Uma Breve Comparação entre Línguas Élficas e Indo
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Uma Breve Comparação entre Línguas Élficas e Indo
LIVY MARIA REAL COELHO UMA BREVE COMPARAÇÃO ENTRE LÍNGUAS ÉLFICAS E PROTO-INDOEUROPÉIAS CURITIBA 2006 1 LIVY MARIA REAL COELHO UMA BREVE COMPARAÇÃO ENTRE LÍNGUAS ÉLFICAS E PROTO-INDOEUROPÉIAS Monografia apresentada à disciplina Orientação Monográfica II como requisito parcial à obtenção Do bacharelado em Letras- Grego do Setor de Ciências Humanas, Letras e artes, Univerdiade Federal do Paraná. Orientadora: Profa. Dra. Adelaide H. P. Silva CURITIBA 2006 2 Acadêmicos Adelaide, Márcio, Lígia, Théo, Jorge. Afetivos Vó, Larissa, Marina, Érica, Felipe. “Num sei, num sei...” Mara e Álvaro. Financeiros Maricler S/A e Fundação Araucária Tabela 0: Agradecimentos Dedicado a cinqüentona mais linda do mundo... 3 SUMÁRIO 0. Introdução...............................................................................................01 1. Proposta..................................................................................................02 2. Justificativa..............................................................................................04 I. História Real...........................................................................07 II. História Ficcional.....................................................................09 3. Metodologia............................................................................................14 4. Aspectos Fonológicos.............................................................................15 5. I. Vogais............................................................................................17 II. Oclusivas........................................................................................19 III. Alofonia...........................................................................................24 Aspectos Morfológicos............................................................................24 I.Língua de Caso..... .......................................... ......................24 II.Marcação de Número............................................... .............26 III.Marcação de Gênero.. ............................. .............................28 IV.Artigos... .......................... .......................... ...........................29 V.Morfologia Verbal. ..................................................................29 6. Outros Aspectos .....................................................................................30 7. Conclusão.. .......................... .......................... ......................................32 8. Referências ... .......................... .......................... .................................33 4 0. INTRODUÇÃO Talvez seja o descontentamento com o mundo que leve tantos homens a buscarem alternativas à realidade. Alguns criam novas formas de governo e, estando no poder, aniquilam o outro. Outros, quiçá, mais sensatos ou apenas menos poderosos, criam fantásticos mundos literários. Esse segundo parece ser o caso de dois jovens amigos do início do século XX: Lewis e Tolkien. Ambos criaram realidades alternativas à nossa; curiosamente nenhuma é perfeita, livre do mal ou se doenças. Essa tentativa de brincar de deus também está presente em XXX de Jorge Luis Borges. Neste conto “uma sociedad secreta y benévola (...)surgió para inventar um país.” No entanto, acabam criando, ficcionalmente, através de verbetes enciclopédicos, todo um mundo,m com sua geografia, línguas, História, etc. Borges, assim como os jovens ingleses, cria um mundo com padrões e valores bem diferentes dos nossos. Em seu planeta, Uqbar, as pessoas não entendem a realidade como o curso dos objetos no tempo e no espaço e sim como “uma serie heterogênea de actos independientes. Es sucesivo, temporal, no espacial.” Curiosa é a relação que esta visão de mundo tem com a estrutura da língua de Uqbar. Considerando que Borges conhecia algo da hipótese Humboldt-SapirWhorh, a língua e a maneira de perceber a realidade se mesclam e se espelham: se não há espaço, só tempo, não há a necessidade de substantivos, não há como fazer referência a “algo que é”, porque não este algo. O que há são ações e estados que acabam. Há verbos impessoais. Não há “Luna”, há a ação de “lunecer” ou de “lunar”. Se há a necessidade de referência a um determinado objeto, isto é feito através do acúmulo de adjetivos que a coisa trazia naquele momento: “Luna” poderia ser “aéreo-claro sobre oscuro-redondo”. Essa empreitada de Borges levada às últimas conseqüências poderia resultar num trabalho como o de Tolkien: a criação não só de uma língua, mas de toda uma família lingüística, a criação não só de um mundo ficcional, mas de toda a sua história e mitologia. 5 Enquanto no conto de Borges o planeta foi criado para “demostrar al Dios no existente que los hombres mortales son capaces de concebir um mundo”, Tolkien, muito religioso, criou um mundo onde línguas extremamente belas pudessem ser faladas. Para ele, o interessante era criar estruturas lingüísticas harmoniosas e a partir disso, um mundo onde estas criações existiriam.1 Não só pela extensão mas por sua complexidade, este mundo tolkieniano merece ser visto, afinal à pergunta “PONTO VIRADO Quiénes inventaram a Tlön? El plural es inevitable, porque lá hipótesis de un solo inventor – de un infinito Leibniz obrando en la tiniebla y en la modestia- ha sido descartada unánimamente.” Poderia ser respondida como nome do criador de “O Senhor dos Anéis”. 1. PROPOSTA O presente trabalho busca uma comparação entre línguas élficas e línguas naturais. Por línguas élficas entende-se o conjunto de idiomas criado por John Ronald Reuel Tolkien (1892 –1973) que serve de linguagem para os elfos de sua literatura. Elfos são criaturas da mitologia européia (germânica, nórdica e celta) que aparecem com diferentes traços em cada uma das narrativas que habitam. Na obra de Tolkien os elfos são criação de Illúvatar, que os fez para serem a raça mais bela e sábia do mundo. Eram imortais, mas não eternos, podendo ser mortos através do ‘aço de guerra’, do fogo, de uma grande tristeza ou assassinados, porém não conheciam a velhice e as doenças. A estrutura de um elfo é semelhante à dos homens; são, no entanto, mais fortes de ‘membros e espírito’. Outro nome para elfos é Quendi, os "que falam com vozes". Era assim que os 1 Curiosamente, Tolkien rompe com o mundo real na criação deste universo, como a sociedadesecreta ao criar Uqban, a terra média de Tolkien e o planeta de Borges são universos desligados da nossa realidade. Lewis, no entanto, nunca se afasta totalmente deste mundo:Alice vive no mundo real e tomas pastilhas para poder conhecer o fantástico; os irmãos Penvensie entram em um guarda-roupas mágico para conhecer Nárnia. 