revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Transcrição

revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Praça Dr. Maurício Cardoso, nº 07 / 2º andar – CEP 90570-010 – Porto Alegre – RS –
Brasil
Tel./Fax 55 51 3330-3845 | 3333-6857
www.sbpdepa.org.br
e-mails: [email protected] | [email protected]
v. 16, n. 2, 2014
revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
filiada à Associação Psicanalítica
Internacional desde 1992, à FEPAL e à
Federação Brasileira de Psicanálise
A revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre é uma publicação semestral editada regularmente
desde 1999. Encontra-se indexada na Base de Dados INDEX
PSI Periódicos. Tem como finalidade publicar trabalhos
selecionados de psicanalistas brasileiros das Sociedades
Psicanalíticas e Grupos de Estudos filiados à Associação
Psicanalítica Internacional e de autores de notório saber,
visando aprofundar, divulgar, ampliar e atualizar
conhecimentos na área da psicanálise. A Revista publica
também artigos originais ou traduções de trabalhos de
analistas estrangeiros, ainda de candidatos em formação do
Instituto de Psicanálise. São aceitos artigos de profissionais
ligados a Universidades e articulistas de comprovado saber,
ligados de alguma forma à psicanálise e às ciências
humanas.
Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
- Vol. 1, n. 1 (jan/dez. 1999)– . – Porto Alegre: Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre, 1999– .
v. ; 25 cm.
Revista indexada na base de dados INDEX PSI Periódicos.
Periodicidade: semestral a partir de 2001.
ISSN 1518-398x
1. Psicanálise I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
CDU 615.851.1
CDU 616.891.7
Bibliotecária Responsável: Adriana Clô Lopes CRB-10/1951
Tiragem: 250 exemplares
EDITORA
Mara Horta Barbosa
CONSELHO EDITORIAL
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo | Ana Rosa C. Trachtenberg | André Green (in
memoriam) | Antonino Ferro | Carmen Médici de Steiner | Cesar Botella | Didier
Lauru | Elfriede Susana Lustig de Ferrer (in memoriam) | Ester Malque Litvin |
Franco Borgogno | François Marty | Gildo Katz | Gley Silva de Pacheco Costa |
Helena Ardaiz Surreaux | Heloísa Helena Poester Fetter | João Baptista Novaes
Ferreira França | Laura Ward da Rosa | Leopold Nosek | Leonardo Wender |
Marcelo Viñar | Marco Aurélio Rosa | Maria Aparecida Quesado Nicoletti | Marta
Petricciani | Miguel Leivi | Nilde Parada Franch | Raquel Zak de Goldstein |
Rómulo Lander | Samuel Zysman | Sara Botella | Sara Zac de Filc | Sebastião
Abrão Salim | Stefano Bolognini | Suad Haddad de Andrade
COMISSÃO EDITORIAL
Carmen Lúcia M. Moussalle | Maria Isabel Ribas Pacheco | Patrícia R. Menelli
Goldfeld | Rosa Beatriz Santoro Squeff
ASSISTENTES EDITORIAIS
Juliana Ulrich Lima e Adriana Clô Lopes
NORMATIZAÇÃO ABNT
Adriana Clô Lopes
EDITORAÇÃO
Luiz Cezar Ferreira de Lima
PRODUÇÃO GRÁFICA
Gráfica Calábria
CAPA E PROJETO GRÁFICO
Paola Bulcão Manica
SOCIEDADE BRASILEIRA
DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à Associação Psicanalítica Internacional
DIRETORIA
Presidente
Helena Ardaiz Surreaux
Secretário
Lores Pedro Meller
Tesoureira
Ane Marlise Port Rodrigues
Diretora Científica
Sílvia Brandão Skovronsky
Diretora de Comunicação
Mara Horta Barbosa
Diretora de Relações com a Comunidade
Patrícia Rivoire Menelli Goldfeld
Diretora Centro de Atendimento Psicanalítico
Denise Zimpek Pereira
INSTITUTO DE PSICANÁLISE
Diretor
Fernando Linei Kunzler
Secretário
Leonardo Adalberto Francischelli
Coordenadora da Subcomissão de Formação
Augusta Gerchmann
Coordenadora da Subcomissão de Seminários
Laura Ward da Rosa
ASSOCIAÇÃO DE MEMBROS DO INSTITUTO
Presidente
Magda Regina Barbieri Walz
Vice-Presidente
Kellen Gurgel Anchieta
Secretário
Fábio Martins Pereira
Tesoureira
Tamara Barcellos Jansen Ferreira
NÚCLEOS
Núcleo de Infância e Adolescência
Eluza Maria Nardino Enck
Núcleo de Vínculos e Transmissão Geracional
Vera Maria Pereira Homrich de Mello
Núcleo Psicanalítico de Florianópolis
Márcio José Dal-Bó
MEMBROS FUNDADORES
Alberto Abuchaim
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Antonio Luiz Bento Mostardeiro
David Zimmermann
Gildo Katz
Gley Silva de Pacheco Costa
Izolina Fanzeres
José Facundo Passos de Oliveira
José Luiz Freda Petrucci
Júlio Roesch de Campos
Leonardo Adalberto Francischelli
Lores Pedro Meller
Luiz Gonzaga Brancher
Marco Aurélio Rosa
Newton Maltchik Aronis
Renato Trachtenberg
Sérgio Dornelles Messias
MEMBRO HONORÁRIO
Dr. David Zimmermann
PSICANÁLISE | v. 16 n. 2, 2014
revista da SBPPA
Sumário
EDITORIAL
Palavras da Editora | 255
Mara Horta Barbosa
TRABALHOS TEMÁTICOS – PARENTALIDADE
Parentalidade: aspectos contemporâneos – diferença entre menina e
menino | 261
Celso Gutfreind
Matou o Pai e foi ao Cinema: um estudo intersubjetivo sobre o parricídio | 267
Daniela Berger, Rodrigo Luís Bispo Souza
A Ética nas Relações entre Pais e Filhos | 283
Gley P. Costa
A Diversidade nos Acessos à Parentalidade na Cultura Atual e nos Processos de
Subjetivação | 297
Patricia Alkolombre
OUTRAS CONTRIBUIÇÕES
Totem e Tabu: um contraponto cultural às errâncias do sexual | 313
Luis Carlos Menezes
As Ideologias e os Estados Mentais Ideológicos na Prática Clínica | 323
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
O Ideal do Ego e as Paixões | 337
Marília Amaro da Silveira Modesto Santos
A Mentira que os Casais Vivem: explorando o filme A mentira. Terapia de casais
e as barganhas interiores perniciosas que vinculam e aprisionam | 347
Robert Waska
SEÇÃO POR QUE LER
Por que ler Maldavsky? | 367
José Facundo Oliveira
RESENHA
Resenha do Livro A Obra de Salvador Célia: Empatia, Utopia e Saúde Mental das
Crianças | 375
Ane Marlise Port Rodrigues
INTERFACES
A Ética do Afeto | 381
Maria Berenice Dias
ENTREVISTA
SBPdePA Entrevista Elisabeth Zambrano | 399
TEMA DA JORNADA 2014
Indicadores de Intersubjetividad 0-12 Meses: del encuentro de miradas al
placer de jugar juntos (Parte II) | 411
Victor Guerra
Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação | 437
PSICANÁLISE | v. 16 n. 2, 2014
revista da SBPPA
Contents
EDITORIAL
Editor’s Words | 255
Mara Horta Barbosa
THEMATIC WORKS – PARENTING
Parenting: contemporary aspects – difference between girl and boy | 261
Celso Gutfreind
Killed the Father and Went to the Movies: A Intersubjective Study of
Parricide | 267
Daniela Berger, Rodrigo Luís Bispo Souza
The Ethics in Relations Between Parents and Children | 283
Gley P. Costa
Diversity in the access to parenthood in the current culture and subjectivation
processes | 297
Patricia Alkolombre
OTHER CONTRIBUTIONS
Totem and Taboo: a cultural counterpoint to errant sexual behaviors | 313
Luis Carlos Menezes
Ideologies and ideological mental states in clinical practice | 323
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
The Ideal of the Ego and the Passions | 337
Marília Amaro da Silveira Modesto Santos
The Lie Couples Live Within: exploring the film “The Lie”. Psychoanalytic
couples treatment, and the poisonous internal bargains that bind and
trap | 347
Robert Waska
“WHY READ” SESSION
Why Read Maldavsky? | 367
José Facundo Oliveira
BOOK REVIEW
Book Review The Work of Salvador Celia: Empathy, Utopia and Mental Health
of Children | 375
Ane Marlise Port Rodrigues
INTERFACES
The Ethics of Affection| 381
Maria Berenice Dias
INTERVIEW
SBPdePA Interview: Elisabeth Zambrano | 399
WORKSHOP THEME 2014
Intersubjectivity Indicators 0-12 Months: the meeting of glances to the
pleasure of playing together (Part II) | 411
Victor Guerra
Guidelines for Contributors and Standards for Publication | 437
editorial
255
Mara Horta Barbosa
Palavras da Editora
Queridos leitores,
Aqui está mais uma edição de Psicanálise: Revista da SBPdePA. Este é o número
2 de 2014, volume 16. Nossa Revista está completando 15 anos! Idade importante, “marco” de grandes transformações no ciclo vital do indivíduo que vão culminar na consolidação da identidade adulta em um tempo posterior. Dentro desta
analogia, estamos num processo de mudança em nossa Revista. Trabalhamos
neste momento com o objetivo de torná-la uma publicação também online e
acrescentar-lhe novas indexações, o que aumenta seus acessos, visibilidade e
integração no setting de publicações científicas.
Seguimos a proposta da Revista “traduzir” os temas abordados nas atividades
científicas da Brasileira. A edição anterior foi apenas temática, trazendo “Escrita
e Psicanálise”. Nesta, a Revista apresenta um tema central, e volta a ter outras
seções. PARENTALIDADE é o tema central desta edição, que foi também o tema
abordado na “Brasileira na Cultura”, em 2014, uma atividade anual que a Brasileira realiza em parceria com a livraria Cultura, em Porto Alegre, com encontros
abertos à comunidade.
