHI, Sofia V. Elementi di Filosofia (3 vols.). Brescia: La Scuola Editrice, 1998. LIBERA, A. de. Il Problema degli Universali: da Platone alla fine Del Medioevo. Firenze: La Nuova Italia Editrice, 1999. 16 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... vozes”? Na Idade Média, estes gêneros supremos eram chamados de “Quinque voces” (Cinco Vozes). A “voz” é a dimensão sensível imediata do exercício concreto da linguagem, ou melhor, da fala ou discurso: Em seu exercício concreto, o discurso (deixar ver) tem o caráter de fala, de articulação em palavras. O lógos é phonê e, na verdade, phonê metá phantasías – articulação verbal em que, sempre, algo é visualizado2. Na Idade Média, haverá quem, como Roscelino de Compiégne (1050-1120), negaria qualquer estatuto de realidade aos universais, com a tese: “universalis est vox, flatus vocis” – o universal é voz, sopro da voz. Abelardo, porém, preferirá identificar “vox” (voz) a “sermo” (discurso). Podemos dizer que o título do Isagoge não exige uma interpretação “vocalista” ao modo de Roscelino. Entretanto, fica em aberto, se requer uma interpretação nominalista, ou seja, que nega qualquer estatuto de realidade ao universal. Acerca deste problema dos universais, porém, não iremos tratar aqui. Deixaremos para outra ocasião. Em todo o caso, na leitura que a tradição fez do Isagoge, as “cinco vozes” são interpretadas como cinco categoremas ou predicáveis, que designam os modos em que um predicado se predica de um sujeito, ou seja, as diversas formas de relações lógicas que o predicado pode ter com o sujeito: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente. Aristóteles, na verdade, nomeava quatro predicáveis: definição, próprio, gênero e acidente. A compreensão destes predicáveis pode ser articulada em relação a dois critérios: se o predicado pode ser conversível com o sujeito, ou seja, se pode haver uma permuta entre o predicado e o sujeito sem alterar o significado da proposição; e se o predicado é essencial ou não ao sujeito. A definição é um predicado conversível e essencial a um sujeito. O próprio é um predicado conversível, mas não essencial a um sujeito. O gênero é um predicado não conversível, mas essencial ao sujeito. O acidente é um predicado que não é nem conversível nem 2 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo (Parte I). Petrópolis-RJ: Vozes, 1988, p. 63. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 17 MARCOS AURÉLIO FERNANDES essencial ao sujeito. Porfírio, porém, em relação a Aristóteles, retira a definição e acrescenta a espécie na lista dos predicáveis ou categoremas. Porfírio diferencia entre categorias e categoremas. Categorias são tipos de predicados, são predicamentos; categoremas são formas de predicação, são predicáveis. Por exemplo: “Sócrates é animal, homem, branco, de um metro e setenta de altura, pai de três filhos”. “Sócrates”, enquanto nome próprio, nomeia um indivíduo e indica uma substância (substantivo). “Animal” e “homem” são predicados de Sócrates que nomeiam sua essência, não enquanto Sócrates, mas enquanto humano. “Homem” designa a espécie a que este indivíduo pertence, e “animal” designa o gênero a que esta espécie “homem” pertence. “Branco” é um predicado que nomeia uma qualidade de Sócrates, algo de contingente, uma vez que Sócrates, a rigor, podia não ser branco e a sua cor é algo de acidental, não é essencial. “De um metro e setenta de altura” nomeia uma quantidade. “Pai de três filhos” nomeia uma relação. Estas indicações trazem à tona as categorias ou predicamentos e respondem à pergunta: quais são os predicados de Sócrates? Já o modo de ser dos categoremas ou predicáveis aparece quando perguntamos: de que modo se predica os predicados “animal”, “homem”, “racional”, “capaz de rir”, “branco”, “pai de três filhos” de Sócrates? Resposta: “animal” se predica como gênero; “homem”, como espécie; “racional” como diferença específica; “capaz de rir” como próprio; “branco” e “pai de três filhos” como acidentes, no caso de “branco” nomeando uma qualidade, e no caso de “pai de três filhos” nomeando uma relação. Os cinco predicáveis referidos por Porfírio são, pois: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente. Vejamos, agora, mais de perto o modo de predicação de cada um desses predicáveis. Gênero (Génos) nomeia um predicável que indica a essência do sujeito, só que de modo indeterminado, pois um gênero é comum a várias espécies; espécie (eidos) nomeia um predicável que indica, de modo determinado, a essência do sujeito; diferença (diaphorá) nomeia 18 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... um predicável que indica o elemento definidor ou determinante de uma espécie, ou seja, aquilo que a faz distinguir-se das demais espécies; próprio (ídion), por sua vez, nomeia um predicável que indica uma característica, a qual sempre diz respeito ao sujeito em questão, mesmo não fazendo parte da definição da espécie, ou seja, o próprio é um predicável, o qual diz respeito a todos os indivíduos de uma espécie, somente a estes e sempre; por fim, acidente (symbebekós) nomeia um predicável que indica algo que diz respeito ao sujeito em questão, mas só casual ou ocasionalmente, não estando sempre presente nele, ou seja, o acidente é aquilo que pode estar presente ou ausente da coisa, sem que ela, por isso, deixe de ser especificamente aquilo que ela é. Tomemos, por exemplo, o caso do “homem”. A definição de homem soa assim: “homem é animal racional”. “Animal” indica o gênero. “Homem”, a espécie. “Racional”, a diferença. Algo que não entra na definição de homem, mas que é uma sua característica sempre presente, pode ser tomado como seu próprio. Por exemplo: ser capaz de rir. A capacidade de rir é uma característica própria do homem enquanto homem, ou seja, enquanto espécie. Outra coisa que não entra nem na definição de homem nem lhe é uma característica própria, isto é, sempre presente, e que acontece só casual ou ocasionalmente é um acidente, isto é, algo de casual, que sobrevém ao homem só ocasionalmente, como, por exemplo, ser branco ou negro, ser rico ou pobre, ter nascido no Brasil ou na Itália etc. Se tomarmos em consideração as “cinco vozes” como possibilidades de predicação, ou seja, como possibilidades de relação entre predicado (P) e sujeito (S), então podemos compreendê-las do seguinte modo. 1. Gênero: quando P é predicado de modo essencial na definição de S, sendo S o nome de uma espécie. Por exemplo: “Homem é animal racional”. Nesta definição, “animal” é gênero de “homem”, que é nome de uma espécie. Os gêneros se dividem em diversas espécies: Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 19 MARCOS AURÉLIO FERNANDES com efeito, há diversas espécies de animais. 2. Espécie: quando P é predicado essencial de S, sendo S o nome de um indivíduo. Por exemplo: “Sócrates é homem”. É que a espécie se divide numericamente em diversos indivíduos: assim, a espécie “homem” se divide, do ponto de vista lógico, em muitos e vários sujeitos com nomes próprios, como Pedro, João, Maria, Teresa etc. 3. Diferença: quando P é predicado a modo de qualidade de S, onde esta qualidade entra na definição da essência do sujeito em questão. Trata-se, portanto, não de uma qualidade acidental, mas sim de uma qualidade essencial. A diferença é o que determina o gênero, fazendo aparecer a espécie. Por exemplo: “O homem é racional”. A razão é o que diferencia a espécie “homem” de outras espécies de animais, muito embora a racionalidade não seja um atributo somente do homem, mas de todos os seres espirituais. Por exemplo: os espíritos, tais como demônios e deuses, na visão grega, e anjos e demônios na visão cristã, serão considerados também como seres racionais. Por isso, na definição porfiriana do homem, se acrescentará as diferenças “racional e mortal” e não somente a diferença “racional”. Racional diferenciará a espécie homem dos animais irracionais e, “mortal”, dos “animais” (viventes, seres dotados de alma) racionais imortais, ou seja, os espíritos. 4. Próprio: quando P é um predicado não-essencial, isto é, que não entra na definição da essência de um S, mas que é uma sua característica típica, identificadora, constante, invariante. Ex.: “O homem é um ser vivo capaz de rir”. Isto valerá para todos os indivíduos humanos, sempre, mesmo se alguns não exercerem esta capacidade. 5. Acidente: quando P é predicado de modo nãoessencial e indica algo que apenas casual ou ocasionalmente pode estar presente em S. Por exemplo: “Sócrates é pai de três filhos”. De uma maneira esquemática, nós podemos expor assim os cinco predicáveis: 20 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... Isto quanto ao título do Isagoge. Precisamos, no entanto, entender também qual a chave de leitura que Porfírio adota ao comentar os escritos aristotélicos. É o nosso próximo passo. 2 A chave de leitura henológica de Porfírio na interpretação da lógica e da ontologia de Aristóteles Em Porfírio, os conceitos fundamentais da ontologia aristotélica são lidos numa chave de leitura típica do neoplatonismo, que pode ser denominada de henológica e que tem como referência os binômios: uno/muitos, todo/partes, identidade/diferença. Sob o ponto de vista do binômio uno/muitos, Porfírio diz: Quando se descende, portanto, às espécies ínfimas, necessariamente se procede, com a divisão, até à multiplicidade; enquanto, quando se remonta aos gêneros supremos, necessariamente se reconduz da multiplicidade à unidade: de fato, a espécie, e, ainda mais, o gênero, reconduz os muitos a uma única natureza, enquanto, ao contrário, os indivíduos e as coisas particulares, dividem sempre o uno em multiplicidade (Isagoge 6, 16-20). O domínio dos indivíduos é o do domínio da máxima multiplicidade. A unidade dos indivíduos é uma unidade numérica. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 21 MARCOS AURÉLIO FERNANDES Se mantivermos o olhar na multiplicidade dos indivíduos nos dispersaremos numa infinidade de substâncias, com uma infinidade de acidentes. Se elevarmos o olhar um pouco, tentando colher o que há de comum entre muitos e vários indivíduos, descobriremos ainda uma multiplicidade de espécies e subespécies. Se elevarmos um pouco mais o olhar do intelecto e buscarmos a unidade de muitas e várias espécies, descobriremos uma multiplicidade reduzida de gêneros. E se elevarmos o olhar para os gêneros supremos, nós encontraremos uma multiplicidade finita de conceitos, a qual nos aproximará cada vez mais da unidade que recolhe todas as coisas, e que não pode ser conceituada ou encerrada em qualquer categoria. Do ponto de vista mereológico, ou seja, na perspectiva do binômio todo/partes, Porfírio diz: O gênero é um todo, enquanto o indivíduo é uma parte; a espécie é ao mesmo tempo todo e parte, mas, parte de outra coisa, e todo em outra coisa, e não de outra coisa; de fato, o todo está nas partes (Isagoge, 8, 1-3). Os dois extremos são, portanto, o gênero e o indivíduo. Gênero é um conceito de totalidade, certamente, uma totalidade unitária, embora não simples, pois é composta de várias e muitas espécies. O indivíduo, tomado em sua unidade numérica, é aquela substância que é distinta de todas as outras (“dividida” em relação às demais) e que em si mesma não pode mais ser dividida: indivisum in se et divisum a quolibet alio, dirá o adágio da Escola. É claro que o indivíduo pode ter partes e que cada parte pode ser considerada em si mesma e pode também ser considerada em suas subpartes e assim infinitamente. Entretanto, a unidade aqui considerada é uma unidade lógica, mais do que física. Chamamos de indivíduo uma realidade tomada enquanto tal, um ente enquanto este ente intencionado numa percepção, ou seja, numa intuição ou numa visão imediata. Sócrates é um indivíduo, ou seja, uma substância individual, mas não é uma substância simples. De fato, esta substância é composta, de matéria e forma, de corpo e alma. 22 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... É verdade que o corpo de Sócrates é divisível em tantos órgãos e cada órgão pode ser dividido ulteriormente e assim por diante. Entretanto, no nome próprio “Sócrates” viso um indivíduo, ou seja, falo da realidade que é esta pessoa, esta substância individual. Nisso, estou falando de uma unidade indivisível, pois é a unidade de uma pessoa, distinta de todas as demais pessoas e, ao mesmo tempo, única e singular em si mesma; e a totalidade dos seus aspectos não é uma mera soma de partes, mas sim uma totalidade vivente multidimensional, corporalpsíquica-espiritual; uma totalidade que se reúne em torno de um eu, melhor, de um si-mesmo, que é o centro unificador de seus atos e de seus aspectos. Tudo isso quer dizer: embora o indivíduo seja uma totalidade real, natural, “física”, ele não é, do ponto de vista lógico, uma totalidade que tem sob si mesmo outros tipos de unidade: é indivisível. Entretanto, entre o gênero, que é totalidade, e o indivíduo, que é parte, está a espécie, que é parte e todo, ao mesmo tempo. Porfírio dá, porém, uma dica sobre os diferentes modos de ser todo e parte, em relação à espécie. Diz que a espécie é parte de outra coisa; e que é todo em outra coisa. O “ser-de” indica a relação no horizonte da predicação. A espécie é parte do gênero, como “homem” é parte do gênero “animal”. Neste caso, o ser-parte-de é tomado a partir da predicação. Mais uma vez, “parte” tem aqui um sentido lógico, melhor, onto-lógico e não ôntico-físico. O ser-animal se predica do ser-homem. “Homem”, enquanto espécie, por sua vez, participa, ou seja, toma parte do modo de ser do gênero “animal”. Por outro lado, a espécie é todo; e todo em outra coisa. O “ser-em” indica, em sua perspectiva, uma presença imanente. A espécie é uma totalidade participada por muitos, vários e diferentes indivíduos. E que se encontra, como forma comum e como estrutura invariante, em cada indivíduo. Enquanto forma imanente, a espécie não é um todo que está “por fora” dos indivíduos, mas um todo que está em cada indivíduo, pois, diz Porfírio, “o todo está nas partes”. Poderíamos, talvez, dizer que a espécie se encontra individuada Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 23 MARCOS AURÉLIO FERNANDES em cada indivíduo? Se eu tomasse cor como gênero, e vermelho como espécie de cor, poderia dizer que o ser-vermelho se encontra presente em cada vermelho individual, tomado como este vermelho aqui, presente neste vaso de cerâmica, que é único no mundo, com esta precisa nuança que lhe é única e singular? Talvez sim, na perspectiva da reflexão porfiriana. Há, ainda, a perspectiva do binômio identidade/diferença. Porfírio afirma que as diferenças “são parte integrante da definição de cada coisa, e o ser da coisa, que é uno e idêntico, não admite nem aumento nem diminuição” (Isagoge, 9, 20-22). O universal diz a identidade de diversos e diferentes. Ser idêntico é ser uno. Todo ente é idêntico consigo mesmo, à medida que é uno. Diversos entes são idênticos à medida que, entre eles, há uma unidade, que os reúne numa comunidade. Todas as abelhas são idênticas enquanto são abelhas, são diversas apenas enquanto há diferenças de grandeza, beleza etc. Quer dizer: no serabelha, são idênticas. Logo se vê, também, que ser-idêntico não é serigual. A identidade é um corolário da unidade. A igualdade o é da multiplicidade. Pois bem, o ser de uma espécie é único e idêntico, ainda que os indivíduos que dela participam sejam muitos e distintos. Esta unidade específica permanece sempre una, isto é, ela não se multiplica com a multidão dos indivíduos. Assim, nesta perspectiva, a espécie “homem” não se multiplica com o aumento ou a diminuição dos indivíduos humanos. Mais do que uma realidade factual, a espécie diz uma possibilidade essencial, um possível modo de ser, um poder-ser. Também permanece sempre idêntica, pois não se diferencia, enquanto espécie, em razão das distinções que se operam sob sua vigência. Por exemplo: o vermelho permanece sempre idêntico consigo mesmo, enquanto vermelho, não obstante acontecer de a vermelhidão ou rubor se dar em distintas nuanças e infindas particularidades em todos os vermelhos existentes nas coisas. A espécie não aumenta nem diminui, 24 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... com o aumento e diminuição dos indivíduos. Ela é e permanece sempre una em si mesma. A diferença entre indivíduo e espécie, portanto, parece não ser uma diferença ôntica, que diz respeito ao ente em suas propriedades fatuais, mas sim uma diferença ontológica, isto é, uma diferença não entre ente e ente, mas sim entre ser e ser, ou seja, entre ser individuado e ser comum. Aumento e diminuição dizem respeito ao domínio dos indivíduos e dos acidentes das substâncias individuais. O ser da coisa é, porém, uno e idêntico. A unidade do indivíduo é numérica. A unidade da espécie não é numérica. Por outro lado, não obstante a ênfase na identidade como corolário da unidade, não se pode dizer que a diferença deixa de ter importância. Porfírio afirma, ainda, que as diferenças entram na definição das coisas, como partes integrantes, isto é, como partes intrínsecas, essenciais. Naturalmente, trata-se de diferenças específicas, pois as diferenças individuais não entram na definição de um ente. O indivíduo enquanto tal é indefinível. Não se pode definir “Sócrates”. Mas se pode definir uma espécie, como “homem”, por exemplo. Do mesmo modo, um gênero supremo não pode ser propriamente definido. Não se pode definir, por exemplo, ser. Pois ser é um conceito transcendental, que ultrapassa toda determinação em termos de gênero, diferença e espécie. Ora, aqui estamos falando de definição em sentido rigoroso, como definição essencial, de cunho metafísico, ou seja, uma definição que precisa e determina os constitutivos da essência da coisa, isto é, o gênero próximo e a diferença específica. Assim, segundo a antropologia filosófica tradicional, definir “homem” é dizer “animal racional”, sendo “animal” o gênero próximo da espécie “homem” e “racional” a diferença que determina a especificidade da espécie “homem”, destacando-a do fundo indeterminado do gênero “animal”. Logo se vê que é a diferença o elemento determinante, que torna nítido e preciso o que antes era indeterminado, isto é, difuso e vago. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 25 MARCOS AURÉLIO FERNANDES 3 A “scala predicamentalis” ou a “árvore de Porfírio” Tendo tratado das noções dos predicáveis e da chave de leitura henológica feita por Porfírio a partir dos binômios uno/múltipo, parte/todo e identidade/diferença, convém agora tratar da “scala predicamentalis” ou o que ficou conhecido na tradição como “árvore porfiriana”. Trata-se de uma escada que articula os predicáveis, descendo do gênero supremo através das várias diferenças específicas até a espécie ínfima e, por fim, ao indivíduo. 3.1 Exposição da “scala predicamentalis” A ordem dos predicáveis, ou seja, sua disposição e articulação, se dá de maneira gradual, a modo de escalação descendente. Vemos, assim, que, ao fundo da scala predicamentalis está a ordenação henológicaontológica hierárquica. Porfírio escreve: O gênero supremo é aquele sobre o qual não pode haver algum outro gênero superior, enquanto a espécie ínfima é aquela debaixo da qual não pode haver alguma outra espécie inferior; são termos intermediários entre o gênero supremo e a espécie ínfima, outros que são, ao mesmo tempo, gênero e espécie, naturalmente em relação a sujeitos diversos. Esclarecemos este discurso tomando como exemplo uma categoria. A “substância” é ela mesma um gênero, à qual é subordinada a espécie “corpo”; subordinado a corpo” é “ser vivente”; a este é subordinado “animal”, enquanto a “animal” é subordinado “animal racional”; a este, ainda, é subordinado “homem”, e a “homem”, enfim, são subordinados “Sócrates”, “Platão” e os outros indivíduos. Entre todos estes termos, “substância” é o gênero supremo, porque é somente gênero, enquanto “homem” é a espécie ínfima, porque é somente espécie; “corpo”, por sua vez, é espécie de “substância” e, ao mesmo tempo, gênero de “ser vivente”. Por sua vez, “ser vivente” é espécie de “corpo” e gênero de “animal”; e assim “animal” é espécie de “ser vivente” e gênero de “animal racional”; “animal racional” é espécie de “animal” e gênero de “homem”; “homem”, enfim, é espécie de “animal racional”, mas 26 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... não é gênero dos homens individuais, mas é somente espécie (Isagoge, 4, 17-31). A scala predicamentalis ou “árvore porfiriana” pode ser representada esquematicamente de diversas formas, algumas mais estáticas, outras mais dinâmicas. Tentemos, pois, representar em forma de escada e em forma de árvore a ordem dos predicáveis segundo o exemplo apresentado por Porfírio no nosso texto que acabou de ser citado, que é o exemplo da categoria substância. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 27 MARCOS AURÉLIO FERNANDES As divisões, portanto, ficam assim: A árvore porfiriana é, portanto, uma escala descendente. E a descendência se diz tanto em sentido de um movimento que vai de alto a baixo, do gênero supremo, que é a substância, até a espécie ínfima, que é o homem, e, para além dela, até os indivíduos humanos – Sócrates, Platão etc.; quanto no sentido de um movimento por assim dizer geracional, que constitui uma ordem de proveniência, ao ritmo da sucessão dos gêneros. Com efeito, a palavra grega “génos”, na linguagem corrente, significava origem, família, descendência, estirpe. Claro que, aqui, não se trata propriamente de uma geração física. Trata-se, antes, de um movimento de proveniência, que se estabelece na dinâmica dos predicáveis, no reino enigmático dos universais, isto é, da linguagem-conceito, com suas correspondências ontológicas (metafísicas, transcendentes, a priori) e também ônticas (físicas, 28 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... imanentes, empíricas). Por um lado, é um movimento de descendência através de diversas formas de unidade (genérica, específica e numérica), onde a cada nível inferior se evidencia mais e mais a multiplicidade. Trata-se, por outro lado, também de um movimento de contínua e crescente determinação, onde o que aparece vai se definindo cada vez mais de maneira precisa e vai ganhando cada vez mais em nitidez. Poderíamos entender cada nível como um horizonte de compreensão do ser do ente. Aliás, a palavra grega para definição (que articula gênero e diferença, fazendo resultar a espécie) é hóros, que, em linguagem usual, significava limite, confim. Aristóteles também usava como equivalente de hóros a palavra horismós, de-limitação, de-finição. Para o grego, o limite (péras), não era algo de negativo, era, antes, sinônimo de perfeição. Quando uma obra alcança o seu limite, ela se consuma e passa a repousar em si mesma. Então é que ela brilha em sua verdade e beleza. O limite é a determinação, que dá nitidez à identidade da coisa. É o que torna visível o fenômeno. Ora, chamamos de “horizonte” aquilo que delimita a visibilidade, o aparecimento, a presença e vigência de uma paisagem. Podemos, pois, entender cada nível da escala predicamental como sendo um horizonte de aparecimento, de presença e de vigência de algum modo de ser. Em vez de horizonte, talvez pudéssemos também usar a palavra dimensão, pois cada nível tem um papel mensurador, ou seja, nos oferece certa medida de determinação do ser dos entes. Em termos lógicos, como a extensão e a compreensão de um termo são inversamente proporcionais, os membros superiores da escala têm mais extensão e menos compreensão e os termos inferiores vão apresentando menos extensão e mais compreensão. É como se o horizonte fosse se tornando cada vez mais próximo e a clareza do que se vê fosse ficando cada vez mais nítida. 3.2 Substância O horizonte máximo de definição do ente é a substância (ousía). Ousía é expressão do ser, é vigência do ser, essência em sentido verbal, Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 29 MARCOS AURÉLIO FERNANDES como o que essencializa, dá vigor e vigência ao ente em seu ser. É potência como poder-ser, não no sentido passivo da potencialidade, típica da matéria, mas no sentido ativo de uma atuação do ser como Puro Agir. Com efeito, Porfírio entende que o Uno é um Agir Puro e que este Agir Puro é Ser e que o Ser é anterior ao ente, e, por conseguinte, à substância. A substância seria como que o assentamento ou repouso do ser como Puro Agir. No seu Comentário ao [diálogo] Parmênides de Platão (XII, 22-33) ele diz: Considera agora se Platão não parece deixar entender isto, a saber, que o Uno que é acima da substância e do ente, não seja nem ente, nem substância, nem atividade, mas acima de tudo aja e seja Ele mesmo o Puro Agir. Por conseguinte, Ele mesmo seria o Ser que é antes do Ente; participando deste Ser, portanto, o Segundo Uno possui um Ser derivado, e este é o ‘participar do ente’. Portanto, o Ser é dúplice: o primeiro preexiste ao Ente, o segundo é aquele que é produzido pelo Uno, que está além do Ente. E o Uno é em sentido absoluto, ele mesmo, o Ser, ou, de qualquer maneira, é a Ideia do Ente. Em primeiro lugar, vê-se que Porfírio alude a uma prioridade do ser em relação ao ente. “Ser”, porém, se compreende fundamentalmente de dois modos: em sentido originário, como o Uno transcendente, o Puro Agir; e em sentido derivado, como ser, atuação, imanente ao ente. O ente propriamente não é; só é enquanto participa do Ser, à medida que é produzido e posto no ser. O que propriamente é diz-se ser, tomado em sentido originário, como Puro Agir e como Ideia, isto é, como Uno e potência unificadora, forma originária e originadora, geradora e configuradora do ente enquanto ente. Na Idade Média, sobretudo em Tomás, o ser vai ser determinado como “actus essendi”: ato de ser. Entretanto, além do ser como verbo (einai/esse), há o ser como particípio substantivado (on/ens). Isto quer dizer: há também o ser no horizonte das coisas que são derivadas do Uno/Bem, melhor, dos entes que recebem o ser a partir da Tríade Uno-Intelecto-Alma. E, neste horizonte, ente 30 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... se diz em primeiro lugar como substância e depois como acidentes. Por isso, é compreensível que Porfírio tome como exemplo para a articulação dos predicáveis a categoria de substância (ousía). No limite, isto é, na consumação ou perfeição (ato/forma), a ousía, aparece como presença quieta, que repousa em si mesma, como subsistência, substância. O primeiro horizonte da definição essencial é, portanto, a imensidão da vigência de ser e de sua subsistência, o “ens per se”: a substância. “Substância” é o génos primeiro, o ascendente primordial, do qual os outros modos essenciais de ser recebem a proveniência. É o genikôtaton: o gênero generalíssimo. Entretanto, aqui, o geral não deve ser entendido meramente como conceito vazio e indeterminado. O vazio do gênero generalíssimo é, por assim dizer, um vazio pleno, pois está prenhe, grávido, de possibilidades. Nele estão em potência todos os outros modos possíveis de ser do ente, ou, mais restritamente, da substância. É máxima universalidade categorial: o uno supremo no domínio das categorias, isto é, dos modos de ser e de dizer, em referência ao ente. No meio desta universalidade, acontece uma primeira cisão, um primeiro corte. A unidade dá lugar à dualidade. O uno da substância se duplica em duas articulações fundamentais ou dois primordiais modos de ser. Emerge a diferença no meio da identidade, a divergência no seio do máximo convergente. Aparecem as diferenças específicas da substância: o modo de ser do corpóreo e o modo de ser do incorpóreo. Na verdade, numa perspectiva platônica, trata-se de dois mundos: o kósmos aisthêtós (mundus sensibilis) e o kósmos noêtós (mundus inteligibilis). O mundo sensível é a ordem dos entes que podem ser percebidos no espaço-tempo: os corpos e tudo o que é corpóreo. O mundo inteligível é a ordem das ideias, ou seja, dos paradigmas ou arquétipos de todos os modos de ser, o ser ideal, o incorpóreo. O mundo sensível é a totalidade dos entes em devir. O mundo inteligível, a dos entes que permanecem sempre em quieta plenitude e em plena quietude. O mundo sensível é uma imagem do Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 31 MARCOS AURÉLIO FERNANDES mundo inteligível, assim como o tempo é uma imagem da eternidade. Numa perspectiva aristotélica, por sua vez, o inteligível se une ao sensível; isto é, as formas inteligíveis (eídê noetà) se tornam imanentes às formas sensíveis (eídê aisthetá) imprimindo-se na matéria dos sujeitos e expressando-se como forma externa (morphé) e figura (schéma) das coisas. Por conseguinte, o reino do corpóreo não é ininteligível. Graças às formas (eídê) ele está prenhe de inteligibilidade, ou seja, em potência ele já traz as diversas dimensões de formas, que se apresentarão em seu horizonte. Aparece, assim, o gênero “corpo”. 3.3 Corpo “Corpo” (sôma) é uma espécie de substância, a saber, a substância sensível, ou seja, que é intencionada no ato de nossa percepção natural. É a ordem da substância, que se dá como entes extensos qualificados, submetidos ao devir. De fato, tal como se dão na experiência cotidiana, são corpos numericamente unos, diferentes, extra-postos espacialmente, que manifestam determinadas qualidades: grandezas, configurações, cores e brilhos, sons, calor, dureza, peso etc. A coisa suposta como substrato dessas manifestações, por sua vez, é compreendida na nossa percepção como coisa extensa. Com efeito, propriedade característica do corpo é a extensão concreta, a qual, porém, é mais do que a extensão puramente geométrica, pois esta é imaterial e imaginária, enquanto aquela é material e real. O corpo se encontra, pois, materialmente estendido em três dimensões: cumprimento, largura e profundidade; é divisível em partes reais; e se dá em referência a uma localização num “onde” (ubi), a uma disposição de suas partes (situs) e a uma atinência a outros corpos (habitus). Por sua vez, no ou junto ao corpo se manifestam também as categorias do fazer (actio) e do sofrer (passio), além do movimento, que pode ser local (ubiquação), aumento e diminuição e alteração (mutações acidentais e substanciais). Logo se vê que todas essas categorias não são simplesmente interpretadas em cha- 32 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... ve científico-matemática, isto é, traduzidas em cifras quantitativas, mas são prenhes de ressonâncias qualitativas, advindas da experiência comum cotidiana. Outra observação necessária diz respeito ao estatuto da extensão em relação à substância-corpo. Na perspectiva antiga, diversa daquela cartesiana, relacionada à visão da ciência matematizante da natureza, a extensão não é propriamente a essência do corpo, a sua ratio essendi, um fundamento de seu ser, mas é apenas uma sua propriedade característica, e, portanto, uma sua ratio cognoscendi, um princípio de (re)conhecimento. A categoria acidental que imediatamente se liga à extensão é a quantidade, que se define a partir da massa e da figura estendida nas três dimensões espaciais: cumprimento, largura e profundidade ou altura. Vemos, assim, que a substância-corpo é, na verdade, um mundo pleno e prenhe de especificidade, de atividade e de inteligibilidade. Cada corpo, de fato, segundo a perspectiva do hilemorfismo, é constituído de dois princípios ou condições-de-ser: de matéria (hýlê), momento potencial e indeterminado, contudo, susceptível de determinação; e a forma (morphê), o momento atuante, que dá o ser, determina e qualifica tal ente. “Corpo” é também um gênero, isto é, uma totalidade, uma ordem prenhe, que traz, em potência, diversos outros modos de ser. De fato, corpo pode ser mineral, vegetal ou animal. São como que possibilidades de ser da corporeidade. Por isso, entra em jogo, no meio do reino “corpo”, uma cisão que introduz duas diferenças fundamentais, que são, ao mesmo tempo, dois níveis diversos: o “animado” e o “inanimado”. “Corpo inanimado” nos introduz no reino dos minerais, onde ser vigora como simplesmente ser, como ocorrer no espaço do mundo sensível. A pedra, em sua presença retraída, isto é, compacta, maciça, quieta e fechada em si mesma é uma imagem característica deste tipo de substância e substancialidade. “Corpo animado”, por sua vez, nos introduz na totalidade dos seres viventes: vegetais e animais. Surge, assim, uma terceira dimensão da substância, a da vida. Ao corpo pertence simplesmente ser. Ao ser vivente, o ser e o viver. Aliás, para o vivente, ser é viver. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 33 MARCOS AURÉLIO FERNANDES 3.4 Ser vivente Entramos, agora, no horizonte que leva o nome de “ser vivente” ou “ser animado” (émpsychon). Entramos, então, na ordem do vital e da vitalidade em geral, onde se dá a regência do princípio da vida (psyché). Certamente, a substancialidade do vivente é diversa daquela do não vivente. Não há apenas uma diferença de grau entre o inanimado e o animado, mas sim um salto qualitativo, melhor, o surgimento de uma diferença não só acidental, mas, sobretudo, substancial, essencial. Como vimos, o ser animado ou vivente é uma espécie de substância corpórea, mas nele se manifesta algo de essencialmente novo. O “animado” (émpsychon) ou “vivente” caracteriza-se por abrir e manifestar a totalidade-mundo da psychê (ânima: alma). Trata-se do princípio vital, que se manifesta tanto na vida vegetativa, quanto na vida sensitiva, quanto na vida intelectiva. Diversa será, pois, a “animação” ou o “ânimo” de cada tipo de vida. O mundo vivente supõe o mundo corpóreo, mas apresenta um “quê” (quid) que não se encontra ao nível do corpo inanimado, da pedra, por exemplo. Este “quê” é a forma substancial chamada psychê, alma. É aquilo pelo que o corpo vivente é o que é, ou seja, aquilo que torna corpo vivente o corpo vivente. Falando de modo grosseiro, vivente é aquilo que tem a capacidade de mover-se. Contudo, este automovimento não deve ser entendido apenas no sentido do movimento local (ubiquação). Também uma máquina pode se mover e, nem por isso, uma máquina é um vivente. Também um vivente apresenta movimentos precisos, mas nem por isso o vivente é uma máquina. Mais do que dizer que o vivente é um ente capaz de automovimento, é melhor dizer que o vivente é aquele ente que é capaz de ação imanente. Ação imanente é aquela que vai além da ação transitiva. A ação transitiva termina no objeto ao qual ela tendia. Já a ação imanente é aquela que enriquece e aperfeiçoa o próprio agente. Podemos formular ainda melhor: vivente é aquele ente que tem em si mesmo o princípio da própria atividade, do próprio devir, ou seja, é 34 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... aquele que vem a ser o que é, por força e graça de si mesmo. A autonomia é, pois, uma propriedade característica do vivente. O vivente vegetativo executa por si mesmo o movimento pelo qual ele busca alcançar o próprio fim, isto é, a própria consumação ou a perfeição de sua natureza. A planta por si mesma assimila nutrientes, realiza a fotossíntese, cresce, floresce, se frutifica. O vivente sensitivo, por sua vez, providencia para si mesmo o próprio alimento e as demais condições para assegurar a vida, baseando-se, fundamentalmente, na percepção sensorial, isto é, no conhecimento sensitivo. O vivente intelectivo, enfim, isto é, o homem, age conforme a sua liberdade, baseando-se no conhecimento intelectivo do ente no seu todo. Ele é capaz de operar e agir, a partir de representações abstratas e de conceitos universais. Ora, o princípio regente da vitalidade do vivente, o que suporta e governa sua auto-organização, sua autoregulação e sua autoconsumação, chama-se, na perspectiva da ontologia da substância, alma (psyché). A alma não é algo que se acrescenta ao corpo, mas é princípio formador do corpo enquanto corpo vivente. Não há corpo e só depois sobrevém como um acréscimo extrínseco, a alma. Corpo vivente só é o que é a partir da atuação do princípio de vida, que se chama alma. Isto quer dizer: a alma é potência estruturante do corpo-organismo enquanto tal e de suas funções, potência imanente ao próprio corpo, que dá as leis de suas próprias atividades e que o torna capaz de alcançar suas finalidades. É, portanto, princípio que dá o ser ao corpo e potência unificadora das suas funções vitais; princípio de subordinação e de coordenação das muitas atividades do corpo vivente. Aristóteles denominava a alma de “entelécheia” do corpo: a forma que determina a realização consumada (entelôs + échein = ter-se perfeitamente) de uma potencialidade. É aquilo que dá ao corpo olhos para ver, ouvidos para ouvir etc. Nesta visão teleológica, muito diversa da visão mecanicista moderna, o vivente tem olhos porque é destinado a ver, não vê porque tem olhos. Há uma definição aristotélica da alma que merece ser aqui citada: entelécheia he prôte sômatos physikoû dynámei zôên échontos; os Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 35 MARCOS AURÉLIO FERNANDES latinos traduziam por: actus primus corporis physici potentia vitam habentis, ou seja, alma é a forma determinante e consumadora do corpo natural que tem a vida como possibilidade (Da alma II, 4, 415 b). Alma é atuação primordial, princípio de ser e de devir; de um corpo natural, isto é, de um corpo não artificial, de um corpo gerado segundo a natureza (phýsis) e não segundo a arte (téchnê); de um corpo que se atém à vida como sua possibilidade, como seu poder-ser, quer dizer, de um corpo capaz de viver. No gênero “vivente”, porém, acontece uma cisão, uma diferença substancial entre “vegetativo” e “sensitivo”. A presença ou não da percepção sensorial caracteriza, pois, uma diferenciação substancial no gênero “vivente”. O vivente privado da percepção sensorial, que apenas vive, é o vegetal. Por sua vez, o vivente que é provido da capacidade de percepção sensorial, que vive e sente, é o animal. 3.5 Animal Saltamos, assim, para uma nova totalidade: a do “animal” (Zôon). Trata-se do vivente que é regido pela Zôê: o princípio perceptivo da vitalidade. É a instância da irrupção do conhecimento, mesmo que seja como conhecimento apenas sensitivo, como no caso dos animais irracionais. Com efeito, pelos sentidos, o animal é afetado por aquilo que se acha em seu meio ambiente e entra em conhecimento daquilo que o circunda. Os sentidos do tato, do olfato e do paladar sobressaem no aspecto afetivo da experiência sensitiva. Já a visão e a audição são por excelência formas de tomada de conhecimento, ressaltando, assim, o caráter cognitivo da experiência sensitiva. Aristóteles postulou, ainda, para além dos cinco sentidos externos, um sentido interno ou sentido comum, pelo qual o animal não somente sente, mas também sente de sentir. No sentido comum abre-se, pois, a dimensão da consciência. Pela consciência, o animal sabe de si, na imediatez do sentir. A capacidade perceptiva e a consciência dão ao animal 36 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... a possibilidade de se mover em seu ambiente com mais mobilidade do que a planta no seu. Maior mobilidade ainda ele alcança através da sua capacidade imaginativa e da sua memória sensitiva. A imaginação possibilita ao animal criar formas inusitadas de providenciar-se a vida. A memória dá-lhe um passado e abre-lhe a dimensão da experiência. Além do sentido comum, da imaginação e da memória, o animal é também provido de instinto. É pelo instinto que o animal se dirige, orientando-se em suas escolhas, em vista de seu fim: a própria vida. Um filhotinho de gato, mesmo sem experiência, excita-se como um caçador em potencial diante de um rato e se arrepia diante de um cão. O instinto mostra que a vitalidade do animal não é meramente causal mecânica, mas é também causal teleológica, ou seja, opera segundo os seus próprios fins. Tudo isso, pois, dá ao animal toda uma gama de possibilidades de providenciar para si mesmo as condições de manutenção de seu viver, bem como de reprodução, para a perpetuação da espécie. No meio, porém, desta totalidade chamada “animal” opera-se uma nova cisão: emerge a diferença substancial entre “irracional” e “racional”. Irracional é o animal que apenas sente, ou seja, que permanece fechado no círculo do sentir, melhor, da percepção sensorial. Racional é o animal que sente e pensa e que, pelo pensamento, transcende o ambiente e se abre para o mundo, quer dizer, para a totalidade do ser. Instaura-se, assim, uma nova espécie de substância-corpo-vivente: o animal racional. 3.6 Animal racional Porfírio entende “animal racional” como espécie de animal e gênero de homem! É diversa a sua perspectiva do modo como costumamos entender animal e homem. De modo usual, quando falamos de animal pensamos logo nos bichos, isto é, no animal irracional. E pensamos que o homem seja um bicho como outro, apenas com uma Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 37 MARCOS AURÉLIO FERNANDES diferença acidental: a inteligência. Nesta perspectiva, há apenas uma diferença de grau entre o animal-bestial e o animal-homem. Não há uma diferença substancial, como é uma diferença específica. A mudança de espécie, porém, se dá por uma diferença que não é acidental, como diferença de grau ou de qualidades, mas substancial, que é uma diferença essencial, substancial, no ser do ente em questão. Isto quer dizer que animalidade, predicada do ser pensante, é uma animalidade radicalmente diferente da animalidade dos bichos. O vivente pensante é aquele animal que é dito “racional”. Há animal racional e animal irracional. O irracional é o que apenas é e sente. O racional é o que é, sente e pensa. Irracional é o bicho. E o racional? Nós respondemos logo: o homem. Só que Porfírio, em seu texto citado acima, diz que “animal racional” é gênero de homem e não simplesmente o homem. Neste caso, o homem não é simplesmente e sem mais o animal racional, mas sim uma espécie de animal racional! Haveria outras espécies de animais racionais? Na visão neoplatônica, sim. Segundo nos reporta Agostinho, os neoplatônicos diziam haver três espécies de animais racionais: os homens, os demônios e os deuses (cf. Cidade de Deus, l. VIII, c. 15). Cada tipo de “animal racional”, por sua vez, traz uma forma de corporeidade própria. Os homens possuem corpo terreno; os demônios, corpo aéreo – são “espíritos dos ares”, como dizia S. Paulo (Ef 6,10); e os deuses, que têm corpo celeste ou etéreo. Os homens e os deuses são os dois extremos do gênero “animal racional”. Entre estes dois extremos se colocam, pois, os demônios. Estes têm em comum com os deuses a imortalidade e com os homens as paixões da alma. Já os deuses são etéreos, impassíveis e imortais. Por causa desta posição mediana dos demônios, Porfírio atribuiu-lhes um papel de mediadores entre os deuses e os homens. Na Cidade de Deus, Agostinho busca refutar esta atribuição de mediação dada por Porfírio aos demônios e busca mostrar que o único mediador entre os homens e Deus (e não “os deuses”) é Cristo (Cidade de Deus, l. IX, c. 15). Na 38 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... visão cristã, em lugar de demônios e deuses teremos, então, demônios e anjos. E o nome “demônio” perde o seu sentido neutro, de divindade inferior, que, na visão neoplatônica podia ser boa ou má, ou às vezes boa e às vezes má, e recebe um sentido exclusivamente negativo, identificando-se com o “diabólico”, o “satânico”. Seja como for, a perspectiva cosmológica neoplatônica (Apuleio, Porfírio) permitia pensar espécies diferentes de “animal racional”, e não somente uma única espécie, ou seja, o homem. Com “animal racional” abre-se, pois, uma totalidade nova. Aqui a vitalidade ou animalidade, o ser-alma ou vida, é regida pela razão, melhor, pelo logos. Nós estamos, pois, no domínio chamado “logikón”, pois é regido pelo logos. É a potência do légein, ou seja, a capacidade intelectiva, que inclui as seguintes capacidades: apreender o ente enquanto ente, isto é, apreender o ser; apreender a inteligibilidade do ente, os princípios e as verdades primeiras do todo do ente; universalizar, isto é, recolher na unidade do conceito a multiplicidade dos indivíduos, transcendendo, assim, a imediatez do sensível; receber em si mesmo, ao modo intelectivo, todas as formas de ser; poder conhecer todos os entes. Abre-se, assim, toda a vastidão, a profundidade e a originariedade do ser. O “animal racional” tem, pois, no pensamento e no conhecimento o princípio de sua animação, isto é, de sua vitalidade, com suas capacidades e atividades. Entre os ânimos pensantes, porém, se introduz uma diferença substancial. Há os que são imortais e os que são mortais. A mortalidade, com efeito, contingencia o intelecto humano de maneira radical. No mortal, o intelecto é razão, isto é, o noûs se faz diánoia: pensamento discursivo. Este, com efeito, não é imediatamente intuitivo. Para alcançar o universal, precisa do trabalho do conceito, carece de abstrair do sensível o inteligível, formular conceitos em palavras, dar voz aos seus discursos mentais, trazer para a forma da proposição o que quer dizer, progredir de verdade em verdade por meio do Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 39 MARCOS AURÉLIO FERNANDES raciocínio, para elaborar o conhecimento. A intelecção do espírito imortal é intuitiva, isto é, imediata; a do mortal é raciocinativa, ou seja, mediata. 