Elisza Peressoni Ribeiro
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Elisza Peressoni Ribeiro
ELISZA PERESSONI RIBEIRO O PAPEL DO DIRETOR NO TEATRO DE BONECOS FLORIANÓPOLIS - SC 2009 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC CENTRO DE ARTES - CEART DEPARTAMENTO DE ARTES CÊNICAS - DAC O PAPEL DO DIRETOR NO TEATRO DE BONECOS Elisza Peressoni Ribeiro Trabalho de Conclusão de Curso como requisito para obtenção do título de Licenciado em Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas, sob orientação do Prof. Dr. Valmor Beltrame e coorientação de Alex de Souza. FLORIANÓPOLIS – SC 2009 2 O PAPEL DO DIRETOR NO TEATRO DE BONECOS Elisza Peressoni Ribeiro Trabalho de Conclusão de Curso aprovado como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciado, no curso de graduação em Licenciatura em Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina. Banca Examinadora: Orientador: ______________________________________________ Prof. Dr. Valmor Beltrame UDESC Coorientador: ______________________________________________ Alex de Souza UDESC Membros: ___________________________ Prof. Dr. Valmor Beltrame UDESC ___________________________ Ms. Paulo César Balardim Borges UDESC ___________________________ Prof. Roberto Gorgati UDESC Florianópolis – SC, 07 de dezembro de 2009. 3 Às minhas avós, Lina e Aracy. 4 Agradecimentos A meus pais, Deleo e Tetê, que prescindem de explicações. A Dona Tereza que me ensinou que na vida o plantio é opcional, mas que a colheita é sempre certa. A professora Nara, com quem tudo começou. As amigas e amigos que conheci antes: Tati, Thais, André Felipe e Paulo que, mesmo sem saber, também fazem parte desta história. As amigas e amigo que conheci agora: Ligia, Maria, Ana Luz, Helô, Potyra, Lucrécia e Diogo. Sou muito grata por ter vivido com vocês estes 4 anos e meio. A toda a turma de artes cênicas 2005/02 pelos momentos de discussão e principalmente de risadas e companheirismo. A turma 2007/02, que neste finzinho de curso tive chance de conhecer e admirar. Aos amigos da Cia Cênica Espiral, Alex, Jaque (obrigada pelo tema!), Rhaisa, Carol e Juliano, muito obrigada por compartilhar com vocês a arte que quero fazer. Obrigada também pelos momentos de risadas, de lágrimas e de conquistas. Ao Jorge Lucas, que apareceu faz pouco, mas que me ajudou muito com sua paciência e carinho. Ao professor Stephan Baumgärtel que é exemplo para mim como professor e pesquisador. Agradeço pelos anos de orientação. Ao Ivo que me ajudou a aprender além do curso. A Valmor “Nini” Beltrame que, sem pestanejar, aceitou essa orientação e durante todo o processo acreditou no trabalho. Ao meu coorientador, diretor e amigo Alex de Souza, que, além de me apresentar ao Teatro de Bonecos, foi uma grande ajuda neste trabalho. A todos os bonequeiros que pude ler, entrevistar e assistir, e que com seus trabalhos me servem de inspiração para seguir esta estrada que escolhi. 5 O PAPEL DO DIRETOR NO TEATRO DE BONECOS Elisza Peressoni Ribeiro RESUMO O presente estudo trata sobre o papel do diretor no Teatro de Bonecos, com foco em trabalhos de manipulação direta. São analisados alguns aspectos relativos a esta linguagem e sua relação com a direção. O objetivo é estudar funções atribuídas ao diretor e seu vínculo com os códigos próprios da linguagem. Para isso o trabalho analisa procedimentos que caracterizam o trabalho do diretor e os conhecimentos específicos que ele deve possuir. Ao longo de toda a pesquisa há falas de dois diretores contemporâneos de Teatro de Bonecos que são citadas e relacionadas com os assuntos. Estas falas são retiradas de entrevistas realizadas especificamente para este estudo. PALAVRAS-CHAVE: Direção Teatral; Teatro de Bonecos; Teatro de Animação 6 Sumário Introdução .................................................................................................................. 7 1 Contextualização .................................................................................................. 10 1.1 Nomenclaturas .................................................................................................... 11 1.2 A polivalência do bonequeiro .............................................................................. 15 1.3 Um Teatro Renovado .......................................................................................... 20 2 O diretor e as especificidades do Teatro de Bonecos ...................................... 25 2.1 Dramaturgia......................................................................................................... 26 2.1.1 Dramaturgia do movimento: o diretor e a construção da partitura .................... 32 2.2 A construção do boneco e as possibilidades expressivas de seu material ......... 35 3 Técnica e Imaginação: A direção do espetáculo ............................................... 39 3.1 Ator-animador também é ator.............................................................................. 41 3.2 Ator-animador também trabalha com princípios .................................................. 43 3.2.1 A neutralidade .................................................................................................. 46 3.2.2 A dissociação ................................................................................................... 51 3.3 Outros aspectos relevantes sobre a direção no Teatro de Bonecos. .................. 54 Considerações Finais ............................................................................................. 59 Referências .............................................................................................................. 61 Anexos ..................................................................................................................... 64 ANEXO A - Transcrição da entrevista com Dario Uzam Filho ................................... 64 ANEXO B - Transcrição da entrevista com Miguel Vellinho ...................................... 74 7 Introdução Neste trabalho estudo o papel que exerce o diretor no Teatro de Bonecos com foco na técnica da manipulação direta. A ideia de estudar este assunto surgiu de meu interesse por ambas as áreas: Direção e Teatro de Bonecos. Unir os dois temas foi uma forma de conciliar a vontade de pesquisar e aprender mais sobre ambos e a necessidade de escrever um trabalho de conclusão de curso. Ao refletir e discutir sobre as funções que o diretor realiza no Teatro de Bonecos a intenção é ressaltar algumas tarefas inerentes a prática deste profissional. Para isso, ao longo de todo o trabalho seleciono especificidades da linguagem do Teatro de Bonecos, como a dramaturgia e a composição de cena, e as relaciono com o trabalho do diretor. O diretor no sentido abordado por este trabalho surge, no Teatro de Persona1, no final do século XIX. André Antoine (1858 – 1943) com seus estudos sistemáticos sobre a prática da encenação é o primeiro a esboçar o papel do diretor no teatro contemporâneo. Antoine acreditava na encenação como um conjunto de confluentes que devem ser harmonicamente trabalhados a fim de, juntos, formarem o espetáculo. Neste estudo assumo que o diretor é justamente o ponto que une todos esses confluentes. Desta forma, o objetivo principal é pensar a relação do diretor com as especificidades da linguagem do Teatro de Bonecos contemporâneo. As discussões relativas a concepção e direção de espetáculo no Teatro de Bonecos popular não serão aqui abordadas. É importante destacar que a bibliografia sobre o trabalho do diretor no Teatro de Animação é quase inexistente, por isso o caminho foi revisar estudos de pesquisadores que se dedicam a essa arte, garimpando ideias que pudessem colaborar para o presente trabalho. Encontrei alguns trechos de autores como o sueco Michael Meschke e o polonês Henry Jurkowski que eventualmente, em seus estudos, se referem ao trabalho deste profissional. Por esse motivo trabalhei com alguns princípios técnicos desta linguagem já discutidas em textos de Paulo 1 Por falta de uma nomenclatura adequada e definição que satisfaça o contexto deste trabalho, utilizar-se-á o nome “Teatro de Persona” quando se tratar de espetáculos que não estão incluídos na definição de Teatro de Animação. 8 Balardim, Valmor Beltrame, Caroline M. H. Cavalcante, Felisberto Sabino da Costa e Rafael Curci e os relacionei com a função que o diretor pode realizar dentro de especificidades selecionadas. Para a pesquisa prática foram realizadas entrevistas com dois diretores contemporâneos em exercício: Dario Uzam e Miguel Vellinho. Estes diretores foram escolhidos por sua experiência na área e constância de produção. Dario Uzam é fundador e diretor da “Cia Articularte de Teatro de Bonecos”, criada em 1999 e sediada desde então em São Paulo. A Cia. conta atualmente com oito espetáculos em atividade e é reconhecida no país pela qualidade técnica e artística de seus trabalhos.2 Miguel Vellinho é fundador e diretor da “Cia PeQuod”. Em atividade desde 1999, no Rio de Janeiro, a “Cia PeQuod” é atualmente uma das companhias de Teatro de Bonecos mais atuantes do Brasil, prestigiada internacionalmente, e a maioria de seus trabalhos utilizada bonecos de manipulação direta.3 As falas destes dois diretores permearão todo o texto e estarão relacionadas com os temas tratados em cada capítulo. Ao final deste trabalho estão anexadas as transcrições completas das entrevistas. Ainda para a coleta de dados assisti ao vivo e em vídeo espetáculos dos diretores entrevistados. Pude assistir ao espetáculo O Velho da Horta, dirigido por Miguel Vellinho, e ao espetáculo Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Marrom dirigido por Dario Uzam. Trabalhei com imagens gravadas em DVD dos seguintes espetáculos: A Cuca Fofa de Tarsila e Portinari Pé de Mulato, ambos dirigidos por Uzam; Filme Noir e Peer Gynt, ambos dirigidos por Vellinho. A monografia está dividida em três capítulos. No primeiro são apresentados termos importantes com os quais trabalho. Em seguida discuto sobre o surgimento do papel do diretor no Teatro de Bonecos e faço uma breve explanação sobre as mudanças ocorridas nesta linguagem no séc. XX, destacando acontecimentos que favoreceram a fixação do papel do diretor. O segundo capítulo dedica-se ao estudo da dramaturgia e algumas de suas particularidades, bem como a materialidade do boneco e suas possibilidades 2 3 Para maiores informações ver: http://www.articularte.com.br. Para maiores informações ver: http://www.pequod.com.br. 9 expressivas, evidenciando a importância do conhecimento destas especificidades para o trabalho do diretor. No terceiro e último capítulo abordo a relação do diretor com o trabalho do ator-animador. Nesta etapa do estudo dialogo mais intensamente com os dois diretores, Miguel Vellinho e Dario Uzam, e para isso utilizo as entrevistas com eles realizadas como forma de apontar procedimentos recorrentes nas atividades do diretor. 10 1 Contextualização Diferentemente do que acontecia na primeira metade do século XX no Brasil, o diretor no Teatro de Bonecos é um profissional cada vez mais presente no trabalho dos grupos que se dedicam a essa linguagem. Observando as programações de festivais dedicados a esta arte, percebem-se ali os nomes dos espetáculos, dos grupos e não faltarão os nomes de quem assina a direção. Também é comum encontrar, atualmente, diretores que se aventuram pelo campo da teoria, seja através de estudos acadêmicos (graduação, mestrado e/ou doutorado) ou através de publicações que revelam suas experiências e organizam alguns de seus métodos de trabalho. Função que surge mais tardiamente no Teatro de Bonecos do que no Teatro de Persona, o diretor aparece neste último na primeira metade do século XIX, e atinge seu auge no século XX. No Teatro de Bonecos, entretanto, o papel do diretor surge na Brasil com mais recorrência apenas na segunda metade do século XX, como consequência de transformações filosóficas, poéticas e estéticas pelas quais passou essa linguagem. Atualmente os diretores de Teatro de Bonecos, em diversos grupos em atividade, são os responsáveis pela definição da estética e da poética do espetáculo. O público mais familiarizado consegue notar linhas de escolhas que são recorrentes em vários trabalhos de um mesmo diretor. Esta relação já ocorre no Teatro de Persona e muitas vezes o nome do diretor é mobilizador de público independentemente do texto que está em cartaz. O diretor de Teatro de Persona configurou-se, ao longo do tempo, como uma grande figura no cenário teatral, não raro superando a importância de atores e autores. Já no Teatro de Bonecos esta presença do diretor assumindo a responsabilidade pela configuração do espetáculo é muito mais recente. A partir destas constatações surge a discussão a respeito do papel que exerce o diretor no Teatro de Bonecos. Questiona-se quando surgiu, como surgiu, por que surgiu e qual é sua importância e função dentro do espetáculo. Pouco se tem estudado sobre este profissional. Para tratar destas questões faz-se necessário iniciar a discussão apresentando algumas expressões e nomenclaturas recorrentes 11 nessa linguagem para, posteriormente, contextualizar o aparecimento desta função e em seguida refletir sobre o papel deste profissional no processo de criação de espetáculos. 1.1 Nomenclaturas Para a melhor compreensão do papel do diretor no Teatro de Bonecos faz-se necessário definir alguns termos que estarão presentes ao longo de todo o trabalho. O intuito é tanto delimitar as áreas de abrangência deste estudo, quanto deixar claro à que me refiro quando utilizo um desses termos. Nas publicações sobre Teatro de Bonecos é possível encontrar distintas definições de termos-chave como, por exemplo, ator-animador e ator-bonequeiro. Essas definições variam de acordo com o autor e com a época em que foram escritas e, ainda que cada autor argumente a favor do uso da definição que elege, é difícil escolher uma que seja a correta ou canonizada. Os primeiros termos necessários a distinguir são: Teatro de Animação e Teatro de Bonecos. Segundo Paulo Balardim: O termo Teatro de Animação é a forma específica de animação realizada com fins teatrais e engloba todas as formas de representação cênica na qual a aparência de vida é dada, seja a objetos, luzes ou sombras, seja a uma parte objetivada do corpo humano ou, ainda, qualquer outra forma que simule uma vontade autônoma. As espécies conhecidas deste gênero são extremamente variadas, as mais populares sendo as seguintes: máscaras, fantasias (forma habitáveis), bonecos (luvas, varas, marionetes de fio, bonecos de mesa, bonecos gigantes), sombras, teatro de objetos e certas espécies de autômatos. (2008, p.21) Como indica o autor, Teatro de Animação é uma nomenclatura ampla que abrange diferentes formas de teatro, na qual está incluído o Teatro de Bonecos, uma vez que se trata de uma linguagem que tem como objetivo a manipulação de bonecos, manipulação esta que pode ocorrer de distintas maneiras. Portanto, Teatro de Animação é visto aqui como um campo mais amplo de expressão, no qual está inserido o Teatro de Bonecos. O próximo termo a ser definido, e que diz respeito ao tema central deste trabalho, é o termo diretor. A definição que escolho delimita o diretor como aquele 12 que conduz a montagem de um espetáculo, estando à par de todos os seus aspectos e especificidades, orientando as escolhas estéticas e poéticas. Patrice Pavis faz semelhante definição para o termo encenador: “Pessoa encarregada de montar uma peça, assumindo a responsabilidade estética e organizacional do espetáculo, escolhendo os atores, interpretando o texto, utilizando as possibilidades cênicas à sua disposição.” (1999, p.128). Mesmo que a definição de Pavis para encenador seja o que defino como diretor, opto aqui por manter a utilização do segundo termo e não alterá-lo para encenador. Faço isso porque no Brasil é este o nome mais comumente utilizado para definir a pessoa que organiza e conduz a montagem de um espetáculo. Essa confusão entre os termos encenador e diretor é discutida por J. Guinsburg, João Ribeiro Faria e Mariângela Alves de Lima no “Dicionário de Teatro Brasileiro”. Eles explicam que: O termo encenador vem a ser a tradução direta de seu correspondente francês metteur em scène. Entretanto, junto aos práticos do teatro, à crítica especializada e ao público, o termo empregado mais frequentemente, entre nós, para expressar esse ofício, como foi descrito acima, é o de diretor teatral (2006, p.123). Os autores deixam claro que o termo diretor é, no Brasil, o termo mais utilizado e mais difundido. Desta maneira o diretor a que me refiro neste trabalho é aquele que mantém a unidade e a coesão do espetáculo, é responsável por coordenar e orientar os artistas e técnicos envolvidos no processo, faz as opções estéticas da obra e está a par de tudo o que engloba o espetáculo. Ele pode trabalhar com maior ou menor intervenção e colaboração por parte de atores e técnicos, mas é ainda nele que se concentra a ligação de todos os aspectos da montagem. Depois de definir a função do diretor é necessário definir e distinguir três outros termos: ator, ator-animador e bonequeiro. O ator é “o intérprete do personagem de ficção, ou seja, aquele que dá forma e vida ao personagem do drama” (Vasconcellos, 1987, p.23). É aquele que através de seu próprio corpo, sem nenhuma forma de mediação, dá vida, em cena, a um 13 personagem4. Ele é um intérprete do texto e/ou da ação e, em cena, representa através de sua presença “um outro” que não ele mesmo. O ator-animador ou apenas animador é aquele que dá vida a um objeto/boneco que, em cena, representa um personagem. O ator-animador é também definido por muitos autores como ator-manipulador. No entanto, escolho utilizar o termo ator-animador por um motivo relativo à etimologia destas duas palavras. Segundo Houaiss (2009), “manipular” é derivado do francês “manipuler” e significa “manejar substância ou instrumento para fins científicos ou técnicos; influenciar”. Já a palavra “animar” surge do latim “animo” que significa “soprar, dar vida, animar”. Acredito que o ator em um espetáculo de Teatro de Bonecos, ao tocar o que antes era um objeto inanimado para dar-lhe ação e movimento, tem como objetivo inicial “dar vida” àquilo que toca, insuflando o boneco de existência. Mais do que manejar algo com técnica para simular vida o trabalho do ator-animador consiste em deixar de ser o foco da cena para, desta forma, dar a vida ao boneco.5 Por isso prefiro definir este artista como ator-animador e não como atormanipulador e entender a manipulação, assim como a interpretação, como uma das técnicas necessárias ao ator-animador para dar vida ao boneco.6 O ator-bonequeiro, ou apenas bonequeiro, é aqui considerado como aquele que além de animar seus bonecos em cena, ainda é responsável pela sua concepção e confecção. Além disso, também executa outras atividades dentro do espetáculo, num acúmulo de funções raro de ser encontrado atualmente. Assentados os termos ator, ator-animador e bonequeiro, é interessante destacar como Ana Maria Amaral os define e distingue: Bonequeiro é aquele que não só dá vida aos personagens, mas também os concebe, constrói, dirige, quando não é também o dramaturgo, o iluminador, o produtor, numa polivalência de responsabilidades muito questionáveis [...]. Todo bonequeiro é um ator manipulador [...] O ator é 4 Restrinjo-me aqui a definir do ator do teatro dramático tradicional, sem especificar as novas funções e definições do ator no teatro contemporâneo. Também não trato do ator de cinema, televisão, circo e outros. 5 As afirmativas de que o ator-animador “dá vida” ou “simula vida” fazem parte de uma discussão ampla e há muitas divergências entre autores da área. Opto aqui por entender que o ator-animador “dá vida” ao boneco por motivos etimológicos e por explicar mais satisfatoriamente minha experiência enquanto atriz-animadora. 6 Desta maneira, todas as vezes em que em alguma citação constar as palavras ator-manipulador entenda-se ator-animador. 14 aquele que no palco é visto, encarna e tem a imagem do personagem. O ator manipulador é um ator que eventualmente se propõe, ou num determinado espetáculo, tem necessidade de animar e dar vida a personagens inanimados. Enquanto ator-manipulador, nem sempre é visto [...] (2002, p.22). Amaral deixa clara a distinção entre os termos e suas especificidades. A diferenciação entre eles é fundamental para que se possam entender as particularidades que o ator-animador tem em sua atuação, se comparado ao ator de Teatro de Persona. Definidos os termos mais importantes para este estudo, passo agora à definição da técnica que elegi como foco do trabalho: a manipulação direta. Paulo Balardim define o termo da seguinte maneira: Essa expressão, de uso comum no sul do Brasil, designa a técnica de operação em que o contato do manipulador com o boneco é “direto” através do seu toque, sem intervenção de fios ou varas (...). Também, na manipulação direta, o movimento da mão do manipulador nem sempre condiz com o movimento executado pelo boneco, como geralmente ocorre na luva. Ou seja, um gesto mínimo da mão pode provocar um amplo movimento no boneco (2004, p.72). Ou seja, na manipulação direta o ator-animador tem contato direto com o boneco a ser animado. Isso significa que ele move o boneco através do contato do seu corpo com o objeto animado, sem mediação. Desta maneira, a técnica da manipulação direta pode ser executada por um ou mais atores-animadores, porém é mais comumente encontrada sendo executada por três atores-animadores que, juntos, animam um boneco. Normalmente um ator-animador controla a cabeça e o braço esquerdo do boneco, outro ator-animador controla o tronco e o braço direto do boneco e o terceiro controla os pés do boneco. Esta disposição, no entanto, não é fixa e pode variar de acordo com a quantidade de articulações do boneco e os movimentos que se quer que ele realize, bem como de acordo com a quantidade de atores-animadores em cena. Esta configuração tem influência do Bunraku7, teatro de bonecos tradicional japonês. Quando o ator-animador trabalha com a técnica da manipulação direta ainda precisa definir se estará oculto ou à vista do público. Estar oculto significa ser ou não ser percebido pelo público ou ainda estar pouco visível na cena. Deste modo ele 7 Para maiores referências ver: Giroux e Suzuki, 1991. 15 está o máximo possível escondido, seja por uma vestimenta que o homogeneíze com o fundo do cenário, seja pela iluminação, recorrendo ao que se denomina no teatro de “cortina de luz”. Na animação direta à vista, o ator-animador é percebido pelo público durante o espetáculo, sendo mais um elemento de leitura para o espectador. Ao definir estas técnicas não excluo de meu trabalho outras que são utilizadas no Teatro de Bonecos8, mas afirmo que o tema central desta pesquisa é o trabalho do diretor teatral e sua atuação em espetáculos nos quais se dá a manipulação direta do boneco. 1.2 A polivalência do bonequeiro O Teatro de Bonecos, em sua origem, está ligado às manifestações religiosas. Mais tarde ele se desvincula deste universo e assume características do que hoje pode ser denominado Teatro Popular. Atualmente, mesmo tendo ampliado seu espaço de atuação para festivais exclusivos desta linguagem e ser objeto de estudo em universidades, continua presente dentre as expressões folclóricas e populares. No Brasil o Teatro de Bonecos popular tem como manifestação mais conhecida o Mamulengo9, o Teatro de Bonecos tradicional do estado de Pernambuco. Também existem em outros estados bonecos tradicionais, como o João Redondo, na Paraíba e no Rio Grande do Norte, e o Casimiro Coco em Sergipe, em Alagoas e no Maranhão. No entanto, dentre eles é o Mamulengo o mais conhecido no panorama nacional e internacional. O mamulengueiro é o exemplo brasileiro de um artista que apresenta uma capacidade polivalente, característica 8 Para esclarecimento a respeito de outras técnicas do teatro de animação ver: Balardim, 2004, p. 67 – 77. 9 “Espécie de divertimento popular em Pernambuco, que consiste em representações dramáticas por meio de bonecos, em um pequeno palco alguma coisa elevado. Por detrás de uma empanada, esconde-se uma ou duas pessoas adestradas, e fazem com que o boneco se exibam com movimento e fala. A esses dramas servem ao mesmo tempo de assunto cenas bíblicas e de atualidade. Tem lugar por ocasião das festividades de igreja, principalmente nos arrabaldes. O povo aplaude e se deleita com essa distração, recompensando seus autores com pequenas dádivas pecuniárias.” (Luiz da Câmara Cascudo, APUD Revista Mamulengo, nᵒ 1, 1973.) 