Na seção temática publicamos quatro trabalhos apresentados em ordem alfabética de seus autores, que abordam as vicissitudes dos vínculos familiares, da
função parental e da função família dentro de um contexto contemporâneo, que
traz consigo uma diversidade de aspectos culturais e de acesso à Parentalidade.
Celso Gutfriend, escritor e psicanalista da SBPdePA, aborda o tema “Parentalidade:
aspectos contemporâneos – diferença entre menina e menino”. Neste texto Celso elabora de modo poético o tema da Parentalidade como construção baseada
nas diversas faces da “diferença”, entre outros aspectos a diferença de gênero.
Convida a uma reflexão a respeito de como a Parentalidade é hoje exercida.
Daniela Berger e Rodrigo Luís Bispo Souza, ambos psicólogos, apresentam “Matou o pai e foi ao cinema: um estudo intersubjetivo sobre o parricídio”. Os autores nos convidam a uma leitura do parricídio sob a ótica intersubjetiva dentro da
perspectiva da teoria psicanalítica das configurações vinculares. Seu propósito é
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fomentar e expandir o estudo das psicopatologias vinculares, com frequencia
encontradas em famílias severamente disfuncionais. Ilustram com uma vinheta
o estudo clínico da configuração vincular de uma família, chamada por eles,
“parricida”.
Gley P. Costa, também escritor e analista da SBPdePA, nos brinda com “A ética
nas relações entre pais e filhos”, um texto que discorre sobre o tipo de vínculo
desenvolvido entre pais e filhos, e como este se expressa na maturação psíquica
dos filhos. Ele mostra que o respeito ao “não-eu”, e o conceito de hospitalidade
(aceitar o outro completamente diferente), na relação com os filhos, é primordial
para a maturação completa e saudável destes filhos.
Patricia Alkolombre, psicanalista da APA, apresenta “A diversidade nos acessos à
parentalidade na cultura atual e nos processos de subjetivação”, no qual busca
pensar a diversidade nos acessos à parentalidade por meio das articulações entre a fertilidade natural, a fertilidade assistida e a adoção, com a abertura de um
novo leque de possibilidades e configurações que chegam à clínica psicanalítica.
Outras Contribuições
Luiz Carlos Menezes, psicanalista da SBPSP, apresenta o trabalho “Totem e Tabu:
um contraponto cultural às errâncias do sexual.” O autor parte da afirmação
freudiana do indeterminismo originário do sexual e sua natureza incestuosa desde
o início da vida. A partir da interpretação de um filme, ele aponta para a diversidade da estruturação psíquica que se dá a medida que é instituída a proibição do
incesto, e para a variedade de expressão da sexualidade, que se manifesta conforme é permitida pela liberdade da cultural atual.
Marco Aurelio Crespo Albuquerque, também psicanalista da SBPdePA, escreve
sobre “As ideologias e os estados mentais ideológicos na prática clínica”. Aborda
o conceito de ideologia e questiona seu significado inconsciente para o indivíduo
que vem em busca de tratamento. Ele diferencia os “estados mentais ideológicos”, como uma formação defensiva de crenças que o indivíduo dispõe para
manter a coesão de um frágil Self.
Marília Amaro da Silveira Modesto Santos, membro da SBPSP, oferece o trabalho
“O ideal de Ego e as Paixões”. A partir de uma vinheta clínica, ela aborda o possível destino do narcisismo que, ao ser ditado pela qualidade da relação com o
primeiro objeto de amor (a mãe), poderá influir (ou não) na formação de um
superego sádico, não protetor e aprisionador do sujeito.
Robert Waska, psicanalista norte-americano que trabalha com terapia de casais,
nos contempla com um artigo “A mentira que os casais vivem: explorando o
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Mara Horta Barbosa
filme – A mentira. Terapia de casais e as barganhas interiores perniciosas que
vinculam e aprisionam”. Com sua abordagem Pós-Kleiniana, faz uma análise do
filme “The Lie” e também com vinhetas clínicas aborda os”contratos inconscientes” ou “mentiras inconscientes” que podem se apresentar na relação de um casal, e que estão a serviço de protegê-los de ansiedades primitivas, mas os tornam
empobrecidos e afetivamente distantes, com a chance de buscarem uma mudança somente quando este sistema mutuamente defensivo não mais se sustenta.
Na seção Por Que Ler apresentamos David Maldavski, autor contemporâneo que
ganha vida nas palavras do colega, analista da SBPdePA, José Facundo de Oliveira. Maldaviski, psicanalista, professor, doutor em filosofia e letras, é um dos pesquisadores mais produtivos da psicanálise na atualidade. Sua importância se
relaciona sobretudo à criação da teoria do desvalimento. Relaciona o desvalimento
com afecções tóxicas e traumáticas, adições e doenças psicossomáticas, levantando a necessidade de alterar a técnica analítica no manejo de pacientes desvalidos. Ele desenvolveu um método científico para interpretação analítica, denominado ADL (Algoritmo David Liberman), baseando-se na análise do discurso,
que tornou-se válido na pesquisa cientifica em psicanálise.
Na seção Resenha, a colega Ane Marlise Port Rodrigues, analista da SBPdePA,
apresenta o livro “A Obra de Salvador Celia: Empatia, Utopia e Saúde Mental”,
organizado e lançado em 2013, após a morte de Salvador. O livro, organizado
pelos colegas Celso Gutfriend, Isabel Leite Célia, esposa de Salvador, Norma Becker
e Victor Guerra, mostra o legado deixado pelo trabalho deste psiquiatra, terapeuta
e educador, pioneiro na psiquiatria infantil do Brasil, sobretudo no que se refere
às relações mais precoces e sua importância na prevenção da Saúde Mental. O
autor usa esta noção e conhecimento para influenciar os moldes tradicionais de
intervenção comunitária, com projetos em saúde pública de repercussão nacional e internacional.
A seção Interface se propõe a um diálogo entre a psicanálise e outras esferas do
saber. Esta edição publica o artigo “A Ética do Afeto”, de Maria Berenice Dias,
advogada e presidente da comissão da diversidade sexual do Conselho Federal
da OAB. Ela aborda o conceito de família, ao longo da história, ditado por dogmas
religiosos, como fonte de poder, de preconceito e exclusão ao diferente. E identifica o vínculo de afeto como norteador do atual conceito de entidade familiar,
afastando o preconceito e retirando do limbo uma minoria marginalizada que
busca o sonho de constituir uma família. Aponta também as dificuldades ainda
hoje encontradas pelo Estado, como entidade legislativa que deve assegurar a
igualdade de direitos a todos, em cumprir seu papel de proteção e inclusão, muito embora avanços nesse sentido já tenham sido conquistados.
Palavras da Editora
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 255-258, 2014
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Na seção Entrevista conversamos com Elisabeth Zambrano, médica e psicanalista pela SBPRJ, mestre e doutora em antropologia social pela UFRGS, onde estuda
O Direito a Homoparentalidade, projeto de pesquisa que vem desenvolvendo desde
2004. Na entrevista, ela expõe uma interessante abordagem, não só na ótica da
psicanálise, mas também da antropologia social, do tema “Parentalidade”, abordando o conceito de família na cultura ocidental ao longo do tempo, suas novas
possibilidades, arranjos e repercussões.
Finalizamos esta edição com a seção Jornada, onde publicamos a segunda parte
do trabalho “Indicadores de Intersubjetividade de 0-12 Meses: do encontro de
olhares ao prazer de brincar juntos”, de Victor Guerra, psicanalista da APU. Este
trabalho foi apresentado na íntegra em Jornada realizada na Brasileira no último
mês de agosto, com exibição do filme produzido pelo autor, e que originou o
presente texto. A primeira parte do texto foi publicada na Revista número 1 deste volume, lançada por ocasião Jornada. Victor nos mostra o conceito de
intersubjetividade na construção da vida psíquica do bebê, entendendo o bebê
como um co-participante ativo no processo de subjetivação, processo este pelo
qual vai se construir como um sujeito. Elabora “um guia de indicadores de
intersubjetividade”, mostrando os marcos do processo de subjetivação do bebê
no seu primeiro ano de vida, e defende que o guia possui um valor de diagnóstico.
Gostaria de expressar nosso agradecimento à Ananda Feix, bibliotecária que trabalhou primorosamente conosco durante os últimos seis anos como assistente
editorial, e nos deixou este ano. E dar boas vindas à Adriana Clô Lopes, também
bibliotecária, que inicia sua trajetória na organização da Revista. Oferecemos
também muito boas vindas à colega Patricia Goldsfield que passa a integrar nossa equipe editorial, uma excelente aquisição (entre outras) por sua vivência acadêmica. E nos despedimos (e agradecemos) do colega Ariel Roitman, que nos
deixou enquanto equipe.
Concluindo, é impossível deixar de mencionar a “parceria” dessa experiente e
dedicada equipe editorial, composta pelas colegas Carmem Moussallen, Rosa
Squeff e Maria Isabel Pacheco, com o apoio técnico de nossa equipe de secretaria, com os autores que nos prestigiam, como veículo de expressão para suas
produções, e com os leitores, que irão dar sentido a este trabalho.
Mara Horta Barbosa
Editora
Porto Alegre
2º semestre de 2014
trabalhos
temáticos
Parentalidade
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Celso Gutfreind
Parentalidade: aspectos
contemporâneos – diferença
entre menina e menino
Ensaio | Escrito a partir de uma palestra no evento A Brasileira na Cultura, promovida pela Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, setembro 2014.
Celso Gutfreind
Membro Titular da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de Porto Alegre.
Resumo: Neste artigo, o autor aborda o tema da parentalidade sob o ponto de vista de sua
construção como conceito psicanalítico, incluindo a sua origem, na França, nos anos 50. Alguns autores importantes para este campo são retomados, e o tema se detém igualmente no
interesse do cruzamento da parentalidade com outros assuntos de relevância para a clínica
analítica, em especial a diferença de gênero e os aspectos contemporâneos do cenário onde
hoje a parentalidade é exercida. Tais aspectos recebem uma reflexão que é exemplificada com
uma vinheta de um atendimento clínico de uma criança, onde o desafio para o exercício de
ser e tornar-se mãe e pai aparece em primeiro plano.
