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viagem População mapuche: 700 mil a 1 milhão de indivíduos Territórios: Argentina e Chile + Línguas: mapugundun e espanhol ESQUI na montanha sagrada Grupos étnicos relacionados: pehuenche, huilliche e picunche Bandeira Mapuche No ano passado, 10 mil pessoas visitaram o Parque de Neve Batea Mahuida, na Patagônia, a primeira estação de esqui de um povo indígena no mundo. Os mapuches argentinos descobriram o caminho da inovação para preservar seu território. Texto e fotos: Heitor e Silvia Reali A CENÁRIO MÁGICO: a 1.600 metros de altitute, as ladeiras do vulcão Batea Mahuida são ideais para esquiadores principiantes. 50 janeiro/fevereiro 2015 P l a n e ta té o final do século passado, os índios mapuches de Villa Pehuenia, a 310 quilômetros ao norte da cidade de Neuquén, na Patagônia argentina, viviam como a maioria dos povos indígenas latino-americanos: sofrendo para preservar suas terras e identidade; pressionados pela integração compulsória ao mundo dos brancos; lutando contra a degradação do ambiente; e às voltas com problemas como alcoolismo, pobreza, urbanização e miscigenação. Em 1998, o lonko (“chefe” em língua mapuche, o mapudungun) José Miguel Puel procurava soluções que pudessem desviar a comunidade da pobreza sem abrir mão da sua cultura ancestral. Para Puel, a busca de um negócio sólido e socialmente responsá- vel virara uma obsessão, pois queria ver sua gente longe das calçadas vendendo suvenires baratos. Mas a chance não surgia. O inesperado foi encontrá-la com a visita do coronel aposentado da armada Abel Balda, ex-comandante de missões na Antártida e criador do Centro de Esqui de Caviahue, também na Patagônia. Balda fora à Pehuenia para conhecer o belo cerro Batea Mahuida, escondido entre bosques milenares de pinheiros Araucaria araucana, várias crateras de vulcões e lagos azuis ofuscantes. Além da natureza imponente, o militar notou imediatamente que a neve era de ótima qualidade para esquiadores, mas suas conclusões não passaram disso. Seu pensamento congelara com o azul dos lagos Aluminé e Moquehue e as monta- P l a n e ta janeiro/fevereiro 2015 51 viagem nhas dos vulcões Batea Mahuida, Llanin, Villarica, Quetrupillán, Llanay e Lonquimay. O que ninguém imaginava é que a visita despretensiosa fosse gerar o Parque de Nieve. Tão logo soube da presença do coronel na vila, lonko Puel o procurou para conversar e solicitar seu apoio, junto ao governo argentino, para um empreendimento exclusivamente mapuche. Pronto. Com pouca conversa, no final daquele mesmo dia os dois homens selaram o compromisso de criar o Parque de Neve Batea Mahuida. Acima, a vista do lago Aluminé. Abaixo, a pista de esqui em setembro de 2014. Na cosmovisão mapuche, a neve e a montanha são entidades tão vivas quanto as plantas e os animais. Defesa do território O direito ao território é a précondição para a sobrevivência física e cultural de uma população tradicional. “Sem a terra, o indígena não é ninguém”, diz Daniel Puel, o atual administrador do parque mapuche. “Sem a terra o povo perde-se a si mesmo e talvez seja melhor morrer”, ressalta. Daniel era apenas um menino em 1998, mas participou das assembleias da comunidade em que o projeto foi discutido – mais de dez. No início, os mais velhos eram contra, porque na cosmovisão mapuche a montanha e a neve são entidades vivas, portanto sagradas, tanto quanto os animais e as árvores. “Como vão brincar com a neve”?, era a pergunta recorrente. Mas ,assim que o consenso foi alcançado, todos se engajaram no projeto. Enquanto Balda se empenhava em conseguir a posse das terras do cerro para os mapuches, e também em levantar a soma necessária para o empreendimento, o lonko Puel mobilizava as 80 famílias das duas comunidades indígenas da região para elaborar o projeto do parque: como utilizá-lo, como aplicar os recursos, como profissionalizar empregados e como distribuir os lucros. Com tudo decidido, o chefe e os anciãos foram ao local escolhido para a construção das instalações e realizaram um ritual: pediram permissão ao cerro para instalar a estação de esqui, pois desejavam realizar mais coisas na vida, além de criar ovelhas e vacas. No ano 2000, a Província de Neuquén reconheceu a soberania mapuche sobre as terras do cerro e destinou subsídios para o empreendimento. A virada do século foi duplamente comemorado pela comunidade. Em junho de 2002 o Parque de Nieve foi inaugurado numa área de 14.500 hectares, localizada a oito quilômetros da Villa Pehuenia, a 1.600 metros de altitude, sob minuciosa proteção ambiental. Atualmente, a estação dispõe de hotel, restaurante, loja de artesanato, posto de saúde (inclusive ambulância) e toda a infraestrutura necessária para esquiadores, pistas de esqui, teleférico, motos de neve e instrutores indígenas. Daniel Puel não tem dúvida de que o empreendimento é um sucesso, pois, além de proporcionar 70 empregos à comunidade, o público vem crescendo ano após ano. Na última temporada de inverno, de junho a outubro de 2014, dez mil pessoas passaram pelo parque, o que possibilitou o pagamento dos salários, investimentos em manutenção, verbas para famílias carentes e subsídios para os jovens que desejam estudar em outras