Texto 3 - A socializaçao Infantil por meio do jogo
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Texto 3 - A socializaçao Infantil por meio do jogo
A SOCIALIZAÇÃO INFANTIL POR MEIO DO JOGO E DO BRINQUEDO discursos explícitos e ocultos sobre o jogo e a brincadeira nas instituições escolares Jurjo Torres Santomé Universidade de La Coruña, Espanha Porque o jogo, e nenhuma outra coisa, é a parteira de todo hábito. Comer, dormir, vestir-se e lavar-se devem ser inculcados na criança sob a forma de jogo, com versos que marcam o ritmo. O hábito entra na vida como jogo; nele, mesmo em suas formas mais rígidas, perdura até o final uma pequena porção de jogo (Walter Benjamin, 1974, p. 79). O jogo é uma das atividades humanas a respeito da qual mais se escreveu no século XX. Apesar disso, os discursos que buscam explicar e valorizar o jogo são fortemente contraditórios. A tônica das argumentações explícitas sobre a atividade lúdica é considerá-la uma atividade indispensável para o desenvolvimento pessoal: sempre se a valoriza positivamente e se insiste em recomendá-la como prazerosa e formativa. Contrariamente, os discursos mais implícitos consideram tal atividade como algo secundário, de pouco valor, como uma perda de tempo mesmo, como algo do qual as pessoas se ocupam quando não têm coisas mais importantes a fazer. Ao longo do século, repercutiram nas instituições escolares os estudos psicológicos, antropológicos e, certamente, pedagógicos que recomendam estimular o jogo entre os meninos e as meninas e empregá-lo como apoio para as aprendizagens mais formais. Os discursos oficiais assumiram também essa filosofia educativa, ainda que muito timidamente, e a sugerem como recurso metodológico para favorecer e/ou reforçar aprendizagens. Apesar disso, podemos dizer que para o Ministério da Educação a norma tem sido a de manter o jogo pouco valorizado como atividade formativa. Assim, a Lei Orgânica Geral do Sistema Educativo (LOGSE)1 lhe dedica apenas um artigo, referente à Educação Infantil. 1 A Lei Orgânica Geral do Sistema Educativo, em vigor desde 1990, regula o sistema educacional espanhol. Foi aprovada pelo Parlamento quando Felipe González era o Presidente e o Partido Socialista detinha o poder. Informações e detalhes estão disponíveis no site http://members.tripod.com/educac/legislac/logse.htm 2 No Art. 9.5 da LOGSE, no qual se aborda a Educação Infantil, podemos ler: “a metodologia educativa se baseará nas experiências, nas atividades e no jogo, em um ambiente de afeto e confiança” (BOE2, 4 de outubro de 1990). Mas essa confiança e esse valor, atribuídos de maneira explícita ao jogo, desaparecem da legislação nas etapas educativas seguintes. Não se encontram nem no artigo 14.3 da mesma Lei, referente à etapa seguinte, a Educação Primária; nem no artigo 20.4, em que se propõe a metodologia didática para a Educação Secundária; nem no artigo 27.5, que tem como objeto o bacharelado; nem no artigo 34.3, destinado a fazer recomendações sobre a etapa de formação profissional. Não se nega hoje o papel importante que o jogo desempenha no desenvolvimento humano, durante a infância e a adolescência. As controvérsias começam quando tratamos de conceituar o jogo e de explicar suas peculiaridades. Praticamente todas as pessoas que pensaram e investigaram sobre a infância acabaram também apresentando alguma explicação do significado do jogo e dos brinquedos. Nessa literatura, há acordo em relação ao papel que a fantasia desempenha na atividade lúdica. Pesquisadores como Lev S. Vygotsky destacaram-na como um dos fatores mais importantes do desenvolvimento humano. O jogo, conforme esse mesmo autor, cria uma zona de desenvolvimento proximal nos meninos e nas meninas. No jogo e na brincadeira, meninos e meninas evidenciam comportamentos que vão além dos que são típicos de suas idades e transcendem as condutas cotidianas. Nas situações lúdicas, os meninos e as meninas “adiantam-se a si mesmos” e incorporam modos de funcionamento psicológico correspondentes a etapas ou subetapas superiores de seu desenvolvimento. Ao nos fixarmos nas características do jogo e da brincadeira e em suas implicações para o trabalho curricular nas instituições escolares, há duas peculiaridades que devemos tomar em consideração, por serem, segundo Vygotsky, os aspectos mais característicos da atividade lúdica. A primeira é que o jogo permite criar uma situação imaginária que facilita aos meninos e às meninas resolver ou explorar desejos irrealizáveis (por exemplo, dirigir um carro, pilotar um avião, ser comerciante etc). 2 Boletim Oficial do Estado – jornal no qual se publicam atos, leis, concursos, designações, nomeações etc dos diferentes Ministérios. 3 Jean Piaget foi um dos pesquisadores que melhor ressaltou a capacidade das meninas e dos meninos para fingir e simular, ou seja, para o jogo simbólico, em sua obra A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho; imagem e representação. As crianças assumem papéis fictícios e desenvolvem complicados argumentos em espaços temporais e lugares também fictícios. Sobre isso não cabe insistir, pois pode ser corroborado por qualquer professor ou professora, assim como por qualquer pessoa adulta. As crianças jogam e brincam desse modo em todas as partes, ainda que a quantidade de jogo simbólico varie em diferentes grupos culturais e sociais, e entre cada criança considerada individualmente (Garvey, 1978). Não esqueçamos, além disso, que esse tipo de jogo de faz-de-conta, surge em um momento do desenvolvimento humano em que os adultos exigem das crianças que aprendam a suportar a não satisfação imediata de seus desejos. Trata-se de aprender a adiar, por intervalos cada vez mais largos, essa satisfação. Por essa razão, o jogo imaginativo adquire mais força durante a educação infantil. por meio dele, as crianças criam situações imaginárias em que têm possibilidade de obter gratificações imediatas, o que torna a vida real mais fácil de ser levada. A segunda característica das situações de jogo e de brincadeira é que nelas se incluem normas de comportamento que as crianças precisam seguir para obter êxito. Há sempre regras, mais ou menos complicadas, que devem ser respeitadas. É impossível jogar ou brincar sem regras mínimas, principalmente duas ou mais pessoas participam da atividade. Essa peculiaridade das situações lúdicas favorece a reflexão e a deliberação na infância. Ajuda, concretamente, as crianças menores, que