3.7 Homem O homem é a espécie de ânimo pensante que é determinado pela sua mortalidade, isto é, pela sua finitude. “Homem é animal racional mortal”. A razão é a marca da finitude do intelecto humano. Para o homem, como acabamos de ver, a apropriação do inteligível é uma conquista, que requer a fadiga do conceito e o esforço da palavra. Para conhecer, o homem precisa conceituar, multiplicar os conceitos, sintetizá-los no juízo, conjugar os juízos entre si por meio do raciocínio, e, ao final, o que ele consegue conhecer e dizer não exaure toda a riqueza da realidade. Esta como que se lhe dá, mas sempre em fuga, em retraimento. No entanto, para o homem a razão é, tanto quanto marca de sua finitude, marca também de sua transcendência. Pois por ela ele libera-se da imediatez do sensível e projeta-se no espaço de liberdade do inteligível. Por isso, ao homem não é dado ter somente um ambiente, mas também um mundo. Com a razão se abre também o espaço da liberdade, tanto no sentido negativo de desvinculação do ambiente, quanto no sentido positivo de autodeterminação no seu mundo. A razão concede ao homem voltar-se para o ser, para a verdade e para o bem. Para a verdade, no seu comportamento teorético; para o bem, no seu comportamento prático. Ao arbítrio da sua razão é concedida, pois, a condução da vida do homem. No homem, com a razão e a liberdade, aparece a dimensão do espírito na ordem da substância. Emerge, pois, não somente a consciência do mundo, mas também a autoconsciência. Esta, por sua vez, se caracteriza pela capacidade de reflexão. O homem, de fato, percebe-se numa corporeidade vivente e sensível, apre- 40 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... endendo o próprio corpo não como objeto, mas como dimensão de si mesmo; sente e sente o próprio sentir, conhece e conhece o próprio conhecer, percebe-se inteligindo e sentindo e, neste perceber-se, é presente a si mesmo de modo imediato; enfim, percebe-se como uma vida que tem o poder de, pela sua reflexão, possuir-se e se autodeterminar. Daí a capacidade de criação do homem, a projeção de seu espírito no mundo, como técnica, arte, ciência, filosofia, religião. No quadro neoplatônico, o homem se encontra colocado no horizonte de dois mundos: o mundo corpóreo, no qual ele se encontra radicado, e o mundo incorpóreo, para o qual ele transcende por meio de sua razão. Com ele, a substância alcança sua mais perfeita forma no mundo corpóreo: a forma da autosubsistência do espírito, que é a liberdade. Ele é a espécie especialíssima, pois nele o corpóreo e o incorpóreo se unem. A árvore de Porfírio, portanto, é uma ascensão de modo em modo de ser, do corpo ao espírito. É um caminho de um crescendo da substancialidade. Normalmente, identificamos a substância com sua forma mais ínfima e elementar: a substância corpórea. O que nos é primeiro segundo o processo do conhecimento, é, porém o último segundo a ordem do ser. E vice-versa: o que é último no processo do conhecimento é o primeiro na ordem do ser. A escada predicamental nos faz subir, de nível em nível, para uma compreensão mais originária e apropriada de substância: a do espírito, ou seja, a autosubsistência do ser livre que é capaz de conhecer a verdade e de querer o bem. Quanto mais subimos a escada, tanto mais podemos intuir o que é a vigência de ser chamada substância: o ser se torna viver; o ser e viver se torna conhecer e querer; o conhecer racional se torna, enfim, intuição intelectual. E, na intuição intelectual, o inteligível finalmente se revela no vigor de sua vigência. Vislumbramos, assim, a ordem do inteligível nas palavras fundamentais, que nos remetem para além de todas as categorias: Alma, Intelecto, Uno/Bem. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 41 MARCOS AURÉLIO FERNANDES 3.8 O indivíduo Percorremos até agora a escala predicamental da substância em sua dinâmica dialética até a espécie especialíssima: o homem. Entretanto, não chegamos ainda ao fim. Há ainda o domínio dos indivíduos. O que é o indivíduo enquanto indivíduo? Como se compreende o ser da individualidade como tal? A língua grega nos dá um aceno, pois, o ente individual é denominado de “átomon”: o não-dividido, o indiviso. O adágio medieval o definiria: indivisum in se et divisum a quolibet alio – não dividido em si mesmo e dividido, isto é, distinto em relação a qualquer outro que seja. O indivíduo é, pois, cada vez, um, cada vez ele mesmo, e, por outro lado, é cada vez outro (alius) em relação a todos os outros indivíduos. A unidade do indivíduo, porém, é diversa daquela unidade do universal, ou seja, a da espécie e do gênero, pois esta é unidade da multiplicidade, e a unidade do indivíduo é uma unidade pura e simples, singular, ao modo de unicidade. O indivíduo não somente é numericamente uno, mas é também único. Ele é uma presença singular; uma realização “sui generis”; uma palavra da realidade, que é dita apenas uma única vez. É “fora de série”. Não tem outro que lhe seja igual. É irredutível a toda categoria, pois toda categoria universal ressalta o que é comum entre vários indivíduos. Nenhum intelecto humano pode, com efeito, apreender intelectivamente e dizer a individualidade deste indivíduo como tal. Por isso, os gregos antigos diziam que do indivíduo não há ciência. Nos âmbitos das espécies se dava, sempre de novo, uma cisão ou divisão entre opostos, introduzindo, assim, a diferença específica, que era uma diferença não acidental, mas essencial. Já os indivíduos de uma única espécie não se diferem essencialmente uns dos outros, mas sim acidentalmente, melhor, numericamente, e, melhor ainda, qualitativamente. Isto quer dizer que a unicidade do indivíduo não o exclui da comunhão ontológica com os demais indivíduos de sua espécie, 42 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 A ÁRVORE DE PORFÍRIO... pois, embora ele seja numericamente um em si mesmo, é uno por espécie com os outros que compartilham da mesma e comum essência. Por um lado, platonicamente, pode-se dizer que o indivíduo se mostra em sua individualidade como uma convergência única e irrepetível de “acidentes”, isto é, de propriedades e características, como um “caso único”. Contudo, Aristóteles deu maior peso ontológico ao indivíduo, ao tomá-lo não apenas como uma unidade acidental, e sim como uma unidade substancial, ao designá-lo como “substância primeira” (ousía prôtê). Assim, o indivíduo aparece como o sujeito único de manifestações ou propriedades acidentais que existem em outros, mas que, numa tal convergência, se encontra somente nele. Além disso, aristotelicamente, o ser individual é dito substância primeira também do ponto de vista lógico, enquanto é imediatamente e por excelência o sujeito (hypokeímenon, suppositum, subiectum) de que se afirmam ou se negam diversos predicados, e que não é ele mesmo predicado de nenhum sujeito. Nos dois extremos, pois, da escala predicamental, se encontram a substância em seu sentido o mais vasto e indeterminado e a substância do indivíduo da espécie homem, a substância em seu sentido mais concentrado e determinado possível. À guisa de conclusão Do exposto, percebemos que a escala predicamental em Porfírio não é a simples articulação de conceitos vazios. Pelo contrário, os conceitos lógicos, aqui, são prenhes de uma densidade ontológica, de uma densidade que se dá em múltiplos planos ou dimensões. Do ponto de vista lógico, vemos uma escala que vai descendendo, do gênero generalíssimo, que é a substância pura e simples até à espécie mais específica, que é o homem, e, ainda até à substância primeira e às suas diferenças acidentais, que é o ente individual. Do ponto de vista Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 43 MARCOS AURÉLIO FERNANDES ontológico e henológico, porém, somos elevados da substância dita como gênero generalíssimo até a espécie especialíssima e seus indivíduos e, na sua vitalidade pensante e mortal, abre-se a totalidade do ser, em sua vastidão como universo/natureza, mas também em sua altura/ profundidade e originariedade, à medida que, na dimensão do inteligível, o intelecto humano vislumbra aquilo que está além de toda a substância e de todo o ente, como Tríade divina ou, enfim, o Uno/ Bem como Puro Agir. Esta elevação, pela qual o mesmo, ou seja, o ser, a unidade, a identidade, é retomado em diversos níveis, se chama analogia. Cada nível tem o ser que lhe compete ter: ser como mero ser, como ser e viver, como ser, viver e inteligir. Vemos, assim, muitos modos de ser, ordenados hierarquicamente, onde o que o ser se diz em modos cada vez mais originários, à medida que subimos do corpo ao vivente, do vivente ao animal, do animal ao homem, do homem à Natureza, da Natureza à Alma universal, da Alma universal ao Intelecto arquetípico e do Intelecto ao Uno/Bem. A árvore de Porfírio, de fato, é uma elevação, uma pura elevação de caráter onto-henológico. 44 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS CONTIDAS NAS ESCRITURAS Roberto Hofmeister Pich ∗ Introdução ** O Prólogo de Duns Scotus à Ordinatio contém diversas abordagens sobre a natureza da teologia. A parte I traz discussões sobre fé e razão num estilo “antiaverroísta” e oferece uma definição do proprium da teologia, de acordo com o conceito de “sobrenatural”1. Num sentido específico, a “necessidade”2 do conhecimento sobrenatural (os artigos da fé e as verdades das Escrituras) é defendida. Nas partes III e IV, é possível encontrar uma análise do estatuto da teologia como scientia, e ali Scotus avalia criticamente o modo como o “conhecimento cientí- * Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/Porto Alegre. ** As divisões I e II deste estudo correspondem essencialmente às divisões I e II do ensaio “Duns Scotus on the credibility of Christian doctrines”, de minha autoria, submetido aos Anais do XII Congresso Internazionale di Filosofia Medievale (SIEPM), Palermo, 16-22 settembre 2007, com publicação prevista para o ano de 2009. Naquele ensaio, a “via de convencimento racional” enfatizada foi a quinta, a saber, “sobre a razoabilidade dos conteúdos” das Escrituras Sagradas. A divisão III, do presente estudo, ocupando pelo menos a metade do texto, é totalmente original. Este outro estudo de caso, pois, pode ser entendido como continuação da investigação da Segunda Parte do Prólogo de Duns Scotus à Ordinatio, em torno do tema da credibilidade dos artigos da fé. 1 Cf. PICH, R. H. 2003, p. 15-218. 2 Sobre essa “necessidade” cf. CROSS, R., 1999, p. 10-12; PICH, R. H. 2005, p. 7-59. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 45 ROBERTO HOFMEISTER PICH fico” é definido por Aristóteles, nos Segundos analíticos3. Na parte V, Scotus explana o sentido em que a “nossa teologia” pode ser tomada como uma “ciência prática”, reconsiderando a teoria aristotélica da “práxis”, pois o objeto adequado do nosso conhecimento teológico necessário é a essência divina, e conhecê-la como um objeto em conformidade com e em anterioridade ao amor de Deus – à “reta volição” – consiste num conhecimento prático4. Na deveras ignorada parte II, que aparece somente no Prólogo da Ordinatio5, e não nos Prólogos da Lectura e da Reportatio parisiensis I A, Scotus pleiteia pela suficiência das Escrituras contra a idéia de que elas não trazem informação suficiente sobre o conhecimento sobrenatural necessário aos peregrinos. Proponho ler a parte II como lidando também como uma questão epistemológica que pertence ao discurso teológico. Mais do que uma tentativa (I) de mostrar a suficiência das Escrituras, Scotus expõe (II) a credibilidade das suas verdades “necessárias”, incluindo argumentações apologéticas a favor da veracidade das Escrituras, concebendo, ao final, a idéia de um raciocínio convincente que, potencialmente, leva descrentes a crer ou a tomar algo – a saber, os artigos da fé e/ou as doutrinas das Escrituras – por verdadeiro6. (III) Dois desses raciocínios – que encontram um ao outro sob o corolário “autoridade e testemunho” – serão então explorados com mais detalhes, antes das Considerações Finais, que trarão breves apontamentos sobre o possível lugar de tais raciocínios de convencimento na filosofia da religião contemporânea. Adianto ainda que, na divisão (III) deste estudo, permitirme-ei certa ousadia como intérprete dos textos em apreço, o que não 3 Cf. PICH, R. H. 2001. 4 Cf. KROP, H. A., 1987; MÖHLE, H. 1995, p. 13-157; BOULNOIS, 1998, p. 131-142. 5 Cf. DUNS SCOTUS. Ordinatio, prol. p. 2 q. un. n. 95-123; I, p. 59-87. “Utrum cognitio supernaturalis necessaria viatori sit sufficienter tradita in Sacra Scriptura”. 6 Cf. também FINKENZELLER, J. 1961, p. 38. 46 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... deve, contudo, ser entendido como mera liberdade interpretativa. Entendidos os objetivos e os pressupostos metodológicos da argumentação “dialética”, mas, não obstante isso, condensada do texto scotista, o esforço interpretativo de minha parte será, pois, controlado, o quanto for possível, por praenotanda. I Suficiência das Escrituras Para atingir a intenção própria de Scotus nesse tratado sobre a credibilidade das Escrituras como um todo, é necessário prestar atenção na apresentação da sua questão e em qual é a sua real preocupação. Se a sua formulação – “Se o conhecimento sobrenatural necessário ao peregrino está transmitido suficientemente na Escritura Sagrada” – aponta para uma intenção de conexão com a questão da parte I do Prólogo, “sobre a necessidade de uma doutrina revelada [sobrenaturalmente]” ao ser humano no presente estado, Scotus, apesar disso, oferece um tratamento embaraçosamente curto do caput ora reproduzido. O que de fato ocorre é que o autor subsume a questão única da parte II a uma análise da “verdade” das Escrituras e dos seus conteúdos. A reflexão epistêmica sobre a teologia como um hábito de verdades reveladas sobrenaturalmente acerca de Deus “própria” à parte II pode ser bem visualizada somente se a relação entre suficiência e verdade escriturística for analisada cuidadosamente. O que é a questão sobre a “suficiência das Escrituras Sagradas” – isto é, as Escrituras reconhecidas como “canônicas” pela Igreja Católica Romana –, anunciada em Ordinatio prol. p. 27? É claro que ela está ligada à parte I do Prólogo, onde Scotus desejava mostrar que há verdades que podem ser conhecidas somente sobrenaturalmente e que essas são necessárias aos seres humanos num sentido “relativo” – “con7 Cf., por exemplo, DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 98; I, p. 60. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 47 ROBERTO HOFMEISTER PICH dicionado” pela potentia ordinata de Deus: são necessárias para que o ser humano alcance o seu fim último e sobrenatural, a saber, a visão e a fruição de Deus8. Elas9 são conteúdos da livre10 “autorevelação” divina e são supostamente encontradas numa fonte básica de informação correspondente: na Bíblia11. Scotus não lida, aqui, com a verdade e a suficiência dos conteúdos sobre Deus cuja fonte de informação é a tradição12. Autores medievais normalmente consideraram as Escrituras e a tradição como fontes das verdades reveladas de Deus13 – muito embora tenha sido notado que 8 Cf. Mann, W. E. 1999, p. 61. 9 A ênfase, aqui, residiria obviamente naquelas verdades teológicas que não podem ser asseguradas por uma teologia natural, mas, por diversos motivos, são carentes de revelação ou comunicação divina especial. Nesses termos, e fazendo uso de linguagem contemporânea, valeria para Scotus que, mesmo sendo “Escritura Sagrada” e “revelação” conceitos distintos, “são materialmente inseparáveis”; cf. ABRAHAM, W. J. 2005, p. 588-589. 10 Cf., por exemplo, DUNS SCOTUS. Quaestiones quodlibetales. 1968, q. 14 n. [16] 63 p. 520-521: “Completa vero motione contingente ad intra, sequitur motio ad extra; illa igitur tota est contingens, et per consequens immediate ipsius voluntatis, ut principii. Nullum igitur intellectum creatum movet essentia ut essentia tanquam motivum per modum naturae, sed omnem intellectionem illius essentiae, quam non causat aliquod creatum, causat immediate voluntas divina”. 11 Cf. CROSS, R., 1999, p. 7s. Se as Escrituras são em absoluto um tópico teológico para Scotus, elas o são como uma parte central da doutrina da revelação: não são tratadas como tais, mas num sentido subordinado. Isso não deveria ser visto como um sinal de ausência de orientação bíblica na teologia de Scotus; cf. DETTLOFF, W. 1993, p. 219s. Cf. também TODISCO, O. 1975, p. 24-31. Dado que a revelação é a fonte do conhecimento sobrenatural de Deus, e as verdades reveladas relevantes estão contidas nas Escrituras, é compreensível que a análise que Scotus presta a elas seja situada dentro dos “princípios teológicos do conhecimento”; cf. SEEBERG, R. 1971 (Neudruck der Ausgabe Leipzig, 1900), p. 113-129. 12 Sobre os usos de traditio, tradere-tradi e traditus nas obras de Scotus, cf. sobretudo BUYTAERT, E. M. 1965, p. 346-362 (especialmente p. 351-352). 13 Cf. CROSS, R., 1999, p. 156, nota 23, onde o autor sugere outras leituras acerca do debate medieval sobre a Bíblia como a fonte da doutrina revelada. 48 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... Scotus, algumas vezes, adotou a “noção mais antiquada”, de que a Bíblia é a fonte única, sendo então o escopo restrito para aquilo que o ser humano pode saber sobre a essência de Deus, seja na forma de princípios ali contidos ou de conclusões deduzidas (por exemplo, Ordinatio prol. p. 2 n. 123)14. Por outro lado, o tratamento que Scotus dá a diversos itens doutrinais envolve um apelo à tradição como fonte de conteúdos teológicos – e ele explicitamente afirma que o Espírito Santo ensinou aos Apóstolos também coisas não escritas nos Evangelhos, as quais os Apóstolos, então, (em forma escrita ou não) legaram per consuetudinem às demais gerações de crentes15. Conectando isso à sua eclesiologia, C. Balic enfatizou que, para Scotus, conclusões incluídas nos artigos da fé não são ainda artigos, antes de serem assim declaradas e explanadas pela Igreja16: mesmo com mais força, Scotus seguiu como 14 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 123; I, p. 87: “Unde multae veritates necessariae non exprimuntur in sacra Scriptura, etsi ibi virtualiter contineantur, sicut conclusiones in principiis; circa quarum investigationem utilis fui labor doctorum et expositorum”. Cf. também CROSS, R., op. cit., p. 7-8, e p. 157, nota 24, onde ele também cita essa passagem, bem como Ordinatio prol. p. 3, q. 1-3 n. 204, 207 p. 137-138, 140. 15 Cf. DUNS SCOTUS. Ord. I d. 11 q. 1 n. 20; V, p. 7-8: “Ad rationem illam de Evangelio dico quod ‘Christum descendisse ad inferna’ non docetur in Evangelio, et tamen tenendum est sicut articulus fidei, quia ponitur in Symbolo apostolorum. Ita multa alia de sacramentis Ecclesiae non sunt expressa in Evangelio et tamen Ecclesia tenet illa tradita certitudinaliter ab apostolis, et periculosum esset errare circa illa quae non tantum ab apostolis descenderunt per scripta sed etiam quae per consuetudinem universalis Ecclesiae tenenda sunt. (...). Multa ergo docuit eos Spiritus Sanctus, quae non sunt scripta in Evangelio: et illa multa, quaedam per scripturam, quaedam per consuetudinem Ecclesiae, tradiderunt”. Cf. CROSS, R., 1999, p. 8. 16 Cf. DUNS SCOTUS. Ord I d. 5 p. 1 q. un. n. 26; IV, p. 24-25: “Ad dictum Richardi. Si intendit reprehendere Magistrum ibi, sicut ex verbis eius apparet, – cum doctrina Magistri, et praecipue ista, authenticetur per concilium generale in capitulo praeallegato, nego Richardum tenendo Magistrum. Et quod dicit Magistrum multas auctoritates adducere contra se, Magister bene exponit eas, (...); non autem nullam habet pro se auctoritatem, sed habet illam universalis Ecclesiae in capitulo praeallegato, quae maxima est, quia dicit Augustinus Contra epistolam Fundamenti: “Evangelio non Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 49 ROBERTO HOFMEISTER PICH “norma positiva” o magistério eclesiástico no que diz respeito às verdades que “a Igreja” declarava como pertencentes ao depósito da fé. Para a especulação teológica sobre conteúdos revelados, mas particularmente “obscuros”, o magistério atuaria, então, como uma “norma negativa” de permissão: Si auctoritati Ecclesiae vel auctoritati Scripturae non repugnet17. Não surpreende, pois, que num sentido posterior a Igreja é fonte de verdades reveladas: como R. Cross aponta, “as doutrinas do caráter sacramental e da transubstanciação” não são ensinadas na Bíblia, nem na tradição dos Apóstolos; antes, Scotus entende que são ensinadas pelo Papa Inocêncio III e deveriam ser aceitas “por causa da autoridade da Igreja Romana”18. Deixando de lado a eclesiologia, um laço entre a parte I e a parte II do Prólogo está bem amarrado: caso se pergunte como o ser humano pode conhecer verdades sobrenaturais, a resposta é que elas foram definitivamente reveladas aos Primeiros Apóstolos, e encontram-se agora fixadas nas Escrituras canônicas da Igreja. Porém, vale lembrar, com a devida ênfase, que, na parte II, a pergunta é: “É o conhecimento sobrenatural necessário ao peregrino transmitido suficientemente [sufficienter] nas Sagradas Escrituras”? Ou, numa boa paráfrase: o que se sabe acerca de Deus e dos meios para alcançar o seu favor, é isso algo crederem nisi Ecclesiae crederem catholicae”, – quae Ecclesia sicut decrevit qui sunt libri habendi in auctoritatem in canone Bibliae, ita etiam decrevit qui libri habendi sunt authentici in libris doctorum, sicut patet in canone, et post illam auctoritatem canonis non invenitur in Corpore iuris scriptum aliquod ita authenticum sicut magistri Petri in capitulo praeallegato”. 17 Cf. BALIC, C. 1957, p. 1813; ID. 1966, p. 215-216; ID., 1967, p. 107-109, p. 123-124. Cf. também AUER, J. 1966, p. 165-166. 18 Cf. CROSS, R., 1999, p. 8, e também p. 157, nota 26. O autor cita ali DUNS SCOTUS. Ordinatio. Ed. L. Wadding., vol. VIII, IV d. 6 q. 9 n. 14 p. 344, para “caráter [sacramental]”, e Ordinatio. Ed. L. Wadding. vol. VIII, IV d. 11 q. 3 n. 13 p. 616-617, para o assunto da “transubstanciação”. O ensino scotista acerca daquelas “duas fontes” de revelação foi explanado cuidadosamente por FINKENZELLER, J. 1961, p. 19-37 (Parte 2) e p. 37-80 (Parte 3). 50 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... acerca do que as Escrituras Sagradas realmente informam “suficientemente” os seres humanos, de maneira que todas as notícias que se têm necessariamente de saber estão contidas naquelas folhas19? A expressão sufficienter carece de explicação. Nos três argumentos contrários, no início da questão (Ordinatio prol. p. 2 n. 95-97), propondo sistematicamente que o conhecimento sobrenatural necessário ao peregrino não está transmitido suficientemente nas Escrituras Sagradas, “suficientemente” sugere, de fato, a idéia de que se pode encontrar ou não todas as verdades de que se precisa, ao menos minimamente, para viver de acordo com a ordenação de Deus e buscar a sua vontade. Porém, os argumentos não enfatizam esse aspecto “quantitativo”, mas outros significados de suficiência: (i) para os que viviam sob a autoridade da Lei, as verdades escriturísticas – incluindo o Novo Testamento – não eram “necessárias” em sua inteireza, no sentido de serem “supérfluas”, “dispensáveis”, pois a lei natural no Pentateuco já era “suficiente”20. Se “não-suficiente” significaria, ali, “não-necessário” ou “dispensável”, no sentido positivo “suficiente” significaria “necessário” ou “requerível”, para algumas pessoas, em algum momento – embora tenha-se de admitir que, na resposta a esse quod non, Scotus advoga diretamente por uma “suficiência quantitativa” e indiretamente pela “não-superfluidade” do Segundo Testamento: para os judeus, uma doutrina inspirada modesta, baseada na lei natural (na forma dos “dez mandamentos”) “pôde ser suficiente”21. 19 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 95; I, p. 59: “Quaeritur cognitio supernaturalis necessaria viatori sit sufficienter tradita in Sacra Scriptura”. 20 ID.: “Quia cognitio necessaria numquam defuit humano generi; Scriptura sacra non erat in lege naturae, quia Moyses primus scripsit Pentateuchum, nec tota sacra Scriptura erat in lege mosaica, sed tantum Vetus Testamentum; ergo etc.” 21 Ibid., n. 121 p. 86: “Ad rationes principales. Ad primam rationem. Ad minorem respondeo quod lex naturae paucioribus fuit contenta, quae memorialiter per patres ad filios devenerunt. Illi etiam magis erant praediti in naturalibus, et ideo modica doctrina inspirata potuit eis sufficere. Vel aliter dicendum est ad istud et ad illud de lege Moysi, quod ordinatus Scripturae progressus ostendit eius decorem”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 51 ROBERTO HOFMEISTER PICH (ii) Uma idéia similar é repetida na premissa menor do segundo argumento contrário: as Escrituras (não apenas o Antigo Testamento) contêm muitas coisas “supérfluas” (cerimônias, estórias etc.). “Supérfluo” significa coisas ou verdades “cujo conhecimento não parece necessário para a salvação”. Uma espécie de crítica ao caráter literário das Escrituras, baseada na qualidade “intelectual” dos seus autores, deveria ser notada aqui, a partir da premissa maior: qualquer autor de ciências humanas (obras sobre formas de saber próprias ao ser humano), quanto mais agudo no seu intelecto mais ele evita a superfluidade na transmissão de conteúdos ou idéias. O argumento leva à conclusão de que autores dos livros escriturísticos falham em mostrar tal intelecto aguçado22, desvalorizando, portanto, os seus próprios escritos. “Supérfluo” se opõe a “central”, “essencial” ou, ainda, “manifestamente importante”23. (iii) Um terceiro aspecto de “suficiência” aponta para a “clareza suficiente” dos conteúdos necessários encontrados nas Escrituras. Por exemplo, sobre muitas sentenças ali encontradas não é conhecido “com certeza” (certitudinaliter) se são tomadas como pecados ou não. E parece que de muitos conteúdos nas Escrituras é importante saber precisamente o juízo que recebem – afinal, é um conhecimento necessário 22 Ibid., n. 96 p. 59: “Item, quicumque auctor scientiarum humanarum quanto acutior est intellectu tanto plus vitat superfluitatem in tradendo; sed in sacra Scriptura videntur contineri multa superflua, ut caeremoniae et historiae multae, quorum cognitio non videtur necessaria ad salutem; ergo etc.” 23 A resposta de Scotus ao segundo argumento ad contra revela aspectos interessantes da sua posição acerca da interpretação bíblica: o sentido literal e os sentidos não-literais (analógico, moral ou tropológico e anag ógico ou espiritual) das Escrituras podem ser intuídos ali; cf. ibid., n. 122 p. 86: “Ad secundum dico quod dulcius capitur quod latet sub aliqua sententia litterali quam si esset expresse dictum: et ideo ad devotionem confert, illa quae expressa sunt in Novo Testamento, sub figura velata fuisse in Veteri, hoc quoad caeremonias; sed quoad historias, ambo sunt exempla legis declarativa”. Breves, porém úteis observações sobre interpretação bíblica na Idade Média podem ser encontradas em FRÖR, 1964, p. 20-23. A obra clássica sobre a interpretação bíblica na Idade Média é, reconhecidamente, DE LUBAC, H. 1959, 1964. 52 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... para a salvação saber se alguma coisa que eu faço é ou não um pecado mortal. Se eu não estou certo se algo é ou não um pecado mortal, provavelmente não o evitarei “suficientemente”. Nesse caso, não é verdadeiro que o conhecimento necessário à salvação é transmitido suficientemente no Livro Sagrado, de modo que os seres humanos terão de apelar, talvez, a uma outra fonte24. “Suficiência” significa “clareza suficiente”, e uma “inclareza” deveria ser uma “não-suficiência” que mina o propósito de um escrito. É ilustrativo checar o que Scotus responde a essa terceira objeção. Apenas é o caso que muitas verdades necessárias contidas nas Escrituras não são claramente expressas nelas – como casos de “silêncio oportuno” (Orígenes) –, mas elas estão contidas virtualmente nas verdades lá expressas de modo claro, tal como conclusões estão incluídas em princípios. A investigação cuidadosa de princípios e conclusões foi “a obra útil” (utilis labor) dos doutores e expositores das Escrituras (respeitados pelo seu específico procedimento científico, que pertence à teologia, isto é, apresentar conclusões metodológicas, partindo dos princípios contidos de modo explícito nas Escrituras25). Como um textus authenticus referente a Ordinatio prol. n. 123 dá a entender, é próprio a uma ciência, como é, então, a um escrito intelectualmente respeitoso como as Escrituras cristãs, possuir princípios capazes de explanar “suficientemente” outras questões implícitas26. 24 Cf. DUNS SCOTUS, Ord prol. p. 2 q. un. n. 97 p. 59: “Item, multa sunt de quibus non cognoscitur certitudinaliter ex Scriptura utrum sint peccata vel non; quorum tamen cognitio necessaria est ad salutem, quia nesciens aliquid esse peccatum mortale, non sufficienter vitabit illud; ergo etc.” 25 Ibid., n. 123 p. 87: “Ad tertium, Origenes in homilia De arca Noe: “In Scriptura super hoc opportunum videtur habitum silentium, de quo sufficienter consequentiae ipsius ratio doceret”. Unde multae veritates necessariae non exprimuntur in sacra Scriptura, etsi ibi virtualiter contineantur, sicut conclusiones in principiis; circa quarum investigationem utilis fuit labor doctorum et expositorum”. 26 Ibid., n. 123 p. 87: “Loco In (1) – doceret (3) textus authenticus: “Nulla scientia omnia scienda explicat, sed illa ex quibus sufficienter alia elici possunt”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 53 ROBERTO HOFMEISTER PICH Assim, embora seja verdade que, em cada resposta de Scotus, poderse-ia descobrir algo sobre o seu entendimento acerca da interpretação bíblica27, o ponto importante é que, mesmo se a questão da parte II devesse ser entendida, parcialmente, como uma questão sobre a completitude quantitativa de informação concernente a verdades reveladas necessárias, “suficiência” de verdades reveladas tem a ver também, e talvez primariamente, com predicados como (i) “requerível”, (ii) “manifestamente importante” e (iii) “suficientemente claro” – onde as últimas duas características qualificam um livro como “intelectualmente não-depreciável”. Fica evidente, agora, que a expressão sufficienter, enquanto qualifica a transmissão de verdades, poderia ser traduzida como “de um modo satisfatório”, “de um modo aceitável”, “de um modo racional preferível”. Deveria ser considerado surpreendente o que vém a seguir, a saber, que a suficiência para a contenção das verdades necessárias aos peregrinos depende da “verdade” das Escrituras Sagradas como um todo? Se “suficientemente” significa, então, “de um modo racional preferível” ou derivados, é menos surpreendente que Scotus não discute diretamente se a “suficiência” é alcançada nas Escrituras. Ele discute a “verdade” das Escrituras, e esse é o “corpo da questão”, ocupando quase inteiramente a parte II28, deixando para a “Resposta principal” não 27 Cf. BETZENDÖRFER, W. 1931, p. 224; FINKENZELLER, J., 1961, p. 43-49; DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 3 q. 1-3 n. 126, 184 p. 89-90, 124. Que o tópico da interpretação bíblica – independentemente da suspeita de que comentários sobre a Bíblia, escritos por ele, tenham sido perdidos – não é uma matéria enfatizada por Scotus nas suas próprias obras conhecidas, isso é indicado não apenas pela usual observação de que ele cita Aristóteles mais freqüentemente do que as Escrituras, mas também pelo fato de que o item sistemático do lugar das Escrituras na teologia de Scotus está, na maior parte das vezes, ausente nas sínteses do seu pensamento teológico; cf., por exemplo, AUER, J. 1954, p. 167-175; BALIC, C. “Duns Scot”, op. cit., p. 1801-1818; ID., 1959, p. 603-605; TODISCO, O. 1968, p. 102-113 [resenha crítica de VEUTHEY, L. Jean Duns Scot. Pensée]; HONNEFELDER, L. 2006, p. 403-406; DETTLOFF, W. 1993, p. 218-231. Sobre o papel das Escrituras na teologia sistemática, cf. ainda CROSS, R. 2005, pp. 8-10. Sobre o lugar da Bíblia na teologia escolástica, cf. LEINSLE, U. G. 1995, p. 41-51 (cf. p. 1-68 acerca dos aspectos próprios da teologia escolástica). 28 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 99-119 p. 60-85. 54 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... mais do que um parágrafo e treze linhas na Edição Vaticana29. Mas é em todo caso óbvio qual é a relação entre (A) “suficiência de verdades reveladas necessárias transmitidas nas Escrituras” e (B) “verdade das Escrituras”30? A responsio principalis começa com palavras impressionantes que parecem sugerir que há uma implicação em termos de “A somente se B”. Afirma-se que, uma vez estabelecido contra os hereges que a doutrina das Escrituras canônicas “é verdadeira”, deve-se ver, “em segundo lugar”, se aquelas verdades “nas Escrituras” são “necessárias e suficientes” para que o peregrino atinja o seu fim último31 “em particular”, isto é, “a visão e a fruição de Deus”, também no que diz respeito “às circunstâncias da sua desejabilidade”32 – onde a ênfase é posta, sem dúvida, na afirmação da segunda parte da conjunção (“e suficientes”), pois a necessidade prática das verdades teológicas já foi estabelecida na parte I do Prólogo. Scotus oferece, portanto, somente um parágrafo para determinar acerca de (A)! Supondo que isso é fiel à intenção de Scotus, por que (B) deveria ser relacionado a (A) como uma condição necessária? Scotus não parece duvidar do antecedente, ou seja, que “As verdades necessárias ao peregrino estão contidas suficientemente-satisfatoriamente nas Escri- 29 Id. ibid., n. 120, p. 85. 30 Também BUYTAERT, E. M. “Circa doctrinam Duns Scoti de Traditione et de Scripturae sufficientia adnotationes”, 1965, p. 360, vê, aqui, o aspecto estrutural mais difícil da Parte II do Prólogo; naturalmente, outras dificuldades surgem por causa da informação bem conhecida de que um tratado correspondente não pode ser encontrado nos outros Prólogos que Scotus escreveu às suas obras teológicas, e ele foi certamente adicionado sem muito cuidado (parte dele talvez bem tardiamente, ou seja, depois de 1301) a um primeiro plano do Prólogo da Ordinatio, que ainda não o continha. 31 Cf. DUNS SCOTUS, Ordinatio prol. p. 2 q. un. n. 120 p. 85: “Habito igitur contra haereticos quod doctrina Canonis vera est, videndum est secundo an sit necessaria et sufficiens viatori ad consequendum suum finem”. 32 Ibid.: “Dico quod ipsa tradit quis sit finis hominis in particulari, quia visio et fruitio Dei, et hoc quantum ad circumstantias appetibilitatis eis; (...)”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 55 ROBERTO HOFMEISTER PICH turas”. Além da informação de que a visão e a fruição de Deus é o fim último do ser humano, as Escrituras – desvelando as “circunstâncias da [sua] desejabilidade”, por certo um direcionamento de crença e ação dependendo da vontade ordenadora de Deus – (a) informam que tal beatitude deveria ser dada após a ressurreição, tanto na alma quanto no corpo, sem fim; (b) elas determinam quais são os meios necessários para atingir o fim último, revelando também que eles são suficientes (“assim” os dez mandamentos “foram comandados”! (Mt 19.17)); (c) elas trazem “explanação” (explicatio) de tais meios necessários, tanto daquilo que deve ser crido (credenda) quanto daquilo que deve ser feito (operanda); (d) elas informam os crentes, numa medida possível e útil, acerca das propriedades das substâncias imateriais33. Num textus interpolatus34, a idéia de que verdades necessárias e suficientes (no duplo sentido de suficiência “quantitativa” e “qualitativa”) “estão contidas” nas Escrituras é ligada às três razões que testificam a necessidade de doutrinas reveladas na solução da parte I do Prólogo: conhecimento distinto do fim de um agente (Ordinatio prol. n. 13-16); como e de que forma tal fim é atingível (Ordinatio prol. n. 17-18); meios naturais para alcançar o conhecimento do fim e os meios desejáveis para esse não estão disponíveis (Ordinatio prol. n. 40-41). A chave para entender a estrutura aparente da argumentação reside tanto no duplo significado de “suficientemente” quanto no fato de 33 Id. ibid.: “(...); puta quod ipsa habebitur post resurrectionem ab homine immortali, in anima simul et corpore, sine fine. Ipsa etiam determinat quae sunt necessaria ad finem, et quod illa sufficiant, quia illa mandata, Si vis, inquit, ad vitam ingredi, serva mandata (in Matthaeo), de quibus habetur in Exodo; horum etiam explicatio et quantum ad credenda et quantum ad operanda explicatur in diversis locis Scripturae. Proprietates etiam substantiarum immaterialium in ea traduntur, quantum possibile est et utile viatori nosse”. 34 Ibid., n. 120 textus interpolatus, p. 85: “Ista conferendo ad tres rationes quibus innititur solutio quaestionis praecedentis, patet quod Scriptura sufficienter continet doctrinam necessariam viatori”. 56 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... que a parte II não é dirigida a teólogos, mas a não-crentes35. Para eles – e, em realidade, para todos –, a idéia de Escrituras contendo todo o conhecimento que um ser humano necessita sobre o seu fim último é uma verdade sobrenatural “inevidente”: ela depende da crença de que Deus revelou aqueles conteúdos a seres humanos e inspirou-os no escrever. Mas, se o que contém tais conteúdos necessários de modo próprio-suficiente associa-se ao que é inverídico, não-crível, ou não convincentemente racional, nesse caso, a crença na suficiência das Escrituras se torna, ela mesma, improvável. Se o modo de aproximar-se do inevidente (o sobrenatural necessário aos seres humanos, contido nas Escrituras) é o modo da crença (todo aquele que adere “racionalmente” ao inevidente pode fazê-lo somente através da crença, nem através da opinião “somente”, nem, é claro, através de conhecimento científico evidencial), é importante que possam ser encontrados motivos para “adquirir” a crença correspondente – certamente a aquisição de crença envolve e, certamente, deve envolver o movimento da razão. Argumentar “a favor” do continente dessas verdades é justificar a crença nelas: alguém pode crer na suficiência das Escrituras somente se ele pode crer, por motivos razoáveis, nos seus conteúdos relevantes: somente se ele, por motivos razoáveis, pode tomar os seus conteúdos por verdadeiros36. 35 Scotus faz com que o seu próprio relato da “verdade” das Escrituras seja precedido por acusações-padrão que partem dos “heréticos”: partem de heresias ou de outras religiões que condenam as Escrituras totalmente ou parcialmente. Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 99 p. 60: “– In ista quaestione sunt haereses innumerae damnantes sacram Scripturam, totam vel partes eius, sicut in libris Augustini et Damasceni De haeresibus patet”. 36 Cf. também a bela interpretação de BUYTAERT, E. M. 1965, p. 360, que, fazendo referência a uma indicação de Scotus em Ordinatio prol. n. 69 acerca da importância de oferecer motivos suficientes para assentir, vê, então, o objetivo de Scotus, na Parte II do Prólogo, como uma dupla prova da “suficiência” (de duplici sufficientia Scripturae): que a verdade das Escrituras deve ser provada suficientemente por razões naturais (uma questão apologética); que as verdades reveladas necessárias são suficientemente transmitidas nas Escrituras (uma questão teológica). Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 57 ROBERTO HOFMEISTER PICH Se o propósito é, então, “adquirir crença”, não faz sentido entender a longa tarefa de provar “a verdade das Escrituras”, de conteúdos revelados sobrenaturalmente e naturalmente inevidentes, isto é, a condição necessária destacada, em sentido estrito. É melhor tomar o sentido de “verdade” como “o que é racional tomar por verdadeiro” ou “o que é racional crer ser verdadeiro”. Para o propósito de provar que é racional tomar as Escrituras e os seus conteúdos como sendo verdadeiros, todas as oito (ou dez) vias de convencimento racional cumprem a mesma função, não importa quais sejam os méritos de cada uma delas. Essas são as oito vias originais37: (1) as Escrituras são confirmadas pelo cumprimento, no Novo Testamento, das profecias do Antigo Testamento; (2) as Escrituras são internamente coerentes; (3) as Escrituras foram escritas por escritores portadores de autoridade; (4) as Escrituras foram cridas por uma comunidade bem-conhecida e honesta; (5) os conteúdos das Escrituras são altamente razoáveis; (6) reivindicações religiosas não-cristãos podem ser mostradas como sendo irrazoáveis; (7) reivindicações religiosas não-cristãs são efêmeras; (8) as Escrituras contêm relatos de milagres38, atestados por Deus39. 37 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q un. n. 100 p. 61: “– Contra istas omnes in communi sunt octo viae eas rationabiliter convincendi, quae sunt: praenuntiatio prophetica, Scripturarum concordia, auctoritas scribentium, diligentia recipientium, rationabilitas contentorum et irrationabilitas singulorum errorum, Ecclesiae stabilitas, miraculorum limpiditas”. 38 Embora o tema dos milagres, o seu papel comparativo para o entendimento do “sobrenatural” e a sua função na apologia da veracidade e da suficiência das Escrituras Sagradas mereça revisão, há certo consenso de que o papel dos milagres na obra scotista e na fundamentação dos loci recém mencionados é modesto – em especial se posto em comparação àquele no pensamento de Tomás de Aquino; cf. BERCEVILLE, G. 2004, p. 575-579. 39 Há uma adição textual em Ord. prol. n. 118-119 de dois modos posteriores de convencimento, a saber, (9) os testemunhos externos dos infiéis e (10) a eficácia das promessas. Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 118 p. 83-84: “// Nono quoque loco adduci potest testimonium eorum qui foris sunt. Iosephus in libro XVIII Antiquitatum pulcherrimum testimonium ponit de Christo, (...)”. Cf. id. ibid., n. 119 p. 84: “– Decimo et ultimo potest addi quod Deus non deest quaerentibus toto corde salutem”. 58 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... II Vias de convencimento racional Em nenhum momento as provas da verdade das Escrituras são igualadas a demonstrações estritas. A que tipo de argumentos epistêmicos elas pertencem? Se elas não são meras formas de “persuasão” – argumentos da fé para a fé ou, então, a partir da mera autoridade40 –, elas são no máximo (mas significativamente) viae rationabiliter convincendi acerca da veracidade das Escrituras. Elas devem conduzir a razão ou conduzir alguém racionalmente à crença em algo. Elas não levam ao conhecimento. Convencimento racional ou aceitabilidade racional são critérios mais fracos e mais permissivos do que aqueles que são estritamente epistêmicos41: certeza e evidência, necessidade e conclusividade42. As viae levam a atitudes tais como “Não é irracional crer que p”, “há boas razões para crer que p”, “há melhores razões para crer que p do que para o contrário”. Num estilo contemporâneo, pode até mesmo haver, aqui, algum nível de “justificação” para crer – ainda que não condições bastantes para ter conhecimento43. Cada uma das viae está, pois, em busca de um critério de credibilidade da informação a ser crida, onde por “credibilidade” entendo um motivo suficiente para que a razão humana vá além da neutralidade doxástica e, simplesmente, chegue à crença, talvez inclusive à crença “certa” – muito embora ainda intensificável, se melhores motivos viessem a ser oferecidos. As razões para crer que as Escrituras são verdadeiras são de diferente natureza em cada via. Tipificá-las e descrever amostras desses argu40 Cf. IOANNES PONCIUS. 1968, n. 1 p. 43. 41 Cf., por exemplo, AUDI, R. 1998, p. 275-276. 42 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 4 q. 1-2 n. 208 p. 141-142. Sobre a teoria scotista do conhecimento científico, cf. PICH, R. H. 2001. 43 Cf., por exemplo, CHISHOLM, R. M. 1989, p. 15-17, p. 63ss., sobre uma hierarquia qualitativa de predicados epistêmicos, os quais são capazes de marcar a fronteira entre o razoável (começando com o “provável”) e o não-razoável (começando com o “provavelmente falso”). Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 59 ROBERTO HOFMEISTER PICH mentos constituem o único meio de substanciar o que Scotus entende por credibilidade como uma condição para um tomar-algo-por-verdadeiro racional. Faço uso de “credibilidade” ou mesmo de “verossimilhança” como qualidades dos objetos de crença ou proposições. Palavras latinas para esses termos seriam credibilitas44 e verisimilitas. Na parte II, Scotus fala basicamente de incredibilis como o contrário daquilo que a verdade escriturística é45, e por uma vez de verisimilis46. O discurso usual é sobre formas de verus como a qualificação objetiva e doxástica que um conteúdo proposicional merece quando a crença respectiva está ou pode comprovar-se estar associada a boas razões. Assim, se Scotus, através de todas as viae, deseja levar entes racionais à crença em alguma coisa, elas todas devem apresentar a condição de credibilidade. Tenho discordância com interpretações que vêem a tarefa de convencimento racional, ou seja, a de mostrar a credibilidade racional dos conteúdos das Escrituras apenas nos argumentos (5) e 44 CROSS, R. Duns Scotus on God, 2005, p. 7, põe a questão em Ordinatio prol. p. 2 também em termos da “credibilidade” das Escrituras Sagradas. 45 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 108 p. 71: “De credibilibus patet quod nihil credimus de Deo quod aliquam imperfectionem importat; immo si quid credimus verum esse, magis attestatur perfectioni divinae quam eius oppositum. Patet de Trinitate personarum, de incarnatione Verbi, et huiusmodi. Nihil enim credimus incredibile, quia tunc incredibile esset mundum ea credere, sicut deducit Augustinus De civitate XII cap. 5; mundum tamen ea credere non est incredibile, quia hoc videmus”. Cf. ibid., n. 114 p. 7879: “Nota valde illud miraculum et illud capitulum, quia si quod credimus dicatur incredibile esse, non minus est incredibile “homines”, inquit, “ignobiles et infimos, paucissimos, imperitos, rem ita incredibilem tam efficaciter mundo, et in illo etiam mundo doctis persuadere potuisse”, mundus ut illud credat, sicut iam credidisse videmus, nisi per illos aliqua miracula fierent, per quae mundus ad credendum induceretur”; ibid., n. 114 p. 79: “Quid enim incredibilius quam quod ad legem contrariam carni et sanguini, doctores pauci, pauperes et rudes, plurimos potentes e sapientes converterent?” 46 Ibid., n. 105 p. 65: “– De tertio, scilicet auctoritate scribentium, sic patet: aut libri Scripturae sunt illorum auctorum quorum esse dicuntur, aut non. Si sic, cum damnent mendacium, praecipue in fide vel moribus, quomodo est verisimile eos fuisse mentitos dicendo ‘haec dicit Dominus’ si Dominus non esset locutus?” 