Trabalho de Conclusão de Curso

Transcrição

Trabalho de Conclusão de Curso
Claudio Roberto da Silva
Os termos relativos ao segmento GLBT
(gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros)
no contexto das Linguagens Documentárias.
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Departamento de
Biblioteconomia e Documentação da
Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo.
Orientadora:Profa.Dra.Marilda Lopes
Ginez de Lara
São Paulo
2004
A falta de gosto é uma
antilinguagem, assim como a
doença ou a criminalidade.
A pessoa de mau gosto não aprendeu suas lições,
como o homossexual, como o judeu, como o negro.
Hubert Fichte
2
AGRADECIMENTOS
Pensar sobre o percurso, é a melhor forma de agradecer a tantas pessoas que
caminharam junto comigo durante a graduação. Tenho poucas certezas, mas uma delas é a
de que cheguei aqui por não estar sozinho. A trajetória às vezes foi branda, às vezes
agitada, mas revelou que se em alguns momentos o ficar comigo era necessário, noutros o
contato com familiares, amigos, colegas e professores era muito importante.
A colaboração surgiu através de caminhos diferentes, em épocas como a de hoje, até
as máquinas transmitem afetividade, pois as palavras, trocadas sobre o tema, chegavam na
tela do computador, ou eram passadas pelo telefone, tornando a escrita desse texto possível.
As pessoas responsáveis por essa etapa, certamente, lotariam um palco enorme que
ouviriam meus aplausos de agradecimento.
Sou grato ao corpo docente do Depto. de Biblioteconomia e Documentação da
Escola de Comunicações e Artes – USP - que forneceu a fundamentação teórica e
acadêmica fundamental à realização dessa reflexão. Quero expressar meu agradecimento,
em especial, às professoras Anna Maria Cintra e Johanna Smit que acompanharam meu
percurso de montagem do projeto e de produção da monografia. Os debates ocorridos
durante as disciplinas que ministraram estimularam uma reflexão apoiada num diálogo
franco e que sinalizou questões que ainda não estavam suficientemente claras.
Agradeço também ao professor José Augusto Chaves Guimarães por ter
possibilitado o contato com o texto de Hope A. Olson, cuja leitura ajudou a sedimentar
algumas das idéias presentes nessa monografia, e a professora Daisy Pires Noronha por me
ajudar a sistematizar as normas ligadas às referências dos documentos utilizados e a
apresentação padronizada deste trabalho.
O encontro com Marilda Lopes Ginez de Lara foi definitivo para essa reflexão, os
desdobramentos da formação que obtive nos anos da graduação e a decisão em abraçar essa
área de estudos se devem a ela. Nas entrelinhas desse TCC reflorescem nossas conversas
sobre o tema. Além disso, é importante que se diga: muito obrigado professora, você soube
ser orientadora sem passar por cima da autonomia do seu orientando.
3
Menção especial deve ser feita à Sandra Hirashiki e Janaína Pissinato, com quem
tenho compartilhado instantes de vibrações e desafios. Desde o primeiro ano ficamos juntos
e - pelos laços da nossa amizade - nunca mais nos separaremos. Agradeço a todos os meus
colegas de graduação, graças a nossa convivência vivemos experiências que tornaram esses
anos de ECA inesquecíveis.
Agradeço também aos amigos que foram meus interlocutores em diferentes fases da
reflexão sobre as identidades de gênero e sexuais. Em especial a Regina Fachini que
acompanhou o meu ingresso na Biblioteconomia. Com ela o debate sobre a questão GLBT
criou vínculos sólidos, graças aos quais descobri afinidades e fui presenteado com
sugestões de leituras e com constantes diálogos que se revelaram ricos às análises
acrescentadas ao texto.
Quero agradecer aos meus parentes que me ajudaram em diversos momentos, e de
diversas formas, durante o andamento da graduação, proporcionando-me o conforto
familiar tão caro ao meu bem estar como ao encaminhamento dos estudos. Eternamente,
agradecerei, com saudosa memória, ao homem mais importante da minha vida, meu pai,
Antônio Geraldo da Silva.
Dedico o trabalho a duas pessoas encantadoras que estão sempre juntas comigo – a
qualquer hora - e sempre prontas para me ajudar: Antônia Leles da Silva e Maria do
Rosário da Silva Ferro (Minha mãe e minha irmã).
4
Fonte: SILVA, Claudio Roberto da. Os termos relativos ao segmento GLBT (gays,
lésbicas, bissexuais e transgêneros) no contexto das Linguagens Documentárias. São Paulo:
Escola de Comunicações e Artes – USP, 2004.
Resumo: Esta monografia investiga a importância das palavras no contexto das linguagens,
e do seu significado para as experiências de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. Foi
organizada com o objetivo de abranger os campos de estudos relacionados à questão
motivadora do trabalho. Para isso, verifica como a linguagem vem sendo estudada, o seu
processo de formação e sua importância para a integração humana às molduras culturais.
Também visa distinguir a linguagem natural da linguagem documentária, produz um breve
histórico das LDs, ressaltando que elas preservam características ideológicas. Na seqüência,
recupera a historicidade das categorias referentes a sexo e gênero através do estudo de
termos relacionados a práticas culturais. O foco recai sob momentos distintos da história,
desde termos do período pré-moderno, até termos modernos, e depois expõe a
desconstrução das identidades sexuais binárias e a pluralização das categorias referentes às
identidades sexuais e de gênero. O passo seguinte serve para demonstrar a organização dos
sistemas pensados por Melvil Dewey e por Charles Cutter, consecutivamente a CDD e a
LCSH, analisando-os a partir do projeto moderno, e como suas sistematizações
sustentavam o discurso produzido, consecutivamente, no primeiro caso, pela autoridade
acadêmica e científica, e, no segundo caso, pela singularidade cultural imposta por um
público majoritário, para apresentar, depois, a incapacidade dos modelos deweyano e
cutteriano em atender as necessidades de informação de segmentos cada vez mais
específicos. E finalmente, destacar as transformações ocorridas a partir dos anos sessenta,
onde o surgimento de novos sujeitos políticos que, aliados aos bibliotecários, reconheceram
a importância da guarda de materiais, de centros de documentação e a necessidade de novos
sistemas face à fragmentação em diversas identidades – GLBT -, dando origem a um novo
campo de reflexões sobre a análise da documentação diante das aceleradas transformações
sociais.
Palavras-chave: Linguagens Documentárias; bibliotecário; GLBT (gays, lésbicas,
bissexuais e transgêneros)
5
Sumário
Apresentação.......................................................................................................................................7
1 Introdução.......................................................................................................................................9
2 A importância dos estudos da linguagem sobre a sedimentação da cultura............................11
2.1 As linguagens e seus signos..................................................................................................12
2.2 A Linguagem Natural e a Linguagem Documentária...........................................................18
2.3 Histórico das Linguagens Documentárias.............................................................................24
2.4 As implicações ideológicas dos termos que sedimentam as Linguagens..............................30
3 Uma história dos termos sobre sexo e gênero.............................................................................36
3.1 Sexo e gênero na antiguidade, palavras à guisa da compreensão da diversidade..................37
3.2 Sexo e gênero em nome da fé, a produção de termos em busca do controle do outro.........42
3.3 Sexo e gênero em nome da razão - sob nova vestimenta -, os novos termos de controle......48
3.4 Sexo e gênero no período contemporâneo, o retorno à compreensão da diversidade...........53
4 O tratamento da sexualidade nas Linguagens Documentárias no período moderno..............61
4.1 No molde do projeto moderno, a sistematização dos termos.................................................62
4.2 O tratamento da informação enquanto reiteração do saber competente................................67
4.3 A hierarquia dos “termos” modernos: Homossexualismo/ Psiquiatria..................................73
4.4 A transição: dos conceitos hierárquicos à dinâmica da desconstrução..................................80
5 O desafio das mudanças provocadas pela explosão da informação..........................................87
5.1 Quando novos sujeitos entram em cena: o segmento GLBT..................................................88
5.2 Experiências em centros de documentação ligados ao segmento GLBT...............................93
5.3 O profissional da informação face às necessidades de informação do segmento GLBT.......99
5.4 Linhas teóricas para pensar a análise da informação GLBT................................................105
6 Considerações Finais...................................................................................................................111
7 Referências...................................................................................................................................113
6
Apresentação
Certa vez - corria o ano de 2002 - e estávamos no horário do intervalo aguardando o
início da segunda parte da aula de Lingüística e Documentação. Quando uma colega contou
uma história que chamou nossa atenção. Ela estagiava na Câmara Municipal, e lá do local
onde realizava suas atividades podia ouvir as sessões do plenário. Numa de suas audições,
aconteceu um episódio que despertou sua curiosidade.
Uma bibliotecária fora convidada para ajudar ativistas dos grupos homossexuais. Na
ocasião, a profissional se referiu ao termo técnico – homossexualismo – como ponto de
partida para o debate. Aquém do significado dessa palavra entre os ativistas, ela abriu um
debate, muito conhecido nos grupos, segundo o qual o termo não poderia ser utilizado
porque o sufixo “ismo” qualificava que a origem da palavra a associava à idéia de doença,
além disso, homossexual, no senso comum, era um termo atribuído ao gênero masculino,
assim era preferível usar gays e lésbicas, para dar visibilidade às mulheres, mas também
havia a questão das travestis, que não se reconheciam nessas duas palavras.
Teve início todo um debate na câmara que, provavelmente, não era do
conhecimento daquela bibliotecária. Essa história foi ouvida e despertou nossa
perplexidade, pois, questionávamos: e se fossemos nós que estivéssemos naquela situação?
Esse TCC teve origem no dia que essa história foi contada, visto a importância das palavras
na linguagem, e do seu significado para as experiências de vidas humanas como a de gays,
lésbicas e travestis. Ele foi organizado com o objetivo de abranger os campos de estudos
que reflitam sobre a complexidade da questão colocada para aquela bibliotecária.
Para tanto, o primeiro capítulo se dedica a fazer a definição dos aspectos
relacionados à linguagem, como ela vem sendo estudada pelos pensadores, o seu processo
de formação e sua importância para a integração humana às molduras culturais. Também
visa distinguir a linguagem natural da linguagem documentária, apresentar um breve
histórico das LDs, pelo menos as mais utilizadas e, para concluir, ressaltar que é inevitável
que as LDs preservem aspectos relacionados à sedimentação ideológica.
O capítulo seguinte recupera a historicidade das categorias referentes a sexo e
gênero - através do estudo de palavras relacionadas às práticas culturais - que se
institucionalizaram no decorrer do tempo. O foco recai sob momentos distintos da história,
7
desde termos do período pré-moderno, tais como “pecado nefando”, cuja palavra marca o
poder da Igreja Católica, até termos modernos como “homossexual”, a partir da produção
literária e científica do século XIX, e depois concluir pensando como aspectos ligados a
desconstrução das identidades sexuais binárias produziram um reconhecimento da
diversidade humana – assim como o tratamento específico de seus temas –, pluralizando as
categorias referentes às identidades sexuais e de gênero.
Na seqüência, o capítulo seguinte acompanha a montagem dos sistemas pensados
por Melvil Dewey e por Charles Cutter, consecutivamente a CDD e a LCSH, analisando-os
a partir do projeto moderno, e cujas organizações sustentavam o discurso produzido pela
medicina e pela jurisprudência, os quais ganharam hegemonia de ação - perpassados pela
teoria do bom funcionamento da sociedade. No caso da CDD isso ocorria porque a
autoridade acadêmica legitimava essa organização, enquanto que no caso da LCSH tal fato
se devia ao emprego das palavras utilizadas pela singularidade de um público majoritário.
Essa lógica se montou sobre uma estrutura binária e hierárquica que caminhava do
universal para o específico. As novidades da cena contemporânea problematizaram esses
sistemas, indagando sobre a incapacidade dos modelos deweyano e cutteriano em atender
as necessidades de informação de segmentos cada vez mais específicos.
E finalmente, no quarto capítulo, destacar as transformações ocorridas a partir dos
anos sessenta, onde o surgimento de novos sujeitos políticos provocaram uma revolução ao
redor do mundo. Pessoas que, aliadas aos bibliotecários, reconheciam a importância da
guarda de materiais, assim como da montagem de centros de documentação para atender
grupos com necessidades específicas. Essa postura esboçou uma novidade: a necessidade
de novos sistemas face à fragmentação das identidades – GLBT -, pois o processo
deflagrado colocou em xeque as idéias tradicionais, dando origem a um novo campo de
reflexões, sobre a análise da documentação diante das aceleradas transformações sociais.
O presente TCC não tem a pretensão de responder, plenamente, a complexidade da
questão, mas tenta se aproximar o máximo possível da reflexão colocada pelos autores. A
novidade do tema é visível e rica em possibilidades, pois compõe teias que se articulam, em
diversos campos do conhecimento, ligando os estudos das linguagens, da história, da
importância do bibliotecário, das identidades de gênero e de orientação sexual, num esforço
de verificar o impacto das palavras que se referem ao segmento GLBT.
8
1 Introdução
Tradicionalmente, a percepção do corpo, assim como de suas formas de autorepresentação, se organizou a partir de categorias binárias utilizadas para investigar as
identidades sexuais (homem e mulher, gay e lésbica). Desde os anos sessenta, porém, o
movimento GLBT deu origem a uma linha de estudos que denunciou a falácia deste
paradigma. Nasce assim a reflexão sobre a diversidade do gênero sexual humano, gerando a
necessidade de investigar, noutros campos de conhecimento, a situação de gays, lésbicas,
bissexuais e “transgêneros”.
Aqui cabe apresentar a posição defendida por John Boswell.1 O pesquisador, quando
fala sobre investigação histórica - referente à existência de gays em sociedades précapitalistas - sugeria que se os historiadores não prestavam atenção a como as fontes
históricas descreviam um determinado fenômeno, isso não provava - de forma nenhuma que este não tivesse existido. Nesse caso, é possível tomar como base o argumento de
Boswell, procurando pelas manifestações GLBT, mas não simplificando o estudo ao
equiparar categorias do presente ao passado, e procurando, sim, contextualizar essa
diversidade – enquanto potencialidades da natureza humana -, como um fenômeno dentro
de um contexto moral, político, social que elaborou significados para essa diversidade, ao
sabor do quadro cultural de cada época.
Camille Paglia,2 também reflete a partir dessa perspectiva: de que a cultura, com
suas instituições sócio-históricas, pode ser estudada como a luta do homem, através do
tempo, contra o poder da natureza. Para entender as civilizações, é preciso entender suas
posturas diante da natureza (numa tentativa de controlar suas manifestações ou para se
reconciliar com elas). Segundo a autora, nenhuma civilização pôde subordinar os aspectos
essenciais da natureza, mas apenas se relacionar com eles. Aqui se insere o universo do
corpo e das relações que podem ser mantidas com outros corpos – iguais ou diferentes – e
com a auto-imagem produzida sobre o próprio corpo.
Esse caminho apresentou a cultura e a linguagem (especificamente a verbal), como
1
BOSWELL, John. Hacia un enfoque amplio. Revoluciones universales y categorías relativas a
la sexualidad. In: BOYERS, Steinery Robert. Homosexualidad: Literatura y Politica. Madrid:
Alianza Editorial, 1985. p. 38-74.
2
PAGLIA, Camille. Personas Sexuais: Arte e decadência de Nefertite a Emilly Dickinson. São Paulo:
Companhia da Letras, 1992. p. 13.
9
portadoras das identidades - elemento básico para se falar sobre problemas, necessidades e
instituições através do tempo. Essa opção pode gerar a possibilidade do significado das
palavras se tornarem anacrônicos, ou comprometidos ideologicamente, caso não sejam
utilizadas adequadamente, motivando, assim, um cuidado maior sobre a necessidade em
escapar dessas armadilhas.
Nesse caso, os sistemas de classificação, originados no século XIX, são ferramentas
terminológicas que se tornaram datadas, não atendendo mais as transformações ocorridas
no decorrer do século XX. Hoje em dia, não é possível apresentar ao militante gay, por
exemplo, palavras como “homossexualismo”, cujo significado se refere à idéia de desvio
patológico – que teve origem na categorização médica - e que não tem nada a ver com a
recente proposta que sustenta outra idéia, a de que não há nada de doentio na expressão da
homossexualidade.
A contemporaneidade, também, indica outras mudanças: essas se referindo ao
entendimento da informação como instrumento de transformações em nível social e
político. Neste contexto, o espaço do bibliotecário tornou-se estratégico no tocante aos fins
do seu trabalho, cujos objetivos não estão ligados mais à mera disponibilização da
informação, mas à reflexão sobre como sua atuação pode alterar qualitativamente as
experiências sociais.
O empreendimento dedicado à recuperação dos aspectos teóricos - que sedimentam
os estudos lingüísticos e os da área de documentação -, assim como os aspectos históricos e
ideológicos que cercearam as LDs, tornaram possível o diagnóstico de uma oscilação na
organização dos sistemas, entre a legitimidade de uma identidade monolítica e o
reconhecimento do valor de diversas identidades. Neste ponto, foi preciso compreender a
importância dos centros de documentação, e dos bibliotecários (a partir de suas posturas
teóricas e políticas) como agentes das transformações sociais.
Para avaliar essas questões, a confecção desse trabalho envolveu duas fases, uma
relacionada à pesquisa e coleta de dados sobre os estudos ligados às linguagens, à história,
ao segmento GLBT, e a outra referente à leitura e fichamento desses estudos. A reflexão a
partir desses dados - acompanhada pela orientação da professora Marilda Lopes Ginez de
Lara – possibilitou uma análise com o objetivo de entender o funcionamento das palavras
sob o contexto das linguagens, especificamente as veiculadas sobre o segmento GLBT .
10
2 A importância dos estudos da linguagem sobre a sedimentação da cultura
Os interesse em estudar a linguagem é antigo, mas sua versão atual pode ser
verificada a partir de transformações no campo da lingüística, área que teve origem no
século XIX, logo no começo do século posterior ao seu nascimento. Nesta época aconteceu
o curso de lingüística geral de Ferdinand Saussure, ministrado entre os anos de 1906-1911
na universidade de Genebra. Este curso, depois da morte de Saussure, foi transformado em
um livro a partir das anotações de alunos realizadas durante as aulas, por dois de seus
discípulos: Charles Bally e Albert Sechehaye.3
Saussure é responsável pela clássica distinção entre língua e fala, segundo a qual o
pensador possui uma concepção da língua como sistema, colocando ao lado desta uma
outra distinção entre sincronia e diacronia. Face à qual, a lingüística deveria orientar seu
interesse pelo estudo da língua ao aspecto sincrônico: a língua como um objeto de estudo
num determinado momento. Ele privilegia essa perspectiva e coloca, um pouco de lado, as
questões da língua em relação ao sujeito e em relação ao mundo. O corte saussureano,
também, abre caminho a diferentes propostas no tocante à reflexão sobre a linguagem,
especialmente no campo dos estudos sincrônicos que buscam incluir o sujeito no
lingüístico. Estes trabalhos tiveram vários desdobramentos que se tornaram conhecidos no
Brasil.4
Assim, do ponto de vista contemporâneo, podemos enumerar as seguintes correntes
ligadas ao estudo da linguagem: uma ligada ao pensamento de Noam Chomsky, referente
ao cognitivismo naturalista que localiza a lingüística no interior da biologia (enquanto
ciência psicológica); outra ligada a posições derivadas do estruturalismo, onde o
funcionamento da língua se dá porque a ela está marcada por formas próprias de
funcionamento; outra ligada a posições que estabelecem diálogos entre as diversas
disciplinas das ciências humanas; e, outras, ainda as posições ligadas à análise de discurso
que põem em cena a questão de que não se pode reduzir o lingüístico nem ao social nem ao
psicológico, visto que a linguagem é histórica.5
3
Ver: GUIMARÃES, Eduardo. Os Estudos Sobre Linguagens: uma História das Idéias. Disponível no:
http://www.comciencia.br/reportagens/linguagem/ling14.htm. Acessado em 28 de junho de 2004.
4
Idem.
5
Ibidem.
11
O ponto em comum é que a língua surge como elemento básico para a integração do
homem às molduras culturais. Através do seu estudo, é possível identificar o
comportamento dos herdeiros da linguagem, assim como observar a origem das
justificativas que institucionalizaram suas práticas e saberes. Esses esclarecimentos são
fundamentais para se entender a influência dos estudos da língua sobre a produção teórica
do campo referente às Linguagens Documentárias.
2.1 A linguagem e seus signos
É importante compreender a linguagem através de sua origem histórica e de sua
instituição como instrumento de comunicação adotado pelo homem. No tocante ao primeiro
aspecto, talvez nunca possamos saber com certeza o processo que deu origem à linguagem.
Supõe-se que esse traço distintivo do homem começou a se desenvolver por volta de um
milhão e meio de anos atrás com o Australopitecus, ou "macaco-homem".6 O estudo dos
fósseis indica suposições de que esse primeiro hominídeo já se comunicava por meio de
sinais sonoros, intencionais, e não de gritos automáticos, com seus contemporâneos. Era o
primeiro passo para a verbalização da linguagem.
Os estudiosos acreditam que há um milhão de anos ocorreu uma fase decisiva na
elaboração da fala: o ensaio das primeiras palavras pelo Homo Erectus. Mas é com o Homo
Sapiens Sapiens que a humanidade levará essa aventura às últimas conseqüências,
completando, por volta de 40 mil anos atrás, o processo definitivo da conquista da
linguagem.7 Essa aventura, entretanto, não se restringiu à capacidade diversa da linguagem
em produzir sons, ela buscou uma forma de cristalizar as idéias sonoras através das formas
de registro.
Desde os primórdios, em que por meio da linguagem, o ser se tornou humano, o
homem quis perpetuar imagens de fatos que vivenciava. Para tanto se preocupou em
registrar fatos através de uma técnica, a qual denominamos escrita.8 Nas sociedades
6
MARX, K; ENGELS, F. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. In: Obras
Escolhidas (1). São Paulo: Alfa-Ômega, 1977. v. 2, p. 61.
7
CHILDE, Gordon. A Evolução Cultural do Homem. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1981. p. 40-1.
8
MARTINS, Wilson. A Palavra Escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca. São Paulo: Ática,
1998. p. 33-6.
12
humanas, desde então, a escrita ocupou um lugar de tal importância que deve ser
recuperado como possibilidade de compreensão da existência do homem através do tempo.
Há cerca de seis mil anos, surgiu, na Mesopotâmia, o mais antigo sistema de escrita
do qual se tem notícia: o sumeriano. Ele respondia à necessidade que os sacerdotes tinham
de preservar as liturgias religiosas. O sistema sumeriano viria a ser o protótipo de outros
importantes sistemas de escrita, como o egípcio, por exemplo. Antes de chegar ao ponto
em que se encontra atualmente, a escrita passou por dois estágios. Inicialmente ela foi
pictográfica — 9 para denotar um gato, por exemplo, fazia-se o desenho do animal. Com o
tempo, os desenhos foram se simplificando, e passou-se a atribuir a alguns deles um
significado arbitrário — um jarro com um traço representaria uma medida de cevada, com
dois, uma medida de cerveja. Isso possibilitava a representação de idéias e palavras. Estava
criada a escrita ideográfica.10
A mudança do sistema ideográfico para o silábico e o alfabético marcou o passo
seguinte na evolução da escrita. Tal fato pode ter sido ocasionado pela necessidade de
simplificar o código para atender a quantidade de registros, provenientes da língua falada.
Assim, os sinais assumiram a representação dos sons. Os primeiros sistemas silábicos,
contudo, ainda possuíam deficiências. A mais evidente era a enorme quantidade de sinais
utilizados para representar os sons da língua. Assim, por exemplo, a escrita cuneiforme,
proveniente da Mesopotâmia, possuía centenas de sinais (sua organização era silábica), esse
aspecto não era fácil de ser aprendida pelas pessoas.
O alfabeto produzido pelos fenícios, povo comerciante da antiguidade, era mais
prático.11 A escrita foi simplificada devido à diminuição do número de sinais empregados.
Aspecto que facilitava a aprendizagem assim como a tarefa de escrever. Os fenícios criaram
um sistema de escrita composto por 22 sinais. Esse método revolucionou a escrita
tradicional, pois em vez de diferentes sinais silábicos, os sinais alfabéticos passaram a ser a
representação de unidades do som da língua. Assim, um conjunto de sinais formava
palavras - como as que eram faladas. Dessa forma, a escrita se tornou fonética, passando a
representar graficamente a riqueza da fala. Essa forma de registro se tornou preponderante
enquanto sistema de registro adotado pelas civilizações.
9
Idem, p. 36.
Idem, p. 41.
11
Idem, p.49-53.
10
13
Não podemos esquecer que desde a produção da escrita até os dias de hoje, a
linguagem se tornou um sistema complexo que se modifica lentamente através dos séculos.
Trata-se de um sofisticado instrumento de comunicação que se apoiou no uso de um
sistema de signos convencionados.12 Os signos, particularmente, estão ligados aos objetos
reais ou a realidades abstratas – denominados referentes -, cuja seqüência de sons e forma
gráfica é denominado significante, o qual corresponde a uma idéia ou a um conceito
denominado significado.13 Os signos estão inseridos num contexto que é o resultado de um
acordo apreendido através de uma convenção cultural, de uma sociedade, não sendo,
portanto, perenes, mas evoluindo com o passar das eras.
Desde o nascimento, sujeitos, ligados a diferentes contextos culturais,
experimentam vivências, cujos significados se desenvolvem a partir do aprendizado de um
sistema lingüístico. A compreensão das pessoas assume uma organização, onde a mediação
depende, em grande medida, dos signos culturais responsáveis pelo aparato que
disponibilizará um arcabouço de leituras da realidade.14 A inserção do indivíduo no
contexto cultural, portanto, depende de sua capacidade de dominar a linguagem e seus
códigos.
O valor da aprendizagem está em fazer o indivíduo tomar contato com um poderoso
instrumento: a língua. Na fase de aquisição da cultura, com a evolução da linguagem, este
instrumento se torna uma parte integrante do indivíduo. Nesse sentido, o universo da
cultura não comporia a “linguagem dos animais”.15 Aqui cabe uma definição sobre essa
diferenciação: o sistema de comunicação utilizado pelos animais não constitui uma
linguagem, mas trata-se apenas de um componente da organização físico-biológica herdada
com a programação genética da espécie.
O homem aprende a sua língua a partir da cultura na qual está inserido. Esse limite
contribui para esclarecer a complexidade desse campo de estudo, principalmente quando
fica claro que as significações - que preenchem o conceito de língua e de linguagem - têm
como base à cultura que lhes serve de subsídio.16
12
ECO, Umberto. O Signo. Lisboa: Editorial Presença, 1990. p. 21-22.
BLECUA, José Manuel. Lingüística e Comunicação. Rio de Janeiro: Salvat Ed, 1979. p. 37-8.
14
TERRA, Ernani. Linguagem, língua e fala. São Paulo: Scipione, 1997. p. 12-7.
15
LOPES, Edward. Fundamentos da Lingüística Contemporânea. São Paulo: Cultrix, 1975. p. 35-8.
16
SCHAFF, Adam. Linguagem, Conhecimento e Cultura. In: Linguagem e Conhecimento.
Coimbra: Almedina, 1974. p. 267-268.
13
14
A linguagem humana, por outro lado, pressupõe o aprendizado de códigos para que
o indivíduo possa atuar no cenário de uma cultura, onde a língua se refere ao produto da
convenção e dos valores sociais, da qual derivam as regras que tornam compreensíveis a
comunicação entre os indivíduos. Aqui é preciso distinguir a idéia de língua da idéia de
linguagem, cuja última tem a definição mais ligada à ampliação das formas de compreensão
das mensagens.
Nesse caso, não apenas as palavras orais e escritas abrangeriam essa idéia, mas ela
afluiria também de outras formas de interpretação como, por exemplo, à linguagem
corporal, ligada aos gestos, às expressões faciais, às reações orgânicas do corpo, além de
outras formas, tais como os sinais de trânsito, à expressão artística, em síntese, à todos os
meios relacionados à comunicação, sejam eles cognitivos, sócio-culturais, ou provenientes
da natureza.
Os estudos sobre como o indivíduo adquire a linguagem - e começa a fazer uso de
seus signos - enfatizam um caminho integrado entre os aspectos orgânicos, os aspectos
psicológicos e os aspectos sociais. A relação entre estes aspectos interfere no processo de
formação da linguagem. Assim, esse pressuposto teórico se baseia na idéia de que a
capacidade para a linguagem está preestabelecida no cérebro humano, emergindo na
medida em que o organismo amadurece biologicamente.17 E relacionado à esse aspecto, os
contextos ligados à família e à escola também têm sido analisados como espaços
preferenciais para o desenvolvimento da linguagem.
Por outro lado, também se considera a influência dos efeitos advindos de outros
fatores. Nesse caso, a análise leva em consideração as diferenças sócio-culturais referentes
a questão de raça, de gênero, de condição sócio-econômica, tendo em vista que a linguagem
é uma atividade complexa e de natureza social, cujo desenvolvimento depende do contato
com outras pessoas e que tem como objetivo habilitar o sujeito para o processo de
comunicação.18 Esse processo acaba por se produzir dentro de padrões culturais que
definem as possibilidades de interpretação do mundo.
17
18
PIAGET, Jean. Epistemologia Genética. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
VIGOTSKY, Lev Semenovitch; LURIA, Alexander Romanovitch; LEONTIEV, Alex N. Linguagem,
desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícones, 1988.
15
Nesse caso, ela não pode se desligar do contexto no qual se desenvolvem as ações
comunicativas, considerando que os sujeitos estruturam sua linguagem de acordo com o
ambiente no qual nasceram e cresceram.19 Para que haja comunicação é necessária a
existência de um conhecimento comum entre os participantes nessa interação. A linguagem
surge como objeto central para o entendimento desse processo, pois estrutura a formação do
pensamento e estabelece comunidades lingüísticas diferentes na organização social, valores
e tradições culturais.
A linguagem, em outras palavras, é de importância central, pois através dela os
signos – que não se referem exclusivamente às palavras - se transformam em instrumentos
para efetivar a comunicação humana. Trata-se do estanque de saber, o lugar comum, onde
os participantes se abastecem dos modelos interpretativos necessários ao processo
comunicativo. Através da linguagem, os indivíduos regulam um conjunto de competências
que o qualificam a torna-se sujeito. Esse mundo das relações cotidianas é o lugar das
interações espontâneas, onde os indivíduos se encontram para produzir consensos sobre a
forma como utilizar e interpretar esses signos,20 sedimentando as práticas sócio-culturais
altamente estruturadas.
Esse aprendizado, contudo, não garante uma univocidade de significados
produzidos pelo discurso humano, tendo em vista que a linguagem expressa sentidos
diversos de acordo com diferentes experiências e situações. Essas estão ligadas a
compreensão de sobre como uma língua significa em um determinado contexto, seja ele
sócio-regional ou historicamente afastado no tempo.21 Essa consciência dos limites da
objetividade da linguagem enfatiza a idéia de que os “signos” dependem das relações
construídas dentro de um determinado contexto.
A funcionalidade de uma língua, dita noutras palavras, está pautada na necessidade
de que os membros de uma comunidade estabeleçam um acordo em relação ao
entendimento das palavras. A condição de inteligibilidade para a comunicação, portanto, é
dada pela relação que esses signos estabelecem enquanto parte de um todo.22 Essa
19
ERWIN, Susan. A Linguagem na Psicologia Humana. TAX, Sol. (org.) Panorama da
Antropologia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1966. p. 62.
20
LADO, Robert. Introdução à Lingüística Aplicada. Petrópolis: Vozes, 1972. p. 152.
21
PETRI, Dino. Sociolingüistica: os níveis de fala. São Paulo: Edusp, 1997. 24-5.