16 recorrente em vários artistas de Teatro de Bonecos populares pelo mundo. Ou seja, ele é responsável e executa variadas funções dentro de seu espetáculo. Esses artistas de Teatro de Bonecos apresentam seus espetáculos, na maioria das vezes, em ruas e praças, e sua sobrevivência financeira é fruto destas apresentações. Muitos deles trabalham com auxiliares, membros de sua própria família, e outros trabalham com ajudantes que se mostraram interessados em aprender o ofício de mamulengueiro. No entanto, não há divisão instituída de tarefas, pois é o mamulengueiro (também chamado mestre) quem assume todas as funções. Os auxiliares executam apenas as tarefas ordenadas por ele. Desta maneira, várias manifestações de Mamulengo têm nome homônimo ao do mestre, e são eles os artistas reconhecidos pela população. Essa relação entre o nome do mamulengueiro e o nome do grupo pode ser confirmada na “Revista Mamulengo”, publicação da “Associação Brasileira de Teatro de Bonecos - ABTB” que teve tiragem de 13 edições entre os anos de 1973 e 1989. Em vários exemplares podemos observar que havia diferentes grupos de Mamulengo com nomes de seus mestres, e a revista não se preocupava em divulgar quem eram os ajudantes. Um exemplo é uma reportagem da Revista Mamulengo nº5, datada de 1976, que trata do “I Encontro de Mamulengos do Nordeste”. Ali lê-se a seguinte lista de grupos que se apresentaram: Apresentaram-se nesta semana de pura alegria que terá sido o I Encontro: O Grupo de Manuel Lucas (Várzea Nova-Pb), Grupo Zé-Relâmpago (Rio Grande do Norte), Mamulengos de Antônio Pequeno (RN), Invenção Brasileira (PB), Mamulengos de Joaquim Guedes (Pb), Mamulengos de João Redondo (Pe) e grupo de Antônio Relâmpago (RN). (p.05) Pode-se notar que de sete grupos que se apresentaram, cinco tem o nome do grupo homônimo ao mestre. Esse dado confirma que era este mestre que coordenava toda a execução, era ele que, apesar de não se falar neste termo em seu contexto, era também o diretor do espetáculo. Ao procurar registros sobre diretores de Teatro de Bonecos no Brasil, a pesquisa na sua etapa de revisão bibliográfica conseguiu identificar alguns espetáculos, principalmente na década de 1970, que já contavam com assinaturas de diretores. Apesar de a função não ser predominante nesta década, já é 17 registrada. No entanto, além de ser uma função incipiente, estes diretores ainda se configuravam como diretores que atuavam e dirigiam. Existem registros anteriores, datados na década de 1960 que já atestam o trabalho de direção em espetáculos de Teatro de Bonecos. Gianni Ratto dirigiu El Retablo de Maese Pedro, texto de Miguel de Cervantes com música por Manuel de Falla, em 1966 e Ubu Rei, de Alfred Jarry, em 1969. Nestes dois casos, no entanto, é importante ressaltar que Ratto não dirige a montagem com um grupo de Teatro de Bonecos e tampouco pode ser considerado diretor de Teatro de Animação. Trata-se de uma incursão do diretor italiano pela linguagem, que como grande conhecedor do teatro sabia que tais textos foram seguidamente montados com bonecos na Europa. A Estréia de Ubu Rei se deu em Rennes, França, no final do Século XIX, com bonecos e tendo o próprio autor no elenco. El Retablo é um clássico da língua espanhola da dramaturgia para bonecos. A parceria do músico Manuel de Falla e Federico Garcia Lorca deixou uma produção muito importante nessa área. A constatação da existência de espetáculos que utilizavam bonecos naquela época demonstra que as primeiras iniciativas na renovação da linguagem do Teatro de Bonecos não têm data precisa, exata, mas são dispersas e ocorrem em diferentes lugares. É interessante destacar que ainda na revista Mamulengo nº 5 há uma reportagem sobre o grupo teatral “TIM - Teatro Infantil de Marionetes”, da cidade de Porto Alegre. Este grupo não tem origem popular e não é formado por um artista polivalente, como no caso dos grupos de Mamulengo. O TIM é um grupo tradicional da cidade de Porto Alegre que atualmente já tem 50 anos de atividade ininterrupta. Mesmo assim, nessa reportagem, apesar de haver o registro nominal de todos os seus integrantes, o responsável pela direção é registrado, mas ainda não é destacado: Os integrantes do TIM são: Odila Cardoso de Sena, que cria e fabrica as marionetas, Antônio Carlos de Sena, que dirige, manipula e faz os cenários, além de dar voz aos bonecos. Os outros manipuladores e técnicos são: Reneidi Mezeck de Sena, Fernando Cardoso de Sena, José Luiz Cardoso de Sena e Carlos Mezeck de Sena.” (Idem, p.54). Pode-se notar que os artistas envolvidos, além de serem da mesma família, trabalham em diferentes funções dentro do espetáculo. Além disso, é interessante 18 salientar que Antônio Carlos de Sena é formado em direção teatral pelo DAD (Departamento de Artes Dramáticas) da UFRGS. Sua data de formação é 1962. Esses dados permitem, senão afirmar, mas pelo menos desconfiar que Sena talvez seja o primeiro diretor de Teatro de Bonecos no Brasil com formação acadêmica em direção teatral. No Brasil, o papel do diretor no Teatro de Bonecos começa a aparecer com mais frequência e destaque a partir da década de 1970, como pode ser observado ainda em outras revistas Mamulengo, com as nº 09, 10, 11, 12 e 14, nas quais, não sempre, mas recorrentemente, há referência à direção dos espetáculos. Na revista nº 09, por exemplo, pode-se encontrar nomes de diretores como: Ana Maria Amaral, Cláudio Ferreira, Maria Luiza Lacerda, Lucia Coelho, Ilo Krugli, Flávio Bianconi. Voltando a Revista Mamulengo nº5, há ali uma reportagem sobre o grupo Mamulengo Só-Riso, criado na cidade de Olinda, estado de Pernambuco, em 1975 e que, apesar do nome, não tem origem popular, mas sim inspira-se no Mamulengo tradicional. Entretanto, pode-se observar que também não havia divisão de tarefas dentro do grupo, pois todos os componentes da companhia realizavam todas as funções: Os artistas mamulengueiros do SÓ-RISO são: Fernando Augusto Santos, Pedro Celso, Luiz Maurício, Carvalheira, Nilson de Moura, Ari Luiz da Cruz, Tereza Eugênia Veloso, que se encarregam de todas as tarefas do grupo: criação dos bonecos, manipulação, iluminação, som e direção. (p.60). A partir destas informações surgem as seguintes questões: por que o bonequeiro sai da cena e passa a dirigi-la? Por quais razões ele deixa de exercer sua função polivalente e, aos poucos, passa a supervisionar as etapas do processo? Por que nasce a necessidade de definir alguém para exercer esta função? No início do século XX muitos artistas se inspiram no Teatro de Bonecos para repensar o teatro. Eles se apropriam dessa linguagem para refletir sobre o papel do ator em cena e propor renovações ao que vinha sendo produzido. Desta maneira passou-se a discutir mais esta linguagem e o Teatro de Bonecos renasce: “seu renascimento no século XX fez com que o Teatro de Bonecos se tornasse mais artístico que popular ou plebeu.” (Jurkowski, 2000, p. VI). No entanto, a renovação estética surge com mais evidência na segunda metade do século XX, quando os artistas se descomprometem com princípios estéticos tradicionais e com uma arte necessariamente dramática. 19 Essas mudanças estéticas provocadas pelas vanguardas surgem com mais evidência a partir das décadas de 1950 e 1960 na Europa e, como afirma Balardim: O sonho de aneantização – a redução do intérprete ao nada frente à efígie do personagem - e a organização da ação cênica sobre modelos mecânicos e plásticos foram fundamentais para o desenvolvimento do teatro de animação no séc XX, fazendo-o ascender, renovado, ao mesmo patamar das outras expressões artísticas. (2004, p.28). Dentre estas renovações surge a divisão de tarefas dentro da montagem. Essa divisão tem relação com a preocupação com a qualidade dos espetáculos tanto em relação à técnica quanto em relação às escolhas estéticas. Apenas uma pessoa encarregada de realizar várias funções não poderia mais dar conta de acumular todas as etapas de montagem de um espetáculo, uma vez que as exigências técnicas e estéticas crescem. Surge o diretor que, apesar de realizar outras tarefas, como, por exemplo, a confecção dos bonecos, sai de cena para, de fora, observar e conduzir o espetáculo. Há desta maneira, um rompimento fundamental em relação ao artista polivalente: apesar de o diretor ainda realizar outras funções ele não é mais ator-animador na peça teatral. Graças a isso ele pode dirigir com um olhar externo, mais crítico e mais exigente, no sentido de garantir a qualidade artística do espetáculo. No último exemplar publicado da revista Mamulengo, sob o número 14 e datado de 1988-89, há um artigo sobre o Prêmio Hermilio Borba Filho, em que a atriz e bonequeira Ana Deveza ganha o prêmio com sua obra “Trem de Lata”. Sobre o fato, lê-se o seguinte: A atriz tem vários textos escritos, mas “Trem de Lata” foi a primeira montagem de sua autoria. O grupo “Teatro Cais de Ferro” levou a peça para o palco no 1ᵒ semestre de 1988, com a direção de Maria Idalina e a própria autora participante do elenco. (p.43) Nesta reportagem está claro e em destaque que há uma diretora, que assume e assina a direção do espetáculo, e é apenas essa sua responsabilidade. O bonequeiro polivalente, no entanto, não desapareceu e parece que não desaparecerá. Atualmente é visível que a polivalência é cada vez menos recorrente, porém ainda é uma característica de alguns artistas bonequeiros, como afirma Rafael Curci: “Originariamente, o realizador (ou construtor) de bonecos era o próprio 20 bonequeiro, inclusive são muitos os que atualmente continuam confeccionando de maneira integral os bonecos que utilizam em cena.” (2007, p.41, tradução nossa)10. Estes artistas bonequeiros polivalentes podem ser encontrados principalmente em Teatros de Bonecos de tradição popular que ainda continuam atuantes, como no Mamulengo. No entanto não são exclusivamente artistas ligados à estas tradições que apresentam dotes polivalentes. Existem bonequeiros contemporâneos como o argentino Sérgio Mercúrio e o catarinense Marcelo de Souza, que também realizam quase todas as funções de seus espetáculos. Eles são artistas que trabalham principalmente como solistas. Mesmo assim é comum que eles tenham técnicos que trabalhem junto, principalmente quando apresentam em casas teatrais e necessitam de assistência de palco, iluminação e operação de som. As transformações no processo de criação e na estética do Teatro de Bonecos que acarretam o aparecimento do papel o diretor são marco fundamental na renovação desta linguagem. Essas transformações mudam não apenas o modo de criar espetáculos, mas também a maneira pela qual ele é visto por artistas de outras áreas e pelo público. Por esse motivo faz-se necessário apontar estas mudanças. 1.3 Um Teatro Renovado No século XX, o crescente reconhecimento desta arte provoca uma renovação estética e conceitual que a moderniza e aumenta suas possibilidades técnicas. Vários códigos característicos do Teatro de Bonecos tradicional são quebrados, bem como se alteram procedimentos de criação e realização de um espetáculo. Estas mudanças acarretaram importantes transformações na ideia do que significa trabalhar com bonecos e, consequentemente, na função que deve executar um diretor que trabalha com esta linguagem. Uma das mudanças mais importantes se deu na utilização do boneco antropomorfo. Antes do séc XX este boneco aparecia com quase absoluta predominância nos espetáculos. Com as transformações o boneco antropomorfo 10 “Originariamente, el realizador (o constructor) de títeres era el mismo titiritero, incluso son muchos los que em la actualidad siguen confeccionando de manera integral las figuras que luego utilizan en escena.” 21 cede espaço a bonecos cuja morfologia não representa ou imita a figura humana e há uma valorização do uso de figuras abstratas. Além disso, a utilização de apenas uma técnica de confecção e manipulação do boneco não é mais regra e se torna recorrente o emprego de diferentes procedimentos e recursos de construção num mesmo espetáculo. Outra mudança relevante se deu em relação ao uso da tradicional empanada que deixa de ser o espaço cênico predominante do bonequeiro que trabalha com bonecos de luva ou vara, e que, desta maneira, já não precisa mais estar obrigatoriamente oculto do público. Essa mudança permite a criação, em cena, de relações entre ator-animador e boneco animado e amplia as possibilidades narrativas da linguagem. A narrativa, por sua vez, deixa de ser baseada na dramaturgia tradicional. Começa-se a utilizar narrativas fragmentadas que já não estão tão preocupadas em contar linearmente uma história. Muitas destas transformações podem ser explicadas pelo fato de que não são apenas artistas bonequeiros que as propõe, mas também e principalmente, artistas de outras áreas: A renovação do Teatro de Bonecos é assegurada por uma geração de artistas, pintores ou escultores que não são bonequeiros profissionais. Eles introduzem imitações de bonecos nas peças de teatro (Picasso), nos balés (Léger) ou no cinema (Alexandra Exter). (Jurkowski, 2000, p.11) Desta forma o Teatro de Bonecos se aproximou de outras artes, principalmente das artes plásticas, e firmou um diálogo com elas. Criam-se espetáculos de Teatro de Bonecos que se inspiram ou recriam obras de pintores e escultores e estes também passam a confeccionar bonecos. Na Espanha o trabalho do diretor Joan Baixas é um exemplo desse diálogo estabelecido com Joan Miró. No Brasil as obras, desenhos e pinturas de Cândido Portinari inspiraram durante anos o trabalho do diretor Manoel Kobachuk. Os bonecos também começam a aparecer com mais frequência no teatro tradicional de Persona, no cinema e na televisão. Graças a esta ampliação de visibilidade que o boneco adquire ao dialogar com outras artes, o Teatro de Bonecos, que antes era predominantemente considerado como teatro popular ou exclusivamente infantil, é revisto e passa a ser considerado uma arte plural que abrange diferentes áreas de conhecimento. O 22 Teatro de Bonecos passa a ter um estatuto equivalente ao das outras artes. Ele continua a ter forte relação com o teatro infantil e popular, porém se expande e a renovação estética pela qual passa o torna uma arte híbrida e aberta às possibilidades de misturas e experimentações. Desta maneira o Teatro de Bonecos contemporâneo se caracteriza por ser uma arte multidisciplinar e heteróclita, o que a diferencia fundamentalmente do Teatro de Bonecos tradicional. Existem ainda reflexões importantes para este estudo, apresentadas por Henry Jurkowski, à respeito das diferenças entre o Teatro de Bonecos homogêneo e o Teatro de Bonecos heterogêneo. O Teatro de Bonecos homogêneo “não é nada mais do que um Teatro de Bonecos não contaminado por outros meios de expressão” (Jurkowski, 2000, p. 48). É um teatro que respeita os cânones clássicos de representação e dramaturgia, não permitindo a mescla de técnicas nem de materiais na manipulação e na confecção dos bonecos em cena. Após ler-se esta definição pode-se pensar que este é um Teatro de Bonecos limitado e em extinção, o que não é verdade. Ainda hoje podemos encontrar espetáculos de Teatro de Bonecos homogêneos sendo montados com muita frequência. O Teatro de Bonecos heterogêneo surge com artistas que decidem romper as fronteiras entre o Teatro de Bonecos e outras áreas artísticas. Ele tem relação direta com as transformações sofridas por essa arte. Neste teatro “o boneco deixa de ser o elemento dominante. Ele não é mais do que um componente entre outros, com o ator bonequeiro à vista, o ator mascarado, os objetos e os acessórios de todos os gêneros.” (Idem, p. viii) A partir destas transformações “inicia-se a ruptura do Teatro de Bonecos com sua prática tradicional. O primeiro obstáculo a ultrapassar é o das convenções do Teatro de Bonecos homogêneo.” (Idem, p.56). Dentre estas convenções estão a ocultação do ator, a não-miscigenação com diferentes técnicas, como a máscara ou o objeto e a dissimulação de procedimentos frente ao espectador. A partir do impulso de quebrar com essas convenções, muitos artistas começam a experimentar novas relações do boneco com do ator-animador. Surgem experimentações de espetáculos com animação à vista do público, bem como novas 23 relações do ator-animador com o próprio boneco. O ator-animador pode, ao mesmo tempo em que atua, animar o boneco e travar relações com este. Outra característica muito encontrada no que Jurkowski classifica como teatro heterogêneo é o uso de animação de objetos utilitários11. Na maioria dos casos em que encontramos esses dois elementos, boneco e objeto, a animação do objeto serve para complementar a narrativa das ações do boneco, seja simbolizando uma lembrança sua, seja representando algo ou alguém. Desta forma, fica claro que a função do diretor surge juntamente com as reivindicações de reconhecimento do Teatro de Bonecos enquanto arte e também pela necessidade dos artistas de mais apuro estético e técnico. Também fica claro que a tarefa do diretor varia se ele trabalha com um Teatro de Bonecos no qual predomina a homogeneidade ou a heterogeneidade. No Teatro de Bonecos homogêneo o foco de trabalho do diretor está na direção das ações do boneco. Neste teatro é o boneco o ponto principal e todo o espetáculo desenvolve-se em função dele. Por esse motivo o diretor precisa se preocupar, antes de tudo, com a visibilidade e a organicidade de movimentos do boneco. No Teatro de Bonecos heterogêneo o boneco deixa de ser o único foco da encenação, portanto o diretor precisa estar mais atento aos outros elementos que estão em cena, como a presença do próprio ator-animador. O diretor precisa trabalhar a relação não apenas do boneco com os outros elementos, mas também dos outros elementos entre si como, por exemplo, a relação do ator-animador com a iluminação; ou a relação dos objetos animados com o cenário. Obviamente o diretor não perde sua função fundamental de guiar esteticamente o espetáculo, nem de manter sua coerência. Mas, além disso e da direção do boneco, precisa estar atento aos outros elementos que predominam no Teatro de Bonecos heterogêneo. Com as reflexões acima apresentadas vale destacar que: A metamorfose do boneco não está em contradição com a existência de um Teatro de Bonecos dramático. Mesmo se o boneco, hoje, não ocupa mais exatamente a mesma posição, ele conserva toda a sua força e manifesta claramente sua presença. (Idem, p.54). 11 Objetos com funções outras que não teatrais. 24 Esse destaque se justifica pela recorrência de espetáculos de Teatro de Bonecos heterogêneos nos quais se pode encontrar uma linha narrativa dramática estruturada. Miguel Vellinho, por exemplo, nas seis montagens que realizou com a “Cia. Pequod” respeitou uma dramaturgia estruturada com início e fim, mesmo que a narrativa fosse fragmentada ou não cronológica, como no espetáculo “Filme Noir”. Figura 1 - Espetáculo Filme Noir, Cia PeQuod. Fonte: http://www.pequod.com.br. Miguel também encenou o texto de Gil Vicente, intitulado “O Velho da Horta”, fazendo adaptações no roteiro mas mantendo a história original. Além disso, na maioria dos seus espetáculos essa “presença clara” do boneco, tratada por Jurkowski na citação acima, é visível e o boneco é o protagonista do espetáculo, mesmo dividindo a cena com outros elementos ou com o ator-animador. Figura 2 - Espetáculo O Velho da Horta, Cia PeQuod. Fonte: http://www.pequod.com.br. 25 2 O diretor e as especificidades do Teatro de Bonecos O Teatro de Bonecos possui técnicas particulares que precisam ser dominadas por aqueles que decidam trabalhar com a linguagem. Sua diferença fundamental em relação ao Teatro de Persona está justamente na presença do boneco como personagem. Consequentemente, o diretor que trabalha com Teatro de Bonecos, além de estar a par dos componentes gerais de uma montagem teatral, precisa conhecer as especificidades que permeiam a animação de bonecos. Essas especificidades perpassam todos os aspectos da montagem e têm relação direta entre si. Elas variam, entre outros fatores, de acordo com a técnica de animação utilizada e com a quantidade de atores-animadores em cena. Dentre estas particularidades destacam-se a iluminação, que pode ser usada para evidenciar a presença do boneco e sublimar a presença dos atores que atuam à vista do público; o espaço da encenação e a cenografia, que devem ser adaptados para não prejudicar as ações e movimentos dos atores-animadores; e a maquiagem, que pode ser realizada para valorizar ou tornar as expressões faciais dos atoresanimadores discretas. Todos estes elementos, além de estarem em conformidade com as necessidades específicas do Teatro de Bonecos, são trabalhados de acordo com a intenção da obra. No entanto, dentre todos os aspectos que permeiam uma montagem de Teatro de Bonecos, analiso dois que merecem muito cuidado e atenção: a dramaturgia e as propriedades do boneco (técnicas, materiais e formais). É importante que o diretor tenha um conhecimento refinado a respeito destes dois pontos, tanto para poder orientar os atores, quanto para poder conceber e/ou conduzir uma montagem. A escassa publicação de textos dramáticos escritos especialmente para Teatro de Bonecos faz com que vários diretores tenham de exercer, também, a função de dramaturgos. Mesmo sem muito interesse pelo tema, muitos deles acabam realizando mais esta atividade dentro do espetáculo. Desta forma, o conhecimento das particularidades da dramaturgia no Teatro de Bonecos se faz necessário por duas razões visíveis: de um lado por que é preciso conhecer as 26 características de um texto dramático para essa linguagem e, de outro, ao ter que assumir a tarefa de dramaturgo, as exigências para tal atividade também são complexas. 