60 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... (6)47. Afinal, mesmo argumentos de autoridade – como talvez as primeiras quatro viae – podem ser tomados como satisfazendo a condição de credibilidade racional: expertise ou autoridade teórica, autoridade moral e testemunho veraz podem tipificar e, então, exigir especificação de razões legítimas ou de motivos suficientes para levar o intelecto à crença em alguma coisa48. A base para compreender o “convencimento racional” são as próprias viae. “Convencimento racional”, portanto, parece ser um argumento fundado em credibilidade como condição necessária para a crença racional, e ele constitui também um meio – ou, até mesmo, uma certa técnica – para levar à crença racional, isto é, para identificar, entre proposições não-evidentes, o que pode e o que não pode contar como racionalmente crível. Tais raciocínios para a verdade da Scriptura e, então, para a verdade de que ela é um continente suficiente de conteúdos necessários sobrenaturais são dirigidos àqueles que não crêem: pagãos, hereges, seguidores de outras seitas e religiões (monoteístas ou não). Ao perceber a razão mesma desse tratado sobre a credibilidade das Escrituras, podese encontrar os aspectos que permitem a identificação do tipo literário do texto e do seu propósito sistemático na obra de Scotus. Ele é dirigido aos não-crentes, para prepará-los à fé cristã e aos seus conteúdos, através do pensamento racional. Isso é feito (a) pela defesa da credibilidade das Escrituras contra aqueles que simplesmente não crêem nessas coisas, (b) pelo combate àqueles que negam de algum modo a credibilidade delas e dos seus conteúdos (pessoas que rejeitam como um todo ou parcialmente os conteúdos das Escrituras), (c) pela acusação de não-credibilidade dos conteúdos de outras religiões “e dos seus 47 Cf. BOULNOIS, O. 1968, 74-75. SONDAG, G. 1999, p. 131, especifica – desnecessariamente, eu creio – que os argumentos (1)-(4) certificam da verdade das Escrituras como theologia tradita, os argumentos (5)-(6) apenas mostram que as doutrinas transmitidas nelas estão de acordo com a razão. Eu diria antes: todas as viae pretendem mostrar que os conteúdos escriturísticos como um todo são “críveis” ou “razoáveis de se crer”. 48 Cf. DUNS SCOTUS. Ordinatio. Ed. L. Wadding. vol. VII.1, III d. 23 q. un. n. 45, 17 p. 460-461, p. 471. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 61 ROBERTO HOFMEISTER PICH próprios livros”. Nesse nível, Scotus se alinha com uma tradição de apologia ligada aos Pais da Igreja, especialmente a Agostinho e a João Damasceno, ambos autores que escreveram uma obra intitulada Sobre as heresias (De haeresibus)49. Os tipos de endereçados são: (a) pessoas que não aceitam coisa alguma da Bíblia, talvez numa referência a silentio aos gnósticos50 (ou, então, aos pagãos, como os seguidores de religiões greco-romanas); (b) hereges de tipo misto como os maniqueus, que desaprovam especialmente o Antigo Testamento51; (c) os judeus, que aceitaram apenas o Antigo Testamento52; (d) os muçulmanos, que rejeitam os dois Testamentos, formando, por assim dizer, uma nova Escritura Sagrada53; (e) pessoas que começaram na fé como cristãs, mas vieram a pensar diferentemente da Igreja Católica acerca das Escrituras, aceitando delas só o que desejam: nem as Escrituras como um todo (afinal, renegam partes das mesmas), nem de acordo com a maneira como a Igreja Católica as entende. Elas simplesmente interpretam de modo equivocado as Escrituras Sagradas54. 49 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 99 p. 60: “– In ista quaestione sunt haereses innumerae damnantes sacram Scripturam, totam vel partes eius, sicut in libris Augustini et Damasceni De haeresibus patet”. 50 Cf. SONDAG, G. 1999, p. 129. 51 A base aqui são as obras De haeresibus e De utilitate credendi de Agostinho (em passagens tomadas, talvez, de Henrique de Gand). Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 99 p. 60: “Quidam haeretici de Scriptura nihil recipiunt. Quidam specialiter improbant Vetus Testamentum, ut manichaei, sicut patet in libro De utilitate credendi a, dicentes Vetus Testamentum esse a malo principio”. 52 Scotus parece se referir a Adversus iudaeos de Agostinho. Sobre a apologética cristã adversus iudaeos cf. BARNARD, L. W. 1993, p. 394-398. 53 As palavras de Scotus contra Maomé em Ordinatio prol. n. 99 são particularmente duras e ofensivas; cf. a nota seguinte. Cf. também SONDAG, G.1999, p. 129, nota 2. 54 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 99 p. 60-61: “Quidam tantum Vetus Testamentum recipiunt, ut iudaei. Quidam aliquid utriusque, ut saraceni, quibus immundus Mahometus miscuit alias immunditias innumeras. Quidam autem aliquid dictum in Novo Testamento, puta haeretici diversi, qui sententias diversas Scripturarum male intellectus habentes pro fundamentis, alias neglexerunt; verbi gratia ad Rom. 13: Qui infirmus est, olera manducet, et huiusmodi. Item, Iac. 5: Confitemini alterutrum peccata vestra, (...)”. 62 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... Nesse sentido, Ordinatio prol. p. 2 é um tratado apologético: junto com uma defesa da fé cristã, ele objetiva trazer infiéis à crença nas Escrituras onde as verdades correspondentes são encontradas. Mais particularmente, a pequena “apologética” de Scotus é uma defesa da preferibilidade racional da religião cristã. No quanto é de meu conhecimento, especialmente os estudos de Albert Lang55 ajudaram a estabelecer o significado dessa forma literária e do seu propósito sistemático. Os esforços por credibilitas externa às doutrinas reveladas cristãs são típicos da Alta Escolástica56. Aqui, é importante mencionar o en- 55 Sobretudo LANG, A. Die Entfaltung des apologetischen Problems in der Scholastik des Mittelalters. Freiburg – Basel – Wien: Herder, 1962. 56 Como uma nota marginal, isso e o que segue deveriam ser computados contra a impressão de filósofos contemporâneos da religião que encontraram em autores medievais discussões notáveis sobre “o papel da fé na atividade teórica [theorizing]”, mas nenhuma atenção “à questão se a fé é ela mesma racional” – o que se tornaria uma matéria de interesse dentro do tópico “fé e razão” somente “no início do Esclarecimento” (J. Locke); cf. WOLTERSTORFF, N. P. 1998, p. 541-542. A propósito, até o ponto em que o programa de Locke para a aceitabilidade racional da verdade religiosa, além da demonstração racional da existência de Deus, apela, para o lema de proposições teológicas reveladas acima dos poderes da razão, mas não-contrárias à mesma, ao testemunho da profecia e dos milagres, teses “scotistas” sobre a credibilidade dos artigos da fé tangeriam aquela intenção. Porém, creio que o modo como Scotus estabelece credibilidade ou defensabilidade racional pode acabar mais próximo de John Henry Newman do que de John Locke: a proposta local scotista não é claramente “evidencialista” (mesmo sem discutir, aqui, “evidência” ou “base evidencial” da crença em ambos os autores), ao menos – e certamente – não num escopo tão restrito de reunião de evidências para o dizer ou revelar algo da parte de Deus; além disso – e em especial –, admite expressamente a tradição ou acepções antecedentes relevantemente herdadas como meio legítimo de influência na formação de crenças. Nesse caso, em Scotus a tradição ou a verdade transmitida, cujo “monitoramento” através de “razão”, “Escritura” e “experiência” talvez pudesse estar presente em algum sentido, mas acerca da qual dúvidas sobre a possibilidade mesma de preservação da identidade original de significado através do tempo pouco se veriam, pareceria ao fim necessária e, eventualmente, suficiente condição para crença racional e, em tese, justificada. Para as menções nas sentenças anteriores, cf. MITCHELL, B. 2005, p. 592-596. Não obstante tudo isso, na esteira da sua reabilitação do projeto lockeano, SWINBURNE, R. 1992, p. 218-219, associa notavelmente o tratado scotista sobre a credibilidade das verdades escriturísticas à sua própria defesa filosófica de base Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 63 ROBERTO HOFMEISTER PICH tendimento que Guilherme de Auvergne deu a essa construção literária e sistemática: no seu tratado De fide, ele utiliza probationes universales para provocar a “credulidade” (credulitas) daquelas coisas que pertencem ao fundamento da religião: testimonium 57, confirmatio miraculorum, valores elevados do cristianismo, a vida exemplar da comunidade cristã etc., poderiam – como formas de probationes – levar pessoas à credulidade em concepções religiosas fundamentais58. A. Lang mostra que razões de credibilidade de doutrinas reveladas cristãs eram comuns e ricas entre pensadores franciscanos, mencionando Boaventura, Bartolomeu de Bologna, Mateus de Aquasparta, Servasanto de Faenza, e também Duns Scotus e os seus sequaces59. Ao que consta, as formas de probationes são similares nesses autores, e elas usualmente servem para enfatizar a origem divina da revelação que fundamenta o Cristianismo, em que as probationes são vistas como criteria para reconhecer uma revelação divina. Em Scotus, probationes para reconhecer a revelação divina – talvez, mais manifestamente, os argumentos (1)-(4) e o argumento (8) – e os demais tipos de probationes são postos num contexto diferente: no contexto da tarefa de mostrar que as Escrituras, como um todo, são dignas de crença. Além disso, credibilidade e coerência racional de itens da fé cristã “não são” buscadas para dar uma evidencial para o reconhecimento de verdades reveladas por Deus e da adequação das Escrituras cristãs para a continência desses conteúdos revelados. Nos seus “Acknowledgements”, cf. ibid., Swinburne escreve: “I have been conscious in writing this book of an intellectual debt to various former members of the University of Oxford who have argued that the claims of the Christian revelation stand up well before the tribunal of an impartial reason – to Duns Scotus and John Locke; and especially to two former members of Oriel College, Joseph Butler and John Henry Newman”. 57 Autoridade e testemunho verazes são fontes importantes de informação e de motivos razoáveis para crer, de acordo com Scotus em Ord. III d. 23 q. un. n. 5-6 p. 461-462. Elas são particularmente tocadas nas viae terceira e quarta (cf. abaixo, no texto principal), merecendo tratamento exaustivo em estudos futuros. Cf. também CROSS, R. 2005, p. 6-7. 58 Cf. LANG, A. 1964, p. 129-130. 59 Ibid., p. 130-134. 64 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... resposta a outros teólogos ou a pessoas ligadas à ciência em geral (aqueles objetivos postos acima não são propriamente uma questão de intellectus fidei). Elas são buscadas para mostrar que o cristianismo é uma religião melhor, a única divina, racional e verossímil. Isso é algo a ser mostrado a hereges e seguidores de outras religiões, e a filósofos também, mas somente na medida em que alguém se preocupa com eles na qualidade “de descrentes”. Por causa de tudo isso, o melhor contexto para situar o lugar sistemático de Ordinatio prol. p. 2 é a atividade do teólogo, que admite começar com crenças e atingir crenças. Ele lida com inevidências. Ele reflete sobre o estatuto epistemológico da sua fé, o qual é caracterizado pela “certeza”, como Scotus mostraria depois em Ordinatio III d. 2360. Ele identifica princípios teológicos e de fato clarifica racionalmente os artigos da fé (intelligentia fidei)61. Por outra parte, assim que o teólogo quer que outras pessoas adquiram fé em inevidências, realizem atos de crença em inevidências, a modo de uma adesão firme e certa62, mostra-se bastante apropriado e desejável oferecer motivos racionais para tanto. A seção mais extensa da parte II do Prólogo é, então, a exposição das “oito vias de convencer racionalmente” descrentes e hereges contra as suas opiniões (octo viae eas rationabiliter convincendi), combatendo qualquer doutrina que põe em questão o caráter de ser-digno-de-tomar-por-verdadeiro das Escrituras. Apenas posso sugerir ler cada uma das viae como um modelo para um tipo de critério de credibilidade para os conteúdos de um escrito e para a própria Scriptura como um todo. A identificação da condição de credibilidade pode ser vista na premissa maior das probationes – dadas certas articulações que clarificam o seu enunciado. 60 Cf., sobre a fé adquirida e infusa, DUNS SCOTUS, Ord. III d. 23, q. un., n. 6, 8, 15-19, p. 462-463, p. 469-473. 61 Cf. LANG, A. 1964, p. 141, 145; cf. também O’CONNOR, E. D. 1968, p. 34ss. 62 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. III d. 23, q. un., n. 4-5, pp. 460-461. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 65 ROBERTO HOFMEISTER PICH III Exemplo de dois tipos de critérios 3.1 A autoridade dos escritores Inicialmente, faça-se uso da terceira via como um modelo para um tipo de critério de credibilidade de certos objetos proposicionais. A terceira via é “sobre a autoridade dos escritores” (de auctoritate scribentium). Scotus começa com uma proposição disjuntiva: “Ou bem os livros da Escritura são daqueles autores dos quais são ditos ser, ou eles não são daqueles autores dos quais são ditos ser”. A disjunção exclusiva é, em seguida, tratada de perto. Como ela é significativa no contexto de defesa da credibilidade dos conteúdos das Escrituras? Aborda-se, de início, o primeiro elemento da disjunção, isto é, “Os livros da Escritura são daqueles autores dos quais são ditos ser”. Independentemente disso, é correto afirmar que a proposição disjuntiva acima responde por uma especificação que o restante do argumento de convencimento teria de fazer depender desta formulação geral e axiomática: PM: “De Escrituras transmitidas quaisquer compostas de livros atribuídos a diversos autores ou bem os livros componentes são daqueles autores dos quais são ditos ser ou os livros componentes não são daqueles autores dos quais são ditos ser”. É bastante simples completar o silogismo com a premissa que qualifica as Escrituras cristãs: Pm: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica são Escrituras compostas de livros atribuídos a diversos autores”. C: “Das Escrituras Sagradas cristãs ou bem os livros componentes são daqueles autores dos quais são ditos ser ou os livros componentes não são daqueles autores dos quais são ditos ser”. A continuação imediata do argumento não indica com clareza como a credibilidade das Escrituras será defendida. Afirma-se que, se os livros são mesmo dos autores aos quais são atribuídos, nesse caso, pres66 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... supondo-se que eles condenam a mentira, sobretudo aquela que afeta a fé ou os hábitos fundados na fé, como pode ser “verossímil” (verisimile) que autores – aqui, tidos como históricos – tais como Ezequiel e Jeremias tenham mentido quando disseram em seus textos “isso diz o Senhor”, se o Senhor não tivesse falado63? Por estranho que seja o argumento, Scotus explora os dois elementos da disjunção, associados de algum modo relevante à intenção presumível de não mentir ou, então, de mentir por parte dos autores (caso em que a ilegitimidade autoral será destacada). Para o primeiro caso, pode-se talvez propor: PM: “Escrituras transmitidas, compostas de livros escritos pelos autores aos quais são atribuídos e que condenam a mentira em matérias de fé e moral, são verossímeis nos seus conteúdos”. Pm: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica são Escrituras transmitidas compostas de livros escritos pelos autores aos quais são atribuídos e que condenam a mentira em matérias de fé e moral”. C: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica são verossímeis nos seus conteúdos”. A premissa maior parece ser, com efeito, “um princípio de credibilidade” buscado dialeticamente: um princípio de verossimilhança de proposições. O drama argumentativo maior, nesse contexto de credibilidade dos conteúdos e das Escrituras da religião cristã, desenrola-se com respeito à premissa menor. Entendo que é a ela que a tarefa de convencimento, por Scotus, primeiramente dá ênfase. Assim, Scotus está consciente de que objeções são prontamente articuláveis. Por que não pensar, por exemplo, (a) que aqueles autores foram enganados (ou se enganaram), não que mentiram, ou então (b) que mentiram por 63 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 65: “– De tertio, scilicet auctoritate scribentium, sic patet: aut libri Scripturae sunt illorum auctorum quorum esse dicuntur, aut non. Si sic, cum damnent mendacium, praecipue in fide vel moribus, quomodo est verisimile eos fuisse mentitos dicendo ‘haec dicit Dominus’ si Dominus non esset locutus?” Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 67 ROBERTO HOFMEISTER PICH causa dos benefícios (propter lucrum)64? Por que não levantar tais hipóteses acerca “daqueles autores” de textos? Tanto (a) quanto (b) enfraqueceriam ou retirariam a credibilidade “do que” eles escreveram. Scotus, contudo, mostra que isso é improvável (expressão minha). Em resposta, pois, Scotus insiste, num primeiro passo, que (a’) os autores dos livros que registram conteúdos revelados não se enganaram65. O Doutor Sutil faz alusão a 2Cor 12,2-466, num relato do Apóstolo Paulo67, que, como se verá, é de importância central para a terceira via e merece ser reproduzido68: “Conheço um homem em Cristo que, há quatorze anos, foi arrebatado ao terceiro céu – se em seu corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe! E sei que esse homem – se no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe! – foi arrebatado até o paraíso e ouviu palavras inefáveis, que não é lícito ao homem repetir”. Antes de indicar o propósito dessa citação, ela mesma tem de ser explorada mais detalhadamente. Afinal, nessa segunda69 64 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 65: “Aut si dicis eos esse deceptos, non mentitos, vel propter lucrum mentiri voluisse, (...)”. 65 Respeitando os termos da premissa menor, que precisa ser fortalecida na idéia inclusa de que os autores dos livros escriturísticos “condenam a mentira” ou, o que aqui significa o mesmo, “não são mentirosos”, parece correto dizer também que, em sentido lato, se “ser enganado” ou “enganar-se” é dizer ou aderir não-intencionalmente a uma inverdade, a recusa de (a), ou de que os autores dos livros não sofreram engano, serve também como uma forma de defender a mesma idéia de que “condenam a mentira” ou “não são mentirosos”. 66 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 65-66: “(...), – contra, et primo contra primum, quod scilicet non fuerunt decepti. Dicit enim beatus apostolus Paulus: Scio hominem, ante annos quattuordecim etc. (...)”. 67 Independentemente das minúcias da sua composição, a ciência bíblica de hoje classifica a Segunda Epístola aos Coríntios como autêntica carta paulina; cf., por exemplo, LOHSE, E. 1985, p. 64-72 (especialmente p. 70-72). 68 As citações de passagens bíblicas, neste estudo, são todas a partir da Bíblia de Jerusalém, nova edição, revista, São Paulo: Edições Paulinas, 1986. 69 Alheio ao propósito especulativo de Scotus e além dos recursos exegéticos da sua época, a leitura estrutural das cartas de Paulo aos coríntios, nos estudos contemporâneos, traz um quadro bastante distinto dos acontecimentos em torno dos quais, após 1 Coríntios, “diversas” cartas do apóstolo – e não simplesmente uma “segunda” – são destinadas àquela comunidade; cf., por exemplo, PATTE, D. 1987, p. 401-407. 68 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... carta à comunidade de Corinto, e em particular nos capítulos 11 e 12 da mesma, Paulo se vê diante da situação de provar aos “espirituais”70 desafiantes de Corinto que também ele é um “espiritual”: que também a ele Deus se manifesta de modo inquestionável71. Apesar do evento de revelação no “caminho de Damasco” e da sua consciência de “apóstolo dos gentios”, Paulo nega “gloriar-se”: rejeita a idéia de ter de provar que Deus o escolhe ou que também ele é objeto da manifestação divina reveladora. Em 2Cor 11-12 – parte de uma “penosa carta”, que teria escrito contra adversários que propagam um “evangelho diferente” (gnóstico?)72 –, Paulo é como que “constrangido a fazer um elogio próprio”, enfatizando todo o seu engajamento na missão de pregação do Evangelho, mesmo diante de literais aventuras e situações de perigo e risco extremo (2Cor 11,21-29)73. Após relatar as suas “prerrogativas terrenas”74, e embora sendo isso inconveniente, Paulo diz: “mencionarei as visões e revelações do Senhor” (2Cor 12,1). Porém, ao invés de ressaltar a sua glória, enfatiza a sua fraqueza. E, por isso mesmo, fala inicialmente, e ao que tudo indica “indiretamente de si mesmo”, como de um homem que foi arrebatado ao céu e ao paraíso e ouviu “palavras inefáveis” (verba arcana; cf. Ordinatio prol. p. 2 n. 105)75, acerca das quais Paulo, com efeito, “não pretende estimular 70 Sobre as dificuldades para uma melhor identificação desses adversários de Paulo na comunidade de Corinto, cf. LOHSE, E. 1985, p. 67s. 71 Contemporaneamente, há concordância em afirmar que em 2 Coríntios, como em nenhuma outra epístola sua, Paulo se vê obrigado a “defender seu mandato de Apóstolo”, a legitimar o seu “ministério apostólico”; cf. SCHELKLE, K. H. 1984, p. 13ss. (cf. também p. 191-237). 72 Cf. PATTE, D., 1987, p. 420ss. 73 Traços escandalosamente não-apostólicos para os referidos espirituais de Corinto; cf. ibid., p. 424s. 74 Cf. SCHELKLE, K. H. 1984, p. 222. 75 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 66: “(...), et subdit ibi, audisse se verba arcana, quae non licet homini loqui”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 69 ROBERTO HOFMEISTER PICH a curiosidade”76. Diante disso, afirma: “se quisesse gloriar-me, não seria louco, pois só diria a verdade” (2Cor 12,6), mas não o faz para que ninguém tenha sobre si conceito superior àquilo que nele vê e dele ouve (2Cor 12,7). Já que as revelações do Senhor, das quais resolve não falar, eram de todo modo “extraordinárias”, Paulo interpreta o seu próprio – e conhecido – “aguilhão na carne” (moléstia crônica? A resistência dos judeus, entre os quais ele mesmo em convicção antes estivera, para com a fé em Cristo que agora anunciava?) como meio permitido por Deus para evitar que a soberba não enchesse o seu coração (2Cor 12,7). A lição do apóstolo é que lhe basta a graça, pois é na fraqueza humana que a força (da graça de Cristo) manifesta todo o seu poder; melhor, portanto, é a seguinte convicção: “Por isto, eu me comprazo nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,10). Feito, com certa resistência e ironia, esse constrangimento de autoelogio e autoexibição, o apóstolo Paulo conclui que, mesmo nada sendo diante de Cristo, não é em nada inferior àqueles “eminentes apóstolos” que rondam a comunidade cristã da cidade de Corinto. Pelo contrário, a sua autoridade apostólica inequívoca é confirmada porque “os sinais que distinguem o apóstolo realizaram-se entre vós: paciência a toda prova, sinais milagrosos, prodígios e atos portentosos” (2Cor 12,12)77. Assim, os “sinais de apóstolo” que em Corinto Paulo manifestou constituem “nova prova da autenticidade do seu ministério apostólico”78. 76 Cf. SCHELKLE, K. H., 1984, p. 226 (cf. p. 223ss.). 77 Para SCHELKLE, K. H., 1984, p. 235, as três palavras utilizadas por Paulo para caracterizar os sinais apostólicos, a saber, to sêmeion, to teras e hê dynamis, “são termos do Novo Testamento com o sentido de portentos. Como Paulo as diferenciou, mal se pode definir. Entretanto, o emprego de três palavras representa a expressão das muitas obras que ele conseguiu realizar”. 78 Id. ibid. 70 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... Tudo leva a crer que Scotus procura mostrar um Apóstolo Paulo autor de textos ou livros das Escrituras, na qualidade de não-enganado (caso em que, mesmo se não intencionalmente, diria inverdade). Para enfatizar essa virtude do apóstolo escritor, Scotus ressalta a firme convicção de Paulo e a fé na origem revelatória-sobrenatural dos conteúdos da sua pregação: em 2Cor 12,2-3, atreve-se a tomar Deus mesmo por “fiador” ou “testemunha” das circunstâncias do seu arrebatamento extraordinário79. Analogamente ao caso dos profetas Ezequiel e Jeremias, quer-se enfatizar que o apóstolo não foi enganado no “isso diz o Senhor” (haec dicit Dominus), elocução que, na tradição profética, sendo fórmula – “fórmula do mensageiro” – que opera como índice de uma dita revelação de Javé, vem a funcionar como marca de autoridade originária ou, ao menos, pretensão inconteste de origem divina do conteúdo transmitido e, pois, legitimação de autoridade profética80. Assim, dar ênfase à autoridade de Paulo como não-enganado é, em parte, dar ênfase ao tipo de reação e de pregação que é de se 79 Id.ibid., p. 224-225. 80 Cf., por exemplo, JEREMIAS, J. 1985, p. 184: “A conhecida fórmula, já documentada em época muito antiga, “assim fala Javé”, com a qual os profetas em geral se legitimam, faz reconhecer de forma concentrada as características próprias da autoridade profética em Israel, distinguindo ao mesmo tempo os profetas dos diversos tipos de adivinhos e videntes do Antigo Oriente (...); por um lado a fórmula salienta que a iniciativa para o aparecimento dos profetas provinha, por natureza, de Javé, e não dos próprios profetas; (...)”. Enfatizando a “supremacia da palavra” como traço principal do profeta do Antigo Testamento e, ao mesmo tempo, reconhecendo a peculiaridade das categorias psicológicas com as quais a experiência profética veterotestamentária é descrita, WOLF, H. W. 1985, p. 165 (p. 164s.), afirma semelhantemente: “A supremacia de uma palavra ouvida e reconhecida, de uma palavra elaborada e objetivamente proclamada, é que faz do profeta veterotestamentário um profeta. O problema psicológico de como o profeta recebeu esta palavra deve-se submeter a este fato dominante. A obediência sem contestação de um Amós e de um Isaías e a apaixonada luta de um Jeremias (...). Ninguém, a não ser eles próprios, pode dizer quem era esta vontade alheia cuja palavra os dominou. Com unanimidade e antes de quase todos os ditos eles dizem: ‘Assim falou Javé’”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 71 ROBERTO HOFMEISTER PICH verificar em alguém que está consciente do ser objeto de revelação por um agente sobrenatural – no caso, o próprio apóstolo. Isso é o que aparentemente se quer estabelecer quando, ainda em Ordinatio prol. n. 105, reflete-se sobre as “asserções” (assertiones) de Paulo, para, a partir disso, tomá-lo como não-iludido. Quais asserções? As de testemunhar de ter ouvido “palavras inefáveis”, ter sido objeto de “revelações extraordinárias”, ter sido acompanhado por sinais (de origem divina) que distinguem o verdadeiro apóstolo etc. Todas essas asserções, mesmo voltadas a conteúdos de teor incomum ao “natural”, foram feitas firmemente. Se tais asserções fossem claramente feitas com dúvidas, estar-se-ia justificado, antes de tudo, em supor as asserções como contendo mentiras ou sendo mentiras. Afinal, numa nota técnica sobre atos opinativos, Scotus aposta no seguinte princípio de voluntarismo81 doxástico ou da “mentira”: Ato doxástico de mentir: Sempre é o caso que tudo o que é naturalmente duvidoso ao intelecto e, não obstante isso, é externamente asserido com firmeza como algo certo e verdadeiro ou bem é uma mentira ou não está longe da mentira (ou é uma dissimulação)82. Que o foco da análise é o estado doxástico de “certeza” – causalmente não em função do conteúdo em si, mas por causa da autoridade do transmissor do conteúdo –, isto é, da “certeza” do Apóstolo Paulo e de outros santos que testemunharam revelações divinas diretas, isso fica manifesto pelo teor da seguinte conclusão concernente à origem sobrenatural e, pois, autoritativa dos conteúdos aos quais Paulo e os santos assentiram: em cada caso, não era possível que o intelecto do 81 Ao que tudo indica, é difícil pensar no ato de mentir sem levar em conta o papel da vontade no assentimento ou, pelo menos, sem levar em conta aspectos intencionais do assentimento a algo naturalmente inevidente. 82 Cf. DUNS SCOTUS, Ordinatio prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 66: “Quae assertiones non videntur fuisse sine mendacio si asserens non fuit certus, quia asserere dubium tamquam verum certum, est mendacium, vel non longe a mendacio”. 72 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... receptor da revelação fosse levado a assentir com tamanha firmeza (ita firmiter) em conteúdos inevidentes aos poderes intelectuais naturais a não ser que tivesse o auxílio do poder ou da autoridade de um agente sobrenatural que os levasse a isso. Nesses casos “autotestemunhados” e conhecidos por relato de tão firme adesão ou crença em algo – aceitando-se que, em absoluto, seja possível “testemunhar” a firmeza de crenças –, tanto “o conteúdo da crença” quanto “a característica doxástica da crença” (a certeza ou a adesão firme) só são razoavelmente explicáveis se têm origem causal numa revelação divina ou, em última análise, oriunda de um agente sobrenatural83. A conclusão aludida parece responder por um determinado princípio de racionalidade de crença em dados não-evidentes e que é passível da seguinte formulação: Princípio de racionalidade de crença em dados não-evidentes revelados: Sempre que o intelecto de um ser humano veraz, junto com o testemunho ou autotestemunho de revelação extraordinária, é levado a um mui firme assentimento a conteúdos cujo conhecimento não pode ser obtido por meios intelectuais naturais, é razoável concluir que o assentimento a tais conteúdos tem origem causal sobrenatural não-enganosa e, pois, autoritativa. Em tais situações, pensar que o intelecto foi movido por outro meio – pelas ilusões do próprio sujeito passivo de revelações ou por ilusões originadas de meios externos meramente naturais – é menos razoável. Se o princípio acima vale como premissa maior, e a premissa menor é “Pessoas verazes como o apóstolo Paulo e os demais santos, com o testemunho ou autotestemunho de revelação extraordinária, foram levados a um mui firme assentimento a conteúdos cujo conhe83 Cf. SONDAG, G. 1999, p. 131. Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 66: “Ex ista revelatione Pauli, et multis aliis, factis diversis sanctis, concluditur quod intellectus eorum non potuerunt induci ad assentiendum ita firmiter illis quorum notitiam non potuerunt habere ex naturalibus, sicut assenserunt, nisi ab agente supernaturali”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 73 ROBERTO HOFMEISTER PICH cimento não pode ser obtido por meios intelectuais naturais”, a conclusão já discutida segue-se validamente – aqui dimensionada por mim só no âmbito do “verossímil”. O argumento, pois, “rejeitaria a hipótese” de que (a) os autores dos livros componentes das Escrituras se enganaram ou foram enganados, que, então, “não mais enfraqueceria” a premissa menor do argumento da terceira via, a saber, “Pm: As Escrituras Sagradas da Igreja Católica são Escrituras transmitidas compostas de livros escritos pelos autores aos quais são atribuídos e que condenam a mentira em matérias de fé e moral”84. Com o mesmo propósito de manter a premissa menor, rejeita-se a objeção de que (b’) os autores dos livros escriturísticos mentiram por causa de lucro ou benefício. Isso consiste especificamente na tentativa de fazer perceber que “é irrazoável” crer que foram mentirosos. Mais ainda: quer-se convencer ou mostrar que é razoável crer que “não são mentirosos” ou, positivamente, que são verazes. Ora, se os autores dos livros escriturísticos mentiram por causa do lucro, é simples anotar que isso tira a credibilidade do que eles escreveram, pressupondo-se – e “ainda mais” pressupondo-se – que o que escreveram é inevidente à razão natural: “inevidências mentidas” como marcas epistêmicas de objetos proposicionais são, por certo, critérios para o improvável e o irrazoável em qualquer hierarquia qualitativa de predicados 84 Estabelecido esse argumento dialético contra (a), que explica a firmeza da crença ou adesão certa e não-enganosa ao revelado sobrenaturalmente, um outro pode ser montado para garantir o mesmo ponto: PM: “Todo ser humano veraz e razoável que, por causa de um agente sobrenatural, assente com firmeza a um conteúdo inevidente à razão natural, o faz sem enganar-se ou ser enganado, portanto, sem dizer inverdade”; Pm: “Os autores dos livros das Escrituras Sagradas da Igreja Católica são seres humanos verazes e razoáveis que, por causa de um agente sobrenatural, assentem com firmeza a um conteúdo inevidente à razão natural”; C: “Os autores dos livros das Escrituras Sagradas da Igreja Católica, ao assentirem ao inevidente, o fazem sem enganar-se ou serem enganados, portanto, sem dizer inverdade”. O argumento oferecido no texto, porém, respeita a ênfase de Ordinatio prol. n. 105 nos motivos de adesão firme ou carente de dúvida razoável (equivalendo à crença natural de caráter não enganoso), mostrada no testemunho ou autotestemunho e em relato(s) textual(is). 74 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... epistêmicos85. Se entendo bem, Scotus pondera de novo acerca da biografia do Apóstolo Paulo, no relato de 2Cor 11-12, para mostrar que não é provável que os conteúdos revelados das Escrituras devam antes ser tidos como mentiras sobre o inevidente, baseadas numa tentativa de benefício pessoal. Afinal, por causa das verdades da fé, aquelas reveladas e de conteúdo não-evidente ou não-asserível de modo meramente natural, exatamente as verdades nas quais queriam levar as pessoas a crer, a ter uma atitude doxástica de credulidade adquirida, os apóstolos e os santos não tiveram como resultado, em absoluto, o recebimento de benefícios, mas, antes, a experiência dos maiores sofrimentos e dificuldades86. Eis o argumento para mostrar que é improvável que aqueles escritores mintam por benefício: PM: “Todo ser humano veraz e razoável que assente com firmeza ou certeza a um conteúdo inevidente à razão natural, sem benefício próprio e com consequências de máximos infortúnios e dificuldades para si, a partir de alegada revelação extraordinária, o faz sem mentir”. Pm: “Os autores dos livros das Escrituras Sagradas da Igreja Católica são seres humanos verazes e razoáveis que assentem com firmeza ou certeza a conteúdos inevidentes à razão natural, sem benefício próprio e com consequências de máximos infortúnios e dificuldades para si, a partir de alegada revelação extraordinária”. C: “Os autores dos livros das Escrituras Sagradas da Igreja Católica, ao assentirem ao inevidente, o fazem sem mentir”. Em tais situações, pensar que ocorre o ato doxástico de tomar por certo e verdadeiro o que se reconhece não-certo e se desconhece verdadeiro – o mentir – é menos razoável. Naturalmente, mais uma vez a 85 Cf., novamente, CHISHOLM, R. M., 1989, p. 16-17. 86 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 66: “– Contra secundum, scilicet quod propter lucrum mentiti sunt: quia pro illis ad quae voluerunt homines inducere ad credendum, tribulationes maximas sustinuerunt”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 75 ROBERTO HOFMEISTER PICH conclusão a que recém se chegou é dimensionada por mim só no âmbito do “verossímil”. Também esse argumento recusaria a hipótese de que (b) os autores dos livros escriturísticos mentiram por algum motivo cogente, hipótese que, então, não mais enfraqueceria a premissa menor do argumento da terceira via, a saber, “Pm: As Escrituras Sagradas da Igreja Católica são Escrituras transmitidas compostas de livros escritos pelos autores aos quais são atribuídos e que condenam a mentira em matérias de fé e moral”. A proposição disjuntiva com a qual se iniciara a terceira via e a partir da qual se procurara o princípio de credibilidade que permitiu concluir pro veracidade e suficiência das Escrituras como um todo – a saber, a conclusão “Das Escrituras Sagradas cristãs ou bem os livros componentes são daqueles autores dos quais são ditos ser ou os livros componentes não são daqueles autores dos quais são ditos ser” – não foi, contudo, esquecida. Afinal, o segundo elemento da disjunção antes apresentada ainda não foi considerado. Ao que tudo indica, lidar com a hipótese de que os livros componentes das Escrituras Sagradas cristãs não são daqueles autores aos quais são atribuídos põe em questão, de outro modo, a autoridade dos escritores de tais conteúdos e, portanto, a veracidade e a suficiência dos próprios conteúdos. Há que se considerar, em Ordinatio prol. p. 2 n. 106, essa segunda possibilidade crítica. Visto que a consideração do segundo elemento da disjunção é pressuposta como relevante para a argumentação a favor da credibilidade, exige-se aqui, a meu juízo, algum esforço dialético para encontrar onde se localiza a importância da associabilidade de escritos aos autores aos quais são atribuídos – num movimento que requer que o intérprete do texto scotista dê um passo a frente com bastante independência. Um princípio de credibilidade parece ter de ser forjado segundo a idéia de que livros escritos sob falsa atribuição autoral são escritos por impostores, por mentirosos que preferem não associar a si mesmos o que escrevem. Saber da consciente dissociação autoral àquilo que se escreve leva a crer que não há compromisso autoral com a ver76 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... dade do escrito. Sob essas circunstâncias, a credulidade do escrito é abalada: PM: “Escrituras transmitidas, compostas de livros não escritos pelos autores aos quais são atribuídos, mas por outros autores que se ocultam sob nomes e dissociam a sua autoria histórica dos próprios escritos, não são verossímeis nos seus conteúdos inevidentes que versam sobre matérias de fé e moral”. Pm: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica contêm em seu todo livros não escritos pelos autores aos quais são atribuídos, mas por outros autores que se ocultam sob nomes e dissociam a sua autoria histórica dos próprios escritos”. C: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica não são verossímeis nos seus conteúdos inevidentes que versam sobre matérias de fé e moral”. A réplica à objeção busca enfraquecer e, por conseguinte, anular a credibilidade da premissa menor ora formulada. Assim, inicialmente, uma alegação desse tipo quanto aos livros bíblicos “parece [racionalmente] inconveniente” (videtur inconveniens), pois leva a uma dúvida geral e em princípio improvável sobre autoria tradicionalmente ou comumente reconhecida87: poderia, então, ser em geral negado – ao menos, posto sob suspeita – que qualquer livro é da autoria daquele autor ao qual é atribuído88. Por que levantar dúvidas precisamente sobre aqueles livros escriturísticos, isto é, sugerir falsa atribuição auto- 87 Cf. IOANNES PONCIUS. 1968, n. 3 p. 46: “Si dicatur authores Scripturae non fuisse illos, quibus attribuitur. Contra est primo quod id sine vllo fundamento dicitur, & eadem ratione posset quis negare opera Aristotelis, Ciceronis, Virgilij non esse ipsorum; quod sane irrationabiliter fieret, quando non adesset aliqua probabilis dubitandi ratio, qualis sine dubio non habetur in proposito”. 88 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 66-67: “Si libri non sunt illorum, sed aliorum, hoc videtur inconveniens dicere, quia ita negabitur quicumque liber esse illius auctoris cuius dicitur esse”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 77 ROBERTO HOFMEISTER PICH ral a eles mais do que a todo e qualquer outro livro89? Que dessa maneira Scotus entenda criticar relevantemente a razoabilidade da objeção construída só se entende sob o fundo de um princípio como este: PM: “Salvo motivo contrário cogente, livros atribuídos a autores são, em geral, da autoria dos sujeitos históricos aos quais são, por boa tradição e por bom costume, atribuídos”. Caso se aceite Pm: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica contêm livros da autoria de sujeitos históricos que lhes são atribuídos por boa tradição e por bom costume”, Segue-se uma conclusão em estrita contradição com a anterior: C: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica contêm em seu todo livros escritos pelos autores aos quais são atribuídos”. O argumento contra a premissa menor de objeção, ou seja, “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica contêm em seu todo livros não escritos pelos autores aos quais são atribuídos, mas por outros autores que se ocultam sob nomes e dissociam a sua autoria histórica dos próprios escritos”, é, em seguida, complexificado. Ao que tudo leva a crer, do ponto de vista da tradição (= transmissão) dos livros escriturísticos, ou bem aqueles que atribuíram aqueles livros aos respectivos autores nomeados eram cristãos, ou eles não eram cristãos. Se não eram cristãos – mas sim, respeitando o fundo apologético da parte II, “rivais” históricos do cristianismo, como judeus, gnósticos e muçulmanos –, não parece (verossímil) que tenham querido escrever tais livros e atribuí-los, em seguida, a outros autores influentes (concorrentes), 89 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67: “Quare enim soli isti falso adscripti sunt, auctoribus quorum non erant?”. Cf. ainda IOANNES PONCIUS. 1968, n. 3 p. 46: “Secundum dici non potest; quia non est credibile professores aliarum sectarum tam operose laborasse, vt persuaderent fidem, & doctrinam Christi, suae oppositam”. 78 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... magnificando com os próprios conteúdos escritos a “seita” cujo contrário entendiam como verdadeiro ou sagrado90. Se tais adscritores eram cristãos, e, com razoabilidade, é concedível que a doutrina dos cristãos condena de maneira explícita a mentira, é pouco provável que tais personagens atribuiriam, mentirosamente, os respectivos livros a autores nomeados irreais ou historicamente dissociados dos próprios escritos91. Nos dois campos de motivos, creio que é possível dizer que a cláusula “salvo motivo contrário cogente”, da premissa maior acima, não seria cumprida, ou, ainda, que a cláusula “por boa tradição e por bom costume”, no caso dos livros das Escrituras cristãs, e isso equivale ao mesmo, não seria vulnerada. Há, pois, melhores motivos para manter a crença na autoria historicamente atribuída aos livros respectivos do que para crer na sua ilegitimidade autoral92. 90 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67: “– Praeterea, aut illi qui adscripserunt illos libros eis fuerunt christiani, aut non. Si non, non videtur quod voluerunt tales libros conscribere et aliis adscribere, et magnificare sectam cuius contrarium tenuerunt”. 91 Cf. ID. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67: “Si fuerunt christiani, quomodo igitur illi christiani mendaciter eis tales adscripserunt, cum lex eorum damnet mendacium, sicut prius?” 92 Aqui e para o restante do argumento a favor da autenticidade autoral dos livros canônicos, deve-se levar em conta a indisponibilidade de ferramentas dos métodos “histórico-críticos” à exegese da época de Scotus – as quais forçariam sérias reconsiderações à noção mesma de “livros”, “escritos”, “cartas”, etc., redigidos de modo bem definido por autores, bem como às formas e aos gêneros de “proclamação” e “ensino” que estão na base da constituição, por exemplo, dos escritos do Novo Testamento; cf. LOHSE, E. 1985, p. 22ss. Sobre a formação dos escritos neotestamentários “à luz da crítica das formas”, cf. MOULE, C. F. D. 1979, p. 13-201. Deve-se também levar em conta, com o mesmo peso, o fato importante de que a idéia de uma ciência e uma teologia bíblica autônomas só ganha substância no século XVIII, com o “programa [iluminista] da pesquisa histórico-crítica da Escritura”, tal que, na contramão desse movimento, a canonização de escritos do cristianismo primitivo, a partir do século IV, pela igreja cristã, na prática identificara “cânone” com “doutrina válida na igreja”, trazendo como conseqüência que “doutrina eclesiástica” e “tradição apostólica” automática e harmonicamente incluíam o conjunto das verdades escriturísticas e das retas interpretações da Scriptura, sem que essas pudessem operar autonomamente em relação àquelas; cf. GOPPELT, L. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 79 ROBERTO HOFMEISTER PICH As reflexões de atribuição de autoria podem facilmente se multiplicar, em se tratando de adscritores cristãos: é improvável acreditar que seguiram afirmando que Deus falou as muitas coisas narradas naqueles livros, a saber, revelando-se às pessoas que dão título autoral àqueles livros, se, sendo cristãos, sabiam que as revelações conscritas não tinham tido como passivos aquelas pessoas. Dentro de um certo perfil de adscritores cristãos, é igualmente improvável que o seu testemunho e a sua transmissão de atribuição autoral tivessem sido falsos, lembrando que como um todo, na tradição histórica da Igreja, os li- 1988, p. 17-18, 20-21. Ora, com esses pressupostos, é evidente que a verossimilhança do bloco argumentativo posto por Scotus, que objetiva convencer da legitimidade autoral dos livros componentes das Escrituras, ou bem perderia terreno definitivamente ou teria de ser adaptada a noções mais permissivas de “autenticidade”. Afinal, cf. LOHSE, E., 1985, p. 44s., é reconhecido, hoje, que (a) poucos escritos do Novo Testamento permitem conhecer inequivocamente o nome do autor, havendo, em verdade, (b) diversos escritos que nem indicam nome de autor nem oferecem apontamentos que auxiliem à identificação. Nesse sentido, reconhece-se que a tradição do cristianismo primitivo, após o período apostólico original e segundo a idéia de que a autoridade apostólica constituía regra máxima para autenticidade escriturística – portanto, para aceitação compromissiva –, adotou o costume de citar nomes de apóstolos ou de discípulos de apóstolos aos escritos anônimos transmitidos; os escritos de si transmitidos como anônimos logo se transformaram em “pseudônimos”, o que, de resto, ilustrava um processo de ajuste ou atribuição autoral comum à Antigüidade greco-romana. No mesmo passo, cf. ibid., p. 45, (c) há, na primitiva literatura cristã, exemplos de escritos cuja autoria, desde a origem, é referida sob pseudônimo, como 2 Pedro, em que “o autor oculta o seu nome atrás do de outra pessoa, que goza de aceitação inconteste no círculo de leitores ao qual se dirige” – isto é, opta por ficar atrás do nome de um apóstolo, a quem a igreja antiga rigorosamente prestigiava. Não obstante isso, e curiosamente, compreendia-se, nesse procedimento, que era mesmo adequado que o ensinamento então formulado, reconhecido pelos destinatários e leitores em geral do escrito como fiel ao ensino e à doutrina dos apóstolos, fosse remetido ao nome deles: essa submissa “pseudonímia”, de modo algum “falsificação”, era um esforço por dirigir a doutrina do(s) apóstolo(s) às situações que, a cada novo momento e nova geração da igreja, pediam por respostas e conselhos concretos (caso das comunidades da segunda e terceira geração da igreja apostólica constituída): cartas deuteropaulinas e escritos pseudônimos certamente buscavam “preservar” e ao mesmo tempo “dar nova expressão ao quérigma da cristandade primitiva”; cf. ibid., p. 46. 