22
BACCEGA, Maria Aparecida. Conhecimento, Informação e Tecnologia. Comunicação &
Educação. São Paulo, (11): 07 à 16, jan./ abr. 1998. p. 8-9
16
constatação é importante, pois a análise dos signos se baseia numa compreensão da
realidade social e histórica que os preenchem de significado.
Uma vez que os signos participam de todas as atividades humanas, e é central para
as mesmas, torna-se fundamental não deixá-los se perder nos meandros de um mundo que
possui códigos peculiares, cujo desconhecimento pode inviabilizar a transmissão das
experiências humanas acumuladas por segmentos cada vez mais específicos da sociedade.
Ao se reconhecer a riqueza da linguagem, torna-se necessário aproximar-se de ferramentas
de reflexão que facilitem a produção de um conjunto de regras de análise para evitar a
dispersão de significados dos termos.
A análise dos signos, nesse caso, exige um instrumental teórico que viabiliza um
processo de investigação e interpretação. Para tanto, as definições de signos naturais e de
signos artificiais podem ser compreendidas a partir do estudo da estrutura lingüística.23
Essas necessidades exigem a atuação de um profissional, ao qual cabe apresentar um
controle mais eficiente desse dinamismo da linguagem.
Nesse ponto, pode-se observar a importância da distinção entre a linguagem natural,
inserida no âmbito da dinâmica cultural - sendo por isso amplamente dispersiva -, e a
linguagem documentária, artificialmente construída com o objetivo de evitar a dispersão de
significados.24 O papel da linguagem documentária, portanto, está no controle de um
vocabulário que garanta uma compreensão unívoca dos termos.
Em um começo de século onde significantes e significados se redefinem com
freqüência no campo da comunicação, essas mudanças também se constituem como dados
importantes para a reflexão, pois se trata de um começo de século onde a linguagem
humana está se re-arranjando incessantemente.
Esse é o desafio lançado ao profissional da informação: apropriar-se da contribuição
dada pelas diferentes áreas do conhecimento, tendo a responsabilidade de devolver uma
resposta que seja própria da área de biblioteconomia. É a partir dessas questões, colocadas
ao profissional da informação, que surge o desafio de compreender a função da linguagem
e de seus signos no âmbito da ciência da informação.
23
24
LOPES, Edward.Op. Cit.. São Paulo: Cultrix, 1975. p. 26-29.
TÁLAMO, Mária de Fátima G. M. Linguagem Documentária. Ensaios APB, n. 45. p. 10.
17
2.2 A Linguagem Natural e a Linguagem Documentária.
A linguagem nasceu da necessidade de expressão e de comunicação do ser humano
em sua relação com o mundo e com os outros. Trata-se de um sistema de signos, ou sinais,
usados para expressão de idéias, valores e sentimentos que podem ser traduzidos através
das palavras. Quando o homem se utiliza delas, ele faz uso da linguagem oral ou escrita,
utilizando especificamente uma linguagem verbal, pois o código utilizado é a palavra.25
Esse código dá forma aos pensamentos e quanto maior for o domínio desse código (ou
quanto maior for o domínio de vocabulário), maior será sua capacidade de raciocínio.
Na dimensão da linguagem e da capacidade de raciocínio, é preciso enfatizar que os
gregos faziam uso de dois termos para se referir à palavra e à linguagem: logos e mythos. O
primeiro
termo
sintetizava
três
conceitos:
fala,
pensamento
e
realidade,
ou
consecutivamente: palavra, idéia e ser. Tratava-se da palavra racional que definia o
entendimento do real, sendo igualmente o discurso, ou, argumento e prova, o pensamento,
enquanto raciocínio e demonstração, e a realidade. Mythos, também entendido como
linguagem, era visto como o recurso que os homens faziam uso para organizar a realidade e
interpretá-la mediante as palavras.26
Entendidas nessa perspectiva, palavra e linguagem verbal representam uma
possibilidade de mediação que o ser humano construiu para representar o mundo social e o
mundo individual. A linguagem verbal, especificamente, é uma forma de comunicação
presente no cotidiano dos seres humanos.27 Mediante a palavra falada ou escrita, as pessoas
expõe umas às outras idéias e pensamentos, visto que cada palavra se relaciona às
experiências e aos valores construídos sócio-historicamente. Esse código está presente no
falar, na leitura e na escrita.
A linguagem verbal, portanto, é o meio através do qual as pessoas participam de um
processo junto com outras pessoas sobre o significado dos objetos que as cercam ou das
ações que executam,28 visando um entendimento que pode ser aceito ou contestado, e nesse
último caso pode se iniciar um novo processo de comunicação. Essa linguagem faz uso de
25
BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e Discurso: História e Literatura. São Paulo: Ática, 1995. p. 9.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 1995. p. 252- 262.
27
BACCEGA, Maria Aparecida. Op. Cit., p. 11.
28
Idem, p. 27.
26
18
metáforas, analogias e busca dar significados às atividades ligadas à família, ao trabalho, à
religião, às artes, aos estudos, entre outras que compõe o dia a dia. A principal
característica dessa forma de manifestação da linguagem é que suas palavras podem ser
carregadas de muitos sentidos e pode ter mais de um significado.
A Linguagem Natural pode ser associada linguagem verbal. De acordo com o
contexto onde ela ocorre, o seu nível será acadêmico, poético, técnico. A partir dela pode
haver a ocorrência, por exemplo, de termos que são sinônimos ou não, assim como de
termos que podem ser genéricos ou específicos. Estas possibilidades ilustram a riqueza da
construção de diferentes esquemas da LN. O uso da LN, apesar de não ser rigorosa no
aspecto monossêmico das palavras,29 torna o processo de compreensão e de comunicação
viável.
A LN, contudo, ainda possui uma limitação referente à capacidade de pluralizar o
significado das palavras, visto que a linguagem humana pode se caracterizar pela
polissemia vocabular,30 ou seja, pela possibilidade das palavras assumirem diversos
significados em função do contexto em que são empregadas. Por contexto, é possível
considerar a ligação de uma palavra com outras numa frase, assim como as situações nas
quais uma frase pode ser emitida.
Sob essa questão, uma das passagens bíblicas mais emblemáticas e que se refere ao
problema do uso da língua - e do entendimento monossêmico entre os seres humanos - é a
história da Torre de Babel, segundo a qual Deus lançou a confusão entre os homens,
fazendo com que perdessem a língua comum e passassem a falar línguas diferentes, que
impediam uma obra em comum, abrindo as portas para todos os desentendimentos. O único
aspecto não tratado por essa história mítico-religiosa se refere à idéia de que o
desentendimento não se manteve apenas entre as diferentes línguas humanas, mas
permaneceu na própria língua que era falada em comum. Coube ao profissional da
informação
escapar
dessa
confusão.
Produzir
uma
linguagem
que
evitasse
desentendimentos durante o processo de comunicação.31
29
CINTRA, Anna Maria Marques et al. Para Entender as Linguagens Documentárias. São Paulo: Polis,
1994. p. 28.
30
Idem, p. 55-56.
31
Ibidem.
19
Para tal tarefa, teve de fazer uso, ao mesmo tempo, da LN (enquanto linguagem
corrente) e produzir uma linguagem controlada, o que permitiu o rigor e a eficácia na
classificação da informação por um lado e a sua recuperação por outro. Aqui cabe salientar
que essas linguagens são instrumentos que atendem as necessidades de informação das
pessoas – ou dos clientes - dos Sistemas de Recuperação da Informação.
Grosso modo, os SRIs, ou Sistemas de Recuperação da Informação, têm o objetivo
de garantir o acesso aos dados presentes nos documentos cadastrados e sistematizados no
seu interior.32 O tipo de linguagem de recuperação - estabelecida enquanto parâmetro de um
sistema de informação - deve cumprir bem sua função: garantir a eficácia do processo de
busca realizada pelo cliente no Sistema de Informação.
Os referidos sistemas podem ser organizados, segundo suas necessidades
específicas, em dois grupos: a partir das LDs que abrangem todas as áreas do conhecimento
humano e a partir das linguagens específicas, cuja abrangência se refere a uma única área
do conhecimento.33 Para isto, foram elaboradas ferramentas de controle de termos com o
intuito de criar um vocabulário comum, para tornar mais fácil a comunicação entre o
usuário e o sistema. É importante destacar que é fundamental estabelecer a relação entre a
LN, utilizada pelo usuário, e a linguagem utilizada pelo sistema.
É a partir do tratamento da informação para fins de recuperação que se encontra a
definição de Linguagem Documentária (LD), ou seja, é uma linguagem construída em
oposição à LN. A diferença entre Linguagem Natural (LN) e Linguagem Documentária
(LD) consiste na idéia de que a primeira possui uma estrutura caracterizada pela riqueza de
significados semânticos, tal qualidade não lhe permite dar conta de uma função objetiva da
informação, pois ela traz em si uma dispersão dos sentidos que podem ser empregados por
uma palavra; a segunda, porém, requer um esforço intelectual, cujo objetivo está ligado ao
domínio do universo vocabular relacionado a uma determinada área.
A LD é uma redução necessária do campo da LN. Para que isso seja possível, uma
das fases se refere à montagem de um vocabulário, cuja função é a de ser um instrumento
de controle terminológico.34 Este instrumento fará a tradução do conteúdo da LN nos
32
FOSKETT, A.C. Features of an Information Retrieval System. In: The Subject Approach to
Information. London: Clive Bingley, 1977. p. 11-29
33
CINTRA, Anna Maria Marques et al. Op. Cit., p. 29.
34
Idem, p. 26-27.
20
documentos, assim como dos usuários e dos indexadores, para uma linguagem sistemática
de recuperação da informação.
O uso das LDs permite a comunicação entre o documento e o usuário, pois atua
enquanto linguagem mediadora que possibilita a representação e a recuperação. A depender
da especificidade da área de conhecimento, para se alcançar melhores resultados, é
necessário o contato com os domínios terminológicos de uma determinada área, assim
como com a sua literatura especializada, e com a linguagem utilizada pelas pessoas dentro
do contexto de atuação. Tratam-se de condições para se fazer a análise documentária (AD),
sendo importantes para se obter sucesso na fase de recuperação da informação.
O trabalho documentário necessita de um diálogo com a Terminologia, a qual tem
como objetivo organizar e harmonizar as noções, ou conjunto de noções, presentes nos
domínios específicos do conhecimento. Essa atividade acontece através de processos
sistemáticos que selecionam ou criam termos para as noções, relacionando-os através de
definições. Assim são produzidas listas de termos especializados de um domínio particular,
acompanhados de definições que remetem o termo ao referente.
Desta forma, as terminologias compõe o universo das LDs, e embora sejam
importantes para sua elaboração, não garantem o desempenho satisfatório da comunicação
documentária.35 Os termos - mais do que as palavras -, se constituíram como a menor
unidade de representação. Eles são constituídos por uma palavra ou por um grupo delas que
descrevem um conceito.
Diferentemente delas, esses termos têm seu significado assegurado, mesmo quando
são utilizados isoladamente. São produtos de linguagens artificiais, assim chamadas porque
não resultam de processo evolutivo natural e necessitam de regras explícitas para seu uso.
Segundo Sayão,36 “estabelecem uma relação unívoca entre o termo e o conceito, isto é, entre
o significante e o significado. Cada termo corresponde a um conceito do sistema de
conceitos de uma área específica com que se está trabalhando.”
Os conceitos de LD encontrados na literatura reduzem, por vezes, todas as formas
de representação documentária à linguagem documentária. A explicação para tal fenômeno
35
LARA, Marilda Lopes Ginez de. O Unicórnio (o Rinoceronte, o Ornitorrinco ... ), a Análise Documentária
e a Linguagem Documentária. DataGramaZero - Revista de Ciência da Informação, v.2, n.6,
dez/2001.
36
SAYÃO, Fernando. Bases de dados: a metáfora da memória científica. Ci. Inf., Brasília, v. 25, n. 3,
set./dez. 1996. p. 315.
21
reside no emprego da terminologia, utilizada pelos campos teórico-conceituais da
representação documentária, onde a indexação das palavras funciona como rótulos – a
partir de uma visão estática e normalizadora dos termos - aplicados à análise dos
documentos.37
A indexação se associa a rede conceitual de uma área especifica do conhecimento,
sendo que os termos que representam estes conceitos constituem o vocabulário utilizado na
indexação ou na linguagem documental específica. As LDs, então, realizam uma adaptação
dos assuntos contidos e identificados nos documentos à classificação temática presente nas
tabelas de classificação, nas listas de cabeçalhos ou nos tesauros.38
Dentre os vários tipos existentes, segundo Maria Célia Amaral,39 “podemos
classificá-las em dois grupos: as pré-coordenadas, que combinam ou coordenam os termos
no momento da indexação, como por exemplo, os sistemas de classificação CDD
(Classificação Decimal Dewey), CDU (Classificação Decimal Universal), LC (Library of
Congress), de Ranganathan, que são considerados as mais antigas linguagens
documentárias. Abrangem todas as áreas do conhecimento e, representam os conceitos
através de notações compostas de números, letras ou a mistura de ambos”, como os
sistemas CDD ou CDU, ou alfabéticas, como os cabeçalhos de assunto ou os tesauros.40
As LDs têm a função, de ordenar a informação. Segundo a autora,41 as listas de
cabeçalhos de assunto, também fazem parte das linguagens pré-coordenadas, “são listas
gerais que arrolam termos de todas as áreas do conhecimento, alfabeticamente organizadas,
com sinais como o traço, a vírgula e o parêntese para estruturar os cabeçalhos indiretos.
Apresentam sinais de relação entre os cabeçalhos. No Brasil, as mais conhecidas são a
Library of Congress Subject Headings” e a “Sears List of Subject Headings.”
Amaral também cita “as linguagens de indexação pós-coordenadas que combinam
ou coordenam os termos no momento da busca. As mais conhecidas são o sistema
Unitermo, criado por Mortimer Taube em 1953, e os tesauros, que se baseiam nas
classificações facetadas, apresentam relações de equivalência, hierárquicas (gênero/espécie;
37
KRIEGER, Maria da Graça. Terminologia Revisitada. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 16, n. 2, p. 52.
CINTRA, Anna Maria Marques et al. Op. Cit., p. 30-34.
39
AMARAL, Maria Célia. Lista de Assuntos FFLCH/ USP (relato de experiência ad elaboração). Disponível
no: http://www.ufpe.br/snbu/docs/90.a.pdf. Acessado em 10 de agosto de 2004. p. 2.
40
VAN DER LAAN, Regina Helena; FERREIRA, Gloria Isabel Sattamini. Tesauros e Terminologia.
Disponível no: http://www.biblioestudantes.hpg.ig.com.br/texto_104.pdf. Acessado em 20 de agosto de 2004.
41
AMARAL, Maria Célia. Op. Cit., p. 2.
38
22
coisa/tipo), relações parte/todo, poli-hierárquicas, relações associativas e/ou nãohierárquicas. Possuem sinais para indicar a função dos descritores, como por exemplo: TG
(BT) = termo geral; TE (NT) = termo específico.”42
A elaboração desses instrumentos, segundo a autora,43 tem o objetivo de padronizar
a linguagem para evitar ambigüidades na comunicação documentária. Para tanto, essa
sistematização, como já foi dito, exige a utilização de técnicas combinadas de
documentação e de terminologia com o objetivo de se obter representações semelhantes de
um mesmo documento, o qual, ao ser submetido a diferentes analistas, não abrirá margens a
diferentes interpretações. É preciso lembrar que uma linguagem controlada depende da
normalização das palavras que a compõe, este cuidado garante a univocidade de
compreensão das palavras utilizadas para a indexação e para a busca.
Pensar sobre a LDs requer, portanto, um aprofundamento da idéia do que significa
construir um vocabulário com palavras precisas e que possua regras bem definidas. A
sistematização da linguagem se constitui em um dos instrumentos mais eficientes para
evitar a dispersão de significados.
Esses são alguns dos aspectos nos quais reside a importância das LDs construídas e
utilizadas para o tratamento das informações. Além disso, face o caos surgido a partir da
explosão de produção da informação, ocorre a necessidade, constante, de atualização das
LDs devido às mudanças constantes na LN e nas áreas de especialidades.
A compreensão desse aspecto pontua a historicidade das LDs, onde os propósitos de
garantir a univocidade das palavras alicerçam significados e perpetuam idéias que podem
sucumbir ao tempo. O aparecimento de novas questões que ainda não haviam se
manifestado, do ponto de vista histórico-social, dão origem a novas compreensões das
palavras, ou até mesmo dão origem a novas palavras, que tomam conta da linguagem.
Uma vez que esse trabalho de estruturação do novo termo não seja realizado com
competência, há o risco das LDs se tornarem instrumentos datados e que inviabilizam a
comunicação do sistema de informação com os clientes. Esse aspecto tem desafiado a
compreensão dos teóricos da área, visto que o período contemporâneo depende bastante dos
sistemas de organização do conhecimento.
42
43
Idem, p. 3.
Ibidem.
23
2.3 Histórico das Linguagens Documentárias
É preciso traçar um roteiro das LDs que tiveram seus nomes associados a Melvil
Dewey e Charles Cutter, assim como de outras que surgiram para compensar as
insuficiências das primeiras. Não se trata de um detalhamento sobre o debate dos sistemas
de classificação, mas de focalizar as linguagens mais abordadas nas etapas posteriores
dessa reflexão. Esse levantamento ajudará a entender como os sistemas de classificação
foram constituídos e como eles funcionam. Na verdade se tratam de diferentes propostas
esboçadas na forma de LDs, diante da riqueza de significados da LN.
Em 1873, Melvil Dewey criou um sistema de classificação inspirado no modelo
filosófico criado por Harris que se baseava no raciocínio de que o homem, enquanto animal
racional, apoiava-se primeiramente na razão (Filosofia); elevando seu pensamento a Deus
(Religião); vivia em sociedade (Sociologia); comunicava-se com outros homens
(Filologia); adquiria conhecimentos (Ciências puras); fazia uso desses conhecimentos
(Ciências aplicadas); possuia meios de fazer criações de formas estéticas (Belas Artes),
aplicadas também à escrita (Literatura); fazia registros temporais e espaciais (História e
Geografia). Nesse sistema, as Obras Gerais reuniam todos esses assuntos e os
encabeçavam44
Durante seis meses, Dewey aplicou-se intensamente aos estudos conseguindo ao
final chegar a uma decisão sobre qual seria a melhor forma de classificação do
conhecimento. Em 1876, sob autoria anônima, apareceu a primeira edição da Classificação
Decimal sob o título “a classification and subjects index for cataloging and arranging the
books and pamphlets of a library”45. A partir dessa data as edições começaram a ser
publicadas. Somente após a décima sexta edição é que o nome do autor apareceu no título,
especificamente como Classificação Decimal Dewey.
Esse sistema é hierárquico e aplica o princípio decimal à subdivisão dos
conhecimentos acumulados. Na divisão sucessiva do conhecimento, cada grupo – desde o
mais amplo até o mais restrito – divide-se sobre uma base de dez dígitos. A primeira
divisão se dá a partir de dez “Classes Principais”, as quais englobam, ou pelo menos tinha a
44
LENTINO, Noêmia. Guia teórico, prático e comparado dos principais sistemas de classificação
bibliográfica. São Paulo: Polígono, 1971. p. 59-60.
45
Idem, p. 58.
24
pretensão de englobar todo o conhecimento e o trabalho intelectual humano. A classe 000
(zero) é reservada para as obras gerais. Enquanto as classe de 100 a 900 representam, cada
qual, uma disciplina no seu sentido mais amplo: 100 – filosofia; 200 – Religião; 300 –
Ciências Sociais; 400 – Línguas; 500 – Ciências Puras; 600 – Ciências Aplicadas; 700 –
Belas Artes; 800 – Literatura; 900 – Geografia e História.
Na prática, como podemos observar, essa notação contém no mínimo três números.
Nesse caso, acrescenta-se zeros quando é necessário completar um número até que alcance
os três dígitos estabelecidos pelo sistema.46 Cada “Classe Principal” contém dez “Divisões”,
numeradas também do 0 ao 9. Esses números, indicadores das divisões, ocupam a segunda
posição dentro da notação. Cada divisão, por sua vez, subdivide-se em dez “Seções”. Os
números das seções ocupam a terceira posição. O sistema permite prosseguir na subdivisão
até o grau desejado.
A Classificação Decimal Dewey pode ser definida como um sistema simples,
flexível e mnemônico,47 o qual facilitava o desenvolvimento da classificação. Por esses
fatores, o sistema foi aceito rapidamente e penetrou nos diversos campos do conhecimento,
por ser considerado simples por causa da sua notação que permitiria uma larga ampliação e,
acreditava-se, um fácil entendimento pelos usuários. Além do fato de que a linguagem
numérica era composta de sinais de domínio universal, assim ela representaria um fator de
democratização da linguagem e do conhecimento para o público.
Em 1895, a entidade precursora da atual Federação Internacional de Documentação
(FID) chegou a um acordo com Melvil Dewey, adotando a classificação decimal como base
para o índice internacional de assuntos. Esse fato deu origem à chamada Classificação de
Bruxelas - traduzida para muitas línguas - e conhecida atualmente como Classificação
Decimal Universal (CDU). No decorrer dos anos surgiram muitas diferenças entre a CDD e
a CDU, em parte devido às exigências cada vez mais complexas relacionadas à
classificação bibliográfica.
A Classificação Decimal Universal, portanto, foi um desdobramento da
Classificação Decimal Dewey. Essa história tem início quando ocorre a “Conferência
Internacional de Bibliografia”, na qual nasceram duas organizações: o “Instituto
46
47
Idem, p.61-3.
Idem, p. 60.
25
Internacional de Bibliografia” e o “Repertório Bibliográfico Universal” (R.B.U.), cujo
plano de trabalho desta última se referia a elaboração de um grande levantamento
bibliográfico feito em cooperação.48
A organização dessas bases ficou à cargo do advogado Paul Otlet, também
conhecido como “Pai da documentação” , Henry La Fontaine e, posteriormente, Fritz
Donker Duyvis. Para a realização desse projeto foi adotada a CDD, pois ela foi considerada
a ferramenta mais adequada para a compilação de uma bibliografia universal. Uma
ferramenta que abrangia todos os assuntos, todas as línguas e todos os períodos da história
da humanidade. O Instituto Internacional de Bibliografia foi instalado no “Palais Mondial”
em Bruxelas e por esse motivo, durante muito tempo, a CDU ficou conhecida por
“Classificação de Bruxelas”.49
Por esses motivos, a CDU possui similaridades com a CDD, tais como a divisão em
dez classes, porém ela também possui aspectos que lhe são específicos, como: não pode ser
considerada uma classificação filosófica dos conhecimentos, pois é um sistema
essencialmente prático para a codificação numérica da informação e tem o objetivo de
facilitar sua localização; sua estrutura também possui um aparelhamento de sinais que
amplia seu poder de detalhamento do assunto.50
Se por um lado ocorreu o processo de desenvolvimento de dois sistemas de
classificação, cuja fundamentação, dada por Melvil Dewey, alimentou o relacionamento
entre ambos. Por outro ocorreu o desenvolvimento de outro sistema, diferente dos que
foram apresentados e que também se tornou muito conhecido. Em princípio, Herbert
Puttnam quis adotar a CDD, modificando-a, se fosse necessário, para adequar a coleção da
“Library of Congress”, fato com o qual Melvil Dewey não concordou. Então outro nome
foi consultado, Charles Cutter, que teve seu sistema de “classificação expansiva” adotado
pela LC com as referidas modificações.51
A “Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos”, ou simplesmente LC, foi criada
no ano de 1800. No início o tamanho dos livros definia a ordenação que os mesmos teriam,
48
Idem, p. 209-210.
Idem, p. 10.
50
Idem, p. 211-212.
51
Ver: KAULA, Prithvi N. Repensando os Conceitos no Estudo da Classificação. Disponível no:
http://www.conexaorio.com/biti/kaula/. Acessado em 06 de novembro de 2004.
49
26
porém em 1812 a divisão já era feita em doze classes baseadas nas classificações do autor
Francis Bacon, com a adaptação de filósofos do Iluminismo (como Diderot e
D’Alembert).52 Esse sistema era usado pela “Benjamim Franklin’s Library Company of
Filadelphia” e foi mantido após o incêndio ocorrido em 1814.
O ano de 1887 foi marcado pela construção de um edifício para a Biblioteca do
Congresso, o qual foi inaugurado em 1897 quando a coleção alcançou o número de um
milhão de volumes. Nessa fase, já era evidente que a classificação em uso não era a mais
adequada. O diretor da entidade, John Russel Young, propôs que os chefes da catalogação e
da classificação, James Hanson e Charles Martel, estudassem a possibilidade de um novo
sistema de classificação. A conclusão foi de que a construção de um novo sistema seria a
solução mais adequada. Esse trabalho foi realizado por vários especialistas e classificadores
que, individualmente ou em grupo, prepararam separadamente cada classe, cujos princípios
foram inspirados na “Classificação Expansiva de Cutter”.53
Foi feito um esquema de cada classe – cuja extensão dependia do tamanho do
acervo da Biblioteca do Congresso – e que foi se modificando e se expandindo conforme as
necessidades da coleção. O sistema de classificação da Biblioteca do Congresso é utilitário
e não possui base filosófica, é alfa-numérico, sendo que a notação da classificação é mista,
constituída por letras maiúsculas, algarismos arábicos de 1 a 9999, na ordem aritmética, e
um sinal gráfico: o ponto. Esta parte da notação é chamada de “Números-de-Cutter”.
No sistema de classificação da Biblioteca do Congresso, o conhecimento está
dividido em 20 classes, indicadas por letras maiúsculas, assim distribuídas: A - Obras
Gerais; B – Filosofia e Religião; C – História e Ciências Auxiliares; D – História Universal;
E-F – História e Geografia da América; G – Geografia, Antropologia, Folclore etc; H –
Ciências Sociais; J – Ciência Política; K – Direito; L – Educação; M – Música; N – Belas
Artes; P – Filologia e Literatura; Q – Ciência; R – Medicina; S – Agricultura; T –
Tecnologia; U – Ciência Militar; V – Ciência Naval; Z – Bibliografia e Biblioteconomia.
As letras I, O, W, X Y que ainda não foram utilizadas, tratam-se de letras vagas que podem
representar futuras expansões, subdividindo-se de maneira alfabética ou decimal.54
52
PIEDADE, M.A. Requião. Introdução à Teoria da Classificação. Rio de Janeiro: Interciência, 1983.
p. 153.
53
Ibidem.
54
Idem, p. 155-157.
27
Essa característica faz com que o sistema continue em permanente expansão, tarefa
que é desenvolvida pelos classificadores da LC, os quais também se encarregam de
atualizar a LCSH - “Library of Congress Subject Headings” -, uma lista de cabeçalho de
assuntos que atende a organização da coleção da LC, assim à medida que os temas novos
aparecem, eles vão sendo adequados. Essas atualizações podem ser sobre tópicos que ainda
não haviam sido tratados, ou que, com as mudanças de contexto histórico, por exemplo,
receberam denominações diferentes.55
A CDD possui uma organização diferente da LC, ela pressupõe que qualquer área
do conhecimento pode ser subdividida em classes sucessivas. Essa forma de organização do
conhecimento toma por modelo a “Árvore de Porfírio”, onde cada classe possui uma
subclasse mais específica do que a anterior. Esse modelo alicerça-se no relacionamento
gênero/ espécie.56 Desta forma, esse sistema de classificação emprega propostas de
tratamento da informação que partiam do geral para o específico, dividindo o conhecimento
a partir de suas características.
Através de investigações, o bibliotecário Shiyali Ramanrita Ranganathan e o
“Classification Research Group” demonstraram que as subdivisões também podiam
originar-se de diferentes tipos de relacionamento: gênero/ espécie; todo/ parte; propriedade/
possuidor; ação/ paciente ou agente. Tal constatação alimentou a necessidade de criar
outros sistemas de classificação que permitissem combinar relações variadas. Nesse caso,
os sistemas de classificação não podiam seguir apenas os predicáveis de Porfírio.
Foi assim que surgiu um novo tipo de classificação bibliográfica, idealizado por
Ranganathan, que ficou conhecido pelos nomes de: Classificação em Facetas; Classificação
Facetada; ou Classificação Analítico-sintética. Esse autor elaborou o único sistema de
classificação facetado geral, chamado “Colon Classification”.57 Porém, existem vários
sistemas de classificação seguindo esta técnica e que foram elaborados por membros do
“Classification Research Group”
Estes sistemas são constituídos de listas de termos representando conceitos
denominados facetas, os quais podem ser combinados no ato de classificar para traduzir o
tema dos documentos. A primeira etapa na elaboração de um sistema de classificação
55
KAULA, Prithvi N. Op. Cit.
PIEDADE, M.A. Requião. Op. Cit., p. 78.
57
Idem, p. 79-81.
56
28
especializado é definir e delimitar os assuntos centrais ou assuntos do núcleo (core
subjects) e determinar os assuntos marginais (fringe subjects). Os assuntos centrais são
aqueles relacionados com o tema da classificação, enquanto os assuntos marginais são os
temas de outras disciplinas que interessam àqueles que estudam os assuntos centrais. Após
o estabelecimento das facetas, é realizada a ordenação. As classificações facetadas
estabelecem a ordem de apresentação dos conceitos, assim como determinam a ordem de
citação e de intercalação dos documentos e de entrada no sistema de classificação.
Outro sistema de classificação que segue essa proposta se refere ao Thesaurus. Essa
palavra vem do latim e foi empregada pela primeira vez por um inglês, Peter Mark Roget,
em 1832. Este estudioso publicou o English Thesaurus of Words and Phrases, o qual reunia
palavras pela ordem alfabética, de acordo com as "idéias que exprimiam seu significado".58
Entre os documentalistas, este termo começa a ser utilizado nos anos cinqüenta.59
Tecnicamente, um tesauro reúne palavras escolhidas, destinadas à indexação e recuperação
de documentos e dados num determinado campo de saber. Não é dicionário, nem
vocabulário controlado. Trata-se de um instrumento que garante aos documentalistas e
pesquisadores a padronização da LD.
Segundo Chaumier, em um tesauro cada palavra é um conceito. Sendo assim,
tornam-se "termos", ou "descritores".60 Nele, todos os termos estão relacionados entre si;
nenhum termo pode figurar no tesauro sem estar relacionado a algum outro, sendo essa
relação determinada pelo seu significado. Assim, além do seu efeito organizador, ele tem
também um efeito didático, não apenas ao utilizar conceitos específicos da área do
conhecimento que contempla, como ao relacionar termos que têm entre si conexões pouco
evidentes para o leigo.
No começo do século XXI, a sistematização presente nas LDs levanta novos
problemas, agora relacionados ao poder que se esconde sob a aura do saber. Nele, as
palavras organizam o conhecimento, mas submetem a vida humana. Trata-se de uma
sistematização
do
saber
no
qual
a
linguagem
sofre
restrições,
tornando-se
institucionalmente aceita como verdadeira ou autorizada.
58
CHAUMIER, Jacques. As Técnicas Documentais. Mem Martins, Lisboa, Porto, Faro, Queluz: EuropaAmérica Ltda. p. 65-6.
59
SMIT, Johanna. O que é Documentação. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 52.
60
CHAUMIER, Jacques, Op. Cit., p. 70-1.
29
2.4 As implicações ideológicas das palavras e termos que sedimentam as Linguagens
As palavras que sedimentam as linguagens, tanto a Natural quanto a Documentária,
ocupam um lugar estratégico quando refletimos sobre o processo ideológico. É preciso
compreender o impacto da linguagem sobre as diversas esferas da sociedade. Essa
necessidade se esboça na medida em que buscarmos compreender como a sistematização
das palavras atinge a autonomia do indivíduo. A linguagem verbal institucionaliza, reitera
ou reinventa palavras. Em cada período histórico, a depender das condições sócio-culturais
onde circulam, algumas palavras adquirem significados que ninguém ousa questionar. São
palavras que parecem ter o poder de condensar em si os sentidos da vida humana.