são as que têm maiores problemas em controlar sua impulsividade. O grau de tensão e nervosismo das crianças durante o desenvolvimento dos jogos com regras é uma boa demonstração dos esforços que fazem para controlar a impulsividade. Por conseguinte, as situações de jogo contribuem para a aprendizagem da auto-regulação. Por meio dos jogos e das brincadeiras, as pessoas aprendem a seguir determinadas condutas, a aceitar uma série de normas que permitem que o jogo possa acontecer. Conseqüentemente, ganham consciência do valor das regras e compreendem a necessidade 4 de normas para viver em sociedade. É também pelos jogos que se desenvolvem atitudes e habilidades de colaboração e que se aprende a importância do trabalho em grupo. Por vezes se menciona o prazer como outra característica específica do jogo, mas acreditamos que não se detecta claramente tal característica em todas as situações lúdicas. Lembremo-nos de que muitos jogos baseados na competição entre duas ou mais pessoas geram situações de tensão e mesmo de grande frustração para os que, já durante o próprio desenvolvimento do jogo, vão perdendo. Essa situação de desagrado certamente aumenta para os que são derrotados no fim do jogo. Se aceitarmos que as situações lúdicas apresentam as características que têm sido comentadas, precisamos convertê-las, nas instituições escolares, em importante foco da atenção do professorado. Ao proporem jogos e brinquedos, os professores e as professoras sugerem, explícita ou implicitamente, relações entre os papéis a serem desempenhados e outros comportamentos passíveis de serem adquiridos na atividade. Por exemplo, ao estimularem as crianças a criar situações imaginárias que evidenciem contradições com modelos de conduta mais reais, estão impulsionando o desenvolvimento de capacidades reflexivas e a aquisição de conhecimentos que as ajudarão a compreender melhor o mundo em que vivem. O jogo como recurso para conhecer a realidade social O jogo e os brinquedos, à medida que simulam situações sociais, facilitam a transmissão e a introjeção de informações, atitudes e valores referentes ao mundo social. As meninas e os meninos, ao longo do tempo, aprendem a ser meninas e meninos, respectivamente, também por meio dos brinquedos e jogos que lhes são permitidos e disponibilizados. Desde a mais tenra idade, os meninos e as meninas se exercitam no desempenho “adequado” dos papéis “oficiais” vigentes no mundo adulto e, também, infantil e adolescente. “A diferenciação entre o próprio indivíduo e os outros, assim como as condutas adequadas frente a pessoas socialmente identificadas, classes de objetos e tipos de finalidades e planos, são explorados e podem ser sistematicamente estudados em situações lúdicas” (Garvey, 1978, p. 156). 5 Dado que os jogos e os brinquedos contribuem para aproximar as crianças do mundo de valores, habilidades e modos de vida de suas comunidades, também facilitam ao professorado detectar conhecimentos prévios do alunado (tanto no que se refere ao seu nível de domínio e precisão da linguagem, como em relação à sua compreensão do meio social e natural, ao seu domínio de determinadas habilidades e procedimentos). Analisando os jogos e brinquedos infantis, podemos aprender a ver o mundo tal como as crianças o percebem e identificar, desse modo, seus preconceitos, conhecimentos errôneos e expectativas referentes aos seus próprios futuros nesse mundo. Por meio do jogo, as crianças tanto chegam a conhecer o mundo que as rodeia, com as peculiaridades e limitações típicas da idade e da cultura a que pertencem, como têm a possibilidade de alterar o que não lhes agrada nesse mundo, subvertendo normas e regras que têm certo grau de estabilidade em suas comunidades. Por meio de suas atividades lúdicas, podem verificar as implicações de tais alterações, sem maiores riscos. Por conseguinte, as situações de jogo são momentos e espaços de transgressão, em que é permitido violar os papéis “estabelecidos” social e culturalmente. Por exemplo, os meninos podem cozinhar e passar roupa e as meninas podem dirigir um caminhão. As atividades do mundo adulto são vistas, assim, como ações para resolver problemas ou para divertir, não para obter prioritariamente benefícios individuais ou para desempenhar papéis que confirmem as cisões de nossas sociedades contemporâneas com base em classe social, etnia, gênero e idade. O jogo, como a ironia, serve também para levar a cabo representações ou assumir papéis que, de outra maneira, estariam proibidos. Uma criança pode “brincar de médico” e dessa maneira explorar o corpo de uma menina e vice-versa, algo que, em uma situação de maior formalidade, estaria interditado, podendo até ser passível de punição. Essa é uma característica compartilhada com a ironia, pois, mediante esse recurso humorístico, é possível “dizer verdades” a uma pessoa à nossa frente, sem magoá-la, já que sempre podemos afirmar que se trata de uma chacota. Além disso, se nosso interlocutor se aborrecer, podemos mesmo acusá-lo de não ter senso de humor. É também por meio de jogos e brinquedos que as crianças podem testar suas capacidades, o que é claramente visível nos jogos de habilidade. Assim, brincar de atravessar 6 uma estreita ponte imaginária, caminhando por uma linha, sem pisar fora dela, permite constatar o próprio equilíbrio físico. A aprendizagem por meio do jogo é uma maneira de ensaiar a vida adulta. Aprendese a ser adulto, mas sem os riscos envolvidos em situações mais reais. Inclusive no âmbito dos adultos, os “desempenhos de papéis” e as “simulações” correspondem a variações do jogo que permitem o exercício sem riscos de tarefas que na vida real são complicadas e apresentam perigos, tanto físicos como emocionais. Um bom exemplo são as simulações de situações de guerra para os militares, as cabines de simulação para pilotos de aviões etc. Esse distanciar-se da realidade, que caracteriza as situações lúdicas, esse não se envolver com todas as conseqüências, de modo a não se colocar em risco a vida das pessoas, é uma peculiaridade que, em certo grau, as situações de ensino e aprendizagem também apresentam. Quando, com base em marcos pedagógicos progressistas, insiste-se em vincular o ensino à vida, em conectá-lo com a realidade, pode-se, na verdade, considerar que esse tipo de educação, em muitas ocasiões, está mais próxima de situações de jogo/simulações que da verdadeira e efetiva socialização no mundo real. Qualquer