2.1 Dramaturgia O Teatro de Bonecos é essencialmente um teatro de imagens. O boneco, predominantemente se manifesta através de ações, pois é fundamental ultrapassar a aparente contradição que existe entre a sua condição de forma inanimada e a forma animada que precisa atuar dramaticamente diante da plateia. Esta contradição é logo superada pelo público graças à função poética do espetáculo que cria uma realidade intraficcional coerente, que extrapola as referências e padrões da realidade. É comum encontrar espetáculos que prescindem da palavra. Nestes casos a música, normalmente, é um elemento presente que colabora na construção da dramaturgia textual e preenche possíveis lacunas deixadas pela ausência da palavra. No entanto, existem espetáculos de Teatro de Bonecos, principalmente os de origem popular como o Mamulengo, nos quais a palavra é essencial, uma vez que é condutora da ação e determinante do riso na plateia. Uma das características mais evidentes do Teatro de Bonecos é a negação do realismo. Essa negação já está presente antes mesmo do enredo. Ela começa na própria forma de realização do espetáculo: o boneco é um objeto inanimado, há alguém (que pode ser visto ou não) que o manipula e o espectador está consciente destas condições. Uma vez que o espectador tem consciência destas negações do realismo é fundamental a sua pré-disposição para aceitar a ilusão proposta pelo espetáculo: “Quando um boneco se anima, todos sabem que ele é manipulado, a vista ou não. Creio que o próprio prazer do espectador vem da dupla visão (duplo conhecimento) do jogo de ida e volta entre o que é mostrado e o que é oculto.” (Heggen, 2006, p. 61). Este jogo entre o espectador e o espetáculo é marcado essencialmente pela relação entre ator-animador, boneco animado e plateia. Esse tripé é o primeiro aspecto a ser levado em consideração ao se estudar a dramaturgia no teatro de 27 Bonecos. Nas palavras de Felisberto Costa: “É na mediação do objeto interposto entre ator e público que reside o fator determinante desta dramaturgia.” (2000, p. 24). Essa mediação é orientada pelo diretor que muitas vezes exerce o papel do dramaturgo. Estando consciente deste princípio que rege a animação o diretor, ao conceber uma cena, pode trabalhar com estas relações e explorar este princípio. Costa destaca ainda a reconfiguração da cena com a presença do objeto/boneco: Na relação ator-plateia, a interposição do objeto estabelece uma nova configuração cênica. O ator passa a condição de ator-manipulador ou animador. Como signo visual, o objeto torna-se protagonista, estabelecendo uma relação dinâmica com o ator e a plateia. O dramaturgo deve ter em conta esse procedimento, uma vez que a prática da animação se estrutura segundo este princípio. (Idem, p.44) Historicamente um elemento que marca o Teatro de Bonecos é a adaptação de textos escritos clássicos, dramáticos ou não (como Hamlet ou Chapeuzinho Vermelho), sobretudo textos de muito sucesso: “[...] durante muito tempo o teatro de bonecos serviu-se das obras do teatro de atores, ora adaptando-as ora utilizando-as como modelo em escala reduzida.” (Idem, p.55). Essas adaptações de textos clássicos permitem várias alterações na estrutura e no enredo como, por exemplo, o acréscimo ou a retirada de cenas. Essas alterações podem servir também para transformar o novo texto em uma paródia do texto clássico, tornando cômico o que antes era grave. Desta maneira entende-se que não é fato exclusivamente atual a escassez de dramaturgia escrita especificamente para Teatro de Bonecos. Além de historicamente essa produção ser rara, essa escassez é explicada pelo fato de que o dramaturgo que decida escrever para esta linguagem obrigatoriamente ter que possuir conhecimentos específicos sobre a linguagem. Esta escassez também é debatida por Luiz André Cherubini: Não só a popularidade, a tradicional oralidade e o estatuto inferior do Teatro de Bonecos são responsáveis pela quase inexistência de textos para esta Arte. Também a inexistência, para o títere, de um padrão de tamanho, forma, plástica, repertório de gestos, técnica de animação; a não existência de uma gramática de recursos expressivos do titiritero (talvez mesmo a impossibilidade de fixá-la), as diferentes relações possíveis entre espetáculo e público, entre outros fatores, dificulta, se não impede, a construção de uma dramaturgia isolada de uma encenação. (In: Beltrame, 2008, p.56) 28 Dentre o que Cherubini apontou como “outros fatores” está o fato de o boneco, nas encenações contemporâneas, precisar mais de movimento do que de palavra, o que explica o porquê de frequentemente podermos assistir a espetáculos de Teatro de Animação nos quais a palavra é inexistente. Além disso, o autor de textos para Teatro de Bonecos precisa conhecer as limitações e possibilidades de cada técnica de manipulação para poder escrever ações e movimentos possíveis de serem realizados. Esse conhecimento especializado torna ainda mais raro encontrar dramaturgos para esta linguagem. No entendimento de Álvaro Apocalypse: [...] à maneira do compositor que escreve a música para uma variedade de instrumentos, aquele que escreve para teatro de bonecos tem que escrever para uma grande variedade de técnicas e gêneros e isso torna esse raro ofício mais complexo ainda. (2000, p.78) Dadas essas circunstâncias compreende-se que é mais recorrente encontrarmos textos dramatúrgicos escritos especificamente para Teatro de Bonecos que surgem no processo de montagem de espetáculos e, posteriormente, são escritos e registrados. Dramaturgia e encenação, nestes casos, estão intrinsecamente ligadas: após a criação do espetáculo o grupo registra o texto como forma de documentá-lo ou torná-lo público e permitir que se realizem outras montagens. Também é comum que os textos escritos antes do processo de encenação sofram adaptações na montagem da cena. Outro elemento importante no texto escrito para Teatro de Bonecos são as rubricas: As rubricas têm um papel muito importante nos textos para Teatro de Bonecos, pois, através delas se obtém a intenção do autor quanto a gestos, entradas e saídas, postura e caráter da personagem, oferecendo dados para o cenógrafo, para o construtor de bonecos, para o diretor, para os atores/manipuladores. Sendo assim, maior ainda a necessidade de o autor conhecer a técnica para a qual escreve, não sendo demasiadamente econômico em rubricas, deixando os demais participantes da encenação perdidos, ou, ao contrário, jorrando rubricas ao ponto de afogar a criatividade do encenador. (Idem, p.77). Através das rubricas o dramaturgo consegue esclarecer as intenções dos personagens em seu texto, facilitando o entendimento do diretor do que ele deseja 29 que seja realizado. Existem obras escritas, não apenas para bonecos, que são grandes rubricas12, excluindo a fala e o diálogo verbal. Felisberto Costa (2000) descreve 12 procedimentos dramatúrgicos relativos ao Teatro de Animação. Dentre os aspectos estudados pelo autor, dois julgo necessário discutir com mais atenção neste capítulo: a consciência do personagem e o recurso narrativo. Ambos são descritos por Costa e seguirei a nomenclatura por ele proposta. Esse destaque a esses recursos é feito dadas as suas ligações com a função do diretor que, como já dito, precisa muitas vezes ser também o dramaturgo do espetáculo, seja adaptando, seja criando textos. Mesmo que esse diretor não escreva o texto e apenas tenha uma ideia de roteiro que transformará em texto durante a montagem, esses recursos dramatúrgicos são explorados em cena ao longo da construção do espetáculo e orientados pelo diretor. A consciência do personagem, segundo Costa (2000) pode ser separada em três níveis: a consciência da condição de personagem, os personagens conscientes de seu estado objetal e os personagens conscientes dos acontecimentos. A consciência da condição de personagem pode variar de acordo com o nível de consciência: o personagem pode estar ciente de si e alterna entre a sua personalidade e a personalidade do personagem que representa; o personagem pode, também, apresentar uma consciência dupla, ou seja, ele está consciente de sua condição dramatúrgica da mesma forma que o personagem que ele representa também está. É como um boneco que representa um rei e este tem consciência de que é um personagem. (Ibidem) Nos personagens conscientes de seu estado objetal ocorre que “o personagem tem consciência de que é um boneco” (Idem, p.32) Ou seja, ele sabe de sua condição de manipulado e de sua dependência do manipulador. Essa relação pode gerar cenas muito bonitas e reflexivas, como é o caso do espetáculo “O Princípio do Espanto” do grupo MorpheusTeatro 12, de São Paulo. 12 Uma das obras teatrais mais famosas da dramaturgia do século XX que utiliza apenas rubricas é “Ato Sem Palavras”, de Samuel Beckett. Essa obra, inclusive, já foi montada com a utilização de bonecos pelo grupo “Sobrevento”, de São Paulo. 30 Figura 3 - Espetáculo O princípio do Espanto, Grupo Morpheus Teatro 12. Fonte: http://lauraveridiana.blogspot.com Nesta peça, que conta com apenas um ator-animador e um boneco, este último descobre ao longo do espetáculo sua condição de manipulado e sua resistência em aceitá-la gera conflitos existenciais muito interessantes. Outra forma de consciência do personagem acontece quando ele é ciente dos acontecimentos. Neste caso “o personagem tem o atributo do conhecimento espaçotemporal das situações dramáticas.” (Idem, p.33). Felisberto ilustra esta questão com o seguinte exemplo: “Em Mistério da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Ghelderode, os personagens apresentam a consciência dos acontecimentos vindouros. A peça é estruturada em episódios, nos quais a divisões das cenas são determinadas pelas mutações no local da ação.” (Ibidem) Em todos esses casos o envolvimento do diretor se dá à medida que, ao dirigir as cenas, ele orienta o ator para explorar essas possibilidades de consciência que, em realidade, só podem existir a partir das mãos do ator-animador. Todas essas consciências se resumem a uma única consciência real: a do ator-animador. Um espetáculo que utiliza qualquer uma dessas possibilidades sem o devido tratamento pode se tornar confuso. Cabe ao diretor orientar as cenas a fim de que a obra seja, em algum nível, inteligível. Por sua vez, no recurso narrativo descrito por Costa (Idem, p.30), cabe ao narrador onisciente conduzir a história interrompendo-a ou comentando-a quando deseja. Esse narrador pode ser tanto o boneco quanto o ator-animador, ou até mesmo ambos, e ele pode também se relacionar com o público e conduzir os acontecimentos de acordo com sua vontade. Essa função pode culminar em uma ilustração do espetáculo: “muitas vezes, a ação teatral é negligenciada em 31 detrimento da simples ilustração dos fatos. Nesse caso, as imagens limitam-se à corporificação das falas, e não são tomadas pelos seus valores plásticos e dramáticos próprios.” (Idem, p.30). É tarefa do diretor evitar essa narratividade conduzindo propostas de montagem que afastem o ator-animador deste problema. Quando esse recurso é utilizado, o viés mais simples recai nessa ilustração e muitas vezes é difícil para quem está em cena perceber até que ponto a narração se tornou ilustração. Todos estes procedimentos dramatúrgicos, no entanto, quando postos em cena, só tem fundamento se os atores-animadores conseguem causar na plateia a impressão de que o boneco é um ser autônomo, um ser verdadeiro. Essa verdade do Teatro de Bonecos só pode ser construída a partir do momento em que o boneco se movimenta, olha e vê, age e reage. Falar ou emitir sons também podem fazer parte da animação, mas essas ações só existem se vinculadas ao movimento do boneco, que não precisa ser grande nem expansivo, mas precisa acontecer. Sergey Obraztsov diz: O destino do boneco é mover-se. É justamente a conduta, o comportamento físico do boneco que cria se caráter. O texto, se existe, tem também uma grande importância, mas se as palavras pronunciadas pelo boneco não se materializam de certa forma em gestos, elas se desligam do boneco e caem no vazio. (In: Mamulengo nᵒ 03, p.15) Podehl, com outras palavras, confirma as colocações de Obraztsov: [...] a dramaturgia do Teatro de Bonecos não repousa unicamente nas palavras e na ação, mas com frequência e muito simplesmente em pequenos gestos, no silêncio, no jogo de luz, no abandono ou na reanimação de tal ou tal “figurinha” chamada boneco, e enfim na perturbação, na movimentação do espaço cênico. (Podehl, apud Jurkowski, 2000, p.77) Por esse motivo ao se falar de dramaturgia no Teatro de Bonecos é necessário estar atento a que tipo de dramaturgia se trata, a dramaturgia escrita textual, da qual tratei até aqui, ou a dramaturgia do movimento. Nesta linguagem a dramaturgia está intrinsecamente relacionada com a criação de partitura de movimentos antes de estar ligada à escrita textual pautada em falas e diálogos. 32 2.1.1 Dramaturgia do movimento: o diretor e a construção da partitura Dada a importância do movimento para a dramaturgia do Teatro de Bonecos, o diretor, mesmo que utilize uma dramaturgia textual, precisa estar atento para o que hoje se denomina dramaturgia do movimento. Esse conceito surge a partir de pesquisas sobre dança-teatro e trata do estudo de uma dramaturgia composta pelo corpo em movimento e não por palavras escritas13. A dramaturgia do movimento, no Teatro de Bonecos, é constituída por movimentos executados pelos atoresanimadores para animar o boneco. Essa dramaturgia é regrada e dialoga com princípios próprios da técnica de manipulação com qual se trabalha. De acordo com Caroline Cavalcante: Cada movimento tem um significado e o ator-animador que trabalha com essa referência concentra-se não apenas nos movimentos do objeto animado, mas também nos movimentos de seu próprio corpo. A forma como se organiza esse conjunto de movimentos reorganiza também o significado emitido. O mesmo movimento pode ser realizado de distintas maneiras, produzindo em cada variação diferentes conteúdos de significação do movimento. É trabalho do ator-animador (em conjunto com o diretor, quando é o caso) experimentar e descobrir os movimentos que melhor se adaptam às demandas artísticas e técnicas da personagem. (2008, p.90) No Teatro de Bonecos os movimentos realizados pelo boneco são pensados e estudados para que transmitam o significado escolhido pelo ator junto ao diretor. Durante os ensaios, diretor e atores-animadores escolhem movimentos (que serão combinados com falas e/ou sons) a serem fixados e repetidos a cada apresentação. A fixação destes movimentos compõe as partituras de movimentos: Na dramaturgia específica de um trabalho não verbal, que utiliza objetos ou bonecos, precisamos criar uma partitura de movimentos que traduza gestualmente intenções e conteúdos. Essa partitura não é mímica [...] é um complexo de ações e movimentos corporais estudados, recortados e elaborados com clareza e síntese do que se quer dizer. (Gabrieli, 2007, p.234) Esse “complexo de ações e movimentos corporais” executado pelo atoranimador está relacionado às possibilidades físicas do mesmo, às possibilidades do material do qual é feito o boneco e aos movimentos que se intenciona que o boneco realize. Também tem ligação com as escolhas estéticas do espetáculo como, por 13 Para maiores informações ver: http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2/cenicas/Milton%20-%20Juarez.pdf 33 exemplo, se ocultam ou não o animador. O responsável por “recortar e elaborar com clareza e síntese o que se quer dizer” é o diretor que, com o olhar de fora, pode analisar e selecionar ou excluir ações. Não afirmo aqui que essa tarefa seja impossível ao ator-animador, mas o diretor, como já dito, ao olhar à distância vê mais criticamente a cena e isso permite seu refinamento e apuro técnico. Segundo Cavalcante, existem três níveis (que a autora chama de esferas) da partitura: partitura da encenação, partitura do ator-animador e partitura da personagem. Ela afirma que “a partitura da encenação se dispõe a dar conta do conjunto dos elementos presentes na encenação, buscando criar e visualizar o todo como os diversos instrumentos de uma orquestra.” (2008, p.118). Ou seja, essa é a partitura de responsabilidade imediata do diretor, pois está diretamente ligada à estética de movimento do boneco e consequentemente à estética do espetáculo. Além disso, o diretor por estar fora de cena pode observar todos os movimentos de todos os bonecos e, desta maneira, coordená-los tanto na relação entre eles, quanto na relação deles com os outros elementos do espetáculo. A partitura do ator-animador e a partitura do personagem têm ligação direta. A primeira consiste nos movimentos e intenções do corpo do próprio ator-animador, ao mesmo tempo em que ele executa a partitura do personagem, que consiste nos movimentos do boneco. Cada ator-animador possui sua própria partitura de movimentos, que é pessoal e varia de acordo com suas possibilidades físicas, com o tipo de boneco e ainda com a parte do boneco da qual é responsável a animar. Por exemplo, se em um espetáculo três atores-animadores dividem a animação de um mesmo boneco cada um deles construirá sua própria partitura de movimento e, a conjunção destas partituras, comporá a partitura de movimento do boneco. As partituras são construções realizadas simultaneamente com as contribuições do ator-animador e do diretor. Ao solicitar que os atores-animadores realizem um determinado movimento com o boneco e não outro, o diretor escolhe de que maneira tecerá as sequências e construirá as relações entre o boneco e o público, bem como as relações entre os atores-animadores que se revezam para manipular os bonecos. Quando estas relações são bem estruturadas, dão veracidade ao movimento do boneco, mas se mal articuladas podem desqualificar o espetáculo. 34 Todas estas partituras auxiliam na criação de um espetáculo orgânico e na repetição dos movimentos com qualidade, e mantêm as intenções desejadas nas apresentações. Sobre isso Cavalcante afirma: A partitura no teatro de animação possibilita a organização de uma série de dados que emergem no processo criativo de uma obra teatral, consolidando-se como uma ferramenta de apoio à realização da animação de um objeto, trabalho que pode muito exigir da precisão e de uma seleção de signos mais expressivos, numa linguagem onde vale mais a qualidade do que a quantidade de cenas, elementos e movimentos selecionados. (2008, p.126) As partituras são, desta forma, um meio pelo qual atores-animadores e direção trabalham tanto a precisão de movimentos quanto a qualidade da cena. Como afirmou Cavalcante, no Teatro de Bonecos o ditado de que “menos vale mais” é procedente. Miguel Vellinho, durante a entrevista, enfatizou a importância de se estudar os movimentos dos bonecos: [...]no movimento do boneco tudo é pensado. Não tem um movimento do boneco que a gente não pense, que a gente não veja o melhor desenho para aquele gesto. Tudo acaba virando uma partitura gestual mesmo. O boneco por si só não se movimenta. Então toda a construção de movimentação é algo pensado. O trabalho do diretor no Teatro de Bonecos está, por todas estas razões, geralmente mais ligado a uma dramaturgia do movimento do que à uma dramaturgia textual. Mesmo quando Vellinho dirigiu um texto dramatúrgico clássico, “O Velho da Horta”, não bastou que ele colocasse o texto em cena, foi preciso também adaptar este texto à realidade da linguagem, aos requisitos do boneco e aos recursos dos atores-animadores. Tanto na dramaturgia de movimento quanto na dramaturgia textual também irão influenciar o tamanho, a estrutura e o material de que é feito o boneco. Esta escolha de como será construído o boneco pode ser feita a partir de distintos motivos, como os requisitos dramatúrgicos ou as possibilidades físicas dos atores, mas em qualquer caso faz parte da função do diretor mediar essa relação entre a construção do boneco e a cena. 35 2.2 A construção do boneco e as possibilidades expressivas de seu material Com as mudanças pelas quais o Teatro de Bonecos atravessou no século passado, é possível registrar que a construção dos bonecos para determinados espetáculos descentralizou-se da figura do bonequeiro polivalente. Em muitos grupos passou-se a dividir esta tarefa entre os integrantes da companhia ou até mesmo passou-se a contratar um construtor de bonecos. Esse artista, normalmente relacionado com as artes plásticas ou o artesanato, não necessariamente precisa ser um ator-animador, porém precisa dominar as técnicas de construção de bonecos para que ele seja animado. Diversos grupos ou mesmo artistas solistas trabalham atualmente com pessoas contratadas para construir os bonecos de seus espetáculos. Estes artistas são orientados, normalmente pelo diretor, sobre as necessidades específicas de cada boneco, bem como sobre o material do qual eles precisam ser feitos. Estes construtores podem ter relação, ou não, com o espetáculo ou o grupo. Frequentemente são pessoas que já tem alguma relação com Teatro de Bonecos. Na “Cia PeQuod Teatro de Animação”, por exemplo, Vellinho esclarece que são pessoas da própria Cia. que confeccionam os bonecos. Elas decidem se irão trabalhar na confecção e são orientadas por ele. Já na “Cia Trip Teatro de Animação”14, de Santa Catarina, todos os bonecos são confeccionados por pessoas que não integram a Cia. Nos espetáculos O Incrível Ladrão de Calcinhas e O Flautista de Hamelin, por exemplo, os bonecos foram confeccionados por Paulo Nazareno, bonequeiro que não faz parte do grupo. 14 Para maiores informações ver: http://www.tripteatro.com.br. 36 Figura 4 - Espetáculo O incrível ladrão de calcinhas, Cia Trip Teatro de Animação. Fonte: http://teatro-de-bonecos.blogspot.com A confecção dos bonecos é uma etapa muito importante na encenação do espetáculo, pois a matéria do qual o boneco é feito vai definir suas possibilidades de articulação e movimentação: Obviamente, o desenho plástico no Teatro de Bonecos não é tudo, mas pode influenciar favoravelmente na possível claridade, organicidade, simplicidade e originalidade dos distintos componentes que formam esta 15 arte singular e requintada. (Curci, 2007, p.50, tradução nossa) Além das questões apontadas por Curci é importante frisar que o material escolhido, as dimensões e o peso do boneco também devem ser pensados de acordo com a proposta do espetáculo. Destas escolhas dependerão a estética final da obra e a técnica de manipulação que terá de ser usada pelo ator-animador. Se os bonecos escolhidos são de fios, por exemplo, tanto o construtor do boneco quanto o ator-animador terão que dominar esta técnica, o primeiro para saber como construir as partes do boneco, as articulações, a cruz de manipulação e suas ligações16, e o segundo para saber como manipular este boneco, que exige uma técnica específica. 15 “Obviamente, el diseño plástico em el teatro de títeres no lo es todo, pero puede influir favorablemente en la posible claridad, organicidad, sencillez y originalidad de los distintos componentes que conforman esta singular y exquisita forma de arte.” 16 A cruz de manipulação é o objeto no qual são ligados os fios com os quais o marionetista manipula a marionete. Para maiores esclarecimentos a respeito de diferentes cruzes de manipulação ver: Giramundo, 2005. 37 Da mesma maneira, se o espetáculo for construído com bonecos de manipulação direta o construtor precisa estar consciente das articulações necessárias para que o boneco seja manipulado, das posições nas quais os atoresanimadores pegarão no boneco e até mesmo de quantos atores-animadores animarão o boneco. Já o ator-animador precisa estar consciente das limitações do boneco, precisa saber de seu peso e qual a forma adequada de movê-lo e, para isso, o domínio técnico se distingue da animação de marionetes ou bonecos de fios. Essa relação entre construção, manipulação e proposta estética do trabalho é mediada pelo diretor que está consciente de todos os níveis da realização do espetáculo. Desta maneira o diretor não precisa confeccionar e nem conceber os bonecos, mas precisa orientar o construtor sobre as necessidades e especificidades que o boneco a ser criado deve contemplar. Sobre a importância da presença do diretor na orientação da construção dos bonecos Vellinho relata o que se passou em seu último trabalho denominado Lampião: Neste último espetáculo, no Lampião, a gente teve muito problema, porque justamente foi um espetáculo no qual eu me ausentei completamente da confecção. E foi complicado, porque teve questões que não ficaram totalmente concluídas e que talvez a gente desenvolva em um outro momento. Foi onde eu realmente senti que eu não posso me afastar tanto assim da confecção, acho que foi um erro meu [...] É que os procedimentos dentro da confecção foram muito confusos, mas deu tudo certo no fim. Mas eu sinto real necessidade de estar junto. Não dá, não é uma direção fria, acho que tem que estar junto ali também, porque são os meus atores também. Os bonecos são os meus atores também, então o diretor tem que estar junto também dos bonecos. Teve um problema sério ali de condução que quase desandou uma coisa que ia ser trágico. Mas não foi. Deu tudo certo no final. Portanto, Miguel afirma, por empirismo, que a presença do diretor na coordenação e supervisão da confecção dos bonecos é ponto chave no seu trabalho, pois desta construção dependerá muitas resultados do espetáculo. Semelhantemente ao que ocorre na “Cia PeQuod”, na “Cia Articularte de Teatro de Bonecos”, Dario explicou que quem constrói todos os bonecos é Surley, sua esposa e também atriz-animadora do grupo. Dario dá indicações do que deseja e ela constrói, muitas vezes acrescentando algumas ideias próprias. Outro aspecto expressivo ao qual o diretor precisa ater-se durante a confecção, além do material a ser utilizado, do peso e do tamanho, é a expressividade do rosto do boneco. A maneira como seus olhos, bocas, 38 sobrancelhas e outros elementos da face serão moldados definirá muito da personalidade deste boneco. A opção pela ausência de algum dos elementos, como o nariz e a boca, também vai definir seu caráter. Também não há como desvincular a expressividade do boneco da expressividade da material da qual é feito. Um boneco construído com materiais puídos ou grosseiros causará distinta impressão no público do que um boneco construído com materiais que permitam que ele tenha um rosto liso e harmônico. Da mesma maneira, um boneco muito pesado ou com poucas articulações terá diferentes possibilidades em cena do que outro leve e com várias articulações. O diretor de Teatro de Bonecos, desta maneira, precisa saber articular com coerência todas as características das quais são feitas os bonecos. Essa relação precisa ser pensada considerando todos os outros aspectos da montagem. Um diretor que não conheça diferentes maneiras de construção de bonecos e as possibilidades expressivas de distintos materiais poderá apresentar limitações e dificuldades técnicas em seu trabalho. Seu conhecimento precisa abranger estes aspectos, independentemente de sua habilidade para construir o boneco. O diretor, como em todas as outras fases da montagem, antes de ser um executor, é alguém que domina a fundo a linguagem com a qual trabalha e tem conhecimento e sensibilidade suficientes para saber pelo que optar. As possibilidades do material e da composição física do boneco também podem ser exploradas pela dramaturgia textual. Como afirma Costa: “muito utilizado pelos autores-bonequeiros, o recurso às propriedades corporais do boneco permite qualificá-lo e especificá-lo comparando-o ao corpo do ator.” (2000, p.34). Ou seja, o autor de Teatro de Bonecos pode utilizar-se de possibilidades do boneco, como desmembrar-se ou voar, para ajudar em várias intenções de comicidade ou em relações metafóricas. A direção, ao conhecer as especificidades com as quais o Teatro de Bonecos precisa lidar, conduz o processo de montagem articulando todos os âmbitos que o compõe. Desta maneira, o conhecimento abrangente do diretor a respeito da dramaturgia e das características expressivas do material permite a ele pesquisar novas estruturas de cena, bem como conduzir um trabalho que dialogue com diferentes possibilidades estéticas. 