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1ª edição Agosto de 2013 Depósito Legal: ISBN: Impressão: Paginação: São José Sousa, Marta Ferreira Revisão: Capa: Texto de contracapa: Ágata Xavier HOJE HÁ EDITORAS à 1/2 duzia é mais barato Técnicas de Edição Turma 12/13 FCSH-UNL Prefácio de Rui ZInk Menu Prefácio Introdução e enquadramento Antígona Colóquio/Letras Matéria-Prima Planeta Tangerina Teodolito Zéfiro PREFÁCIO - RUI ZINK Introdução/Enquadramento Introdução e Enquadramento Bom dia, boa tarde ou boa noite, dependendo da hora a que estiver a ler. Em mãos tem o livro Hoje Há Editoras, que, como o nome indica, consiste numa compilação de entrevistas ao âmago de 6 editoras portuguesas, ladeada por uma explanação sobre o próprio meio editorial. Este livro foi criado no âmbito da cadeira de Técnicas de Edição, pertencente ao mestrado de Edição de Texto, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; «devendo a sua honra» à turma do ano lectivo de 2012/2013, que trabalhou primorosamente com o intuito de contribuir construtivamente para o espólio informativo da área editorial, numa época em que ainda há relativamente pouca informação organizada a respeito da mesma. Neste projecto vai poder encontrar a Antígona, editora auto-denominada «refractária» que edita sobretudo obras estrangeiras que questionem o status quo e obriguem a reflectir; a revista literária Colóquio/Letras, de vocação maioritariamente ensaística e crítica; a Matéria-Prima, que informa sobre temas diversos, como a psicologia, a história e a culinária; o Planeta Tangerina, que cria livros infantojuvenis (habitualmente inéditos); a Teodolito, que edita livros incontornáveis da cultura e literatura mundiais e a Zéfiro, que veicula trabalhos ligados ao esoterismo, à espiritualidade, à história e à filosofia. Ao todo, uma panóplia suficientemente heterogénea de missões editoriais, personalidades e modi operandi para apresentar ao leitor uma fatia substancial do mercado editorial português. Embora estas editoras possuam algumas características em comum (como o porte pequeno, a versatilidade dos profissionais e a procura pela inconvencionalidade), decidimos deixar tais paralelos e reflexões ao critério do leitor. Este trata-se de um livro de pessoas inteligentes — mestras na sua profissão —, que generosa e desinteressa9 Hoje há Editoras damente aceitaram partilhar o seu tempo e conhecimento connosco, e por conseguinte com o leitor; sendo também, consequentemente, uma oportunidade rara e significativa de as ouvir nas suas palavras, de forma clara e sem deturpações, aprendendo com os melhores. Mal-aproveitá-los seria como ir a Hogwarts e desprezar o Dumbledore. Como tal, um muito obrigada a todos os envolvidos, e desejos de uma boa leitura! O Mercado Editorial Português — Introdução à Introdução ...a.k.a. Exoneração de responsabilidade: o porquê dos dados seguidamente apresentados não serem completamente perfeitos e a culpa não-ser-nossa (!) Em primeiro lugar, bem-vindo. Este é o Enquadramento, a secção humildemente dedicada a providenciar-lhe as bases necessárias para compreender as circunstâncias económicas e sociais que embalaram a informação subscrita, de modo a orientá-lo nesta cápsula do tempo. O nosso intuito é acondicionar a sua viagem, para que a mesma seja tão branda e confortável quanto possível. Antes de prosseguir, uma palavra de advertência — há um pequeno problema com esta secção, nomeadamente: a inexistência de estudos regulares e suficientemente abrangentes ao mercado editorial português. O Instituto Nacional de Estatística não tem dinheiro para tal (defende-se), a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros é desprezada pelos editores (reclama), os editores levantam os braços ao céu (parece), e entretanto a asneira vai prosseguindo: tendências que passam por números concretos, editoras que fazem estudos por conta própria sem poderem contemplar a conjuntura do sector, dados que são demasiado díspares para baterem certo, etc. E porquê esta falta de transparência? Para proteger o segre- 10 Introdução/Enquadramento do do negócio... suspeita-se. Regra geral, as análises mais frequentes têm ficado sobretudo por conta de organismos estrangeiros, como é o caso da DBK, empresa espanhola de análise sectorial, e da GfK, grupo alemão de estudos de mercado. Será o resgate... editorial? Acontece que nem uma, nem outra, têm acesso total ao mercado nacional. Veiga Ferreira, presidente da União de Editores Portugueses, já confirmou que não lhe parece «que a informação divulgada ande longe da realidade» [1], e nós decidimos confiar. Um Mercado em Estatísticas A confiar no levantamento da DBK, a indústria editorial portuguesa contém actualmente 569 empresas. As duas principais, nomeadamente a LeYa e a Porto Editora, concentram entre si cerca de 40 a 45% do mercado, enquanto que a quota conjunta das cinco maiores situa-se à volta dos 60%. Anteriormente, em 2007, as cinco maiores editoras portuguesas da época — a Porto Editora, o Círculo de Leitores, a Texto Editora, a Asa e o Ediclube —, representavam uma quota de mercado de 30%, mas desde então que indústria editorial portuguesa sofreu um forte processo de concentração, sendo descrita pela DBK como «um pequeno número de companhias de grande tamanho e um 11 Hoje há Editoras amplo grupo de operadores com uma produção reduzida.» [2] Já neste gráfico é possível ver o valor total de vendas realizadas nos últimos 12 anos, denotando alguma oscilação, mas com tendência decrescente desde, pelo menos, 2009. Onde os estudos se encontram, nunca há valores iguais, tal como no gráfico anterior. A informação para o ano de 2006 não está disponível devido ao segredo estatístico. Aqui, o mercado escolar não incluído. Citando o Diário de Notícias: «Um estudo da GfK Portugal (...) refere uma quebra de cerca de um milhão de exemplares vendidos no ano passado em relação a 2011. No total, foram comprados 13,56 milhões de livros, o que representa um volume de negócios superior a 149,05 milhões de euros. Valores que representam uma diminuição de 9% (mais de 15 milhões de euros).» [3] 12 Introdução/Enquadramento A APEL tornou-se responsável pela introdução e gestão do sistema ISBN em Portugal desde 1988. Embora um número novo não tenha necessariamente de corresponder a uma obra inédita, podendo ser atribuído à reedição de um livro anterior a 88, dá para perceber que se editam muitos livros em Portugal. Segundo um estudo de 2007 da GfK, o top 10 do mercado dos livros em Portugal representava menos de 2% das vendas em unidades nessa época, ao passo que o top 1000 perfazia cerca de 5% do total. Por outras palavras, os bestsellers tinham menos impacto do que o esperado. Não há dados mais recentes. Mais uma vez, valores em falta devido ao segredo estatístico. No entanto, é possível especular que o valor de 2011 se tenha reduzido em função das condições do mercado, com muitas editoras a seguirem a tendência das restantes empresas do país: cortes de pessoal para reduzir despesas, enquanto se sobrecarregam os profissionais remanescentes. 13 Hoje há Editoras Os Portugueses e a Leitura Segundo dados de 2007, cada português tinha comprado em média 1,45 livros nesse ano, dedicando apenas 20% do seu tempo de lazer à leitura. Embora haja desagrado em relação aos preços dos livros, o maior inimigo será possivelmente a concorrência dos outros meios de entretenimento, como a televisão e a internet, dado que as vendas do iPad têm aumentado sem que isso se reflicta na compra de ebooks. Em seguida estão algumas estatísticas apuradas pela Marktest, grupo especializado em estudos de mercado. No primeiro gráfico, verifica-se que a maior parte das pessoas não detinha qualquer leitura em curso no momento do inquérito, observando-se também uma notável divisão entre classes: a maior parte dos leitores pertence às classes sociais alta e média-alta (A/B), contrapondo as classes média (C1) e média-baixa/baixa (C2/D). Já o segundo gráfico ilustra as preferências de leitura dos portugueses. 14 Introdução/Enquadramento Entretanto, tem-se verificado cada vez mais o fenómeno do livro susceptível a modas e efemerizado. Mário Moura, da União de Editores Portugueses (UEP), refere que «o consumismo está a invadir cada vez mais o mercado livreiro. Compram-se livros sobretudo por fenómenos de mediatização, de concentração de publicidade e não por escolha literária ou cultural.» [4] Também acrescentou que cada vez se fazem «maiores tiragens de menos títulos», e que o comprador médio «adquire um livro porque ouviu falar dele ou porque leu algures que ele vendeu milhares de exemplares (…) e não por opção pessoal, aprofundada», o que favorece os bestsellers e prejudica os fundos editoriais. Paralelamente, os prémios de literatura podem-se revelar determinantes no sucesso de um determinado livro, destacando-se o Nobel, o Booker e o Gouncourt. Cecília Andrade, da Dom Quixote, refere que «os prémios ajudam no marketing e na colocação dos livros nos postos de venda [e] dão visibilidade» [5], actuando como cartões-de-visita. O Nobel é o mais influente, produzindo não só um efeito imediato de vendas, que costumam disparar após a sua 15 Hoje há Editoras atribuição, como também a longo prazo, dado que premeia um autor pelo seu oeuvre completo e não por uma obra específica. Exemplo disso foi a autora austríaca Elfriede Jelinek, cujo primeiro romance, «A Pianista», de 1988, pouco vendeu em Portugal até à atribuição do Nobel 16 anos depois, vendendo então 15.000 cópias em apenas três meses. No entanto, o editor Zeferino Coelho ressalva que isto nem sempre acontece, pois «depende do prémio, do premiado, [e] das circunstâncias...» [6] Em relação à crise económica e aos seus efeitos no comportamento dos consumidores, Manuel Valente, editor, afirma que o «mercado do livro não sofreu mais porque é um produto que não é tão afectado pela crise como os outros» [7], devido a destinar-se a uma classe média amante de livros que procura manter os seus hábitos de leitura tanto quanto possível; no entanto, é certo que desencoraja o advento de novos leitores, dado que estes dão primazia aos bens de primeira necessidade. Os Grandes Temas Actualmente em Debate •O Acordo Ortográfico Dificilmente um novo acordo ortográfico poderia ser tão polémico como o de 1990, pelo menos na sua presente encarnação, e presumindo que a realização e implementação não seja revista. A obrigatoriedade de adesão sem referendo público ou alguma espécie de comício de intelectuais, quando se crê maioritariamente que os fins são essencialmente políticos e que se trata de um mexer na língua por quem não sabe, tem incomodado muita gente, embora existam apoiantes fervorosos (cujos argumentos de defesa raramente são linguísticos). Partidos à parte, acontece que à excepção de Portugal, nenhum dos países da CPLP accionou o Acordo e o Brasil acaba de adiar a sua decisão até 2016. Como tal, 16 Introdução/Enquadramento há três normas ortográficas em vigor neste momento: a de Portugal, de acordo com o AO; a do Brasil, igual ao que já era; e a dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, aliados a Timor, que preservam o português europeu pré -AO. Para a professora Isabel Lima, isto é preocupante: «Poderá até acontecer um cenário perverso de fragmentação — a criação de uma unidade ortográfica entre Portugal e Brasil, com África de fora; ou mesmo o aparecimento de três blocos, Portugal (com nova ortografia daqui a seis anos), África mantendo a actual (europeia) e Brasil continuando com a sua. Lembro que o Brasil não mudou a sua ortografia em acordos anteriores...» [8], conclui. Entretanto, é uma situação que vai tendo alguns custos. Paulo Gonçalves, porta-voz da Porto Editora, refere o seguinte: «Em Portugal usamos o Acordo Ortográfico na generalidade do nosso trabalho editorial, mas quando trabalhamos para Moçambique ou para Angola, temos que fazer esses livros de acordo com a ortografia anterior. É óbvio que isto tem custos.» [9] •A Pirataria e o Preço dos Livros Nos últimos anos, a pirataria tem agravado a precariedade financeira das editoras ao servir como retaliação aos preços elevados que estas praticam. Em 2006, por exemplo, foram apreendidos 13.100 exemplares de três edições didácticas para crianças em dois armazéns, numa operação realizada pela IGAC (Inspecção-Geral das Actividades Culturais), com «uma qualidade capaz de facilmente enganar o público» [10] (segundo Paula Andrade, responsável máxima dessa instituição). Por outras palavras, cópias de um nível praticamente profissional. Efectivamente, num país com quase 18% de taxa de desemprego e 10% da população a ganhar o ordenado mínimo, os livros em Portugal são demasiado caros para o poder de compra dos portugueses. Tal prende-se com a pro17 Hoje há Editoras dução do livro, que contempla numerosos intervenientes (autor, editor, distribuição, etc.), e, sobretudo, com a realidade do mercado nacional, que é muito pequeno e tem um número reduzido de leitores, o que só possibilita pequenas tiragens, na ordem dos 1500 a 2000 exemplares, sendo portanto um problema de economias de escala. Por outras palavras, só seria possível diluir mais eficazmente os custos fixos da edição caso se justificasse aumentar o número de exemplares fabricados, levando a uma maior repartição unitária desses mesmos custos. Tem-se tentado combater este problema com as edições de bolso, cujo preço médio é reduzido em nove ou dez euros em relação aos 18 ou 20 de um livro maior; mas entretanto há também um problema de mentalidade, em que o português comum prefere gastar o equivalente ao preço médio de um livro numa refeição de uma ou duas horas a um livro cujo usufruto é mais prolongado (reportar à informação anterior). •Os Ebooks O livro digital ainda está a dar os primeiros passos em Portugal, discutindo-se mais propriamente a ideia ou o conceito do que a sua real implementação, dado ter oferta e aderência limitadas. A idade tende a impactar a opinião, com as gerações mais jovens a mostrar uma resposta comparativamente mais liberal e entusiástica do que indivíduos mais velhos. Os prós e contras dos ereaders, indissociáveis dos ebooks, já são actualmente bem conhecidos. Por um lado, há a portabilidade prática, a “imediacia” sem fronteiras do conteúdo, os preços reduzidos dos livros digitais, o espaço ilimitado, o formato leve e bem proporcionado, as capacidades de auto-iluminação (em modelos mais recentes), a conectividade e a simplicidade abstergida de anexar notas, destacar o texto, etc. Por outro, a indissociação entre os dois produtos (dado que o livro em papel é o seu próprio suporte), a bateria limitada, o gasto mais severo da visão, 18 Introdução/Enquadramento a passibilidade de bugs, as questões mal resolvidas de copyright, a propriedade nunca realmente nossa dos ebooks, a facilidade de pirataria, etc. No entanto, esta não é uma discussão sobre a validade do livro electrónico, mas sim sobre a sua expressão em terras lusitanas. Nas palavras de Rui Aragão, director da Wook (livraria online da Porto Editora) «O sector do livro neste momento está em reflexão, ainda não está em mutação, porque os fenómenos que têm acontecido internacionalmente ainda não se fazem sentir de uma forma muito presente em Portugal.» [11] A respeito do número de clientes, refere ser «uma percentagem ínfima», salientando que há um número muito reduzido de livros electrónicos à venda em português e ainda o valor elevado do IVA como obstáculo, por absorver grande parte do desconto dos editores face ao livro em papel, algo que não acontece internacionalmente, e que inclusivamente fomenta a concorrência internacional: «Neste momento, as lojas online portuguesas confrontamse com uma concorrência internacional que vende os mesmos livros que as nossas editoras sem ter que agravar o custo desses livros com IVA de 23%» [12], diz Isaías Gomes Teixeira, presidente executivo do grupo LeYa, que demanda um regime fiscal especial para a tipologia de produto. Já João Alvim, novo director da APEL, opina que «é uma questão de tempo» até a adesão aumentar, acrescentando que «não há editor neste país que não esteja sensibilizado para a edição digital, mas os livros em Portugal não são só responsabilidade dos editores. São um produto intelectual cuja disponibilidade dependente também dos autores» [13], aludindo aos conflitos que têm sido noticiados internacionalmente, como queixas em relação aos preços excessivamente reduzidos contra o trabalho dos escritores. Entretanto a APEL já confirmou que, embora o mercado continue pequeno, possui uma crescente quantidade de novos aderentes. 19 Hoje há Editoras Será resultado da aliança entre a produtora canadiana de ereaders Kobo e a loja Fnac? Pode parecer descabido, mas a questão é que praticamente não havia oferta de ereaders em Portugal anteriormente, relegando a leitura adjacente aos tablets e smartphones. Foi no passado Inverno que a Fnac introduziu os leitores da Kobo ao nosso país, não tendo entretanto apresentado estimativas de vendas. A regra da Fnac para o P.V.P. passa por manter o respectivo valor entre 15 a 20% mais barato que o livro em papel, criando uma faixa de preços entre os dez e os 17 euros. Entretanto, a nível internacional, as vendas dos ebooks continuam a crescer, assim como a sua adopção por utilizadores internautas. * Damos por concluída a secção do enquadramento. Antes de prosseguir, recomendamos a consulta das fontes bibliográficas como pesquisa adicional, e agradecemos a generosidade notável de quem colaborou connosco. Esperamos sinceramente que tenham tanto prazer na leitura deste resultado final como nós tivemos em defendê-lo. NOTAS [1] Autor desconhecido (2007, 22 de Março). “Mercado editorial vale 530 milhões de euros”; Diário de Notícias. Disponível em: <http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=654689&pa- ge=-1> Acesso em 10/05/2013. [2] Autor desconhecido (2013, 26 de Março). “O mercado editorial continua a cair”; Blog Informa D&B. Disponível em: <http://blog.informadb.pt/2013/03/o-mercado-editorial-continua- cair.html> Acesso em 10/05/2013. [3] Caetano, Maria João (2013, 23 de Maio). “Uma feira para enganar a crise inevitável no sector do livro”; Diário de Notícias. Disponível em: < h t t p : / / w w w. d n . p t / i n i c i o / a r te s / i n te r i o r. a s px ? c o n te n t _ id=3235353&seccao=Livros> Acesso em 10/05/2013. 20 [4] Gastão, Ana Marques (2005, 29 de Dezembro). “Livro, fenómeno Introdução/Enquadramento de moda”; Diário de Notícias. Disponível em: <http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=632829> Acesso em 10/05/2013. [5] Caetano, Maria João (2008, 11 de Novembro). “Prémios literários dão visibilidade e aumentam vendas”; Diário de Notícias. Disponível em: <http://www.dn.pt/Inicio/interior.aspx?content_id=1135297&pa- ge=-1> Acesso em 10/05/2013. [6] Lucas, Isabel (2005, 30 de Janeiro). “Quanto vale um prémio”; Diário de Notícias. Disponível em: <http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=607673> Acesso em 10/05/2013. [7] Autor desconhecido (2010, 11 de Janeiro). “Crise económica dimi- nui lançamentos literários”; Diário de Notícias. Disponível em: < h t t p : / / w w w. d n . p t / i n i c i o / a r te s / i n te r i o r. a s px ? c o n te n t _ id=1466697> Acesso em 10/05/2013. [8] Lima, Isabel Pires de (2013, 16 de Janeiro). “Desacordo ortográfi- co: pior a emenda que o soneto”; Diário de Notícias. Disponível em: <http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_ id=2995411&seccao=Convidados> Acesso em 10/05/2013. [9] Roque, Rita (2013, 21 de Fevereiro). “Desacordo ortográfico: pior a emenda que o soneto”; RTP Notícias. Disponível em: <http://www.rtp.pt/noticias/index.php?article=629728&t- m=4&layout=123&visual=61> Acesso em 10/05/2013. [10] Autor desconhecido (2006, 1 de Fevereiro). “Pirataria entra no mercado português de livros intantis”; Diário de Notícias. Disponível em: <http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=635244> Acesso em 10/05/2013. [11] Osório, Clara (2011, 12 de Outubro). “Livro electrónico ainda es- tá a dar os primeiros passos em Portugal”; TSF Rádio Notícias. Disponível em: <http://www.tsf.pt/PaginaInicial/Vida/Interior.aspx?content_ id=2050774> Acesso em 05/07/2013. [12] Costa, Maria João (2011, 09 de Maio). “Leya pede regime fiscal especial para livro electrónico”; Rádio Renascença. Disponível em: <http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=30&did=106825> Acesso em 05/07/2013. [12] R., A. M. (2013, 25 de Setembro). “Fnac vai vender livros elec- 21 Hoje há Editoras trónicos”; Correio da Manhã. Disponível em: <http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/lazer/cultura/fnac- vai-vender-livros-electronicos> Acesso em 05/07/2013. 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Luís escolhia os textos, editava -os, levava-os à tipografia e não lhes largava a mão até estarem prontos para viajarem até aos leitores. Paranóia? A determinada altura, o texto a editar era A Verdade [1], do Marquês de Sade, e uma das ilustrações que tinha sido escolhida para o interior do livro era a imagem [2] de uma cruz ateia, cruz de Cristo invertida. Chegado à tipografia, numa das suas frequentes acções de “fiscalização”, diz-lhe o atento tipógrafo «É pá, isto estava ao contrário, vocês enganaram-se» e mostra-lhe a capa pronta, de cruz endireitada. «Ai é? Tudo fora, fazem outro livro e assumem a responsabilidade», respondelhe Luís. «Era uma barraca o Marquês de Sade sair com um cruz cristã, a não ser que se pensasse que era uma ironia; mas com o Sade não havia ironias para esse lado». Hoje, com 34 anos cumpridos em [1] Marquês de Sade. A Verdade. Edição ilustrada. Lisboa: Antígona, 1989. Trad. Ma- nuel João Gomes / Luiza Neto Jorge [2] Ilustração de Man Rey. «Monument à D.A.F. De Sade», 1933 27 Hoje há Editoras 28 Junho, a Antígona saiu de casa, instalou-se pelo Príncipe Real e foi aí que nos recebeu – com simpatia e disponibilidade, com paixão e inconformismo, com livros e café. Chegamos ao número 39 da Rua Gustavo de Matos Sequeira, porta verde, de madeira maciça, «não aceitamos publicidade» sobre a ranhura para o correio, e tocamos à campainha do primeiro andar, «Antígona/Orfeu». É Lurdes Afonso, a assis tente editorial da Antígona, quem nos abre a porta, e logo atrás vem receber-nos Luís Oliveira, o editor cuja história se confunde com a história da editora. «Não uso agenda, mas sabia que vocês vinham hoje, tenho uma óptima memória», havia de dizernos mais tarde. Encaminha-nos para a sala de reuniões que a Antígona partilha com a Orfeu Negro, chancela filha da Antígona, hoje editora autónoma, conduzida por Carla Oliveira. Ao fundo, uma estante recheada com os títulos da Orfeu Negro e Mini – aos da Antígona é-lhes dedicada outra estante. Na parede, um curioso poster com um anúncio de emprego, encabeçado com o alerta «Você é um líder? Sente-se realizado? Então este anúncio não é para si!». Na parede oposta, uma janela. Ao centro, a mesa sobre a qual descobriríamos que, em Benfica ou no Príncipe Real, com a tipografia mais ou menos vizinha, 10, 20 ou 34 anos passados, a Antígona mantém intactos os seus princípios fundadores, a sua paixão pelos textos subversivos, como se lê na apresentação que abre os catálogos. O seu empenho em «empurrar as palavras contra a ordem dominante». «A Antígona tem 34 anos e dispensa apre sentações», afirma Luís Oliveira, mas acrescenta de imediato: «Se quiser uma definição, a Antígona Antígona é uma editora refractária.» Para o editor, o termo «refractário» é o que melhor define o projecto. Tanto que podemos ler a descrição «Antígona, edi tores refractários» no topo do website [3] da editora, no nome do seu perfil no Facebook, como nome próprio na morada referida na ficha técnica dos livros que publica e, mais recentemente, sob a forma de epígrafe na folha de rosto dos livros. Logo no início da nossa conversa, Luís Oliveira mostra- -nos em primeira mão um exemplar de História eCriação [4], de Cornelius Castoriadis. «Este é o livro que vai sair agora – ainda nem está nas livrarias –, onde começámos a utilizar o significado de “re fractário”. Podem ler aí os dois, é de facto muito rico. E não pus tudo.» Acatamos a ordem e desco brimos uma definição de «refractário» [5] que nos apresenta a editora, situando-a como subversiva, como elemento de resistência aos modelos sociais hegemónicos. Lemos, não poucas vezes, que a Antígona é uma editora de esquerda, que a Antígona é uma editora revolucionária. Luís Oliveira afirma que nunca seria possível ouvir semelhantes palavras vindas da sua boca. Eu não sou de esquerda e a Antígona também não. Nós aqui na Antígona consideramos que esquerda e direita fazem parte do mesmo sistema dominante. Somos para além disso. Procuraríamos ter uma sociedade di ferente, com muitas paixões e formas de as realizar – isso no plano humano e afectivo. Depois, no plano teórico, é uma editora que procura autores que mijem fora do penico, isto é, que trabalharam de certa maneira para [3] www.antigona. pt [4] Cornelius Castoriadis. História e Criação. Lisboa: Antígona, 2013. Trad. Manuela Gomes [5] REFRAC- TÁRIO adj. Que resiste à acção física ou química; que resiste às leis ou a princípios de autoridade, insubmisso; que não se molesta ou ressente de ataques ou ac ções exteriores; insensível, indiferente, obstinado, resistente, intransigente; imune a certas doenças; que ou aquilo que su 29 porta temperaturas elevadas; jovem que falta à selecção para o serviço militar depois de convocado; indócil. In Dicionário Houais da Língua Portuguesa [6] «Fui mobili- zado. Não fugi à guerra porque não havia grandes possibilidades e, em boa verdade, nessa altura ainda estava muito cru na questão das minhas escolhas. Se calhar aos 20 anos ainda parti- lhava um bocadinho o sistema.» 