Sob esse aspecto, o ser humano é falado antes de falar, e sua entrada no mundo das
palavras é a entrada em um sistema que o remete a redes de significados determinados
previamente. O ser se constitui na crença tanto de que possui o domínio da linguagem
verbal quanto da ilusão de que o sentido prévio das palavras já existe enquanto tal.61
Compreendida enquanto efeito da ligação entre o ser humano e a linguagem, a ideologia
não se manifesta para a consciência, mas está em todas as manifestações da vida.
O senso comum que as pessoas produzem acerca das palavras gera ideologias,62
cujo processo de cristalização se dá a partir de tradições e costumes existentes em
determinada sociedade ou setores sociais, sendo transmitida através dos códigos que
sedimentam as linguagens. O ser humano trabalha com esses códigos para se comunicar.
Estes códigos produzem acordos que propiciam os entendimentos no campo da
comunicação, cuja validade está nas representações imaginárias que os seres constituem
face às suas condições materiais de existência, representações que vão se naturalizando.
Trata-se de um processo circunscrito aos processos de produção dos sentidos inerentes às
formações discursivas e que garantem um efeito de literalidade para essas representações.63
A ideologia se instala nos processos de constituição e de assujeitamento do ser
humano à linguagem, ou, mais precisamente, na identificação do sujeito à formação
61
BACCEGA, Maria Aparecida. Op. Cit., p. 34.
CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980. p. 25.
63
Ibidem.
62
30
discursiva na qual ele se constitui.64 Linguagem e ideologia estão intimamente relacionadas,
de tal forma que a linguagem representa o principal forma de expressão da ideologia, que,
por sua vez, se reitera nas palavras e se reproduz na linguagem.
Ao se refletir sobre a linguagem para buscar por seus valores ideológicos, a análise
revela que se trata de um conjunto de referências políticas e sociais próprias da tradição
cultural na qual se constituiu. A reflexão procura desvendar as convenções que conferem a
linguagem a sua função na sistematização do conhecimento, tentando demonstrar que há
um ordenamento que institucionaliza a linguagem, conferindo-lhe uma determinada
configuração: uma norma pela qual se atribui um significado e uma ordenação ao universo
caótico das palavras. Um processo de atribuição de sentido que implica numa convenção
sobre a produção das instituições, entre as quais estão os saberes acumulados. 65
Os saberes se referem a produtos do homem, integrante de um grupo social, e
também estão inseridos no processo histórico. Aqui é interessante levantar o problema da
fragmentação, característica da sociedade moderna, onde a vida humana passa a ser
representada através de mecanismos que constrangem as pessoas a se submeterem ao saber
do especialista.66 O vocabulário utilizado pelos grupos seletos de pensadores, devido aos
meios de comunicação que veiculam suas terminologias, acaba confundindo mais ao leigo
do que o auxiliando a compreender os termos divulgados.
O interesse pela organização do saber teve origem com o aumento da produção dos
cientistas dos séculos XVIII e XIX, basicamente por causa da proliferação de conceitos, de
novas áreas de especialização, tudo advindo do desenvolvimento científico.67 Esse sistema
de representação do saber, ao submeter todas as esferas sociais às suas regras, transforma
termos em instrumentos que regulam a vida humana.
Trata-se de evocar a reflexão de Marilena Chauí sobre o “saber competente”:68 um
saber no qual a linguagem sofre restrições, tornando-se institucionalmente aceita como
verdadeira ou autorizada. Essa institucionalização manifesta um procedimento ideológico,
64
Idem, p. 35.
GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. São Paulo: Cículo do Livro, s.d.
p. 116-7.
66
CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Moderna,
1981, p.11-2
67
CABRÉ, Maria Teresa. La Terminologia: teoria, metodologia, aplicaciones. Barcelona: Antardida/
Empuries, 1993 apud: VAN DER LAAN, Regina Helena; FERREIRA, Gloria Isabel Sattamini. Op.
Cit., p. 4
68
Ibidem.
65
31
através do qual o poder e o saber encontram uma forma de articulação. Essa linguagem se
torna ideológica quando se recusa a ser reflexiva. Dito de outro modo, quando não se vê
como resultante de um processo histórico. Essa proposição recupera a importância da
organização do saber, enfatizando pontos como o domínio de uma linguagem
sistematizada, assim como a contextualização histórica da origem dessa sistematização.
Essa característica pode ser apontada na classificação, “na divisão e na delimitação
da apreensão social, ou seja, no conhecimento e nas representações do saber. A maneira de
se perceber o real não pode ser considerada neutra, assim como suas representações
também não”.69 Elas se transformam em instrumentos de poder e dominação porque tentam
impor sua visão de mundo e seus valores. As ferramentas para classificar não escaparam a
essa lógica, pois também são as representações construídas pelos homens que vivem em
sociedade.
Na descrição do conteúdo de um livro ou documento são utilizadas palavras que
condensam o assunto e o identificam com o objetivo de facilitar a recuperação e a
transferência do saber. Estas palavras são representações de representações. São
condensadas em classificações documentárias que, além de serem utilizadas na arrumação
de documentos e livros em arquivos e estantes, pretendem organizar o saber nelas
reproduzido.
No século XVIII, os estudos dedicados ao homem e à natureza, através da
experimentação e da dedução, promoveram o progresso das ciências. Esse contexto dá
origem, ao Movimento Iluminista que propõe determinar os campos do pensamento. O
Iluminismo propicia a especialização das ciências que culminam em uma acelerada
produção de conhecimentos.
Os sistemas tradicionais de classificação tiveram origem com o sistema criado por
Melvil Dewey, cujo pensamento sofreu influência tanto do Iluminismo, visto que os
esquemas de classificação se basearam na proposta idealizada por Jean d'Alembert e
Diderot para organizar a informação da Encyclopédie, quanto do positivismo, doutrina
filosófico-científica que pregava a capacidade humana de perceber a estrutura do
69
MORAES, Alice Ferry de; ARCELLO, Etelvina Nunes. O Conhecimento e sua Representação.
Disponível no: http://www.informacaoesociedade.ufpb.br/1020004.pdf. Acessado em 21 ago. 2004.
32
conhecimento, reforçando assim a hegemonia das tabelas classificatórias.70 Elas buscavam
representar o conhecimento segundo normas que refletissem a crença na rigidez e na
imutabilidade da ciência, além de encarnarem a eternidade, neutralidade e universalidade
do saber.
No decorrer dos séculos XIX e XX essa pretensão foi colocada de lado pelos
pensadores. O rigor semântico da linguagem científica não era capaz de apreender a
essência do real, uma vez que se reconheceu como as práticas sociais, políticas e
discursivas refletiam ou camuflavam a realidade. A linguagem utilizada nos sistemas de
representação científica estava longe de ser neutra, ela enfocava mais a legitimação de um
padrão cultural, e principalmente, o domínio de uma ideologia que justificava os valores de
uma classe social.71 Além disso, foi preciso reconhecer que qualquer linguagem era uma
forma de poder e de dominação e que as LDs não eram uma exceção à essa regra.
Elas
exerceram
um
poder
uniformizador
que
eliminava
as
diferenças
desagregadoras, que garantiam a ordenação e a organização da produção literária,
especialmente a científica. Essa propriedade de controle foi o sustentáculo de identidades,
do poder de ordenação e de classificação, e foi, sobretudo, o canal de expressão da
ideologia que a ciência representava.
Com o passar dos anos, os sistemas de classificação tradicionais geraram
insatisfação, visto sua inflexibilidade, sua insuficiência estrutural, ou mesmo sua
incapacidade em não reconhecer a diversidade de saberes advindos da pluralidade
humana.72 Esses sistemas se defrontaram com questões pautadas pela idéia de que somente
se consegue trabalhar com o universo do conhecimento quando se admite o relativismo do
saber, ou seja, que não existe um conhecimento humano absoluto, tudo é relativo face à
pluralidade de leituras possíveis.
Na contemporaneidade se admite a inexistência de uma teoria da representação que
dê conta da totalidade, visto a possibilidade de se efetivarem várias leituras do mundo.
Assim, tudo, categoricamente, é relativo.73 É possível refletir a partir de determinações de
saberes locais e contra a universalização auferida pela proposta Iluminista/positivista do
70
CAMPOS.Astério Tavares. Linguagens documentárias. Revista de Biblioteconomia de Brasília. v. 14,
no.1, p. 85-8, jan./jun. 1986. apud: MORAES, Alice Ferry de; ARCELLO, Etelvina Nunes. Op. Cit., p. 09.
71
SAYÃO, Fernando. Op. Cit., p. 314-8.
72
MORAES, Alice Ferry de; ARCELLO, Etelvina Nunes. Op. Cit.. p. 9.
73
Idem, p 9-10.
33
saber. Segundo a perspectiva relativista, é impossível haver uma linguagem que transcenda
localidades e a temporalidade. Desta forma, assumiram destaque: a análise da produção do
sentido e da construção de significação a partir dos contextos étnicos, sociais e históricos.
Atualmente, no campo das chamadas LDs, verifica-se o fenômeno generalizado de
rejeição dos tradicionais sistemas de classificação. A crise, contudo, não se dá apenas por
serem linguagens estruturadas. As listas de cabeçalhos, elaboradas sem estruturas, também
não são satisfatórias para a recuperação e organização da informação. A atualização de
tabelas busca soluções, mas o ritmo de sua confecção e distribuição é muito lento.
O próprio sistema de classificação de Ranganathan, considerado o mais flexível, por
usar facetas e trabalhar com representação em nível das idéias, no plano verbal e no plano
notacional, apresenta problemas de uso. Nele se observam influências culturais e
ideológicas na listagem dos grandes assuntos representados por letras, no privilégio das
ciências exatas em restrição das ciências sociais e no uso do símbolo religioso na Índia, o
delta. Os tesauros, do mesmo modo, possuem influências históricas, ideológicas e culturais
nas relações entre os termos, nas notas de escopos (NE) ou nos termos substitutivos (UP), e
além do impacto da linguagem científica.74
O problema das classificações, listas, tesauros, da linguagem documentária em
geral, está em suas bases epistemológicas. Na contemporaneidade, porém, é preciso aceitar
a possibilidade de representações distintas, viabilizadas por códigos específicos (e
diferenciados em razão da dinâmica sócio-histórica), colocando de lado o determinismo
universal para dar enfoque à representação contextualizada, originada em diferentes
segmentos da sociedade.75 Parte-se do princípio da organização do saber é relativa e atende
a necessidades limitadas pelo contexto.
Essa perspectiva leva em consideração que o homem quando nasce já está dentro de
uma realidade que lhe é dada. Tudo é determinado pelas relações sociais que constroem
totalidades. No mundo atual, essa estabilidade está cada vez mais provisória e aberta a
contestação. A padronização do vocabulário contrapõe-se à dinâmica da língua e da
circulação da informação. No começo do século XXI, as palavras circulam nervosamente
74
75
Idem, p. 10.
Ibidem.
34
por diferentes meios, nutrindo indagações que se direcionam às diferentes áreas
especializadas na representação do saber.
O relativismo esboçou a idéia de que o entendimento das palavras e dos termos
depende dos diferentes contextos. Os estudo histórico da representação de segmentos
sociais específicos pode aventar questões tais como: até que ponto os membros dos
chamados grupos minoritários – como aqueles pertencentes à comunidade GLBT – foram,
ou não, representados pelas palavras que veicularam no decorrer do tempo? Ou como o
significado presente nessas palavras se constituía dentro do sistema de relações sociais,
políticas e culturais? Essa preocupação reconhece o caráter dinâmico e relativo das
palavras, assim como de seus significados, que foram construídos e, depois, desconstruídos
quando se reflete sobre a sistematização das linguagens.
35
3 Uma história dos termos sobre sexo e gênero
O entendimento da historicidade das categorias GLBT, através do estudo de
vocabulários
específicos,
ajuda
a
compreender
as
práticas
culturais
que
se
institucionalizaram a esse respeito no decorrer do tempo. O foco principal recai sobre as
experiências masculinas (homens ou rapazes) e sobre suas redes sociais, em diferentes
momentos da história, devido à multiplicidade de fontes e estudos. A quantidade de
informação ajuda a contextualizar palavras ligadas a momentos distintos da história. É
possível recuperar sistematizações elaboradas desde o período pré-moderno até a produção
literária e científica do século XIX.
No caso das mulheres, o silêncio das fontes só se justifica porque as relações
afetivas entre mulheres não faziam com que fossem percebidas como um grupo social
distinto. Por esse motivo, no decorrer da história, os seus relacionamentos foram ignorados:
tanto no campo legal quanto no eclesiástico.76 Somente após o advento da Idade
Contemporânea as mulheres começaram a ser percebidas como um grupo social distinto,
por isso foram criadas as idéias - apoiadas no saber médico - que bipolarizaram o
tratamento histórico da questão de gênero.
Essa percepção binária, contudo, colocou limites à percepção sócio-histórica que
escondeu experiências humanas referentes à bissexualidade e a “transgeneridade”. No caso
desta última, durante o século XIX, essa sistematização produziu sua invisibilidade, onde
os casos, vistos à luz da medicina, foram tratados como uma variante do
“homossexualismo”. A história do grupo – e de seus temas específicos - desapareceu sob as
categorias de sexo e de orientação sexual. As pessoas que cruzavam a fronteira do gênero,
assumindo a aparência do outro, eram vistas como “raridades”.
A recuperação desta trajetória é fundamental para avaliar como diferentes
sociedades assimilaram ou oprimiram as manifestações da diversidade humana. Para tanto,
é preciso observar quais as relações institucionais foram construídas e como essas se
relacionavam com a pluralidade humana. Aspectos que vistos sob a perspectiva histórica,
podem esclarecer a importância de se compreender a origem e a contextualização das
76
BROWN, Judith C. Brown. Immodest Acts: the life of a lesbian nun in Renaissance Italy. Oxford
University Press, 1986.
36
palavras, assim como o entendimento da sua relação com as diferentes instituições sociais,
políticas e culturais através do tempo.
3.1 Sexo e gênero na antigüidade, palavras à guisa da compreensão da diversidade
Caminhando em meio à natureza, os homens da Idade Antiga reconheceram a
diversidade, a identificaram, nomearam e construíram explicações para a pluralidade de
experiências possíveis ao ser humano. Para fazê-lo, as primeiras civilizações recorreram a
eventos mitológicos para contar as origens das manifestações da “natureza”, externa e
interna da espécie humana. Os feitos de deuses, de heróis e as lendas fabulosas,
compuseram o elenco de mitos que - segundo Didier Anzieu77 - eram a transcrição dos ritos
mais antigos, cujas práticas aconteceram durante séculos, e sustentavam as instituições dos
povos da antiguidade.
Os códigos produzidos através das narrativas mitológicas, das primeiras
civilizações, ainda se relacionavam com os fenômenos da natureza: não no sentido de
dominá-la, mas de compreendê-la a partir de sua diversidade. É possível enumerar épicos
que contam aventuras de heróis, que são companheiros devotados, e que podem ser
considerados como arquétipos de casais da Antigüidade Oriental. As instituições religiosas,
associadas aos mitos de deuses e heróis, contam com sacerdotes e sacerdotisas que se
relacionam ou entre si, ou com os deuses, ou com os fiéis.
A maior parte das fontes históricas, referentes às culturas da Antigüidade Oriental, é
composta por textos que, tradicionalmente, não estão no papel, mas em suportes como
papiro, argila ou blocos de pedra, e em uma parcela de material artístico. Em alguns casos,
a parte escrita é tão pequena que os comentários possíveis se restringem à própria narrativa,
sendo que pouco pode ser dito sobre a sociedade que os produziu.
Nessa categoria, estão as dados provenientes da Mesopotâmia e do Egito. No caso
da Mesopotâmia, o número de fontes relevantes é considerado pequeno, quando se pensa na
extensão da história de uma civilização com 4000 anos de idade. Essa situação é similar a
da civilização egípcia, tão perene em temporalidade quanto à Mesopotâmia. 78
77
ANZIEU, Didier. Edipe avant le complexe. Les Temps Modernes, vol 22, no 245, oct. 1966, p. 675-715.
apud: D’EAUBONNE, Françoise. Éros Minoritaire. Paris: André Balland, 1970. p. 25.
78
LEWINSOHN, Richard. História da Vida Sexual. Lisboa: Livros do Brasil. p. 32-36.
37
O único povo da Antigüidade Oriental que possui dados suficientes para a
contextualização de seus costumes e cujos elementos compõem um dos braços culturais da
sociedade ocidental contemporânea, são os judeus. O Velho Testamento bíblico conta a
história de um pequeno povo que tinha de conviver com os rigores do deserto. Uma região
que exigia um rígido estatuto disciplinar, cuja justificativa estava na sobrevivência dessa
nação face às demais civilizações da Antigüidade Oriental. Nesse caso, desperdiçar o
sêmen implicava em diminuir as possibilidades desse povo continuar a existir. Os antigos
judeus, então, eram incitados a crescer e se multiplicar, procriar e encher a Terra, assim o
sêmen só podia ser depositado no útero das mulheres.
A religião hebraica traçou um código sagrado para os hebreus (porque não dizer um
estatuto disciplinar), o qual funcionava sobre um sistema de oposições, onde a ordem era
considerada pura e a desordem impura. Nessa organização, objetos como peças ou
vestuários foram separadas por gênero, definindo-se que a mulher não usaria o que fosse do
homem e nem o homem o que fosse da mulher. Como ocupavam a Ásia Menor, tiveram
contato com os mesopotâmicos e os egípcios em diferentes épocas.79 Durante esses
períodos, eles rejeitaram a cultura dos povos vizinhos - se mantendo fechados a qualquer
influência -, almejando estabelecer a própria independência cultural enquanto nação.
Esses códigos sagrados atravessaram o tempo, sendo recuperados com o nascimento
de outras religiões que reiteraram seus aspectos disciplinares. Essa aproximação ajuda a
compreender como os tabus em torno do corpo, das vestimentas e dos relacionamentos
entre as pessoas foram sendo construídos, permanecendo vivos, no decorrer da história, e
alimentando a força dos argumentos fundamentalistas, existentes em determinados
segmentos religiosos, até os dias de hoje.
Ao se comparar a quantidade de fontes provenientes das civilizações da Antigüidade
Oriental com as da Antigüidade Clássica, observa-se uma visível desproporção em relação
à quantidade de informações. Essa riqueza de dados viabiliza uma compreensão mais
aprofundada das instituições, dos costumes e práticas que os gregos e os romanos
desenvolveram. Os primeiros conhecimentos são dados pelos poemas épicos e pela
mitologia. Essas fontes ajudam a compreender as representações que os gregos produziram
acerca da complexidade da alma humana.
79
SPENCER, Colin. Homossexualidade: Uma história. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 32-36.
38
Nesse sentido, a mitologia grega possui um personagem no tocante à transposição
de gêneros: trata-se da história de Tirésias. Ao atingir a época das provas de caráter
iniciático, Tirésias escalou o monte Citerão e viu duas serpentes que se acoplavam. O
jovem grego as separou, matando a serpente fêmea. O resultado dessa intervenção foi a
transformação do jovem em mulher. Sete anos mais tarde, subiu ao mesmo monte e
encontrou outro casal de serpentes, as separou novamente, mas desta vez matou a serpente
macho, recuperando então a forma masculina.
Como Tirésias possuía a experiência de ser homem e ter sido mulher, foi chamado
no Olimpo para arbitrar sobre uma controvérsia levantada entre Zeus e Hera. A discussão
versava sobre quem teria maior prazer durante o intercurso sexual. Tirésias, ao responder
sem hesitar que era a mulher, despertou a ira de Hera que implacavelmente o cegou. A
deusa julgou que ele tinha denunciado a superioridade do homem. Tal fato criava a
justificativa do controle do homem sobre a mulher.
É o autor Thomas Laqueur que recupera a idéia de que o modelo físico de
representação do sexo, entre os gregos, era o que via a mulher como um homem invertido e
inferior, portanto passível de ser dominado.80 Nesse modelo, havia apenas um sexo, sendo
possível afirmar que havia machos com os órgãos genitais para fora do corpo e machos
com os órgãos genitais para dentro do corpo. Essa diferença anatômica era percebida e
hierarquizada, mas não se tratava de uma distinção entre macho e fêmea. A mulher, na
verdade, era um macho inferior, cujo corpo não alcançara a perfeição. É nesse sentido que
podemos afirmar que a sexualidade, da maneira como conhecemos hoje, é uma construção
cultural recente.
Na Antigüidade Clássica é mais adequado não falarmos de relações sexuais, mas em
relações amorosas. O amor possuía duas definições - o de “Eros”, associado ao amor
carnal, e o de “ágape”, associado ao amor espiritual.81 Essas duas faces eram inspiradas pela
deusa Afrodite que, segundo a mitologia grega, atribuía ao amor um caráter múltiplo e
heterogêneo.82 Esse termo não guarda nenhuma equivalência com o nosso vocabulário
contemporâneo. A multiplicidade das relações amorosas - que caracterizam a palavra 80
LAQUEUR, Thomas. Inventando o Sexo: Corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2001. p. 122-31
81
HUNT, Morton M. Dilema na Grécia: A invenção do Amor. In: Sexo: Teoria e prática.
São Paulo: IBRASA, 1974. p. 11.
82
SERGENT, Bernard. L’homosexualité dans la mythologie grecque. Paris: Payot, 1984.
39
pode ser observada nos encontros entre homens e rapazes e mulheres e mulheres e homens.
Por princípio, o amor espiritual era virtuoso, gerando assim uma hierarquia entre as
relações amorosas. A “Pederastia”, ou o “amor pelos efebos”, é apresentada como a única
forma de amor verdadeiro, uma benevolência ardente que levava o amante – chamado
erasta - a querer a felicidade para o amado – chamado eromenos. Na Grécia clássica, o
pederasta era o amante de “païs”, ou rapaz ainda não adulto e idealizado como objeto de
amor. O erasta que tomasse um eromeno deveria garantir ao jovem afeição e ternura, como
fatores essenciais à sua educação.83 A união desse casal deveria ordenar a fecundidade do
espírito, pois o amante deveria treinar seu amado nos nobres princípios da sabedoria, da
honra e da valentia.
O amor celebrado com tais características não era possível de ser experimentado,
com tanta intensidade, junto às mulheres. Elas eram consideradas inferiores a todos esses
assuntos. Aqui surge o caráter heterogêneo do amor que se referia ao “Eros”, ou à
expressão do amor carnal. Os gregos sentiam-se fascinados pelas mulheres que vendiam
seus favores. Desde as cortesãs elegantes, chamadas “hetairas”, até as inquilinas comuns de
lupanares, chamadas “pornaï”.84
As esposas gregas, exclusivamente, eram vistas como vassalas, dominadas e não
confiáveis, necessárias para proporcionar uma descendência legítima e cuidar da casa.85 Na
Grécia o casamento era um dever do cidadão. Esse costume padecia com um grande
desprestígio, mas, como era uma obrigação, os homens casavam-se somente quando não
podiam mais adiar esse compromisso com o Estado. Deste modo, na Grécia clássica, o
amor não se encontrava nos lares, mas fora deles.
No tocante a pederastia masculina, um ponto de acordo referia-se ao ciclo desta
relação: o erasta não poderia permanecer com seu jovem amado quando a barba do efebo se
apresentasse. Amar um menino passada a fase da puberdade excitava a caçoada e o
desprezo da sociedade. Os meninos que atingiam essa fronteira, prosseguindo no papel de
amados, negando-se a assumir o papel de amantes, eram ridicularizados com palavras como
83
BUFFIÈRE, Félix. Eros adolescent: la pédérastie dans la Grèce antique. Paris: Societe d’edition “Les
Belles Lettres”, 1980.
84
SALLES, Catherine. Nos submundos da Antigüidade: les bas-fonds de l’antiquité. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
85
SPENCER, Colin, Op. Cit., p. 44-46.
40
“Cinèdes” ou “Katapygones”: termos degradantes da moral dos homens que gozavam do
papel passivo na relação, ou que adotassem vestimentas femininas.86
Além das proibições referentes à esses aspectos, é preciso prestar atenção aos
aspectos legais que previam como os cidadãos podiam se dedicar ao amor dos rapazes,
desde que fossem da mesma condição social para evitar que a relação resultasse em
obrigação pecuniária. Nesses casos, a pena imposta ao homem que não soubesse fazer uso
de seus prazeres era a privação dos seus direitos de cidadão. Face à essas restrições, havia
os delatores profissionais, chamados “sincofantas”, que faziam chantagem com esses
cidadãos, ameaçando tornar público os atos por eles cometidos.87
Nas assembléias dos cidadãos, caso os homens fossem delatados por venderem seus
favores como prostitutos, ou por assumirem uma atitude passiva no encontro amoroso,
tinham seu direito de fala interditado. Por isso essa acusação entre adversários políticos era
comum. Excesso de prazeres ou a passividade nos encontros amorosos eram atitudes
consideradas indignas que implicavam na perda do "status" social.
No tocante à civilização romana, devemos observar algumas mudanças na dinâmica
dos relacionamentos amorosos. Segundo Paul Veyne,88 é preciso prestar atenção a quem
ocupa a condição de passivo ou ativo e a condição de homem livre ou escravo na relação
amorosa em Roma. Para o romano de condição livre, ser ativo em relação a seu escravo era
um ato inocente e sem qualquer censura, por outro lado era monstruoso que um romano
assumisse a posição passiva, pois tal atitude não estava de acordo com as regras sociais.
Um desprezo colossal recaía sobre o homem adulto e livre que fosse passivo. Nessa
sociedade, ele era chamado de “Impudicus” ou “Diatithemenos”.89
Em Roma, a lei protegia as mulheres casadas cujo esposo tratava com mais
consideração, visto que diferente da mulher grega, a romana tinha mais direitos, como, por
exemplo, o de se divorciar. A relação amorosa onde só participavam mulheres era
considerada uma afronta à masculinidade romana. Para o homem romano se tratava de uma
tentativa da mulher roubar o papel do homem. Entendia-se que uma mulher que dominasse
outra, na privacidade do quarto, poderia dominar também os tribunais e comandar nos
86
BUFFIÈRE, Félix. Op. Cit., p. 617.
SALLES, Catherine. Op. Cit., p. 77.
88
VEYNE, Paul. A Homossexualidade em Roma. In: ARIÈS, Philippe; e BÉJIN, André (Orgs.).
Sexualidades Ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 39-49.
89
LEVER, Maurice. Lês Bûchers de Sodome: Histoire dês “Infames”. France: Fayard, 1985. p. 29
87
41
campos de batalha.90
Nessa sociedade, o jovem romano devia ser respeitado. Ele era educado para
dominar o mundo. Desde a infância tinha de se impor e não aceitar nenhuma submissão que
afetasse sua virilidade. Nesse cenário, a penetração está ligada à questão da posição social.
Para os romanos, a virilidade tem a ver com a idéia da conquista, da expansão do seu
império e da subjugação da vítima em todos os sentidos.91
Os romanos, diferente dos gregos, não possuíam o mesmo nível de refinamento, ou
de ideal amoroso, no tocante à relação amorosa entre um homem e um rapaz: a motivação
estava mais ligada à satisfação física. Ao recuperarmos o modelo amoroso da sociedade
greco-romana, não podemos deixar de retomar a reflexão feita por Michel Foucault em “O
Uso dos Prazeres”,92 na qual o autor apresenta o homem da Antigüidade Clássica como um
sujeito constituído pelo governo de si. Nesse sentido, o sujeito vai dirigir suas investidas
amorosas, respeitando as leis e os costumes. Esse controle passa pela reflexão que o
cidadão deve fazer, pois ele terá que possuir sabedoria para comandar a si mesmo, assim
como para levar em consideração seus prazeres a partir da necessidade e do “status”.
3.2 Sexo e gênero em nome da fé, a produção de termos em busca do controle do outro
A transformação dos valores culturais - entre o período antigo e o medieval - pode
ser observada a partir do declínio do Império Romano, cujo final se dá com as invasões
bárbaras. Nessa fase ocorre a ascensão do cristianismo, numa primeira etapa, quando o
imperador Constantino, pelo Édito de Milão, em 313, concede liberdade a esse culto
religioso e igualdade em relação aos outros. E, posteriormente, em 392, quando o
imperador Teodósio torna o cristianismo a religião oficial do Império Romano. Desta
forma, o cristianismo, principalmente após sua instituição enquanto religião oficial, começa
a realizar conquistas notáveis que deslocam os tradicionais padrões do uso dos prazeres da
sociedade greco-romana.93
90
COLIN, Spencer. Op. Cit., p. 69-70.
Idem, p. 67.
92
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal. 1988. p. 77.
93
FILHO, Amílcar Torrão. Tríbades Galantes, Fanchonos Militantes: homossexuais que fizeram história.
São Paulo: Summus, 2000. p. 89-90.
91
42
A terminologia sobre esse tema foi deixada pelos autores eclesiásticos e pelos
legisladores laicos. No período contemporâneo é possível trabalhar esse tema,
predominantemente, através de três maneiras: das biografias; dos textos eclesiásticos com
visões sobre as relações entre homens; e dos textos laicos sobre a perseguição que eles
sofreram.94 O menor ganho informativo estão nos estudos biográficos devido ao pequeno
contexto das experiências do sujeito em relação às instituições.
Os estudos que revelam as estruturas do período medieval e sua relação com os
indivíduos, produzidas pelos medievalistas entre os anos cinqüenta e setenta do século XX,
tenderam a priorizar as atitudes da Igreja e da sociedade em relação ao controle da
“natureza humana”. Essa perspectiva leva em consideração a visão eclesiástica e a
legislação secular. Outra forma de estudo que ajuda a entender o controle da pluralidade da
“natureza humana”, tem a ver os estudos ligados à perseguição e a opressão. Essas
reflexões desenham a construção de instituições ocidentais, morais, legais e religiosas, para
o controle da diversidade.
A transição dos valores, cujo reflexo mais notável está na renúncia aos prazeres em
favor do elogio à castidade, tem início nos primeiros séculos da Idade Média. Nessa época,
milhares de homens e mulheres se afastam da vida em comunidade para viver
solitariamente. Tal abstinência estendeu-se por diversos campos, não estava reduzida
apenas a abster-se da convivência com outras pessoas, mas também à comida e ao sono: o
objetivo mais premente estava na luta desenvolvida contra a luxúria. Essa batalha produziu
um estado de espírito belicoso, onde a satisfação não se limitava apenas ao controle dos
próprios prazeres, ela ia além, se estendia ao controle do prazer dos outros homens.95
Nos antigos escritos cristãos, nada era mais louvado do que a castidade, ao passo
que o casamento era apenas permitido, visto que a menor parte dos cristãos obtinha êxito
em levar uma vida de abstinência amorosa. Dessa maneira, iniciou-se o caminho em
direção à monogamia e à indissolubilidade do casamento. O processo, contudo, foi lento, e
passou a formular toda uma jurisdição que invadiu o leito dos casados. Nela, o intercurso
conjugal só estaria livre do pecado se não houvesse a participação do prazer e se fosse feito
exclusivamente para fins ligados à procriação. Neste contexto, um contato entre os corpos
94
HALSALL, Paul. People with a History: an on-line guide to lesbian, gay, bisexual and trans* History.
Disponível no: http://www.fordham.edu/halsall/pwh/. Acessado em 24 jun;. 2004.
95
HUNT, Morton M. “A Luta contra a Luxúria”. In: Op. Cit., p. 97-104.
43
que levasse à dissipação da semente do nascimento era considerado pecaminoso, pois não
tinha o objetivo de gerar nada que não fosse o prazer carnal. Qualquer experiência que não
tivesse esse objetivo era merecedora de censura e de controle.