6 elfos se auto-entitulavam, pois teriam ensinado a fala às demais raças na Terramédia. Tolkien, o autor da famosa trilogia “O Senhor dos anéis”, foi um importante filólogo para seu século e deu aulas de Inglês Médio em Oxford. Criou como passatempo, uma família de línguas de acordo com suas preferências pessoais relativas, por exemplo, à sonoridade ou à estrutura sintática. O autor acreditava que as língua deveriam ser “belas” e seu critério de beleza era seu próprio gosto. Assim, criou línguas que, para ele, soavam bem e possuíam estruturas morfossintáticas especiais. Nota-se quais eram as preferências de Tolkien ao adentrar no universo das línguas: é gritante o uso de nasais e liquidas e de estruturas não canônicas como o dual. Dentro da criação de Tolkien encontram-se 12 línguas com pelo menos algum tipo de fragmento ou indicação de sua estrutura, das quais duas, o Quenya e o Sindarin, são completas a ponto de se poder falar ou escrever nelas. Existem outras línguas que Tolkien apenas nomeou, mas não chegou a desenvolvê-las. Neste trabalho, opto por abordar especialmente o Élfico Primitivo (doravante EP) e o Quenya. Minha escolha é baseada na estrutura da família élfica criada por Tolkien: o EP é a hipotética língua-mãe que teria originado todas as outras, tal qual é o Proto-Indo-Europeu (PIE) para a família das línguas proto-indo-européias, como o grego e o latim. Tolkien criou antes as línguas faladas no Senhor dos Anéis e a partir delas montou o que seria sua proto-língua. O próprio filólogo asteriscava as formas do EP, dado que, tomando a família élfica como real, o EP teria um estatuto diferente das demais, seria não atestado. Tolkien registrava suas línguas em diversos artigos, mas nunca chegou a publicar um livro sobre isso. Essas referências são hoje encontradas em reuniões publicadas por ser filho, como o Letters e o Etymologies. Minha outra opção, o Quenya, é explicada em razão da quantidade de informações que temos sobre essa língua. Em Quenya, temos dados de todos os níveis lingüísticos, diferente do EP que tem raros dados sintáticos disponíveis. 7 Ressalto aqui ainda que o Quenya não é ancestral imediato do EP, e sim é a evolução do Eldarin Comum, esta sim, língua que surge diretamente do EP. Em relação às línguas naturais também não trabalho com ancestrais diretos. Compararei a evolução do EP para o Quenya com a evolução do PIE ao Grego. Usarei aqui, na maior parte do tempo (quando não, explicitarei através de notas ou comentários) o Grego Clássico, ou Ático, dialeto ateniense do século V a.C. Antes do PIE se tornar Grego Clássico passou por um número incerto de estágios, como o Jônico Antigo, o dialeto Homérico. Assim nem o Quenya é descendente direto do EP, nem o Grego Ático do PIE. Com essa comparação preten analisar o grau de complexidade das línguas tolkienianas e, principalmente, o quanto elas se assemelham às naturais. 2. JUSTIFICATIVA Tendo em vista a formação de Tolkien como filólogo e o aparente cuidado que teve para criar suas línguas, este trabalho, como já dito, se propõe a compará-las com línguas naturais, em especial o Grego, para não só reconhecer o mérito do autor, como também para verificar se de fato suas invenções têm um embasamento consistente proveniente das línguas naturais. Para Tom Shippey, professor de literatura medieval e Inglês médio em Oxford: "Está claro que os idiomas que Tolkien criou foram criador por, vocês sabem, um dos mais completos filólogos de nosso tempo, de modo que deve haver então algo de interessante neles, e eu também penso que neles está derramado muito do seu pensamento e conhecimento profissional, (...) Freqüentemente tenho reparado que realmente existem observações muito valiosas sobre o que Tolkien pensava sobre a filologia real enterrada na ficção. E eu não ficaria de maneira alguma surpresa se houvesse valiosas observações enterradas nos idiomas inventados. então deve haver, de fato, algo que surja deles.” 2 2 Entrevista realizada durante um simpósio Arda, em Oslo, de 3-5 de abril de 1987, publicada no jornal Angerthas, edição 31. 8 Claro que este estudo não se sustentaria se seu objetivo fosse apenas buscar uma possível reflexão de Tolkien sobre falas reais durante o processo inventivo de língua, como defende acima Tom Shippey3, porém talvez esse tenha sido um dos resultados finais obtidos com essa investigação.4 Vejo na concepção de lingüística do próprio Tolkien um motivo para estudar suas línguas: “Nenhum idioma é apenas estudado meramente como um auxílio a outros propósitos. Ele realmente servirá melhor a outros propósitos, filológicos ou históricos, quando for estudado por amor, por si mesmo." (The Monsters and the Critics and other essays (1997), p189). Da mesma forma que Tolkien, segundo seu filho Christopher (Sauron Defeated, 1992, p440), criou idiomas sem fins específicos, acredito que um estudo de sua criação possa ser desinteressado em um fim prático. No entanto, essa proposta, infelizmente, não é a que sigo. Entendo que é importante estudar essas línguas em especial por dois motivos: 1) seu papel gigantesco na obra do próprio Tolkien (obra tão grandiosa e famosa que me desobrigaria a justificar seu estudo); 2) a grande qualidade que as línguas élficas aparentam ter, sobretudo se comparada a outros idiomas inventados. Quanto à primeira, Tolkien diz “(...)o que eu penso é um 'fato' primordial sobre o meu trabalho, que é todo da mesma espécie, e fundamentalmente lingüístico em inspiração.