30 Hoje há Editoras a formação da humanidade, ou seja, para a liquidação social. Nesse sentido, não tem colecções, porque consideramos que a separação no interior da sociedade não serve os homens e as mulheres. Este repúdio à concepção de um mundo es partilhado levou a que todo o catálogo fosse cres cendo como uma só colecção. Se, por um lado, parece haver uma unicidade que, em grande medida, se deverá ao facto de as obras editadas serem as que interessam particularmente a Luís Oliveira, por outro, o catálogo da Antígona não deixa de ser marcado por uma multiplicidade de assuntos e estilos, alimentados pelo ecletismo do gosto do seu editor. Segundo Luís Oliveira, o eixo comum a todos os livros da Antígona é o posicionamento de cada um deles num campo à parte da ordem social vigente, em desobediência e subversão, tal como a Antígona em relação a Creonte. Porque a ideia de Antígona, pegando na personagem de Sófocles, é uma ideia de rebeldia, refractária. Nesse sentido, tem um projecto à parte do projecto social vigente. Por isso consideramos que todos os livros obedecem a essa ideia da Antígona e da sua desobediência a Creonte e não faz sentido compartimentá-los. Todos os livros obedecem a essa ideia do refractário, do que não se coaduna com as leis vigentes e com o quotidiano seco do mundo. Pese embora o facto de a Antígona se colocar deliberadamente numa posição exterior aos compartimentos estanques que a sociedade tenta Antígona impingir aos projectos e às pessoas que deles fazem parte, Luís Oliveira não vê a editora como um projecto «marginal». Nisso do marginal há uma grande confusão e até ambiguidade, ninguém é marginal a nada, podemos é fazer escolhas. A nossa escolha é tentar criticar a sociedade existente, as suas leis, a repressão, a supressão, a anulação. Supressão e anulação e também a invalidação que a sociedade faz geralmente das pessoas. Um prefácio à editora: a livraria, a vida mundana e a declaração de guerra Para perceber o projecto editorial da Antí gona, façamos um breve regresso ao passado do seu editor. Antes de ser editor, Luís Oliveira esteve na guerra em Angola [6], foi funcionário da Direcção de Finanças em Santarém, operário fabril na Ale manha [7], “engenheiro” e promotor de máquinas de produzir farinha a partir da vide em Almeirim e Alpiarça [8], dono e dinamizador de uma livraria em Santarém. A livraria Apolo foi o gérmen do que viria a ser o seu projecto editorial. Luís Oliveira tinha 29 anos e habitava já no seu pensamento um esquisso de uma editora chamada Antígona. Simpatizava muito com a Antígona, a personagem de Sófocles, enquanto simbologia da rebeldia. Esse sentido metafórico ficou sempre na minha cabeça, tal como ficou a ideia de que um dia teria a minha própria [7] «Lembro-me de que estava nas Finanças em Santarém e resolvi ir para a Alemanha. Fui para lá sem nada. Não queria trabalhar para o Estado, primeiro, depois, não arranjei emprego. Pus-me a andar e andei lá de fábrica em fábrica, com o meu fraco inglês, mas com o meu bom francês, à procura de trabalho.» [8] «Não era en- genheiro, aprendi a trabalhar com as máquinas. Mas os senhores latifundiários só cumprimentavam um engenheiro. Se fosse um ajudante não era cumprimentado, era uma coisa quase 31 humilhante.» [9] «Presidente. Isto não quer di- zer nada, porque eu não quero ser presidente nem de retretes.» [10] «Lembro-me de um dia aquilo estar cheio até à rua e o Mário Viegas a declamar um poema em que dizia “eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada, estamos todos em cuecas”. Foi lá a PIDE e levou tudo, foi tudo de enxurrada para identificação. Me- nos eu, porque me recusei a fechar a livraria.» [11] «O Bolero era um bar que não devem ter conhe- cido no Martim Moniz. Era muito engraçado: por baixo era uma 32 Hoje há Editoras editora, para fazer a minha selecção de livros. A Apolo, projecto que segundo as palavras do próprio Luís correspondeu a uma «fase da vida de fazer alguma coisa em Santarém», era uma livraria generalista. Apesar de já fazer, de certa maneira, uma selecção de títulos, achava que tinha de vender ali na livraria aquilo que os outros escolhiam e aquilo que muitas vezes não me interessava. Mas eu não podia fazer censura, sou contra o proibido. Os anos de Luís Oliveira no papel de livreiro foram anos de actividade frenética. A Apolo servia não “só” como espaço de divulgação e venda de livros. Era também agente dinamizador do encontro de pessoas com várias artes e variados discursos, através de projecções de filmes do cineclube de que Luís Oliveira era então “presidente” [9] ou conferências realizadas por Mário Viegas [10]. Em 1973, Luís Oliveira largou tudo o que tinha em braços e rumou a Lisboa. «Abandonei Santarém, abandonei a livraria, abandonei o casamento, tudo, rompi com tudo», conta. Então, com os bolsos cheios com o dinheiro conseguido pela venda da livraria e não se sentindo ainda preparado para se assumir como editor, entrou numa espécie de estágio. Entre leituras e conversas, mesas de café e discotecas, este foi, como lhe chama, o seu «mergulho psicológico». Durante esses seis anos, até 1979, quando abro a editora, convivi muito em Antígona Lisboa com poetas e escritores. Havia um café que era o Monte Carlo, que albergava o Herberto Helder, o António José Forte, o Vergílio Ferreira, muitos escritores. E eu ia para ali à noite e dali partíamos para a vida mundana do Cais do Sodré, para o Bolero [11]... Foram seis anos sem trabalhar: dançava e lia de noite e durante o dia dormia, até às quatro, cinco da tarde. O meu almoço era quase sempre uma sandes e cinco cafés. Leu, então, centenas de livros, como aliás já havia lido em Santarém – «eram dois, três livros em cima da mesa de cabeceira e noites sem dormir, era jovem, era muito resistente» – e como havia lido também já durante a infância e a adolescência, passadas na aldeia de Chãos, concelho de Ferreira do Zêzere. Desta experiência primeira, recorda Luís Oliveira: Estive na aldeia doente três anos, dos 14 aos 17. E nesse período li todos livros da escola primária, que eram 203, os que eram para crianças e os que eram para adultos. Ainda hoje me lembro de frases de alguns desses livros, apesar de os ter lido há quase 60 anos. Num deles, Corpos e Almas [12], o autor diz a determinada altura “a justiça é como um cinto que aperta e alarga conforme as circunstâncias”. Continua a ser universal. No meio do rodopio pela capital, Luís Oli veira cruzou-se com o jornalista Torcato Sepúl veda. Torcato alugou um quarto em casa de Luís, juntos seguiam daí para as noites do Cais do Sodré boîte e tinha um restaurante onde se servia bacalhau à Brás do melhor de Lisboa. Lembro-me de um dia não termos dinheiro, eu e o grupo, e aquilo era num primeiro andar, aí a três ou quarto metros de altura. E então um atirou-se pela janela e depois descemos todos pelos ombros, um grupo de sete, oito pessoas, e não pagámos. Não tínhamos mesmo dinheiro. Uma tarde, arranjámos dinheiro e fomos lá todos pagar ao homem, que até tinha achado muito graça, por- que o empregado chegou lá com a conta e não viu ninguém.» [12] Maxence Van der Meersch. Corpos e Almas. 33 Lisboa: Minerva, 1951. Trad. Cabral do Nascimento [1.ª edição em Portugal] [13] «Nunca demos especial importância à cultura; pelo contrá- rio, servimo-nos dela como simples ferramenta para pensar melhor a nossa vida, organizar os de- sejos e defender o instinto. Seria, porém, um purismo infantil não utilizar a arma do livro (uma mercadoria como outra qualquer) para publicitar as experiências de corte radical com este mundo. Só realizando a mer- cadoria se pode superá-la e só su- perando-a se pode realizá-la.» “Prefácio dos Editores” in Custódio Losa. Declaração de 34 Hoje há Editoras e foi por essas bandas, iluminados pelas luzes dos bares Lusitano e Jamaica, embalados pelos seus ritmos, que conceberam o primeiro livro com selo Antígona. A história então contada é rocambolesca: numa mesa de um destes pontos de encontro da noite lisboeta, os dois teriam dado de caras com um manuscrito singular, assinado por um tal Custódio Losa, major dissidente tornado porteiro de discoteca, e encabeçado por um longo e bélico título: Declaração de Guerra às Forças Armadas e Outros Aparelhos Repressivos do Estado. Resolveram editá-lo, incluíram até um fac-símile do referido manuscrito com a assinatura do autor a comprovar a sua veracidade, escreveram um prefácio [13] definindo o projecto que então se iniciava e apresentaram-no aos leitores. Estava lançado o gancho, despertado o interesse, iniciado um alvoroço, que, durante meses, alimentou as páginas da imprensa: Na altura andaram à procura do major, telefonaram-me várias vezes. Sobretudo um jornalista de um jornal que depois acabou, já não me lembro bem, Diário Popular ou uma coisa assim, telefonou-me várias vezes a ver se eu lhe apresentava o major. E eu disse “eu não conheço, nós encontrámos o original dactilografado num bar, sei tanto como você, portanto não posso fazer nada”. E ele perguntava “mas ele nunca apareceu, nunca reclamou os direitos, nunca disse nada?”. “Nada, até hoje”. Foi assim uma coisa “quem é este gajo, este Custódio Losa, que é um militar e porteiro num bar e esquece-se de uma coisa destas, deixa isto?” E eu dizia “olha, o Mário-Henrique Antígona Leiria diz que o acaso tem causas matemáticas muito precisas”. Dizia sempre isso: “Foi um acaso, encontrámos isto.” Num pacto de cumplicidade, Torcato Sepúl veda e Luís Oliveira mantiveram a história durante três décadas e foi apenas numa entrevista concedida há um par de anos à revista, entretanto também encerrada, Os Meus Livros, que o editor da Antígona revelou, afinal, que Custódio Losa era, na verdade, uma fusão Torcato-Luís. «O Losa foi um nome escolhido pelo Torcato e Custódio fui eu que escolhi, porque era um tio meu», elucida Luís Oliveira, apontando para a tal assinatura fac-similada no livro e revelando com toda a naturalidade «isto é a minha letra, é a minha assinatura». O editor admite que o texto tem «algumas deficiências de escrita». Mas é, ainda assim, um manifesto da sua postura perante o mundo, uma tomada de posição que viria a espelhar-se em todos os textos por ele editados, mantendo-se, até hoje, absolutamente actual. Poderia a editora – e este texto – ter surgido três anos antes ou três anos depois? Folheando as 50 páginas do livro, Luís Oliveira responde: Não. Não poderia ter surgido três anos antes, porque eu não me encontrava intelectualmente preparado. Três anos depois poderia ter surgido, mas eu achei que era aquele o momento, porque era a seguir ao 25 de Abril. Temos isto [14]. E isto [15], uma fotografia da mulher do Eanes, que na altura era Presidente da República. Isto é uma obra de arte, esta mulher. Nós gozávamos com as mulheres deles... Guerra às Forças Armadas e Outros Aparelhos Repressivos do Estado. Lisboa: Antígona, 1979. p. 6 [14] Mostra a ilus- tração da p. 29, intitulada “perfil dos governantes através dos tem- pos”, onde a figura de um homem pré- -histórico é colocada lado a lado com uma fotogra- fia de Carlos Mota Pinto, primeiro-ministro na altura. [15] Exibe na p. 43, com uma foto grafia de Manuela Eanes legendada “as companheiras deles”. 35 [16] [17] Giorgio Cesarano. A In- surreição Erótica. Lisboa: Antígona, 1979. Trad. Abel Prazer [18] Luís Oliveira (org.). A Promessa de Antígona. Lisboa: Antígona, 1989 [livro-souvenir lançado para celebração dos 10 anos da editora] 36 Hoje há Editoras A competir com a irreverência do texto está a própria irreverência da capa [16], ocupada frente e verso por uma fotografia de dois militares assassinados num carro, que, tal como a caraça e o nome Antígona, fazia parte do baú onde Luís Oliveira ia guardando o “enxoval” da editora que estava prestes a nascer. «Esta fotografia foram uns generais que foram mortos num atentado em Espanha durante o franquismo. Eu ainda nem sequer tinha a editora e achei que esta fotografia um dia havia de servir para qualquer coisa». Sobre um dos corpos, foi desenhada uma cruz invertida, materializada em buracos circulares, que deixam entrever sob ela a página vermelha do seu interior. A afirmação da identidade: a linha gráfica, a tradução, a selecção dos textos a publicar A capa da Declaração de Guerra não foi desenhada por Eduarda Feio e a de A Insurreição Erótica [17], de Giorgio Cesarano, segundo título lançado pela Antígona, também não. Mas, a partir de então – e durante 20 anos –, seria ela, pintora, licenciada em Belas-Artes, «companheira de vida e de aventura» de Luís Oliveira, que assumiria a responsabilidade pela afirmação de uma identidade da editora que se coseu também com linhas gráficas. Logo a começar pelo formato dos seus livros: quase todos eles têm uma dimensão de 13 cm X 21 cm, apenas os livros maiores surgem com 17 cm X 24 cm. «Mesmo sem colecções», sublinha Luís Oliveira, «realmente o formato deu personalidade à Antígona». Quanto ao design em si, mais do que o rigor gráfico, o que se procurou foi a pulsão afectiva, o risco, a força: Antígona No caso desta capa [18], eu disse-lhe “quero uma coisa de comer crianças”. E ela arranjou este Saturno a devorar a criança que mete medo às mães. Ela fez capas muito bonitas. Uma por exemplo é o Oskar Panizza. Nunca viram? Psychopathia criminalis [19]. Mas quando a editora fez 20 anos ela disse “já não domino os programas”, ainda trabalhava com letraset, isto era tudo colado. Hoje trabalhamos com um designer [Rui Silva, da Alfaiataia], que tem feito um excelente trabalho. O Mil Novecentos e Oitenta e Quatro [20] agora tem uma capa moderna. A Eduarda tinha feito aquela com um soldado da Guerra do Golfo que parece que tem um tanque na cabeça, mas são uns óculos para a escuridão, aquilo [21] mete medo. Estão sempre a pedir essa edição. Esta capa [22] graficamente tem erros, isto seria enquadrado de outra maneira, mas tem uma força... Um dos pormenores que salta à vista nas capas da Antígona é a inscrição do nome do tradutor. O destaque dado a quem transporta uma obra da sua língua de origem para o português é, acima de tudo, uma forma de dar valor ao trabalho do tradutor, colocando em evidência a importância do seu papel na edição do livro tal qual ele nos chega às mãos. Alguns editores acham que o tradutor é uma escumalha, não tem interesse. Ora, muitas vezes aqui eu apercebo-me de que os tradutores trabalham tanto como o próprio [19] Oskar Panizza. Psychopathia Criminalis. Lisboa: Antígona, 1989. Trad. Cristina Terra da Motta / José M. Justo [20] George Orwell. Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. Lisboa: Antígona, 1991. Trad. Ana Luísa Faria [21] [22] De A promes- sa de Antígona 37 Hoje há Editoras autor. Uma tradução exige uma reescrita do livro. [23] William Blake. Cantigas da Inocência e Experiência. Lisboa: Antígona, 1994. Trad. Manuel Portela [24] Manuel Porte- la. O Comércio da Literatura. Lisboa: Antígona, 2003 [25] AA.VV PULLLLLLLLLLLL Poesia Contemporânea do Canadá. Lisboa: Antígona, 2010. Trad. John Havelda, Isabel Patim e Manuel Portela 38 Dada a importância dos “tradutores-autores”, Luís Oliveira escolhe a dedo as mãos nas quais deposita os livros da Antígona. Da sua rede de confiança fazem parte alguns amigos que já colaboram com a editora há anos. É o caso de Manuel Portela. Professor, poeta e tradutor, Manuel Portela iniciou a sua colaboração em 1994. Propus e publiquei na Antígona no final desse ano a primeira versão da minha tradução da obra de William Blake, Songs of Innocence and of Experience [23], cuja publicação original ocorrera 200 anos antes, em Londres. Foi a primeira tradução integral da obra em Portugal. Desde então, revela-nos via e-mail, tem mantido uma relação de estreita proximidade com o projecto editorial de Luís Oliveira, tendo traduzido mais de uma dezena das obras que fazem hoje parte do catálogo da Antígona tal como o conhecemos. Nesta casa publicou ainda o trabalho ensaístico O Comércio da Literatura [24], foi co-autor da antologia PULLLLLLLLLLLLL Poesia Contemporânea do Canadá [25], estiveram a seu cargo apresentações e lançamentos de livros da editora, sugere livros para publicação, escreve regularmente notas de leitura a livros que Luís Oliveira pondera publicar mas a respeito dos quais prefere ter primeiro uma opinião dos colaborados em quem confia. Usámos dos nossos recursos paródicos, no bom sentido – se é que mau sentido Antígona existe –, e perguntámos a Manuel Portela se, com tão volumosa e variada colaboração, se sentia um «militante de base da Antígona». Como resposta, obtivemos a sua visão sobre o que é a editora: Não sou propriamente militante – essa palavra tem uma implicação de cegueira sectária que é contrária ao projecto da Antígona. A Antígona tem expressão num catálogo de livros e nas ideias e formas desses livros. Esse catálogo é o resultado cumulativo de afinidades e trocas de ideias entre um conjunto de pessoas que, ao longo dos anos, colaboraram com o editor, Luís Oliveira. Não há um programa pré-definido, mas sim uma ideia constante de interpelação do presente e do passado e de conhecimento da nossa condição no mundo. Essa interpelação é feita através de múltiplos autores nos mais diversos géneros (ensaio, romance, conto, poesia) escritos em muitas línguas. Esse corpo de vozes e de textos tomou forma progressivamente num conjunto de livros que têm um elemento em comum: a crença na força do livro como instrumento essencial do pensamento e da experiência humana. Esta força do livro referida por Manuel Por tela representa, na Antígona, uma força particular. Se pensarmos sobre o assunto, apercebemo-nos de que há livros no mercado que continuariam a existir mesmo que em determinado momento não tivessem sido publicados por determinada edi tora. Uma qualquer outra editora inclui-los-ia no seu catálogo, pelos mais variados motivos, no instante imediatamente a seguir. Quando falamos da 39 Hoje há Editoras Antígona, falamos também de livros que, se não ti vessem sido aqui publicados, podiam muito bem não circular hoje em Portugal. Questionado sobre a importância da editora na materialização de vários dos trabalhos da sua autoria, Manuel Portela afirma: A sua publicação surgiu, desde o início, associada à Antígona, quer pela natureza dos textos, quer pelo papel que gradualmente fui assumindo como tradutor e autor. Ou seja, elas já foram pensadas, de certo modo, como obras para o catálogo da Antígona. Atendendo ao baixo valor de mercado dos títulos que refere, provavelmente não teriam sido publicadas do mesmo modo por outras editoras. Um bom exemplo disso é a antologia de poesia canadiana, cuja produção foi complexa e morosa, e que dificilmente teria encontrado outro editor. Outra das pessoas da esfera de confiança de Luís Oliveira é Maria de Lurdes Afonso, que nos respondeu também a algumas perguntas por e-mail. Desde Março de 2011 a desempenhar funções de assistente editorial na Antígona, Lurdes conta-nos como começou a sua relação com a editora. Acompanhava o catálogo da Antígona há vários anos e considerava esta editora uma excelente escola de edição. Quando soube que a Antígona precisava de uma assistente editorial, trabalhava como copywriter numa agência de publicidade, mas tinha já muitas saudades do mundo da edição; por isso, não hesitei em enviar o meu currículo e uma carta 40 Antígona de motivação. As suas tarefas estendem-se por todo o processo de concepção e produção do livro, desde o primeiro momento, quando é ainda apenas um objecto hipotético, até ao último momento, do lançamento, no qual se dá por inaugurada a viagem do livro até ao seu leitor. As minhas funções prendem-se sobretudo com o trabalho de coordenação editorial, com o acompanhamento do livro ao longo de todas as etapas e de todos os intervenientes: numa fase inicial, a elaboração de pareceres de leitura, a compra de direitos (quer a agências e a editoras estrangeiras, quer directamente aos autores) e a contratação de obras; numa segunda fase, o acompanhamento do processo de tradução, revisão e concepção gráfica do livro (confiados a colaboradores externos); por fim, a elaboração de materiais promocionais (do texto de contracapa ao press release) e a divulgação do livro na imprensa, no website da editora e, recentemente, nas redes sociais. A organização dos lançamentos é também uma tarefa muito aliciante (e que exige vários Lexotans). Lurdes Afonso dá-nos ainda pistas sobre o funcionamento de uma editora independente por oposição ao funcionamento das grandes casas e conglomerados editoriais. Ao invés das grandes editoras, onde o trabalho é geralmente muito compartimentado, na Antígona há uma grande concentração 41 [26] Anselm Jappe. Sobre a Balsa da Medusa – En- saios acerca da Decomposição do Capitalismo. Lisboa: Antígona, 2012. Trad. José Alfaro [27] Eudora Welty. As Maçãs Doura- das. Lisboa: Antí- gona, 2013. Trad. Diana V. Almeida [28] «Por graça, gostaria de referir um leitor fiel de Nisa e outro dos arredores do Porto (mantenho o anonimato, mas envio-lhes saudações refractárias caso passem os olhos por estas linhas algum dia; eles sabem quem são!), que todos os 42 Hoje há Editoras de funções em poucas pessoas que se desdobram em várias tarefas. Tem-se uma visão bastante completa e há uma grande participação, muito gratificante, em todas as fases do processo editorial. Percebemos através do relato de Lurdes que o dia-a-dia de quem trabalha numa editora como a Antígona é um caminho atribulado pela dinâmica imprevisível entre os momentos de maior stress e os momentos de prazer e realização profissional – e também pessoal, se se acredita no projecto em que se trabalha, como é o caso confesso de Lurdes. Da sua experiência na Antígona, a assistente editorial destaca dois momentos em particular: No ano passado, a vinda de Anselm Jappe ao nosso país, onde iria lançar Sobre a Balsa da Medusa – Ensaios acerca da Decomposição do Capitalismo [26], teve de ser adiada à última da hora devido a uma greve inesperada de controladores aéreos. Os convites tinham sido enviados, o lançamento fora divulgado, havia entrevistas agendadas, etc. Felizmente, conseguimos improvisar um sistema de teleconferência em contra-relógio, num verdadeiro sprint contra os imponderáveis desta vida. Um momento que me deu um prazer especial: a belíssima confissão amargurada de Hélia Correia, que apresentou recentemente As Maçãs Douradas [27], no lançamento do livro. Ouvi-la dizer que tinha odiado o livro devido à terrível dor de cotovelo que sentiu ao ler as linhas da Eudora Welty é algo impagá- Antígona vel. Lurdes Afonso acrescenta ainda à sua lista afectiva alguns momentos do trabalho quotidiano que diz serem «sempre muito especiais»: «o contacto com os leitores fiéis da Antígona nas feiras do livro, nos lançamentos e, até, por telefone [28].» Em 34 anos da editora, em 225 títulos publicados, a verdade é que – surpresa, ou não – não existe um único livro no catálogo da Antígona que tenha resultado de uma proposta [29] vinda de fora do seu núcleo de confiança – e que inclui, além de Manuel Portela, Lurdes Afonso e Eduarda Feio, também José Miranda Justo e Carlos da Fonseca, que foi professor na Universidade de Paris, investigador na Sorbonne e há quatro décadas amigo de Luís Oliveira. No espaço dedicado às perguntas frequentes, no site da Antígona, é aliás deixado um alerta de inspiração bíblica: «É mais difícil um autor entrar na Antígona do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha». Resultado: uma forte coerência [30] de conjunto, com razões por detrás de cada escolha que, muitas vezes, são mais de natureza olfactiva que objectiva. Se me perguntar por que é que eu escolhi determinado livro, às vezes não sei. É um cheiro, um instinto. O que me interessa é a inteligência vital, inteligência que exige uma compreensão essencial do mundo no sentido do Homem. Como dizia o Marx, ser radical é ir à raiz das coisas; na raiz está o Homem. Se uma pessoa tem uma inteligência vital, está na raiz das coisas, está no Homem. Se não está e está na empresa e no dinheiro e no es- meses nos ligam para saber se há um catálogo novo em vista ou para estarem informados das novidades. Outros há, nas feiras do livro, que apontam para um título e exclamam para os amigos: “Aquele livro mudou a minha vida!” Haverá coisa mais gra- tificante do que poder contribuir de alguma forma para mudar a vida das pessoas?» [29] «Mas não estou a dizer para não apresentarem uma proposta. Podem mandar para aí uma proposta.» [30] «Coerente, sabe de onde vem? Sabe o sen- tido etimológico? Vem de coração. Eu tenho coração, sou coerente.» 43 Hoje há Editoras pectáculo e nisso tudo, para mim não é uma inteligência vital. Apesar de tudo é inteligência, mas terá outra classificação. Portanto, a minha, fiquem a saber, é instintiva, que é a mesma coisa que ser vital. É talvez essa inteligência que me guia pelos livros, muitas vezes eu não sei... não sei justificar. [31] Phil Mailer. “Antígona vista de Nova Iorque” in A promessa de Antígona. Lisboa: Antígona, 1989. p. 73 [32] Étienne de la Boétie. Discurso Sobre a Servi- dão Voluntária. Lisboa: Antígona, 1986. Trad. Ma- nuel João Gomes 44 E quanto ao facto de serem escassos os nomes de autores portugueses editados pela Antígona, a justificação será mais racional? O escritor americano Phil Mailer [31] avança uma hipótese: «É verdade que não há em Portugal uma tradição literária subversiva e por isso será difícil descobrir autores que se integrem neste projecto voltado para a liquidação social». Luís Oliveira comenta: Eu próprio tenho dito isso. Não há muito, não. Temos o Manuel Laranjeira e poucos outros autores. Mas não há uma tradição subversiva, há desvios... O Eça de Queirós era, de certa maneira, subversivo na linguagem, mas não era um subversivo. O Camilo também não era, nem o Lobo Antunes, nem ninguém dessa gente. E quando chegamos a França temos um Jean Meslier, um La Boétie, um Montaigne, por aí fora, nunca mais acaba, eram de facto subversivos. Quando vemos ainda hoje o Discurso Sobre a Servidão Voluntária [32], com 500 anos, do La Boétie, há uma altura em que ele diz “é preciso libertarmo-nos dos nossos libertadores”. Isto é uma frase universal, é a pedra de toque para o conhecimento da humanidade. As pessoas não se libertam dos pais, não se libertam dos namorados, das namoradas, dos chefes, não sei quê, não se libertam dos Antígona libertadores, não estão libertas. Estão influenciadas e manipuladas. Existe, pois, pouco mais de uma dezena de nomes portugueses entre os quase 150 publicados pela Antígona, mas é um deles que está na base de um dos seus maiores êxitos editoriais e de uma das mais surpreendentes histórias que pontuam a sua história: Fernando Pessoa e o seu O Banqueiro Anarquista [33], editado sem licença e distribuído sem distribuidora, em 1981. Na altura, os direitos da obra do poeta da Tabacaria estavam nas mãos da editora Ática, da família Gonçalves Pereira, advogados e professores na Faculdade de Direito de Lisboa, que terão olhado para este como o “patinho feio” dos textos de Pessoa e não o publicaram – «os gajos eram de direita e aquele livro não lhes convinha porque punha o Fernando Pessoa anarquista», justifica Luís Oliveira. «Um dia digo assim “vou publicar isto, sem direitos, sem nada, a ver o que acontece”». Dito e feito. Os senhores das leis não demoraram na resposta e enviaram a tudo quanto era distribuidora uma carta com promessa de processo caso o livro fosse levado até às livrarias. «E se nós fôssemos distribuir o livro? Vamos de carro por aí acima...», sugeriu então Eduarda Feio. Sugerido e feito: E foi fantástico. Começámos por aí fora, em Coimbra sei que vivemos quase oito dias no Palácio do Buçaco, fizemos lá o Natal de 1981. Na altura, era o 12-13, ou seja, em cada 12 livros comprados havia um oferecido [34]. Quando chegámos a Coimbra, um livreiro disse “quero 100” – entregava 108 e factura- [33] Fernando Pessoa. O Banqueiro Anarquista. Lisboa: Antígona, 1981 [34] «Hoje são plafonds. A Fnac se comprar 500 livros quer mais dois por cento, mas continua esse vício. Se comprar 10 automóveis não lhe dão nenhum.» 45 Hoje há Editoras va 100 e pagavam logo, com medo de que o livro esgotasse, porque eu anunciei só 1000 exemplares e foi o milagre dos pães. A tipografia que me fazia os livros chegou a estar a trabalhar dias inteiros só a fazer reedições. Chegámos a ter os livros na mala do carro com notas de 1000 escudos e 500 escudos lá pelo meio, nem sabíamos que dinheiro lá estava. Vivemos à grande e à francesa. Aventuras à parte, havia ainda que preparar o embate com os legítimos detentores dos direitos de autor e foi com essa intenção que Luís Oliveira decidiu distribuir o livro também pelas livrarias da Ática, que não hesitaram em comprá-los e, mais do que isso, em colocá-los em destaque nas suas montras. «Eles estavam a ganhar dinheiro com a ilegalidade», salienta o editor. E verdade é que a quezília teria o seu ponto final num simples telefonema: [35] O Papalagui – Discursos de Tuiavii, chefe de tribo de Tiavéa nos mares do Sul. Lisboa: Antígona, 1982, Trad. Luiza Neto Jorge 46 São oito da manhã, ainda estava a dormir, telefona-me o senhor Gonçalves Pereira. “Eu gostava de falar com o senhor Luís Oliveira”. “Sou o próprio”. “Isto aqui assim é o Gonçalves Pereira, o detentor dos direitos do Pessoa, isto assim assim, você fez isto, voulhe meter um processo-crime”. E eu disse “não tem nenhum problema, mais vendo; se isso for proibido mais vendo”. “Pois, mas ninguém lhe vai distribuir o livro, já mandámos cartas para as distribuidoras”. Já nós o estávamos a vender directamente. E eu disse assim “olhe, não faz mal, se for preciso eu peço ao meu amigo Kadafi que mande cá uns homens para Antígona ajudar a distribuir o livro”. Passou-me aquela, podia ter falado no Jacques Mesrine ou noutro qualquer. Não sei se aquilo bateu ali na cabeça ou se o homem pensou – já era velhote – “é pá, estou metido com piratas”. Até hoje, vendi milhares e milhares e ainda continua a vender. Posso vendê-lo agora a cinco euros. O Banqueiro foi um banqueiro que me pôs a viver muito bem. [36] Fernando Pessoa. Contos Completos. Lisboa: Antígona, 2012 [37] Henry David O Banqueiro Anarquista e O Papalagui [35] têm sido os grandes sustentáculos das contas de uma editora que pouco liga a contas – «gasto tudo o que tenho e o que não tenho», diz o editor. Curiosamente, em 2012, Fernando Pessoa voltou a ser um dos êxitos de vendas, agora com Contos Completos [36], segundo título de Pessoa no catálogo da Antígona. Caminhada [37], de Henry David Thoreau, com tradução de Maria de Lurdes Afonso – terceiro livro do autor americano editado pela Antígona, depois de Walden [38] e A Desobediência Civil [39] – foi outro. Thoreau. Cami- Apesar de O Papalagui já ter tido várias reimpressões, a informação que figura nos últimos exemplares publicados fica-se pela referência à 7.ª edição. Falta de rigor? Decisão ponderada, explica Luís Oliveira, e que espelha a relação que a editora quer – e aquela que não quer – estabelecer com os seus leitores: [39] Henry David A chegada do livro ao leitor: a publicidade, as críticas, os prémios Não quero que o leitor chegue ao livro nhada. Lisboa: Antígona, 2012. Trad. Maria Afonso [38] Henry David Thoreau. Walden – ou a vida nos bosques. Lisboa: Antígona, 2009. Trad. Astrid Cabral Thoreau. A Desobediência Civil – seguido de Defesa de John Brown. Lisboa: Antígona, 2005. Trad. Ma- nuel Jorão Gomes 47 Hoje há Editoras 40] «Nos últimos dois, três anos abrandou, porque não há revistas literárias, não há suplementos... Um suplemento traz três livros no meio de 1000 que se publicam por mês, ou 500, não faço ideia.» 41] Andrei Plató- nov. A Escavação. Lisboa: Antígona, 2011. Trad. António Pescada [42] «Há 30 anos, Luís Oliveira fun- dava a Antígona – Editores Refractários, um projecto independente e contestatário que pretendia lutar sempre contra a corrente, publicando o que de melhor houvesse para publicar. Três décadas depois, a Antígona e Luís Oliveira 48 através de uma informação que o aliene, porque há ainda gente que chega a uma livraria, vê “500 000 exemplares vendidos” e compra o livro. E um leitor que chega a um livro através dessa informação, ou da “20.