80 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... vros atribuídos àqueles autores foram tão “originais” – “autênticos” ou “autenticados” (authentici) – e, em geral, tão divulgados sob tal atribuição autoral: é irrazoável pensar que tal reconhecimento de originalidade e tal divulgação poderiam ter sido tão amplos, sem a base da real associação e da autenticidade dos escritores denominados. A insistência quanto ao resultado do papel dos adscritores cristãos, no que concerne ao argumento, segue fixada na ausência de motivo forte para se pensar o contrário da atribuição transmitida e na invulnerada cláusula da boa tradição e do bom costume sugeridas acima93. Se a crença na legitimidade autoral – em particular, por certo, a apostólica – dos livros componentes das Escrituras tem como base esse tipo de testemunhas e guardiães de tradição, ela parece ser mais provável do que o seu contrário. A veracidade ou a autoridade testemunhal dos adscritores cristãos é tudo o que Scotus, no restante do parágrafo, assevera, ao ratificar a convicção na transmissão dos escritos bíblicos por homens de “suma santidade” (summae sanctitatis) anotada por Ricardo de São Vítor94: a legitimidade autoral dos escritos bíblicos está fundada em testemunhas e guardiães de tradição eles mesmos de suma “santidade” e remissivos a escritores eles mesmos – em particular, como prova a referência a Agostinho, os apóstolos – reconhecidos como de suma “autoridade” 93 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67: “Et propter idem, quomodo asserunt Deum locutum esse multa quae ibi narrantur, et hoc personis quibus libri intitulantur, si talia non acciderunt talibus personis? Quomodo etiam isti libri fuissent ita authentici, et divulgati esse talium auctorum, nisi et fuissent eorum, et auctores fuissent authentici?” 94 Cf. RICARDO DE SÃO VÍCTOR. Richard de Saint-Victor. La Trinité – De Trinitate. 1959, I c. 2 891D p. 66: “Nonne cum omni confidentia Deo dicere poterimus: Domine, si error est, a teipso decepti sumus: nam ista in nobis tantis signis et prodigiis confirmata sunt et talibus, quae nonnisi per te fieri possunt; certe a summae sanctitatis viris sunt nobis tradita et cum summa et authentica attestatione probata, teipso cooperante et sermonem confirmante, sequentibus signis”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 81 ROBERTO HOFMEISTER PICH (auctoritas)95. Desde o autotestemunho dos escritores – sobretudo os apóstolos – como passivos de revelação divina e registradores dos conteúdos da revelação divina e desde o testemunho de adscritores cristãos – pode pensar em especial nos líderes das comunidades cristãs –, crê-se e transmite-se crença segundo santidade-autoridade, pelo testemunho daqueles que, por fé, condenam a mentira. Nos dois casos, sanctitas e auctoritas podem valer, em sentido lato, como “veracidade forte” ou “reputação veraz”, qualidades de testemunhas, assimilados e atribuídos dados certos traços da pessoa e dos seus atos96. No que concerne a esse aspecto sensível das testemunhas originais e transmissorasmantenedoras dos conteúdos revelados e conscritos nos livros escriturísticos, a base patrística à qual Scotus faz referência, em particular Agostinho, é abundante97. Se a crença no conteúdo revelado e transmitido é acompanhada por autores e adscritores com veracidade forte, então é improvável que tenha sido gerada, desde a origem, pelo ato doxástico de uma inevidência mentida e que a própria atribuição autoral seja inevidência mentida. Há, pois, mais motivos para crer que os livros escriturísticos, desde a sua origem e transmissão de atribuição autoral, estão isentos da mentira do que para crer na impostura dos 95 Cf. AGOSTINHO. San Agustin. La ciudad de Dios – De civitate dei. 1958, XI c. 3 (“De auctoritate canonicae Scripturae, divino Spiritu conditae”) p. 718: “Hic prius per Prophetas, deinde per se ipsum, postea per Apostolos, quantum satis esse iudicavit, locutus, etiam Scripturam condidit, quae canonica nominatur, eminentissimae auctoritatis, cui fidem habemus de his rebus quas ignorare non expedit, nec per nosmetipsos nosse idonei sumus”. 96 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67-68: “De isto dicit Richardus De Trinitate libro I cap. 2: “A summae sanctitatis viris sunt nobis tradita”. Item, Augustinus libro XI De civitate cap. 3, loquens de Christo: “Prius”, inquit, “per prophetas, deinde per seipsum, postea per apostolos, quantum satis iudicavit, locutus, Scripturam condidit, quae canonica nominatur, eminentissimae auctoritatis”. Cf. também DUNS SCOTUS, Ord. III d. 23 q. un. n. 4 p. 460. 97 Agostinho talvez seja referido por Scotus, neste contexto, a partir de Henrique de Gand. Cf. HENRICUS GANDAVENSIS. Summa quaestionum ordinarium. a. 7 q. 7 in corp. (I f. 57D); a. 6 q. 4 in corp. (f. 46M); a. 9 q. 2 arg. 2 in opp. (f. 71H); a. 7 q. 7 in corp. (f. 57D); a. 10 q. 2 in corp. (f. 74O); a. 7 q. 7 in corp. (f. 57D)). 82 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... autores e transmissores98. A análise da noção de autoridade veraz como qualidade testemunhal e a sua relação com a epistemologia do testemunho, na filosofia da religião, não pode, porém, ser solidamente estudada neste ensaio. Não obstante isso, alguns poucos apontamentos serão feitos a seguir. 3.2 A diligência dos recebedores O quarto argumento, “sobre a diligência dos recebedores” (de diligentia recipientium) dos livros e conteúdos das Escrituras Sagradas99, pode bem ser caracterizado como um argumento por testemunho ou por um princípio de credibilidade que é um princípio de testemunho: o testemunho é, ou ao menos pode ser, fonte de geração de crença racional100. O motivo trazido por Scotus para crer no testemu98 Cf. DUNS SCOTUS. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 68: “Hoc ibi. Et Augustinus in Epistola ad Hieronymum prima (et habetur De consecratione): “Si sacras Scripturas admissa fuerint vel officiosa mendacia, quid in eis remanebit auctoritatis?” Et idem ad eundem, epistola eadem: “Solis eis Scripturarum libris” etc. (et Henricus 7, 8g)”. 99 Se é correto afirmar, com o comentador, que este argumento objetiva provar ou defender a autoridade da Escritura Sagrada, mantenho que tal prova de autoridade opera a partir de um princípio de credibilidade, subsumindo-se, pois, como já adiantado neste ensaio, ao propósito de provar a “verdade” ou “veracidade” das Escrituras cristãs; cf. IOANNES PONCIUS. 1968, n. 1 p. 47: “Qvartum, scilicet recipientium diligentia, &c. Haec via ad duo potissimum conducit, primo est principaliter ad probandam authoritatem Scripturae propositae ab authoribus, de quibus in praecedenti via. Secundo ad suadendum non fuisse adiuncta aliqua, aut mutata in eadem Scriptura, quod derogaret eius authoritati”. 100 Nesse sentido, como fonte de geração de crença racional, analiso o testemunho qua fonte de crença de um modo mais específico do que a sua análise, em epistemologia, como uma fonte de geração de “conhecimento e justificação”, em que, segundo AUDI, R. 1998, p. 130, o “testemunho é a nossa fonte social [itálico do autor] primária” de conhecimento e justificação. Ademais, cf. ibid., p. 130-131, um sentido básico de “testemunho” me parece comum ao argumento que desenvolvo, a partir do texto scotista: testemunho, em sentido lato, consiste em “dizer alguma coisa numa aparente tentativa de trazer (correta) informação”, tendo como bom correlato a noção de “atestação” (attesting): “Essa cobre tanto o testificar formalmente que algo é assim quanto o dizer simplesmente, na maneira informacional relevante, que é assim, por exemplo, ao dizer as horas para alguém. Isso também captura a idéia de dizer algo “para” alguém”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 83 ROBERTO HOFMEISTER PICH nho dos recebedores sobre a origem revelada e, no caso do Novo Testamento, apostólica dos livros das Escrituras, portanto, sobre a sua própria origem racionalmente autoritativa à crença firme, é formulado de maneira menos inequívoca que o desejado – o que não impossibilita um esforço da parte do intérprete no intuito de encontrar a premissa desejável. No que diz respeito, em geral, à informação que um ser humano racional recebe por testemunho alheio, por testemunho de círculos que naturalmente suscitam crenças primárias – entenda-se, supostamente, por testemunhos da família e da comunidade próxima –, as atitudes doxásticas possíveis são expressáveis na forma de uma disjunção exclusiva: ou bem ele não crê em nada do que acontece ou aconteceu que não tenha ele mesmo visto, não crendo, então, que o mundo foi feito antes de si, que existe aquele lugar do mundo em que ainda não tenha estado presente, nem que tal indivíduo é o seu pai e que tal pessoa é a sua mãe, ou ele crê nas informações testemunhadas desse tipo, isto é, em informações básicas testemunhadas pelos sujeitos que lhe são mais próximos e naturalmente confiáveis101. Note-se que, na descrição ora feita, informar-se de algo sem direta visão ou percepção visual do mesmo acaba por equivaler a obter conteúdo inevidente e, possivelmente, ter crença inevidente em algo. Parece ser axiomático tanto que a “incredulidade” (incredulitas) nesse tipo de informação por meio desse tipo de testemunho destrói a “vida social” (vitam politicam)102 quanto, positivamente, muito embora Scotus não faça uso de tais palavras, que a “credulidade” (o termo latino equivalente seria “credulitas”) nesse tipo de informação por meio desse tipo de testemunho permite e, essencialmente, erige a vida social. 101 Cf. DUNS SCOTUS, Ordinatio prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 68: “– De quarto, scilicet diligentia recipientium, patet sic: aut nulli credes de contingenti quod non vidisti, et ita non credes mundum esse factum ante te, nec locum esse in mundo ubi non fueris, nec istum esse patrem tuum et illam matrem; (...)”. 102 Cf. ID. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 68: “(...); et ista incredulitas destruit omnem vitam politicam”. 84 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... Claramente, é da natureza da formação de certas crenças em conteúdos não diretamente vistos nem visíveis que, se alguém “quer”103 crer num acontecimento qualquer que não é e nem foi “evidente” (evidens), o mecanismo no qual – ou, ao menos, um dos mecanismos nos quais – deve integrar-se é o seguinte: “deve crer maximamente numa comunidade [communitati]” ou, ainda mais fortemente, numa provável ênfase no caráter básico ou primário dos conteúdos cridos, naquilo que “a comunidade toda” (tota communitas) aprova, manifestamente, naquilo que uma comunidade com predicados de veracidade testemunhal aprova; nesse caso, estão em questão “maximamente as coisas que uma comunidade bem-conhecida [famosa] e honesta [honesta] prescreve com a máxima diligência como devendo ser aprovadas”104. Que a partir disso a racionalidade da crença por testemunho vem a ser defendida, isso fica mais explícito na seguinte formulação de um princípio de credibilidade por testemunho, que servirá, em seguida, aos propósitos do convencimento da verossimilhança e da suficiência das Escrituras Sagradas da Igreja Católica: Princípio de credibilidade por testemunho:105 É racional crer na verossimilhança de conteúdos (básicos ou não) inevidentes ou não vistos 103 E, portanto, em termos doxásticos, tem de mover-se judicativamente para além do que é naturalmente evidente à razão. 104 Cf. ID. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 68-69: “Si igitur vis alicui credere de contingenti quod tibi non est nec fuit evidens, maxime credendum est communitati, sive illis quae tota communitas approbat, et maxime quae communitas famosa et honesta cum maxima diligentia praecepit approbanda”. 105 Estando em debate aspectos de uma teoria de credibilidade ou de crença verossímil, ou, ainda, de racionalidade de crenças em sentido lato, é para esse propósito teórico que tal “princípio de credibilidade por testemunho” é formulado: como fórmula específica da obtenção de crença racional. Assim, pois, um princípio de testemunho como princípio de credibilidade de crença não põe ainda – como, de resto, não será feito neste ensaio – o “testemunho”, nos termos próprios da sua epistemologia, na sua consideração própria como fonte de crença, via de regra “não-inferencial”, mas, enquanto “atestação”, com dependência da “percepção” e da “interpretação semântica” (R. Audi). Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 85 ROBERTO HOFMEISTER PICH diretamente por um sujeito cognoscente, que são informados ao mesmo sujeito e aprovados em seu valor de verdade pelo testemunho de toda uma comunidade bem-conhecida e honesta. Os termos do princípio acima posto se encaixam, Scotus quer fazer crer, no caso do “Cânone da Escritura”: os livros canônicos e os seus conteúdos revelados são inevidentes aos que hoje ou após a geração dos seus escritores os recebem, tendo sido e sendo, porém, desde então, aprovados com a máxima diligência por uma comunidade bemconhecida e honesta. Toma-se que isso vale para a “solicitude” (sollicitudo) que os judeus mostraram acerca dos livros que deveriam constar no seu Cânone; isso vale também no caso da consideração dos cristãos quanto aos livros que receberam como “autênticos” – como estudado acima, isso também significa os livros caracterizados por integridade autoral. A solicitude para o reconhecimento da integridade autoral e, pois, da origem dos escritos canônicos para os cristãos, Scotus se permite afirmar, jamais foi encontrada em tamanha intensidade em nenhuma outra Escritura a receber um “selo de autenticação” (minha expressão). A ênfase argumentativa, pois, recai, não sobre motivos próximos para tomar os livros das Escrituras como autênticos, mas na força de respeitabilidade “do testemunho” de que são autênticos em sua origem: os livros em questão foram objeto de extremo “cuidado” Semelhantemente, propriedades do atestador ou da testemunha e ainda “padrões críticos” de conferimento de plausibilidade por parte do recebedor têm de ser considerados; sobre isso cf. AUDI, R. 2006, p. 25-28. Ademais, afigura-se instigante a idéia de revisitar, em estudos futuros, a Ordinatio III d. 23 (Scotus) bem como textos medievais tardios acerca do tópico do testemunho (ou, antes, acerca dos aqui trabalhados tipos de princípios de credibilidade, dentre os quais o testemunho se insere), para conferir origens intelectuais daqueles princípios que Thomas Reid identificaria como fundamentais à aquisição de conhecimento a partir da informação concedida por outras pessoas: o “princípio de veracidade” (principle of veracity) e o “princípio de credulidade” (principle of credulity), a saber, princípios epistêmicos da natureza humana. Cf. sobre isso o estudo (crítico a Reid) de VAN CLEVE, J. 2006, p. 50-74. 86 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... – outro tradução para sollicitudo – pelas testemunhas, as comunidades cristãs (e os seus líderes). Comunidades “solenes” ou “devidas” (sollemnes) – na linha dos predicados famosa e honesta – “cuidaram” (curaverunt) daquelas Escrituras ou da transmissão daquelas Escrituras como autênticas, tal como quem realmente cuida (de escritos) que contêm o que é necessário para a salvação106. As solenes comunidades – judaicas e cristãs – cuidaram para que Escrituras “autênticas” ou de autores “verazes” (veraces), reconhecidamente passivos de revelação extraordinária e que, portanto, escreveram como “profetas” ou “por revelação divina”, fossem incluídas e fixadas no Cânone107 que resume os livros que contêm a notícia sobrenatural necessária108. Que no pensamento dos Pais da Igreja essa é, essencialmente, a lógica de inclusão e compreensão de autoridade que serve de critério para a constituição do Cânone das 106 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 69: “Talis est Canon Scripturae. Tanta enim apud iudaeos sollicitudo fuit de libris habendis in Canone, et tanta apud christianos de libris recipiendis tamquam authenticis, quod de nulla scriptura habenda authentica tanta sollicitudo fuit inventa, praecipue cum tam sollemnes communitates de Scripturis illis curaverunt tamquam de continentibus necessaria ad salutem”. 107 Parece-me bastante razoável tomar as solenes comunidades cristãs como, ao menos em parte, representadas pelos “Pais” e “primeiros Doutores” da Igreja, cuja santidade e liderança intelectual é, de fato, reportada como decisiva na formação do Cânone; cf. também IOANNES PONCIUS. 1968, n. 1 p. 47: “Rursus cum constet in primis nostrae religionis exordiis varia prodiisse Euangelia Thomae, Barnabae, Thaddaei, Bartholomaei, Andreae, aliorumque Apostolorum, ac Sanctorum virorum nominibus, & varias actuum Apostolorum historias; certe credi non potest sola quatuor Euangelia, que in nouo Testamento modo habentur, & Acta Apostolorum a Luca conscripta, aliis reiectis, tanquam diuinam authoritatem habentia, esse recepta, nisi magno praemisso examine, & re mature considerata. Itaque de diligentia sufficienti adhibita non potest dubitari; ea autem supposita in primis habemus, quicunque demum istius doctrinae fuere primi Doctores, magnae fuisse prorsus authoritatis, ac sanctitatis: (...)”. 108 Cf. SONDAG, G. 1999, p. 131-132. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 87 ROBERTO HOFMEISTER PICH Escrituras Sagradas do cristianismo109, isso Scotus repete110 sem novidade e em estilo tradicional daquilo que Agostinho já escrevera111. O argumento a favor da verossimilhança e da suficiência das Escrituras e dos seus conteúdos pode agora ser completado: Pm: “Os livros das Escrituras Sagradas da Igreja Católica como conjuntos de conteúdos autorais são inevidentes ou não vistos (experimentados) diretamente pelos sujeitos cognoscentes de hoje e das gerações posteriores aos seus escritores, e, não obstante isso, foram e são informados no Cânone aos seres humanos de hoje e aprovados em seu valor de verdade pelo testemunho contínuo de toda uma comunidade bem-conhecida e honesta, a saber, a comunidade cristã e como um todo a Igreja Católica”. C: “É racional crer na verossimilhança dos livros das Escrituras Sagradas da Igreja Católica, bem como nos seus conteúdos inevidentes”. 109 Uma visão atualizada acerca do processo de seleção dos escritos cristãos que compuseram o Cânone, dando o devido apreço ao papel intelectual dos líderes e doutores da Igreja, às divergências (em boa parte oriundas de “heresias”) e às posições dos Concílios, pode ser conferida em MOULE, C. F. D. 1979, p. 202-236. Cf. também LOHSE, E. 1985, p. 11-21. 110 Cf. DUNS SCOTUS. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 69-70: “De hoc Augustinus XVIII De civitate cap. 38: “Quomodo scriptura Enoch, de qua Iudas in epistola sua facit mentionem, non recipitur in Canone, et multae aliae scripturae, de quibus fit mentio in libris Regum?”, ubi innuit quod sola illa scriptura recepta sit in Canone quam auctores, non sicut homines sed sicut prophetas, divina inspiratione scripserunt. Et ibidem, cap. 41: “Illi Israelitae, quibus credita sunt eloquia Dei, nullo modo pseudoprophetas cum veris prophetis parilitate scientiae confuderunt, sed concordes sunt inter se atque in nullo dissentientes: sanctarum Litterarum veraces ab eis agnoscebantur et tenebantur auctores”. 111 Cf. AGOSTINHO. San Agustin. La ciudad de Dios – De civitate dei, XVIII c. 38 (“Quod quaedam sanctorum scripta ecclesiasticus canon propter nimiam non receperit vetustatem, ne per occasionem eorum falsa veris insererentur”) p. 1314-1315; XVIII c. 41 (“De philosophicarum opinionum dissensionibus, et canonicarum apud Ecclesiam concordia Scripturarum”) n. 3 p. 1321. 88 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... Naturalmente, mais uma vez a conclusão a que recém se chegou é dimensionada por mim só no âmbito do “verossímil”. A premissa maior na forma de um princípio de credibilidade por testemunho seria, com efeito, mais “um princípio de credibilidade” buscado dialeticamente: um princípio de verossimilhança de proposições. É quase desnecessário afirmar que o drama argumentativo maior, nesse contexto de credibilidade dos conteúdos e das Escrituras da religião cristã, desenrola-se com respeito à premissa menor. Invoque-se, para tanto, o labor dos teólogos cuja expertise é a explanação da Bíblia, a delimitação e interpretação da tradição e, concomitantemente, a fundamentação da autoridade da Igreja em matérias doutrinais. Considerações finais As premissas maiores dos argumentos principais acima (3.1 e 3.2) são “princípios de credibilidade” buscados dialeticamente. “Autoridade dos que escrevem” e “diligência dos recebedores dos escritos” são “tipos de princípio de credibilidade”. Os silogismos desenvolvidos são silogismos dialéticos/prováveis, argumentos que devem levar alguém a crer na conclusão respectiva: “pelo menos” uma das premissas dos silogismos – certamente as premissas menores a cada vez, que exigem o duro labor de expositores – “não é evidente”. Naturalmente, os argumentos de amostra oferecidos não têm a forma probativa de argumentos científicos (dedutivos) – onde as premissas deveriam manter o que Scotus chama em Ordinatio prol. n. 208 de “certeza”, “evidência” e “necessidade”112. Nos casos em jogo, Scotus tanto termina por convencer “acerca de” aspectos básicos de racionalidade e crença quanto 112 Cf. DUNS SCOTUS, Ordinatio prol. p. 4 q. 1-2 n. 208 p. 141-142. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 89 ROBERTO HOFMEISTER PICH quer explicitamente convencer “com” esses aspectos básicos: crença em algo sob bons motivos ou princípios de credibilidade é razoável; crença em algo sob princípios de credibilidade não só latentes, mas (preferencialmente) explicitados e (conscientemente) aplicados é razoável; ter razões fortes (por causa da subsunção a princípios de credibilidade) para tomar algo por verdadeiro acarreta que é racionalmente preferível tomar aquilo por verdadeiro do que não fazê-lo ou, então, do que tomar a posição contrária – a de dizer a sua falsidade. Reconheço, outrossim, que tais apontamentos conclusivos só puderam ser obtidos com certa ousadia – bem ou mal sucedida – do intérprete com respeito à forma nua dos textos. Os argumentos soam válidos, mas certamente muitas convicções posteriores devem ser obtidas para estabelecer a premissa menor a cada vez113. Na sua apresentação atual nos argumentos, é de supor-se que as premissas menores não podem (ou, segundo os padrões contemporâneos sobre a interpretação das Escrituras canônicas e da tradição eclesiástica, não poderiam ainda) ser consideradas estabelecidas. Essa é uma tarefa que o teólogo – mesmo o teólogo filosófico – deveria realizar quando desafiado pela descrença ou crença contrastante de outros; ele não faz maravilhas, mas esforços de razão. Somente a “fé infusa” é um milagre114, não a “aquisição” de fé, que continua sendo, como tal, insuficiente para a salvação. 113 Para argumentos desse tipo, que se inserem dentro da rubrica “argumentos de autoridade e de testemunho”, cuja força racional é mais fraca do que a força probatória de argumentos científicos, a aquisição de crença pode exigir condições posteriores, como, por exemplo, a vontade e o papel da mesma no assentimento e no dissentimento; isso é insinuado em Ordinatio III d. 23 q. un.; cf. CROSS, R., Duns Scotus on God, p. 7. 114 Cf. notas 49, 58, e 61 acima. Cf. também BOULNOIS, O. 1998, p. 91-100. 90 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011 DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS... Referências 1 Duns Scotus DUNS SCOTUS, Ioannes. Opera omnia. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 1950-. DUNS SCOTUS, Ioannes. Opera omnia. Ed. L. Wadding. Lyon, 1639, 9 vol. (Nachdruck Hildesheim: Olms, 1968). 2 Demais autores AGOSTINHO (San Agustin). La ciudad de Dios – De civitate Dei. Edición bilingue. Edición preparada por el Padre Fr. José Moran. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1958. ABRAHAM, W. J. “Revelation and Scripture”. In: QUINN, Ph. L.; TALIAFERRO, Ch. (eds.). A Companion to Philosophy of Religion. Oxford: Blackwell Publishing, 2005, p. 584-590. AUER, J. “Das Theologieverständnis des Johannes Duns Scotus und die theologischen Anliegen unserer Zeit”, Wissenschaft und Weisheit, 29 (1966), p. 161-177. 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Este mesmo facto é característica do Weltgeist humanista. É também um autor pouco conhecido, ao menos no universo de fala lusófona. Neste artigo damos a conhecer o conteúdo doutrinal do seu opúsculo De libero arbítrio. Nele tece uma profunda crítica à Filosofia Escolástica, tal como a entende, atacando-a pela raiz, isto é, centrando-se na figura e na obra de Boécio e, nomeadamente, naquilo que diz ser a incoerência das teses do último romano acerca da conciliação entre liberdade humana e presciência divina. Criticando o excesso de filosofia e de razão que eiva a teologia do seu tempo, e em concreto a via moderni, Valla indica o que considera ser a novidade do seu pensamento acerca da questão em apreço: abandonar de vez a possibilidade de a entender e viver, mediante a fé, o pré-destino que Deus determinou para o termo da existência humana. Valla é, aqui, claramente um representante do fideísmo que caracteriza o movimento reformista. * Doutorada em filosofia medieval, investigadora auxiliar do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto. [email protected] Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 95 PAULA OLIVEIRA E SILVA 1 Valla, um espírito genuinamente crítico Lorenzo Valla nasce em Roma em 1407 e, após uma existência marcada de algum modo pela errância – Pavia, Florença, Milão e Nápoles, são algumas das cidades por onde passou – termina os seus dias também em Roma, em 1457. É uma figura de excepcional importância não só para a cultura italiana, como também para compreender as características de fundo que historicamente virão a configurar o humanismo europeu. O objecto dos seus interesses, reflectindo-se na sua obra, diversifica-se entre o gosto pela literatura, em particular pela clássica, pela filologia – que o leva a adquirir competências linguísticas, sobretudo no grego e no latim clássicos –, a apetência pela historiografia e a compreensão do seu valor na reposição da verdade histórica, a filosofia e a teologia. Reunindo em si mesmo tal diversidade de saberes, Valla torna-se efectivamente um modelo do ideal humanista do século XV. Interessa-se pela cultura do seu tempo e pelas particulares tendências humanistas que começam a assomar, não obstante o método escolástico se encontrar ainda vigente e pujante, mormente no plano institucional do ensino universitário da filosofia e da teologia. Reflectindo a atenção do seu autor aos sinais dos tempos, a obra de Valla responde quase sempre a situações concretas, emergindo quer do debate com os círculos intelectuais da época, quer da leitura dos autores de uma determinada tradição que, com base em Boécio Auctor, ou na incontroversa auctoritas de Aristóteles, desenham os elementos da cultura filosófica e teológica então dominante. Ao método e estilo escolástico, Valla opõe a sua dedicação à retórica e a preferência pelo estilo dialógico, às quais associa um espírito não particularmente conciliado com a metafísica. Do ponto de vista da sua história pessoal, a ambição de Valla teria sido ocupar o cargo de secretário papal, em Roma. O facto de não ter conseguido obter esse lugar na Cúria Romana faz que se dirija a Pavia, 96 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO onde ocupará a cátedra de Retórica do Studium da cidade, lugar que conseguira graças ao apoio de Antonio Beccadelli, dito o Panormita. Todavia, o ambiente científico e cultural de Pavia não era particularmente dado aos estudos humanistas. De facto, o ensino universitário aí ministrado, tal como em Pádua e Bolonha, estava forjado pelo aristotelismo e pelo método escolástico, dificultando que aí se viessem a enraizar os studia humanitatis1. Em Pavia, Valla teve ocasião de aprofundar a sua posição crítica com relação ao aristotelismo, à lógica dialéctica e ao método teológico escolástico. Com efeito, o intercâmbio cultural que aí se vivia e a amizade com personagens como Pier Candido Decembri e Maffeo Vegio, do ciclo de humanistas da Lombardia, tê-lo-ão familiarizado progressivamente com um modo de pensar crítico para com a dialéctica, sobretudo quando aplicada às questões teológicas. Ao mesmo tempo, a crítica à aplicação da dialéctica ao direito, levada a efeito pelo circulo humanista de Pavia e Milão, é também assumida por Valla sobretudo no libelo Ad Candidum Decembrium contra Bartoli Libellum cui titulus de insignis et armis epistola, escrito em 1433 e endereçado a Decembri, contra o escrito De insignis et armis do consagrado jurista Bártolo de Sassoferrato2. O anti-aristotelismo, a oposição ao método jurídico, a adesão ao método histórico-filológico são as notas características mais relevantes do ambiente cultural humanista de Pavia que Valla levará consigo, quando tiver de abandonar a cidade, dado o efeito adverso provocado pela vinda a público do referido opúsculo contra Bártolo de 1 O próprio Petrarca, que aí havia permanecido entre os anos 1365 e 1369, terá sentido a mesma adversidade, que relata na obra “De sui ipsius ac multorum ignorantia”, redigida em 1377, talvez mesmo em Pavia (ROSSI, V. V. “Il Petrarca a Pavia”, in: Studi sul Petrarca e sul Rinascimento. Firenze, 1930, p. 3-81). 2 Este opúsculo foi editado em conjunto com o De libero arbitrio e a Apologia, em Viena (SINGRENIO, G. 1516) e na Basileia (CRATANDER, A. 1518). Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 97 PAULA OLIVEIRA E SILVA Sassoferrato3. Valla acusa-o de ignorar a língua latina e a eloquência – sem a qual os livros dos juristas romanos não se podem entender - e de, por esse facto, interpretar erroneamente o direito, corrompendo as normas da tradução. A perturbação que este escrito provocou na Universidade de Pavia, onde Valla ensinava retórica, valeu-lhe um pedido de demissão e o correspondente abandono da cidade. Tais vicissitudes, contudo, denotam principalmente uma divergência cultural e de linguagem, reveladora do contraste cada vez mais evidente entre duas formae mentis, a humanista e a escolástica. Após uma breve estada em Milão e Florença, chega a Nápoles, vinculando-se à corte de Afonso V de Aragão4, o Magnânimo, onde permanecerá entre 1433 e 1448. Foram anos de produção fecunda, nos quais redige algumas das suas obras principais, entre elas o escrito De Linguae Latinae Elegantia e o opúsculo De libero arbitrio. Afonso V soube rodear-se de não poucos humanistas e intelectuais eminentes, como António Beccadeli, Bartolomeu Facio5, Giorgio di Trebisonda, Teodoro de Gazza, Giannozzo Manetti e Gianantonio di Pandoni dito Porcellio. Ao seguir Afonso V e a sua corte, Lorenzo Valla pôde respirar o ambiente de uma verdadeira forja de cultura humanística. Porém, se a protecção do Rei significou a possibilidade 3 Garin escreve, a propósito do espírito polemizante de Valla: “ Il Valla è sempre crudelmente polémico, e questo suo accento riveste di colori particulari, e quasi scandalosi, le antitesi di cui si compiace nei confronti dello passato” (GARIN, E. L’umanesimo italiano. Laterza, Bari, 1993, p. 63). 4 Afonso V de Aragão, em 1416, I de Nápoles em 1435 e das Duas Sicílias em 1442. 5 Bartolomeu Facio, humanista ao serviço de Afonso V, historiador real e tutor do Príncipe Ferrante, redige uma obra, De vitae felicitate, contra o De vero bono, de Valla. Esta obra de Valla deu de facto origem a uma série de discussões sobre a condição humana na segunda metade do século XV, que encerra uma tentativa de confrontar a visão cristã tradicional do homem e a realidade observável pela experiência humana. Explicitamente, três nomes estão envolvidos na controvérsia: António Beccadeli, Bartolomeu Facio e Lorenzo Valla. Veja-se a propósito Charles Trinkaus, In Our Image and Likness, Vol. 1, p. 200-229. 98 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO de realizar os seus projectos literários e de terminar as obras já iniciadas, contudo Valla não pôde ainda gozar do ócio em liberdade que sempre ansiou e que considerava condição para se dedicar às artes liberais. De facto, como secretário do Rei, deveria segui-lo, às vezes por longos períodos, nos acampamentos e campanhas militares6. É neste ambiente que redige o De libero arbitrio, obra que se encontra entres as primeiras que elaborou durante o período napolitano. 2 O Diálogo De libero arbitrio: posição do problema A questão acerca da natureza do livre arbítrio da vontade humana e da sua conjugação com a presciência divina, ou a existência de uma ordem universal, é um debate constante ao longo da História da Filosofia. Ora, quando Valla acede a debater, com António Glarea, esta mesma questão, indica, logo no Proémio, que pretende dizer algo de próprio, novo e diferente de quanto foi dito pelos demais que se expressaram sobre o tema7. Em que consiste, então, esta especificidade? A uma primeira leitura, o texto não apresenta, de facto, nada de novo. Analisando o acto livre humano e a presciência de Deus, conclui que em nada se contradizem, pela dissociação, em Deus, entre o acto 6 No Prefácio ao V Livro das Elegantiae, descreve assim a sua situação: “Já passei três anos, quase quatro, em constante peregrinação, indo de um lado para o outro, por terras e mares, com a campanha ainda recente e certamente despendi toda ela na milícia; mas não sei com certeza se o fiz por decoro ou mais por necessidade. No entanto, mesmo que o não dissesse, não duvido que todos sabem com certeza que me faltaram todas as ajudas que são importantes e mesmo essenciais para os estudos: leitura habitual, abundância de livros, lugar adequado, tempo disponível e por ultimo, ter o espírito sem outras ocupações” (VALLA, L. De linguae latinae elegantia. Introdução, tradução, edição critica e notas de S. Lopez Moreda, Tomo II, Cáceres, 1999, p. 551: nossa tradução). 7 LA, 52-57: “E esforçar-me-ei por discutir e resolver todo este assunto com a máxima diligência que puder a fim de que, depois de todos os que escreveram acerca dele, eu não pareça ter raciocinado em vão. Com efeito, apresentaremos algo de nosso e diferente dos demais”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 99 PAULA OLIVEIRA E SILVA de conhecer e o acto de exercer a sua vontade. Esta tese é uma constante, nos textos que tratam a mesma questão, bastando recordar, por exemplo, os diálogos de Agostinho e Anselmo ao propósito. Porém, o diálogo é conduzido a termo por Valla numa direcção inesperada, a saber, a da predestinação, por parte de Deus, e a da graça, dois conceitos cujo horizonte hermenêutico não é mais o da filosofia, mas o da teologia. Acresce ao facto que, por se tratar do ente supremo, os actos de predestinação e graça são totalmente inacessíveis para a mente humana. Poder-se-ia, então, concluir que, mais do que uma peculiar solução para o problema proposto, a especificidade do modo de Valla se posicionar ante ele reside no facto de considerar que a questão do livre arbítrio e da sua compossibilidade, ou não, de integração numa ordem maior, não é de âmbito filosófico, mas teológico, sendo, por isso – e este é um pressuposto constante no pensamento deste humanista – inacessível à razão. Ora, na óptica de Valla, esse parece ser o grande equívoco gerado pelos filósofos em torno desta questão particular, sendo Boécio, neste assunto particular, o principal réu no tribunal da história. No contexto da obra de Valla, o De libero arbitrio insere-se assim, como uma continuatio da crítica a Boécio que iniciara em De vero bono, muito em particular ao De Consolatione Philosophiae. Assim sendo, o De libero arbitrio é para Valla um veículo para ampliar a sua crítica ao saber escolástico e aos pressupostos epistemológicos da filosofia e da teologia, contestando o método de ambos os saberes e a sua aplicação à concepção da moralidade e do exercício da liberdade cristã. De facto, Valla assume o De consolatione Philosophiae como emblemático de toda a escolástica, quer pelo conteúdo, quer pela metodologia, bem como pelo lugar central que esta obra ocupou ao longo da Idade Média Ocidental. Esta obra e o seu autor marcam de algum modo o início de uma nova era e permitem delinear, em conjunto com os demais escritos de Boécio, a forma mentis 100 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO que será uma constante no Ocidente latino até ao século XII8. Ora, Valla considera que o modo de entender a filosofia e a teologia, por parte de Boécio, é em si mesmo pernicioso para a religião. Um tal posicionamento esteve na origem, historicamente, do método escolástico e da concepção de saber por ele veiculado, sendo necessário pôr de manifesto o aspecto nefasto de uma tal proposta, por um lado, e abrir novos itinerários à razão, por outro. Esta tarefa residirá, na óptica de Valla, em boa parte, na retomada do que fora dito pelos Padres e da recordação da essência da vera religio, a qual não está no poder da razão, mas na força da sobrenatureza divina. Com efeito, escreve Valla, o erro de Boécio, que o levou a não entender como devia a questão do livre arbítrio, foi o de não ter amado a filosofia como devia9. Mas, como deveria, então, ter Boécio amado a filosofia, na perspectiva de Valla? De certo modo, colocar a filosofia ao serviço da religião comporta uma dupla perversão, inquinando ambos os saberes. Ora, foi isso que a Idade Média, e a Escolástica com seu exponente máximo, levaram a efeito, primeiro pela mão de Boécio, posteriormente pela de Aristóteles. A crítica de Valla atinge, assim, rejeitando-a, uma multissecular tradição filosófico-teológica. A esta, opõe a christiana religio, em moldes que deixam de lado um sentido determinado da inteligência da fé, que servira de base ao exercício da filosofia como ancilla theologiae: o facto de a razão, identificada com 8 Sobre este assunto, veja-se COURCELLE, P. La consolation de Philosophie dans la tradition littéraire. Paris, 1967. A obra do erudito francês analisa à exaustão as fontes de Boécio para a composição do De Consolatione, bem como a projecção desta obra ao longo da Idade Média, quer quanto à transmissão do texto, quer quanto à doutrina. 9 LA, 10-11: “(...) só o amor desmedido à filosofia levou Boécio, no Livro V da sua Consolação, a não raciocinar como devia acerca do livre arbítrio. [11] Na verdade, aos quatro primeiros livros respondemos na nossa obra sobre O Verdadeiro Bem. E esforçarme-ei por discutir e resolver todo este assunto com a máxima diligência que puder a fim de que, depois de todos os que escreveram acerca dele, eu não pareça ter raciocinado em vão. Com efeito, apresentaremos algo de nosso e diferente dos demais”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 101 PAULA OLIVEIRA E SILVA o modelo da lógica dialéctica, estar na base da ciência teológica. À sanctissima religio, afirma Valla, as doutrinas dos filósofos não foram senão prejudiciais, tendo estado na origem da maior parte das heresias. Contra estas pugnaram os Apóstolos e os Padres, quais colunas do templo de Deus – mais do que com a filosofia, que tantas vezes expulsaram como fonte de erros –, pela prática das boas obras. Afinal, o que Lorenzo Valla propõe – atitude que é comum a outros humanistas da mesma época e que caracteriza afinal o próprio humanismo – é a defesa de um novo paradigma de racionalidade. Este, regressando às fontes dos Padres e dos Apóstolos em matéria de fé, deve recolher-se à autoridade dos Antiquii, mais do que enveredar pela nova via modernorum. Para transmitir a doutrina de sempre, deverá apurar as artes da comunicação, fundamentalmente da retórica, bem como cingir-se ao apuramento da verdade histórica mediante o recurso ao método histórico-filológico10. Por seu turno, opondo-se veementemente à instrumentalização da filosofia por parte da teologia, que caracterizou a escolástica aristotélica-tomista, Valla apresenta a rethorica como alternativa ao problema da mediação epistemológica entre esses dois saberes fundamentais. Desta forma, propunha-se instaurar o estatuto humanista da teologia11. A especificidade do posicionamento de Valla em face da discussão sobre a natureza do livre arbítrio é a compreensão da destinação humana no contexto de uma salvação sobrenatural, operada pelo Deus da 10 Exemplo dessa paixão pela historiografia é a obra escrita enquanto secretário, conselheiro e historiógrafo de Afonso V: Historiarum Ferdinandi Regis Aragoniae libri tres (1446/1447). Do apuramento do texto à luz da filologia é resultado a Collatio Novi Testamenti, cuja segunda redacção foi publicada por Erasmo em 1505, em Paris. E, associando aqueles dois saberes, o histórico e o filológico, Valla escreve o De falso credita et ementita Constantini donatione declamatio. 11 Sobre esta proposta de Valla, e o modo como ela é articulada no interior da sua obra, veja-se “La rethorica come modus tehologandi”, no capítulo II da obra de S. Camporeale, Lorenzo Valla...., p. 226-265. 102 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO revelação judeo-cristã. É este o horizonte desse diálogo do humanista romano, o qual, porém, só é desvendado claramente já no final do opúsculo, mormente à luz da selecção de textos paulinos aí levada a efeito por Valla. Todavia, antes de concluir por esta tese de cepticismo racional face ao conhecimento do modo de agir de Deus, o debate tido com António Glarea, de que De libero arbitrio deixa constância, inicia-se com uma análise da própria tese boeciana acerca da relação entre a presciência divina e o livre arbítrio. Reconhecendo a um tempo quer a arduidade do problema, quer a necessidade de o esclarecer12, Valla nega-se a aceitar as respostas dadas pela tradição filosófica, incluindo a de Severino Boécio. Não recusa que o posicionamento da questão por parte deste seja exacto, mas sim que o seja a solução apontada, a qual, todavia, foi considerada por uma tradição multissecular como sendo a melhor. Aliás, Valla retoma o debate justamente a partir do posicionamento boeciano, assumindo-o como próprio. Porém, onde Boécio pensa ter solucionado a questão, Valla encontra uma limitação essencial, operada pela razão filosófica quando, erroneamente, e extrapolando a sua limitação natural, se julga capaz de penetrar nos segredos divinos. 3 Presciência divina e liberdade humana No livro V de De Consolatione, Severino Boécio soluciona o conflito entre presciência divina e liberdade humana invocando a especificidade do conhecimento de Deus. A solução boeciana incide numa análise do modo do conhecer divino, sublinhando a diferença entre tal modo de conhecer, eterno e necessário, e o conhecimento 12 LA, 80: “Ant. - A questão acerca do livre arbítrio, da qual depende tudo o que se refere às acções humanas, toda a justiça e injustiça, todo o prémio e castigo, e não só nesta vida como também na futura, parece-me extremamente difícil e particularmente árdua”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 103 PAULA OLIVEIRA E SILVA humano, sujeito aos condicionamentos da alma unida ao corpo e à sucessão temporal13. Boécio distingue, da mesma forma, uma necessidade per se, que é própria de Deus, e uma necessidade condicionada, específica das realidades contingentes, entre as quais se conta o poder humano de escolha. Na base destas categorias, afirma a coexistência de um conhecimento necessário, por Deus e para Deus, de tudo o que sucede, sem que tal acto divino condicione ou determine a escolha humana14. Valla, por seu turno, tece uma dura crítica a esta postura boeciana. Como pode a razão humana, que acaba de ser descrita como limitada e sujeita ao tempo, sendo essa a base do argumento, penetrar na essência da divindade, afinal, conhecer a mente suprema de Deus? Por isso, o raciocínio de Boécio surge a Valla como contraditório, baseado em elucubrações e sobretudo um atentado ao primado de Deus sobre a razão humana15. 13 BOÉCIO, S. De Consolatione, V, 6, 2-3: “Deum igitur aeternum esse cunctorum ratione degentium commune iudicium est. Quid sit igitur aeternitas, consideremus; haec enim nobis naturam pariter divinam scientiamque patefacit”. No seguimento, define, com base neste conhecimento humano da inteligência divina, o que é a presciência: “Si praesvidentiam pensare velis, qua cuncta dinoscit, non esse praescientiam quasi futuri, sed scientiam numquam deicientis instantiae rectius aestimabis”. Boécio soluciona a questão anulando a própria noção de presciência. Tratar-se-ia, afinal, de um conhecimento de presença, ante o qual a percepção do futuro é inadequada (Cf. Ibid. V, 6, 31-32). 14 Cf. BOÉCIO, S. De Consolatione Philosophiae, V, 4, 21-36. 15 A crítica à posição de Boécio e aos limites da razão é introduzida pela fala de António. LA, 149-164: “E nos demais assuntos não rejeito os escritores, pois ora um, ora outro me parece dizerem coisas prováveis. Mas no assunto acerca do qual desejo falar contigo, seja-me dada a tua benevolência e a dos demais: absolutamente nenhum deles tem o meu assentimento. Na verdade, que direi dos outros, quando o próprio Boécio, a quem todos dão a palma na explicação desta questão, não sendo capaz de levar a cabo a sua tarefa, se refugia em certas realidades imaginárias e fictícias? Com efeito, diz que Deus pela sua inteligência, que está acima da razão, e pela sua eternidade, sabe tudo e tem tudo na sua presença. Eu porém, que sou racional e nada conheço fora/à margem do tempo, a que conhecimento da eternidade e da inteligência poderei aspirar? Suspeito que estas coisas certamente nem o próprio Boécio as entendeu, se o que disse é verdade, coisa que não creio”. 104 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO Qual é, então, a solução de Valla e o seu contributo para o esclarecimento da questão? Valla não concebe a oposição entre presciência e liberdade a partir de um modelo de conhecimento específico da divindade, mas a partir da experiência humana do conhecimento prévio16. Neste sentido, recorda o debate ocorrido entre Agostinho e Evódio, alguns séculos antes daquele registrado entre Boécio e a Filosofia. Com efeito, no terceiro livro do Diálogo sobre o Livre Arbítrio, é debatido precisamente o mesmo problema e conclui-se que as dificuldades derivam não tanto da divindade da presciência, mas da relação entre o conhecimento de outro face à acção livre de um terceiro17. Este pressuposto é coincidente com o de Valla, para quem a previsão de um acontecimento não é causa eficiente dele18. No modelo de Agostinho, o debate prossegue apurando a análise e fixando o problema não com relação a um conhecimento eterno de acções que se desenrolam no tempo – proposta que se viu ser a de Boécio – mas por referência ao conhecimento dos futuros, pois só com relação a estes se coloca a ques- 16 LA 252-253: “Não dirás que algo seja por tu saberes que é”. 