Palavras-chave: Aspectos contemporâneos. Diferença de gênero. Parentalidade.
Os edifícios assumiram o narcisismo de seus arquitetos, a egolatria do nosso
olhar. Uma janela se namora no reflexo da outra – se há alguém por trás delas,
como saber? (Luís Henrique Pellanda/Asa de Sereia)
Poucos pais se contentam em ficar sentados nos bancos do parque,como faziam os pais de tempos passados, deixando as crianças se virarem por conta
própria. (Hara Estroff Marano/De olhos bem fechados)
Há três tópicos no título desta intervenção. A parentalidade, sobre a qual falaremos o tempo todo. Os aspectos contemporâneos dela sobre os quais vou me
deter na maior parte do tempo. E a diferença entre menina e menino, do qual
direi tão somente uma palavra, deixando o principal para a minha colega Astrid,
que é menina. Eis, desde já, uma diferença. Meninas são mais organizadas, fiéis
(ao título) e inteligentes. Nem sempre, mas a Astrid é. Portanto, sobre essa diferença, tudo com ela. Meninos, apesar (ou por causa) dos hormônios, podem ser
humildes. Ou metidos. Pretensiosos.
Parentalidade: aspectos contemporâneos – diferença entre ...
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 261-265, 2014
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A propósito da parentalidade, ela constrói-se fundada sobre as diferenças: de
idade, de sexo, de gerações, segundo Houzel (1999), autor importante no ramo.
Por isso, meu narcisismo pessoal deu trela para o meu narcisismo profissional
quando Joana, de 12 anos, falou a propósito de sua boca inchada no sentido
manifesto e de sua difícil passagem adolescente, no sentido latente:
– A verdade é que o Lopes (dentista que retirara o seu ciso) é um maneta. Acho que porque
ele é velho. Reparou que só tem velho na minha vida? Dentista velho, pai velho, padrasto
velho, mãe velha. Só a madrasta é nova, só um pouco mais velha do que eu, mas fala como
uma velha...
Interrompi ou continuei o seu discurso:
– Analista velho...
Ela riu e calou, consentindo.
Quase quarenta anos de idade (de diferença) no separavam. Isso significava, entre outras péssimas novidades, incluindo uma tendinose no meu ombro esquerdo e duas hérnias inguinais, que a morte estava mais perto para mim do que
para ela. Restava-me agarrar naquele sucesso terapêutico, quando, depois de
cinco anos (desde quando eu era um pouco menos velho), nós pudemos construir alguns alicerces necessários para a construção de uma parentalidade mais
estruturante no difícil contexto de uma família recomposta. Não que em outros
seja mais fácil [...]. Para Freud, é até mesmo impossível (apud SOUSSAN, 2004).
Tais alicerces incluíam, sobretudo, a noção de diferença proposta por Houzel.
Sim, ela era jovem. Eu, velho, pelo menos para ela. Lembrei-me de quando a
teoria da parentalidade entrou na minha vida. Eu era mais jovem, vivia na França e estudei que ela nasceu como maternalité ou maternalidade, quando
Racammier estudou a fragilidade psíquica de mulheres que se tornavam mães.
Hoje diversos autores o retomaram com outros nomes como transparência psíquica (BYDLOWSKI, 1997).
Quando o termo foi ampliado e a palavra paternalidade foi difundida, incluindo
o pai, eu estava lá. Cheguei a participar da tradução brasileira para esses trabalhos (SOLIS-PONTON, 2004). Mais do que para Joana, eu era meio velho mesmo, e
narcisismo nenhum aplacaria esta dura realidade.
Entre seus aspectos contemporâneos, penso que é importante dizer que vivemos
numa sociedade que com frequência apaga as diferenças. Não sabemos bem as
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Celso Gutfreind
origens disso. As hipóteses vêm apontando para o narcisismo desenfreado dos
novos tempos. Repletos de vazio, tempos de pouco tempo, tempos de espaços
exíguos oriundos de relações menos reais, tentaríamos preenchê-lo, voltandonos para nós mesmos, abrindo mão do que é mais verdadeiro e eterno no sentido
de produzir realização afetiva. Ou memória, esta nossa única chance de viver
para sempre ou, pelo menos, no sempre que nos cabe de vez em quando: o encontro com o outro, o qual, faltante, retroalimentará o ciclo do vazio.
Ora, se somos pouco capazes de viver o instante verdadeiro, se a cultura e o
entorno não colaboram com isso, tapamos o buraco em busca da eternidade.
Envelhecer torna-se, então, proibido. Morrer, menos ainda. Resultado: somos como
se fôssemos todos jovens, o que é péssimo para a expressão do olhar, repleto de
botox, e o movimento da boca, repleta de preenchimento (mas no fundo, onde
precisa, não preenche). E, claro, para a parentalidade que, como vimos com Houzel
(1999), funda-se na diferença entre gerações, idades, sexo.
Dita a palavra sobre a diferença de menina e menino, apagada como as demais
diferenças, quero abordar, conforme o prometido, a contemporaneidade em si.
Quanto ao conteúdo, começo dizendo que não sou daqueles que dizem: – Ah no
meu tempo – quando eu era jovem – era melhor.
Quando eu era jovem, era melhor e pior. De pior, a infância seguido era hospitalizada. Eu mesmo fui uma vez para extirpar um apêndice que hoje se retira com
muito menos frequência e talvez não estivesse aqui como psicanalista se não
tivesse sido hospitalizado para sair, dias depois, sem apêndice e com muito menos inocência de quem olhou a cara da falta de empatia. Bem, ser psicanalista é
bom em vários momentos, mas ser hospitalizado com frequência certamente
não era.
Hoje a tecnologia e o conhecimento científico permitem que muitas
hospitalizações possam ser prevenidas desde muito cedo ou nas vésperas delas.
Isto é de fato melhor do que quando éramos jovens.
A mesma tecnologia, aplicada à escola, permite avanços importantes pedagógicos e na comunicação. É boa, enfim.
Não vou me deter nisso. Nem no reconhecimento dos maus tratos e do abuso,
outro aspecto pra lá de positivo na contemporaneidade da infância. Por ora, basta dizer que hoje, enfim, é melhor do que ontem para ficarmos brevemente só
nesses aspectos.
Parentalidade: aspectos contemporâneos – diferença entre ...
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 261-265, 2014
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É, portanto, melhor e é pior e, para o pior, fiquemos na mesma tecnologia. Que
ajuda e atrapalha. Aliada à falta de segurança, jogou nossas crianças de classe
média atrás das grades dos condomínios, privando-as da rua, espaço importante
de brincadeira, processo importante de construção do desapego, parte importante da parentalidade. Resultado: menos encontros reais. Quanto às classes
sociais menos abastadas, há mais pátio e mais rua, o que não garante a infância,
roubada com frequência pela pobreza e o trabalho infantil. Ou seja, em termos
de diferenças de classes e sua repercussão em nossas crianças, nada parece ter
mudado de um tempo para o outro.
Se retomarmos o ponto anterior, o do narcisismo inchado, chegaremos infelizmente ao que Golse e Braconnier (2008) sintetizaram como a criança sem direito à
infância como um traço negativo da contemporaneidade de jovens com menos
tempo e espaço e prejudicados na necessidade de brincar, além de instigados,
além da conta, à performance e à preparação de um futuro em detrimento do
presente, único tempo real. No meu tempo, portanto, era melhor.
Ainda sobre o efeito negativo da tecnologia e talvez aqui, novamente, junto do
narcisismo, confrontamo-nos com frequência com situações de adição como forma de preencher vazios. Nos adolescentes, aparece no álcool e/ou outras drogas.
Nas crianças, sobretudo com o computador, este mesmo que, por outro lado como
vimos, é muito legal.
Lembro-me aqui da mesma Joana, adita clássica de games, capaz de preencher o
vazio do dia com cliques incessantes noite adentro e que, ainda no início de seu
tratamento, enfureceu-se quando limitei o tempo de usar a máquina durante a
consulta. Ainda não tinha me chamado de velho, mas não lhe faltaram outros
recursos linguísticos para me ofender. Acolhida na raiva e no palavraredo, ela
falou:
– O que vamos fazer, então? Ficar sentindo tédio?
– Que grande ideia, respondi na hora, correndo o risco de ser ofendido novamente, mas vibrando com a simplicidade genial de uma menina que compreendeu o
sentido principal da parentalidade, da educação, da psicanálise e de tudo o que
envolve a lida com uma criança: ensinar-nos a nos confrontar com o tédio e o
vazio da existência para viver de tentar preencher a falta e a ambivalência, critério hoje valorizadíssimo como baluarte da cura analítica.
Joana nos inspira, pois dela veio o arremate desta intervenção sem arremate, já
que estamos no tempo presente e como concluir uma reflexão sobre ele que não
seja de forma falsa em uma solução de compromisso com o encerramento [...].
265
Celso Gutfreind
Se Joana ajudou-me a encerrar (desapegar-me), imagino que eu tenha proporcionado o mesmo para ela no terreno transferencial de uma parentalidade sempre disposta a (re)edificar-se.
Parenting: contemporary aspects – difference between girl and boy
Abstract: In this paper, the author addresses parenting from the standpoint of its construction
as psychoanalytic concept, including its origin in France in the 1950s. The opinions of some
important authors within this field are drawn upon, and parenting is given the same status as
other topics that are relevant to analytical clinical practice, especially regarding gender
difference and contemporary aspects of parenting. These aspects are discussed and illustrated
by a child’s clinical case vignette, in which the challenge to be and to become a parent is
brought to the forefront.
Keywords: Contemporary aspects. Gender difference. Parenting.
Referências
BEN SOUSSAN, P. S’il vous plait, dessine-moi un paren. In: Spirale, Paris, n. 29,
p. 33-45, 2004.
BYDLOWSKI, M. La dette de vie: itinéraire psychanalytique de la maternité. Paris:
Puf, 1997.
GOLSE, B.; BRACONNIER, A. Nos bébés, nos ados. Paris: Odile Jacob, 2008.