ª edição”, já está alienado. Chega ao livro não a partir de uma informação correcta do que ele é, mas por uma imposição da própria publicidade. Sou contra isso, não faço publicidade. Quanto à atenção que a imprensa dedica aos seus títulos, Luís Oliveira assinala que, dos cer ca de 12 livros que a Antígona edita anualmente, pelos menos metade tem recensões nas publicações da especialidade [40]. Contudo, isso não o entusiasma muito. Já não me interessa o que os jornalistas dizem sobre os livros e já não preciso, em boa verdade. Não vejam isto como uma vaidade, mas como uma forma orgulhosa de falar – e o orgulho é uma qualidade superior do espírito, a vaidade é uma qualidade inferior, acho eu, é uma definição minha. Às vezes é melhor não escreverem do que escreverem, porque dizem asneiras e não percebem muito bem os livros. O jornalista que é efectivo não lê o livro, lê a nota de badana. A pessoa que está fora, que é freelancer e que lê os livros, às vezes faz trabalhos muito interessantes. Sobre o Platónov [41] saiu uma recensão de um crítico, o Rui Catalão, que leu de facto o livro e leu-o duas vezes. Menos ainda, entusiasmam-no os prémios. Antígona Em 2010, os Prémios de Edição Ler/Booktailors re solveram atribuir-lhe uma distinção Especial Carreira, assinalando os 30 anos cumpridos da fun dação da Antígona e querendo homenagear a «persistência e dedicação deste grande editor», lê-se na nota [42] publicada à data. Luís Oliveira recusou. Eu não fui lá, nem quis saber disso para nada. E digo-lhe: para mim a Booktailors é uma banalidade de base, não tem grande prestígio nem têm grande interesse os prémios deles. Mas nenhum prémio tem grande interesse. Mesmo os gajos que vão receber o Nobel não são grande coisa. Porque houve muitos que recusaram. O Sartre, por exemplo, recusou. E o homem não era grande coisa, foi à Rússia e disse que aquilo era um paraíso. Muitos recusaram o Nobel da Literatura, disto e daquilo. Os prémios são sempre uma avaliação. E uma avaliação, seja na vida, seja na literatura, é sempre uma coisa duvidosa. Para haver uma avaliação é preciso haver quem avalie. E os que avaliam têm o quê? Dotes superiores aos outros? Têm qualidades especiais? Até o próprio título de “editor” tem alguma dificuldade em aceitar, preferindo antes afirmar-se como alguém que gosta de «certos livros», que os selecciona e que os dá a ler – sem grande vontade de fazer parte desse tal “mundo editorial” dos prémios, das críticas, da publicidade do livro. Aliás, já no prólogo do acima citado A promessa de Antígo na, Luís Oliveira o afirmava [43]. Agora, reitera: Alguns editores são gelatina, não inte- mantêm-se iguais, com a mesma irreverência e qualidade. Este prémio pretende homenagear a persistência e dedicação deste grande editor em publicar obras essenciais para a cultura literária, segundo inalienáveis princípios de qualidade.» [43] «A Antígona não aspira con- quistar um lugar, modesto que fos- se, no mundo das artes e das letras, nem na história assaz “respeitá- vel” da edição. Se por infelicidade um panteão lhe oferecessem, o único que lhe conviria seria o dos grandes cataclismos, ao lado dos terramotos ou do da peste. Da peste; sem dúvida!» pp. 10-11 49 Hoje há Editoras [44] Entretanto, até à data de redacção deste texto, foram lan- çados mais três. ressam nada. São raros os editores corajosos. A maior parte publica livros só para ganhar dinheiro, muitas vezes não os lêem. No outro dia foi entrevistado um editor na televisão que dizia que tinham tido dois êxitos naquele ano: de um lembrava-se, do outro não. Seria impossível na Antígona, porque eu passo uma manhã a colocar uma vírgula, como dizia Oscar Wilde, e uma tarde para a tirar. Nos 222 [44] livros que publiquei, sei onde está a vírgula a cortar o predicado do sujeito e, mesmo em livros com 20, 30 anos, se forem reeditados, eu sei onde está a gralha, sei onde está o verbo mal colocado. Vivo dentro e para os livros. Os meus. A teia textual: as palavras de ordem e as palavras desordeiras 50 Muitos são os slogans que, ao longo do tempo, têm alimentado a teia de citações que serve de apresentação da Antígona ao mundo. Uns são aforísticos, outros são sarcásticos, todos reflectem o projecto editorial da Antígona: o que é e como é. O capital social da empresa, por exemplo, recusa-se a vir expresso em números. Em todos os documentos onde é referido encontramos a inscrição «enquanto existir dinheiro, nunca haverá bastante para todos.» Claro está, esta frase capital só surge mesmo voltada para o social, isto é, para as pes soas, para os leitores que seguem o trabalho da Antígona. Para os bancos, o capital é de 5000 euros. Seria caricato ir ao balcão de um banco afirmar que todo o dinheiro do mundo não é suficiente para todas as pessoas do mundo. Seria abusivo Antígona até, depois de ter tido a Antígona uma ajuda tão grande por parte de um determinado banqueiro, como vimos atrás. Outro elemento que ironicamente tem funcionado como ajudante da Antígona no seu trajecto actual é o sistema capitalista, como faz notar Luís Oliveira: Nas crises do capitalismo a Antígona vende muito mais. Quer dizer, é anti-capitalista e alimenta-se das crises capitalistas. É curioso. Neste momento nós vendemos muito. Nunca tive tanto dinheiro como agora. Por que motivo isto acontece? Talvez porque a Antígona, não tendo respostas absolutas e universais sobre a sociedade em que vivemos para dar aos seus leitores – talvez porque as respostas absolutas e universais não existem –, tem «livros que pelo menos podem dar uma compreensão do mundo às pessoas». Ainda assim, no meio do sucesso que a editora tem vindo a ter e que tem permitido o aumento do número de livros publicados por ano, há momentos menos bons em termos de negócio. Mas Luís Oliveira encara-os com naturalidade, sem lhes dar grande importância, eventualmente por saber que nem sempre o facto de um livro não ser vendido está relacionado com o facto de ser um bom ou um mau livro. O caso de Memória [45], de Jean Meslier, é disso exemplo. O Jean Meslier era um padre que dizia missa durante o dia e que durante a noite escrevia que aquilo era tudo mentira. Era mentira a Igreja, a religião, os sermões. Ia dar a [45] Jean Meslier. Memória. Lisboa: Antígona, 2003. Trad. Luís Leitão 51 Hoje há Editoras [46] «Ele tem uma frase em que diz que a humanidade será livre quando o último padre for enforcado com as tripas do último rei, ou uma coisa assim. Os fenómenos do Maio de 68 desviam para “nós seremos livres quando o último burocrata for enforcado nas tripas do últi- mo tecnocrata”.» 52 missa e dizer no seu discurso o que a Bíblia lhe ensinou. E depois ia para casa e escrevia sobre a miséria em que a sociedade ainda vivia. Falava de si próprio, explicava que havia ali um intuito para ganhar a vida e que escreveu o que escreveu no testamento, umas 1000 páginas ou mais, para si próprio. Andei anos, sempre que ia a Paris, a procurar aquele original. Até que um dia encontro Memoires, Jean Meslier, um resumo. Não vendemos o livro. Coloquei-o há pouco tempo em saldo. E mesmo em saldo não está a vender. Mas é praticamente o único desaire que temos na Antígona. E não estou arrependido de o fazer! Porque ele agora vai para aí para os saldos e alguém há-de ler aquilo. Aquilo é uma coisa [46]... O arrependimento parece ser um sentimen to demasiado católico e Luís Oliveira não se arrepende de ter publicado nenhum dos livros que fazem parte do catálogo da Antígona. Uma vez mais, parece ficar clara a ancoragem do projecto editorial da Antígona à figura do seu editor, aos seus gostos, aos seus interesses, às suas inquietações. Pelo canto superior direito do site da Antí gona desfilam as linhas de força da editora, vertidas por citações dos autores que publica. George Orwell («Nunca se pode ter grande coisa em troca de coisa nenhuma»), Jacques Rigaut («Não há razões para viver, mas para morrer também não»), Sade («Deus é o único equívoco que eu não posso perdoar ao homem»), Raoul Vaneigem («O trabalho foi aquilo que o homem achou de melhor para nada fazer da sua vida»), Georges Bataille («Proibição não significa forçosamente abstenção, mas a sua Antígona prática sob a forma de transgressão») e La Boétie («É muito próprio do vulgo desconfiar de quem o estima e confiar nos que o enganam») são alguns deles. A que se somam muitos outros, como Henry David Thoreau, Eudora Welty, Reinaldo Arenas, Evgueni Zamiatine, Karl Kraus, Stig Dagerman, Jack London, William Blake, Guy Debord, Albert Cossery, Marquês de Sade ou Tomás da Fonseca, alguns nunca antes publicados em Portugal, todos encontrando na Antígona a editora que subscreve cada uma das suas palavras, destaca Lurdes Afonso. Para a assistente editorial da Antígona é esta a postura – «a total identificação entre a filosofia da Antígona e os livros que publica, sem desvios» – que faz a editora distinguir-se das demais. Além de um vocabulário muito próprio de contestação, inconformismo e irreverência que ressalta nos contactos com o exterior e em todas as actividades da editora – e que forma já a imagem de marca da Antígona –, a qualidade dos livros publicados (os tais livros que mudam vidas), um catálogo ultracoerente, a linha editorial intransigente que não cede a modas de mercado e que não trata os leitores como energúmenos, o posicionamento no mundo, o programa ideológico-editorial (a editora com uma palavra a dizer, que «empurra as palavras contra a ordem dominante» e que subscreve cada linha que publica), o carisma e o empenho do editor, a qualidade do trabalho de edição e de concretização gráfica do livro, aspectos que se traduzem em leitores muito fiéis que sabem com o que podem contar mal folheiam um livro da Antígona. 53 Hoje há Editoras E na opinião de Manuel Portela, os leitores são um dos dois elementos que marcam a impressão digital da Antígona. Do lado da produção, é o facto de os seus autores, tradutores, organizadores, prefaciadores, revisores e designers se identificarem com uma ideia de livro como projecto de conhecimento do mundo e como modo humano de comunicação. Do lado da recepção, é o facto de uma grande parte dos seus leitores reconhecerem nos livros (isto é, na unidade conceptual e material que a palavra livro designa) a mesma ideia de livro como projecto de conhecimento e de existência. Isto significa que os livros são produzidos por quem os faz e lidos por quem os lê como parte de um todo maior do que o objecto singular que naquele momento têm nas mãos. É a existência desse horizonte partilhado que garante a intensidade da atenção que define um livro da Antígona: cada projecto de livro é também um projecto de mundo e de existência humana no mundo. Uma existência que se quer subversiva, desobediente, crítica, rebelde, refractária, como não se cansa de sublinhar Luís Oliveira. E, dessa forma, livre – até no modo como se aceita um convite para um lançamento de livros. É que na Antígona, aí como em tudo, até no nosso texto, «a entrada é livre e a saída também». 54 COLÓQUIO/ LETRAS ENTREVISTA A MARIA FILIPE RAMOS ROSA A Colóquio/Letras foi fundada em 1971, por Jacinto Prado Coelho. É uma revista especificamente literária com carácter ensaístico e crítico. A colaboração de pintores e fotógrafos garantem a qualidade do grafismo e valorização do aspecto visual da revista. É quadrimestral e, desde 2009, está nas mãos do poeta-professor Nuno Júdice. Cátia Almeida e Gonçalo Rodrigues Colóquio/Letras A revista Colóquio/Letras surge em 1971 e propõe-se a ser a única revista especificamente literária em Portugal. De início, a direcção foi assegurada por Jacinto Prado Coelho e Hernâni Cidade; em 1984 é David Mourão-Ferreira quem assume a administração, sendo substituído por Joana Varela em 1996. Por fim, em 2009, é Nuno Júdice que ocupa o cargo. Ainda que os seus números incluam textos de poesia e ficção, a Colóquio é uma revista que se demarca essencialmente pelo seu carácter ensaístico e crítico, centrando-se não só na Literatura Portuguesa, como também nas literaturas de expressão portuguesa (brasileira, PALOP e galega), o que implica a colaboração de uma série de investigadores e estudiosos portugueses e estrangeiros. A Colóquio conta, ainda, com a colaboração de pintores e fotógrafos, garantindo desta forma a qualidade do grafismo e a valorização do aspecto visual da revista. Junta-se a tudo isto a periocidade quadrimestral da revista e estamos perante um caso ímpar no meio editorial português. Basta folhear um qualquer número da Colóquio para nos apercebermos da sua qualidade, não só ao nível de conteúdo mas também de trabalho editorial. Foram estas características que nos fizeram querer conhecer a forma de trabalhar da Colóquio e é nesse sentido que surge a entrevista a Maria Filipe Ramos Rosa, que exerce neste momento as funções de concepção, gestão da base de dados, acompanhamento e testes do trabalho desenvolvido, a quem agradecemos. 57 Hoje há Editoras Maria Filipe Ramos Rosa na Colóquio/Letras Março 1971, N.º1 Dir. Jacinto Prado Coelho e Hernâni Cidade Orientação gráfica: Manuel Correia 58 A Colóquio/Letras tem cerca de 42 anos de existência e é presentemente a única revista literária portuguesa a constar no web of science. Qual a importância da Colóquio/Letras no contexto cultural português? A Colóquio/Letras tem um papel importante não só em Portugal e lá fora, mas como veículo da cultura portuguesa no mundo, pois é distribuída por centenas de centros de estudos portugueses de universidades dos vários continentes. Isto só é possível, claro, porque tem uma Fundação Calouste Gulbenkian por trás. É uma publicação de referência, o que quer dizer que é um instrumento de trabalho indispensável para os especialistas da área, que podem consultar as contribuições mais relevantes e dar o seu próprio contributo para o desenvolvimento dos estudos literários. Actualmente a revista é publicada quadrimestralmente. Porquê? A revista começou por ser bimestral, passando a trimestral em 1992. A regularidade de publicação é indispensável num periódico, e foi qualquer coisa que a certa altura se perdeu com números de grande qualidade, mas de produção muito demorada. Com a direcção de Nuno Júdice, em 2009, a prioridade foi retomar a periodicidade. Tendo em conta os recursos de que dispúnhamos, três números por ano foi a opção que se mostrou viável. Colóquio/Letras Os planos de publicação são delineados anualmente? Sim, são, excepto em relação às recensões críticas. Cada número é centrado num tema. Que critérios os levam à escolha desse tema? Os temas são definidos pela direcção, ou por proposta de algum membro do conselho editorial ou de um colaborador. Podem coincidir com efemérides, mas não há nenhum critério rígido. E dos restantes textos que compõe a revista (artigos, inéditos, recensões)? Para os restantes textos a colaboração vai sendo pedida ao longo do ano e é entregue três meses antes da saída de cada número. Há que contar também com os textos espontâneos que vão chegando e as propostas de trabalhos que recebemos. Como se desenvolve o processo de selecção dos artigos? Convidam críticos a participarem na revista? Ou são eles que procuram essa colaboração? Os artigos dos núcleos temáticos e os textos criativos são encomendados. As recensões críticas também são na sua grande maioria encomendadas, em função da especialidade e da área de interesses de um vasto número de colaboradores regulares, e de outros novos que todos os Julho 1979, N.º 50 Dir. Jacinto Prado Coelho e Hernâni Cidade Orientação gráfi- ca: José A. Rosado Flores Novembro 1987, N.º 100 Dir. David Mourão-Ferreira Orientação gráfi- ca: José A. Rosado Flores 59 Hoje há Editoras Janeiro 1992, N.º 123/124 Tema: 150 anos com Antero Dir. Jacinto Prado Coelho e Hernâni Cidade Orientação gráfi- ca: arranjo sobre pintura de Rosa Carvalho Janeiro 1993, N.º 127/128 Tema: Memória de António Nobre 60 anos se vão formando. A colaboração espontânea passa por um processo de selecção em função da qualidade do texto e do interesse de determinado assunto. Os textos são analisados e em três semanas é dada a resposta ao autor quanto à decisão de publicação. Quando um texto é aceite, é indicada ao autor a data de publicação (que oscila entre três a doze meses) e é-lhe pedida a garantia de que o manterá inédito até lá. Quem interfere no texto? Por quantas fases passa antes de poder ser publicado? Quem interfere é a equipa de revisão da revista, constituída por dois técnicos e um supervisor. O texto passa por vários momentos de revisão propriamente dita e de edição (no sentido inglês, de editing). Há uma primeira fase de tratamento do original, que tem a ver com a uniformização de critérios (notas e referências bibliográficas) e a correcção de gralhas, erros ortográficos e de pontuação. Depois o texto é paginado e segue-se então uma leitura à lupa. É um trabalho detectivesco quase. É aqui que se encontram muitas vezes problemas sintácticos e de conteúdo, como dados errados, omissões... Estes problemas são indicados nas provas (actualmente em PDF) que enviamos então aos autores, a quem são sugeridas soluções. Estas são na maior parte das vezes aceites, noutras o autor propõe novas soluções. Por vezes, só ao fim de várias iterações chegamos a uma solução satisfatória. Há ainda um trabalho paralelo: o do cotejo das citações com os livros citados. Nem todos es- Colóquio/Letras Dir. David Mou- tes livros estão disponíveis, mas tentamos reunir o máximo possível, recorrendo a várias bibliotecas, pessoais e públicas. Damos muita atenção a este ponto. Não se imagina a frequência de erros de citações, de como é quase inevitável copiar com erros, omissões, páginas trocadas, quando se está concentrado na construção da argumentação. Todas as correcções são então feitas em função do que ficou estabelecido com os autores para cada texto, e obtemos uma prova final do conjunto da revista que é submetida a nova revisão. Agora é preciso verificar se as correções foram bem introduzidas e se não escapou nada (que escapa sempre, podem ter a certeza) e se não surgiram erros de hifenização devido às alterações feitas. A paginação é feita por mim e todas as alterações dos revisores e dos autores são introduzidas directamente no texto paginado. Sei que não há interferências externas. Este é um aspecto importante, pois temos um controlo permanente e directo sobre o objecto-revista até à fase de impressão. Isto faz-nos também poupar tempo, pois permite tomar decisões rápidas do ponto de vista gráfico. rão-Ferreira Quantos trabalhadores tem a Colóquio a tempo inteiro? Quais as funções que ocupam? Neste momento sou a única pessoa a tempo inteiro e encarrego-me de um pouco de tudo. Desde aquilo que já falei — a paginação e a coordenação da revisão — até à gestão contabilística (que é parte menos interessante para mim, mas que às vezes até ajuda a relaxar, quem diria…) e a distribuição. Coelho e Hernâni Orientação gráfica: arranjo sobre pintura de Miguel Branco Outubro 1994, N.º 134 Tema: Limiares da ficção: do prémoderno ao pós moderno Dir. Jacinto Prado Cidade Orientação gráfica: arranjo sobre pintura de Michael Biberstein 61 Hoje há Editoras O director, o Prof. Nuno Júdice, e a Ana [Marques Gastão] trabalham a meio tempo e são eles que definem os núcleos temáticos e coordenam as colaborações. São eles também a fazer a primeira leitura dos textos. A Ana faz toda a iteração com os colaboradores e é óptima a pô-los na ordem quando não cumprem os prazos. É outro aspecto muito importante numa publicação periódica: o cumprimento dos prazos, algo que é muito difícil de fazer cumprir. Janeiro1995, N.º 135/136 Tema: Poesia: perguntas e percursos – homenagem a Miguel Torga Dir. David Mourão-Ferreira Orientação gráfica: arranjo sobre fotografia de Gérard Castello Lopes 62 Quem é o responsável pelo design da revista? É ele que escolhe a capa de cada número? E as imagens que dividem cada secção? Quem trata do grafismo da revista é o Luís Moreira. É um grande artista e professor de design gráfico. Desde que a Joana Varela assegurou a direcção, entre 1996 e 2008, a questão artística foi valorizada. Ela começou a convidar pintores e fotógrafos, para além de todo o cuidado posto na reprodução de documentos, de tal forma bem-feitos que chegaram a passar por originais. Há uma história engraçada à volta de um deles. É um conjunto de cartas fac-similadas de Ana de Castro Osório para Camilo Pessanha com uma fotografia da primeira, num pequeno envelope de papel solto no interior do n.º 155/156. Este pequeno envelope castanho tem a assinatura de Camilo Pessanha escrita a vermelho. Pouco depois da saída do número, recebemos uma carta da Biblioteca de Havana (com a qual mantemos uma permuta) juntamente com o referido envelope. A carta de Havana vinha dirigida ao Senhor Camilo Pessanha e ao cuidado Colóquio/Letras da revista Colóquio/Letras, pedindo que devolvêssemos as cartinhas ao senhor Camilo que se deveria ter esquecido delas dentro da revista. Mas voltando ao design, foi de facto a Joana [Varela] quem fez a revolução gráfica da revista, que o Prof. Nuno Júdice tentou manter de uma forma mais contida. O processo é o seguinte: é escolhido e contactado um artista. Os trabalhos são seleccionados em conjunto com ele e com o Luís Moreira. A partir desses trabalhos, o Luís faz os separadores e a capa, que é uma montagem de algumas dessas imagens. A capa é então submetida à apreciação do pintor. Nem sempre é aceite e é preciso fazer uma nova. Mas geralmente as capas são aprovadas à primeira, com elogios por parte dos artistas. Qual é a importância da tecnologia para a Colóquio/Letras? É valiosíssima. Não só veio facilitar imenso o trabalho, como permitiu um maior controlo da qualidade final. Parece-me quase impossível como conseguíamos trabalhar antes dela. Eu ainda sou do tempo da máquina de escrever, e passei por todas as fases, da máquina eléctrica aos primeiros computadores ainda em DOS, com o ecrã negro e as letras brancas. E da paginação com cola e tesoura! A tecnologia é uma grande mais-valia para o trabalho editorial: escrever e comunicar rapidamente, consultar dicionários e tirar dúvidas num segundo, paginar e poder entregar o produto final pronto a imprimir. Além disso permitiu construir um sistema Janeiro 1999, N.º 151/152 Tema: José Saramago: o ano de 1998 Dir. Joana Varela Orientação gráfica: arranjo sobre a ilustração “Memorial do Convento” de Bartolomeu dos Santos Janeiro 2000, N.º 155/156 Correspondência trocada entre Camilo Pessanha e Ana Castro Osório 63 Hoje há Editoras Janeiro 2002, N.º 159/160 Tema: Desengaçar a alegria do chato amável mundo, vol.1 Dir. Joana Varela Orientação gráfica: arranjo sobre a ilustração de Bárbara Assis Pacheco Julho 2002, N.º 161/162 Tema: Desengaçar a alegria do chato amável mundo, vol.2 64 de exploração da revista online, onde ela é acessível a um muito maior número de leitores, e que permite a busca rápida por autor, título ou assunto. Aproveito, se me permitem, para publicitar o site, que é o www.coloquio.gulbenkian.pt e os seus construtores: www.bookmarc.pt. Disponibilizar a revista online gratuitamente não diminui a procura do formato impresso? Só os números esgotados é que estão disponíveis online (de 1971 a 2000). A média de visualizações é satisfatória? Ultimamente o site recebe cerca de 300 visitas diárias, o que nos satisfaz porque para nós cada um destes visitantes representa uma oportunidade de criar novos laços com a revista ou de reforçar os já estabelecidos (com o passado, o presente e, esperamos, o futuro da revista). Melhor indicador do que o número de visitas, para um site deste tipo, é o tempo médio de permanência, que é superior a dois minutos por visita, e o número médio de páginas vistas em cada visita, que é de quatro páginas (páginas Web, e não páginas símiles, cujo número de consulta não contabilizamos). Qual é a tiragem da revista? A tiragem é variável em função da expectativa de venda, que por sua vez varia em função de factores tão díspares como o tema de um número Colóquio/Letras ou o poder de compra dos leitores em cada momento. A máxima até hoje foi de 3 600 exemplares, caso do número dedicado a José Saramago. A média actual é de 1500 exemplares, mas houve casos em que foi preciso fazer uma reimpressão, como o número dedicado a Sophia de Mello Breyner (3000 exemplares no total). E no caso das separatas? Como chegam à conclusão de que é preciso fazer uma separata? É necessário decidir se, pela sua oportunidade e importância, se publica determinado artigo ou conjunto de artigos que pela sua extensão não podem integrar o corpo da revista. Ao optar-se pela separata, evita-se o adiamento da publicação com uma edição mais simples e económica. É uma revista exclusiva para académicos? Que relação existe entre a Colóquio e o público em geral? A revista não é exclusiva para académicos, mas está direccionada para um público específico de estudiosos e amantes da literatura de língua portuguesa, onde naturalmente se incluem académicos. O contacto que temos com o público é limitado sobretudo aos assinantes da revista. Há muita gente ligada ao ensino secundário, ao jornalismo, antigos professores, por exemplo, que gostam de continuar actualizados em relação ao panorama literário. A Colóquio tem visibilidade no estran- Janeiro 2004, N.º 166/167 Tema: Imagens da poesia europeia - I Dir. Joana Varela Orientação gráfica: arranjo sobre a ilustração de Nuno Viegas Julho 2004, N.º 168/169 Tema: Imagens da poesia europeia - II Viegas 65 Hoje há Editoras geiro? Sim, tem. Temos uma lista de 500 ofertas e permutas com universidades do mundo inteiro. Maio 2009, N.º 171 Tema: Eduardo Lourenço, Uma ideia do mundo Dir. Nuno Júdice Setembro 2011, N.º 178 Tema: Ruy Belo Dir. Nuno Júdice Orientação gráfica: montagem de Luís Moreira com obras e Pedro Calapez 66 Que relação mantém a Colóquio com o meio editorial? (colaboração; distanciamento?) Mantemos uma boa relação com algumas editoras, que nos enviam regularmente os seus livros. Para as restantes, temos de estar atentos ao que vai saindo e pedimos nós aos editores a oferta do que é importante recensear. Que características ou que tipo de formação considera importantes para o desempenho das suas funções? São duas questões diferentes. Para trabalhar em edição o requisito indispensável é, claro, um bom domínio do português, que também se adquire com a experiência, lendo muito e discutindo. Como qualidades, escolheria a capacidade de concentração prolongada e a autodisciplina. É fundamental saber planear, ordenar prioridades e gerir bem o tempo, porque há prazos a cumprir. Quanto à formação, há hoje uma série de cursos de especialização em técnicas de edição que permitem adquirir as ferramentas básicas. Eu fiz o primeiro que apareceu, na Faculdade de Letras de Lisboa, sob a direcção dos professores Ivo Castro e Paula Morão, mas antes disso já tinha tido o melhor professor de todos: o Luís Amaro, secretário da revista desde a sua fundação, que dedicou uma vida à «causa» literária e a ajudar os Colóquio/Letras outros nas suas investigações. Considera que um projecto como a Colóquio/Letras poderia ser viável sem um parceiro como a Gulbenkian? A revista nunca seria o que é sem a Fundação Calouste Gulbenkian. Foi uma grande fortuna para todos nós que o Senhor Gulbenkian tenha decidido aterrar aqui. A longo prazo, quais são os objectivos da revista? Colocar a revista no Brasil, onde há uma grande procura. Ela chega lá através das ofertas e das assinaturas, mas não se encontra nas livrarias. O transporte é caríssimo e as falências das distribuidoras vão-se sucedendo. Janeiro 2012, N.º 179 Tema: Paisagem Dir. Nuno Júdice Orientação gráfica: montagem de Luís Moreira com obras de Sofia Areal Maio 2013, N.º 183 Tema: Diásporas Dir. Nuno Júdice Orientação gráfica: montagem de Luís Moreira com obras de Ana Vidigal 67 MATÉRIA-PRIMA Sem Matéria-Prima não se põe mãos à obra A editora Matéria-Prima, que alia o lado mais tradicional da edição à gestão moderna e profissional, foi fundada em 2010 por Liliana Valpaços e Inês Queiroz. Dedica-se sobretudo à publicação de livros de não-ficção – que vão da política à culinária, passando pela saúde, psicologia e história, com especial foco nos autores nacionais. Ágata Xavier Matéria-Prima «Matéria-Prima»: s.f. Substância essencial à fabricação de um produto, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa F * omos recebidos pela Liliana, responsável editorial, e pela Leonor Viana, que coordena a comunicação e divulgação. O terceiro elemento, a Inês estava de licença de parto quando começámos a entrevista e em trabalho de parto quando a terminámos. No final do dia, a Matéria-Prima ganhou mais um nome: Alice. Antes do verbo, os números. 