cidades argentinas. Um restaurante com culinária mapuche – na qual Abaixo, o centro de Villa Pehuenia. À direita, instrutores de esqui mapuches em motos de neve. 52 janeiro/fevereiro 2015 P l a n e ta P l a n e ta janeiro/fevereiro 2015 53 Paraguai viagem Brasil Uruguai Chile Argentina Buenos Aires Santiago se destacam pratos de carne com pinhões de auracária – e uma loja de artesanato indígena complementam a renda da instituição e atraem turistas. A estação dispõe de quatro pistas e quatro teleféricos. A inclinação da montanha é ideal para os esquiadores principiantes e famílias, mas fora das pistas há ladeiras ideais para o esporte radical. Alberto Puel, o chef de cozinha do parque, explica que o empreendimento é uma exceção no contexto de uma Argentina que vive um momento econômico desfavorável. “Há comunidades aqui em Neuquén que estão vivendo situações difíceis. Eles não têm o que temos: estabilidade. Não podem se fortalecer nem se projetar. Nós também passamos por isso antes do ano 2000 e sabemos o quanto é difícil. O nosso projeto fortaleceu a comunidade.” “O Parque de Neve não significa só independência financeira”, ressalta Daniel Puel. “Incorporamos o turismo sustentável como fonte de renda e motor do desenvolvimento de Pehuenia, que vivia só dos esportes de verão nos lagos.” Antes, o movimento acabava no outono e a vila quase fechava de abril a outubro. Atualmente, virou destino turístico durante todo o ano. Para o administrador, o Parque Batea Mahuida não oferece apenas neve, esqui, cavalgadas e passeios de motos. “Este projeto é único no mundo. Estamos no Mapu, o país mapuche, dos vulcões mágicos e das florestas milenares.” Mas todos têm consciência de que o empreendimento só virou realidade porque houve consenso e esforço compartilhado entre a comunidade, o coronel Balda e o governo de Neuquén. “Todo o ano, em fevereiro, fazemos uma cerimônia privada para pedir permissão à montanha para esquiar nas ladeiras. Tudo o que você vê está vivo, neve, montanha, árvores, pássaros, lagos, vulcões, todos são parceiros para os mapuches.” Villa Pehuenia Neuquén Temos o que outras comunidades indígenas argentinas não têm: estabilidade. 54 janeiro/fevereiro 2015 P l a n e ta Um povo em dois países Território mapuche ancestral Território mapuche atual Família m apuche e m 1908, na Patag ônia arge ntina. orgulho e persistência Pegue o mapa da América do Sul e Entretanto, após a independência dos Para ele, não há grande diferença entre observe a área compreendida entre os dois países, os acordos deixaram de ser mapuches argentinos ou chilenos. No Chile, paralelos 36 e 46. Ali, no centro-sul do respeitados por ambos os governos, calcula-se que existam 500 mil mapuches, Chile e da Argentina viviam, até a chegada que, a partir da metade do século especialmente na região administrativa dos espanhóis, 2 milhões de mapuches. XIX, empreenderam a “Conquista da de Araucanía. Na Argentina, o censo indica Em língua mapudungun, mapu quer Patagônia”, no Chile, e a “Campanha do pouco mais de 200 mil “Isso, sem contar dizer “terra” e che, “gente”. Originários da Deserto”, na Argentina. os descendentes que se miscigenaram. região de Neuquén, os antigos mapuches Acima, à esquerda, Daniel Puel, administrador do parque. Ao lado, a loja de artesanato indígena. Abaixo, avisos de preservação ambiental dentro da área protegida e o concorrido “ravióli de ovelha com pinhões de araucária”, muito apreciado pelos turistas. Durante séculos os mapuches Aí poderíamos passar, somando os dois expandiram seu território além dos Andes conseguiram desarticular as ações militares até o Pacífico, trocaram hábitos nômades desencadeadas pelos espanhóis, mas pelo sedentarismo e, após o contato não tiveram sucesso contra os militares otimista, o mesmo não acontece em com os espanhóis (que os chamavam de chilenos e argentinos. Várias aldeias foram outras áreas mapuches, em geral muito araucanos), se dedicaram à agricultura e dizimadas. O massacre na Argentina foi pobres. Um sinal amarelo começou ao pastoreio. Nas migrações, conquistaram intenso. A vitória final sobre os mapuches a piscar recentemente na Patagônia ou deslocaram para longe outros povos rendeu ao comandante das tropas, o argentina, quando mapuches se nativos como os picunches e os huilliches. general Julio Roca, a presidência da rebelaram, em novembro, contra a nação, em 1880. Derrotados, os índios instalação de torres petrolíferas em suas território, os mapuches lutaram 300 anos foram reduzidos a “reduções” no Chile e a terras. No Chile, também há resistência contra a coroa espanhola. Em 1641, antes “reservas” na Argentina. militante contra a construção de torres Obstinados em defender seu vasto da independência do Chile e da Argentina, Daniel Puel diz que seu povo não países, de 1 milhão”, contabiliza Daniel. Se em Villa Pehuenia o futuro é de alta tensão em território indígena. A os espanhóis reconheceram a nação guarda rancor, só pesar. “Mudamos o olhar. afirmação da vontade de viver diferente mapuche por meio de vários tratados. Não queremos ficar presos ao passado.” dos mapuches continua. foto: reprodução P l a n e ta janeiro/fevereiro 2015 55
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