pessoa pode lembrar-se, com facilidade, de situações em que, por meio de jogos, chegou a aprender informações relevantes sobre a realidade, inclusive mais significativamente do que por meio dos conteúdos escolares mais obrigatórios. Por meio do jogo não somente se aprendem coisas e se exercitam destrezas, como também se chega a descobrir as valorizações sociais de determinadas atividades, a importância de determinados papéis etc. Os distintos jogos e brinquedos estão marcados culturalmente, não são algo natural; são, sim, fruto da história concreta de cada comunidade. No entanto, há jogos que se repetem em culturas diferentes. A razão dessa coincidência pode ser talvez explicada com base na existência de contatos entre essas comunidades ou em modos de vida semelhantes. Essa dimensão sociocultural do jogo e dos brinquedos é constatável, de modo especial, na medida em que as crianças crescem em idade, pois “os diversos aspectos do jogo vão ficando cada vez mais submetidos à influência de fatores culturais e ambientais, que selecionam e elaboram certas classes de comportamentos e não fomentam, por outro lado, outras” (Garvey, 1978, p. 181). Na medida em que as crianças se tornam mais velhas, 7 o prestígio social de certos trabalhos e profissões responde por sua conversão em atividade lúdica e, ao mesmo tempo, pelo abandono de outros jogos e brinquedos. Durante os primeiros anos de vida, as crianças brincam de comerciantes, varredores, camareiros.. Quando se vão conscientizando do prestígio e do poder das diferentes profissões em sua comunidade, vão escolhendo brincar de arquitetos, de empresários, de desempenhar papéis de profissionais da física, da astronomia, da medicina etc. Como acentua Walter Benjamin (1974, p. 71), “é certo que não descreveríamos nem a realidade nem o conceito de brinquedo se tratássemos de explicá-lo unicamente em função do espírito infantil. Pois o menino não é um Robinson; os meninos não constituem uma comunidade isolada; são, sim, parte do povo e da classe da qual procedem. Assim é que seus brinquedos não dão testemunho de uma vida autônoma, mas representam um mudo diálogo de sinais entre eles e o povo. Um diálogo de sinais para cuja compreensão a mencionada obra oferece um fundamento seguro”. Estamos, então, introduzindo-nos em outra dimensão valorativa do jogo e dos brinquedos que opera por meio de discursos mais implícitos. Desse modo, as crianças já não constroem seus próprios brinquedos pelo fato de viverem em uma sociedade consumista. Atualmente, os mecanismos publicitários dominantes nesta sociedade de mercado fazem com que os meninos e as meninas rejeitem todos os objetos que não têm formas bem terminadas, cores bem aplicadas, que não são agradáveis ao tato e, mais importante ainda, que não correspondem aos modelos que aparecem nos anúncios na mídia. Trata-se de algo que já sucedia também em épocas passadas, muito embora, em função da carência de recursos econômicos de uma boa parte da população e da pobreza dominante, as famílias se viam forçadas a recorrer à estratégia de construir os próprios brinquedos. Essa peculiaridade de usar a própria imaginação e criatividade para solucionar a necessidade de dispor de brinquedos somente pode ser lembrada pelos adultos de hoje com certa melancolia, por ser algo que já não é apreciado por nenhuma criança. É curioso como boa parte dos adultos recorda aqueles brinquedos como se fossem o melhor dos tesouros, como objetos maravilhosos e fantásticos. Apaga-se mesmo a inveja que alguns adultos, de famílias menos favorecidas, tinham, quando crianças, dos brinquedos que ganhavam os que viviam no seio de famílias economicamente privilegiadas. Esses brinquedos, objetos de 8 desejo (trens elétricos, bolas, bonecas, cozinhas, pistolas, projetores de cinema etc), ocupavam completamente, em certas épocas do ano, as vitrines das lojas e convertiam seus possuidores em reis e senhores dos pátios de recreio, parques e ruas. A posse dos brinquedos em moda ou mais admirados dotava seus donos de um enorme poder e prestígio entre o resto do alunado ou dos integrantes das “turmas”. Eram essas crianças proprietárias que tinham poder tanto de modificar as próprias regras do jogo, como de escolher os companheiros e as companheiras com quem iriam compartilhar e desfrutar os brinquedos. Os brinquedos sempre funcionaram como indicadores do poder de classes e grupos sociais. Os que nasciam no seio de famílias privilegiadas possuíam brinquedos em maior número, mais sofisticados e, logicamente, mais caros que os das crianças de famílias pertencentes a classes mais populares e desfavorecidas social, cultural e economicamente. Atualmente, o forte incremento dos hábitos de consumo, assim como a necessidade que muitas famílias têm de aparentar que “tudo vai bem”, contribuem para desvirtuar a própria atividade lúdica. Esta parece estar sendo reduzindo a um único jogo: brincar de colecionar brinquedos. É comum meninos e meninas deixarem rapidamente de lado o brinquedo que tanto desejavam possuir. Desfrutam-no por pouco tempo, porque a partir do mesmo instante em que o recebem já começam a pensar na estratégia que devem seguir para poder ter o brinquedo seguinte em suas listas. Esse mesmo espírito consumista, competitivo e classista faz com que os adultos, ao darem presentes aos seus filhos, mas de modo especial às crianças de outras famílias, levem em consideração não apenas o valor educativo do brinquedo e o prazer que quem o recebe pode ter em desfrutá-lo, mas também o preço. Muitos adultos optam mesmo por escolher brinquedos que aparentem maior valor econômico do que na realidade têm, e, claro, deixam de adquirir outros cuja aparência pode ser tida como inferior ao preço real. O jogo nas sociedades neoliberais de mercado O consumismo lúdico nas atuais sociedades de economia neoliberal mostra-se uma das mais importantes atividades que o mercado oferece à infância. Uma indústria de brinquedos bastante poderosa bombardeia continuamente as crianças com seus produtos, 9 principalmente nas datas em que dar presentes se torna obrigatório. A publicidade desse tipo de produto é dia-a-dia mais invasiva. Anunciam-se os brinquedos já não apenas nos espaços destinados especificamente à apresentação de produtos comerciais, mas também em cinemas e na promoção de alimentos em determinadas cadeias de lanchonetes fast food. Desse modo, a introdução dos brinquedos no mercado é feita com maior