As doutrinas do cristianismo exerceram um enorme efeito sobre a regulamentação
dos prazeres. Nesse sentido, três aspectos devem ser levados em consideração: a
importância dos textos fundadores do cristianismo; os fatores sociais que determinaram a
opinião dos cristãos; e as objeções teológicas ao prazer carnal formuladas pela Igreja
Católica.96
Joaquim Brasil Fontes possui um artigo no qual discute a origem das doutrinas
assumidas pela Igreja, analisando as palavras que compõe o seu vocabulário.97 O autor cita
especificamente Santo Agostinho, quando este faz uso da expressão “contra naturam” que
tem origem na tradução do termo grego “contra phýsin”, presente na Epístola de Paulo aos
Romanos. Nela, o apóstolo fala sobre a punição de Deus aos homens e às mulheres que
mudaram o modo de suas relações íntimas por outro “contrário à natureza”.
Além desse texto presente na Bíblia, outros serão evocados para fazer a justificativa
do controle sobre o prazer do outro. O antigo testamento, por exemplo, será responsável
pela perenidade de tradições do povo judeu, cujos valores vêm ao encontro dos ideais do
cristianismo triunfante, vista a preocupação dos patriarcas judeus - em relação à
sobrevivência e multiplicação de suas tribos no deserto – tornaram-se normas cristãs que
definiam os limites entre as virtudes e os vícios no campo do prazer.98 Nos textos sagrados
dos judeus, Javé matou Onan por ter desperdiçado a semente responsável pela origem da
vida. E o casamento era apresentado como uma obrigação religiosa, no seio do qual a
fecundação representava a benção de Deus.
Os primeiros padres da Igreja – Clemente, Jerônimo, Orígenes e Agostinho - se
ocuparam em desenvolver um código de ética sexual, onde qualquer atividade que não
conduzisse à procriação era considerada uma violação, um crime contra a natureza. Essas
posições se tornaram lei quando o Império Romano adotou o cristianismo como religião
oficial. Esse fato ocorreu durante o século VI, no governo do imperador Justiniano:
96
BOSWELL, John. Christianisme, tolerance sociale et homosxualité: les homosexuals en Europe
Occidentale des débuts de l’ère chrétienne au XIVe. Siècle. France: Gallimard, 1985. p. 127-128.
97
FONTES, Joaquim Brasil. Contra Naturam. Disponível no:
http://www.lite.fae.unicamp.br/revista/sex01.htm. Acessado em 5 jun. 2002.
98
COLIN, Spencer. Op. Cit., p. 53-65.
44
legislador bizantino que se considerava como o próprio representante de Deus na Terra.99
Tratava-se da imposição de um rigoroso código de leis morais, no qual a pena para atos
onde houvesse intercurso entre homens era a morte na fogueira.
Justiniano tinha a visão de que se tratava de atos que violavam a natureza, a qual,
em contrapartida, provocava retaliações como a esterilidade da terra, períodos de fome,
terremotos, pestes e guerras. Com a dissolução do Império Romano e a instituição dos
Reinos Bárbaros entre os séculos VIII e IX, os governantes, por falta de interesse, deixaram
de legislar sobre assuntos morais, passando-os para a jurisdição da Igreja.
Para interpretar esse desinteresse temos que retomar o século V, quando diversos
grupos, tais como os francos, os visigodos, os vândalos, os anglo-saxões e os germânicos,
invadiram o Império Romano. Não se sabe exatamente qual a postura de todos os grupos
bárbaros no tocante ao relacionamento entre homens (ou entre mulheres). Os germânicos,
especificamente, denegriam as mulheres e os homens passivos, mas em contraponto
exaltavam a bravura dos guerreiros e o amor entre camaradas.100 Tal fator pode indicar o
motivo de seus futuros governantes em não ter interesse pelo tema.
No decorrer da Idade Média a interpretação dos textos dos primeiros padres da
Igreja também ajudará a constituir um léxico para os pecados, dando origem a termos
associados às relações “contra naturam”, ou sem fins procriativos, como por exemplo:
sodomia, sodomita, sodomizar e somítico. A origem dessas palavras está associada ao
relato bíblico da destruição das cidades de Sodoma e Gomorra por causa dos excessos de
seus habitantes no campo dos prazeres carnais.101
É possível compreender as atitudes da Igreja Católica, até o século XIII, através do
estudo dos “penitenciais”, guias de confessores que instituíam as penitências a partir do
dizer de Cristo “Vai e não peques mais”.102 Essa postura propiciava aos penitentes a chance
de refletir sobre seus pecados e pelo livre arbítrio de não cometê-los novamente, sendo que
as penitências variavam em função da idade, do status, do gênero e de sua condição de
leigo ou eclesiático.
99
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
ed., 1993. p. 136-152.
100
SPENCER, Colin. Op. Cit., p. 94-6.
101
BAILEY, Derrick Sherwin. Homosexuality and the Western Christian tradition. London-New YorkToronto: Longmans, green and Co, 1955. p. 1-28.
102
RICHARDS, Jeffrey, Op. Cit., p. 140.
45
O fato é que surge uma obra clássica, escrita por São Pedro Damião, entre 1048 e
1054, chamada Liber Gomorrhianus que trata das formas de relações sodomíticas entre
homens, das circunstâncias como ocorriam, das transgressões clericais – como a de padres
que cometiam o pecado se confessarem e se absorverem entre si -, das medidas propostas
contra tal comportamento e daquelas relativas à reforma do clero.103
No decorrer sos séculos XII e XIII, o Terceiro e Quarto Concílio Laterense,
tomaram providências, impuseram punições aos homens sodomitas, como: a destituição das
atividades sacerdotais e aprisionamento em mosteiros para os clérigos; e a excomunhão
para os leigos. Em seguida, reforçaram essas medidas com o claro objetivo de segregar,
isolar e rotular os dissidentes e para prevenir que a prática se estendesse entre os cristãos. O
Concílio de Tours, em 1163, introduziu os autos judiciais de inquisição através de processo
formal. Com a abertura da ação pelos funcionários por meio de denúncias, se fazia a coleta
de evidências e se ouvia o depoimento de testemunhas que eram utilizadas para o
julgamento.
Enquanto produção intelectual, surge o Decretum, de Graciano, texto que aproveita
a definição de Santo Agostinho sobre pecados contra a natureza. O documento é
considerado a pedra angular que fez com que os “penitenciais” fossem substituídos pelos
Summae - manuais mais sistemáticos para confessores - que se apoiavam na proposição
agostiniana.104 Essa idéia é reiterada na Summae Theologiae, de São Tomás de Aquino, em
1266, quando o autor, além de concordar com Santo Agostinho, enfatiza que mesmo que o
pecado fosse praticado através de consentimento mútuo, não prejudicando a ninguém,
aquilo era uma injúria aos olhos de Deus.105
Até o ano de 1033, exatamente mil anos após a morte de Jesus Cristo, se esperou
pelo apocalipse. Desde então, a Europa entrou em um período de revitalização espiritual,
econômica e intelectual, com a ascensão das cidades e a formação das monarquias
nacionais. Nas cidades surgiram, inicialmente, escolas que depois se transformaram nas
primeiras universidades que passaram a promover debates filosóficos, teológicos e
jurídicos. Nesse campo, particularmente, ocorre uma redescoberta dos códigos romanos que
103
Idem, p. 143.
Idem, p. 144.
105
Idem, p. 145.
104
46
produziu uma casta de profissionais: os legistas. Eles saíam das universidades para entrar
nos sistemas burocráticos das monarquias nacionais e do papado.
Finalmente, a redescoberta do Direito Romano – que revelava o papel que os
legistas tinham exercido no campo da moral -, passou a ser vista pelos monarcas como
forma de impor a centralização Estatal e enfatizar o seu papel enquanto fonte de justiça,
reportando os crimes aos tribunais reais. Nesse processo é recuperado o Código de
Justiniano,106 aquele mesmo que prescrevia a morte na fogueira para quem praticasse atos
contra a natureza. Essa revitalização das leis romanas – instituídas com a introdução da
religião cristã – serviu como modelo para as nascentes monarquias nacionais.
No século XIII, segundo o autor Jeffrey Richards,107 as autoridades, tanto da Igreja
Católica quanto dos Estados, baseados no poder monárquico centralizado, deram início à
supressão da individualidade em favor da comunidade, em todas as esferas da vida na
Europa Ocidental. Em nome da justiça do rei eram enviados juizes, registrados autos e
codificadas leis. Elas eram feitas pelo monarca que impunha o cumprimento. Esse sistema
unificou os reinos e centralizou a autoridade. A sodomia começou a ser tratada como uma
ofensa à sociedade, sendo punida através de uma escala em diferentes níveis de degradação
física, do acusado para a manutenção da ordem defendida pelo rei.
Uma das expressões mais francas do controle do outro exercido pela Igreja Católica
está nas ações promovidas pela Inquisição, uma instituição criada no século XIII com
objetivo de impedir os desvios da fé. Esse órgão, contudo, ultrapassou largamente o seu
objetivo inicial, estendendo seu campo de ação aos planos político, social e cultural.108 Em
meados do século XIII, os dispositivos da repressão tinham se estabelecido, funcionando
como fortes instrumentos de perseguição para aperfeiçoar o controle sobre a vida para
manter a uniformidade de princípios religiosos, políticos e sociais.
Na mesma época das Cruzadas, da segunda metade do século XIII até o final do
século XV, o conjunto composto por textos e leis da Igreja Católica e dos recém formados
Estados da Europa possuía um discurso repressivo e de uma impressionante violência. A
terminologia, carregada de significados que radicalizavam os argumentos cristãos estava
constituída, aumentando a “dificuldade de se aceitar a diferença”. No final desse período,
106
Idem, p, 147.
Idem, p. 13-32.
108
Idem, p. 148.
107
47
os instrumentos de controle do “outro” se sofisticaram, começando a deixar o campo da fé
para ocupar o campo da razão.
3.3 Sexo e gênero em nome da razão - sob nova vestimenta -, os novos termos de controle
Para compreendermos a questão dos termos na transição do período moderno para o
contemporâneo, é preciso recuperar uma tradição presente entre as práticas da Igreja
Católica, segundo a qual a sodomia deveria ser mantida na categoria de “pecado mudo”.
Essas práticas não poderiam sequer ser denominadas e, paradoxalmente, produziram o
termo “nefando”. Essa expressão apoiava-se numa frase, expressa pelo apóstolo Paulo na
epístola aos Efésios, quando este escreve que os pecados ligados à sodomia não deveriam
nem mesmo ser nomeados.109
Não denominar o tema, ou tratá-lo exclusivamente como assunto da Igreja, ajudava
a manter o controle sobre o vocabulário do outro. Nesse caso, o silêncio constituía-se numa
arma eficaz do pensamento, pois no nível de palavras definia o que podia e o que não podia
ser proferido. Era assim que os preceitos religiosos prescreviam as condutas de homens e
mulheres, estabelecendo que os pecados podiam ocorrer através dos atos, palavras e
pensamentos.110
Essa proibição ganhará outro contorno na transição entre o século XVI e XVII. O
pensamento - em relação ao “pecado mudo” - sofrerá alterações no que se refere ao seu
tratamento. O silêncio dará lugar às palavras, compondo uma taxonomia que fazia a
catalogação dos pecados contra a natureza. A projeção dos valores cristãos presentes no
interior desse vocabulário será preservada e veiculada com a ascensão do pensamento
científico – o qual dará origem aos discursos médicos – e, por sua vez, fará a catalogação
dos desvios sexuais.
No decorrer do século XVIII, segundo Michel Foucault,111 a tradição eclesiástica
deu início ao projeto de “colocação do sexo em discurso” e fez disto uma regra. O ato da
confissão católica, prática depositada no coração do homem, foi o meio através do qual se
fez da enunciação do desejo um discurso. O homem ocidental, por três séculos, permaneceu
109
BAUDRY, André & DANIEL, Marc. Os Homossexuais. Rio de Janeiro: Artenova, 1977. p. .36-39.
BELLINI, Lígia. A Coisa Obscura: mulher sodomia e Inquisição no Brasil colonial. São Paulo:
Brasiliense, 1987. p. 16.
111
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal. 1988. p. 24.
110
48
atado à tarefa que consistia em dizer tudo sobre o sexo. No século XVIII, o sexo não
cessou de provocar uma espécie de erotismo discursivo generalizado. Para Foucault
nenhuma outra sociedade jamais conseguiu acumular, num período histórico tão curto, uma
tal quantidade de discurso sobre o sexo.112 Com o advento da Idade Contemporânea, o
comportamento sexual será extraído do corpo do homem e da mulher.
A medicina, a jurisprudência e a literatura serão as áreas responsáveis pela produção
de uma série de discursos que permitiram, ao mesmo tempo, um avanço dos controles
sociais na região da “sexualidade”. Samuel Auguste Tissot é considerado o primeiro
médico a tratar a sexualidade como um tema de investigação. Tissot se tornou célebre na
Europa, por causa de seus tratados de medicina, atendendo clinicamente, entre outras
personalidades, filósofos ligados ao Iluminismo. Em 1760, o médico publica “Ensaios
sobre as Doenças produzidas pela Masturbação”, onde afirma que o onanismo, além de ser
uma doença, era um crime. Desde então, Jean-Jacques Rousseau se torna um fervoroso
admirador das idéias médicas de Tissot.113
O pensamento médico-científico observará metodicamente o comportamento
sexual, não sendo capaz de inventar novos prazeres, nem descobrindo vícios inéditos, mas
catalogando meticulosamente tudo o que podia. A prática da sodomia, então, assumiu outro
significado, sendo fragmentada, transformando-se em diversas espécies e subespécies de
práticas. Assim surgiu o homossexual, uma personagem criada para o vocabulário
científico que denominava uma das categorias sexuais.
Como também se tornaram categorias todos os atos sexuais que os psiquiatras e
psicanalistas do século XIX entomologizaram, atribuindo-lhes estranhos nomes de batismo:
exibicionistas, fetichistas, zoófilos, autonomossexualistas, mixoscopófilos.114 A partir de
então o homem abraçou a razão com a certeza de que, através do conhecimento científico,
dominaria todos os seus elementos, inclusive a pluralidade da “alma humana”: catalogada
para que a ciência exercesse seu poder de corrigir os “desvios” e preservar a espécie.
No século XIX, surgiu na história do pensamento um novo tipo de intelectual: o
112
Idem, p. 34.
Le Triomphe de la Medecine sur l'amour. In: REGARDS SUR L’AMOUR ENTRE HOMMES
Disponível no: http://www.lambda-education.ch/content/menus/histoire/planhistoire.html. Acessado em
26 jul. 2004.
114
FOUCAULT, Michel, Op. Cit., p. 43-44.
113
49
sexólogo.115
Paul Robinson definiu a sexologia como uma ciência moderna que representava
uma reação a esse controle. Os sexólogos dos anos de 1860-1870, segundo o autor,
apresentaram a teoria de que o “homossexualismo” era “um erro cometido pela natureza”,
pois a mesma havia colocado dentro de um corpo masculino uma alma feminina”.116 E
desde 1894, Edward Carpenter, por outro lado, assinalou a existência de “gradações”
ligadas ao comportamento homossexual.117 No mesmo sentido, Haverlock Ellis refletiu
sobre o fato da masculinidade e da feminilidade dependerem de uma complexa química do
corpo. No que se refere ao trabalho deste autor, ele deu inicio ao processo de tolerância dos
estudos sobre a sexualidade humana,118 o que propiciou uma atmosfera favorável para se
falar sobre sexo, na qual os sexólogos posteriores prosseguiram com suas pesquisas.
Em 1892, Charles Gilbert Chaddock recebeu os créditos do Oxford English
Dictionary por haver introduzido a palavra “homo-sexuality” na língua inglesa,119 sendo que
os termos “homossexual” e “homossexualidade” apareceram impressos pela primeira vez
em 1869, em dois panfletos anônimos publicados em Leipzig, compostos, aparentemente,
por Karl Maria Kertbeny. No que se refere ao período que precede 1892, não havia
recorrência ao termo homossexualidade, mas à expressão “inversão sexual”.
Neste ponto, a referência a Jurandir Freire Costa é importante, pois o autor possui
dois estudos ligados a essa forma de reflexão. Neles podemos acompanhar o processo de
origem da idéia de homossexualidade masculina como uma criação do século XIX. O autor
rastreia as obras literárias de André Gide, Michel Proust e Oscar Wilde, procurando
demonstrar, num primeiro estudo, como o imaginário da literatura120 e, num segundo
estudo, como imaginário da ciência novecentista, 121 lentamente moldaram a figura social e
o tipo psicológico do homossexual. Só depois desse processo de construção de uma
subjetividade se tornou evidente a existência da categoria homossexual, principalmente no
tocante à definição de um ser com uma “natureza” específica dentro do universo da
115
ROBINSON, Paul. A Modernização do Sexo: ensaios sobre Ellis, Kinsey, Máster & Johnson. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira,1977. p. 7.
116
BAUDRY, André & DANIEL, Marc . Op. Cit. p. 60.
117
ROBINSON, Paul. Op. Cit., p. 50.
118
Idem , p. 23.
119
HALPERIN, David M. One Hundred Years of Homosexuality. New York: Routledge, 1990. p. 15.
120
COSTA, Jurandir Freire. A Inocência e o Vício: estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro:
Relume- Dumará, 1992.
121
COSTA, Jurandir Freire. A face e o Verso: Estudos sobre o homoerostismo II. São Paulo: Escuta, 1995.
50
sexualidade novecentista.
Para John Money,122 o termo homossexual tornou-se o mais utilizado provavelmente
porque foi empregado por Havelock Ellis e Magnus Hirschfeld no final do século XIX e
nos anos iniciais do século XX. Nenhum dos dois escritores, contudo, reconheceu na
expressão cunhada por Kertbeny, a possibilidade da palavra poder apagar outras
experiências existentes em nível cultural e histórico. Neste último exemplo, podemos
afirmar que somente nas sociedades da época moderna é possível falar da palavra
“homossexual”, sendo inútil e equivocado atribuir seu significado a períodos anteriores da
história da humanidade.
Nesse período, o saber médico ganhará hegemonia de ação - perpassado pela teoria
de que o bom funcionamento da sociedade dependia de um organismo composto por
indivíduos saudáveis.123 Até a metade do século XX, o espaço das instituições médicojurídicas irá além dos limites dos discursos sobre “homossexualismo”, transformando
corpos em espécimes doentes aprisionadas em sanatórios e hospitais. Este fato dará origem
a uma ação conjunta da medicina com as instituições jurídicas.124
O efeito dessa aliança provocou o exílio de alguns sujeitos do contexto social,
apresentados, à luz da medicina, com tendências à prática criminosa e anti-social. Nesse
sentido, a medicina-legal elegeu “tipos” para empregar seus métodos e atuar contra o que
entendia ser as causas da “degenerescência do sistema social”.125 Os regimes onde o
autoritarismo se manifestou foram implacáveis quando lidavam com os “desvios sexuais”,
vistos como inimigos do corpo, da família e até mesmo do Estado.
Ainda que o termo homossexual livrasse o comportamento de ser um pecado, ele se
prendeu estreitamente à idéia de que o sujeito estava ligado a um desvio patológico.126 A
ascensão dos regimes totalitários, na década de trinta, foi marcado pela justificativa de que
o “homossexualismo” representava uma ameaça a ser extirpada, pois se tratava de um
122
MONEY, John. Gay, Straight and In-Between: the sexology of erotic orientation. New York: Oxford
University Press, 1988. p. 9.
123
SHOWALTER, Elaine. Anarquia Sexual: sexo e cultura no fin de siècle. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
p. 252.
124
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à
atualidade. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 2000. p. 187-192.
125
GUIMARÃES, Celeste Zenha. Homossexualismo: Mitologias Científicas. Tese de doutorado
apresentada ao Depto. de História da IFCH-UNICAMP, em maio de 1994.
126
SOUZA, Pedro. Confidências da Carne: o público e o privado na enunciação da sexualidade.
Campinas: Tese de doutorado apresentada à comissão examinadora da Unicamp, 1993. p. 14.
51
perigo que devia ser cerceado através das instituições encabidas de manter a ordem pública,
desencadeando, assim, uma série de perseguições que transformou esse personagem em um
bode expiatório.
Entre 1939 e 1945, sob a tutela de Heinrich Himmler, as campanhas de eugenia são
conduzidas pela ditadura nazista que dominava a Europa. Durante esse período, judeus,
ciganos, deficientes, comunistas, testemunhas de Jeová, anões, epiléticos, surdos-mudos e
homossexuais são vítimas da barbárie hitlerista, sendo mandados em massa para os campos
de concentração. Os homossexuais, especificamente, portavam um triângulo rosa invertido
sobre o uniforme de prisioneiro.127 Calcula-se que entre 5.000 e 15.000 homossexuais foram
detidos. No final da Segunda Guerra Mundial, após serem libertados, alguns ainda foram
postos na prisão acusados por deboche. Essa libertação ainda possui um gosto amargo para
grande parte dos homossexuais que foram aprisionados, pois, até hoje, é o único segmento
ao qual foi negado o reconhecimento e o reparo do crime do qual foram vítimas.128
Após o final da Segunda Grande Guerra, o autoritarismo nazista foi vencido, dando
início ao período da bipolarização que evidenciou o antagonismo, político-ideológico, entre
americanos e soviéticos. Os homossexuais, contudo, sofreram tanto com a opressão da
sociedade comunista, sob a égide stalinista na União Soviética, que enviou dezenas de
milhares de homossexuais para a Sibéria, quanto como na sociedade capitalista, com o
Mccarthismo nos Estados Unidos, cujo ataque aos gays foi tão violento quanto o ataque aos
comunistas.
Desde março de 1934, a homossexualidade, sob a alegação de ser uma
“degenerescência burguesa”, tornou-se crime na Rússia.129 De acordo com o artigo 121 do
código criminal da Federação Russa, a pena era cinco anos de prisão. As autoridades e a
KGB, durante a Guerra Fria, o utilizavam para perseguir os dissidentes do sistema
socialista, aumentando suas penas e os mandando para os campos de trabalho na Sibéria.
Nesses casos, a aplicação da lei servia para assustar as pessoas. Calcula-se que de 1934 até
o final dos anos oitenta do século XX, mil pessoas eram processadas a cada ano.
127
SPENCER, Colin, Op. Cit., p. 295-301.
HAEBERLE, Erwin J. “Swastika, pink triangle, and yellow star: the destruction of sexology and the
persecution of homosexuals in Nazy Germany.” In: DUBERMAN, Martin et al. (Ed.). Hidden
from History: reclaiming the gay e lesbian past. NewYork: Meridian, 1989. p. 365-379.
129
KARLINSKY, Simon. “Russia’s Gay Literature and Culture: The impact of the October Revolution” In:
DUBERMAN, Martin et al. (Ed.). Op. Cit., p. 361-364.
128
52
Nos Estados Unidos, durante a Guerra Fria, a perseguição aos homossexuais,
iniciada pelo Senador Joseph McCarthy, do Partido Republicano, se deveu à acusação de
que gays e lésbicas representavam uma ameaça ao governo norte-americano, pois poderiam
ser chantageados pelos comunistas – devido à sua “fraqueza moral” -, podendo revelar
segredos de Estado.130 Os focos de ação eram a investigação e a remoção de homossexuais e
comunistas do aparato governamental. Os funcionários do serviço de segurança do governo
interrogavam os servidores públicos sobre suas vidas sexuais. Essa política atingiu,
aproximadamente, três milhões de pessoas nos Estados Unidos entre 1943-1953.
Em 1948, a discussão sobre a homossexualidade tomou uma nova dimensão. O
célebre “Relatório Kinsey” era publicado e seu autor reconhecia o fato de que a função
sexual e a função reprodutiva estavam radicalmente separadas. A divisão da humanidade
em duas categorias não fazia sentido segundo a análise de Kinsey.131 O principal motivo de
Kinsey, ao demolir a noção de identidade sexual, foi o desejo de combater o estereótipo
popular que se construiu sobre a personalidade do homossexual. A principal alegação
teórica de Kinsey era que o “homossexualismo” não existia, não era uma síndrome clínica e
nem uma degenerescência social. Com esses argumentos, Kinsey ajudava a criar uma
atitude mais tolerante em relação à homossexualidade.
3.4 Sexo e gênero no período contemporâneo, o retorno à compreensão da diversidade
Na primeira metade do século XX, a ciência estendeu seus domínios sobre todos os
aspectos da vida humana; na segunda metade essa ilusão acerca do poder da razão humana
fora abalada: as guerras, campos de concentração, extermínio de vidas humanas. Essas
tragédias despertaram a descrença no poder da ciência e da razão, pois elas não
conseguiram proteger a espécie humana de sua própria “natureza”.
Na segunda metade do século XX, começaram a ocorrer movimentos de
reconciliação com a “diversidade da natureza humana”. Na Europa ocidental a luta contra a
discriminação se tornou mais radical. Entre as organizações gays e lésbicas que se
formaram estavam as: Der Kreis, na Suíça, Arcadie, na França, a COC – Centro de Cultura
130
D’EMILIO, John. Making Trouble: Essays on gay history, politics and the university. New York,
London: Routledge, 1992. p. 58-63.
131
ROBINSON, Paul. Op. Cit., p. 94.
53
e Lazer, na Holanda, e Forbundet/48, na Dinamarca. Em alguns países, esses grupos
tiveram que enfrentar um ambiente hostil e fechado, por vezes em nível legal, ao debate
sobre a questão dos direitos homossexuais.
Nos Estados Unidos, apesar do clima de repressão orquestrado pelo senador
republicano McCarthy, surgiram os grupos Matachine Society (1950) e Daughter`s of
Bilites (grupo de lésbicas, em 1953). À frente do Matachine estava Harry Hay, considerado
seu principal ideólogo.132 Ele era um comunista categórico e um teórico gay eloqüente que
defendia a idéia da identidade sexual minoritária, se adiantando em apresentar o segmento
homossexual como uma categoria em si, e advogar em favor de uma cultura homossexual
separatista. Durante essa fase, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, esses grupos
prepararam o caminho para os acontecimentos ligados aos anos sessenta. Suas lutas se
somaram ao grande caldeirão cultural de manifestações contra os sistemas sociais, culturais
e políticos existentes no mundo até os anos sessenta.
No decorrer da Guerra Fria, a bipolarização, entre Estados Unidos e União
Soviética, restringiu as escolhas pessoais no campo econômico, político e cultural a duas
alternativas: o estilo de vida norte-americano que apresentava o padrão da camada média de
sua sociedade, exibindo o acesso de seus membros aos bens de consumo, mas que
despertava críticas por excluir setores sociais podados do sistema capitalista por não
contribuírem para a reprodução do capitalismo;133 e o modelo soviético que garantia a
proteção estatal, fornecendo emprego, moradia, educação e lazer à população, mas que com
a emergência de uma burocracia detentora do poder, após o advento do golpe stalinista,
restringiu os ideais de liberdade propagados pela Revolução Bolchevique.
É preciso enfatizar que durante o período inicial da Revolução Russa, as leis
garantiam o direito à livre expressão da sexualidade. Dennis Altman, ao comentar o
paralelismo entre as lutas de libertação de classe e a de libertação sexual, lembra que apesar dos desvelos de Lênin em favor da liberdade sexual - as restrições penais aos atos
homossexuais foram revogadas em dezembro de 1917, com a promulgação do novo código
penal revolucionário. Com o advento do golpe stalinista, ocorreram mudanças de atitude
em relação ao tratamento da homossexualidade. A contra-revolução subordinou todos os
132
133
D’EMILIO, John. Op. Cit., p. 18-31.
FRASER, Ronald (org). 1968: a student generation in revolt. New York: Pantheon Books, 1988.
p. 15-16.
54
aspectos da liberdade pessoal e sexual às prioridades determinadas pela burocracia que
ascendeu com Stalin.134
Durante os anos sessenta, pessoas do mundo inteiro se mobilizaram para questionar
ou apoiar um destes modelos, ou para contestar a ambos. As amarras tradicionais do círculo
familiar começaram a ser desatadas e os jovens a se organizar através de novas redes
culturais. Nos Estados Unidos, inicialmente, o fenômeno foi caracterizado por sinais mais
evidentes: cabelos compridos, roupas coloridas, misticismo, drogas e pela vida em
comunas. Aos poucos, a mídia começou a veicular uma nova palavra: contracultura.135 O
termo foi considerado adequado por sintetizar as características de um fenômeno que se
expressava através de diferentes formas de oposição aos sistemas sociais, políticos e
culturais oficializados.
Paralelamente à difusão da contracultura, os estudantes universitários de países
como os Estados Unidos, França e Alemanha deram início a uma grande mobilização para
demonstrar sua insatisfação.136 Eles reivindicavam mudanças como a menor tendência ao
tecnicismo e a não submissão do ensino aos interesses do capitalismo. Os movimentos de
protesto se espalharam por todos os continentes através da difusão de normas, valores,
gostos e padrões de comportamento.
Na China, Mao Tse Tung e a Revolução Cultural apontavam novos caminhos em
busca de um socialismo com características menos centralizadoras. Esse clima contribuiu
para a eclosão de novas formas de atuação política, onde a ênfase recaia sobre a afirmação
da liberdade.137 Os novos movimentos rechaçavam a sisudez da esquerda tradicional,
questionando suas normas de disciplina e de organização.
Esse espírito resvalou críticas sobre todas as estruturas que suprimissem o valor
positivo da liberdade. Com a ampliação do conceito de política, as lutas por direitos
ganharam espaço nas relações cotidianas da vida social.138 O contorno dos movimentos
sociais, com caráter fortemente libertário, começou a ganhar força após as manifestações da
134
LÖWY, Michael. Para uma Sociologia dos Intelectuais Revolucionários. São Paulo: LECH, 1979.
p. 234-235.
135
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é Contracultura. São Paulo:Brasiliense, 1986.p.18-19.
136
MATOS, Olgária. Paris 1968: as barricadas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 25.
137
REIS FILHO, Daniel Aarão. A construção do Socialismo na China. São Paulo: Brasiliense, 1981.
p. 48-9.
138
COELHO, Cláudio N. Pinto. Os Movimentos Libertários em questão. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 11.
55
cultura jovem, abrindo caminho para os movimentos em favor dos direitos civis de
mulheres, negros e homossexuais.
As lésbicas, nesse período, particularmente, tiveram que se dedicar a uma questão
polêmica, cujo mote era: ou escolhiam entre se juntar aos gays, em sua luta pela
emancipação homossexual, ou às feministas e sua luta pelos direitos das mulheres, ou,
ainda, montar organizações separadas para se protegerem do sexismo dos homens gays e da
homofobia das feministas heterossexuais. Ao longo desse debate, elas experimentaram
todas as combinações possíveis,139 algumas vezes com resultados surpreendentes, como por
exemplo, quando as mulheres heterossexuais exigiram que as lésbicas adotassem uma
postura política contra os machos opressores.
No dia 28 de junho de 1969, em um bar de Greenwich Village, Nova Iorque,
homossexuais – gays, lésbicas e transgêneros – deram início a um movimento de resistência
às investidas da polícia que duraram três noites. Esse fato que ficou conhecido como a
rebelião de Stonewall, marcou definitivamente a transformação do personagem
homossexual: agora livre de seus temores e de sua marginalidade.140
Os grupos dos anos cinqüenta e sessenta deixaram o campo preparado para uma
geração mais radical que deu origem centenas de grupos e publicações – como o Gay
Liberation Front –,141 que proclamavam vigorosamente o discurso sobre a transformação
viceral da sociedade. Numa defesa do desmantelamento de instituições como o casamento e
a família burguesa, o exército e a cultura de consumo.
