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O único fato da razão pura: a moralidade Nady Moreira Domingues da Silva Mestre em Filosofia pela PUC-RJ. Coordenadora e Professora do Curso de Filosofia da Faculdade Batista Brasileira (FBB). Resumo A Crítica da Razão Pura, de Emmanuel Kant, demonstra a impossibilidade da Metafísica como conhecimento científico. Mas a razão exige a idéia de liberdade transcendental, que deixa aberto o caminho para a liberdade prática e o estabelecimento da moralidade [único fato da Razão Pura] fundada na indissolubilidade entre dever e liberdade. Palavras-chave: Apriorismo. Dever. Imperativos. Liberdade. Máximas. Moralidade. Necessidade. The unique fact of pure reason: morality Abstract The Critique of Pure Reason by Immanuel Kant demonstrates the impossibility of metaphysics as scientific knowledge. But reason demands the idea of transcendental freedom, which leaves the way open for practical freedom and the establishment of morality [the unique fact of pure reason] founded on the indissolubility of duty and freedom. Key words: A priori. Duty. Imperatives. Freedom (liberty). Maxims. Morality. Necessity. O PROBLEMA O problema central da crítica da Razão Prática é a moralidade. Do mesmo modo em que na Razão Pura, Kant parte de um fato, a realidade histórica do conhecimento, na crítica da Razão Prática ele parte de um fato, da admissão de uma outra atividade humana que não a teorética. Maiêut. dig. R. Fil. Ci. afins, Salvador, v. 1, n. 1, p. 86-92, maio/ago. 2006 86 A nossa razão, para esse filósofo, apresenta duas faces: a Razão Pura, o inteligível, que produz o conhecimento através de um determinado processo, e a Razão Prática que investiga a moral. Mas, como atingir o problema moral? Existem três objetos na metafísica [Deus, Alma e Liberdade] que nos poderiam oferecer um caminho para o dever, o respeito, a lei moral, etc., mas que, pelo fato de transcenderem à simples condição de fenômenos, passam a habitar a esfera do noumenon, isto é, do apenas pensável, do incognoscível. E, Kant (1993), na sua Crítica da Razão Pura, ao resolver o problema das ciências físicas e metafísicas, encontra-se diante de um fato: a metafísica não é possível como conhecimento científico. O seu objeto não nos é dado nas intuições puras de tempo e espaço. Logo, não pode ser unificado pelo eu penso. Encontra-se o conhecimento teórico, limitado ao mundo fenomênico, àquilo que nos é dado empiricamente. Este mundo está submetido às leis da natureza e como tal se nos apresenta. Está regido pela causalidade: “Puesto el objeto o puesta la causa se sigue necessariamente el efecto.” (HERRERO, 1975, p. 25). Entretanto, na Terceira Antinomia (CRP) surge uma possibilidade para a Metafísica: a Liberdade. É na própria causalidade contida na tese, que surge a necessidade da liberdade. Diz Kant (1973, p. 157): “La causalidad segun leys naturales no es la única de la que puedem derivarse todos los fenômenos del mundo; para explicarlos es preciso suponer además, uma causalidad por libertad.” Isto significa que os fenômenos que ocorrem no tempo, cada um deles posto como efeito, exige necessariamente uma causa que lhe seja anterior e, assim sucessivamente, até o infinito. Estamos no domínio do condicionado. Mas este mundo que conhece uma causalidade apenas natural exige, para a explicação dos fenômenos, um outro tipo de causalidade que ultrapasse essa série regressiva, temporal. A razão exige a causalidade pela liberdade. Este tipo de liberdade é transcendental e inicia por si mesma uma série de fenômenos que decorrerão segundo as leis naturais. A liberdade transcendental Kant entende como espontaneidade absoluta, isto é, poder de começar por si mesma uma série de coisas e estados sucessivos. A antítese, por sua vez, afirma: “No hay libertad, sino que todo cuanto sucede em el mundo obedece a leys naturales.” (KANT, 1973, p. 157). Esta proposição também é correta e não implica em contradição, mas nega a possibilidade da liberdade por uma questão de legitimidade das leis naturais que