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HORIZONTE TEOLÓGICO ANO 11 | Nº 21 | JANEIRO-JULHO 2012 BUSCANDO SER CRISTÃO NO CONTEXTO ATUAL ISSN 1677-4400 Horizonte Teológico | Belo Horizonte | V. 11 | N. 21 | P. 1-130 | 2012 © 2012 - Instituto Santo Tomás de Aquino Proibida a reprodução de qualquer parte, por qualquer meio, sem a prévia autorização do Conselho Editorial Jornalista responsável: Purificacion Vega Garcia - MTB: 3039 Conselho Editorial: Antônio Pinheiro, Cleto Caliman, José Carlos Aguiar, Manoel Godoy, Sílvia Contaldo, Wolfgang Gruen. Revisão: Helena Contaldo - Conttexto Diagramação: Lívia Duarte Normalização Bibliográfica: Iaramar Sampaio - CRB6/1684 As matérias assinadas são de responsabilidade dos respectivos autores. Aceitamos livros para recensões ou notas bibliográficas, reservando-nos a decisão de publicar ou não resenha sobre os mesmos. Aceitamos permuta com revistas congêneres. Administração / Redação: Rua Itutinga, 300 Bairro Minas Brasil 30535-640 | Belo Horizonte - MG Tel.: (31) 3419-2803 | Fax: (31) 3419-2818 [email protected] www.ista.edu.br/horizonteteologico Publicação Semestral Impressão: Editora O Lutador H811 Horizonte Teológico / Instituto Santo Tomás de Aquino. v. 11, n. 21 (1º Sem. 2012) - Belo Horizonte: O Lutador, 2012-132p. ISSN 1677-4400 Semestral 1. Teologia - Periódicos. 2. Filosofia - Periódicos. I. Instituto Santo Tomás de Aquino. CDU: 2:1 Elaborada por Iaramar Sampaio - CRB6/1684 SUMÁRIO EDITORIAL 5 BUSCANDO SER CRISTÃO NO CONTEXTO ATUAL Manoel Godoy OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE 9 CRISTà HOJE Werbson Beltrame Pereira ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA 31 E HERMENÊUTICA Elton Vitoriano Ribeiro A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA: 43 “SE CALAREM A VOZ DOS PROFETAS...” Gilvander Luís Moreira FOUCAULT: 71 “TÉCNICAS” E “TECNOLOGIAS” Guaracy Araújo O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO 81 ESPIRITUAL: O EFEITO RESTAURADOR DA FÉ Carlos Ribeiro Natali Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R RECENSÕES 101 NORMAS PARA COLABORADORES 115 LIVROS RECEBIDOS 119 ISTA - Instituto Santo Tomás de Aquino Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos Diretor Executivo: Manoel Godoy GRADUAÇÃO: Filosofia (licenciatura) Coordenação: Antonio Martins Pinheiro Teologia (bacharelado) Coordenação: Cleto Caliman PÓS-GRADUAÇÃO (Lato Sensu): Coordenação: Cleto Caliman Especialização para Formadores de Presbíteros Diocesanos - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro Especialização para Formadores da Vida Religiosa - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro Especialização em Aconselhamento Pastoral e Espiritual - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro Especialização em Gestão das Obras Sociais nas Instituições Religiosas 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro Mais informações: Rua Itutinga, 300 - Minas Brasil 30535-640 - Belo Horizonte - MG Telefax: (31) 3419-2800 [email protected] www.ista.edu.br EDITORIAL Manoel Godoy |5 BUSCANDO SER CRISTÃO NO CONTEXTO ATUAL No seu Ano Jubilar, o ISTA tem a alegria de poder publicar mais um número da Revista Horizonte Teológico com um conteúdo que remete à sua caminhada de reflexão filosófica e teológica no mundo acadêmico. Em 19 de outubro deste ano, celebraremos os 25 anos de contribuição com o processo formativo no âmbito da vida consagrada. Inúmeros alunos e alunas formados no ISTA estão espalhados pelo Brasil e exterior, como discípulos e discípulas, missionários e missionárias da Boa Nova, sobretudo em áreas mais carentes, onde a vida consagrada se apresenta, muitas vezes, como a única esperança dos deserdados da sociedade neoliberal excludente. A aventura de ser cristão no contexto atual, testemunhando o amor de predileção de Jesus Cristo aos mais pobres, torna a existência desafiadora e carregada do mais profundo sentido. E é o que nossos ex-alunos e exalunas, no seio da Igreja ou da sociedade, vivenciam e experienciam no seu dia a dia. Nesse contexto, apresentamos, nesta edição, os desafios à espiritualidade cristã hoje por nosso aluno de pós-graduação Werbson Beltrame Pereira. O mundo atual marcado pela cultura pósmoderna, multiforme e fragmentada, de fato coloca o cristão frente ao desafio de dar conta de sua fé de maneira convincente aos outros e a si mesmo. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.5-7, jan./jul. 2012. 6| EDITORIAL Tal espiritualidade está profundamente relacionada com a questão sobre a autocompreensão cristã, que Elton Vitoriano Ribeiro, professor da Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte, trata em seu artigo, destacando duas vertentes que se imbricam e se remetem uma à outra: a antropologia e a hermenêutica. Uma das formas concretas de fazer emergir a autocompreensão cristã e a espiritualidade que a acompanha está na temática da hermenêutica militante, que sempre nos coloca frente a frente com os apelos éticos e cristãos do engajamento na causa dos pobres. Esse é o escopo da contribuição de Frei Gilvander Moreira, professor do ISTA, que, partindo da Bíblia, discorre sobre a necessária profecia na vivência da fé cristã. Já a ótica analítica do poder, tema que persegue o pensamento de Foucault, que supera o mero conceito de luta de classes marxiano e abre pistas para se pensar o poder e as relações de classe como um feixe de multiplicidade de formas e focos de relação, se nos apresenta como outro grande desafio para a vivência do cristianismo como a expressão mais contundente de uma fé alicerçada na linha do poderserviço. Essa é a perspectiva do texto de Guaracy Araújo, professor de filosofia da PUC Minas. Concluindo este número da Revista, temos uma contribuição bastante pertinente para a vivência da fé cristã: o luto como efeito restaurador da fé. Trabalhar as perdas que todo ser humano sofre ao longo de sua existência se torna um imperativo para quem acredita que a vida se prolonga para depois da morte. Carlos Ribeiro Natali, aluno de pós-graduação do ISTA, e Paulo Sérgio Carrara, professor do ISTA, se unem para nos ajudar nessa tarefa. Ainda temos duas resenhas, contribuindo com o itinerário formativo de nossos alunos, abordando temas atuais e pertinentes para o exercício da vida consagrada. A primeira é sobre o livro “O Sofrimento Psíquico dos Presbíteros: Dor Institucional”, de William Cesar Castilho Pereira. Depois que a vida dos presbíteros ficou mais Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.5-7, jan./jul. 2012. Manoel Godoy |7 exposta às contingências existenciais, com a despedida das armaduras que os protegiam – a vestimenta, o distanciamento nas relações – novas oportunidades de realização humana se lhes abriram, porém, também novas dimensões de sofrimento e de angústia. O padre standard que emergiu da concepção do seminário tridentino tinha seu itinerário definido desde o princípio do exercício do seu ministério. As múltiplas formas de ser padre criam uma nova situação: rica pela quantidade de opções; angustiante pelo mesmo motivo. É o professor Carrara que apresenta o livro de William Castilho, em que emerge essa problemática dos padres, à luz de pesquisa e trabalho de campo com os mesmos. A segunda trata do livro “Ética da Esperança”, de Jurgen Moltmann. É possível uma proposta de ética cristã num mundo que se vê ameaçado de tantas maneiras, onde o tecido das relações humanas se apresenta muito esgarçado? Há princípios gerais que podem ser relidos na ótica cristã e servir como base para uma sociedade eticamente fundamentada também para os não cristãos? O professor de moral do ISTA, Amarildo José de Melo, é quem nos dá a resenha dessa obra do grande teólogo contemporâneo. Tenho certeza de que a leitura deste número da Horizonte Teológico muito contribuirá para aguçar os espíritos de todos os que se dedicam à reflexão teológica e à práxis cristã. Pe. Manoel Godoy Diretor Executivo do ISTA Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.5-7, jan./jul. 2012. ARTIGOS |9 OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTà HOJE Werbson Beltrame Pereira Resumo A pergunta à qual este artigo busca uma resposta é: quais são os desafios que o mundo e a cultura pós-moderna apresentam para a espiritualidade cristã, hoje? É possível a espiritualidade cristã ainda hoje? Diante da análise da pós-modernidade é perceptível que o homem vai se entregando aos prazeres e aos redutos solitários almejando riquezas sempre crescentes em busca de uma satisfação que parece não ter fim. É exigência do próprio ser cristão o re-propor da questão sobre sua espiritualidade. Naturalmente, hoje em dia muita coisa se tornou possível e, por isso mesmo, impossíveis se tornaram outras. Em busca da resposta à pergunta aqui apresentada, neste artigo se fará uma contextualização da pós-modernidade e seus principais desafios à espiritualidade cristã; analisar-se-á a secularização, o ateísmo, o narcisismo e a perda do mistério e suas implicações sociais culturais, religiosas e antropológicas na vida do ser humano, enxergando em seu horizonte o declinar da razão e o retorno ao sagrado. Palavras-chave: Pós-modernidade. Espiritualidade. Secularismo. Ateísmo. Narcisismo. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. 10 | OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTà HOJE 1. Introdução Os cristãos vivem hoje uma realidade marcada por grandes mudanças que afetam profundamente sua vida. Sentindo-se constantemente desafiados a discernir os sinais dos tempos, se torna profundamente relevante, à luz da espiritualidade, aprofundar em uma pergunta fundamental: quais são os desafios que o mundo e a cultura pós-moderna apresentam à espiritualidade cristã, hoje? Diante da profundidade e amplitude da pergunta, torna-se necessário fazer uma análise da sociedade atual, dado que a pós-modernidade não é fruto apenas de uma época, sendo mais o amadurecimento dos esforços medievais em sua busca de libertação através principalmente da re-visitação da cultura clássica grego-romana e dos esforços e anseios pela novidade, ao mesmo tempo em que colhe os frutos ainda imaturos de uma modernidade. É basilar para a espiritualidade cristã saber como esses desafios afetam a vida, o sentido religioso e ético de todos os que buscam sua dimensão mais profunda para encontrarse com Deus. Em presença de tantos méritos e avanços, a pós-modernidade, descortinando a grandiosidade do homem em suas diversas formas de produção, faz emergir, de outro vértice, a constatação de que a precariedade humana nunca foi tão exposta como em tempos hodiernos. Concomitantemente a essa conturbada situação ocorreram descobertas significativas que não só contribuíram para um avanço técnico-científico e econômico como proporcionaram uma ampliação dos horizontes humanos e uma mudança de postura evidenciando a tomada de posse do sujeito que se projetou no centro do Universo. O ser humano se experimenta como nunca, “quer em sua atividade exercida sobre o mundo, quer em sua reflexão teórica objetivante, como alguém a quem está de antemão designado a um lugar na história do mundo que o cerca e do mundo das relações humanas” (RAHNER, 1989, p.58). O homem, assumindo sua finitude histórica, vislumbra no horizonte a característica fundamental de sua Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. Werbson Beltrame Pereira | 11 essência: fazer experiência do seu condicionamento histórico, sobre as dimensões de seu espaço e tempo. Denuncia-se de certo modo, aos olhos da história, as falências que o projeto burguês, já no início da modernidade, prometeu aos sonhos e desejos da racionalidade. Conhecer tais pensamentos, desejos e construções lançará à espiritualidade cristã a possibilidade de compreender o interior imensurável da subjetividade humana e a proposta pós-moderna aos homens e mulheres de hoje. 2. Um olhar sobre a pós-modernidade As grandes crises da Idade Média pontuaram o fim do feudalismo e forjaram um período novo, em que a criatividade suplantou a ordem estabelecida e a ciência impulsionou descobertas vertiginosas. Eis o advento da modernidade. Esse período inovador e com ares de liberdade foi fruto de uma convergência de eventos, ideias e personalidades que movimentaram toda a Europa numa complexa relação sócio, cultural, religioso, científico e econômica expressada nas grandes “revoluções” nestes campos concomitantemente, a saber, o Renascimento, a Reforma e a Revolução Científica. Diante dos olhos do ser humano moderno surge, nesse complexo contexto, uma atitude nova diante do mundo e das ordens estabelecidas, um ser humano novo e uma sociedade transformada pela razão humana. “Nenhum domínio do conhecimento, da criatividade ou da exploração parecia estar fora do alcance do homem” (TARNAS, 2002, p.246). Este afã criativo é o genitor da pós-modernidade que arremessa os homens e mulheres de hoje, os quais se deixam, em grande parte, ocultar o sentido espiritual de suas vidas, sem uma clara percepção do mistério de Deus e seu desígnio amoroso. A realidade traz inseparavelmente uma crise do sentido do ser cristão em pleno século XXI. A “apatia e a insensibilidade emocional, o desleixo interior e a indiferença” (FRANKL, 1991, p.38) são heranças estruturantes do pensamento e da vivência do ser humano pós-moderno. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. 12 | OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTà HOJE Quando o homem pós-moderno se defronta com sua dimensão espiritual, em típica desconfiança herdada da modernidade, encontra-se, expressa ou ocultamente, aquele horrível preconceito segundo o qual somente os objetos das ciências, que trabalham funcionalmente, são as verdadeiras e seguras realidades sobre as quais é possível construir alguma coisa com seriedade, à medida que tudo o mais sobre o que não se pode falar tão exatamente e com tanta clareza “pertence ao âmbito dos sonhos e das opiniões gratuitas, que fazemos bem deixando-as como são ou reprimindo-as, até que estourem em um irracionalismo selvagem de emoções e agressões sociais” (RAHNER, 1978, p.61). Esse novo espírito afoito e aventureiro manifestou fortemente o relativismo pós-moderno que rapidamente assumiu características céticas, rasgando fendas profundas no construto humano, abrindo espaço para as elaborações provindas do pensamento moderno que, gradativamente, alçavam voos mais altos rumo à máxima liberdade (adágio individualista), apatia e indiferença, traços que assinalam o indivíduo pós-moderno. 3. Os principais desafios à espiritualidade O ser humano em seu mundo, não apenas o exterior, mas também o interior, tornou-se desmesurado e multiforme pelas modernas ciências naturais, históricas e sociais e por todo o atual modo de pensar e viver pós-moderno. Nenhum homem hoje consegue harmonizar “todas as suas múltiplas experiências e os resultados de todas as ciências e encaixá-los em um sistema perfeito” (RAHNER, 1978, p.35). A falta de equilíbrio diante de uma sociedade líquida1 que traz consigo não pequenas dificuldades mostra que o ser humano, “ao procurar penetrar mais fundo no interior de si mesmo, aparece frequentemente mais incerto a seu próprio respeito” (GS 4). Ladeado entre a esperança e a angústia, sobrepõe a imponência da inquietação 1 Esta ideia foi expressa recentemente por Zygmunt Bauman, em seu livro Modernidade líquida, para caracterizar a fluidez ou não solidificação da sociedade pós-moderna diante das forças tangenciais deformantes. No pensamento de Bauman, os fluidos não fixam o espaço nem prendem o tempo, “os fluidos não atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-las” (BAUMAN, 2001, p.12). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. Werbson Beltrame Pereira | 13 ao se interrogar acerca da volátil sociedade em que habita. Diante dos imensuráveis desafios gestados pela pósmodernidade, a espiritualidade contemporânea sente-se atraída a sondar, dentro de uma perspectiva antropológica espiritual, os principais desafios a fim de perceber suas linhas predominantes por trás das solicitações da cultura atual. Dentre os vários desafios à espiritualidade cristã que caracterizam a pós-modernidade, destacam-se: o secularismo; o ateísmo; o narcisismo e a perda do mistério. 3.1. Secularização Houve, e ainda há, uma tendência forte entre os sociólogos2 para sustentar que a nova cultura estaria secularizando a vida e seria incompatível com a religião. A nova cultura seria a causadora da decadência da fé, decadência das Igrejas cristãs e de sua espiritualidade. Entretanto, é válido afirmar que “os sociólogos oferecem explicações teóricas e fazem muitas pesquisas, que geralmente confirmam as suas instituições – já que as perguntas são feitas de tal modo que incluem a resposta desejada” (COMBLIN, 2003, p.13). Diferente do pensamento de muitos sociólogos, “A pós-modernidade não se opõe à religião. O que ela não aceita e contesta é toda forma ou tentativa de interferência dessa última na coisa pública. A religião passa a ser questão pessoal, reduzida a dimensão do âmbito privado, intimista.” (OLIVEIRA, 2001, p.28). Valendo-se da secularização, a pós-modernidade, reproduzindo a mentalidade técnico-científica e extremando-a, passa a explicar os fatos humanos e cósmicos sem nenhuma referência ao sagrado: “querendo ver as realidades humanas e terrestres sem nenhuma relação com Deus, a pós-modernidade termina fazendo que elas se voltem contra o próprio ser humano” (OLIVEIRA, 2001, p.29). No mundo pós-moderno, “na medida em que alarga o horizonte intelectual do homem, verifica-se progressivamente a perda da função 2 Se, na Europa, há um fenômeno acentuado de secularização, este não pode ser atribuído simplesmente à nova cultura, porque esta mesma cultura não produz efeitos opostos em outras regiões e religiões, como no caso específico da América Latina. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. 14 | OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTà HOJE da religião” (RUBIO, 2006, p.34). A supremacia da razão, anunciada valentemente já nas bases da modernidade, sustentada e reelaborada na pós-modernidade, proporciona ao homem a capacidade de compreender seu mundo onde céu e inferno não são mais localizações físicas e geométricas3. Devido à exaltação da secularização com base no iluminismo, “neste período a espiritualidade se fez cada vez mais ciência: impôs-se uma nova metodologia, correspondente à nova mentalidade científica do tempo” (MONDONI, 2000, p.68). Em passos longos, em um veloz caminhar, o homem foi deixando de lado a imagem de um Deus irreal e, nesse sentido, Nietzsche4 tinha razão ao anunciar a morte de deus. Foi revelada em palcos bem iluminados pela razão a opinião de que a secularização não nega a existência de Deus, mas sugere que as pessoas passem a comportar-se sem nenhuma preocupação com o sagrado. Gestada na sociedade pós-moderna, essa negação é precisamente o construto social que se convencionou chamar de indiferença religiosa. Essa marginalização de Deus (indiferença religiosa), defendida audaciosamente pelo secularismo pós-moderno, tenta deixar de lado os valores universais como a paz, a solidariedade, a justiça e a liberdade, temas tão preciosos à espiritualidade cristã. Numa era energizada em alta voltagem pela razão, a espiritualidade cristã tornava-se uma estrutura metafísica cada vez menos convincente ao homem pós-moderno. Em outras palavras, a espiritualidade cristã tornou-se, diante do secularismo, uma base menos segura sobre a qual se deve construir uma vida, com seus 3 Richard Tarnas, em seu livro A epopeia do pensamento ocidental, defende que, depois de Newton, o panorama da modernidade estava completamente secularizado. O materialismo mecanicista havia provado de modo impressionante sua força explanatória e sua eficiência utilitária. Experiências e fatos que pareciam desafiar princípios científicos aceitos – supostos milagres e curas pela fé, êxtases espirituais e revelações religiosas, profecias, interpretações simbólicas de fenômenos naturais, encontros com Deus ou o demônio – eram, cada vez mais, considerados efeitos da loucura ou do charlatanismo, ou de ambos. 4 Para Nietzsche, as noções de ateísmo, culpabilidade e ressentimento estão intimamente ligadas. Essa trilogia se torna uma associação que jamais deve ser esquecida para se compreender uma das constantes essências da negação de Deus. Já na modernidade “este tema da morte de Deus, vulgarizado ao extremo, já não ocupa mais posição de destaque no pensamente ateu” (LACROIX, 1965, p.10). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. Werbson Beltrame Pereira | 15 projetos, desejos e realizações. Para qualquer pessoa ponderada, anuncia o secularismo: deixar-se conduzir por princípios espirituais torna-se uma obscura noção primitiva. A metafísica e, praticamente, tudo que seja implausível não podem ser uma crença convincente para qualquer pessoa ponderada. O ser humano pós-moderno por simples miopia, não enxergando a realidade conjuntural, insiste em acreditar que apenas os cosmos, as correlações empíricas e as causas tangíveis, é que poderiam ser confirmados através de experimentos. Planos teleológicos e causas espirituais não poderiam sujeitar-se a teses, não poderiam ser sistematicamente isolados e, portanto, não se poderia saber se existiam ou não. Era melhor tratar apenas de categorias empiricamente comprováveis do que permitir que princípios transcendentais, por mais nobre que fosse a sua abstração, entrassem na discussão científica (TARNAS, 2002, p.330). Andando por caminhos escuros e incertos, cada vez mais distantes da espiritualidade, o homem atual se convenceu de que os princípios transcendentais não poderiam ser mais corroborados do que um conto de fadas, uma fantasia, uma obra mal elaborada da infantilidade do ser humano. O secularismo germinou, na sociedade pós-moderna, a ideia de que Deus é apenas uma combinação de fantasia e projeção, não passando de um mito folclórico bem sucedido. A indiferença metafísica e o descaso com o sagrado, levados ao extremo, têm seu ponto de convergência em um segundo desafio à espiritualidade contemporânea: o ateísmo; afinal, este “surge especificamente da secularização do mundo contemporâneo” (RAHNER, 1970, p.67). Em outras palavras, o ateísmo é fruto da secularização elaborado por princípios e desejos mais ocultos e escondidos do homem pós-moderno. 3.2. Ateísmo O mundo se alargara imensuravelmente e, com ele, o espírito humano foi assumindo novos padrões diante da sociedade cada vez mais secularizada e distante das afirmações sobrenaturais. O homem pós-moderno tem consciência muito viva de estar inserido numa história que é edificada solidamente sobre bases inabaláveis Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. 16 | OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTà HOJE alicerçadas pelo próprio homem, enquanto que em épocas anteriores “a história não parecia estar propriamente nas mãos do homem: era dada pelo destino ou pela providência” (RUBIO, 2006, p.35). O homem torna-se consciente de que a ele, e somente a ele, compete dirigir o curso de sua vida e consolidar a própria história. O ateísmo surge como cristalização dos desejos humanos por liberdade, desejo gritante do homem de se afirmar como soberano e senhor de sua própria vida, a tal ponto que tudo o que vem da religiosidade, da espiritualidade, é por ele rechaçado como atrasado e como sinônimo de aprisionamento; “a ideia de Deus é então encarada como inútil e perigosa” (RAHNER, 1970, p.17). Essa visão é algo que deve se evitar a todo custo em vista de uma libertação intelectual racionalista e cientificista, tendo como meta a ser alcançada o antropocentrismo perpétuo e duradouro. Na consolidação de sua centralidade, identidade e imponência diante da história, o ser humano avista em sua mitologia atual o não espaço e o não lugar para Deus, que passa a ser considerado como mera projeção da natureza interna e fruto dos desequilíbrios psíquicos do ser humano. Assim o ateísmo anuncia: o amadurecimento humano supõe a negação das fantasias intelectuais tediosas que afirmavam a existência de Deus. Ecoa nas profundezas abismais dos corações humanos a ideia de que Deus “é um assunto que absolutamente não me interessa. Deus a mim não importa, a não ser na medida em que os homens o inventaram, o que provocou belas obras de arte, belas poesias” (LACROIX, 1965, p.11). Deus, neste sentido, se reduz a uma crença humana, a qual se pode investigar mensurando as explicações psicológicas, históricas ou sociológicas. A dimensão da revelação divina na história, a Palavra de Deus, o plano da salvação e o agir de Deus perderam sua força e credibilidade. Para muitos, neste conturbado redemoinho secular, os ideais morais ensinados por Jesus, fundamento de toda espiritualidade cristã, foram totalmente deixados de lado ou relativamente permaneceram apenas admiráveis como os de qualquer outro sistema ético social. Este pulsar secular do ser humano pós-moderno faz correr em suas Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. Werbson Beltrame Pereira | 17 veias “o desejo de autonomia do homem a tal grau que constitui um obstáculo a qualquer dependência de Deus” (GS, n.20). A liberdade, a vontade de poder que a técnica hodierna deu ao ser humano, é anunciadora do homem que tem o fim em si mesmo, autor de sua própria história. Cada vez mais parece óbvio, diante do ateísmo, que Jesus é um simples homem, embora bastante convincente. A sociedade contemporânea busca a todo preço submeter Deus apenas como um princípio de explicação, fazendo dele o primeiro experimento no método analítico explicativo para considerálo meramente um objeto. Não restam dúvidas de que o deísmo é realmente a pior negação de Deus. Com o emergir das ciências modernas com seu método analítico indutivo, quaisquer aparentes implicações religiosas devem “ser julgadas como extrapolações poéticas, mas cientificamente injustificáveis, com as evidências disponíveis” (TARNAS, 2002, p.332). O homem, convencendo-se de sua própria construção esmerada na natureza material, deixa escapar por entre os dedos a afirmação de sua própria personalidade e autoimagem diante da negação da imagem de Deus. Sendo assim, “o ateísmo deve ser considerado entre os fatos mais graves do tempo atual e submetido a atento exame” (GS, n.19). De posse desse novo complexo de considerações, é necessário examinar cautelosamente as entrelinhas do ateísmo para descobrir que o grito latente afirmativo do homem pós-moderno, que se diz centro de todas as coisas, não se trata nada mais do que um profundo narcisismo, negligenciado por tantos séculos. A própria civilização atual não por si mesma, mas pelo fato de estar muito ligada com as realidades terrestres, torna muitas vezes mais difícil o acesso a Deus. Sem dúvida, não estão imunes de culpa todos aqueles que procuram voluntariamente expulsar Deus do seu coração e evitar os problemas religiosos, não seguindo o ditame da própria consciência; mas os próprios crentes, muitas vezes, têm responsabilidade neste ponto. Com efeito, o ateísmo, considerado no seu conjunto, não é um fenômeno originário; antes decorre de várias causas, entre as quais se conta também a reação crítica contra as religiões e, nalguns países, principalmente contra a religião cristã. Pelo que, os crentes podem ter tido parte não pequena na gênese do ateísmo, à medida que, pela negligência na educação da sua fé, ou Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. 18 | OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTà HOJE por exposições falaciosas da doutrina, ou ainda pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social, se pode dizer que antes esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da religião (GS, n.9). 3.3. Narcisismo Buscando resgatar o que estava perdido, o ateu sente a necessidade de ocultar sonoramente tudo aquilo que faz ecoar a palavra “Deus”. Foi chegado o momento no qual não se podia mais privar o homem de se olhar diante de um espelho guardado por vários séculos. Diante de uma polarização tão extremada, surge um profundo encantamento de sua própria imagem. No profundo pensar, o ateu se desencanta com a imagem de Deus para encantar-se com sua própria imagem. A espiritualidade contemporânea acompanhou a gestação de mais um de seus grandes desafios: o narcisismo. Projetase o narcísico5 pós-moderno na sociedade em busca de respostas imagéticas questionando a religião, os valores pregados por ela, as tradições, entre outras coisas mais. Certos valores não são mais preservados como importância, pois o que se busca é a felicidade a todo custo, uma vez que: O desejo de felicidade é o primeiro elemento desse referencial. Entenda-se tal desejo como busca do prazer pessoal, sem nenhuma relação com a solidariedade e a partilha. É o querer ter momentos de autossatisfação, momentos prazerosos, mas sem nenhum compromisso, especialmente com os outros e as outras (OLIVEIRA, 2001, p.23). 