39 3 Técnica e Imaginação: A direção do espetáculo Mesmo com o crescente desenvolvimento de estudos sobre Teatro de Bonecos, a falta de registro e teoria sobre processos de encenação e sobre o trabalho do diretor teatral ainda é uma realidade no Brasil. Na revisão bibliográfica feita para esta pesquisa não foram encontrados estudos, artigos, ou mesmo apontamentos dedicados à direção de espetáculos de Teatro de Bonecos. As reflexões sobre este tema, escassas, foram encontradas diluídas em diferentes artigos que abordam temas diversos. No entanto, na etapa de observação de espetáculos e realização de entrevistas percebi que existem diretores que, na prática, organizam seus procedimentos e sistematizam seus trabalhos de modo coerente com suas escolhas estéticas e poéticas. Pude perceber na entrevista tanto de Miguel Vellinho quanto de Dario Uzam que ambos possuem certa constância na condução dos seus espetáculos. Suas estruturas de montagem e suas escolhas estéticas são fruto de anos de trabalho que permitiram o desenvolvimento de técnicas e processos, os quais eles julgaram adequados. A seguir apresento reflexões oriundas da bibliografia estudada e da observação das práticas dos dois diretores de Teatro de Bonecos entrevistados, evidenciando especificidades e características do trabalho do diretor. Para discutir essas características é pertinente refletir sobre o que se caracteriza como fundamental no trabalho do diretor de Teatro de Bonecos, e sobre as eventuais diferenças e semelhanças com a função do diretor de Teatro de Persona. Sobre o assunto, Michael Meschke, diretor do Marionettentern, de Estocolmo, discute: A direção do teatro de bonecos é diferente da direção do teatro de atores? O diretor de teatro de bonecos tem, naturalmente, que definir sua forma de arte e estar consciente das propriedades específicas do teatro de bonecos, o que exige profundos conhecimentos de diferentes técnicas de representação. Para interpretar os movimentos é preciso saber o que se pode realizar com a técnica escolhida e, também, como se realiza. O conhecimento técnico é parte do abc do diretor de teatro de bonecos. (1988, 17 p.73, grifos do autor, tradução nossa) 17 “¿Es diferente la dirección del teatro de títeres de la de actores? El director de teatro de títeres tiene, naturalmente, que definir su forma de arte y ser consciente de las propiedades especificas del teatro de títeres, lo que exige profundos conocimientos de diferentes técnicas de representación. Para 40 O autor esclarece que o diretor de Teatro de Bonecos não pode prescindir dos conhecimentos específicos da linguagem. Ele precisa aprender suas técnicas a fim da saber o que se pode realizar com cada uma e como utilizá-las. Por mais que ele não esteja em cena, este conhecimento técnico é necessário para que ele dirija quem está em cena. Sem estes conhecimentos, fica difícil para o diretor conceber a cena a ser realizada. Meschke continua suas reflexões discorrendo: Talvez se confunda a profusão de ideias com a boa direção. Eu não creio que as boas ideias sejam o mesmo que a boa direção. Ao contrário os efeitos técnicos podem camuflar uma falta de interpretação mais profunda. 18 Nisto a direção de bonecos não se distingue da de atores. (Ibidem) Neste trecho o autor esclarece que a direção do Teatro de Bonecos também divide com a direção do Teatro de Persona alguns procedimentos. Para ele, em ambas, o excesso de técnicas ou de ideias não são o que definem uma boa direção. Um boneco que possua diversos mecanismos não necessariamente será um boneco funcional, da mesma forma que um espetáculo cheio de recursos de iluminação ou cenográficos não necessariamente será um bom espetáculo. Meschke afirma na sequencia do seu estudo: Todavia, a riqueza de invenção, a fantasia e a imaginação, o rico fluxo das ideias parecem qualidades particularmente úteis para o diretor de bonecos, 19 porque sem elas é difícil dar vida a matéria morta. (Ibidem) Desta maneira ele reafirma que para o diretor de Teatro de Bonecos a técnica é importante, mas não é apenas o seu domínio que garante uma boa direção. Além da técnica este profissional deve ser criativo e ter capacidade de invenção e imaginação, pois ele dirigirá cenas nas quais será atribuída vida à matéria interpretar los movimientos hay que saber que puede realizarse con la técnica elegida y, también, como se realiza. El conocimiento técnico forma parte del abc del director de teatro de títeres.” 18 “Tal vez se confunde la profusión de ideas con la buena dirección. Yo no creo que las buenas ideas sean lo mismo que la buena dirección. Al contrario los efectos técnicos pueden camuflar una falta de interpretación más profunda. En esto, la dirección de títeres no se distingue de la de actores.” 19 “No obstante, la riqueza de invención, la fantasía y la imaginación, el rico fluido de las ideas parecen cualidades particularmente útiles para el director de marionetas, porque sin ellos es difícil dar vida a la materia muerta.” 41 inanimada, e a demonstração das possibilidades de vida no boneco pode se dar de diferentes formas e ir além das possibilidades apresentadas pelo corpo humano. Por isso, o diretor precisa conhecer os princípios da animação de bonecos pois sem esses conhecimentos terá dificuldades para guiar os atores na realização de seus trabalhos. Sem tais conhecimentos ele corre o risco de cometer erros primários sobre a ação dos bonecos e as especificidades da dramaturgia, distanciando-se das características dessa linguagem. É fundamental que ele possua domínio desses conhecimentos para conceber adequadamente um espetáculo dentro desta linguagem artística e conduzir os atores-animadores em cena, bem como toda a equipe envolvida no projeto. 3.1 Ator-animador também é ator Considerando as especificidades inerentes ao trabalho do diretor de Teatro de Bonecos e a importância de ele conhecer os códigos e registros de seu trabalho, não é de se surpreender que o ator que decida a trabalhar com esta linguagem também deva se apropriar de conhecimentos específicos. São raras, no Brasil, as instituições de ensino técnico ou superior que propiciem formação profissional para atores-animadores20. Essas escolas são destinadas predominantemente à formação de artistas de Teatro de Persona, sendo que em algumas delas há poucas disciplinas que abordam conteúdos sobre Teatro de Bonecos. Considerando que a maior parte dos cursos de teatro objetiva formar atores, diretores e/ou professores, a formação em Teatro de Bonecos (assim como em outras linguagens teatrais) não é priorizada na carga horária dos cursos e por isso não é possível que a formação ali oferecida forme profissionais dessa área. No Brasil não existem cursos superiores destinados à formação profissional de atores-animadores. Essa formação se dá de distintas maneiras: por meio do empirismo; por meio da observação e do contato com artistas que há tempos trabalham na área; por meio de oficinas e workshops de curta duração; pela troca de experiências em festivais de privilegiem essa linguagem. 20 Para maior esclarecimento sobre a formação profissional do ator-animador no Brasil ver: MóinMóin nº 6. 42 Também acontece, como é o caso de alguns atores-animadores da “Cia Articularte”, de os atores terem o primeiro contato com a manipulação de bonecos ao ingressarem na companhia. Eles, normalmente, já são atores e aprendem o ofício de atores-animadores na prática, seja montando espetáculos, seja substituindo um ator-animador em espetáculos em cartaz. Dario Uzam relata que a seleção dos atores da sua companhia é feita por uma entrevista e seu treinamento se dá durante os ensaios, em cena. Assim, segundo Uzam, a “Cia Articularte” já possuiu uma maneira própria de trabalhar: “Nós pegamos um traquejo. Começamos [a ensinar a manipulação] pelos pés. Historicamente começa-se pelos pés.”21 Para Dario a formação de um ator de Teatro de Persona pode ser complementada e enriquecida se ele aprende as técnicas de manipulação. O mesmo afirma o diretor francês Dominique Houdart em recente artigo publicado no Brasil: Seria útil, pois, dar a todos os jovens atores em formação um conhecimento das bases da utilização do objeto, elementos referentes à energia, à transmissão, à dissociação, à coordenação, à distanciação – outros tantos elementos básicos para o manipulador, mas úteis – e como! – para a formação do ator, ainda que sem marionete. (2007, p.27). Nesta citação Houdart trata dos “elementos básicos” para o manipulador, elementos estes que podem ser compreendidos como uma das diferenças entre o trabalho do ator e do ator-animador. De maneira semelhante, Beltrame afirma: O conhecimento necessário ao trabalho de ator ainda que seja indispensável para sua atuação, não é suficiente. Ser ator, não significa, necessariamente, ser ator-animador. A animação do objeto, incumbência principal do ator-animador exige domínio de técnicas e saberes que não são necessariamente do conhecimento do ator. Ao mesmo tempo, é preciso salientar que se o ator-animador se confina nas especificidades desta linguagem, dissociando-se do trabalho do ator, tem uma atuação incompleta e inadequada. Ou seja, o ator-animador não pode prescindir dos conhecimentos que envolvem a profissão de ator. (2008, p. 38-39). Ou seja, por mais que o ator-animador precise ter domínio de técnicas específicas de manipulação, ele também precisa ser ator, precisa dominar as 21 Quando Dario especifica que a manipulação historicamente começa pelos pés refere-se provavelmente ao Bunraku, o Teatro de Bonecos Tradicional Japonês.. Para maiores informações sobre essa linguagem ver nota nº 6. 43 técnicas da profissão e somar a elas os conhecimentos específicos do Teatro de Bonecos. Para Rafael Curci, essa diferença entre ator e ator-animador acontece ainda antes da técnica, quando afirma: A diferença fundamental entre um ator e um ator-animador está na forma expressiva em que cada um elege para comunicar-se, e mesmo que pareçam compatíveis no terreno das artes dramáticas, não o são nem em princípio nem em essência. O instrumento expressivo do ator é seu próprio corpo, seus movimentos e motivações, sua gestualidade, enquanto o ator-animador faz isso através 22 de um objeto. (2002, p.23, grifos do autor, tradução nossa) No entanto, é importante frisar que essa escolha feita pelo ator-animador de expressar-se através de um objeto só é possível pelo aprendizado das técnicas. Porém, o trabalho do ator-animador vai além do treino da manipulação e da perfeição na execução dos movimentos do boneco. Ele também precisa criar sintonia entre seus movimentos e os movimentos do boneco que anima, aproveitando as possibilidades expressivas do boneco para conferir-lhe vida. Como afirma Margareta Niculesco: “a técnica não é tudo... se não há imaginação, se não existem sonhos artísticos, é somente técnica.” (apud Beltrame, 2008, p.27). O ator-animador, como já diz o nome, além de ser ator precisa ir mais adiante: ser animador. A soma destes conhecimentos lhe caracteriza como um profissional que além de expressar-se com seu próprio corpo se expressa através do objeto/boneco. Em ambos os casos a expressividade é alcançada com algo que vai além do domínio da técnica: o sonho artístico. 3.2 Ator-animador também trabalha com princípios É necessário frisar que o trabalho do ator-animador se distingue do trabalho do ator, primeiramente, pela questão mais imediata: o ator-animador expressa-se artisticamente através do boneco. A personagem não é apresentada no corpo do 22 “La diferencia fundamental entre un actor y un titiritero radica en la forma expresiva que elige cada uno para comunicarse, y más allá que parezcan compatibles en el terreno del arte dramático, no lo son em principio ni en esencia. El instrumento expresivo del actor es su propio cuerpo, sus movimientos y motivaciones, su gestualidad, mientras que el titiritero lo hace a través de un objeto.” 44 ator, a personagem é o boneco e a relação com a plateia é mediada pelo boneco. Rafael Curci apresenta de forma clara essa distinção entre o trabalho do atoranimador e o trabalho do ator: [...] o ator-animador deve atuar com um personagem que em momento nenhum pode ser confundido fisicamente com ele, que está fora dele, e que lhe é estranho por sua própria natureza e o qual, não obstante, deve fazer viver cenicamente outorgando movimento e voz. (2007, p.97, tradução nossa). O autor aponta um problema recorrente no trabalho do ator-animador principiante: atuar de modo que sua presença se evidencia tanto a ponto de diluir a presença do boneco. Se esta não é a intenção da cena, a persistência desta situação denota desconhecimento ou negligência do diretor, uma vez que também é de sua responsabilidade resolver o que se torna um problema para o espetáculo. Como resolução, Curci afirma na sequência: Ele consegue isso mediante um método de atuação peculiar que se caracteriza não só por um estranhamento físico total, mas também por um desdobramento em sua atuação, a qual, todavia, deve se manifestar no 23 personagem como uma ação dramática única, integrada. (Ibidem) A superação do problema levantado por Curci é tarefa do ator-animador, no entanto o diretor tem função importante nessa etapa. Cabe a ele evidenciar em que momentos o ator-animador já atua de modo adequado, quando apresenta limitações e como proceder para que as dificuldades sejam suplantadas. Quando o diretor desconhece os princípios de trabalho que regem a prática do ator-animador ele deixa de cumprir uma função importante na formação deste artista. Existem alguns princípios de manipulação com os quais o ator-animador e o diretor trabalham na criação de um espetáculo. Estes princípios podem variar de nomes e em número, de acordo com o autor com o qual se trabalha. No entanto, há, na maioria dos casos, apesar das distintas terminologias e definições, uma coincidência destes princípios entre os teóricos que discutem o tema. 23 “[…] el titiritero debe actuar con un personaje que en ningún momento puede confundirse físicamente con él, que está fuera de él, que le es extraño por su propia naturaleza y al que, sin embargo, debe hacer vivir escénicamente otorgándole movimiento y voz. Esto lo consigue mediante un método de actuación peculiar que se caracteriza no solo por un total extrañamiento físico, sino también por un desdoblamiento em su actuación la cual, no obstante, debe manifestarse en el personaje como una acción dramática unitaria, integrada.” 45 Beltrame (2008) aponta 16 princípios de linguagem para o Teatro de Animação, por ele denominados como: economia de meios, foco, o olhar como indicador da ação, triangulação, partitura de gestos e ações, subtexto, o eixo do boneco e sua manutenção, definir e manter o nível, ponto fixo, relação frontal, movimento é frase, a respiração do boneco, a “neutralidade” do ator-titeriteiro em cena, dissociação, apresentação do boneco e concentração. Balardim (2004) define 14 princípios: efeito retórico, técnica do ator, partitura corporal, neutralidade, dissociação de movimentos, dissimulação de manipulação, contraste e intensidade, hipertactibilidade, controle atencional, desvio de foco e de atenção, técnica indutiva, decupagem de movimentos, eixo interno e externo e reprodução das funções biológicas. O autor lembra que os princípios não devem ser vistos como independentes, pois estão interligados e acontecem simultaneamente na manipulação. Por sua vez, Curci (2002) divide os princípios em duas vertentes: ações psicofísicas do ator-animador durante a interpretação24 e ações físicas objetivadas para o objeto25 (traduções nossas). Esta segunda engloba técnicas que se assemelham aos princípios colocados por Beltrame e Balardim: nível (altura), verticalidade, controle do olhar, sincronização voz-movimento, representação clara de intenções/vontades/reações/etc, relação palavra-gesto, interação com outros personagens, ponto fixo e deslocamento dentro do plano da ficção, exposiçãovínculos-situações-conflitos e desenlace mediante a interação do personagem no espetáculo (tradução nossa).26 Independentemente das nomenclaturas, os princípios de manipulação são os meios pelos quais o atores-animadores animam o boneco e também pelos quais o diretor conduz o trabalho destes atores. É de responsabilidade do diretor, que deve olhar de modo crítico e distanciado a obra que encena, cuidar para que estes princípios sejam usados de maneira adequada para tornar a personagem boneco crível diante do público. Para realizar esta ‘supervisão’ o diretor precisa conhecer 24 Acciones psicofísicas del titiritero durante el acto interpretativo. Acciones físicas objetivadas hacia el objeto. 26 Nivel (altura), verticalidad, control de la mirada, sincronización voz-movimiento, representación clara de intenciones/voluntades/reacciones,etc., relación palabra-gesto, interacción con otros personajes, punto fijo y desplazamiento dentro del plano de la ficción, planteo-vínculos-situacionesconflictos y desenlace mediante la interacción del personaje en la obra. 25 46 estes princípios, pois torna-se mais difícil orientar um ator sem saber indicar o que se quer que ele faça. Dentre os princípios discutidos pelos autores estudados, a fim de restringir o foco da pesquisa, seleciono dois para serem aqui analisados sob o ponto de vista do diretor. A escolha dos princípios neutralidade e dissociação se dá porque os dois diretores entrevistados nesta pesquisa os apresentam como fundamentais nos seus trabalhos como encenadores. 3.2.1 A neutralidade A neutralidade27, segundo Beltrame, é “a predisposição do ator-animador para estar à serviço da forma animada, tornar-se ‘invisível’ em cena, atenuar sua presença para evidenciar as ações do boneco.” (2008, p.36). Ele ainda afirma que quando os gestos do ator-animador não são discretos, ou quando ele exagera em caretas ou movimentos expressivos “cria-se um duplo foco que desvaloriza a cena.” (Ibidem). O domínio do próprio corpo é uma exigência que o ator-animador compartilha com o ator do Teatro de Persona. Ambos necessitam de uma consciência corporal aguçada para animar ou representar, pois qualquer desatenção, movimento improvisado ou fora de controle poderá influenciar tanto na movimentação do boneco quanto na sua presença em cena. Nas palavras de Balardim: A verdadeira neutralidade implica “estar neutro”, e estar neutro é uma espécie de não-ser. Estar neutro é esvaziar-se de qualquer coisa que possa ser ao mesmo tempo que o objeto é. Pois, o objeto sendo, é ele que assumirá toda a importância no momento em que é o foco da atenção. Estar neutro neste momento é concordar que nada mais importa além daquele objeto naquele momento. Neutralizar-se significa anular-se, eliminar qualquer resquício da própria personalidade e do próprio corpo, para deixar que o objeto-personagem imponha sua vontade sobre o corpo vencido do ator-manipulador. (2004, p.89, grifos do autor). O autor esclarece que a função primordial da neutralidade é permitir que o foco da cena esteja no objeto/boneco. O ator-animador, para isso, deve se deixar 27 A discussão sobre a utilização termo ‘neutralidade’ é ampla e por vezes contraditória entre os autores. Nesta pesquisa opto pelas definições de Beltrame e Balardim. 47 levar pelo objeto/boneco, respeitando os movimentos que este impõe. O autor afirma ainda que: Não é nenhuma alusão esotérica sobre uma “força do além” que irá apossar-se do corpo humano. Nada disso. Ao contrário, é um ato consciente de indução psíquica. Uma espécie de auto-hipnose, um momento em que nosso racional permite que nos levemos pela abstração do real, incorporando o jogo, a brincadeira e vivenciando, assim, um momento onde renasça em nós a sublime inocência infante. (Ibidem) Balardim também chama a atenção para o fato de que a neutralidade pode ocorrer de distintas maneiras, com o manipulador oculto ao público ou com o manipulador a vista do público28. Não discutirei aqui as variadas possibilidades de aplicação da neutralidade, mas sim a relação do diretor com esse princípio. Em todos os casos nos quais o ator-animador utiliza esse princípio, seja ocultando-se através de luz e/ou vestimenta, seja estando completamente visível, seja misturando-se ao cenário, ou atuando junto com o boneco, o trabalho do diretor consiste em orientar o ator para que atue adequadamente no espetáculo. Um ator-animador em cena pode acreditar estar neutro, com o rosto e corpo relaxados, tentando ao máximo não expressar seus sentimentos e emoções pessoais. No entanto, é comum vê-lo demonstrar em suas próprias feições corporais e faciais os sentimentos que intenciona fazer transparecer no boneco. Dependendo de como o ator-animador controla suas expressões, movimentos e até mesmo respiração, a plateia dificilmente deixará de notá-lo e pode criar-se uma duplicidade de foco de atenção em cena e, consequentemente, uma diluição na presença do boneco. Neste caso o trabalho educativo do diretor é fundamental. Cabe a ele ajudar o ator-animador a contornar a situação. É papel do diretor estar atento e indicar aos atores-animadores os momentos nos quais suas emoções se sobressaem às do boneco indesejavelmente. A neutralidade como recurso na interpretação e trabalho do ator-animador se torna ainda mais complexa quando há desdobramentos na interpretação. Esses desdobramentos podem gerar diferentes situações de neutralidade do atoranimador. 28 Para maiores informações sobre as distintas possibilidades de neutralidade do ator em cena ver o capítulo “A neutralidade” (p.67 – 86) In: Cavalcante, 2008. 48 Na primeira situação o ator-animador pode estar em cena, mas não fazer parte do enredo, como é o caso do espetáculo Filme Noir, da “Cia PeQuod”. Nesta obra o público vê claramente os atores-animadores que manipulam os bonecos. Não há, por parte da direção, a intenção de escondê-los. No entanto eles não fazem parte do enredo, não dialogam com os bonecos nem contam a respeito da história. Sua presença em cena é visível, mas sua intenção é a neutralidade. A segunda situação consiste no ator-animador que está em cena e alterna o personagem da história entre ele mesmo e o boneco, às vezes fazendo parte do enredo e às vezes não. No espetáculo Peer Gynt, também da “Cia Pequod”, personagens ora são representados pelos bonecos, ora são representados pelos próprios atores num jogo de troca de foco. Figuras 5 e 6 - Espetáculo Peer Gynt, Cia PeQuod. Fonte: PEER, 2006. (Imagem extraída de vídeo) Uma terceira situação na qual o ator-animador precisa trabalhar sua presença e também a neutralidade consiste no ator-animador que está em cena, faz parte do enredo, mas seu personagem é distinto do personagem do boneco. Além de manipular, o ator-animador atua representando uma segunda personagem distinta da personagem do boneco. Ainda uma quarta situação pode ser facilmente encontrada. O ator-animador está em cena, manipula o boneco e representa ele mesmo (o ator) em cena, como parte do enredo. Ou seja, ele relaciona sua própria presença enquanto ator ao mesmo tempo que anima o boneco. Esta situação pode ser encontrada, por exemplo, no espetáculo da “Cia Articularte” intitulado Portinari Pé de Mulato. Logo no início boneca a ator-animador conversam, travando uma breve relação que inicia o espetáculo de maneira divertida e alegre. 49 Figura 7 - Espetáculo Portinari Pé de Mulato, Cia Articularte. Fonte: MULATO, 2002. (Imagem extraída de vídeo) Essas situações de jogo entre neutralidade e presença do ator podem variar de muitas maneiras. A sutileza das passagens entre essas situações que mudam o foco exclusivamente do boneco e o dividem com o ator são ajustadas pelo diretor que orienta o ator-animador a diminuir ou ampliar seus gestos e expressões, de acordo com as necessidades da cena. Sobre a neutralidade, Dario Uzam relata que quando ao estrear o espetáculo João Cabeça de Feijão, o grupo recebeu críticas negativas que apontavam uma presença excessiva dos atores em cena: E realmente estava. Como a gente tinha estreado recentemente, estávamos todos muito felizes. Então, depois, a gente ‘baixou um pouco a bola’, colocou para os atores que não dava para ficar fazendo careta. É uma sintonia que o ator tem que ter para poder emprestar a voz para o boneco. [...] O ator estava meio misturado em cena. Após ouvir as críticas, Dario, enquanto diretor, orientou os atores a evitarem caretas e movimentos excessivos afim de não desviar o foco da atenção dos bonecos. Desta maneira ele pode separar com clareza, durante o espetáculo, os momentos em que o foco deveria estar apenas nos bonecos e os momentos em que ele era compartilhado com os atores-animadores. Segundo Dario, ao assistirmos o espetáculo João Cabeça de Feijão atualmente, podemos notar que esta divisão está bem clara. Foi a visão à distância, de fora da cena, que lhe possibilitou ponderar e equilibrar os momentos nos quais os atores-animadores deveriam trabalhar com a neutralidade e suas diferentes maneiras. 