HOUZEL, D. Les enjeux de la parentalité. Paris: Érès, 1999.
MARANO, H. E. De olhos bem fechados. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 fev. 2005.
PELLANDA, L. H. Asa de Sereia. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013.
SOLIS-PONTON, L. A construção da parentalidade. In: SILVA, M. C. P. (Org.). Ser pai,
ser mãe – parentalidade: um desafio para o próximo milênio. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2004.
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Revisão de português: Victor Lourenço
Celso Gutfreind
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90520-050 Porto Alegre – RS – Brasil
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Parentalidade: aspectos contemporâneos – diferença entre ...
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 261-265, 2014
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Daniela Berger, Rodrigo Luís Bispo Souza
Matou o Pai e foi ao Cinema:
um estudo intersubjetivo
sobre o parricídio
Artigo
Daniela Berger
Psicóloga. Especialista em Psicoterapia Psicanalítica de
Adultos. Especialista em Psicoterapia das Configurações
Vinculares pelo Contemporâneo Instituto de Psicanálise
e Transdisciplinaridade.
Rodrigo Luís Bispo Souza
Psicólogo. Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Especializando em Psicoterapia Piscanalítica de Adultos.
Resumo: O objetivo deste trabalho é propor a releitura do parricídio a partir da perspectiva
intersubjetiva, priorizando o estudo da teoria psicanalítica das configurações vinculares. Compreende-se o fenômeno do parricídio como resultado de um processo complexo, que transpõe
o modelo edípico e incide sobre famílias severamente disfuncionais e com maltrato crônico,
postuladas como conjeturas diagnósticas psicóticas. A fim de ilustrar a teoria, este trabalho
faz aproximações com o caso clínico de uma família parricida, mostrando as articulações
teórico-clínicas existentes. O presente estudo visa colaborar com um avanço no pensamento
psicanalítico sobre a temática e suscitar indagações que possam propor mais estudos sobre a
perspectiva intersubjetiva do parricídio a fim de expandir, atualizar e dinamizar os escritos
sobre as conjeturas psicopatológicas vinculares.
Palavras-chave: Intersubjetividade. Parricídio. Psicanálise vincular.
Introdução
O título deste artigo, Matou o pai e foi ao cinema, é uma adaptação do filme brasileiro, de 1969, Matou a família e foi ao cinema, dirigido por Júlio Bressane. O filme
propõe a banalização de crimes envolvendo violência familiar: na primeira cena,
um jovem rapaz de classe média mata os pais a navalhadas e vai ao cinema se
distrair. No filme que assiste, seguem-se várias histórias grosseiras, pequenas
tragédias particulares. Essas histórias são interferências na história principal e o
espectador acaba confuso, perguntando-se, então, o que é verdade e o que é ficção.
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O atentado contra a vida humana, classificado como homicídio, tem sempre uma
dimensão dramática. Entretanto, no parricídio, este drama é exacerbado porque
fere não apenas valores morais e religiosos, mas atenta contra laços de
consanguinidade e por isso é pensado, na nossa sociedade, como um dos crimes
mais graves que alguém pode cometer (DEBERT; FERREIRA; LIMA, 2008). Na antiguidade, o conceito de parricídio era aplicado somente à morte do pai de uma
família, pois não se considerava delito, por exemplo, que um pai matasse seu
filho. Na Idade Antiga e na Era Medieval, o homicídio da esposa adúltera era
permitido em alguns códigos (GALLEGUILLOS et al., 2010). Neste estudo usa-se a
definição que Ferreira (2010) apresenta do parricídio, como um homicídio praticado contra seu próprio pai ou qualquer um de seus ascendentes.
Segundo o Código Penal Brasileiro, o parricídio não é um crime específico, porém
é enquadrado como homicídio (BRASIL, 1984). A literatura aponta o parricídio
como sendo um delito pouco frequente (GALLEGUILLOS et al., 2010; GOMIDE,
2010). Estudos sobre o perfil dos parricidas, quanto ao gênero, apontam que a
maioria dos agressores são homens, observando-se taxas de até 92%, com uma
razão de 6:1 entre homens e mulheres (GALLEGUILLOS et al., 2010). Entre os
homens parricidas, o perfil de maior frequência inclui adultos com alta
prevalência de patologia psiquiátrica, em especial esquizofrenia e consumo de
álcool e drogas (CORNIC e OLIE, 2006; DAKHLAOUI et al., 2009).
Em seu trabalho Psychotic parricide: prevention, os pesquisadores franceses Cornic
e Olie (2006) descreveram o perfil típico de um parricida adulto: homem jovem,
solteiro, desempregado, que vive com a vítima, sofre de esquizofrenia e abusa de
álcool e drogas, tendo suspendido o tratamento e possuindo antecedentes prévios de condutas ilegais.
Um segundo tipo de perfil parricida, sendo este menos frequente que o anterior,
corresponde a sujeitos adolescentes em três possíveis situações psicossociais: a)
maus-tratos crônicos; b) enfermidade mental grave, como psicose ou retardo
mental; etc.) transtorno perigosamente antissocial (GALLEGUILLOS et al., 2010).
Além dos grupos anteriores, merece destaque o grupo das crianças maltratadas
que cometem o parricídio em defesa própria, diante do contexto de abuso e/ou
negligência, em famílias severamente disfuncionais e com maltrato crônico. Heide
(1994, p. 151) sugere que “entender os parâmetros dos maus tratos infantis é um
fator crítico para se determinar o processo de como os adolescentes matam seus
pais”.
Esse tipo de crime, especialmente quando cometido nas classes média e alta,
ganha atenção da mídia, que se empenha em divulgar informações capazes de
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tornar o crime inteligível. No entanto, ao analisar situações agravantes nos crimes de parricídio, percebe-se que este “é um ato desesperado de autoproteção
pela percepção real de um perigo iminente” (GOMIDE, 2010, p. 221).
Na psicanálise, percebe-se que o tema do parricídio surge na obra freudiana, em
1913, com o trabalho Totem e tabu (FREUD, 1913). Ali o autor faz uma leitura antropológica na qual pretende explicar a origem do laço social, abordando o mito
da horda primeva e da morte do pai totêmico. Estes seriam os mais antigos e
poderosos desejos humanos: matar o pai e cometer incesto (FREUD, 1913) sendo
necessário para a formação da civilização a repressão dessas duas pulsões (agressiva e sexual); sendo assim o parricídio seria considerado “o crime primevo fundador da cultura” (COELHO, 2011, p. 69).
Freud retoma, em 1928, no texto Dostoiévski e o parricídio, o desenvolvimento teórico acerca do tema, acrescentando a ideia de que o parricídio é a principal fonte
do sentimento de culpa do homem. O relacionamento de um menino com o pai
é ambivalente: sente ódio e procura livrar-se do pai como rival e, ao mesmo tempo, identifica-se com ele de maneira terna. No entanto, em determinado momento, a criança aprende que a tentativa de afastar o pai como rival seria punida
por ele com a castração, o que a faz ter que abandonar seu desejo de possuir a
mãe e livrar-se do pai. Na medida em que esse desejo permanece no inconsciente, constitui a base do sentimento de culpa (FREUD, 1928).
Posteriormente, em 1939, Freud publica Moisés e o monoteísmo, retomando neste
escrito a questão parricida. A partir da ideia do parricídio como gênese do laço
social, Freud (1939) avança, postulando que este mesmo evento está na base da
religião monoteísta, sendo também a nascente do povo judeu. Tal ideia é abordada pela hipótese de que o nascimento do povo judeu e de sua religião se deu a
partir do ato de morte de uma referência paterna primordial (Moisés). Além disso, nesse trabalho encontram-se rudimentos do conceito de transmissão psíquica (ou herança), pois Freud percebe que “o indivíduo não é influenciado apenas
pelo que ele viveu anteriormente [...] mas também por conteúdos inatos”
(QUINODOZ, 2007, p. 291), ou nas palavras de Freud (1939): “Traços de memória
de experiências de gerações anteriores” (p. 110). A herança genealógica constitui
o fundamento da vida psíquica e reporta sempre a uma questão de filiação. Em
Freud (1939), podemos constatar que as principais vias de transmissão desta
herança são a cultura e a tradição.
Em todo este percurso teórico, é possível vislumbrar uma perspectiva
intrasubjetiva dos fatores desencadeadores do parricídio. Segundo Spivacow (2008,
p. 18), essa dimensão é “constituída a partir de funcionamentos do sujeito em
que o outro e o mundo externo são reduzidos à condição de objetos internos e
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desconhecidos em sua alteridade e autonomia”. Além disso, a forma de resolução da conflitiva edípica assume papel predominante na estruturação normal e/
ou psicopatológica do indivíduo (ESPARZA, 2010).
Na psicanálise contemporânea abre-se espaço para uma releitura do parricídio
na perspectiva intersubjetiva. Sob este paradigma, o psiquismo do sujeito é entendido como sistema aberto, constituído pelos fenômenos interativos e
relacionais do momento (PIVA et al., 2010), capaz de formar vínculos. O termo
vínculo é aqui entendido como um conjunto de funcionamentos, interinfluências
e determinações psíquicas, gerado por investimentos recíprocos de dois ou mais
sujeitos (SPIVACOW, 2008). É a estrutura básica do funcionamento mental na
perspectiva intersubjetiva (BIANCHI et al., 1993 apud GOMEL e MATUS, 2011).
Faimberg (2006) propõe uma revisão do mito de Édipo, desenvolvendo a concepção de configuração edípica. A autora sugere o seguinte questionamento: “O conceito de ‘complexo de Édipo’ é suficiente para explicar o parricídio (e o incesto)
cometidos por Édipo?” (p. 168). Com o propósito de tentar responder a esta indagação, a autora retoma o mito de Édipo e constata que nenhuma interpretação
psicanalítica sobre o mito assegura um lugar preeminente ao segredo da
genealogia de Édipo. A partir deste pressuposto, Édipo não pode evitar cometer
materialmente atos que julga abomináveis (parricídio e incesto), pois a mentira
governa seu destino. A ignorância de suas origens e da origem de seu nome, que
se relaciona com o filicídio, por uma parte, e o segredo de sua adoção, por outra
parte, constituem um elemento central da tragédia (FAIMBERG, 2006).