Os ativistas colocaram as questões da emancipação homossexual ao lado da
liberação feminista e de outros movimentos de luta, como: contra o racismo – inclusive,
apoiando grupos radicais como os Black Panthers -; contra o eco–terrorismo da sociedade
industrial; e contra a hegemonia do poder militar. Os sujeitos dessa emancipação, segundo
Michel Misse,142 caminharam no sentido da luta contra as sanções morais e legais
consideradas opressivas e anacrônicas. As reivindicações do movimento começaram a
produzir uma crítica sem precedentes, advogando uma postura mais radical e questionadora
139
MARCH, Sue. Libertação Homossexual. São Paulo: Nova Época Editorial, 1981. p. 66-9.
HOCQUENGHEM, Guy. A Contestação Homossexual. São Paulo: Brasiliense, 1980. p. 13.
141
SPENCER, Colin. Op. Cit., p. 348-353.
142
MISSE. Michel. O Estígma do Passivo Sexual. Rio de Janeiro: Achiamé, 1979. p. 11.
140
56
da sociedade. O debate não se limitou à visibilidade pública, mas passou a contestar as
restrições morais, médicas, jurídicas.
Por um lado, enquanto o Gay Liberation Front foi concebido como parte de um
movimento maior de liberação, sendo um dos segmentos mais radicais de luta contra a
opressão, por outro, quando esse segmento encerrou suas atividades em 1972, a Gay
Activists Alliance, composta por membros que saíram do próprio Gay Liberation Front,
defendeu propostas, como a de usar o sistema político para transformar direitos dos
segmento numa realidade social e política, colocando medidas em prática e formando
complexas redes de interesses culturais e políticos que, ao longo do tempo, se difundiram
para milhões de pessoas, em diferentes locais do planeta.
O interesse do movimento passou a residir, precisamente, no fato de formalizar
institucionalmente as condições para as mudanças, denunciando as insuficiências da
igualdade formal quanto ao direito e de utilizar, inclusive, todos os recursos para se tornar
um dos grupos aos quais a lei deveria dispensar ajuda e proteção.143 Essa transformação
alcançou os meios de comunicação social e a academia, setores que alteraram suas
concepções sobre a homossexualidade.
Em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade da
lista de doenças mentais.144 E no decorrer dos anos setenta, gays e lésbicas organizaram
manifestações para pedir mais liberdade e direitos iguais, culminando, em outubro de 1979,
com a Primeira Marcha Gay em Washington. A partir de então a relação entre
homossexualidade e doença caiu em desuso.
Antes do completar uma década dos grupos de gays e lésbicas virem a emergir no
cenário político, a mídia começa a veicular notícias sobre a AIDS. Isso provocou um
refluxo: a questão homossexual começou a ser atropelada pela crise da AIDS. A síndrome
fazia suas primeiras vítimas nesse meio.145 Qualquer discussão mais sofisticada sobre o
modo de vida homossexual passou a ser associada ao perigo de propagação do vírus.146
Todo o debate sobre liberdade, resultante do período da Contestação, parecia estar
143
HOCQUENGHEM, Guy. Op. Cit., p. 18.
MONEY, John. Op. Cit., p. 152-154.
145
FILHO, Amílcar Torrão. Op. Cit., Op. Cit., 206-207.
146
POLLAK, Michael. Os Homossexuais e a AIDS. São Paulo: Estação Liberdade, 1990. p. 13.
144
57
comprometido. Tudo começava a mudar: a AIDS transformava a homossexualidade
masculina numa questão de saúde.
A AIDS entrou no mercado de informações como uma “peste gay”,147 sendo
divulgada de forma exaustiva e sensacionalista. Era percebida, inicialmente, como uma
doença exclusivamente homossexual e masculina, o que estabeleceu um grupo de altíssimo
risco e transformou-se num elemento de discriminação. O tom das notícias criou pânico
entre a população que se via ameaçada pelo risco de contaminação pelos homossexuais.
Além disso, havia o alarde de que a AIDS era um castigo divino.
No decorrer dos anos oitenta preponderava um clima que anunciava o
desaparecimento da homossexualidade. Não no que refere às práticas sexuais, mas de sua
saída do cenário público através de “um declínio manso e quase imperceptível”.148 As
análises acerca desse processo, assim como as notícias divulgadas pelos meios de
comunicação, sugeriam uma coincidência mórbida entre um maximum de atividade sexual e
a emergência da AIDS que utilizava o contato entre os corpos para se expandir.
Nos Estados Unidos, a postura inicial dos grupos gays norte-americanos, face às
informações sobre a AIDS, era de desconfiança. Temia-se que o discurso médico se reapropriasse da homossexualidade e passasse a exercer sobre os indivíduos seu controle
institucional.149 Quando esta síndrome começou a fazer suas vítimas no segmento
homossexual - apesar das divergências entre os ativistas -, os grupos gays começaram a se
dedicar à prevenção e ao tratamento da doença.
Os governos norte-americano e britânico adotaram posturas e ações lentas em
relação à prevenção, tratamento e assistência das vítimas, o que levou os gays a entender
que estavam sendo ignorados, tal fato aumentou a necessidade de envolvimento político. 150
A organização dos ativistas foi à forma de reação adotada para fazer frente à AIDS.
Ao invés do silêncio, a epidemia tinha nome: AIDS – Síndrome da ImunoDeficiência Adquirida. Os ativistas gays se apropriaram do nome, assim como de todos os
significados que o acompanhavam, e foram às ruas reivindicar. Eles fizeram manifestações
contra políticas discriminatórias e protestaram contra políticos. Em 1987, o ACT-UP
147
TREVISAN, João Silvério. Op. Cit., p. 438.
PERLONGHER, N. O desaparecimento da homossexualidade. Saúde e Loucura, no. 3, 1992, p.8.
149
SOUZA, Pedro. Op. Cit., p. 28-30.
150
SPENCER, Colin. Op. Cit., p. 357.
148
58
iniciou suas atividades em Nova Iorque, dando origem a um estilo diferente de ativismo,151
cujas novidades estava na difusão de informação, nas ações radicais e nas críticas ao
desempenho institucional ao tratar a questão da epidemia.
Os grupos, munidos pelos aspectos positivos da identidade homossexual se
empenharam em campanhas de prevenção e tratamento da doença. O segmento gay, a duras
penas, teve de enfrentar a epidemia, empreendeu ações educativas, nas quais - ao mesmo
tempo em que aprendia -, ensinava que as práticas sexuais tinham que ser planejadas, teve
que empreender ações de assistência às vítimas, teve que aprender a conviver com morte. A
partir desse contexto se alicerçaram os laços entre as pessoas envolvidas na luta contra a
AIDS para triunfar sobre a negligência das autoridades governamentais.
No final dos anos oitenta e início dos anos noventa, o perfil social da AIDS
começou a mudar, deixando de ser uma “doença gay” para atingir outros segmentos da
sociedade. Contudo, a luta contra a epidemia definitivamente trouxe a público o debate
sobre a diversidade de práticas sexuais.152 Neste ponto é importante retomar uma das
questões levantadas por Jurandir Freire Costa.153 O autor, ao discutir o impacto da AIDS no
imaginário social, reconhece que as experiências iniciais de aceitação e revalorização da
“identidade homossexual” representam uma novidade cultural que o surgimento da AIDS
ajudou a consolidar.
No verão de 1990, um novo movimento começou a tomar forma quando os ativistas,
muitos dos quais envolvidos com o grupo ativista ACT-UP, formaram a Queer Nation.
Rapidamente, esse movimento se tornou referência importante para a história do ativismo
gay e lésbico. Enquanto as manifestações ligadas a Stonewall, em 1969, servem como
referência para o começo da liberação gay e lésbica, há um consenso de que foi o
reconhecimento da AIDS como um problema central e onipresente que levou a uma
radicalização política maior do segmento gay e do aparecimento da Queer Nation.
O termo “queer”, originalmente aplicado de forma pejorativa, foi revertido no seu
sentido para ser adotado como uma afirmação positiva. O movimento possui participantes
que não são nem gays, nem lésbicas, mas que se reconhecem na postura adotada pelo Queer
Nation. Essa forma de ativismo atraiu pessoas interessadas em debater sobre a
151
SHOWALTER, Elaine. Op. Cit., p. 250.
PARKER, Richard G. Corpos Prazeres e Paixões. São Paulo: Best Seller, 1991. p. 147.
153
COSTA, Jurandir Freire. Op. Cit., 167.
152
59
diversidade,154 em participar de políticas mais radicais e atuar em ações diretas. O Queer
Nation também enfatizou a inclusão de bissexuais, transgêneros e outras minorias sexuais
sob o “guarda-chuva” queer, esboçando uma novidade que apareceu nos anos noventa, a
importância das palavras em afirmar a diversidade das orientações sexuais, assim como os
papéis de gênero.155 No período que compõe a virada do século, as gerações presenciaram
manifestações, em nome da diversidade, ao redor do mundo: como as celebrações ligadas
ao dia 28 de junho: “Dia do Orgulho GLBT” (nome utilizado pela parada de São Paulo: a
maior do planeta).
154
155
HERDT, Gilbert. Same Sex, Different Cultures. Boulder: Westview Press, 1997. p. 8-10.
FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas? Movimento homosexual e produção de identidades coletivas
nos anos 90: um estudo a partir da cidade de São Paulo. Campinas: IFCH-Unicamp, 2002.
60
4 O tratamento da sexualidade nas Linguagens Documentárias no período moderno
Para compreender o tratamento dado à sexualidade pelas LDs, é fundamental
retomar Foskett. O autor sugere que os sistemas de classificação refletem a estrutura da
sociedade na qual foram criados, sendo influenciados pelos paradigmas culturais e
ideológicos.156 Assim, é preciso afirmar que com o advento da Idade Contemporânea, o
homem abraçou a Razão com a certeza de que, através do conhecimento científico,
dominaria todos os seus elementos. Esse aspecto exigiu o desenvolvimento de parâmetros,
definidos através da linguagem – que alcançassem a dimensão universal – com o objetivo
de servir à compreensão mútua.157 Porém, a linguagem ocupava, e ainda ocupa, diferentes
campos no tocante às atividades humanas, entre os quais o da política.
Aqui, a noção de “esfera pública” burguesa, elaborada por Habermas, é central para
entendermos a importância da relação entre a linguagem e o poder. Para o autor a origem
da “esfera pública” está ligada a um conjunto de “pessoas privadas” reunidas para discutir
assuntos de “interesse comum”.158 Habermas tem sua concepção de “esfera pública”
criticada por Nancy Frazer. A autora ressalta o fato de que, nas suas origens, a “esfera
pública” burguesa era o campo de treinamento e a base de poder dos homens que se
colocavam como classe universal.
Frazer recorre à historiografia que registra o papel dos grupos sociais subordinados mulheres, gays e lésbicas - e os apresenta enquanto públicos alternativos.159 Havia, assim,
uma pluralidade de públicos mantendo relações conflituosas com o público burguês. Neste
sentido, a autora aponta um número significativo de exclusões presentes no processo de
formação da classe burguesa enquanto elite emergente.
Essa concepção de esfera pública burguesa se refletiu nos diversos campos da
linguagem, inclusive a dos sistemas de classificação da informação, os quais foram
156
FOSKETT, A.C. Mysoginists All: a study in critical classification. Library Resources & Technical
Services 15.2 (Spring 1971): 117-21. Apud: OLSON, Hope A. The Power to Name: Locating the Limits
of Subject Representation in Libraries. Dordrecht/ Boston / London: Kluwer Academic Publishers, 2002.
p. 7.
157
HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990.
p. 54.
158
HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1984. p. 104.
159
FRAZER, Nancy. Rethinking the Public Sphere: a contribution to the critique of actually existing
Democracy. Social Text. 25/26, 1990, p. 67.
61
baseados, consecutivamente, na “razão triunfante” e na “preferência terminológica do
público majoritário”.
Este capítulo busca apresentar como Dewey, por um lado, enunciou esses princípios
através da Classificação Decimal Dewey (CDD), enquanto, por outro, Cutter – ao adotar
princípios diferenciados, formou as bases da Library of Congress Subject Headings
(LCSH). A sistematização dessas linguagens possui normas que se organizaram a partir da
identidade do homem, branco, burguês, heterossexual, ocidental, cristão. A recuperação
desse processo ajuda a explicar a montagem dessas estruturas, assim como ajuda a entender
porque às vezes alguns termos ganham tons sexistas ou homofóbicos.
4.1 Nos moldes do projeto moderno, a sistematização dos termos.
A partir do século XVIII, começou a se construir a separação dos papéis de gênero,
onde a esfera pública, predominantemente, se tornou uma arena masculina e a esfera
privada passou a ser de domínio feminino. Não se tratava de uma divisão, mas da
montagem de um sofisticado aparato para subjugar a cena privada – associado à mulher,
por sua vez associada ao caótico mundo da natureza -, e impor o poder dos personagens
masculinos que ocupavam a esfera pública, os quais detinham o direito à palavra e o poder
de dar identidade a diferentes assuntos. Neste contexto se estabeleceram os tópicos que se
adequaram à terminologia presente nas obras de Dewey e Cutter.
Entre 1876 e 1932, Dewey escreveu a introdução para treze lançamentos da CDD,
sendo que o último era o produto de quarenta e quatro anos de maturação conceitual e o
conteúdo, ao final, não revelava grandes alterações epistemológicas. O autor se apoiou em
alguns aspectos para definir o sistema de organização do conhecimento, entre os quais a
epistemologia e o parecer dos experts.160
Dewey começou com uma estrutura abrangente baseada nas classes utilizadas pela
St. Louis Public School Library (um esquema produzido por Willian T. Harris): tratava-se
de uma estrutura de dez classes derivada da classificação do conhecimento de Francis
Bacon. Esses princípios se ligavam a um esquema de classificação decimal, sintetizando a
base sobre a qual o sistema de representação foi construído. Ao usá-la, Dewey reiterou a
160
OLSON, Hope A. Op. Cit. , p. 27.
62
metáfora baconiana de uma ciência masculina dominando uma natureza feminina.161
Tratava-se do modelo do cientista moderno se distanciando do objeto de estudo para não se
deixar levar pela subjetividade.
As categorias classificatórias de Bacon denotam um modelo epistêmico originado
na tradição cartesiana, segundo o qual a realidade pode ser conhecida através da razão em
oposição à perspectiva particular gerada pelo caráter subjetivo. Nesse sentido, tudo que não
fosse fruto da objetividade não era considerado uma forma válida de conhecimento,
segundo a epistemologia cartesiana. Nela a razão masculina se opõe à emoção feminina.
Dewey se apóia nesse pressuposto para produzir um sistema de classificação
construído a partir de aspectos objetivos.162 A principal meta deweyana - enquanto proposta
de uma linguagem universal - era evitar confusões no processo de comunicação. Para tanto,
os números arábicos foram considerados como a única forma de representação do
conhecimento que poderia ser utilizada em âmbito internacional.
Os números foram associados aos assuntos, constituindo-se assim a relação entre
números e significados temáticos, e, por fim, os temas foram reunidos no mesmo lugar.
Além disso, os números também possuíam outra característica importante para sua adoção
como linguagem universal: além do potencial para a expansão sem limites, um caráter
objetivo inquestionável.163
Para atingir tal característica, o conteúdo e a estrutura da CDD eram definidos,
primeiramente, a partir da regra epistêmica, que privilegiava o parecer de especialistas das
diversas áreas de conhecimento.164 Ele privilegiou a proeminente autoridade do saber
competente. Para tanto, contou com o parecer dos acadêmicos (botânicos, matemáticos,
psiquiatras), contemporâneos do autor durante o processo de elaboração da CDD. O
objetivo era refletir a posição dos especialistas do saber nas diferentes áreas do
conhecimento ocidental.165 Essa prática não consistia em novidade, visto se tratar de uma
tradição reconhecida desde a Antigüidade Clássica e na qual o próprio esquema de Bacon
se apoiava.166
161
Ibidem.
Ibidem.
163
Idem, p. 21.
164
Idem, p. 18.
165
Idem, p. 28.
166
Idem, p. 29.
162
63
As definições adotadas por Dewey foram derivadas da visão de especialistas
temáticos, experts em suas disciplinas. A opinião deles foi levada em consideração para se
justificar às decisões que foram tomadas para a construção do aparato. Nesse caso, para
cada termo receber um tratamento dentro da linguagem do sistema, ocorreu a consulta a um
especialista à época. Estes especialistas determinaram os temas de suas disciplinas, os quais
foram associados aos números e à linguagem proposta por Dewey.
Esse modelo, baseado na autoridade acadêmica, era nutrido pelas regras de
comando dos especialistas que construíam a ordem, a conformidade e a aceitação, enquanto
modelo de um sistema com cobertura universal do conhecimento.167 O controle através da
autoridade acadêmica representou o meio através do qual se forçava o indivíduo a se
adequar às normas de uma linguagem universal. Dewey ao aceitar o pressuposto de que a
universalidade e a razão eram necessárias - para controlar a diversidade caótica -, subjugou
a idéia das diferenças em nome da universalidade.
Em 1876, no mesmo ano em que Dewey publicou a primeira edição de sua
classificação, o Departamento do Interior dos Estados Unidos, através da Secretaria de
Educação, publicou a Rules for dictionary Catalog, de Charles Cutter. O autor fez três
revisões desta obra, sendo que sua quarta edição, publicada em 1904, foi a mais citada e
mais debatida. A obra de Cutter foi a progenitora da LCSH.168
Para Cutter um catálogo deveria atingir os seguintes objetivos: capacitar uma pessoa
a encontrar um item específico - fosse através do nome do autor, do seu título, ou do
assunto -, a mostrar o que uma biblioteca reunia em seu acervo, e a auxiliar um usuário na
escolha de um livro, segundo suas necessidades.169 Cutter também propôs os meios através
dos quais se poderia atingir esses objetivos, incluindo duas das formas mais presentes nos
catálogos correntes: as “entradas por assunto” ampliadas pelas “referências cruzadas”.
Entre os métodos para elaboração desse sistema, o autor optou por: entradas que
levassem em consideração as pessoas que o usavam; as que mantivessem relação de uma
entrada com as outras, gerando um princípio que cobrisse a todas; e as que possibilitassem
uma organização que ajudasse na localização. Essas opções focalizavam o “público”, a
167
Idem, p. 144.
Idem, p. 38.
169
Idem, p. 39.
168
64
“linguagem universal”, e a “estrutura hierárquica”.170
Para Cutter, o esquema só poderia ser considerado válido se conseguisse ajudar seus
usuários. Nesse caso, o público era o árbitro da linguagem incorporada no catálogo. Para o
autor, o usuário do sistema possuía um modo peculiar de observar as coisas. Essa idéia
parece não se articular com a regra da linguagem universal, porém, essa postura atendia às
necessidades de um público singular com necessidades específicas. Tratava-se de encontrar
um nome para cada tema, para esses, então, serem reunidos sob um contexto de
semelhança. Algumas vezes as palavras não eram exatamente sinônimas, mas eram tratadas
como se fossem. Essa sistematização além de optar pela exclusão de alguns temas, também
se orientava por meio de uma visão conservadora.
Para Hope A. Olson, a proposta do autor não se preocupava com a predominância
ideológica desse público.171 Se a linguagem era universal e derivava do uso por um público
singular, a inclusão de “todos os outros” não era possível. Cutter não via problemas em
privilegiar um termo em relação ao outro. Nesse processo, a opinião da maioria era
privilegiada por uma seqüência de regras práticas, como por exemplo, a de que face às
palavras sinônimas, devia-se escolher palavras utilizadas pelo maior número de pessoas.
Uma vez que a terminologia da entrada fosse escolhida, as demais palavras sinônimas
deveriam ser relacionadas e também obedeceriam a uma ordem determinada pela
preferência do público. Nesse sentido, a opinião da maioria era imposta para todo
mundo.172 Com tais características, àqueles que não se ajustassem, ou àqueles que de
alguma maneira fossem diferentes, restava a exclusão.
Cutter levantou a necessidade da estrutura hierárquica com o objetivo de arranjar o
vocabulário da linguagem universal,173 apoiando-se na lógica da razão pública. Na sua
concepção, essa circunscreveria os limites para o controle da linguagem, porém o
idealizado público singular, por vezes, não conseguia atingir esse objetivo. Nesse aspecto, o
autor reconheceu a dificuldade deste em determinar os níveis de especificidade e de
organização, assim prescreveu regras para garantir a uniformidade de acesso, visto que ele
mesmo passou a ter dúvidas em relação à sabedoria do público.
170
Idem, p. 40.
Idem, p. 41.
172
Idem, p. 42.
173
Idem, p. 94.
171
65
Por vezes, a busca de um sistema - definido pelas necessidades singulares de uma
comunidade - possuía obstáculos, surgidos de uma diversidade de necessidades que não se
constituía enquanto maioria. Diante da inconsistência do público, o autor prescrevia que o
mesmo deveria adaptar seu comportamento ao uso do catálogo. Na iminência de tais casos,
Cutter acreditava que uma universalidade planejada era melhor do que não ter nenhuma
universalidade.
Em sua obra, ele estabelece como objetivo o ideal de uniformidade, onde
privilegiava, inicialmente, a representação temática direcionada às necessidades de um
público homogêneo. Quando não era possível considerar o público enquanto árbitro, a
segunda opção era adotar os nomes de cabeçalhos usados por outros catálogos. Tal opção
conduzia à adoção de uma linguagem com o objetivo de reunir temas similares. Esta
proposta criou uma estrutura de controle, porém ficou evidente que o tratamento igualitário
à diversidade não era um requisito necessário à ordenação.
O ano de 1876 foi importante para o futuro das LDs mais utilizadas pelas
bibliotecas, pois Dewey e Cutter estabeleceram os princípios de suas estruturas e as
justificaram sob a idéia de subjugar sob a autoridade acadêmica e sob a razão de um
público majoritário a anarquia da natureza. Na forma de um paternalismo característico do
período, cujo controle se estendia através da ordem imposta por uma hierarquia estruturada
em oposição ao medo da anarquia e do caos. Não havia espaço para a tolerância apoiada
nos moldes da razão legitimada pela esfera pública.174
O conceito de público-masculino, em oposição ao privado-feminino, é a chave para
observar como Cutter e Dewey cooptam a voz dos outros, enquanto grupo heterogêneo que
é homogeneizado através do poder da autoridade e da razão pública.175 Ambos
incorporaram idéias rígidas às suas propostas: Dewey ao empregar a hierarquia através do
modelo decimal de classificação,176 Cutter, ao privilegiar uma estrutura conectiva, na forma
dicionário-catálogo, propondo um conjunto inteiro e fechado de relações entre nomes.
Nesses modelos, os termos foram representados a partir da uniformidade, onde o
resultado foi a marginalização e a exclusão de tópicos que não se ajustavam, ou por causa
dos cânones eleitos pelos especialistas para descrevê-los, ou por causa do público singular
174
Idem, p. 61.
Idem, p. 66.
176
Idem, p. 140.
175
66
não valorizá-los.177 As obras de Dewey e Cutter refletem um contexto cultural, cujas
pressuposições constituem um patrimônio que alcançou a contemporaneidade.
O debate teórico sobre universalidade da linguagem, contudo, ainda no século XIX,
deu lugar à diversidade de interpretações. Essa ambivalência deixou em aberto a questão de
que uma linguagem universal tinha limites e que esses limites não estavam nitidamente
definidos. Os sistemas de classificação, almejados por Dewey e por Cutter, não eram
neutros e estavam longe de serem ferramentas objetivas, visto que refletiam a reforçavam
perspectivas singulares.178
Dewey, por exemplo, reconhecia que durante a classificação pessoas diferentes, em
locais diferentes, ou a mesma pessoa – passado um longo período de tempo -, classificavam
o mesmo conteúdo de forma diferente. Esse aspecto levou Dewey a aceitar como válidas as
razões locais para decidir o que fosse considerado, em nível prático, como a melhor forma
para classificar os assuntos. No caso de Cutter, quando o autor advoga em favor das
necessidades de um público singular, indiretamente, essa postura gera o debate sobre a
imposição de uma universalidade em detrimento da diversidade.
Apesar de todos os esforços de Dewey e Cutter em subjugar a natureza caótica,
estava claro que suas propostas não conseguiam acomodar adequadamente todas as
especificidades. A proposta de vocabulários universais, com estruturas rígidas, não
conseguiria atingir esse objetivo. Em parte, devido aos limites esboçados entre esse
preterido público universal e os públicos marginalizados e excluídos. Dewey e Cutter não
viviam ainda em um mundo tão complexo quanto o contemporâneo, assim não puderam
antecipar os problemas enfrentados pelos sistemas de classificação do século XXI.
4.2 O tratamento da informação enquanto reiteração do saber competente
A CDD e a LCSH de hoje em dia, carregam o legado de Dewey e Cutter, visto que
reiteram procedimentos que têm o objetivo de produzir a uniformidade. O que está exposto
nos catálogos da grande maioria das unidades de informação – bibliotecas, centros de
documentação, por exemplo – é o interpretação das LDs realizada pelos indexadores. Tratase de um passo além dos princípios apresentados por Dewey e Cutter: o da aplicação
177
178
Idem, p. 141.
Idem, p. 93.
67
técnica desses modelos.179 Eles possuem três características: um vocabulário limitado (a
partir do qual um indexador escolhe termos para descrever o conteúdo de um documento);
uma notação ou um cabeçalho para cada conceito; e uma estrutura que define as relações
entre os conceitos.
O profissional da informação, ao usar esses instrumentos de classificação, outorga
um nome ao documento, rotulando-o e atribuindo a esse uma identidade. Essa postura –
enquanto atividade técnica - não é isenta de uma visão de mundo baseada em experiências
pessoais, crenças e paradigmas. O ato de representar um determinado assunto não consiste
apenas em atribuir números de classificação, segundo a perspectiva deweyana, ou
determinar o cabeçalho de assunto, segundo a perspectiva cutteriana.
Olson denomina esse processo como “nomear”,180 pois não o entende como uma
simples tarefa, mas como uma forma de poder ligado ao controle da representação dos
conteúdos e do acesso aos assuntos. O ato de nomear está na base da construção dos SRIs,
poderosas ferramentas que, ao impor a uniformidade, estabelecem - segundo a definição da
autora - uma linguagem universal arbitrária, despótica, tirânica e violenta.
As LDs – em questão - possuem a função de nomear o universo de conceitos
presentes nas publicações mais generalizadas. O tratamento apoiado nesses instrumentos
define os limites do sistema de representação no que se refere às suas inclusões e exclusões.
Esse processo acaba produzindo sérios problemas face à imposição de uma linguagem
universal para a representação dos assuntos.181 Para Olson, a necessidade desta imposição
acabou por marginalizar e excluir os “outros” que não eram homens, brancos, ocidentais,
burgueses, heterossexuais e cristãos.182
Dos setores sociais que mais contestaram a legitimidade dessas ferramentas, estava
o das feministas – que possuem as melhores críticas documentadas - e se referiam ao
sexismo presente na representação de materiais sobre e para mulheres.183 Enquanto
resultado da crítica ao sexismo, foram empreendidas ações e reflexões com o objetivo de
denunciar a parcialidade dos sistemas de representação.
179
Idem, p. 183-4.
Idem, p. 4.
181
Idem, p. 6.
182
Idem, p. 142.
183
Idem, p. 7.
180
68
Esta parcialidade ocorria porque os sistemas foram montados a partir de oposições
binárias, onde a relação hierárquica entre dois conceitos tornava um dominante e visível e o
outro subordinado e invisível.184 Aqui é possível identificar uma das dicotomias existentes
no pensamento ocidental, segundo a qual o sujeito autorizado a falar em nome da razão e da
objetividade foi associado ao masculino, enquanto ao feminino coube o campo das
emoções e da subjetividade. Por se ligar à razão o sujeito masculino produz o conhecimento
e pode definir e impor seus modelos de “verdade universal” subordinando o dos “outros”.
As feministas rejeitaram essa primazia masculina, buscando promover a revalorização da
esfera feminina. Tal postura crítica produziu resultados e mudanças nas LDs, mas acabou
gerando outros problemas.
O tratamento igualitário entre os homens e as mulheres tentado pela CDD 21
demonstrou que algumas diferenças, hierarquicamente, acabaram sendo mais valorizadas
do que as outras, gerando uma série de opressões. O resultado é que no topo da hierarquia
haverá sempre um grupo reunido devido a sua especificidade - como as mulheres, por
exemplo -, mas haverá a dispersão de outros grupos associados ao gênero feminino
localizado em um nível hierárquico menor.185
Na CDD, o princípio básico é que as partes da classificação são arranjadas pela
disciplina e não pelo tema. Porém quando se trata de acomodar materiais sobre identidades
ligadas a grupos sociais, esses são classificados para ficar em conjunto (da mesma forma
que um gueto), cada vez mais especifico se a identidade possuir outras sub-identidades –
ligadas a gênero, raça, classe social, orientação sexual, religião – que vão sendo
constituídas à medida que se recuperam as combinações possíveis através das tabelas que
compõe a CDD.186 Assim, diversas facetas podem ser incluídas no número de classificação,
visto que esse, primeiramente, é associado a um tema, no qual mais elementos são
representados através das concatenações com outros números.
Essa possibilidade, contudo, cria guetos onde o “outro” é colocado, sendo que, ao
mesmo tempo, esse “outro” ocupa uma posição privilegiada sobre os demais “outros”.
Desta forma, as diferenças vão sendo mapeadas, em nível de especificidade, e as
subdivisões obedecem à hierarquia da uniformidade deweyana, construída a partir de uma
184
Idem, p. 179.
Idem, p. 175.
186
Idem, p. 190.
185
69
primeira identidade delimitada pelo gênero masculino.187
Este dilema, segundo Olson, ainda pode ser tratado como uma oposição entre a idéia
do gueto e a da diáspora, onde é possível isolar grupos marginalizados concentrando-os em
uma área, em oposição à dispersão dos mesmos. Assim eles não têm uma existência
concentrada em um local, mas correm o risco de serem assimilados noutras áreas da CDD e
perderem sua identidade se não se concentrarem.
O gueto e a diáspora, segundo a autora, são imagens espaciais delineadas a partir da
experiência histórica de grupos marginalizados.188 O gueto é formado por uma
concentração forçada de pessoas que dividem uma característica particular. Há diversos
aspectos que criam e mantêm os guetos: social, econômico, político, psicológico. Um
aspecto relevante da guetoização é o confinamento. Eles se institucionalizam de várias
formas, inclusive nos catálogos das unidades de informação.
Outro aspecto sobre os guetos, ressaltado pela autora, se refere à idéia da
visibilidade. A visibilidade de grupos marginalizados faz do espaço um conceito importante
que deve ser considerado pelo processo de representação temática. Os indivíduos que têm
características comuns podem viver em espaços transparentes sem as barreiras do gueto.
Em oposição, há o espaço do gueto que preserva as demais identidades, mas apresenta a
visibilidade controlada do “outro”.
O outro mecanismo a que se refere a autora é a diáspora, que funciona como um
produtor de dispersão do grupo. Essa idéia também pode ser traduzida como a inexistência
de raízes, de vínculos que liguem o sujeito a algum lugar. A diáspora altera o contexto
referente aos grupos que não estão visíveis, pois são colocados em diferentes locais
produzindo identidades híbridas.189
No arranjo característico da CDD esses problemas acabam ocorrendo, pois o
sistema de classificação elaborado por Dewey não consegue evitar essa característica,
particularmente quando a diversidade atravessa uma categoria. O autor, ao invocar a idéia
de uma linguagem universal apoiada em processos racionais, não previu uma norma que
estabelecesse o tratamento igualitário da diversidade humana. Tal fato está na raiz da falta
187
Idem, p. 212.
Idem, p. 185.
189
Idem, p. 186.
188
70
de flexibilidade dessa linguagem.190 Se a CDD dilui ou guetoiza, ela o faz em nome de uma
funcionalidade motivada pelas áreas de especialidades da razão.