50 Figura 8 - Espetáculo João Cabeça de Feijão, Cia Articularte. Fonte: http://www.enteatro.com.br/ Um dos problemas recorrentes em espetáculos cuja manipulação se dá à vista do público é o que se poderia denominar de afetação do ator-animador. Esse problema se manifesta de modo visível quando ocorre uma espécie de disputa para o ator se tornar mais visível que o boneco em cena. O ator-animador concorre com o boneco para ser o centro das atenções. A impressão é de que ele não suporta a ideia de estar a serviço do boneco, seu ego fala mais alto e exige visibilidade à sua presença. Isso pode ocorrer tanto por vaidade dos próprios atores quanto por esgotamento de recursos da linguagem ou presença dos bonecos, ou até mesmo na própria dramaturgia. Nestes casos o diretor precisa buscar uma solução que resolva o espetáculo esteticamente. O diretor Miguel Vellinho afirmou que a disputa pela presença em cena desencadeada pelo ator-animador já ocorreu com seu elenco. Recentemente, na montagem de Peer Gynt o problema foi vivenciado pelo grupo: As pessoas estavam querendo fazer outra coisa. Teve muito material aí, real, visível, tátil. Porque era um grupo de atores que queria conquistar um pouco mais de espaço da cena. Não sei se por vaidade, não sei se por enfado de achar que não estava mais acrescentando. E a gente viu que a única possibilidade de continuar juntos era dar essa ‘virada de mesa’. Para mim foi uma mexida violenta, porque eu vinha com uma concepção e tive que mudar. [...] Mas era uma necessidade real daquele grupo, de atuar um pouco mais à frente. Então eu acatei a vontade da maioria. Pedi uma semana para pensar em casa, e então recomeçamos. Neste espetáculo é visível, se comparado aos outros espetáculos da “Cia PeQuod”, a predominância do ator em cena. Miguel explicou que essa mudança teve relação com o desejo dos atores de estarem mais em cena, menos 51 “escondidos” atrás do boneco. É interessante reparar que Vellinho, enquanto diretor, optou por reavaliar o projeto para satisfazer a necessidade dos atores. Ainda sobre este espetáculo Vellinho afirma: Precisamos de um trabalho muito rigoroso de foco, de onde está o boneco e onde está o ator, agora é o boneco, agora é o ator. De uma consciência corporal muito violenta, de uma noção de neutralidade cada vez maior. Também porque além de tudo a gente resolveu fazer tudo em um espaço em branco. Então o cenário é todo branco, o fundo branco, o piso branco, que reflete. Os atores todos vestidos de branco. Não um branco absoluto, algumas coisa em creme. Figuras muito escuras, bonecos muito escuros e o fundo todo claro. Então tudo revelado, tudo à mostra. Nenhum resquício de ilusão. Nenhuma vontade de enganar o público, mas mostrar este jogo de é boneco ou não é, agora é ator, agora super dimensiona o boneco, agora é ator. E é o tempo inteiro isso. A gente foi construindo a partir disso, e essas foram as grandes exigências de direção dessa montagem. Ficar atento à neutralidade, em relação a essa divisão do ator. (grifo nosso) É importante observar que o desejo de estar mais visível em cena apresentado pelo elenco exigiu do diretor a revisão do projeto da montagem de Peer Gynt. O seu papel de diretor também foi redefinido para estar mais atento a questões como a neutralidade e ao jogo de foco entre atores-animadores e boneco. Certamente foi um grande desafio para a direção e estar fora de cena ajudou para que ele orientasse os atores nesta nova construção do espetáculo. Já no espetáculo dirigido Dario, João Cabeça de Feijão, a presença dos atores em cena se deu mais como acaso indesejável. A presença supervalorizada dos atores foi apontada por colegas de profissão e esse problema foi solucionado na prática com orientações da direção. Tanto em Peer Gynt, quanto em João Cabeça de Feijão, a atuação dos diretores assumindo suas funções técnicas e artísticas foram fundamentais para manter a coerência estética do trabalho. Ao assumirem a responsabilidade de dirigir espetáculos, deixando de estar em cena, a percepção dos problemas e sua superação se efetiva. Assim, o espetáculo ganha em qualidade. 3.2.2 A dissociação A dissociação pode ser utilizada, de acordo com Beltrame, de três maneiras distintas. A primeira delas é “tornar os movimentos do boneco independente dos 52 movimentos do corpo do ator-animador” (2008, p.36). Isso significa que o atoranimador deve possuir uma capacidade de desagregar os movimentos que faz com seu corpo para manipular o boneco, dos movimentos do boneco. Por exemplo, se um ator-animador segura o braço direito do boneco com sua mão direita, não é necessário que ele levante seu braço inteiro ao levantar o braço do boneco. Apenas um movimento de seu punho pode realizar todo o movimento de erguer o braço do boneco. Da mesma maneira, se há uma cena em que o boneco dança ao som de uma música, o ator-animador precisa estar atento para que, embebido da música, ele não utilize seu próprio corpo para marcar o ritmo, ‘dançando’ atrás do boneco. É difícil para o ator-animador, concentrado nos movimentos do boneco, também prestar atenção nos movimentos de seu próprio corpo. A presença atenta do diretor nesse momento é indispensável para o bom trabalho do ator-animador. A segunda maneira de entender a dissociação, ainda de acordo com Beltrame, é “fragmentar os movimentos do boneco para que o mesmo não se dê num bloco, para que não seja compacto. Isso colabora para propiciar uma atuação antinatural sem perder a fluidez.” (Ibidem). Uzam relata que no espetáculo João Cabeça de Feijão, no qual atuação de atores com animação de bonecos, teve que tomar esse cuidado e revelou: “Eu pego muito no pé porque às vezes a pessoa faz os braços regendo e iguais [movimentos dos braços que não geram ação, mas que são redundantes à palavra]. É mais fácil fazer os braços iguais. Mas eu acho que não, [...] tem que ter coisas no esquerdo e no direito.” Ou seja, para os atores é mais simples executar os movimentos do boneco sem dissociação. Muitas vezes o atoranimador não percebe que está movimentando o boneco em um bloco. Cabe ao diretor, como coube a Dario neste espetáculo, orientar o ator a treinar a dissociação para dar maior veracidade aos movimentos dos bonecos. Beltrame, ao tratar desta forma de dissociação, ainda coloca que para realizála é interessante que o ator-animador pratique o movimento que fará com o boneco em seu próprio corpo a fim de fragmentar esse movimento em si mesmo para, com mais entendimento, movimentar o boneco. Essa prática é recorrente em grupos de Teatro de Bonecos, como conta Vellinho em seu processo de direção com a personagem Verônica em Filme Noir: 53 Tem essa particularidade de pegar os movimentos humanos e adaptá-los para uma situação com boneco e quando a gente acha uma necessidade muito intrincada, como foi o caso da Verônica, a gente recorre a alguém que trabalha com o corpo. E não só o elenco aprende a coreografia em si próprio, como depois a gente passa para o boneco. Muitas das coisas que a coreógrafa cria não dá para fazer com o boneco, temos que fazer outra coisa. É um período muito bacana, porque você vê os dois lados da questão. Uma ideia sendo jogada e a adaptação dessa ideia para o boneco. Vellinho fez com que os atores-animadores aprendessem em seu próprio corpo a coreografia destinada à boneca para que, ao adaptar esses deslocamentos ao corpo do boneco, eles tivessem domínio e consciência sobre cada movimento realizado. A terceira forma de compreender a dissociação é posta por Beltrame como a “capacidade do bonequeiro manter a postura de um personagem manipulado pela mão direita sem perder as características de outro personagem que se encontra na mão esquerda.” (2008, p. 37). Essa dissociação é muito necessária principalmente no trabalho com bonecos de luva no qual, normalmente, o ator-animador trabalha com dois personagens distintos simultaneamente, um em cada mão. Nessa situação de dissociação a dificuldade encontrada pelo ator-animador é muito grande, pois além de movimentos diferentes, muitas vezes é preciso ter também velocidades e ritmos distintos. A dissociação, desta forma, é atributo indispensável para qualquer ator que decida trabalhar com a linguagem do Teatro de Bonecos, independentemente da técnica escolhida. Assim afirma Jurkowski: “De minha parte, acrescento tranquilamente que essa necessária dispersão da atenção do bonequeiro sobre varias ações simultâneas marca toda a diferença entre o jogo do bonequeiro e o do ator.” (2000, p. 23). Cavalcante em sua pesquisa (2008) ainda especifica mais uma possibilidade de entendimento para o termo “dissociação”. Neste caso o ator-animador dissocia o seu plano espaço-temporal do plano do boneco. Essa dissociação está relacionada ao fato de que “o ator encontra-se na condição simultânea de observador e protagonista da representação, devendo dissociar o seu plano e aquele do objeto.” (p.63) O diretor executa seu papel orientando os atores no cumprimento destes (e também dos outros) princípios. Para isso, ele próprio deve saber do que se tratam os princípios e de que maneira pode explicar aos atores como realizá-los. Configura- 54 se aí uma relação de ensino-aprendizagem. O diretor observa durante os ensaios não apenas os movimentos dos bonecos, mas também os movimentos e expressões dos atores para compor as cenas. Sua atenção é dividida entre atores-animadores e bonecos como se, ao dirigir um espetáculo, ele sempre tivesse que estar atento a um elenco duplicado. 3.3 Outros aspectos relevantes sobre a direção no Teatro de Bonecos. Uma vez apontados alguns aspectos sobre as relações do diretor com a dramaturgia do espetáculo, com a construção dos bonecos e com a direção dos atores convém situar outras especificidades relacionados ao papel do diretor. Tratarei aqui das seguintes questões: ritmo, excesso de informação e o diretor que atua em seus próprios espetáculos. Para finalizar, exponho uma situação específica do trabalho da direção na “Cia Articularte”. Nos espetáculos de Bonecos existem alguns detalhes que devem ser observados para que o espectador se mantenha atento à cena, e não somente nos mecanismos de construção e de manipulação dos bonecos. Nesta linguagem artística é comum que isso ocorra uma vez que a plateia sabe, antes de tudo, que existem atores-animadores por trás do boneco e que, através de sua técnica, estes bonecos parecem ganhar vida. Um destes importantes detalhes é a constância de ritmo do espetáculo. Não se trata de velocidade de manipulação nem fluxo de entradas e saídas de personagens, mas sim do que Balardim chama de “tempo morto”: “É importante não deixar um ‘tempo morto’ em que o espectador reste passivo e possa refletir sobre como é executada a manipulação.” (2004, p.96). No Teatro de Bonecos este “tempo morto” pode acarretar a perda da atenção do público comprometendo assim a qualidade do espetáculo. É o diretor que, observando, indica aos atores-animadores em quais momentos isso ocorre. Cabe a ele, também, fazer propostas para a solução desse problema. Um grupo que não recorre ao trabalho do diretor terá muita dificuldade de perceber, dentro de cena, quando há este “tempo morto”. 55 Outro detalhe que deve ser observado pelo diretor está relacionado com a quantidade de bonecos e a quantidade de informações que eles apresentam em sua forma. Excesso de informação não garante a funcionalidade do boneco e nem do espetáculo. Pelo contrário, pode distrair o olhar do espectador. Mais uma vez, é o olhar privilegiado do diretor, que ensaia e assiste ao espetáculo, que pode indicar aos atores-animadores em quais momentos o excesso atrapalha a cena. Outro ponto interessante de ser observado e que pode ser encontrado com certa frequência são os diretores que além de assinarem a direção do espetáculo também são atores-animadores dos mesmos. Os dois entrevistados neste trabalho têm ao menos um espetáculo no repertório de seus grupos no qual essa situação ocorre. Quando pensamos em todas as funções relativas ao papel do diretor de Teatro de Bonecos estudadas neste trabalho, é difícil entender como eles conseguem desdobrar-se em múltiplos papéis. Afinal, como manter seu importante olhar de fora, uma vez que está dentro do espetáculo? Como orientar os atores quando falham nos princípios de manipulação se ele está ao lado deles animando os bonecos? Questionado acerca desta situação, Vellinho, (que atuou com seu grupo em O Velho da Horta) respondeu: Quando eu vim em 2004 com O velho da Horta para o “Palco Giratório” uma das pessoas do elenco não podia fazer a viagem, daí eu voltei a manipular. Mas é só porque o espetáculo estava pronto. Então eu fiquei com segurança de entrar no espetáculo. Mas enquanto eu estou criando eu fico de fora, totalmente, porque senão não tem como. Foi sem espanto que ao tratar com Uzam sobre o tema, (que faz parte do elenco de Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Marrom e de A Cuca Fofa de Tarsila), recebi a mesma justificativa de Vellinho: “Eu dirigi um elenco antes [...] se tiver que entrar eu entro depois.” 56 Figura 9 - Espetáculo Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Marrom, Cia Articularte. Figura 10 - Espetáculo A Cuca Fofa de Tarsila, Cia Articularte Fonte: http://www.articularte.com.br Como é possível perceber, nos dois casos os diretores passaram a atuar nos espetáculos porque fizeram uma substituição de elenco. Os dois relataram que durante o processo de montagem acham impossível fazer parte do elenco, pois conduzir a montagem do espetáculo exige o olhar externo do diretor. Isso possibilita ver a cena de outro modo, com olhar mais crítico e atento, o que permite que realmente execute sua função. Ainda seguindo no tema, questionei Uzam a respeito de sua entrada em cena enquanto ator-animador que substitui alguém. Perguntei se havia sido fácil, uma vez que ele, diretor do espetáculo, conhecia o papel de todos os atores. Assim ele me contestou: Conhecer é uma coisa, fazer é outra. Eu também passei por isso. Falei “Ah eu sei” e da primeira vez eu me dei mal. Porque o diretor está exatamente ao contrário da pessoa, está de fora e vê do lado contrário. Muitas vezes na 29 “Cuca” eu me pego entrando do lado do diretor e eu já vi diversas vezes. As respostas dos dois diretores remetem a pensar sobre a importância de o diretor de Teatro de Bonecos também ter experiência como ator-animador. Sendo ator-animador ele tem domínio, não apenas teórico, mas também prático, dos princípios de manipulação. Com esse conhecimento é mais fácil orientar os atores nas especificidades da linguagem. Da mesma maneira, confirmado pelas falas dos entrevistados, é compreensível que diversos espetáculos contemporâneos de Teatro 29 Aqui Dario se refere ao espetáculo A Cuca Fofa de Tarsila. 57 de Bonecos exijam um diretor que saia de cena para dirigir a obra, uma vez que o diretor é aquele que está a par de todas as etapas do espetáculo e coordena todos os envolvidos. Sua participação direta como ator-animador no processo de montagem dificulta sobremaneira realizar sua função de articulador e responsável pelo espetáculo. Julgo interessante registrar ainda outra situação, vivida especialmente na “Cia Articularte”. Uzam conta um aspecto muito importante em seu trabalho de diretor, que diz respeito à ajuda que recebe de Surley30 na direção dos atores-animadores: Eu fico do lado de cá do palco. Fico aqui. Sou o público, sou o diretor e público e a Su é como a diretora de cena. Eu não sei se o nome é exatamente esse, mas acho apropriado. Ela ajuda muito porque ela tem mais experiência que o pessoal. Às vezes é uma torção de corpo para favorecer a toda uma colocação de cinco ou quatro pessoas. A gente descobre que uma pessoa está meio tensa e não se posiciona tecnicamente bem, e a Surley vai descobrindo esses detalhes, o que ajuda muito. Entradas e saídas normalmente a gente vai pedindo, eu indico muita coisa porque eu sei o tempo que dá para a pessoa se mover, sair um boneco, entrar o outro. Então tudo o que está piscando aqui na televisão é questão minha, e lá é muito da Surley. Dario evidencia a importância do trabalho que Surley realiza junto aos outros atores-animadores no palco. Seu trabalho, que ele considera como o de uma assistente de direção, complementa o trabalho de direção de Dario sob um ponto de vista que para ele é impossível ter enquanto diretor. Esses problemas de postura corporal e posição física dos atores, ao compartilharem simultaneamente a manipulação de um mesmo boneco, muitas vezes são solucionados pelos próprios atores sem que seja necessária a intervenção do diretor. Ele solicita que seja realizado um movimento com o boneco e os atores-animadores se distribuem no espaço da melhor maneira possível para realizá-lo. Surley, com mais experiência, ajuda os atores a encontrarem a melhor maneira de se posicionar. De modo indireto, Uzam reafirma a importância do diálogo entre direção e elenco. Muitos problemas técnicos são resolvidos pelo próprio elenco. Cabe ao diretor apontar a existência deles, mas é importante solicitar a ajuda dos atores-animadores e ouvir suas sugestões. 30 Surley Uzam é fundadora e atriz-animadora da “Cia Articularte” e também confecciona todos os bonecos do grupo. 58 Em todas essas especificidades da linguagem e situações expostas o diretor exerce papel importante na condução da montagem. Seu trabalho se dá à medida que ele conhece profundamente a linguagem com a qual trabalha e se posiciona fora da cena. Nestas condições ele pode fazer observações pertinentes para o desenvolvimento do espetáculo e acompanhar a obra por completo. 59 Considerações Finais Nesta etapa do presente estudo, a primeira observação a ser feita é a necessidade de continuação da pesquisa sobre o tema: direção no Teatro de Bonecos. As reflexões presentes neste trabalho ainda merecem aprofundamento. A carência de publicações sobre o tema e a necessidade de ampliar o tempo para a realização da pesquisa impediram maior aprofundamento da mesma. Como apontado no início, a função de diretor no Teatro de Bonecos é relativamente recente e isso provoca uma redução na produção teórica sobre o assunto. Porém, é evidente a relevância do tema e urgência da realização de estudos nessa direção Após identificar os primeiros registros que deram início à atividade desse profissional no Brasil, percebi que uma das mais importantes características do trabalho do diretor de Teatro de Bonecos é o conhecimento que ele deve ter sobre essa linguagem. A função do diretor não se realiza apenas pela intuição e pelo espontaneísmo. Dirigir espetáculos exige o domínio de saberes da arte do teatro, bem como sobre o papel do diretor teatral, além dos códigos, normas e técnicas próprias da arte do Teatro de Animação. Há algumas décadas, a direção era assumida inteiramente pelo bonequeiro polivalente. No entanto, hoje, essa arte se tornou mais complexa, o público mais exigente, sendo necessária a especialização dessa função. Um aspecto importante identificado no presente estudo e que distingue o trabalho do diretor de Teatro de Bonecos na contemporaneidade, principalmente quando comparado com as formas tradicionais de organização do espetáculo é o fato de ele estar posicionado fora de cena. Desta maneira, ele coordena o processo com um olhar amplo, diferenciado, tendo a visão completa da encenação. Assim, ele eventualmente pode se colocar no lugar do público e avaliar o trabalho na perspectiva de agregar seus espectadores, criando condições para o encontro, impedindo que a encenação seja impenetrável ao público. No entanto, apesar desta coincidência espacial com o espectador, o diretor está temporalmente “adiantado” (e este é seu maior privilégio!), uma vez que ele foi e continua sendo o responsável pela criação e organização da obra. Já o espectador, de fora, aprecia, contempla e “participa” do acontecimento. 60 Essa posição de responsável pela organização e criação do diretor o distingue do bonequeiro polivalente incumbido de organizar as etapas do processo, como também por executá-lo. O diretor, ao contrário do bonequeiro, não está em cena e não necessariamente é ator-animador. Com isso, o estudo destacou funções que o diretor exerce na montagem do espetáculo evidenciando que o domínio e amplo conhecimento de tais funções é fundamental em sua atividade profissional. Com esta pesquisa pretendi abrir um panorama sobre as possibilidades de estudo acerca da direção. Muito estudo ainda é necessário e espero que este trabalho estimule novas pesquisas. 61 Referências Bibliográficas AMARAL, Ana Maria; MADZIK, Leszek. O Teatro de Leszek Madzik. In: MÓIN-MÓIN 5 - Revista de Estudos Sobre Teatro de Formas Animadas. Teatro de formas animadas e suas relações com outras artes. 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Sou estudante da UDESC, estou na última fase do curso de teatro. Estou fazendo meu TCC e é sobre direção no teatro de bonecos. Então o Nini deu dois nomes pra eu entrevistar e um deles é você. Elaborei, junto com ele, algumas perguntas voltadas bem pra questão da direção. Queria começar te perguntando, até a gente estava falando lá fora, que tu fostes ator do Antunes, começastes como ator de teatro de atores. Como é que tu te descobristes ator manipulador, como tu chegastes a isso? DARIO: Nessas andanças tanto com o Abujanra como com o Antunes, você tem a sensação... tem a noção da sincronia das coisa. Acho que é até por aí. É, tudo sincroniza. Ensaia-se por exemplo, o que esta rolando e você entra com seu pique, com sua energia, com sua dinâmica. Acho que é muito assim. Até o Antunes é chamado de o alemão brasileiro. Coisa assim. Porque ele tem a.. cronometria deles, a sincronicidade deles e a energia nossa que é impagável, ela é saltitante e ela não é uma coisa só, não é uma energia que fique lá, ela quebra vai, não sei o que. Você viu o espetáculo ontem? E: Qual? D: Da borboletinha E: A sim... D: Então, acho que o brasileiro faz isso, de repente uma cena acontece, é um ‘crak’ de energia eu acho. É a partir daí. A gente viu uma mostra da Tarsila do Amaral. Porque o Antunes sempre falava: “vejam mostras, vejam museus, vocês não sabem como isso agrega. A princípio não porque quadro é morto, esta parado, mas vá ver cultura, não descansa. Você trabalha com cultura, tem que mexer com cultura, observar”. A gente viu uma mostra da Tarsila do Amaral e tivemos um ‘insight’ na hora. Eu conheci a Surley a gente já era casado, e ela trabalha muito bem com espuma. Então fez um.. SURLEY: Eu já trabalhava com bonecos, fazia confecção. Eu com a minha irmã a fazíamos teatro de bonecos mas mais caseiro, a gente nunca tinha feito profissional. A gente fez vários cursos. Então eu entrei na companhia de teatro do Dario antes de ele entrar no Antunes. Era teatro amador ainda. E lá eu entrei em contato como atriz. Ate então eu só mexia com bonecos. D: Eu sabia que ela, que ela mexia bem com bonecos de espuma. Então a gente olhou pra Tarsila e pensou ‘nossa, parece macio ’. Então começamos a brincar com essa ideia. A gente foi assistir o que estava passando na época. Então ficou boneco de espuma macio que lembrava a Cuca fofa de Tarsila. Fofa de... Tanto fofa de uma cuca impagável. Ela transformou o parnasianismo. [...] A gente é assim, não é só fazer retratinho, também retratinho, mas a gente é colorido, a gente e pungente, a gente saltita nas coisas. E a partir 65 daí a gente montou a Cia. E deu muito certo, a gente fez uma mixagem e depois só nos debruçamos sobre manipulação e direção. E: É isso que eu ia te perguntar. Tu começastes no Antunes, e depois fostes para bonecos. Da onde veio teu interesse por dirigir. Porque eu tava olhando no site, consegui algumas informações, e tu diriges todos os espetáculo da Articularte. Da onde que surgiu esse teu interesse pela direção? D: Bem, tanto no outro grupo amador, lá atrás, como nesse eu era meio cabeça de chave. Sempre fui muito enfurecido em escrever encenar e tal. Atá para ver o ciclo, esse ciclo artístico. Você escreve, encena, trabalha com um grupo, dirige e pode fazer a técnica. Eu sempre fui fascinado por esse ciclo. Não que hoje a gente não tenha técnico. A gente tem técnicos. Mas esse ciclo pra mim é um negócio, não sei se eu busco, se é meio uma loucura da cabeça. Acho que é muito mais você começar teu parto, como um filho que vai até o final do ciclo dele. Como hoje são os espetáculos. Um belo dia você pode largar na rua. E tem que encarar assim mesmo, é como um filhote, seu, um filhote artístico, ele vai sair, vai criar pernas. Vai poder andar, é mais ou menos assim. Talvez seja muito cansativo porque muitas vezes como diretor você tem que ter atenção em todas as áreas , música, luz, então a gente dá palpite em tudo e graças a Antunes Filho, ‘Abujanras’ da vida a gente vai aprendendomuito. E você tem uma noção legal. Não que chamando um técnico você não vai aprender. Claro que aprende. Um cara que raciocina cenografia, é importantíssimo. Um cara que raciocina luz, a gente já teve contato e sabe que é importante, é fundamental. Mas talvez seja essa questão de gostar tanto da coisa que você quer ficar com ela até completar o ciclo. E: E qual que é atualmente a tua maior preocupação ao dirigir um espetáculo de bonecos porque vocês lidam muito com criança também . O que primeiro te chama a atenção, o que primeiro te preocupa em fazer? D: Observar o ser humano. A gente só consegue fazer uma boa animação se imitar, se trabalhar boas imitações, e isso não tem regra nunca. Porque você pode estar imitando Guliver, que a gente vai montar ano que vem, ou ta imitando o lobo mau, ou ta imitando a chapeuzinho. A questão é assim, a gente tem que ficar muito atento em como [...] poderia ser. Possibilidades artísticas. E as possibilidades só vem se você observou bem. Ela não vem ‘a quero fazer e pode ser que de certo’. Não. Se você tem uma carga legal de observar, e ensaios e desenvolvimento de improvisações você consegue imitar ou transferir, ou extravasar a mímica. Ela deixa de ser a própria imitação e ela fica criação da imitação. É bacana esse fundamento. Você trabalha a partir de alguns princípios, sempre imitando porque o ser humano é referencia, sempre. Se for fazer uma coisa sem referência ficará estranho... E: Não vem nada... D: É, e eu me preocupo muito com o comportamento. Comportamento para mim é uma peça chave de tudo o que a gente faz. O comportamento da figura. As vezes o exagero dela ou a timidez dela. Então a gente vai jogando com esses comportamentos. É daí que vão surgindo as possibilidades melhores ou não. E: E tecnicamente tu notas em ti uma constância na maneira de dirigir? D: Tecnicamente a gente é assim. Como lá na “Cuca”, a 10 anos atrás, como com o “Trenzinho” e o “Portinari”, a gente se debruçou totalmente porque foi nossa primeira entrada nesse universo delicado de teatro de bonecos e formas animadas. Então lá o 66 trabalho foi muito grande, a preocupação muito grande, e a gente acha que lá ficou um legado muito legal e técnico. O que fazer, como fazer. Eu gosto dessa de pensar o que que entra agora, o que que vai sair e tal. Tanto que os nossos elencos começam e acabam. Ninguém fica marcando. É Tudo muito aeróbico na coxia. Eu tenho medo por exemplo, de o boneco chegar daí sair o terceiro manipulador, dar a volta no cenário, pegar outro, tal... Pra mim tem que ser ilusão. É meio mágico. A gente tem que dar um jeito. A gente faz com quatro atores dois dos espetáculos, a “Cuca” e o “Portinari”, e o “Portinari” é uma intensidade incalculável. Você fala “não é possível”. As pessoas falam “nossa só quatro?!”