eficácia. Assim, por exemplo, os Ursinhos Carinhosos, a Barbie, os Power Rangers não são apenas brinquedos, mas também filmes que ajudam a atribuir uma dada personalidade a esses personagens, dotando-os de características de conduta que condicionam as próprias brincadeiras das crianças. Quando o menino ou a menina os vê, no cinema ou na televisão, passa, a seguir, a brincar de acordo com as possibilidades que os filmes ou desenhos assistidos se encarregaram de configurar. Como imaginar a Barbie mentirosa, mendiga, boxeadora, cheia de manchas, com um nariz grande etc, se tanto os filmes como os desenhos animados exibem-na com outra personalidade, outro estilo, outra classe social, outra idade?. Isso não impede, todavia, que certos adultos, mais politizados, optem por criar uma espécie de “contra-Barbie”, caracterizando-a como lésbica, como partidária do sadomasoquismo, como viciada em sexo, e apresentando, ao mesmo tempo, seu companheiro Ken como homossexual. Logicamente, tais “contra-brinquedos” somente são comercializados em lojas destinadas a um público adulto e são vendidos clandestinamente. No momento atual, é tal o grau de mercantilização das atividades lúdicas que muitas crianças, especialmente à medida que crescem, somente sabem brincar com brinquedos fabricados industrialmente e, ainda, também cada vez mais, em espaços físicos aos quais, para terem acesso, precisam pagar uma entrada. A lógica do capitalismo apoderou-se, com notável grau de êxito, dos jogos e brincadeiras e, o que é novidade, dos espaços em que se brinca e joga. Um claro exemplo é o número cada vez maior de parques de atrações, tanto os tradicionais das feiras e festas populares, como os mais sofisticados e financiados, normalmente, por empresas multinacionais. Para muitas crianças o presente e a viagem de seus sonhos têm nomes como: Port Aventura em Tarragona, Terra Mítica em Benidorm, Tivoli World em Benalmádena, Loro Parque em Puerto de La Cruz, Guadalpark em Sevilla, Disneyland em Paris, Parque 10 Asterix em Paris, SantaPark na Finlândia etc, ou os já mais tradicionais Parques de Atrações em Madrid, Barcelona, Zaragoza, Donostia etc. A intenção de apropriar-se do jogo e da brincadeira está implícita também nas cadeias comerciais destinadas à venda de brinquedos, como é o caso da empresa multinacional Toys ‘R’ Us. Em cada uma das lojas dessa cadeia existe um ambiente similar. Pretende-se que o consumidor ou consumidora, qualquer que seja a cidade a que vá, se encontre em um espaço conhecido, com uma disposição de brinquedos similar à das lojas anteriormente visitadas, com uma decoração semelhante, com rotinas idênticas para buscar, solicitar e pagar e, ainda, com os mesmos brindes promocionais. Não há lugar para a surpresa. Acresça-se a tudo isso o insistente bombardeio de anúncios nos principais meios de comunicação ajudando a completar a concepção mercantilista de brincadeira e de jogo. As crianças aprendem por meio dos anúncios que os fabricantes de brinquedos inserem em todas as cadeias de televisão, revistas, jornais, supermercados, assim como nos catálogos de publicidade que enviam para seus domicílios, que brinquedos desejar e como utilizá-los, quais são os de meninos e quais os de meninas e, ainda, que grupos sociais têm a possibilidade de adquiri-los. A atividade lúdica é, assim, submetida às regras do mercado, que procura “convencer” as crianças que quanto mais caro o brinquedo, maior a diversão. Em uma sociedade em que tudo o que é público está ameaçado e tudo se pretende passar para a iniciativa privada, é óbvio que, se esse estado de coisas continuar, pode-se chegar também a considerar que a atividade lúdica precisa ser paga; se for grátis, não deve ser boa nem valer a pena. A filosofia de mercado das atuais sociedades neoliberais sustenta-se de modo importante na busca do consentimento da população a uma máxima que poderíamos formular da seguinte forma: todos os serviços oferecidos pelo setor público são de pior qualidade que os “vendidos” pelo setor privado. Ou seja, um parque de diversões público “deve ser” pior do que um particular. O mesmo tipo de valorização seria aplicável às “brinquedotecas” públicas quando comparadas com as privadas. O avanço dessa filosofia mercantilista explicaria, do mesmo modo, o notável grau de degradação de muitos parques públicos. Tais parques, com freqüência, acabam por 11 converter-se no “reino” de grupos marginais que o utilizam para planejar delitos ou para o tráfico de drogas. Também se pode constatar a apropriação da atividade lúdica por parte da iniciativa privada no crescente número de salas de jogos com máquinas recreativas nas quais é preciso introduzir moedas para jogar e nas quais se paga, também, o tempo em que se pode interagir com elas. Esse processo de crescente mercantilização da brincadeira e do jogo vem acompanhado da limitação das situações e opções lúdicas. Estamos frente a espaços destinados ao jogo com recursos lúdicos em que as possibilidades de interagir com eles e de desfrutá-los já estão decididas anteriormente; são escolhas fechadas, com programações que não comportam a possibilidade de se alterarem as regras, os significados e os ritmos do jogo. À medida que os meninos e as meninas se socializam nessa sociedade capitalista de mercado, vão aprendendo que as atividades dos seres humanos precisam ter rentabilidade econômica. Como disse Theodor W. Adorno, pouco a pouco vão introjetando que “tudo é pela lucro”. O valor das atividades de que participam vai mudando pouco a pouco. Durante os primeiros anos de vida, as primeiras interpretações infantis do mundo baseiam-se no princípio de que tudo se faz “pelo prazer de fazê-lo”. Todavia, à medida que crescem e em decorrência das experiência a que são submetidas, as crianças começam progressivamente a interpretar a realidade como dura, difícil, concluindo que é necessário pagar por tudo, até para brincar. Mas como os seres humanos têm a capacidade de transformar a realidade, o jogo pode e deve servir para recuperar e/ou criar novos valores humanos. Por meio do jogo é possível desenvolver nos meninos e nas meninas procedimentos e valores que destaquem o valor da comunicação e do conhecimento das demais pessoas, da cooperação, da ajuda, o respeito e a solidariedade. Trata-se de algo que se beneficia das características do jogo infantil, antes de os adultos transformarem a atividade em mercadoria: a de despojar as ações de que