5 Quando falamos em narcisismo, estamos nos referindo ao mito grego segundo o qual Narciso, depois de rejeitar tantos quantos tentassem aproximar-se sensualmente dele, acaba por apaixonar-se pela própria imagem refletida em um lago cristalino. Esse mito descreve um jovem tão vaidoso que não é capaz de amar a ninguém além de si mesmo. Desse exagero da vaidade é que surge, na psicologia, o termo narcisismo, próprio para designar um jeito de ser cuja característica principal é um exagerado apreço pela própria imagem, a exemplo de Narciso. Freud em 1914 escreveu um texto sobre o narcisismo equiparando o narcisista a um louco que, numa radicalização, nega a realidade que não se acomoda ao seu próprio mundo de desejos. Cria então uma realidade própria radicalmente subjetiva que lhe permite entrar em contato com as coisas. Até mesmo Freud, em suas pesquisas sobre o narcisista, “ficou muito insatisfeito com o resultado e escreveu a Abraham: o narcísico teve um parto difícil e traz todas as marcas de uma deformação correspondente” (FREUD, 2006, p.78). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. Werbson Beltrame Pereira | 19 O maior valor para o narcísico pós-moderno é sentir-se bem, sentir-se em harmonia com o próprio corpo, com a mente, com os outros, com o mundo, e principalmente com sua própria imagem, resguardando o falso sentimento de participar emocionalmente da vida dos outros, sentindo-se feliz. Nesse sentido, a felicidade é o valor absoluto, mesmo que seja uma felicidade profundamente individualista e egoísta com “suas” imagens irreais. Para o narcisista, moral é aquilo que me faz feliz, me dá prazer, mesmo que isso signifique morte ou miséria para as outras pessoas. É característico no comportamento narcisista o “maquiar” os relacionamentos, os sentimentos e a realidade. Raramente o narcisista consegue ter contato com a realidade. Diante da sociedade o outro é visto como mero objeto manipulável ao seu prazer. Agindo de forma superficial, raramente o narcísico consegue ter contato com seu interior, dimensão tão cara para a espiritualidade cristã. Lastimavelmente, a existência do ser humano pós-moderno está pautada na aparência, na imagem de si, na representação elogiada de si. Prática similar aos fariseus6 na época de Jesus e que hoje se revigora como um grande desafio à espiritualidade cristã pósmoderna. De forma muito sutil, o próprio cristão pode fingir possuir os valores do espírito, da piedade e da virtude. Nesse caso, a pessoa mantém “aparência de piedade, mas nega a sua força interior” (cf. 2Tm 3,5). É crescente a falta de caridade com o próximo em uma sociedade de cristãos que tende a reduzir as pessoas a meros admiradores, vendo-as apenas em função de sua própria imagem, e olhando-as a partir de sua imaculada aparência. O mais profundo da ruptura com a modernidade foi, e ainda é, a afirmação do corpo contra a mente, do reino do corpo contra o reino das ideias, das abstrações, das teorias. O deus contemporâneo é corporal. “O novo deus é um deus que goza da sua corporeidade, 6O apóstolo Paulo, falando de certos ritos e prescrições exteriores tão caras aos fariseus, avisa que muitos “têm na verdade aparência de sabedoria pela religiosidade afetada, pela humildade e mortificação do corpo, mas não têm valor algum senão para satisfação da carne” (Col 2,23). A espiritualidade cristã é exaltada quando se vê “uma ação, ainda que pequenina feita às escondidas e sem desejo de que seja conhecida, que mil outras realizadas com o desejo de que sejam vistas pelos homens”, diz São João da Cruz. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. 20 | OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTà HOJE serve como modelo para todos, porque todos aspiram integrar-se a ele” (COMBLIN, 2003, p.37). Diante desse endeusamento do corpo, o que está em voga não diz respeito unicamente à corporeidade. O que se revela aos olhos do desejo pós-moderno é a inversão daquilo que a modernidade pretendia: se os homens modernos desejavam ser independentes, racionais e aparecer como adultos (mesmo que para isso fosse preciso negar a figura do pai repressor – Deus), por outro lado, os contemporâneos querem ser jovens que nunca chegaram a ser adultos, rejeitando a realidade e as próprias condições físicas, biológicas e psíquicas. Olhando-se no espelho, o narcísico pós-moderno se sente atraído pelas práticas surgidas nas expressões religiosas atuais, nas quais as atividades corporais atingem a sua maior perfeição, relacionadas com práticas de autoajuda, exercícios físicos ou mentais, recurso às receitas das antigas meditações orientais, fascinando-se pela magia7, entre outras coisas mais. Tudo isso visando ao prazer emocional, à satisfação corporal, ao bem-estar, à paz, à tranquilidade. Tudo no âmbito pessoal e não mais comunitário. A conjugação do verbo na terceira pessoa não faz mais sentido para o homem pósmoderno. Enxerga-se na pós-modernidade narcísica uma geração mais interessada em viver da melhor forma possível o momento presente do que em projetar e preparar o futuro: é uma now generation (geração do agora). Após dezenove séculos, assistimos agora a uma redescoberta do carpe diem horaciano. Como consequência natural desse fenômeno, temos o aumento do consumismo e uma substancial ignorância do sentido do mistério que pervade a vida (CENCINI, 1999b, p.8). O narcísico, mesmo inconscientemente, lança-se em um precipício imensurável de dor e angústia, perdendo o sentido mais 7 No pensamento contemporâneo, a magia desperta muito interesse e a linguagem mitológica tem muito mais força do que a ciência (contrária ao pensamento moderno). Não é de se assustar a grande aceitação dos escritos de Paulo Coelho e sobre Harry Potter. O homem pós-moderno, nessas literaturas, é representado em um mundo sobrenatural e que sempre diante de um sofrimento e dificuldade tem a certeza da felicidade sem muito esforço e sem nenhuma prática ascética. Tudo é muito fácil, pois sempre conta com uma intervenção externa, sempre é assistido por forças sobrenaturais. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. Werbson Beltrame Pereira | 21 estrito da palavra mistério, em seus desdobramentos, significados e relações. Nunca se tentou firmar as bases de uma sociedade tão superficial e sem sentido de vida. A superficialidade se impõe com muita frieza e sutileza sobre a profundidade do mistério tão necessário e caro à espiritualidade. A espiritualidade cristã anuncia que, na medida em que uma pessoa se fecha ao mistério, não poderá sequer descobrir o comprimento e a largura, a profundidade e a altura (cf. Ef 3,18) da própria vida, ela sequer terá “coragem para conhecer a si mesma em seus aspectos positivos e negativos, de descer aos infernos do próprio eu e, ao mesmo tempo, tender para aquilo que a transcende” (CENCINI, 1999b, p.8). 3.4. A perda do mistério Analisando o ser humano atual, é palpável uma sensação muito nítida: o homem diante do secularismo, ateísmo, narcisismo, infelizmente perdeu, ou está progressivamente perdendo, o senso do mistério. Não é espontâneo ao homem pós-moderno admitir o encantamento com a natureza, com as pessoas e com Deus. Tudo passou a ser considerado como simples e mero objeto, friamente relacionado, manipulado e calculado, sujeito ao método analítico sistemático. Consequente à perda do mistério, na pós-modernidade se estrutura a incapacidade de estabelecer relações com a totalidade do objeto, isto é, com o eu, com o tu, com a vida, “com todas as realidades enfim que estão embebidas de mistério” (CENCINI, 1999b, p.11). O ser humano, ao negar a dimensão do mistério, tão cara à sua espiritualidade, conscientemente ou não, contenta-se com o mero prazer do superficial, do imediato e da liquidez, em que o que “está acontecendo hoje é, por assim dizer, uma redistribuição e realocação dos poderes de derretimento da modernidade” (BAUMAN, 2001, p.13). O homem hodierno, infelizmente, contenta-se com aquilo que é fácil e imediatamente decifrável por simplesmente ser evidente. A perda do mistério na vida do homem pós-moderno faz este ser redutivo e superficial consigo mesmo, com os outros e com Deus. A apatia diante do mistério gera no ser humano pós-moderno uma Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. 22 | OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTà HOJE enclaustração em si mesmo, em que este não reconhece sua identidade refletida no espelho criado por ele mesmo. Distante da compreensão do homem pós-moderno está o reconhecimento da possibilidade de amar e deixar ser amado pelos outros. “É difícil reconhecer, em tanto atos de bondade de que fomos objeto, a mediação humana e providencial do amor de Deus! Essa ingratidão é um componente daquele narcisismo que hoje impera” (CENCINI, 1999a, p.76). O não se abrir para o mistério revela com certa constância “um medíocre, que não conhece os grandes entusiasmos e as grandes paixões, pois fica alheio aos conflitos e às oposições dilacerantes” (CENCINI, 1999b, p.11). Revela um homem fragilizado por sua própria ousadia de querer ter controle de tudo a seu próprio tempo. Vive-se em uma sociedade padecente de grandes projetos, uma vez que os mesmos necessitam de empenho, tempo e entusiasmo. O vazio gestado pelo secularismo em suas cores obscuras e cinzentas deixou cansada a vista do ser humano hodierno, ao ponto de este perder o encantamento e a paixão por si mesmo. O não encantar-se consigo mesmo gesta coletivamente, na sociedade contemporânea, um projetar de desânimo em massa que a todo o momento anuncia que não vale mais à pena confiar no próprio humano. “Agitados entre a esperança e a angústia, sentem-se oprimidos pela inquietação” (GS, n.4). Jamais o pensamento iluminista com seus cálculos e geometria conseguiu mensurar e prever que a ausência e a morte do mistério fazem morrer também no interior humano a dimensão criativa de sua própria vida, condição existencial do ser humano. Tudo se transforma numa monótona sucessão mecânica, automática, tudo fica pronto para o uso e para o consumo. A falta de sentido na vida do ser humano atual não só destrói o sentido do mundo e suas categorias significativas como proclama igualmente o consequente desvirtuamento do ser humano, que se encontra agora caído na mais angustiante desintegração, sem referências norteadoras e sem um ponto de unidade e de ordem. O ser humano se enxerga envolvido numa emaranhada rede de momentos e instantes sem uma linha Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. Werbson Beltrame Pereira | 23 mestra que o conduza a um corpo comum. É difícil ao ser humano contemporâneo a possibilidade de sustentação em suas buscas que lhe capacite para uma existência comprometida com a realidade atual em sua totalidade. É justamente essa situação de desagregação da existência humana, entregue ao acaso momentâneo, que caracteriza o desvirtuamento do homem pós-moderno. O extremo suspeitar do homem pós-moderno diante de todas as coisas o impediu de suspeitar de si mesmo, não se encontrando com o essencial de toda pergunta, o mistério. O contrário do mistério e da abertura ao mistério é, por um lado, a presunção de saber, presunção que é, em parte, suficiência, e em parte, inconsciência; por outro lado, é a sensação, um tanto fatalista e nihilista, de não poder conhecer o mistério do próprio eu, e muito menos, o mistério que nos cerca e nos envolve (CENCINI, 1999c, p.10). O fechamento ao mistério conduz o homem pós-moderno à não integração pessoal. Suas relações são meramente objetivas, imediatas, voltadas para a fluidez, afastando-se de si mesmo, e não entrando nunca em contato com aquela parte do eu que não pode ser evocada senão pela integração total com a realidade. O homem pós moderno, “ao procurar penetrar mais fundo no interior de si mesmo, aparece frequentemente mais incerto a seu próprio respeito” (GS 4). Em outras palavras, o mistério perdido parcializa e empobrece a relação que o sujeito estabelece consigo mesmo, com o outro e com Deus, instaurando e legitimando ainda mais o individualismo crescente em uma sociedade tão padecente de proximidade e afetos. 4. O declinar da razão e o retorno ao sagrado Há duas maneiras de enxergar os desafios que desse fato emergem: o fechamento, caminho simplista e imaturo ou a abertura, assumindo o desafio do evangelho, mediante o questionamento de como, onde e quando se pode anunciá-lo na nova situação cultural, numa sociedade conduzida por um novo sistema de valores que está Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. 24 | OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTà HOJE substituindo a cristandade de outrora. Assim, torna-se evidente o desafio de se questionar: “[...] já que a Igreja perdeu espaço na nova cultura, como pode reconquistar este espaço, recuperar o prestígio perdido e a audiência que teve durante tantos séculos?” (COMBLIN, 2003, p.36). Quaisquer que sejam as respostas a essas perguntas (um tanto sutis), pode, em todo o caso o “[...] homem na graça, como em habitat próprio da oração, onde quer que esteja, falar com Deus, dirigirse a ele, chegar a ele com a sua interpelação se é que verdadeiramente reza e não tenta esconjuros mágicos, que pretendam subordinar Deus a nós” (RAHNER, 1978, p.64). Esses desafios e questionamentos proporcionam, distanciam no horizonte, respostas prontas e satisfatórias; no entanto, a espiritualidade atual conquistou valores, temas e orientações novas, suscetíveis antes ou depois de uma síntese orgânica. A espiritualidade atual imersa em uma insegurança dominante encontra coragem e vigor no florescer da busca pelo sagrado, instaurada pelo próprio homem pós-moderno. Há, na pós-modernidade, um retorno ao sagrado, diante do desmoronamento do edifício otimista, no qual a racionalidade moderna construiu suas bases e estruturas. É justamente diante da “plasticidade e da mudança constante da realidade e do conhecimento” (TARNAS, 2002, p.422) que o homem pós-moderno reclama por uma dimensão profunda de sua existência, negada e rejeitado por longos tempos. O renovado interesse espiritual brota de profundas exigências de autenticidade, de interioridade e de real liberdade, aos quais não satisfaz a sociedade contemporânea multifacetada em todos os sentidos. As promessas iluministas e calculistas das ciências, em vez de oferecer ao ser humano um mundo, um ambiente em que este pudesse morar e conviver procurando o bem comum, trouxeram-lhe, entre outras coisas, o critério da disputa, da competição, da massificação e da manipulação e coisificação das pessoas; uma angustiante incomunicabilidade, um futuro incerto e ameaçador, a atrofia dos sentimentos em um cristalizar dos sonhos e dos grandes projetos. A constante e incisiva negação esconde, em seu silêncio, o desejo do negligenciado. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. Werbson Beltrame Pereira | 25 É preciso observar que esta ruptura nunca é completa, justamente porque toda experiência é sempre culturalmente definida, inclusive a religiosa. A experiência corresponde e, com isto, se ajusta a uma situação global. Os próprios sinais de protesto, de ruptura ou de retorno às fontes apresentam uma forma necessariamente relacionada com uma problemática de conjunto. Em seu “desprezo” ou em seu isolamento, o fiel continua dependendo do que combate [...] (FIORES, GOFFI, 1989, p.343). O próprio ser humano, em toda sua prepotência, percebeu que já não era mais possível continuar pensando e vivendo segundo a lógica natural, imaginando que sabe tudo, que tudo já está claro, que tudo convence, que tudo pode ser explicado e mensurado a partir da racionalidade como o sumo critério da vida, como esquema dentro do qual todas as coisas devem se encaixar. Grande parte da sociedade atual, diante da aridez pós-moderna, se encontra “cansada, por assim dizer, da racionalidade” (RATZINGER, 2006, p.66, tradução nossa). No fundo, o próprio homem, em sua busca de autonomia e liberdade, descobriu que sua própria lógica racional calculista é, de fato, redutiva, negando a liberdade humana, tornando a vida sem sentido e obscura. A insegurança instaurada e a constatação de tamanha incapacidade e limitação despertam o ser humano pós-moderno para o mais sublime de sua existência: a dimensão espiritual. Floresce no limite da racionalidade do homem atual o sentimento de não poder fazer tudo, e assim, “[...] no percurso do reconhecimento da validade de quaisquer afirmações ou hipótese de verdade, um salto de fé é um ingrediente inevitável” (HAUGHT, 2009, p.83). Mesmo diante das circunstâncias não favoráveis, seja por cegueira, seja por determinabilidade ou por culpa própria, o homem é convidado a olhar sobre o seu rosto verdadeiro e único, real e divino, mesmo que esteja destorcido pelas marcas profundas da racionalidade moderna. A face humana de Jesus revela a face divina em contornos muito marcantes, apontando a partir de si o caminho ao Pai invisível, inefável e inominável. Os cristãos encontram Deus, sobretudo em Jesus Cristo. O retornar ao sagrado aqui expressado diz respeito à: Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. 26 | OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTà HOJE [...] possibilidade da salvação de uma vida que parece desesperante. Me refiro especialmente às formas de expressão e às sensibilidades suficientemente diferenciadas frente à vida fracassada, frente a patologias da sociedade, frente ao fracasso de uma concepção de vida individual e frente a uma vida deformada em seu conjunto (RATZINGER, 2006, p.41, tradução nossa). Em tempos pós-modernos, depois de certas decepções, aprendendo da história e através de um verdadeiro processo de maturidade, deve-se reconhecer que a espiritualidade já não é mais uma palavra infeliz. “Hoje é um horizonte pedido, um clamor que vem de dentro, água vida da caminhada. Há uma autêntica e profunda sede de espiritualidade [...]”. (CASALDÁLIGA, 1998, p.7). Caminhando entre cálculos e mensurações, de repente até os mais otimistas viramse no meio de uma densa escuridão. Serenamente é anunciado que “a sociedade ocidental do futuro não continuará pensando tal como os que a precederam, assim como o adulto não fala nem pensa como o fazia quando era criança” (LENAERS, 2010, p.12). A razão já não mais consegue iluminar a vida e história do homem pós-moderno. Consequentemente o mesmo percebeu que as [...] inúmeras descobertas científicas ajudaram a melhorar a qualidade de vida da humanidade, se bem que não igualitariamente, mas pouco contribuíram para aprofundar o sentido de sua existência. A euforia e a crença exageradas no poder do homem, paulatinamente, deram lugar à frustração. Esse descontentamento, fruto de um vazio interior, tem gerado, nos últimos tempos, a busca de respostas num Ser Superior, no Absoluto, enfim, numa Luz que venha a iluminar e vivificar os caminhos da história pessoal e coletiva. Hoje, mais que ouvir falar de Deus, cresce o número de pessoas que desejam senti-lo (CASTRO, 1998, p.12). Deus, que por muito tempo foi colocado na esfera da razão, transformado em átomos e fórmulas a serem memorizadas, passou a ser objeto de desejo. Em todo caso, “compete a cada tempo apostar em seu ensaio de dar resposta minimamente significativa a suas interrogações precisas: só assim suscitará atitudes e promoverá práxis que lhe ajudem nas urgências de seu respectivo momento” (QUEIRUGA, 2006, p.5). Hoje como nunca, o ser humano busca a Deus em um sentido profundo para sua vida a fim de dar horizonte e alívio à sua própria existência desertificada por longos anos. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. Werbson Beltrame Pereira | 27 Diante do declinar da humanidade sobre questões fundamentais de sua existência, o retorno ao sagrado8, o retorno à dimensão espiritual, é fundamental ao cristianismo repensar profundamente sua forma de dialogar com as novas circunstâncias apresentadas pela pós-modernidade, sendo capaz de encontrar-se diante os desafios, não escudando-se em regras e moralismos; por outro lado, a espiritualidade é convidada a se revitalizar deixandose iluminar pela força revigoradora encarnada e manifesta a toda criatura: Jesus Cristo, plenitude de toda espiritualidade. Em Jesus Cristo o ser humano pós-moderno vislumbra o horizonte de seu desenvolvimento a uma aprendizagem que lhe possibilita hoje a redescoberta do Caminho que o conduz a uma vida realizada e com sentido. 5. Conclusão Este artigo visou revelar que no interior da pós-modernidade adormecem riquezas as quais, sendo bem exploradas, possibilitam à espiritualidade cristã um novo dinamismo, um novo impulso. Diante dos desafios pós-modernos, a espiritualidade deve dialogar, tendo clareza de sua identidade, sabendo de sua responsabilidade diante dos homens e mulheres que buscam em Deus o sentido último de suas vidas. Por essas e outras razões, é fundamental na espiritualidade cristã o permanente “aggiornamento”, essencialmente fundamentada no amor a exemplo de Jesus Cristo. É necessária a espiritualidade à abertura para um autoconhecimento a fim de contribuir com seu verdadeiro serviço aos homens e mulheres de hoje que desejam “[...] redescobrir a beleza e alegria de ser cristãos” (CELAM, DAp, n.14, p.15). 8 Autores como Frei Antônio Moser insistem em afirmar que não se deve criar uma ilusão a respeito do retorno ao sagrado. Para ele, “o que mais cresce no momento atual é o indiferentismo religioso, o qual já não conhece fronteiras nem sociais, nem econômicas. Um sempre maior número de pessoas se torna religiosamente indiferente” (MOSER, 1996, p.26). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. 28 | OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTà HOJE REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. Tradução Ivo Storniolo et al. São Paulo: Paulus, 2006. CASALDÁLIGA, Pedro. Nossa espiritualidade. 2.ed. São Paulo: Paulus, 1998. CASTRO, Valdir José de. Espiritualidade cristã: mística da realização humana. 2.ed. São Paulo: Paulus, 1998. CENCINI, Amedeo. A história pessoal, morada do mistério: indicações para o discernimento vocacional. São Paulo: Paulinas, 1999a. CENCINI, Amedeo. Os jovens ante os desafios da vida consagrada: interrogações e problemáticas. São Paulo: Paulinas, 1999b. CENCINI, Amedeo. Redescobrindo o mistério: guia formativo para as decisões vocacionais. São Paulo: Paulinas, 1999c. COMBLIN, José. Os desafios da cidade no século XXI. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2003. CONCÍLIO VATICANO II. 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Werbson Beltrame Pereira | 29 MONDONI, Danilo. Teologia da espiritualidade cristã. São Paulo: Loyola, 2000. MOSER, Antônio. O pecado: do descrédito ao aprofundamento. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1996. QUEIRUGA, Andrés Torres. Um Deus para hoje. 3.ed. São Paulo: Paulus, 2006. OLIVEIRA, José Lisboa M. de. Viver os votos em tempos de pós-modernidade. São Paulo: Loyola, 2001. RAHNER, Karl. Considerações teológicas. In: DONDEYNE, Albert et al. Ateísmo e secularização. São Paulo: Paulinas, 1970. p.65-84. RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo. 2.ed. São Paulo: Paulus, 1989. RAHNER, Karl. O desafio de ser cristão: textos espirituais. Petrópolis: Vozes, 1978. RATZINGER, Joseph; HABERMAS, Jurgen. Dialéctica de la secularização: sobre la razón y la religión. Madrid: Encuentro, 2006. RUBIO, Afondo Garcia. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. 4.ed. São Paulo: Paulus, 2006. TARNAS, Richard. A epopeia do pensamento ocidental: para compreender as ideias que moldaram nossa visão de mundo. 5.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. Werbson Beltrame Pereira. Graduado em filosofia pela Faculdade Católica Salesiana de Vitória-Espírito Santo. Graduado em Teologia pelo Instituto de Filosofia eTeologia da Arquidiocese de Vitória – Espírito Santo e Especialista em Aconselhamento Pastoral e Orientação Espiritual pelo Instituto Santo Tomás de Aquino – Belo Horizonte. E-mail: [email protected] Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012. | 31 ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA E HERMENÊUTICA Elton Vitoriano Ribeiro 1. Introdução A pergunta sobre quem é o ser humano se impõe a todos em todos os tempos. Perguntar-se pelo que se é, é uma atitude irrecusável. Neste perguntar-se, encontra-se também o cristão, isto é, aquele que fez de sua vida um seguimento radical a Jesus, o Cristo. Mas aí surge outra questão na esteira da primeira: o que é o ser humano a partir da revelação cristã? O que é o ser humano em sua relação com Deus Trino revelado em Cristo? O que somos à luz de Jesus Cristo revelador de Deus? Para a autocompreensão cristã, conforme a Encíclica Gaudium et Spes, “Cristo, ao revelar o mistério do Pai e de seu amor, desvela também plenamente o homem ao homem e lhe faz conhecer sua altíssima vocação” (CONCÍLIO VATICANO II, 1968, p.22). Mas qual é esta vocação humana revelada pelo Cristo? O que ela tem a dizer sobre o ser humano em geral, e não apenas sobre os cristãos? Qual a sua relevância para a vivência dos homens e mulheres contemporâneos? Estas são algumas das indagações que a reflexão antropológica, na sua vertente teológica, quer nos ajudar a elucidar. Elucidação que se dá a partir de e com as Sagradas Escrituras, lidas em Igreja, no mundo histórico. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.31-42, jan./jul. 2012. 32 | ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA E HERMENÊUTICA 2. Surgimento da antropologia teológica A antropologia teológica, assim como a entendemos atualmente, é uma disciplina recente (LADARIA, 1998, p.11-16). Podemos, de certa forma, datar seu surgimento no período pósVaticano II. Nesse período, houve um resgate e reagrupamento de vários tratados da teologia com intenção de compor uma reflexão acerca do ser humano em sua totalidade. Evidentemente, esta preocupação com o ser humano sempre esteve presente no discurso teológico. Temas como criação, graça, pecado original, destino final do ser humano, revelam a presença do ser humano no horizonte reflexivo da teologia. Desde a patrística, especialmente com as reflexões de Santo Agostinho, passando pelo pensamento escolástico de Santo Tomás de Aquino, até os primeiros tratados de Antropologia Teológica do período pós Vaticano II, o ser humano esteve mais ou menos tematizado, presente na reflexão teológica. Mas só com uma especial abordagem acerca da necessidade de uma nova e criativa articulação entre cristologia e antropologia que a questão da antropologia teológica ganhou relevância no quadro dos temas teológicos a serem refletidos. Na tentativa, necessária e urgente, de conciliar a fé cristã com o pensamento moderno, o Concílio Vaticano II construiu uma reflexão que levou em consideração toda a questão antropológica e sua relevância naquele momento. Quer dizer, houve uma preocupação em dialogar com o pensamento moderno de cunho, eminentemente, antropocêntrico que se revelou, paradigmaticamente resumido, na questão antropológica fundamental apresentada por Kant: o que é o homem? É sob esse signo que vai caminhar todo o pensamento moderno. É sob esse signo que a teologia encontrará um ponto de diálogo com a modernidade. Só assim a teologia terá, verdadeiramente, palavras que façam sentido para o ser humano moderno. Historicamente a teologia católica fechou-se às novas descobertas antropológicas num primeiro momento. Toda uma série de antropologias regionais (física, cultural, psicológica, etc...), que exigiam cidadania no pensamento moderno, pareciam perigosas Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.31-42, jan./jul. 2012. Elton Vitoriano Ribeiro | 33 à teologia. Mas tais desafios levaram a teologia a colocar-se, humildemente, à escuta do outro e em diálogo com as várias questões levantadas pela modernidade. Neste contexto mais amplo de virada antropocêntrica é que alguns teólogos católicos construíram um discurso específico de antropologia teológica. 3. Atual contexto e o discurso cristão sobre o humano O contexto atual no qual devemos pensar o discurso cristão sobre o humano não é menos desafiante. O advento do pós-moderno (LYOTARD, 1986; LIPOVETSKY, 1989; TAYLOR, 1991), a crítica radical ao antropocentrismo moderno, o enfraquecimento das concepções de Deus, de ser humano e de mundo; o fim das grandes narrativas, do discurso único, propõem novos e desafiantes problemas à teologia. É neste campo minado pelos mestres da suspeita Marx, Nietzsche e Freud (RICOEUR, 1978, p.350-351), mas cheio de possibilidades, que devemos pensar a teologia. Pensar uma palavra teológica que seja relevante para o ser humano contemporâneo. O enfraquecimento da concepção de Deus acontece num momento de crítica à ontoteologia (Heidegger) e na busca de uma abordagem linguística do real por meio de seus jogos de linguagem (Wittgenstein). Contribuiu muito para isso o desmoronamento da ideia clássica de Deus Todo Poderoso diante das inomináveis tragédias ocorridas no século vinte (Auschwitz, Ruanda, Bósnia, para lembrar algumas). As consequências desse enfraquecimento são visíveis na redução da fé à moral, por exemplo, numa continuidade epistemológica da reflexão de Kant em “A religião dentro dos limites da pura razão”; na impossibilidade de conceitualização de Deus, por exemplo no ressurgimento de um tipo de teologia negativa (GIBELLINI, 1998, p.115-122); na substituição da transcendência divina pela transcendência humana, como no pensamento de ComteSponville e Luc Ferry; e pela busca de um lugar no sentimento humano para o encontro com Deus deixando de lado toda a reflexão teológica que busca conciliar fé e razão. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.31-42, jan./jul. 2012. 34 | ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA E HERMENÊUTICA Também, o enfraquecimento do ser humano é um radical questionamento de todo o antropocentrismo moderno. Esse enfraquecimento conduz a um questionamento da noção de pessoa, à substituição da noção de criatura pela noção de condição humana (H. Arendt), à morte da memória e das utopias, à substituição da vivência das virtudes pela busca desenfreada da felicidade, à ojeriza e repulsa de todo tipo de culpa e pecado, a substituição da ética e da política pela estética. Finalmente, o enfraquecimento da concepção de mundo conduziu à colonização do mundo pelos objetos da tecnociência que levou a uma redução do mundo a um grande depósito de coisas, visto como uma pátria desambientada e sem futuro. Ora, neste contexto atual que se nos apresenta fica a questão sempre pertinente de como pensar a antropologia teológica numa época tão plural. Face à grande narrativa que sempre foi a teologia, como pensá-la num mundo de narrativas parciais, de pensamento fraco (Vattimo)? Ainda, como pensar a antropologia teológica desde nossa situação latino-americana e, mais especificamente, brasileira? Situação marcada profundamente por uma cultura mestiça e por uma história longa e triste de injustiças? 4. diálogos da teologia com a contemporaneidade Dois discursos teológicos de grande relevância nos ajudam a refletir sobre a possibilidade e o método necessários à teologia para um frutífero diálogo com o nosso tempo. Karl Rahner e Wolfhart Pannenberg, cada um em seu tempo e a sua maneira, pensaram a questão do discurso da antropologia teológica que, verdadeiramente, fale aos homens e mulheres contemporâneos. Karl Rahner (1972) tece uma reflexão sobre a antropologia e a protologia no conjunto de sua teologia. Rahner, com seu discurso teológico transcendental, se inscreve dentro da primeira modernidade. Influenciado por Maréchal em sua obra Le point de Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.31-42, jan./jul. 2012. Elton Vitoriano Ribeiro | 35 depart de la metaphysique, 1944-1949, que buscou um diálogo do tomismo com o kantismo e, na filosofia por Kant e Heidegger, Rahner vai propor um novo ponto de partida para o desenvolvimento de uma antropologia teológica (OLIVEIRA, 1984). O ponto de partida de Rahner é a noção de existencial sobrenatural. Para Rahner, o ser humano se encontra sempre no existencial sobrenatural, ou seja, ele não pode prescindir do fato de que sua autoconsciência, mesmo que de forma não necessariamente tematizada, está interpelada pelo chamado de Deus à comunhão com Ele. O ser humano é caracterizado por sua abertura para Deus, quer dizer, o ser humano está desde sempre, em virtude de sua estrutura antropológica, aberto à possível revelação e chamado de Deus. Esta capacidade de conhecer a Deus é dom. Este dom, que é a própria autocomunicação de Deus é graça, isto é, é relação com o Absoluto. Autocomunicação que se dá historicamente, e que historicamente se realizou em Cristo Jesus, o logos encarnado. Portanto, o trabalho da antropologia teológica será o de tematizar esta abertura transcendental do ser humano para o Absoluto, e sua efetivação histórica em Jesus Cristo onde encontramos de maneira fundamental e plena o que é e quem é o ser humano. Ou seja, é em Cristo que a natureza humana foi conduzida definitivamente à sua salvação absoluta. Wolfhart Pannenberg (1972) busca uma fundamentação cristológica para a antropologia cristã. Pannenberg possui um discurso fortemente influenciado pelo pensamento filosófico de Hegel, assim ele se encontra no que chamamos segunda modernidade. Desse lugar ele vai construir um discurso teológico de cunho messiânico histórico. A perspectiva de Pannenberg (1993) é a de dar à antropologia uma fundamentação cristológica. Elementos importantes dessa sua reflexão são a dimensão de historicidade constitutiva do ser humano e a abertura radical do ser humano para uma determinação que não é dada, mas que será realizada historicamente. Esta abertura para Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.31-42, jan./jul. 2012. 36 | ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA E HERMENÊUTICA uma determinação futura encontra seu novo, isto é, sua plenificação em Jesus Cristo. Na vida de Cristo se revela a presença do Reino de Deus, ele é autobasileia. Neste segundo Adão, neste homem novo e definitivo, se dá a salvação de Deus. Salvação que consiste na relação, isto é, na comunhão do ser humano com Deus, vale dizer, numa espécie de participação na vida de Deus, por Cristo, no Espírito. Assim, a presença do Reino de Deus, na aceitação de seu anúncio por Cristo Jesus, é o ato de amor salvífico de Deus presente na vida do humano. Esta salvação é dada como dom ao ser humano. Dom que deve ser acolhido na liberdade. Liberdade que é dada historicamente em Cristo Jesus, que nos libertou para a liberdade, para falar como São Paulo. Ora, dom, amor, relação, não podem existir a não ser em regime de liberdade. E é a esta liberdade fundamental que todos somos chamados em Cristo Jesus. Liberdade que liberta para o amor, para o dom, para a relação com Deus e com o outro. 5. Um novo ponto de partida As reflexões de Rahner e Pannenberg nos ajudam a perceber que o discurso teológico sobre o humano deve trabalhar em regime de peregrinação. Quer dizer, sua tarefa de diálogo com o mundo nunca deve se fixar em posições caducas e retrógradas. Caso isso ocorra, corre-se o risco de tornar irrelevante para os homens e mulheres de seu tempo a sempre nova e criativa mensagem de Deus sobre o humano. Cabe, portanto, aos teólogos fazerem sempre e de maneira renovada uma hermenêutica da palavra de Deus e da existência humana. Parece-nos que numa situação de desconstrução das grandes narrativas, de fragmentação do humano, de coexistência num mesmo contexto cultural de elementos pré-modernos, modernos e pós-modernos, exige-se uma nova abordagem que possibilite tornar relevante o discurso teológico sobre o humano. Neste contexto atual, parece-nos que a proposta de uma hermenêutica narrativa tem mais a dizer e dá mais a pensar aos homens e mulheres de hoje (GEFFRÉ, 1989). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.31-42, jan./jul. 2012. Elton Vitoriano Ribeiro | 37 6. A hermenêutica como proposta para um método em antropologia teológica Na incessante busca de falar para seus contemporâneos, acreditamos que um possível caminho para a antropologia teológica seja o de pensar seu método a partir da proposta hermenêutica de Paul Ricoeur. Ricoeur propõe a hermenêutica como via longa para o pensar. Essa via longa leva a pensar a interpretação como um processo complexo que inclui tanto o momento da descrição das estruturas e suas leis (a explicação), como o momento da apropriação do sentido pelo sujeito (a compreensão), como fazendo parte de um único arco hermenêutico. Arco hermenêutico que leva aquele que interpreta a, através do encontro com o mundo do texto, configurar sua figuração interior, re-orientando sua orientação a partir da afecção provocada pelo texto. Quer dizer, os textos com os quais entramos em contato, para falar como Ricoeur, os quais lemos, refletimos e amamos, refazem nosso horizonte, vale dizer, nossa própria identidade narrativa (RICOEUR, 1990). É próprio da linguagem remeter a um além de si mesma. Ela remete a um mundo da vida, mundo humano que é tecido pela linguagem1. Por isso, para Ribeiro (2003), a exegese narrativa se preocupa com, ao interpretar as narrações que compõem nosso ethos originário, por exemplo, as narrativas bíblicas sobre a criação, o problema da intriga. A intriga, segundo Lévinas (1998), é a relação entre os termos onde um e outro não são unidos nem por uma síntese do entendimento, nem pela relação do sujeito ao objeto e, no entanto, um é imprescindível ou é significante para o outro, sendo que eles estão ligados entre si sem que o saber possa esgotá-los ou desvelálos. Daí que a função hermenêutica será, propriamente, um tecer uma intriga. Esse tecer é um configurar a ação humana e dar-lhe certa inteligibilidade. Isso na medida mesma em que o ato configurante da intriga coloca junto elementos díspares formando uma totalidade significante de sentido. 1 Para Ricoeur há uma impossibilidade de acesso imediato ao que quer que seja. Assim, toda experiência humana no mundo é mediada pela linguagem e só é acessível através dela. Daí a preferência de Ricoeur pela chamada via longa da hermenêutica em detrimento da via curta heideggeriana. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.31-42, jan./jul. 2012. 38 | ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA E HERMENÊUTICA Este diálogo entre as interfaces intrigantes, na temporalidade, numa tradição, se dá na narratividade. Ora, narrar não é um ato gratuito e ingênuo. No narrar encontramos algumas modalidades pré-narrativas da ação que exigem, pela própria condição humana que tem na linguagem um medium intransponível, serem conduzidas à narrativa. Por exemplo, na memória das vítimas da injustiça a narratividade refigura, no plano do agir, o acontecido, podendo alterar o sujeito, em alguns casos, para uma verdadeira conversão ética. Assim, Ricoeur (2002) vai propor uma poética da existência, vale dizer, uma hermenêutica narrativa, em que o poético tem o caráter de recriar a existência humana a partir da narratividade. Ora, a antropologia teológica, ao adotar esse método, tentará compreender o ser humano a partir das narrativas bíblicas. Especialmente, pensar o ser humano a partir desta fonte inesgotável de sentido que é o Evento Cristo (JUNGES, 2001, p.89-130; PALACIO, 2002, p.5-21). Mas, antes ainda, é necessário esclarecer o caráter mimético da narração. Para Ricoeur, a narração é o resultado de uma tríplice mímesis. Mímesis que é o próprio caráter de modelo das formas narrativas, e que pode ser descrito como transmissão, como confrontação e como descoberta de si. Toda narração tem um pressuposto, uma pré-figuração (Mímesis I). Quer dizer, toda história é enraizada num contexto que é narrativo. Por exemplo, os evangelhos estão intimamente imbricados no contexto das primeiras comunidades cristãs e na vida daqueles homens e mulheres que aderiram ao Cristo Jesus, não isolados, mas em Igreja, vale dizer, em comunidade, a comunidade dos com Jesus. Portanto, está inscrita em toda narrativa uma pré-compreensão da ação e da tradição narrativa onde esta ação é dita. Toda narração possui um princípio, um meio e um fim, quer dizer, toda narrativa tem uma configuração propriamente dita (Mímesis II). Esta configuração não existe solta, absoluta, mas só ganha pleno sentido se for compreendida como um momento intermediário entre a pré-figuração anterior a ação e sua re-configuração posterior. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.31-42, jan./jul. 2012. Elton Vitoriano Ribeiro | 39 É a dimensão refigurativa de toda narração (Mímesis III). Ela marca a interseção entre o mundo do texto e o mundo do leitor ou do ouvinte, mundo onde a narrativa ganha seu pleno sentido. Por exemplo, apropriar-se da narração cristológica é ir-se configurando, numa verdadeira fusão de horizontes, ao Cristo Jesus. Configuração que, ao apresentar um modelo de humanidade, interpela nossa própria humanidade. Diante da figura de Cristo, somos seduzidos, afetados, atraídos, de forma a constituir nossa própria identidade, narrativamente. Só assim o ser humano se compreende, só se compreende ao narrar sua própria história2. Portanto, a mímesis possui uma relação com a história em geral (ao propor e dar sentido), uma relação com a ação (ao propor e gerar ações), e uma relação com a identidade daquele que interpreta (ao narrativamente influenciar nesta mesma identidade). Daí podermos fazer-nos a seguinte pergunta antropológica: quem me torno quando ajo com os outros em Cristo? 7. Conclusão: antropologia teológica e mistagogia Construir uma reflexão em antropologia teológica como descrevemos enquanto método exige uma perspectiva hermenêutica. Perspectiva que, acreditamos, nos ajuda a não cairmos em um dogmatismo estéril, nem em um fideísmo paralisante. Para uma antropologia teológica que se quer hermenêutica, falar de Deus é também falar do ser humano que fala de Deus (GEFFRÉ, 2001). É um falar antropológico que deve manifestar a pertinência do mistério cristão para a inteligência e a prática dos homens e mulheres contemporâneos. Por isso, a antropologia teológica, na sua dimensão de narratividade, será uma hermenêutica atualizante da palavra de Deus e da existência humana. 2 Aqui entendemos, como Ricoeur, que o sujeito não é apenas constituído como substância, como cogito (idem), mas é alguém que atua no drama de sua existência e aí é também constituído (ipse), quer dizer, todo sujeito é sempre sujeito em relação, que se constitui narrativamente. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.31-42, jan./jul. 2012. 40 | ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA E HERMENÊUTICA Portanto, a antropologia teológica, como a compreendemos, é mistagogia3. Quer dizer, é fundamentalmente interpretar a narração da experiência da misteriosa gratuidade de Deus na vida dos seres humanos, como encontramos nos relatos bíblicos. Interpretação que faz emergir um sentido, sentido que nos configura e que nos convoca a uma práxis em favor dos outros como maneira privilegiada de atualizar a experiência de fé. Experiência de fé que é vivida sob o signo da adesão pessoal e comunitária ao Cristo Jesus. Experiência que nos conduz ao Pai e que é guiada pelo Espírito. Experiência que nos revela a misteriosa e profunda verdade de que somos filhos de Deus e irmãos uns dos outros. REFERÊNCIAS ARENDT, H. A condição humana. São Paulo: Forense, 2002. COMTE-SPONVILLE, A. O alegre desespero. São Paulo: UNESP, 2002. CONCÍLIO VATICANO II. A igreja no mundo de hoje: constituição pastoral “Gaudium et Spes”. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 1968. 126 p. (Documentos Pontifícios, 155). FEINER, Johannes; LOEHRER, Magnus (Coords.). Mysterium salutis: compêndio de dogmática histórico-salvífica. Petrópolis: Vozes, 1972. v.2; p.2. 142 p. (Fundamentos de dogmática histórico-salvifica). FERRY, L. O que é uma vida bem sucedida? Rio de Janeiro: DIFEL, 2004. GEFFRÉ, G. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989. GEFFRÉ, C. Croire et interpréter: le tournant herméneutique de la théologie. Paris: Du Cerf, 2001. A compreensão da antropologia teológica como mistagogia é um mergulhar na dimensão mistérica da fé cristã, fé que é dinâmica e por isso sempre em processo de interpretação da narração dos textos bíblicos. Fé que se vive e se celebra numa comunidade eclesial, e que nos convoca, inexoravelmente, a uma prática transformadora e libertadora (TABORDA, 2004, p.588-615; VÁZQUES MORO, 2001). 3 Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.31-42, jan./jul. 2012. Elton Vitoriano Ribeiro | 41 GIBELLINI, G. A teologia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998. JUNGES, R. Evento Cristo e ação humana. São Leopoldo: Unisinos, 2001. KANT, I. A religião dentro dos limites da simples razão. São Paulo: Escalada Educacional, 2006. LADARIA, L. F. Introdução à antropologia teológica. 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E-mail: [email protected] Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.31-42, jan./jul. 2012. | 43 A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA: “SE CALAREM A VOZ DOS PROFETAS...” Gilvander Luís Moreira Palavra de Javé: consolai os aflitos e afligi os consolados! Ninguém pode tocar o corpo dos escritos proféticos sem sentir a batida do coração divino. 1. Para começo de conversa A Bíblia, se interpretada com sensatez e a partir dos pobres, nos educa para a vivência profética, o que passa necessariamente por construir uma convivência humana e ecológica onde o bem comum seja um princípio básico seguido. Os grandes desafios da realidade social, eclesial e eclesiástica para as pessoas cristãs que se engajam nas lutas sociais e na construção de uma sociedade justa, solidária, ecumênica e sustentável – também construção de uma igreja Povo de Deus – me fazem recordar também os desafios de muitos profetas e profetisas da Bíblia e de suas profecias. Quando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST – realiza ações radicais – não extremistas, mas aquelas que, de fato, vão à raiz dos problemas e, por isso, ferem o coração da idolatria do capital –, o ódio dos poderosos despeja-se sobre os militantes desse que é o maior movimento popular da América Afrolatíndia. Isso faz acordar em mim profecias bíblicas, como as das parteiras do Egito, dos profetas Elias, Amós, Miqueias e do galileu de Nazaré. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. 44 | A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA Antes de passar a palavra às profetisas e aos profetas da Bíblia, pergunto: Quantos de nós já nos dispusemos a fazer a experiência de viver sob lonas pretas e gravetos – em condições similares aos animais no meio do mato, ou em condições piores do que nas favelas? Quem de nós já viveu à beira das estradas, em lugares ermos e remotos, sujeitos aos ataques noturnos repentinos? Quantos já permaneceram em um acampamento do MST por mais de um dia, observando o que comem (e, sobretudo, o que deixam de comer), o que lhes falta, como são suas condições de vida? Quantos já viram o desespero das mães procurando, aos gritos, pelos filhos enquanto o acampamento arde em fogo às 3 da madrugada, atacado por jagunços? Sentindo-me na pele dos Sem Terra, convido você para visitar algumas profecias bíblicas das parteiras, de Elias, Amós, Miqueias e Jesus de Nazaré, na esperança de que possam iluminar nossas consciências e aquecer nossos corações para discernirmos o que é preciso fazer, como fazer e comprometermo-nos de fato com a causa dos pobres que, com fé libertadora, lutam por direitos humanos, por uma terra sem males. 1.1. Uma premissa básica: nosso Deus é transdescendente Muitos perguntam: se Deus existe e é todo poderoso, por que permite tanta dor, tanta violência e sofrimento no mundo? Deus é sádico? Está sentado na arquibancada, de braços cruzados, vendo o sangue do inocente verter na arena da vida? Deus não faz nada? Um sábio, ao ouvir essas interpelações, respondeu: Deus fez e faz todos nós para sermos no mundo expressão do Deus que é infinito amor. A única força que Deus tem é o amor, que aparenta ser a realidade mais frágil, mas é a mais poderosa do mundo. Só o amor constrói. JESUS se tornou tão humano que acabou se divinizando. Pelo seu relacionamento íntimo com o Pai, ao qual chamava de papai (abbáh, em hebraico), Ele nos revela uma característica fundamental que perpassa toda a experiência do povo de Deus da Bíblia: o Deus comprometido com os pobres é um Deus transdescendente, não apenas transcendente – sua transcendência se esconde na imanência, Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. Gilvander Luís Moreira | 45 o divino no humano. A partir do Êxodo, constatamos como Javé é um Deus que ouve os clamores dos oprimidos e desce para libertá-los (Ex 3,7-9). No início do Gênesis, o Espírito está nas águas, permeia e perpassa tudo (Gn 1,2). Em Jesus de Nazaré, tendo “nascido de mulher” (Gl 4,4), Deus se encarna, descendo e assumindo a condição humana. No Apocalipse, Deus larga o céu, desce, arma sua tenda entre nós e vem morar conosco definitivamente (Ap 21,1-3). Logo, um movimento de transdescendência perpassa toda a Bíblia. Essa característica se reflete em Jesus. 1.2. Profecia é sussurro de Deus Os oráculos proféticos, normalmente, são introduzidos com uma fórmula característica: “Assim disse Javé....” ou “Oráculo de Javé” (Jr 9,22-23). A expressão “ne’m YAHWEH”, em hebraico, geralmente traduzida por “oráculo de Javé” ou “Palavra de Javé”, significa “sussurro, cochicho de Deus no ouvido do profeta ou da profetisa”. Para entender um cochicho, um sussurro, é preciso fazer silêncio, prestar muita atenção, estar em sintonia, ter proximidade, ser amiga/o. Logo, Deus não falava claramente aos profetas, como nós, muitas vezes, pensamos. Deus fala hoje para – e em – nós do mesmo modo que falava aos profetas e às profetisas. Deus cochicha (sussurra) em nossos ouvidos, sempre a partir da realidade do polo enfraquecido, na trama complexa das relações e estruturas humanas. Precisamos colocar nossos ouvidos e nosso coração pertinho do coração dos violentados, para que nossas palavras possam refletir algo da vontade do Deus da vida. Mais que fazer cursos de oratória, precisamos de cursos de “escutatória”. Para ouvir os clamores mais profundos dos empobrecidos, é necessário conviver com eles. 1.3. A força e a fraqueza da palavra profética Intervenções proféticas que, no tempo do profeta (ou da profetisa) devem ter provocado calafrios, e ter soado quase como blasfemas, hoje podem parecer insossas a muitos leitores. Assim palavras de grande profundidade humana podem passar despercebidas Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. 46 | A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA para muitos cristãos. Se os profetas bíblicos ressuscitassem no nosso meio hoje e atualizassem suas profecias, provavelmente suscitariam mal-estar ou escândalo. Eis um exemplo: o profeta Amós, em pleno século VIII a.C., fez a seguinte profecia: Ide-vos a Betel pecar, em Guilgal pecai firme; oferecei pela manhã os vossos sacrifícios e no terceiro dia os vossos dízimos; oferecei pães fermentados, pronunciai a ação de graças, anunciai dons voluntários, pois é disso que gostais, israelitas Oráculo de Javé (Am 4,4-5). Este texto é quase incompreensível para as pessoas que não sabem o que é Betel nem Guilgal, desconhecem a expressão “oferecer sacrifícios” (só ouviram falar de “sacrificar-se”, “mortificarse”), desconhecem o que são os ázimos e os dons voluntários. Isso nos revela a fraqueza da palavra profética. Mas atualizando a profecia acima apresentada, poderemos, talvez, apresentá-la assim: Ide pecar em Aparecida no Norte, em Juazeiro do Padre Cícero pecai firme. Assisti à missa todos os dias, Oferecei vossas velas e oferendas. Queimai o incenso da bajulação, Ardam os incensórios, Anunciai novenas, Pois é disso que gostais, católicos. Oráculo do Senhor. Aqui notamos a força da mensagem, sua clareza, brevidade e concisão. Também é patente a dureza e ironia com a qual se expressa. Em Am 4,4-5 o profeta usa o gênero “instrução”, típico dos sacerdotes. Assim Amós, usando o estilo de linguagem dos sacerdotes, critica-os com uma ironia fina e os ridiculariza. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. Gilvander Luís Moreira | 47 O exemplo acima nos mostra a força e a fraqueza da palavra profética. Fraca porque ficou aprisionada por uma linguagem, uma história, uma cultura que não é a nossa. Forte porque resplandece com todo vigor quando lhe arrancamos as “sujeiras” do tempo e encontramos o seu sentido “em si” e a sua mensagem “para nós”. Para entendermos bem o sentido “em si” de Am 4,4-5 devemos estudar exegeticamente o texto. Para percebermos a veemência da crítica do profeta Amós ao culto, explicitando assim a relação de Israel com o culto, devemos considerar o seguinte: • Os versículos 4 e 5 do capítulo quatro de Amós são uma irônica exortação (seis verbos no imperativo) a caminhar para os santuários de Betel e Galgala para multiplicar as transgressões, mais do que para adorar Deus. O caráter irônico dos versículos é sublinhado pela exortação para oferecer um sacrifício cada manhã, e pior ainda, o dízimo (= a décima parte) a cada três dias. Dt 14,28 e Dt 26,12 são dois textos que regulam esta obrigação, estabelecem que a décima parte deve ser paga a cada três anos. Portanto, pedir para pagar a cada três dias o que deve ser pago a cada três anos é, no mínimo, uma ironia sarcástica. • Também a ação de graças com a oferta do pão fermentado (v.5) contradiz formalmente o que é indicado em Ex 12,15.39; 13,7; Dt 16,3. Da celebração da Páscoa (Ex 13,3; 23,18; 34,25) até as pequenas “ofertas vegetais” (Lv 2,4.5.11), tudo deve ser feito sempre com pães ázimos, e não com pão fermentado. Se comparar essa ironia com Os 8,13, segundo a interpretação proposta por alguns autores1, ela não se refere portanto a uma falsa celebração da Páscoa somente. “Cada manhã” (v.4) não deve ser traduzido por “na manhã”, como crítica de uma celebração pascal que devia acontecer à tarde. • Com relação às ofertas voluntárias, pode-se encontrar um tratamento irônico no incitamento a proclamar e fazer conhecê-las. Essas ofertas, justamente porque 1 SIMIAN-YOFRE, H. El desierto de los Dioses. Cordoba, 1992, p.86. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. 48 | A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA voluntárias, não eram provavelmente reguladas por específicas disposições2. As concessões sobre a imperfeita qualidade da oferta voluntária, não permitida para outros sacrifícios (Lv 22,23), nas regras mais amplas sobre o tempo para consumir a oferta (Lv 7,16; 22,21), assim como a menção delas no último lugar no resumo de Lv 23,3738, depois dos “sacrifícios para o fogo”, holocaustos, oblações, vítimas, libações, dons e votos. Tudo sublinha o caráter privado desses sacrifícios. Proclamar essas ofertas destrói seu caráter e finalidade. Não parece que o anúncio (retórico) do salmista dos sacrifícios que fará nem o da proclamação das graças recebidas por Deus (Sl 66,15-16) pode ser interpretado como justificação ou explicação do relacionamento indicado em Am 4,5. Vamos contemplar como agiram profetisas e profetas da Bíblia. Isso poderá ser uma bússola na nossa missão na atualidade. 2. “Se calarem a voz dos profetas...” 2.1. No início, mulheres lutadoras As mulheres parteiras do Egito – a Bíblia registra os nomes de duas: Séfora e Fuá (Ex 1,8-22) –, diante de um Ato ditatorial (Medida Provisória = “Decreto Lei”) que mandava matar as crianças do sexo masculino, se organizaram e fizeram greve e desobediência civil-religiosa. “Não vamos respeitar uma lei autoritária do império dos faraós. O Deus da vida quer respeito à dignidade humana e não concorda com a matança de crianças e com nenhuma opressão”, diziam em seus corações Mulheres do “sistema de saúde” do Egito. Diz a Bíblia: “Deus estava com as parteiras. O povo se tornou numeroso e muito poderoso.” (Ex 1,20), isto é, crescia em quantidade e em qualidade. O Movimento das Mulheres campesinas, a Marcha Mundial das Mulheres, as guerreiras de Dandara, o Movimento 2 Cf. as referências bastante gerais em 2Cr 31,14; Sl 68,10; 119,108 – no singular e no sentido “profano”, ofertas voluntárias para a construção do templo, cf. Ex 35,29; 36,3. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. Gilvander Luís Moreira | 49 Feminista, todos são legítimos herdeiros do Movimento das parteiras do Egito. O mesmo Deus que impulsionou as parteiras estava com as mil Mulheres da Via Campesina que expuseram a farsa da Aracruz Celulose em 08 de março de 2006.3 Ontem, lutavam contra o império dos faraós; hoje, lutam contra o império das multinacionais. 2.2. Profeta Elias, intransigente defensor dos pequenos Em meados do século IX a.C., o profeta Elias ferveu o sangue de indignação quando ouviu e viu que o rei Acab, a primeira dama Jezabel e latifundiários estavam reforçando a latifundiarização da terra prometida pelo Deus da vida ao povo Sem Terra, filhos/as de Abraão e Sara. A terra para o povo da Bíblia é herança de Deus, deve ser passada de pai para filho para usufruto; jamais ser considerada uma mercadoria. “Javé me livre de vender a herança de meus pais” (IRs 21,3), respondeu Nabot, um pequeno agricultor, ao receber uma proposta indecorosa do rei que desejava comprar seu sítio para anexá-lo ao grande latifúndio que já tinha acumulado. O rei Acab se irritou com a resistência de Nabot. Jezabel, rainha adepta do ídolo Baal, manipulou a religião e a justiça para roubar a terra do sitiante. Caluniou, criminalizou e demonizou Nabot, que, com o beneplácito do poder judiciário, foi condenado à pena de morte na forma de apedrejamento. Morte que mata aos poucos. Hoje, o “apedrejamento” aos empobrecidos acontece por meio de calúnias, humilhações e, muitas vezes, com o veredicto da justiça. Mais de 6 milhões de indígenas e outros 6 milhões de negros já foram os Nabots no Brasil. Com a cumplicidade da classe dominante e a omissão de muitos, cerca de 30 mil jovens estão sendo exterminados no Brasil anualmente, na guerra química, não declarada, do crack. Mas a opressão dos pobres e o sangue dos mártires suscitam profetas. O profeta Elias, ao ouvir que o rei Acab estava invadindo o pequeno sítio de Nabot, após tê-lo matado, em alto e bom som profetizou: “Você matou, e ainda por cima está roubando? Por isso, 3 Cf. o vídeo-documentário Rompendo o silêncio: as mudas passaram a falar (Luta das mulheres da Via Campesina destruindo um viveiro de Mudas da Aracruz Celulose e povos indígenas do Espírito Santo lutando para resgatar suas terras invadidas pela Aracruz). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. 50 | A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA assim diz Javé (Deus solidário e libertador): No mesmo lugar em que os cães lamberam o sangue de Nabot, lamberão também o seu. Farei cair sobre você a desgraça” (IRs 21,19.21). Acab desencadeou uma grande perseguição ao profeta Elias, que fugiu, mas refez sua opção pelo Deus da vida e continuou lutando ao descobrir que não estava sozinho na luta. Outros 7 mil profetas conspiravam com ele e ao lado dele. Elias inspirou Eliseu, que inspirou Jesus de Nazaré, que inspira milhões de pessoas cristãs pelo mundo afora. Acab teve morte sofrida, parecida com a do ditador Garrastazu Médici no Brasil. 2.3. Profeta Miqueias, um camponês que clama por justiça Camponês de origem, o profeta Miqueias captou os sussurros do Deus da vida no final do século VIII a.C., quando o território de seu povo estava sendo devastado pelos assírios imperialistas. Para Miqueias, a cobiça e as injustiças sociais deixam Deus possuído por uma ira santa. “São vocês os inimigos do meu povo: de quem está sem o manto (como os Sem Terra e sem-casa, de hoje), vocês exigem a veste; vocês expulsam da felicidade de seus lares as mulheres do meu povo (como milhares de meninas que são empurradas para a prostituição infanto-juvenil), e tiram dos filhos a liberdade que eu lhes tinha dado para sempre (Miq 2,8-9). Após se libertar das garras dos faraós no Egito e marchar 40 anos pelo deserto, o povo oprimido da Bíblia conquista a terra prometida que estava em mãos de grileiros cananeus. Os territórios foram sorteados fraternalmente, para que cada família tivesse o seu lote. Fizeram reforma agrária. Mas, após alguns séculos, os enriquecidos, pouco a pouco, foram invadindo cada vez mais campos e territórios. Assim, multidões de sem-terra foram jogados na miséria e impossibilitados de ter a sua parte na terra do povo de Deus. Vindo da roça, Miqueias, ao chegar à capital Jerusalém, se defronta com os enriquecidos – políticos profissionais e religiosos funcionários do sagrado – e os acusa de roubar casas e campos para se tornarem latifundiários. “Ai daqueles que, deitados em seus leitos de marfim, ficam planejando a injustiça e tramando o mal! É só o dia Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. Gilvander Luís Moreira | 51 amanhecer, já o executam, porque têm o poder em suas mãos. Cobiçam campos, e os roubam.” (Miq 2,1-2). Miqueias mostra que a riqueza deles se baseia na miséria de muitos e tem como alicerce a carne e o sangue do povo. “Essa gente tem mãos habilidosas para praticar o mal: o príncipe exige, o juiz se deixa comprar, o grande mostra a sua ambição. E assim distorcem tudo. O melhor deles é como espinheiro, o mais correto deles parece uma cerca de espinhos! O dia anunciado pela sentinela, o dia do castigo chegou: agora é a ruína deles.” (Miq 7,3-4). 2.4. Profeta Amós, a luta contra a injustiça social Provavelmente as composições mais antigas do livro do profeta Amós (Am 1-6; 7-9) datam de meados do século VIII a.C., e surgiram como literatura de protesto e resistência. “O acento principal da mensagem de Amós está na crítica social e no anúncio de um juízo iminente de Deus na história, bem como na tênue, mas clara exigência do restabelecimento da justiça como alicerce das relações sociais”4. Amós é um profeta precursor, radical, exemplar e paradigmático. A profecia de Amós é, em certo modo, um divisor de águas na história da profecia no sentido de que instaura um novo jeito de ser profeta. O livro de Amós está organizado em duas grandes unidades literárias: I) Am 1-6: Palavras e II) Am 7-9: Visões. 2.4.1. Endurecimento ou perdão Amós, em Am 4,4-135, reflete sobre culto, história, endurecimento e perdão e nos ajuda a refletir sobre três aspectos intimamente entrelaçados, fundamentais na ética profética sobre 4 REIMER, Haroldo. Amós – profeta de juízo e justiça. RIBLA, Petrópolis, v.35/36, p.171, 2000. 5 Sugiro que antes de você continuar a leitura do texto, leia na Bíblia Am 4,4-13. Assim você entenderá melhor a reflexão que se segue. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. 52 | A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA a concepção de pecado em relação ao culto, à história e aos limites de uma possível reconciliação com Deus. Diante do “pecou, pecou... endureceu, endureceu...”, haverá castigo ou perdão? A conclusão que se coloca na base e no fim do estudo de Am 4,4-13 é “Preparese Israel, para encontrar-se com seu Deus!” Trata-se de um anúncio de punição in extremis diante da incapacidade de Israel de reagir, ou de uma velada promessa de perdão? Ou existe outra interpretação possível? A declaração final de Javé ao ser humano que fecha a unidade Am 4,4-13 constitui-se quase como uma nova revelação do Sinai, que deve pôr fim ao conflito entre o ser humano e a divindade, em favor do ser humano. As punições pedagógicas de Javé deixam lugar a um esclarecimento que abre o coração do ser humano para que veja o conjunto da sua história e reconheça o processo de endurecimento de seu coração. Am 4,4-13 evoca, portanto, uma situação em que há certa semelhança com aquela do relato das pragas do Egito, mas não é, obviamente, a recordação daqueles fatos. O discurso de Amós menciona, talvez, um passado histórico não identificável nem pela forma nem pelo conteúdo do texto. As pragas do tempo do Êxodo feriam o Egito, não Israel, e de uma maneira diferente da relatada em Amós 4. Além do mais, as tais “pragas” eram no mundo antigo o resultado de situações críticas naturais ou políticas: a fome era o resultado de toda estiagem prolongada e peste nas plantações, assim como a morte dos jovens (v.10) é o efeito de toda ação militarista, no mundo antigo e moderno. Às pragas ou punições descritas se reúnem ainda a menção a Sodoma e Gomorra. O discurso de Amós 4 quer, portanto, dar conta de toda a antiga história de Israel, também de Israel patriarcal, para aplicá-la a uma nova situação. Um ponto particular de relação com o Êxodo é a presença do refrão “mas não retornastes a mim”, que estrutura o texto de Amós 4,413. Assim, como no relato das pragas, o endurecimento do coração do faraó é o motivo estruturante que faz aumentar as pragas. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. Gilvander Luís Moreira | 53 No relato do Êxodo, um primeiro grupo de textos, atribuídos tradicionalmente à fonte javista (J), apresenta de fato o faraó como responsável pelo seu próprio endurecimento, como havia predito Deus.6 O outro grupo de textos (os chamados “heloístas”) atribuem a obstinação ora ao faraó (Ex 9,35) ora a Deus mesmo (Ex 10,20.27). O relato sacerdotal (P) o atribui habitualmente a Javé. Esta diversidade de concepção no atribuir a responsabilidade pelo pecado aparece também em outros textos fora do Êxodo, com diferente vocabulário e problemática. Em 2Sm 24,1 Javé é o responsável direto pelo pecado de Davi devido ao recenseamento; segundo 1Cr 21,1 a responsabilidade é, ao invés, de Satanás. O verbo hebraico usado é o mesmo: swt (= incitar, seduzir). Tanto em Êxodo como em Am 4,4-13 se coloca um grande problema exegético e teológico: É possível e legítimo que Deus continue a aplicar punições que levam a um endurecimento sempre crescente? Não se comporta Javé assim como o pai que exagera, com sua punição, o seu filho e o força a se rebelar (cf. Ef 6,4)? É necessário reconhecer que por trás dos textos de endurecimento há o mistério da liberdade humana e “onipotência” divina: amor infinito de Deus. Em relação a Deus, há uma consciência profética de que as obras e a Palavra de Deus não podem permanecer sem efeito (cf. Is 55,11), mas são sempre eficazes (diferente de eficientes). Se não produzem imediatamente a conversão, devem amadurecer o sujeito para um novo castigo, o que, em última análise, não exclui a possibilidade de conversão. Em relação ao “castigado” (?), há consciência do fato de que a exortação à conversão, quando não ouvida, se torna uma condenação. Isto é, nada mais, nada menos, que a dinâmica das relações interpessoais. Quando duas pessoas se encontram e começam a se conhecer, a relação pode progredir, parar ou eventualmente morrer. Mas, enquanto existe, cada ação e reação levam ao crescimento ou diminuição daquela relação. Todo ato (ou omissão) nas relações 6 Cf. Ex 7,14.22; 8,11.15.28; 9,7.34. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. 54 | A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA interpessoais soma e cultiva a relação ou a empobrece descultivando-a. Nenhum ato fica neutro. De modo semelhante, na relação do ser humano com Deus, cada ação que não melhora a relação, a piora, mas jamais a deixa igual. Se não se aceita um convite à conversão, como uma oferta de amizade, o recusa. E essa recusa tornará mais difícil que aconteça um novo convite.7 Além disso, aceitar uma nova oferta de amizade implicaria reconhecer o erro precedente, o que pode exigir um grau maior de humildade. Em relação aos profetas e profetisas, esse processo se explica na medida em que os/as “intérpretes de Javé” sabem do paradoxo da missão deles. Os profetas e profetisas sabem que a palavra profética conduz às vezes à conversão de alguns poucos, mas na maioria das vezes leva ao endurecimento de muitos. Os oráculos de condenação no futuro, pronunciados com absoluta segurança, refletem a consciência dos profetas de que a advertência seria inútil. A consciência que os profetas e profetisas têm das três realidades descritas acima se apresenta, de modo muito claro, em Is 6,9-11: “Então disse ele: Vai, e dize a este povo: Ouvis, de fato, e não entendeis, e vedes, em verdade, mas não percebeis. Engorda o coração deste povo, e faze-lhe pesados os ouvidos, e fecha-lhe os olhos; para que ele não veja com os seus olhos, e não ouça com os seus ouvidos, nem entenda com o seu coração, nem se converta e seja sarado. Então disse eu: Até quando Senhor? E respondeu: Até que sejam desoladas as cidades e fiquem sem habitantes, e as casas sem moradores, e a terra seja de todo assolada”. 2.4.2. Amós, conspirador e subversivo? Em Am 7,14 Amós se recusa a ser considerado profeta segundo a ótica de um sacerdote vassalo do poder político. Amós se define como “vaqueiro” e cultivador de sicômoros. No v.15 Amós parece ser 7 Gato escaldado com água quente tem medo até de água fria, diz a sabedoria popular. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. Gilvander Luís Moreira | 55 um pastor que cuida do rebanho miúdo (ovelhas e cabras), mas não um vaqueiro. Em Am 7,10-17 não há a intenção primeira de descrever pessoalmente a profissão do profeta, mas enfatiza o fato de que Amós foi retirado da sua vida precedente, do seu mundo, das preocupações domésticas para proclamar a Palavra de Deus. Am 7,10-17 quer legitimar o conteúdo da profecia de Amós e ajudar a comunidade a superar todos os preconceitos que possam existir contra o profeta por causa da sua origem humilde, como se fosse um “nordestino”, um sem-terra, um menor de rua, um portador do vírus HIV etc. O relato de Am 7,10-17 quer nos dizer que a profecia vem da margem, da periferia, do meio dos marginalizados e excluídos. São esses, por excelência, os “intérpretes de Javé”. Na Bíblia esse “gênero” é utilizado para descrever de maneira diferente as vocações de Moisés, Gedeão, Eliseu, Saul. Mas uma estreita relação se encontra em 2Sam 7,8. Natã transmite a Davi a mensagem de Javé: “Eu te tirei das pastagens, pastoreavas as ovelhas”. O elemento que caracteriza essas situações não é o fato de o convocado pertencer a um grupo, mas, ao contrário, o fato de ele ser um “de fora”, um excluído. Assim Am 7,14 quer exprimir a distância de Amós das formas institucionais da profecia e dos profetas “da corte”. O relato do confronto entre o sacerdote Amasias e Amós (com a implicada presença do rei) oferece a justificação da decisão de Javé. O povo não somente não ouviu as diversas palavras transmitidas por Amós, mas decidiu silenciá-lo, expulsando-o para sua terra. Já não há nada mais a esperar senão o fim definitivo, e diante disso resta somente a lamentação. O profeta anuncia a necessidade de conversão; pede perdão a Deus pelo povo; pede para parar a punição. O rei (e a monarquia) e o Templo expulsam o profeta, silenciando-o. O povo sofrerá muito mais. Ai de um povo que não escuta seus profetas e profetisas e, pior ainda, que os persegue, os expulsa e os silencia. Am 7,10-17 revela a interpretação que setores da classe dirigente tinham do conteúdo da profecia de Amós. Aos olhos da elite, o profeta é um “conspirador”, interessado em “golpe de estado”. Para Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. 56 | A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA Javé e o povo empobrecido, Amós é um profeta. Para a elite, ele é um “subversivo”, um agitador. 2.4.3. Vacas de Basã são mulheres ou homens opressores? Em Am 4,1-3 temos a seguinte profecia: “OUVI esta palavra, vacas de Basã, que estais sobre monte de Samaria, que oprimis os fracos, que esmagais os excluídos, que dizeis aos vossos senhores: ‘Trazei-nos o que beber!’. O Senhor Javé jurou, pela sua santidade: sim, dias virão sobre vós, em que vos carregarão com ganchos e a vossos descendentes com arpões (de pesca). E saireis pelas brechas que cada uma tem diante de si, e sereis empurradas em direção ao Hermon, oráculo de Javé”. Segundo uma interpretação mais tradicional, Am 4,1-3 seria uma investida do profeta Amós contra as mulheres ricas de Samaria, designadas como “vacas de Basã”, mulheres de personagens importantes, que ocupam o tempo em luxuosos banquetes e, ao mesmo tempo, são responsáveis pela opressão e exploração dos empobrecidos. A imagem de um banquete só de madames é, no mínimo, algo curioso em uma sociedade reconhecidamente machista e patriarcal, assim como atribuir às mulheres a responsabilidade pela opressão e pela injustiça. A região de Basã, como o Líbano e o Carmelo, é famosa pela fertilidade do solo. A tristeza causada pela punição divina se manifesta na debilidade do Líbano, do Basã, do Carmelo e do Saron (Is 33,9). Ao contrário, a generosidade divina se expressa no nutrimento do povo com a “manteiga das ovelhas e dos touros de Basã” (Dt 32,14). O anúncio messiânico, com o qual se conclui o livro de Miqueias, inclui a promessa de um pasto abundante “em Basã e em Galaad, como nos dias antigos” (Miq 7,14). No ambiente de louvor do Sl 68, “Basã” são os montes (v.16) que testemunham, junto com o Sinai e a natureza, a grandeza das obras de Javé. Logo integrar “Basã” numa imagem depreciativa é algo estranho ao uso corrente de “Basã” na Bíblia. De “vaca de Basã” não se fala em nenhum outro lugar no Primeiro Testamento da Bíblia. As montanhas de Basã são famosas pelos seus touros, cabritos e carneiros (mas não vacas; cf. Dt 32,14). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. Gilvander Luís Moreira | 57 Por isso os touros de Basã podem ser imagens dos inimigos poderosos (cf. Sl 22,13 e, sobretudo, Ez 39,18). A expressão “vacas de Basã” adquire um sentido mais verdadeiro dentro da cultura bíblica se o termo “vacas” não for utilizado em relação a mulheres, mas a homens, aqueles que quiseram ser como os touros de Basã, pela força deles, autoridade e dignidade se tornaram “vacas”, com as conotações depreciativas que as formas femininas podem ter no Primeiro Testamento. Nesse contexto, os “seus senhores” (Am 4,1b, com sufixo masculino) se referem provavelmente não aos “maridos”, como propõem algumas traduções, um uso pelo qual não se tem nenhuma outra ocorrência, mas refere-se a uma pessoa de mais autoridade (política). “Senhor”, além do frequente uso como título divino, se refere a Acab (2Rs 10,2.3.6), ao faraó (Gn 40,1), ao rei da Babilônia (Jer 27,4), e em casos isolados a várias pessoas: “outros senhores...” (Is 26,13). A interpretação que propomos de “vacas de basã”, acima, está em sintonia com a hipótese de que “vacas de basã” seja também uma alusão às estátuas cultuadas. Logo, em Am 4,1-3 está uma forte denúncia do poder opressor de um “senhor” com poder político de dominação respaldado por uma legitimação religiosa. 2.4.4. Amós: “Restabeleçam a justiça!” A profecia de Amós é “uma crítica veemente e contundente aos agentes e mecanismos de exploração e opressão dos camponeses empobrecidos sob o governo expansionista de Jeroboão II e sob as condições de um incremento de relações de empréstimos e dívidas entre pessoas do próprio povo no século VIII a.C.”8. Em outros termos, o profeta Amós não apenas critica pessoas corruptas, mas questiona também de modo muito forte o sistema gerador de pessoas corruptas. Não somente as mazelas pessoais estão na mira do “camponês” que entrou para a história como um grande profeta. Amós tem consciência 8 REIMER, Haroldo. Amós: profeta de juízo e justiça. RIBLA, Petrópolis, v.35/36, p.188, 2000. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. 58 | A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA de que o problema fundamental da injustiça reinante na sociedade não é fruto somente de fraquezas pessoais, mas tem como causa matriz estruturas sócio-econômico-político-culturais e religiosas que engrenam uma máquina de moer pessoas. Na mira de Amós também estão relações comerciais que causam endividamento, aprisionam pessoas e escravizam, retirando a liberdade de ser pessoa humana. Além das denúncias sociais, a profecia de Amós destacase com o anúncio de um juízo iminente de Javé na história do seu povo. Amós inverte as expectativas quanto a um tão sonhado “dia de Javé” (Am 5,18-20). Este não será mais uma “ideologia de segurança político-religiosa” pelos fortes de Israel. A perversão da justiça para os pobres, a opressão dos empobrecidos e a exploração das pessoas mais enfraquecidas clamam pelo juízo divino. O “dia de Javé” será um “dia mau” sobre os fortes de Israel, sobre o estado tributário, suas instituições e seus agentes.9 Amós critica com coragem a “corrida armamentista” de Israel. Ele anuncia que serão desmanteladas as forças militares dos estados vizinhos (Am 1,5.8b.14b; 2,2b) e sobretudo de Israel (Am 2,13-16; 3,11b; 5,2-3; 6,13-14). O profeta Amós denuncia duramente também as instituições religiosas que estão justificando o processo de extorsão de tributos da população camponesa (Am 4,4-5; 5,21-23). Pelo conluio com a opressão econômica a religião oficial também será dizimada (templos) e seus agentes (Am 5,27; 7,9; 9,1) “Odeiem o mal e amem o bem: restabeleçam no portão a justiça!” (Am 5,15). “Aqui está a exigência positiva por excelência na profecia de Amós. Os israelitas são conclamados a reconstruir as relações sociais baseadas na justiça e no direito (mishpat / sedaqah). Só assim será possível escapar do juízo vindouro anunciado. O futuro de um “resto” passa pela prática de Justiça”10. O juízo abre caminho para a justiça. A presença dos 9 A fé em um Deus que é infinito amor não coaduna com a existência de inferno como um lugar de punição. No entanto, se não há algum tipo de inferno, os opressores ficarão sem nenhuma punição? 10 REIMER, Haroldo. Amós: profeta de juízo e justiça. RIBLA, Petrópolis, v.35/36, p.189, 2000. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. Gilvander Luís Moreira | 59 profetas e profetisas no meio do povo deixa Javé livre de qualquer responsabilidade diante da punição que o povo merece. 2.5. Profeta Oseias, o profeta das relações de amor e da antiidolatria religiosa 2.5.1. Chão histórico do livro de Oseias A data provável da profecia de Oseias é 755 a 721 a.E.C. Trata-se do final do reino do Norte, últimos anos do reinado de Jeroboão II até o reinado de Oseias, filho de Ela. No primeiro capítulo de Oseias está uma forte crítica contra a dinastia de Jeú. Os capítulos 2 e 3 refletem certa prosperidade de produção e tranquilidade política, marcas do reinado de Jeroboão II. Do capítulo 5 em diante, estão reflexos da crise que se instaura em Israel, devido a pressões externas vindas do Império Assírio. Com a chamada guerra siro-efraimita e a subjugação de parte do território por Teglat-Falasar III (rei da Assíria), por volta de 733 a.E.C., aumentam significativamente na Palestina o clima de violência e a insegurança interna. Os capítulos finais de Oseias testemunham os acontecimentos em torno do ano 724 a.E.C., data do cerco à cidade de Samaria e da destruição do reino do Norte, com o consequente exílio do povo para a Assíria, potência imperialista da época. 2.5.2. Chaves que destrancam as profecias de Oseias A profecia atribuída a Oseias é composta de catorze capítulos, organizados em duas grandes unidades: 1a) Os 1-4; 2a) Os 5-14. O capítulo 4 parece ser o grande elo das duas partes, pois faz uma ligação entre o conteúdo de Os 1-3 e o de Os 5-14. Para entendermos bem a profecia de Oseias, precisamos levar em consideração as implicações dos gêneros literários presentes no texto. Precisamos também não cair na armadilha da interpretação simplesmente alegórica, com base em polarizações como Javé-Israel, marido-mulher e fidelidade-infidelidade. Isso reduz tremendamente a realidade gritante que lateja por trás do texto. Por isso, para Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. 60 | A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA compreender bem as profecias de Oseias, é preciso levar no coração as angústias das pessoas marginalizadas e excluídas e, particularmente, o clamor das mulheres, que resistem, apesar de tudo, frente à violência patriarcal e outras agressões dos mais diversos matizes. Os primeiros quatro capítulos focalizam o âmbito da casa e suas relações peculiares. Oseias, nos capítulos de 5 a 14, amplia o foco, detendo-se no mo(vi)mento promovido em várias instâncias do Estado monárquico (a corte do rei, seu exército, sacerdotes e funcionários). Isso nos mostra que a profecia de Oseias vai do miúdo da vida para o macro, do cotidiano para as questões globais, mas revelando a interdependência e o entrelaçamento das várias dimensões da vida humana e social. Oseias denuncia o poder opressor localizado nas grandes instituições, mas também desvenda a microfísica do poder: todas as relações interpessoais (sociais, etc) são permeadas de relações de poder. O poder não está localizado somente nas grandes instituições, mas está presente nas microrrelações. Estão permeadas de poder as relações homem-mulher, adulto-criança, professoraestudante, governante-governados, branco-negro, sadio-doente... O quarto capítulo de Oseias versa sobre o cotidiano da colheita, com uma veemente crítica aos sacerdotes, já que eles representavam o Estado monárquico. A idolatria justificava religiosamente as estruturas e relações de opressão e exploração. A isso Oseias chamava de prostituição e de adultério. Eram frequentes em Israel e afetavam as relações entre mulheres e homens dentro de casa. Em Os 4,1-19 temos uma profecia que denuncia a macro-opressão realizada pelos “sacerdotes”, e outra que põe o dedo na ferida da micro-opressão que acontece nas relações interpessoais, particularmente entre homem e mulher, entre adultos e crianças. O miúdo da vida (o cotidiano) e o macro da vida são as duas pernas presentes na profecia de Oseias. Elas se entrecruzam no texto. Em particular, a profecia de Oseias revela para as pessoas o que significa viver sob as guerras e alianças de Israel com o Império Assírio (cf. Os 5,13; 7,11; 8,9), em um ir e vir sem rumo que foi corroendo as forças da nação até chegar ao seu final (cf. Os 5,12; 7,9; 8,8). Isso sem falar da violência que rasgou ventres de mulheres grávidas (cf. Os 14,1) e tirou a vida de crianças de peito (cf. Os 9,11-14). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. Gilvander Luís Moreira | 61 A biblista Tânia Mara, com fina sensibilidade e intuição feminista, nos diz que em Oseias “movimentos de corpos prostituídos abrem a profecia... movimentos de corpos em resistência atravessam a profecia... movimentos de corpos transgressores desafiam a leitura da profecia e proclamam novidades!”.11 Prostituição, em Oseias, não é uma questão sexual-moral, mas uma questão de idolatria. Oseias não faz censura moral e muito menos é moralista. Não se refere a pessoas individualmente prostituídas, mas ao “país que foi prostituído”. O livro de Oseias não qualifica Gomer como prostituta. Afirma, ao contrário, que a “nação se prostituiu” (Os 1,2). Assim, a ênfase recai sobre a nação, e não sobre Gomer. Muitas outras mulheres se encontravam em situação parecida. Oseias 4,14 menciona que as filhas se prostituíam e as noras praticavam adultério nos tempos da colheita. Mas faz bem precisar que a prostituição em Oseias é “um dado de realidade que atinge o corpo de homens, mulheres, crianças e lhes expropria a vida. Mais do que isto, é fundamental identificar que as crescentes críticas ao longo da profecia dirigem-se não às mulheres, mas aos sacerdotes, aos reis e aos príncipes” (cf. Os 5,1-2.4...). Segundo a profecia de Oseias, os sacerdotes são os grandes culpados pela violência reinante. O povo percebe que os sacerdotes haviam se transformado em assassinos e se comportavam como bandidos em emboscada (Os 5,9). O povo percebe a ilusão que é acreditar no Império Assírio como caminho de salvação (Os 14,4). O povo cai na real e consegue ver que os reis e príncipes são insensatos, mentirosos e se matam por disputas internas (cf. Os 7,1-7) e por disputas políticas externas (cf. Os 5,1-15; 7,8-16; 8,8-14; 10,6-15). Diante dessa dramática máfia religiosa e política, o povo, passando por um processo sofrido de conversão, conclui, voltando-se para o Deus Javé: “é em Ti que o órfão encontra misericórdia” (Os 14,4). A hipocrisia e o cinismo dos sacerdotes na condução do culto fazem o povo descobrir que o caminho para a libertação não passa pelos �� SAMPAIO, Tânia Mara Vieira. Oseias: uma outra profecia. RIBLA, Petrópolis, v.35/36, p.157, 2000. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. 62 | A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA sacrifícios, mas pela misericórdia. A conclusão é: “Misericórdia, sim; sacrifício, não!” (Os 6,6). A profecia de Oseias não tolera os pecados que estão desfigurando o povo. Quando ouvimos a palavra “pecado” quase automaticamente somos levados para o episódio bíblico da queda de Adão e Eva. Assim, fazemos uma separação entre pecado e história das sociedades. Pecado não é ofensa a Deus, sem ter nenhuma relação com as relações humanas e históricas. Oseias ajuda-nos a perceber o “pecado” como vindo das entranhas das relações históricas e, muitas vezes, apoiado por funcionários das instituições religiosas. Em Oseias transparece um Deus que é só Misericórdia. Oseias é radicalmente contra não somente os sacrifícios, mas contra todo e qualquer sacrificialismo. O desfecho da profecia de Oseias reconhece Deus como sendo só misericórdia. “Misericórdia quero; sacrifício, não.” (Os 6,6). Oseias ouviu os sussurros de Javé, que dizia: “Eu vou, eu mesmo, persuadir o povo, conduzi-lo ao deserto e convencê-lo.” (Os 2,16). Hoje, de forma disfarçada, a indústria do sacrificialismo e da idolatria, denunciada com ira profética por Oseias, está funcionando a todo vapor em realidades tais como o agronegócio, a mineração depredadora, o neoliberalismo político e o fundamentalismo religioso. Enfim, na idolatria do mercado e do capital. 2.6. Jesus de Nazaré, um profeta que se tornou Cristo Jesus, o galileu de Nazaré, se tornou Cristo, filho de Deus. Como camponês, deve ter feito muitos calos nas mãos, na enxada e na carpintaria, ao lado de seu pai José. Os evangelhos fazem questão de dizer que Jesus nasceu em Belém (em hebraico, “casa do pão” para todos), cidade pequena do interior. “És tu Belém a menor entre todas as cidades, mas é de ti que virá o salvador”, diz o evangelho de Mateus (Mt 2,6), resgatando a profecia de Miqueias (Miq 5,1). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. Gilvander Luís Moreira | 63 2.6.1. De forma radical, Jesus mostra como resolver o problema da fome A fome era um problema tão sério na vida dos primeiros cristãos e cristãs, que os quatro evangelhos da Bíblia relatam Jesus partilhando pães e saciando a fome do povo.12 É óbvio que não devemos historicizar os relatos de partilha de pães como se tivessem acontecido tal como descrito. Os evangelhos foram escritos de quarenta a setenta anos depois. Logo, são interpretações teológicas que querem ajudar as primeiras comunidades a resgatar o ensinamento e a práxis original de Jesus. Não podemos também restringir o sentido espiritual da partilha dos pães a uma interpretação eucarística, como se a fome de pão se saciasse pelo pão partilhado na eucaristia. Isso seria espiritualização do texto. Eucaristia, celebrada em profunda sintonia com as agruras da vida, é uma das fontes que sacia a fome de Deus, mas as narrativas das partilhas de pães têm como finalidade inspirar solução radical para um problema real e concreto: a fome de pão. A beleza espiritual das narrativas de partilha de pães está no processo seguido. Em uma série de passos articulados e entrelaçados que constituem um processo libertador. O milagre não está aqui ou ali, mas no processo todo. Ei-lo: Mateus mostra que o povo faminto “vem das cidades”, ou seja, as cidades, ao invés de serem locais de exercício da cidadania, se tornaram espaços de exclusão e de violência sobre os corpos humanos. “Jesus atravessa para a outra margem do mar da Galileia” (Jo 6,1), entra no mundo dos gentios, dos pagãos, dos impuros, enfim, dos excluídos. Jesus não fica no mundo dos incluídos, mas estabelece comunicação efetiva e afetiva entre os dois mundos, o dos incluídos e o dos excluídos. Assim, tabus e preconceitos desmoronam-se. Profundamente comovido, porque “os pobres estão como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34), Jesus percebe que os governantes e líderes da sociedade não estavam sendo libertadores, mas estavam colocando grandes fardos pesados nas costas do povo. Com olhar 12 Cf. Mt 14,13-21; Mc 6,32-44; Lc 9,10-17 e Jo 6,1-13. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. 64 | A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA altivo e penetrante, Jesus vê uma grande multidão de famintos que vêm ao seu encontro, só no Brasil são milhões de pessoas que têm os corpos implodidos pela bomba silenciosa da fome ou da má alimentação. ---------Jesus não sentiu medo dos pobres, encarou-os e procura superar a fome que os golpeava e humilhava. Apareceram dois projetos para resgatar a cidadania do povo faminto. O primeiro foi apresentado por Filipe: “Onde vamos comprar pão para alimentar tanta gente?” (Jo 6,5). No mesmo tom, outros discípulos tentavam lavar as mãos: “Despede as multidões para que vão aos povoados comprar alimento para si.” (Mt 14,15). Filipe está dentro do mercado e pensa a partir do mercado. Está pensando que o mercado é um deus capaz de salvar as pessoas. Cheio de boas intenções, Filipe não percebe que está enjaulado na idolatria do mercado. O segundo projeto é posto à baila por André, outro discípulo de Jesus, que, mesmo se sentindo fraco, acaba revelando: “Eis um menino com cinco pães e dois peixes” (Jo 6,9). Jesus acorda nos discípulos e discípulas a responsabilidade social, ao dizer: “Vocês mesmos devem alimentar os famintos” (Mt 14,16). Jesus quer mãos à obra. Nada de desculpas esfarrapadas e racionalizações que tranquilizam consciências. Jesus pulou de alegria e, abraçando o projeto que vem de André (em grego, andros = humano), anima o povo a “sentar na grama” (Jo 6,10). Aqui aparecem duas características fundamentais do processo protagonizado por Jesus para levar o povo da exclusão à cidadania. Jesus convida o povo para se sentar. Por quê? Na sociedade escravocrata do império romano somente as pessoas livres, cidadãs, podiam comer sentadas. Os escravos deviam comer de pé, pois não podiam perder tempo de trabalho. Era só engolir e retomar o serviço árduo. Um terço da população era escrava e outro terço, semiescrava. Logo, quando Jesus inspira o povo para sentar-se, ele está, em outros termos, defendendo que os escravos têm direitos e devem ser tratados como cidadãos. Por que sentar na grama? A referência à existência de “grama” no local indica que o povo está no campo, na zona rural, e é a partir de uma reorganização da vida no campo que poderá advir uma solução Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. Gilvander Luís Moreira | 65 radical para a fome que aflige o povo nas cidades. Em outras palavras, o combate que liberta da fome passa necessariamente pela realização de uma autêntica Reforma Agrária. Não dá para continuar a iníqua estrutura fundiária no Brasil: Dados e informações comparativas do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA – revelam a síntese da estrutura fundiária brasileira em 2003: como agricultura familiar, abaixo de 200 hectares, há 3.895.968 de imóveis rurais (91,9% dos imóveis) compreendendo uma área de 122.948.252 hectares (29,2% do território), enquanto apenas 32.264 propriedades rurais (0,8% dos imóveis rurais) têm acima de 2 mil hectares, constituindo um território de 132.631.509 de hectares. Essas grandes propriedades têm em média 4.110,8 hectares, correspondendo a 31,6% do território (LAUREANO, 2007). Jesus estimula a organização dos famintos. “Sentem-se, em grupos de cem, de cinquenta...” (Mc 6,40). Assim, Jesus e os primeiros cristãos nos inspiram que o problema da fome só será resolvido, de forma justa, quando o povo marginalizado e excluído se organizar. “Jesus agradeceu a Deus...”. A dimensão da mística foi valorizada. A luz e a força divinas permeiam os processos de luta. Faz bem reconhecer isso. Quem reparte o pão não é Jesus, mas os discípulos. Jesus provoca a solidariedade conclamando para a organização dos marginalizados como meio para se chegar à cidadania de e para todos. “Recolham os pedaços que sobraram, para não se desperdiçar nada.” (Jo 6,12). Economia que evita o desperdício. Quase 1/3 da alimentação produzida é jogada no lixo, enquanto tantos passam fome. As pessoas perceberam a profecia realizada por Jesus nas entranhas dos fatos humanos. Jesus não quis ser bajulado e retirouse, de novo, para uma montanha. Exercer a solidariedade de forma gratuita e libertadora. Não estabelecer vínculos que geram dependência em quem é ajudado e consciência tranquila em quem dá coisas. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. 66 | A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA 2.6.1. De forma clandestina, Jesus e os seus entram em Jerusalém Após uma longa marcha da Galileia a Jerusalém (Lc 9,51-19,27), Jesus e seu movimento estão às portas de Jerusalém. De forma clandestina, não confessando os verdadeiros motivos, Jesus e o seu grupo entram em Jerusalém, narra o Evangelho de Lucas (Lc 19,2940). De alguma forma deve ter acontecido essa entrada de Jesus em Jerusalém, provavelmente não tal como narrado pelo evangelho, que tem também um tom midráxico, ou seja, quer tornar presente e viva uma profecia do passado. Dois discípulos recebem a tarefa de viabilizar a entrada na capital, de forma humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um jumentinho – meio de transporte dos pobres –, mas deviam fazer isso disfarçadamente, de forma “clandestina”. O texto repete o seguinte: “Se alguém lhes perguntar: ‘Por que vocês estão desamarrando o jumentinho?’, digam somente: ‘Porque o Senhor precisa dele’”. A repetição indica a necessidade de se fazer a preparação da entrada na capital de forma clandestina, sutil, sem alarde. Se dissessem a verdade, a entrada em Jerusalém seria proibida pelas forças de repressão. Com os “próprios mantos” prepararam o jumentinho para Jesus montar. Foi com o pouco de cada um/a que a entrada em Jerusalém foi realizada. A alegria era grande no coração dos discípulos e discípulas. “Bendito o que vem como rei...” Viam em Jesus outro modelo de exercer o poder, não mais como dominação, mas como gerenciamento do bem comum. Ao ouvir o anúncio dos discípulos – um novo jeito de exercício do poder –, certo tipo de fariseu se incomoda e tenta sufocar aquele evangelho. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus discípulos se calem”, impunham os que se julgavam salvos e os mais religiosos. “Manda...!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que mandam. Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam. Quem anuncia a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. Gilvander Luís Moreira | 67 por justiça, o que incomoda o status quo opressor. Mas Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que ensina, profetiza: “Se meus discípulos (profetas) se calarem, as pedras gritarão.” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu virou refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas nascerão... O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União é a rocha que o povo usou pra construir...!” 2.6.2. Jesus chuta o pau da barraca do deus capital Os quatro evangelhos da Bíblia13 relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa, invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais sagrado do que os templos da idolatria do capital que muitas vezes têm a cruz de Cristo pendurada em um ponto de destaque. Furioso como todo profeta, ao descobrir que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país + sistema bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: ‘Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio’. Essa ação de Jesus foi o estopim para sua condenação à pena de morte, mas Jesus ressuscitou e vive também em milhões de pessoas que não aceitam nenhuma opressão. 3. E agora, José? E agora, Maria? Enfim, os tempos são outros, mas uma engrenagem de moer vidas está em pleno funcionamento. O capitalismo, como um castelo de areia, está podre. A idolatria do mercado e do capital está levando a humanidade e todas as criaturas da biodiversidade ao abismo. A maior devastação ambiental da história da humanidade cresce em 13 Mt 21,12-13; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46 e Jo 2,13-17. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. 68 | A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA progressão geométrica. As mudanças climáticas estão cada vez mais afetando a vida humana, vegetal e animal. “O tempo está doido”, dizem muitos. Doidos mesmos são os egocêntricos que mandam e desmandam acrisolados no próprio umbigo. Intuo que as profecias das parteiras, de Elias, Miqueias, Amós, Oseias e de Jesus de Nazaré estão vivas, hoje, no ensinamento e na prática do MST, de Dandara – ocupação que se tornou comunidade –, do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, da Via Campesina, de muitos sindicatos que ainda continuam combativos, de milhares de Comunidades Eclesiais de Base, que, mesmo silenciadas e perseguidas, continuam testemunhando um jeito rebelde de encarnar o evangelho do Galileu de Nazaré. Em tantos movimentos populares vejo a profecia viva. No Movimento dos Negros, dos indígenas, dos deficientes, das mulheres... Por isso vejo que a Bíblia respira profecia. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça! REFERÊNCIAS ALONSO SCHOKEL, L; SICRE DIAS, J. L. Profetas II: Ezequiel, doze profetas menores, Daniel, Baruc, Carta de Jeremias. São Paulo: Paulinas, 1991. v.2. 1411p. (Grande Comentário Bíblico). BRETON, A. Vocación y misión: formularia profético. Analecta Bíblica, Roma, n.111, 1987. DAIBER, João. O amor humano de Deus em Oseias. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n.63, p.26-37, 1999. FREIRE, Anízio. Um cidadão do amor e da esperança no reino do norte (Oseias). Estudos Bíblicos, Petrópolis: Vozes, n.79, p.24-44, 2003. LAUREANO, Delze dos Santos. O MST e a Constituição. São Paulo: Expressão Popular, 2007. LIBANIO, J. B. A volta à grande disciplina. São Paulo: Loyola, 1983. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. Gilvander Luís Moreira | 69 MARCONCINI, Benito. Profetti e apocalittici. Roma: Elle di ci, 1995. v.3. MESTERS, Carlos. A profecia durante e depois do cativeiro. São Paulo: Paulus, 1991. Disponível em: <http://www.capuchinhosprsc.org.br/biblia/artigos/A%20 Profecia%20Durante%20e%20Depois%20do%20Cativeiro.pdf>. Acesso em: 22 jan. 2012. PEDRO, Enilda de Paula; NAKANOSE, Shigeyuki. Como ler o livro de Oseias: reconstruir a casa. São Paulo: Paulus, 1995. 74p. (Como ler a Bíblia). PIXLEY, Jorge. Oseias, uma nova proposta de leitura a partir da América Latina. RIBLA, Petrópolis, n.1, p.44-63, 1988. REVISTA DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA LATINO-AMERICANA, Petrópolis: Vozes, n. 35/36, jan./ago. 2000. SAMPAIO, T. M. V. O corpo excluído de sua dignidade – uma proposta de leitura feminista de Oseias 4. RIBLA, Petrópolis, n.15, p.28-36, maio/ago. 1993. SAMPAIO, T. M. V. Oseias: uma outra profecia. RIBLA, Petrópolis, n.35/36, p.153164, jan./ago. 2000. SCHWANTES, Milton. A profecia durante a monarquia. São Paulo: Paulus, 1991. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/35727835/A-Profecia-durante-aMonarquia>. Acesso em: 22 jan. 2012. SCHWANTES, Milton. Era um menino – anotações sobre Oseias 11. RIBLA, Petrópolis, n.14, p.33-43, 1993. SEUBERT, Augusto. Como entender a mensagem dos profetas. São Paulo: Paulinas, 1992. SICRE, José Luís. (Org.). Os profetas. São Paulo: Paulinas, 1998. SICRE, José Luís. A justiça social nos profetas. São Paulo: Paulinas, 1990. SICRE, José Luís. 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E-mail: [email protected] Site: www.gilvander.org.br Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012. | 71 FOUCAULT: “técnicas” e “tecnologias” Guaracy Araújo Os pensadores que emergem na cultura filosófica francesa a partir dos anos sessenta muitas vezes fazem uso de uma metáfora referenciada na técnica. Termos como “máquina” (que comparece regularmente nos trabalhos de Gilles Deleuze) e “técnica” ou “tecnologia” (tal como usados por Michel Foucault) usualmente designarão, para tais autores, processos em relação aos quais não se supõem orientações das quais os agentes estejam plenamente conscientes ou uma tendência histórica inevitável (o que faria parte das orientações fundamentais da cultura iluminista ou do pensamento hegeliano, por exemplo). Igualmente pretende-se evitar uma orientação teleológica determinada por perspectivas substancializadas da realidade, das quais um exemplo seria a noção de luta de classes do marxismo. Tais termos são antes vinculados a uma visão da história mais aberta ao reconhecimento da contingência e das interações estratégicas de certos grupos em determinados períodos históricos. É este o caso para Foucault ao tematizar “técnicas” ou “tecnologias”. Apartando-se de modelos filosóficos baseados numa racionalidade centrada no sujeito, Foucault assumirá tais noções enquanto modelos que dariam inteligibilidade estratégica a certas práticas sociais. Inicialmente estas serão implicadas em uma discussão acerca das relações de poder na Modernidade. Tais relações são pensadas por Foucault nos termos de uma analítica do poder. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012. 72 | FOUCAULT As principais orientações desta analítica são as seguintes: A) Em primeiro lugar, propõe-se uma análise do poder a partir de suas extremidades, de suas “capilaridades”, o que implica a recusa da ideia de que o poder funcionaria em um foco central a partir do qual se disseminaria de forma homogênea em todo o corpo de uma sociedade dada. O que se pretende aqui é um deslocamento da questão acerca do fundamento do poder, em prol de uma visão que pretende ressaltar formas de exercício localizadas deste, e que não se confinam estritamente à instância política. B) Outra “precaução metodológica” adotada por Foucault ressalta o estabelecimento de relações de poder específicas, irredutíveis, que surgem em contextos específicos. Ao invés de supor que determinados grupos ou agentes empreenderam grandes estratégias para a tomada do poder (como se pudessem ver para além da história), Foucault pergunta como determinadas estratégias, inicialmente locais, constituíram relações de poder e de sujeição de certos grupos a outros. Trata-se assim de assumir o ponto de vista de uma multiplicidade de formas e focos de relação, e não de reduzi-las a priori a um foco central e homogêneo. C) Foucault proporá uma “visão relacional do poder”, uma visão nominalista e, sobretudo, estratégica do poder. Este deveria ser analisado em termos de estratégias que, formuladas em níveis locais, foram (por motivos inteligíveis, embora não intencionais) aplicadas a domínios cada vez mais vastos (ou que regrediram, mudaram seu campo de aplicação etc). Assim, o foco da análise passa de uma busca na soberania do princípio de uma dominação política para a pergunta sobre como dominações locais lograram constituir certos campos estratégicos de relações de poder – inclusive, aquele denominado soberania. Relações que têm sua base em relações entre forças (claramente, trata-se de uma dívida de Foucault para com Nietzsche): supõe-se Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012. Guaracy Araújo | 73 aqui que certas relações entre forças – que não se confinam à esfera política, podendo ser apontadas em qualquer contexto no qual ocorram relações entre os seres humanos – tornam-se típicas e codificam-se enquanto estratégias costumeiras que mantêm processos contínuos de sujeição. Assim, as relações de poder não são exteriores aos dominantes e dominados: ao contrário, Foucault acredita que tais processos moldam, produzem individualidades. O poder produz gestos, comportamentos, e mesmo os corpos daqueles que participam dessas relações1. D) A analítica do poder assume também uma imanência do poder ao saber, um condicionamento recíproco entre estas duas instâncias. Podemos introduzir este tópico lembrando que o uso feito por Foucault das prescrições de método da analítica do poder quase sempre se dará em estudos baseados em peças discursivas, em formas de discurso que o autor pretende desencavar (falamos aqui dos “saberes sujeitados”, objeto da genealogia). O saber pode ser visto na obra de Foucault como condição de acesso para a análise das relações de poder. E) Uma outra orientação da analítica do poder2 é a proposta de que este sempre se exerce com certo elemento de resistência. O caráter relacional do poder aponta para a dominação de certos sujeitos ou grupos sobre outros, o que é denominável simplesmente como “sujeição”. Ora, tal dominação nunca é absoluta, ela sempre suscita a formação de contrapoderes, de focos de resistência. Uma metáfora usada por Foucault a este respeito é a da fricção: dominadores e dominados estão sempre em uma relação de tensão latente ou explícita. A resistência, ao formar contrapoderes, torna as relações de dominação permanentemente instáveis e, portanto, remodeladas no decorrer do tempo, e até mesmo revertidas. 1 Este é um dos argumentos centrais de História da sexualidade I: a vontade de saber. Cf., na edição brasileira desta obra, as p. 19 a 49. 2 Este aspecto encontra-se exposto de forma mais clara em História da sexualidade I: a vontade de saber, p.91 da edição brasileira. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012. 74 | FOUCAULT F) Enfim, a analítica do poder assume um “direcionamento ascendente da análise. Ou seja, recusa para o estudo das relações de poder uma orientação “estatista”, na qual o Estado implementaria e daria suporte ao conjunto destas no interior de uma sociedade. Recusa que orienta a analítica no rumo de “mecanismos infinitesimais”, de modalidades particulares de relação de poder. É a estas que Foucault nomeará com os termos “técnica” ou “tecnologia”, indicando formas específicas a partir das quais o poder é efetivamente exercido. Foucault analisará as técnicas ou tecnologias de poder indicando que estas usualmente surgem de forma relativamente autônoma e à margem dos grandes aparelhos de Estado, sendo no entanto muitas vezes repertoriadas, transformadas, “colonizadas” etc. Dois exemplos dados por Foucault neste momento de sua trajetória (que corresponde à primeira metade da década de setenta do século vinte) indicam as principais linhas de ação das técnicas ou tecnologias de poder. São estes o “panoptismo” e seu papel na constituição do que é chamado pelo autor de “sociedade disciplinar”, e a medicina social e suas implicações no que é chamado pelo autor de “biopoder”. O Panóptico3 é um projeto de prisão formulado pelo jurista e filósofo inglês Jeremy Bentham no início do século XIX. O Panóptico organiza em um determinado espaço um esquema que objetiva 3 Alguns momentos da descrição que Foucault faz do Panóptico: “(...) na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito de contraluz, pode-se perceber da torre (...) as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e sozinho. Cf. Vigiar e punir, p.165-166 da edição brasileira. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012. Guaracy Araújo | 75 e disciplina os indivíduos da forma mais anônima possível – o que importa é a vigilância permanente dos que estão nas celas. O exercício do poder é ininterrupto e impessoal, mas acarreta uma clara sujeição dos aprisionados. Além disso, o olhar panóptico observa os indivíduos permanentemente, produzindo dados passíveis de estudo, todo um saber indissociável do exercício do poder dentro do Panóptico, e que permite experimentações com o fim de ordenar, disciplinar, normalizar. No Panóptico o poder exerce-se produzindo verdades sobre as condutas individuais, neste “laboratório do poder”, no qual, “graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça”4. O Panóptico é uma tecnologia de poder que obedece a uma orientação determinada: a produção de sujeitos disciplinados. Tal orientação, na medida em que poderia ser observada em outras tecnologias de poder no mesmo contexto histórico (do final do século XVIII ao século XX) indiciaria um modelo social maior, chamado por Foucault de “sociedade disciplinar”. Outra tecnologia de poder analisada pelo autor durante a primeira metade dos anos setenta (e que ocorreria no mesmo contexto histórico das “sociedades disciplinares”) diz agora respeito não ao tratamento disciplinar conferido aos indivíduos, mas sim ao modo como as populações, a partir do final do século XVIII, passam a ser percebidas como fator de riqueza dos Estados Modernos. Foucault afirmará que tal percepção vincula-se a numerosas tecnologias de poder. Um de seus focos é a Medicina Social enquanto gestão de aspectos vitais da população (natalidade, morbidade, expectativa de vida, resistência a doenças, riscos de vida etc). A medicalização (ou seja, a adoção de mecanismos públicos de Medicina Social, a criação de leis que obrigam as famílias a cuidar da saúde de seus membros, a vacinação coletiva etc) é uma tecnologia de poder na medida em que realiza tal orientação (gerir politicamente a vida das populações), chamada por Foucault pelo termo “biopoder”5. 4 Cf. Vigiar e punir, p.169 da edição brasileira. 5 Cf., na coletânea de artigos Microfísica do poder, p. 79 a 98 da edição brasileira. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012. 76 | FOUCAULT A partir do final da década de setenta, Foucault deslocará progressivamente suas análises do poder para análises centradas na noção de governo. Considerando que o estudo centrado no poder gerava numerosos equívocos em seus leitores (em particular, a percepção segundo a qual as relações de poder seriam irreversíveis e os sujeitos totalmente assujeitados a suas orientações), Foucault adotará as noções de governo e conduta, as quais suscitarão por sua vez remanejamentos, fazendo emergir tecnologias cujo foco é conduzir ou governar condutas. Duas tecnologias de governo serão particularmente enfatizadas por Foucault: a confissão, no âmbito do poder pastoral, e a polícia, no que tange aos Estados Modernos. O poder pastoral consiste no modo de direcionar condutas que emerge nos primeiros séculos da Igreja. Ele supõe a existência de um pastor (um líder) e um rebanho (os conduzidos). Trata-se de uma forma de poder/governo na medida em que o pastor conduz o rebanho em sua vida cotidiana fazendo uso de mecanismos específicos. O mecanismo ou tecnologia mais relevante neste sentido é a confissão, a partir da qual a alma de cada ovelha do rebanho poderá ser governada. A confissão (e os mecanismos de obediência que esta implica) permite depreender verdades sobre a conduta de cada membro do rebanho, criando condições para um combate em torno de sua alma e para sua consequente salvação6. Foucault acredita que o poder pastoral teria alcançado sua máxima amplitude no decorrer da Idade Média, sendo eclipsado no mundo moderno. No entanto, outra tecnologia de governo emergirá a partir do século XVII: trata-se da polícia. Esta assume nesse contexto histórico um sentido bastante diferente daquele com o qual estamos acostumados. A partir do século XVII teriam surgido, no âmbito de teorias e práticas sociais próprias à articulação entre os Estados Modernos e as sociedades civis, relações de governo que manteriam em parte o objetivo do poder pastoral (conduzir à salvação), mas cujo quadro seria essencialmente secular e orientado para o bem-estar vital e material das sociedades. Estas seriam efetivadas por instituições 6 Cf., no curso Segurança, território, população, p. 166 a 252 da edição brasileira. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012. Guaracy Araújo | 77 públicas de polícia, encarregadas de zelar por todos os aspectos que poderiam levar a esse bem-estar, e rigorosamente falando por todos os aspectos da vida social: da circulação de mercadorias e pessoas às trocas de bens, da saúde pública à instrução, da moralidade à pobreza. A polícia, tal como a conhecemos hoje, teria surgido apenas no século XX, a partir da desarticulação das funções assinaladas7. Ao tematizar o governo, Foucault progressivamente adotará outro sentido para este termo, pois a noção de governo deixa-se ler em dois sentidos: governo sobre os outros, governo sobre si mesmo. É este segundo sentido que será mais diretamente abordado por Foucault a partir do início dos anos oitenta. E assim surgirão novas técnicas ou tecnologias, dessa vez associadas ao termo “si”: técnicas, tecnologias de si – as quais se referem aos modos como sujeitos dispõem, em contextos históricos dados, de condições para – diante da referência vinda pelas formas de poder e governo próprias a cada época – governarem a si mesmos. Dois exemplos nesse sentido são dados pelo uso da meditação e dos cadernos de memória (hypomnémata) por parte das elites ilustradas gregas e romanas nos períodos clássico e helenístico (entre os séculos V. a.C. e II d.C.). A prática constante da meditação, da discussão consigo mesmo, bem como a anotação de fatos ou frases particularmente instrutivas presenciadas durante o dia seriam formas de fixar condutas positivas que habilitariam seus praticantes a uma relação mais livre e pessoal consigo mesmos e com os outros. O uso por parte de Foucault de noções como técnica e tecnologia vem no bojo de uma tentativa de avaliar a relação entre campos de saber e modalidades de poder, que incluirá posteriormente o elemento das subjetivações mais ou menos alinhadas a tais saberes e poderes. Segundo Charles Taylor, o relato de Foucault acerca das implicações entre saberes e poderes é mais preciso e operatório do que aquele proposto pela Escola de Frankfurt. Enquanto os teóricos frankfurtianos atribuiriam um papel mais substancial aos conceitos 7 Cf., no curso Segurança, território, população, p. 419 a 488 da edição brasileira. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012. 78 | FOUCAULT que formulam, Foucault assumiria conceitos mais operatórios, o que lhe daria uma margem de manobra maior em suas formulações8. Sem entrar no mérito da análise de Taylor, gostaria de assinalar a oposição entre as noções de técnica e tecnologia em Foucault diante da teorização frankfurtiana acerca da razão instrumental. A razão instrumental significaria o uso da racionalidade enquanto centrada apenas nos meios de obtenção de finalidades que não são avaliadas em termos estritamente racionais; sua operação seria pouco diferenciada em se considerando o mundo natural e as esferas da vida social. O amplo predomínio de tal modelo de racionalidade no mundo contemporâneo ocasionaria uma sociedade na qual as possibilidades da liberdade estariam cada vez mais soterradas, ocasionando a perspectiva pessimista própria aos teóricos frankfurtianos. Enquanto isso, o uso por parte de Foucault das noções ligadas aos termos “técnica” e “tecnologia” também aponta para esquemas de racionalização imanentes à vida social, mas assinala (diferentemente da razão instrumental frankfurtiana) nuances no que diz respeito às finalidades e orientações implementadas, de acordo com a tecnologia/técnica em questão – o que indica a recusa a um grande modelo de racionalidade, em prol de esquemas específicos que seguiriam orientações particulares. A linha de análise de Foucault impede ainda uma assimilação dos processos racionais aplicados à natureza aos esquemas de racionalização próprios ao campo social. Enfim, ao abrir espaço em seus últimos trabalhos para as técnicas/ tecnologias de si, Foucault avalia os espaços de liberdade abertos em contextos históricos distintos, favorecendo uma reflexão sobre as possibilidades da liberdade na contemporaneidade e impedindo assim uma perspectiva abertamente pessimista e negativa sobre o mundo que nos cerca. 8 Em Foucault on Freedon and Truth. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012. Guaracy Araújo | 79 REFERÊNCIAS FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. Tradução Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004. FOUCAULT, M. Ditos e escritos. Tradução Vera Lúcia Avellar Ribeiro et al. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. v.1/5. FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução Maria A. Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guillhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1999. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Graal, 1979. FOUCAULT, M. Segurança, território, população. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1997. TAYLOR, C. Foucault on Freedon and Truth. In: HOY, David Cousin (Org.). A critical reader. Oxford: Basil Blackwell, 1986. Guaracy Araújo. Professor de Filosofia na PUC Minas e doutorando em Filosofia na UFRJ. E-mail: [email protected] Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012. | 81 O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL: o efeito restaurador da fé Carlos Ribeiro Natali Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R 1. Introdução Dentre as diversas preocupações cotidianas da vida humana, a morte ocupa lugar central. Ela parece quebrar a linha ascendente do desenvolvimento da pessoa. Entretanto, o vasto noticiário sobre a morte acabou banalizando-a. Tornou-se tão comum ver pessoas morrerem todos os dias que poucos se dão ao trabalho de refletir sobre o significado da morte. Seja como for, uma coisa é certa: nascemos e morreremos um dia. Em relação ao futuro, a morte é a possibilidade mais certa. Prever o futuro ninguém consegue, mas a morte se revela um dado do futuro de todos os seres humanos; mesmo que ele chegue a viver 500 anos, morrerá um dia. A certeza da morte levanta sérios questionamentos. Diante dela, as pessoas se perguntam: será possível evitá-la? O que realmente acontece conosco no momento da morte? Existe uma esperança de vida após a morte? Quanto aos que ficam, como podem amenizar o processo de dor? O luto, processo natural em toda perda, pode ocorrer de forma saudável? Quem pode nos ajudar a aliviar a dor? Em resposta a essas e a outras questões, surgem muitas tentativas de respostas. As ciências, sobretudo as médicas, travam uma luta constante contra a morte, criando cada vez mais recursos e técnicas que se propõem a postergá-la, dando a impressão de que a morte é, na verdade, uma doença para qual ainda não se descobriu a cura. Cientistas trabalham para prolongar indefinidamente a Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. 82 | O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL existência, prevendo que no futuro o ser humano poderá viver 200, 300 anos. As inúmeras religiões e seitas buscam, cada uma à sua maneira, explicar e dar sentido à morte, bem como oferecer consolo aos que necessitam. As diversas correntes da psicologia explicam o processo do luto e oferecem distintas fontes de amenização da dor. Este artigo pretende apresentar, mesmo que em breves reflexões, a problemática da morte e suas implicações no atendimento espiritual. Também se deseja oferecer aos leitores a possibilidade de entendimento da morte e, ao mesmo tempo, apresentar uma certeza de fé e esperança na ação divina. Estudar tal tema se justifica pelo grande número de fiéis que procuram os atendimentos paroquiais e conversas informais com pessoas esclarecidas na fé cristã, no anseio de respostas acerca de como enfrentar a perda de pessoas próximas. Talvez a maior dificuldade seja acalentar por meio de palavras àqueles que se encontram em pleno luto. A melhor forma de ajudar se encontra na escuta sincera e nas palavras reconfortantes com bases na fé. O artigo, num primeiro momento, quer explicitar o papel decisivo das reflexões psicológicas para se entender o luto e sua importância no processo de perda; em seguida busca apresentar a visão católico-cristã da morte e sua dimensão vital para o homem de fé e, finalmente, apontar caminhos para a direção espiritual e o aconselhamento pastoral que surgem como importantes ferramentas para a compreensão e a aceitação da morte em nossos dias. No final desse caminho, apresenta a fé cristã como resposta significativa para as dores do luto e o trabalho pastoral como fator decisivo na promoção de uma vida mais digna e significativa para todos. 2. O luto saudável e o luto patológico “A última coisa que se diz sobre alguém que nasce é que vai morrer, enquanto esta é a coisa mais certa da vida. Não tem outro jeito. Talvez mais que uma ‘vida mortal’, a nossa é uma ‘morte vital’, um viver morrendo”. (Santo Agostinho). A morte se tornou um grande tabu: poucas pessoas falam e escrevem sobre ela. O processo da morte de um ente querido raramente é acompanhado por seus familiares, que terceirizam seu Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. Carlos Ribeiro Natali e Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R | 83 papel, entregando seus próximos a hospitais e agências funerárias. Só se menciona a morte em vista de sua eliminação: os avanços médicos prolongam cada vez mais a vida; os produtos de beleza tentam promover o impossível, afinal, a juventude não pode ser eterna. Consequentemente, é preciso disfarçar o processo de envelhecimento. Consultórios de psicologia ficam lotados de pacientes em busca da aceitação da passagem normal do tempo – todos querem permanecer como se estivessem na “flor da idade”. O homem sempre se preocupou em pensar e desvendar os segredos da morte. O que realmente acontece com o ser humano no momento da morte sempre foi motivo de muita hesitação. Por muito tempo a morte foi vista como parte natural da vida, ou seja, algo aceito como inevitável. Por conseguinte, preparando-se para ela, o moribundo buscava acertar todas as suas pendências em vida, as que sobravam permaneciam no testamento como obrigação para seus familiares. No momento da morte, tudo já estava preparado: o velório, o rito fúnebre, o local do “repouso eterno”, a divisão dos bens. Tudo era devidamente cuidado durante a própria vida. As pessoas que continuavam vivas faziam questão de vivenciar e, de certa forma celebrar, a morte dos parentes falecidos. Eram comuns práticas como o velório dentro da própria casa ou noutro local de grande significado para o morto ou para a família. Eram comuns, também, as fotografias fúnebres (o momento da morte era trazido para dentro do convívio familiar), a distribuição de objetos pessoais, a “comemoração” de aniversários como sétimo dia, meses e anos de falecimento, a preparação de comidas e bebidas do gosto dos falecidos – práticas que mantinham viva a memória da pessoa querida. Hoje constatamos uma despreparação para a morte; ninguém quer morrer e, por conseguinte, não há preocupação com esse momento. As mortes de familiares e entes queridos acontecem em instituições de saúde. Não é possível presenciar nenhum, ou quase nenhum, velório dentro de casa. As agências funerárias se tornaram as únicas responsáveis pela organização da despedida e também dos ritos fúnebres, que devem ser realizados de acordo com a crença descrita previamente em formulários ou escolhida pelos parentes. Poucas pessoas se preocupam em lembrar as datas como o aniversário Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. 84 | O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL natalício ou o dia do falecimento dos entes que se foram. O que talvez demonstre a distância que temos da morte nos dias atuais são as próprias fotografias. Antes se fazia questão de registrar o momento da morte, hoje o que se faz em unanimidade é levar uma imagem da pessoa viva para as placas do cemitério. Isso talvez seja o maior reflexo da eterna busca pela vida e a negação da morte como algo natural. O momento atual traz sérias indagações: se não nos preparamos para a hora da morte, como podemos enfrentá-la de forma natural? A dor, comum a toda perda, pode ser aliviada com um processo saudável de vivenciar o luto? Quais seriam as consequências da perda não vivenciada? São problemas que podem ser bem entendidos a partir das reflexões estabelecidas pela psicologia. Para prosseguirmos nossa discussão, vamos tomar por base a seguinte consideração: Somos indivíduos reprimidos pelo proibido e pelo impossível, que procuram se adaptar a seus relacionamentos extremamente imperfeitos. Vivemos de perder e abandonar, e de desistir. E mais cedo ou mais tarde, com maior ou menor sofrimento, todos nós compreendemos que a perda é, sem dúvida, “uma condição permanente da vida humana” (VIORST, 2003, p.234). As perdas marcam a existência humana. Elas se manifestam de diversos modos e em situações variadas: perdemos motivação profissional, o convívio com pessoas que nos circundam, amores, amigos, sonhos, dinheiro, fama, reconhecimento e muitas outras coisas. Apesar de toda perda ocasionar dores profundas, nenhuma é mais dura do que a morte. Inevitável para todos e, ao mesmo tempo, a mais difícil de superar. Segundo a psicóloga Maria Helena Bromberg (1999), nossos costumes ocidentais nos educam para entender a morte como um grande castigo, afinal, nossa cultura é a do bem-estar prolongado e nunca nos prepara para perder; para nossos padrões de vida o fim se revela absurdo, por isso o processo natural do luto não acontece. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. Carlos Ribeiro Natali e Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R | 85 Segundo a psicologia, o luto obedece alguns passos que precisam ser percorridos pela pessoa até que possa ser superado por completo, gerando a aceitação confortável e não o esquecimento diante da perda. A psicologia afirma que as fases do luto se dividem de três a cinco – aqui utilizaremos cinco – e se organizam da seguinte forma: Entorpecimento, Protesto, Negociação, Desespero ou Depressão e Restituição ou Aprovação. Existe, de certa forma, um consenso, ao evidenciar que “o luto é doloroso e difícil, já que, simultaneamente, é necessário desligar-se do objeto perdido e manter seus traços internalizados.” (WAHBA, 2005, p.179). A primeira fase do processo de elaboração do luto é a que chamamos de Entorpecimento ou Choque Inicial, caracterizada pela incredulidade. Quem passa pela perda de alguém próximo ou, em alguns casos, de pessoas que apenas conhece ou admira, enfrenta um período de tempo na ânsia de negar o acontecido. A frase mais ouvida nessa fase é: “você só pode estar brincando!”. Dura cerca de algumas horas após a notícia e, em casos mais graves, até dias. A segunda fase é conhecida como Protesto. Nesse período, a pessoa enlutada oscila entre momentos distintos, ora sente raiva e rancor pela perda da pessoa próxima, ora sente culpa, que chega a ser excessiva e sem fundamento. Uma fase marcada por choros e agitação constantes, que chega a durar de dias a meses, dependendo do caso. A terceira fase, a Negociação, se mostra característica e de fácil reconhecimento. É marcada pela tentativa de prorrogação do inevitável, ou seja, o encontro com o defunto, tudo é motivo para adiar tal encontro: a limpeza da casa, a visita a outras pessoas, a falta de interesse pelo caso e outras atividades que devem ser feitas antes da visita ao defunto. Dura o tempo que o enlutado conseguir delongar. A quarta denomina-se Desespero ou Depressão. Fase difícil de ser superada, demandando requisitos como apoio familiar e de amigos e, sobretudo, força de vontade própria. Como todo processo deprimido, predomina nessa fase o sentimento de vazio, a falta de interesse, a apatia com diversas pessoas e situações e o afastamento típico. Dura meses ou até anos, em casos extremos. A quinta e última fase do luto é a Restituição ou Aprovação; o tempo de duração é indeterminado Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. 86 | O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL – depende da própria pessoa –, é o consentimento na morte, sua aceitação. O luto começa a ser superado e a perda apresenta menos dor. A pessoa não esquece o ente querido, no entanto, ele está presente na memória e não gera mais sofrimento, a não ser pequenos lapsos de dor em datas marcantes ou de celebração. O Luto Saudável, ou o considerado normal, ocorre quando a pessoa enlutada consegue entender a morte como algo natural e, portanto, passa pelas etapas do luto de forma mais sincera e consciente de que precisa chegar ao final. A determinação do enlutado não pode ser confundida com o esquecimento do morto, ao contrário, ele está presente em sua lembrança, onde é seu lugar, e a sua falta física pode ser menos dolorosa. O que realmente acontece com o enlutado saudável é que ele possui força para passar pela dor. Força que foi cultivada durante a vida bem resolvida e atenta à sua naturalidade. É claro que bons profissionais podem oferecer aos enlutados opções de saída; no entanto, como em toda terapia, o protagonista é sempre o paciente e, no caso do luto, isso não é diferente. Superar as perdas se mostra uma questão de esforço pessoal. Ao contrário, podem ocorrer verdadeiras prisões em etapas distintas do processo de elaboração do luto ou, até mesmo, nenhuma saída pela falta de estrutura do enlutado. A este doloroso processo a psicologia denomina Luto Patológico ou doentio. “O luto patológico mostraria a permanência do vínculo com a pessoa que morreu, ocasionando negação, distorção e adiamento do luto.” (WAHBA, 2005, p.180). Esse tipo de luto ocasiona diversos problemas para a pessoa enlutada, além de distúrbios psíquicos, como a falta de atenção e a perda de memória, problemas físicos, falta de sono, falta de apetite, dores estomacais, enxaquecas e outras. Além desses, problemas sociais, como a desmotivação para estudar, trabalhar e até interagir com outras pessoas. “O luto não realizado pode se manifestar não só na tristeza padrão, mas em doenças psiquiátricas.” (BROMBERG, 1999, p.9). O tratamento em clínicas de psicologia e, sobretudo, com profissionais especializados no luto ainda é o melhor remédio para a superação da perda de um ente querido. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. Carlos Ribeiro Natali e Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R | 87 Quanto ao tempo de duração da elaboração do luto, seja saudável ou patológico, segundo as reflexões da psicologia, não se determina. Os teóricos do luto e também os psicólogos apontam o tempo de um ano, mais ou menos, para a absorção da perda. O primeiro ano também é o período ideal para o acompanhamento junto aos terapeutas. Tratar o luto depois do primeiro ano, segundo Bromberg (1999), torna-se mais complicado, já que as perdas estão mais cristalizadas, o que compromete a recuperação plena, podendo ser mascarada ou até adiada pelo paciente. É inegável a grande contribuição da psicologia para a superação das perdas, no entanto a morte continua sendo uma grande barreira na vida das pessoas, cujos aspectos não são totalmente analisáveis pela psicologia. Em meio a tamanha complexidade, faz-se necessária a busca de alternativas para a vivência saudável do luto. E a fé cristã se apresenta como ferramenta para a aceitação das perdas. Não se trata de uma instrumentalizar a religião e sim de compreender a fé como requisito confortante e capaz de oferecer respostas para nossas maiores inquietações, cujo cerne se encontra na pergunta: o que acontece depois da morte física? É o fim de tudo? É realmente possível que a morte, símbolo da destruição, se torne a fonte de uma nova vida? A vida continua noutra dimensão? A morte faz mesmo a vida desembocar na fonte da verdadeira vida? Há, pois, uma vida que começa com a morte? 3. A vida que se obtém pela morte “Ó morte, onde está tua vitória! Cristo ressurgiu, honra e glória! Na dor nós temos alívio. Cristo ressuscitou! Conosco fez seu convívio. Cristo ressuscitou!” (Hinário Litúrgico da CNBB). O ser humano se encontra no centro da reflexão teológica proposta pela Igreja, que se ocupa de forma consistente das diversas realidades que cercam a vida humana. A morte, intrigante e assustadora para muitos seres humanos, desempenha um papel Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. 88 | O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL central dentro do anúncio de Jesus Cristo que faz a Igreja. O grande diferencial em relação a muitas outras opiniões é que, para os cristãos, ela não representa o fim, mas o verdadeiro começo para uma vida eterna junto ao coração de Deus. Essa esperança se pauta na fé e, com certeza, ajuda a amenizar a dor dos que perdem seus parentes e amigos. A opinião da Igreja sobre a morte sofre importantes objeções feitas pelos céticos e grupos arreligiosos: como a Igreja pode se pronunciar sobre coisas que ainda estão por vir? Será mesmo possível viver a vida inteira em prol de algo que nem sequer sabemos ser verdade? Pois bem, as respostas a tais objeções estão justamente na fé que os cristãos professam. Fé que precisa ser vivida e não apenas proclamada em discursos. A própria vida se fundamente em certezas de fé. Para os cristãos, a vida humana se enraíza em Deus e se caracteriza por uma abertura essencial a ele. Abertura que marca a história da humanidade. A História é vida vivida e refletida. Portanto é vendo e vivendo a vida que podemos descobrir o futuro da vida. (...) porque no homem e no mundo não há somente ser, mas também poder ser, possibilidades e abertura para um mais. Por isso as afirmações de futuro que fazemos não querem outra coisa do que explicitar, desentranhar e patentear o que está implícito, latente e dentro das possibilidades do homem (BOFF, 1997, p.16-17). A Igreja não nega a morte, mas a enquadra na sua perspectiva cristã, cuja base é a Sagrada Escritura. A dor e o sofrimento caudados pela separação de entes queridos afetam também os cristãos. O que muda é a forma como enxergam e vivenciam a morte. A morte é sim o fim da vida. Mas fim entendido como meta alcançada, plenitude almejada e lugar do verdadeiro nascimento. A união interrompida pelo desenlace não faz mais que preludiar uma comunhão mais íntima e mais total (BOFF, 1997, p.35). É uma nova significação do sentido da morte, ela é, sim, o fim da vida biológica, mas ao mesmo tempo representa um pórtico para a vida eterna, promessa de Deus para seus filhos, imersos no Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. Carlos Ribeiro Natali e Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R | 89 mistério pascal de Cristo, portanto feito de morte e ressurreição. Para os cristãos, que compartilham a vitória de Cristo desde esta vida, a morte foi vencida e já não apresenta nenhum perigo para aqueles que creem e vivem o Mistério Pascal de Cristo – Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição. Segundo a fé cristã, no momento da encarnação de Jesus, o Emanuel – Deus Conosco –, a salvação entra no mundo e todos que acreditam nele e seguem seus ensinamentos caminham rumo à vida eterna, Reino Divino que há de vir, mas que precisa ser construído já aqui na terra. Durante sua vida pública, Jesus revela sua divindade e mostra por meio de suas ações a força de Deus que está em seu viver. Realiza diversos milagres e sinais no meio do povo e, com isso, acaba gerando um mal-estar com as autoridades políticas e religiosas, devido à libertação que pretende realizar por meio do amor – seu único e mais valoroso mandamento. Jesus acaba sendo condenado à morte, e morte de cruz; a esperança de libertação parecia estar perdida. A morte toma Jesus nos braços e o leva consigo, no entanto, Deus-Pai, por meio do Espírito Santo, o liberta das garras da morte e o ressuscita. Com a nova vida de Seu Filho, a morte já não existe, pois Jesus comunica, através do Espírito Santo, sua vitória a todos os cristãos que, desde essa vida, entram no seu mistério, de cuja plenitude participarão por meio da morte. Segundo as reflexões de Renold Blanck (2000), teólogo da contemporaneidade, Jesus Cristo, sendo Deus, assumiu as mazelas humanas, menos o pecado, para que, morrendo, vencesse a morte de maneira definitiva. Cristo experimentou a morte, com toda a sua força, mas ela não chegou a devorá-lo, assim como fazia com os demais homens. Nele estava presente a divindade e a morte acabou sendo destruída. Por meio do mistério pascal de Cristo foram derrubadas todas as barreiras que dificultavam a aproximação entre Deus criador e os homens, criaturas passíveis de erros e pecados, portanto necessitadas da ação de Deus em suas vidas. A natureza do ser humano foi elevada pela encarnação, o pecado foi derrubado pela cruz, a morte vencida pela ressurreição de Jesus. Portanto, a morte não é mais uma muralha, mas porta que conduz à vida eterna. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. 90 | O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL A ressurreição de Jesus representa a verdadeira libertação para os cristãos. Todas as pessoas, a partir do Evento Cristo (encarnação, morte e ressurreição), se tornam herdeiras da vida eterna, por meio do batismo. Ao mergulhar nas águas batismais, o ser humano morre para a vida de pecado e, ao ressurgir, ressuscita para a vida nova oferecida por Deus. A partir desse momento único e especial, a morte biológica não mais representa fim, mas passagem, páscoa dos fiéis. Para Blanck (2000), a morte é mistagoga, ensina por meio dos mistérios celebrados, mostrando que Jesus Cristo é o único remédio eficaz para a morte, afinal, Ele é a própria vida. A morte se apresenta como a situação por excelência privilegiada da vida, na qual o homem irrompe numa inteira maturação espiritual, onde a inteligência, a vontade, a sensibilidade e a liberdade podem, pela primeira vez, ser exercidas em sua plena espontaneidade, sem os condicionamentos exteriores e as limitações inerentes à nossa situação no mundo (BOFF, 1997, p.46). A libertação da morte é garantia para todos, no entanto, se apresenta como uma via de mão dupla. Por um lado, o amor infinito de Deus que criou todas as coisas e ofereceu seu próprio Filho para a salvação de todos, por outro a liberdade que implica responsabilidade do homem que, mesmo em sua finitude, é capaz de assumir em vida os ensinamentos de Cristo e ganhar a vida eterna junto a Deus e aos demais justos. Nesse ponto é possível afirmar que, mesmo com o Mistério Pascal de Cristo, o homem pode decidir entre a vida ou a condenação eterna, outra prova de que Deus ama e respeita as decisões de seus filhos. A tradição cristã nos aponta para a existência de três realidades distintas que se apresentam ao homem no momento de sua morte. É importante ressaltar que “toda a vida humana é um tender, um caminhar e educar-se para isso” (BOFF, 1997, p.55). São elas: o céu, o purgatório e o inferno. O céu muito se caracteriza como uma realidade pautada no amor e na comunhão definitiva com Deus – é a vida eterna propriamente dita. No desenrolar de sua existência, o homem faz constantes escolhas que o levam a construir sua realidade definitiva, que será eternizada na morte. Quando vive segundo os ensinamentos de Jesus, fazendo a vontade do Pai, pela confiança na Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. Carlos Ribeiro Natali e Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R | 91 ação do Espírito Santo, já começa a construir na terra o céu, onde viverá pela eternidade. No céu entrará definitivamente na convivência com Deus, o que representa a realização absoluta do seu próprio ser. O purgatório é uma oportunidade de aprimoramento, maturação e crescimento do homem antes de se encontrar definitivamente com Deus. Mesmo tendo a oportunidade de resolver seus impasses existenciais na vida terrena, a condição falha do homem muitas vezes o impede de se tornar capaz da convivência divina, portanto, é preciso esta realidade purgativa para prepará-lo de forma íntegra para se achegar ao coração amoroso de Deus. O inferno, assim como o céu, está intimamente ligado às nossas ações cotidianas. Se em vida não optamos pelos ensinamentos de Jesus, ou seja, viver em comunhão com Ele, no momento de nossa morte biológica o convívio com Deus também não é um desejo. O inferno é a eterna frustração humana, já que o homem viverá eternamente sem a convivência divina. É uma realidade em que, mesmo desejando, não será possível tocar no Amor, nela o homem está endurecido no mal. É um viver completamente sem Deus, fonte de toda vida. Sem dúvida nenhuma é uma segunda morte. A Igreja não afirma, no entanto, que alguém se encontra na situação de inferno. Ao contrário, ela reza para que todos se salvem. Embora admita a possibilidade do inferno, lutará até o fim para que tal possibilidade não se realize para ninguém. O inferno permanece, pois, um mistério que não pode ser pensado como criação de Deus, que é amor e misericórdia, mas sim como resposta do homem a Deus, que se fecha em seu egoísmo. Alguém optou, com toda sua liberdade, contra Deus? Não sabemos e rezamos para que isso não aconteça com ninguém. Diante da morte, o cristão deve oferecer ao mundo uma nova esperança, sentimento que brota de seu coração e que é muito bem explicitado por Alselm Grün: Os cristãos devem contribuir para que este mundo se torne mais humano. Eles são os representantes da esperança de que ele seja cada vez mais imbuído do Espírito de Jesus. (...) Na atualidade, percebemos que não é possível que a esperança cristã se trate nem de uma esperança puramente intramundana, nem de um menosprezo a esta terra. A esperança cristã sempre é, concomitantemente: esperança para todos, neste mundo, e esperança pela comunhão com Deus que nos céu nos espera (GRÜN, 2010, p.91-92). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. 92 | O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL Mesmo diante das verdades apresentadas pela fé, os cristãos não estão isentos da dor e da tristeza comuns à perda de entes queridos. Sofrem o desespero inicial, a saudade constante e as diversas complicações que são provenientes da separação daqueles que amam. Por tal razão, devem estar cada vez mais unidos a Cristo e aos seus ensinamentos, para que o conforto e a certeza de recuperação que brotam de seu coração, local da manifestação do Espírito Santo, possam ser maiores do que a dor que sentem. Para isso tomam das Sagradas Escrituras a Palavra de Deus revelada àqueles que primeiro acreditaram na libertação promovida por Jesus, seus apóstolos e discípulos: Irmãos, não queremos que ignoreis coisa alguma a respeito dos mortos, para que não vos entristeceis, como os outros homens que não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, cremos também que Deus levará com Jesus os que nele morreram (ITs 4,13-14). Sendo assim, o modo como os cristãos encaram a morte também os leva a viver o luto de forma diferenciada. Não negam a morte e nem mesmo a dor que ela traz consigo, antes se fortalecem pela fé e resgatam na própria fé os motivos para viver. Não uma simples vida, mas aquela que os prepara para o encontro definitivo com Deus, criador e razão de suas existências. 4. A Direção Espiritual diante da perda “A vida pra quem acredita, não é passageira ilusão e a morte se torna bendita, porque é a nossa libertação” (Irmã Míria T. Kolling). A Direção Espiritual representa hoje importante ferramenta nos trabalhos pastorais. É crescente o número de pessoas que buscam auxílio para suas questões existenciais e também para outras mais corriqueiras. Ao buscarem o acompanhamento espiritual, as pessoas anseiam encontrar mais do que apenas conselhos e outras palavras, antes desejam alguém para ouvi-las diante da correria que se tornou Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. Carlos Ribeiro Natali e Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R | 93 a sociedade hodierna, que dificulta o processo do luto. Por isso a necessidade de se aperfeiçoar cada vez mais na arte de aconselhar. A principal característica de um diretor espiritual é o proeminente cuidado com a pessoa humana. Não um simples cuidado, mas aquele em que se cultiva a intimidade, o sentir junto com o outro, o respeito completo pelas inúmeras situações que podem aparecer e a capacidade de olhar sempre adiante para que, nas trevas da mazela humana, emerja a luz que ilumina e aponta caminhos novos. Devese criar uma perfeita sintonia em que reine a escuta e a intervenção necessárias. Muitos são os casos em que a escuta atenciosa e as palavras fraternas mudam destinos e escolhas para o resto da vida daqueles que as procuram. Dentre os muitos assuntos apresentados no momento da Direção Espiritual, um dos maiores desafios hoje em dia, com certeza, é a morte. Não apenas o antigo medo de morrer – que ainda se apresenta de forma significativa – mas como lidar com a perda de entes queridos. A dor e a insegurança, típicas de quem entra no processo de luto, são as maiores barreiras a serem enfrentadas pelos que perdem alguém. Se as pessoas enlutadas não são capazes de elaborar de forma saudável seu luto, acabam sofrendo por toda a vida. Ajudar as pessoas a lidar com seu sofrimento é a grande motivação do diretor espiritual. No decorrer da Direção Espiritual, o orientador precisa auxiliar as pessoas a passar pelo doloroso processo da perda da forma mais saudável possível. As palavras a seguir nos oferecem um bom ponto de sustentação para entender o importante trabalho que o diretor deve realizar na vida da pessoa enlutada: Para elaborar o luto é preciso separar o real do imaginário. A perda é como se fosse um pacote fechado. Nem sempre o conteúdo corresponde ao rótulo. É preciso abrir o pacote para lidar com a perda real. O segredo para abrir o pacote e separar o joio do trigo está em se perguntar várias vezes: o que eu perco com esta perda? (MIRANDA, 2003, p.79). O trabalho parece simples, no entanto, colocar novamente a luz nos olhos de quem só enxerga as trevas se revela uma tarefa extremamente difícil. É preciso tato e, acima de tudo, um ponto de sustentação. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. 