(...) isso não é um 'hobby', no sentido de alguma coisa totalmente diferente do meu próprio trabalho usado como válvula de escape. A invenção de idiomas é a base. as 'histórias' foram feitas especialmente para fornecerem um mundo para os idiomas, não o contrário. Para mim um nome vem primeiro e a história sucede-o. Eu deveria ter preferido escrever em 'élfico'. Mas, claro, uma obra como o Senhor dos Anéis tem sido editada e deixada apenas com a quantidade de 'idioma' que eu pensei que seria agradável aos leitores. (Eu agora descubro que muitos teriam gostado de mais). (...) Isso é para mim, de qualquer 3 4 Também professor de Inglês Antigo em Oxford e famoso estudioso de literatura inglesa medieval. Adiante comentarei sobre isso, em especial na questão das oclusivas do PIE. 9 forma, em grande parte um ensaio em 'estética lingüística’, como eu às vezes digo às pessoas que me perguntam sobre o que é isso tudo". (Letters, p219) Depois de tal afirmação fica evidente que se as línguas não são sua criação mais relevante, são, no mínimo, a origem para todas as outras. Assim, até mesmo em busca de uma interface lingüística-literatura, a produção de Tolkien merece ser estudada. Há5 quem acredite inclusive que a produção ‘inventiva’ de Tolkien deva ser considerada parte se sua produção como filólogo, o que aumentaria ainda mais o crédito dado a um estudo sobre isso. No entanto, não uso isso como justificativa, porque entendo que, como a produção literária e as críticas de um estudioso da literatura devam ser consideradas distintamente – embora não seja impossível e nem irrelevante traçar paralelos entre elas – o trabalho filológico de Tolkien e suas criações também devam ser vistas, ao menos num primeiro momento, como estudos distintos. Já a segunda justificativa, sobre a qualidade da criação de Tolkien, se sustenta no olhar para outras línguas não-naturais, como o Esperanto. O Esperanto, língua criada em 1887 por Ludwik Lejzer Zamenhof para servir como língua universal, é extremamente simples e, por isso, distante das naturais. Claro que essa simplicidade era objetivada por Zamenhof, filólogo e oftalmologista. Porém, essa língua, falada, no ano 2000, por aproximadamente 1,6 milhão de pessoas, já apresenta variações dialetais conforme a região em que é falada. Esse fato mostra que é comum às línguas não só a complexidade, como também a irregularidade. E disso Tolkien cuidou muito bem, suas línguas tem uma complexidade compatível com uma língua natural e apresenta também irregularidades. "Tolkien tentou propositalmente tornar seus idiomas ‘naturais’; em conseqüência,há alguns verbos irregulares e similares(...).” (Fauskanger , p27). O próprio Tolkien, em Letters, compara as línguas élficas ao Esperanto, contrastando a existência de uma mitologia/história que embasa as suas criações, ao contrário da língua de Zamenhof, que foi criada apenas com fins práticos. 5 Como Helge Kåre Fauskanger, Cand. filólogo. (correspondente a um mestrado) em idiomas nórdicos, autor do Curso de Quenya. 10 Além dos pontos apresentados, penso como os lingüistas suecos do grupo Mellonath Daeron6: "os idiomas de Tolkien já são dignos de estudo apenas pelos seus altos valores estéticos. (...) o conhecimento desses idiomas é a chave para uma apreciação completa da beleza da subcriação de Tolkien, seu mundo, Arda." (Fauskanger, p17) Acredito que para uma compreensão mais abrangente deste trabalho, seja necessária uma abordagem sobre como Tolkien criou essas línguas e, em especial, sobre como se deu a evolução histórica dessas línguas no mundo fictício da Terra Média. I. História Real Tolkien, já quando criança, se dedicava a línguas não reais. Em seu ensaio Um Vício Secreto, publicado em The Monsters and the Critics and other essays (1997, p198-219), o autor conta que quando criança falava Animálico. Tal língua, baseada na inversão dos significados das palavras, trocava nomes de coisas por nomes de animais. Tem-se, então, o seguinte exemplo: “cachorro rouxinol picapau quarenta”; "você é um asno". Passados alguns anos, Tolkien também se tornou falante de Nevbosh. Desta última língua, Tolkien já participou da criação de seu vocabulário. A estrutura do Nevbosh baseava-se na mistura de palavras distorcidas de língua inglesa, francesa e latina, e.g., “Dar fys ma vel gom co palt 'hoc pys go iskili far maino woc?”, “Havia um velho que disse 'Como/ eu posso, quiçá, carregar minha vaca?”. Pode-se notar por esta frase a mistura de palavras latinas, como “hoc” e alemãs “meine woc”, e sua distorção: “hoc” (este) é usado como “como”, “meine” (meu) é transformado em “maino”. Após essas brincadeiras juvenis, Tolkien estudou línguas clássicas e filologia, conheceu diversas línguas, dentre elas: Latim, Grego, Galês e Finlandês. Cito essas porque, aparentemente, são as que ele se baseou para construir suas 6 Parte dos trabalhos desse grupo de estudos sobre línguas tolkienianas pode ser encontrado em http://www.forodrim.org/ 11 línguas. Os sons do Quenya se assemelham muito aos do Finlandês, enquanto os do Sindarin, ao do Galês. Quanto às estrutura e evolução, parece-me que ele seguiu as línguas clássicas, até porque, muitas vezes, essas são a base de estudo de um filólogo O próprio Tolkien diz que na família das línguas élficas, o Quenya teria o mesmo papel que o Latim tem hoje: é uma língua antiga, morta, mas que é preservada, muitas vezes em sinal de erudição. “O idioma arcaico de tradição [Quenya] é tido como um tipo de ‘latim élfico’ e, ao transcrevê-lo em uma ortografia muito parecida com a do latim (exceto pelo fato de que o y é usado apenas como uma consoante, como o y na palavra [inglesa] Yes), a semelhança com o latim aumentou a olhos vistos”. (Letters:176) Tolkien, então, a partir do conhecimento desses idiomas passou a criar suas próprias línguas, tendo em vista sempre que estas deviam soar de maneira agradável. “One thing was important to Tolkien. Languages should be beautiful. Their sound should be pleasing.”7 No entanto foi durante a Primeira Guerra Mundial que as construções lingüísticas de Tolkien tomaram a forma dos idiomas élficos. Em 1916, Tolkien, numa carta à sua mulher, diz estar trabalhando em seu "absurdo idioma das fadas - para seu aperfeiçoamento. Freqüentemente desejo trabalhar nele e não me permito a isso, porque embora eu adore muito isto, me parece um passatempo maluco!" Nesta mesma época o Silmarillion8 começa a ser escrito. Para Tolkien, a criação do Silmarillion era absolutamente necessária à criação de suas línguas, já que tinha a idéia de língua intrinsecamente ligada à idéia de uma cultura e pátria. “A criação de um idioma e uma mitologia são funções relacionadas”, observa Tolkien em Um Vício Secreto. "Sua construção de um idioma irá gerar uma mitologia". E ainda após a publicação do Senhor dos Anéis: "a invenção de idiomas é a fundação. As 'histórias' foram criadas para fornecer um mundo para os 7 “Uma coisa era importante para Tolkien. Línguas deveriam ser bonitas. Seus sons deveriam ser agradáveis.” In http://move.to/ardalambion 8 Este é um livro não tão conhecido, que, no entanto, serve como Gênesis da obra ficcional de Tolkien, tento inclusive uma linguagem absurdamente parecida com a bíblica. O livro conta como surgiu o mundo fictício extremamente complexo onde se passam as aventuras narradas. 