permitem uma transcendência lógica sobre si, ultrapassando assim todas as leis do conhecimento. Maiêut. dig. R. Fil. Ci. afins, Salvador, v. 1, n. 1, p. 86-92, maio/ago. 2006 87 O problema vai então dizer respeito ao plano do universo no qual ocorre o afirmado na Terceira Antinomia. A tese ajusta-se ao plano do inteligível e a antítese, por sua vez, ao plano de fenômeno empírico. No caso da tese, o que Kant pretende não é afirmar o como dessa liberdade, mas o seu quod. Tal ato de espontaneidade não ocorre no mundo empírico e deverá ser demonstrado nas ações humanas, na vontade. No plano empírico, a liberdade é incognoscível, noumenon. Ela ultrapassa o dado na intuição, não corresponde a nenhuma categoria e não pode, portanto, ser unificada pela apercepção. Esta causalidade livre é independente de toda causalidade natural e, como tal, foge ao âmbito da Crítica da Razão Pura. O que esta nos pode mostrar é apenas que: • a liberdade é imprescindível; • a liberdade não pode ser conhecida. O ÚNICO FATO DA RAZÃO PURA Na Crítica da Razão Prática, aparece uma outra via para podermos atingir essa liberdade. É preciso esclarecer que não se tratam de duas liberdades distintas, mas apenas de duas vias que permitem alcançar a mesma liberdade. O que Kant pretende é vincular a liberdade à vontade humana e, mostrar com isso, que a razão pura pode ser prática. O núcleo do problema encontra-se no próprio conceito de liberdade. Como espontaneidade absoluta podemos conceituá-la negativamente: não é susceptível de apresentação na intuição, foge ao âmbito do sensível, não permite nenhuma prova teórica de sua possibilidade. Só podemos admiti-la, se considerarmos os fenômenos como representação de algo, o que nos leva necessariamente a reconhecer os fundamentos da liberdade como não fenômeno. Isto é o mesmo que dizer que o não fenômeno foge à série das condições empíricas, embora os seus efeitos estejam dentro dela. A razão chega à idéia de Liberdade Transcendental por uma exigência de explicação do incondicionado. Ora, a essa idéia já vimos que não corresponde nenhum objeto que nos seja dado na intuição e se a razão não pode determinar o real, nem encontra nenhum objeto que lhe seja correspondente, ela é obrigada a produzi-lo: “La tarea de la razón práctica será entonces Maiêut. dig. R. Fil. Ci. afins, Salvador, v. 1, n. 1, p. 86-92, maio/ago. 2006 88 encontrar los principios determinantes de la voluntad que deberá producir los objetos correspondientes a sus representaciones y determinarse a producirlos.” (HERRERO, 1975, p. 21-22). Segundo Kant, princípios práticos são [...] proposiciones que contienen una determinacion universal de la voluntad que tiene bajo si varias reglas practicas. Son subjetivos o máximas cuando la condición es considerada por el sujeto como valida solamente para su voluntad; objetivos o leyes practicas, cuando la condición se reconoce como objetiva, esto es, válida de todo ser racional. (KANT, 1973, p. 23). A liberdade vista na Terceira Antinomia é pensada, como já vimos, segundo a categoria de causalidade, é causalidade dinâmica que abrange o sensível, explicando o condicionado sem exigir nenhuma relação necessária com o incondicionado. A ordem da causalidade no mundo sensível, para explicar a liberdade transcendental, poderá então ser rompida. O surgimento de dois tipos de causalidade não implicará em contradição: uma causalidade condicionada e, portanto, sensível e uma outra causalidade incondicionada e, por isso, transcendente. A liberdade transcendental deixa o caminho aberto para a liberdade prática. Eis aqui a transição entre o pensamento e o conhecimento; o pensável não implica em inteligibilidade e nem por isso será impossível. Como exemplo, tomemos a causalidade como necessidade, que embora não possa ser conhecida, por não ter nenhuma representação na intuição será possível e compreensível se a colocarmos em seu devido lugar na ordem do universo. E Kant dá o passo que possibilita essa ordenação: se não está no mundo sensível e existe, a liberdade transcendental