Dewey deixou os especialistas livres para estabelecer seus cânones. Eles definiram
o que era menor, ou o que era o “outro”, relegando-o a uma posição secundária e
amontoando-o com diversos “Outros” que partilhassem uma relação em um mesmo
conceito, ou que fosse agrupado com algum conceito que fosse julgado grande o suficiente
para ter seu próprio número.191 Os temas menores, então, compuseram essa hierarquia
através de uma oposição binária. Eles são os membros subordinados aos temas maiores que
são dominantes. Neste sentido, os temas menores passaram a ser considerados pequenos e
menos importantes.
A autoridade acadêmica que inicialmente orientou Dewey acabou por construir
espaços de alocação dentro da CDD, semelhantes aos guetos urbanos.192 Se se esperava que
a linguagem universal deweyana nomeasse a informação para dar-lhe uma identidade, ela
também acabou por salientar a diferenciação. Essa estrutura, simbolicamente, resultou na
marginalização de determinados grupos. Porém, a proposta de universalidade não era uma
questão exclusiva à CDD: ela também estava presente na sistematização da LCSH.
Neste mesmo período de Dewey, Cutter produzia uma linguagem restrita, uniforme
e que subordinou tudo o que se adequava ao entendimento público. Para Cutter, a
identidade era outorgada de acordo com o hábito público, assim como a autoridade era
reconhecida através da obediência, da conformidade e da aceitação das regras. Nesse caso,
o autor dimensiona a diversidade através da idéia do anormal, da exceção à norma, do
desviante da regra pública.
A partir de então Cutter colocou o não usual nas margens da linguagem universal,
construída sobre princípios que marginavam ou excluíam os desvios. Para o não usual ser
incluído deveria ser anormal demais, grotesco, ou incomum, sendo que apenas exemplos
extremos eram considerados de interesse do público.193 O tratamento do outro não era feito
na base de uma exclusão absoluta, mas de uma marginalização que o escondia atrás do
termo majoritário, reconhecido enquanto identidade validada na autoridade do público.
190
Idem, p. 175.
Idem, p. 122.
192
Idem, p. 181.
193
Idem, p. 81.
191
71
Nesse caso, os valores deste poderiam apagar tópicos relacionados ao interesse minoritário
por não considerá-los importantes para a maioria da sociedade.194
O tópico marginalizado pelo público não tinha uma voz para nomeá-lo.195 O que era
o mesmo que dizer que não podia ser expresso nesta linguagem. O diferente era
inexprimível, tendo assim a sua identidade negada em oposição à identidade aceita pela
maioria. Esse modelo refletia os produtos resultantes vistos pelos usuários: os catálogos.196
Essa autoridade era responsável pela restrição do vocabulário.
Provavelmente os editores da LCSH, com o passar do tempo, reconheceram que
essa singularidade não funcionava sempre, porque começaram a alterar os cabeçalhos da
LCSH. Em 1996, por exemplo, a palavra “Seres Humanos” substituiu a palavra “Homem”
no cabeçalho da LCSH. Até então “Homem” ainda era usado como um termo genérico para
se referir à humanidade. Na hierarquia da lista, era o termo dominante, ou a norma, que
podia ser entendido tanto em nível biológico quanto antropológico. As palavras “mulheres”
e “homens” eram termos menores de “Homem”. Nesta hierarquia, “mulheres” eram
subordinadas a “Homem”.197
O termo “Homem”, ideologicamente, destacava o poder dos poucos privilegiados
que dominaram, e ainda dominam, o ocidente. Essa universalização criava uma categoria
hegemônica que tinha o poder de definir. Assim, nas relações hierárquicas do cabeçalho de
assunto, os termos “menores” eram definidos como subordinados aos termos maiores, visto
que conceitualmente estavam contidos por sua cobertura.198 Esse aspecto expõe os limites,
sistematizados por Cutter, entre universalidade e diversidade, revelando como estes se
referem mais a questões construídas sob um determinado contexto social – apoiados mais
no entendimento público do que em fatos inatos.
A proposta de Cutter é parte da cultura na qual ela cresceu, baseada, também, no
dualismo da lógica cartesiana, valorizando a razão pública e rejeitando a diversidade
(mesmo tacitamente quando reconhecia sua existência). Entretanto, as inconsistências da
proposta cutteriana levaram ao reconhecimento de que era preciso fazer revisões e
194
Idem, p. 93.
Idem, p. 143.
196
Idem, p. 144.
197
Idem, p. 149.
198
Idem, p. 150.
195
72
acréscimos periodicamente na LCSH,199 o que possibilitou a inclusão de temas para os quais
originalmente ainda não havia representação.
Na concepção de Dewey e Cutter, os modelos de representação temática
homogeneizaram e rejeitavam as exceções e as diferenças.200 Tal fato ocorreu porque o
processo de sistematização propôs a contraposições de nomes, criando situações propícias
ao emprego privilegiado de uma identidade. A aplicação desses princípios, num primeiro
momento, fez com que os profissionais da informação reiterassem o discurso autorizado, e
posteriormente, criticassem esse discurso por marginalizar ou excluir a diversidade. Essa
atitude abriu espaço à revisão dos limites entre o sujeito e o “outro”. O aparecimento de tal
elemento passa a diluir essa polaridade binária, colocando questões que as LDs tradicionais
não conseguiam resolver. O caminho estava aberto às novas propostas.
4.3 A hierarquia dos “termos” modernos: Homossexualismo/ Psiquiatria
Desde as implementações das propostas de Melvil Dewey e de Charles Cutter,
ocorreram muita mudanças referentes à CDD e a LSCH, mas o acesso aos assuntos, durante
muitos anos, foi veículo de valores que privilegiaram discursos do pensamento dominante.
Os tabus, propagados através desses discursos pretendiam legitimar a ordem – entendida
como razão científica e razão pública – por temor da anarquia, ou medo do caos, marca da
civilização montada sob os moldes do homem burguês.
No próprio Oxford English Dictionary, à época de Dewey e Cutter, havia a
definição que apresentava uma leitura da anarquia, e da falta de ordem, como “desordem
moral” e “ausência ou não reconhecimento da autoridade e da ordem em nenhuma
esfera”.201 Nessa perspectiva, a ordem era uma condição na qual todas as coisas estavam
num lugar apropriado, desempenhando funções de uso apropriadas e em obediência a uma
autoridade constituída. Essa definição não era apenas ideal, mas transparecia através da
sistematização presente nos catálogos e nas atitudes dos profissionais presentes nas
bibliotecas.
199
Idem, p. 167.
Idem, p. 106.
201
Idem, p. 16.
200
73
Olson apresenta o relato de Judy Grahn202 que, em 1961, ao tentar conseguir livros
que tratavam do tema homossexualidade, foi informada de que esses assuntos eram
acessíveis apenas a acadêmicos, psiquiatras e advogados, porque eram esses profissionais
que lidavam com temas referentes a doenças mentais e à criminalidade. O que mais
impressionou Judy foi o fato de que as próprias palavras referentes ao tema – homossexual
ou lésbica - sequer tenham sido proferidas pelos bibliotecários.
O cuidado de não nomear parece seguir, religiosamente, a orientação dada pelo
apóstolo Paulo, em sua epístola aos Efésios (como já foi tratado no segundo capítulo).
Outra especulação, paralela em nível religioso, é a de que a organização da uniformidade da
linguagem, a partir do ato de nomear, é tomada pelo gênero masculino, de forma
semelhante ao poder dado a Adão por Deus.203 Essas considerações reiteram a idéia de que
os valores os religiosos parecem ter sido traduzidos para a modernidade científica, que os
legitima pelo poder da razão, e que, posteriormente, esses mesmos valores passam a se
refletir no processo de mediação realizada pelos profissionais nas bibliotecas.
O relato de Judy Grahn, presente na reflexão de Olson,204 é importante para
entendermos todo esse processo e como o acesso ao assunto homossexualidade era tratado
em bibliotecas norte-americanas no início dos anos sessenta. Essas atitudes, segundo a
autora, se originaram de uma aceitação, inquestionável, de pressupostos presentes no senso
comum.205 Ela se refere a Foskett, quando este escreveu sobre o problema, afirmando que
os criadores dos esquemas de sistematização das linguagens não escapavam as
compreensões dadas por suas experiências pessoais e pelo contexto temporal, o que os
conduzia a resultados “preconceituosos”.206
Poucas mudanças, efetivamente, ocorreram no tocante ao tratamento da informação
para homossexuais, assim como para outros grupos minoritários, sendo identificado três
problemas: a maioria das representações se baseia numa visão parcial; elas não atendem a
um tratamento igualitário para denotar as diferenças; elas homogeneizam os resultados,
202
GRAHN, Judy. Another Mother Tongue. Gay Words, Gay Worlds. Boston: Beaton Press, 1984. p.
xi. apud: OLSON, Hope A. Op. Cit., p. 2.
203
OLSON, Hope A. Op. Cit., p. 129.
204
GRAHN, Judy. Op.Cit, p. xi. apud: OLSON, Hope A. Op. Cit., p. 2.
205
OLSON, Hope A. Op. Cit.,, p. 3.
206
FOSKETT, A.C. Op. Cit, 117-21. apud: OLSON, Hope A. Op. Cit., p. 7.
74
impondo uma linguagem universal em diversos contextos.207 A representação da
homossexualidade na CDD e na LCSH foi afetada pelos padrões herdados de Dewey e de
Cutter, pois a tentativa desses autores em produzir linguagens universais acabou por gerar
setores colocados nas margens dos sistemas.
Na CDD, não é possível atingir a proposta original do autor, visto que o conceito de
universalidade é aplicado como se contemplasse a diversidade.208 Nesse sentido, a
classificação das publicações sobre homossexualidade vai encontrar dificuldades. Como a
organização é feita por áreas do conhecimento, o material pode ser classificado em, pelo
menos, três locais diferentes: Ciências Sociais (classe 300), Artes (700) e Literatura (classe
800), podendo gerar o efeito da diáspora, onde as informações são colocadas em lugares
separados sob diferentes classificações.
Por outro lado, também há o fenômeno da guetoização, visto que o número geral de
um assunto – como “Estratificação Social” - é separado por meio de números específicos.
Assim, a seção para gays e lésbicas é a “305”, e eles ficam juntos com outros grupos sociais
que tenham características em comum, tais como: raça, classe social, religião, etnia.209 Para
se estabelecer uma distinção entre esses segmentos, a CDD faz o uso das tabelas. Ao fazer a
classificação a CDD estabelece caminhos – ou por meio da orientação sexual, ou por meio
da raça -, que sedimentam os guetos e que acabam privilegiando a representação de um
aspecto referente a identidade em detrimento dos “outros”.210
Na CDD, a Tabela 1 possui a categoria numérica para homens gays acompanhada
por lésbicas (reiterando o padrão de listar o gênero feminino após o masculino). Para uma
melhor visualização dessa organização fomos buscar essa forma de sistematização na
Tabela 1 da vigésima primeira edição da CDD,211 a partir da qual serão reproduzidos
trechos, colocados dentro de quadros e com destaque para as frases em negrito, com o
objetivo de apresentar o caminho realizado para se sistematizar a informação referente a
gays, lésbicas, bissexuais e transsexuais no seu interior:
207
OLSON, Hope A. Op. Cit., p. 9.
Idem, p. 223.
209
Idem, p. 175.
210
Idem, p. 222.
211
Dewey Decimal Classification and relative index. Edition 21. Albany: Forest Press, 1996. Vol. 1.
p. 3-28.
208
75
TABLE 1. Standard Subdivisions
SUMMARY
- 01 Philosophy and theory
- 02 Miscellany
- 03 Dictionaries, encyclopedias, concordances
- 04 Special topics
- 05 Serial publications
- 06 Organizations and management
- 07 Education, research, related topics
- 08 History and description with respect to kinds of persons
- 09 Historical geographic, persons treatement
- 08 History and description with respect to kinds of persons
SUMMARY
- 080 1-080 9 Forecasting, statistics, illustrations, serials, museums and collecting, historical and
geographic treatment
- 081 Men
- 082 Women
- 083 Young people
- 084 Persons in specific stages of adulthood
- 085 Relatives Parents
- 086 Persons by miscellaneous social characteristics
- 087 Persons with disabilities and illnesses, gifted persons
- 088 Occupational and religious groups
- 089 Racial, ethnic, national groups
- 086 *Persons by miscellaneous social characteristics
Not provided for elsewhere
- 086 2 * Persons by social and economic levels
- 086 3
*Persons by level of cultural development
- 086 5
*Persons by marriage status
- 086 6
*Persons by sexual orientation
Including persons with no sexual orientation, transsexuals
- 086 62 *Heterosexuals
- 086 63 *Bisexuals
- 086 64 *Gays
- 086 642 *Gay men
- 086 643 *Lesbians
76
Trata-se das identidades de gênero sexual contempladas pelo esquema deweyano e
elaboradas enquanto definições adequadas à hierarquia da Tabela 1, sendo incluídas através
dos tópicos destinados às pessoas em virtude da orientação sexual.212 É preciso destacar
ainda o caso dos “estudos queer” que por causa da novidade histórica e da sua proposta
teórica são considerados de difícil classificação.213
A LSCH também possui aspectos que precisam ser destacados no tocante ao
tratamento da homossexualidade. Desde 1897, Cutter através de sua obra - Rules for a
Dictionary Catalog – revelou já possuir a consciência sobre o uso do termo “inversão” Havelock Ellis já escrevia sobre esse assunto -,214 porém, como foi visto, ele defendia que o
catálogo deveria utilizar a terminologia mais corrente e familiar ao público. Essa proposta,
apoiada na perspectiva do “público singular”, é criticada por Olson, pois a autora a
considera um fator que oprime e marginaliza as pessoas que não compartilham das normas
do público majoritário, entre elas, as que se referem à orientação sexual.215
Olson não foi a primeira a se contrapor a essa perspectiva cutteriana. Em 1971,
Sanford Berman,216 à época indexador na Hennepin County Library, apresentou o trabalho
“Prejudices and Antipathies: A Tract on the LC Subject Heads Concerning People”, onde
também criticou a forma como este tema era representado na LCSH. Seu trabalho é
importante porque, além de colocar o problema em evidência, propõe mudanças sobre o
tratamento do assunto na LCSH.
Ellen Greenblatt em seu artigo “Homosexuality: The Evolution of a Concept in the
Library of Congress Subject Headings” recupera a história do termo “Homossexualidade”,
demonstrando como até 1946 este foi um sub-tópico de “Perversão Sexual.”
212
OLSON, Hope A. Op. Cit., p. 219.
O termo queer, como foi visto no capítulo segundo, originalmente era utilizado de forma pejorativa, depois
passou a ser adotado como uma afirmação positiva pelo movimento GLBT. No campo teórico fundamentou
uma linha de estudos referentes à descontrução das identidades de gênero sexual.
PARKER, Richard. Abaixo do equador: culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunidade
gay no Brasil. Rio de Janeiro/ São Paulo: Record, 2002. p. 26.
214
OLSON, Hope A. Op. Cit., p. 75.
215
CAMPBELL, G. Queer theory and the creation of contextual subject access tools for gay
and lesbian communities. Knowledge Organization. 27 (3) 2000, p.128.
216
BERMAN, Sanford. Prejudices and antipathies: a tract on the LC subject heads concerning people.
Metuchen, N.J.: The Scarecrow Press, Inc., 1971. apud: MOYA, Cynthia Ann. Chapter 5: Libraries visited
for this study In: Talking About Pornography: A Comparative Subject Analysis of Sexually Explicit
Materials. Disponível no: http://www.green-bean.com/cynde/TalkingAboutPorn.htm acessado em 20 de
agosto de 2004.
213
77
Posteriormente, a palavra homossexualidade passou a ser utilizada como cabeçalho, sendo
que havia um re-direcionamento de “Perversão Sexual” para “Homossexualidade”. À
época, segundo a autora, “Perversão Sexual” passou a ser denominada “Desvio Sexual” e
essa expressão permaneceu até 1972.217
Naquela época, a autora alertava que embora a LC, supostamente, devesse fazer
mais o uso da linguagem pública corrente, na verdade adotava termos médicos e científicos.
Se fosse para utilizar o princípio correto, deveria ter adotado o termo “gays”, utilizando-o
preferencialmente à “Homossexualidade”. Posteriormente, ela chamou a atenção para o fato
de que apesar do “The New York Times” fazer uso do termo há muitos anos, “gays” passou
a compor a LCSH apenas em 1987. Nesse sentido, a postura da LC, enquanto responsável
pelas atualizações da LCSH, era a de ser muito lenta em implementar mudanças para
refletir uma terminologia de uso comum do público.
Na LCSH, a propensão em representar grupos marginalizados e tópicos ligados às
questões como a da orientação sexual, ganhou voz nos últimos vinte e cinco anos e ainda
não foram totalmente abrangidas.218 Uma das possíveis razões é que a proposta da
necessidade de uma linguagem universal, deixada por Cutter, criou a expectativa de um
sistema capaz de incluir todas as coisas o que, na realidade, é algo inconsistente já que há
diferenças advindas do contexto temporal.219
Para se explorar o limite entre a diversidade e a universalidade na LCSH, é preciso
aproximá-la da seguinte dualidade: as referências de equivalência e as referências de
relação. As referências de equivalência dirigem os usuários de termos não escolhidos
(sinônimos, por exemplo) para o cabeçalho autorizado.220 Nelas, a escolha de um termo em
relação aos “outros” indica que todos são o mesmo, estabelecendo, assim, a equivalência
entre termos que em princípio não são equivalentes para os usuários.221 Já as referências
feitas por relação são de vários tipos, mas - principalmente – servem para estabelecer as
217
O texto não informa precisamente como ocorreu o processo de mudança da expressão “perversão sexual”
para “desvio sexual”. GREENBLATT, Ellen. Homosexuality: The Evolution of a Concept in the Library of
Congress Subject Headings. In: Gay and Lesbian Library Service. GOUGH Cal; GREENBLATT, Ellen.
(ed.),. Jefferson, NC: McFarland & Company, 1990. p. 75-101. apud: MOYA, Cynthia Ann. Op. Cit.
218
OLSON, Hope A. Op. Cit., p. 143.
219
Idem, p. 222.
220
Embora o texto da autora proporcione um entendimento que coloca a idéia de oposição entre referências de
equivalência e referências de relação, do ponto de vista da estrutura lingüística as referências de equivalência
também são referências de relação. Apontamentos de aula da professora Marilda Lopes Ginez de Lara.
221
OLSON, Hope A. Op. Cit., p. 146.
78
relações hierárquicas. Os termos gerais (BT: Broader terms) estão situados no plano
hierárquico maior e criam o contexto. Nesse caso, a palavra “minorias”, enquanto termo
geral, serve para contextualizar o termo “gays”, relacionando, e subjugando
hierarquicamente, diversas questões: gênero, raça, etnia
e orientação sexual (gays,
lésbicas). O BT normalmente não aparece para os usuários no catálogo, contudo, é
responsável pelo contexto de um cabeçalho.
Os termos específicos (NT: Narrower terms) estão postos no sentido hierárquico
inverso. No caso, o termo “gays” está abaixo do termo “minorias”. Além disso, os usuários
poderão ser convidados a vê-lo através da referência “veja também”. Essas referências
permitem a especificação de cabeçalhos. No caso de “minorias”, como já foi dito, há
diversos grupos listados na LCSH. A estrutura criada para essas referências põe o
cabeçalho “minorias” no centro da hierarquia, ao mesmo tempo em que concentra todos
esses grupos no mesmo local.222
Há referências que não representam uma relação hierárquica: trata-se do termo
relacionado (RT: Related term), também conhecido como uma relação associativa. Neste
exemplo “Discriminação” é um termo relacionado a “Minorias”. Ainda há duas divisões
adicionais para entrada de dados - que fornecem informação contextual -, a maior é
denominada “Nota Explicativa” (SN: Scope Note) que define o cabeçalho. E a própria
forma de classificação da LCC.223 Nela, por exemplo, há números de referência na área de
“Sociologia” e na área de “Psiquiatria” que servem para contextualizar o tema
homossexualidade. No caso da última área, ela possibilita que este seja representado ainda
como uma patologia.
O termo “minoria” – entendido não como categoria numérica, mas como categoria
sociológica e política -, ao ser veiculado pela LCSH, traz em sua definição aspectos que
fazem a representação dos grupos não-dominantes. Deve-se chamar a atenção para o fato de
que esses termos se constituíram não pelos sujeitos que, por meio deles, foram enunciados,
mas pelo seu contrário, pelo dominador, enquanto a palavra “discriminação”, utilizada
como termo relacionado, reitera as questões sócio-culturais, dela decorrentes, referentes à
opressão e à estigmatização dos grupos minoritários
222
223
Idem, p. 147.
Idem, p. 148.
79
No tocante à seleção desses termos, os indexadores da LC são instruídos por um
documento - o Manual da LCSH - que estabelece as regras para a elaboração dos
cabeçalhos.224 Neste ponto, os críticos afirmam que a LCSH, mesmo ao adotar a política de
atualização da LC, buscando os termos e as categorias mais correntes, rejeitando os mais
antigos ou os tratando como equivalentes, produzem respostas inertes, apoiadas num ponto
de vista obsoleto ou ultrapassado, em relação aos temas ligados à homossexualidade. Tal
perspectiva, segundo a compreensão crítica, corre o risco de perder a dimensão histórica,
impedindo os pesquisadores de mapear a evolução dos termos correntes e dos conceitos de
um período para outro.225
As LDs tradicionais, portanto, não são ferramentas neutras, elas refletem os valores
dominantes. O problema mais presente está no limite de seus sistemas de representação:
eles não dão conta da universalidade, seja através dos números de classificação da CDD, ou
do cabeçalho de assunto da LCSH que não traduzem satisfatoriamente conceitos referentes
aos “outros”.
Na verdade, essas ferramentas, enquanto linguagens universais, colocam a
diversidade na marginalidade de suas linguagens. Neste ponto, os estudo mais recentes
sobre as necessidades de informação de gays e lésbicas, anunciam um caminho diferente,
no qual seja possível ao “outro” construir, no seu espaço de alteridade, as suas
representações.
4.4 A transição: dos conceitos hierárquicos à dinâmica da desconstrução
Parte da dificuldade de se representar as coleções através da CDD e da LCSH está
em acomodar os temas mais a partir da universalidade do que da diversidade, da
semelhança do que da diferença. Nelas, os indexadores obedecem às instruções fornecidas
para a sistematização. Nas LDs tradicionais, as estruturas produzem arquivos lineares
construídos sobre bases hierárquicas. A linearidade da CDD é numérica e a da LCSH é
alfabética e suas bases contemplam uma combinação parcial, marcada pelo privilégio de
224
225
Idem, p. 223.
CAMPBELL, G. Queer theory and the creation of contextual subject access tools for gay
and lesbian communities. Knowledge Organization. 27 (3) 2000, p.128.
80
umas categorias em relação às outras.226 Em ambos os casos, a linguagem universal não é
uma linguagem estática, embora seja efetivamente controlada e oferece algumas
possibilidades para mudanças. A CDD e a LCSH possibilitam um bom número de
traduções, mas não se definem como uma fórmula mágica de representação para a
existência inteira (ou de todas as informações), e em todos os contextos, sem provocar
marginalizações e exclusões.227
Segundo Olson,228 Drucilla Cornell, em sua obra “The Philosophy of the Limit”,
apresenta uma estrutura teórica para a transformação deste contexto, na região dos limites
de um sistema de representação, onde se pode localizar o espaço da marginalização e da
exclusão. A partir desta constatação, a autora enfatiza que é preciso deixar o “outro” (os
marginalizados e os excluídos) falarem por si mesmos. Trata-se do desenvolvimento de
uma relação ética, onde o “outro” é guiado por princípios – não obtusos - para planejar uma
técnica ativa de representação das suas necessidades de informação, rompendo assim com
os limites onde foram colocados.
Essa proposta pode criar espaços legítimos para a expressão da voz do “outro”.
Olson denomina essas técnicas como “excêntricas”, na perspectiva de que a origem grega
dessa palavra a define como “fora do centro”, ou seja, o “outro” deve trabalhar não a partir
do centro, mas a partir das margens - de qualquer sistema em uso. Assim deve romper com
os limites construídos, elaborando o próprio espaço e sendo dinâmico no tocante às
mudanças do contexto local e temporal.229
Esta proposta se manifestou na pesquisa sobre os sistemas de representação, a qual
abraçou a idéia da multiplicidade e da identidade comunitária, afirma Olson ao comentar a
proposta de Cornel. 230 Essa aproximação forneceu elementos para a revisão das ferramentas
correntes, projetando o desenvolvimento de novos caminhos. Se uma vez o Classification
Research Group sonhou com a unidade de classificação de diversos temas específicos
dentro de um grande sistema, propondo mecanismos teóricos universais, atualmente a
pesquisa sobre classificação está se movendo na direção oposta.
226
OLSON, Hope A. Op. Cit., p. 192-3
Idem, p. 223-5.
228
CORNELL, Drucilla. The Philosophy of the Limit. New York: Routledge, 1992. apud: OLSON, Hope A.
Op. Cit., Idem, p. 227.
229
OLSON, Hope A. Op. Cit., Idem, p. 227.
230
CORNELL, Drucilla. Op. Cit. New York: Routledge, 1992. apud: OLSON, Hope A. Op. Cit., p. 227.
227
81
Hoje em dia, fala-se da redefinição do controle de autoridade através do
estabelecimento de múltiplos termos autorizados. Hanne Albrechtsen,231 por exemplo,
sugeriu a expressão “ecologias da informação”, a qual se refere à elaboração de sistemas
que atendem a necessidades de informações de um determinado meio, o qual se estabelece
dentro da especificidade de um contexto. Além disso, não se ostenta mais a crença de que
um esquema de classificação seja culturalmente neutro e, portanto, aplicável
universalmente, mas se reconhece a sua relatividade em relação aos demais.232
Estas novidades afetaram o segmento GLBT, cuja crescente influência e visibilidade
conduziu a novas reflexões no tocante ao tratamento de suas necessidades de informação:
histórica, intelectual, social e política. Ao admitir a existência das bases culturais
diferenciadas e das parcialidades, os pesquisadores olharam, inevitavelmente, tais
segmentos se empenhando em atualizar os esquemas existentes e em criar outros novos. O
resultado ideal seria aproveitar os vocabulários já construídos e recuperar as categorias de
classificação sobre o segmento GLBT. Porém, os teóricos da área embarcaram nesse novo
cenário com suspeitas acerca das próprias técnicas e tradições referentes aos sistemas de
representação.
A teoria sobre a representação temática entrou em um período altamente politizado.
Nessa época, os pesquisadores partem do pressuposto de que não há mais ingenuidade: o
saber e o poder se entrelaçam no significado que circula com as informações. Não se trata
de uma crise que aflige apenas esse campo de estudos, mas se estende a outros que
descobriram que seus “axiomas” universais pertencem, efetivamente, a um contexto e
atendem às necessidades de um grupo dominante, devendo ser revisados para acomodar as
preocupações dos grupos “marginalizados”.233
Essa abordagem reconhece que a presença de categorias universais no sistema de
acesso à informação reitera a idéia de um desvio à norma majoritária. Nesse caso, sistemas
que empreendem um esquema diferente, a partir das margens, se alicerçam na legitimidade
que outros segmentos têm à expressão, vistos até então como opostos à norma. Neles, os
231
ALBRECHTSEN, Hanne. “Keynote Adress Extanded Abstract: The dynanism and stability of
classification in information ecologies – problems and possibilities. In: BEGHTOL, Calre. Et al. (ed.)
Dynamism and Stability in Knowledge Organization: Proocedings of the Sixth International ISKO
Conference, 10-13 July 2000, Toronto, Canada. Wurzburg: Ergon Verlag, 2000. p. 1-2.
232
CAMPBELL, G. Op. Cit., p. 123.
233
Ibidem.
82
termos, conceitos e categorias são adotados para refletir uma posição cultural específica,
mais do que se referir a um sistema essencial e inato composto por categorias universais.
Quando os sistemas de classificação começaram a se basear nas necessidades de
comunidades específicas, como a GLBT, eles delinearam os princípios sobre o pensamento
- corrente nas pesquisas contemporâneas – relacionado ao tratamento da informação. Nesse
caso, de que um sistema é contextual, socialmente determinado e culturalmente relativo.
Esses sistemas, por si mesmos, assim como as pessoas que o projetaram e o usam, têm
consciência de que os esquemas adotados são resultados de suas posições e tendências.
Se espera, também, que os elaboradores dos novos sistemas de classificação
articulem suas posições às da comunidade para quem o esquema será projetado. Esse
posicionamento fará parte, fundamentalmente, da natureza da ferramenta, e se tornará o
meio através do qual leitores, usuários e críticos do sistema se rebelarão e encontrarão
novas categorias transitórias. Os projetistas das ferramentas de acesso à informação terão
que se questionar sobre quem será o usuário do sistema. Além disso, esse exame nunca
terminará, e será algo com que os projetistas terão que se acostumar.234
Essas novidades atraíram pesquisas consideráveis no campo de estudos da
informação, tanto dos profissionais (ao criar e implementar ferramentas de acesso mais
eficientes) quanto dos teóricos (ao tentar articular os fundamentos conceituais sobre os
quais estas ferramentas se apóiam).
Dois problemas têm desafiado aplicação técnica das LDs tradicionais nos anos
recentes: primeiro se percebe que a determinação do conteúdo temático de um assunto é um
processo subjetivo inerente, cuja representação é difícil de ser reproduzida identicamente
por indexadores diferentes. Segundo é que as ferramentas que buscam oferecer acesso
“universal”, como a CDD ou a LCSH, prestam acesso inadequado a grupos
“marginalizados”.235
Os termos que aparecem nessas ferramentas para representar segmentos definidos
pela orientação sexual, freqüentemente, são inadequados. Os posicionamentos destes
termos, nas categorias de classificação, refletem ideologias e compreensões que são
inválidas ou datadas, e essas ferramentas não fornecem distinções refinadas para satisfazer
234
235
Idem, p. 129
Idem, p. 122.
83
as necessidades de informação do segmento gay e lésbico. Enquanto resultado destes
problemas, os pesquisadores que estudam sobre os sistemas de representação se tornaram
céticos em relação a um de seus princípios fundamentais: o de que o documento tem um
conteúdo temático inato, o qual é reconhecido pelo indexador e depois é traduzido para a
linguagem documentária.236 Hoje, aceita-se a idéia de que o profissional ao reproduzir essa
prática reitera, sem qualquer posicionamento crítico, os valores ideológicos que sustentam a
construção social.
Nos anos setenta e oitenta, a comunidade de estudos literários da Europa e da
América do Norte experimentou uma revolução epistemológica similar a que a pesquisa
sobre classificação enfrenta no final dos anos noventa. Os críticos literários foram forçados
a reconhecer que suas técnicas e hipóteses - ligadas à perspectiva universal - eram
importantes, mas que certas comunidades e minorias necessitavam de novas técnicas e de
hipóteses diferentes.
Particularmente, o aparecimento dos estudos sobre gays e lésbicas, e posteriormente
sobre a teoria “queer”, motivou a comunidade de estudos literários a re-examinar muitos de
seus textos canônicos e a vê-los de uma forma diferente. De repente, as obras
“marginalizadas” – entendidas aqui como colocadas à margem dos sistemas teóricos adquiriram um novo interesse e obras clássicas, consideradas até então sobre outro viés,
tiveram seus temas ligados à homossexualidade investigados.237
Essa postura se tornou ainda mais problemática com a incapacidade do próprio
termo “homossexualidade” servir como referência à comunidade GLBT. Neste ponto,
ainda não há consenso sobre esse debate. O eixo da discussão gira em torno da idéia de que
há experiências não categorizadas e, portanto, obscurecidas embaixo do termo
“homossexualidade”. Assim, a representação delas está esperando para ser desvelada e
nomeada.238 Este debate revela que o tratamento da informação, mesmo que seja feito a
partir das margens, também pode produzir outras formas de “uniformidade” que escondam
a diversidade.