12 idiomas e não o contrário. Para mim, um nome vem antes e a história o segue.” (Letters, p219-220) "Ninguém acredita em mim quando digo que meu longo livro é uma tentativa para criar um mundo no qual uma forma de idioma agradável à minha estética pessoal pudesse parecer real, mas é verdade". ( Letters, p264.) Tolkien então criou suas línguas e a partir delas, a gigantesca mitologia presente em sua obra literária. O autor diz que sentia falta de uma mitologia bela como a germânica e a greco-latina para seu país, a Inglaterra, e também por isso sentiu necessidade de criar tais histórias. Sabemos também que seu primeiro livro, O Hobbit, foi escrito para seus filhos, ainda sem o objetivo de servir de base para suas línguas. “El Hobbit, que llegaría a ser uma obra famosa y fundacional, no fue um trabajo concebido para ser publicado em forma de libro. De hecho, el comienzo del trabajo tolkieniano se refirió espcíficamente a una forma de vida familiar, a las lecturas que desarrolló para entretener a sus cuatro hijos. (...) Por tanto, estaban alejados del interés mitológico mayor del autor inglés, reflejado por ejemplo en su trabajo El Silmarillion, comenzado en los años de la Primera Guerra Mundial, pero en realidade nunca acabado.”9 Tolkien, então depois de começar a criar seus idiomas, não parou com o que ele não mais classificava por ‘passatempo’, mas sim por ‘exercício de estética’. Criou em torno de 12 idiomas, e nunca deu nenhum deles por finalizado. Mesmo o Sindarin e o Quenya, idiomas tão completos quanto um natural, receberam mudanças até o fim da vida de Tolkien. II. História Ficcional Chamarei de “História Ficcional”, a mitologia criada por Tolkien para embasar suas línguas. Veremos que até mesmo a existência de diferentes dialetos são explicadas por Tolkien através desta ficção. 9 San Francisco in LARIOS, 2005, p20. 13 O Élfico Primitivo surgiu com os primeiros elfos criados por Ilúvatar10. Não foi a primeira língua a ser criada na mitologia de Tolkien. É posterior ao Valarin, idioma dos Valar11, e ao Khuzdul12, dos anões. No entanto é a primeira da família das línguas élficas. A partir do ÉP, tem-se o Eldarin Comum. O Eldarin Comum surgiu já no início da Marcha a Eldar13 e uma de suas principais distinções em relação ao EP é a perda de vogais finais breves14. A Marcha a Eldar foi o primeiro fator que criou as diferenças entre línguas: pela primeira vez os elfos se separavam e assim a língua de cada grupo evolui de maneira distinta. Tendo o EP evoluído para o Eldarin Comum, este evolui para o Quenya na fala dos elfos que chegaram a Arda. No entanto, acredita-se que por algum tempo 10 Ilúvatar: ou Eru é “O Um”, “O que é só”. É o criador de todo o universo, Ea, e do mundo onde se passam as narrativas, Arda. É interessante notar que em alemão Erde é “terra” e é também o nome da deusa-mãe germânica. 11 Valar: Ilúvatar concebeu os Ainur, os sagrados, um povo que vivia com ele entoando belas canções. Quando os Ainur foram para Arda – desejando criar um mundo belo e perfeito como suas canções - tornaram-se, de acordo com seu poder, Valar, os mais fortes, ou Maiar. 12 A criação do Khuzdul é anterior ao EP, porém o Khuzdul não foi falado antes do EP Isso se dá porque o criador dos os anões, o Valar Aule, foi obrigado por Ilúvatar a fazer com que os anões permanecessem dormindo até o despertar dos Primogênitos, os Elfos, raça que Ilúvatar escolheu para ser a primeira de Arda. 13 Eldar é um refúgio, um recanto criado pelos Valar para que os elfos saíssem da escuridão e do domínio de Melkor, um poderoso e funesto Valar. A viagem para Eldar se deu em três partes, tendo os elfos também se dividido de acordo com o tempo de sua travessia. Se dividiram em Vanyar, Noldor e Teleri. Cada grupo tinha um Valar protetor e passou por diferentes dificuldades durante a viagem. Os Teleri, o último grupo que caminhou para Eldar, tiveram uma travessia tão difícil que muitos desistiram ou se perderam. Em Eldar, os Vanyar e os Noldor viviam juntos em sua cidade Tirion, enquanto os Teleri viviam em Alqualonde, o Porto do Cisnes. 14 Essa perda de vogais finais breves pode ser vista através do exemplo: (EP) kwene > (Eldarin Comum) kwēn (pessoa). 14 estas línguas foram mutuamente inteligíveis (como latim e os romanços), por guardarem ainda muitas semelhanças. O Quenya surgiu em Arda e era a fala comum a todos a Vanyar, Noldor15 e Valar. Logo os Valar abandonaram seu idioma, o Valarin, e passaram a usar o Quenya também entre si. "De fato é dito que com freqüência os Valar e Maiar podiam se ouvidos falando quenya entre eles mesmos" (The War of Jewels (1994), p305). O Quenya também foi o primeiro idioma com registros escritos: “Aconteceu então que os noldor foram os primeiros a quem ocorreu a idéia das letras, e Rúmil de Tirion foi o nome do estudioso que conseguiu adequar sinais ao registro da fala e da música(...)”16 No entanto, durante a Primeira Era, houve a Rebelião dos Noldor, a maior parte deste clã deixou a terra dos Valar e voltou para a Terra-média. Em seu retorno, os Noldor, falantes de Quenya, tiveram contanto com os outros elfos que continuavam na Terra-média. O primeiro grupo com o qual se relacionaram foi os Sindar, Teleri que haviam desistido de ir para Eldar. Estes foram o povo que mais se desenvolveu na Terramédia e falavam Sindarin. No Sindarin muitas mudanças17 ocorreram, porém era ainda notável seu parentesco com o Quenya, em função do seu ancestral comum: o Eldarin Comum. Logo, os Noldor, menos numerosos, aprenderam o Sindarin. O uso do Quenya foi proibido entre os elfos em função de atrocidades que os Noldor tinham cometido em sua travessia para Eldar. Assim, “(...) os Exilados [Noldor que saíram de Eldar] adotaram o idioma sindarin em todos os seus usos correntes; e alta-fala 15 Vanyar/ Noldor: Dos elfos criados por Ilúvatar surgiram dois grupos: Eldamar e Avari. Os primeiros deixaram a Terra-média em busca do Eldar. Os Vanyar foi o primeiro grupo dentro os Eldamar a buscar Eldar. 16 Silmarillion, 68. 17 Veremos o Quenya mais adiante, mas as maiores diferenças estavam na morfologia – o Sindarin já não usava mais o sistema de casos – e na fonologia – o Quenya tinha um alto uso de vogais, enquanto o Sindarin usava oclusivas sonoras em grande quantidade. 