Ao examinar o mito de Édipo em sua totalidade, a autora declara que o ato de
parricídio cometido por Édipo é resultado de um processo complexo. O primeiro
fato inclui a decisão de Laio sobre a morte de Édipo antes de seu nascimento.
Assim, a interpretação de Laio – filho significa filho parricida – é a origem do destino predeterminado de Édipo. O sentido que Laio dá ao fato de ter um filho e seu
rechaço à alteridade de Édipo são duas condições chave para que Édipo transponha em realidade seu complexo.
A autora descreve duas vertentes na configuração edípica do paciente: a) por um
lado, os desejos inconscientes do paciente para com os pais (desejos de morte e
incestuosos), o que denominamos complexo de Édipo; e b) por outro lado, o paciente interpreta em seu mundo interno a maneira como seus pais reconhecem sua
alteridade e o que significa para eles o fato de ele ser menino ou menina. O
conceito de configuração edípica inclui essa constelação filial, essa relação entre
as gerações.
Esta visão ampliada do conflito edípico permite enlaçar metapsicologicamente
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os problemas narcisistas com os problemas edípicos. A preocupação inconsciente de Édipo quando consulta o oráculo é uma preocupação narcisista: Quem sou?,
De onde venho? Quando decide de forma tirânica sobre a vida e a morte de seu
filho, Laio se oferece como paradigma do pai narcisista filicida.
Lisondo (2004) também se ocupa desta temática, acrescentando que o paradoxo
é a dimensão narcisista da configuração edípica. Tanto para pai como para filho
há um único espaço psíquico possível. Para que viva Laio, Édipo tem que morrer.
A rivalidade narcisista é mortal. Há um único objeto de prazer, Jocasta, no duplo
gozo do corpo da mulher pelo marido e pelo filho. Este é o crime. Para o pai com
função edípica, a mulher amada e odiada é seu objeto erótico, sua legítima amante,
além de ser a mãe dos filhos, coautora da obra prima. Este pai permite o projeto
exogâmico para o filho. Nesta triangulação, assimétrica na sua essência pela lei
edípica, ninguém tem tudo. À diferença da lei narcisista, ninguém tem o poder
absoluto de governar para sempre o destino do outro.
Roussillon (2006), psicanalista francês, há muito tem se preocupado com o problema do paradoxo no campo psicanalítico. No dicionário de filosofia, paradoxo
significa contrário ao senso comum e assegura a existência de dois sentidos ao
mesmo tempo (MORA, 1982). Neste sentido, o autor propõe uma releitura do
Édipo Rei de Sófocles e afirma que existem diferentes maneiras de interpretar
Édipo. Portanto, a leitura do autor não tem a intenção de excluir
epistemologicamente as demais. O trabalho do psicanalista atual é “continuar a
tarefa de Freud, isto é, pensar outras maneiras de abordar Édipo, percorrer outras espirais, outras dobras da lenda, outros tempos do Édipo” (ROUSILLON, 2006,
p. 178).
O autor aponta para a questão da culpabilidade e da inocência no desenvolvimento do mito edípico. Cita, então, o trabalho de M. Balmary que propõe deslocar a culpa em uma geração – para Laio, genitor de Édipo –, no qual predomina o
modelo da transmissão intergeracional da falta. Édipo é atormentado pelo fantasma da falta de Laio. Ele não é sujeito de seu próprio destino. É atuado e alienado por algo que se incorporou e se ocultou nele mesmo. Paradoxalmente, Édipo
desenvolve em sua relação com o mundo uma postura de dominação: “Queres
sempre ser o mestre”, lhe diz Creonte. “Se Édipo tenta mostrar-se como mestre,
se tenta tornar-se mestre de si e de seu destino, é por não poder sentir-se mestre.
A atividade de dominação tenta suprir o fracasso da experiência” (Ibid, p. 191).
Roussillon (2006) observa que, na clínica, os processos de dominação (retorno
passivo/ativo contra si) apresentam-se como zona traumática, isto é, lá onde o
aparelho de pensar e representar fracassou ou está ausente. A pulsão de dominação – necessidade da criança de poder modelar um mundo satisfatório, e cer-
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tamente origem da capacidade de sentir-se suficientemente mestre de si e de
seu destino – de Édipo foi, desde o início, fortemente impedida. Diante da ilegitimidade, “a necessidade de dominação e a megalomania serão exacerbadas” (Ibid,
p. 192).
Ao finalizar sua releitura de Édipo, Roussillon (2006, p. 193) levanta o seguinte
questionamento aos analistas: “Como poderão ser psicanaliticamente retomados
os aspectos estruturadores da dominação, quando estes foram, de início, muito
bloqueados por interações ou condições ambientais precoces traumáticas?”.
Método
Foi utilizada a técnica do estudo de caso. Nesta modalidade, não se trata de um
mero relato de caso, porém há mais densidade, detalhamento, sistematização do
material apresentado, além disso, por ser altamente informativo, proporciona
dados para compreensão profunda do funcionamento mental dos pacientes. Nesta
perspectiva não se objetiva a generalização dos resultados, respeitando que cada
situação clínica é única e singular (SILVA; YAZIGI; FIORI, 2008).
Os pacientes deste estudo foram atendidos em ambulatório de saúde mental em
Porto Alegre pela primeira autora e assinaram Termo de consentimento livre e
esclarecido, no qual concordaram que seus dados poderiam ser utilizados para
fins de estudo e pesquisa.
Articulação teórico-clínica1
Domingo, 31 de julho de 1994.
Na volta de uma visita aos parentes no domingo, Aquiles termina abruptamente com a tranquilidade da família ao tentar estrangular o pai, que estava
dirigindo. Ninguém sabe como lidar com a situação. Aquiles quer descer do
carro e voltar para casa caminhando, mas a família não deixa. Pensam em
acompanhá-lo a um ponto de atendimento psiquiátrico, mas logo desistem da
ideia. Ao chegar a casa, Aquiles está transtornado e conversa com o irmão,
tentando convencê-lo a matar o pai. Não é levado a sério. No dia seguinte, Aquiles
acorda assustado, ouvindo gritos. São seus pais trocando acusações mútuas,
até que o pai tenta agredir a mãe. Aquiles, confuso e desonrientado, decide sair
de casa e pensa apenas em matar o pai. À tardinha, após vagar horas sem
rumo, volta para casa. Aquiles está determinado em seu propósito. Vai até o
1
Para fins didáticos, serão atribuídos os seguintes nomes fictícios às figuras significativas desta
família: mãe = Medusa, pai = Aghios, filho primogênito = Apolo, filho caçula = Aquiles, nora = Afrodite e
neto = Izrael.
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quarto dos pais, pega o revólver e caminha até a sala de estar. Começa então a
tragédia. Aquiles desfere quatro disparos: dois atingem o pai, um é proferido
contra a mãe, mas a atinge apenas de raspão e o outro é dirigido ao irmão, que
não se fere. O desespero inunda o contexto familiar. Aquiles foge, a mãe tenta
socorrer o pai, enquanto o irmão chama por socorro. O pai não resiste e morre
a caminho do hospital.
Transcorridos 18 anos, a terapeuta recebe um pedido para uma entrevista de
família. São encaminhados pela terapeuta de Medusa (60 anos). Na primeira entrevista, além de Medusa, comparecem Aquiles (32 anos) e Izrael (7 anos). Todos
residem na mesma casa. A família busca psicoterapia devido aos conflitos relativos à rotina doméstica, pois Medusa sente-se sobrecarregada com os cuidados
da família e da casa. De forma velada, Medusa expõe seu temor e receio frente
ao futuro familiar, buscando alternativas para evitar a repetição de uma tragédia (parricídio).
O clima das entrevistas iniciais é marcado pela desconexão e pela descrença
diante da possibilidade de psicoterapia familiar: Aquiles parece desconfiado diante da nova modalidade de tratamento, enquanto Izrael demonstra apatia. Tanto
Aquiles quanto Izrael dispõem de psicoterapia individual. Medusa mostra-se
muito ansiosa e queixosa quanto à atual dinâmica familiar. Declara: Estou cansada de assumir sozinha os cuidados da família e da casa (sic). A paciente não reconhece
a passagem do tempo e, consequentemente, tem dificuldades para lidar com seu
envelhecimento e suas limitações. Mostra-se angustiada, pois percebe Aquiles e
Izrael muito dependentes. Dessa forma, busca encontrar apoio na psicoterapia,
almejando desenvolver maior autonomia e independência no contexto familiar.
Medusa apresenta pensamento tangencial e discurso prolixo, difícil de ser interrompido, evidenciando incapacidade de ter associações objetivas, dirigidas a uma
finalidade. Em plena adolescência, Aquiles passou a apresentar comportamentos estranhos e agressivos, desferindo socos nas paredes de casa. Nesta época, a
família decide iniciar psicoterapia familiar devido as constantes brigas. Aquiles
não suporta os constantes abusos e negligência parental, matando o pai em um
ato psicótico. O jovem consegue fugir para casa de familiares, sendo preso alguns dias após o assassinato. Foi encaminhado à Fundação do Bem-Estar do Menor
(FEBEM)2, onde afirma ter sido muito mal tratado. Aquiles foi submetido à avaliação psiquiátrica, obtendo o diagnóstico de esquizofrenia paranóide. Dessa forma,
foi considerado inimputável e, em seguida, internado em clínica psiquiátrica,
permanecendo por cerca de 15 anos. Aquiles ambientou-se bem à internação,
desenvolvendo parcerias durante os longos anos de confinamento. Descreve a
2
Atual Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul (FASE).
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clínica como uma colônia de férias, onde faziam churrascos, saiam para passear, tinham
aula de computação e culinária” (sic).