94 | O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL Para servir como base de argumentação, aconselham-se as verdades reveladas pela fé cristã; podem servir de conforto, bem como motivo de aceitação da morte e das dores que vêm com ela. No início da Direção Espiritual, é preciso levar em conta alguns aspectos que podem ser decisivos para a elaboração do luto daqueles que estão necessitados de aceitar a perda. Antes de qualquer coisa, é preciso entender que a dor ocasionada pela separação é verdadeira e muito profunda na vida do enlutado. Logo em seguida, o orientador precisa lembrar que a escuta sincera pode ser mais valorosa do que palavras vazias; antes de falar é preciso ouvir tudo o que a pessoa tem a dizer. O local do atendimento também precisa ser levado em consideração: faz-se necessário um lugar em que a pessoa se sinta confortável e, acima de tudo, em que tenha certeza de que suas dores não serão partilhadas com outras, afinal deve haver confiança entre o atendido e o atendente. Observadas essas importantes considerações, o atendimento já possui os passos iniciais para se obterem os resultados favoráveis para os enlutados. Como consolador, não devo fazer com que esperem ouvir de mim palavras pias, e sim, devo simplesmente estar ali, deixar que o outro expresse seu luto, suportar ver suas lágrimas, seu desespero, sua desesperança e, apesar de tudo, continuar ao seu lado. Quem está em luto, perde o chão. Por isso, precisa de pessoas que sejam firmes, fortes, que se mantenham fiéis a ele durante o luto, para que, assim, também possa encontrar uma nova forma de reerguer (GRÜN, 2010, p.111). Ao começar a intervenção no atendimento com a pessoa enlutada, após ouvi-la de forma sincera e atenta, faz-se necessário que o diretor espiritual concentre suas forças para que o enlutado compreenda o valor da vida. É preciso explicitar a importância da vida antes de falar da morte propriamente dita. O fator de maior importância para valorizar a vida é que ela mesma se apresenta como um dom de Deus, nosso primeiro chamado para estar em comunhão com Ele e com nossos irmãos. Os cristãos, durante muito tempo, justamente por acreditarem na vida eterna que ainda há de vir, foram acusados de não se importarem com a vida terrena, Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. Carlos Ribeiro Natali e Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R | 95 compreendendo-a como passageira, se concentrando naquela que virá após a morte. No entanto, essas constatações são infundadas, já que eles possuem como modelo de vida o próprio Jesus, que se encarnou e viveu plenamente no meio dos seus. Segundo as reflexões de Anselm Grün (2010), conhecido diretor espiritual, o desejo de Jesus Cristo, vencedor da morte, é que seus irmãos se concentrem para viver de forma plena e entendam que a vida é única para cada ser humano, portanto, devem se concentrar para potencializar suas capacidades e se conhecerem cada vez mais. A esperança cristã, que há muito estamos discutindo, serve, portanto, para potencializar a própria vida. A separação e a dor ocasionadas pela morte podem se transformar em força para viver. O pensamento na morte tem o propósito de intensificar nossa vida, para que experimentemos com todos os sentidos. E seu propósito é nos convidar a sermos, nesta vida, testemunhas de uma esperança que transcende este mundo. Justamente como testemunhas dessa esperança, nos tornamos benção para este mundo, que tem a tendência de fechar-se em si mesmo. Nossa esperança abre o mundo para Deus. Os céus se abrem sobre o mundo e, assim, fazem com que a vida na terra se torne mais humana (GRÜN, 2010, p.99). A fase seguinte é mostrar para a pessoa que sofreu a perda significativa em sua vida que o luto, ou melhor, sua elaboração, obedece a certa regularidade de acordo com as fases elaboradas pelo aporte da psicologia e implica, acima de tudo, força de vontade para ser superado. Repitamos as fases: Entorpecimento, Protesto, Negociação, Desespero ou Depressão e Restituição ou Aprovação. É importante apresentar cada uma delas de forma clara e objetiva, explicitando as principais características e as implicações negativas que podem ocorrer quando não existe a superação de uma ou mais fases. Resumidamente, diferenciar o luto saudável do patológico. É importante que o enlutado reconheça em qual fase está e como vem lidando com ela. Se não houver uma constatação clara, o orientador pode auxiliar com questões relacionadas às características e “sintomas” de cada uma. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. 96 | O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL O grande risco nesse momento do aconselhamento está ligado ao medo de esquecer o ente querido. Para superar tal dificuldade, é importante ressaltar que a elaboração da perda não implica esquecimento da pessoa amada. Definitivamente, esta não é a missão do orientador; antes, deseja-se que a morte seja entendida como aquilo que realmente é: algo natural à vida humana, cujo aspecto negativo foi vencido por cristo no seu mistério pascal. Isso torna a perda menos dolorida. O orientando compreende, pouco a pouco, que o luto precisa ser superado para que a vida continue a existir. “O luto é como a noite, quando não se torna patológico acaba por tornarse dia. Noite e dia, esse é o processo da vida! Aceitar a noite, entregarse a ela, é preparar-se para receber o dia.” (MIRANDA, 2003, p.101). Entendido o valor da vida humana e as fases de elaboração do luto por parte do enlutado, resta ao orientador explicitar de forma esperançosa as verdades da fé católico-cristã, que servirão como conforto e, até mesmo, como motivação para viver de forma plena os ensinamentos da Tradição. Ao compreender tais constatações, a pessoa estará apta para realizar seu luto de forma saudável, já que possuirá certezas de uma vida ao lado de Deus para os que partem da vida biológica. Por outro lado, torna-se capaz de compreender o verdadeiro valor da vida presente. Não significa viver em prol do que ainda virá, mas conscientizar-se de que a vida é muito mais do que apenas viver biologicamente. É desfrutar a vida de forma plena em sua dimensão biológica e espiritual. É preciso mostrar que em Cristo Jesus nossa esperança está consumada, que, por meio da cruz e ressurreição dentre os mortos, a morte foi vencida para sempre. O orientador possui a missão de reacender a chama da esperança que pode estar se apagando no orientando. Aquilo que agora causa dor pode ser entendido como passagem para uma vida mais plena que há de vir. O que nos garante tais afirmações é a própria revelação bíblica, repleta de textos que comprovam nossa esperança, a tradição da Igreja, que oferece aos católicos estudos e textos de grande riqueza teológica e, acima de tudo, a fé que professamos que nos aponta para a certeza da vitória e da libertação promovida por Jesus Cristo. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. Carlos Ribeiro Natali e Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R | 97 Ajudar as pessoas enlutadas a compreender o papel do luto e a importância de superá-lo de forma saudável deve ser para o orientador a grande motivação desse tipo de atendimento. “Nós precisamos da esperança pelo que não vemos, pela força que há por detrás da fraqueza, pela alegria que aguarda, nas profundezas do luto, até que ela possa ressurgir.” (GRÜN, 2010, p.112). Além do mais, a Igreja considera consolar os enlutados uma obra de misericórdia. Esse caminho da direção espiritual aponta para os enlutados uma nova luz que os faz recomeçar com esperança. Na assistência aos enlutados, devemos pedir ao anjo da esperança que esteja conosco, para que possamos transmitir aos desesperançados a esperança necessária para que a pessoa não se afunde em seu luto, e sim, através do luto, continue caminhando, com fé de que, depois da escuridão, a luz o espera (GRÜN, 2010, p.113). 5. Conclusão A morte continua assombrando a imaginação de muitas pessoas. Na sociedade contemporânea, inúmeras são as tentativas de contorná-la. Exatamente! Não se pretende compreendê-la de forma plena e aceitá-la como algo natural da vida humana, ao contrário, deseja-se domá-la, superá-la e, até mesmo, acabar com ela. No entanto, todas as tentativas são inúteis. Ela continua levando todos quando chega a hora. A morte se torna para nós a maior certeza, a mais temida certeza que temos. Este artigo oferece, portanto, esclarecimentos e afirmações que nos ajudam a aproximar de forma sincera do processo de luto ligado à morte. Possibilita compreender a distinção entre o passado e o presente em relação à morte e as implicações provenientes da separação que ela nos faz experimentar. Diante da morte, um sentimento é inevitável, a saber, a tristeza proveniente da separação de um ente querido. Por mais que nossa relação com a morte tenha mudado, a dor continua a nos invadir e a provocar inúmeras consequências para aqueles que ficam. Há muitas soluções para o problema do luto. Os consultórios de psicologia Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. 98 | O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL estão repletos de pacientes em busca de superar suas dores e as religiões oferecem explicações para a morte e também consolo para os que ficam, respondendo questionamentos e fortalecendo a fé dos enlutados. São pontos que foram abordados, diretamente ou indiretamente, neste artigo e que devem ser levados em consideração, por aqueles que desejam elaborar o luto de forma mais saudável. Para auxiliar nesse doloroso e necessário processo, apresentou-se a figura do orientador espiritual, que surge como figura essencial para abrir os olhos dos enlutados e fazê-los compreender a morte como um processo da vida. Para isso ele utiliza pressupostos da psicologia – as fases da elaboração do luto – e da religião – as verdades reveladas pela fé em Jesus Cristo. No que diz respeito à fé, ela cumpre seu papel de auxiliar na aceitação da morte e na superação da dor ocasionada pelo luto, o que afirma o argumento central deste artigo. Por meio da fé, a morte ganha novo significado, deixa de ser o fim da vida biológica e passa a ser uma porta de acesso para a vida eterna junto ao coração de Deus. Para os homens e mulheres de fé, ela é inerente, por mais dolorosa que seja, já que possibilita o encontro com Deus criador de todas as coisas – o que de forma alguma implica a desvalorização da vida terrena. Os esforços dos orientadores espirituais querem retirar as pessoas do luto e trazê-las novamente à vida, que, como nos ensinou Jesus, precisa ser plena e pautada no amor a Deus e ao próximo. REFERÊNCIAS AGOSTINHO, Santo. Confissões. 2.ed. Salvador: Progresso, 1956. 390p. (Pensamento cristão). BÍBLIA SAGRADA. Edição da família. Petrópolis: Vozes, 2005. BLANCK, R. Consolo para quem está de luto. São Paulo: Paulus, 2001. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. Carlos Ribeiro Natali e Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R | 99 BLANCK, R. Escatologia da pessoa: vida, morte e ressurreição. São Paulo: Paulus, 2000. BOFF, L. Vida para além da morte. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. BROMBERG, M. H. Morte não é castigo. Revista Isto é, São Paulo, n.1541, p.7-9, 14 abr. 1999. CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Hinário litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1986. GRÜN, Anselm. A cruz: a imagem do ser humano redimido. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2010. KOLLING, Míria Therezinha. Cantar a beleza da vida. ITAICI, São Paulo, v.18, n.74, p.29-40, dez. 2008. MIRANDA, M. L. Quem tem medo de viver?: aprendendo a lidar com a finitude. Belo Horizonte: Editora CEAP, 2003. VIORST, J. Perdas necessárias. São Paulo: Melhoramentos, 2003. WAHBA, L. L. Eu e tu: quando o tu desaparece. In: OLIVEIRA, M. F.; CALLIA, M. H, P. (Org.). Reflexões sobre a morte no Brasil. São Paulo: Paulus, 2005. p.175-184. Carlos Ribeiro Natali é presbítero da Diocese da Campanha, sul de Minas Gerais. Aluno do Curso de Especialização em Aconselhamento Pastoral e Orientação Espiritual do Instituto Santo Tomás de Aquino ISTA. Na Diocese atua como Coordenador dos Presbíteros e também como orientador espiritual no Seminário Diocesano Nossa Senhora das Dores. Este artigo, entregue na secretaria da pós-graduação, foi posteriormente revisado pelo prof. Dr. Paulo Sérgio Carrara, em vista de sua publicação na revista “Horizonte Teológico”, do ISTA. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012. RECENSÕES | 101 PEREIRA, William Cesar Castilho. O sofrimento psíquico dos presbíteros: dor institucional. Petrópolis: Vozes, 2012. 542 p. William Cesar Castilho, doutor em psicologia, psicanalista, analista institucional, é professor de psicologia na PUC Minas; tornouse conhecido por suas obras, artigos e conferências, sobretudo na área da psicologia da vida religiosa e presbiteral, à qual dedicou seus últimos trabalhos. Seu livro sobre a formação para a vida religiosa: A formação religiosa em questão, publicado pela Editora Vozes, obteve grande aceitação e está na segunda edição. O livro sobre o sofrimento psíquico dos presbíteros nasceu de um longo trabalho com presbíteros de todo o Brasil. Para além de seu trabalho junto aos padres, o livro é fruto, também, como se constata por sua leitura, de longos anos de cuidadosa pesquisa sobre esse delicado assunto: o sofrimento psíquico dos presbíteros. No primeiro capítulo, o autor apresenta detalhadamente o referencial teórico de sua análise do sofrimento do presbítero: a “síndrome de burnout”. O termo burnout designa a síndrome que extrai as forças, o envolvimento pessoal e a satisfação no exercício da profissão. A síndrome foi estudada preferencialmente nas categorias de profissionais que desenvolvem uma tarefa de ajuda. São numerosos os sintomas da síndrome de burnout: tristeza, vazio Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012. 102 | Recensões interior, despersonalização, alterações de comportamento, depressão, esgotamento, estresse, insatisfação, recalque de conflitos internos etc. Embora haja abordagens teóricas diferentes sobre a síndrome, os autores são unânimes quanto aos seus traços característicos e sua repercussão negativa na vida profissional. O autor mostra, no entanto, que, se há consenso quanto ao diagnóstico, não o há quanto à profilaxia e identifica duas propostas de tratamento. A primeira se define como clínica disciplinar individual. Nesse caso, dá-se atenção aos sintomas e se ignoram os fatores desencadeantes da síndrome, que se torna um problema do indivíduo, a ser tratado com medicamentos, sobretudo antidepressivos e ansiolíticos, que aliviam a sensação de esgotamento. Associase ao tratamento medicamentoso a terapia individual, visando à elaboração pessoal dos sintomas. Não se questiona, pois, a instituição à qual o profissional pertence e sua implicação no seu processo de adoecimento psíquico. Uma segunda proposta de tratamento se define como clínica psicossocial institucionalizada, cuja abordagem da síndrome parte de uma epistemologia interdisciplinar. Os aspectos da existência humana são diversificados. O homem se constitui como ser psíquico, biológico, social. Seus problemas se compreendem à luz de sua inserção numa realidade concreta que envolve suas relações. Portanto, a clínica psicossocial institucionalizada, sem negar a necessidade de tratamento medicamentoso e psicoterápico para a síndrome de burnout, inclui na sua abordagem a análise das organizações e instituições, em vista de chegar à causa do problema, que nunca se encontra somente no indivíduo, mas na teia de relações estabelecidas dentro da instituição. A intervenção para solucionar a crise chega, pois, à instituição. Se também essa não for devidamente tratada, o profissional não supera satisfatoriamente a síndrome de burnout. Aqui o trabalho se torna mais exigente, porque envolve todos os membros da instituição. No segundo capítulo, o autor faz um longo estudo da síndrome de burnout entre os presbíteros, que se define como “síndrome do bom samaritano desiludido por compaixão”. Os presbíteros relatam Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012. | 103 Recensões os mesmos sintomas da síndrome descritos por profissionais de outras áreas: cansaço, tristeza, desilusão, esgotamento, perda de motivação para o trabalho, despersonalização, mudanças de humor e comportamento, depressão, vazio existencial etc. Tais sintomas se relacionam, no entanto, com o exercício do ministério presbiteral. Concretamente, os presbíteros reclamam de uma sobrecarga de trabalho, muitas vezes burocrático e repetitivo, com pouco retorno afetivo. Denunciam frustrações graves no contato com os paroquianos e insucessos pastorais. Há, ainda, dificuldades de convivência entre os próprios presbíteros, marcadas por rivalidades explícitas ou camufladas, busca de prestígio e de paróquias ricas. A distribuição de cargos e funções na diocese nem sempre se baseia no princípio da justiça. Muitos relatam perda da busca da intimidade com Deus na oração, com queda no nível da espiritualidade e despersonalização. Permanece certa desconfiança da instituição. Alguns lamentam o recente retrocesso na inclusão dos leigos na vida da Igreja. A multirreferencialidade atual faz o presbítero se questionar sobre sua identidade presbiteral, marcada por perda de status e privilégios numa sociedade mais secularizada e socialmente menos cristã. Tudo isso provoca baixa autoestima e enfraquecimento do sentimento de pertença ao presbitério. Muitos enfrentam sérias dificuldades para suportar a solidão, à qual se acrescentam os problemas de ordem afetivo-sexual, de manejo nem sempre fácil do ponto de vista psicoespiritual. O autor, além de mostrar, com pesquisas confiáveis, as causas do sofrimento do presbítero hoje, faz uma longa análise da situação da Igreja antes e depois do Concílio Vaticano II, enfatizando as consequências das mudanças socioculturais e históricas na vida da Igreja e na sua organização hierárquica. De fato, a Igreja ressente ainda hoje a mudança de paradigma de uma sociedade pré-moderna (cristandade) para uma sociedade moderna e pósmoderna. A passagem de uma unidade forte, centralizadora e rígida para a “fragmentaridade” frágil, o diálogo e a democracia fez emergir desafios de difícil solução. Do ponto de vista histórico, a síndrome de burnout desponta como consequência de profundas mudanças de paradigma na filosofia, nas ciências humanas e na cultura, com as quais a instituição nem sempre lida de modo satisfatório. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012. 104 | Recensões No terceiro capítulo, o mais denso do livro, o autor se debruça sobre a análise dos sintomas da síndrome de burnout entre os presbíteros e o faz a partir de um sólido referencial teórico, que leva em consideração aspectos sociais e psicológicos, sobretudo psicanalíticos. Procura mostrar os impactos da pós-modernidade sobre a vida presbiteral. Na verdade, profundas mudanças socioculturais estão na origem da síndrome do bom samaritano desiludido. Uma vez que a vida dos presbíteros está imersa na sociedade, não se pode negar a influência que novos paradigmas sócio-históricos exercem sobre ele. O referencial do autor, no entanto, não se restringe a análises meramente teóricas, mas inclui seu longo trabalho com presbíteros de diversas dioceses. Sua abordagem une a teoria com longa escuta dos problemas dos presbíteros. A temática do capítulo se revela vasta, complexa e até polêmica. O autor trata da espiritualidade do presbítero, mostrando-a como lugar de unificação do exercício do ministério com as demandas subjetivas. Muitas vezes, a ausência do cultivo da espiritualidade desencadeia desilusão, tristeza e perda de motivação. Partindo de um estudo das motivações vocacionais, William analisa o imaginário vocacional do jovem, marcado por idealizações e fantasias que se chocam com uma realidade institucional complexa. Normalmente, as vocações nascem nas famílias rurais, ainda bastante tradicionais, que apoiam a vocação do filho. Outros se descobrem vocacionados através da pastoral de juventude paroquial. Uma vez no Seminário, tendem a uma relação de submissão à autoridade, em vista da conquista do objetivo. No discernimento vocacional, há sempre o latente e o manifesto, como esclarece a psicanálise. O latente costuma emergir depois que o seminarista se tornou padre, a não ser que a formação esteja aberta para acolher a verdade conflitiva do jovem e para ajudá-lo a fazer um caminho de crescimento psicoespiritual. Os relatos dos presbíteros revelam algumas insatisfações com a convivência no presbitério, marcada por disputas, desavenças e, às vezes, desconfiança. Nem sempre os presbíteros sentem que sua relação com o bispo e com os colegas se realiza dentro de um equilíbrio sadio. Há rivalidades, busca de paróquias mais rendosas e de maior Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012. Recensões | 105 prestígio na diocese. Por outro lado, o modelo paroquial tradicional atravessa uma crise, causada pela emergência de um modelo midiático de evangelização, que diminui o sentido de pertença a uma paróquia territorial e confunde os paroquianos. A pluralidade de movimentos, espiritualidades, estilos e modos de anunciar o evangelho deixa a sensação de certa falta de rumo. A relação entre padres e bispos não permanece imune ao processo das transferências. A relação com a autoridade conjuga sempre amor, ódio e outros sentimentos. Muitos presbíteros falam da solidão como um desafio. Embora necessária para o processo de individuação e para a relação saudável com o outro, quando não é bem elaborada causa muitos transtornos afetivos. Nesse capítulo, o autor ousa abordar o tema da afetividade e da sexualidade do presbítero. Seu discurso não se prende à frieza acadêmica, mas nasce da escuta profissional e comprometida dos presbíteros. De fato, a questão se revela espinhosa, a sexualidade permanece, muitas vezes, no âmbito do latente e a pressão institucional exerce certo controle dessa dimensão da vida do presbítero. No entanto, os temas da sexualidade, mormente da homossexualidade, emerge com força em conversas informais entre os presbíteros. Seus testemunhos são contundentes e alguns verbalizam, inclusive, uma divisão entre presbíteros homossexuais e heterossexuais, que disputam poder e prestígio. O autor analisa, ainda, a questão da pedofilia e da efebofilia, apresentando suas causas e possíveis tratamentos. Avalia também a questão do poder e do dinheiro na vida do presbítero. O quarto capítulo aborda alternativas para a superação da síndrome de burnout a partir da pastoral presbiteral. O enfoque do autor se apoia nos dispositivos da clínica psicossocial, que envolve os presbíteros e a instituição Igreja na solução de conflitos. A pastoral presbiteral inclui três dimensões importantes: eclesial, espiritual e pastoral. Sua concretização supõe a criação de grupos terapêuticos onde os problemas sejam tratados de forma transparente e respeitosa. A clínica, nesse caso, não se define como lugar de pessoas doentes, mas lugar de cuidado com a saúde, em todos Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012. 106 | Recensões os seus níveis. Seu ambiente é agradável e democrático. Propõese a “fala” como excelente método de cura das questões pessoais, pastorais e relacionais. O que não pode ser falado, também não pode ser curado. O autor quis fornecer, ainda, material metodológico em vista da viabilização da pastoral presbiteral nas dioceses, a ser alavancado pelos próprios presbíteros, vistos como protagonistas de seus saberes, de sua produção e capazes de criar instrumentos para solucionar conflitos e problemas pessoais e pastorais. William oferece uma série de propostas de encontros nos quais os padres verbalizam seus desafios e, juntos, organizam soluções possíveis. O objetivo final da pastoral presbiteral é dar mais qualidade à vida espiritual, psíquica e pastoral do presbítero, melhorando suas relações com o bispo, com os outros presbíteros, com os fiéis e com ele mesmo. A pastoral seria uma forma saudável de lidar com os impactos negativos da pósmodernidade na vida do presbítero. William nos brindou com um texto profundo e consistente sobre a síndrome de burnout entre os presbíteros.Seu trabalho se mostra pioneiro no contexto da Igreja no Brasil. Partindo da análise sociocultural, histórica e psicanalítica, apresenta ao leitor um livro maduro e equilibrado, que ousa enfrentar temas delicados, como o sofrimento psíquico do presbítero, de maneira discreta e respeitosa da instituição. Sua abordagem corajosa da questão da sexualidade, sustentada não só na teoria psicanalítica da sexualidade, mas na experiência da escuta e do trabalho com os presbíteros, reclama respeito. Hoje muito se escreve sobre a crise da instituição e do exercício do mistério presbiteral. Mas poucos autores têm a segurança, a experiência e a “neutralidade” do professor William. Ele não faz críticas gratuitas à instituição, seu objetivo se resume ao desejo de ajudar os presbíteros e a Igreja no manejo de suas delicadas crises atuais. Seu trabalho evidencia grande conhecimento da situação hodierna dos presbíteros, em suas dimensões mais cruciais. E o melhor é que William não somente aponta problemas, conflitos e desafios, mas investiga minuciosamente suas possíveis causas, evitando soluções prontas e apontando caminhos possíveis em vista de soluções reais e não ideais, a partir da pastoral presbiteral, alicerçada no trabalho Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012. Recensões | 107 da clínica psicossocial. Seu livro se destina a todos os estudiosos da análise institucional e, é claro, aos presbíteros e aos bispos abertos à discussão sobre os problemas que afligem a Igreja e a vida dos presbíteros. Sua leitura ilumina, enriquece, faz despontar horizontes novos de compreensão da realidade atual e deixa o grande desafio da pastoral presbiteral como caminho possível de cura e de prevenção de conflitos psíquicos, espirituais e pastorais. Paulo Sérgio Carrara [email protected] Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012. 108 | Recensões MOLTMANN, Jurgen. Ética da esperança. Tradução Vilmar Schneider. Petrópolis: Vozes, 2012. 313p. Esta obra do pastor e teólogo batista alemão Jurgen Moltmann, recentemente publicada pela Editora Vozes, vem trazer-nos uma reflexão de fundamental importância para o tempo em que estamos vivendo. Numa sociedade considerada pós metafísica e pós cristã tem ainda sentido falar de esperança? E de esperança cristã? Qual o papel da cristandade diante do vazio ético em que vivemos? O ponto de partida teológico é o da Reforma, em especial a teologia batista, porém numa perspectiva profundamente ecumênica. Na base de sua reflexão está a preocupação globalizada de um mundo em perigo: a ameaça da guerra nuclear; o absurdo do terrorismo internacional, deixando quase que impotentes as forças de segurança dos Estados, pois a vida deixa de ser amada e morte de ser temida; o perigo de um colapso da natureza, por uma sociedade que absolutiza o progresso baseado na produção e no consumo; ligado a isso, a questão da injustiça social e da superpopulação dos países pobres e em desenvolvimento; ainda a aplicação do conhecimento tecnológico no campo da vida e vida humana, colocando em perigo todas as espécies de seres vivos e até o gênero humano. Diante dessas graves questões éticas, o que fazer? O que a cristandade tem a dizer? Qual a responsabilidade ética dos cristãos neste mundo ameaçado? No primeiro capítulo, o tema tratado é Escatologia e Vida. Partindo do pensamento escatológico dos grandes expoentes da Reforma no século XVI, o autor vai aprofundar a ética batista resgatando a história e a contribuição do complexo e perseguido movimento dos anabatistas do século XVI, a cristologia e escatologia de Karl Barth frente à tentativa de justificativa religiosa do estado nazista, até a paradigmática contribuição de Martin Luther King, com uma escatologia messiânica, um cristianismo engajado na luta não violenta contra o racismo, contra a guerra, pela democracia Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012. Recensões | 109 participativa e os direitos sociais e a ética transformadora de Walter Rauschenbusch, precursor do movimento golpe social, que proclama a necessidade “de um cristianismo revolucionário que chame o mundo de mau e o transforme” (Moltmann 56). Diz não às tentativas de reconstrução do “sacro império cristão”, mas sim ao engajamento na história visando à sua transformação: Não basta transformar as espadas em espadas cristãs, é preciso que se tornem arados, com o cuidado de não degradar a natureza; não basta ser pacífico, é preciso ser pacificador. No segundo capítulo, nesta mesma perspectiva teológica e ética, a autor tratará do tema Uma ética da vida. O ponto de partida é a constatação de Albert Camus no período pós segunda grande guerra, de “que a Europa tenha deixado de amar a vida” (Moltmann 59). A partir daí, passa a analisar os sintomas dessa constatação: o terrorismo, a ineficácia das políticas de dissuasão, o programa nuclear suicida – com a constante ameaça da guerra nuclear –, o declínio do depauperamento social, a armadilha do aniquilamento ecológico mundial, a questão da existência da humanidade: Existe no cosmo um princípio antrópico?, e a consciência aterrorizada. Após refletir sobre essas ameaças reais à vida no planeta, o autor contrapõe esta mentalidade de morte à esperança cristã, tratando do Evangelho da vida. “O etos da esperança é, nos sinóticos, a conversão na fé no Evangelho do Reino de Deus; em Paulo, o efeito da ressurreição do Cristo crucificado na justificação dos ímpios; em João, a vida eterna no amor. A conversão para o futuro, a ressurreição para a vida e a vida vivida no amor constituem o etos cristão da esperança” (Moltmann 74). “A vida é um “fim em si mesmo”, isto é, excede utilidade e inutilidade. Tem seu sentido em si mesma. Por conseguinte, deve ser vivida. Não tem um valor, isto é, não pode ser utilizada. Não há vida indigna da vida, que se pudesse destruir ou tomar de si mesmo. Toda vida carrega em si a centelha da vida eterna. O direito à vida é um direito humano inviolável” (Moltmann 77). “A esperança da ressurreição de Cristo encoraja ao engajamento do amor em favor da vida em toda parte, a qualquer hora, porque ele permite olhar para a vitória universal da vida obre a morte” (Moltmann 78). “A vida Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012. 