15 do oeste [o Quenya] era usada apenas pelos senhores dos noldor entre si. Ela sobreviveu, porém, para sempre como a língua de tradição, não importa onde morasse qualquer indivíduo daquele povo" (Silmarillion, p159) O Quenya, então, passou por pouquíssimas transformações visto que a língua não era usada no dia-a-dia. No entanto, ainda é possível notar algumas diferenças, como a perda de casos, entre o Quenya usado em Eldar e o Quenya usado na Terra-média na 3a Era. Ainda permaneceu o fato de que "o quenya não era uma língua falada em Númenor. Era conhecido apenas dos eruditos e das famílias de alta linhagem, a quem se ensinava no início da adolescência. Era usado em documentos oficiais destinados a serem preservados, tais como as Leis, e no Pergaminho e nos Anais dos Reis (...), e freqüentemente em obras de tradição mais recônditas. Também se usava largamente na nomenclatura: os nomes oficiais de todos os lugares, regiões e acidentes geográficos da terra tinham forma Quenya (se bem que tinham também nomes locais, geralmente com o mesmo significado, em sindarin ou adûnaico). Os nomes pessoais, e especialmente os nomes oficiais e públicos, de todos os membros da casa real, e da Linhagem de Elros18 em geral, eram dados em forma quenya" (Complete History (1992): 471 18 Homens que viviam em Númenor. Esta ilha foi um presente dos Valar aos homens que se mantiveram fiéis a eles durante os conflitos da Primeira Era. 16 Segue abaixo uma estrutura que representaria as mais representativas línguas de Tolkien: Valarin Élfico Primitivo Sindarin Antigo Telerin Eldarin comum Nandorin Antigo Quenya K Avarin E Taliska 17 Doriathrin Sindarin Orkish Nandorin Aduânico 3. METODOLOGIA Então, para comparar estas línguas, defini determinados materiais para embasar as informações estruturais de cada língua. Isso porque, em especial, quanto ao EP e ao PIE, muitas das informações que temos são contraditórias. Pelo fato do EP ser uma língua hipotética, as teorias concorrentes discordam em determinados pontos de sua gramática (como, por exemplo, a questão das vogais proto-indo-européias). Aqui adotamos a leitura de Calvert Watkins (2002). Watkins apresenta uma estrutura para a língua que não é a mais tradicional e aborda também algumas questões como a hipótese glotálica, mesmo que faça isso de forma mais rápida e concisa. Não entramos na questão da formação do PIE neste trabalho também para fugir das várias hipóteses que há, como a da árvore genealógica ou a Wellentheorie19 Assim, tomamos como base a reconstrução de Calvert Watkins (2001). Para dar tratamento às línguas élficas, usei o material que Fauskanger, autor do curso básico de Quenya (2004), disponibiliza na internet e o próprio curso básico traduzido para o português. Não pude cotejar seus apontamentos com todas as obras de Tolkien (em especial com o Etymologies e o Letters, que não são de fácil acesso para brasileiros20) e muitas vezes discordo de seu tratamento dado às línguas. Apontarei no corpo do texto, quando discordar do autor. O trabalho iniciou-se com a leitura dos textos de Fauskanger e um levantamento de traços relacionáveis com a gramática do Grego. Após algumas leituras, inclui no estudo o PIE, em razão da posição ocupada pelo EP dentro da família élfica. Então as hipóteses de comparação passaram a abranger também o PIE e a evolução que gerou o Grego. 19 Teoria das ondas, J. Schmidt (1987) in Villar. 20 O Letters foi traduzido este ano para o português, no entanto, quando foi publicado já não havia mais tempo para que eu pudesse comparar as informações de Fauskanger com a fonte. 18 4. ASPECTOS FONOLÓGICOS Antes de iniciar qualquer tipo de investigação fonológica específica, acho relevante apontar os sistemas das línguas com as quais trabalharemos. PIE21 EP Grego Quenya [a] [a] [a] [a] [a:] [a:] [a:] [a:] [e] [e] [e] [e] [e:] [e:] [e:] [ε:] [i] [i] [i] [i] [i:] [i:] [i:] [i:] [o] [o] [o] [o] [o:] [o:] [o:] [ɔ:] [u] [u] [u] [u] [u:] [u:] [u:] [u:] [y] [y] [y] [y] [y:] [b] [b] [b] [b] [d] [d] [d] [d] [g] [g] [g] [g] [ gw] [gh] [ gw] [gh] [ gj h ] [ gwh] [ g j] 21 Aqui não inserimos as laringais saussurianas por estas serão controversas na literatura proto- indo-europeista. Para uma discussão sobre o assunto, vide Watkins (1998). 19 [bh] [dh] [p] [p] [p] [p] [t] [t] [t] [t] [k] [k] [k] [k] [ph] [ph] [th] [th] [kh] [kh] [ k j] [kw] [f] [s] [s] [s] [s] [zd] [l] [l] [۪l] [۪۪ḷ[ [۪r] [r] [r] [ṛ] [m] [m] [m] [m] [n] [n] [n] [n] [ks] [w] [w] [w] [w] [j] [j] [j] [j] [x] [h] [ps] [ŋ] Tabela 1: Sistema Fonológico das Línguas 20 I. Vogais O primeiro aspecto que abordarei será a distribuição das vogais nos sistemas fonológicos das línguas. Note o quadro abaixo somente com as vogais de cada língua: PIE EP Quenya Grego [a] [a] [a] [a] [a:] [a:] [a:] [a:] [e] [e] [e] [e] [e:] [e:] [e:] [e:] [i] [i] [i] [i] [i:] [i:] [i:] [i:] [o] [o] [o] [o] [o:] [o:] [o:] [ɔ:] [u] [u] [u] [u:] [u:] [u:] [u:] [u] [y] [y:] [ε:] Tabela 2: Sistema Vocálico das línguas em questão É notável que das línguas trabalhadas, somente o Grego tem seu sistema vocálico diferenciado. Outras línguas do período, como o Latim, também tinham seu sistema vocálico baseado em 5 vogais com a contraposição longa/breve, assim era esperado que Tolkien preferisse utilizar o padrão mais regular em suas línguas, até porque tal padrão é o mais comum nas línguas do mundo. 21 Já no século IV d.C., o sistema vocálico do Grego já tinha se simplificado a ponto de ter apenas as cinco vogais, sem distinção de quantidade. Tal sistema ocorre também no Latim Tardio e em algumas línguas élficas, como no Avarin22. Note a realização das vogais abaixo: PIE EP QUÊNIA A /albho/ (branco) /ereqa/ (isolado) /ela/ (veja) A: /sa:lo/ (salgado) /erja:/ (sozinho) /na:/ (é) E /nem/ (dar) /elen/ (estrela) /me/ (nós) E: /we:do/ (molhado) /stambe:/ (quarto) /callie:re/ (brilhou) I /nisdo/ (toca) /ninkwi/ (branco) /amil/ (mãe) I: /wi:so/ (veneno) /khi:na:/ (criança) /ki:ra/ (navegar) O /gjonu/ (joelho) /kwentro/ (narrador) /ambo/ (colina) O: /gjo:nwih/ (canto) /moroko:/ (urso) /xo:n/ (coração) U /putlo/ (menino) /kelun/ (rio) /amu/ (para cima) U: /mu:s/ (rato) /ndu:ne:/ (pôr-do-sol) /antu:lien/ (retornou) Tabela 3: Ocorrências das vogais em EP e PIE 22 O Avarin possui apenas as vogais breves: (EP) kwendī > (Avarin) kindi (elfos). 