. Porque entra coisa, entra favela, entra sacaria, sai, cai, não sei o que, entra um pulando, tal, tem as cenas paradas também. Mas a gente ve alguns modelos, alguns exemplos de gente querendo montar, forçar o grupo com 3 pessoas e você fala “não sei se é assim”. Você tem que achar a identidade do grupo. Você tem que trabalhar senão vê claramente, que não tem ação porque o ator vai dar a volta...E então tecnicamente a gente fica preocupado também com o pulso da vida e da atenção das pessoas. Você tem que tentar seduzi-las sim, artisticamente, de uma forma amigável sem forçar a barra e sem também ser preguiçoso. Tem que trabalhar muito pra eles, porque vai voltar. Se trabalhar bem vai voltar, o resultado bem. Então tecnicamente é assim, existia uma grande preocupação depois a coisa começou a se tornar um pouquinho mais colaborativo dos atores. E ai vem uma nova estética junto. O colaborativo sugere uma direção coletiva. Então tem que estar muito atento, porque a direção coletiva ela pode ser muito legal. Mas as vezes... eu sou de uma geração também que a gente viu a direção coletiva. Você acha maravilhoso mas é um samba do crioulo doido maluco porque não tem uma linha artística. E é bacana a arte ter uma uniformidade porque não dá pra você fazer qualquer traço, é legal você ter um projeto E: Geralmente é o diretor que mantém essa coerência? D: É ele que diz “o projeto é esse”. É se o grupo for muito bom, e eu já vi grupos muito bons dirigindo coletivamente, mas eles tão muito integrados, aí sai, é a cara do grupo, aí e maravilhoso. Porque a arte é obra pensada, não e de outro jeito, é pensado. Ah quero fazer porque eu gosto, para as minhas coisas, meus orgulhos, não tem isso, tem um gosto pela coisa e desenvolvimento. Então a gente está ainda tentando entender essa coisa colaborativa, essa participação. E: Mas ainda és tu que assina a direção mesmo? D: Sim, sim. E: Como tu dissestes la fora que trabalhas com diferentes elencos, existe uma preparação específica para os atores-animadores ou essa preparação acontece na medida que vai montando o espetáculo? Como que funciona isso dentro da Articularte? D: Su, quer falar um pouquinho? S: É, é assim, a gente já tem uma cara. Então as pessoas que vão entrando já vão incorporando pelo comportamento, pelas nossas posturas, enfim. A pessoa já entra no clima de como a gente pretende ensaiar o espetáculo. D: E tem muita substituição, as vezes o novo ator é uma substituição. Então ele entra como um aprendiz do que já foi feito. Então se essa pessoa ela corresponde, ela chega junto, ela traz material vamos fazendo um espetáculo com essa pessoa. Porque ela vai agregar para o grupo. S: [..] Dario tem a sua estrutura de direção, a linha de direção, mas as pessoa que vão entrando podem acrescentar. 67 E: Vocês fazem audições? D: Não, é muito simples. É uma conversa e a gente faz, um teste para ver a mão da pessoa. Pra ver... S: Tem muita indicação... D: É normalmente é um amigo que não é muito espalhafatoso, ou a menina não é muito espalhafatosa. Porque o ator ele é grandão. Um dos nossos grandes atores, um dos nosso melhores, o Toni, ele hoje faz “A Bela e a Fera”, musical importante. E ele era totalmente espalhafatoso no começo, ele quebrou dois microfones que só ele conseguiu quebrar, o Toni. Mas a gente viu a transformação dele, ele conseguiu ir se concentrando e hoje ele não consegue muito trabalhar com a gente mas, em alguns exercícios que a gente faz hoje, depois do “Portinari”, que são 6 anos, você vê que ele já e um ator de bonecos também, é técnico, super técnico, canta muito bem também e já consegue criar, ele é palhaço nas movimentações, nos pés, ele não precisa andar bonitinho, ele já anda com uma coisinha a mais, já tem uma coisinha a mais no braço. A gente estava observando que é legal, alguém que não tinha nada a ver com a gente, veio, passou, foi doloroso pra ele trabalhar esse espetáculo, o “Portinari”, aprendeu a concentração, ajudou muito na carreira dele, porque ele quer ser primeiro o musical, fazer o musical. Ajudou lá, e toda hora ele liga !tô morrendo de saudade” ... E: Acabou sendo um treinamento implícito na montagem. D: Como o teatro de bonecos pode transformar também o ator. Porque é técnica, é muita técnica. S: Ele começa a prestar atenção em outros detalhes. D: E ele diz, ele liga super feliz. E tem ator que você ensina, e o cara daqui a pouco diz assim “não, eu sempre soube”. É muito legal isso. S: Ou que esquecem. D: Que esquecem que aprenderam. Mas não teve muita substituição, né Su?, Mas nós pegamos um traquejo. Começamos pelos pés. Historicamente começa-se pelos pés. Apesar de que as mãos são mais fáceis. Eu acho que são mais fáceis. Acho eu, posição minha. A cabeça é mais difícil sim. Então eu acho que teria que começar pelo braço, pé e então cabeça. Eu não concordo com a coisa do ‘Bunrako’, que é pé, braço e tronco e cabeça. Eu inverteria. Porque o braço não é que não é difícil, é difícil sim. É muito difícil porque ele tem que reger com a cabeça. Então a cabeça está falando e o braço tem que estar muito atento. Eu pego muito no pé porque as vezes a pessoa faz os braços regendo e iguais. É mais fácil fazer os braços iguais . Mas eu acho que não, temos um hemisfério de cada lado do cérebro. Você tem que ter coisas no esquerdo e no direito. E: E, por exemplo, se acontece uma situação, que muitas vezes acontece, de o diretor imaginar e conceber um movimento e na hora de realizar o ator não conseguir realizar ou por deficiência do próprio ator ou do boneco. Como que tu, na postura de diretor, reages a isso? Como que tu ‘arrumas’ isso? D: A gente fez alguns exercícios de visão periférica. Tinha uma menina que a gente acreditava no talento dela. Mas ela estava muito medrosa e queria anotar tudo. E eu falei que não podia,que não dava para anotar tudo. Não é assim. Não é engessado nada, a gente 68 faz uma marca que o boneco tem que ir em tal direção, depois faz tal movimento. E a gente pouco marca, até. Porque a situação vai surgindo. O trenzinho tem que entrar e cai um galinho da árvore, ele pega o galinho, passa pra outra mão e brinca. Então o movimento é esse: vai até o canto e volta, vai passar pra cá, bate na arara que está ali e tem um diálogo com a arara. Esse tipo de coisa. O que é importante para nós? É essa passagem. S: Na verdade a gente dá uma dividia. Porque o Dario olhando de fora ele pede pra gente o que ele quer, como ele quer a cena, qual é o espírito da cena. E nós, lá dentro, a gente soluciona. Então fica basicamente para mim.. D: A Su é como se fosse uma diretora de cena. Ela dirige lá dentro e eu aqui fora. Isso é importante porque ela sente as dificuldades lá. S: É, ele pede e a gente tenta solucionar aquilo. Porque o Dario ele não é conformado com uma cena simples, então ele vai exigindo cada vez mais. E é legal porque a gente vai tentando explorar o boneco até o limite. Para ver até onde o boneco consegue fazer aquilo, da melhor maneira, mais bonito possível e poder fazer o que o diretor está pedindo. É um jogo, nosso, dos atores, e do diretor. Ele joga a necessidade dele naquela cena e a gente soluciona. Para ele não ter que se preocupar em como a gente vai solucionar mecanicamente os bonecos. Então a posição dele é lá de fora. D: Eu fico do lado de cá do palco. Fico aqui. Sou o público, sou o diretor e público e a Su é como a diretora de cena. Eu não sei se o nome é exatamente esse, mas acho apropriado. Ela ajuda muito porque ela tem mais experiência que o pessoal. As vezes é uma torção de corpo para favorecer a toda uma colocação de cinco ou quatro pessoas. A gente descobre que uma pessoa está meio tensa e não se posiciona tecnicamente bem, e a Surley vai descobrindo esses detalhes, o que ajuda muito. Entradas e saídas normalmente a gente vai pedindo, eu indico muita coisa porque eu sei o tempo que dá para a pessoa se mover, sair esse boneco, entrar o outro. Então tudo o que está piscando aqui na televisão é questão minha, e lá é muito da Surley. É assim, sem parecer ostensivo, a ideia é essa. S: É boneco é uma coisa bem gostosa de se trabalhar. D: E acho que essa falta de ostensividade faz o cara dizer “não eu sempre fiz isso, a minha vida inteira, eu nasci pra...”. E não, e a gente colocou coisa por coisa. Mas é interessante isso. Esse aprendizado que vai lentamente, infusão lenta e a pessoa daqui a pouco ta fazendo isso com se fosse desde sempre. E: No espetáculo “João Cabeça de Feijão” há um situação que imagino ser mais difícil de dirigir, que é a situação do ator que está manipulando e ao mesmo tempo está atuando. E do ator que também manipula e as vezes atua como se fosse o próprio personagem que ele já manipulou. Como vocês lidam com essa relação? Porque manipular já é difícil, e manipular e atuar junto... D: Esse elenco basicamente é um elenco que primeiro ele foi ator. O elenco do “João Cabeça de Feijão”. Então a gente fez de cima para baixo, vamos dizer assim. Não de cima para baixo a manipulação. Mas a gente fez primeiro um posicionamento de cada personagem, tanto que a dança era para a menina fazer agachada. E a gente tinha foto pra isso, tinha informação, tinha pesquisa pra isso. Mas na hora eu achei que ia forçar, ia parecer teatro infantilizado, e agente não foi por aí. A questão era assim. Uma das ideias principais era confundir, era de repente a criança dizer assim: “Mãe, pai, o cara virou boneco”, ou “O boneco virou o cara”. E a gente já ouviu isso do público. Isso que é legal. Porque começa com os atores e daqui a pouco o boneco atua sozinho, aos poucos a gente 69 vai colocando os bonecos. E ele vai subir no pé de feijão, que é um ator, com tiras, tudo. Tem toda uma transformação para isso. E a questão é assim, é fazer a dicotomia, quando é o ator é o ator, quando é o boneco é o boneco. Como você deve ter visto o clipe parece que é tudo misturado. O clipe tem essa característica de ser tudo tumultuado. Mas tem toda uma colocação. Começa com o ator. Então o boneco sai da cesta. O menino cria o boneco, o boneco sai como ele, e o boneco já sai como ele e começa a interagir com a mãe que está fora. E: Mas tem um primeiro momento de relação entre os dois, menino e boneco? D: Tem. Os dois são muito parecidos. O boneco está vivo e a mãe fala. O menino se assusta, acha que a mãe está falando com ele e diz: “eu?”. E o boneco responde: “não, eu aqui!”. E então ele (o boneco) começa a dialogar com a mãe. Então cria-se uma discussão que envolve. E agente acha muito legal, e a criança gosta demais dessa passagem. E nós já ouvimos várias vezes: “Mãe, virou boneco”. E: E para o ator tu sentes que é muito difícil fazer isso? D: Não se ele encara como ator. Como a gente começou com exercício de ator no palco, andando de lá para cá. Começou assim e depois a gente foi afunilando para a manipulação até o final. E: Então começou com a direção de atores? D: Sim. E: Quando se começa a pesquisar sobre o teatro de animação pode-se encontrar muita discussão sobre a relação de disputa entre o ator e o boneco. Que o ator tem que se anular frente ao boneco. Isso já aconteceu em algum momento, esta disputa, tu já pudestes perceber isso em algum espetáculo, e se aconteceu como que tu lidaste com isso? D: No “Portinari”. Acho que porque o Portinari tem um ritmo bem dinâmico. No festival de Curitiba a crítica disse que estávamos muito presentes no espetáculo. E a gente realmente estava. Como a gente tinha estreado recentemente, estávamos todos muito felizes. Então depois a gente ‘baixou um pouco a bola’, colocou para os atores que não dava para ficar fazendo careta. É uma sintonia que o ator tem que ter para poder emprestar a voz para o boneco. Mas a gente teve que ir devagar também para não perder, a peça ela faz uma festa. A proposta é a festa. É festa e o ator estava na festa. Mas foi ali que a gente também aprendeu muito com o próprio processo. Mas foi uma peça que pro público foi boa. É o olhar do bonequeiro que tecnicamente não gostou. O ator estava meio misturado em cena. Mas a gente dividiu um pouco melhor. Eram algumas cenas só, porque tinham cenas em que os atores ficavam muito de fundo, não tinha nenhum problema lá. Mas a gente aprendeu muito tecnicamente que tudo é foco. E: E o olhar do ator.. D: A gente enxerga que é um tutor. A criança entende que é um tutor Ela olha a pessoa, olha o boneco, e pronto. Ela já entendeu que pode ser a figura do pai ou a figura da mãe, ou um tutor que está ali e para ela tudo bem, está amparada pelo adulto. Se tiver atuando direitinho, sem extravasar, sem ideias que possam romper uma linha, a tendência é dar super certo. Mas é o foco. Se não tomar cuidado com o foco ele vai embora. Desfoca a atenção, causa outro entendimento. Em “Trenzinho Villa-Lobos”, por exemplo, a gente tem uma sequencia e de repente corta o espaço -tempo. O único problema que a gente tem com as crianças é elas perguntarem a mãe o que esta acontecendo, mas elas logo entendem, 70 porque vem uma explicação. Mas é uma ruptura, uma ousadia que a gente fez. Cortar o espaço cênico e transferir para outro lugar e não explicar. Para ver até aonde vai o entendimento. Para também não ficar tudo muito explicadinho, a gente também não gosta que a criança aprenda no “beabá”. Entrou um cara carregando uma coisa, não tinha nada a ver com o que acontecia antes, mas foi um corte cênico e daqui a pouco a criança vai entender. A gente não teve grandes problemas, entra bem na ação. Estava acontecendo uma ação, a gente invadiu com outra, é um jogo de ações e de invasões. A gente brinca muito com essa coisa de invadir, mas é invadir com proposta, com técnica. Criar um gráfico. O gráfico acorda as pessoas. O gráfico depois de uma situação colocada que vai se desenvolvendo. E: Tu falastes agora pouco sobre a voz. Todos os espetáculos de vocês trabalham com voz, com fala? D: Sim, todos. Só a “Cuca” trabalha com som gravado. A gente fica mais na manipulação, o que é delicioso porque a gente fica só com um elemento. E: Enquanto diretor, tu percebes que os atores tem dificuldade maior na hora de colocar a fala, porque também é algo que chama muito atenção. É difícil se manter neutro botando intenção na voz. O que tu reparas de diferenças em dirigir um espetáculo sem fala, no caso de vocês gravado, e um espetáculo com fala? Isso no procedimento de direção do ator. D: No gravado você fica com uma preocupação que é caprichar e infinitamente melhorar a manipulação. A “Cuca” não tem fim, sempre estamos descobrindo coisas novas. S: Na “Cuca” você realmente não se manifesta porque você não fala. D: Temos um elenco novo, são quatro atores ótimos, mas estão ‘apanhando’. Tecnicamente, eu digo. Esta tudo certinho no espetáculo, mas falta ‘cozinhar’ um pouquinho, que é uma tranquilidade natural que não adianta, se você muda o elenco você tem que dar um tempinho para ele se aquecer naturalmente. Isso é evidente. Tecnicamente é fácil, mas vai criar complicações, porque você não pode errar nada na “Cuca”. Você tem que estar muito atento, e também o grau de intimidade pesa. E: Então acaba que fica mais difícil fazer com fala gravada... D: Sim, porque tem duelos, uma série de coisas que são cronometradas, não dá para sair de cena e ficar ‘fazendo a unha’ como a gente diz. Agora o falado, é a mesma coisa, só que é assim, como a gente ensaia, e o teatro é ensaio, as pessoas rapidamente entendem que tem que falar, atuar e manipular. E a gente trabalha por pequenas sintonias. Se o boneco está provocando um outro diálogo, outro duelo, você tem que sintonizar para ficar temático naquele microcosmo em volta do boneco. [...] Então cada propósito a gente coloca que deve estar temático. As vezes o ator esta fazendo algo que dá certo mas que não tem nada a ver com o que esta rolando. Você tem que ser alguma parcela do que esta acontecendo, alguma coisa você tem que ligar no elemento. Isso é atuação, e não precisa ser expressiva, é uma sintonia. Tem grupo que provoca muito, que vai para o lado cômico. Bonequeiro se divertindo, ou apontando a direção do que o boneco esta fazendo. A gente trabalha em outra linha, mas no tema de fundo do que esta acontecendo. 71 E: No começo a gente falou que tu assinas a direção e o texto. Nessa relação de diretor-roteirista, quando prepondera a função diretor e quando prepondera a função roteirista? D: O texto na “Cuca” ele veio antes, a gente pouco mexeu. “Trenzinho” mexeu bastante. É um desafio pra mim. A gente faz um pré-texto e depois trabalha para ajustar as falas que estavam na minha cabeça para a boca do boneco, que é outra coisa. Essa adaptação é difícil, demora um certo tempo. Mas a “Cuca” foi um presente, pesquisamos 4, 5 meses, cabeça cheia. De repente em dois dias vem o texto, você tem que ser muito bom em datilografia senão você não alcançar o que estão dizendo. É quase manifestação, mas eu não trabalho assim, não é isso. Mas você teceu um universo, tem um enredo, as figuras. Abaporu, Negra... Os quadros me deram muitas dicas, o quadro ‘antropofagia’ é o fim da peça, que é Abaporu e a Negra sentados, abraçados. A cena do Boi tem um quadro do Boi, a cena da Cuca tem um quadro da Cuca, que ela vem como guardiã ajudar a Negra, que é a heroína, a encontrar Abaporu, que se perdeu com aquela chifrada. O texto é uma coisa, eu não sei porque, mas eu gosto de ver o ciclo se completando. Ganhei um texto no premio Nacional de Dramaturgia, lá atrás. Foi fruto de pesquisa folclórica, de brasilidade. Isso me encantou bastante e eu pensei que é possível você dirigir e ver realizado seu texto. Tem muito autor que escreve e não consegue que ninguém leia nem recite seu poema. Então eu pensei em ver completo esse ciclo. E é paixão pela coisa também, talvez seja um defeito até. Já fui chamado muitas vezes só para dirigir, ou só para criticar. As vezes te chamam só para criticar e depois você vira diretor, porque gostam de suas opiniões e você acaba ficando. Mas tem todo esse aparato que é complexo. Começa e termina nisso que eu te falei da observação. E: E está bem ligado ao papel do diretor que acaba acumulando funções não?! D: Acumula, acumula sim. Mas eu logo abandono o escritor. Depois de ter contato com Abujamra, Antunes, alguns outros diretores, você vê que é uma farra também dirigir, é muito legal. Muito legal porque você coordena, você dá ideias, você recebe ideias, é um debate artístico-criativo E me interessa muito essa participação, esse contato com o ator, contato com os bonecos. E: Como que tu diriges, por exemplo, a “Chapeuzinho”, em que tu estas em cena? D: Sim, mas eu dirigi um elenco antes. E: Tu nunca te diriges então? Sempre diriges outros e... D: Se eu tiver que entrar eu entro depois. Porque assim, esse elenco ele foi até certo ponto e eu pensava que dava pra ir muito mais. A Surley também não estava no início. Não que a gente vai roubar peça das pessoas, não faz sentido. Se tivesse indo bem ficava, mas estancou. E eu não admito. Eu perguntei se a Su queria pegar, tivemos um tempo e começamos a ensaiar. Ela me dirigindo por dentro.Ela me ajudou muito, foi então que eu entendi os procedimentos que ela faz. O pulso da Surley que é diferente. Se eu ver um pulso de um ator eu posso dizer se é bonequeiro ou não. O pulso, ele tem que ser meio invisível, meio mágico. As vezes bonequeiros nossos, bons, gente esperta, talentosa, você vê que ele é marcado. Ele não tem um abandono. Tem que ter abandono A Surley está fazendo alguma coisa e não mexe mais nada, mexe só ali. É o boneco já respirando no meio dos dedos, é algo que você não percebe numa primeira leitura, percebe depois. Então ela tem este talento que é meio natural, mas é paixão pelo boneco também. E: E quem constrói os bonecos da Cia? 72 D: Ela. E: A Surley constrói todos? D: Sim. Então tem hoje 150 bonecos, mais ou menos. E: Ela constrói a partir de indicações tuas? D: As vezes só indicações e ela ‘dorme com o barulho’ quando não consegue resolver. Então eu dou indicações, para tentar por ali ou por aqui. Tem um boneco nosso que é uma paleta. Eu inventei e ela produziu. Um mancebinho com rodinhas e ele escreve as sensações que ele esta sentindo. Um boneco muito legal, construtivista ao extremo. E: Então acontece de tu conceberes e ela construir? D: Então ela capricha. E: E aparecem mais coisas do que tu havias pensado? D: Sim, sim. Tranquilamente. Tem um boneco que tem braços longos. Começamos brincando e depois ele ficou marcante. É uma mãe. Para a criança a mãe é gigantesca, ela é protetora, então o molequinho pequeno chama e o braço da mãe vai lá atrás buscar ele. É um efeito de formas animadas totalmente ligado com um conceito, a função cênica de mãe e filho, a proteção. A gente fez em Blumenau e a critica gostou muito. A mão e a mãe, que são essas proteções, essas grades de carinho, podem amparar a criança, podem pegar no colo, podem bater também. Então as vezes eu provoco e a Surley acaba construindo, desenvolvendo. E: Uma última pergunta, que exigirá um pouco de imaginação... Se te convidassem hoje para dirigir um teatro de atores, qual tu imaginas que seria tua maior facilidade ou dificuldade por estar a tanto tempo trabalhando com direção de teatro de bonecos? D: É mais a cabeça das pessoas. Se deixar levar, rodar as ideias. É uma indicação e um retorno. O que eu tenho muita dificuldade é com ator que tem muito ‘truque’. Eu acompanhei um trabalho que eu via o ator de frente e achava legal. Era um ‘Santos Dumont’. O ator de frente era muito bom. E o diretor me chamou, como autor de texto, para acompanhar. Um dia eu precisei tomar água e eu vi a peça de lado. E esse cara, num diálogo do Dumont com Ícaro, um diálogo impagável, nesta cena esse ator esta meio virada para o público e riu, e eu vi essa risada e vi que o cara era um mentiroso. Fazendo errado o tempo inteiro. Era uma coisa estranha, porque o outro personagem, o mecânico do Dumond, ele tirava gargalhadas da plateia. E tinha uma mulher, que era fascinada por ele, e que tentava uma aproximação num diálogo lento, muito bonito. Mas sempre eu via e pensava que