2010 é o ano do lançamento da editora; 47 são os livros que constam do catálogo; 30 são os metros quadrados onde tudo acontece; 10, tal como em Downing Street, é o lote que alberga pessoas ilustres; 5 (de Outubro) é a rua lisboeta onde se instalam e três não é apenas a conta que Deus fez mas também o número de pessoas que compõe a Matéria-Prima. Agora o verbo. Na altura da entrevista, «acarditar» era a acção do dia. «Já assinou pelo Benfica?», ouvia-se uma cabeça por trás do monitor perguntar. «Diz aqui que sim», respondia a outra. «Espera, afinal não está confirmado» (suspiro). Bolas, que é sobre bola que recai o lançamento do dia: a biografia de Jorge Jesus. E as últimas semanas têm sido complicadas não só para o Benfica, que ficou “em primeiro dos últimos” de tudo o que participou, como para a Matéria-Prima, que apostou na história de vida do treinador que permitiu que tal acontecesse. Como é que uma editora chega à história de vida de um treinador? Por que é que o decide editar? «Não temos pretensões literárias», conta a nossa entrevistada Liliana Valpaços, «trabalhamos mais ao nível da não-ficção, sobre71 Hoje há Editoras tudo. Temos desde o Paulo Oom com Não te volto a dizer, direccionado para pais, ao José Gameiro, que escreve uma ficção a partir de casos concretos.» E continua: «Vivemos muito a actualidade e às vezes devolvemos a actualidade à actualidade. Hoje foi para o mercado um livro sobre o Jorge Jesus, feito num mês.» A Liliana Valpaços é uma das metades fundadoras da Matéria-Prima e é a responsável editorial. À outra metade, Inês Queiroz, cabe a gestão comercial e o marketing. Numa estrutura tão pequena é natural que ambas troquem de posição e se suportem. Mais recentemente, juntou-se à equipa Leonor Viana, que trata da comunicação e divulgação dos livros. Liliana e Inês começaram por ser jornalistas até chegarem ao mundo dos livros. Trabalharam vários anos em editoras, sobretudo na Oficina do Livro, chancela do grupo Leya, até decidirem investir no seu próprio projecto. «Saímos [da Oficina do Livro] com uma diferença de três, quatro meses, e quando o fizemos percebemos que podíamos criar uma editora que fosse ao encontro das nossas expectativas e do nosso interesse de trabalho», diz Liliana. «Quando se trabalha num grupo grande aprende-se muito porque as coisas têm sempre uma escala maior. É bom como aprendizagem, mas por outro lado, às vezes distancia-te daquilo que mais gostas de fazer porque é um animal grande. A forma como responde às várias coisas que tem em mãos ao mesmo tempo é diferente. Sentimos que as nossas tarefas se estavam a tornar isso mesmo: tarefas. Estávamos a afastar-nos do nosso gosto da edição. Quando digo edição não me refiro apenas à revisão do texto; falo do projecto em si, da construção, acompanhamento, do diálogo com o autor.» Pensado o projecto, meteram mãos às obra. O IEFP (Instituto de Emprego e Formação Profissional) permite criar auto-emprego através do pedido de todas as presta72 Matéria-Prima ções de subsídio de desemprego ao mesmo tempo. A dupla recebeu esse dinheiro depois de aprovado um business plan. «O que assustava muito o Estado era não termos máquinas ou coisas que eles pudessem penhorar, caso corresse mal. Os autores são os nossos activos, mas não podem ser penhorados, claro», conta. Mais números. Criaram a editora com um capital social de 100 mil euros. Há cerca de um ano concorreram ao programa PME e receberam 50 mil euros. Este valor, mesmo para uma editora que tem uma menor actividade, é pouco. «Há três anos achava 100 mil euros um elefante, agora, quando começa a rolar, vejo que não é tanto.» A gestão de cada livro é diferente e sempre dispendiosa. «Gerimos cada livro como se fosse uma unidade de negócio. Fazemos uma estimativa de quanto devíamos vender por ano para saber se as despesas são compensadas», explica Liliana, e continua: «Temos de ter uma baliza. para saber onde devemos acertar — às vezes sai fora, outras vezes para dentro, noutras vai à barra». Novamente o verbo: aplicar. Destinaram toda a sua experiência a um projecto mais pequeno, com objectivos de facturação razoáveis e interessantes, mas tão ambicioso como qualquer outro. Além disso, combinaram também um lado mais artesanal (embora não trabalhem numa oficina) com as novas técnicas de produção conseguindo, dessa maneira, fazer 25 a 30 livros por ano. «O que percebi e defendo é que uma editora vende livros mas o nosso maior activo são os autores. Mas eles não são teus empregados e não os podes gerir como se fossem e dependessem de ti», diz a editora. «Falamos de um país em que quase ninguém vive de escrever. A relação com 73 Hoje há Editoras os autores é fundamental para uma editora se manter, renovar e construir uma coisa a prazo. É uma ligação intangível e muito frágil baseada em confiança e cumplicidade.» E vai mais longe: «Quando trabalhei como jornalista tinha do outro lado um adversário — “o que é que esta vai fazer com o que eu lhe vou dizer”. Quando trabalhei numa consultora era mais “eu pago-te um serviço e tu apresentas relatórios, dados e números”. É muito unilateral. Como editora o trabalho é todo partilhado. Por isso é que tirámos dos contratos todas as cláusulas de preferência ou exclusividade. A luta deve ser nas bases das ideias e da satisfação. Se eu estou satisfeita em trabalhar com o autor, e se ele está muito satisfeito com o meu trabalho, ele não sai por “dá cá aquela palha”. As pessoas devem ficar porque querem e porque lhes garantimos um bom trabalho a todos os níveis.» E conclui: «Primeiro conquistas e depois é um casamento.» Mercado. Podemos questionar como é que uma editora que lança trinta livros por ano, tantos quanto uma grande editora lança por mês, sobrevive. A Matéria-Prima não é um caso isolado. Pequenas editoras têm vindo a garantir o seu espaço e a ser distinguidas, ano após ano, no mercado editorial nacional e internacional. A Tinta-daChina foi distinguida em Fevereiro pelos Prémios Ler/ Booktailors como Editora do Ano e já publica no Brasil, enquanto que a Planeta Tangerina foi eleita a melhor editora europeia de livros para a infância na Feira do Livro Infantil de Bolonha. A Matéria-Prima também segue a máxima de menos (e melhor) ser mais. E o sucesso acontece. Conta Liliana: «No natal passado, estava na Fnac e reparei que no top tinham em primeiro lugar As 50 sombras de Grey [Lua de Papel/ Leya], a 74 Matéria-Prima seguir o Basta do Camilo Lourenço [Matéria-Prima], depois o Ricardo Araújo Pereira com o livro de crónicas [Tinta-daChina] e a seguir o Jamie Oliver ou o Gordon Ramsey, já não me recordo. Tínhamos um top nacional entre ficção e nãoficção, que equilibrava editoras independentes e grupos editoriais. Um grupo editorial forte, que tem uma máquina de produção firme, pega num fenómeno internacional e fá-lo crescer ainda mais (Grey ou Oliver).» Mas ao mesmo tempo, e como se viu, consegue-se ser igualmente competitivo com boas ideias. «Essas grandes editoras às vezes não têm tempo para se debruçar sobre outras coisas», diz Liliana, «ou não foram suficientemente rápidas. Tenho sempre a premissa de que se me lembro de alguma coisa é porque alguém já se deve ter lembrado disso antes, por isso tento ser rápida e ágil.» E segue o jogo: «É um bocadinho como o Messi quando dizia que tinha problemas de crescimento e aprendeu a jogar rasteiro. Temos de pensar qual o nosso ponto forte, estar consciente do que não corre bem — e para saber isso temos de errar muitas vezes —, e depois temos de aprender a fortalecer aquilo que nos torna mais eficazes do que os outros concorrentes — algo que serve para este sector mas também para qualquer outro.» Selecção natural. Como é feita a escolha dos livros, dos autores e das ideias? O que faz afinal um editor enveredar por um caminho sem que este aparente ser fácil ou directo? Estará ele a «acarditar» constantemente que o seu livro vencerá tudo? Liliana fala-nos novamente da sua experiência pessoal: «Os livros que eu escolhi há três anos são diferentes dos que eu escolho agora para editar. O raciocínio de um editor de não-ficção é um pouco como o dos jornalistas: estamos atentos aos sinais do mundo e, se possível, percebemos o que as pessoas querem. Numa estrutura pequena é mais fácil tomar uma decisão do que nas 75 Hoje há Editoras grandes, porque há menos pessoas a decidir, menos etapas de. Para além de editarmos ao sabor do mundo — por exemplo, fizemos o Pronto a comer, um livro de receitas para marmita quando se voltou a falar do uso dela nos locais de trabalho —, o tipo de edição que se faz hoje depende muito da conjuntura do mercado. Edita-se menos porque as pessoas compram menos. Temos de entrar nesta combinação de factores entre o que o mundo quer e o que lhe queremos dar.» Alguns sonhos de principiante são destruídos ou tornados realidade consoante o tempo e a experiência que se ganha. «Quando se começa uma editora está-se cheio de ideias. Quando trabalhava em não-ficção na Oficina do Livro pensava: “quero fazer isto ou quero fazer aquilo”, mas por algum motivo não era possível. Agora percebo que querer muito não é suficiente. Temos de trabalhar todos os pormenores. Desde que tens a ideia do livro, quando começas a pensar nisso, se trabalhas bem o conteúdo com originalidade, se trabalhas bem a capa, se geres bem o autor e o timing de edição as coisas podem funcionar bem, mas tens de ser muito detalhado para ir à luta.» E conclui: «Agora prefiro não editar logo e esperar para melhorar o livro. Quando se entra numa livraria há 500 livros a gritar me, me, me, me. Trabalhamos na lógica da semelhança e da diferença. Na tentativa de criar valor temos de ver sempre o que há sem ser seguidista, tentando fazer a diferença.» Trabalho, trabalho, trabalho. Liliana Valpaços foi jornalista da TSF, colaboradora da Grande Reportagem e da Notícias Magazine. Trabalhou como consultora de gestão de talento na Heidrick & Struggles. Em 2007, começou a trabalhar como coordenadora editorial da Sebenta e da Academia do Livro, a marca de não-ficção da Oficina do 76 Matéria-Prima Livro. Inês Queiroz, ausente por estar na iminência de ser mãe, também começou pelo jornalismo, tendo integrado as equipas da revista Visão e dos jornais Diário Económico, A Capital, entre outros. Tornou-se editora na Palavra, editora do grupo Asa, em 2004, e em 2007 integrou a Oficina do Livro como responsável pela comunicação e marketing. Já sabiam como funcionava uma editora antes de se aventurarem na criação de uma sua, mas há sempre ponderações a fazer, sobretudo no que a gastos diz respeito. «Quando sentes que a coisa é tua sentes um peso maior», diz Liliana, «pensas muito mais e és menos impetuosa quando o dinheiro é teu. Eu e a Inês dividimos isto de forma igualitária, defendemo-nos uma à outra». Mas, inevitavelmente, entram em jogo outras figuras literárias: «Ter um bom contabilista é importante porque a contabilidade de uma editora é uma loucura. Não é bom falar com o contabilista sem se saber o básico. Não digo para tirarem todos um curso mas saber as bases da gestão — o que é o break even, etc. —, ajuda a tomar decisões mais sustentadas.» Foi por isso que a editora investiu num mestrado em gestão empresarial no ISCTE, mas, como a própria afirma, é como tirar a carta de condução: só se aprende fazendo. «Há coisas que só entendemos quando estão à nossa frente, mas no fundo a gestão de tesouraria é como gerir uma casa: caem as facturas disto e daquilo. Estar à frente de uma empresa é como estar à frente de uma família. Se falta dinheiro, tens de pôr coisas a trabalhar para garantir sustento», resume. O que demora mais: ter um filho, plantar uma árvore ou editar um livro? Os dois primeiros podem ser bastante mais rápidos de fazer. O processo de editar um livro demora o que demorar. No caso dos autores estrangeiros há que garantir os direitos de autor e publicação; 77 Hoje há Editoras nos nacionais há que, numa fase inicial, salvaguardar que o autor tenha os meios de que necessita para concretizar o livro que propôs (ou foi convidado a fazer), debater os direitos de autor e, posteriormente, tratar da revisão, dar uma forma e capa ao livro, avançar com a sua promoção e distribuição. É demorado. Há uma grande envolvência com os autores e a sensação de um trabalho partilhado. «Não nos podemos esquecer de que um livro é sempre um acontecimento marcante na vida de uma pessoa e que essa sensação deve ser sempre respeitada», diz Liliana. A editora adianta que esse envolvimento por vezes não ajuda ao distanciamento necessário da obra, e, por isso, conta com uma equipa para a acompanhar. São funcionários que fazem alguns dos trabalhos essenciais mas cuja presença no espaço não se vê: revisão, tradução (quando necessário) e paginação. Esta equipa fantasma, que trabalha a partir de casa, é sempre a mesma, o que garante maior solidez e confiança no projecto. O livro costuma ir duas vezes para revisão, depois disso é paginado e, por fim, pensa-se na capa: formato, desenho e título. «Às vezes culpamos o preço ou a capa pelo resultado das vendas. A posteriori, são sempre os culpados. É fácil questionar as decisões depois. Trabalhamos com pessoas, expectativas e comportamentos e nunca sabemos como as coisas vão funcionar. Tentamos arriscar, mais ou menos, mas nunca sabemos como vai correr.» E exemplifica: «Fiz o primeiro livro sobre finanças pessoais pós-2008, que se chamava A economia cá de casa, com uma capa muito vermelha e um carrinho de compras. Mas o livro que mais vendeu na altura foi um que se chamava O meu primeiro milhão, com um porquinho mealheiro. Achava que o meu ia ser um sucesso. Cheguei a casa e mostrei à minha mãe que disse “oh filha, o carrinho está vazio, que deprimente”. Aí percebi: eu devia ter vendido o sonho, o carrinho cheio 78 Matéria-Prima [tal como o mealheiro a transbordar] e fiz o contrário. É por isso que é importante falar com as pessoas. Eu sempre gostei muito de conversar com os comerciais porque eles têm muito tempo de rua. Às vezes lembram-se de capas parecidas e dão opiniões como “cuidado, houve um com uma capa parecida que não resultou”. Eles usam muito o argumento de que um livro deve ser parecido com o outro que vendeu muito. Vivem dessa argumentação para justificar o porquê da loja querer comprar o livro. É bom saber disso mas também não pode ser uma regra. Se for, não fazemos nada de diferente». No fim Liliana remata, «é um “achómetro” alimentado pela experiência e sobretudo pelo erro. Erro, erro, erro, erro.» Sobre os conteúdos, Liliana conta que variam consoante aquilo que lhe é permitido fazer. «Numa grande editora, com lucro, posso apostar numa edição bombom de poesia. Neste momento não posso. Há livros que não edito agora mas se o país estivesse melhor economicamente, e eu facturasse muito, pensaria em editar um livro apenas por gosto, agora não.» O diabo e a cruz. Quanto às tiragens, dependem do mercado, que ultimamente tem diminuído o número de exemplares. Antigamente, avançava-se facilmente para edições de 4000 exemplares, agora a edição média ronda os 2500, 3000. A Matéria-Prima não faz tiragens menores de 2500 exemplares, tanto por uma questão de estratégia — «Para venderes um livro numa loja tens de ter uma mancha de ocupação significativa» — como por uma questão de lógica editorial — «Se acho que um livro não merece 2500 exemplares é porque se calhar não o devo editar, já que só edito cerca de 25 por ano.» A imprevisibilidade dos desaires comerciais são uma constante. Livros actuais que não vendem, temas 79 Hoje há Editoras fracturantes que não alcançam os objectivos esperados, reedições que saíram mal: «Quando um livro esgota num determinado ponto de venda pedem-nos mais exemplares em vez de verem no sistema se há a mais noutra loja do mesmo grupo. É como o poker: às tantas questionamos até que ponto é uma jogada realista [fazer novas edições].» A Matéria-Prima é distribuída pelo Clube do Autor, que, para além da sua própria chancela, distribui também a Parsifal. Grande parte das pessoas que lá trabalham eram da Oficina do Livro e da Planeta. Há entre elas um grau de conhecimento e confiança, mas, embora dividam o mesmo stand na Feira do Livro, não partilham relações editoriais, apenas de distribuição. «Não temos mega-condições», diz Liliana, «levam sempre 50 a 60% do valor da capa do livro, mas garantem-nos boa colocação, boa cobrança e boa capacidade de reacção.» Diz que disse. Em termos de comunicação e divulgação, a editora trata cada livro como se fosse único e não tem uma lista de etapas a cumprir que seja comum a todos. Tirando os press-releases e o envio de exemplares para os jornalistas, arriscam de acordo com o livro. «Nada é caro se tivermos retorno. Se o Miguel Sousa Tavares quiser editar comigo, eu forro a Avenida da República com cartazes dele», confidencia Liliana a rir, e dá alguns exemplos: «Com o Camilo [Lourenço] fizemos Camilos em tamanho real, por exemplo. Tudo isto aumenta o orçamento. Fizemos um anúncio de TV com o Ruy de Carvalho porque ele é actor da TVI e reconhecido por isso.» Em regra, fazem acções no ponto de venda (compra de montras, destaque nas lojas, etc.), compra de espaço em folhetos, anúncios, cartazes de rua e tentam assegurar presenças na TV. «Tem mais impacto nas vendas conseguires que o Manuel Luís Goucha pegue num livro e diga que 80 Matéria-Prima gostou muito de o ler — tanto ele como a Cristina Ferreira lêem mesmo os livros que recomendam). Isso é vantajoso para nós porque para além da exposição, assegura-nos que os entrevistadores estão mais preparados para receber o autor e fazer um bom trabalho.» O mais importante na relação com os media é saber como pensa um director de programas ou um jornalista, e conseguir que se interessem pelo livro. «Já apresentámos a um programa de televisão testemunhos de pessoas sobre um livro que editámos e correu muito bem. É preciso tempo, calma e perspectiva para se ser original nestas coisas.» O livro sem papel. Quanto à edição de livros electrónicos, Liliana adopta uma postura de São Tomé: ver para crer. «Tenho para mim que é o principal inimigo dos autores portugueses», conta, «se for um autor americano ou chinês consegue chegar a muito mais gente através do e-book, agora cá fazemos livros para o mercado nacional; não há edição brasileira ou angolana que o valha). Não sei se num mercado como o nosso o e-book vai ser atractivo o suficiente para os autores do ponto de vista financeiro. Deixo esse campeonato para grupos com estrutura que tenham recursos para procurar soluções.» E termina: «Em Portugal quem lê digital também lê em papel. Têm sempre gosto em ir às livrarias e comprar o livro em papel, mas os hábitos mudam e talvez daqui a 10 anos seja diferente. Logo veremos.» Pela Estrada Fora. A entrevista mudou de rumo no final, mais concretamente, passou da sala que serve de escritório à Matéria-Prima, na 5 de Outubro, para um carro em direcção a Santa Apolónia. Pelo caminho, Liliana partilhou algumas experiências gratificantes de ser editora: 81 «Envolvemo-nos muito com o texto, o que a partir de determinado momento não proporciona grande distanciamento, mas conto com uma equipa que me ajuda nisso. É bom ver um projecto crescer, poder partilhar essas emoções com o autor. Depois há apresentações fabulosas. A apresentação do livro do Marques Mendes pareceu um evento político, com muitas pessoas, de vários partidos, que se reuniram em torno do livro.» Curiosamente, não deu para muito mais. A viagem foi curta e mais curta ficou quando outro assunto monopolizou a conversa: a Inês telefonou a dizer que já estava na maternidade porque a Alice vinha a caminho. Vamos ter de esperar 10 anos para saber o que lê e como lê. PLANETA TANGERINA pequeno grande satélite editorial O Planeta Tangerina é uma editora de álbuns ilustrados e ateliê de design. A equipa é composta por Isabel Minhós Martins, Madalena Matoso, Bernardo Carvalho, João Abreu, Cristina Lopes, Yara Kono e Carolina Cordeiro. Este ano o PT foi galardoado com o prémio BOP para melhor editora infantil europeia na Feira do Livro de Bolonha. Marta Ferreira e Tânia Martins Planeta Tangerina Marta Ferreira A aventura dos residentes do Planeta Tangerina Era uma vez, numa galáxia distante, Um planeta pequeno e alaranjado, Que de tangerina foi, num instante, Pelos célebres astrónomos nomeado. No hemisfério norte do planeta existia Uma casinha feita de papel e cartão. Lá dentro dessa bela casa vivia Um grupo de quatro amigos numa missão. Belos textos e imagens gostavam de criar. A história flutuava da cabeça da Isabel Para o Bernardo e a Madalena ilustrar. Já o João fazia as contas num papel. Mas os amigos andavam aborrecidos E numa aventura quiseram todos partir. “À montanha BOP vamos!”, disseram decididos. E lá foram eles caminho fora, a sorrir. A um muro de 10 metros chegaram, E para o outro lado não conseguiam passar, Até que muitos livros numa pilha observaram, E ao lado uma senhora parecia chorar. “Que vou fazer?”, Cristina soluçou, “Onde vou eu tantos livros armazenar?” E logo uma ideia brilhante o João magicou: “E se usarmos os livros para este muro escalar?” 85 Hoje há Editoras A Cristina aceitou a solução, contente, E os amigos conseguiram o muro passar. Lá de cima chamaram de repente: “Anda connosco, Cristina! Vais adorar!” Iam assim os cinco amigos pela estrada, Quando um grande rio se lhes atravessou. “E agora?”, suspirou Madalena desencorajada. “Algo se há-de arranjar!”, Cristina exclamou. Do outro lado da margem, uma menina gritou: “Para atravessar o rio podem fazer uma ponte!” “Mas com o quê?” o Bernardo perguntou, “Aqui ao pé só temos fios de lã ao monte.” Uma ideia surgiu à Yara, do outro lado: “Então construam uma ponte de lã”, atalhou. E assim que a ponte tinham terminado, Passaram para a outra margem e a Yara a eles se juntou. Em poucos passos chegaram ao sopé da serra. “Como vamos chegar ao topo?”, perguntava-se Bernardo. “Já conseguimos muito, o que é mais este bocado de terra?”, Dizia Isabel com confiança, para deixar o grupo animado. Surgiu então Carolina, sempre alegre e contente, Que logo lhes ofereceu vários pedaços de tecido. “Podem com estes retalhos criar um balão de ar quente!” E como eram sete a coser, num instante ficou resolvido. No balão de ar quente subiram ao céu estrelado, E conseguiram ao cimo da montanha BOP chegar. “Mas só com trabalho de equipa”, dizia Bernardo, “Conseguimos o topo desta montanha alcançar.”, 86 Planeta Tangerina “De 4 passamos a 7”, fazia as contas o João E assim a família cresceu com mais talento. Voltaram todos para casa no seu balão, E já pensavam no próximo divertimento. “Na próxima aventura o monte Alma vamos escalar. Dizem que a vista lá de cima é estonteante. Muitos outros problemas pelo caminho iremos encontrar, Mas a trabalhar juntos será fácil”, conclui Isabel, radiante. Marta Ferreira E assim os sete amigos no Planeta Tangerina estão A fazer histórias e livros com muita imaginação. E com todas as suas criações se aventuram A conquistar montanhas e ter sempre prémios na mão. 87 Hoje há Editoras De Visita ao Planeta Tangerina (PT) N Arlindo Camacho/ Time Out Lisboa o dia 17 de Maio de 2013, decidimos partir à aventura. Apanhámos um foguetão rumo ao longínquo Planeta Tangerina, lá pelas terras de Carcavelos. A nossa missão: conhecer os seus habitantes e o seu dia-a-dia. As nossas geringonças de exploradoras: uma máquina fotográfica, um gravador, uma lista de perguntas e muita curiosidade! Chegadas ao destino, fomos recebidas pelo João Abreu, que nos indicou onde poderíamos encontrar a Isabel, a nossa entrevistada principal, porta-voz do PT, editora e autora da casa. Subimos até ao segundo andar, onde nos recebeu com um sorriso a Carolina, teclando no seu computador. «É para falarem com a Isabel? Ela vem já.» Esperámos e um minuto depois surgiu Isabel, também ela sorridente, dando-nos as boas-vindas ao seu planeta. «Talvez queiram começar por uma visita pela casa?» Assentimos. No rés-do-chão fica o armazém da editora. A pequena divisão ainda o parece mais pelo espaço repleto de livros. No entanto, usar a garagem da casa como armazém ajuda na diminuição de custos com distribuidoras e arma88 Planeta Tangerina zenamento de stock. A Isabel explica: «Fazemos tiragens neste momento de 1500 exemplares por cada livro. Começamos por fazer tiragens maiores e depois decidimos fazer mais pequenas e quando é necessário fazemos novas edições, mas preferimos assim porque não temos muito espaço para guardar os livros, e este é o único espaço onde os guardamos. Normalmente o ritmo de edição não é muito rápido. Há editores que editam uns dez livros por mês. Nós editamos dez livros por ano, já a contar com as reedições. Normalmente são seis livros novos e quatro reedições. Também é daqui que fazemos o envio do livros. Nós temos uma loja online e é aí que recebemos as encomendas». Os livros chegam da gráfica e são armazenados na garagem, onde a Cristina trata de organizar as encomendas para as livrarias ou para os clientes que fazem as compras online. O PT usa maioritariamente uma gráfica de MemMartins, mas para a nova colecção juvenil Dois passos e um salto usaram a Norprint, uma gráfica da zona do Porto, e para a colecção de cantos redondos tiveram de contactar uma em Itália porque cá em Portugal não encontraram quem garantisse o resultado pretendido. «Por isso, temos vários fornecedores, não temos só um.», diz Isabel. O PT já trabalhou com distribuidoras diferentes mas os custos que estas exigem são demasiado altos para uma editora pequena e com poucos livros publicados por ano, por isso, decidiram começar a tratar da sua própria distribuição. Os livros são enviados do armazém para todo o lado através de transportadoras. No primeiro piso estão os escritórios. Numa grande divisão com secretárias e computadores trabalham a Yara Kono, a Carolina Cordeiro, o João Abreu e a Cristina Lopes. Na sala ao lado trabalham a Madalena Matoso e a Isabel. Paralela a essa divisão está a sala de reuniões. Neste piso 89 Hoje há Editoras fica também a cozinha onde os elementos do PT preparam as suas refeições. No segundo e último piso fica o ateliê onde trabalha o Bernardo, no seu caos organizado de artista. Do lado esquerdo fica a sala das máquinas de serigrafia. A casa tem ainda um jardim onde, segundo a Isabel, costumam almoçar e reunir-se para trocar ideias, quando o tempo o permite. De volta ao segundo piso, Isabel convida-nos a sentar para uma conversa sobre a editora. Começamos pelo início: «Como surgiu a ideia de criar o Planeta Tangerina?» «Nós conhecemo-nos quase todos no liceu. [Isabel, Madalena, Bernardo] Depois estudámos na faculdade de Belas Artes [onde conheceram o João] e fomos convidados para fazer um projecto de uma revista para crianças logo quando acabámos o curso e começámos a trabalhar juntos nessa altura. Depois respondemos a convites de empresas para fazer projectos quase sempre na área da comunicação para crianças, e em 2004 fizemos o primeiro livro [Um livro para todos os dias] e foi aí que começamos a fazer um trabalho um bocado paralelo ao trabalho de ateliê e a criar a editora.» «E o nome da editora e logótipos?» «[o nome] Planeta Tangerina vem de uma história que eu inventei para essa dita revista há muito tempo e o logótipo também. O ponto de partida foram os gomos da tangerina. O logótipo tem várias variantes: há um peixinho, um pássaro. A forma do gomo é o ponto de partida e depois são criadas várias personagens.» Os elementos do PT não entraram no mundo da edição sem ter uma noção do que se estava a fazer. Já em estudantes iam à feira de Bolonha. «Não conhecíamos muito a história da edição para crianças e o que íamos ver eram novidades. Conhecíamos os livros editados em Portugal e 90 Planeta Tangerina quando chegámos à feira de Bolonha, como é uma espécie de montra gigante com livros de todo o mundo, interessava-nos ver as coisas novas que estavam a ser feitas. Mas também é verdade que depois com o passar do tempo começa a haver um interesse natural pelas coisas feitas do passado, que muitas vezes são espectaculares e que são referências para todas as pessoas que estão a trabalhar hoje. Por isso eu acho que há esses dois lados. É conhecer o que já foi feito, que faz sentido quando estamos a fazer uma coisa, para não nos repetirmos ou termos noção que não estamos a fazer algo de novo, e depois conhecer as tendências mais para a “frentex”, mais contemporâneas.» Quanto à organização do tempo, no PT gostam de ser flexíveis sem deixar de ser responsáveis. «Há um horário mais ou menos para toda a gente com alguma flexibilidade. Há pessoas que vêm mais tarde e depois saem mais tarde, umas que vêm mais cedo e saem mais cedo. Cada um é muito responsável pelo seu tempo e organiza-se como quer, não há ninguém aqui a controlar o trabalho alheio.» O fim-de-semana é sagrado. São dias de lazer e de estar com a família. Também não são de fazer noitadas, a não ser que o trabalho o exija, o que é raro. A criação de uma empresa editora acarreta certas responsabilidades burocráticas menos românticas. A isso, Isabel responde: «É o que tem de ser, não há nada a fazer e há coisas chatas de se tratar. De vez em quando tem de se ir ao notário, mas, enfim, não é muito complicado. Fomos aprendendo, nunca tivemos uma pessoa que nos estivesse a explicar tudo, é preciso ter uma certa paciência para tratar dessas coisas.» O trabalho de equipa exige uma divisão de tarefas para que a máquina funcione com coerência e sucesso. No PT a divisão de tarefas foi mudando ao longo da sua evolução de ateliê para editora de livros. À medida que a equipa foi crescendo e ganhando terreno, foram surgindo tam- 91 Hoje há Editoras bém novas tarefas e responsabilidades. Neste momento a Yara cuida do ateliê, recebe os briefings, faz os orçamentos, acompanha os projectos e continua com o seu trabalho como designer; a Carolina trabalha mais como designer e ainda é responsável pela loja online; a Isabel e a Madalena cuidam da editora, o que implica planear os livros, pedir os orçamentos, fazer os contactos com autores de fora com quem trabalham, fazer as vendas de direitos para o estrangeiro, preparar os catálogos, entre outras tarefas; a Cristina trata da distribuição; o João é o responsável pelo planeamento e não trabalha a tempo inteiro, só um dia por semana; e o Bernardo trabalha mais na ilustração. Mas como é trabalhar entre amigos? Será que complica ou ajuda? Isabel diz que ajuda. «O que eu sinto é que todos nós gostamos muito daquilo que fazemos aqui dentro e acho que há esse lado importante de cada um tomar conta do seu trabalho. Há alturas em que esse trabalho é muito individual e depois há momentos em que nos juntamos e há partes que são feitas em grupo. Mas tem essecialmente a ver com a confiança que temos uns nos outros que permite que haja esse espaço para cada um se gerir. Isso é o melhor! Não há um controlo e isso também faz com que cada um sinta responsabilidade sobre si próprio. Depois acho que uma coisa boa que tem acontecido no nosso projecto é que temos tentado ir criando o nosso caminho, ou seja, ir fazendo um pouco aquilo que temos vontade de fazer. Desvantagens não há, sinceramente.» Quando perguntámos se existe alguém na equipa que os une, Isabel diz que não. «Somos todos cola», afirma. E acrescenta: «Se falha um, o projecto fica coxo.» Uma vez que se conhecem muito bem, respeitam-se e compreendem que uma pessoa «vem no pacote inteiro – as qualidades e os defeitos juntos». 