só poderá estar na Razão Pura Prática, manifestando-se no domínio da ação. Para mostrar que a Liberdade Transcendental existe, precisaríamos apenas de um fato que nos mostrasse que certas ações implicam em causalidade livre. E este fato podemos encontra-lo na moralidade. Ora, o conhecimento moral exige uma necessidade que seja absoluta, não condicionada, pois o condicionado é característica dos fenômenos da natureza e fica, portanto, aqui totalmente excluído. Por isso, a sua espontaneidade extrapola a possibilidade do conhecimento. O que vem então justificar que o apriorismo do dever moral é o fato de que, se o princípio de moralidade exclui o sensível, só pode estar na razão e, se ultrapassa o conhecimento teórico só pode então estar na razão pura que é o lugar da necessidade. Maiêut. dig. R. Fil. Ci. afins, Salvador, v. 1, n. 1, p. 86-92, maio/ago. 2006 89 A moralidade, entretanto, ainda que seja da razão, não nos é dada previamente. “Lo que es dado es uma exigência absoluta del bien incondicionado.” (KANT, 1973, p. 27). O Bem aparece aqui no sentido moral, que define precisamente o elemento em questão. Esta exigência não pode, em hipótese alguma, tornar-se conhecimento porque não apresenta os elementos indispensáveis ao processo cognitivo; exige do homem uma auto-realização total, sem restringir-se a partes isoladas de sua existência. A moralidade então, por não poder fundamentar-se em nenhum fato da razão que lhe seja anterior, torna-se necessária em si mesma e constitui a sua própria fundamentação. Kant chama-a de razão prática e alerta-nos para o fato de que esta razão é aplicada especificamente à prática, isto é, à moral, àquilo que é possível pela liberdade. Neste sentido, a liberdade “[...] es en todo caso la ratio essendi de la ley moral y la ley moral la ratio cognoscendi de la libertad.” (KANT, 1973, p. 8). E, por ser portador da vontade, apenas o homem pode praticar atos morais. Então, a Crítica da Razão Prática faz a análise da vontade humana, seja uma vontade boa ou má. Em qualquer ato de vontade, este se apresenta à razão sob a forma de um imperativo, um mandamento. Estes imperativos podem ser de dois tipos: hipotéticos, quando “[...] determinam las condiciones de la causalidad del ente racional como causa eficiente solo respecto del efecto y suficiencia para el mismo.” (KANT, 1973, p. 24), ou categóricos, quando “[...] bien determinam la voluntad, sea suficiente o no para el efecto.” (KANT, 1973, p. 24). Estes últimos determinam a vontade como vontade, pois não visam benefícios ou conseqüências. A estes imperativos categóricos é que Kant chama moralidade. Para ele, uma moral é autêntica quando suas ações estão regidas por imperativos desta ordem. É então, na determinação da vontade, que encontramos o a priori do imperativo categórico, em oposição ao empírico dos imperativos hipotéticos. Todo imperativo categórico é objetivo, isto é, válido para todos os seres racionais, e todo imperativo hipotético é subjetivo, isto é, atende apenas às necessidades ou aspirações de um determinado sujeito: “Todas las reglas practicas materiales ponem el motivo determinante de la voluntad en la facultad apetitiva inferior.” (KANT, 1973, p. 27) [imperativos hipotéticos], enquanto que no imperativo categórico é a vontade que se determina a si própria. É o estabelecimento do dever moral, da lei moral. Esta, não se refere à matéria do dever e sim à sua forma, que contém o motivo determinante da vontade. Não pode referir-se à matéria porque esta é sempre empírica e a lei moral é Maiêut. dig. R. Fil. Ci. afins, Salvador, v. 1, n. 1, p. 86-92, maio/ago. 2006 90 necessariamente universal, ou não seria lei: “[...] la regla práctica es aboluta, o sea representada como proposicione práctica categórica a priori, mediante la cual la voluntad se determina objetivamente de modo absoluto.” (KANT, 1973, p. 37); esta é conhecida por Kant independentemente de condições empíricas [matéria da lei] e conseqüentemente como vontade pura [determinada meramente pela forma da lei]. Pelo acima