Essa ferramenta - com o objetivo de tratar diferentes aspectos sobre a comunidade
GLBT -, terá que ser altamente sensível ao tentar compor o sistema de representação,
236
Ibidem.
Idem, p. 123.
238
Idem, p. 128.
237
84
inclusive quanto for tratar de diferentes momentos da história para não impor termos
contemporâneos para outras épocas, tendo que recuperar seus significados longínquos e
variados. Tais como palavras presentes em documentos provenientes de diversos contextos,
desde a antiguidade, do período medieval ou mesmo da época contemporânea.
Particularmente, esse é o caso para termos como “sodomia”, por exemplo, ao qual
Foucault designa como uma “categoria extremamente confusa”, e que foi usada para
denotar atividades tão diversas como bestialidade, masturbação, pederastia ou luxúria, entre
outras. Atualmente, pode se referir a sexo oral, ou anal, mesmo entre pessoas
heterossexuais casadas, e pode ser utilizada enquanto categoria criminal, em alguns países,
para colocar pessoas na prisão. Nesse caso, a reflexão dos pesquisadores deve levar em
consideração todos esses desenvolvimentos terminológicos. 239
Além disso, os membros da comunidade GLBT, público para quem esse sistema
será destinado, ocupam duas perspectivas distintas, mas relacionadas às suas necessidades
de informação: por um lado, há a aqueles que entendem suas identidades como
permanentes e imutáveis; e por outro, aqueles que acreditam que as identidades sejam
socialmente construídas. Nos dois casos, mesmo que suas categorias sejam fluídas e
instáveis, eles desejam ter o sentimento de pertencimento a uma comunidade.
Há outra perspectiva, desenvolvida a partir da teoria “queer”, que dilui
completamente a questão das identidades de gênero sexual, afastando-as do ser um
comportamento possível de ser definido, mesmo quando é tratada através da perspectiva
construcionista. Na verdade, os teóricos evitam se colocar na posição de prestar testemunho
às manifestações que possam ser apropriadas em nível de definição, face ao declínio das
construções formais sobre qualquer fenômeno que se cristalize enquanto uma identidade.
A academia, especificamente os estudiosos que se engajaram nessa perspectiva,
enfrentaram – e enfrentam - uma enorme oposição de membros da comunidade GLBT que
afirmam que existe algo que pode ser denominado, pelo menos em nível de suas
experiências. Os pesquisadores da área de representação temática podem aguardar para
serem dilacerados, como aconteceu com os críticos literários e os historiadores, que ficaram
a meio caminho entre a academia e a comunidade GLBT.240
239
240
Ibidem.
Ibidem.
85
As teorias de classificação da comunidade GLBT podem ser divididas entre dois
conceitos de sobrevivência: o da integração em um inteiro universal; e o da separação numa
minoria visível.241 Ao conhecer essas ambigüidades, os estudiosos da área de classificação
estarão melhores posicionados para criar ferramentas novas, e melhores, para o acesso à
informação deste segmento, mesmo que seja para limitar o sistema aos objetivos e
preocupações de uma comunidade em particular.
241
Idem, p. 129.
86
5 O desafio das mudanças provocadas pela explosão da informação
A partir dos anos cinqüenta, o conceito de LDs (que na reflexão de Dewey e Cutter
podiam abarcar a universalidade), passou por um forte processo de transformação.
Começaram a ocorrer dinâmicas não previstas pelos sistemas de classificação, entre as
quais: um enorme aumento na produtividade de informação; origem de movimentos sociais
com necessidades específicas; e uma liberação impressionante do potencial da razão
moderna, antes bloqueado pelos valores da religião ocidental, que se acentuou através da
racionalidade comunicativa.242
Surgem novas propostas de classificação, entre elas os “thesauri”. Esses
instrumentos passaram a classificar a informação de campos cada vez mais específicos.
Essas linguagens pareciam dar respostas mais adequadas aos problemas que Dewey e
Cutter não tinham como dimensionar. As novas ferramentas exploraram, entre muitos
aspectos, a presença do “outro”, da diversidade, caminhando em sentido oposto à
universalidade de sistemas binários e hierarquizados, como os da CDD e da LCSH: os
modelos deweyano e cutteriano não podiam mais fazer uma representação satisfatória do
mundo que surgira.
No decorrer dos anos sessenta, novos sujeitos – ligados ao debate sobre gênero,
raça, orientação sexual - estavam dando uma nova dimensão às lutas política. Naquele
momento, a homossexualidade se tornou uma instância de debate dos próprios
homossexuais. Eles rompiam com a visão do "homossexual" estabelecida nos moldes do
conhecimento instituído, dando mais atenção a como a ciência e a atuação política haviam
interagido na sua construção social.
É importante destacar: os bibliotecários e os arquivistas estiveram na vanguarda
desses movimentos, trabalhando para coletar e preservar materiais relevantes para a história
e a cultura GLBT. Além disso, diante da incapacidade das LDs tradicionais em fazer a
representação dessas novidades, eles projetaram “ferramentas” com o objetivo de
classificar a informação utilizada pelo público GLBT: tesauros para esse público. Esses
instrumentos apesar de possuirem qualificação técnica em seus sistemas de classificação,
em nível de arranjo, de estrutura conceitual, não estavam livres dos valores políticos e
242
ROUANET, Paulo Sérgio. Razões do Iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 147-8.
87
ideológicos propagados pelas organizações a que atendiam.
5.1 Quando novos sujeitos entram em cena: o segmento GLBT
Embora a rebelião de “Stonewall” seja um evento bem conhecido no meio gay e
lésbico, a comunidade, em geral, não possui consciência sobre outros movimentos que
antecedem esse fato. Nos Estados Unidos, por exemplo, o ativismo - social e político - das
minorias sexuais provavelmente começou quando Henry Gerber e alguns associados
formaram a Society for Human Rights (SHR)no ano de 1924, em Chicago. Acredita-se que
essa organização tenha sido o primeiro grupo de consciência social gay e lésbico norteamericano. A organização foi registrada pelo estado de Illinois e lançou alguns números de
uma publicação que pertencia à SHR, a “Friendship and Freedom”. Porém, os seus
participantes acabaram sendo presos e expostos ao escrutínio público.243 Outros
movimentos semelhantes a este surgiram depois, como a “Mattachine Society”, em 1951, e
a “Daughters of Bilitis”, em 1953.
Em nível de projeção política, o movimento por direitos gays e lésbicos, tanto nos
Estados Unidos quanto em qualquer outro lugar do mundo, fincou suas bandeiras após as
rebeliões de Stonewall, iniciadas na cidade de Nova Iorque em 28 de junho de 1969. Este
evento é considerado pelos historiadores como o início da radicalização da defesa dos
interesses e de origem do futuro segmento GLBT.
Depois de Stonewall, muito gays e lésbicas abandonaram o modelo integracionista
de aceitação, em favor de um movimento separatista que enfatizava as características
exclusivas de um estilo de vida. Esta mudança de atitudes teve um efeito enorme sobre a
cultura gay e lésbica, influenciando o papel desenvolvido por diversas instituições, entre as
quais, bibliotecas e arquivos específicos para as minorias sexuais.244
Stonewall representa a explosão de uma de inquietude silenciada – por décadas -,
alimentada pelos sentimentos de injustiça, desamparo, exclusão, vivenciados por muitos
gays e lésbicas. Aparentemente, a catálise necessária para a ação foi o clima político dos
anos sessenta, com forte ênfase nas idéias de justiça e de igualdade social. De fato, os
243
LUKENBILL, W. B. Modern gay and lesbian libraries and archives in North America: a study in
community identity and affirmation. Library Management. 23 (1/2) 2002, p. 93.
244
Ibidem.
88
movimento minoritário deste período estava intimamente ligado ao movimento pelos
direitos civis norte-americanos – este foi utilizado como um modelo -, e com o qual gays e
lésbicas estiveram envolvidos.245
Os movimentos sociais, deste período, surgiram com propósito à resolução de
problemas específicos, desenvolvendo formas de convivência e participação que foram
vividas como positivas em si mesmas.246 Os grupos, relacionados às questões minoritárias,
apesar de sua composição heterogênea, internamente procuravam enfatizar a igualdade de
seus integrantes. Assim, o movimento feminista ganhou um novo impulso, os negros
vieram a público exigir os direitos de cidadania, e os homossexuais mantidos sob o signo
do preconceito explodiram na forma de rebeliões e acabaram com o silêncio, começando a
se organizar com toda a intensidade, a partir das questões vitais colocadas pelo momento.
Do ponto de vista público, o desafio era tornar enunciável uma prática sexual
diferente e dizer-se sujeito dela. Afinal tratava-se de nomear aspectos da própria
subjetividade invadindo a palavra do outro, já que discursivamente a construção de uma
identidade homossexual já estava previamente definida (como pudemos ver no capítulo
segundo): pela medicina, pela psiquiatria e por outros domínios correlatos do saber. Os
homossexuais ao falar de si se sujeitam a um discurso que não haviam produzido.
Esta constatação tem uma conseqüência importante à análise histórica. Isto porque,
trabalhando com a noção de sujeito, podemos relacionar o surgimento dos movimentos de
afirmação gay e lésbica, com a configuração da possibilidade de expressão de uma
subjetividade, baseada na identificação com uma certa prática sexual.247 Afinal, como
pensar que o movimento pelos direitos defenderia a afirmação de um sujeito ainda não
constituído?
Desde os anos sessenta, intelectuais e acadêmicos - gays e lésbicas - dedicaram uma
enorme atenção para analisar e refletir sobre a questão da identidade e de outras teorias
ligadas ao movimento gay e lésbico. Num esforço de entender melhor sua dinâmica e
história.248 A noção de identidade e auto-estima, tanto quanto as preocupações políticas de
grupo, são importantes para todos os movimentos sociais culturais e políticos. No tocante à
245
Idem, p. 94.
FRAZER, Op. Cit., p. 69.
247
BOYERS, Steinery Robert. Homosexualidad: Literatura y Politica. Madrid: Alianza Editorial, 1985.
p 18.
248
LUKENBILL, W.B. Op. Cit., 94
246
89
identidade, é possível levantar a hipótese de que foi no espaço onde se desenvolvia a
literatura que a subjetividade começou a ser solidificada através de um largo público leitor.
O romance substituía a realidade das ações humanas por relações entre personagens,
assegurando o desenvolvimento literário da subjetividade das pessoas. Neste sentido, elas
formavam uma esfera pública de argumentação literária, onde a subjetividade oriunda da
intimidade se comunicava consigo para se entender a si própria. Graças à mediação da
literatura, esse conjunto de experiências da privacidade ligada ao público leitor ingressou
na esfera política.249
A consciência que a esfera pública política tinha era intermediada pela consciência
da esfera pública literária. Nestas duas configurações constitui-se um público de pessoas
privadas, cujo entendimento desenvolveu-se no discurso literário que as apresentava
enquanto seres humanos com experiências distintas e ligadas por causa de sua
subjetividade. Didier Eribon,250 de forma similar a Costa,251 analisa a obra literária de Oscar
Wilde, procurando demonstrar como a caracterização das personagens desse escritor,
paulatinamente, esboçou a figura do homossexual.
Esse trabalho de “engenharia subjetiva” tornou evidente a existência de uma divisão
dos seres humanos em duas categorias essenciais quanto à “natureza” de sua sexualidade:
heterossexuais e homossexuais. A força desta construção seria medida pelo fato de que essa
crença sempre foi partilhada pela maioria - tanto dos que condenavam as práticas sexuais
entre pessoas do mesmo sexo como desvio, perversão ou vício, quanto daqueles que saíram
em campo a defendendo.
Nessa “esfera do privado”, o sujeito homossexual construiu sua “identidade íntima”.
E por ocasião de mudanças bruscas, ou ao longo da lenta evolução da vida social passou a
questionar o desequilíbrio de sua “esfera do privado” diante da “esfera pública”, por causa
das mutações políticas. Na “esfera do público”, o homossexual passou a viver a condição
político-jurídica de cidadão, cujas regras de manutenção obedecem a leis mais ou menos
impessoais e, em princípio, válidas para todos. Assim, o conflito psicológico se tornou
249
HABERMAS, Jürgen, Op. Cit., 1984. p. 72
ERIBON, Didier. Réflexions sur la question gay. Paris: Fayard, 1999. p. 205
251
COSTA, Jurandir Freire. Op. Cit.. 1992.
250
90
político quando desestruturou a “esfera do privado”, trazendo à tona a mediação social
imperceptível na polarização conflito político-conflito psicológico.252
Nesse processo, a auto-estima se constitui como um aspecto desta mediação, pois é
afetada por forças intra-pessoais tanto quanto como por causas externas. Ela é alimentada
pela estima comunicada por outras pessoas, em âmbito externo, e por um sentimento
pessoal, no âmbito interno. Na “esfera pública”, a apresentação de si é dirigida para manter
uma auto-imagem adequada e preservar, senão para aumentar, a auto-estima. Ao atuar
dessa maneira, o sujeito (ou grupo) procura por uma imagem de si que seja conceitualmente
satisfatória e poderosa. É através desses processos de constituição da formação da própria
imagem - e do imaginário social - que os comportamentos do sujeito e dos grupos são
organizados, transformando-se em realidade. Noutras palavras, é por causa das identidades
individuais que as comunidades podem se reconhecer umas às outras e a partir de então
estabelecer relações sociais.253
Neste ponto, a teoria do desvio foi - e em alguns meios continua a ser - vista como
uma maneira adequada para pesquisar a identidade homossexual. Bill Lukenbill, cita o
estudo de Enroth, autor que usa esta aparato para refletir sobre a origem do movimento
eclesiástico gay e lésbico, sugerindo que esses grupos compartilhavam um senso comum
em relação à orientação sexual. Tal entendimento os colocava na categoria de desviantes
sociais, relegados às margens da sociedade e percebidos pelos outros como a re-negação
coletiva da ordem social.254
Enroth ainda notou que as publicações dos anos setenta - que vinham de
congregações gays e lésbicas - refletiam características que ele denominou como de
“salvação do estigma”. Na sua visão, tratava-se de um apelo do grupo de gays e lésbicas
pela aprovação da maioria de seu comportamento desviante. Neste ponto, esses grupos
eclesiásticos assumiam a diferença se subjugando hierarquicamente ao outro grupo que, por
pertencer à maioria, atendiam ao padrão de reprodução das normas sociais.
Embora a teoria do desvio tenha sido aplicada para pesquisar criminosos e
homossexuais, para Lukenbill esta prática foi descartada por alguns teóricos por ser falha
252
COSTA, Jurandir Freire. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1986. p. 133.
LUKENBILL, W. B. Op. Cit., p. 94-5.
254
ENROTH, R.M. The homosexual church: an ecclesiastical extension of a sulbculture. Social
Compass, vol 21, No. 3, p. 355-60. apud: LUKENBILL, W. B. Op. Cit., p. 95.
253
91
na sua fundamentação devido à sua parcialidade – ela é construída a partir de um modelo
hegemônico alicerçado em bases hetero-normativas -
255
encontradas na sua estrutura
conceitual.
Outro estudo referente ao movimento eclesiástico gay e lésbico, foi o de Warner
sobre a “Universal Fellowship of Metropolitan Community Churches” (UFMCC) que
atende à uma população enorme composta por gays e lésbicas, mas o autor observa que
além da UFMCC não ser uma igreja freqüentada exclusivamente por gays e lésbicas, ela se
baseava noutro pressuposto de um ponto de vista cristão para a aceitação da
homossexualidade: a teoria essencialista.
De acordo com o qual, a orientação homossexual não era um comportamento
aprendido, mas inato ao indivíduo e não podia ser mudado ou alterado. Posteriormente, essa
postura adotada pela igreja passou a sustentar que os homossexuais não eram responsáveis
por suas condições e - em termos religiosos -, tratava-se de um dom de Deus. Socialmente,
a teoria sustentava enfaticamente o conceito de que aos gays e às lésbicas era permitido ser
quem eles eram e se tornar parte do contexto social e cultural.256
Por outro lado, em oposição à teoria essencialista há a teoria construcionista pósmoderna que diz que os indivíduos são parte de uma comunidade de diálogo específica,
onde cada segmento define seu próprio sistema de valor. Conseqüentemente, a identidade
gay não existe como um fato inerente, mas é inspirada e estruturada por diferentes
contextos sociais. Trata-se de uma identidade construída historicamente. Jeffrey Weeks,
particularmente, defende que as construções mais recentes se referem à política de autoidentificação gay e lésbica.257
A teoria do discurso representa outra forma de olhar gays e lésbicas, quando dá
ênfase a pesquisa histórica que recupera os atributos que sustentam essas identidades.
Reynolds, citado por Lukenbill,258 explica que a teoria do discurso - apoiada nas mudanças
255
Ibidem.
WARNER, R.S. The Metropolitan Community churches and the gay agenda: the power of Pentacostalism
and essentialism. BROMLEY, D.G.; NEITZ, M.J.; & GOLDMAN, M.S. (Eds). Religion and the Social
Order: sex, lies, and Sanctity – religion and deviance in North America. Greenwich: JAI Press, 1995.
p. 81-108. apud: LUKENBILL, W. B. Op. Cit., p. 96.
257
WEEKS. Sexuality and its discontents: meanings, myths & modern sexualitues. London-New York:
Routledge, 1993. p. 191.
258
REYNOLDS, R. Post modernism and gay/ queer identities. ALDRICH, R. (Ed.) Gay Perspectives II:
more essays in Australian gay culture, Australian Centre for Gay and Lesbian Research, Sydney, 1994.
p. 245-74. apud: LUKENBILL, W. B. Op. Cit., p. 95.
256
92
de contexto histórico – defende a noção de identidade coerente com a temporalidade e
afirma que o sentimento de “self” se constrói. Noutras palavras, a identidade homossexual é
transitória e flutua de uma posição subordinada a um contexto e depois para outra, por
vezes até mesmo contraditórias. Esta teoria pós-moderna sugere que as identidades se
desenvolvem através das experiências, e a comunidade é constituída por meio da
experiência histórica.
Apesar dos arquivos, bibliotecas, da atuação de profissionais gays e lésbicas se
desenvolverem após o contexto político dos anos sessenta. O desenvolvimento deles não
pode ser explicado apenas como ativismo político. Para uma apreciação efetiva, é preciso
entender a importância do papel desempenhado pela constituição de uma identidade
apoiada na política do ser diferente, assim como de tomar conhecimento das teorias
epistemológicas, através dos estudos sociais e históricos ligados à origem desse
movimento.
Esta perspectiva ajuda a compreender as necessidades de informação da
comunidade GLBT, enquanto uma comunidade de diálogo, onde seus membros agem
coletivamente apresentando sua vontade. Os arquivos e bibliotecas gays aparecem,
especialmente onde há lideranças, tanto de intelectuais como de bibliotecários, que
reconhecem a importância histórica da documentação enquanto suporte às necessidades da
comunidade GLBT.259 Esse fator, particularmente, parece fundamental para o movimento
por direitos das minorias sexuais e para a constituição dos centros de documentação.
5.2 Experiências em centros de documentação ligados ao segmento GLBT
Desde as mudanças políticas e sociais ocorridas após os eventos dos anos sessenta,
inúmeras bibliotecas e arquivos gays e lésbicos se desenvolveram ao redor do mundo.
Antes, porém, é preciso recordar que um dos mais antigos centros de documentação e que
continha uma enorme divisão de materiais sobre a homossexualidade não existe mais: o
Instituto de Ciência Sexual de Berlim, comandado por Magnus Hirshfeld. O seu líder,
259
LUKENBILL, W. B. Op. Cit., p. 94-5.
93
desde 1897, fundara o “Comitê Científico Humanitário” que é considerado o primeiro
grupo sócio-político a lutar pela descriminalização da homossexualidade na história.260
No apogeu deste Instituto, a biblioteca continha 20.000 livros e uma grande coleção
de fotografias e de outros materiais, mas foi destruída com ascensão do nazismo, em 06 de
maio de 1933, por ordem de Hitler, que declarou que as publicações e as associações
homossexuais eram ilegais. Durante esse período, Hirshfeld teve que se exilar do país para
não ser preso.
Esse fato ajuda a entender afirmações como as da autora lésbica americana, Patrícia
Nell Warren, de que a história gay e lésbica é frágil e vulnerável.261 Ela lamenta o fato de
que os centros de documentação sejam poucos em termos numéricos e que eles não sejam
tão bem mantidos e alojados. Para a autora, a preservação desse locais é necessária, visto
que para se recuperar a história de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros qualquer
informação, em qualquer suporte, é importante. Caso contrário, não há como recuperar as
experiências sem os documentos, pois são eles que guardam essas evidências.
Esta perspectiva ajuda a entender a importância das bibliotecas e dos arquivos como
espaços onde se concentram documentos organizados e acessíveis, úteis à pesquisa e ao
encontro do sujeito com a documentação. Essas coleções são necessárias para ajudar a
definir e esclarecer as experiências históricas. O acervo, ao ser conservado, permite que as
gerações de gays e lésbicas - que se sucedem - possam se reunir através desse elo
representado pelos livros, revistas, fotografias, diários pessoais, entre tantas coisas.262
Muito do material que é coletado pelos centros de documentação gays e lésbicos são
únicos e, geralmente, não são encontrados em bibliotecas ou arquivos comuns. Além disso,
boa parte das entidades não tem apoio econômico e sobrevivem do trabalho de voluntários.
Assim, poucas delas possuem um quadro com profissionais habilitados a catalogar e a
classificar o material adequadamente, não conseguindo fazer com que este, que apesar de
ser coletado, possa ser avaliado pelos pesquisadores e usuários.263 Neste sentido, a
260
LAURITSEN, John; & THORSTAD, David. The Early Homosexual Rights Movement (1864-1935).
New York: Times Change Press, 1974. p. 9-13.
261
WARREN, Patricia Nell. How real is our sense of “history”? Disponível no:
http://www.rslevinson.com/gaylesissues/features/collect/guest/blwarren.htm. Acessado em 20 de ago. de 2004
262
KNIFFEL, L. You gotta have Gerber-Hart: a gay and lesbian library for the Midwest. AmericanLibraries. 24 (10) Nov 93, p. 960.
263
LUKENBILL, W. B. Op. Cit., p. 98-9.
94
inexistência de um bom aparato técnico pode gerar o desconhecimento do material
guardado no acervo.
Embora não haja estatísticas exatas, calcula-se que haja por volta de 110 entidades,
que atendam as necessidades de informação do segmento gay e lésbico, espalhadas pelo
planeta.264 Algumas de propriedade das universidades, tanto privadas quanto públicas,
outras mantidas pelo poder público, mas a maioria pertence a grupos e organizações que
funcionam com donativos e com a colaboração de voluntários. Para uma apreciação em
termos da dimensão do valor dessas entidades, é preciso reconhecer a importância do seu
papel em atender às necessidades de informação dos grupos gays e lésbicos, tanto quanto a
de outras identidades, que foram sendo constituídas.
No caso norte-americano, por exemplo, há o “One Institute and Archives”
localizado na cidade de Los Angeles. Ele é afiliado à “University of Southern
California”.265 A universidade pagou pela construção de seus novos alojamentos, mas o
Instituto sustenta suas operações por conta própria. A missão desta entidade é fomentar a
aceitação da diversidade sexual e de gênero, em nível de experiências ao redor do mundo,
dando apoio às atividades de educação e de pesquisa. Para tanto, se dedica à tarefa de
adquirir, de preservar, de organizar e de dar acesso público à informações em diferentes
suportes sobre o segmento GLBT.
Para que não haja necessidade de se repetir à similaridade dos objetivos das demais
instituições apresentadas abaixo, é importante esclarecer que, grosso modo, essas
proposições quando não são idênticas, são muito parecidas. Tal fato pode ser explicado pela
abrangência das idéias divulgadas em relação aos direitos gays e lésbicos pós-Stonewall,
cuja projeção se tornou um fenômeno mundial. Os movimentos organizados sob esta
bandeira, particularmente aqueles onde os bibliotecários se envolveram, puderam retomar e
redefinir a importância da preservação da história através da documentação.
Em Chicago, um centro que possui em suas bases o reconhecimento histórico do
ativismo, é a “Gerber Hart Library” que recebeu esse nome em homenagem ao organizador
do primeiro grupo em defesa dos direitos gays: o “Society for Hunan Rights”, já citado no
item anterior.266 Para funcionar, a biblioteca conta com o trabalho de voluntários e depende
264
Idem, p. 97.
Idem, p. 96.
266
KNIFFEL, L. Op. Cit., p. 958.
265
95
de doações. Ela mantém uma coleção de 8.000 volumes e materiais arquivados, além dessa
coleção, presta serviços ligados a programas culturais e educacionais para gays, lésbicas e
bissexuais.
Além dos centros de documentação mantidos por universidades e por voluntários,
também há coleções específicas para gays e lésbicas presentes nas bibliotecas públicas.
Como na “New York Public Library”, famosa por ser um grande centro de pesquisa em
nível mundial, que apesar de ter materiais de grande importância para o segmento gay,
possui um guia que avisa ao usuário de que há muita dificuldade em encontrá-los. A maior
parte do material foi sistematizada de forma bastante vaga, a qual colocava esses itens sob o
cabeçalho “taboo”.267
Nesses casos, grupos como o “Gay, Lesbian, Bisexual and Transgendered Round
Table”, órgão profissional que reúne bibliotecários gays e lésbicas - que veremos mais a
frente -, criticam severamente a atuação do profissional que não se mobiliza para garantir o
acesso dos usuários gays e lésbicas, acusando-os de tratar o tema com indiferença ou
mesmo com negligência.268
Outro centro importante para o segmento gay e lésbico se encontra na Filadélfia: a
“AIDS Library”. Em parte, devido a história inicial da síndrome que acabou associando a
identidade gay à AIDS. Foi uma das primeiras bibliotecas abertas ao público que se
dedicou a fornecer informação exclusivamente sobre a epidemia de HIV.269 Neste ponto, é
preciso enfatizar que o impacto da AIDS, cujo debate gerou uma quantidade enorme de
literatura, passando a exercer uma importante força na produção cultural (inclusive de
temas relacionados à comunidade gay e lésbica), inicialmente, fez com que as LDs
tradicionais acrescentassem termos que refletissem essa produção, e posteriormente,
ocorreu a elaboração de tesauros específicos dedicados à questão da AIDS.
Na costa oeste, ainda em nível de atendimento público, a “San Francisco Public
Library” mantém o “James C. Hormel Gay and Lesbian Center”, o qual preserva o material
ligado às experiências de gays e lésbicas e é o centro mais eficiente em termos de garantia
ao acesso do usuário. No caso do “Hormel Center”, por exemplo, os bibliotecários utilizam
267
LUKENBILL, W. B. Op. Cit., p. 98.
GREENBLATT, Ellen. Barriers to GLBT Library Service in the Eletronic Age. Information for Social
Age, 12, winter 2001. p. 76.
269
LUKENBILL, W. B. Op. Cit., p. 97.
268
96
uma conhecida lista da LCSH denominada “gay subject headings”, desenvolvida por
Sanford Berman para o “Hennepin County Library”. Eles também adotam a CDD 20 para
fazer a classificação do material. Em homenagem ao ativista gay Harvey Milk, uma seção
da biblioteca pública de São Francisco recebeu seu nome. Nela é mantida uma coleção que
trata de questões específicas das minorias sexuais.270 Milk foi morto junto com o prefeito,
George Moscone – por um conservador chamado Dan White -, em 1978.
Noutros países, há experiências como a empreendida no Canadá, através do
“Canadian Lesbian and Gay Archives” que privilegia a documentação produzida sobre
gays e lésbicas no próprio país ou que tenha origem noutros países, mas que seja
concernente aos canadenses. Essa entidade desenvolveu uma política de planejamento e
desenvolvimento da coleção, a qual está sistematizada através de um documento, o qual
indica uma ampla série de materiais considerados importantes para a comunidade gay e
lésbica, em termos de preservação de sua história e cultura.271
Na Äfrica do Sul existe o “Gay and Lesbian Archives of South Africa”, sua missão,
porém, possui uma peculiaridade que o diferencia dos demais centros, ela é mais ampla
porque busca catalisar e atender outras comunidades que tiveram suas experiências
silenciadas.272 Enquanto que na Holanda, a missão do centro é similar aos demais, trata-se
do “Homodok-Lesbian Archives Amsterdam” - Centro de Documentação Homossexual –
Arquivos Lésbicos de Amsterdam - (Homodok-LAA) – que é uma reunião de duas
bibliotecas – o “Homodok”, (the Homosexual Documentation Centre) e a Ann
Blaumanhuis, um arquivo lésbico.
O “Homodok-LAA”, desenvolveu, e publica, o “A Queer Thesaurus: an
international thesaurus of gay and lesbian index terms”, obra bilíngüe em holandês e em
inglês.273 Os bibliotecários o utilizam porque acreditam que a informação sobre o segmento
gay e lésbico é difícil de ser encontrada - como pudemos observar pelos argumentos, de
Patrícia Nell Warren (apresentados acima) - e desaparece facilmente se não se aplicam
categorias que lhe sejam próprias. Esse tesauro atende as necessidades colocadas pelos
estudos culturais, mas tem um fim político: foi escrito para ser um instrumento de
270
Idem, p. 98.
Ibidem.
272
Idem, p. 96.
273
MOYA, Cynthia Ann. Op. Cit.
271
97
conscientização e para promover informações positivas e de afirmação das identidades gay
e lésbica.
Aqui no Brasil, o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) – Centro de Pesquisa e
Documentação Social do IFCH da UNICAMP -, apesar de não ser uma instituição
exclusivamente gay e lésbica, recebeu, ao longo da segunda metade dos anos oitenta,
diversas coleções de grupos de militância do movimento homossexual brasileiro,
especificamente de grupos cariocas e paulistas que encerravam suas atividades.274 Além
desta documentação, o AEL recebe, sistematicamente, documentos de grupos atuais. Desde
que obedecidas algumas normas, o acesso e uso público dos documentos são autorizados.275
Há outros centros de documentação, para gays e lésbicas, existentes tanto no Brasil
quanto no mundo, e que também reiteram, entre suas proposições, o empenho em preservar
a história e a herança do segmento GLBT, assim como em corrigir a negligência gerada por
atitudes sociais ou governamentais, cujo resultado foi a falta de preservação de suas
experiências. Os objetivos dessas instituições também refletem a necessidade de recuperar
o aspecto positivo das identidades, da sua auto-imagem, e de seu reconhecimento social e
cultural.276 De forma geral, todos esses centros projetam a necessidade de se construir uma
comunidade de diálogo,277 cuja ênfase está na constituição de uma identidade afirmativa,
ou seja, de uma identidade que se desenvolva a partir da valorização de experiências
individuais de gays e de lésbicas.
Com o aumento dos centros de documentação gays e lésbicas - apesar das
dificuldades citadas -, alguns desses locais se desenvolveram em termos de qualificação do
quadro profissional e do tratamento do material, buscando melhorar o atendimento de
pesquisadores e interessados no assunto. Essa postura fez com que os profissionais da área
refletissem sobre os sistemas de classificação, onde logo se fez sentir o impacto nos
vocabulários controlados e na produção de linguagens documentárias específicas.
Os bibliotecários, ligados o segmento gay e lésbico, ao trabalhar nesses centros de
documentação, se colocaram na vanguarda da criação de ferramentas que atenderam a uma
perspectiva diferente, mas não menos ideológica. Este grupo, ao refletir sobre uma
274
ZANATTA, Elaine Marques. Documento e Identidade: o movimento homossexual no Brasil na década de
80. Cadernos AEL, no. 5/6, 1996/1997. p. 193-4.
275
Idem, p. 217.