Após a morte do pai, Apolo (primogênito) também passa a apresentar comportamento impulsivo e agressivo, caracterizando funcionamento psicótico. No entanto, nunca aceitou indicação de tratamento psiquiátrico e psicológico. Com a
saída de Aquiles da internação, Apolo decidiu sair de casa, envolvendo-se em
muitas confusões e brigas. Mostra-se promíscuo e irresponsável quanto a seus
atos, não assumindo a paternidade de seus filhos. Não tem profissão e sobrevive
de bicos. Após ter sido agredida por Apolo, em mais de uma ocasião, Medusa
decidiu recorrer à Justiça e solicitar medidas protetivas de afastamento do
agressor, proibindo-o de se aproximar da casa e de estabelecer qualquer tipo de
contato.
Apolo envolveu-se com Afrodite, com quem teve um filho, Izrael (7 anos). O relacionamento durou pouco e o casal separou-se. Na época, Izrael permaneceu
morando com a mãe. No entanto, a vida promíscua e desregrada de Afrodite
acabou prejudicando o desenvolvimento de Izrael, que não recebia os cuidados
necessários para uma criança pequena. Nesta época, Medusa solicitou ao Juizado
de Menores pedido de guarda do neto, que estava com 3 anos, alegando negligência por parte da mãe. O pedido de guarda foi aceito e Izrael permanece morando
com a avó e o tio paterno.
Izrael, ainda com 4 anos, passou a apresentar comportamento agressivo,
provocativo e desafiador, marcado por níveis excessivos de brigas na escola e por
mentiras repetidas. Foi encaminhado para ambientoterapia, com hipótese
diagnóstica de transtorno de conduta. Izrael apresenta falhas importantes no controle dos impulsos e a família passa a temer pelo desenvolvimento e instalação
de novas atuações violentas no contexto familiar.
As entrevistas preliminares têm como objetivo formular a indicação terapêutica
mais adequada à demanda do conjunto familiar. Além disso, o projeto das entrevistas também inclui a ideia de conhecer o futuro paciente, suas possibilidades
de aceitar a indicação terapêutica vincular e identificar a qualidade do vínculo
(BERENSTEIN; PUGET, 2007). Gomel e Matus (2011, p. 49) questionam, em seu
livro Conjeturas psicopatológicas, “como desenvolver uma psicopatologia vincular
que não seja apenas uma simples transposição dos conceitos da psicanálise individual?”. As autoras discutem a vigência do Édipo ao considerar que a
psicopatologia psicanalítica clássica foi pensada a partir de suas vicissitudes e
modos de resolução. Neste sentido, o pensamento de Gomel e Matus (Ibid., p. 57)
é bastante assertivo quando afirmam que “a caída de Édipo de seu lugar de centro único possível em relação à construção da subjetividade abriu espaço a ou-
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tros organizadores, a outros relatos, que jogam seu papel junto com aquele e
geram diferentes marcas no psiquismo”. As autoras utilizam o termo conjeturas
diagnósticas para nomear os quadros psicopatológicos vinculares, atribuindo ao
conceito de conjetura a ideia de flexibilidade e possibilidade de modificações constantes. O diagnóstico não é visto como algo estanque e taxativo, mas objetiva
auxiliar o analista a elaborar a indicação de tratamento mais apropriada a cada
demanda vincular.
Por várias vezes a terapeuta sente-se confusa e ambivalente, com dificuldades
para entender a oratória vincular. A confusão de ideias, afetos e pensamentos,
presente na transferência vincular, remete-nos ao funcionamento com produtividade psicótica (GOMEL; MATUS, 2011). Constitui-se aqui um verdadeiro sistema organizado e erotizado de comunicações paradoxais, que prende o ego em uma
armadilha e aniquila suas funções organizadoras. Roussillon (2006, p. 81) descreve que, “em tais condições, qualquer separação, qualquer deslocamento com o
objeto torna-se impensável. Assim, a comunicação paradoxal é um poderoso meio
para manter uma íntima simbiose”. A manutenção da simbiose somente pode
ser sustentada através de um ataque profundo ao narcisismo primário, formando os primeiros pontos de fraqueza na constituição do aparelho psíquico.
Neste contexto, as alianças inconscientes se constituem sobre a base do repúdio.
A necessidade de repudiar um fragmento de realidade está estreitamente relacionada com a resistência ao reconhecimento da impossibilidade de completude
vincular e a potencial perda do gozo, subsequente à sua aceitação. As operações
de repúdio deixam um branco, um buraco significante na trama fantasmática
que, ferida de morte, já não se constituirá em dique para a investida pulsional.
Junto com “o ruído da trama, cai a organização desejante e arrasta com ela a
possibilidade representacional, abrindo as comportas para os fazeres loucos”
(GOMEL; MATUS, 2011, p. 160).
O discurso paradoxal nesta família é enlouquecedor, pois não permite saídas
possíveis para o conflito. Como exemplo, podem-se citar as queixas recorrentes
apresentadas por Medusa, de que se sente cansada e sobrecarregada com os
cuidados da casa, descrevendo minuciosamente suas dores e enfermidades médicas. No setting terapêutico, Aquiles e Izrael, de modo empático, demonstram
interesse em modificar a situação conflitante para Medusa, organizando uma
escala de distribuição de tarefas domésticas. Posteriormente, Medusa declara:
As tarefas foram cumpridas, mas o problema é que o Aquiles deixa a pia molhada quando
lava a louça (sic). No percurso do tratamento, poucos relatos remetem à história
pregressa da família e não há articulação com o trágico acontecimento do
parricídio: há uma lacuna, um fato histórico que precisa ser evitado devido à
intensidade de seu registro traumático.
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Os afetos circulantes no vínculo matrimonial eram de extrema violência, agressão e hostilidade. Aghios demonstrava constante incômodo perante a relação
estabelecida entre mãe e filhos, atacando – de modo agressivo – o vínculo materno-filial e buscando alternativas para denegrir e desqualificar os filhos. Neste
ponto, percebe-se que a relação do casal não adquire complexidade com o nascimento dos filhos: o pai não aceita e não reconhece a presença dos filhos e os
modelos identificatórios possíveis são os provenientes da família materna
(BERENSTEIN, 1996). O vínculo dos filhos com o representante materno é de afeto, adesão e idealização e com o pai é de hostilidade, rechaço, desvalorização e
exclusão. Nesta configuração familiar, a mulher não aceita em seu mundo interno e vincular um marido fálico, que se constitua como pai que outorga a lei.
Apenas aceita o marido como genitor, portador de sêmen. Berenstein (1996, p.
252) pontua que, “neste discurso familiar, a posição pai-marido não é ocupada e
seu lugar corresponde ao pai ausente ou apagado”.
Nestes vínculos, a diferença não é aceita e se produz ou um englobamento do
outro no ideal familiar ou uma expulsão do outro em sua diferença. Na cena
vincular aparece o duplo real, geralmente fruto de pesados legados
transgeracionais relacionados com perdas obstaculizadas de transitar pelo trabalho de luto.
Nesta configuração familiar, o simbólico é bloqueado na execução da passagem
ao ato: violência, homicídio, agressividade. Pode-se pensar que na mente dos
integrantes desta família prevalece a desligadura, vazio de sentido, algo que não
pode ser processado em gerações afastadas e permanece sem representação simbólica (NACHIN, 1997). Ocorre uma espécie de congelamento temporal e não há
espaço para a novidade. O trabalho terapêutico, com esta família, consiste em
possibilitar aberturas para o processamento psíquico desta cadeia traumática
transgeracional, evitando a perpetuação de acontecimentos trágicos.
As cenas de violência eram recorrentes no contexto familiar: Apolo e Aquiles
eram expostos a situações de abuso físico (surras e espancamentos, utilizando
objetos para bater). Nas paredes da casa ainda era possível identificar as marcas
deixadas pelo pai em seus momentos de fúria com os filhos. Gomide (2010) pontua que, via de regra, os parricídios ocorrem em famílias monoparentais em que
aquele que fica com a obrigação de exercer os cuidados parentais não demonstra habilidade e equilíbrio para fazê-lo, gerando relações hostis e abusivas.
Medusa recorda-se que o marido costumava comprar comida apenas para o casal, negando a presença e as necessidades dos filhos ainda pequenos, que eram
obrigados a assistir ao banquete alimentar, sem dele participar. Neste contexto,
fica evidente a ocorrência de falhas na parentalidade em oferecer proteção a
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situações aversivas, o que caracteriza negligência física e emocional, utilizando
os termos de Heide (1994).
Neste conjunto familiar, a configuração edípica mostra-se pervertida, pois a relação parento-filial é marcada pelo ódio narcisista filicida. Os pais não são capazes de reconhecer e de conter intrapsiquicamente suas próprias histórias e desejos inconscientes. O ato de negar alimentos aos filhos declara o desejo filicida de
Aghios que – de modo perverso – atua sobre o destino dos filhos, instigando-os a
desenvolver condutas agressivas. Nesta dimensão narcisista, tanto para o pai
quanto para o filho há um único espaço psíquico: para que viva Aghios, Aquiles/
Apolo tem que morrer.
Dentro desta perspectiva de maus-tratos, existe a suspeita de que o pai mantinha com os filhos relações perversas e abusivas, configurando abuso sexual. Na
infância, Apolo e Aquiles apresentavam resistência em ficar sozinhos com o pai,
já que Medusa trabalhava durante todo o dia e Aghios trabalhava apenas no
turno da noite. De modo recorrente, a mídia noticia situações de parricídio
envolvente contextos abusivos e perversos, que desencadeiam atos violentos e
auto defensivos. Em inúmeros casos, os adolescentes que cometeram os homicídios, foram severamente abusados na infância e, em ato de desespero, buscaram
finalizar os abusos cometidos pelas vítimas. Ao refletir sobre a dificuldade natural de ultrapassar a adolescência, abandonando o corpo infantil e direcionandose a um funcionamento mais autônomo e integrado, percebe-se que Aquiles obteve conquistas importantes: fez concurso e foi aprovado; trabalhava de dia e
estudava à noite; tinha amigos; gostava de festas; tocava em uma banda. No
entanto, sua fragilidade egóica, associada ao contexto familiar violento e pouco
continente, não suportou a difícil e atribulada transição adolescente: sucumbem as defesas e eclode a franca psicose. Aquiles ficou aprisionado em seu mundo adolescente, em uma clara alusão de que o tempo parou em seu psiquismo.