92 Do trabalho em equipa passamos para os livros edi- Planeta Tangerina tados no PT. Dentro de todos os livros feitos, Isabel afirma que os mais vendidos são sem dúvida (e devido ao seu tema intemporal) o Pê de Pai e Coração de Mãe. Isabel fala dos livros do PT com carinho e assinala três razões pelas quais estes se distinguem dos demais no mercado editorial: em primeiro lugar, as suas ilustrações e qualidade gráfica acima da média; em segundo lugar os temas que fogem à estrutura tradicional, e por último o facto de os livros agradarem a um público adulto. O público do PT não será maioritariamente infantil como seria expectável. Pelo que é possível averiguar na página do Facebook da editora, o seu público constitui-se maioritariamente por mulheres, mães, professoras, educadoras ou bibliotecárias. «Não há dúvida de que os nossos livros chegam à criança por intermédio de um adulto, nunca é porque o menino o escolheu na livraria, porque escolheria de certeza outra coisa qualquer.» Do seu público infantil recebem várias cartas, postais, desenhos e até livros que os deixam muito felizes. «Sei que é um pouco piroso, mas é bom sentirmos um certo carinho das pessoas pelo nosso projeto. Agora que houve o prémio de Bolonha sentimos ainda mais isso, parece que foi uma alegria nacional.» Isabel diz que quando começaram a editar livros infantis não sabiam o que queriam fazer nem definiram princípios ou critérios. Vão fazendo aquilo que lhes surge na cabeça e que sentem que devem passar para o papel. «Quando fazemos um livro nunca sabemos muito bem como o público vai reagir, mas acho que isso também faz parte de trabalharmos com alguma pureza e não estar, por outro lado, a trabalhar para um mercado ou a achar que um livro vai vender, ou vamos fazer este tema porque isto vende. Não trabalhamos assim!» Talvez por isso, Isabel pressupõe que alguns livros do PT não pareçam tão acessíveis às crianças. No entanto, tudo é relativo e a acessibilidade aos livros do PT depende muito do adulto que serve de inter93 Hoje há Editoras mediário. Nos últimos anos tem surgido um grande debate em volta dos termos «livro infantil» e «livro para crianças» ou «para a infância». Uns consideram o termo infantil como pejurativo, outros acham que só existe literatura, não se podendo denominar uma literatura à parte para as crianças, e há ainda aqueles que se preocupam com os rótulos das faixas etárias nos livros. Para a Isabel a questão não se coloca, pois a divisão dos livros por idades, na sua opinião, é «um disparate enorme. Acho que isso é um perigo, um miúdo ir buscar um livro a uma prateleira e ver escrito no próprio livro a idade a que este se destina. O miúdo se calhar tem nove anos, e lá diz que o livro é dos cinco aos sete então não o pode ler porque não é para ele. Até, porque às vezes nos enganamos redondamente a fazer esta divisão. Ninguém usa uma faixa etária para um CD de música.» Apesar de não criarem os livros com o público infantil em mente, a verdade é que muito do seu trabalho pós-produção passa por actividades e ateliês com crianças, tanto em escolas como em bibliotecas. Isabel confessa que estas actividades são cansativas porque muitas escolas a que vão ficam longe de Lisboa, e às vezes são também aborrecidas, quando não há nenhuma preparação por parte do grupo que os convidou. No entanto, quando sentem que a escola ou biblioteca fez um esforço de preparar a história, estudá-la e até desenvolver actividades em torno dela, o esforço é recompensado e sentem-se realizados. Certa vez, em Barcelos, Isabel conta que ficou imensamente admirada pela positiva, tal era o entusiasmo dos cerca de 200 alunos com trabalhos fantásticos sobre os livros do PT. «Uma pessoa fica surpreendida com o facto de que até nestes sítios mais remotos as pessoas lerem os nossos trabalhos.» 94 Para se manter reconhecida e conseguir fazer os con- Planeta Tangerina tactos necessários, uma editora como o PT não pode descurar das suas presenças nas feiras do livro nacionais e internacionais. É muito importante estarem presentes na feira de Bolonha, a maior feira de livros infantis europeia. Os quatro colegas de Belas Artes, ainda antes de criar o PT, já lá iam para ver o que se fazia de novo. Como editora começaram a ir sem marcar reuniões para mostrar o seu primeiro livro. Mais tarde começaram a marcar reuniões e a certa altura já tinham um stand dividido com outras editoras. Este ano foi a primeira vez que foram com um stand individual, um feito grandioso para uma editora pequena. Isabel afirma que é a venda de direitos que faz com que uma pequena editora consiga alcançar um equilíbrio financeiro, para além de todos os projectos de ateliê de design que desenvolvem. A ida à feira de Bolonha é a melhor forma de entrar em contacto com as editoras estrangeiras que possivelmente estarão interessadas em vender os livros do PT nos seus países. Apesar de haver contactos durante o ano e envio de documentos PDF de livros, Bolonha torna-se o ponto alto, ao permitir-lhes conhecer pessoalmente os interessados nos seus livros e vender os seus direitos. Assim que uma editora compra os direitos de um livro é normal que mantenha o contacto e dois ou três anos mais tarde queira comprar outro livro. Isabel só lamenta não poderem ir mais vezes e a mais feiras como desejavam, pela falta de apoios. Nas feiras, o PT comprou apenas o direito de publicação de um único livro, o Grande Coisa. Isabel diz que tal acontece não porque não se sentem atraídos por obras estrangeiras, mas porque o grande gozo vem de «sermos nós a fazer os livros e realizarmo-nos como autores.» Isabel fala da experiência de terem comprado os direitos do livro Grande coisa com um certo sabor agridoce no tom de voz. «Tornou-se um processo muito complicado e demorado 95 Hoje há Editoras para um livro tão simples, com três palavras em cada página. Não correu muito bem, mas não quer dizer que isso não venha a acontecer, ter um livro meio ovni, que é importado.» No entanto, realça que o coração do PT «são ao livros que nós fazemos». Quanto às feiras nacionais, o PT está presente através de representantes. A realização de actividades nestas feiras é importante para manter o contacto e interesse do seu público leitor. Este ano, na Feira do Livro de Lisboa, o PT esteve no pavilhão C09 juntamente com outras chancelas infanto-juvenis. Quando perguntámos se tinham alguma surpresa para este ano, Isabel diz «Estamos a pensar nisso, queríamos fazer uma coisa mas não tivemos autorização da APEL.» Já sessões de autógrafos não fazem pois consideram-nas «deprimentes», uma vez que o autor fica várias horas sentado ao sol para assinar uma dúzia de livros, se tanto. Um grande apoio às editoras são os prémios. O PT acabou de receber o prémio de melhor editora infantil europeia na feira de Bolonha. Isabel sorri quando perguntamos se o seu coração ainda bate BOP BOP. «Sim. Não estávamos à espera da nomeação.» Muito menos de ouvir o seu nome na hora da entrega do prémio. Isabel confessa que o prémio que agora gostariam de trazer para casa era o Alma, um prémio internacional no valor de 500 000 euros, criado em 2002 em memória da autora Astrid Lindgren e que se destina a autores, ilustradores e instituições que promovam os livros para a infância. Um prémio como este ajudaria o PT a arriscar voos mais altos e tornaria a editora mais independente dos trabalhos contratados, que têm ajudado a equilibrar as contas da casa. 96 Os apoios à edição são escassos em Portugal. Numa Planeta Tangerina altura em que o Ministério da Cultura foi despromovido a Secretariado de Estado, uma editora arranjará mais facilmente patrocínios privados que apoio público. Isabel lamenta a falta de investimento na cultura, dando o exemplo de França que tem o BIF, um apoio às editoras com o objectivo de promover os livros franceses no estrangeiro, permitindo às editoras poupar custos em todas as acções e eventos. O único apoio que o PT usufrui é da DGLAL (Direcção Geral dos Livros, Arquivos e Bibliotecas), que embora não actue directamente, é um programa que ajuda os editores estrangeiros que queiram editar obras portuguesas. Este programa acaba por ser uma mais-valia para o PT, visto que incentiva a publicação dos seus livros lá fora. Isabel considera que editar em Portugal não é nada fácil. «Nós conseguimos que o projecto não se afunde por fazermos muitas coisas diferentes, não só livros. E, dentro destes, ter a distribuição assegurada por nós, trabalhar a venda dos direitos. É preciso estarem muitas bolas no ar ao mesmo tempo, sobretudo para nós que decidimos não fazer muitos livros. É mais importante controlar tudo o que está à volta desses poucos livros que fazemos.» Apesar de os dois grandes grupos Leya e Porto Editora fazerem imensa pressão sobre as médias e pequenas editoras, Isabel acha que ser pequeno, neste momento, não é uma desvantagem. «O que se está a sentir neste momento nessas editoras grandes, mesmo que não se dê muito por isso, são imensos despedimentos. São empresas que cresceram desmesuradamente e o plano de edição também encolheu muito. Nós temos conseguido, como éramos pequenos, manter-nos assim. Acho que já foi mais difícil porque houve uma altura em que se editava imenso. Às vezes era assustador chegar a uma livraria e ver em tudo grupo Leya.» Para fazer frente ao marketing “da pesada” dos 97 Hoje há Editoras grandes grupos é necessário que a editora mantenha contacto com o seu público leitor, mantendo o seu interesse e a sua fidelidade. Quando questionada sobre as estratégias de marketing utilizadas pelo PT, Isabel diz que considera que o que a editora faz é comunicação e não marketing. «Temos o nosso blogue, o Facebook e a loja online, que são ferramentas importantes para falar com os leitores. [Com o blogue] acabamos por criar um espaço para falar com as pessoas sobre os nossos livros, embora não queiramos fazer do blogue um sítio onde só falamos deles. Queremos que seja um sítio onde partilhamos coisas de que gostamos. No Facebook conseguimos ter uma relação mais próxima com os leitores, as pessoas podem sempre deixar uma pergunta ou fazer um comentário e gera-se uma espécie de jogo de pingue-pongue engraçado.» Apesar de tradicional, isto é, de publicar livros unicamente em papel, o PT já colaborou com uma revista digital, a Timbuktu. Questionamos Isabel sobre essa experiência, se os deixou interessados em saltar para o digital. «Ainda estamos a reflectir sobre o digital. É um salto enorme e implica trabalhar com equipas de fora, pensar nas coisas como um todo a nível internacional. Queremos continuar a fazer livros em papel, mas podemos pensar em digital, mas isso é ainda um planeta um pouco distante.» Ainda sobre o digital, Isabel afirma que a leitura num Ipad ou outro dispositivo será muito parecida com a leitura em papel quando se trata de um romance, mas será muito diferente no que toca a livros infantis. «É preciso ter em conta que o livro é um objecto e não apenas palavras. Os materiais contam, as nossas sensações tácteis também e por isso a experiência é diferente. Uma não substitui a outra.» Quanto ao futuro do PT, Isabel afirma: «Nós temos tentado ir gradualmente diversificando o tipo de livros que 98 Planeta Tangerina fazemos no formato e tudo o resto. Nestas colecções novas isso tem aparecido e por isso eu acho que a tendência no futuro será ir por aí, e ir ao encontro daquilo que queremos fazer sem cair no marasmo e sem nos repetirmos.» A entrevista aproximava-se a passos largos do final, e era tempo agora de particularizar o nosso discurso a cada um dos oito personagens principais do PT. No entanto, e embora preparadas para conhecer cada um dos elementos, não conseguimos neste dia falar com mais ninguém da editora, sem ser a própria Isabel. Agora já mais distraída com a filha no colo, questionamo-la sobre a filtragem do que é ou não “publicável” no PT. A própria assumiu-se no momento como «não politicamente correta» ao declarar que «95% dos projectos que recebemos não são de grande qualidade», e que a quantidade de originais a chegar, é de tal forma abundante que lhes é impossível dar resposta a todas as pessoas. «O que nós fazemos é que se no prazo de seis meses não obtiverem resposta, significa que a proposta não foi aceite». Para Isabel não é difícil colocar-se no papel destes escritores, e entende que assim que recebem uma confirmação de que não foram aceites, querem também saber depois o porquê, questionam onde falharam ou o que podem eles fazer para melhorar. Gera-se desta forma um diálogo infindável que o PT não tem recursos para controlar. Dos restantes 5% de originais que chegam às portas do PT, infelizmente nem todos são adequados ao target da editora. Aos seus autores, a Isabel explica o porquê de não poderem publicar a obra e incentiva-os a irem à procura de outra editora que poderia estar interessada nos escritos. Ainda sobre a questão dos originais, Isabel assume, como editora, que os restantes editores não devem ter pruridos em dizer «não, isto não tem qualidade» às obras a que não vêem futuro, para que mais tarde possam dizer 99 Hoje há Editoras “sim” quando surgem coisas boas. E é neste salto de autora-editora, editora-autora que Isabel gosta de estar. Nem consegue ser uma sem ser a outra. Diz não ter a pureza de não estar completamente inserida em todas as fases da publicação de um livro: «Estou contaminada, o que não é necessariamente mau». Quando escreve fá-lo com atenção para se fazer entender pelo ilustrador que trabalhará o seu texto e percebe quase de imediato como ficaria bem apresentar o que escreve e que paratextos o enobreceriam da melhor forma. Sempre gostou de ler e escrever, «sobretudo de ler, sempre li muito». Considera que a sua passagem pelas Belas Artes foi «um erro de percurso», pois nunca trabalhou como designer e começou a escrever assim que acabou a faculdade. O seu caminho acabou por passar por uma agência de comunicação pedagógica e é agora no PT que faz aquilo que mais gosta. Quanto à inspiração, diz que a encontra por todo o lado. Não a considera como algo transcendental, e encontra -a no dia-a-dia, no seu quotidiano, «na observação de todas as coisas que existem, o estender a roupa, lavar a loiça…» Diz que as ideias têm tendência a surgir-lhe a qualquer momento, especialmente quando não está a fazer nada ou está a tratar de «coisas chatas». No final da entrevista, Isabel explica a regra interna pela qual a casa se rege em relação aos direitos de autor. Como escritora do PT, Isabel assume que na primeira edição do livro não recebe para si quaisquer direitos de autor, visto estes serem «necessários para outras despesas», além de que este valor não é tão estanque quanto se julga, pois, usualmente, os ganhos andam à volta dos «7 a 8% e esse valor é ainda dividido pelo autor do texto e o da ilustração.» e não os 10%. 100 Demos por terminada a nossa longa entrevista, Planeta Tangerina agradecendo a disponibilidade da Isabel. Ficou combinado que enviaríamos por e-mail as restantes questões dirigidas aos elementos do PT que não estavam naquele momento disponíveis para ser entrevistados e que a Isabel trataria de as reencaminhar para os colegas. Foi que fizemos quando voltamos ao nosso planeta Terra e, ao longo de duas semanas, fomos recebendo as respostas de três dos elementos da equipa, nomeadamente a Cristina Lopes, a Yara Kono e a Carolina Cordeiro. A Cristina controla a distribuição, as suas funções dividem-se entre o ateliê e a editora. No ateliê trata da facturação, dos pagamentos, recebimentos, banco, contabilistas, compras e stock de material ateliê/editora. Já na editora faz o contacto com as livrarias, bibliotecas, escolas a nível nacional, e livrarias e museus no estrangeiro. Faz a coordenação e distribuição das edições do PT, das visitas dos autores e exposições itinerantes. Coordena o seu trabalho de modo a dar prioridade ao que se apresenta de mais urgente diariamente «sem descurar o resto». Para a Cristina um dos maiores obstáculos para a distribuição e posicionamente dos livros são as livrarias, que lhe vão dando alguns problemas, pois nem todas têm «o hábito de ter os pagamentos e apuramentos em dia». Isso incita a que se tenha de fazer regularmente um apanhado geral da situação, e estar em contacto com as livrarias insistentemente. A sua relação com os vários estágios do livro é bastante próxima. Procura saber directamente com os livreiros e através dos sites/blogues «que acções e dinamizações andam a fazer, que livros são mais procurados e por quem. Por exemplo, temos títulos como a A Manta e Cá em casa somos... muito procurados por educadores e professores, e muito por causa disso já vão na 2ª edição.» Em relação à editora, Cristina vê o crescimento do PT de forma bastante «saudável». Vê que os seus livros são 101 Hoje há Editoras cada vez mais procurados nas escolas, «o que é muito bom de ver». Afirma que os prémios ganhos e o PNL lhes têm dado muita exposição ao público, «notamos que recentemente novas pessoas, lojas e bibliotecas têm vindo ter connosco, tanto nacionais como estrangeiras, curiosas de nos conhecerem.» Yara Kono é ilustradora e designer gráfica. Brasileira de nacionalidade, foi o amor que a trouxe a Portugal, e nós agradecemos que tenha ficado por cá. Os seus dias na editora e ateliê são sempre diferentes. «Posso estar no ateliê o dia todo, concentrada num projecto, e no outro estou numa escola ou biblioteca, num ateliê ou numa conferência, e ainda posso estar numa reunião com um cliente ou na saída de máquina de um livro, atendendo o telefone ou fazendo jardinagem». No seu papel de ilustradora define que é preciso desafiar o leitor, «sempre». Não sabe ao certo definir as suas ilustrações, mas diz serem simples, bidimensionais e gráficas. Yara gosta de ilustrar para o formato álbum, «fora desse contexto, as ilustrações que geralmente faço perdem força/sentido. É como se a história (com ou sem texto), ilustrações, paginação e design gráfico fossem um elemento só». Para ela é crucial a escolha por parte do ilustrador de um momento do texto para ilustrar. «Gosto de acrescentar pequenas mensagens/pormenores que às vezes só se notam numa segunda, terceira, quarta leitura. Gosto, sobretudo, quando o leitor faz uma leitura completamente diferente da originalmente pensada ou quando uma criança descobre um detalhe que passou batido pelos mais crescidos. Isso tudo, quando a história permite.» Ganhar o prémio nacional de ilustração era para si uma realidade distante e foi uma grande surpresa quando o venceu através do Papão no desvão, o seu terceiro álbum 102 Planeta Tangerina ilustrado. A Carolina cumpre funções como designer e é responsável pela loja online. Diz ter conhecido o PT quando ainda estava a tirar o curso em Aveiro e, desde essa altura, começou a fazer colecção dos livros. Quando decidiu tentar a sua sorte na editora e foi finalmente contactada para uma primeira entrevista, não conseguiu atender e ficou sem qualquer reacção assim que ouviu a mensagem de voz deixada por eles. Ficou sem saber bem o que fazer pois de momento trabalhava e tinha guardado apenas para si a intenção de mudar o seu rumo de vida. «A única coisa que pude fazer foi enviar uma mensagem aos meus pais. Mas lembro-me que a minha vontade foi de começar a correr e gritar. Quando a Isabel me ligou, ao fim de algumas entrevistas, a dizer que tinha sido escolhida, acho que foi isso que fiz». A sua posterior integração não foi tão emaranhada quanto à sua entrada para a equipa, nesta fase «tudo aconteceu de forma bastante natural». Antes de chegar ao PT, a Carolina trabalhava numa agência de publicidade e nestas «o ritmo de trabalho é bastante diferente». Afirma, por fim, que não é difícil a adaptação quando claramente «se muda para melhor». Infelizmente não conseguimos obter respostas dos restantes elementos que se encontram muito ocupados com o seu trabalho. Compreendemos a sua indisponibilidade e sabemos que se estão ocupados, há trabalho, e isso é bom sinal. Não poderíamos concluir sem deixar assente os nossos agradecimentos pela disponibilidade e atenção da Isabel Minhós Martins, que nos recebeu de braços abertos ao seu mundo e nos premiou com uma longa entrevista cheia de bons conselhos e dicas para duas aspirantes a editoras e grandes fãs do seu trabalho. Agradecemos ainda 103 Hoje há Editoras aos restantes elementos, tendo ou não respondido às nossas questões, e desejamos a todos uma continuação de um grande ano. Esperamos mais novidades fantásticas, como o grande livro Irmão Lobo, de Carla Maia de Almeida e o álbum ilustrado Olhe, por favor, não viu uma luzinha a piscar?/Corre, coelhinho, corre!, de Bernardo Carvalho, recentemente lançados. Uma boa viagem rumo a uma nova montanha a escalar — a ALMA, quem sabe?! Bernardo Carvalho/Planeta Tangerina 104 TEODOLITO SEGUIR O MESMO CAMINHO QUE SEGUI TODA A VIDA: PROCURAR BOA LITERATURA O novo projecto editorial de Carlos da Veiga Ferreira surge em 2011. Antes disso, houve a Teorema, da qual foi editor e proprietário, e onde construiu um dos melhores catálogos na história da edição nacional. Para esta nova aventura traz consigo alguns dos maiores autores contemporâneos mas também os clássicos que sempre quis editar. Antevê-se a criação de um novo catálogo com a qualidade unânime que é reconhecida na figura singular deste editor. Brothers and sisters, it’s time to testify. Carlos Almeida D Teodolito epois de um início corajoso como responsável único da Teorema, pagando um avultado valor em dívida com blood, sweat and tears, construiu, logo a partir da primeira Feira do Livro de Frankfurt, um catálogo e uma editora de prestígio, publicando autores como Jorge Luis Borges, Vladimir Nabokov, Martin Amis, Roberto Bolaño, Atiq Rahimi e Marie NDiaye. Destes últimos adquiriu os direitos de publicação para Portugal de Syngué sabour – Pierre de patience e Trois Femmes Puissantes antes da consagração do Prix Goncourt em 2008 e 2009, respectivamente. Agora na Teodolito, acaba de apresentar A Voragem, de José Eustasio Rivera, na Feira do Livro de Bogotá; garantiu a presença de Enrique Vila-Matas na Feira do Livro de Lisboa, a propósito de Chet Baker pensa na sua arte (publicou já na Teodolito Perder Teorias e Ar de Dylan) e conta ainda com Rui Zink e a sua nova Instalação, Antonio Skármeta (a adaptação cinematográfica de Os Dias do Arco-Íris abriu o IndieLisboa), entre outros. Desde o início da sua vida profissional até ao momento actual passou por muitas aventuras, algumas com um desfecho melhor, outras nem tanto, mas todas contribuíram para um percurso onde o editor Carlos da Veiga Ferreira sempre esteve rodeado de grandes livros e grandes autores; um percurso que, aliás, sairá em livro no segundo volume da colecção Protagonistas da Edição, Booktailors. Carlos da Veiga Ferreira retira uma volumosa correspondência da caixa de correio, entrega alguns livros a uma jornalista para uma futura crítica, fala ao telefone. Um dos telefonemas é a propósito da confirmação (a qual tive em primeira mão) da condecoração com a ordem de Grande Cavaleiro das Artes e das Letras pelo ministro da Cultura francês. Sentamo-nos frente a frente e damos início a esta entrevista num ambiente fascinante: todas as divisões do escritório deste editor encontram-se forradas com livros, 107 Hoje há Editoras incluindo todo o catálogo da Teorema, em estantes que vão desde o chão até ao tecto. Em todas as mesas, cadeiras, todos os espaços planos ou inofensivamente oblíquos são ocupados por livros. Um caos absolutamente perfeito. Parece-me evidente que mantém a mesma energia e ambição que tinha no primeiro dia; além disso, já trabalha com a máquina há muito tempo, conhece-lhe segredos que outros desconhecem ainda. Sente que, na Teodolito, está a fazer aquilo de que mais gosta, aquilo que mais ambicionava e que o plano está a correr tão bem quanto o previsto? A mesma energia não sei se terei, a ambição sei que tenho. Penso que com a Teodolito estou a seguir o mesmo caminho que segui toda a vida: procurar boa literatura, bons e novos autores, e, simultaneamente, autores que tenham o mínimo potencial de venda, porque se não tiverem esse potencial, por muito bons que sejam, a editora acaba ao fim de dois ou três livros. Isto nem sempre é possível, o público é bastante incerto. De todo o modo na Teorema eu tinha já aquilo a que se costuma chamar um público de culto. A chancela Teorema era uma garantia de qualidade e muita gente comprava livros sem conhecer os autores. Pude trazer para Portugal muitos autores que eram desconhecidos cá e que funcionaram bem, como Bret Easton Ellis ou Douglas Coupland, e, nos clássicos, O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, por exemplo, livro que já há muitos anos tinha sido publicado e que resgatei com uma nova tradução do José Colaço Barreiros, que resultou muito bem. Digamos que a chancela já vendia mais ou menos por si, funcionou suficientemente bem para que a editora se pudesse manter com algum êxito, mesmo do ponto de vista económico. A partir de 1991 comecei a fazer lucros, não maravilhosos, mas razoavelmente simpá108 Teodolito ticos. Na edição, como dizia um editor americano, há uma maneira de fazer uma pequena fortuna a publicar livros, essa maneira é começar com uma grande fortuna. É uma caricatura mas, de facto, é possível publicar honestamente e, apesar disso, ter algum sucesso. A Teodolito nasceu de um desafio feito pelo Dr. José Ribeiro, da Afrontamento, que eu conhecia há mais de 30 anos. A Afrontamento tem também uma tipografia, Rainho & Neves, onde durante o período da Teorema, a partir de 1990, imprimi cerca de 90% dos livros que fiz, se não mais. Era uma relação profissional antiga, uma relação pessoal boa, e ele desafiou-me para criar uma chancela nos termos em que eu quisesse. Confesso que estava longe de pensar nisso, mas disse-lhe logo ao telefone: Teodolito, e assim começou. Esta decisão foi tomada em Março ou Abril, fizemos logo nesse ano (2011), a 23 de Abril, dia mundial do Livro, uma edição que costumo fazer com a FNAC, chamada Prazer da leitura; de seguida fizemos os Novos Talentos FNAC, e a partir de Outubro comecei a publicar a sério, com o primeiro livro a pertencer a Atiq Rahimi, Maldito seja Dostoiévski. Quem segue o percurso da Teodolito percebe que eu tenho estado a publicar autores que já tinha na Teorema e vou continuar por aí, independentemente de vir a ter autores novos que, obviamente, procuro e desejo encontrar. O que parte muito, também, da forte relação e contacto pessoal que mantém com os agentes literários. Sim e para além disso, em muitos casos, da relação e contacto pessoal que mantenho com os autores – sou amigo do Enrique Vila-Matas há mais de 30 anos, ele só veio para a Teorema depois de já ter publicado alguns livros na Assírio & Alvim, porque também era muito amigo do Hermínio Monteiro, que foi quem o começou a publicar. Mas logo que o Hermínio morreu ele passou para a Teorema e, agora, para a Teodolito, sem qualquer hesitação. 