se compõe o ato de brincar de suas dimensões de busca de benefícios econômicos. Como acentuou Adorno (1999, p. 230), a criança, “em sua atividade sem finalidade, toma partido, por meio de uma artimanha, pelo valor de uso contra o valor de 12 troca. Ao despojar as coisas com que nos divertimos de sua utilidade mediada, busca salvar, no lidar com elas, o que as faz boas para os homens e não para a relação de intercâmbio, que deforma igualmente homens e coisas”. O jogo e a brincadeira, na medida em que também sejam considerados, no mundo da educação, como atividades realmente importantes, podem ser utilizados como estratégia bastante adequada para o ensaio de modelos de vida mais democráticos e justos. Os brinquedos como espelhos de modelos de vida Os brinquedos e os jogos refletem os modos de vida da sociedade que os fabrica, assim como as visões de futuro dessa comunidade. Essa visão da realidade e suas expectativas sobre o futuro refletem-se tanto nos conteúdos como nas atitudes, habilidades, valores e conversas dos personagens envolvidos nos jogos e brinquedos. Por meio das situações lúdicas se processa a socialização das crianças em uma determinada sociedade, ou seja, tem lugar uma antecipação do papel que podem desempenhar no mundo do futuro, as se tornarem adultos. Os jogos e os brinquedos constituem um meio de grande poder de exploração do mundo real, não sendo, por conseguinte, ideologicamente neutros. Isso nos permite detectar no mercado, facilmente, brinquedos que reproduzem as mesmas concepções ideológicas que existem na sociedade. Em qualquer loja de brinquedos podemos encontrar brinquedos sexistas, racistas, militaristas, classistas. Incorporam uma visão de mundo e, normalmente, traduzem os modelos de vida dos grupos sociais hegemônicos, de suas instituições e formas de vida. Os jogos e brinquedos se convertem, desse modo, em um recurso privilegiado de socialização política. Não podemos ignorar o enorme número de brinquedos sexistas que aparecem nas campanhas de publicidade e, posteriormente, nas casas de cada criança. Alguns desses brinquedos reproduzem os modos de vida e os objetos de uma mulher-objeto. Outros brinquedos, ao mesmo tempo pudicos e vulgares, preservam, em sua reprodução dos corpos humanos, os mesmos medos das sociedades vitorianas: pode-se apresentar e nomear todas as partes do corpo humano, exceto os órgãos sexuais. Nos últimos anos, surgiram no mercado bonecos nos quais os órgãos aparecem, mas, em geral, trata-se de bebês e meninos, 13 e não adolescentes, meninas ou moças. Quando nos encontramos frente a representações de mulheres adolescentes ou adultas, tais partes do corpo desaparecem ou, no caso das bonecas Barbie ou similares, representam-se unicamente umas pequenas protuberâncias que pretendem imitar os pelos. Em todos os modelos comercializados nunca se representam os órgãos genitais de adolescentes ou pessoas adultas. Entretanto, todos sabemos que um das primeiras coisas que tanto as meninas como os meninos fazem com bonecas e bonecos é despi-los para ver o que há debaixo das roupas. Também não é pouco comum que alguns desses brinquedos acabem sendo “completados” pelos meninos e pelas meninas que procuram suprir as carências, pintando-as com pincéis atômicos ou cavando pequenos orifícios com algum objeto cortante. Uma das bonecas em que se constata com clareza a não neutralidade ideológica dos brinquedos é a Barbie. Com ela se promove um modelo de sociedade capitalista em que o valor das pessoas se mede pelo que podem comprar e consumir e em que o luxo é o único modo de vida interessante. Não nos esqueçamos de que até os mais importantes estilistas do mundo se dedicam a desenhar roupas para a boneca. Há mesmo quem já tenha feito uma pergunta irônica: por que a Barbie não se mantém de pé? Coerentemente, a resposta é: porque para mover-se utiliza “próteses” de luxo (iates, automóveis esportivos, bicicletas de marcas famosas, cavalos de raça, jet-skis, carros grandes luxuosos etc). Estamos diante de uma boneca que nos faz ver que somente as pessoas de raça branca (e preferentemente louras), jovens, sadias, bonitas e magras são importantes e merecem dispor de poder e de tempo. Além disso, defende-se, sem qualquer questionamento, o mundo heterossexual como o único legítimo, o que justifica a criação do companheiro Ken. Outros jogos e brinquedos refletem situações racistas, classistas e militaristas e ajudam a perpetuar os valores e visões de mundo dos grupos sociais que detêm os principais instrumentos de poder (Torres Santomé, 1980). Um exemplo são os videogames de maior aceitação. Videogames como Combate mortal ou Carmageddon são uma demonstração de como se propõe a violência como única maneira de solucionar os problemas e conflitos humanos. Estamos diante de jogos militaristas e fascistóides cujo objetivo é aniquilar fisicamente o inimigo: o assassinato é cometido de modo muito realista, por meio de 14 desenhos de grande qualidade, que tornam visíveis as vísceras da pessoa eliminada e que acentuam o sangue jorrando do corpo. Os seres humanos aparecem desumanizados e de acordo com a lógica das políticas de guerra das grandes potências militares: ou matar ou morrer. O importante é ganhar e aniquilar o competidor e inimigo. Qualquer arma inventada pelos adultos, disponível no mercado, embora seja um mercado um tanto secreto, é imediatamente reproduzida em forma de brinquedo. Com relação aos brinquedos ideológica e socialmente perigosos, como os que promovem concepções bélicas da vida, como, por exemplo, as armas e os guerreiros armados até os dentes, ou modelos sexistas de organização social, como, por exemplo, as bonecas Barbie, muitas pessoas adultas limitam-se à proibição, não comprando nem facilitando tais brinquedos para as crianças. No entanto, nunca a proibição foi uma medida contundente para resolver uma situação conflitiva. Quem nunca viu ou não participou de batalhas em que se convertia uma colher em uma pistola ou uma escova em uma potente e destruidora metralhadora? As crianças recorrem, nesse caso, à fantasia para transformar qualquer objeto em outro que desejariam ter. A proibição, na maioria das situações, contribui para gerar mais curiosidade por aquilo que se proíbe, chegando, mesmo, a torná-lo mais desejável. A nosso ver, o fundamental é converter em objeto de reflexão e crítica as situações perigosas, injustas e imorais que tais brinquedos veiculam. Um grupo de crianças