17 Diálogo sobre o Livre Arbítrio (DLA), III, IV, 10. “A. – De onde te parece provir esta contradição entre a presciência de Deus e o nosso livre arbítrio? É por se tratar de presciência ou por ser presciência de Deus? E. – É mais por ser de Deus. (...)” Após o debate com Agostinho, Evódio reconhece que o que faz a presciência dos futuros um conhecimento necessário é a própria noção de presciência – conhecimento antecipado. Conclui Agostinho: “A. – (...) não é por ser presciência de Deus que é necessário que aconteça o que ela conhece de antemão, mas tão-somente por ser presciência, a qual seguramente não existe se não conhecer coisas certas” (Trad. de Paula Oliveira e Silva, INCM, Lisboa, 2001, p. 267-269). 18 LA, 248-255: “Ainda não vejo por que razão te parece que da presciência de Deus decorre a necessidade das nossas acções. Se, de facto, prever que algo virá a existir, faz que venha a existir, seguramente saber que algo é faz igualmente que seja. Mas se conheço a tua inteligência, não dirás que algo seja por tu saberes que é. Por exemplo, saber que agora é de dia. Porventura é por saberes isso que o dia é? Ou pelo contrário, é porque é o dia que sabes que é de dia?” Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 105 PAULA OLIVEIRA E SILVA tão da incerteza e da variabilidade19. Ora, a presciência divina confere, a este futuro incerto (para nós), um determinismo absoluto, pois as coisas terão de ocorrer tal como Deus as prevê. António Glarea leva o raciocínio até à aporia, pois a ser assim, a liberdade humana de escolha é anulada. Mas se, inversamente, se afirmar que as coisas acontecem de um determinado modo, e é por isso que Deus as prevê, a presciência de Deus torna-se necessária (e, inclusivamente, de algum modo, subordinada aos acontecimentos), o que introduz em Deus a contradição própria de um conhecimento necessário de realidades contingentes. Às aporias de Glarea, Valla responde com duas teses que também se encontram em Agostinho. Por um lado, o facto de o conhecimento prévio de Deus respeitar a natureza das coisas que conhece. Deste modo, Deus conhece as acções humanas enquanto resultados de uma decisão livre da vontade que as pratica20: de que modo pode Deus ignorar a acção, se não ignora a vontade que é fonte da acção?21 Quanto à segunda dificuldade que decorre da introdução em Deus de um conhecimento necessário do contingente – Valla responde com a infinita perfeição do conhecimento de Deus. O facto de Ele não poder não prever 19 LA, 271-274: “Assim, nestas realidades temporais admito que não é por algo ter sido, ou ser, que sei que é desse modo, mas sei que assim é porque isso é ou foi. Mas o raciocínio acerca do futuro é diferente, porque é variável e não pode conhecer-se com certeza, porque é incerto”. 20 LA, 233-236: “Pelo facto de Deus prever algo que será feito pelo homem, não há nenhuma necessidade em que o faça, porque o faz voluntariamente. Ora o que é voluntário não pode ser necessário”. Em DLA III, III, 8: “Como Deus conhece de antemão a nossa vontade, existirá a própria vontade, que Ele conhece de antemão. A vontade existirá, portanto, porque a presciência de Deus é de uma vontade. Mas não poderia tratar-se de uma vontade se não estivesse em nosso poder. Deus é também presciente de tal poder. Assim, não é pela presciência de Deus que este poder me será arrebatado. Ele até me pertencerá com mais segurança, na medida em que Deus o conhece de antemão, pois Aquele cuja presciência não se engana conheceu de antemão que este poder me pertenceria” (AGOSTINHO, Diálogo sobre o Livre Arbítrio… p. 267). 21 Cf. LA, 339-340. 106 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO o futuro é manifestação não de uma imperfeição da sua natureza mas de um excesso da sua sabedoria22. Um derradeiro passo na análise da relação entre presciência e liberdade humana é dado pela distinção entre futuros contingentes e futuros livres. Aqueles primeiros sucedem dentro de uma ordem natural das coisas, a qual está na base de uma certa presciência que também se encontra em toda a ciência humana dos fenómenos naturais, e que é exemplo a medicina ou a agricultura. A base de um tal conhecimento é a constância das relações causa-efeito, expressa nas leis da natureza. O mesmo não sucede com as acções humanas. Sendo estas causadas pela possibilidade de escolha, nenhuma determinação prévia as poderá anteceder. Ora a pura indeterminação delas faz ou que Deus não as possa prever ou, se pode, que elas não sejam efectivamente livres. No exemplo retirado das fábulas de Esopo, discute-se precisamente este aspecto23. A essência da questão é a distinção, nas acções humanas, entre um domínio de possibilidade e a decisão efectiva, considerados por Valla como dois planos de realidade distintos. De facto, só sobre esta última incide a presciência, pois no plano da pura possibilidade de escolha os próprios contrários são compossíveis24. Mas a novidade da proposta de Valla estará, sobretudo, no que emerge da fábula de Sexto Tarquínio, com a qual estabelece o limite racional de compreensão do problema em análise, dando por encerrado o debate25. A fábula é acerca da consulta que Sexto fez a Apolo, sobre o que lhe viria a acontecer. Apolo profere um oráculo sumamente desfavorável a Sexto, informando-o de que morrerá na miséria e no exílio. Suplicando Sexto que lhe altere o futuro, Apolo responde que 22 Cf. LA, 290-294. 23 Cf. LA, 320-385. 24 Cf. LA 405-414. 25 Cf. LA 453-575. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 107 PAULA OLIVEIRA E SILVA não o pode fazer, pois apenas conhece factos, não os elabora ou determina. Ora, Sexto fará livremente os actos que o conduzirão àquele destino desafortunado. Mas o infortúnio, que Sexto não deseja e contudo lhe ocorrerá contra sua vontade, a quem deverá ser imputado? Apolo, no diálogo imaginado, responsabiliza Júpiter, o Deus em cujas mãos está o poder e o querer dos destinos, pois a ele cabe a decisão de que assim acontecerá 26. Qual é, afinal, a força da fábula? Ela é revelada, mediante a interpretação de Valla, em De libero arbitrio 576-584: se é verdade que em um só Deus (que os gentios não possuíam, e por isso apresentam em duas personagens) não se podem separar a sabedoria e o poder da vontade, também é um facto que, aquilo que a presciência não torna necessário se deve submeter à vontade divina: hoc, quidquid est, totum ad voluntatem Dei esse referendum. Assim, apelando para a potência absoluta da justíssima vontade de Deus, e insistindo nos limites da razão humana, Valla orienta o debate para o contexto da adesão fiducial. 4 O divino e o humano no concurso das vontades Ante o postulado da absoluta vontade de Deus, à qual tudo se refere, o diálogo sofre uma inflexão. Se até agora ele fora conduzido no domínio da razão dos filósofos, a partir de agora, abandonada esta à sua limitação, o discurso avançará no plano da fé. Estas duas formas de conhecimento são claramente distintas: estamos firmes na fé, não na probabilidade da razão27. Para esta, é inacessível tudo o que se refere à ordem divina. Inversamente, aquela deve importar para si uma dupla certeza: a da bondade de Deus e a da inacessibilidade dos seus desígnios. 26 LA, 476-480: “Acusa Júpiter, se for do teu agrado, acusa Parcas, acusa a fortuna de onde procede a causa de tudo o que acontece. Está nas mãos deles o poder e o querer dos destinos, nas minhas está apenas a presciência e a predição”. 27 Cf. LA 792-793. 108 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO Deste modo, o raciocínio da fé deve comportar um juízo maximamente benévolo acerca do incompreensível28, por um lado, e por outro, a certeza do carácter arcano do agir divino para a razão humana29. O que está em discussão, nesta terceira e última parte do diálogo, é saber se a vontade de Deus anula, ou não, a liberdade de escolha30. Valla afirma não ter solução para a resposta no plano da razão filosófica, e convida António a procurar outro mestre. O diálogo abandona, então, o comentário a Boécio, investindo sobre o texto bíblico, concretamente sobre a Epístola de S. Paulo aos Romanos31. O horizonte hermenêutico é agora o da história da salvação, na versão específica que dela possui a religião judaico-cristã. Na base, como se referiu, está a convicção de potência absoluta de Deus, a qual sempre se exerce a fim da maior expressão de bondade. Neste quadro, Valla pode afirmar, a um tempo, que Deus age sobre os indivíduos, quer endurecendo a sua vontade, quer usando de misericórdia para com eles, e, no entanto, eles são livres de escolher o próprio curso a imprimir à sua vontade, não lhes sendo, por isso, retirada a responsabilidade no agir. Acresce a estes elementos a vontade salvífica universal de Deus, cuja operatividade se levou a efeito mediante a morte do Cristo histórico32. 28 Deus é sapientíssimo e óptimo; o que é bom só pode agir bem (cf. LA 664-666). A ideia de Deus como noção suprema é uma constante na história da filosofia ocidental e nela se baseiam os argumentos de Agostinho, em De libero arbitrio, o de Anselmo, no Proslogion, e a 4ª via de Tomás de Aquino, na S. Th, I, q. 2. Por seu turno, é esta concepção de um Deus sumamente bom que age necessariamente pelo melhor, que permitirá a Leibniz, a quem este opúsculo de Valla não passou despercebido, conceber este como o melhor dos mundos possíveis. 29 A razão oculta da causa do agir divino está numa espécie de tesouro escondido (cf. LA 675-676). 30 Cf. LA 585-593. 31 Os textos referidos por Valla são Rom. IX, 11-12 e Rom. 11, 33. 32 Cristo, sabedoria e virtude de Deus, diz que quer que todos os homens se salvem e que não quer a morte dos pecadores, mas que se convertam e vivam. Esse facto deve permitir aos humanos confiar nesse desígnio (Cf. LA, 784-787). Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 109 PAULA OLIVEIRA E SILVA O raciocínio de Valla é assaz complexo. Antes de mais, na lição da fábula de Sexto Tarquínio, insinuou que, em Deus, a sabedoria e a vontade não são o mesmo, conclusão que agora irá explorar. Depois, ao postular uma vontade de Deus absoluta, mostrará que ela pode agir sobre os indivíduos, no que se refere à relação deles com o divino. Esse facto não obsta às livres acções dos homens, mas apenas ao modo como Deus actua neles e, por meio deles, na relação com o conjunto dos homens. Quanto à relação, em Deus, entre a sabedoria e a vontade, Valla afirma que os actos desta se submetem àquela, tornando-se, por isso, totalmente incompreensíveis para a razão humana, mesmo se muito santa e próxima do divino, como sucedia com S. Paulo, e mesmo no caso da inteligência angélica que tem o privilégio de conhecer Deus por intuição. Valla considera totalmente inacessível a qualquer razão criada a compreensão dos desígnios da sabedoria divina: a vontade de Deus tem uma causa antecedente que reside na sabedoria de Deus. Essa causa é absolutamente justa, porque é de Deus, tornando-se para nós e pelo mesmo motivo absolutamente incógnita33. Quanto à relação de Deus com as liberdades criadas, angélicas ou humanas, ele pode agir, e age de facto, endurecendo umas e sendo favorável a outras. Este facto – e aqui reside alguma novidade, da parte de Valla – não decorre de uma queda original. Ele é, necessariamente, anterior à queda. De outra forma não seriam compreensíveis a actuação de Adão e a consequência dela. Analisemos a interpretação de Valla neste assunto particular, que se prende com a explicação de uma queda original e das suas consequências para o género humano. Adão pecou por livre escolha. Porém, esse facto não corrompe a sua natureza, nem a matéria de que ele foi feito por Deus – a especificidade da sua natureza, racional e livre. Esta mantém-se naqueles que são toda a sua descendência, ou seja, no género humano. Não há, de facto, uma corrupção da natureza. Que sucede, então, na natureza hu- 33 Cf. LA 660-665. 110 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO mana, depois do pecado livre de Adão? Pecaram com ele todos os homens? Degradou-se a matéria original criada por Deus? Nenhuma das soluções faz sentido, para Valla. O que sucede é que a vontade dos homens foi endurecida. Por quem? Pela vontade de Deus. De que modo ela pode ser regenerada? Pela morte de Cristo34. Qual a causa de que a vontade divina endureça uns e use de misericórdia para com outros? Esta razão é impossível indagar35. Uma semelhante posição para a relação entre as vontades divina e humana, se é certo que não anula a liberdade de escolha, pelo menos debilita-a na sua autonomia. Em última instância, sobre a liberdade de escolha, e mais além dela, exerce-se uma vontade suprema. Esta acaba por intervir na humana, ao menos numa certa orientação da existência humana, para Deus ou contra ele, para o bem ou para o mal. Se é verdade que Valla não emprega aqui o termo predestinação - porventura por o considerar mais próximo de uma presciência (o conhecimento de um destino prévio) do que de uma consideração da vontade absoluta de Deus – as fronteiras entre liberdade e destino/desígnio são aqui efectivamente assaz ténues. É certo que o acto humano permanece livre: é cada homem que escolhe em cada acto. Porém, não deixa de o fazer em função da determinação de uma vontade suprema e absoluta que, se não anula a capacidade de escolha, não permite ao ser humano querer de outro modo. A proposta não deixa de ser interessante, pois desta forma Valla pretende conciliar o exercício individual da liberdade de escolha com a afirmação de uma ordem suprema e universal, a qual é sempre benéfica e quer para todos o melhor dos bens. Perante tal posição, é fácil compreender a leitura que a posteridade dela fará. Os reformadores, 34 Cf. LA 681-729. 35 LA, 775-777: “A causa da vontade de Deus, que endurece uns e se compadece de outros, não é conhecida nem dos homens, nem dos anjos”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 111 PAULA OLIVEIRA E SILVA como Lutero e Calvino, observando a garrafa meio vazia – isto é, ficando com a dimensão negativa de uma predestinação anunciada e de uma liberdade cujo exercício escapa à escolha humana – defenderão a tese da massa damnata e de uma impossibilidade de o livre arbítrio do homem contribuir, efectivamente, para a salvação dele. Esta será sempre obra da graça, a qual é à partida, sectária, com a agravante do carácter arcano, para não dizer aleatório, do critério de selecção entre justos e injustos. Fixando-se na garrafa meia cheia, o posicionamento de Valla servirá a Leibniz, mediante alguns ajustes, de base para a ilustração da sua tese acerca do melhor dos mundos. De facto, no final do Livro III dos Ensaios de Teodiceia, Leibniz reproduz alguns trechos deste opúsculo de Valla, fazendo incidir o seu comentário na fábula de Sexto Tarquínio36. Depois, corrigindo a interpretação de Valla, levando-a mais longe retira dela uma nova força. Numa linguagem simbólica, completa a narração de Valla. Teodoro, pai de Sexto, é levado ao reino de Parcas, onde lhe é permitido contemplar as acções de Júpiter, não apenas reais, mas também as possíveis. Aí, visualiza as diferentes possibilidades da existência de Sexto e compreende que, de entre elas, Júpiter executou a melhor, a de um Sexto que elegeu ser perverso. Com efeito, as escolhas de Sexto não pertencem a Júpiter, mas apenas o ser dele37. Também Valla considerara, de algum modo, este mundo de possíveis, ao menos aplicado às escolhas individuais38. Leibniz leva esta 36 LEIBNIZ , Essais de Théodicée, III, 406-412. Préface et notes J. Jalabert. Paris, 1962, p. 270-374. 37 Essais de Théodicée, III, 416 : « mon père [ de Parca] n’a point fait Sextus méchant. Il l’était de toute éternité, il l’était toujours librement». 38 LA 405-411: “É muito diferente o facto de que possa acontecer e o facto de vir a acontecer. Posso casar-me, posso ser soldado ou sacerdote. Porventura se segue imediatamente que o serei? De modo nenhum. Se é verdade que posso agir de modo diferente do que virá a acontecer, contudo não ajo de modo diferente, e estava nas mãos de Judas não pecar, embora tivesse sido previsto, mas ele preferiu pecar, facto que já assim tinha sido prescrito. Portanto, a presciência é confirmada, permanecendo a liberdade de escolha”. 112 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011 LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO possibilidade às últimas consequências e aplica-a, mediante a actividade criadora de Deus, à totalidade do universo. Exercendo-se mediante a livre escolha dos seres racionais e livres, a própria liberdade se insere no domínio mais amplo de uma vontade e sabedoria absolutas de bondade e felicidade. O resultado só pode ser a efectivação do melhor dos mundos a um tempo livre, maximamente feliz e sumamente bom. Referências AGOSTINHO DE HIPONA. Diálogo sobre o livre arbítrio. Tradução e introdução Paula Oliveira e Silva, Lisboa, 2001. BOECIO, S. La consolazione della filosofia. Turim, 2004. CAMPOREALE, S. Lorenzo Valla. Umanesimo, Reforma e Controriforma. Studi e Testi. Roma, 2002. COURCELLE, P. La consolation de Philosophie dans la tradition littéraire. Paris, 1967. FUBINI, R. Umanesimo e secolarizzazione da Petrarca a Valla. Roma, 1990. GARIN, E. L’Umanesimo italiano. Laterza, Bari, 1993. KEßLER, E. Lorenzo Valla. Über den freien Willen. München, 1987. LEIBNIZ, G. Essais de Théodicée. Paris, 1962. RIBEIRO DOS SANTOS, L. Linguagem. Retórica e Filosofia no Renascimento. Lisboa, 2004. 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R. de Souza ** Pretendemos com este estudo, fundamentado na opera antoniana e na bibliografia especializada, apresentar ao leitor o desconhecido Magister estudioso e culto que, em seus escritos, soube habilmente conciliar a tradição exegética monástica com as inovações introduzidas por intelectuais que o precederam nos séculos imediatamente anteriores. Com efeito, alguém que, desavisado tomasse em suas mãos, pela primeira vez, a edição bilíngue em latim e português1 dos Sermões Dominicais e Festivos2 de Santo Antônio, pensaria tratar-se de um conjunto de prédicas ou homilias que ele escreveu e proferiu, alusivas a ** Professor Titular aposentado da Universidade Federal de Goiás-Goiânia, Brasil e docente do Gabinete de Filosofia Medieval do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 1 CAEIRO, Francisco da Gama. Santo António de Lisboa, vol. I, Lisboa, IN-CM, 2ª ed., 1995, p. 185-186: “... elegante, de excelente contextura, que o misticismo antoniano ainda mais avivou, com extrema riqueza e variedade de vocabulário, fazendo lembrar a linguagem dos tempos áureos de Roma e presumir a leitura pelo Santo, decerto em Coimbra, dos prosadores e poetas clássicos...”. 2 REMA, Cf. Henrique Pinto, OFM, Santo António de Lisboa, Obras Completas, Sermões Dominicais e Festivos, vols. I e II, Porto, Lello e Irmão, 1987. Iremos usá-la neste trabalho e ao transcrever ou citar um trecho, sempre indicaremos o sermão, o volume e a página em que se encontra. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 115 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA cada evangelho dominical3 ou para missas festivas em louvor, da Virgem Maria, dos Santos, e etc., ao final da leitura do Evangelho ou, conforme se diz hoje, da Liturgia da Palavra, de acordo com o que acontece nas missas, há muitos séculos, em que o oficiante ou outrem retira das leituras ou, particularmente, de uma delas, ensinamentos que visam à instrução religiosa e moral dos fiéis, bem como ao seu engajamento na vida eclesial quotidiana. Essa mesma pessoa, tendo ouvido dizer ou lido algures que o Santo foi um famoso pregador que converteu muita gente, também poderia ser levada a crer que eram sermões populares4 que ele teria dito, como os pregavam os sacerdotes na Idade Média e antigamente, hauridos, sim, nas Escrituras, mas, pregados numa linguagem rica em exemplos, muitos dos quais terrificantes ou piegas, com o fito de, primeiramente, assustar ou comover os fiéis, e depois, levá-los a conhecer e a compreender as verdades da fé e a refletir sobre a sua conduta religiosa e moral, e, enfim, estimular neles a prática da doutrina cristã. Na verdade, os Sermões antonianos não são isso. Em primeiro lugar, convém esclarecer o leitor de que Santo Antônio pregou, principalmente, ao povo em geral, em português arcaico, em ocitano ou provençal e em vêneto, nos lugares onde exerceu o ministério sacerdotal. Entretanto, esses sermões jamais foram escritos. Com certeza, também, há que ter pregado em latim, em determinadas ocasiões, dirigindo-se, por exemplo, aos seus confrades franciscanos, naturais e provenientes de vários lugares, reunidos em Capítulo, provincial ou geral, ou em retiro espiritual; aos prelados francos reunidos em sínodo nacional; aos cardeais da Cúria Pontifícia e a Gregório IX 3 SILVEIRA, Ildefonso, OFM “Santo Antônio Pregador Modelo de Evangelizador”, RHEMA 4 (1995), p. 25: “...Falo em domingos e não em sermões, pois às vezes o mesmo Domingo encerra, além de várias partes do sermão ou cláusulas, também sermões morais, alegóricos e anagógicos, que constituem outros esquemas e temas...”. 4 CANTINI, Gustavo, OFM Conv., “La tecnica e l’indole del Sermone medievale ed i Sermoni di S. Antonio da Padova”, Studi Francscani, 31 (1934) p. 64: “... consisteva nel dire de buone cose di esortazione e di edificazione, senza tema fisso e obligato, senza curarsi di riminiscenze bibliche; ma parlando sopra tutto ex abundantia cordis ...”. 116 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... (1227-41), o qual deu testemunho desse acontecimento5 e a Assidua ou Legenda Prima, a hagiografia mais antiga a seu respeito (c.123132), o registrou6. Mas, igualmente, não se pode afirmar, categoricamente, que, na íntegra, tais prédicas tenham sido incluídas nos preditos sermões. No entanto, podemos supor que, ao escrevê-los, lançou mão de muitos trechos deles todos. Em segundo lugar, ainda, convém dizer que o título suprareferido, dado à opera antoniana, não pode ser tomado literalmente ao pé da letra, pois, na verdade, há quatro sermões, integrantes do primeiro conjunto que especificamente foram escritos em louvor da Virgem Maria, e um número considerável deles multiplica-se em outros tantos sermões mais breves de determinados tipos, conforme, adiante, voltaremos a dizer algo. Atualmente, ninguém dúvida de que o Santo tenha efetivamente escrito esses sermões, aliás, como ele mesmo o diz, entre outros motivos, «a pedido dos irmãos», graças ao estabelecimento crítico dos textos, trabalho esse, primeiramente, efetuado por Antonio Maria Locatelli e sua equipe, o qual, há pouco mais de vinte anos, foi ampliado e aperfeiçoado por um grupo de estudiosos que os publicaram em três volumes7. Mas não é descartável a hipótese de que, nos próximos anos, 5 Cf. Bula Cum dicat Dominus, 23 de junho de 1232, in BF, 4 vols. ed. por J. H. Sbaralea, v. I, p. 79-81. 6 Cf. c. X, a tradução é nossa: “... O Altíssimo deu-lhe o dom de despertar tal estima nos veneráveis príncipes da Igreja, que o Sumo Pontífice e todo o colégio de cardeais escutaram com devoção ardentíssima seus sermões. De fato, sabia tirar das Escrituras significados tão originais e tão profundos, com notável eloquência, que o próprio papa, com uma expressão muito pessoal, chamou-o de Arca do Testamento ...”. 7 PACHECO, Maria Cândida Monteiro. “Santo António de Lisboa”, in: História do Pensamento Filosófico Português, dir. Pedro Calafate, v. I, Idade Média, Lisboa, Caminho, 1999, p. 193: “... A autenticação crítica da sua obra iniciou-se com A. M. Locatelli e concluiu-se com a última Edição Crítica de Pádua, de 1979, que publica os textos considerados isentos de qualquer dúvida, agrupando-os nas designações Sermones Dominicales et Festivi ...”. Cf. também REMA, Henrique P. OFM, Introdução, op. cit., p. XXXIV-LV. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 117 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA venham a ser identificados outros sermões que se encontram no Códice do Tesouro de Pádua como da lavra do Santo8. Tampouco, ninguém põe em causa que a opera antoniana contêm dois conjuntos específicos, embora, de certo modo, inter-relacionados. Desde os anos oitenta9 e especialmente a partir do importante Congresso antoniano de 1981, comemorativo dos 750 anos da morte do Santo, uma questão tem sido objeto de pesquisa e debate entre os antonianistas, qual seja, a de tentar determinar, com precisão, quando exatamente teriam sido escritos os Sermões Dominicais, apesar de a Assidua afirmar que o foram, entre 1227-30, durante a primeira estada do Santo em Pádua10, enquanto exercia o cargo de ministro provincial dos Menores da província da Romanha. Os estudiosos estão divididos. Um bom número deles mantém-se fiel à indicação fornecida pela Assidua. Um outro grupo de pesquisadores não menos sério e expressivo, liderado por Gama Caeiro11, Ma8 Cf. FRASSON, L.; GAFFURI, L.; CRISCIANI, C. “In nome di Antonio: la Miscellanea del Codice del Tesoro (XIII in) della Biblioteca Antoniana di Padova. Edizione critica”, Il Santo 35 (1995): 533-575. 9 PACHECO, Maria Cândida M. op. cit., 1999, p. 193-194: “... Nas duas últimas décadas, estudos mais aprofundados sobre o sermonário – possibilitados pela última edição crítica de Pádua – fizeram ressaltar a impossibilidade de uma obra tão complexa ter sido redigida tão rapidamente; puseram igualmente em evidência a disparidade litúrgica subjacente, a diversidade das formas de citação da Bíblia e a aplicação desigual, nos Sermões Dominicais e Festivos, do esquema estrutural da Quadriga, sendo estes últimos mais curtos e muito mais simples na sua arquitectónica interna ...”. 10 Cf. C. XI, 3: “... Verum, quia alio in tempore, cum videlicet sermones per annum Dominicales componeret, apud civitatem Paduanam residentiam fecerat ...”. 11 CAEIRO, F. da Gama. Santo António de Lisboa - Introdução e selecção de textos, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1990, Introdução, p. 41: “... No simples plano conjectural, quanto à preferência por uma das opções cronológicas: não surgirá como mais plausível o momento de redacção de uma obra da natureza e envergadura dos Sermões Dominicais no contexto de uma corporação monástica como Santa Cruz de Coimbra, mais do que no ambiente efervescente de constante deambulação apostólica, de uma existência itinerante, com os recursos necessariamente limitados das pobres livrarias das comunidades da incipiente Ordem Franciscana –, a qual aliás estava vocacionada, não para a pregação antoniana, litúrgica e douta, mas sim para a pregação popular do Patriarca de Assis e seus companheiros ?...”. 118 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... ria Cândida Pacheco, J.G. Bougerol OFM12 e Francesco Costa OFM Conv.13, defendem a opinião de que uma obra tão profunda e rica de conteúdo filosófico e teológico, de citações das Escrituras e de menções explícitas e implícitas a textos de autores sacros e profanos não podia ter sido escrita numa ocasião em que Antônio estava completamente absorvido pelos deveres do cargo que desempenhava; antes, foi sendo progressivamente elaborada na Ocitania (Montpellier, Limoges e Toulouse) e na Itália setentrional (Bolonha)14, onde ele viveu, tendo ganho sua última demão em Pádua. Francesco Costa reiterou sua hipótese, de acordo com a qual os Sermones Dominicales foram escritos em duas etapas 1223/24 e 1226/ 1227, tendo afirmando, por exemplo, com referência a esta segunda etapa que, o Santo indicou claramente a leitura dos trechos do Breviário da Cúria para os meses de setembro, outubro e novembro, o que, ao seu ver, trata-se de correspondências com os Domingos 13o ao 24o depois de Pentecostes que, igualmente, é congruente com um ano em que setembro e outubro tiveram quatro domingos, e que novembro, 12 Cf. “La struttura del ‘Sermo’ antoniano”, in Atti del Congresso Internazionale di Studio sui Sermones di S. Antonio di Padova, a cura de Antonino Poppi, Pádua, Ed. Messaggero, 1982, p. 93-108. O estudioso aventa a hipótese de este conjunto resultar, em parte, dum material preexistente, sem especificar a sua procedência e o local de redação. O Prólogo geral e os Prólogos parciais teriam sido acrescentados à redação final. 13 Cf. “Relazione dei Sermoni Antoniani con i libri liturgici”, in: Atti del Congresso Internazionale di Studio sui Sermones di S. Antonio di Padova, ed. cit., p. 109-144. O autor propõe dois momentos para a primeira redação, dividindo a execução dessa tarefa em 1223/1224 (Itália Setentrional) para os sermões do Domingo da Septuagésima até o do 12º Domingo depois de Pentecostes, incluindo entre estes os 4 sermões em louvor à Virgem, e 1226/1227 (Ocitânia) para os sermões relativos desde o 13º Domingo depois de Pentecostes até o do 4º Domingo depois da Epifania. 14 COSTA, Francesco, OFM Conv., “Sulla natura e la cronologia dei sermoni di Sant’ Antonio di Padova”, Il Santo 39 (1999), p. 36: “... A mio modo di vedere, furono, probabilmente gli stessi confratelli di Bologna che, conoscendo meglio degli altri la rara sapienza e dottrina del Santo e la sua straordinaria capacità oratoria, gli chiesero di comporre anche un sussidio per la predicazione ...”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 119 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA embora tenha tido cinco domingos, o último deles, como de praxe, equivalia ao 1o Domingo do Advento que assinala o começo do Ano Litúrgico. Ora, tais coincidências só se explicam num ano em que a Páscoa tenha caído no dia 19 de abril, e no século XIII, durante a idade madura do Santo, isto ocorreu somente em 1215 e 1226. Excluído 1215, por razões óbvias, resta apenas o ano de 122615. Avançando em sua hipótese, estribado nos mesmos pressupostos, somado à hipótese precedente, com respeito ao término da versão original do Opus Evangeliorum, Francesco Costa afirma que se Santo Antônio restringe a quatro os domingos depois da Epifania, após o qual, conforme o ciclo litúrgico de então, vinha o Domingo da Septuagésima, isto só pode ter ocorrido num ano em que a Páscoa terá caído entre 8 e 14 de abril, mais exatamente, no dia 11 desse mês. Excluído o ano de 1221, porque o Santo não teria se ocupado com esse mister16, “... Resta il 1227, anno in cui alla Domenica IV dopo 15 Art. cit., p. 57-58: “... Con grande cura ... Antonio ... specifica la lettura biblica del Breviaro della Curia romana per i mesi di settembre, ottobre e novembre ... Ora, queste coinicidenze delle Domeniche XIII-XVI dopo Pentecoste con un anno i cui settembre ha solo quattro Domeniche; dele Domeniche XVII-XX dopo Pentecoste con un anno in cui il mese di ottobre há solo quattro Domeniche; delle Domeniche XX-XXIV dopo Pentecoste con un anno in cui il mese di novembre consente di collocarvi le ultime quattro Domeniche dell’ anno liturgico con esclusione della Quinta della quale ha inizio il nuovo anno liturgico ... sono coincidenze che si verificano quando il giorno di Pasqua cade il 19 aprile. Nel secolo XIII ... la Pasqua il 19 aprile capitò nel 1215 e nel 1226 ... inoltre l’inizio del lavoro sui Sermoni sembra risalire al 1224. Non resta che 1226 ...” 16 Ibidem, p. 59, 62: “... A mio parere, se Il Santo concluse la seri dei Sermones dominicales con la Domenica IV dopo l’ Epifania, vuol dire che nell’anno in cui attendeva a quest’ ultimo gruppo di sermoni la Domenica sucessiva coincideva con la Settuagesima. Orbene, la circostanza cronolologica di solo quattro Domeniche dopo l’Epifania si verifica negli anni in cui la Pasqua cade dall’ 8 al 14 aprile ... siamo indotti a ritenere che il Santo terminò di abbozare i suoi Sermones dominicales in un anno in cui la Pasqua cadde l’ 11 aprile ... Se Antonio iniziò il lavoro sui Sermones nel 1224, dobbiamo escludere l’ anno 1221...”. 120 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... l’Epifania, segnata nel calendario al 31 gennaio, segue ... la Domenica di Settuagesima, segnata al 7 di febbraio...”17. Os poucos estudiosos brasileiros que escreveram sobre os Sermões Dominicais não tomaram posição acerca dessa polêmica. Seguindo o caminho aberto pelo segundo grupo de antonianistas, modestamente, ousamos propor mais uma hipótese relativa ao local e à ocasião em que Antônio teria elaborado a primeira redação global dessa parte da sua opera, a saber, o eremitério de Monte Paulo18, hipótese essa que, ao nosso ver, não contraria as palavras do Prólogo geral, em que ele próprio afirma: ... Coligi estas matérias e concordei entre si, segundo o que me concedeu a graça divina e consentiu a “frágil veia de minha ciência pequenina e pobrezinha”... Fi-lo com medo e pudor porque me sentia insuficiente para tamanha e incomparável responsabilidade; venceram-me, porém, os pedidos e o amor dos confrades, que a tal empresa me impeliam ...19. Com efeito, primeiramente, consideramos o fato de o Doctor Evangelicus ter permanecido nesse lugar durante 15 meses, um tempo razoável para poder dedicar-se a essa tarefa, apesar de o Prof. Claudio Leonardi20 observar que a elaboração dos Sermões exigia que o Menorita 17 Ibidem, p. 62. 18 Temos presente a observação de Luís G. da Fonseca SJ, in “S. António e a Sagrada Escritura”, Brotéria, 2 (1949), p. 625: “... ignorado e tido por ignorante, do célebre capítulo das esteiras (Assis, 1221) foi encerrar-se no ermo de Montepaulo, admitido nele quase por compaixão, e lá se ocupou, por alguns meses, em exercícios ascéticos de oração, humildade e penitência, não porém em exercícios literários ou cientificamente. Depois, improvisamente, vemo-lo nos púlpitos, assombrando o mundo com sua eloquência ...”. 19 Ed. cit., vol. I, p. 5. Cf. também LOMBARDO, P. Libri IV Sententiarum, Prologus, como, em nota, o indica Pinto Rema. 20 In “Il Vangelo di Francisco e la Bibbia di Antonio”, Atti del Congresso Internazionale di Studio sui Sermones di S. Antonio di Padova, ed. cit., p. 301: “... È tuttavia difficile pensare che Antonio, quando scrisse i Sermones, non avesse sotto gli occhi una copia della Bibbia e soprattutto non avesse tra le mani un qualche repertorio biblico o concordanza o altro. Tanto più che egli è solito convogliare in un texto biblico base una moltitudine di altri testi più o meno parallelli ...”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 121 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA olisiponense tivesse de ter à mão um número considerável de todos os tipos de textos para deles retirar as citações de que viesse a precisar. Isso é verdade, tratando-se da redação derradeira, mas necessariamente não se aplica às versões iniciais, pois, convém ter presente que o Santo não só possuía uma memória privilegiada, conforme atesta a Assídua, mas também que a havia aprimorado durante os seus estudos na canônica de Sta.Cruz de Coimbra e, igualmente, em seguida, como sacerdote, ao pregar aos fregueses da paróquia de São João, anexa à mesma, fatos esses ocorridos, não havia passado muito tempo. Ademais, há que pensar que em Monte Paulo Antônio gozava das condições ideais para elaborar a primeira versão de seu Opus, dado que suas obrigações eram inserir-se no modus vivendi franciscano, celebrar missa para os confrades que não eram sacerdotes e meditar sobre a Palavra de Deus. Propositadamente, desconsideramos como irrelevantes para a hipótese que sustentamos os fatos de os frades terem de cuidar da comunidade, obter o próprio sustento, preparar os alimentos e aí não haver os materiais necessários para a pesquisa e a escrita. Além disso, julgamos que seria mais um tópos hagiográfico da Assidua a afirmação segundo a qual o superior de Antônio ao mandar que ele pregasse aos frades reunidos em Forli, para as ordenações das Têmporas de Setembro de 1222, inclusive aí estando presentes alguns frades Pregadores, pensasse que relevariam o fato de a mesma não corresponder às expectativas de tão importante solenidade, posto que se tratava de um religioso de quem não se poderia esperar muito, face aos afazeres simples que executava e, que possuía apenas conhecimentos rudimentares acerca das Escrituras21. Antes, é impensável que os superiores do frade lusitano não soubessem o que ele estava fazendo, e que não tivessem julgado que o seu trabalho tinha valor. Enfim, atualmente, seria muita ingenuidade pensar que foi só por causa de sua 21 Cf. Assidua, c. 8, ed. citada. 122 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... brilhante pregação na mencionada ocasião, não tendo passado muito tempo da mesma, que os seus superiores indicaram-no a frei Elias, o Vigário da Ordem, como uma pessoa apta a assumir a tarefa de pregador, e, pouco depois, igualmente capaz de desempenhar o cargo de lector do studium da Ordem em Bolonha que havia sido reaberto. Por outro lado, discordando dos defensores da tese tradicional suprareferida quanto à ocasião em que os Sermones Dominicales foram escritos, e tendo presente os rasgos da personalidade de Antônio que podem ser entrevistos na própria Assidua e, principalmente, em toda a sua opera, tais como o amor profundo a Deus e ao próximo e a seriedade e a dedicação com que tudo fazia, há que indagar deles como, durante aquele período de tempo, ao exercer o cargo de Ministro Provincial, assoberbado pelas inúmeras atividades pastorais e administrativas, inerentes ao seu ofício, o Menorita lusitano podia ter tido condições de começar a escrevê-los e, enfim, vir a concluí-los? À parte essa questão, que permanece em discussão até que venham a surgir fatos novos, decorrentes de investigações meticulosas, mediante os quais possa vir a ser determinado, também é o referido Prólogo que nos fornece indicações precisas sobre o que Antônio tinha em mente ao escrever seus Sermões Dominicais, por exemplo, os objetivos imediatos e derradeiros, numa perspectiva, ao mesmo tempo, imanente e transcendente, quer dizer, de um lado, o louvor a Deus, de outro, a atenção para com o fim último, isto é, a bem-aventurança eterna, dos seres humanos, à qual todos aspiram e tendem; a quem podia vir a interessar, nomeadamente, seus leitores, inclusive os que desejassem estudá-la e dela servir-se, v.g. para seu trabalho, ou àqueles a quem viessem a ser lidos; o conteúdo ou o teor que aborda, isto é, textos dos Evangelhos, das Epístolas e dos Intróitos dominicais articulados, entre si e com as histórias narradas no Antigo Testamento, lidos no Ofício Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 123 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA divino; o tipo ou natureza marcante da obra22, isto é, de que maneira esses textos são analisados ou interpretados, obviamente, de acordo com os cânones científicos de então; e enfim, que esses procedimentos geram a Teologia, a ciência mais completa que existe, porque se haure na própria a Revelação, e que, por esse motivo, tem a preeminência sobre as demais, à semelhança do ouro que, por ser o mais nobre dos metais, é o mais precioso de todos23. 22 Ed. cit. p. 4-5: “... Para a honra de Deus, pois, edificação tanto do leitor como do ouvinte, a partir da mesma inteligência [compreensão] da Sagrada Escritura, com sentenças [frases] dum e doutro Testamento fabricamos uma quadriga, ‘a fim de que nela, juntamente com Elias, a alma se eleve dos bens terrenos e, por meio de celeste viver, chegue ao céu’. E como que ‘na quadriga há quatro rodas’, assim nesta obra se versam [são tratadas] quatro matérias, os Evangelhos dos domingos, factos históricos do Velho Testamento, tais quais se lêem na Igreja, os Introitos e as Epístolas da missa dominical ... Esta arca cobre-se com as asas dos querubins, quando a alma, por meio da pregação do Novo e do Velho Testamento, se protege e defende do ardor da prosperidade mundana, da chuva da concupiscência carnal, do raio da sugestão diabólica...” .Cf. também, pela ordem, 4Rs (2Rs) 2,11; Glo. Ord., Mc 1,16; Glo.. Ord., Ct (Cântico dos Cânticos) 6, 11; ICr ou Paralipômenos 28, 18. A propósito, MOSER, A. OFM “A concepção moral de Santo Antônio de Pádua”, in: Antônio, homem evangélico na América Latina, Compilação das Conferências apresentadas no 1º Congresso Antoniano Latino-Americano. Santo André: Ed. Mensageiro de Sto. Antônio, 1996, p. 49: “... O que se depreende de seus sermões é uma ‘concepção moral’ disseminada um pouco por toda parte, e que pode ser delineada. Trata-se de uma concepção voltada eminentemente para a prática ... entretanto ... a organicidade da sua concepção moral nos faz descobrir algumas linhas mestras, que ao mesmo tempo fazem emergir os principais conteúdos...”. 23 Prólogo, Ibidem, p. 1: “... Está escrito no Génesis: Na terra de Hevilat ‘nasce ouro e o ouro daquela região é óptimo’. ‘Hevilat interpreta-se parturiente’ e significa a Sagrada Escritura, a qual ‘é como a terra, que primeiramente produz a erva, depois a espiga e, finalmente o grão maduro na espiga’. A erva constitui a alegoria ‘que edifica a fé’ ... na espiga ‘chamada assim de spiculus (ponta), entende-se a moralidade que informa os costumes e com a sua doçura traspassa e fere o ânimo; no grão maduro, figura-se a anagogia ‘que trata da plenitude do gozo e da felicidade angélica’. Na terra de Hevilat nasce, portanto, ouro óptimo, pois que dos textos das páginas divinas emana a ciência sagrada; e como o ouro está acima de todos os metais, assim a ciência sagrada sobressai a toda ciência ...’. Cf. também, pela ordem, Gn 2,11-12; Glo. Ord. a Gn 2,11; GREGÓRIO MAGNO, In Evang. Hom. 40, 1, PL 76, p. 1301; AGOSTINHO, De doctrina christiana 1, 4, c. 5 n. 7, PL, 34, p. 92. 124 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... Com vista a bem esclarecer o que acabamos de retirar do Prólogo geral, o leitor dos Sermões há que sempre ter presente a própria cosmovisão de Antônio, cristão, religioso e sacerdote que viveu na época medieval24, impregnada de cristianismo, cujos propósitos ou metas fundamentais consistiam na construção do Reino de Deus na terra, mediante os processos pessoal e comunitário da pessoa humana quanto à conversio (da mudança de vida do mal para o bem, dos vícios ou pecados para as virtudes, mediante as graças recebidas), e da propagação da justiça divina, como os únicos caminhos seguros para construir-se um mundo melhor, e, depois, atingir-se a pátria derradeira. Isso, igualmente implica, dum lado, numa orientação de seu devir histórico e espiritual, relativas ao seu próprio ser e à sua maneira de agir que, igual e paralelamente, supõe Deus como sua causa eficiente e final, e sua inserção terrena parcial numa comunidade social, a Ecclesia/Societas christiana, fundada numa fé comum, e à qual passou a pertencer desde o dia de seu Batismo, e que possui os meios e as pessoas aptas a distribuí-los entre eles todos, a fim de que possam vir a alcançar a sua meta. A par disso, essa comunidade funda-se no mistério do amor divino, materializado historicamente com a Encarnação, a Paixão, a Morte e a Ressurreição de Jesus Cristo, O qual, além de resgatar os seres humanos da escravidão da morte e do pecado, legou-lhes o mandamento do amor ao Pai e ao próximo. Esta cosmovisão religiosa do mundo e do ser humano é, pois, a base para compreender o significa24 Cf. SILVEIRA, Ildefonso, OFM, art. cit., p. 24: “... Os sermões [sic] de Santo Antônio podem considerar-se como fontes históricas ... Portanto, devem ser entendidos no seu contexto medieval, por exemplo, o método oratório, as preocupações com questões vivas no tempo, a temática geral e etc. ... foram escritos por um autor concreto, Frei Antônio Martins. Por isso, podem levar ao conhecimento de sua figura intelectual, de seus pontos de vista doutrinários, de sua cultura, de sua personalidade de homem, de santo, de religioso...”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 125 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA do da existência humana sobre a terra e da própria mensagem moral antoniana25. Nessa perspectiva, então, a história da salvação se efetiva em cada pessoa, simultaneamente, por intermédio, da adesão e do esforço individual, e das graças sobrenaturais, bem ao contrário do que acreditavam os cátaros ou albigenses, para quem o processo salvífico resumiase numa doutrinação de tipo gnóstico e iluminante e na prática de alguns ritos individualistas. Daí, menosprezarem os sacramentos, a Igreja e os seus ministros. Por isso, também, não foi sem motivo que, no referido Prólogo geral, o Santo agrupou todos os cristãos ou batizados, filhos da mesma mãe, a Igreja, e de seu esposo divino, redentor misericordioso, em dois grupos de caráter religioso e moral, designadamente, os principiantes (incipientibus) e os proficientes26 (proficientibus) ou penitentes (e, com frequência, utilizou essas expressões), perspectiva essa diretamente relacionada com o objeto que elegemos trabalhar. 25 MOSER, A. OFM, “A concepção moral de Santo Antônio de Pádua”, in: op. cit., p. 50-51: “... Mas como todo pregador inspirado no Evangelho, o que Antônio visa é sempre a conversão do pecador, para que este viva. Daí a importância que dará aos mandamentos e sacramentos, como caminhos de vida. E, uma vez que investe com veemência contra o pecado e a decadência dos bons costumes, nada mais natural que dê um lugar especial ao sacramento da penitência ...”. 26 Ed. cit., p. 2-3 “... ‘David interpreta-se misericordioso, forte de mão’ ... e significa Jesus Cristo, Filho de Deus’, que foi misericordioso na Encarnação, forte de mão no sofrimento e ser-nos-á desejável ... na bem-aventurança eterna. Igualmente é misericordioso na infusão da graça, e isto com os principiantes ... É forte de mão, quando progride de virtude em virtude, e isto com os proficientes. Por isso, diz em Isaías: ‘Eu sou o Senhor teu Deus, que te tomo pela mão e te digo: Não temas, porque eu sou o teu auxílio. Como a mãe piedosa toma na sua mão a mão do filho pequenino que se esforça por subir, a fim de que possa subir atrás dela, assim o Senhor, com a sua mão piedosa, toma a mão do penitente humilde para que possa subir pela escada da cruz ao mais alto grau de perfeição e se torne merecedor de contemplar na sua glória o ‘Rei desejável de aspecto’...” (cf. também pela ordem: Glo. Int. a 1Rs 16, 13, e JERÔNIMO, De nominibus hebraicis, PL 23, p. 813, Is 41, 43, 1Pd 1, 42). 