22 Grego [a] /delta/ (delta) [a:] /skia:s/ (sombras) [e] /esti/ (é) [e:] /zde:ta/ (sdéta) [i] /kai/ (e) [i:] /paidi:on/ (criança) [o] /epsilon/ (epsilon) [ɔ:] / ɔ:mega/ (Omega) [u:] /u:den/ (nada) [y] /ephygon] (fugi) [y:] /ty:khε/ [ε] /ty:khε/ [ε:] /h ε:/ (a) Tabela 4: Realização das vogais no grego II. Oclusivas Com relação à distribuição das oclusivas nas línguas élficas, Tolkien, caso se propusesse, de fato, a criar suas línguas em função das clássicas, também parece ter atingido seu objetivo. Usou determinada disposição já encontrada nas línguas reais, e criou sua evolução também dentro do foneticamente esperado, mesmo que nem sempre essa evolução seja exatamente igual a que ocorreu nas línguas gregas .Note abaixo a disposição das oclusivas do EP e do grego. Surda Sonora Surda aspirada Labial /p/ /b/ /ph/ Alveolar /t/ /d/ /th/ Velar /k/ /g/ /kh/ Tabela 5: Oclusivas do EP e do Grego 23 Observem-se os exemplos: EP Grego Surda Sonora Surda Sonora Surda aspirada /phjsiké / /parma:/ /r:aba/ / phinde: / Surda aspirada Labial Alveolar /pajdewo/ (educo) (rei) (alma) (livro) (selvagem) /panta/ /didomi/ / theos/ /stinta:/ /ngolda/ (deus) (curto) (sábio) /erkhomaj/ /kelun/ /gilja/ (venho) (rio) (estrela) (tudo) Velar /basilew / /kalon/ (belo) (dar) /gar/ (pois) (cabelo) /the:re: / (rosto) /khotse:/ (assembléia) Tabela 6: Exemplos de ocorrências das oclusivas no EP e no Grego Surda Sonora Sonora aspirada Labial p b bh Alveolar t d dh Palatal kj gj gj h Velar k g gh Labiovelar kw gw gwh Tabela 7: Oclusivas presentes no PIE 24 Surda Sonora Sonora aspirada /pet/ (voar) /leb/ (boca) /albho/ (branco) /putlo/ (menino) /ped/ (pé) /dheuh (fumar) Palatal /dekjm/ (dez) /gj onu/ (joelho) /bhergj h/ (alto) Velar /ken/ (novo) /jogóm/ (unir) /ghans/ (ganso) /kjekw/ (excremento) /gwow/ (bovino) /gwhen/ (sorriso) Labial Alveolar Labiovelar Tabela 8: Exemplo de ocorrências das oclusivas em PIE Acima listo também as oclusivas do PIE com o intuito de indicar um possível motivo para que a distribuição do PIE (língua que nas famílias naturais tem o mesmo papel que o EP em relação às línguas élficas) não ser a utilizada por Tolkien. Este teria preferido utilizar a distribuição das oclusivas no Grego, tendo percebido o quão anti-natural é a distribuição que antigamente era proposta pelos proto-indo-europeístas. É esperada, para o sistema fonológico das línguas, uma distribuição com as contrapartes sonoras e surdas, ou então somente a presença das surdas. Neste caso, os teóricos da língua hipotética propuseram exatamente o contrário para a distribuição das oclusivas aspiradas: existiriam as sonoras, as surdas não. Outro elemento que ainda contradiz essa hipótese é a impossibilidade do trato vocal humano produzir ao mesmo tempo um som sonoro e aspirado. Para produzir a sonoridade, as pregas vogais devem vibrar, para produzir a aspiração, elas devem se afastar, e estes movimentos são impossíveis de se realizar concomitantemente. 23 Mais uma vez, chamo a atenção para a perspicácia de Tolkien, que mesmo tendo, aparentemente, adotado o PIE como modelo do EP, não usou para sua língua determinados traços, no mínimo, discutíveis. Quanto às oclusivas, dentro do próprio Grego e da família élfica notamos que sua evolução se dá de forma semelhante, porém não exatamente igual. Em ambas as famílias a evolução é marcada pelo processo de fricativização de 23 Apesar de existirem oclusivas sonoras aspiradas no Sânscrito, isto não me parece suficiente para considerar natural esse modo de realização. O Sâncrito também é uma língua reconstituída e provavelmente a aspiração era produzida logo depois da produção da oclusiva sonora. 25 determinado conjunto de oclusivas. No entanto, em Quenya, fricativizam as surdas-aspiradas do EP, gerando de /ph/, /th/,/kh/; /f/, /s/, /h/, respectivamente. Já no Grego moderno, além das surdas aspiradas, as sonoras também fricatizaram gerando /f/, /θ/, /x/. EP / Grego Grego Moderno Quenya h /p / /f/ /f/ /th/ /θ/ /s/ /kh / /x/ /h/ Tabela 9: Comparação da evolução das oclusivas surdas aspiradas Grego / philosophia/ (filosofia) h Grego Moderno /filosofia/ (filosofia) /agat a/ (bom) /agaθa/ (bom) /khɔ:ra / (país) /xora/ (país) Tabela 10: Ocorrências das oclusivas surdas aspiradas e suas evoluções nas línguas gregas EP /phind:e/ (trança) h /t aura:/(detestável) h /k o:gore:/ (Coração ) Quenya /finde/ (cabelo, trança) /saura/ (imundo, podre) /huore/ (coração) Tabela 11: Ocorrências das oclusivas surdas aspiradas e suas evoluções nas línguas élficas 26 Vejamos mais demoradamente a evolução das surdas aspiradas, grupo onde há mudança na evolução em ambas as famílias. Nos dois casos, há a fricativização, ou seja, a muda o modo de articulação da consoante. No entanto o ponto de articulação ou é mantido, ou sofre uma alteração pequena. /ph/, /th/,/kh/, são, respectivamente, bilabial, alveolar e velar. /f/, /s/, /h/, labiodental, alveolar, glotal. E /f/, /θ/, /x/, labiodental, dental, velar. Notamos que quando há mudança no élfico, a consoante anterioriza, porém no grego isto não é tão regular, o /ph/ anterioriza, mas o /kh/, posterioriza. É interessante notar que nas línguas ibéricas, como o Português e o Castelhano, [θ] parece ter sido um passa intermediário na passagem de uma oclusiva para uma fricativa sibilante: (Latim) kera > (Romanço) kjera> cjera> tjera> (Português Arcaico) tsera> (Galego Português) θera > (Português Moderno) sera. Já no caso do Grego, há que se considerar que a evolução das aspiradas para as fricativas tem um paralelo com a evolução das sonoras para fricativas, criando um sistema absolutamente simétrico. Se o [th] evoluísse para [s], o [ð] ficaria sem correspondente sonoro.24 Veja a evolução e sua realização nas tabelas abaixo. Grego Grego Moderno / b/ /v/ /d/ /γ/ /g/ /ð / Tabela 12: Evolução das oclusivas sonoras nas línguas gregas 24 No caso do Espanhol ocorreu exatamente o mesmo. As sonoras evoluíram para fricativas. O [v] se confunde com o [β]; e o [ts], bem como o [dz], se confunde com o [θ], se tornando o par simétrico de [ð]. No Português, como não houve a evolução para fricativas, bem como, não houve a aspiração das pós-alveolares, o sistema se estabilizou em [f] e [∫], [v] e [ζ]. 27 Grego Grego Moderno / biblio/ (livro) /vivlio/ (livro) /andra/ (homem) /anγra/ (homem) /grama/ (letra) /ðrama/ (letra) Tabela 13: Ocorrências das oclusivas sonoras nas línguas gregas Embora essa não seja uma mudança ocorrida nas línguas élficas, achei pertinente ao menos citar toda a evolução das oclusivas das línguas gregas. III. Alofonia Mais um fato que mostra a preocupação de Tolkien em fazer suas línguas muito próximas às reais é a alofonia entre z/s presente em EP. Quando /s/ ocorre antes de uma oclusiva sonora é realizado como [z], como em /mizde:/ (chuva fina) e /ezde:/ (tranqüilidade). Tal foto é fonologicamente esperado e também ocorre em PIE, por exemplo. em /nizdos/ (ninho) e /mezg-/ (desnudar). 