109 Hoje há Editoras Prefere publicar menos e publicar melhor. Um esforço financeiro maior para cada livro, talvez, mas a certeza de que estamos perante um bom livro, uma boa edição. É esse o mote da Teodolito? Podemos esperar mais autores, mais livros a um ritmo mais veloz, ou cada edição será manufacturada como um whisky irlandês? Na Teorema eu publicava 45 novos títulos por ano. No final do meu percurso o catálogo da editora tinha cerca de 700 títulos, o que já tem algum valor, mesmo em termos de quantidade. Não é muito normal, em tão curto espaço de tempo, fazer tantos livros de qualidade. Há quem tenha feito muito mais durante o mesmo tempo mas, infelizmente, a qualidade não é exactamente a mesma. O meu projecto para a Teodolito conforma-se por várias condicionantes externas: estamos, de facto, em crise e isso implica que, em geral, todas as editoras estejam a publicar menos (no grupo Leya, com a Dom Quixote e a Caminho isso é evidente, já na Quetzal estão a publicar ao mesmo nível que publicavam antes). Por outro lado, como costumo dizer eu já não tenho 50 anos, também já preciso de algum descanso. A meta que estabelecemos é à volta de 20 livros por ano, cerca de dois livros por mês, não publicando nem em Agosto, nem em Dezembro, o que era também tradição na Teorema – nunca publiquei livros nestes meses: em Agosto coincide com as férias e muita gente está fora, em Dezembro sai tudo para o Natal, publicar no meio dessa avalancha é como que atirar os livros às feras. O que vamos fazer é continuar a manufacturar livros com cuidado e com um critério de escolha muito apertado – vou publicar, por exemplo, um livro de Emilio Salgari, uma obra muito pouco conhecida que tem o título As maravilhas do ano 2000, algo que, tal como Júlio Verne também fez, é uma antecipação, neste caso do que seria o ano 2000. 110 Teodolito Um romance onde muitas das previsões se vieram a realizar. Vou publicar mais um livro do Joseph Conrad, em parceria com o Ford Madox Ford, vou reeditar um livro do VilaMatas, que tinha sido publicado pela Assírio & Alvim mas que eu reservei para mim – a Assírio & Alvim tinha feito seis e queria reeditá-los, eu estive de acordo com isso com a excepção de um único livro, «Bartleby & Companhia», que vou publicar depois do Verão. No princípio do ano que vem devo ter outro romance inédito do Vila-Matas e penso também, ainda este ano, publicar um livro de contos do Rui Zink – o livro anterior que publiquei no final do ano passado, A instalação do medo, já fez segunda edição. Tenho, enfim, o suficiente para me ir entretendo e para publicar coisas que estejam à altura do meu percurso passado, que tentaremos naturalmente vender. Existem, também, dois clássicos, um deles húngaro com um título ao estilo da Margarida Rebelo Pinto, Breve história de um amor eterno (Rubin Szilárd), e um romeno, também de grande qualidade, que tem esta curiosidade: o autor do livro, Mateiu Caragiale, era grande amigo do embaixador português na Roménia, da família do Nuno Brederode Santos e da Maria Emília Brederode Santos e que, quando cessou funções como embaixador permaneceu na Roménia, casou lá e lá morreu e, segundo dizem os investigadores romenos, um dos personagens do livro do Caragiale, Os depravados príncipes da velha corte, é, ao que parece, o embaixador Fernando Brederode. É possível vender livros de qualidade e tenho já um plano delineado, sim. É lógico que isto é sempre contingente porque abre-se um jornal e descobre-se um livro novo, lê-se uma revista e há um autor novo, chegam e-mails a propor livros e autores novos, tudo isto pode alterar um pouco o plano. 111 Hoje há Editoras Tenho a ideia de que é bastante próximo dos seus autores, que não só os protege como também potencia o seu encontro e reconhecimento com o público leitor. Há, até, relações mútuas de elogio da arte da escrita, como entre Ignacio Martínez de Pisón e Enrique VilaMatas. No campo da música, encontro semelhanças com Tony Wilson, que seguia a mesma filosofia apaixonada na editora Factory Records, no final dos anos 70, e que, entre muitos outros, nos legou os Joy Division e Happy Mondays. Sente que é esse o seu dever e fá-lo com prazer, conquistando mais-valias para os seus autores, para si e para a sua editora? Julgo, também, que concordará com a afirmação de que aquilo que faz um editor é o catálogo que apresenta, algo de que se pode orgulhar. É verdade que sou bastante próximo dos meus autores, e também é verdade que muitos dos meus autores são bastante próximos entre eles. Estes dois que cita são amicíssimos, antigamente viam-se todos os dias. Agora que o Vila-Matas deixou completamente de beber e de sair à noite, suponho que veja o Ignacio uma vez por semana, mas telefonam-se todos os dias. Quer com um, quer com outro tenho também relações de amizade, como tenho com muitos autores que publiquei, desde o Mangel, a Maylis de Kerangal, o Martin Amis, com quem tive muito boa relação e que esteve sentado nessa cadeira que ocupa agora, e mesmo neste momento, em que eles estão noutras editoras, como é o caso do Martin Amis, mantenho muito boas relações. Infelizmente, uma série de autores que publiquei já tinham morrido e, no caso de alguns, talvez tenha sido a Teorema quem os matou. Enfim, o Borges já tinha morrido há muitos anos, mas o Raymond Carver, quando publiquei o primeiro livro dele, ainda nos anos 80, deveria vir cá em 112 Teodolito Agosto, para o apresentar; morreu uns dois meses antes, com um cancro nos pulmões. O Italo Calvino morreu na altura em que a Teorema publicou o primeiro livro dele. Portanto, alguns destes autores eu teria tido imenso gosto em conhecer mas já tinham morrido. Com os outros, com todos aqueles que conheço e conheci pessoalmente, sempre tive uma excelente relação e isso ajuda, também, a que eles tenham o desejo de cá ficar. Para quem procura autores literários é muito importante ter um catálogo de qualidade, porque o mercado português é muito pequeno, à escala dos grandes mercados dos grandes autores estrangeiros isto não é nada, o significado em termos económicos é pouquíssimo, daí que qualquer um deles prefira, obviamente, integrar um catálogo que seja de alta qualidade em detrimento de ganhar mais 1000 euros, que não é nada para nenhum deles, e ir para outro lado. Isso, sem dúvida, tem sido também muito importante. Para além disso, há o caso de alguns autores meus que recomendaram a minha editora a outros. O Mathias Énard, que esteve cá na Feira do Livro, trazia-me um abraço da Maylis de Kerangal, que vou publicar depois de férias, ou seja, estas coisas circulam. Ele disse-lhe que vinha cá a Portugal, e ela informou-o de que tinha um grande editor português. Até tenho aqui, aliás, uns livros que estou a pensar publicar [Carlos da Veiga Ferreira alcança, na sua secretária, alguns livros de Pierre Michon, edições da Gallimard] que, precisamente, foi a Maylis que me sugeriu, um autor que não está publicado cá e que é, também, um grande autor. Este tipo de comportamento contrasta imenso com um outro, de certa forma mais prepotente, que vemos sobretudo em editoras maiores, que não cultivam esse tipo de relação, esse respeito. Sim, os grandes grupos seguem naturalmente o princípio sagrado do capitalismo: maximizar o lucro. 113 Hoje há Editoras Suponho que para a Leya é muito mais importante publicar As Cinquenta Sombras de Grey do que publicar Nabokov ou Borges, ou qualquer outro; o que eles fazem é contabilidade, números, uma folha de excel, tal como o ministro de Estado e das Finanças Vítor Gaspar (que já não o é). Conheço uma pessoa que foi despedida de uma grande editora com o motivo de que não gerava receitas e que, dessa forma, não a queriam. No que diz respeito ao meu caso com a Leya não me posso queixar, trataram-me sempre com enorme delicadeza e continuam mesmo depois de eu ter saído, mas a verdade é que os editores para eles são uma entidade substituível, como os autores. Foi-se embora o Agualusa e há-de aparecer um outro angolano muito bom. A minha relação com a Leya, aliás, é interessante porque, quando a Leya surgiu, a primeira editora que compraram foi a Texto Editora. Partiram daí para fazer um grupo. O director executivo da Leya – com quem andei a falar durante cerca de três meses – queria muito que eu vendesse a Teorema à Leya e propunha-me o lugar de director geral de edições: haveria um conselho editorial e eu estaria à frente desse conselho. Andámos a falar disto até que quando chegámos às condições económicas. Não aceitei, o que eles me propunham não era exactamente o que eu achava que valia e não quis. Isto sem saber que um ano depois, estava eu em casa, de manhã, como estou sempre, só à tarde é que venho para o escritório, telefonou-me o Isaías Gomes Teixeira, administrador do grupo Leya, a comunicar-me que a Leya acabava de comprar a Teorema. Assim que desligo o telefone, outro telefonema, era o homem da Explorer Investments, o grupo a quem tinha vendido a Teorema há um ano atrás, a dizer que tinham vendido à Leya – foi assim que eu soube do negócio. Durante algum tempo, não me dei, de facto, mal; o problema tem muito a ver com um certo individualismo, 114 Teodolito porque a forma como aquilo funciona, não só na Leya, nos grupos estrangeiros é a mesma coisa, não é do meu agrado. Todos os meses há uma reunião, algo a que eles chamam de comité, onde está gente das vendas, está o editor, alguém da administração. Aí, o editor explica quais são os livros que pretende publicar sendo que eles aprovam ou não aprovam. É preciso dar muitas explicações, explicar qual é o livro e por que é aquele e não outro; lembro-me de uma amiga minha, a Esther Tusquets, proprietária da editorial Lumen, que vendeu a editora ao grupo Mondadori, e ficou posteriormente, tal como eu, como editora. E, tal como eu, ao fim de dois ou três anos também se veio embora… Disseme, pessoalmente, que já não podia suportar ouvir os tipos a perguntarem “quais são os argumentos de venda?”. No meu caso não eram os “argumentos”, eram as frases da capa. “Que frase é que se há-de pôr na capa?”, e nalguns casos eu cheguei mesmo a irritar-me, porque um dos livros que publiquei nessa época era uma obra de um grande sociólogo francês, Michel Wieviorka, um livro fundamental da sociologia, Nove ensaios de sociologia, e perguntaram-me que frase é que se havia de colocar na capa. Naturalmente eu disse que não se podia colocar frase nenhuma, perguntei se eles estavam a sugerir algo como “leia este livro e melhore a sua vida.” Há um grupo de editores que janta todos os meses, quase todos a trabalhar em grupos, mas há alguns independentes, também, a quem eu já propus várias vezes a criação de um Movimento pela Edição Sem Frases na Capa. Porque agora a grande moda é pôr “best-seller do New York Times”, “best-seller internacional”… Isto é pensar que todos os leitores e compradores de livros são idiotas. O que é isto? Nada, rigorosamente nada. Felizmente tive esse desaguisado com eles na base das condições contratuais, porque, se eu não tivesse saído, no final do meu contrato teria de estar cinco anos sem trabalhar em edição. Mas como foram eles que romperam o 115 Hoje há Editoras contrato, eu fiquei livre disso e pude arrancar logo a seguir. Essa cláusula é ofensiva. Sim, mas todos a inserem no contrato. Não só eles como também as multinacionais, todas fazem isso. Eu, de resto, penso que isso nem sequer é legal. Penso que uma coisa dessas não é constitucional, mas há muitos contratos que são assim, sobretudo nos grandes grupos empresariais. De qualquer forma, vim-me embora e como tinham sido eles a romper o contrato, essa cláusula foi aniquilada e nunca lhe fizeram, sequer, qualquer referência. A meu ver – e no seguimento da questão anterior – uma editora só tem a ganhar se aproximar de si o seu público. Em Portugal temos Feiras do Livro, ao que parece temos menos uma grande e importante Feira este ano. Qual a sua opinião no que diz respeito a iniciativas sobre e do livro e também para além dele, eventos que envolvam música, cinema, exposições ou instalações de arte? O Festival LER 25 Anos do ano passado foi um bom exemplo. Mesmo um lançamento de um livro, como torná-lo numa festa mais apetecível? Seria o Enrique Vila-Matas impedido de entrar no LUX, barrado pelo porteiro, ali junto à estação de Santa Apolónia? Aproximar a editora do público foi sempre algo que eu levei muito a peito. Enquanto a Teorema foi minha, até 2007, inclusive, eu ia todos os dias à Feira do Livro, estava sempre no pavilhão, precisamente para falar com as pessoas. E conheci-as lá, as pessoas que trabalhavam aqui comigo, a minha secretária, por exemplo, que entrou para aqui em 1989; sobretudo nessa época, eu estava lá no pavilhão e conseguia até adivinhar aquilo que as pessoas vinham comprar. Acertava porque tinha ideia de qual era o meu público, que era muito diferenciado – não era o 116 Teodolito mesmo para o Borges, ou para o Calvino. O Coupland, por exemplo, que descobri numa livraria em Londres. Entrei na livraria, reparei num livro com um aspecto atraente, chamado Geração X, folheei-o e imaginei imediatamente que havia um público garantido para aquilo em Portugal. Foi uma pequena saga porque a editora americana era a St. Martin’s Press; escrevi-lhes e responderam-me dizendo que não eram eles quem tinha os direitos, os direitos eram de um agente de Santa Mónica, Califórnia. Entrei em contacto com esse agente, que me respondeu que a sua agência tinha um agente específico para a Europa, um homem sueco, que passava metade do tempo na Suécia e a outra metade em Espanha. Entrei em contacto com ele e acabámos por chegar a acordo. Assinei o contrato em Barcelona, em cima de um caixote, na Feira Internacional do Livro Espanhol, a Liber, aqui há uns anos. Conheci-o pessoalmente aí, ele trazia os contratos, assinámos e assim foi. E o Coupland foi, sem dúvida, um êxito. A Geração X vendeu muitos milhares de livros. No que diz respeito a iniciativas conjuntas eu acho simpatiquíssimo mas em Portugal é um pouco difícil de montar, de conjugar esforços e pessoas, embora o livro do Rui Zink, quando o apresentei, tenha tido dois actores que leram algumas partes do livro; nalguns casos tenho tido música mas não é muito fácil. O Enrique Vila-Matas não seria impedido de entrar no Lux, de forma alguma, até porque já lá foi várias vezes comigo; agora seria ele quem não quereria entrar. Mas no Lux nunca fiz nenhum lançamento e penso que não gostaria de fazer, apesar de também me dar bem com o Manuel Reis, o dono, mas acho aquilo muito grande e pouco cozy, penso que os livros ganham mais em ser apresentados em sítios menos movimentados. Mas já fiz lançamentos curiosos. Fiz um no Ritz Club, que nessa altura passava muita música de raízes africanas, um livro da Tama Janowitz, chamado Os escravos de Nova Iorque. 117 Hoje há Editoras O Tirano Banderas, de Ramón María del Valle-Inclán, apresentei-o na casa da Galiza mas teve um lançamento muito singular, também: na Galiza há um licor chamado queimada, uma bebida que é muito forte, aguardente à qual pegam fogo e misturam umas coisas, mas tem um ritual, umas conversas de bruxaria, e isso foi feito no jardim, com uma grande queimada e tipos a tocar gaita-de-foles. Eu não sou partidário que as apresentações de livros tenham de ser eventos académicos e solenes. O Lux, a certa altura, até se banalizou bastante, porque a Dom Quixote fazia lá praticamente tudo, mas eu prefiro, de facto, fazer coisas na Ler Devagar, em livrarias, sobretudo, ou então coisas fora do circuito normal mas que não sejam tão trendy. A Ler Devagar, bem como outras livrarias independentes, é um espaço que surgiu e, muito rapidamente, ganhou um certo culto. Sim, eu penso que a Ler Devagar era primeiro no Bairro Alto, o que para mim era mais simpático, eu não guio e é relativamente longe daqui. Já no Bairro Alto era uma livraria muito diferente das outras e que se preocupava muito com os aspectos culturais do livro. Tinham livros que não havia noutras livrarias e investiam muito nisso; agora ali a livraria é muito bonita e funciona muito bem. Diz-me o administrador que vão abrir, já abriram, aliás, em Óbidos, uma livraria, numa igreja que foi recuperada. Mas vão abrir mais seis ou sete, todas em Óbidos, todas geridas pela Ler Devagar, com a ideia de fazer de Óbidos o mesmo que se fez numa terra do País de Gales, que tem um nome impronunciável, como, de resto, todos os nomes galeses (Hay on Wye, Y Gelli Gandryll em galês), que era uma pequena aldeia, num castelo, onde o dono do castelo resolveu fazer uma livraria e agora há lá imensas livrarias. Livros correntes, alfarrabistas, e todos os anos há um festival gigantesco, essa pequena aldeia tornou-se conhecidíssima mundialmente por ser uma aldeia de livros. 118 Teodolito A ideia do José Pinho é fazer o mesmo em Óbidos, e tem o ambicioso objectivo de ter lá todos os livros disponíveis no mercado em Portugal, que são cerca de 250 ou 300 mil livros, o que forçosamente tornaria Óbidos um ponto de atracção, porque de todos esses livros, nas livrarias encontram-se 3 ou 4 mil. Tudo isso tem bastante apoio da Câmara, a igreja era património da Câmara, foi recuperada e cedida, entre outras coisas. Como já conseguiram fazer de Óbidos a capital do chocolate, parece que com grande êxito, talvez consigam o mesmo com os livros – não é tão fácil como o chocolate mas pode ser uma atracção que faça com que as pessoas vão a Óbidos para comprar livros. Não há tantos malucos como este de que eu vou falar mas ainda há alguns. Um homem, suponho que médico ou engenheiro, que aparece todos os anos nas Correntes d’Escritas, e que tem milhões de livros espanhóis; este ano, quando o Enrique Vila-Matas esteve cá em Lisboa, ele apareceu com a tradução portuguesa e com o original espanhol. Já depois, estávamos os três a conversar, dizia ele “tenho 90 livros seus”, e o Enrique respondia, perplexo, “90!?”, “sim, tenho as edições espanholas, as portuguesas, as inglesas e as francesas, embora estas últimas me interessem menos porque os franceses não indicam nos livros se é primeira, segunda ou terceira edição.” Portanto, há pessoas capazes de fazer isto. E o Vila-Matas já o conhecia porque ele já tinha aparecido na Póvoa; ele faz o mesmo com o Ignacio, todos os autores espanhóis que eu publico, ele já os tem em espanhol e depois aparece para lhe assinarem a tradução portuguesa. E eu sei que há muito mais pessoas assim, o que é interessante. A propósito do Festival Correntes d’Escritas, houve colegas que me relataram a avassaladora afluência do evento. Sem dúvida, este ano era quase insuportável. Eu cheguei a dizer à Manuela Ribeiro, a pessoa que se encarre119 Hoje há Editoras ga de organizar operacionalmente o festival, que ela tem de começar a cobrar entrada, porque muitas vezes não consegui assistir às sessões. Como fumo muito ficava cá fora e quando chegava já nem nas escadas tinha lugar. No princípio ninguém dava nada por aquilo, no primeiro ano nem sequer fui, e editores, que eu me lembre, estavam apenas a Asa, onde estava o Manuel Valente na altura e a Caminho, com o Zeferino Coelho. Eu passei a ir a partir do segundo ano e tenho ido sempre, desde então; este ano baixou a nível de participantes mas não baixou a nível de público, como as suas colegas lhe reportaram, pelo contrário, tornou-se quase desumano. Ao longo dos anos foi algo que foi sempre crescendo e os autores portugueses já lá estiveram praticamente todos. A ideia foi de um indivíduo do Porto, Francisco Guedes. Ele tinha estado num festival, onde eu também estive, em Gijón, Espanha, festival esse organizado pelo Luis Sepúlveda. Ele presenciou aquilo e ficou bastante entusiasmado com a ideia. Quando regressou julgo que propôs isso à Câmara do Porto, e outras – ninguém quis saber. Até que na Póvoa aceitaram aquilo e tornou-se hoje num fenómeno literário incrível, com bastantes autores ibero-americanos. Ele chegou a fazer outro festival em Matosinhos, com autores de outras nacionalidades; a propósito disto o VilaMatas fez uma coisa engraçada. Nessa altura ele tinha uma página semanal no El País e fez um artigo sobre o festival Correntes d’Escritas, que publicou na semana anterior ao festival, mas que ele descrevia no artigo como se já tivesse sucedido! Começava por descrever o quarto dele, o que via pela janela do quarto, tudo falso! Um artigo interessante. De facto, tornou-se um acontecimento cultural. Espero que continue; cada vez o orçamento é mais curto, mas também me dizem que para o ano já terão um teatro recuperado, bastante maior (Teatro Garrett) e, se tudo estiver pronto, o festival passa a ser aí. 120 Teodolito A sua lista de contactos é fenomenal e, sempre com mérito próprio, consegue apresentar surpresas atrás de surpresas, nomeadamente, autores. Quanto suor exigiu de si esse esforço ao longo dos anos? Muita palavra dada e cumprida? Ah, a propósito, que percentagem da sua alma cedeu por contrato àquele senhor que veste de negro, na famosa encruzilhada (será que estou a falar de Andrew Wylie?) ou nunca se cruzou com ele? A minha lista de contactos exigiu, de facto, muito esforço, muita palavra dada e muita palavra cumprida. Da percentagem da minha alma, não cedi nenhuma; sou dos poucos editores que tem uma boa relação com o Andrew Wylie. Muito provavelmente porque começou mal e porque eu lhe respondi de uma forma bastante portuguesa, e tesa. O meu fax era bastante duro, mas a partir daí temos tido uma excelente relação; fui, mesmo, responsável pela passagem do Antonio Tabucchi para a Agência Wylie. Uma vez em Frankfurt, no aniversário da Anagrama, ele estava lá e perguntou-me se eu conhecia o Tabucchi, “conheço, até me dou bastante bem com ele”, “gostava de o levar para a Agência, arranjas-me um encontro com ele? Eu vou a Lisboa…” Pouco tempo depois encontrei o Tabucchi, em Turim, e disse-lhe que o Wylie queria ser o seu agente, pedi-lhe permissão para lhe dar o contacto dele e ele aceitou. Falaram os dois e o Wylie levou-o para a sua agência. Hoje, por acaso, ao abrir o mail tinha um e-mail de uma agência americana, da agente do Coupland, a informar-me que o Coupland passava a ser representado, a partir deste mês, pelo Andrew Wylie. Eu fiz com ele mais de 100 contratos e correu sempre tudo bem, temos uma excelente relação. Até porque o catálogo dele (Carlos da Veiga Ferreira levanta-se e retira da base de uma das estantes o catálogo da Agência Wylie, 121 Hoje há Editoras Frankfurt, 2011, um único volume com cerca de 500 páginas) é uma espécie de História de Literatura do século XX. O catálogo é um livro. Isto é abissal. Uma infinidade de autores, de facto. Os nomes contemporâneos de que você se lembrar… Haruki Murakami, está aí; Saul Bellow, que eu também publiquei e foi, de resto, traduzido pelo Rui Zink, está aí; Ian McEwan, está aí. E mesmo não tão recentes, como o Lampedusa, outros clássicos que já morreram, e não só romance, também muito ensaio, o próprio Lou Reed, David Bowie… Está aí tudo. Isto é, ninguém hoje pode ter um bom catálogo literário de autores contemporâneos sem se cruzar com o Andrew Wylie. Esta é a bíblia da literatura internacional. Não lhe vendi nada, pelo contrário, ele tem-me vendido com alguma simpatia e sem me explorar muito mas a verdade é que a fama dele vem de longe, o nome pelo qual é conhecido no meio editorial é chacal, e tentou, por exemplo (não conseguiu até hoje, mas assim que ela morrer consegue) comprar a agência da Carmen Balsells, que tem praticamente todos os autores latino-americanos. Ainda assim ele já lá foi buscar o Bolaño, o Guillermo Cabrera Infante; em geral, quando eles morrem, as viúvas transferem-se para o Wylie. Imagino que ele lhes oferece mais dinheiro. É evidente que ele tem essa componente mercantilista mas também é evidente que é um excelente agente e um excelente apreciador de literatura, porque não procura nem aceita autores que não tenham qualidade. Recorda-se do episódio protagonizado por Martin Amis e Julian Barnes, tendo por base o rapto do Andrew Wylie? Sim, sim, o Martin Amis era agenciado pela mulher dele e eles cortaram relações; mas é evidente que o Martin Amis lucrou bastante com isso, porque estar num catálogo destes já é um primeiro passo para ser rapidamente tradu122 Teodolito zido. Não há nenhum português, o único mais próximo de Portugal era o Tabucchi que, enfim, tinha cá uma casa, era casado com uma portuguesa e professor de literatura portuguesa, de resto não há nenhum autor português. Em Portugal não há muita tradição ao nível de agentes literários. Não, Portugal é muito da escola francesa, e os autores franceses, em geral, não têm agentes, são representados, na maioria dos casos, pelas próprias editoras e cá em Portugal também era assim: a Dom Quixote, ou a Caminho, que têm muitos autores portugueses, tratam directamente dos direitos dos seus autores portugueses. No caso da Caminho a excepção era o Saramago, que tinha uma agente, que ainda é a mesma, alemã. Mas cá, de facto, era mais a tradição francesa, era o editor quem procurava traduções e tratava de tudo. Agora está a mudar um pouco, os meus amigos da Booktailors julgo que são, também, agentes e já têm alguns autores portugueses, não sei se muitos, se poucos; eu sei disso, porque um dos autores que eles representam é o Paulo Ferreira. Por essa altura eu convidei-o para um conto no Prazer da leitura e quem tratou do contrato foi o pessoal da Booktailors. Eu acho que para o mercado português não é propriamente necessário que haja agentes; para tentar traduções, é, mas isso custa caro. Por outro lado, para os autores ter um agente é simpático, porque não se preocupam com contratos, com cobrar os direitos, a arte de negociar, isso deixa-os bastante aliviados de toda a carga burocrática. Cá em Portugal, houve um agente literário, ainda vivo, um tipo chamado Ilídio de Matos, que representou muitos autores americanos – ele representava em Portugal uma agência chamada Curtis Brown (Curtis Brown Literary and Talent Agency), que tinha a Agatha Christie, o Hemingway, o Steinbeck… E durante anos era o Ilídio que se encarre123 Hoje há Editoras gava disso. Hoje, tem quase 90 anos, e não sei se ainda está a trabalhar, mas foi importante. Era agente de autores estrangeiros. Agentes de portugueses, em Portugal, nunca houve, que eu me recorde. Os Booktailors estão a dar os primeiros passos e são capazes de conseguir, porque, de facto, não é muito agradável para um autor ter que discutir contratos. E existe esse interesse por parte do editor ou da casa editorial, por exemplo nas traduções? Existe, sim, porque uma percentagem dos direitos cabe ao editor ou ao agente. É uma figura contra a qual eu não tenho nada e que para editoras como a Teorema é imprescindível; sem eles não era possível. Vamos ver o que conseguem os Booktailors com isso, eles são muito mexidos, é gente muito activa. Levará algum tempo, certamente. Ah, sim, vai levar muito tempo, porque este mundo não é fácil, também implica bastantes despesas: é preciso mandar os livros e muitos. Muita gente lê PDFs mas outros, entre os quais me incluo, prefere ver livros reais, ou então manuscritos, e para fazer isso… A grande maioria dos livros que estão aqui vieram pelo correio, portanto só em correios houve aqui um investimento por parte dos agentes e dos editores muito grande. Mas os livros que eu tenho aqui são poucos, eu tenho muitos é em casa. Tive, até, que comprar outro andar no mesmo prédio para pôr livros. Aqui são sobretudo os livros que passaram pela editora. As grandes Feiras internacionais não têm, nos dias de hoje, a mesma importância que tinham antes. Ainda assim, e esquecendo os muitos dígitos que tem na sua caixa de entrada do mail, julga que são eventos importantes? Continua a receber ou a dar aquelas notícias fantásticas, em primeira mão, na Feira de Frankfurt, por exemplo? A “sacar” este autor, aquele 124 Teodolito livro, a descobrir segredos, inside information? Quanto às Feiras, elas continuam a ser importantes para mim, sobretudo para a manutenção do contacto pessoal, porque esse contacto pessoal permite ter acesso àquilo a que você chama de inside information. Já me aconteceu a mim, e de mim para outros, aconselhar livros ou aconselharem-me livros, editores que publicaram determinado autor e que me dizem “procura este, vê se está livre em