Sua atividade preferida, atualmente, é escutar músicas que remetem à sua juventude. Assim como o jovem do filme que vai ao cinema após matar o pai,
Aquiles recorre ao mundo psicótico como tentativa de aniquilamento de seu
sofrimento vincular.
Neste sentido, busca refúgio em seus delírios de grandeza, descrevendo seu desejo de adquirir casas grandiosas e carros luxuosos (sic). O desejo passa a ser realidade em seu discurso delirante. Roussillon (2006) descreve que a atividade de dominação tenta suprir o fracasso da experiência. Assim, pode-se pensar que Aquiles
utiliza os processos de dominação – delírios de grandeza e megalomania – como
uma defesa frente à ausência da função representativa e ao fracasso da constituição de sua autonomia e legitimidade subjetiva.
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Com relação ao processo analítico desta família, a tarefa terapêutica mostrou-se
árdua devido à dificuldade em retomar os aspectos estruturadores da dominação, que foram bloqueados por interações ambientais precoces traumáticas
(ROUSSILLON, 2006). Cabe pontuar que, no decorrer do processo terapêutico desta família, as sessões transitavam por um clima sinistro: aparece na terapeuta
uma sensação de horror frente ao dano que as palavras podem causar na mente
de cada um dos integrantes da família. Neste clima, há uma impregnação sensorial compartilhada por pacientes e terapeuta, com imagens terroríficas que
obstaculizam a possibilidade de pensar sobre alguns temas (GOMEL; MATUS,
2011): o caráter incestuoso da relação, os impulsos homicidas, o discurso delirante do filho, as cenas de abuso, a atitude negligente da mãe.
A terapeuta era frequentemente inundada por sentimentos de impotência e paralisação, questionando-se sobre os objetivos terapêuticos: Será que o tratamento está funcionando? Estamos no caminho certo? Por que não conseguimos falar
sobre o parricídio? Sobre a morte do pai e sua postura violenta com os filhos?
Com o tempo, a terapeuta percebeu que suas indagações partiam do ponto de
vista neurótico, tendo como base a existência de um sistema representacional.
Nesta configuração familiar, o parricídio pode ser entendido como uma tentativa de inscrever no simbólico o que não pode ser representado na trama vincular,
eclodindo através da passagem ao ato. Nas palavras de Gomel e Matus (2011, p.
87), “há algo não simbolizado na trama fantasmática motorizando a ação, um
recordar sem recordar ou de fazer presente o que não tem memória”.
Diante destas inquietações, salienta-se, neste momento, a importante contribuição feita por Gomel e Matus (2011) quanto ao clima e à transferência nos tratamentos psicanalíticos vinculares, oferecendo à terapeuta alento e capacidade
tranquilizadora. O clima supõe certamente processos de transferência e implicação do analista, que sempre está incluído.
A dor, o ódio, a culpa, o ressentimento, irradiam a quem escuta. [...] Como analistas necessitamos receber essa irradiação e vibrar com ela, não rechaçá-la;
conter os afetos e dar-lhes um lugar na transferência é com frequência um
primeiro passo inevitável nas situações sacudidas por emoções desligadas. O
desafio para o analista é por em palavras suas vivências, não explicá-las,
pois não é possível explicar aquilo que não teve acesso à representação. Muitas
vezes, esse processo não pode ser feito durante a sessão e, unicamente, quando o analista se encontra sozinho pode registrar o que se sucedeu e iniciar o
trabalho de representação (GOMEL; MATUS, 2011, p. 103, grifo nosso).
279
Daniela Berger, Rodrigo Luís Bispo Souza
Considerações finais
Ao propor a releitura do parricídio a partir da perspectiva intersubjetiva, este
trabalho busca fazer aproximações e desdobramentos teóricos, respeitando a
riqueza de vértices que o tema suscita. É possível pensar que a perspectiva
intersubjetiva não elimina o foco da psicanálise tradicional no intrapsíquico. Ela
o contextualiza e possibilita outras maneiras de pensar e abordar o sofrimento
dos sujeitos nos vínculos que habitam, que os constituem e os sustentam (GOMEL;
MATUS, 2011).
O material clínico foi apresentado com o intuito de ilustrar a aplicabilidade da
teoria defendida na clínica, sem pretender excluir os entendimentos multiteóricos
das escolas psicanalíticas. No caso exposto, deparamo-nos com a concretização
literal da metáfora edípica: o efetivo assassinato de pais por seus filhos. Aqui, se
entende que o vínculo familiar se caracteriza por uma debilidade extrema e,
continuamente, aparece agressividade indiscriminada entre os integrantes
(BERENSTEIN, 1996), desencadeando funcionamentos com produtividade psicótica
(GOMEL; MATUS, 2011).
O parricídio é um delito pouco frequente na população geral, sendo um fato
relativamente maior entre os pacientes psiquiátricos. Neste sentido, é de suma
importância – para os profissionais que trabalham com saúde mental – o conhecimento do tema, tanto para o tratamento destes pacientes e suas famílias, uma
vez ocorrido o fato, como para a identificação e possível prevenção destes atos
(GALLEGUILLOS et al., 2010).
Segundo pesquisa realizada em ambulatório de saúde mental em Porto Alegre,
no período de 30 meses (maio de 2009 a dezembro de 2011), 95 casais/famílias
buscaram ou foram encaminhados para psicoterapia psicanalítica vincular (PIRES; BERGER; GASTAUD, 2012). Destes, 50 famílias buscaram psicoterapia e, quanto
ao diagnóstico vincular, verificou-se que o funcionamento psicótico obteve o
menor índice (18%). Esse diagnóstico nos leva a inferir que as famílias com maior
comprometimento relacional ainda não buscam atendimento. Sugere-se, então,
a articulação de medidas de saúde pública buscando ampliar o acesso aos tratamentos psicanalíticos vinculares.
Faz-se necessário expor as possíveis limitações do presente trabalho. Uma das
restrições está associada à metodologia de pesquisa utilizada, o estudo de caso,
pois este não permite que seus resultados sejam generalizáveis. Para finalizar,
propõe-se que mais estudos sobre a perspectiva intersubjetiva do parricídio se-
Matou o Pai e foi ao Cinema: Um estudo intersubjetivo sobre o ...
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 267-282, 2014
280
jam realizados a fim de expandir, atualizar e dinamizar o estudo das conjeturas
psicopatológicas vinculares (GOMEL; MATUS, 2011).
Killed the Father and Went to the Movies: A Intersubjective Study of
Parricide
Abstract: The aim of this work is to propose a rereading of parricide from the intersubjective
perspective, emphasizing the study of the psychoanalytic theory of bond configurations. It is
understood the phenomenon of parricide as a result of a complex process, which implements
the model focuses on Oedipus and severely dysfunctional families and abuse chronic psychotic
diagnostic postulated as conjectures. To illustrate the theory, this paper makes approximations
to the case of a family parricide, showing the existing clinical and theoretical articulations.
The present study aims to collaborate with an advance in psychoanalytic thinking about the
issue and raise questions that can propose further study of the intersubjective perspective of
parricide to expand, upgrade and streamline the writings on the psychopathological vinculares conjectures.
Keywords: Intersubjectivity. Linking psychoanalysis. Parricide.
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Daniela Berger
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283
Gley P. Costa
A Ética nas Relações entre Pais
e Filhos
Artigo
Gley P. Costa
Membro Fundador, Titular e Didata da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
Resumo: O trabalho enfatiza a importância de uma ética nas relações humanas que leve em
consideração a individualidade do outro, independente de quaisquer diferenças, sejam de idade, sexo, posição social, conhecimento, crenças, convicções e, no caso específico, papéis familiares. Ou seja, o respeito devido aos adultos dentro de uma família, é o mesmo que deve ser
dispensado às crianças desde o seu nascimento, ou até antes. Falhas nesse preceito fundamental costumam resultar em três situações defensivas que o autor descreve sob o titulo de
aprisionamento, refúgio e pseudomaturidade.
Palavras-chave: Adolescência. Incesto. Mundo atual. Parentalidade. Relacionamento pais-filhos. Sofrimento psíquico.
Introdução
Deixando de lado a discussão semântica, filosófica e, até mesmo, psicanalítica
do termo com vistas à objetividade, em primeiro lugar gostaríamos de definir o
que consideramos um comportamento ético no âmbito das relações humanas,
incluindo, obviamente, os familiares. De acordo com o nosso ponto de vista, é
ética a conduta que leva em consideração a individualidade do outro, independente de quaisquer diferenças, sejam de idade, sexo, posição social, conhecimento, crenças, convicções e, no caso específico, papéis familiares. Ou seja, o
respeito devido aos adultos dentro de uma família, é o mesmo que deve ser dispensado às crianças desde o seu nascimento, ou até antes, como sugere Derrida
(2003) mediante o conceito de hospitalidade, aplicável a todas as formas de relacionamento entre indivíduos, grupos ou nações, tendo como ponto de partida, alicerce e modelo, conforme concebemos, os vínculos familiares. Diz esse brilhante
pensador contemporâneo (p. 171):
A hospitalidade pura e incondicional, a hospitalidade em si, abre-se ou está
aberta previamente para alguém que não é esperado nem convidado, para quem
quer que chegue como um visitante absolutamente estrangeiro, como um recém-chegado, não identificável e imprevisível, em suma, totalmente outro.
A Ética nas Relações entre Pais e Filhos
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 283-296, 2014
284
Medeiros (1999) ilustra com precisão o que estamos procurando configurar.
Poetizou essa conhecida escritora e jornalista gaúcha (p. 160):
minha bisavó reclamava que minha avó era muito tímida
minha avó pressionou minha mãe a ser menos cética
minha mãe me educou para ser bem lúcida
e eu espero que minha filha fuja desse cárcere
que é passar a vida transferindo dívidas
Quando se observa flagrante desrespeito à individualidade nas relações familiares, em particular, quando os pais exercem, indiscriminadamente, sua autoridade sobre os filhos, caracterizando nos limites desta exposição uma falta ética,
três costumam ser as consequências: o aprisionamento, o refúgio e a
pseudomaturidade.