126 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... As breves citações que fizemos do Prólogo geral, igualmente, enriquecidas com o respectivo aparato complementar, indicado pelo editor, mostram ao leitor outras duas características originais e dominantes em toda a opera antoniana, a saber, a erudição do seu autor, manifesta na riqueza de informações que, reiteramos, Antônio recolheu nas bibliotecas de São Vicente de Fora e, sobretudo, na de Sta. Cruz de Coimbra, tendo-a absorvido e, a consequente densidade do texto que ele consegue diluir e explicar, recorrendo tanto aos métodos exegéticos quanto às técnicas que empregou, sobre o que, adiante, voltaremos a tratar. Por essa razão, conforme escrevemos páginas atrás, os Sermões antonianos são um manancial rico de ensinamentos religiosos perenes bem como um acervo de informações acerca dos conhecimentos científicos próprios de uma época27, contemplando a filologia, a botânica, a zoologia, a geografia, a mineralogia, os quais, às vezes, impregnados de fantasias, com que faz belas comparações aplicando-as moralmente ao comportamento humano28; conhecimentos esses que também se esten- 27 No Prólogo, ed. cit. p. 5-6, o próprio Santo esclarece porque teve de lançar mão de tais conhecimentos, afirmando: “... Em nosso tempo, a estulta sabedoria dos leitores e dos ouvintes degradou-se a tal ponto, que, se não encontram e não ouvem palavras elegantes, rebuscadas e altissonantes de novidade, enfastiam-se da leitura e recusam-se a ouvir ... por isso inserimos no mesmo trabalho uma exposição moral sobre a natureza de coisas e etimologias de vocábulos...”. Cf. SILVEIRA, Ildefonso, OFM, art. cit., p. 31: “... S. Antônio cita várias vezes exemplos da natureza, mineral, vegetal e animal. Treze da mineralogia, cinquenta e um da botânica, trinta e sete de animais, vinte e duas de aves, doze de répteis. Descreve a natureza de vários desses seres, baseado na ciência do tempo, mas com a intenção de ilustrar o que dizia ...”. 28 Muito a propósito, observa Maria Isabel Pacheco, in “Fundamentos e Sentidos da Exegese Moral Antoniana”, Itinerarium 154 (1996), p. 53: “... Em nosso entender essa transposição tem uma função simbólica, na medida em que não se dá apenas no domínio da linguagem, não é uma figura de estilo, mas funciona como o apontamento e o indício de um projeto maior de recondução da natureza à sobrenatureza, da história – da carne e da letra – ao espírito...”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 127 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA dem à filosofia29, ao direito30, e obviamente, à teologia31, embora não tenham sido expostos e analisados de maneira ordenada e sistemática, dado o próprio gênero literário desse tipo de obra, mas que revelam … a organicidade rigorosa de um pensamento apoiado em fundamentos sólidos, estruturados por fontes e autores significativos e que, para ensinar Teologia ou para promover a formação de pregadores, carreia os materiais do seu conhecimento, os que pode utilizar – se os têm ao seu alcance – e os que considera úteis ...32, que, entretanto, requerem do estudioso que deseje explorá-los, elegendo um desses vastos campos, não só uma leitura atenta e um desentranhamento pari passu, mas também uma certa bagagem cultural com a qual devem ser cotejados. Daí, os antonianistas de ontem e de hoje, estribados no Prólogo, estarem perfeitamente de acordo, ao afirmar que, especialmente, os Sermões Dominicais, entre outras finalidades concebidas por Antônio, intelectual e professor, visava a servir, tanto de amplo material de estudo para seus alunos instruírem-se nas Artes predicandi, com o fito de, no futuro, desempenhar os ministeria presbiterais da catequese e da 29 PACHECO, Maria Cândida M. op. cit., 1999, p. 198: “... que vão da cosmologia à antropologia, da gnosiologia à metafísica, da ontologia à teologia, passando pela ética e pela estética, emergindo, no entanto, sempre, da interpretação hermenêutica do texto bíblico ...”. 30 RÁBANOS, J. M. Soto. “?Formación jurídica en Antonio de Lisboa?”, Actas, Congresso Internacional Pensamento e Testemunho, 8º Centenário do Nascimento de Sto. Antonio, Braga: UCP/Família Franciscana Portuguesa, 1996, vol. I, p. 771, 773, 774775, 780, 783: “... No hay testimonios directos para poder elaborar conclusiones definitivas respecto a la posible formación juridica de Antonio ... no obstante cabe atribuirle, ya de principio, algunos conocimientos jurídicos, muy especialmente canónicos, los adecuados a su excelente formación eclesiástica…”. 31 SILVEIRA, Ildefonso, OFM, art. cit., p. 45: “... S. Antônio...não tratou sistematicamente de um tema específico, mas em seus sermões podemos descobrir todos os temas mais importantes da teologia...”. 32 Idem, ibidem, p. 197. 128 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... pregação, quanto de paradigmas e ou de esquemas de sermões (não como os manuais apropriados que, então, já havia), os quais seus confrades poderiam vir a usar, dando o seu toque pessoal, ao exercer o ministério sacerdotal33. Quanto às fontes em que o Doutor Evangélico estribou-se para escrever sua opera, considerada em sua totalidade, evidentemente, a preeminência coube à Sagrada Escritura, tanto em razão do caminho que escolheu trilhar e dos métodos que elegeu, e acreditamos não estar sendo redundantes ao empregar palavras sinônimas ao fazer essa afirmação, a qual adiante, quase ao final deste tópico será esclarecida, quanto, também, porque essa era a principal fonte em que os autores da época se fundamentavam. A título de ilustração, ele citou o Antigo Testamento 3700 vezes, talvez, com a intenção de refutar, implicitamente, uma das principais concepções defendidas pela heresia cátara ou albigense, conforme a qual o Deus do Antigo Testamento era a origem do mal e, portanto, não podia ser o Pai Eterno, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis34. Ao contrário, para Antônio a Bíblia toda é a Palavra de Deus, e ambas as suas partes estão em perfeita consonância 33 CANTINI, Gustavo, OFM Conv., art. cit., Studi Francescani, 29, 1932, p. 420: “... I Sermoni scritti di Antonio poi sono Sermoni fatti ai Religiosi che volevano prepararsi al Ministerio della Predicazione; oggi li chiameremmo lezioni. Tutto ciò si ricava in modo chiarissimo dallo stesso Prologo che Antonio ha premesso ai Sermoni ...”. Cf. DHAAN, Gilbert. “Saint Antoine et l’exégèse de son temps”, Actas, Congresso Internacional Pensamento e Testemunho, ed. cit., vol. I, p. 154: “... Il paraît certain que les Sermones de saint Antoine sont en fait un stock de matériaux destinés à aider les prédicateurs. Chaque sermon (aussi bien les dominicales que les festivi) fournit la matière d’une série des prédications pour le dimanche ou la fête considérée ... Il ne s’agit pas pour autant d’un recueil de sermons modèles, comme ceux dont les auteurs d’artes predicandi accompagnaient parfois leurs exposés théoriques ...”. 34 LONIGO, Cherubino da. “Dio in sè e nelle sue opere secondo S. Antonio”, Atti delle due settimane, ed. cit., p. 339: “... quello di ricavare dalla Scrittura la prova di ogni cosa bella e buona, per combattere i Catari e gli Albigesi i qualli, tra gli altri errori, dicevano anche che la Scrittura dell’Antico Testamento era opera dello spirito cattivo, risuscitando così l’eresia dei Manichei ...”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 129 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA e se completam. Igualmente, citou o Novo Testamento 2400 vezes35, e ao fazê-lo ... no utiliza una Biblia latina ‘vulgata’, la cual contiene solamente el texto sagrado, sino que utiliza una Biblia glosada, es decir, anotada, entre las líneas y al margen, con breves exposiciones extractadas de las obras de los padres de la iglesia y, con menor frequencia, de teólogos posteriores ...36. Ao nosso ver, as demais fontes utilizadas pelo Doutor Evangélico podem ser catalogadas em três blocos distintos, nomeadamente, os Padres da Igreja37 e as Glosas Ordinária e Interlinear38, que citou mais 35 Cf. LEONARDI, C. In: “Il Vangelo di Francesco e la Bibia di Antonio”, Atti del Congresso Internazionale di Studio sui Sermones di S. Antonio di Padova, ed. cit., p. 300, 302-303, chama a atenção para outros pormenores assaz importantes: “... Molte di queste citazioni sono esplicite, molte altre implicitamente evidenti. Un buon numero sono citazioni lunghe, di interi passi biblici, che si inseriscono come dei blocchi orientativi di tutto il sermone, che attorno alla citazione si costruisce ... Delle citazioni veterotestamentarie bem 1.000 si riferiscono al Pentateuco e ai libri storici, com un’incidenza fortissima per il Genesi, un terzo esatto: 335 occorrenze. I libri poetici e sapienziali sono presenti con 1.500 luoghi (con 340 a Giobbe, 180 ai Proverbi, 115 al Cantico dei cantici, 165 all’ Ecclesiastico, 570 ai Salmi). Un poco sorprendono le 1.200 ocorrenze per i libri profetici, com il primato dato a Isaia, che con le sue 600 citazioni suoera i Salmi e i Vangeli. Tra questi, il predominio va a Matteo con 480 citazioni e a Luca con 500, rispetto a Giovanni (370 occorrenze) e soprattutto a Marco (con solo 75). Buona presenza di Paolo con 570 luoghi (ivi compresa la lettera agli Ebrei), non grande quella dell’Apocalisse con sole 130 occorrenze, meno di quelle di cui gode l´Ecclesiastico ...”. 36 REINHARDT, Klaus. “Presencia de la Glosa ordinaria en los Sermones de san Antonio de Lisboa, in: Actas Congresso Internacional Pensamento e Testemunho, ed. cit., vol. I, p. 417. 37 Santo Ambrósio (Hexameron, De fide ad Gratianum, Expositio in Lucam, De officiis ministrorum, De Virginibus); São Jerônimo (Epistolae, Adversus Jovinianum, De nominibus hebraicis, Lexicon origenianum, Commentarioli in Psalmos, Commntarii in Isaiam, in Jeremiam, in Amos, Commentarius in evangelium Matthaei, Comentarius in Job). Gregório Magno (Moralia in Job, Homiliae in Ezechielem, Homiliae in Evangelia, Regula pastoralis, Dialogui, Epistola L, Liber Sacramentorum); Isidoro de Sevilha (Etymologiae, Differentiae verborum et rerum, De ortu et obitu Patrum, De fide catholica, Sententiae, De ecclesiasticis officiis, Synonyma, De ordine creaturarum, De natura rerum, Chronicon); São Beda (In 130 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... de cem vezes, ou de modo explícito, ou implícita ou aproximativamente39; os escritores coevos, e os autores pagãos40. Para tanto, basicamente seguimos as indicações de Henrique Pinto Rema OFM41. Cantica Canticorum; In Marci, In Lucae, In Joannis evangelia expositio); São Bernardo de Claraval (Epistolae, De Consideratione, De conversione ad clericos; De moribus et officio episcoporum; De gradibus humilitatis et superbiae, Sermones per annum; Sermones de diversis; In Cantica Canticorum). 38 REINHARDT, Klaus. art. cit., p. 418-419; 421: “... Cuando, a principios del siglo XII, Anselmo de Laon y otros maestros de teología comenzaron en Laon, Auxerre y Paris a glosar de esta forma los libros bíblicos, fue solamente la extensión de una glosa lo que decidió su colocación entre las líneas o al margen; de este modo podía suceder fácilmente que una glosa se encontrara en un manuscrito al margen y en otro entre las líneas. Sólo hacia los años 1150/1160 se fijó la distribución de las glosas en marginales e interlineales ... Desde 1150 hasta los años 1230/1240, es decir durante casi un siglo, la Glossa constituyó la obra exegética estandar; era la lengua mediante a la cual la Biblia habló a los teólogos y a los predicadores...” 39 COSTA, Beniamino OFM Conv., in: “Sant´Antonio e la Glossa”, Il Santo 7 (1967), p. 163: “... in via ordinaria ricava dalla Glossa le interpretazioni letterali e allegoriche della Sacra Scritura. Si tratta della parte iniziale dell’esposizione delle pericopi liturgiche che fanno da trama al sermone: quatro pericopi per il sermone domenicale (vangelo, introito, epistola, lettura biblica dell’ufficio divino), una sola pericope (il vangelo) per i sermoni festivi. A se stesso il Santo riserva le interpretazioni morali e pratiche. Non si escludono tuttavia dalla Glossa interpretazioni morali. Dette interpretazioni sono spesso introdotte dalle formule: ‘Allegorice’, ‘Moraliter’. Di raro interviene pure ‘Ad litteram’...”. Às páginas 151-154, 154-157, 157-160 arrola um bom número de citações desses três tipos. 39 REINHARDT, Klaus. Ibidem, p. 425-426. 40 Entre os autores gregos e latinos que Antônio citou implícita ou explicitamente, merecem destaque Aristóteles (De historia animalium, De animalibus, De partibus animalium, De generatione animalium, De somno et vigilia, De juventute et senectute, De respiratione, Meteorologicorum, Ethicorum, De Plantis); Boécio (Liber de Persona et duabus naturis); Cícero (De Inventione, Pro Milone, Phillippicae, De officiis, De amicitia, Naturalia); Filo de Alexandria; Flávio Josefo; Horácio (Epistolae, Odes, Sátiras); Lucano (De bello civili, Meditationes piissimae); Ovídio (De arte amandi; Metamorphoseon; Remedia amoris; Ponticae); Plínio o Antigo (Naturalis Historia); Sêneca (De moribus; Epistolae); Solino (Polyhistor); Varrão (De lingua latina; De re rustica); Virgílio (Eclogae; Georgicon). 41 In: Índice das Fontes Antonianas, vol. II, p. 1027-1033. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 131 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA Entre os Padres, em parte por ter sido frade agostiniano, como não podia ter sido de outro modo, Antônio hauriu, principalmente, dos escritos de Santo Agostinho42, considerado pelos medievais latinos o mais importante de todos eles. Com referência aos magistri medievais43, o Doutor Evangélico lançou mão, particularmente, dos textos de Pedro Lombardo (século XII). Com efeito, este se servindo tanto das especulações filosóficas aplicadas à Teologia, quanto do método de estudo, utilizado nas escolas de então, e recorrendo às partes mais filosóficas dos textos dos Padres da Igreja, escreveu o seu Comentário às Sentenças em quatro livros, o qual, como sabemos, indiscutivelmente foi a obra mais completa do gêne42 Ibidem, p. 1025. Citamos apenas as mais relevantes. Contra Faustum manichaeum, De Genesi contra Manichaeos, De immortalitate animae, De libero arbitrio, De vera et falsa poenitentia; Enarrationes in Psalmos, In Joannis evangelium tractatus, De civitate Dei; in Epistolas Joannis; De doctrina christiana, De Scripturis, Regula ad servos Dei, Soliloquia, Confessiones e muitos Sermones. Cf. KLOPPENBURG, D. Boaventura, OFM, “Santo Antonio, Doctor Evangelicus” REB, 6 (1946) p. 259: “... Especial menção merece sua dependência de S. Agostinho. Outrora Cônego regular de S. Agostinho, continuou a ter, por certo, em alto preço seu antigo Pai. Um pouco mais tarde tornar-se-á isto característico de toda a escola teológica franciscana. Além das 54 citações explícitas, encontram-se inúmeras implícitas. Nota-se verdadeira familiaridade e intimidade com o Doutor de Hipona. Mas sabe também aproveitar-se dos ditos de Agostinho, para ilustrar sua própria doutrina. Não só em questões particulares, mesmo para explicar parábolas inteiras e esclarecer alegorias...”. 43 A lista dos magistri medievais citados textualmente ou aproximativamente pelo Doutor Evangélico também não é pequena: Acardo de São Victor (Sermones); Adão de São Victor (Sequentiae); Alano ab Insulis (de Lille) (Sermones, Distinctiones dictionum theologicalium, Liber poenitentialis, Summa de arte praedicatoria), Abade Godofredo de Auxerre (Declamationes); Graciano (Decretum), Hugo de São Victor (In Phil. 3, 19); Inocêncio III (Regesta IX, Epistola 196, Sermones de Tempore, Sermones de Sanctis, Sermo 5); Pedro Cantor (Summa de sacramentis et animae consiliis, Verbum abbreviatum); Pedro Comestor ou Manducator (Historia Scholastica); Pedro Damião (De bono religiosi status, De divina omnipotentia, Liber salutatorius); Ricardo de São Victor (Benjamin minor, Benjamin maior, In Cantica Canticorum, Mysticae adnotationes in Psalmos, De Trinitate, De exterminatione mali et promotione boni, De eruditione hominis interioris); Roberto de Curson (Summa de poenitentia), Hugo de Folieto (De bestiis et aliis rebus). 132 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... ro, e veio a tornar-se o texto básico de trabalho para os estudantes universitários de Teologia nos séculos subsequentes44. Não é demais, pois, ressaltar de novo que a erudição sacra e profana, evidente na opera de Antônio, foi colhida e absorvida em Portugal, nas bibliotecas das canônicas de São Vicente de Fora e, especialmente de Sta. Cruz de Coimbra. Ao examinar o Prólogo geral aos Sermões Dominicais, conforme indicamos páginas atrás, verificamos que o menorita olisiponense prometeu expor e interpretar as passagens da Escritura que viesse a utilizar, recorrendo aos três sentidos espirituais ou figurados, então em uso45, nomeadamente, o alegórico, com o fito de descobrir o “... espírito oculto e misterioso de Deus, mas este escopo ... se alcançava ... com os “olhos do coração”, ou, mais propriamente, com os “olhos da Fé” ...”46, o tropológico ou moral e o anagógico ou espiritual47. 44 LONIGO, Cherubino da. art. cit.: 336. “... Pier Lombardo incomincia ... sempre coll’autorità della S. Scrittura e dei Padri; la prova filosofica deve sgorgare dagli stessi testi che raccoglie. Egli incomincia la sua opera coll trattato di Dio e della Trinità.. Questo serio metodo teologico, che dice anche senso di rispettosa ortodossia, colpi particolarmente S. Antonio che, in molte parti dei suoi Sermoni, fa pensare allo stesso procedere del Maestro delle Sentenze. Da questi anzi trascrive delle intere pagine ...”. 45 CAEIRO, Francisco da Gama, op. cit. 2ª ed., vol. I, p. 201: “... A posição de Santo António, ou porque, na altura em que viveu, ele já tivesse à sua disposição uma tradição mais longa e mais esclarecida sobre a exegese bíblica, ou porque como pregador, houvesse de compreender melhor o valor da exposição, é bastante clara e coerente, embora a circunstância de sua doutrina ter de ser deduzida da obra sermonária, e colhida, assim, de modo indirecto, obrigue a um exame mais cuidadoso e, por vezes, extremamente difícil...”. 46 Ibidem, vol., I, p. 243.. 47 SILVEIRA Ildefonso, OFM, art. cit. p. 46: “... O figurado abrangia três tipos: alegórico..., alegoria termo que designa outra coisa diferente da insinuada... tropológico (ou moral ..., do grego “tropos”, costume) ... e anagógico (relativo ao além) ..., do grego “anagogé”, o levantar-se para o alto ...”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 133 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA Antônio cumpriu essa promessa, mas isto não quer dizer que ele não tenha usado o sentido literal ou histórico porque o desconhecia. Antes, muitas vezes, serviu-se dele, como se fora um átrio duma casa pelo qual se tem de passar para chegar à sala principal, isto é, aos sentidos figurados dos texto bíblicos48. Aliás, estribado no abade Guiberto de Nogent, num trecho do Exórdio ao sermão alusivo ao 9º Domingo depois de Pentecostes, dirigindo-se aos pregadores, ele tanto ressaltou a importância desse procedimento introdutório quanto a ênfase a ser dada ao significado moral dos passos bíblicos, primeiramente, afirmando: ... Salomão traz nas Parábolas: ‘Quem aperta muito os úberes para tirar leite, obtém manteiga e o que violentamente ordenha tira sangue’. Considera estes quatro elementos: os úberes, o leite, a manteiga e o sangue. Os úberes designam o Velho e o Novo Testamento; o leite, a alegoria; a manteiga a moralidade; o sangue a compunção das lágrimas ... O pregador, portanto, deve tirar dos úberes o leite da narrativa, para dele poder tirar a manteiga suavíssima da moralidade. Recorde-se que o leite consta de três substâncias. A primeira é o chamado soro aquoso; a segunda a nata; a terceira a manteiga. O soro aquoso significa a narrativa; a nata, a alegoria; a manteiga, a moralidade. Esta, quanto mais suave é, tanto mais suavemente penetra nos corações dos ouvintes, porque os costumes estão corrompidos. Por isso, ‘deve-se ligar mais à moralidade, que informa os costumes, do que à alegoria, que ensina a fé, pois a fé, por graça de Deus, encontra-se difundida em toda a terra’, ... o sangue ... significa a compunção das lágrimas, que vivificam e sustentam a alma, a fim de não cair em pecado ... O pecador, pois, enquanto se 48 Cf. CAEIRO, F. da Gama. op. cit., 2ª ed., vol. I, p. 205-206: “... Na terminologia medieval emprega-se muitas vezes a palavra história como sinónimo de letra, traduzindo neste caso o sentido verbal ou literal da Escritura..., raiz e fundamento da exegese bíblica, o primeiro degrau ou o primeiro plano a procurar e esquadrinhar para a consecução do conhecimento desejado e da Verdade..., resulta evidente que ele atribuiu à história a primeira e fundamental posição pelo facto de ela ser extraída directamente da Escritura... Para manter essa espontaneidade da história, o sentido que mais a poderia favorecer era o moral, por ser menos doutrinal e mais exortativo...”. 134 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... ordenha violentamente com a palavra da pregação, levantando para as alturas o seu espírito, tira sangue, isto é, derrama lágrimas, por ter dissipado os bens do Senhor que lhe foram confiados...49. Especificamente, no que concrene à exeges50 antoniana nos Sermões Dominicais e Festivos, ao nosso ver, é uma das notas constitutivas mais importantes dos mesmos, porque o Menorita lusitano compulsou e absorveu dos autores que o precederam o que de melhor haviam produzido a respeito e lançou mão de tais conhecimentos, tendo dado em seus escritos um toque pessoal. Em primeiro lugar, julgamos que, fica assaz evidente, a razão que levou Antônio a, inicialmente, ter retirado do Antigo Testamento as narrativas históricas e tê-las usado nos Sermones Dominicales, e depois, das hagiografias os exempla dados pelos santos, e inseri-los nos Festivi, como ponto de partida ou motivação pedagógica para seus alunos e leitores. Igualmente, também, não foi despropositadamente, conforme tivemos ocasião de ver, explicitamente, no acima indicado Exórdio ao sermão do 9º Domingo depois de Pentecostes, e outrossim, podemos verificar em toda opera antoniana, que o sentido tropológico ou a exposição moral do texto bíblico tem uma importância singular. Com efeito, o ato de pregar, efetivado pelo pregador, devidamente investido nesse ministério e bem preparado para executá-lo, tem por fito levar o 49 9º Domingo depois de Pentecostes, ed. cit., vol. I: 760, 761, 762. Cf. também, Abade Guiberto, Quo ordine sermo fieri debeat, in PL 156, col. 26. , e ainda, Cf. Igualmente, LEONARDI, Claudio. art. cit., p. 311: “... L’originalità di Antonio piuttosto che nell´esegesi allegorica è da ricercare nell’esegesi morale. Non è certo casuale la dichiarazione, che percorre tutti i Sermones, di voler intendere ‘moraliter’ la Bibbia: di fatto il senso morale occupa una porzione assolutamente maggioritaria dei Sermones ...”. 50 Nas últimas décadas os mais destacados estudiosos desse assunto foram Beryl Smalley, The Study of the Bible in the Middle Ages. Oxford, 1941. Essa autora consagrou alguns de seus trabalhos a Santo Antônio; SPICQ, Celas. Esquise d’une histoire de l’exégèse latine au moyen age. Bibliothèque Tomiste, 26, Paris, 1944; LUBAC, Henri de. Exégèse médiévale. Paris, 1961, e mais recentemente, G. Dahan. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 135 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA ouvinte (bem como o estudante e ou o leitor da opera) à conversio e ao aperfeiçoamento moral, tornando-o receptivo a tais dons que, gratuitamente, foram-lhe oferecidos pelo Redentor, porquanto o mesmo ... estabelece ... o traço de união entre Deus, por um lado, e, por outro, os homens, o mundo e a realidade sensíve ...» de modo que «... o intento moral como seja a salvação de si e dos outros é o que leva o cristão a procurar na Escritura quer o alimento, o sólido apoio para a sua vida, quer o estímulo da letra, que, mercê de uma dinâmica especial, se desdobra em novas significações...51 A exegese de Santo Antônio demonstra também uma abertura de espírito, aos conhecimentos científicos profanos de seu tempo, utilizando-os como instrumentos que poderiam ajudar seus leitores a compreender melhor o texto bíblico. É, de notar ainda, no referido Prólogo geral aos Sermões Dominicais que, empregando uma imagem figurada, a da quadriga mística52, o Doutor Evangélico explicitou que, tencionava elaborar os seus sermões alicerçando-os em quatro tipos de perícopes53 escriturísticas, como escrevemos atrás, tiradas dos evangelhos, das epístolas e dos intróitos das respectivas missas dominicais articuladas com as leituras do Antigo Testamento, tal como se rezava no Ofício divino ou na Liturgia das 51 CAEIRO, Francisco da Gama. Santo António de Lisboa, vol. I, IN-CM, 2ª ed., 1995, p. 250. 52 DAHAN, G. art. cit., p. 154: “... la fameuse image du quadrige montre assez que l’objectif est d’indiquer au prédicateur comment les trois lectures bibliques... (l’introite de la messe constituan le quatrième élément) concordent, quels, sont les liens thématiques qui les unissent... Ces deux éléments, destination du recueil et lien avec la liturgie, expliquent les options herméneutiques: l’exégèse sera uniquement spirituelle...”. 53 FONSECA, L. Gonzaga da, SJ, art. cit., p. 680: “... A perícope [o trecho] evangélica é dividida em ‘cláusulas’, que serão ordinàriamente as partes do sermão... A epístola e o introito são igualmente divididos em outras tantas partes e ‘concordados’ brevemente com as do evangelho; a Escritura ocorrente é usada no desenvolvimento das diversas cláusulas, onde quer que se pode bem adaptar...”. 136 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... Horas54 de então55, textos esses que ia fazer concordar entre si, o que, entretanto, nem sempre ocorreu como o demostraram muito bem Gustavo Cantini OFM Conv.56, Jaques Guy Bougerol OFM57 e Francesco Costa OFM Conv.58 e, foi assim que o Menorita lusitano procedeu ao intercalar outras citações do tipo em seus textos. 54 Estas subdividem se em Matinas, Laudes, Prima, Terça, Sexta, Noa, Vésperas e Completas. 55 COSTA, F. OFM Conv., art. cit., 1999, p. 37-38: “... Al tempo di Antonio di Padova in Occidente da oltre un secolo si erano affermati, come único libro per la celebrazione dell’Ufficio orario, il Breviario e, come libro único per la celebrazione della Messa, il Messale cosiddetto ‘plenario’... Del Breviario ... erano venuti a far parte il Salterio, l’Antifonario, l’Innario, il Lezionario, il Responsoriale, l’ Evangeliario e l’ Omeliario, prima raccolti in altrettanti libri differenti. Dall’ambiente monastico, dove cominciò ad essere usato nel sec. XI, il Breviario si diffuse ben presto in tutti gli ambienti ecclesiastici divenendo, per la sua maggiore praticità, il libro ufficiale anche per la celebrazione dell’ ufficio corale... Sotto il pontificato di Gregorio VII (1073-85) si può dire che la liturgia in tutto l’Occidente era sostanzialmente romana nella sua struttura ed erano già in uso sia il Breviario che il Messale plenario ...”. 56 In: “La tecnica e l’indole del Sermone medievale ed i Sermoni di S. Antonio da Padova”, Studi Francescani, 31 (1934), p. 201-202: “... La promessa in generale è mantenuta, specie dalla prima Domenica dopo Pentecoste in poi; ma vi sono non poche eccezioni ... Come si possono spiegare queste anomalie?... Una spiegazione più propia si trova in ciò che Antonio nel comporre la Mistica Quadriga si sia servito, come ho accennato, di un materiale che giá precedentemente aveva disposto in sermoni,i quali con qualche ritaglio e ritocco sono entrati in questa composizione sistematica ...”. O estudioso, nas páginas seguintes (203-204), a fim de corroborar seu ponto de vista, arrola uma série de exemplos assaz interessantes. 57 In: “La Struttura del sermo Antoniano”, Atti del Congresso Internazionale di Studio sui Sermones di S. Antonio di Padova, ed. cit., p. 93-104. 58 Art. cit., p. 35: “... È da ritenere dunque che la quadriga sia il nucleo originario dei Sermones dominicales, ma che il Santo nella redazione finale a Padova abbia aggiunto al materiale originario altro materiale utilizzato in altre occassione ... sembra certo, ad esempio, che il primo dei due sermoni della Domenica I di Quaresima abbia avuto un’ origine indipendente dalla quadriga, brevissimo e incentrato sul vangelo della ‘tentazioni di Gesù’ senza referimento alle altre ‘ruote’ della quadriga. Nella Domenica II di Quaresima, troviamo due sermoni, uno sulla ‘Transfigurazione’, secondo il rito della Curia romana, e l’altro sulla Cananea, letto in altri luoghi, come in Francia; e in terra francese potrebbe essere stato scritto questo secondo sermone, utilizzato poi dal Santo in fase di redazione finale ...”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 137 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA Para melhor entendimento do leitor sobre esse procedimento, é preciso esclarecer dois pontos, a saber, a concordância a que Antônio se referia que ia fazer concerne às ideias ou aos assuntos a abordar59 e, aplicada amplamente aos passos do Antigo e do Novo Testamento, significa que ambos constituem-se num todo, a Bíblia, a palavra de Deus revelada de maneira especial pelo Verbo60 não, propriamente, à combinação de palavras e ou frases entre si, embora isto também pudesse acontecer. Tecnicamente, Jaques Guy Bugerol OFM e G. Dahan61 designam esse procedimento por concordância temática. O outro ponto concerne a uma novidade, no mínimo interessante, introduzida pelo Doutor Evangélico nesta parte de sua obra. Ao 59 FONSECA, L. Gonzaga da, SJ., art. cit., p. 681: “... São sugeridas por uma palavra preponderante do texto a comentar, palavra que o orador frequentemente introduz no comentário, quando não a encontra no próprio texto; outras vezes, é, antes, o pensamento que se quer explicar, confirmar ou demonstrar que chama outros e outros passos bíblicos, onde o mesmo pensamento aparece ou se faz aparecer ...”. O estudioso português, às p. 681-684, demonstra como o Santo fazia a mencionada concordância, analisando o “Sermão da III Dominga da Quaresma”. 60 DAHAN, G. art. cit., p. 173, 177: “... L’affirmation que Jésus est l’exégète véritable n’est ni une image ni une pieuse pensée, mais un principe herméneutique... la ligne directrice principale de leur interprétation… la Bible fournit à la fois un contenu (un savoir, une réflexion sur Dieu, sur le monde, sur l’homme) et une langage (qui est le moyen d’accéder à ce savoir) ...”. 61 Art. cit., p. 175: “... Ainsi, dans le sermon pour le 1er dim. de carême, Antoine fait concorder un épisode de la Genèse, la tentation d’Eve par le serpent (Gen. 3, 1-5) et un récit de Matthieu, la tentation de Jésus par le diable (Matth. 4, 1-5); la mise en parallèle des versets souligne la proximité des deux textes...” Antes mesmo, Gustavo Cantini OFM Conv., in : “La tecnica e l’indole del Sermone medievale ed i Sermoni di S. Antonio da Padova”, Studi Francscani, 31 (1934): 204, já havia explicado como entender corretamente aquela expressão antoniana, dizendo o seguinte “(...) La concordanza di cui si parla qui (...) si tratta di porre in rilievo come le affermazioni e pensieri contenuti nel Vangelo, ed anche nelle altre tre parti della Liturgia, trovino armonia e consonanza in altre autorità bibliche tanto del nuovo che del vecchio Testamento. È la caratteristica intima di ogni sermone medievale...Il metodo che usa Antonio per introdurre questi testi di concordanza, in generale è quello di citare prima le parole del Vangelo, spiegare brevemente il loro significato, e poi recare il testo di concordanza ...”. 138 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... invés de ter escrito seus sermões de acordo com o calendário da Igreja, o qual, desde o século IX na Cristandade Ocidental, até hoje, começa com o 1º Domingo do Advento e termina com o último Domingo de Pentecostes, cujo número, então, podia variar, entre 22 e 24, conforme o domingo em que caísse a festa (móvel) da Páscoa, organizada a partir do calendário lunar de 28 dias, Antônio optou por seguir um outro caminho, qual seja, o de tê-los escrito correlacionando-os com as leituras do Antigo Testamento que eram feitas de acordo com a recitação do Ofício Divino, a oração litúrgica oficial da Igreja. Assim, o 1º sermão refere-se ao antigo Domingo da Septuagésima, em cuja época do ano, as preditas leituras eram tiradas do 1º livro bíblico, o Gênesis, e o último, ao antigo 3º Domingo depois da oitava da Epifania. Em suma, compartilhando da opinião de G. Dahan face ao minucioso estudo que fez da exegese antoniana62, afirmamos que o Menorita olisiponense também lançou mão de todos os recursos que a hermenêutica de seu tempo havia alcançado, paralelamente, tendo conservado o que a exegese monástica tinha de melhor, e tendo sido receptivo às novas contribuições desenvolvidas nas escolas urbanas (catedráticas e canônicas), o que pode ser confirmado, de um lado, mediante as fontes de sua opera, que indicamos páginas atrás e, de outro, é suficiente referir que, em vários trechos de sermões usou o sentido literal bíblico63; que, para Hugo de São Victor, os animais mencionados nas passagens bíblicas assumem um significado alegórico e representam Cristo, Adão, Eva etc., “... in Antonio significano i vizi e le virtù: la continenza, la clemenza, la povertà di spirito, l’ira, l’ipocrisia, il 62 Observa Maria Cândida Pacheco art. cit., 1999, p. 198, que se trata de “... um dos temas antonianos mais estudados nas últimas décadas..., e reflecte as tendências de sua época e de sua própria formação (...)”. 63 FONSECA, Luís G. da, SJ, art. cit., p. 687-691, arrola uma série de exemplos desse tipo de uso. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 139 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA falso cristiano etc...”64. Ademais, ao contrário de São Bernardo e dos outros membros da escola exegética a que pertencia o Melífluo, o Doctor Evangelicus não recorreu às citações da Escritura, ou dos Padres da Igreja ou das Glosas para comprovar um ponto doutrinal que desejava transmitir. Para ele, o trecho da Palavra, objeto da reflexão e explanação, simultaneamente, é o seu começo e o seu fim. As citações dos Padres, das Glosas ou de outras fontes, apenas serviram-lhe de instrumento ou de caminho para chegar a um entendimento mais profundo do mesmo65. Também, constatamos atitude semelhante da parte de Antônio no que respeita à abertura de espírito para acolher as inovações técnicas preconizadas pelos especialistas de então na oratória sacra66 e, tal é o caso da organização formal ou interna que deu à maior parte de seus sermões, dividindo-os em tema, exórdio ou protema, cláusulas ou partículas, exposição ou explicação, e epílogo ou conclusão67. 64 CANTINI, G. OFM Conv. “La tecnica e l’indole del Sermone medievale ed i Sermoni di S. Antonio da Padova”, Studi Francscani, 31 (1934), p. 198. 65 DAHAN, G. art. cit. p. 177: “... L’exégèse de saint Antoine, même si elle ne renonce à aucune des richesses de l’exégèse traditionelle, notamment de l’exégèse monastique, n’est pas tournée vers le passé: le repprochement avec les sermons universitaires composés dans le premier tiers du XIIIe siècle, particulièrement à Paris, confirme qu’Antoine participe au mouvement de son temps...”. 66 Cf. REMA, Henrique Pinto, OFM, “A Retórica em Santo António de Lisboa no contexto português e europeu da Idade Média”, in: A Retórica Greco-latina e a sua perenidade, Actas do Congresso (Coord. José Ribeiro Ferreira), Instituto de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 11 a 14 de Março de 1997, vol. II, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, p. 497-518. 67 DAHAN, G. art. cit., p. 157: “... Dans la divisio textus, saint Antoine recourt à quatre termes essentiellement: clausulae, notabilia, particulae, partes. En fait, ils ne sont pás équivalents et l’on a affaire à deux séries: d’une parte, clausulae et notabilia, qui ne correspondent pas à la structure du texte mais à ses idées fortes, autour desquelles Antoine organise sa matière... Dans de nonbreux sermons particulae (appliqué généralement à l’épître) s’oppose à clausulae (appliqué à l’évangile...”. 140 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... Em geral, os protemas nos Sermones Dominicales, obviamente, hauridos no evangelho lido na missa do dia e articulados com um lanço do Antigo Testamento, que nas outras partes do sermão poderá ser retomado, para além de serem variadíssimos, às vezes são sucintos, às vezes são mais extensos e, nestes casos, constituem-se, até certo ponto, em minisermões, dirigidos, especialmente, por exemplo, aos pregadores, aos prelados, aos fiéis indistintamente, a determinados tipos de pecadores e aos vícios que praticam ou, ainda, reportam-se à prática das virtudes ou a temas doutrinas, como a Paixão de Cristo. Quase sempre, o tema68 dos Sermões Dominicais é um trecho ou uma passagem evangélica lida na missa do dia, tomado na íntegra ou parcialmente, que está presente em todo o texto do sermão, o qual, adiante, o Santo explicou minuciosamente, o dividido em partes, designadas por cláusulas, sem um número fixo, explicação essa feita de acordo com as possibilidades de interpretação que a passagem permitia, cujo resultado eram outros pequenos sermões secundários de caráter moral ou anagógico etc.69 68 CAEIRO, F. da Gama, op. cit., p. 191: “... O tema inicial do sermão dominical é, em regra, constituído por um texto do Evangelho do dia; a estes Sermões chamou mesmo o Santo ‘Evangelia’... Quase sempre o Santo emprega a expressão tema para indicar o texto-base de todo o sermão... mas considera algumas vezes como temas os textos bíblicos sobre os quais assentam as várias cláusulas em que dividiu o sermão e que funcionam também como ‘sermões’, embora sermões secundários, no sentido de partes integrantes do sermão principal...”. 69 Ibidem, p. 192-193: “... Desenvolvido mais ou menos o protema..., é então recordado o tema principal do sermão e efectuada a sua conveniente explanação e desenvolvimento. Quando o tema dava para tal, era sua matéria dividida em partes com certa ligação entre si, a que o Santo chamou cláusulas, de número maior ou menor, conforme a necessidade. Em geral, as cláusulas eram três, mas há sermões com duas e alguns com quatro e mesmo cinco. Estas cláusulas eram novos sermões mais simplificados, partindo cada uma de seu tema, quase sempre diverso do tema geral, mas, no contexto de cada um havia ligações ou concordâncias com o tema geral e, às vezes, continuavam ali as concordâncias com a epístola e o intróito da missa dominical que se não tinham chegado a fazer no sermão de entrada, ou ‘sermo prior’...”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 141 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA Os epílogos, sob a forma duma oração, contêm “... em síntese muito curta, a matéria do sermão, ou de um de seus aspectos mais salientes, acabando-a com a invocação da misericórdia divina ou com o louvor de Deus e dos seus atributos...”70. Enfim, queremos ressaltar mais dois aspectos presentes nos Sermones Dominicales. No Epílogo conclusivo Antônio designou explicitamente seu trabalho por opus evangeliorum, quer dizer, Obra dos Evangelhos, dando a entender, claramente, que seu livro se alicerçava, precipuamente, nos quatro Evangelhos, e que, por isso mesmo, fugia dos padrões comuns dos sermonários, então em uso. Um pouco mais adiante ele também afirma: “... E tudo o que for encontrado neste volume digno de rasura e correção, deixo à lima da discrição dos sábios da Ordem o torná-lo claro e emendá-lo...”71. Se, por um lado, esta frase era usualmente utilizada pelos autores da época, ao final de seus escritos, por outro, é também um importante testemunho de que, em pouco mais de vinte anos de existência, a Ordem dos Menores já contava entre seus membros pessoas cultas e capazes de ajuizar aquele texto. Por último resta dizer algo sobre a segunda parte da opera sermonária antoniana, a qual é constituída pelos Sermones in Solemnitatum Sanctorum per anni circulum ou Festivos, escrita a pedido do Cardealbispo de Óstia, Rinaldo dei Conti di Segni, sobrinho dos pontífices Inocêncio III (1198-1216) e Gregório IX, e, mais tarde, papa, eleito em 12 de dezembro de 1254, sob o nome de Alexandre IV, na altura, Protetor do Ordo Minorum, o qual tendo tomado conhecimento dos Sermones Dominicales, apreciando o seu valor, e tendo visto e ouvido Antônio pregar aos integrantes da Cúria Romana (1230), solicitoulhe que escrevesse algo parecido no tocante às festas dos santos. 70 Ibidem: p. 192-193. 71 Ed. cit., p. 613-614. 142 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... O Menorita lusitano atendeu ao pedido do cardeal Rinaldo e começou a escrever os Sermones Festivi, em Pádua72, onde se radicou logo após ter deixado de exercer o cargo de Ministro Provincial da Romanha e ter cumprido com a missão que os frades capitulares haviam-lhe (e a outros irmãos) confiado junto à Cúria Pontifícia, incumbência tal que não deve ter se estendido para além do correr de agosto daquele ano. Todavia, Antônio não chegou a concluir a redação deste conjunto, cujo último sermão é dedicado a São Pedro e São Paulo (a festa em seu louvor era celebrada em 30 de junho), porque, como se sabe, veio a falecer em 13 de junho de 1231, o que, igualmente, leva a supor que não teve tempo de revisá-lo, como, certamente, deveria ter tido a intenção de fazê-lo73. Ao nosso ver, nesta parte da opera o Doutor olisiponense acompanhou o supra-referido calendário litúrgico da Igreja, pois o 1º sermão concerne ao Natal do Senhor, o 2ª a Santo Estêvão (festejado em 26 de dezembro), o 3º a São João Evangelista (celebrado em 27 de dezembro), o 4º aos Santos Inocentes (28 de dezembro), e, assim, quase sucessiva e cronologicamente, apesar de, sob essa perspectiva poder ser formulada a seguinte indagação: por que Antônio não fez sermões em louvor a Santa Catarina, a Santo André, a São Tomé, Apóstolo, a San72 A propósito, muito oportunamente, observa Henrique P. Rema OFM, Introdução, p. XXX: “... é natural que o nosso Doutor Evangélico tenha começado a recolher materiais para a futura obra quando lhe confiaram o ofício de pregar em 1222 e o de ensinar em 1223...” (cf. também COSTA, F. OFM Conv. “Sermoni antoniani e Libri Liturgici”, in: Atti..., 1982, p. 141). 73 CANTINI, G. OFM Conv., “La tecnica e l’indole del Sermone medievale ed i Sermoni di S. Antonio da Padova”, Studi Francscani, 31 (1934), p. 217: “... Antonio interrompe il lavoro per consacrarsi interamente al ministerio della predicazione, e lo riprende quando gli agricoltori non possono più seguire Antonio predicatore, perchè urgevano i lavori della campagna. Allora Antonio si porta in Campo S. Piero... Però sorella morte viene a troncare la sua esistenza, e così il lavoro rimane poco più che a metà, e rimane non finito anche l’ultimo sermone che è quello della Commemorazione di S. Paolo, 30 giugno...”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 143 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA to Tomás Becket (1118-1170), arcebispo primaz da Inglaterra, martirizado em sua catedral pelos asseclas do rei Henrique II, e canonizado por Alexandre III (1159-81) em 1172, e a São Silvestre, 314-337, cujas respectivas festas são (eram) celebradas em 25 e 30 de novembro; 21, 29 e 31 de dezembro? A indagação não se aplica à festa em louvor da Imaculada Conceição de Maria, aliás, enaltecida pelos Franciscanos desde João Duns Escoto (1266-1308), também designado por Doutor Mariano, porque esta festa só veio a ser introduzida, após a proclamação do Dogma correspondente, em 8 de dezembro de 1854. Esses sermões, formalmente num total de 20, se apóiam nas mesmas fontes anteriormente referidas, particularmente nas Glosas, bem como nos Dominicales, mas têm uma estrutura interna bem mais simples do que aqueles, porque, em geral, nutrem-se no Evangelho lido na missa do dia do qual o Santo extrai diretamente o tema, e que é explicado frase por frase ou parte por parte (cláusulas ou partículas), mas sem longas digressões, gravitando, muitas vezes, em torno dos ensinamentos relativos à fé74, mas deles não consta o protema ou exórdio75 e exclui-se a articulação ou concordância com a Epístola, o 74 CANTINI, G. OFM Conv., art. cit., p. 218-219: “... Noto innanzi tutto che nella spiegazione o commento di questi Vangeli, Antonio si è molto servito della Glossa, sia ordinaria che interlineare, specie quando delle parole evangeliche dà una spiegazione allegorica... La spiegazione evangelica in quest’Opera è assai più breve, in generale, che nella Mistica Quadriga... Per altro la cura maggiore di Antonio, anche qui, è quella di estrarre il burro dal latte della parola evangelica, vale a dire anche qui tende a moralizzare...”. 75 Há duas exceções. Uma é o sermão em louvor à Ressurreição do Senhor (essa é sua designação) e a outra, à Festa do Pentecostes. Todavia, o tema e o exórdio do primeiro fundamentam-se em passos do Antigo Testamento a partir dos quais o Santo escreveu um sermão alegórico, dois morais e um outro anagógico, cujas conclusões aparecem sob a forma do epílogo convencional. Quanto ao segundo, o tema e o exórdio respaldamse em Jo 14,26: “O Espírito Paráclito, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos recordará tudo que vos tenho dito”. Depois vêm um sermão literal (o único neste conjunto), um outro alegórico e um terceiro, moral, cujos dois últimos haurem-se em Daniel 7, 10 “De diante do Ancião dos dias saía um impetuoso rio de fogo”. A palavra fogo é o eixo para a concordância. 