Portugal, porque é muito bom.” Eu próprio já fiz o mesmo, lembro-me de um livro que reeditei na Teodolito, que tinha publicado na Teorema, um livro do Witold Gombrowicz, que se chama Curso de filosofia em seis horas e um quarto. Aconselhei-o à minha amiga Beatriz de Moura, da Tusquets editores, que o publicou depois, também com bastante êxito. Isto existe. A Feira de Frankfurt tem um enclave muito importante, que é o hotel Frankfurter Hof, onde eu de resto costumo ficar, e onde a partir das 19h da tarde se junta toda a gente; centenas de pessoas. Aí fala-se muito com editores, com agentes, nuances que passam à margem da Feira e de que se consegue ter conhecimento através dessa relação pessoal. É um bar, portanto, é conversa de bar, que é uma conversa importante. As pessoas nem sempre estão ali com a preocupação de vender, é mais um momento de convívio, onde se vão passando informações; daí já trouxe muitas ideias, desse bar. Para além disso, a edição está sobretudo nas mãos das mulheres, a esse nível: editores e agentes. Há muitas mulheres, mas os donos são homens, portanto ainda se mantém algum respeito! Ironia, claro. No meio disto tudo há muita rapariga e há muita rapariga muito bonita, o que é curioso e interessante. Muitas são muito bonitas e muitas sabem muito, apesar de serem ainda novas já sabem muito disto. Lá fora, esta ideia dos mestrados é já antiga, 125 Hoje há Editoras e a maioria das pessoas tem uma formação de Letras que depois complementa com uma formação específica para a edição. Há mesmo países, como a Holanda, onde cada livraria é obrigada a ter, por lei, pelo menos um livreiro formado com um curso superior de livreiro. Pode não ter, mas se não tiver, as condições de desconto quando compra os livros aos distribuidores não são tão boas, o desconto é menor. Todas as livrarias fazem esse esforço, as que eu conheço têm todas pelo menos uma pessoa com formação superior de livreiro; algo que cá em Portugal nem há. Nas farmácias há, tem que haver um farmacêutico, e, a meu ver, os livros são um produto tão perigoso quanto os medicamentos. Seria importante porque eu lembro-me de um tempo em que Lisboa tinha livreiros absolutamente fabulosos. Não só conheciam aquilo que saía, as novidades, como liam uma grande parte, funcionavam bem como aconselhadores e vendedores; conheciam os clientes. Você entrava lá e era recebido com um “olhe, este livro acaba de sair, deve interessar-lhe”. Agora, não estando no computador… E mesmo que esteja no computador, não está na loja. Na FNAC isso acontece-me com muita frequência. “Temos quatro livros.” “Então arranje-me lá um, por favor.” Mexem nas prateleiras, aqui e ali… “Olhe, afinal não temos, já vendemos.” Esse papel do livreiro também é muito importante, o papel de divulgador da cultura do livro, que praticamente desapareceu – há dois ou três com essa capacidade, ainda, mas praticamente desapareceu. E também desapareceu, em parte, porque as pessoas não estão motivadas; pagam mal e a maioria das pessoas que está na FNAC ou na Bertrand são jovens como você, que estão a acabar um curso ou que já acabaram o curso e não arranjaram mais nada, estão ali à espera até encontrarem um emprego que lhes interesse, não investem muita energia. Eu lembro-me, já há uns anos, numa livraria em Madrid, Casa del Libro, que é uma cadeia como a Bertrand; 126 Teodolito numa ocasião procurava um livro, que era precisamente esse, La Vorágine [a edição de A voragem, da Teodolito, estava na cadeira ao meu lado] e perguntei a uma senhora, empregada lá, com talvez cinquenta e muitos anos, “eu procuro «La Vorágine», do Eustasio Rivera” e ela respondeu-me logo, quase instantaneamente, “eu tenho quatro edições, qual é que quer?” Eu expliquei que não conhecia nenhuma delas e que agradecia muito se me disponibilizasse todas, para poder escolher. Dois minutos depois tinha quatro livros à minha frente. Isto hoje é impossível. Em Barcelona há uma livraria, chamada Central, onde ainda é assim: você pergunta e eles sabem; cá em Portugal, se não tiver chegado hoje à livraria ninguém sabe. Ainda a propósito das Feiras, a Feira do Livro de Lisboa teve uma boa afluência e chegou mesmo a vender mais. Penso que vendeu melhor que o ano passado, em volume de negócio, mas também acho que isso se deve um pouco a estratégias muito agressivas da Leya, por exemplo; o fundo da Teorema, no stand da Leya, estava a três, quatro euros. Logicamente venderam muitos livros, fizeram muito dinheiro, mas provavelmente com margens mínimas ou inexistentes e eu não sei no que isto pode dar, porque é perigoso, degrada o mercado. Eu ou você temos um desses livros nas mãos e pensamos “se vendem isto a três ou quatro euros, porque é que os outros vendem a 15, 16 ou 17?” É a pergunta que eu, como público, faço. E em muitos casos eles vendem a perder dinheiro, apenas para realizar massa, é uma bola de neve que vai descendo, cada vez maior. Quanto à Feira do Livro do Porto, consegue compreender como é que não se realiza? É uma tontice do Rui Rio. Uma tontice por 75 000 euros que a Câmara costumava dar – para os automóveis no Circuito da Boavista dão 300 ou 400 mil. Ele é um pouco 127 Hoje há Editoras da escola do “quando oiço a palavra cultura, saco do revólver.” E também acho que os editores, pelo menos a Porto Editora, se esta editora tivesse avançado, outras iriam atrás e a Feira ter-se-ia feito, mesmo sem os 75 000 euros. É absolutamente lamentável que um evento com mais de 80 anos tenha acabado, que não se realize este ano. Não havendo a primeira vez, é fácil não haver nunca mais. E esse pretexto dos 75 000 euros… É sempre o dinheiro. É bastante dinheiro para si ou para mim, para uma câmara não é nada. Eles fazem lá o circuito de automóveis, que ainda por cima julgo que não tem importância nenhuma, não é do calendário das provas importantes, e o presidente gasta 300 mil euros ou mais. De certeza que tem muito menos retorno em termos propagandísticos do que tem uma Feira do Livro, que está ali durante quase três semanas, no centro da cidade. Toda a gente passa, toda a gente vê, enfim, é o problema fulcral das autarquias e que também tem muito a ver com a cultura: os autarcas têm mais poder do que aquele que deveriam ter. No caso concreto da cultura, há neste momento uma rede de bibliotecas públicas boa, em quase todas as cidades há uma biblioteca pública, por norma, boa. Ao nível das instalações e equipamento são todas excelentes; ao nível dos livros, há muitas que são muito más. Porquê? Eu fui presidente da UEP (União de Editores Portugueses), tive muitas reuniões com vários ministros da Cultura e sempre insisti nisto. O programa de leituras públicas é uma parceria com as câmaras: o governo paga o edifício, paga o equipamento e paga, digamos, o primeiro fundo da biblioteca. A partir daí, são as autarquias quem compra. O que acontece é que se, por acaso, naquela câmara o vereador da Cultura e o presidente da câmara são virados para a cultura, fazem um orçamento que permite comprar muitos livros, ou, pelo menos, o mínimo exigível. Se não são para aí virados, a 128 Teodolito biblioteca inaugura e nunca mais são comprados livros. Eu insisti mesmo bastante com os ministros com quem me reuni: os protocolos do Estado deviam incluir a obrigatoriedade de compras anuais num valor mínimo estipulado, caso contrário, vocês retiravam-se do circuito da biblioteca e eles que se amanhassem sozinhos. A resposta era sempre a mesma: os autarcas são independentes, a política é independente. Deitou-se muito dinheiro fora. Neste momento a situação já não é esta, mas na terra onde eu nasci, Penafiel, fizeram uma biblioteca no antigo tribunal, originalmente um palácio, que recuperaram e equiparam bestialmente. A quantidade de livros que tinha era pouquíssima e o horário da biblioteca, agora já não é assim, mas foi durante vários anos um horário de repartição pública: abria às 9h, fechava ao 12h; reabria às 14h, fechava às 17h. Tirando os putos da escola que os professores lá levavam, não ia lá ninguém, era um horário impraticável, quando as pessoas estavam todas a trabalhar. Julgo que isso já mudou, porque o presidente da Câmara até é escritor e tem algum pendant para esse lado, mas antes era assim, como se estivéssemos numa repartição de finanças. Era um equipamento caro, bem concebido, instalações fantásticas deitadas fora, não serviam para o fim a que se destinavam. É algo muito importante, porque cada vez menos os editores em Portugal contam com isso. Lá fora, na maioria dos países, as compras do Estado para bibliotecas são levadas a sério, e em Inglaterra até influenciam a tiragem. Os editores propõem a uma comissão central “vou publicar este livro, aquele, este também…”, mandam os manuscritos e têm a decisão antes de imprimirem os livros. “Deste compramos 1000, deste 500, deste…” Isto permite que o editor saiba que, se vai fazer 3000 livros, 1000 estão vendidos, ou 2000, e até permite calcular a tiragem, porque lá fora, a este nível, não é muito diferente de cá. Em Espanha as tira129 Hoje há Editoras gens médias são como em Portugal, cerca de 2000 a 3000 livros impressos. Ora, se um editor sabe, à partida, que tem 1200 comprados, em vez de fazer 3000, faz 3500, por aí. Em países ditos emergentes, como o Brasil, o Estado dá a cada criança que faz o quarto ano do ensino básico 10 livros, uma mini-biblioteca. Li ontem no jornal, com muita curiosidade: na Colômbia, nos bairros sociais, o Estado, como cá, constrói habitações sociais e, quando as dão às pessoas, uma das coisas que as casas têm é uma estante com livros – alguém se encarrega de escolher 100 ou 150 livros importantes. Cá em Portugal, antigamente havia a Fundação Gulbenkian, que comprava muitos livros quando tinha as bibliotecas itinerantes – eu tinha, e a Teorema acho que ainda tem, uma colecção infantil simpática, onde está O Menino Nicolau (Le Petit Nicolas), uma série de livros assim, e a Gulbenkian comprava 1200, 1300 livros… Livros para adultos, romances, nunca comprava menos de 300. Isto era um apoio enorme, e quando a Gulbenkian desapareceu não apareceu ninguém para ocupar o seu lugar. Para além disso, essas compras eram feitas directamente aos editores; as bibliotecas públicas actuais compram, geralmente, no comércio local, às livrarias, e muitas vezes são influenciadas pelo livreiro, que numa editora específica tem um desconto maior e convém-lhe, comercialmente, vender os livros dessa editora e não outros. Portugal é dos poucos países que eu conheço onde a protecção à edição é quase inexistente. Se formos ao lado, a Espanha, tomemos o exemplo do País Basco. Ninguém lê basco, porém de qualquer edição publicada em basco, o Governo Basco compra automaticamente 1000 exemplares. Na Galiza, de qualquer edição galega o Governo Galego compra cerca de 500 livros. Isso é muito importante, permite por um lado rentabilizar as editoras e, por outro, ter preços de venda ao público mais baixos, porque a meu ver, em Portugal um dos problemas que temos também na edi130 Teodolito ção é o do preço dos livros, que são muito caros. E digo isto não em abstracto, os livros são realmente caros, podiam ser mais baratos. Os livros da Teodolito são bastante baratos, em relação à regra, mas todos os livros podiam ser mais baratos, inclusive os da Teodolito. Depois há políticas comerciais que são estranhas. A Porto Editora publicou o último livro do Herberto Hélder, Servidões, com uma tiragem de 5000 exemplares (sabe-se que os livros do Herberto não são reeditados) e aquilo esgotou logo. Um livro de 100 páginas e que custa 22 euros; o editor marcou o preço com esta única preocupação: os livros estão todos vendidos, seja a que preço for, portanto há que carregar. E assim foi. A 22 euros, 5000 exemplares, ainda é bastante dinheiro. Numa entrevista a Luís Caetano, durante a última edição das Correntes d’Escritas, afirmou, para surpresa de muitos, e do próprio Luís Caetano, que não publicaria As Cinquenta Sombras de Grey. No entanto, confidenciou que teve a oportunidade de garantir, em Londres, o fenómeno Harry Potter mas recusou. Quanto ao primeiro livro, é a dignidade editorial, literária ou pessoal, que está em jogo (circulam boatos de editores que cometeram suicídio após publicarem esta obra – oh, the guilt)? Vale mesmo tudo, por dinheiro? A propósito do segundo, julgo que, na altura, o Carlos tinha motivos válidos para recusar – literatura infantil com mais de 500 páginas, por exemplo. Continua a desfrutar da pressão de tomar esse tipo de decisões? Eu não editava porque, de facto, não tenho no catálogo nenhum livro que me envergonhe, e este livro envergonhar-me-ia. Percebo que se publique, são máquinas empresariais. Aquilo vende-se muito e também percebo que há pessoas que gostam de ler aquilo, e têm direito a que esteja disponível no mercado. Apesar disso, há aqui uma 131 Hoje há Editoras distinção muito grande entre Portugal e os países onde há fenómenos destes, de grandes best-sellers: lá fora, EUA e Inglaterra, há muita literatura desta, muitos livros destes, mas os autores não se consideram escritores, nem querem ter estatuto de grande intelectual. Querem vender livros feitos com algum profissionalismo e ganhar muito dinheiro. Sabem que não virão no Jornal de Letras lá da terra, nem no Times Literary Supplement, nem no New Yorker. E cá em Portugal quem escreve qualquer porcaria acha imediatamente que é um intelectual, que tem estatuto, e isso é uma coisa que me custa bastante a engolir, porque custa a perceber que as pessoas não entendem que não são aquilo que pensam que são, ou eram. Olhamos para essa gente que vem da televisão, daqui e dali, publicam coisas péssimas e em muitos casos são acolhidos pela crítica e pelos jornais. Lá fora não é assim. A Danielle Steel, um exemplo de vendedora de milhões, eu nunca vi nenhuma entrevista dela numa revista literária, nem em nenhum suplemento. Eles próprios sabem que o estatuto deles não é esse, é outro, fabricar bestsellers e ganhar dinheiro. Cá, qualquer tipo que publique acha-se imediatamente um escritor. Por isso, livros deste tipo eu nunca publicaria, nem a série Hush, Hush, nem sequer Paulo Coelho. Agora o Harry Potter foi um erro grave mas que acontece a muito boa gente; aconteceu por exemplo ao Nelson de Matos, depois de ter publicado três livros do Saramago que não venderam, recusou o primeiro que se vendeu efectivamente, o Levantado do chão. O Nelson teve o livro em primeira mão e disse ao Saramago algo deste estilo “desculpe, mas os seus livros anteriores não venderam nada.” A situação era complicada, final dos anos 1970, economicamente isto estava complicado, a editora onde ele estava na altura, a Moraes, também estava a atravessar um momento complicado e ele decidiu não arriscar; ainda 132 Teodolito hoje suponho que torce a orelha. Eu não torço, até porque acho que o Harry Potter não era uma coisa literariamente muito importante, ainda assim é um livro que não envergonha ninguém e com o qual eu teria ganho, com certeza, muito dinheiro. Quando olhei para aquilo, um monte de folhas A4 que trouxe para Lisboa, pensei “nenhum miúdo vai ler isto.” Enganei-me. Neste momento começa a ganhar força a ideia de uma literatura em formato electrónico, através dos e-books e dos vários e-readers. Surgem também os arautos da auto-publicação electrónica, oferecendo pacotes de dicas «como singrar na edição do seu próprio livro.» A ideia de que alguém que escreve não necessita de um editor, de uma editora, uma versão do it yourself na edição do texto e no trabalho para além do texto. Esta ideia parece-lhe perigosa? Será o editor uma figura ausente no imaginário do público leitor? Parece-me que é uma saída para autores que não encontram uma editora, mas também é limitada, porque a divulgação não é a apropriada. E alguns livros não deviam, mesmo, ser publicados, nem online nem em sítio algum. Claro que toda a gente tem direito a publicar tudo o que quiser e como quiser… Mas cito aqui o Camilo Castelo Branco: “Antigamente os animais falavam, agora escrevem”, e há muitos casos em que é realmente assim, são animais a escrever. Não me lembro nunca de ter lido algum livro auto-editado na net, e sou um tipo com alguma curiosidade. Nunca ninguém me chamou a atenção para alguma coisa que valesse a pena ver. Tenho ideia de que isto vai continuar, os livros vão ficar, há até uma frase do Borges que eu costumava incluir nos meus catálogos [Carlos da Veiga Ferreira recorre, uma vez mais, aos livros, e sabe exactamente onde está aquele que procura]: «Tenho a suspeita de 133 Hoje há Editoras que a espécie humana – a única – está prestes a extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.» Ele tem a suspeita e eu também, mas também tenho a certeza de que há muita coisa que é editada em papel e que pode perfeitamente ser editada em formato electrónico. O exemplo mais imediato são os dicionários e as enciclopédias. Têm o mesmo problema que o papel, a meu ver: eu vou verificar uma palavra e depois também vou ver 30 que estão para cima, ou 30 que estão para baixo. A fossanguice dos fabricantes e produtores de equipamentos é tal que chega a ser assustador. Por exemplo, o iPhone, de que já há quatro ou cinco modelos; a diferença entre uns e outros é muito pequena e eventualmente, um dia, se tiver um iPhone 3 e ele avariar, talvez já não o conserte. Esse perigo existe, e é como a história do tipo que queria cavar um buraco e numa cápsula do tempo incluir uns quantos CD-ROMs. Seria necessário incluir, também, o aparelho que lê este tipo de dispositivos, porque daqui a muitos anos já não existirá nada que leia CD-ROMs. Eu tenho aqui imensos livros compostos em disquete, e não tenho nada que leia aquilo. Disseram-me que há um sítio ou outro onde posso levar as minhas disquetes e eles passam-me o que lá estiver para uma pen; as que aqui tenho são todas inúteis, tendo livros inteiros compostos ali. Esta história do CD-ROM é muito significativa, se não tiver um leitor, os tipos olham para isto e não sabem o que hão-de fazer. Mas enfim, as editoras, com essa fúria tecnológica, quando começaram a aparecer livros em CD-ROM, sobretudo os americanos, que investiram milhões, deitaram-nos fora, porque hoje em dia já ninguém compra um livro em CD-ROM. E quanto aos livros electrónicos, livros infantis, sobretudo. Surgem bastantes exemplos que se asseme134 Teodolito lham mais à experiência de um jogo de computador e não tanto à experiência de leitura. Sim, eu já disse em muitos sítios, em muitos fóruns, que me parece que as crianças têm de ser defendidas! Eu observo, tenho sobrinhos pequenos que passam o tempo em frente àquela porcaria e, de facto, tendo um clássico como a Alice no País das Maravilhas e virar aquilo de pernas para o ar… A criança pode estar entretida mas do ponto de vista cultural é zero. Os Lusíadas que andam aí a ser publicados, aquilo para mim é pura e simplesmente um atentado à cultura. Não se pode pegar numa coisa que faz parte do património da Humanidade e alterar aquilo completamente, e, sobretudo, chamar-lhe Os Lusíadas. Eu só folheei o primeiro mas parece-me péssimo. Qual é a situação da sua vida profissional que mais prazer lhe dá enfrentar e qual aquela que, se pudesse, enviava para um bloco de gelo flutuante no Árctico, ao cuidado do aquecimento global? O que me dá realmente mais prazer é descobrir novos autores e grandes romances. Isso é um prazer que se mantém, é permanente. A minha vida é ler. Eu tenho um horário sui generis, aqui, porque leio todos os dias até às 5h, 6h da manhã, o que significa que depois me levanto às 12h, 13h e, por isso, só à tarde é que venho ao escritório. Continuo a ter esse maravilhamento perante descobertas, coisas novas, algumas antiquíssimas mas que eu descobri agora, e continua a ser o meu principal prazer profissional. Mas é um interesse mais vasto, que vai para além do próprio livro e da leitura. É verdade. Quando cheguei a Lisboa, tinha 16 anos e conheci logo de uma assentada uma série grande de escritores importantes. Depois fui casado durante 12 anos com uma poeta chamada Fiama Hasse Pais Brandão, portanto 135 Hoje há Editoras movia-me sempre à volta do livro. Conheci gente excelente, alguns bons sacanas, mas gente com quem me dei bastante bem e continuo a darme, até com alguns personagens difíceis, como é o caso do António Lobo Antunes; mas dou-me bastante bem com ele, embora reconheça que tem alguns defeitos. Um deles é a forretice, porque volta e meia ele vinha aqui cravar livros. Dei-lhe imensos livros, entre eles a obra completa do Borges, livros que obviamente ele podia comprar mas é um agarrado terrível. Conheci outros, como o Carlos de Oliveira, que era um personagem… Um exemplo de civismo total. E fui fazendo assim a minha vida. Gente interessantíssima, como um autor peruano, Bryce Echenique, que eu publiquei, o Skármeta, de quem continuo amigo. Nesse aspecto tem sido uma vida preenchida. E tudo se concretiza a partir deste seu centro de operações, desta imensa biblioteca. A Teorema primeiro esteve em Campo de Ourique, na rua Almeida e Sousa, cinco ou seis meses, depois veio para aqui. Isto era alugado, posteriormente eu comprei. Não me vejo a trabalhar noutro sítio, ou é em casa ou é aqui. E, de facto, o ambiente que eu construí aqui é mais de casa do que de escritório. Isto não tem armários metálicos, é aqui que eu me sinto bem. O Lobo Antunes, precisamente quando veio cá buscar a obra do Borges, eu não estava cá na altura, foi a minha secretária quem o atendeu, e ele deixou-me um cartão que dizia o seguinte: “Carlos, muito obrigado por não me teres arruinado. Um abraço, António Lobo Antunes.” E mesmo daqui, pediu para telefonar ao Nelson de Matos, que era o editor dele na altura, na Dom Quixote, e disse “pá, estou aqui num escritório e isto é que é uma coisa séria, não é uma merda como o da Dom Quixote!” E a maioria das pessoas que cá vem gosta bastante, mesmo gente estrangeira. Na Leya queriam muito que eu fosse para lá, onde estaria inteiramente à vontade, tinha o horário 136 Teodolito que quisesse, fumava onde me apetecesse só que, de facto, eu tinha tido o cuidado de pôr no contrato que o meu local de trabalho era aqui. Por fim, poderia partilhar connosco alguns episódios que o tenham marcado ao longo da sua vida editorial, nacional e internacional? Algo à altura de um «I’m back in town again», por favor! Há essa história muito engraçada do Wylie, em relação à compra dos livros, julgo, até, que tenho por aí algures os faxes que trocámos na altura. Há outras histórias comezinhas. Por exemplo, um manuscrito que me enviou uma miúda, aqui há uns anos, onde ela diz [Carlos da Veiga Ferreira lê a partir de um conjunto de folhas pautadas, A5, coladas com fita-cola e um clipe, no topo] “chamo-me Telma de Jesus, tenho 13 anos e o meu sonho desde os 9 anos é poder editar um livro. Por isso, ler o livro A princesinha malvada – um livro de um espanhol, que eu tinha publicado – ainda despertou mais o meu sonho de editar um livro, já que gostaria muito de ser escritora e decidi inventar este romance e mandar para você, porque por alguma coisa se tem de começar e eu não sabia por onde.” Ela enviou-me isto no princípio de Dezembro e, mais à frente, diz “mando-lhe então este romance, que é para você publicar antes do Natal para eu poder oferecer aos meus pais.” Como vê, aparecem coisas comovedoras; é claro que isto não presta para nada, está cheio de erros, enfim. É um sinal de que há miúdos com 13 anos que acham que ser escritor é um destino importante. O Bryce Echenique, por exemplo, que é de uma grande família peruana, dos seus antepassados um foi governador do Peru, outros dois foram presidentes. Então ele contava que tinha um tio que nunca fez nada da vida. Só se lembrava de ver o homem de copo de uísque na mão, de co137 Hoje há Editoras cktail em cocktail, nunca trabalhou. Quando morreu, os irmãos puseram-lhe no túmulo, como epitáfio, a seguinte frase: «Aqui, continua a descansar Joaquín Bryce Echenique» (em castelhano: Aquí sigue descansando Joaquín Bryce Echenique). Fui encontrando muita gente. Outra coisa marcante em Portugal, no meu percurso, foi a UEP e a criação da UEP. Nós criámos a UEP para evitar que a APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros) fosse o que ainda é hoje, isto é, uma associação que não fazia praticamente nada, fazia as Feiras do Livro e nada mais, e um grupo de editores, desde muito cedo, começou a mexer-se para alterar a APEL. O primeiro passo foi fazer uma lista para concorrer à direcção, lista essa que ganhou: o presidente era o Francisco Espadinha, da Presença. Um ano depois houve desentendimentos, o Espadinha demitiu-se, outras pessoas demitiram-se, houve novas eleições, e nessas novas eleições a nossa lista já não ganhou. Então um grupo de 50 ou 60 saímos da APEL e criámos a UEP. Fizemos algumas coisas que nunca ninguém tinha pensado fazer: o primeiro congresso de editores em Portugal foi feito pela UEP, até fui eu que lancei para a mesa essa discussão, havia congressos de manicures, congressos de ferreiros, não há congressos de editores? Fizemos o primeiro e o segundo, com enorme êxito; quer num, quer noutro, a maioria dos participantes eram sócios da APEL. Tudo foi feito sem nenhum sectarismo e aberto a toda a gente. Tivemos montes de iniciativas, desde o IVA sobre os livros, isto e aquilo… Quando o grupo Leya surgiu a UEP implodiu, dado que este grupo se entendeu com a Porto Editora e tinham como objectivo, como escopo fundamental, o livro escolar. Arranjaram, portanto, uma maneira de acabar com a UEP, sendo que uma parte dos editores voltaram à APEL. Concluindo, a APEL está como antes, ou ainda pior, porque a direcção da APEL praticamente não tem edito138 Teodolito res: o presidente é o meu amigo João Alvim, excelente pessoa, mas é um gestor, é administrador do grupo Bertrand; o vice-presidente é um indivíduo chamado Pedro Pereira da Silva, que era o director de marketing da Leya, e agora já nem isso porque foi despedido. Ou seja, não há praticamente editores, é tudo gente ligada à gestão e ao marketing e eu não percebo como é que pode haver uma associação de editores que não tem na direcção verdadeiros editores. Passou a ser uma associação de patrões do livro, que é respeitável, mas que nós pretendíamos que fosse outra coisa quando criámos a UEP. Já na APEL, quando era presidente o Paulo Teixeira Pinto, que posteriormente me respondeu delicadamente, mas eu li num jornal, uma conferência de imprensa onde ele dizia que iam fazer o primeiro congresso de editores, e eu enviei-lhe uma carta a explicar que estava mal informado, certamente, porque congressos já se tinham realizado dois; eles depois já não lhe chamaram congresso de editores, foi o congresso do livro, julgo, apenas para ser o primeiro. Mas, enfim, estão aqui uns anos largos de trabalho e é um trabalho que eu considero que tem sido, sobretudo pessoalmente, muito gratificante e, como lhe disse, até ganhei dinheiro com a edição, o que eu acho curioso. Há muitos que dizem que não, mas o Francisco Espadinha, da Presença, o Lyon de Castro, da Europa-América, é tudo gente que ganhou muito dinheiro a fazer livros. Portanto, até é possível ganhar dinheiro a fazer livros. Quando saí da Leya pensava não voltar a fazer nada, até porque tinha tido a sorte de ter vendido a Teorema exactamente no último momento antes da crise, bastante valorizada, e fiquei sem problemas económicos. Se agora continuo é porque, de facto, gosto muito disto e gosto das pessoas com quem trabalho, muitas há 30 anos ou mais. 139 Hoje há Editoras 140 ZÉFIRO Ana Mendes e Catarina Guerra Hoje há Editoras Caríssimo diário, 18/05/2013, Sábado Ricas vidas, as de um diário, aconchegado na gaveta de uma secretária, sem frio ou calor a atrapalhar. Ricas vidas, sim senhor. Já o infeliz estudante do mestrado em Edição de Texto tem de se submeter às vontades dos deuses controladores da atmosfera e conseguir a proeza de apanhar uma constipação no mesmo dia em que apanhou uma insolação. Em bom rigor, não apanhei nenhuma das duas, mas muito bem poderia ter apanhado! Tudo isto se deve a uma bendita entrevista de um desgastante trabalho final para a cadeira de Técnicas de Edição. A turma da supra citada cadeira idealizou concretizar entrevistas a diferentes editoras e compilá-las num bonito livro no final do semestre. A editora que a Catarina e eu escolhemos foi a Zéfiro. Porquê?, pergunta o excelso diário. Porque queríamos perceber como sobrevivem as pequenas editoras independentes num país monopolizado pelos dois grandes grupos editoriais (entenda-se LeYa e Porto Editora). Facto é, meu caro, que as pequenas editoras não só sobrevivem, como também, e principalmente, sofrem menos de distúrbios do sono, uma vez que são verdadeiros devotos do livro em detrimento do eventual capital que deles possa advir. E foi, essencialmente, esse aspecto que quisemos valorizar. Tratei de contactar a editora, propondo