havia algo estranho com aquele ator. Depois eu descobri que ele era só técnico. Ele era até o autor do projeto. Mas era técnico, sem coração. Não tinha coração. E se não tiver coração, se o elenco vier sem projeto não dá. Mas se vier com coração aberto vai dar certo. Porque na arte tem isso, no sistema de atores tem gente muito oportunista. Infelizmente ainda tem. Gente que quer entrar no SESC, quer vender, e que quer ser rápido. Isso não dá certo. Porque a arte sabe a hora de ir. Como um texto, se eu tiver escrevendo e forçar muito a barra não vai. O Luiz Alberto Abreu, trabalhei muitas vezes com ele, ele é o autor de “Hoje e dia de Maria”, sucessos muito legais, ele sempre dizia que é importante sentar na máquina. Mesmo que não saia uma linha, senta na máquina e isso vai contar ponto. Ele fala que o processo artístico é doloroso, é uma sintonia, uma FM perdida no espaço. Não é a qualquer momento que vai pegar. Você tem que estar lendo, estudando, você não pode perder o foco, você vai aquecendo o quadro e daqui a pouco as coisas vão saindo, se 73 colocando. A mesma coisa com o ator. Tem que chegar, ter calma, ter colocação, não pode ter truque. Truque é o grande problema. A rapidez é um truque. A gente briga muito com Dionísio, ele vê tudo, ele não enxerga nossa roupa, ele enxerga nosso coração. O que você fizer de errado vai voltar para você. Então a gente fala sempre nos ensaios para tomarem cuidado com o que estão fazendo, porque tudo está sendo observado. Se você tentar enganar, não adianta, vai voltar. O Édipo não tentou? E isso não e só grego, a filosofia, o conto indígena trabalha muito assim. Porque você é provocador das coisas que vão acontecer mesmo não querendo, ou não querendo você está fazendo uma ação. E essa ação é o oráculo de tudo o que vai acontecer e voltar. Agora, eu não teria dificuldade, a não ser que eu pegue esse ator que seja técnico, porque não adianta, tem que ter alma, o princípio e a jogada. E eu insisto, como eu vi o teatro lá de fora, vi muitos, é lindíssimo, mas você olha e vê só luz, direção, não tem as pessoas, não estão ali. Você não sente muito uma pulsação, o teatro que é feito na Europa é muito técnico. Eu gostava muito mais de dança por isso. Mas ator eu tive muita dificuldade de ver lá, a não ser coisas grandes, como Bob Wilson, e coisas assim que você fica impressionado. Mas você estava falando de voz, e a voz a gente trabalha assim, é uma coisa muito simples e bacana. O que suscita, o que sugere um personagem? Por exemplo a gente tem no Portinari um personagem que é o amassador de cacau, é para criança, pensamos em o que lembra o cacau, e a gente começou a brincar com isso. Como se ele estivesse mastigando o cacau falando. Fica muito legal, fica gostoso de ouvir ele falando. É muito simples, o ator vai emprestar um pouquinho. Trabalhamos eixos. Trabalhamos localidades vocais, e depois pegamos a ideia e trabalhamos ela. Fazemos exercícios para ver o que de melhor podemos encontrar. O Lobo também tem uma reverberação, e o Caçador, por exemple é um pouquinho mais afetado. E: E ele é meio medroso... D: Ele é medroso, voz de cabeça um pouquinho. Mais ou menos isso. Eu tenho mais dificuldade na borboleta, e a Surley me critica, pede outra voz. E eu acho que falta sim, falta trabalhar uma velocidade, uma coisa mais flutuante na voz. E: Bem, acho que é isso. D: Espero que tenha te ajudado. E: Ajudou muito sim, muito obrigada D: É, eu sempre fiquei fora da cena, depois eu entro sim porque o grupo ele tem reveses, tem um projeto que dura tantos meses. Depois tem que mexer no elenco, e pra não perder projetos legais tem que substituir. E: E tu enquanto diretor conheces o papel de todo mundo também. Por mais que não saibas a manipulação.. D: Mas isso também é difícil. Conhecer é uma coisa, fazer é outra. Eu também passei por isso. Falei “Ah eu sei” e da primeira vez eu me dei mal. Porque o diretor está exatamente ao contrário da pessoa, está de fora e vê do lado contrário. Muitas vezes na “Cuca” eu me pego entrando do lado do diretor e eu já vi diversas vezes. A “Cuca” deve ter sido apresentada mais de 1000 vezes. Mas é uma alegria. 74 ANEXO B - Transcrição da entrevista com Miguel Vellinho realizada em 02 de outubro de 2009, em Jaraguá do Sul. Elisza: Bem, Juliano e eu conversamos sobre como estruturar esta entrevista, uma vez que temos temas bem diferentes. Então decidimos que começarei com minhas perguntas, logo em seguida ele fará as dele e então temos uma pergunta final. Juliano: Totaliza 16 perguntas. E: E acontece que uma já acaba completando a outra. A primeira pergunta e que achamos indispensável fazer, é que quando estudamos tua carreira para fazer este questionário percebemos que tua formação é de ator. Como tu te descobristes diretor? A partir de quando e por que? Miguel: Eu era do “Sobrevento”, fundei o “Sobrevento” também. Mas havia uma questão ali no “Sobrevento” que era muito complicada, de cada um querer ‘vender seu peixe’. E tinha uma questão desequilibrada, uma vez que havia um casal e eu. Então eu vi que com o passar dos anos, o poder de voz do Luiz André, que era o diretor da companhia cresceu. Eu comecei a sentir que o projeto da companhia não era muito mais meu. Fui ficando preocupado com isso e fui vendo que as minhas vontades de experimentação não estavam mais tendo eco ali dentro. E foi um momento muito crucial. Tivemos um espetáculo que foi um divisor de águas. O espetáculo Ubu que era a partir do Ubu Rei do [Alfred] Jarry, que montamos em 1996. E acho que ele foi muito definidor dos destinos. O Ubu era um espetáculo super barulhento, com uma banda de rock ao vivo, e a gente vinha de uma série de espetáculos totalmente diferentes daquilo. Era algo em que a figura do ator estava mais em evidência, os espetáculos eram muito mais ‘boneco’ do que aquele ali. Então aquela ‘explodida’ do Ubu mexeu muito comigo Não que eu não gostasse do Ubu, eu gostava do Ubu, mas a sequencia do que a gente ia fazer depois do Ubu me desagradava. Então eu saí com uma falta de sintonia tremenda daquela situação. Mas eu pensei que eu queria experimentar algo que no grupo não estava tendo mais muito espaço. Neste momento eu juntei algumas pessoas que estavam em torno, algumas pessoas que até vinham trabalhando como “Sobrevendo” e a gente montou uma grande oficina já pensando que dali poderia sair um grupo onde eu poderia fazer o trabalho que eu queria fazer no “Sobrevento”, que era o Sangue Bom. O Sangue Bom eu cheguei a propor para o “Sobrevento”. Montar um espetáculo sem fala, uma história de vampiros, uma história de uma hora seguida. Porque a gente vinha de uma sequencia no “Sobrevento” de dois espetáculos de manipulação direta o Mozart e o Beckett, que eram espetáculos de quadros. O Beckett eram três quadros de adaptações de peças do Samuel Beckett e o Mozart era um espetáculo de cinco quadros contando a vida do Mozart. Depois disso teve o Teatro de Brinquedo que tem um hiato, que eu considero como um hiato dentro dessa técnica da manipulação direta, mas que era uma técnica que eu gostava muito. E eu queria experimentar o limite desta técnica dentro de um espetáculo de uma hora, ao invés de quadros. Então eu propus isso e não tive muito retorno. Então eu decidi fazer. Levei um tempo pra fazer, tiveram umas questões internas do grupo, que acabou indo embora para São Paulo, e eu fiquei no Rio. Então eu decidi, depois de um ano, montar este grupo de pessoas que acabou gerando o Sangue Bom. E: Bem, então desde o primeiro espetáculo da “PeQuod”, o Sangue Bom, até o Lampião, que é o último, totalizando seis espetáculos... M: Mais um quadro do Primeiras Rosas31, que apresentou aqui no início do festival. E: Qual foi o quadro? 31 Espetáculo do Grupo “Pia Fraus”, de São Paulo, para o qual Miguel foi convidado a dirigir uma das cenas em 2009. 75 M: A Terceira Margem do Rio. E: Quando eu assisti pensei que este deveria ser o que tu dirigistes. Bem, mas em todos estes espetáculos a direção é tua, e em alguns o Nini me falou que tu atuas correto? M: Mais ou menos. Foram substituições que eu tiver que fazer. Quando eu vim em 2004 com O velho da Horta para o “Palco Giratório” uma das pessoas do elenco não podia fazer a viagem, daí eu voltei a manipular. Mas é só porque o espetáculo estava pronto. Então eu fiquei com segurança de entrar no espetáculo. Mas enquanto eu estou criando eu fico de fora, totalmente, porque senão não tem como. E: E tu identificas nos teus trabalhos uma constância nos procedimentos de direção? Seja na ordem de execução, até porque tu também assinas os roteiro, então seja de repente na ordem, primeiro o roteiro, depois o boneco, depois a cena, como isso acontece? M: Primeiro vem a ideia da pesquisa. Isso acaba levando sempre um ano pesquisando, lendo, e checando se é isso que eu quero fazer. Neste mesmo ano é o ano onde a gente começa a fazer o projeto para tentar captar os recursos. Então é sempre um ano de preparação que tanto é preparação da produção, de tentar levantar dinheiro, quanto a preparação em que eu fico me preparando, me alimentando, pesquisando, lendo. E depois mais um ano ou oito meses ensaiando. Geralmente é assim. Então a companhia acabou ficando na manipulação direta, porque todo mundo gosta, porque eu particularmente sempre acho que tem mais alguma coisa a ser explorada junto com essa técnica. A gente meio que ficou nesta técnica. Novas questões apareceram. Nos dois últimos espetáculos existe uma interação com o ator muito maior do que tinha do Filme Noir para trás, que até chamo de um segundo capítulo dentro de nossa trajetória. Quando começou esta mescla. E acho que o Primeiras Rosas também tem isso, de uma mescla muito evidente, de juntar harmoniosamente no mesmo espaço o boneco e o ator. Então a gente se fixou nessa técnica, acho que ainda não apareceu nenhuma outra técnica que nos mobilizasse tanto. Até tem uma questão da sombra que estamos ‘namorando’, mas ainda não achamos algo que dá pra fazer com a sombra. Mas a gente tem um leve ‘namoro’ com ela. Então na verdade estes procedimentos partem primeiro de uma pesquisa e depois de um estabelecimento. Já que estamos continuando a trabalhar com a mesma técnica procuramos agregar coisas diferentes, é o mesmo ‘quebra-cabeça’ mas tentamos fazer uma figura diferente com esse ‘quebra-cabeça’. É mais ou menos assim que a gente trabalha. Num primeiro momento nós tivemos essa a linguagem cinematográfica muito à frente de nossa pesquisa, e que acabou gerando dois espetáculos que são o Sangue Bom e o Filme Noir. E acho que isso do cinema acaba permeando o resto. Depois tiveram questões isoladas, por exemplo, mesclar música ao vivo, algo cantado, onde os atores manipulem e cantem também, e então foi o Auto de Natal que a gente fez. Então sempre tem alguma coisa que a gente ou coloca ou retira. No Filme Noir a gente voltou às questões do Sangue Bom, mais aprofundadas. E: E essas ideias de tirar ou colocar vem de ti ou também dos atores? M: Olha, até o Filme Noir era muito minha. No Peer Gynt teve uma ‘virada de mesa’, que até hoje a gente não entendeu o que aconteceu. Tiveram uns desacertos dentro do elenco. Então eu falei: “ah, então vocês querem algo onde o ator esteja mais a frente? Então vamos fazer.” E: E deu certo, na relação entre diretor e atores? 76 M: Sim. Num primeiro momento existia uma pré-ideia do Peer Gynt de montar com bonecos. Era um cenário muito bacana, eu ainda quero fazer um espetáculo com esse cenário. Tem essa questão espacial que sempre vem na minha cabeça também junto com a ideia do espetáculo. Depois a gente fala disso. Chegou num momento em que algumas pessoas do elenco disseram: “outra vez um espetáculo de boneco, igual ao outro...”. Eu falei que não era igual ao outro, era uma coisa nova, um texto novo, pegar Ibsen e trazer para o Teatro de Bonecos. E num primeiro momento as pessoas ficaram bastante incomodadas com esse novo trabalho. Na verdade eu tinha montado um esquema de um ator tal fazer o Peer Gynt, a atriz tal fazer a mãe, alguns personagens eu já sabia o que iam fazer. E o ator, justamente o ator do Peer Gynt, estava completamente insatisfeito com o processo e caiu fora. Então eu propus: “Então se vocês não estão contentes, ok, a gente muda. Mas vamos mudar radical. Vocês estão dispostos?” Então aquele ator estava fora do projeto, e a gente voltou a ensaiar, eu mudei toda a concepção do espetáculo e ele pediu para voltar. Eu disse que sim, mas ele não voltou para o papel do Peer Gynt, porque nesse meio tempo outra pessoa entrou, eu fiquei muito feliz com a energia que essa pessoa deu pro personagem. Eu falei que não mexia mais, que ele podia entrar, tinha até um personagem bacana para ele, mas que ia ficar assim agora. E deu muito certo. Uma pena que a gente não tenha conseguido trazer nem pra Jaraguá, nem para Florianópolis. Foi um espetáculo ‘ultra’ elogiado no Rio de Janeiro. A Bárbara Eliodora considerou um dos dez melhores espetáculos do ano. Teve duas indicações muito importantes para o [Prêmio] Shell, que é melhor cenografia e melhor direção. Foi muito feliz. Foi um resultado muito especial para gente. E colocou a “PeQuod” em outro patamar dentro do panorama do Rio. Muitas outras pessoas vieram ver. Pessoas de influência, formadores de opinião. Também pessoas que nunca se ligaram em Teatro de Bonecos. Que nunca acreditaram ser possível Ibsen com Teatro de Bonecos. Então, essa coisa dessa margem, de ficar empurrando essa linha do que pode e do que não pode, o Peer Gynt é um exemplo muito claro de um lugar que a gente conquistou, que a gente não tinha chegado até então. E: Neste espetáculo, que infelizmente ainda não tivemos a oportunidade de assistir, mas pelo o que conseguimos de informações, há uma relação bem clara do ator que manipula e do ator que atua. Não sei se nesse espetáculo há, mas em outros sei que há a relação do ator que anima o boneco, e que em certos momentos atua enquanto mesmo personagem que o boneco. Enquanto diretor, quais tu consideras as maiores necessidades dos atores para conseguirem fazer esses dois papéis e ao mesmo tempo manter uma boa relação entre animar e atuar? M: Vou falar um pouquinho do porquê disto. Tinha uma questão na própria peça do Ibsen de que o Peer Gynt é um cara em cima do muro. Ele é um cara que a vida coloca situações para ele, e ele totalmente amoral sempre arranja um jeito de tirar o corpo fora. Tem uma coisa meio Macunaíma nesta história, meio malandro, de não se posicionar. E a vida vai dando coisas para ele e as consequências são cada vez mais graves. Até que uma pessoa morre por consequência de uma decisão errada dele e em determinado momento a vida vem cobrar essa falta de postura do Peer Gynt. Nessa mesma época a gente estava lendo muitos textos de filosofia de determinados autores que falavam daa perda deste eu, do sujeito contemporâneo, e que nos instigava muito. Eram coisas muito bacanas que tinham a ver com o Peer Gynt. Você fica tão embriagado que você vê referencia em tudo. E na verdade a forma final do espetáculo é justamente materializar essa perda do eu moderno, que o Ibsen já anunciava lá no início do século XX, final do século XIX. Então estes dois sujeitos, sujeito boneco e sujeito ator, Peer Gynt ator e Peer Gynt boneco era a fórmula perfeita para fazer este espetáculo. Era a nossa tese, digamos assim. Pegamos essa peça por isso. Quando você pergunta de dificuldades, acho que tiveram questões técnicas muito visíveis nessa divisão. Precisamos de um trabalho muito rigoroso de foco, de onde está o boneco e onde está o ator, agora é o boneco, agora é o ator. De uma consciência corporal muito violenta, de uma noção de neutralidade cada vez maior. Também 77 porque além de tudo a gente resolveu fazer tudo em um espaço em branco. Então o cenário é todo branco, o fundo branco, o piso branco, que reflete. Os atores todos vestidos de branco. Não um branco absoluto, algumas coisas em creme. Figuras muito escuras, bonecos muito escuros e o fundo todo claro. Então tudo revelado, tudo a mostra. Nenhum resquício de ilusão. Nenhuma vontade de enganar o público Mas mostrar este jogo de é boneco ou não é, agora é ator, agora superdimensiona o boneco, agora é ator. E é o tempo inteiro isso. A gente foi construindo a partir disso, e essas foram as grandes exigências de direção dessa montagem. Ficar atento a neutralidade, em relação a essa divisão do ator. Era uma coisa que a gente ‘raspou’ em algum momento mas não era tão claro assim. Nunca teve isso, teve alguns ‘relampejos’ disso no Filme Noir, no Velho da Horta, onde a situação estava exposta, mas era de outra maneira. E: Eu pude assistir O Velho da Horta mês passado em Florianópolis, e percebi que não há uma preocupação em deixar o ator-animador neutro. M: Não, exatamente. Ele está ali e a brincadeira é todo aquele jogo ultrarrealista ali embaixo, com flor, chuva, água. Algo ultrarrealista, mas claro que não é realista, porque a proporção é outra, os atores estão ali. Eles tem um ‘quê’ de neutralidade, mas também a gente não está escondendo. E: Se fala e escreve muito sobre esta disputa entre ator e boneco, sobre o boneco ser o ator ideal, sobre a marionetização. Tu já reparaste em alguma montagem tua se houve essa disputa, e se houve como tu resolveste? M: Sim, no próprio Peer Gynt. As pessoas estavam querendo fazer outra coisa. Teve muito material aí, real, visível, tátil. Porque era um grupo de atores que queria conquistar um pouco mais de espaço da cena. Não sei se por vaidade, não sei se por enfado de achar que não estava mais acrescentando. E a gente viu que a única possibilidade de continuar juntos era dar essa ‘virada de mesa’. Para mim foi uma mexida violenta, porque eu vinha com uma concepção e tive que mudar. Acho que até mostra um pouco da minha maleabilidade de aceitar o que para eles estava esgotado, mas que para mim não estava. Acho que eu posso retomar em um outro momento, recuar de uma outra forma, em algum momento, ou com outro elenco. Mas era uma necessidade real daquele grupo, de atuar um pouco mais a frente. Então eu acatei a vontade da maioria. Pedi uma semana para pensar em casa, e então recomeçamos. Foi isso. E: Tu abdicaste da tua ideia em prol do grupo. M: Sim, em prol do grupo. E acho coerente. Acho que naquele momento as coisas faziam sentido. E com o pessoal da “PeQuod” eu cobro muito uma postura mais ativa, que eles proponham também o que montar, porque só eu proponho. Tem algo de dispersão lá. Eles tem vontade de fazer coisas com outras pessoas, e ter ideias com outras pessoas, mas nunca trazem uma ideia para dentro do grupo. Então acabo eu com a responsabilidade de trazer e dizer: “quero montar isso.” E então é um processo de convencimento, de porque eu quero montar, porque tem a ver com algo que aconteceu antes. Eu acho que os espetáculos da companhia tem um encadeamento. Porque isso veio depois daquilo, porque algo aconteceu em determinado momento. Se você pega a trajetória pelos espetáculos, eles contam e encadeiam toda uma investigação, uma curiosidade, uma pesquisa que desenvolvemos ali dentro. E: Mudando um pouco o foco, mas que tem a ver com a minha pesquisa e que me interessa saber sobre teus procedimentos de direção. As vezes o diretor concebe uma ação para o boneco, ele pede que o ator execute e as vezes por incapacidade da estrutura do boneco, ou mesmo do ator, esse movimento não se realiza. Tu, enquanto diretor, qual é teu 78 procedimento para resolver esse problema? O que tu fazes para conseguir chegar naquela imagem que tu imaginastes? M: A gente sempre faz a confecção no final, quando a gente definiu o personagem, a roupa, quando a gente achou um desenho, uma foto, uma imagem, que o boneco deva ter mais ou menos essas características. A confecção sempre chega num período final, quando a gente já sabe muito bem o que a gente quer dos personagens. E quando os atores também deram informações para aquele personagem que a gente acaba incorporando na escultura dele, ou no corpo, no jeito de ser, na forma. Então a gente sempre acaba trabalhando com bonecos antigos de outros espetáculos ou com uns protótipos que a gente tem e que acabam sendo manuseados por um grande tempo durante o processo de ensaio. Então não temos muito problema neste sentido porque, para o bem ou para o mal, acabamos trabalhando sempre com uma mesma proporção de bonecos. Então nós não temos muita diferenciação. A questão dos movimentos, das ações, muitas das coisas são levantadas em ensaio a partir do trabalho dos atores. A gente faz as ações e então fazemos uma adaptação daquela ação para o boneco. Por exemplo, a dança da Verônica, no Filme Noir, eu não tinha capacidade de criar uma coreografia para uma música. A cabeça de uma coreógrafa faz daquela música, daquele ritmo, daquele refrão, daquela estrutura musical, traduz aquilo em movimentos, muito melhor do que eu e em muito menos tempo. Então a gente chamou uma coreógrafa para coreografar a dança da Verônica. Assim como a chegada do caçador no Sangue Bom também é toda coreografada. Tem essa particularidade de a gente pegar os movimentos humanos e adaptá-los para uma situação com boneco e quando a gente acha uma necessidade muito intricada, como foi o caso da Verônica, a gente recorre a alguém que trabalha com o corpo. E não só o elenco aprende a coreografia em si próprio, como depois a gente passa para o boneco. Muitas das coisas que a coreógrafa cria não dá para fazer com o boneco, temos que fazer outra coisa. É um período muito bacana, porque você vê os dois lados da questão. Uma ideia sendo jogada e a adaptação dessa ideia para o boneco. E: E tu trabalhas com algum treinamento específico para o ator-animador, ou esse treinamento se dá a medida que tu estas construindo a cena e ensaiando? M: Quando é alguém que tem que entrar para a companhia, a gente faz um trabalho específico, diferenciado, e que não une as questões da cena. Mas que une as questões daquele tipo de boneco, de um tipo de trabalho que a gente executa constantemente, de um jeito de levar a cena como a gente leva. Tem várias questões que até é difícil de explicar. Mas é um jeito que a gente achou de trabalhar e que a pessoa tem que entender aquele jeito. Então passamos por um período de experiência onde a gente trabalha com a pessoa para determinadas questões muito presentes o tempo inteiro do trabalho. Depois ela incorpora um espetáculo e então ela vai trabalhar a questões deste espetáculo. E: Já na montagem? M: Sim, já na montagem do próprio espetáculo. E: Voltando a questão de tu também seres o dramaturgo, eu pude perceber na minha pesquisa que é constante isso de o diretor no Teatro de Bonecos ser também o dramaturgo. Tem várias pessoas que trabalham assim. Mas para ti onde está a separação destes dois? Onde acaba o dramaturgo e começa o diretor? Ou o dramaturgo está o tempo todo? Para ti, pelo o que eu percebi é essencial ser o dramaturgo também, acho que faz parte da tua direção, não?! M: Não, não. Se você for ver, autoria mesmo é só o Filme Noir. Porque o Sangue Bom é uma coisa de todos, praticamente. Um espetáculo onde eu tinha um início, tinha um 79 fim e todo mundo criou. Eu tinha um roteirinho, tinha um final, mas não sabia como chegar nesse final. Ficamos um ano treinando dentro de uma sala para fazer um início, meio e fim. A autoria mesmo só tem o Filme Noir. E te digo mais, acho que a gente cresceu com o contato dos autores de fora. Nessas duas grandes experiências. Numa experiência que posso chamar de embrionária que foi O Velho da Horta. Mas que foi muito bacana naquele momento do grupo. O Velho da Horta é o terceiro espetáculo. O Sangue Bom foi um processo conjunto, o Noite Feliz também foi um processo conjunto, mas com texto, e O Velho da Horta foi o primeiro momento em que chegou um texto para gente. Um texto difícil. Um texto que era todo em versos. Um texto que precisou de uma adaptação violenta internamente. Ou seja a gente destruiu toda a peça por dentro, mas manteve toda a estrutura. Porque eu queria manter a estrutura. Queria um espetáculo em versos, mas não aqueles versos porque as rimas daqueles versos eram impossíveis, as pessoas não entendiam nada. Então a gente refez O Velho da Horta do jeito que ele é. Mas com um texto não totalmente diferente, mas bastante modificado. E acho que foi um momento dentro da companhia de um crescimento, de um amadurecimento artístico muito grande. De um amadurecimento interpretativo, de um amadurecimento artístico. Acho que a gente viveu um momento ali muito interessante. Foi um momento de descoberta eu acho, para alguns atores isso é muito claro, o contato com aquele texto do Gil Vicente foi importante. A compra da minha ideia em relação ao que a gente poderia fazer com aquele texto foi um momento muito interessante. E que depois se repetiu com Ibsen. Superdimensionado em tudo. Com muito mais dinheiro, com uma verba muito maior do que a que a gente teve com O Velho da Horta. Com ambições muito maiores. A gente queria trabalhar também como ator. E: Eles cantam também no Peer Gynt? M: Tem uma atriz que já havia trabalhado com a gente... Bem, vou explicar rapidamente, isso eu nunca falei, isso é preciosidade. Tinha uma menina do grupo que estava saindo da companhia. Estava indo morar em São Paulo. E inicialmente eu tinha pensado para ela o papel da Soulvake, que é o grande amor do Peer Gynt. Eu tinha pensado que ela iria fazer a Soulvake, e estava tudo resolvido. Então ela me veio com essa história que estava ia embora do Rio de Janeiro. Então pensei em inúmeras possibilidades, e uma das possibilidades, que foi um risco mesmo, foi trazer uma atriz que é cantora e que havia feito Noite Feliz com a gente, que é um espetáculo que é cantado, é musical. Foi uma aposta minha. Pensei: “Será que essa menina vai dar conta do texto? Porque cantar eu sei que ela canta maravilhosamente bem.” E ela topou, eu topei. E a questão da entrada dela no elenco modificou todo o final do espetáculo. O espetáculo é cantado no final, ela canta uma área porque é ela, senão o final teria sido outro. Tem outro momento no espetáculo que ela canta também uma música à capela, e tem um final que é... não vou falar porque vocês não viram. Mas que foi todo modificado também pela entrada dela, pela entrada de uma cantora. Uma atriz que canta, ela mais canta do que propriamente representa. E: Tu vês alguma dificuldade em dirigir um ator que está manipulando e cantando, e ao mesmo tempo que estar um pouco neutro. Quando ele canta já perde muito desta neutralidade. Como que tu procedes nesta situação? M: Ficar gritando o tempo inteiro: “Menos, menos, menos, olha essa cara!” E: Tu chamas a atenção deles então? M: Sim, sim. E esse final era totalmente inesperado para mim, mas quando ela entrou no elenco ela me deu o final da peça. E foi muito legal, porque eu não sabia como eu ia terminar. Quando eu tive a Mona no elenco, quando ela me disse sim, eu já sabia como terminar. E o final é muito bacana. É lindo porque é ela cantando, é uma outra coisa que se abre. 80 E: Pelo o que tu estas falando tu que selecionas quem vai manipular os bonecos, e tu já escolhes ou pões eles para manipular antes? Apesar de que tu já conheces eles... M: É, eu já conheço. Raramente tem um: “ah não, achei que era você, mas era outro..”