144 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO... Intróito e com trechos vetotestamentários. Ao final da exposição, todos contêm um epílogo. Por outro lado, o mesmo passo evangélico abre caminho para a elaboração de outros dois (breves) sermões paradigmáticos, ou alegóricos ou morais, os quais se articulam, tematicamente, com trechos tirados do Antigo Testamento ou das hagiografias, conforme o caso, que estão divididos da sobredita maneira, para facilitar a sua explanação, também de acordo com os modelos exegéticos, referidos páginas atrás. A título de exemplos, o sermão dedicado à festa da Cátedra de São Pedro é acompanhado por mais dois sermões alegóricos e mais dois morais; o em louvor à Ceia do Senhor traz dois sermões alegóricos e um anagógico76, o em louvor a S. Pedro e São Paulo traz um alegórico em louvor a ambos, um outro desse tipo, exclusivamente em louvor a São Paulo, e mais dois morais. É de se notar, ainda, a recorrência frequente a uma interpretação figurada moralizante dos seres da natureza e dos nomes próprios77. A modo de conlusão, nas páginas precedentes, pensamos ter apresentado ao leitor a valiosa contribuição inovadora do Santo à exegese medieval, fundada em sua vasta bagagem cultural e em sua formação intelectual, obtidas nas canônicas agostinianas de São Vicente de Fora, em Lisboa e em Santa Cruza de Coimbra. 76 Nesse conjunto há apenas dois sermões desse tipo. 77 CANTINI, Gustavo. Ibidem, p. 222: “... Noto che la descrizione di questi animali qui è più sintetica e più stringata, che nella Mistica Quadriga; poche parole per delinearli e poi si passa all’applicazione... Noto in secondo luogo... a differenza del primo, gli animali hanno pure un significato allegorico. Così la pantera, la calandra, il pellicano, la gallina il verme sono simbolo di Gesù Cristo; e si capisce che il serpente sia simbolo del diavaolo... noto anche qui di passagio che nella presente opera vi sono elementi che rivelerebbero una dipendenza da Ricardo da S. Vittore, sia nella descrizione, sia nell’applicazione simbolica di alcuni animali”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 145 JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA 146 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011 COMENTÁRIOS INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE Hermógenes Harada * Algo sobre leitura espiritual 1. Leitura espiritual é uma das atividades recomendadas para o fomento da vida espiritual. Trata-se na leitura espiritual primeiramente de leitura, que tem o caráter de ser espiritual. 2. Leitura é uma das atividades exercidas e exercitadas pelo ser humano como manifestação do seu espírito. Usualmente o que lemos recebe o nome de livro. 3. Na era da computação, fala-se muito de que o livro tem vida já contada, pois vai ser substituído pelo computador. Independente de se isso vai acontecer ou não, é de inter-esse observar que o modo de ser do livro e da sua leitura tem propriedade específica dele, de tal sorte que, quem consegue ver essa especificidade sempre apreciará a leitura do livro e, embora seja inteiramente afeiçoado à técnica da computação, não irá substituir simplesmente, como se fossem coisas iguais, a experiência da leitura de um livro pela “leitura” de um “texto” do computador. * Escrito póstumo. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 149 HERMÓGENES HARADA 4. Existem livros escritos sobre uma porção de coisas. Os livros que foram escritos sobre uma coisa, mesmo que essa coisa se chame espírito não são espirituais. Pois, escrever ou falar sobre uma coisa, e correspondentemente ler ou ouvir sobre... tem um modo de ser todo próprio, que é diferente do modo de ser do escrever, falar, ler ou ouvir espiritualmente. 5. No caso do escrever ou falar, ler ou ouvir sobre não se tem propriamente o modo de ser do encontro, mas sim um modo de colocar a coisa sob o ponto de vista do projeto do meu interesse. Por isso a primeira coisa que me toca ali é o horizonte, é a perspectiva a partir e dentro da qual olhamos para uma coisa, sobre uma coisa, ordenandoa, ajeitando-a, submetendo-a ao meu ponto de vista. Esse modo de ordenar, de encaixar a realidade à perspectiva do ponto de vista, se chama modo de ser objectivo. 6. Muitas vezes usamos os termos objetividade e objetivo para indicar realidade e real. Essa identificação da objetividade com a realidade e do objetivo com o real não possui a precisão crítica. Assim, o real não é igual ao objetivo; a realidade não é igual à objetividade. Objetividade, objetivo, objeto; realidade, real, res (latim = coisa) são categorias usadas a partir de duas situações de todo próprias do sentido do ser que decide a epocalidade das épocas denominadas na história da humanidade de Modernidade e Antiguidade. 7. Se mantivermos com precisão a distinção acima feita entre objetividade e realidade, não mais estranhamos quando dizemos que a objetividade, o objetivo, o objeto é o que aparece na perspectiva do enfoque da subjetividade. 8. Subjetividade indica não este ou aquele sujeito, este ou aquele grupo de sujeitos, mas sim o modo como um determinado sentido do ser vem à fala, compreendendo o ser humano como ser sujeito e agente de suas ações e estas como interpelações produtivas, e a realidade 150 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE como o conjunto de produtos (pro-jectos) das atuações do agenciamento do perfazer-se desse ser sujeito nessas interpelações produtivas. 9. Realidade indica, não esta ou aquela coisa (res em latim), este ou aquele grupo de coisas, mas sim o modo como um determinado sentido do ser vem à fala, compreendendo o ser humano como uma das intensidades de ser substância, cujo ser é entendido como um em si, por e para si. Aqui, a realidade e suas coisas não são produtos da interpelação projetiva do inter-esse do sujeito e agente homem, mas sim vigência do ser que se realiza em diferentes níveis e densidades da sua presença como ordens e esferas das entidades ou coisidades. 10. Aqui observamos que o como do falar, escrever e ler da subjetividade é sobre objeto. O como do falar escrever e ler da realidade é o em participando da vigência do ser em diferentes níveis da sua densidade como substância. 11. Nessa diferença do modo de ser epocal, tanto da Antiguidade como da Modernidade, surge sempre a questão: “Entre” essas duas totalidades há ligação, continuidade, ruptura, ou complementação? Há “entre” elas algo de comum, geral? Se não houver, como podemos nós, hodiernos, ler um livro da Antiguidade? 12. Na realidade, essa é uma questão dificílima de ser respondida adequadamente, a partir das impostações que fazemos com nossas problemáticas. Mas, em todo o caso, percebemos que no fundo do modo de ser do todo chamado subjetividade (falar, escrever e ler sobre) e realidade (falar, escrever e ler conascendo) há um fundo anterior, algo não dito, oculto qual abismo do não saber insondável e sem fundo. Com outras palavras, ambas as colocações epocais, no fundo, partem do retraimento de onde, a partir de que e de que coisa? 13. Estar aberto a essa questão, a essa busca, não por curiosidade de que tipo for, mas sob o toque de uma profunda afeição e necessidade de uma “vida Severina” de “encontro” é o que a grande tradição do Ocidente denominou de Espírito ou espiritual. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 151 HERMÓGENES HARADA 14. Seja quem for, analfabeto ou letrado, criança ou adulto, são ou enfermo, santo ou pecador, cada qual como é facticamente, se quer fazer uma leitura espiritual, é necessário que o faça a partir e dentro dessa aberta, dentro e a partir dessa nuvem do não saber. 15. Essa leitura a partir da nuvem do não saber é como se a própria coisa escrevesse, falasse, lesse ou ouvisse acerca de si mesma a partir de si. E isso com suas próprias palavras, sem querer se encaixar nenhum ponto de vista que não seja a própria coisa ela mesma. Aqui toda a atenção e todo o cuidado devem estar concentrados em deixar ser, dar espaço livre para que a coisa ela mesma apareça a partir dela, nela mesma, à vontade. Aqui o eu que escreve, fala, lê ou ouve não é sujeito e agente de uma ação interpretativa, projetiva, impositiva de condição para a coisa aparecer (cf. o primeiro modo de escrever, falar, ler e ouvir sobre), mas é pura e límpida abertura de recepção cordial e afinada ao surgir, crescer e consumar-se da coisa ela mesma, é ser como que caixa de ressonância da coisa ela mesma. 16. Esse modo de ser do espaço aberto à ressonância da coisa ela mesma é o que se denomina muitas vezes de ver simples e imediato na disposição de abertura ao encontro. Mas, como na nossa maneira usual de entender fixamos o ver como julgar ou lançar perspectivas, em vez de ver, auscultar, ouvir atentamente, talvez fosse melhor dizer esperar o inesperado. Esse ver simples e imediato, esse auscultar, esse ouvir não é passividade. Pelo contrário, trata-se da máxima atenção plena de acolhimento, é o grau mais alto e denso do conhecimento, entendido como conascimento (em francês conhecer é con-naître, conascer). Esse modo de ser de acolhimento se diz em grego antigo légein, donde vem a palavra Logos, que se traduz geral e usualmente por conversa, discurso, pensamento, espírito, razão, mas cuja tradução mais originária seria talvez acolhida, colheita. Por isso, os gregos antigos definiam o ser humano como sendo o vivente, o ânimo, como coragem de ser atinente e pertencente ao Lógos. (Tò zôon lógon écchon) essa definição foi então 152 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE traduzida para a língua latina e ficou animal rationale, que em português é: homem é animal racional. Mas essa definição é entendida de modo inteiramente inadequado, quando se interpreta a palavra animal como bicho, bruto, e, racional como racionalista, cerebral. Animal, na definição clássica do homem, significa coragem criativa de ser, o ânimo vivo; racional, referido ao Logos, à plena atenção de colheita do ser, de acolhida da coisa ela mesma. 17. Quando usamos a expressão leitura espiritual, podemos entender o adjetivo espiritual de diversos modos. Podemos entender o espiritual como indicando o objeto da leitura. Por exemplo, posso classificar um objeto como pertencente à classe dos objetos do espírito, por exemplo, votos religiosos, virtudes, Deus, anjos, alma, encontro, amor; à classe dos objetos físico-naturais (da natureza), por exemplo, pedra, animais, plantas; dos objetos da cultura, por exemplo, obras de arte, monumentos etc. 18. Quando a leitura é classificada conforme o seu objeto, então, temos o modo de ler, descrito lá em cima como leitura sobre. E assim podemos denominar esse tipo de leitura sobre de leitura historiográfica, leitura psicológica, leitura sociológica, leitura prática, técnica, leitura literária, estética, religiosa, moralizante, fundamentalista, espiritual, espiritualista etc. 19. Mas na expressão leitura espiritual o adjetivo espiritual pode não estar se referindo ao objeto, mas à leitura. Nesse caso leitura espiritual significa ler espiritualmente. E se a gente pergunta: qual é exatamente esse modo todo próprio de ler espiritualmente, a gente agora pode responder: é exatamente aquele modo de ler, de colher, de receber, vivo e cordial, grande e profundo, infinitesimalmente diferenciado que está exposto acima nos ns. 13, 14, 15 e 16. Aqui a abertura ao encontro não deve ser confundida com o olhar sem mais nem menos imediatista conforme o uso padronizado dos nossos ajuizados, pré- Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 153 HERMÓGENES HARADA conceitos ou opiniões. O ver simples e imediato na disposição de abertura ao encontro é a evidência que se dá no fundo de nossa alma, e na maioria dos casos está entulhada por outros tipos de saber, que não possuem esse caráter de limpidez e imediatez do ânimo e da prontidão pura. Por isso, deve-se trabalhar duramente para que esse entulho seja afastado e que apareça com todo o esplendor e pureza a clarividência de fundo da alma. 20. Essa nossa reunião se chama encontro e não tanto curso. Isso porque no curso se acumulam informações e saberes sobre objetos do tema das nossas reflexões. Chama-se encontro, pois em tudo que fazemos na reunião não fazemos outra coisa do que exercitar-nos em ver de modo simples e imediato, na disposição de abertura ao encontro. Em nos exercitando longa, tenaz e cordialmente nessa disposição, aos poucos nos vamos abrindo para a recepção agraciada do que a grande tradição do cristianismo chamou de Espírito do Evangelho. E o Espírito do Evangelho é o sopro vital da espiritualidade cristã, a Vida Espiritual. 21. O nosso modo de compreender usualmente a nós mesmos e os nossos atos está bastante defasado. Por isso, quando nos reunimos e nos concentramos para um período de leitura de fontes, começamos a ter dificuldades, antes nunca sentidas. É que o nosso modo de estudar, aprender, é de se informar sobre as coisas e entendê-las conforme parâmetro e tabela de programação que temos na nossa mente. Ler e pensar e descobrir o que está sendo dito ali nós quase nunca fazemos. Porque raríssimas vezes exercitamos o pensar, sem perceber, vivemos desde há muito tempo numa inércia e preguiça mental muito grandes. A nossa não compreensão vem dessa inércia, e não tanto porque somos analfabetos, não estudados. Quando começamos a leitura espiritual e nos exercitarmos com maior volume e intensidade, vamos sofrer muita frustração e tédio com a inércia da nossa mente. Vamos sub-portar, sustentar com boa disposição esse tipo de dificuldade e sofrimento. Sem passar por esse tirocínio, não podemos ser espiritu154 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE ais. Quando eu descubro uma defasagem dentro de mim, não devo me satisfazer em corrigir somente essa defasagem. 22. Para que a leitura espiritual possa ser feita adequadamente, hoje, e não permaneça apenas uma leitura espiritualista, da qual pode vir muito consolo e vivências “emocionais”, sem transformação da nossa existência, é necessário redescobrir e retomar a dimensão onde direta e imediatamente se dá o espiritual e o espírito, e então exercitar-se longa e tenazmente nessa “área”. Para essa retomada e redescoberta, é útil e necessário entender até certo ponto bem, com precisão, a nossa implicação com o saber científico e o saber usual. Por isso, vamos rapidamente refletir sobre esse tema. Algo sobre o saber científico e o saber usual 23. Muitas de nossas questões, perguntas e respostas podem ser ambíguas. Ambíguo é diferente de equívoco. Este último se dá quando a pergunta não atinge a questão, dela está inteiramente por fora, está de todo enganada. Resposta à questão equívoca não é complicada, pois basta mostrar que a pergunta está por fora da questão. Pergunta ambígua é quando nela estão implícitas, digamos, empacotadas várias perguntas, de diferentes pressuposições, com diferentes níveis de compreensão. E, em geral, esse empacotamento não é percebido, tanto por quem pergunta como por quem quer responder. Há ambiguidade no sentido lato e estrito. No sentido lato é quando a simultaneidade significativa vem do empacotamento de significações diversas, num único termo, por exemplo, o termo entre pode significar: pode entrar e também o permeio existente entre duas coisas. O nosso professor de inglês nos contou que havia uma pessoa que queria mostrar que sabia inglês. Assim, quando alguém bateu à porta, gritou: between! Ambiguidade, em sentido estrito, temos quando o sentido de um termo ou de uma frase nos evoca uma realidade, cujo modo de ser conScintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 155 HERMÓGENES HARADA tém em si profundidade e densidade de ser que não se deixa explicitar num ou mais termos. 24. Há usualmente confusão de compreensão mútua, quando se discute, mormente, entre pessoas estudadas e especializadas. Isto porque cada qual fala e escuta a partir de pressuposições de sua própria disciplina, na qual é especialista. 25. Nessa questão, a maioria de nós pensa mais ou menos o seguinte: a) Certamente, existem colocações e perspectivas que vêm da especialização. A especialização tem a sua terminologia, a sua linguagem própria. Assim, a fala especializada das disciplinas de especialização tem a sua língua própria. Por isso, a economia tem o seu economês. A filosofia tem o seu filosofês. E assim adiante: matematês, sociologuês, psicologuês, pedagoguês, teologuês etc. b) Mas para além ou por cima de todos esses “especializês” há a fala geral, comum, compreensível a todos que falam a mesma língua. Por exemplo, termos como número, globo terrestre, pensamento, idéias, Deus, homem, cachorro, cachorro-quente, quente de mais, átomo, molécula, célula, celular, trânsito, lei de trânsito, multa, guarda de trânsito caolho, papa, Igreja Católica, a espiritualidade franciscana, o Colégio Bom Jesus etc. etc., todo mundo entende. Para compreender todos esses termos, a gente não precisa ser especialista, nem fazer um curso especializado. Basta o uso cotidiano. Mas é ai que nos enganamos redondamente. 26. Em nossas reflexões, distinguimos duas grandes áreas da compreensão da realidade que denominamos compreensão científica da realidade e compreensão pré-predicativa ou pré-científica da realidade. Aqui, podemos relacionar o que acima falamos há pouco no n. 25 b) à respeito da compreensão pré-científica da realidade. Essa compreensão é o que está na linguagem comum, usual do cotidiano, e é entendida por todos, pensamos nós. E há pouco dissemos: Para entender todos esses 156 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE termos, a gente não precisa ser especialista, nem fazer um curso especializado. Basta o uso cotidiano. 27. Aqui reside uma grande ambiguidade, a qual, se não for esclarecida, nos leva à equivocação. É o seguinte: O que de imediato experimentamos como realidade pré-científica e sua compreensão e identificamos com a vida usual, comum, cotidiana de toda a gente, de todo mundo é na realidade um abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser que na perplexidade diante de sua imensidão, profundidade e “abissalidade” denominamos de Vida, Ser. Nós nos movemos, vivemos e somos a partir da Vida e nela, a partir do Ser e nele. Vida e/ou Ser nos antecede, nos abrange, nos impregna, nos compreende; mas a partir de nós não o compreendemos, pois é nele, com ele, a partir dele que tudo compreendemos, tudo somos, a tudo pertencemos. O que sabemos, o que compreendemos, o que fazemos, desejamos e podemos, em resumo, o que somos, é in-stante da entoação desse abismo da possibilidade de ser. A nossa percepção desse nosso situar-se a partir de e na Vida, capta a Vida e/ou o Ser como Nada (Abismo), Escuridão, Simples Fato de ocorrer, Algo que sempre de novo nos escapa e se nos retrai. O que o ser humano é no fundo dele mesmo é ser percepção desse abismo da possibilidade de ser, chamado Vida e/ou Ser, é ser percutido pelo toque desse abismo e repercutir como eclosão cada vez nova de um mundo. Essa disposição de ser passagem da possibilidade para a realização, cada vez como surgir, crescer e consumar-se de um mundo, os gregos a denominavam de psyché; e a possibilidade ou a dinâmica de receber o toque do abismo insondável da possibilidade insondável de ser e se adentrar nesse abismo, i.é, nele se abismar chamavam-na de nõus; e a concreatividade de conascer e se constituir como mundo e ser-no-mundo, chamavam de lógos. Mais tarde psyché foi posicionada como alma; nõus como espírito e lógos como razão. 28. Tudo quanto vem à fala e vem a si e se constitui como entonação do abismo, uma vez surgido do abismo, se constitui como mundo, se Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 157 HERMÓGENES HARADA estabelece como uma realização da realidade e se firma como posição ou pré-suposição. 29. Pré-suposição assim se firma e se coisi-fica como fundamento, como base de todo um sistema de explicitação do que ali jaz contido como fundo do fundamento. As ciências positivas erguem o seu edifício a partir e sobre tais pré-suposições ou fundamentos coisificados. O nosso saber pré-científico, parte de tais posições das ciências, as aprofunda, as “des-constrói”, afundando-as para dentro do abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser. 30. Há várias modalidades de adentrar-se na pais-agem dessa dimensão-matriz pré-científica, que alguém como Antoine de SaintExupéry chama de Terra dos Homens. Só que, a partir do saber científico, essa dimensão-matriz pré-científica somente aparece à raiz de suas pressuposições fundamentais como terra inculta, ainda não suficientemente evoluída, dimensão irracional, popular, mítico, metafísico, como “nuvens do não-saber”. 31. É somente quando a existência humana adentra o toque desse não-saber que começa a habitar a Terra dos homens. A coragem de ser à luz das nuvens do não-saber, da assim denominada “douta ignorância”, i. é, de ser psyché, nõus e logos, era chamada pelos gregos de virtude dianoética. A virtude dianoética e o não saber 32. Dizendo-o assim de modo banal, virtude dia-noética é a virtude intelectual. Usamos o termo grego, porque a autocompreensão do termo intelectual, hoje, está bastante defasada. Mas para compreender com precisão o que é dianoético, comecemos com essa compreensão banal usual para ir aos poucos adequando a nossa compreensão à dinâmica dianoética. 158 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE 33. Virtude dia-noética é o que usualmente denominamos de vigor, força da inteligência. 34. Vigor, força da inteligência é algo de grande importância para uma instituição, cuja missão é ensino, aprendizagem, pesquisa e investigação. Por isso, a nossa pré-compreensão ou pré-conceito do que seja vigor ou força e inteligência não nos pode ser indiferente, neutro e óbvio-geral. Todo o ingrediente de dogmatismo, por menor que seja, aqui nesse ponto, pode se tornar fatal para o ser do progresso e desenvolvimento humano, conforme o que observa Sto. Tomás de Aquino no seu famoso opúsculo De ente e essência, a saber, que um pequeno erro no início se torna um grande no fim1 (cf. citação direta). 35. O pequeno erro, que no fim se torna grande, no nosso caso, consiste em que, para nós, a compreensão do que seja a excelência do vigor da inteligência está se tornando uniforme, bitolada e unidimensional. E esclarece-se isso, tomando as ciências positivas como modelo do saber verdadeiro (certo, seguro), e mormente, a modo de ciências naturais. Verdadeiro, a saber, assegurado, certo, objetivo, portanto, real. 36. Essa unilateralidade fez com que considerássemos um “tipo” de racionalidade como critério de cientificidade e racionalidade como tal; reduzindo todo outro modo de saber e conhecer ao reino do saber subjetivo, vivencial, instintivo-espontâneo irracional. Com isso, a compreensão do que seja vigor da inteligência se tornou defasada, e, com isso, começou a proliferar e a se exacerbar a “cultura” toda própria, astênica, do racionalismo e espiritualismo e sentimentalismo esteticista. 37. Com isso, o que a grande Tradição do Ocidente denominou e experimentou como psyché – alma, nõus – espírito, lógos – razão foi 1 “Por que um pequeno erro no princípio é grande no fim, segundo o Filósofo no primeiro livro do Céu e do Mundo...” (TOMÁS DE AQUINO, De ente et essentia, edição latim-alemã, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1980, p. 15). Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 159 HERMÓGENES HARADA reduzido à energia bio-neuro-física; e as três grandes fontes e vigências da criatividade humana, a saber, crer (religião), poetar (arte) e pensar (filosofia), se defasaram como espiritualismo, esteticismo e cientificismo. 38. Vivemos, nos movemos e somos numa grande entropia do espírito (psyché, nõus, logos). Essa entropia epocal é chamada muitas vezes de esquecimento; ou também de ocultamento, ou mesmo, de retraimento. 39. Esquecimento, ocultamento, retraimento do espírito é epocal, marca a nossa época, aponta para a nossa época, como sinal dos tempos. 40. Na história da humanidade, o que marca de modo decisivo e fundamental a inovação e a transformação do seu destinar-se, chamase epocal. A palavra epocal vem do grego epoché, que significa parada, suspensão a modo da contenção de um movimento ou impulso. O verbo do qual vem a epoché é epéchein, que por sua vez significa ter, manter, colocar sobre; segurar, estendendo em direção a; alcançar, estacionar, ter uma estância, demorar; parar, impedir, manter-se contido, conter-se, hesitar; estender-se sobre, expandir, avançar sobre; ater-se a, assumir, tomar conta de. Todas essas significações, aliás, afins entre si, se referem de alguma forma a momentos, aspectos da suspensão contida na tensão do ponto de salto, no instante da eclosão do novo mundo. É nesse instante que se dá a decisão criativa do todo que se deslancha como real possibilidade do que permanece de próprio do novo mundo. É dessa suspensão dinâmica de concentração que surge, cresce e se consuma a nova possibilidade radicalmente outra, mas longamente preparada silenciosamente no subterrâneo da época anterior. Esse concentrarse no ponto de salto e o início do novo mundo, no entanto, se dão na atualidade presente, não, porém, na superfície do tempo atual, onde o público e a sociedade estão tomados de anseios, inquietações, confusões acerca dos temas fundamentais da vida, ameaçados por infindas crises, convulsões, guerras, e-versões de costumes, de moral, por consumismo e perda de identidade humana; mas bem retraído da pu- 160 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE blicidade, bem no fundo do subterrâneo do tempo presente na tenaz e silenciosa labuta do pensar. 41. Esse modo de ser do Historiar-se da Humanidade chamada epoché, época, epocal se caracteriza como tempo de ambiguidade, que é interpretada como confusão, equivocação. Uma dessas ambiguidades epocais que acontecem na instituição do saber, aprendizagem, pesquisa, portanto, na escola, na formação humana é em referência à relação entre as disciplinas do ensino. A seguir, vamos dar um exemplo dessa equivocação que no fundo é ambiguidade epocal. 42. O exemplo trata da relação entre ciência chamada ciências positivas e ciência chamada filosofia. Assim, muitas vezes, circula certo equívoco na compreensão da contribuição da filosofia às ciências positivas. E isto, no meio de nós todos, tanto na compreensão usual da nossa vida cotidiana, nos seus afazeres, como, também, na compreensão acadêmica, especializada, principalmente quando o especialista é mais funcionário e usuário do status quo do saber padronizado, oficializado, do que alguém doado à busca da verdade em si e como tal. E isso vale, mormente, para a própria filosofia. O equívoco consiste em se representar a contribuição da filosofia como fundamentação positiva do saber das ciências positivas. É que filosofia, no seu ser, não é um saber positivo, nem positivamente sua fundamentação. Num sentido todo próprio, para ser determinado mais adiante, a filosofia mais afunda do que fundamenta, mais nadifica do que positiva. Talvez seja nesse sentido que Nietzsche diz do filósofo no aforismo …..: Um burro, pode ele ser trágico? Carregar um peso que não pode suportar, nem lançálo para fora de si (Nietzsche, Götzen-Dämmerung). 43. Tentemos precisar bem em que consiste esse mais afundar do que fundamentar; mais nadificar do que positivar. Fundamentar significa dar um fundamento, uma base, algo como uma laje firme e fixa. Afundar significa afundar, ir à pique. Aqui no ir Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 161 HERMÓGENES HARADA à pique, afundar, devemos evitar de representar esse movimento de afundar como assentar-se na base fixa, no fundamento, mas sim perder-se no abismo insondável e inesgotável, sem fundo. Quando dizemos aqui sem fundo, é necessário cuidar para não fixar a representação do espaço vazio. Pois, com abismo insondável e inesgotável, sem fundo não se está apenas dizendo a negação da base e fundamento a modo de fixação, mas está-se acenando para a plenitude toda própria, inteiramente simples, total única e una, a qual na perplexidade diante da impossibilidade de dizê-lo, dizemos Ser, Nada, Vida. Mas em assim o dizendo, na perplexidade e impossibilidade de dizer, poder, querer, fazer e ser essa “plenitude”, ela se nos desvela, e nesse desvelar-se se retrai como ab-ismo (ab-imo) próximo de nós, mais próximo de nós do que nós a nós mesmos, nos impregna em todas as fibras das articulações de tudo que somos e de tudo que não somos nós mesmos. Essa plenitude toda própria, dita Ser, Nada Vida, novamente, não deve ser representada como algo místico, uma divindade, um vazio cósmico, um ente supremo transcendente, metafísico, ou um “empírico físico matemático”, mas como o não-saber, pré-sente, ora como transparência do óbvio e-vidente, sereno e imperceptível, ora como escuridão opaca e impenetrável, qual paredão da ignorância, ora como enigmática profundidade insondável, em suma, como a amplidão, fundura e dureza da factualidade presente em toda parte como o a-priori realidade. Certamente, talvez fosse útil, aqui, recordar novamente a necessidade de precaução em não confundir esse a-priori realidade com o caótico e irracional. Isso porque esse pré-vio do a-priori realidade é anterior ao modo como aparece, pois ele não é algo que aparece saindo por de trás ou do fundo de um outro algo que ali está ou aparece, mas é a pré-sença retraída que tudo impregna como en-toação de tudo quanto é e não é. Desse modo, o “quê” assim tudo impregna e tudo envolve, na precisão da sua diferença que constitui a sua identidade, 162 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE não é um outro ente do que o ente a que impregna e envolve, mas é o ente ele mesmo, sua vigência, seu ser, sua essência, enquanto ente, quer dizer, em sendo. Aqui, o “saber isso”, ou “disso”, o conhecer não é outra coisa do que contato imediato e simples, “corpo a corpo”, de “corpo e alma”, “pele a pele” em sendo. O verbo ser, o é, não é ativo nem passivo, não tem conteúdo, e, segundo Kant, é pura posição. Só que quando nós dizemos hoje, pura posição, passamos por cima da palavra pura e pensamos: aqui se trata da ação pura, maciça, densa e volumosa de pôr, colocar, posicionar algo. Com isso pura adquire a conotação de densidade, de volume, atribuída ao conteúdo, ao algo, a “o quê” do objeto posto. O pôr é compreendido a partir de “o que é posto”. Assim, a posição não é captada como pura posição, apenas posição, posição nua e crua, mas como “euponhoobjeto” (sujeito empírico). À pureza da posição, somente se faz jus se posição significa condição da possibilidade de posicionamento de algo como objeto pelo eu-sujeito. A pura posição está em todos os elementos que constituem o “todo” do “sujeito empírico” não como um dos elementos, a modo empírico, mas transcendendo a todos eles, não, porém, constituindo um algo superior, fora da série, mas como que constituindo “pregnância”, “plenitude” de ser onipresente em toda parte, lá onde acontece o ente, ou o em sendo. Essa presença que não aparece, por não ser algo, mas tudo fazer aparecer, qual espaço livre de ressonância, qual tonalidade das tonâncias de todos os sons, é o apriori realidade, acima insinuado, o abismo insondável e inesgotável, fundo sem fundo da possibilidade de ser. É o não-saber, a escuridão que se abre à raiz de toda e qualquer posição e pressuposição, seja em que nível e em que dimensão do ente se achar. A assim chamada contribuição da filosofia às ciências positivas não consiste, portanto, em embasar as posições das ciências positivas numa posição mais vasta e profunda, visto ser considerada um saber mais profundo e mais fundamentando, mas em reconduzir primeiramente Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 163 HERMÓGENES HARADA a si mesma, em todas as suas posições, e com isso também as pressuposições das ciências positivas, ao toque da percussão do abismo da possibilidade de ser, que se recolhe à raiz de toda e qualquer posição e pressuposição, como abertura ao não-saber, afinado ao abismo da plenitude insondável e inesgotável do nada ou da possibilidade de ser. 164 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011 TRADUÇÕES AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS... AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS, ISTO É, AS CONSIDERAÇÕES QUE ALIMENTAM O ENTENDIMENTO E O AFETO E, PRIMEIRAMENTE, AS QUE ALIMENTAM O ENTENDIMENTO * S. Boaventura Sumário: Introdução; repetição, 1. – Parte I: As teorias que consistem nas considerações das reflexões salutares em geral. Estes frutos alimentam o intelecto e o afeto. O pão de muitos é insípido, 2. – Esta refeição é indicada na Escritura, 3-4. – A alma na qual está plantada a Escritura é o paraíso, é o jardim fechado e a fonte selada, 5. – Parte II: A refeição do intelecto em particular. O que é a alma sem o conhecimento da verdade; ela necessita de objeto que dê firmeza aos pensamentos instáveis, 6. – A Escritura mostra isso, 7. – Ela ilumina o intelecto por doze aspectos, 8. – Primeiro, por dentro, pelos espetáculos internos; em segundo lugar, por fora pelos exemplos propostos, 9. * Texto latino das Opera omnia Sancti Bonaventurae, Edição de Quaracchi, Editio Maior, vol. V, 1891, pp. 329-449. A Colação XVII está na p. 409-414; a Colação XIX, p. 419-424. O mesmo texto é usado também para a edição Opere di San Bonaventura, VI/1, Sermoni Teologici/1, Città Nuova Editrice, Roma, 1994. Colação XVII, p. 310325 e a Colação XIX, p. 344-359. Esta última edição é bilíngue: traz o original latino da Edição crítica de Quaracchi (citada acima) com tradução italiana, feita por Pietro Maranesi. A tradução dos textos aqui é feita por Fr. Ary E. Pintarelli. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011 167 S. BOAVENTURA – Em terceiro lugar, por cima, pelas promessas divinas, 10. – Em quarto lugar, por baixo pelos tormentos do inferno, 11. – Em quinto lugar, de frente, pelos preceitos que dirigem, 12. – Em sexto lugar, por trás, pelos juízos rigorosos, 13. – Em sétimo lugar, à direita, pelos consolos severos, 14. Em oitavo lugar, à esquerda, pelos castigos benignos, 15. – Em nono lugar, pelo contrário, mostrando os exércitos da tríplice guerra, 16-18. – Em décimo lugar, ao redor, mostrando ajudas de todos os lados, 19. – Em décimo primeiro lugar, à distância, pelos sinais das doze figuras em todas as criaturas, 20-24. – Há perigo para o teólogo na demasiada investigação das coisas naturais, 25. – Em décimo segundo lugar, de perto, pelos dons das graças; o duplo conhecimento: exterior e interior, 26. –A respeito destes doze mistérios existe tanto a árvore da vida como a árvore da ciência do bem e do mal, 27. – Epílogo sobre o tempo futuro, quando não haverá defesa pela razão, mas pela autoridade, 28. 1. A terra produziu erva verde etc. (Gn 1,12). Foi dito que a visão da inteligência ensinada pela Escritura trata de três coisas: das inteligências espirituais, que se compreendem pela reunião das águas; das figuras sacramentais, representadas pela germinação das ervas e das árvores; pelas teorias multiformes, mediante a multiplicação das sementes e a nutrição das árvores. Estas teorias consistem nas considerações dos tempos que se sucedem, que são como que sementeiras e em correspondência entre si; as outras teorias consistem nas considerações dos alimentos salutares, porque não só de pão vive o homem (Mt 4,4). O homem deve considerar de que se alimenta, isto é, da palavra da Escritura; por isso, é uma árvore que produz fruto (Gn 1,12). Com efeito, o intelecto necessita de alimento, de que necessita o afeto. 2. Em primeiro lugar, deve-se falar da refeição do intelecto. Mas, como diz o Apóstolo: O agricultor que trabalha deve ser o primeiro a colher os frutos (2Tm 2,6); porque é necessário que o pregador primeiramente se encha e se adoce e depois proponha aos outros. Todavia, 168 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011 AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS... muitos querem ser vistos e ouvidos como Profetas, mas seu pão ou seu alimento é insípido, mal cozido e frio, e retêm o povo e pouco progridem. 3. Deve-se notar que assim como o fruto agrada à vista e ao gosto, todavia agrada à vista principalmente por sua beleza e formosura, e ao gosto por sua doçura e suavidade, da mesma forma também estas teorias alimentam o intelecto por sua formosura e o afeto por sua suavidade. – Isso é indicado pela Escritura quando diz: Ora, desde o princípio, o Senhor Deus plantara um jardim de delícias, no qual pôs o homem etc. (Gn 2,8). Isso é dito como recapitulação depois do sétimo dia, porque esta plantação foi feita no terceiro dia. 4. E continua: E fez brotar da terra toda a sorte de árvores de aspecto atraente e saborosas ao paladar: a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal (Gn 2,9), para alimentar o intelecto por sua formosura e o afeto pela suavidade. A realização, porém, estava na árvore da vida, contanto que se precavesse da árvore da ciência. Portanto, a terra é a Escritura que produziu toda a espécie de árvores de aspecto atraente quanto ao intelecto, e saborosos ao paladar quanto ao afeto, isto é, produziu multiformes teorias que agradam e que alimentam. No paraíso celeste não existe plantação senão das razões eternas; e embora ali exista alimento proveniente das predestinações de todos os Santos, todavia, gozarei sobretudo pela minha predestinação; e a isso alude o Salvador quando diz: Alegrai-vos porque vossos nomes estão escritos no céu (Lc 10,20). – Paulo pôde falar do paraíso celeste, pois foi arrebatado até o terceiro céu (2Cor 12,2); nós não o conhecemos, e só falamos do terrestre. 5. Mas a alma é o paraíso, na qual foi plantada a Escritura e possui admiráveis suavidades e belezas. Por isso diz o Cântico dos Cânticos: És um jardim fechado, minha irmã, minha esposa, um jardim fechado, uma fonte selada. Tuas plantas formam um paraíso (Ct 4,12-13). A alma é o jardim, e nela estão os mistérios sacramentais e as inteligênciScintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011 169 S. BOAVENTURA as espirituais, onde brota a fonte das emissões espirituais; mas está fechado e a fonte selada, porque não está aberto aos imundos, mas àqueles dos quais se diz: O Senhor conhece os seus (2Tm 2,19). A sabedoria eterna ama este jardim e cuida dele; por isso diz-se no Eclesiástico: Como um canal saído do rio, eu saí do paraíso (Eclo 24,30). Aquele que planta todas as coisas irrigou este horto, mas a plantação que ele não planta, será erradicada: Toda planta que meu Pai celeste não plantou, será arrancada pela raiz (Mt 15,13). E continua: Eu disse: Regarei as plantas do meu jardim, saciarei de água os frutos do meu prado (Eclo 24,31). Ora, rega com o sangue (cf. Hb 9,19) com o qual foi aspergido o livro e todo o povo; rega também com a efusão do Espírito Santo que se origina dele, efusão presente na Escritura e que encontramos nela. Portanto, estas são as árvores belas à vista e suaves ao paladar, por causa dos frutos belos e doces. 6. Devemos falar sobre o alimento do intelecto. Com efeito, assim como o corpo sem alimento perde a força, a beleza e a saúde, da mesma forma a alma sem o conhecimento da verdade se entenebrece, torna-se enferma, disforme e instável em tudo; portanto, é necessário que seja alimentada. Assim acontece que quando a mente é errante, não tendo alimento, desvia-se continuamente e é instável. Por isso, é dito: Jerusalém cometeu um grande pecado, por isso tornou-se instável (Lm 1,8) e assim, expulsa do paraíso, anda errante e dá tudo o que tem de precioso em troca de alimento, para sustentar a vida (Lm 1,11). Por isso, esta paixão é miserável. Por causa disso nada é mais sadio do que fixar os pensamentos, para que não descambem para o mal. – Por isso, João Cassiano dirigiu-se com muitos outros a um santo Padre e o interrogou a respeito da instabilidade dos pensamentos, dizendo que em nada podia fixar o intelecto1. E aquele respondeu: Se alguma vez tinham feito versos, e se então pensavam neles. Responderam que es1 Cr. CASSIANO JOÃO, Collationes, 1, c. 16, Testi patristici 155, Città Nuova Ed., Roma, 2000, p. 85. 170 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011 AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS... tavam tão imersos que com dificuldade podiam pensar em outra coisa, a ponto de refletir até dormindo. Ele disse que aquilo era causado pelo costume. Por isso, é preciso acostumar-se a alguma coisa que, quando vier à mente, não seja má. 7. Ora, esta é a Escritura, onde se encontra não uma coisa, mas muitas, nas quais existe prazer espiritual; e assim não sairemos do jardim do paraíso, mas a alma o cultiva e o guarda (cf. Gn 2,15) e dela [da Escritura] faz para si um pequeno e belo jardim. – Só nesta ciência existe prazer, não nas outras. O Filósofo afirma que é um grande prazer saber que o diâmetro é assimétrico ao lado; que este prazer seja seu e se nutra dele2. 8. Da Escritura, porém, sai uma certa luz ou iluminação para o intelecto unido à imaginação, para que não seja captado pelo sábio senão olhando em doze direções, isto é, para dentro, para fora, para cima; para baixo, para frente, para trás; para a direita, para a esquerda; de frente, ao redor, de longe e de perto. 9. Com sua produção de brotos, a Escritura ilumina [o intelecto] para dentro mediante espetáculos internos; de fato, [a Escritura] propõe nobres espetáculos espirituais que, de modo especial, são as raízes da fé; [ilumina] a partir de fora, mediante os exemplos extrínsecos, de que toda a Escritura está cheia. Se queres um exemplo de paciência, olha para Jó e Tobias; se de magnanimidade, olha para Davi contra Golias e para Judas Macabeu; se um exemplo de fé, olha para Abraão e para a Virgem gloriosa, cuja fé supera a de Abraão. Com efeito, Abraão acreditou que podia ter um filho de uma anciã estéril (cf. Gn 17,16-17; Hb 11,8-10); Maria, porém, acreditou que uma Virgem conceberia por obra do Espírito Santo (cf. Lc 1,38); e não teria concebido se não tivesse acreditado. Se queres um exemplo de caridade, 2 ARISTÓTELES, Tópicos, I, c. 15 (106b 39-40). Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011 171 S. BOAVENTURA olha para Moisés, que disse: Perdoa-lhes esta culpa, ou risca-me do livro que escreveste (Ex 32,32). Se queres um exemplo de misericórdia, lê no Eclesiástico: Estes são varões de misericórdia, cujas obras de piedade não foram esquecidas (Eclo 44,10). Se queres um exemplo de justiça, de fortaleza, de prudência, de pureza, de qualquer virtude honesta, a Escritura te propõe exemplos. Já que a virtude consiste em ações particulares, não basta uma regra diretiva interior se não houver um exemplo particular; e assim, a Escritura coloca os dois. Contra a ira, deu uma regra: A resposta branda aquieta a ira (Pr 15,1); veja o exemplo de Abigail, que quebrou a ira de Davi (cf. 1Sm 25,14-35). 10. E mais, a Escritura ilumina para cima mediante as promessas divinas, pois ela ensina sobre as coisas que estão acima. Por isso, o Apóstolo afirma: Porque sabemos que, ao se desfazer a tenda que habitamos – nossa casa terrestre – teremos nos céus uma casa preparada por Deus e não por mãos humanas, uma casa eterna (2Cor 5,1); e o Salvador diz: Na casa de meu Pai há muitas moradas (Jo 14,2); nos Salmos se diz: Os filhos dos homens refugiam-se à sombra de tuas asas, saciam-se da abundância de tua casa e lhes dás a beber da torrente de tuas delícias, porque contigo está a fonte da vida, e através de tua luz veremos a luz (Sl 36,8-10); e a palavra do Apocalipse: O cordeiro que está no meio do trono os apascentará e guiará às fontes de água da vida (Ap 7,17); e no Salmo: As delícias estão à tua direita até o fim (Sl 16,11). Portanto [a Escritura] nos propõe as promessas divinas. 11. Além disso, a Escritura ilumina para baixo, propondo os tormentos do inferno. Diz o Salmo: Sobre os ímpios fará chover armadilhas, fogo, enxofre e como porção de sua taça terão um vento causticante (Sl 11,6); e o Apocalipse: E sua parte no tanque ardente de fogo e enxofre (Ap 21,8). E a fumaça de seu tormento sobe pelos séculos dos séculos (Ap 14,11). Essas coisas são propostas pela Escritura desde o início, onde se diz que as trevas cobriam a face do abismo (Gn 1,2), até o fim. – Portanto, a Escritura propõe espetáculos internos, exemplos externos, promessas celestes e suplícios do inferno. 172 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011 AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS... 12. Se estas coisas não são suficientes para ti, mas queres sair e procurar o alimento do intelecto em outra parte, dar-te-á outras árvores, outros frutos, com os quais poderás te alimentar. A Escritura ilumina para frente mediante preceitos diretivos; para trás, mediante juízos duros; para a direita, mediante consolos severos; para a esquerda, mediante castigos doces ou benignos. – Com efeito, é preciso ter uma luz diante de si, pois o preceito é uma lâmpada e a lei, uma luz (Pr 6,23); ela dirige para o céu, e por isso diz: Se quiseres entrar na vida, observa os mandamentos (Mt 19,17), aos quais se acrescentam os conselhos (cf. Mt 19,21); e a Escritura nos propõe isso em toda parte. Por isso, no salmo se diz: Felizes os de conduta íntegra (Sl 119,1) e: Mostra-me, Senhor, o caminho de tuas prescrições (Sl 119,33) etc., e em cada versículo faz-se menção do mandatos, sob o nome de lei, ou de testemunho, ou de palavra, ou de qualquer outro termo equivalente. Por isso, também para os Hebreus todos os versículos de um octonário iniciam pela mesma letra, coisa que não pôde ser observada entre nós, assim que as vinte e duas letras correspondem aos vinte e dois octonários e cada um tem oito versos. Por isso, também Agostinho ficou impressionado com tanta identidade; e todavia, nisso existe uma grande ciência e uma admirável variedade, pois o próprio Agostinho, uma vez, viu uma belíssima árvore que tinha vinte e dois ramos e cada um tinha oito raminhos dos quais brotavam gotas dulcíssimas. E compreendeu que aquela árvore era o Salmo: Felizes os que conduta íntegra. Por isso, a meditação da lei é sumamente necessária; e o Salmo diz: Feliz o homem que não segue o caminho dos ímpios, mas sua vontade está na lei do Senhor. Ele será como a árvore que está plantada junto às correntes das águas (Sl 1,1-3). E no Eclesiástico: Não sejas curioso nas muitas obras suas, mas pensa sempre naquilo que Deus te mandou (Eclo 3,22). 