a realização da entrevista num dia próximo. Disseram que sim senhora, mas ficou o dia por marcar. Que faz uma esforçada estudante de mestrado nesta situação, ilustre diário? Vai ela à montanha, invertendo-se o provérbio e retirando-se a deificação da pessoa do estudante, já habituado às pisadelas da vida! Em todo o caso, foi literalmente a uma montanha que fui, porque a Zéfiro está situada na Serra da Sintra que, 142 Zéfiro como vossa eminência saberá, não é mais que um conjunto de montanhas nas periferias da capital. Como detenho o privilégio de ter um bom amigo que conhece bem aqueles lados e recorrentemente lá passa, o Charlie, fizemos da viagem de negócios uma passeata pela serra com desvio para a Zéfiro. Isto, meu bom diário, não precisa o professor de saber, porém, foi exactamente assim que aconteceu! Lá partimos, e aquando da chegada ainda tivemos alguns momentos para espreitar a Ishtar, a loja esotérica e livraria da editora. É um espaço simpático, com pessoas simpáticas. Entrementes, deparei com a Sofia Vaz Ribeiro, editora da Zéfiro juntamente com o Alexandre Gabriel, que me disse «Vem entre 4ª e 6ª feira à tarde, ou no fim-de-semana a qualquer hora.». Agradecida, fui respirar os brandos ares de Sintra o resto do dia. Foi assim, excelente diário, que passei mais um dia sem fazer o trabalho de Crítica Textual. Mui honrado diário, 24/05/13, Sexta-feira Se há algo que se aprende com a prática, meu caro, são as coisas do mundo da edição. Hoje aprendi uma preciosa lição: Quando o estudante quer entrevistar alguém do mundo editorial, deverá activar os dois neurónios que tem no cérebro e lembrar-se de que a época da Feira do Livro é péssima para aborrecer editores. Regressei hoje à venturosa Serra na companhia do meu paciente amigo Charlie para me deparar com a dura realidade – «O Alexandre? Está na Feira do Livro. Não sei quando volta.». Foi neste dia, caríssimo, que roguei uma praga contra a Feira. Amaldiçoada seja! Felizmente lá consegui marcar um dia concreto para a entrevista, domingo, vinte e seis. Mas, ainda assim, que 143 Hoje há Editoras dia improfícuo, o de hoje! Nomeadamente por tê-lo passado sem tocar em Crítica Textual. Ah, que dia demoníaco! Probo diário, 26/05/13, Domingo Sou grande, excelência, grande! Eu e a Catarina, com o seu prestável gravador. Isto porque, nobilíssimo, conseguimos a entrevista e conseguimo-la por meia hora! O que é um valoroso feito para quem nunca entrevistara ninguém. Chegadas ao pub medieval, A Casa do Fauno, esperámos pelo editor da Zéfiro, Alexandre Gabriel, que nos ia disponibilizar algum do seu contado tempo. Assim que nos encontrámos, escolhemos um local sossegado onde pudéssemos passar às questões e respostas. Ficámos, portanto, instalados numa acolhedora mesa de madeira, se não me falha a memória, sentados em bancos feitos de troncos de árvores decepadas. Mas tudo muito civilizado, não ficámos sentados quais símios em ramos de arvoredo! A primeira questão era inevitável: Como surgiu a ideia de criar esta editora? Ao que o simpático Alexandre inspirou fundo e respondeu: «A ideia de criar a Zéfiro surgiu, sobretudo, porque sou um apaixonado por livros. Hoje em dia, a Sofia está comigo na editora, juntou-se logo em 2006, um ano depois de a editora ter sido criada. Portanto, na altura, criei-a sozinho e foi na sequência de uma paixão por livros. Não pelo livro ou pela literatura em si, mas por aquilo que ele veicula e, em particular, por várias temáticas que nós temos vindo a abordar, sobretudo o Esoterismo, a Filosofia, a História, aspectos menos comuns, ou as visões menos comuns, mas igualmente sérias, destas três áreas. Achávamos que em Portugal havia uma falta de livros publicados nestas vertentes, livros que nós já conhecíamos 144 Zéfiro editados em francês, editados em inglês e também de autores portugueses que estavam esquecidos e nos quais nós voltámos a pegar. Alguns deles já não estão entre nós, mas com muitos estabelecemos uma amizade ainda em vida. Portanto, partiu de um gosto por estas áreas literárias. E foi na sequência também, em termos de experiência, de um boletim do qual fizemos parte, o Boletim Lusophia, que existiu durante cerca de quatro ou cinco anos. O subtítulo era «Espiritualidade, Cultura e Tradição» e esse foi o projecto que levou à criação da editora.» Como eu estava algo ansiosa (sempre foi a minha primeira entrevista, meu caro!), acenei, disse «Sim, senhor, muito bem.» e passei ao que tinha preparado, com boa dose de parvoíce: «As grandes editoras possuem grande capital financeiro, mas perdem nas relações humanas. Na Zéfiro sabem-se os nomes de todos os funcionários?» Para meu feliz alívio, o Alexandre não só é simpático, como evidencia elevado grau de inteligência, o que facilita a comunicação. Entre risos, respondeu: «Sabemos e não é muito difícil, porque sou só eu e a Sofia. Somos só os dois.» Inquiri-o, seguidamente, sobre a divisão das funções. «A nossa filosofia está muito ligada à natureza. E isso tem implicações a todos os níveis possíveis e imaginários, nomeadamente ao nível da distribuição de funções. Quando nós vamos passear num campo selvagem, as plantas certas 145 Hoje há Editoras nascem no sítio que tem as condições certas para que elas possam nascer, e, da mesma forma, nós trabalhamos nesse sentido e no molde natural, e, também dessa forma, os nossos colaboradores, não funcionários, são pessoas que efectivamente colaboram activamente, porque nós privilegiamos a hierarquia circular, em qualquer situação. Nesse sentido, os nossos colaboradores trabalham também de uma forma natural. Surgem na altura certa, fazem aquilo que é necessário, mas fundamentalmente eu e a Sofia Vaz Ribeiro é que asseguramos a base dos trabalhos editoriais da Zéfiro.» Já há algum tempo me intrigava aquela curiosa ligação triangular estabelecida entre a Casa do Fauno, pub, a Ishtar, loja esotérica, e a Zéfiro. Então perguntei se estes elementos funcionavam como uma espécie de triskelião. Ao que o Alexandre prontamente respondeu: «A Casa do Fauno, a Isthar e a Zéfiro, e também a Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas. Esse poderá ser o centro invisível do triskelião, apesar de ser visível. Mas é a componente mais espiritual. Nos tempos antigos, os druidas eram responsáveis por uma vertente importante na cultura céltica, não apenas na vertente espiritual, como muitas vezes se pensa. Eles eram também professores, eram também médicos, entre tantas outras funções. Uma dessas funções era a função bárdica, os bardos, de onde vem a nossa palavra trovadores, em occitano trobador. É uma palavra descendente da palavra bardo. E o bardo é aquele que dissemina o conhecimento e que perpetua esse conhecimento na memória colectiva. Na altura, eles não podiam escrever, eram proibidos, tinham de contar apenas com a memória, por várias razões. Utilizavam canções, contos e tríades. Hoje em dia já é um bocadinho diferente, já podemos escrever. Nesse sentido, nós temos também como símbolo da Zéfiro uma folha. Não é uma folha qualquer, é uma folha de carvalho, de um carvalho bebé, de Sintra. Ela foi desenhada a partir de um 146 Zéfiro carvalho existente, não foi apenas criada artificialmente. Zéfiro é o nome do vento brando do Ocidente, que fecunda as éguas da Lusitânia. Eram éguas muito férteis, o vento era muito fértil, e os cavalos eram muito especiais, pois eram considerados os mais velozes, na época do Império Romano. É por relação a essa cultura mística de disseminação e perpetuação do conhecimento que surge o nosso trabalho. Nesse sentido, a Casa do Fauno funciona como um espaço, um círculo, onde as pessoas se reúnem em torno destes vários assuntos; a Isthar funciona como a nossa livraria oficial por um lado, por outro está ligada a projectos relacionados com as artes mágicas, numa vertente muita séria e tradicional, não numa vertente desfasada de princípios éticos e morais. E nesse sentido, a Zéfiro tem estas várias ideais, não é uma editora comum e nós também não somos pessoas comuns». Perguntei se a Isthar havia surgido como forma de a Zéfiro ter livraria própria para vender os livros. O agradável editor confirmou, mas acrescentou mais: «É um projecto independente, com a sua própria identidade, que é gerido pela Gisela Rodrigues e pela Sofia Vaz Ribeiro. Surgiu como um aproveitamento do espaço que tínhamos aqui, este belo espaço em Sintra, a propriedade registada mais antiga de Sintra, que é a Quinta dos Lobos. Foi doada por D. Afonso Henriques ao mestre Gualdim Pais, passou pela Ordem de Cristo e depois foi sendo dividida. Mas é curioso que este local onde estamos tenha feito parte da antiga floresta de Almosquer, que era uma floresta sagrada. Almosquer em árabe significa cercania ou arrabalde, portanto era o limite da vila de Sintra. Por aqui passaram, entre outras personalidades, os já referidos Gualdim Pais e Afonso Henriques e esta é uma zona histórica e creio que não terá sido por acaso que nós viemos aqui parar. Ao mesmo tempo somos bafejados directamente pelo vento que vem do Ocidente.» E eu que o diga, fidelíssimo diário! Durante a entre147 Hoje há Editoras vista, o bom do Zéfiro tornou-se algo incomodativo, nomeadamente por ser gelado e eu não ter ido prevenida. Mas um estudante tem de fazer aquilo que o professor lhe impõe que faça e, por isso, firmemente continuei. «Ultimamente, o que tem tido mais saída: o hidromel da Casa do Fauno, os incensos da Ishtar, ou os livros da Zéfiro?». Ele sorriu e respondeu que primeiro a pessoa queima um pouco de incenso, para elevar a consciência, depois escreve o livro, ou lê o livro, e por fim celebra com hidromel. Eu concordei e aproveitei para perguntar qual havia sido o livro que mais sono lhe tirara e porquê? «Isso é uma pergunta difícil.», começou por dizer. «Pela sua complexidade de organização, paginação e execução, eu creio que o livro que terá dado mais horas de trabalho aos nossos escritórios terá sido o Codex Templi, um livro sobre os mistérios templários à luz da tradição. É também o livro que nós temos com maior número de páginas, portanto penso que terá sido o livro mais complexo que nós editámos. Reúne várias dezenas de autores portugueses e espanhóis e aborda os aspectos mais díspares ligados ao templarismo, ao neotemplarismo, tanto na vertente histórica como metafísica. Sem dúvida que foi o livro que mais se impôs numas férias de Verão de 2007. (risos).» Antevejo, assim, para o meu futuro de editora, se os deuses me concederem tamanho privilégio, férias laboriosas e prolíficas. Heresia jamais pensada antes de 2008 e da intempérie financeira que o ano trouxe consigo. Prossegui. «Quantas vezes por semana se arrepende de ser editor?» Ele respondeu citando Confúcio: «“Escolhe como profissão algo que gostes de fazer, nunca mais terás de trabalhar na vida”. E Agostinha da Silva também dizia que o homem não nasceu para trabalhar, nasceu para criar. Só 148 Zéfiro que esta frase é muitas vezes mal-entendida, sobretudo pelos preguiçosos. Porque “não trabalhar” não significa não criar ou não estar ocupado, e Agostinho interpretava a palavra trabalho pela raiz, tripólio, que era um instrumento de tortura romano. E de facto, o trabalho é associado sempre a um sacrifício, a um esforço. Mas se nós conseguirmos fazer aquilo de que gostamos, ou colocarmos alguma criatividade naquilo que é o nosso ofício ou a nossa profissão, deixamos de trabalhar, passamos a criar.» E esta foi indubitavelmente a resposta que mais me aprazeu, não só porque citou Confúcio, mas essencialmente, prezado diário, porque confessou exactamente aquilo que eu queria ouvir: faz o que gostas e serás feliz. A entrevista continuou. «Já se tornou mito a ideia de um editor com vida pessoal e privada. Concorda com isto?» «Como em tudo na vida, quando temos paixão por algo, quer seja uma profissão, uma arte ou um relacionamento, é óbvio que essa paixão vai estar sempre dentro de nós. Embora neste caso, a paixão – e ao usar o termo paixão não estou a usar a sua raiz greco-latina de pathos, de doença, patologia – será uma patologia positiva, penso eu. Mas julgo que o editor quando realmente gosta do que faz está sempre a pensar em novos projectos, em novos livros, em novas formas de canalizar essas ideias e passá-las para o papel.» «E acha que, como editor e com aquilo que publica, tenta melhorar a vida dos leitores?» «Penso que qualquer editor tem esse papel, ou essa missão – dependendo do grau de dedicação à causa – de influenciar positivamente o mundo à sua volta. Neste caso, defender a língua portuguesa, defender certos princípios que hoje são dados como arcaicos. E nós temos isso na nos149 Hoje há Editoras sa editora, temo-nos dedicado justamente a esses temas, que quanto a nós são intemporais e devem ser valorizados numa altura de canibalização da cultura, que é a altura em que nós vivemos hoje.» Estas agradáveis palavras assemelharam-se a um empurrãozinho simpático ao infausto estudante de Edição de Texto que chora todas as noites enquanto pensa que devia ter ido para Higiene Oral, como é o caso da minha pessoa. «Qual é, numa editora, a tarefa que nunca ninguém quer ter de fazer?» «Pode haver várias: ir buscar os livros à gráfica, preparar as expedições para os clientes, fazer uma revisão de um livro de quinhentas páginas, fazer notas-de-rodapé uma a uma… Esse tipo de coisas. Serão as tarefas mais mundanas.» Tenho para comigo, nobre diário, que é nestas situações que metem o estagiário a trabalhar. «Nas bandas de rock e afins, o vocalista é aquele que toda a gente gosta, o guitarrista é o mais inteligente, o baixista é aquele de quem nunca ninguém se lembra e o baterista é o idiota. No mundo editorial existem departamentos com estas características?» «Na nossa editora, como temos um grupo pequeno e não propriamente vários departamentos, é um pouco difícil tentar fazer essa atribuição, mas penso que no jardim há várias flores e todas elas são belas, todas têm o seu perfume particular, só que a nossa consciência é perversa e tem a mania de destacar em termos de inferior e superior algo que por si só é orgânico, não é superior ou inferior, é uma parte do todo. Basta uma dessas partes falhar e falta um perfume. É como uma receita de culinária. O sal é uma coisa que aparentemente se usa todos os dias, mas basta não por na comida e ela perde o sabor.» A verdade, caríssi150 Zéfiro mo, é que, colaboradores à parte, nunca tive conhecimento de um grupo de rivais que gladiam constantemente entre si e simultaneamente se dão tão bem como este, do mundo da edição. «Tem aversão a alguma altura do ano, por ser mais ou menos movimentada ou por outro motivo?» «Aversão não, mas há alturas mais complicadas. A altura da Feira do Livro, a altura do Natal também, a preparação de campanhas, preparação dos livros… Um editor nunca está descansado. Tem sempre imensas tarefas a fazer. Sobretudo quando é uma editora independente, como é o caso da nossa, e que não é um grande grupo editorial. Mas depois o gozo que daí advém e o sentimento de realização, não existe qualquer moeda ou câmbio financeiro que possa ser superior a isso. E em último caso, isso é o mais importante. Um editor tem de ter sempre uma elevada dose de loucura e de carolice.» Longa vida a estas palavras que afastam best-sellers, mas abundam em ânimo para uma existência editorial culturalmente forte. Ainda que seja mau, é bom! «Tenho aqui uma imagem de Vercingetórix e outra de Viriato. Qual dos dois acha mais atraente?» (calma, meu caro, tudo isto tem um sentido, por mais ilógico que soe). Vercingetórix Viriato 151 Hoje há Editoras «O Viriato foi chamado o terror dos romanos. Foi um grande chefe tribal lusitano que conseguiu reunir diversas tribos na Ibéria e que, naturalmente, eu julgo ser uma personagem histórica mais atraente, porque eu próprio sou lusitano e identifico-me com os lusitanos. Por seu lado, isso não me impede de admirar todo o esforço do último guerreiro Gaulês, apesar do terrível erro estratégico que cometeu em Alésia. Não Vercingetórix, mas os seus homens. Eles eram o último bastião do celtismo na Europa e foram cercados pelos romanos. O celtismo na Europa desapareceu por causa desta batalha. Depois Vercingetórix ofereceuse, sacrificou-se, foi torturado em Roma. Portanto, tanto Vercingetórix como Viriato foram homens de uma estirpe que hoje em dia é mais rara do que o ouro. Naquele período havia uma entrega superior a todos os níveis por parte dos homens, porque não temiam a morte. E assim viviam. Hoje em dia nós tememos a morte, e muitas vezes não vivemos, sobrevivemos. Acho que ambos são atraentes, mas eu, naturalmente, sinto maior empatia com o Viriato. Mas já deambulei demasiado (risos).» «Para seleccionar o mais atraente, usou os mesmos critérios que utiliza quando escolhe originais?» (aqui está, honradíssimo, o complemento do raciocínio anterior). «Na nossa editora, geralmente, somos nós que vamos à procura daquilo que queremos, apesar de recebermos inúmeras propostas. Eu penso que hoje em dia muitas editoras, então com a modernização, com o correio electrónico, são bombardeadas todos os dias com dezenas, literalmente dezenas, de pedidos, muitos pedidos. Mesmo que a pessoa diga que não edita poesia, que não edita romances, chegam sempre esses pedidos. Existe uma grande solicitação, e muitas vezes quem envia a proposta não lê a informação presente no site da editora, que indica precisamente aquilo que procuramos. Desta forma, não podemos 152 Zéfiro garantir resposta. 90% das vezes, vamos à procura dos títulos que queremos, porque somos uma editora que tem uma identidade própria e temos essa política. O que não invalida, e já aconteceu inúmeras vezes, que recebamos pedidos que nos parecem extremamente interessantes, pela temática, pela forma como estão escritos, pela preparação literária e cultural do autor, e que nós aceitámos. A escolha de um original obedece a uma série de variáveis, portanto não é uniforme. Mas, regra geral, vamos à procura dos livros que queremos e são esses que editamos.» «Então não há qualquer ligação entre o Viriato e as vossas escolhas editoriais?» «Não. Nós, por um lado valorizamos muito a língua portuguesa, e por isso é que não aderimos a este desacordo ortográfico. Por outro, damos muita importância ao campo literário e sobretudo ao campo filosófico, porque é a filosofia que vai ser a mãe de uma série de coisas na sociedade e a falta dessa filosofia – que é o amor à sabedoria –, causa esta degenerescência que nós vemos à nossa volta, porque é desvalorizada, assim como as artes, assim como o campo mais espiritual, não necessariamente religioso. Mas, naturalmente, essa portugalidade que me está no sangue não é uma portugalidade mesquinha ou sectária, é uma portugalidade mais no sentido de Agostinho da Silva, em que o português deve estar à solta, não se deve restringir ao país nem, em último caso, à própria língua. Portanto, Portugal pode representar por si só uma universalidade, e nessa universalidade pode abranger toda uma série de temáticas, de países e de línguas. Nós temos vários autores, desde espanhóis, franceses, ingleses, irlandeses, autores de África, Brasil e do Oriente também, dos quais editamos sobretudo livros budistas e zen. Porque a tradição manifesta-se em todos os pontos do globo e, apesar das suas formas serem diferentes, o espírito que a anima é idêntico, é o mesmo 153 Hoje há Editoras fogo que anima tudo o resto. Portanto, gostamos muito de Portugal, gostamos muito da língua portuguesa, mas não nos fechamos no nosso país.» Uma editora multicultural, pensei. E continuei: «Já alguma vez enfrentaram um ano tão problemático, que o editor não pôde levar a família ao Algarve, no Verão?» «Nós nunca tivemos um ano, por mais problemático que fosse, em que não tivéssemos tempo para ter o nosso próprio repouso. Quer seja no Algarve ou noutro local, é sempre importante fazer essas pausas. Os anos mais complicados foram exactamente os anos de quebra da distribuidora. Nós nascemos em 2005 – a Zéfiro foi registada no dia 21 de Junho de 2005, no solstício de Verão – e em oito anos passámos por cinco distribuidores. Como deves imaginar, isto é muito complicado. E este ano tem sido uma lição. Os distribuidores por si só não conseguem sobreviver, porque as margens que os livreiros pedem hoje em dia são margens muito elevadas por comparação com aquelas que pediam há uns anos atrás. É por isso que os grandes grupos por onde passámos, grandes distribuidoras em termos numéricos e de cobertura no mercado, com presença forte e profissionais muito competentes, não conseguiram aguentar as mudanças do mercado e provocaram na Zéfiro e noutras editoras um grande, grande impasse financeiro. Foram dois dos períodos mais complicados que nós tivemos em termos de presença no mercado e da própria questão de equilíbrio sustentável da editora. Apesar de termos tido um erro de percurso em 2012, com alguns patos bravos da distribuição que pautam por tudo menos por honestidade e transparência – e infelizmente há vários no mercado e é preciso lidar com eles –, isso levou a que criássemos uma distribuição independente e directa, e neste momento estamos nos principais canais do país. Estamos a abrir cada vez mais contas de cliente, e isso faz com que tenhamos, de 154 Zéfiro facto, uma presença real no mercado e defendamos a nossa marca. Isso foi uma coisa que nunca nenhum editor fez, da forma que um editor pode fazer, como é natural. Portanto, é preciso ter muito cuidado com os distribuidores. Eu penso que cada vez mais subsiste essa tendência, de um editor ou vários editores que assumem a sua própria distribuição. É a única hipótese de sobreviver. Existem várias editoras que trabalham nesse sentido. A propósito, no caso dos livros em particular, foi muito badalado na comunicação social o caso de várias editoras que se queixaram dos inúmeros prejuízos que tiveram. Quando uma distribuidora com quem trabalhámos entrou em processo de falência, a Zéfiro estava lá e foi a segunda editora mais prejudicada. Isso nunca foi divulgado na comunicação social. Foi um roubo financeiro gigantesco, monumental. Dois anos depois, houve um outro com uma outra distribuidora. O facto é que a nossa editora sempre conseguiu sobreviver a tudo isto. Portanto, isto revela um pouco aquela história de David e Golias, de que às vezes as aparências iludem.» «Como conseguiram equilibrar-se?» «Com muito trabalho, com muito suor, com muita dedicação e…não baixar os braços. E acreditar, sobretudo, naquilo que fazemos.» Resposta esta que me fez recordar uma outra de Carlos da Veiga Ferreira que, quando inquirido acerca da forma como havia soldado as dívidas da Teorema, respondeu: «Pagando.». Precisamente. «Que frase melhor se aplica a uma editora que trabalha com áreas especializadas, como a Zéfiro, em tempos de crise: a) A Zéfiro é tão incrivelmente boa, que não é o leitor a vir à Zéfiro, é a Zéfiro a ir ao leitor e dizer-lhe: «Tome lá o livro. São 15€ e é se quer!» 155 Hoje há Editoras b) Gostem de nós! Temos livros realmente interessantes e estamos dispostos a negociar entregas grátis de duas queijadinhas ali da Periquita, duas por cada livro adquirido. c) Fazemos assim, vá ali para a Baixa fazer publicidade à Zéfiro, mas dê-me 15€ para me garantir que faz realmente o que lhe peço. No fim do dia, ofereço-lhe um livro.» O Alexandre riu-se e não seleccionou nenhuma das opções. «Então como lidam com os vossos leitores em tempos de crise?» «Nós procuramos colocar um preço que seja suportável pelos leitores e tentamos realizar isso através da venda directa, através do nosso site, da nossa livraria, e ao mesmo tempo criando algumas promoções nos canais de distribuição. A Feira do Livro é sempre uma óptima altura, não só de aquisição dos livros como também de contacto entre os editores e os leitores. Isso é um contacto muito profícuo que antigamente existia muito na Feira do Livro e hoje em dia terá diminuído um pouco. Por norma, essa ligação com o leitor é fundamental, porque se não houver leitores não faz sentido haver livros. Não basta os editores porem os livros cá fora. E naturalmente que os livros que editamos são sempre interessantes para nós, e, nesse sentido, também criamos promoções para esses livros, para que cheguem mais perto dos leitores.» «Costuma ceder ao desespero e publicar um livro mau, mas que rende, ou prefere comer enlatados ao jantar e publicar obras geniais que ninguém lê?» «A Zéfiro não publica livros maus (risos). Tem de haver um equilíbrio em termos editoriais, porque a qualidade do livro ou do autor, por si só, não é suficiente para garantir 156 Zéfiro a sobrevivência de uma editora. E nesse sentido é preciso que um editor pondere muito bem uma série de factores de risco quando está a editar uma obra. Obviamente é preciso um compromisso entre a qualidade e aceitação da parte do público, o interesse que determinada obra desperta no público leitor. Quando se tratam de livros que nós achamos geniais, nós não os deixamos de editar, fazemos tiragens específicas, mais especiais, tiragens limitadas assinadas pelo autor, etc. Publicamos o livro de outra forma. Há espaço para todo o tipo de obras numa editora como a nossa.». O que significa, estimado diário, que uma editora tem de cuidar da sua sobrevivência para garantir longevidade. «Em dez segundos, enumere os títulos dos livros que salvaram a Zéfiro de declarar insolvência.» «São duzentos títulos que nós temos e todos eles contribuíram de uma forma ou de outra para manter a nossa editora. Não vou distinguir quais é que são, porque cada um deles tem o seu próprio peso.» Não enumerou, mas cumpriu os dez segundos. «A Zéfiro tem uma ligação muito especial com a Natureza. Não querendo influenciar a resposta, como acha que lida a Natureza com esta conversa de se publicarem livros em bugigangas electrónicas sem alma?» «A Zéfiro não publicou ainda livros electrónicos. Não tem previsto fazê-lo, pelo menos nos próximos tempos, até porque para nós um livro necessita de um suporte vegetal. Em todas as nossas publicações, cada folha de papel tem desenhada uma folha de carvalho, a folha essa que usamos para o logótipo da Zéfiro e cada folha de papel é uma ho157 Hoje há Editoras menagem à árvore que tombou e que cedeu a sua vida para que pudesse ganhar a forma de um livro. Agora, para uma árvore tombar e ceder a sua vida a um livro é preciso que esse livro valha a pena. E é isso que nós nos esforçamos por fazer. Portanto, somos uma editora tradicionalista e vamos continuar a sê -lo. Não quer dizer que sejamos obtusos ou que não vamos mudar esta nossa abordagem, mas para já temos previsto apenas continuar a editar livros a contracorrente, sem entrar em modas estéreis e imbecis. E eu penso que os nossos leitores reconhecem isso em vários livros, aqueles que se interessam por estas temáticas. Obviamente que não há uma editora que agrade a todos. Nunca nada agrada a todos. Por esse motivo, temos previsto continuar a usar os suportes de papel, livros com cheiro, livros com peso, livros com tacto e livros com alma, sobretudo.» E, se me permite o acrescento, honradíssimo, livros que preenchem prateleiras e olhos, pois que me apraz contemplar uma casa forrada a livros.» «E não têm sentido da parte dos leitores uma necessidade de mudança para o digital?» «Creio que nunca tivemos na editora nenhum autor ou nenhum leitor a pedir-nos para editar em suporte digital. O suporte digital para nós é suficiente para paginar. Mas nós nunca lemos livros quando estamos no computador. Eu não o considero leitura. Só quando o livro está na mão é que, de facto, tem o seu verdadeiro valor. Para nós, é a nossa visão.» «Se Merlin entrasse Zéfiro adentro, salvo seja, que livro lhe ofereceria? Porquê?» «Possivelmente o Oráculo Animal dos Druidas ou Os Mistérios dos Druidas. Seriam talvez duas das escolhas que eu daria ao Merlin. Porque Merlin é objectivamente ligado 158 Zéfiro à natureza, os druidas também são e estão ligados à preservação da antiga sabedoria, que mete o Homem no seu devido lugar neste planeta que nós chamamos Terra. O Homem é apenas um componente e não o dono do planeta.» «Para concluir, qual é o maior desejo da Zéfiro?» «Que a Zéfiro continue a soprar o seu vento brando do Ocidente e a fecundar as ideias e os espíritos que se interessam por estes temas que editamos.» Assim terminou a tão-desejada entrevista e seguimos para a acolhedora Casa do Fauno beber um chá quente, que o bom Zéfiro quase me enregelara todo o encéfalo. E há que cuidar dos encéfalos, principalmente porque são cada vez mais raros. A Zéfiro não só demonstrou ser incrivelmente batalhadora, qual celta guerreiro invadido por legiões organizadas e poderosas de romanos insensíveis, como curiosamente satisfeita com a sua presença e força individual. O que importa realmente não é o tamanho, é a vontade. E foi o meu dia, confiável diário, que terminou sem que pegasse mais uma vez no renegado trabalho de Crítica Textual. 159