5. ASPECTOS MORFOLÓGICOS Vistas as possíveis relações fonológicas entre as línguas, partimos para as morfológicas. I. Língua de caso O que chama a atenção em um primeiro momento é o fato de que as quatro línguas analisadas são línguas de caso, i.e., tem as funções sintáticas expressas em morfemas da palavra e não na ordem em que estas aparecem na sentença. Como o PIE, o EP tem um número de casos desconhecidos. O número de casos 28 presente no PIE varia entre 9 e 10 a depender das teorias25, seus casos são nominativo, acusativo, vocativo, genitivo dativo, instrumental, locativo, ablativo e alativo. Já o quenya apresenta 8 casos - a saber nominativo, acusativo, genitivo, possessivo, alativo, ablativo, locativo, dativo, instrumental - e o grego 5 (nominativo, acusativo, dativo, genitivo, vocativo). Se pensarmos na evolução lingüística esperada, o PIE e o EP teriam mais casos que suas evoluções, no entanto não precisamos hipotetizar em relação a isso, se olharmos para suas línguas-filhas: tanto o Grego Moderno quanto o Quenya da 3ª. Era têm menos casos: respectivamente dois (mantêm-se apenas o nominativo e o acusativo) e oito (perde-se o acusativo). Ao olharmos também para as línguas élficas que vieram depois do Quenya da 3ª. Era, notamos a perde gradativa de casos, assim como na família de línguas naturais, onde chegamos ao ponto de termos famílias que evoluíram, para a não marcação de caso, como o Sindarin e como o Português em comparação ao Latim, embora ainda haja vestígios da marcação de casos no sistema pronominal. Note no quadro abaixo como a perda de casos é gradativa em ambas as famílias, o que explicita o quão cuidadosa foi a criação das línguas fictícias de Tolkien. Note que o Sindarin não é propriamente uma evolução do Quenya, mas sim uma língua irmã, assim como o Português é uma língua prima do Grego. No Sindarin a marcação de caso desapareceu, restando apenas a marcação de locativo, mais como um sufixo formador de nomes do que um sufixo de caso. Neste quadro mantenho como ‘?’, os casos que provavelmente existiam no EP, mas dos quais não há ocorrência ou menção. 25 Fauskanger comenta a existência no Quenya de um décimo caso que não chegou a ser nomeado por Tolkien. 29 Casos PIE EP Grego Nominativo X X X Acusativo X X X Genitivo X X X X Dativo X ? X X Ablativo X ? X Instrumental X ? X Alativo X X X Locativo X ? X ? X Possessivo Vocativo X Quenya X Grego moderno Sindarin X X X X Tabela 14: Casos nas línguas tratadas A perda do acusativo no Quenya é um fator, aparentemente, anti-natural na evolução das línguas élficas. A distinção caso reto x caso obliquo é a mais básica do sistema de casos, e geralmente é a última, ou uma das últimas, a ser perdida. No Latim, por exemplo, a evolução se dá do seguinte modo: ablativo e dativo se tornam um único caso em Romanço, que abarca também o genitivo quando esta língua se torna Provençal. O acusativo e o nominativo são os casos que passam por todos os estágios evolutivos do Latim sem sofrer alterações até que a língua deixa de ter marcação de caso. No Grego essa distinção também é mantida: o Grego Moderno possui como única distinção a de acusativo x nominativo. II. Marcação de Número Quanto à marcação de número, algumas línguas élficas também se aproximam do padrão das línguas indo-européias: o EP possui, como alguns dialetos do Grego e o PIE, três números: singular, plural e dual. Já o Quenya possuiu um quarto número: o plural partitivo. No entanto há pouquíssimas informações sobre 30 isso e raros são os exemplos, razão pela qual vamos deixar o plural partitivo de fora desta investigação (assim como fez Fauskanger ao apenas mencioná-lo em seu curso, sem dar um tratamento vasto a essa forma como fez com as demais). Singular Plural Dual Jovem ὁ νεανίας οί νεανίαι τώ νεανία Dom τò ðωρον τὰ ðωρα τώ ðώρα Tabela 15 – Número no Jônico Antigo (Dialeto Homérico) Singular Plural Dual Estrela Elen Elenî elenû Labio Peñe Peñî peñû Tabela 16 – Número no EP Ainda quanto à marcação de número é interessante notar que tanto nas línguas Gregas como nas Élficas, as evoluções perderam o dual, abarcado pelo plural: Singular Plural Jovem ὁ νεανίας οί νεανίαι Dom τò ðωρον τὰ ðωρα Tabela 17 – Número no Grego 31 Singular Plural Estrela Êl elin Criança Hên Hîn Tabela 18 – Número no Sindarin Lobo Singular Plural Dual Wlkwos Wlkwōs Wlkwō Tabela 19 – Número no PIE III. Marcação de Gênero Apesar de não ter encontrado qualquer análise sobre o gênero no EP, considero que posso tecer alguns comentários com base nos dados que tenho disponíveis. O EP parece funcionar similarmente ao PIE. Este possui, para grande de parte dos teóricos, dois gêneros: masculino-neutro (marcado por –n) e feminino-abstrato (-(e)h2). O EP, aparentemente também possui dois gêneros com delimitações semânticas próximas a essas: masculino-neutro (/-o:/ como em /tauro:/ “rei”, /tamro:/ “pica-pau”, /besno:/ “esposo”) e feminino-abstrato (/-i:/ ou /-e:/ como em /tauri:/ “rainha”, /i:di:/ desejo, /bese:/ “esposa). No entanto, para que se tomasse essa distinção como regra, ou como única regra, um estudo e aperfeiçoamento maior desta questão seria necessário visto que temos dados que a contradizem (como /orne:/ "árvore”) e temos, também, em EP, aparentemente, um terceiro gênero ou um alofone de /-i:/, formado em /-a:/, também com a idéia de abstração, e.g., /besta:/ “casamento” e /rata:/ “caminho”. Já do Quenya e do Grego temos mais dados, visto que temos essas línguas com gramáticas já bem definidas. O Grego possui três casos: masculino, feminino e neutro - σοφός (sábio/ masculino), σοφή (sábia) σοφόν (sábio / neutro) - enquanto o Quenya só 32 apresenta dois: masculino e feminino, embora estes sejam marcados por diferentes sufixos - serme (amiga), sermo (amigo); heri (senhora), heru (senhor). IV. Artigo A evolução do artigo do EP para o Quenya é semelhante à evolução do artigo em Grego. No dialeto Jônico antigo (VIII a.C.) não havia artigo, somente o pronome dêitico ὂ, ἤ, τό. Este sofreu uma especialização de uso e passou a ter a função de artigo definido. Não há no Grego pronome indefinido, é a ausência do definido que marca essa característica, tal qual nas línguas élficas. No EP havia um dêitico “i” - este(s), esta(s) – que em Quenya (e também em Sindarin) torna-se o artigo definido “i” – o(s), a(s). Em EP: “i galadâ” “esta árvore”, em Quenya “i alda” “a árvore”. Em Jônico, “τό παιδίον” “esta criança”, em ático “τό παιδίον”, “a criança”. V. Morfologia Verbal Em todas as línguas com as quais trabalho aqui há a distinção formal entre aoristo e perfeito. Abaixo um quadro de exemplos. Línguas Presente Aoristo Perfeito PIE leikw- (deixar) eleikwet leloikwet Grego λείπω (deixar) ἓλιπον λείψω EP Sukm (beber) suknē Usukn- quenya Sunc-(beber) Sunce Usunc- Tabela 20: Morfologia verbal nas línguas tratadas Todas as formas são marcadas por um sufixo, sendo que algumas delas como os pretéritos do Grego e o perfeito do PIE, sofrem também um tipo de prefixação. No Grego, o prefixo que indica pretérito é sempre o mesmo ε-, e é 33 chamado de aumento. Já no EP e no Quenya, esta prefixação parece ser feita por um sufixo reduplicativo (o chamado redobro da Gramática Tradicional) 26. No PIE, o redobro também marca perfeito.27 Língua presente Perfeito EP wâ-. (morrer) awâwiiê PIE weikw- (falar) kwekwoit(h)a Quenya Tuv- (encontrar) Utūv- Grego ἂγω (conduzir) ἤγαγον Tabela 21: Redobro nas línguas tratadas 6. OUTROS ASPECTOS Nesta parte do trabalho, explanarei outras semelhanças entre as línguas élficas e a família de línguas gregas, só que em outros níveis, como o sintático e o lexical. Os adjetivos em Quenya não são triformes como no Grego, porém apresentam sua disposição na frase da mesma forma que os gregos: concordam com o sujeito e podem vir em posição atributiva ou predicativa. Em posição predicativa têm a função de predicado da frase, mesmo que o verbo “ser” não esteja explícito. Este tipo de construção, a frase nominal, também existe em Grego e PIE, assim como existe um verbo cópula em cada uma dessas línguas. 