110 | Recensões acolhida e amada” (Moltmann 81). O autor apresenta algumas orientações para uma política para a vida conjunta: diante da ameaça da guerra nuclear, diz: “a união da humanidade para salvar a vida na era da ameaça nuclear requer a relativização dos interesses individuais das nações, a democratização das ideologias que geram conflitos, o reconhecimento das diversas religiões e a subordinação de todos ao interesse comum pela vida” (Moltmann 82); é a justiça e não a segurança que cria a paz. Afirma que não há paz onde reina a injustiça e a violência. “A paz na história não é um estado, mas um processo, não é uma propriedade individual, mas um caminho coletivo. A paz não é ausência da violência, mas presença de justiça” (Moltmann 84). A solução apresentada como possível é a vida em comunidade: “é claro que se pode viver na pobreza, quando ela é suportada conjuntamente e dividida justamente. Somente a injustiça torna a pobreza um tormento” (Moltmann 85). É preciso repensar a forma de ser do ser humano no mundo, de repensar sua relação com a natureza, passar da dominação à comunhão. “Uma conversão das convicções e dos valores básicos é tão necessária como uma conversão da mentalidade e do estilo de vida” (Moltmann 86). Segundo o autor, “O monoteísmo estrito do cristianismo ocidental moderno se tornou o motivo essencial da secularização do mundo e da natureza, como imagem de Deus na terra, o ser humano teve de se conceber (...) como dominador, como sujeito de conhecimento e de vontade, e se confrontar com o seu mundo e sujeitá-lo como um objeto passivo” (Moltmann 86). “A conversão que temos de realizar passa pela mudança na imagem de Deus que nos orientamos” (Moltmann, 87): a fé no Deus uno e trino. “Os seres humanos não poderão corresponder a esse Deus triúno por meio da dominação e da sujeição, mas apenas por meio da comunhão e da reciprocidade que promove a vida” (Moltmann 87). Em um parágrafo especial deste capítulo sobre o Evangelho da Vida, o autor tratará da ética médica. Dirá que “quanto maior se torna o poder técnico-científico sobre o processo vital, maior é o alcance Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012. Recensões | 111 da responsabilidade de todas as pessoas envolvidas” (Moltmann 89). Não pode o “ser humano brincar de Deus com a vida e a morte dos outros seres humanos” (Moltmann 94). A partir daí refletirá sobre a ética do início da vida, o estatuto do embrião e critérios éticos e jurídicos a serem seguidos no que se refere ao controle da natalidade por meio da esterilização ou da inseminação artificial, a questão da concepção e do aborto, o aborto por indicação médica, por indicação criminológica e indicação social. Por fim trata da ética do final da vida, sob o título a vitalidade na saúde e na doença. Aqui a grande questão será ajudar aos médicos a vencer a tentação de tornarem-se somente intérpretes de exames, negando o relacionamento. “O doente não é um objeto, mas sempre ao mesmo tempo um sujeito” (Moltmann 113), uma pessoa humana doente. Reflete sobre o conceito de saúde, e a vitalidade no morrer e na morte. Afirma que “a vida humana não é um meio para um fim, ela vive porque é vivida. É boa em si mesma porque é amada, afirmada e justificada a partir da eternidade” (Motmann 116), “deve-se aceitá-la mesmo na sua finitude e amá-la na sua fragilidade. Citando o Catecismo de Heidelberb, conclui que “não serve à vida o que não consola no morrer” (Moltmann 117). Também reflete eticamente sobre o suicídio ou morte livre dizendo que “nenhum ser humano mata a si mesmo no ápice de sua liberdade. O suicídio é, geralmente, resultado da falha de liberdade sem saída” (Moltmann 119). No que se refere à morte a pedido, diz que raramente tem a ver com a “autodeterminação e liberdade; na maioria dos casos, trata-se de uma legítima defesa contra situações insuportáveis ou imaginadas ou percebidas como indignas em que as pessoas se encontram” (Moltmann 121). A assistência para provocar a morte pode consistir em um fazer ou em um deixar de fazer. “Sugerir o pedido de morte provocada a deficientes, doentes incuráveis e pessoas idosas é condenável, porque é cínica. Desobriga os ‘saudáveis e aptos’ da solidariedade, da compaixão e do amor ativo ao próximo” (Moltmann 122). Quanto às clínicas de eutanásia que se espalham pelo ocidente, diz: “Penso que a oferta comercial de assistência ativa para morrer é algo abominável” (Moltmann 123). “Deve-se responsabilizar o ‘deixar’ morrer. Dele Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012. 112 | Recensões faz parte um bom acompanhamento do morrer, para que o doente agonizante possa deixar sua vida consolado e afirmado” (Moltmann 123). O autor conclui o capítulo refletindo sobre o tema central da fé cristã, que é a ressurreição da vida. “Proponho-me falar de uma ressurreição da vida em vez de uma ressurreição dos mortos, do corpo ou da carne” (Moltmann 125). Refletindo sobre a espiritualidade do corpo, dirá que “vida rejeitada, não amada, negada, é vida desperdiçada e morta. O que experimentamos aí é a morte antes da morte” (Moltmann 126). “A esperança na ‘ressurreição da carne’ influi em nossa vida corporal e sensorial aqui e agora!” (Motmann 127). “Quem se sente aceito e amado, também está bem consigo mesmo e aceita seu corpo assim como ele é e vem a ser com o passar do tempo” (Motmann 131). O terceiro capítulo tem por tema A ética da terra. Como o capítulo anterior, um texto denso, com diversas e complicadas subdivisões. Tem por objetivo questionar o antropocentrismo moderno, construído sob a autonomia do sujeito e sob o ímpeto do domínio e do poder. A grande preocupação é o futuro da natureza, o risco de uma catástrofe ecológica mundial e da civilização humana atual, diante da sede de domínio e exploração sem medida dos recursos naturais na busca desmedida de riqueza e poder. Considera que o antropocentrismo judeu, cristão e islâmico é responsável por esta mentalidade, que levou o ser humano a agir de forma despótica, como dominador e destruidor da natureza. A partir de uma bela teologia da criação, baseado em Christoph Blumhardt e Dietrich Bonhoeffer, o autor vem chamar a atenção para a necessidade de uma compreensão da relação entre o ser humano e a natureza, a uma mudança de estilo de vida, um modelo comunitário marcado pelo respeito por todas as formas de vida e à natureza em geral, onde a ideologia do capitalismo neoliberal, construído sob a competição desmedida, baseada no consumo, na produção e no lucro seja colocado em cheque. O que está em jogo é a vida do planeta. É preciso pensar nas gerações futuras, limitar nossa sede de progresso, Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012. Recensões | 113 pensar globalmente e agir localmente. O estilo de vida pessoal tem consequências globais, e as mudanças globais afetam a vida pessoal. A vida da comunidade cristã primitiva oferece luzes para este novo estilo de vida: uma vida baseada na fé no Cristo ressuscitado, na partilha, na propriedade comum dos bens, na solidariedade. O quarto capítulo tem por título A Ética da Paz Justa, uma ética política da paz. O ponto de partida é a consciência de que a base de uma vida em paz é a justiça. Desenvolve o capítulo tentando responder à questão: qual justiça humana corresponde à justiça de Deus e promove a vida e conserva a terra? Primeiramente trata da questão da relação entre justiça e igualdade. Afirma que os direitos humanos são um primeiro esboço de uma constituição universal da Humanidade. Num segundo ponto considera a grave questão de que os problemas do mundo moderno se tornaram globais, ao passo que as instituições políticas permanecem locais. A primeira tarefa em face aos problemas globais será, portanto, a superação desse déficit da política. Constata que a ética sempre chega tarde, e que é a confiança a substância, o bem supremo da política democrática, que ela é provocada pela humana e tira consequências para a vida. Historicamente, reflete sobre as religiões do ut des, desde Teodósio e Justianiano até a modernidade. Depois reflete sobre a justiça a partir da concepção do carma indiano e do Antigo Testamento. Elabora uma reflexão sobre os limites dos conceitos de justiça distributiva, chamando a atenção para o cuidado com as vítimas. Passa depois ao conceito de justiça criadora, redentora e restauradora: justitia justificans. Diz que é preciso garantir o direito no mundo das vítimas e dos autores dos crimes, que na missão da Igreja são necessários os carismas da diaconia e da profecia, que os cristãos devem defender as vítimas, porque o próprio Jesus foi vítima da violência e da injustiça. A partir daí, passa a refletir sobre o conceito de poder. Quando este se torna bom e justo? Chama a atenção para que o Estado mantenha em suas mãos o monopólio da violência, para a defesa da sociedade da ação de grupos de criminosos e do terrorismo. Por outro lado, chama a atenção para o direito e a obrigação da resistência social, quando a polícia e os militares atentam contra as leis do Estado, quando o Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012. 114 | Recensões governo promulga leis em contradição com a própria constituição e quando um governo chega ao poder por meio de um golpe interno, ou de uma ocupação externa. Nessas situações, “o amor ao próximo é mais importante que a obediência a toda autoridade” (Moltmann 230). Conclui refletindo sobre a doutrina da guerra justa, seu indevido uso como justificativa dos Estados soberanos e suas guerras e, ligado ao tema, a questão da doutrina do armamento atômico. Por fim, apresenta o ideal de uma sociedade sem armas e o inovador amor ao inimigo. “A responsabilidade secular cristã requer uma ética da responsabilidade secular, de acordo com o parâmetro da justiça e da paz que procuramos crer e viver no discipulado de Cristo” (Moltmann, 243). É preciso integrar os direitos humanos individuais e sociais, os direitos humanos econômicos e os direitos ecológicos da natureza. “Assim, como a ética cristã se move no marco dos direitos humanos – se quiser se tornar relevante hoje –, a esperança universal cristã os integra em sua visão global” (Moltmann, 270). A obra é concluída com um quinto capítulo tem por título A alegria em Deus, contrapontos estéticos. Aqui reflete sobre o fundamento bíblico do Shabbat: a celebração da criação, o júbilo da ressurreição de Cristo e a paz em meio ao conflito. “Ao descanso e ao júbilo acrescentamos, como terceiro dom, a paz: não a paz que acaba com todo o conflito, mas primeiramente a paz que, em meio ao conflito, nos permite levar o conflito a um termo justo” (Moltmann, 281). “Quem sente em si a proximidade do Cristo Ressurreto, é tomado por uma alegria que abraça o mundo. Ele vê este mundo controverso e sofredor já no ‘resplendor matutino’ de sua beleza eterna” (Moltmann, 283). Amarildo José de Melo [email protected] Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012. | 115 NORMAS PARA COLABORADORES 1. Textos inéditos A revista Horizonte Teológico (HT) recebe contribuições para suas seções de artigos, comunicações e recensões. Os textos devem ser inéditos e serão submetidos à avaliação do Conselho Editorial. 2. Submissão dos textos Os textos devem ser enviados ao Conselho Editorial pelo e-mail [email protected]. 3. Apresentação dos originais a) O texto deve ser digitado em Word for Windows, fonte Times New Roman, corpo 12, papel A4, com margens de 3 cm. à esquerda, 2 cm à direita, 3 cm na margem superior e 2 cm na margem inferior. b) Usar espaçamento 1,5 no corpo do texto e alinhamento justificado. c) Entre partes do texto e entre texto e exemplos, citações, tabelas, ilustrações etc, utilizar espaço duplo. Para fazer isso, basta redigi-los na segunda linha após o parágrafo anterior. d) Para citação com mais de três linhas, adentrar o texto em 4 cm e utilizar fonte Times, corpo 10. e) Para texto citado com menos de três linhas, usar aspas no próprio corpo do texto. f) Para notas de rodapé, usar fonte Times, corpo 10. g) Apresentar o texto na seguinte sequência: título do artigo, texto, nome do(s) autor(es), referências e anexos. h) Digitar o título do artigo centralizado na primeira linha da primeira página com fonte Times 12, em formato negrito, todas as letras maiúsculas. 116 | i) Digitar os títulos de seções com fonte Times, corpo 12, em negrito. O título da introdução deve ser redigido na terceira linha após o título. Os demais títulos, duas linhas após o último parágrafo da seção anterior (pular linha). Os títulos de seções são numerados com algarismos arábicos seguidos de ponto (por exemplo, 1. Introdução, 2. Fundamentação teórica). Apenas a primeira letra de cada subtítulo deve ser grafada com caracteres maiúsculos, exceto nomes próprios. j) Artigos e comunicações devem ter entre 4 mil e 8 mil palavras, incluindo os anexos; recensões, entre 1 mil e 2 mil palavras. k) As referências devem ser indexadas pelo sistema autor data no corpo do texto e não em nota de rodapé. Para citar, resumir ou parafrasear um trecho da página 36 de um texto de 2005 de Pedro da Silva, a indexação completa deve ser (SILVA, 2005, p.36). Quando o sobrenome vier fora dos parênteses deve-se utilizar apenas a primeira letra em maiúscula. l) Citações no meio do texto sempre devem vir entre aspas e nunca em itálico. Use itálico para indicar ênfase ou grafar termos estrangeiros. m) As referências devem ser antecedidas da expressão Referências, em negrito. A primeira referência deve ser redigida na segunda linha abaixo dessa expressão. As referências devem seguir a NBR 6023 da ABNT: os autores devem ser citados em ordem alfabética, sem numeração, sem espaço entre as referências e sem adentramento; o principal sobrenome do autor em maiúsculas, seguido de vírgula e iniciais dos demais nomes do autor (Por exemplo: MATOS, Henrique Cristiano José. Liturgia das horas e vida consagrada. Belo Horizonte: O Lutador, 2004.) n) Se houver outros autores devem ser separados uns dos outros por ponto e vírgula; título de livro, de revista e de anais, em negrito; título de artigo: letra normal, como a do texto. | 117 4. Dados dos autores Os autores deverão informar seus dados pessoais: nome completo; instituto religioso ao qual estão vinculados (opcional); maior titulação; atividade atual (local e instituição); endereço eletrônico. 5. Exemplares dos autores Os autores de artigos e comunicações publicados receberão três exemplares da revista; de recensões, dois exemplares. LIVROS RECEBIDOS | 119 VOZES www.livrariavozes.com O cuidado necessário Autor: Leonardo Boff O Planeta e a humanidade estão correndo grave risco em consequência das mudanças provocadas pela exacerbada intervenção humana em todos os campos da natureza e da cultura. Dois valores constituirão as pilastras báscias que poderão garantir um novo modo de habitar a Terra: a sustentabilidade e o cuidado. A sustentabilidade permitirá manter, transformar e reproduzir o já existente. O cuidado representa uma forma suave, amiga e harmoniosa com que a sustentabilidade é implementada. Ele cura as feridas passadas e previne as futuras. Esse cuidado se estende a todas as esferas da vida: à saúde, à educação, à ecologia, à ética, à espiritualidade e ao cotidiano de nossas existências, amplamente abordadas neste livro. Inteligência espiritual Autor: Francesc Torralba Segundo o autor de nosso livro, a Inteligência Espiritual é constitutivo do ser Humano, ou seja, todos temos uma inteligência espiritual, mas aqueles que a desenvolvem tem maior capacidade de lidar com as contradições da vida e do trabalho, maior compreensão da própria finitude e da dinâmica da vida, com seus altos e baixo. Uma pessoa Inteligente Espiritualmente não é arrogante na Vitório ou sucesso e não se abate nas derrotas ou frustações, entende isto como parte do processo da vida. 120 | Pai-nosso - Orar com o Espírito de Jesus Autor: José Antonio Pagola Pai-nosso, do mesmo autor de Jesus - Aproximação Histórica, apresenta esta oração tendo como objetivo desenvolver a atmosfera espiritual que faz dessa prece a mais vivida no cristianismo. A obra está dividida em duas partes. Na primeira, apresenta uma reflexão ou comentário bíblico-espiritual a respeito do conteúdo desta oração, seguida, na segunda parte, por súplicas dos salmos que ajudam a criar ressonâncias espirituais ao rezar e meditar essa oração. O Pai-nosso apresenta o resumo e o cerne de todo o evangelho, por isso, nada melhor do que conhecêlo melhor e ter o auxílio dos salmos para mentalizar suas invocações e petições. Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média Autor: José D’Assunção Barros A história da Igreja e da religiosidade medievais é certamente marcada por tensões e conflitos diversos, não apenas entre a Igreja e os poderes constituídos, como também entre a Igreja oficial e as novas formas de religiosidade que começam a se afirmar neste período. Este entremeado de relações é o objeto dos seis ensaios reunidos neste livro. Do surgimento das Heresias e das ordens menores às relações entre Papado e Império, ou à constituição de um imaginário específico no qual a religião desempenha um papel particularmente importante, o livro Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média procura examinar os diversos atores envolvidos nesta complexa história que fornece uma das raízes das sociedades européias e americanas do mundo moderno. | 121 PAULUS www.paulus.com.br Reforma Litúrgica: renovação ou revolução? Autores: Antônio S. Bogaz e João H. Hansen Este livro pode ser considerado um verdadeiro tratado sobre Reforma Litúrgica, pois em suas páginas podemos reconhecer os caminhos da liturgia como fonte e ápice da vida da Igreja. A partir do itinerário do Movimento Litúrgico, os autores descrevem as conquistas preciosas que se descortinaram com a Reforma Litúrgica proposta pelo Concílio Vaticano II, particularmente por meio da Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium. Os padres da igreja: de Clemente Romano a Santo Agostinho Autor: Bento XVI A publicação reúne as catequeses que o Santo Padre Bento XVI quis dedicar aos mais importantes escritores eclesiásticos dos primeiros quatro séculos cristãos, de Clemente Romano até Santo Agostinho. O papa Bento, com a vivacidade da linguagem falada, abre uma fascinante galeria de vinte e seis quadros, cada um deles dedicado a um autor das origens cristãs. Procede principalmente em ordem cronológica — dos padres apostólicos e apologetas até os grandes padres que viveram entre o século III e as primeiras décadas do século V —, considerando as Igrejas do Ocidente e do Oriente. 122 | Arqueologia das terras da Bíblia Autor: José Ademar Kaefer Na história da pesquisa bíblica, a arqueologia sempre tem tido papel determinante. Nas últimas décadas, com o desenvolvimento de novas técnicas, novos métodos e a inclusão de novas ciências, esse papel tem aumentado. As novas descobertas arqueológicas exigem dos estudiosos uma revisão ampla da compreensão dos textos bíblicos, particularmente no que diz respeito ao contexto histórico e literário. O livro trata dos principais sítios arqueológicos de Israel e alguns da Jordânia, sendo de excelente ajuda para estudantes, professores e também para peregrinos às terras santas terem uma informação prévia e concisa dos lugares a visitar. A Igreja e seus ministros: Uma teologia do ministério ordenado Autor: Francisco Taborda, SJ A Igreja não é um rebanho passivo, mas uma comunidade articulada em diferentes funções. Todas elas provêm do Espírito de Deus, seja na espontaneidade da vida, pelas qualidades com que Deus dota cada pessoa, seja suplicando a Deus no sacramento que dê a essa pessoa, reconhecida apta pela comunidade, a graça do ministério ordenado, expresso pela coletividade, pela comunidade eclesial. Assim sendo, a primeira parte desta obra tratará de estabelecer a maneira como a Escritura e a Tradição nos apresentam o ministério ordenado, para posteriormente ser analisados a celebração do sacramento da ordem e o valor nele expresso. O desgaste na vida sacerdotal: Prevenir e superar a síndrome de burnout Autor: Helena López de Mézerville A necessidade que a Igreja tem de entender, prevenir e superar a “síndrome de burnout” ou desgaste na vida sacerdotal é algo primordial para o sacerdócio do século XXI. Num recente estudo feito pela doutora Helena López de Mézerville, demonstrou-se que três em cada cinco dos quase novecentos sacerdotes latino-americanos entrevistados estavam média ou gravemente esgotados. Esta obra se apresenta como o ápice de um trabalho que procura melhorar a qualidade de vida de seminaristas, presbíteros e religiosos em toda a América. | 123 Paradigma Teológico de Tomás de Aquino Autor: Frei Carlos Josaphat O leitor deste Paradigma teológico de Tomás de Aquino poderá participar de uma incrível experiência espiritual e intelectual que é percorrer os meandros da Suma de Teologia, guiado por alguém que não apenas a conhece muito bem, mas também vivenciou os ensinamentos aí recolhidos: frei Carlos Josaphat. Nisso, aliás, assemelha-se o autor de Tomás de Aquino, que conhecia a doutrina cristã de maneira exímia e, uma vez que a absorveu por completo, tratou de experienciála em sua vida. Totalizando 17 capítulos e uma bibliografia elementar, frei Carlos esmiúça a Suma de Teologia em mais uma interessante chave de leitura, que desperta o gosto por saborear a obra clássica por excelência da teologia cristã. 124 | IDÉIAS & LETRAS www.ideiaseletras.com.br Compreender o outro: Administrando diferenças para a convivência global Colaborador: Martin Vielajus A mundialização não é uma dominação.Ela aproxima claramente os espaços e o tempo da comunicação, mas não apaga a diversidade cultural. Este livro reflete sobre os mal-entendidos culturais na mundialização e sobre as importantes áreas de acordo que hoje desafiam quem lida no campo humanitário, nas empresas e nas organizações internacionais, diante de pessoas levadas a trabalhar ou viver em culturas que não são as suas. As culturas do outro trazem inúmeras perguntas: Temos sempre a mesma concepção de tempo? De ação? De riqueza? Da hierarquia? De vínculo com o ambiente? Falamos a mesma linguagem? Toda a comunicação é verbal? São questões que nos ajudam a tomar consciência de nosso próprio condicionamento cultural e nos motivam a praticar as duas virtudes da relação intercultural: a dúvida, que não impede termos convicções; e a paciência, que não impede termos dinamismo. Quem é seu dono? A disputa para patentear os genes humanos Autor: David Koepsell “Quem é seu dono?” Essa pergunta, apesar de parecer simples e até mesmo estranha e ultrapassada, ganha novos ares e contornos quando inserida no mundo contemporâneo. Nos últimos cem anos, emergiram novas e mais sutis formas de posse, que têm hoje um impacto sobre qualidades e características essenciais de cada um de nós. Esta obra investiga como as leis de propriedade intelectual têm sido utilizadas para reivindicar direitos sobre blocos de construção essenciais de múltiplas formas de vida, incluindo seres humanos – os genes. Com o fim da corrida para mapear o genoma humano, começa agora a competição entre grandes companhias para patentear os genes. No entanto, como isso é possível? O livro faz despertar para as implicações de longo alcance da natureza insidiosa do patenteamento de genes. | 125 Sociologia da droga Autor: Henri Bergeron O consumo de drogas já se tornou um fato social bemestabelecido, acredita o autor. Nesse sentido, surge a dicotomia entre a continuidade de uma prática que é agradável por um lado e, por outro, é reconhecidamente nociva, e da qual, por vezes, se quer libertar. Quais são os determinantes da massificação recente do consumo de drogas? Quais são os processos sociais e políticos que presidiram a classificação de certas substâncias como entorpecentes? Essas são apenas algumas das questões tratadas neste livro, volume indispensável para quem deseja compreender um dos mais complexos problemas sociológicos dos últimos sessenta anos. Filosofia Clínica e Humanismo Autor: José Maurício de Carvalho Uma excelente fonte de informação para especialistas bem como para aqueles que buscam um primeiro contato com a Filosofia Clínica, método criado pelo psicanalista e filósofo Lúcio Packter, que direciona os procedimentos de diagnose e tratamento a partir da metodologia filosófica. A elaboração da obra conta com dois procedimentos distintos: o desenvolvimento de conferências e estudos apresentados sobre o assunto e uma entrevista com a Assessoria Virtual do Instituto Packter. Nesse sentido, o objetivo do autor é mostrar que a Filosofia Clínica consiste em uma técnica de ajuda pessoal, que respeita o sofrimento e o mundo singular dos indivíduos. Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica Autor: Edmund Husserl Com a publicação deste volume, o público brasileiro interessado por filosofia tem finalmente acesso, em português, a um texto fundamental para se compreender um momento decisivo da história da fenomenologia. Assim como para se medir o sentido e alcance de algumas das querelas que agitaram aquele setor da filosofia contemporânea que se proclama herdeiro de Husserl, pouco importando se mais ou menos infiel. Trata-se do projeto original de filosofia transcendental que permite ao leitor medir a envergadura de outros textos de Husserl, assim como entender o sentido e as razões subjacentes à introdução de novos conceitos na fenomenologia. 126 | SANTUÁRIO www.editorasantuario.com.br A economia à luz da Bíblia: Reflexões bíblicas sobre o dinheiro e propriedade Autor: Rodolfo Haan A problemática econômica contemporânea é analisada sob a ótica dos relatos e posições da Bíblia. Para essa análise, o especialista holandês Rodolfo Haan vale-se de expressões bíblicas sobre questões como segurança e técnica, comércio e desenvolvimento, produtividade e distribuição, riqueza e pobreza. A obra não propõe um estudo sobre a economia no tempo dos relatos da Bíblia, e sim ultrapassa as barreiras cronológicas. Dessa maneira, o significado espiritual do processo econômico é esclarecido e alcança-se uma compreensão mais aprofundada da sociedade moderna e o lugar em que nela ocupa a fé cristã. Teologia em diálogo: os desafios da reflexão teológica na atualidade Organizador: Ney de Souza A obra apresenta uma série qualificada de artigos de renomados pesquisadores na área de teologia, tendo como pano de fundo o Concílio Vaticano II e as contribuições da teologia latino-americana para a articulação entre fé e vida. O conjunto de textos selecionados por Ney de Souza ultrapassa o mérito científico, permitindo ao leitor uma reflexão teológica ampla, focada também no compromisso da Igreja Católica com a justiça social e a construção de uma sociedade solidária. | 129 CUPOM DE ASSINATURA ANUAL Revista Horizonte Teológico Remeter para: Revista Horizonte Teológico Rua Itutinga, 300 Bairro Minas Brasil 30535-640 | Belo Horizonte - MG Fax: (31) 3419-2818 [email protected] www.ista.edu.br Nome ____________________________________________________ Endereço _________________________________________________ _________________________________________________________ Bairro ____________________________________________________ Cidade _____________________________________ Estado _______ CEP _______________________ Telefone (___) __________________ E-mail ___________________________________________________ Consulte o valor da assinatura: (31) 3419-2804 ou pelo e-mail [email protected] Formas de pagamento: ( ) Cheque nominal à ISJB - Instituto Santo Tomás de Aquino ( ) Depósito Bancário: Banco HSBC Agência 0534 - Conta corrente: 02577-42 Titular da conta: ISJB - Instituto Santo Tomás de Aquino (Enviar comprovante de depósito juntamente com cupom) Bairro