. Raramente tem isso. Na verdade as coisas são bem direcionadas. Te confesso que fiquei bastante decepcionado quando o ator saiu do Peer Gynt, porque eu estava fazendo para ele, porque eu acho que ele é um ator maravilhoso, e que precisava de um protagonista na vida dele. Mas ele tem uma ‘protagonismofobia’ e pulou fora. Mas adoro ele. Então é isso, as coisas são muito pensadas. Porque é um grupo, estamos a dez anos trabalhando juntos. Tem uma razão de ser de a gente estar junto esse tempo todo. Tem um carinho, tem um olhar meu e penso: “Pô, quero que você faça tal coisa.” O modo de seu ser carinhoso é assim: “Estou fazendo isso, quero que você faça, é pra você, a princípio você pode achar que isso não e a sua cara, mas eu só consigo imaginar você fazendo isso aqui.” E: E tu não tens vontade de voltar a atuar? M: Tenho. E: E é um plano? M: É um plano que esteve perto de se concretizar. Mas a gente perdeu um edital, e eu engavetei. E: Mas quem irá dirigir se tu atuares? M: Ah, é um segredo... E: Partindo agora para o tema do Juliano, é uma pergunta bem simples. Quem constrói os bonecos da companhia? M: Isso varia, porque assim, tem umas pessoas que sempre permanecem na confecção que são pessoas de dentro da Cia. e que gostaram desse ‘barato’ de confecção que não é para todo mundo. É um trabalho chato, difícil cansativo, eu também não obrigo ninguém a fazer a confecção, faz quem quer. E: Mas tu orientas? M: Tem uma orientação minha. Neste ultimo espetáculo, no Lampião, a gente teve muito problema, porque justamente foi um espetáculo no qual eu me ausentei completamente da confecção. E foi complicado, porque teve questões que não ficaram totalmente concluídas e que talvez a gente desenvolva em um outro momento. Foi onde eu realmente senti que eu não posso me afastar tanto assim da confecção, acho que foi um erro meu, mas assim, deu tudo certo. É que os procedimentos dentro da confecção foram muito confusos, mas deu tudo certo no fim. Mas eu sinto real necessidade de estar junto. Não dá, não é uma direção fria, acho que tem que estar junto ali também, porque são os meus atores também. Os bonecos são os meus atores também, então o diretor tem que estar junto também dos bonecos. Teve um problema sério ali de condução que quase desandou uma coisa que ia ser trágico. Mas não foi. Deu tudo certo no final. J: Bem, o tema da minha pesquisa é bem mais específico, trata-se de um espetáculo em especial, que é o Sangue Bom. Então elaborei algumas perguntas sobre ele. O que surgiu primeiro neste espetáculo, a forma de manipulação, a ideia do cenário, o texto...? M: O tipo de manipulação? 81 J: Isso. M: Então, é isso que eu estava falando antes, era um desejo meu fazer um espetáculo de tempo corrido, de uma hora, só com uma técnica, sem texto. Conforme eu disse, eu vinha do “Sobrevento” com dois espetáculos de manipulação direta, mas os dois eram quadros, um era o Becket e o outro era o Mozart Moments. Queria ultrapassar essa questão do tempo do quadro, de 15 minutos, de 20 minutos, queria fazer um espetáculo de uma hora, com manipulação direta. Nunca tinha feito isso na minha vida, queria experimentar isso, e então essa foi a primeira ‘parada muito antes de aparecer a ideia do vampiro, muito antes de vir a história, muito antes de vir o cenário. A primeira questão foi essa: “o que é o tempo corrido com essa técnica e sem texto? O quanto esses bonecos sem a utilização do texto podem ser expressivos? Será que dá pra contar uma história sem texto com essa técnica?” Eram essas as primeiras indagações em relação ao Sangue Bom, as primeiras, absolutamente primeiras. “Será que dá pra fazer um espetáculo de uma hora sem texto?” Isso acabou norteando uma ‘coisa’ que depois foi uma vontade pessoal minha, de trabalhar com uma figura que ajuda a contar a história. Aquela figura que se metamorfoseia, que vira vampiro, que vira morcego, que desaparece, que flutua e que, com os pés fixos no chão, tomba com o corpo reto, lentamente até o chão. Isso é boneco. A figura do vampiro, por N questões, pela questão cinematográfica mesmo, por ser uma figura sedutora, por ser essa figura que voa. Isso tudo era muito instigante, e também pra trabalhar uma hora tem que ser uma personagem que gere surpresas a cada cena. Então aí acho que foi entrando a figura do vampiro e veio a ideia de um triângulo amoroso entre uma suicida, um vampiro, que é um morto-vivo e um caçador de vampiros, que é também um vivo e que quer eliminar o morto. É em cima de uma brincadeira clássica de triângulo amoroso, de mil armadilhas pra um eliminar o outro, e um atrás do outro, e uma menina que a principio tem uma falta de apreço pela vida, que quer se entregar à morte, e um vampiro não deixando que ela morra porque ele está perdidamente apaixonado por ela. Mas ele é uma figura que causa medo, então até ela ter consciência que ele não quer apenas o sangue dela, mas sim ela, porque ela pode ser a fonte de vida dele. E foi essa brincadeira que acabou empurrando o espetáculo para frente. J: E o cenário surgiu em que momento? M: O cenário surgiu muito depois, num ‘insight’ que eu tive. Um ‘coisa’ que eu queria é que esse cenário não fosse fixo no palco – já falei isso em texto – queria um espetáculo em que cada cena acontecesse em um canto diferente. Queria que tivesse mobilidade, que não fosse um cenário estático, mas sim que fosse um cenário que transitasse pelo palco todo. Então vieram as rodinhas, e com as rodinhas nos praticáveis veio a ‘sacação’ de que aqueles cenários se mexendo, davam a ideia de ‘traveling’, de movimento de câmera. Então veio a ideia de agrupar a isso os bonecos duplos, para dar uma rapidez maior de edição. Assim veio a questão da linguagem cinematográfica. E quando chegou a hora de amarrar a ‘coisa’, veio essa questão das caixas, de que um vampiro tem que ser transportado no seu caixão, junto com a terra da cidade natal dele, que já é uma indicação do conto do Drácula mesmo, do vampiro. E por isso a ideia de caixas que se abriam e revelavam não só o interior do castelo, mas também a ideia da caixa pela caixa mesmo. E as caixas é que ditaram os figurinos dos atores, ditaram as posturas dos atores. São caixas que estão na beira de um porto, onde eles estão trazendo um carregamento e então uma dessas caixas se rompe, e do rompimento dessa caixa aparece um ‘caixãozinho’ e sai de dentro dele um morcego deflagrando toda a ação da peça. Então eles são estivadores de um porto, estão vestidos como estivadores, todos em farrapos. Estivadores de um momento histórico anterior. E assim as coisas foram se amarrando, com as caixas, com o porto, com o trabalho braçal – braçal como é a manipulação também. 82 J: Tudo isso já responde praticamente a minha segunda questão que é sobre o que foi levado em consideração no momento de conceber o cenário. Vamos para a terceira que é sobre a influência de outros segmentos (artísticos, tecnológicos, etc). Houve alguma influência deste tipo além do cinema? M: Muito da nossa brincadeira com o Sangue Bom – porque foi uma brincadeira mesmo – veio também dos desenhos animados. Eu falava: “gente, a gente tem que ver, tem que assistir, tem que ver, tem que ver”. Porque estava ali o cerne da brincadeira da peça. Era o desenho do papa-léguas e do coiote. O coiote sempre armando armadilhas para o papa-léguas, mas ele nunca conseguia. Então a gente queria fazer essa transposição na qual o caçador de vampiros era o coiote, sempre armando mil ‘parafernálias’ que nunca davam em nada e o vampiro era o papa-léguas que está aqui e está lá, ultrarrápido, voa. Então essa brincadeira do desenho animado, a linguagem do desenho animado, estava muito presente nesse momento de olhar as figuras como se fossem figuras de desenho animado, de brincar com as impossibilidades de gravidade, com essa ideia de perseguição constante que é a mola mestre do espetáculo. Dramaturgicamente podia ter muito pouco ali, mas havia um campo de investigação muito grande nessas questões espaciais, nessas questões da linguagem cinematográficas, nessa apropriação do desenho animado. Acho que não só o papa-léguas, mas outras coisas, o caçador de vampiros é declaradamente copiado do Jonny Bravo, que era uma figura legal daquele momento do final dos anos noventa. Então tem essas figuras que fomos aproximando. O desenho animado era grande fonte de inspiração. J: E o cinema está ligado também ao desenho animado... M: É, pois é, também estava muito ligado a cinética do que estávamos querendo trabalhar. Mas acho que a linguagem cinematográfica ali, está muito mais numa questão de encenação e o desenho animado está muito mais na questão dos personagens, das ações dos personagens, de como eles poderiam se estruturar, quem eram eles e tal. J: Poderia dizer da confecção inclusive? M: Inclusive! J: Houve alguém responsável por essa área especifica, da cenografia, da confecção plástica dos espetáculo?? M: Do Sangue Bom? J: Sim, sempre do mesmo espetáculo. M: No Sangue Bom havia uma cenógrafa, Andréa Henk Reis, que também era manipuladora do espetáculo. Mas a ideia das caixas, foi uma ideia que eu ‘joguei’ para ela. Ela havia trazido uma ideia de um cenário estático, e eu falei pra ela: “não Andréa, acho que não pode ser isso”. Porque era algo que eu não estava querendo, uma ‘coisa’ estática que entregasse o cenário desde o início do espetáculo, e tudo iria acontecendo em cima de um ‘balcãozinho’ – que aliás, acho que é a minha grande ‘pinimba’ com o teatro de animação – essa ‘coisa’ que... você chega, você olha e decifra o percurso do espetáculo... “ah ta, vai vir dali, vai atravessar por lá, ok, já posso ir embora”. Não precisa mais assistir. Porque não tem surpresa, não tem ‘virada de mesa’, não tem nada. Acho que existe certa preguiça de olhar o teatro como uma arte cênica com todas as maiúsculas possíveis que possam ser colocadas aí. Preguiça de se apropriar do espaço cênico. Acho que muita gente sobe no palco tímido, traz um cenário tímido, traz uma postura tímida, traz uma proposta tímida e assim, de certa maneira, eu sou bem escandaloso nesse sentido, porque eu acho que é isso aí, se apropriar cada vez mais, revelar cada vez mais. Acho que o Peer Gynt tem muito 83 disso, de dizer: “não gente, é tudo branco, tudo branco e a gente quer estar neutro aqui, e tudo vai ser igual, tudo vai ser lindo, mas agora é tudo branco, é tudo revelado e a gente não quer esconder nada”. Então tem essa questão. Eu falei para Andréa: “não Andréa, esquece essa ideia de cenário estático, porque não pode ser isso”. Então eu fiquei meses ‘matutando’ atrás desse conceito das caixas, de caixas que se abriam. E aí ela trouxe a forma final das coisas, como essa caixa abre, qual é a aba que abre primeiro. Tudo isso foi ela, o formato das caixas, caixas que juntas formavam um castelo. Então a quantidade de caixas e toda essa questão mais técnica, foi ela quem trouxe. Mas a questão da caixa foi mais minha. J: E ela tem alguma formação? M: Ela é cenógrafa. J: Mas cenógrafa de formação, ou vem das plásticas antes de ir pro grupo? M: A Andréa é cenógrafa e ela só trabalhou no Sangue Bom. Era uma indagação momentânea da vida dela trabalhar com bonecos, ela ficou um ano com a gente trabalhando com afinco todos os dias. Ela não estava numa postura de cenógrafa do grupo, ela era a figura de uma curiosa do teatro de bonecos que resolveu se aventurar numa situação de atriz-manipuladora. Ela até já havia dançado, houve um momento de dança na vida dela, mas na época ela era uma aluna de cenografia que estava se formando, e que queria ir a frente com cenografia. Não queria ficar como atriz-manipuladora, integrante de um elenco. Então depois de um ano nós estreamos, fizemos várias apresentações depois da estreia, mas ela disse que essa não era a vontade dela, disse que queria ser cenógrafa. E também por uma questão de visão, eu achava que não seria ela a cenógrafa da Companhia. Acho também que não existe este cargo, acho que acabou vindo outra pessoa que soube suprir as questões cenográficas da Companhia. Naquele momento foi um ‘bate bola’ meu com a Andréa e a gente conseguiu resolver. Sobre o Sangue Bom, é isso que eu tenho pra te responder. J: Essa próxima questão também já foi um pouco respondida nas anteriores. É sobre a relevância do cenário para este espetáculo. M: Pois é, o cenário do Sangue Bom dita a encenação. E eu acho que não só o Sangue Bom... Acho que sou bastante visual, que consigo chegar nos cenógrafos já com a ideia do que eu quero muito levantada. Os cenógrafos acabam complementando a minha ideia, ou formatando a ideia para aquilo acontecer. Eu digo: “quero que aconteça isso nesse espetáculo, vai ter que existir um lago”. Eu já chego com a ideia bem avançada. No Sangue Bom o cenário é a mola mestre de tudo, até por essa percepção cinematográfica que tivemos durante os ensaios, no momento em que colocamos rodinhas nas caixas. Não tínhamos dinheiro nenhum quando começamos a trabalhar nesse espetáculo, não havia nada. Para você ter ideia, começamos a trabalhar em cima de mesas e quando vimos que as mesas não seriam estáticas, arrumamos várias caixas de geladeira e ficávamos arrastando essas caixas deitadas para fazer as composições que precisávamos. Não podíamos ficar levando mesas para os ensaios, então a gente montava e desmontava caixas de geladeira todos os dias para ter essa cinética no espaço. Eu acho que ela [a cenografia] acabou ditando tudo o que é o espetáculo. E acho também que ela acabou ditando uma cara da companhia. Afinal o que queríamos? Queríamos apenas montar um espetáculo, ou queríamos propor artisticamente outra coisa? E acho que essa outra ‘coisa’ que queríamos propor vem muito do espaço, vem dessa utilização do espaço, do uso da cenografia como uma contadora, também, da ação. Então o cenário do Sangue Bom conta a história, vai te apresentando a história. “Agora você vai ver isso. Agora nós giramos e você 84 vê isso. Agora nós fechamos porque agora haverá outra caixa que abrirá e contará outro pedaço da história”. Então ele conta a história, ele é ultra importante. J: Um dos motivos da escolha deste espetáculo da “Cia. PeQuod” foi esse. Porque quando comecei a pensar na pesquisa, tinha outro viés, que era trabalhar a ampliação do espetáculo, incluindo, também o manipulador na cena, na linha narrativa do espetáculo. Quando comecei a ler o seu artigo na Móin-Móin, eu pensei que esse seria um dos espetáculos que deveria entrar nessa pesquisa. M: Que legal. J: Mudou um pouco o conceito da pesquisa, deixei um pouco de lado aquela ideia da cenografia como ampliadora da linha narrativa, mas ainda assim continuo com a ideia de pesquisar cenários... M: Que contam? J: Isso, e que fogem ao padrão do tradicional. E: Que não são adereços, que são cenários. J: E mais uma vez não daria para deixar de fora algum espetáculo da “PeQuod”, então escolhi Sangue Bom por toda essa exploração, o cinema, a ideia dos manipuladores estarem na cena como personagens daquela história também. M: E é o que se fala muito hoje, do teatro em camadas A cena se problematizou, sobretudo no teatro de bonecos onde você tem camadas de representação ali, você tem o ator, o manipulador, o boneco, às vezes a miniatura daquele boneco em outra situação, então você vê as camadas de representação ali colocadas. Acho que Peer Gynt é mais revelador nesse sentido porque nós ficamos transitando de uma camada para a outra, mas o Sangue Bom já tem isso, porque há ali uma situação de palco que já se expõe em camadas. J: Não sei exatamente qual o ano de criação do espetáculo... M: 1999. J: Mas me parece ser um dos primeiros espetáculos que declara mais – pelo menos que eu consegui investigar pelo Brasil – essa exploração do cenário. Parece que é uma característica muito forte da “PeQuod”, inclusive a nível de Brasil. M: É, eu acho que tem essa minha preocupação que vem das artes plásticas, que vem, portanto, de visualidade. E eu acho que muita gente não está preocupada com a visualidade do espaço cênico, acho que as pessoas pensam que resolvendo o suporte de manipulação, está resolvido. Exemplo: “qual o balcão que vamos fazer agora? Porque trabalhamos com teatro de bonecos de manipulação direta, e necessariamente devemos ter um balcão”. Mas a preocupação ‘morre’ no balcão, no tipo de balcão, quando na verdade, tem as pernas, o fundo, o chão. Parece que existe... Não digo um desleixo... Mas até uma inconsciência de que está tudo ali atrás chamando. Pô, não vai trabalhar isso também, vai desperdiçar esse espaço? Eu acho que é um medo de trazer uma informação que possa complementar aquele balcão que vai estar ali na cena. Medo de pensar o espaço como um todo, de pensar que tem pernas que podem ser verdes, que tem um fundo que pode ser de outra cor ou de outro padrão, ou cheio de escadas, sei lá. Pelo menos eu penso assim, você 85 não pode tomar conta daquele espaço por uma hora ou uma hora e meia, só com um ‘balcãozinho’, são poucas ambições. Nesse sentido acho que somos muito ambiciosos. J: É deixar de ‘estrelar’ demais o boneco. Parece que no Teatro de Bonecos tem muito isso. M: Mas eu acho que não deixamos de focar no boneco. Mesmo quando entrou a questão dos atores no Peer Gynt, e agora no Lampião, eu acho que o boneco continua com a mesma importância, com a mesma preocupação que sempre tivemos. Não estamos num momento de transição, estamos em um outro momento, isso não significa que logo abandonaremos os bonecos, pelo menos não é essa a minha intenção, porque não tem sentido uma Cia. de Teatro de Bonecos querer virar uma Cia. de atores. Eu já falei pra eles: “faremos um recuo, o próximo espetáculo é todo de bonecos, haverá muito pouca participação de atores”. Porque agora eles querem um recuo. Ok. Acho que o Lampião, acabou dando umas respostas que no Peer Gynt não completamos. Mas agora estou satisfeito com essa intromissão do ator mais presente, ‘dando fala’ e tal. Agora vamos recuar de novo. Então tem essa questão em detrimento de uma questão espacial, o próximo espetáculo é investigação espacial o tempo inteiro... do espaço cênico. A gente pensa muito por aí, pelo menos eu penso muito por aí. Existe uma preocupação espacial muito clara na trajetória da “PeQuod” porque eu acho que a gente não tem como entrar no palco pra ficar num ‘balcãozinho’. Acho que isso é pensar pequeno a essa altura do campeonato. E: A pergunta final. Pensando agora na tua maior preocupação, desafio ou foco em dirigir um Teatro de Bonecos, se te convidassem hoje para dirigir um Teatro de Atores, qual tu achas que seria teu maior desafio, ou a maior dificuldade? M: Minha maior dificuldade, acho que é estar com o olhar aguçado para os movimentos que ao atores fazem sem pensar. Porque eu acho que todo o movimento do boneco... é tudo pensado. Não tem um movimento do boneco que a gente não pense, que a gente não veja o melhor desenho para aquele gesto. Tudo acaba virando uma partitura gestual mesmo. O boneco por si só não se movimenta. Então toda a construção de movimentação é uma coisa pensada. É uma coisa estruturada. É uma coisa que se vai sair do ‘A’ para chegar no ‘B’, toda essa trajetória é repetida quinhentas mil vezes de uma mesma forma. E acho que se eu encarasse agora um elenco de atores, eu acho tem os vícios, as questõezinhas pessoais nos atores, as gestuais, que talvez eu não esteja com o olhar tão aguçado assim para dizer: “para de fazer isso, você está fazendo coisa que não é para fazer.” Eu acho que talvez eu não tenha mais esse olhar. Por inexperiência mesmo. Acho que é uma questão muito por ai. Mas ao mesmo tempo, talvez eu consiga engessar o ator numa construção formal, que eu espero que ele fique repetindo como os bonecos repetem. Mas eu não sei, teria que ver isso. Por exemplo, no Primeiras Rosas, no quadro que eu dirigi, é tudo ‘formalzão’. Aquilo ali foram horas e horas de ensaio para chegar aos mesmos gestos. E agora a mãe entra assim, carregando não sei o que, sai cadeira, entra cadeira. É tudo desenhado ali. Mas nos dias anteriores a estreia eu fui vendo que algumas coisas me escaparam mesmo. Quando eu vi um ator agachado e não era para ele estar ali. Mas ele já ganhou aquilo, ele já dominou aquilo. Então deixei ele lá. Mas eu nunca tinha marcado: “Lucas, fica ai nesse cantinho agachado, olhando o que esta acontecendo”. Um belo dia eu fui vendo: “caramba ele está ali, achei que ele estivesse só olhando”. Mas ele já estava fazendo cena. Então é isso, um olhar que talvez não esteja tão afiado assim. Mas eu achei bonito ele ali agachado, não estava atrapalhando, está em cena. Por mim não estaria em cena, mas ele foi conquistando. Então tem essas coisinhas. Mas “A terceira Margem do Rio” é toda ‘formalzona’, toda construída. E: Tem muito ator ali. 86 M: É tem muito ator ali. Bons atores. Eu fiquei muito contente porque deu para contar com uma galera que estava disposta a encarnar aqueles personagens de uma forma muito bacana. E: Tu achas que seria a questão do movimento do boneco o teu foco principal na direção? M: Não, acho que não é só isso. E: Então é um conjunto? Porque no fundo tu encabeças a montagem. Tens que estar ali com o figurinista, concebes o cenário. Por mais que tenhas colaboração, a linha estética se mantém numa figura que, no caso, és tu. Então talvez não tenha uma preocupação maior, um foco? M: Pois é, é porque na verdade tudo é uma preocupação. Então sempre alguma coisa acaba escapando. E não que eu seja centralizador. Eu acho que as pessoas se remetem muito ao que eu estou querendo naquele momento da vida, do projeto do espetáculo. Por exemplo o Carlos Alberto Nunes, que é o cenógrafo da companhia, ele se reporta muito a mim, eu sinto que ele está ali para executar uma coisa que eu quero. Então as vezes eu falo: “Faz também, propõe uma coisa diferente!” E acho que é uma cenografia sempre pensada para resolver as questões da cena, isso é bacana. E mais bacana ainda é ele ser paulatinamente indicado para prêmios por cenário de espetáculo da “PeQuod”. Sempre. Os quatro últimos espetáculos sempre tiveram indicação de cenografia. Então tem algo bacana aí. Na verdade alguma coisa acaba repercutindo para um olhar leigo que é diferente. É um tipo de teatro de bonecos que tem um cenário que merece ser indicado, que merece ser premiado. Enfim, tem alguma coisa ali que é diferente. Mas as vezes ele acaba se reportando muito ao que eu estou pensando, podia não ser tanto assim. E: Bem, acho que é isso, muito obrigada. J: Muito obrigado. M: Eu que agradeço.