brincando de guerra pode optar por não utilizar esses brinquedos, quando se convencem dos horrores e da destruição causados por essas armas em situações reais. Se muitos adultos odeiam as armas é porque sabem das conseqüências de seu emprego. Os meninos não são mais cruéis, apenas têm menos informações e conhecimentos; não são esponjas que tudo absorvem e engolem acrítica e passivamente. Ao contrário, constroem seu conhecimento de forma ativa, comparam as novas informações com o que já conhecem e quando se convencem de algo tratam de comportar-se de maneira conseqüente. Se os projetos curriculares têm por finalidade ajudar as novas gerações a compreender o mundo, podemos dizer que compartilham essa finalidade com o mundo dos jogos e das brincadeiras. Assim como existe uma preocupação em vigiar os conteúdos culturais dos programas e livros-texto com os quais as crianças entram em contato, deveria 15 existir uma atenção idêntica à análise dos jogos e brinquedos que se comercializam no mercado. Uma das diferenças entre o exercício da atividade lúdica na casa de cada estudante, no bairro ou nos parques e o jogo nas instituições escolares é que no segundo caso a atividade, além de se incluir com mais ou menos detalhes no projeto docente, precisa ser objeto de reflexão, após ser posta em prática e desfrutada. Ou seja, uma vez finalizada, a atividade lúdica deve ser avaliada. Os estudantes e os docentes devem tratar de analisar cada um dos jogos e brinquedos desenvolvidos, assim como suas condições de realização, peculiaridades e, certamente, os conhecimentos, as atitudes e os valores que ajudam a promover. É necessário, em síntese, considerar cuidadosamente as dimensões social, cultural, política, econômica e educativa dos jogos e brinquedos. Instituições escolares e promoção do jogo e da brincadeira Em uma sociedade em que tudo se pretende medir com instrumentos economicistas, é preciso também considerar as dimensões subjacentes aos discursos sobre o jogo. Percebese claramente que, para muitos, o jogo é fundamentalmente associado à diversão, ao relaxamento, ou seja, à superficialidade e à frivolidade. As mensagens ocultas provenientes do mundo adulto não representam o jogo e a brincadeira como atividades produtivas e indispensáveis para viver. Mais importante que o jogo seria o trabalho, visto como atividade séria, produtiva e indispensável para a sobrevivência. Nesse sentido, uma mesma atividade é vista como brincadeira ou trabalho (por exemplo, os esportes, as atividades literárias, musicais, teatrais, pictóricas etc) em função de ser ou não uma ocupação imprescindível para obter recursos econômicos para subsistir na sociedade. A brincadeira e o jogo aparecem mais ligados à educação infantil, mas mesmo nela, na medida em que as pedagogias “mercantilistas” se tornam influentes, há o perigo de se reduzi-los a atividades valorizadas no discurso, mas que, na prática, se rotulam como “perda de tempo” e acabam circunscritas a atividades secundárias. Brincar, para a maioria das crianças, é a atividade que se realiza fora das aulas, nos pátios de recreio ou então nas aulas, 16 quando o professor a classifica como tempo livre e a coloca à margem das demais atividades. Essa desvalorização do jogo torna-se mais visível à medida que se avança na educação primária. Paralelamente ao crescimento em idade, diminui a valorização e a importância do jogo e da brincadeira. Formula-se mesmo a um discurso paradoxal, com influências rousseaunianas, que defende excessivamente o jogo, considerado como a verdadeira e única atividade para a infância. O jogo, nessa análise, é mais valorizado que o trabalho, considerado, este último, como uma obrigação humana, conseqüência do “castigo divino” por se ter comido a fruta proibida. O trabalho se explica, assim, como obrigação e como imposição penosa e alienante, não como tarefa para a realização pessoal e coletiva, passível também de ser desfrutada. Essa concepção do trabalho como algo penoso, dolorido, aborrecido, alienado, forçado e mesmo como tarefa incompreensível, encontra-se subjacente a expressões em moda nas últimas décadas, como “jogo didático” e “brinquedo didático”, em vez de recurso didático. Contudo, nem utilizando-se essa confusa denominação se consegue enganar o alunado, já que nenhum menino ou menina pedirá como presente de Natal um dos tais jogos didáticos. Desde o primeiro momento deram conta de que tais recursos só se utilizam nas aulas e, ademais, com certo grau de obrigatoriedade. As crianças sabem que com essa modalidade de jogos didáticos não há lugar para a fantasia, para o mistério, para o imprevisto, nem para a interação com os demais colegas. Com esses recursos pseudolúdicos não se costuma jogar conversando e trocando idéias, nem empregando obrigatória e pertinentemente um determinado vocabulário ou formas típicas de expressão. São jogos que normalmente se fazem solitariamente e em silêncio. As pessoas adultas, em vez de reconhecer de modo explícito que há recursos didáticos de pouco valor e que, além disso, têm um aspecto nada atrativo, preferem optar por adocicar tais instrumentos com a palavra brinquedo, acrescentando-lhes o adjetivo “didáticos”. A verdadeira característica desses recursos didáticos é que são mais bem acabados, feitos em materiais agradáveis, com formas mais suaves e com cores mais vivas e desenhos mais atrativos e/ou mais realistas. 17 Essa diferenciação entre brinquedos didáticos e recursos didáticos contribuiu para distinguir materiais didáticos de boa e de má qualidade. Essa distinção é semelhante à classificação das tarefas escolares em, por um lado, em relevantes e significativas e, por outro, em monótonas, não significativas e punitivas. É necessário reivindicar a verdadeira importância do jogo como atividade diferente, mas valiosa e complementar das atividades curriculares mais dirigidas e obrigatórias. Essas últimas estão destinadas à aprendizagem de conteúdos culturais que se consideram imprescindíveis e que os alunos e as alunas adquirem nas instituições escolares. No entanto, os jogos e as brincadeiras podem desenvolvê-las, estimá-las e reforçá-las. O jogo permite manter e mesmo incrementar a motivação e o interesse pelas aprendizagens dos conteúdos culturais exigidos nos currículos. O jogo desempenha uma função importante em relação ao desenvolvimento de comportamentos sociais, particularmente de cooperação, assim como ao desenvolvimento