13. Além disso, ilumina para trás mediante duros juízos. Com efeito, Deus sempre fez duros juízos sobre as transgressões dos preceitos, como com Lúcifer, com Adão, com sua mulher, com Caim, com Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011 173 S. BOAVENTURA os luxuriosos sobre os quais veio o dilúvio, com os soberbos que edificaram a torre, com os Cananeus, com Israel. De maneira semelhante, o Novo Testamento está cheio de juízos. Mas o juízo está atrás e o preceito, na frente. O juízo tem relação com o preceito; se o transgredires, será punido; se não seguires a luz que dirige, a espada te ferirá; diz o Salmo: Se não vos converterdes, [Deus] afiará sua espada, pois retesou e apontou seu arco, e colocou nele dardos de morte, tornou abrasadoras as suas setas (Sl 7, 13-14). O arco é o juízo da Escritura; a dureza da árvore é o Antigo Testamento; a corda que dobra a árvore, o Novo Testamento; os juízos mais leves e mais duros são as flechas. Diz o Salmo: A lei do Senhor é perfeita, reconforta a alma. O testemunho do Senhor é seguro, torna sábio o homem simples. Os juízos do Senhor são verdadeiros, são todos justos (Sl 19,8.10) etc. 14. E mais, a Escritura ilumina para a direita mediante severos consolos. Não sem motivo são chamados de severos consolos e benignos flagelos, porque os consolos são perigosos. Veja Adão, Saul, Salomão, o idólatra Jeroboão e o primeiro Anjo; para todos eles os consolos temporais e os triunfos foram ocasião de ruína. Mas são ocasião de ruína quando agradam; porém, quando não agradam, o homem não se preocupa. Por isso, Cristo não quis ter um consolo temporal, porque cairão mil a teu lado e dez mil à tua direita (Sl 91,7) etc. Alguém deve querer estar do lado em que é menor o número dos que caem. 15. E ainda, a Escritura ilumina para a esquerda mediante flagelos benignos. Por isso, o Senhor permitiu que o justíssimo Abel fosse morto. Veja Noé, que durante cem anos fabricou a arca e lá pôs tudo o que possuía e todo o mundo zombava dele. – E aqui acrescentou que o rei da França não poderia hoje fazer tal obra se ela for calculada segundo a medida dos côvados geométricos. – O mesmo se observa em Abraão, Isaac e Jacó, que foram peregrinos; e José, que não pudera ser exaltado se antes não ocorresse a venda, o cárcere e a humilhação. Veja Moisés, que Deus devia colocar à frente de todo o mundo, como 174 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011 AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS... foi humilhado: por quarenta anos apascentava o rebanho de um sacerdote (Ex 3,1). Igualmente Davi, enquanto esteve no sofrimento, foi ótimo e chegou ao reino mediante as tribulações; e depois, quando esteve na prosperidade, cometeu muitos pecados (cf. 1Sm 24,5-8; 2Sm 6,21-22; 11,2-4.14-15). Da mesma forma Ezequias (cf. Is 38, 39), foi muito humilde na enfermidade, mas depois foi soberbo com a chegada dos embaixadores dos babilônios. Veja o pobrezinho Elias (cf. 1Rs 17,1-16), que não tinha o que comer a não ser aquilo que lhe trazia o corvo e aquela pobre viúva; mas ele fechava o céu. Veja João Batista (cf. Lc 1,80), que permaneceu no deserto por sete anos e ali dormia sobre pedras. O mesmo se diga de Cristo e dos Apóstolos. De maneira semelhante diz Paulo: Foram apedrejados, foram serrados, foram tentados, foram mortos a fio da espada, andaram errantes (Hb 11,37) etc. Portanto, os flagelos são suavíssimos. Pois ou Deus castiga ou não. Mas ele castiga a quem recebe como filho (Hb 12,6). Esta verdade está provada mediante fatos particulares; portanto, deve ser aplicada universalmente. 16. E a Escritura possui também árvores de que se alimentar. Ela ilumina mediante as coisas que são opostas. Com efeito, ela nos mostra as infinitas batalhas que estão contra nós, ora por meio de sete príncipes (Est 1,14), ora por uma guerra, ora por muitas. Esta guerra dura do dia em que Miguel e seus Anjos lutavam contra o dragão (Ap 12,7). Ora, ameaça-nos uma tríplice guerra: a guerra doméstica, a guerra civil e a campestre. – A primeira é com a carne, que tem muitas frentes; esta serva está sempre pronta a abrir, como Eva. Por isso é dito: Contra aquela que dorme em teu seio, guarda as portas de tua boca (Mq 7,5). 17. E mais, a guerra civil é a tentação do mundo. Com efeito, todas as criaturas estão na armadilha (cf. Sb 14,11), porque a beleza da criatura atrai os homens. Por isso diz: Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? (Ecl 1,2-3). Vão e inutilmente é feito se nada sobra ao homem na morte e, assim, tudo é vaidade; e no Salmo se diz: Desvia meus olhos, para que não vejam a vaidade (Sl 119,37). Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011 175 S. BOAVENTURA 18. Além disso, existe a guerra campestre, travada com os demônios, que atacam dia e noite, ora exaltando para que presumamos, ora mediante a consideração da ciência, ora mediante a consideração da santidade; ora tornam o homem iracundo e assim diabólico e cheio do espírito de malignidade; e o fazem cair na tristeza e no desespero e o mesmo se diga de outros aspectos. A Escritura ensina a fugir destas coisas. Com efeito, qual a ciência que ensina a fugir das potências contrárias? Nenhuma. 19. E mais, a Escritura ilumina ao redor, de modo que não se precisa fugir, porque em toda parte temos um refúgio. Com efeito, temos o próprio Senhor e os Anjos ao nosso redor; por isso, diz-se no Salmo: Montes estão em volta de Jerusalém, e o Senhor envolve seu povo (Sl 125,2). Por isso, ao servo de Eliseu que gritava por causa dos ladrões da Síria que queriam capturá-lo, Eliseu disse: Senhor, abre-lhe os olhos para que enxergue, e o Senhor os abriu. E eis que o monte estava cheio de cavalos e de carros de fogo ao redor de Eliseu (2Rs 6,17). Também Jacó, temendo seu irmão, viu os Anjos e por isso disse: Estes são os acampamentos de Deus (Gn 32,3). Por isso, diz o Salmo: O Senhor é minha luz e minha salvação; a quem temerei? (Sl 27,1). E em outro lugar: Se o Senhor não estivesse do nosso lado, que Israel o diga (Sl 124,1) etc., até o fim. 20. E mais, ilumina de longe mediante os sinais das figuras; de fato, a Escritura cria figuras de todas as coisas. Ora, todas as coisas que existem no mundo reduzem-se a doze espécies, que são utilizadas pela Escritura e que são sinais longínquos: as formas celestes, as naturezas elementares, as naturezas meteóricas, as naturezas minerais; as naturezas que germinam, que nadam, que voam, que andam; órgãos humanos, forças humanas, obras humanas e artes humanas. 21. Portanto, em primeiro lugar está a forma celeste. Com efeito, a Escritura serve-se de todos os céus e de todas as estrelas; diz o Salmo: Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento apregoa a obra de 176 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011 AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS... suas mãos (Sl 19,2); e o Eclesiástico: O orgulho das alturas é a limpidez do firmamento, e o aspecto do céu é um espetáculo de glória (Eclo 43,1). 22. As formas elementares: o fogo, o ar, a água e a terra; todas são usadas pela Escritura. – As naturezas meteóricas, como a nuvem, a chuva, o orvalho, a neve etc.; utiliza também as luzes que aparecem no céu, os rios e os lagos. – Existem também as naturezas minerais, como os sete metais principais e as pedras preciosas, como a pedra de ônix; lê-se no Gênesis: Lá também se encontra o bdélio e a pedra de ônix (Gn 2,12); e no mesmo lugar: Onde nasce o ouro; e o ouro desse país é ótimo (Gn 2,11-12). E no Apocalipse existem doze pedras preciosas. – Existem também as naturezas que germinam, como as árvores, as ervas, as plantas e as sementes; a Escritura trata das hortaliças, das ervas e das outras coisas que nascem da terra. 23. Há também as naturezas dos que nadam; assim trata do leviatã (cf. Jó 40,20), dos peixes e dos cetáceos. – Há as naturezas dos que voam, como o gavião, a águia, a pomba, o pássaro; e existe um grande mistério, porque só três tipos de voadores são postos no sacrifício (cf. Lv 1,14). Além disso, fala-se de aves que fogem da luz e de aves que amam a luz. – Além disso, fala-se de animais que andam, da serpente e da cobra: Foge do pecado como de uma serpente (Eclo 21,2); como Deus permitiu que a tentação viesse por meio da serpente. Fala-se também das raposas, da cabra, dos porcos, do cervo, do corso, do urso e dos bois. Também não deixa de ser um mistério que somente três tipos de animais que andam eram oferecidos ou sacrificados. 24. E mais, existem as naturezas do homem, de cujos membros a Escritura trata atribuindo-os em parte a Deus e em parte aos Anjos. Por isso, Dionísio mostra o que significam os membros humanos nos Anjos3. – E ainda, existem as forças vegetais, as forças sensíveis, racio3 Cf. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA, De caelesti hierarchia, c. 13, par. 3, PG 3, 302-303. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011 177 S. BOAVENTURA nais etc., todas elas são plenamente usadas pela Escritura. – Além disso, fala-se das obras humanas, como da construção de casas, dos poços, da agricultura e do comércio; e de todas as artes liberais e mecânicas. O teólogo as utiliza ora como aritmético, ora como astrólogo, ora como geômetra; vê-lo-ás ora como reitor, ora como médico. 25. Nesta consideração, existe um perigo, porque é um perigo afastar-se demais da casa da Escritura; com efeito, a criança nunca quer afastar-se muito da casa. Assim, existe um perigo nas ciências, isto é, que [os teólogos] se ocupem tanto nas considerações destas ciências que, depois, não possam voltar para a casa da Escritura, e que entrem na casa de Dédalo, de forma que não possam sair. Afinal, é melhor manter a verdade do que a figura. Se eu visse teu rosto e te pedisse que me trouxesses um espelho claro para ali ver tua face, este seria um pedido tolo. A mesma coisas acontece quanto às Escrituras santas e às figuras das demais ciências. 26. A Escritura ilumina também de perto mediante os dons das graças, que completam todas as coisas que o talento humano não possui. Com efeito, muitos hóspedes da ciência vieram à nossa casa e ao nosso talento; mas em tais coisas o talento deve pôr um fim. Por isso, a Escritura ilumina estas coisas de perto; assim, não é preciso ir longe para a coisa que está perto. Afinal, a Escritura descreve os dons do Espírito Santo de modo completo; em João se lê: Fatigado do caminho, sentou-se Jesus à beira da fonte (Jo 4,6); e continua: Quem bebe desta água, tornará a ter sede; mas quem beber da água que eu lhe der, tornar-se-á uma fonte que jorra para a vida eterna (Jo 4,13-14). – Então, fala-se de uma dupla água; com efeito, é descrito um conhecimento exterior, do qual quem mais beber, mais sede terá; outro interior, do qual se lê: Quem crê em mim, como diz a Escritura, do seu interior correrão rios de água viva. Referia-se ao Espírito que haviam de receber aqueles que cressem nele (Jo 7,38-39). Estas são as águas das fontes do Salvador (Is 12,3), isto é, os conhecimentos das graças que alimentam as almas. 178 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011 AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS... 27. Próximo a estes mistérios está o mistério da árvore da vida e o mistério da árvore da ciência do bem e do mal (Gn 2,9). De fato, quem busca somente o conhecimento, come da árvore da ciência do bem e do mal. E isso é indicado em Isaías: Porque este povo rejeitou as águas de Siloé, que correm em silêncio, e preferiu apoiar-se em Rasin e no filho de Romelias; por este motivo, eis que o Senhor fará vir sobre eles as águas impetuosas e abundantes do rio (Is 8,6-7). E conforme diz Jerônimo, as águas de Siloé correm com grande ruído4; portanto, é claro que ali existe outro sentido. – As águas que correm em silêncio são a Sagrada Escritura, que não pode ser compreendida senão em silêncio; e ali acontece a iluminação. Como sinal disso é dito ao cego: Vai lavar-te na piscina de Siloé, que quer dizer enviado (Jo 9,7). Com efeito, estas águas são obtidas por revelação. Antes, porém, é preciso esfregar os olhos com barro feito de cuspe e pó (cf. Jo 9,6); a saliva é a sabedoria, o pó é a carne de Cristo, o barro é a fé no mistério da encarnação. – Mas os que buscam Rasin e o filho de Romelias são os que buscam as ciências exteriores. E por isso, o príncipe dos Assírios os dominará (cf. Is 8,7); o Senhor o quis. E aqui deve-se notar que os filhos de Israel obtiveram furtivamente os vasos de prata do Egito (cf. Ex 3,22; 11,2; 12,36); e depois, o Senhor não quis mais que eles voltassem para lá. 28. E [Boaventura] disse: Crede-me que ainda haverá um tempo no qual de nada valerão os vasos de ouro ou de prata, isto é, os argumentos; nem existirá a defesa mediante a razão, mas somente mediante a autoridade. Por isso, como sinal disso, quando foi tentado, o Salvador não se defendeu mediante a razão, mas mediante as autoridades (cf. Mt 4,4-10), embora ele conhecesse perfeitamente mediante as razões. E assim indicou o que deveria fazer seu corpo místico na tribulação futura. 4 Cf. SÃO JERÔNIMO, Commentarium in Is. Proph., III, c. 8, PL 24, 119: “Siloé é uma fonte aos pés do Monte Sion, e não derramam águas constantes, mas somente em certas horas e em certos dias, atravessando cavernas e antros saem de uma rocha duríssima e com grande fragor; coisa de que não duvidamos, sobretudo nós que habitamos nesta província”. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011 179 ENIO PAULO GIACHINI 180 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2010 O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER... O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER OS FRUTOS DA ESCRITURA, OU COMO, PELA CIÊNCIA E PELA SANTIDADE, SE CHEGA À SABEDORIA * Sumário: Introdução. Convite a perceber os mencionados frutos da Escritura e a passar da vaidade para a verdade; a dupla passagem, 1. – Abandonada a vaidade, deve-se seguir a sabedoria, que se goza somente em Deus, 2. – O perigo na passagem da ciência das coisas inferiores para a sabedoria que goza as superiores; da ciência deve-se subir para a santidade, como caminho médio para a sabedoria, 3-5. – PARTE I: A ciência e o modo de estudar, que deve ter quatro condições. Destas quatro. Primeiro, a ordem a ser observada no estudo. Existem quatro tipos de escritos, 6. – O primeiro tipo, ou a Sagrada Escritura; sua excelência; como se deve estudar nela, 7-9. – O segundo tipo, ou os originais dos Santos, 10. – O terceiro, ou as Sumas dos mestres, 11. – O quarto, ou a filosofia, 12-15. – A segunda condição, ou a assiduidade, 16. – A terceira, ou a complacência, 17-18. – A quarta, ou a medida, 19. – PARTE II: A santidade como caminho para a sabedoria e a própria sabedoria. Quatro qualidades da vida santa: primeiramente deve ser uma vida timorata, 20. – Em segundo lugar, impoluta, 21. – Em terceiro lugar, religiosa, 22. – Em quarto lugar, edificante, 23. – A sabedoria que é fruto da ciência e da santidade, consiste em quatro * Exaemeron, Colação XIX - terceira visão - sétimo e último tratado. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011 181 S. BOAVENTURA coisas: primeiro, no reconhecimento dos defeitos interiores, 24. – Em segundo lugar, na mortificação das paixões, 25. – Em terceiro lugar, na ordenação dos pensamentos, 26. – Em quarto lugar, na elevação do desejo, 27. 1. A terra produziu erva verde (Gn 1,12) etc. Falou-se dos frutos da Sagrada Escritura. Para estes frutos nos convida a Sabedoria eterna; diz-se no Eclesiástico: Como a videira fiz brotar o encanto, e minhas flores deram frutos de glória e riqueza. Vinde a mim vós que me desejais e saciai-vos de meus frutos (Eclo 24,17.19). Se quisermos passar, é preciso que sejamos filhos de Israel, que saíram do Egito; os egípcios, porém, não passaram, mas foram submersos (cf. Ex 14,26-28). Ora, passam aqueles que põem toda a sua atenção sobre a maneira de passarem das vaidades para a região da verdade. Adão passou da verdade para a vaidade, por isso, diz-se no Salmo: Na verdade, o homem passa como uma simples sombra, é em vão que se afadiga; amontoa riquezas e não sabe quem as desfrutará (Sl 39,7). Como a erva, de manhã floresce e viceja, de tarde murcha e seca (Sl 90,6). Portanto, quando se ama o bem mutável, transitório e vão, então o homem passa e a Sabedoria reprova tal passagem. Esta passagem produz toda espécie de mal. Assim passou Lúcifer, de quem foi dito: De fato, foste precipitado no inferno (Is 14,15). Primeiramente foi lançado pela culpa e, depois, pelo juízo. Assim também agiu Adão; depois que perdeu a árvore da vida, escondeu-se. Com efeito, viu-se despido de todos os bons hábitos e, por causa disso, foi expulso do paraíso (cf. Gn 3,6-7.24). 2. Portanto, a sabedoria e a caridade são os principais frutos; a elas opõe-se principalmente a vaidade. Por isso, no Cântico dos Cânticos, expressa-se a sabedoria amorosa. Afinal, ninguém pode pronunciar as palavras do Cântico dos Cânticos sem a sabedoria e o amor, e também se não se afastar da vaidade. E assim o Eclesiastes precede esse livro; ali mostra a vaidade quando diz: Vaidade das vaidades e tudo é vaidade (Ecl 1,2). Essa afirmação é verdadeira e é provada em todo o livro. 182 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011 O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER... Portanto, é preciso passar de todas as coisas para a verdade a fim de que não exista prazer senão em Deus. 3. Ora, como se há de passar? Todos querem ser sábios e cientistas. Mas logo acontece que a mulher engana o homem (cf. Gn 3,6.12). A sabedoria, porém, está acima porque é nobre; mas a ciência está abaixo, parece bela ao homem e, assim, quer unir-se a ela e a alma se inclina para as coisas cognoscíveis e sensíveis, quer conhecê-las e, uma vez conhecidas, experimentá-las e, consequentemente, unir-se a elas. E assim se debilita, como Salomão, que quis saber todas as coisas e discorreu sobre as árvores, desde o cedro do Líbano até o hissopo (1Rs 5,13); esqueceu-se da coisa principal e assim se tornou vão. Portanto, a passagem da ciência para a sabedoria não é segura; então, é necessário pôr um termo médio, isto é, a santidade. Ora, a passagem é um exercício: a exercitação de passar do estudo da ciência para o estudo da santidade, e do estudo da santidade para o estudo da sabedoria; deles fala-se no Salmo: Ensina-me a bondade, a sabedoria e a ciência (Sl 119,66). Inicia pelo mais alto, porque quereria experimentar quanto é bom e suave o Senhor (Sl 34,9); todavia, não se pode chegar à sabedoria senão pela disciplina, nem à disciplina senão pela ciência: portanto, não se deve preferir o último ao primeiro. Seria mau comerciante quem preferisse o estanho ao ouro. Com efeito, quem prefere a ciência à santidade jamais prosperará. 4. Em A Cidade de Deus, Agostinho1 diz que os Anjos bons ou espíritos chamam-se Anjos, isto é, mensageiros, porque se alegram com a humildade; os espíritos maus chamam-se demônios, isto é, instruídos, porque querem ser chamados a partir de sua altivez. Mas deve-se temer o que diz Jó a respeito de Beemot-Leviatã: Andará por cima do ouro como por cima do lodo (Jó 41,21). De fato, na ciência existe a tentação que facilmente leva à ruína. Daí dizer-se: Sereis como deuses, 1 SANTO AGOSTINHO, De civitate Dei, XV, 23, n. 1, in PL 41, 468. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011 183 S. BOAVENTURA conhecendo o bem e o mal (Gn 3,5). Por isso, alguns querem investigar a respeito dos segredos da natureza, como sobre as realidades contingentes. Quanto aos degraus da soberba, o bem-aventurado Bernardo2 afirma que o primeiro vício é a curiosidade, pelo qual Lúcifer caiu; e também Adão caiu por ele. O desejo da ciência deve ser modificado e a ela deve-se preferir a sabedoria e a santidade. 5. De que maneira, pois, é preciso ocupar-se da ciência, da santidade e da sabedoria? É preciso conhecer, a fim de participarmos dos frutos da sabedoria e podermos entrar pelas portas da cidade; o Eclesiastes diz: O trabalho dos insensatos cansa-os tanto que nem sequer sabem como chegar à cidade (Ecl 10,15), isto é, os que não sabem aplicar-se às coisas que são necessárias. No Gênesis, diz-se que o Senhor Deus tomou o homem e o colocou no paraíso para que o cultivasse e o guardasse (Gn 2,15). – É preciso trabalhar na Sagrada Escritura e exercitar o intelecto. Sêneca afirma: “Encontrei muitos que exercitavam o corpo, mas poucos a inteligência”3. Esta é a exercitação do espírito para a piedade; por isso, diz-se nos Provérbios: Passei pelo campo do homem preguiçoso e pela vinha do homem insensato; e vi que tudo estava cheio de urtigas, que os espinhos cobriam sua superfície e que o muro de pedra estava caído (Pr 24,30-31). Isso acontece quando o homem tem boa disposição e não a exercita, mas ali crescem as urtigas da malignidade e os espinhos da cobiça. A cerca de pedras das virtudes é destruída pela dissipação dos pensamentos; por isso, no mesmo lugar se diz: Prepara teus trabalhos de fora e lavra cuidadosamente o teu campo (Pr 24,27). 6. A maneira de estudar deve ter quatro condições: ordem, assiduidade, complacência e medida. – A ordem é proposta de diversas maneiras pelos vários [mestres]; mas é preciso proceder ordenadamen2 SÃO BERNARDO DE CLARAVAL, De gradibus humilitatis et superbiae, c. 10, n . 28, in PL 182, 957. 3 SÊNECA, Epistula 80. 184 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011 O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER... te, para não tornar secundário o que é principal. Portanto, existem quatro tipos de escrituras, dos quais é preciso ocupar-se de maneira ordenada. Os primeiros livros são as Sagradas Escrituras. Segundo Jerônimo4, no Antigo Testamento existem vinte e dois livros; no Novo Testamento são oito. Os segundos livros são os originais dos Santos; os terceiros, as Sentenças dos mestres; os quartos, os livros das doutrinas mundanas ou dos filósofos. 7. Portanto, quem quiser aprender, procure a ciência na fonte, isto é, na Sagrada Escritura, porque entre os filósofos não existe a ciência que dê o perdão dos pecados; nem entre as Sumas dos mestres, porque eles beberam dos originais e os originais da Sagrada Escritura. Por isso, Agostinho5 diz que ele pode se enganar, como também os outros; mas lá existe tamanha fé que não pode haver engano. E, em Os nomes divinos, Dionísio afirma que “não se deve aceitar nada, senão aquilo que nos é comunicado de maneira divina na Sagrada Escritura”6. – O discípulo de Cristo deve estudar na Sagrada Escritura, como as crianças aprendem primeiro o a, b, c, d etc., depois a silabar, a seguir a ler e por fim o que significa o discurso. De maneira semelhante, na Sagrada Escritura, primeiramente deve-se estudar no texto, tê-lo à mão e compreender “o que se diz mediante a palavra”, não só como o judeu, que sempre o entende em sentido literal. Toda a Escritura é como uma cítara, onde a corda inferior sozinha não faz uma harmonia, mas somente junto com as outras; de forma semelhante, um lugar da Escritura depende de outro, e até, um lugar refere-se a mil outros lugares. 8. Deve-se notar que, quando Cristo fez o milagre de transformar água em vinho, não disse logo: faça-se vinho, nem o fez do nada; mas 4 SÃO JERÔNIMO, In libros Samuel, Praef., in PL 28, 593. 5 SANTO AGOSTINHO, Epistula 82, c. 1, n. 3, in PL 33, 277. 6 DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA, De divinis nominibus, c. 1, par. 2, in PG 3, 614. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011 185 S. BOAVENTURA quis que os servos enchessem os cântaros de água, como diz Gregório7. Literalmente, não se pode dar a razão de ter agido assim; mas segundo a compreensão espiritual, a razão pode ser dada: porque o Espírito Santo não dá a compreensão espiritual se o homem não encher o cântaro de água, isto é, sua capacidade, a saber, o conhecimento do sentido literal, e depois Deus transforma a água do sentido literal no vinho da compreensão espiritual. – Por isso, Paulo foi profundo, porque aprendeu a Lei aos pés de Gamaliel (cf. At 22,3). Daí, quem possui a Escritura é poderoso nos discursos e também belo na palavra. Por isso, o bem-aventurado Bernardo sabia pouco, mas, porque estudou muito na Escritura, falava de modo elegantíssimo. 9. Portanto, primeiramente é preciso que o homem possua a Escritura, não como o judeu, que quer apenas a casca. Por isso, uma vez, um judeu lia o capítulo de Isaías: Senhor, quem deu crédito ao que nós ouvimos? (Is 53,1; Rm 10,16) etc.; e lia literalmente e não pôde ter a concordância nem o sentido; por isso, jogou o livro por terra, imprecando que Deus havia confundido Isaías, porque, conforme lhe parecia, não podia ter certeza do que dizia. 10. Todavia, o homem não pode chegar a esta inteligência por si mesmo, mas por aqueles aos quais Deus a revelou, isto é, mediante os originais dos Santos, como Agostinho, Jerônimo e outros. Portanto, é necessário recorrer aos originais dos Santos; mas estes são difíceis, e então, são necessárias as Sumas dos mestres, nas quais se aclaram aquelas dificuldades. Mas é preciso precaver-se da quantidade dos escritos. Contudo, porque estes escritos trazem as palavras dos filósofos, é preciso que o homem as conheça ou as suponha. – Portanto, existe um perigo ao descer para os originais, porque é bela a linguagem dos originais; a Escritura, porém, não possui um estilo tão belo. Por isso, Agostinho não considera coisa boa que deixes a Escritura e estudes em seus 7 SÃO GREGÓRIO MAGNO, In Ezechiele, I, hom. 6, n. 7, in PL 76, 831. 186 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011 O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER... livros; assim como nem Paulo daqueles que eram batizados em nome de Paulo (cf. 1Cor 1,12-13). A Sagrada Escritura deve ser tida em grande honra. 11. Porém, o maior perigo consiste em descer às Sumas dos mestres, porque, às vezes, nelas há erros; e pensam que compreendem os originais, mas não os compreendem, antes os contradizem. Por isso, como seria tolo quem quisesse permanecer sempre nos tratados e nunca subir ao texto, o mesmo acontece também quanto às Sumas dos mestres. Nelas, porém, a pessoa deve ter o cuidado de sempre seguir a opinião mais comum. 12. O maior perigo, porém, consiste em descer para a filosofia; por isso Isaías afirma: Porque este povo rejeitou as águas de Siloé, que correm docemente, e preferiu apoiar-se em Rasin e no filho de Romelias, por este motivo, eis que o Senhor fará vir sobre eles as águas impetuosas e abundantes, o rei dos Assírios (Is 8,6-7) etc. Não se deve mais voltar para o Egito. – Deve-se ter presente o caso de Jerônimo, que, depois do estudo de Cícero, não sentia gosto nos livros proféticos e, por isso, foi flagelado diante do tribunal8. Mas isso aconteceu por causa de nós; por isso, os mestres devem cuidar de não confiar e apreciar demais os ditos dos filósofos, para que, com esse pretexto, o povo não volte para o Egito ou, por seu exemplo, abandone as águas de Siloé, nas quais está a máxima perfeição, e vá para as águas dos filósofos, nas quais existe o eterno engano. 13. Isso foi indicado em Gedeão, quando aqueles que foram provados nas águas, isto é, os que lamberam as águas como os cães, lutaram e venceram; enquanto que aqueles que, dobrando os joelhos, beberam inclinados, voltaram; e aos que venceram foram dadas trombetas, ânforas e lanternas, e venceram por meio do clamor das trombetas 8 Cf. SÃO JERÔNIMO, Epistula 22, n. 30, in PL 22, 416. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011 187 S. BOAVENTURA e pela explosão das ânforas (cf. Jz 7,4-8.19-25). Estes são os pregadores da Igreja, que tocam a trombeta na pregação. As ânforas são os corpos, as lâmpadas os milagres. Com efeito, quando morreram pela verdade, resplandeceram através dos milagres e venceram os inimigos. Mas aqueles que bebem água com a língua como os cães, que bebem pouca água com a língua, são os que tomam pouco da filosofia; mas os que bebem dobrando o joelho, são os que se dedicam totalmente; aqueles dobram-se a infinitos erros e, assim, fomentam o fermento do erro. Por isso diz Oséias: Repousou um pouco a cidade, depois da mistura do fermento, até que a massa se levedou toda (Os 7,4); e chocam ovos de serpentes, para que daquele que for chocado saia uma cobra (Is 59,5). 14. Considera o caso de São Francisco, que pregava ao Sultão. O Sultão lhe disse que discutisse com seus sacerdotes. E ele lhe respondeu que, partindo da razão, não podia discutir sobre a fé, pois ela está acima da razão; nem partindo da Escritura, porque eles não a aceitavam; mas pedia que fizesse um fogo e ele entraria com eles9. – Por isso, não se deve misturar muita água da filosofia com o vinho da Sagrada Escritura, a ponto de o vinho se tornar água; esse seria um péssimo milagre; e lemos que Cristo fez vinho de água (cf. Jo 2,9), não o contrário. – Daí se conclui que aos fiéis a fé não pode ser provada através da razão, mas pela Escritura e pelos milagres. Na Igreja primitiva, os livros de filosofia eram até queimados (cf. At 19,19). Afinal, os pães não devem ser transformados em pedras (cf. Mt 4,3). 15. Portanto, a ordem é que primeiro o homem estude na Sagrada Escritura segundo a letra e o espírito, depois nos originais e os submeta à Sagrada Escritura; de maneira semelhante, nos escritos dos mestres e nos escritos dos filósofos, mas de passagem e por alto, como se ali não devesse permanecer. O que ganhou Raquel, quando roubou os ídolos de 9 Cf. SÃO BOAVENTURA, Legenda Maior S. Francisci, c. 9, 8.; in Analecta Franciscana I, p. 601; Fontes Franciscanas e Clarianas, Petrópolis: Ed. Vozes, 2004, p. 613. 188 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011 O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER... seu pai? (Gn 31,19). Ganhou tanto que foi mentirosa, fingiu estar enferma e os escondeu sob os arreios do camelo e sentou-se em cima (Gn 31,34); assim aconteceu quando se escondem os livros dos filósofos. Nossas águas não devem descer para o Mar Morto (cf. Js 3,16), mas para sua primeira origem (cf. Sl 114,3). 16. Em segundo lugar, é preciso ter assiduidade. De fato, uma leitura desordenada é um grandíssimo obstáculo, como quem planta ora aqui, ora ali; ora lê um, ora, outro. A divagação exterior é um sinal da divagação da alma; e assim não se pode progredir, porque nada se fixa na memória. A propósito, Gregório apresenta um exemplo: quando um homem vê a face de um homem uma só vez, depois não pode reconhecê-lo perfeitamente, mas quando o vê com frequência, então o reconhece10. Assim acontece com a Sagrada Escritura: porque no início ela possui uma face obscura, depois, quando é vista com frequência, torna-se familiar. 17. Em terceiro lugar, é preciso ter a complacência. Com efeito, assim como Deus relacionou o gosto e o alimento, porque deu sabor ao alimento e discernimento ao gosto; e por estes dois elementos o alimento é incorporado: assim, em primeiro lugar é preciso tomar a Escritura, depois mastigá-la e, por fim, incorporá-la. Para que o homem bebe água turva? Diz Jeremias: E agora, o que vais ganhar indo para o Egito, para beberes água turva? (Jr 2,18). Bebe antes a água salutar, isto é, da sabedoria. 18. Observa que o animal que não rumina é imundo. De fato, o animal rumina porque tem dois ventres: ele traz o alimento à boca, rumina-o completamente e o lança em outro ventre mais profundo. – Lê-se no Salmo: Quão doces ao meu paladar são as tuas palavras: mais que o mel à minha boca! (Sl 119,103). Não ames a meretriz e não 10 SÃO GREGÓRIO MAGNO, Moralia in Iob, IV, pref., n. 1, in PL 75, 633. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011 189 S. BOAVENTURA repudies tua esposa; diz-se no livro da Sabedoria: Amei-a e a desejei desde a minha juventude (Sb 8,2). Não comas as bolotas e as vagens dos porcos (cf. Lc 15,16), para ser suspenso com Absalão pelos cabelos (cf. 2Sm 14,26; 18,9), isto é, por teus afetos. As doutrinas antigas são altas, majestosas, inflexíveis como os carvalhos. Não comas os pepinos do Egito, os porros e os alhos, mas o maná do céu (cf. Ex 16,34; Nm 11,4-9; 21,5); e não tenhas náuseas desse alimento. Não sejas carnal, como os filhos de Israel; eles não experimentam nenhum outro sabor, mas os homens espirituais encontravam toda a suavidade do sabor (Sb 16,20). 19. Em quarto lugar está a medida, a fim de não se querer saber acima das forças, mas saber com sobriedade (Rm 12,3). Por isso, o sábio diz: Se achaste mel, come o que te basta, para não suceder que, depois de farto, o vomites (Pr 25,16). Não pretendas mais do que teu talento é capaz de elevar-se, nem permaneças mais baixo. Por isso, para significar isso, como diz Dionísio, os serafins voavam com as asas do meio11, para que o homem não permaneça aquém do que pode nem suba além do que pode; assim como aqueles que cantam além de suas forças, jamais produzirão uma boa harmonia. – E Agostinho12 afirma que aqueles que não estudam de modo ordenado são como pequenos potros, que correm ora para cá, ora para lá; mas o jumento, com seu andar lento, caminha muito, porque caminha de modo regular; assim alguém que não é dotado, mas que sabe ordenar seu estudo, tem o mesmo resultado que um inteligente que estuda sem ordem. 20. Mas quem quer progredir nesse estudo, é preciso que tenha a santidade e possa aplicar-se a uma vida timorata, impoluta, religiosa e 11 DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA, De ecclesiastica hierarchia, c. 4, par. 8, in PG 3, 482. 12 Cf. SANTO AGOSTINHO, Hypognost. (entre as obras de Santo Agostinho), II, c. 11, n. 20, in PL 45, 1632. 190 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011 O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER... edificante. – Esta é a vida timorata dos Santos para que, em tudo o que faz, sempre tenha uma atitude de temor, quer vá à Missa ou à mesa, quer esteja parado ou caminhe, porque em tudo pode existir pecado; Jó afirma: Eu temia todas as minhas obras, sabendo que não perdoas ao culpado (Jó 9,28). O temor é um ótimo sinal, e a audácia é um péssimo sinal, porque o audaz jamais se corrige. 21. Em segundo lugar, é preciso ter uma vida impoluta, que realiza tudo por amor de Deus, não por amor a alguma coisa, pois qualquer amor é suspeito se não for amor de Deus. Por isso diz Agostinho13, e também o bem-aventurado Bernardo numa carta a um monge14, que o amor dos Apóstolos pelo corpo de Cristo impedia a vinda do Espírito Santo. Que dizer do amor pelas outras criaturas? O Salmo afirma: Minha alma recusa consolar-se (Sl 77,3) etc. Guarda-me como a pupila de teus olhos, Senhor (Sl 17,8). A pupila não está bem limpa quando nela há vapor, pó ou umidade. 22. Em terceiro lugar, é preciso que haja uma vida religiosa, fechada como o muro de uma vinha (cf. Is 5,5; Sl 80,13); assim é necessário que o homem modere o gosto, a língua e os outros sentidos, porque se alguém acredita ser religioso e não refreia a língua, engana-se a si mesmo, porque vã e sua religião (Tg 1,26). Cerca teus ouvidos com espinhos (Eclo 28,28). Nossa vida não deve ser dada a conversas, mas a lágrimas. 23. Em quarto lugar, é necessário que seja uma vida que edifique o próximo e o distante, para estar pronto a edificar a todos e condoer-se se alguém se escandaliza por sua causa; e deve cuidar de não prejudicar o outro, porque se só eu comer bem e os outros jejuarem, seria mal feito. E este é o fruto de outras considerações. 13 SANTO AGOSTINHO, In Ioannis Evangelium, tr. 94, n. 4, in PL 35, 1869. 14 SÃO BERNARDO DE CLARAVAL, Epistula 462, n. 6, in PL 182, 665. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011 191 S. BOAVENTURA 24. E mais, das coisas já ditas, isto é, da ciência e da santidade, segue-se o fruto da sabedoria ou o estudo, que consiste em quatro momentos necessários, isto é, o primeiro é o reconhecimento dos próprios defeitos internos. Por isso, no frontispício do templo de Apolo estava escrito: “Conhece-te a ti mesmo”, sem isto é impossível chegar à sabedoria. Por isso, quanto mais o sábio progride, tanto mais despreza a si mesmo. Por isso, é um mau comerciante aquele que engana a si mesmo, como faz quem se considera mais do que vale; mas deve estimar os outros e desprezar a si mesmo; e este é o mais importante estudo da sabedoria, isto é, que o homem se persuada de seus defeitos e se torne humilde aos próprios olhos. 25. O segundo estudo da sabedoria é a mortificação das paixões, que são as sete afeições da alma, quatro principais e três anexas: o temor, a dor, a esperança e a alegria; o desejo, a vergonha e o ódio. Também em todas essas coisas pode existir o excesso. Ora, quando grita demais, o menino é repreendido; assim o homem deve domar e refrear estas paixões por uma censura judicial, para que, quando vier a dor, diga a si mesmo: fique em paz; e a mesma coisa com as outras paixões; e abandona estas puerilidades e desejos pueris. Com efeito, os meninos seguem os impulsos das paixões; maldito o menino de cem anos (Is 65,20). 26. O terceiro estudo da sabedoria é a ordenação dos pensamentos; por isso: O insensato olha pela janela para dentro da casa do próximo (Eclo 21,26). E aqui existe uma grande dificuldade para ordenar nossas imaginações, para que, quando estamos na Igreja, não pensemos em nada senão no que se faz; e assim sobre os outros aspectos; e necessariamente é preciso ordenar estes pensamentos, para que o Espírito Santo entre por meio da sabedoria, porque o Espírito Santo da disciplina foge dos fingimentos e se afasta dos pensamentos desatinados (Sb 1,5). E assim, é preciso ter certas matérias sobre as quais nos exercitamos. 192 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011 O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER... 27. O quarto estudo da sabedoria é a elevação do desejo; isso dá valor aos outros estudos, para que, esquecidos do que fica para trás, nos lancemos para o que está na frente (Fl 3,13). Os olhos do sábio estão em sua cabeça (Ecl 2,14). O coração do sábio está à sua direita (Ecl 10,2). Nisso consiste o estudo do sábio: que nosso estudo não se dirija senão para Deus, que é todo desejável (Ct 5,16). Estas quatro coisas são difíceis se não se tiverem os primeiros estudos; mas com estes são fáceis. E assim é fácil ter o domínio sobre as paixões, como se diz de certo filósofo, que disse a seu servo: “Como te castigaria se não estivesse irado”15. 15 Cf. M. T. CÍCERO, Tusculanae, IV,c. 36. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011 193 S. BOAVENTURA 194 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011 DEPOIMENTOS FREI HERMÓGENES HARADA: A UNIVERSIDADE DO VAZIO FREI HERMÓGENES HARADA: A UNIVERSALIDADE DO VAZIO Sérgio Wrublevski * A existência de frei Hermógenes Harada marcou decididamente a existência de muitos homens e mulheres que tiveram a graça de participar do desafio espiritual nos mais diversos níveis de participação: como irmão, amigo, mestre do espírito. A sua morte tornou ainda mais nítida a sua presença viva, corajosa, prenhe de acenos de renovação, sempre tão preciosos em nossos tempos de indigência espiritual. Como poderia ser compreendido o seu principio de vida e trabalho, que o fez trabalhar incansavelmente com tanta alegria e nitidez até os últimos instantes, que o fazia tão procurado e estimado por tantos, e que o fazia, ao mesmo tempo, ser tão incompreendido por muitos? De seu pai, professor escolar, budista convertido ao exército da salvação e depois ao catolicismo, a modo dos missionários alemães no Japão, frei Hermógenes disse ter recebido acenos para a atitude fundamental: fazer de sua existência algo de benéfico para a humanidade, e isto, de modo entusiasmado, abnegado e sem pretensões subjetivas. No jargão filosófico, essa atitude significa fazer a existência ser um caminho de universalidade na condição particular-singular. Buscar, em toda a radicalidade, a universalidade de modo absoluto e finito na * Doutor em filosofia pela UFRJ, professor de Filosofia no IFITEPS (Nova Iguaçu – RJ). Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 197-198, jan./jun. 2011 197 SÉRGIO WRUBLEVSKI existência singular, traz como desafio fazer de cada tempo e lugar da existência o encontro cada vez único, concreto e pleno de realização. Isto significa assumir toda a existência factual como lugar singular e criativo de uma acolhida cada vez mais ampla e originária, e de tal modo que cada concreção origina, a partir desta pura abertura, múltiplas concreções de universalidade. Este é o vazio cheio, do qual a cultura do oriente e todas as grandes intuições religiosas falam. Esta exigência de radical transcendência na finitude acolhe e ultrapassa tanto as possibilidades da filosofia acadêmica, como também as possibilidades do budismo, do cristianismo e franciscanismo, enquanto movimentos históricos e juridicamente institucionalizados, para convocar cada homem a exercitar esta transcendência a partir do e no seu enraizamento finito em direção a uma pura disponibilidade, capaz então de ser agenciamento tanto da humanização do homem, de sua autêntica divinização, e da divinização de toda criatura. Esta atitude de espírito recusa uma filosofia entendida como reunião de conhecimentos e sabedorias de vida, mas admite e busca potenciar a fala desveladora do filosofar. Trata-se de uma atividade reflexiva, na qual problemas filosóficos desabrocham e problemas aparentes são desmascarados. As respostas do presente conduzem, muitas vezes, a uma crítica da cultura explícita, na qual este filosofar perde seu sentido. Uma tal reflexão filosófica se torna, cada vez, diálogo formativo, que não necessita de medidas objetivas, nem de doutrinas filosóficas, termos técnicos e métodos, mas é, antes de tudo, vida existencial, puro testemunho que forma e transforma o mundo. Esta unidade de vida e atuação é, então, sementeira para novas possibilidades de renovação da força de espírito. Como lembra o poeta Hölderlin, uma pérola preciosa, mesmo escondida nas profundidades da terra, não deixa de atuar e transformar, pela força de sua própria essência. 198 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 197-198, jan./jun. 2011 UMA DESPEDIDA UMA DESPEDIDA Alberto da Silva Moreira * Partilho com vocês, a seguir, uma reflexão que escrevi depois da visita ao túmulo do Hermógenes e que enviei a alguns amigos dele. Na segunda-feira à tarde, dia 29 de junho, fazia um tempo lindo nas colinas verdes de Rondinha; o vento balançava as árvores e fazia rolar as muitas folhas secas pelo chão. Tantas questiúnculas, brigas de frades, projetos urgentes e outras coisas estavam na minha cabeça. Tudo muito humano, demasiadamente humano. Fui largando tudo e soltando o espírito ao tomar o caminho que conduz ao pequeno cemitério dos frades. Foi uma graça estar sozinho e ter bastante tempo. Sentei-me na grama e fiquei olhando o monte de terra fresca que ainda recobre o Harada. Por cima do monte de terra alguém colocou umas duas plantas, verdes e cheias de flores brancas e vermelhas, parecendo um ramalhete que brotou e criou raízes. Belas e rudes como a vida. I fioretti da frate Hermógenes. Continuei a antiga conversa com o Harada. Desta vez, mais perguntas do que respostas, e muitos silêncios... Um profundo sentimento de gratidão e de paz me invadiu, sem tristezas ou arrependimentos; uma grande comunhão de espírito e uma grande vontade de aprender mais deste grande espírito, desta grande alma com quem tivemos a pura graça de conviver por tantos anos. A decisão de aprender mais e direito, e seguir em frente, acreditando firmemente na * Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-GO. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 199-200, jan./jun. 2011 199 ALBERTO DA SILVA MOREIRA “comunhão dos santos”, ou como o Harada dizia, naquela “comunidade anônima e silenciosa dos guerreiros”, verdadeira família dos que lutam, às vezes sem não ter com quem contar. Pensei que os verdadeiros discípulos e amigos, assim como as plantas, estão unidos, no silêncio, por debaixo da terra que tudo sustenta. Com esses sentimentos no coração e tais pensamentos na mente me levantei, inclinei-me em reverência ao humilde mestre; saudei ainda fraternalmente Hildefonso, Basílio, Barnabé e os mais antigos que não conheci, e tomei o caminho que conduz ao dia de hoje. Alberto da Silva Moreira, Julho de 2009. 200 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 199-200, jan./jun. 2011 UMA DESPEDIDA NUR - Núcleo de Estudos em Filosofia no Mundo Islâmico Medieval - UNIFESP Coordenação: prof. Dr. Jamil Ibrahim Iskandar e profa. Dra. Cecilia Cintra Cavaleiro de Macedo http://www.sites.google.com/site/nurunifesp/ O núcleo dedica-se a investigar o desenvolvimento do pensamento filosófico medieval sob o domínio islâmico através do estudo das obras de seus maiores expoentes , bem como suas origens e influências sobre a história do pensamento filosófico. Para tanto, conta com três linhas de pesquisa: Filosofia medieval islâmica, Filosofia medieval judaica, e origens e desdobramentos da Falsafa, sendo esta última dedicada à investigação das fontes destes pensamentos, dos diálogos possíveis com outras correntes filosóficas e outros ramos do conhecimento, assim como dos desdobramentos posteriores destas importantes contribuições na história do pensamento até os dias atuais. O trabalho principal do grupo consiste nas pesquisas individuais e compartilhadas dos professores integrantes e na orientação de monografias, trabalhos de iniciação científica e dissertações. Os professores participantes mantêm também um grupo de estudos presencial na UNIFESP/Campus Guarulhos, em caráter permanente, voltado a temas e obras compreendidos por estas linhas de pesquisa, assim como desenvolvem ações no sentido da divulgação desta área de investigação. Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 199-200, jan./jun. 2011 201 SÉRGIO WRUBLEVSKI 202 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 197-198, jan./jun. 2011 FREI HERMÓGENES HARADA: A UNIVERSIDADE DO VAZIO Normas para publicação • Os artigos devem ser formulados obedecendo às normas técnicas de publicação da ABNT, e encaminhados à nossa editoria em modelo eletrônico e com cópia impressa. • A editoria da Revista se reserva o direito de, após criteriosa análise consultiva, publicá-los ou não. Os artigos não publicados não serão devolvidos. • Os autores articulistas receberão três exemplares da revista em que tiver sido publicado seu artigo, abdicando, com isso, em favor da revista, dos direitos autorais dos artigos. • Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores e não precisam coincidir com o pensamento da Faculdade. • O idioma de publicação é o português, não estando excluída a publicação ocasional de textos ou artigos em outras línguas. 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