26 Fauskanger (2004) caracteriza a formação do perfeito no Quenya como um processo de prefixação através de um aumento. Aqui, chamo o mesmo processo de redobro por entender o prefixo como a reduplicação da primeira vogal da primeira sílaba do verbo, e não como um aumento que varia de acordo com a qualidade da vogal da primeira sílaba. Faço esta distinção por existir no grego tanto redobro como aumento, e este último é sempre marcado por /-e/, já o redobro varia de acordo com a raiz da palavra primitiva. No Grego, o redobro pode também marcar presente, sendo a forma sem a reduplicação, o perfeito. Porém esta formação é mais rara. 34 Grego Atributiva Predicativa (Frase nominal) τό καλόν µέτρον (a medida Καλόν τό µέτρον. (A medida é bela) Quenya I taura aran (o poderoso rei) bela.) I aran taura (O rei é poderoso.) Tabela 22: Posições dos adjetivos em Grego e Quenya. Algumas aproximações em um nível lexical seriam possíveis: a marca para o genitivo plural em Quenya é -on e em grego é –ωυ; a palavra para homem em grego é ἁυήρ, enquanto em Quenya é nēr e em PIE, hner. No entanto, acredito que isto seja uma coincidência e não, de fato, algo pensando por Tolkien. Com a vastidão de palavras existentes e um número limitado de fonemas, é esperado que algumas palavras soem de forma parecida. Também seria muito profícua uma comparação do Quenya com o Latim, já que o próprio Tolkien o caracteriza como o “latim das línguas élficas”. Para que essa aproximação fosse ainda mais realista, Tolkien adotou as convenções ortográficas do Latim para o Quenya, por exemplo em Quenya /k/ é escrito como ‘c’. Outras semelhanças são a evolução do /w/ para /v/ como ocorre em latim vulgar no Quenya da 3a Era, a formação do artigo definido a partir do pronome demonstrativo e a formação do perfeito através de redobro28. Uma relação que poderia ter sido mais amplamente explorada neste trabalho é a formação do infinitivo. Em Quenya, como no Grego, há dois tipos de infinitivo: o aoristo e o perfeito. No entanto, além de não haver muitas informações sobre o infinitivo no EP, as que encontrei em Fauskanger (2004) e em seu site são contraditórias, ora apresentam o sufixo de infinitivo como –i, ora como -ie. Eu, que acredito que no EP havia dois infinitivos (um aoristo e um perfeito, uma marcado com –i, outro com -e) preferi não entrar aqui nesta discussão, mas acredito ser 28 Como por exemplo, em do (presente de dare, dar) e dedi (perfeito). 35 relevante ressaltar aqui tanto a possível relação quanto as dificuldades que encontrei para tratá-las. Uma última relação que traço é a concordância em caso do pronome relativo presente em Quenya e em Grego. As formas dos pronomes relativos no nominativo são ὄς (masculino singular), ἤ (feminino singular), ὄ (neutro singular) para o Grego é “ya” (singular)/ “yar” (plural) para o Quenya: Veja, como exemplo, o uso do relativo no genitivo: forma Exemplo Quenya yo I nīs yo yondo cennen. (A mulher de quem vi o filho) Grego ἤς ἠ γυνή ἤς παιδίον εἰδόν. (A mulher de quem vi o filho) Tabela 23: Frase nominal em Quenya e em Grego 7. CONCLUSÃO A partir desdes apontamentos, acredito já ser notável a acuidade do trabalho de Tolkien e quanto suas línguas se aproximam das reais. No entanto, entendo que, para dizer o quanto as línguas élficas são naturais, um estudo sobre o que é natural numa língua deveria ter permeado este trabalho. Parece-me que o cuidado com a fonologia das línguas é muito maior do que o cuidado que Tolkien teve com a morfologia: enquanto o sistema fonológico parece sempre estar em harmonia, notamos alguns aspectos aparentemente antinaturais na evolução do EP para o Quenya, e.g., o partitivo ser considerado um número e a perda do caso acusativo. Um estudo tipológico das línguas comparado a outros estudos evidenciaria com mais propriedade a naturalidade destas línguas inventadas. Trabalhar com aspectos não tão pontuais seria uma saída, no entanto, entendo que um trabalho como este é necessário para chamar a atenção para esta possibilidade de estudo e começar a levantar possíveis traços de análise. 36 Tolkien utiliza-se para a estrutura de sua língua não só a estrutura do Grego, mas também a do PIE e, aparentemente, a do Latim. Utiliza também estruturas de outras línguas, como o Finlandês e o Galês, mas aproximações entre essas línguas e as élficas seriam evidenciadas somente pela continuação deste estudo. Acredito ser ainda relevante notar como Tolkien dá um passo adiante de seu tempo em especial na questão das oclusivas do EP. Isto não seria notável a não ser através de um estudo que se preocupasse com suas línguas. Desta forma, estas criações merecem ser revistas, embora não seja a parte mais conhecida e, talvez, a mais relevante de seu trabalho. 8. REFERÊNCIAS Bernard Comrie. Typology. in RAMAT, Anna Giancalone; RAMAT, Paolo (eds). The indoeuropean languages. London/New York: Routledge, 1998. Enciclopédia de Valinor. Disponível em http://enciclopedia.valinor.com.br/index.php/Tolkien > Acesso em: 09 out. 2005, 09:40:52. FAUSKANGER, Helge Kåre. Curso de Quenya:a mais bela língua dos elfos. Trad. Gabriel O. Brum. Arte & Letra, 2004, Curitiba. FREIRE, S.J. Antônio. Gramática grega. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001 PERFEITO, Abílio Alves. Gramática do Grego: Curso Complementar do LICEUS. 4 Ed. Porto: porto Editora LTDA, 1974. VILLAR, Francisco. Lenguas y pueblos indoeuropeos. Ediciones ISTMO: Madri. 37 WATKINS, Calver. Proto-Indo-European: Comparison and Reconstruction in RAMAT, Anna Giancalone; RAMAT, Paolo (eds). The indoeuropean languages. London/New York: Routledge, 1998. http://en.wikipedia.org/wiki/Greek_alphabet 38