276
LUKENBILL, W. B. Op. Cit., p. 96.
277
Idem, p. 95.
98
linguagem sistemática para fazer a representação dos assuntos, dividiu-se entre a
possibilidade de continuar utilizando, ou de adequar as LDs tradicionais às necessidades
específicas, e a possibilidade de partir para a elaboração de tesauros que atendessem às
demandas emergentes com o movimento homossexual e, posteriormente, com a
fragmentação do segmento representada pela sigla GLBT. A reviravolta política refletiu-se
na missão desses centros de documentação, na atuação dos profissionais e nas ferramentas
técnicas, sistematizando uma linguagem que criou termos adotados orgulhosamente como
símbolo de afirmação.
O movimento gay e lésbico recuperou termos antes considerados negativos - como
“queer” -, e que passaram a ser utilizados por acadêmicos e ativistas, como uma expressão
positiva e de questionamento ao poder. Os documentos, contudo, ainda continuaram tendo
diversos significados. A diferença se manifestou apenas nas novas regras do contexto, no
qual as novas propostas de linguagem documentária produziram, agora, múltiplos “centros”
de discursos legítimos do poder.
5.3 O profissional da informação face às necessidades de informação do segmento GLBT
A movimentação social dos anos sessenta despertou os bibliotecários norteamericanos – tanto em nível pessoal quanto em nível profissional – a dedicar-se às causas
ligadas à transformação da sociedade. A “Social Responsability Round Table” (SRRT), que
surgiu de reuniões do “Congress for Change”, realizado em um pequeno hotel de
Baltimore, incentivou lideranças a assumirem essas responsabilidades na “American
Library Association” (ALA), e os bibliotecários a se envolver com os assuntos ligados às
questões sociais.278 A SRRT surgiu no auge das revoluções sociais, em meio às
mobilizações dos diversos grupos. Os reflexos do período sinalizavam para mudança
qualitativa da postura dos profissionais em relação à questão da homossexualidade.
Antes deste período, houve casos extremos em que bibliotecários ou não permitiam,
ou retiraram livros das estantes que contivessem referência ao tema homossexualidade.279
Era comum, entre profissionais, a destruição de materiais voltados a gays, a criação de
278
279
BRYANT, Eric. Pride & Prejudice. Library Journal 120 (june 15 1995): p. 39.
SEIDEL, Heike. The Invisibles: lesbian women as library users. Progressive librarian.14 (1998):
p. 35.
99
listas de cabeçalho pejorativas, a elaboração de inventários que utilizavam eufemismos para
se referir às minorias sexuais, ou que não se referiam a elas absolutamente – a biblioteca
pública de Nova Iorque, como foi visto, passou por esse problema -, assim como ocorria
também uma forte resistência em falar sobre o assunto, reiterando os padrões ideológicos
alicerçados na medicina e na jurisprudência.
Em 1970, a SRRT reivindicou junto à ALA a formação da primeira organização
profissional de gays e lésbicas do mundo, conseguindo fundar a: “Task Force on Gay
Liberation”. Criada por Israel Fishman,280 principalmente, como um meio para reunir esse
segmento e promover fóruns para troca de experiências. O objetivo dessa organização era o
de corrigir as injustiças que foram cometidas, produzindo mudanças eficazes que
melhorassem os serviços voltados a gays e a lésbicas nos centros de documentação.
Em 1971, quando Barbara Gittings,281 uma ativista lésbica de longa data – ligada ao
primeiro grupo feminino (Daughters Of Bilites, desde 1958) -, e que não tinha credenciais
de bibliotecária, recebeu a liderança da organização, ela começou a planejar ações e
programas que refletissem tanto as preocupações da bibliotecomia, quanto as da
comunidade gay. Para tanto, procurou trabalhar a partir de aspectos coerentes ao âmbito
profissional e que garantissem a visibilidade do segmento gay e lésbico. Trabalhos como o
de Barbara Gittings, fizeram com que a comunidade GLBT, em parte, se tornasse
responsável pela abertura da biblioteconomia para o trabalho com diversos campos da
sexualidade, até então ignorados.
Na conferência de Dallas em 1971, graças a ações como a “Hug a Homosexual”
(ou: Abrace um Homossexual),282 a visibilidade do grupo, que inicialmente parecia uma
afronta, começou a se manifestar. Nesse mesmo ano, foram aprovadas importantes
deliberações, como a de uma política de anti-discriminação. Ao mesmo tempo, como vimos
no item anterior, começaram a ocorrer o crescimento dos centros de documentação –
bibliotecas e arquivos - ligados à experiência de gays e lésbicas.
Desde sua fundação, a organização mudou para incluir outras identidades de gênero
sexual, assim assumiu o nome de “Gay, Lesbian, Bisexual and Trangenders Task Force”
280
CARMICHAEL Jr., James V. 'They sure got to prove it on me': millennial thoughts on gay archives, gay
biography, and gay library history. Libraries and Culture. 35 (1) Winter 2000, p. 92.
281
Ibidem.
282
BRYANT, Eric. Op. Cit., p. 39.
100
(GLBTF).283 Nos anos mais recentes, o grupo concentra esforços em refletir sobre as
necessidades de informação do segmento GLBT, particularmente, prestando atenção a
como melhorar o desempenho dos profissionais da área. Para encarar o preconceito e lutar
pela mudança de atitudes da sociedade.
Nesse caso, parte-se do princípio que o profissional deve respeitar a liberdade
intelectual dos usuários gays e lésbicas, cujo exercício pressupõe que eles tenham pleno
acesso aos materiais disponíveis no acervo, sem nenhum tipo de restrição. A liberdade
intelectual se baseia na convicção de que a liberdade de escolha, assim como a de acesso,
são requisitos imprescindíveis e inalienáveis aos direitos individuais.
Apesar de todos os esforços, segundo a avaliação dos críticos, os resultados ainda
não são satisfatórios. Fora os profissionais de bibliotecas e arquivos, que trabalham
especificamente para o usuário gay e lésbica, a maior parte dos bibliotecários ainda não
assume esse compromisso. Eles continuam a subestimar as necessidades de informação de
seus clientes.284 Nesse caso, apela-se para os princípios que orientam os bibliotecários
norte-americanos, segundo os quais todos os segmentos sociais devem ser tratados com
igualdade.
Há autores que tecem algumas considerações acerca deste aspecto, entre as quais
está a da atuação do profissional enquanto pessoa.285 Os críticos acreditam que diversos
aspectos podem gerar à falta de cooperação dos bibliotecários, entre eles: a crença de que o
investimento nessa área pode gerar o desrespeito de sua comunidade; de que poderá ser
confundido e sofrer com o preconceito; de que também o faça por questões religiosas ou
ideológicas. Enfim, seja qual for o motivo, o desamparo do profissional afeta
negativamente o acesso à informação de gays e lésbicas.286
Em nível social, as análises se referem ao papel da concentração geográfica e da
configuração geopolítica na qual o profissional atua. Em locais com uma visível
comunidade gay e lésbica, há uma maior atuação no campo do desenvolvimento de
coleções e mais serviços dedicados ao segmento. O profissional é procurado pelo usuário
em busca de materiais específicos, ou mesmo por grupos de ativistas interessados em usar o
283
CARMICHAEL Jr., James V. Op. Cit., p. 88.
MONROE, Judith. Breaking the silence barrier: libraries and gay and lesbian students. Collection
Building. 9 (1) 1988, 44. p. 44
285
BRYANT, Eric. Op. Cit., p. 39.
286
Ibidem.
284
101
espaço da biblioteca, para fazer reuniões ou para promover palestras.287 Nesse caso, uma
atmosfera pública favorável define possibilidades melhores de atuação do profissional.
Em localidades menores, a invisibilidade do segmento gay e lésbico caminha no
sentido inverso da garantia de acesso à informação. É comum que os clientes homossexuais
na condição de moradores de cidades pequenas, ou da área rural, não desejem ver sua
privacidade exposta diante de um público conservador. Nesses casos, fica mais fácil aos
profissionais acreditarem que não há gays e lésbicas entre os usuários.288
Para se avaliar melhor essa circunstância, os profissionais devem considerar alguns
problemas que afligem as minorias sexuais. Por exemplo, gays e lésbicas, muitas vezes,
optam pela "invisibilidade" em comunidades pequenas porque temem ser vítimas de
discriminação verbal, ou mesmo de violência física, assim preferem não ser reconhecidos
como homossexuais. Por isso, caso não sintam confiança no ambiente, eles dificilmente
pedirão ajuda ao profissional.289
Essa situação exige que o profissional apresente soluções criativas, as quais visam
atender gays e lésbicas que preferem ficar em silêncio a fazer perguntas na frente de outras
pessoas. Nesse caso, o papel dos catálogos é fundamental, pois, durante a puberdade, por
exemplo, muitos jovens não se reconhecem nos padrões majoritários e ficam confusos em
relação ao que sentem. Mais do que os adultos, os adolescentes hesitam em procurar
orientação de outras pessoas, pois temem não ser entendidos e ser rejeitados.290
Nesses casos, o ambiente anônimo torna-se o canal ideal, senão o único, para se
conseguir a informações necessárias. Além disso, os materiais também podem atender as
necessidades de outras pessoas que estejam interessadas no estilo de vida gay, apesar de
não fazerem parte dele diretamente. É o caso dos pais, irmãos, amigos, educadores, colegas
de trabalho,291 em busca de uma melhor compreensão o segmento GLBT.
A consulta ao catálogo, nesse sentido, gera outro ponto de debate importante ao
profissional, cuja reflexão se refere à forma como se classificam e se catalogam os
materiais para gays e lésbicas nas bibliotecas.292 Os sistemas de classificação, como já foi
287
BRYANT, Eric. Op. Cit., p. 38-9.
Idem, p. 39.
289
SEIDEL, Heike. Op. Cit., p. 35.
290
Idem, p. 37.
291
Ibidem.
292
Idem, p. 38.
288
102
visto, ainda privilegiam os vocabulários hierárquicos e que se constroem na forma de
oposições, em cuja base se encontra a questão do preconceito. É preciso reiterar a presença
dessas tensões para enfatizar que o sistema de classificação não foi pensado para atender a
comunidade GLBT.
Em muitos casos, é comum que os catálogos organizem as informações do
segmento gay e lésbico sob o termo homossexualismo (amplamente recusado por denotar a
idéia de doença), ou dos termos "homossexualidade" e "homossexual" que também são
rejeitados porque, geralmente, se referem mais à homossexualidade masculina. Pior do que
a palavra é a existência no acervo de materiais datados, cujos conteúdos não reflitam as
perspectivas teóricas atualizadas.293
O profissional, então, deve estar bem informado sobre todos esses aspectos, que se
constituem enquanto elementos de reflexão sobre as formas de busca, assim como das
necessidades de informação que interessam ao segmento GLBT. Aqui é preciso enfatizar,
cabe ao bibliotecário aperfeiçoar o atendimento realizando: um exame crítico da coleção, o
descarte regular e a atualização do material, fazendo o uso de categorias – como gay,
lésbica, bissexual, transgênero -, para dar visibilidade a tópicos de interesse do segmento
GLBT nos sistemas de classificação.294
No extremo dessas propostas engendradas pelo GLBTTF (Gay, Lesbian, Bisexual
and Trangenderes Task Force), está o bibliotecário, cuja menor ação é melhor do que nada,
sendo fundamental que ele garanta o acesso às comunidades apoiadas nas identidades de
gênero e de orientação sexual. Desta forma, elas podem participar exercendo seus direitos,
como podem, também, ocupar os espaços oferecidos pelas bibliotecas.295 Ainda que a maior
parte não possua todas essas características, são espaços valiosos a partir dos quais se pode
fomentar imagens positivas da comunidade GLBT.
Os bibliotecários, segundo essas propostas, podem, e devem, entender a si próprios
como promotores da transformação social, ajudando nas lutas dos grupos gays e lésbicos,
ao colocar a pessoa em contato com materiais que atendam às suas necessidades de
informação. Noutras palavras, devem assumir a responsabilidade de lutar pela liberdade
293
MONROE, Judith. Op. Cit., p. 44.
SEIDEL, Heike. Op. Cit., p. 38.
295
BRYANT, Eric. Op. Cit., p. 39.
294
103
intelectual, referente aos interesses dos sujeitos que ocupam as “margens” em contraponto
aos sujeitos que definem as relações a partir do centro do sistema social.
Para ocorrerem essas transformações é preciso que o profissional reflita sobre a
dinâmica do contexto cultural que se modifica constantemente, adequando-se às propostas
emergentes. Esta prática se faz a partir do seu envolvimento intelectual, quando reflete
sobre a questão do impacto das identidades, situando-as nas origens de processos que
delimitam suas possibilidades de atuação. As condições são deflagradas historicamente,
mas o limite de desta prática ainda é de âmbito pessoal.
O trabalho do bibliotecário se tornou fundamental, visto que a competência para ler
o universo semântico gay e lésbico se articulou com a importância de se guardar,
sistematizar e divulgar a documentação desse segmento. Este encontro deu origem a locais
que cristalizam as identidades de gênero e de orientação sexual. O profissional, a partir da
origem da GLBTTF, participou de um processo no qual sua atuação define suas opções,
não apenas profissionais, mas políticas, ao atender, ou não, a comunidade gay e lésbica.296
As práticas discursivas minoritárias tornam-se parte do trabalho de seleção de
termos, cujo objetivo é o de resistir e de legitimar a diferença. É preciso enfatizar ainda que
essas ações deram origem às instituições documentárias que se desenvolverem, primeiro na
forma de entidades voluntária, depois como instituições profissionais com enfoque na luta
contra a discriminação em nível social e político.297 Prestar atenção a essas premissas
proporciona a certeza de que o trabalho do profissional sempre gravitou em torno de uma
perspectiva de poder. Nela as palavras se formalizam dentro de um contexto que controla
seus significados, seja o universal ou o específico.
A competência do profissional, portanto, se articula com um processo de
conscientização, cuja eficácia está na sedimentação das identidades. Ele terá que traduzir a
linguagem produzida a partir da comunidade GLBT para uma linguagem sistematizada,
mas que atenda aos fins da transformação social experimentada pelas minorias na
contemporaneidade. Assim, a fase inicial estabelece os objetivos que deverão estar claros e
que deverão ser atingidos no decorrer do processo: a montagem de um sistema que
296
297
CARMICHAEL Jr., James V. Op. Cit., p. 91.
Ibidem.
104
represente, adequadamente, as necessidades de informação de gays, lésbicas, bissexuais e
transgêneros.
Entretanto, ainda restou uma questão: mesmo que fosse possível uma representação
plena no sentido das palavras ligadas ao segmento GLBT, sempre haverá a possibilidade de
se realizar diferentes leituras, que por mais que sejam específicas, omitem ou privilegiam
idéias. Nesse caso, quando o movimento homossexual correu em direção à fragmentação,
da perspectiva universal para as particulares, só se produziu um sistema com identidades
pluralizadas, destinadas a usuários específicos, mas tal perspectiva não isentou o
bibliotecário de anular a subjetividade do processo de análise da documentação.
5.4 Linhas teóricas para pensar a análise da informação GLBT
No final dos anos oitenta e início dos anos noventa, críticos como Eve Kosofsky
Sedgwick, uma das teóricas mais eminentes dos estudos “queer”, apresentou alguns dos
desafios, e das possíveis soluções, que hoje contribuem para a reflexão sobre análise
documentária, assim como da elaboração de teorias de acesso à informação e de
ferramentas para o trabalho com culturas, contextos e comunidades específicas.298
Para esse debate, porém, é preciso antecipar a distinção de dois conceitos importantes tanto para a teoria da classificação quanto para a crítica literária - “aboutness”,
entendido como a análise das características inatas do conteúdo de um documento, e
“meaning” como a análise que leva em consideração os fins ou uso específico do conteúdo
de um documento. Particularmente, a opção em preservar os conceitos em língua inglesa se
deve à melhor operacionalização da teoria exposta por Campbell.
Esse autor parte do pressuposto de que determinar o conteúdo de um documento se
trata mais de um procedimento subjetivo. E que apesar das ferramentas de tradução do
conteúdo dos documentos para as LDs serem complexas, há poucas regras formais para a
análise conceitual desses mesmos documentos. Para ele, essa tarefa se torna mais
complicada quando se refere às obras literárias e isso se deveria ao limite muito tênue e
ambíguo entre o que é o conteúdo e o que é a interpretação do analista.299
298
SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemology of the Closet. Berkeley: University of California Press, 1990.
apud: Campbell, G. Op. Cit., p. 123.
299
CAMPBELL, G. Op. Cit., p. 124.
105
Quando o tema se refere à homossexualidade, esta ambigüidade aumenta, pois os
tabus que circulam o tema produzem barreiras acerca de apresentação da própria palavra.
Romances homossexuais transformam-se numa sucessão de termos sutis, alusivos e
simbólicos. Diante desta constatação, os críticos literários alavancaram o debate acerca de
uma estrutura teórica, que fosse bem fundamentada, para distinguir o que de fato eram
dados objetivos do texto e o que poderia ser a interpretação. Primeiramente, foi preciso
recuperar a distinção entre o que era um discurso que fazia a “menção” e o que era um
discurso que falava “sobre”. Além desse fator, para a análise efetiva do conteúdo literário,
era preciso avaliar ainda aspectos extra-textuais, tais como: quem produziu o texto; com
qual objetivo ele foi produzido; e, para quem ele estava direcionado.300
Essa linha de pesquisa, segundo Campbell, ajudou a aprofundar a distinção analítica
feita a partir da noção de “aboutness”, enquanto a busca de uma essência intrínseca do
conteúdo no documento, e a de “meaning” como entendimento contextual do qual o leitor
se apropriava na leitura do documento. No tocante à primeira, ele recordou como essa
hipótese, por muito tempo, alimentou os sistemas de classificação. Os indexadores se
esforçavam em traduzir o conteúdo dos documentos para os sistemas (fosse
conceitualmente ou notacionalmente). O fato da leitura do analista produzir representações
contextualizadas, sequer era considerado.301
Nesse caso, o “aboutness” conferia ao documento características estáveis. Essa
perspectiva privilegiou a objetividade do conteúdo, e posteriormente se chegou à conclusão
de que essa espectativa não era possível: ela possuía limites por não conseguir se restringir
a elementos intrínsecos do documento. Se o “aboutness” fosse tão estável os indexadores,
então, seriam capazes de fazer sempre a mesma análise, independente de qualquer fator.
Face à essa falta de consistência, tornou-se necessário desenvolver outras estratégias para
se alcançar resultados melhores.
No contexto literário, durante um determinado período, os críticos refletiram sobre a
transferência da ênfase do conjunto de reflexões, com significados supostamente estáveis
dos conteúdos literários, para uma ênfase numa leitura subjetiva e contextualizada das
obras. Em termos de análise crítica, esta postura ajudou a compreender a importância da
300
301
Ibidem.
Ibidem.
106
noção de “meaning” em detrimento da noção de “aboutness”. E a apresentou não como
uma qualidade inata, aguardando para ser “descoberta”, mas como o resultado de uma
operação baseada em pressupostos contextualizados.302 Esta ênfase questionava a
autoridade do próprio texto e, no tocante a essa perspectiva, a idéia de “aboutness” não
existia, visto que o único caminho possível era o da interpretação. Desta forma, no texto
nada poderia ser avaliado como definitivo, mas suas características sempre seriam
interpretações dadas pelos leitores, no caso: indivíduos ligados a um contexto, pelo discurso
específico e, também, pertencentes a uma comunidade específica. Na contemporaneidade,
os pesquisadores da área de análise documental se convenceram de que os significados
essenciais e universais são impossíveis, da mesma forma como os críticos literários o
fizeram no passado.303
Eve Kosofsky Sedgwick,304 particularmente, se aprofundou na noção de “meaning”
em um dos capítulos de sua obra Epistemology of the Closet, considerada um dos maiores
trabalhos sobre as relações homossociais masculinas na literatura. A importância dessa
reflexão se encontra na estrutura teórica que sustenta o seu pensamento. Nele, ocorre a
combinação da crítica literária com a teoria literária e, posteriormente, de ambas as
perspectivas com a análise social.
Sua leitura crítica explora caminhos nos quais a homossexualidade masculina, assim
como a paranóia e a opressão através das quais o tema é visto socialmente, se infiltrou nas
fundações epistemológicas da sociedade e da cultura ocidental. A autora argumenta que a
visibilidade das comunidades gays veio no rastro da epidemia de AIDS. A síndrome
suplantou a paranóia e a opressão, fazendo o debate sobre a homossexualidade se tornar um
tópico da maior urgência social.
No final dos anos oitenta, a crítica produzida pela autora se inseria em um contexto
muito atribulado, cujos debates se organizavam em torno de questões intensas como a
identidade social e política da comunidade gay americana, os usos e abusos da pesquisa e
da educação médica em tempos de AIDS, e as decisões legais referentes à
homossexualidade masculina nos Estados Unidos.
No estudo da autora há duas teses primárias: a de que há uma distinção subjacente
302
Idem, p. 126.
Ibidem.
304
SEDGWICK, Eve Kosofsky. Op. Cit. apud: Campbell, G. Op. Cit., p. 126.
303
107
entre a homossexualidade e a heterossexualidade, estruturada no pensamento da cultura
ocidental moderna; e a de que se pode entender melhor essa distinção em termos de uma
oposição binária entre uma visão minoritária, que vê a homossexualidade como uma
experiência de um subsistema marginalizado da sociedade, e uma visão universal, que vê a
homossexualidade, e as preocupações homossexuais, como algo que penetra todo
pensamento e todos os níveis sociais.
Na base dessas teses, a autora articula os axiomas, dos quais quatro são relevantes
para os estudos ligados à análise de documentos: 305
1) O de que as pessoas diferem umas das outras na forma de confrontar definições
tradicionais e de articular as diferenças. Nesse caso, as categorias (tais como
“straight” e “gay”) são inadequadas, e sua sobrevivência depende da habilidade
delas para fazer, modificar e refazer categorizações provisórias sobre essas
identidades.
2) O de que assuntos referentes a gênero e orientação sexual podem ser relevantes,
mesmo quando tais assuntos não compõem um “conteúdo” temático enquanto
parte da obra.
3) A de que a questão da natureza versus a da educação nos estudos “gays” precisa
ser reformulada, e que a questão mais importante não é: como as pessoas se
tornam “gay”, mas para quem a definição homo/heterossexual é de importância
central?
4) A de que os estudos históricos, em seus esforços para recuperar a idéia de uma
identidade homossexual, inadvertidamente criaram uma apresentação coerente e
monolítica da homossexualidade como a que se conhece atualmente.
Estas teses e axiomas, segundo Campbell,
305
306
306
têm implicações sugestivas para a
Ibidem.
CAMPBELL, G, Op. Cit, p. 127.
108
teoria análise documentária e de acesso à informação. Primeiro, porque elas sugerem que
assuntos referentes à categorização, tanto ao agrupar quanto ao diferenciar, têm um papel
vital no crescimento e na sobrevivência da comunidade homossexual. Segundo, porque se
as afirmações da autora são justificáveis, então é possível defender que todos os trabalhos,
sem levar em consideração seus conteúdos, são, em alguma medida, sobre
homossexualidade, visto que um sistema de classificação - planejado para a comunidade
gay -, teoricamente pode cercar os documentos de todas as áreas temáticas. O terceiro
aspecto se constrói a partir da idéia de que as comunidades e teóricos gays continuariam a
se dividir entre duas leituras possíveis sobre a homossexualidade: a das teorias
essencialistas e a das construtivistas.
Campbell observa que para a autora, por um lado, a leitura da homossexualidade,
como uma essência transhistórica e transcultural, poderia ser descoberta (assim como a
idéia dos preconceitos perenes em nível histórico) e desmantelada; por outro, muitos
leitores – que seguem a perspectiva foucaultiana (Foucault afirma que o homossexual
moderno apareceu em 1870, quando a prática da “sodomia” deixou de se referir a atos e se
tornou uma identidade individual) – verem sua leitura legitimada, tendo em vista que as
identidades são construções locais, históricas e culturais.
Ele prossegue na análise enfatizando que, pelo seu entendimento, nas comunidades
gays as pessoas continuariam sendo diferentes, as categorias poderiam ou não ser
assimiladas, e os rótulos provisórios continuariam sendo produzidos. Tudo por causa de
uma identidade que não é monolítica, não se refere a uma categoria estável, e sobre a qual
não há consenso. E que a sobrevivência do grupo homossexual na perspectiva
marginalizada dependeria ainda da subversão regular e freqüente da própria categoria. 307
Após apresentar tantos aspectos ligados à dissolução da identidade, as teorias e
axiomas propostos por Sedgwick sofreram uma profunda oposição, fato que a levou a ser
rotulada como homofóbica. A crítica de seu trabalho foi feita por David van Leer.308 Ele
contestou, inicialmente, o uso da linguagem da autora, sugerindo que seu estilo coloquial,
com o uso de termos como “Fag”, denunciavam uma homofobia latente. O problema,
segundo ele, não era de natureza pessoal, visto que a simpatia da autora, assim como sua
307
308
Ibidem.
VAN LEER, David. The Beast of the Closet: homosociality and the patology of manhood. Critical
Inquiry 15: p. 587-605. apud. CAMPBELL, G. Op. Cit., p. 127.
109
lealdade em relação à comunidade gay não podia ser questionada, nem mesmo seu nível de
consciência sobre o segmento. O problema, na verdade, devia-se ao fato de Sedgwick não
ser “gay”, por isso sua terminologia seria problemática, visto o uso ostensivo dos termos
ligados a estereótipos sexuais. Ao ser incapaz de falar a partir do vocabulário da minoria, a
autora utilizava forçosamente o vocabulário da maioria. O argumento de Van Leer condena
a autora como alguém que fala contra a comunidade, pois ele entende, a despeito de suas
boas intenções, que ela não desvela o entendimento homofóbico, mas o subscreve.309
Para Campbell,310 Sedgwick possui um grande mérito: ela faz uma reflexão a partir
das perspectivas binárias mais importantes, e que estão na base da organização do
conhecimento sobre homossexualidade: a visão essencialista versus a visão construtivista; a
visão minoritária versus a visão universal; a visão da homossexualidade como o estilo de
vida de uma minoria, versus a homossexualidade enquanto um conceito com implicações
universais para todo mundo, sendo indiferente a questão da orientação sexual.
Essa perspectiva teórica também revela outro aspecto fundamental à análise de
documentos: se de fato não há nada no texto que possa ser isolado como “intrínseco”, a
tarefa crítica não é mais encontrar o conteúdo no texto, mas é identificar e articular as
posições ideológicas, sociais e culturais a partir das quais se encontra o conteúdo do
texto.311 Essa exigência sinaliza para a ultrapassagem das tarefas técnicas do bibliotecário,
colocando-o mais na posição de um intelectual ligado ao entendimento da circulação dos
termos através das linguagens.
309
Ibidem.
CAMPBELL, G. Op. Cit., p. 127.
311
Idem, p. 128.
310
110
6 Considerações finais
É inevitável e necessário concluir essa reflexão comparando a presença desse debate
entre os bibliotecários norte-americanos e os bibliotecários brasileiros. A pesquisa nas
bases de dados revela que esta discussão, quando comparadas as duas realidades, está por
ser iniciada aqui. No Brasil, uma explicação hipotética para essa carência de títulos na área
de documentação pode ser atribuída à atualidade do assunto.
Nesse ponto, o contato com a literatura norte-americana foi muito importante, pois
suas reflexões indicaram respostas pertinentes à escrita dessa monografia. Após o início das
leituras, o fato dos norte-americanos estarem avançados nesse debate não pareceu
misterioso, visto que a primeira associação profissional declaradamente gay do mundo
(ALA’s Gay, Lesbian, Bisexual and Transgendered Task Force) constitui-se nesse país - há
muito mais tempo do que a militância homossexual no Brasil -, e seus participantes
começaram a produzir uma série de reflexões que colocou em evidência a relação da
biblioteconomia com esta questão.
Nesse caso, é possível fazer algumas avaliações, como, por exemplo, a de que no
Brasil os ventos de Stonewall – evento que marca a transformação da postura do
bibliotecário em relação à comunidade GLBT - demoraram um pouco mais para chegar.
Entre 1964 e 1984, o país esteve sob a repressão de um regime militar responsável por um
forte silenciamento de qualquer manifestação social. Só com o abrandamento da ditadura,
no final nos anos setenta, através da “abertura lenta e gradual” do espaço político é que
essas idéias começaram a se manifestar. Elas chegaram por meio de sujeitos que voltavam
do exílio e que no exterior mergulharam na efervescência cultural pós-Stonewall, ou,
simplesmente, através do contato dos sujeitos com a literatura que descrevia o fenômeno.
O canal público, possível à apresentação das idéias, era o dos jornais alternativos,
ou, como ficaram mais conhecidos, dos tablóides da imprensa nanica. Desde a instalação do
regime militar, eles começaram a surgir em resposta ao controle sobre tudo o que era
publicado na grande imprensa. Particularmente, o Lampião da Esquina ousou tratar a
questão da homossexualidade, abordada de forma moralista pela grande imprensa.
O Lampião desapareceu, mas a identidade se solidificou através das ações
promovidas pelos grupos gays e lésbicos brasileiros que, no decorrer dos anos oitenta e
111
noventa, se depararam com a crise da AIDS, defenderam propostas junto ao Congresso
Nacional - por ocasião da assembléia nacional constituinte -, inéditas até então. Nas
universidades, surgiram os trabalhos acadêmicos sobre a homossexualidade, as
bibliografias, organizadas por professores, com a ajuda de bibliotecários, e a consciência de
que era importante preservar a documentação. Hoje em dia há grupos que possuem seus
arquivos – Grupo Gay da Bahia, Rede de Informação Um Outro Olhar - e que guardam
materiais ligados à experiência GLBT. Em nível nacional, contudo, a literatura acadêmica
da área de biblioteconomia, não possui uma quantidade de reflexões que cerquem o tema,
como já vem acontecendo noutras áreas.
No Brasil, grosso modo, as bibliotecas brasileiras utilizam as linguagens
documentárias tradicionais, secundando, assim, todos os problemas que pudemos observar
no decorrer dessa reflexão, mas já há inovações que demonstram a sensibilidade de
profissionais, ligados a centros de documentação específicos, como o “Tesauro para
estudos de gênero e sobre mulheres”(citado na parte de referências dessa monografia) que
atende à necessidade de instituições interessadas em tratar acervos voltados a este segmento
social. Porém, no tocante à comunidade GLBT brasileira ainda não há nada comparável.
Na linguagem geral circulam palavras de pelo menos três discursos que convivem
na cena contemporânea. Não é difícil identificar argumentos que fluem das doutrinas cristãs
ligadas à idéia de que Deus espera que os homossexuais abandonem a vida de pecados,
assim como é possível observar discursos que falam da cura clínica do “homossexualismo”.
Porém, o espaço que nasceu com o debate sobre a questão homossexual garantiu ao
segmento GLBT um direito à fala que, atualmente, não é mais calado por uma fé que define
o que não deve ser dito, ou por uma ciência médica que traça as fronteiras entre o que é
considerado normal e o que é considerado desvio.
O discurso construído em torno do ativismo, entretanto, é criticado, pois a
perspectiva antropológica busca contemporizar a questão GLBT, observando sua
legitimidade no cenário brasileiro, quando pensa sobre as diferenças culturais. Se levarmos
essa crítica ao pé da letra, é possível indagar, também, sobre a própria legitimidade dos
discursos cristão e médico. Nesse caso, o dilema colocado por Oswald de Andrade parece
se colocar perante o bibliotecário novamente - “Tupi or not Tupi”, eis a questão -, é preciso
devorar as palavras para digeri-las e transformá-las, dando-lhes um contexto brasileiro.
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