exposto, torna-se lícito a Kant formular a lei moral universal: “Obra de tal modo que la máxima de tu voluntad pueda valer siempre y al mismo tiempo como principio de uma legislación universal.” (KANT, 1973, p. 36). O DEVER SER “La voluntad se concibe como independiente de condiciones empíricas y, en consecuencia, como voluntad pura, como determinada por la mera forma de la ley y este motivo determinante se considera como condición suprema de todas las máximas.” (KANT, 1973, p. 37). O pensamento de uma legislação universal que era até então problemático, impõe-se como lei, aprioristicamente, independente também de qualquer vontade externa. Impõe-se pela própria necessidade. Não resulta de um acordo visando, com determinada ação, um efeito conseqüente. Tal lei é um fato da razão, representado como uma “[...] proposicion practica categórica a priori mediante la cual la voluntad se determina objetivamente de modo absoluto y directo.” (KANT, 1973, p. 37). Ao ordenar categoricamente à nossa vontade, a lei moral cria uma relação de dependência que nos impulsiona a uma ação que se chama dever. E aqui está, não somente o estabelecimento do dever, mas também a sua relação necessária com a liberdade. Dever é, pois, a conseqüência ativa da relação entre a vontade e a lei moral, isto é, constitui-se numa ação imposta livremente pela razão. E é ele que permite ao homem ser racional em seus atos. Leva-nos o dever ao poder, pois, como manifestação da lei moral é uma lei da causalidade por liberdade. Kant afirma: “[...] puede hacerse algo cuando se exige que algo se haga.” (KANT, 1973, p. 36). CONSIDERAÇÕES FINAIS Maiêut. dig. R. Fil. Ci. afins, Salvador, v. 1, n. 1, p. 86-92, maio/ago. 2006 91 Somos então conduzidos pela lei moral diretamente ao conceito de liberdade: esta é a determinação da vontade pela razão. E, pelo fato de que todos os racionais têm essa faculdade de se determinar, a necessidade implícita nessa determinação, torna-se lei objetiva, isto é, válida para todos. Convém ressaltar que, os princípios práticos a priori portadores da necessidade exigida pela razão, não são exclusivamente do ser humano. O ser infinito também os possui; mas, para este, não existe o imperativo, pois a lei e a vontade se identificam, e tal o exime da obrigação do dever. Mas, para o homem, o dever é algo a ser realizado e ele se torna livre à medida que cumpre esse dever. O homem não somente se torna livre, mas ele deve ser livre, isto é, agir de acordo com a sua própria razão, excluída qualquer dependência externa, para poder assim concretizar sua autonomia. Esta é conseqüência do incondicionado absoluto implícito no fato da razão e, se por um lado esclarece o fundamento da lei moral, por outro ele explica a vontade pura. O fato independe de realização, a sua incondicionalidade mantém sempre a sua força, mas para a autonomia, a concretização é importante para que ela exista. Somente é autônoma aquela formulação da lei moral que coloca na vontade mesma a origem da própria lei. É a vontade que deve legislar a si mesma. Eis aqui o apriorismo kantiano: exclui-se o conteúdo empírico da lei e enfatiza-se o seu aspecto puramente formal. Dever e liberdade estão indissoluvelmente ligados: - Faço porque quero e quero porque devo, porque a minha razão me ordena! Por esta afirmação o homem torna-se pessoa, isto é, se torna “[...] miembro del reino moral, del reino de la libertad.” (HERRERO, 1975, p. 31). REFERÊNCIAS BOUTROX, Émile. La Philosophie de Kant. Paris: VRIN, 1926. HERRERO, S. J. Francisco Javier. Religión e história en Kant. Madrid: Gredos, 1975. KANT, Emmanuel. Crítica de la razon practica. 3. ed. Buenos Ares: Losada, 1973. ______. Crítica de la razon pura. 4. ed. Buenos Ares: Losada, 1973. v. 2. MARTIN, Gottfried. Science moderne et ontologie traditionèlle. Paris: PUF, 1963. MORENTE, Manuel Gracia. Fundamentos de Filosofia. 3. ed. São Paulo: Mestre, 1967. Artigo recebido em 17/11/2003 e aceito para publicação em 27/01/2004. Maiêut. dig. R. Fil. Ci. afins, Salvador, v. 1, n. 1, p. 86-92, maio/ago. 2006 92