de aspectos da personalidade como perseverança, concentração, reflexão e autonomia, que repercutem de maneira imediata nas aprendizagens mais formais e dirigidas. Convém distinguir entre diversas formas de jogo. Talvez uma distinção básica seja a de jogo “dirigido” e jogo “livre”, conforme seja a participação de adultos no momento de escolhê-lo, desenvolvê-lo e avaliá-lo. Essas modalidades de jogo precisam ser explicitamente consideradas pelo professorado no planejamento de suas tarefas escolares, o que, por sua vez, demanda uma observação adequada do que acontece em situações de jogo e de brincadeira. Concebe-se a figura docente, cada vez mais, como organizadora dos ambientes de ensino e aprendizagem, o que requer atenção tanto à organização espacial da aula e da própria escola quanto à seleção e distribuição dos recursos nesses espaços. É nesse ambiente construído pelo professor ou pela professora que se possibilitam ou, também, se dificultam as oportunidades para que as crianças aprendam. Recorrer ao jogo como atividade prazerosa, mas também formativa, acarreta preocupar-se com os recursos necessários para o jogo, dispor de espaços para jogar, bem como selecionar brinquedos e materiais que se harmonizem com as necessidades, interesses, níveis de conhecimento, habilidades e ritmos de desenvolvimento de alunos e alunas. 18 Poderemos perceber, então, que muitos brinquedos são concebidos com base em posições adultas e sem a participação das crianças, o que foi destacado por Benjamin (1974, p. 65), já em 1928, quando, ao visitar uma exposição de brinquedos no Märkischen Museum em Berlim, acentuou como na produção de brinquedos “mostra-se, na realidade, como um adulto imagina um brinquedo, e não o que o menino exige de um boneco”. Reconhecer o valor do jogo no processo educativo implica, ademais, uma especial atenção pela observação e pela avaliação de tais momentos. Para jogar de modo adequado, os meninos e as meninas precisam, segundo Moyles (1990, p. 111): Companheiros e companheiras de jogo, espaços adequados, materiais para o jogo, tempo para jogar e brinquedos que sejam valorizados pelos que compartilham o ambiente. Oportunidades para brincar em duplas, em pequenos grupos e com outros adultos, inclusive com os professores e as professoras. Tempo para explorar, por meio da comunicação verbal, o que fazem e como, para descrever suas experiências nos jogos, com os brinquedos. Tempo para continuar o que iniciaram (com demasiada freqüência lhes falta tempo e jogos interessantes e valiosos em termos educativos não são terminados nem devidamente apreciados). Experiências lúdicas que ampliem e aprofundem o que já conhecem e o que já sabem fazer. Estímulos e alento para fazer e aprender mais. Oportunidades lúdicas planejadas e espontâneas. Com freqüência, é de fato muito difícil acompanhar-se o progresso das crianças em situações que denominamos mais acadêmicas. Acabamos optando por modos de avaliação mais fáceis e rápidos, como os exames sobre os conteúdos trabalhados em aula de modo mais rígido, descuidando-nos do registro de outras dinâmicas e rotinas mais cotidianas. Se isso acontece com os conteúdos culturais mais “ortodoxos”, pode-se supor que na observação das atividades lúdicas a situação é ainda pior. Se os jogos constituem um meio 19 de educação, de socialização e são uma tarefa considerada de verdadeira importância, é lógico pensar que também precisam ser avaliados; é necessário observar-se o desenvolvimento dos jogos em que cada estudante se envolve. Para facilitar as tarefas de avaliação continuada das situações lúdicas, uma boa estratégia pode ser construirmos folhas de registro, em que anotamos tudo o que nos permita detectar tanto os avanços como as dificuldades no desenvolvimento de cada estudante. Trata-se de algo que, ademais, nos obriga a refletir sobre o que consideramos realmente importante e por quê. Penso que o quadro seguinte, elaborado por Janet R. Moyles (1990, pp. 134-135), pode ser de grande ajuda. Pontos de reflexão sobre jogos e brinquedos 1. Que recursos e atividades se empregam agora com maior freqüência e por quê? estimulam períodos prolongados de jogo e de concentração? estimulam nas crianças independência e autonomia? estimulam o alunado a falar (a) de seus companheiros e de suas companheiras? (b) com adultos? estimulam a manter conversações prolongadas? promovem mais debate sobre os resultados? estimulam o jogo cooperativo e a aprendizagem? estimulam o jogo solitário e/ou compartilhado? desenvolvem mais eficazmente as habilidades de coordenação, manipulação, imaginação e criatividade? desenvolvem compreensões, valores e conhecimentos matemáticos, científicos, tecnológicos, ambientais, geográficos, históricos, religiosos e estéticos? estimulam mais o alunado a refletir sobre o jogo, a empregar sua imaginação, habilidades e conhecimentos e a resolver problemas com persistência e atenção? estimulam um enfoque multissensorial da aprendizagem? estimulam as crianças a explorar questões morais e éticas? 20 oferecem probabilidades de gerar nas crianças condutas agressivas ou inapropriadas? são mais freqüentes quando um adulto se acha presente ou intervém? são mais úteis para tópicos específicos? 2. Diferenciam meninos de meninas no que se refere à escolha de recursos e materiais? Qual é a razão dessa distinção? 3. Os meninos e as meninas selecionam seus próprios recursos e atividades? Podem encontrá-los e devolvê-los facilmente? 4. Os meninos e as meninas perseguem idéias específicas e transferem, em determinado momento, a aprendizagem, por meio dos recursos e das atividades? Também é necessário prestar atenção à avaliação do valor educativo de cada jogo e brinquedo, tomando-se em consideração aqueles aspectos e características que podem colaborar na luta contra as numeras formas de opressão e marginalização típicas de nossas sociedades contemporâneas. Se elas se mostram, entre outros aspectos, cindidas em relação a raça, sexo, classe social, idade e poderio militar, pode-se concluir que uma educação emancipatória e crítica deve contribuir para capacitar as novas gerações para imaginar e tornar possível um mundo muito menos injusto. Em relação aos conteúdos escolares, temos denunciado a forte distorção da cultura selecionada e veiculada pelos livros-texto. Esses conteúdos visam, dentre outros objetivos, a legitimar o atual estado de coisas – nosso mundo injusto e não solidário. São conteúdos culturais nos quais se reduzem ao silêncio ou se apresentam de modo distorcido muitos povos e grupos sociais (Torres Santomé, 1998). Similarmente, cabe pensar que no mundo do jogo e do brinquedo se produzam censuras e distorções da realidade muito parecidas com as que se verificam nos livros-texto. Para que uma atividade lúdica, além de divertir e relaxar, contribua para educar, fazse necessário que os adultos prestem atenção aos conteúdos dos brinquedos comercializados. Nesses, particularmente nos que envolvem um grande número de personagens, deveria estar representada a atual diversidade dos seres humanos. Se pretendemos ajudar as crianças a conhecer o mundo que habitam não podemos lhes 21 esconder parcelas dessa realidade – pessoas que são diferentes dos estereótipos associados aos grupos mais poderosos. O esquema seguinte pode ajudar-nos a formular algumas questões sobre tal tema. Com ele, torna-se possível verificar que tipos de silêncio se produzem na educação e como contribuir, dentro do possível, para corrigi-los. JOGOS E BRINQUEDOS CONTRA A DISCRIMINAÇÃO ANTI-RACISMO Bonecos e bonecas de raças e etnias diversas e com tonalidades de pele e de cabelo que reflitam variedades semelhantes às que se encontram em cada raça. Jogos e brinquedos que permitam explorar similaridades e diferenças humanas, com personagens de distintas raças e etnias desempenhando papéis de prestígio e trabalhando em funções importantes para a comunidade. ANTI-SEXISMO Bonecos e bonecas que não promovam os estereótipos típicos de sociedades conservadoras e machistas em suas reproduções das figuras humanas masculinas e femininas. Bonecas que não correspondam às concepções de “mulher-objeto”. Bonecos que não incorporem concepções de masculinidade equivalentes a agressividade, belicosidade, violência e domínio. Jogos e brinquedos que permitam refletir sobre situações sociais injustas, resultantes de estereótipos sexistas. CONTRA A DISCRIMINAÇÃO POR IDADE Bonecos e bonecas que representem pessoas adultas e de terceira idade de forma não caricata. Bonecos e bonecas que reproduzam a variedade das características físicas das pessoas normais, evitando a estética dos modelos de passarela. 22 Bonecas e bonecos que representem pessoas gordas ou com alguma característica física com “pouco valor de mercado” (por exemplo, pessoas com olhos estrábicos, com uma orelha maior que outra ou com orelhas grandes, com pés chatos, pessoas calvas etc). ANTI-ETNOCENTRISMO Brinquedos que assumam a diversidade cultural de nossa sociedade em: cozinhas, comidas, objetos, instrumentos e roupas de trabalho, vestidos de celebrações e festas de diversas culturas. Brinquedos que permitam reconstruir modos de vida diferentes dos ocidentais. Brinquedos que possibilitem refletir sobre situações de injustiça no Terceiro Mundo, trazê-las à luz e discutir de que modo estamos implicados nessas situações. CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DE PESSOAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS Brinquedos que reproduzam instrumentos usados por pessoas com necessidades especiais: cadeiras de rodas, muletas, bengalas, próteses, óculos com graus elevados, aparelhos para surdez etc. Bonecos e bonecas incapacitados. Reproduções de edifícios e espaços físicos em que sejam visíveis adaptações feitas para facilitar a vida de pessoas incapacitadas. ANTI-CLASSISMO Jogos, bonecas e bonecos que representam pessoas sem emprego ou com trabalhos desvalorizados socialmente ou em situação de exploração. Jogos em que se façam visíveis representações de relações de trabalho em que existem situações de injustiça. Brinquedos e jogos em que se abordem trabalhos com pouco prestígio social. Jogos, brinquedos, bonecas e bonecos que levem em consideração pessoas que vivem da agricultura e da pesca, que vivem em zonas rurais, em povoações pequenas e isoladas etc. 23 ANTI-MILITARISMO Jogos e brinquedos cooperativos e não competitivos. Jogos e brinquedos em que se promovam formas de superação de conflitos por meio de situações de diálogo e nos quais se repudie a violência militarista e/ou machista. Jogos e brinquedos nos quais não se utilizem armas. Com base no esquema acima, podemos melhor obter e transcrever informações que venham a ajudar também a outros professores e professoras que, em anos sucessivos, tenham relação com esses mesmos meninos e meninas. Ficarão registradas informações mais detalhadas sobre as aprendizagens infantis, sobre seus conceitos prévios, ritmos de desenvolvimento, expectativas, preconceitos etc. Não nos esqueçamos de que o professorado costuma recorrer a diversas estratégias para comunicar ao alunado que questões considera realmente importantes e valiosas. Talvez a mais eficaz seja a avaliação. Todas as informações e as opiniões transmitidas pelo professor acabam convertendo-se também em foco de atenção para os meninos e para as meninas. Se o jogo é uma atividade valorizada pelo professorado e se queremos que assim o seja pelo alunado, o lógico é que nas aulas um dos focos de atenção seja a reflexão e a avaliação do que se passa nas atividades lúdicas. É dessa forma que o alunado se convencerá de que brincar ou jogar não é perder tempo. O jogo oferece muita informação sobre as crianças, tanto sobre seus níveis e problemas de desenvolvimento e socialização, como sobre as atitudes, os valores e os preconceitos que estejam elaborando em cada momento. O jogo pode ajudar-nos a identificar as necessidades de cada criança, bem como possibilitar que o próprio estudante teste estratégias e medidas que ajudem a mitigar tais problemas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. (1999). Minima Moralia: reflexiones desde la vida dañada. Madri: Taurus. BENJAMIN, Walter (1974). Reflexiones sobre niños, brinquedos, livros infantis, jovens e educação. Buenos Aires: Nueva Visión GARVEY, Catherine (1978). El juego infantil. Madri: Morata 24 MOYLES, Janet R. (1990). El juego em la educación infantil y primaria. Madri: Morata PIAGET, Jean (1973). La formación del símboleo em el niño. Imitación, juego y sueño. Imagen y representación. México: Fondo de Cultura Económica TORRES SANTOMÉ, Jurjo (1979) Um espacio para el juego: las ludotecas. Cuadernos de Pedagogía, no57, p. 22-24 TORRES SANTOMÉ, Jurjo (1980). O xogo, os xoguetes e as ludotecas. O Ensino, no 0, p. 33-42 TORRES SANTOMÉ, Jurjo (1998). Globalización y Interdisciplinariedad: el curriculum integrado. Madri: Morata.