Aprisionamento
O conceito de aprisionamento reporta-se ao que Lebovici (1992) chamou de transmissões intergeracionais, por meio das quais a criança recebe um mandato de seus
pais para aplacar as tempestades e os riscos de naufrágio da família. A experiência clínica mostra que, quando um papel é atribuído precocemente a uma criança, dificilmente ela consegue escapar desse destino, constituindo uma maneira
de viver ou, mais apropriadamente, de sobreviver, uma vez que esta é a única
maneira que se sente aceita e protegida. Mais tarde, ao se recusar a cumprir o
papel determinado, além da ameaça do abandono e da solidão, defronta-se com
sentimentos de culpa pelo fracasso ou sofrimento dos pais e irmãos. Bollas (1992)
refere que, nessa condição, o indivíduo encontra-se impedido de atingir o seu
potencial destinado à elaboração pessoal, ou seja, a desenvolver o seu próprio
idioma. No lugar disso, tornar-se-á refém de um fado, conceito que, de acordo com
o autor, “enfatiza a irracionalidade e o caráter impessoal dos acontecimentos” (p.
47), correspondendo, portanto, a viver sem criatividade, pois os acontecimentos
são determinados antes que eles ocorram.
Nessa linha, não são raras as situações em que o grupo familiar faz com que um
dos seus membros adoeça e passe a tratá-lo como um caso. A explicação é simples: assim como um indivíduo pode descarregar um conflito não resolvido em
um dos seus órgãos, da mesma maneira a família pode drenar suas tensões internas para um dos seus membros que, em uma analogia com a histeria, tornase o sintoma local da família. No momento em que o eleito cai doente ou se torna
socialmente censurável por beber, usar drogas ou apresentar alguma forma de
conduta antissocial, segue-se uma calma notável na atmosfera da família, anteriormente conturbada. Sem nenhum exagero, podemos afirmar que uma parte
285
Gley P. Costa
da família pode escapar ao desencadeamento de uma doença psiquiátrica projetando conflitos não resolvidos sobre a outra parte de seus membros. Esta divisão
defensiva de papéis é demonstrada pelo fato de que, quase sempre, a melhora de
uma pessoa neurótica leva à emergência ou ao agravamento de sintomas na
pessoa que está mais próxima dela. Por isso, é frequente em nossa experiência a
reclamação dos pais de pacientes quando eles progridem em seus tratamentos.
Um exemplo dramático da pressão familiar sobre a mente de um dos seus integrantes identificamos em Luiz, 18 anos, internado em um hospital psiquiátrico.
Ele havia assassinado seu próprio pai, após uma discussão banal. O caso lembra
o conhecido livro de Gabriel García Márquez, intitulado Crônica de uma morte anunciada (1981), tendo em vista que Luiz vinha brigando com o pai e o ameaçando de
morte há várias semanas sem que ninguém tomasse uma providência, nem
mesmo a vítima, que continuou mantendo o revólver com que foi morto no local
que todos sabiam. Quando o caso foi apresentado, sugerimos a realização de
uma terapia familiar como forma de tentar esbater a sintomatologia psicótica
do paciente. Após alguma resistência, a mãe e os irmãos aceitaram participar do
tratamento, mas dificilmente compareciam todos. Apesar disso, a terapia se
manteve por um tempo prolongado, permitindo verificar, por meio de inúmeras
associações, sonhos, atos falhos, atuações e manifestações sintomáticas que,
como em Os irmãos Karamazov (1879), de Dostoiévski, o crime fora cometido por
apenas um, mas todos, até mesmo a vítima, o havia desejado. A repartição da
culpa permitiu a Luiz, em muitas oportunidades ao longo do tratamento, enfrentar essa realidade escotomizada pela psicose.
A vida quotidiana também proporciona inúmeras demonstrações desse exercício de poder da família sobre seus membros. Por exemplo, a escolha dos nomes
dados aos filhos raramente é aleatória. Em geral se relaciona com um fato de
expressivo significado afetivo para os pais. Com frequência, o nome determina o
papel previamente destinado pelos pais ao filho que nasce. Esse papel pode ser
substituir um irmão mais velho que morreu, como no caso de Van Gogh, ou
outros familiares, principalmente, avós e tios. Nesse caso, a expectativa dos pais
é que o recém-nascido substitua o ente querido, estabelecendo-se, desde o início,
um conflito entre o que o indivíduo é e o que a família espera que ele seja. A
frequência com que situações como essa ocorrem e a naturalidade com que são
relatadas revelam uma desmentida aceita socialmente, o que configura um verdadeiro assassinato de personalidade.
Também é comum que os pais escolham para os filhos a profissão que deverão
exercer ou o cargo que deverão ocupar e, muitas vezes, esse desejo é designado
pelo nome. O nome do avô médico pode indicar que a expectativa dos pais é de
que o filho venha a se formar em medicina, assim como o nome do pai, dado ao
A Ética nas Relações entre Pais e Filhos
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 283-296, 2014
286
primeiro filho homem, pode indicar que ele deverá ser seu substituto na direção
da empresa. Além disso, o nome dado ao filho pode simbolizar a pretensa união
dos pais, juntando pedaços dos dois nomes, mas também pode representar a
competição dos pais, muitas vezes, dificultando a definição sexual da criança.
Essa situação torna-se mais evidente quando são dados aos filhos nomes compostos: um feminino e outro masculino. Por outro lado, não são raros os casos de
pais que se sentem profundamente frustrados e deprimidos com o nascimento
de um filho do outro sexo, e a forma que o cônjuge encontra para compensá-lo é
dar ao recém-nascido o seu nome, passado para o feminino ou para o masculino,
dependendo da situação.
O ingresso na vida adulta é marcado pela desidealização dos pais e pela priorização
dos vínculos exogâmicos, em particular no que diz respeito à intimidade. Pais
narcisistas não toleram ocupar um segundo plano na vida dos filhos, interferindo na escolha do cônjuge, na festa de casamento, na casa que habitarão e, muito
particularmente, na maneira como obterão o sustento. Além disso, mais tarde
tentarão apropriar-se da criação dos netos, como uma forma de repor o filho
perdido. Temos observado essas condutas tanto em pais com os filhos homens,
quanto em mães com as filhas mulheres. Para exemplificar, citamos dois casos:
O primeiro é Manoel, que aos 32 anos procurou tratamento analítico movido por
quadro de grande ansiedade diante do convite para assumir um cargo de relevância e elevados ganhos na empresa em que trabalhava. Como era de costume,
procurou o pai para lhe pôr a par da situação e saber a sua opinião, em que pese
essa atitude ter gerado um desentendimento bastante sério com a esposa, que
entendia que o assunto deveria ser tratado em primeiro lugar entre eles. O pai,
presidente e sócio majoritário de uma empresa familiar, reiterou sua posição de
que Manoel deveria seguir os passos dos dois irmãos mais velhos, que já trabalhavam com ele. O conflito se estabelecera porque era evidente o desejo de Manoel
em possuir uma vida independente, possibilitada por sua grande capacidade profissional e esposa que lhe amava e desejava construir uma família livre da interferência de ambos os pais. Contudo, não menos evidente era a resistência do pai
em permitir que o filho se independizasse dele, lembrando Saturno que, de acordo com o mito, comia os filhos na medida em que nasciam.
O segundo caso é de Alice, uma paciente de 28 anos, solteira, que vive um conflito de identidade muito grande, gerado por uma mãe que mediante uma
desestimação da realidade, inventou uma filha em conformidade com as suas
elevadas necessidades narcísicas. Ao se destacar em todas as áreas, principalmente dos estudos, de certa forma Alice se submetera às exigências maternas,
mas quanto mais fulgia aos olhos da mãe, mais vazia se sentia. Contudo, ela não
encontrava outro caminho a seguir e a única compensação que conseguia obter
287
Gley P. Costa
por essa submissão era maltratar a mãe (que dizia não entender como uma filha
podia ser tão ingrata, tendo em vista que lhe proporcionara tudo que havia de
melhor desde que nasceu) e recusar os bons partidos que ela tentava lhe impor.
Por conta disso, Alice nunca teve um namorado, apesar da beleza e da cultura.
É do conhecimento de qualquer psicólogo, psiquiatra ou psicanalista que os indivíduos, de acordo com o seu sexo, de certa forma, procuram se casar com uma
pessoa que apresenta algum aspecto importante do pai ou da mãe, e tem muito
claras as razões desta tendência inconsciente. Contudo, não são apenas as fantasias incestuosas desses indivíduos que participam da escolha, mas também os
desejos transmitidos dos pais. Muitas vezes, os filhos se sentem maus e ameaçados de abandono se não atendem a estes desejos, mesmo não sendo a escolha
inteiramente do seu agrado. Um exemplo é o caso de Juliana, cuja mãe entrava
em depressão sempre que ela brigava com o noivo e ameaçava não se casar com
ele. A mãe de Juliana gostaria de ter casado com o pai do noivo da filha e, dessa
forma, passado a integrar a família mais importante da cidade. Quando ocorre
pressão dessa magnitude, é comum que o indivíduo acabe realizando o casamento encomendado pelos pais. Foi o que aconteceu com Márcia, cujo noivo era
desejado sexualmente por sua mãe, uma mulher jovem e bonita, que se encontrava divorciada há anos. Márcia era muito imatura e não conseguiu manter por
muito tempo o seu casamento. Embora a iniciativa da separação tenha sido do
marido de Márcia, a mãe jamais a perdoou por não ter se esforçado o suficiente
para reverter a situação.
A rigor, todas as pessoas, inevitavelmente, um dia perdem a família de origem,
embora ela permaneça em suas lembranças e identificações. Antes disso, o indivíduo deve, progressivamente, ir se separando para dar origem a uma nova família. Sendo assim, quando os pais ajudam a prole a se independizar, não estão
preparando apenas filhos, mas também pais. Porém, isso não é obtido com facilidade. Somente pais maduros conseguem ajudar os filhos a se independizarem.
Pais fóbicos, por exemplo, estabelecem limites muito exíguos para os filhos porque projetam neles seus temores. Uma mãe com esta característica, enquanto
teve o filho sob sua guarda, evitou de todas as maneiras férias na praia porque
temia que ele viesse a se afogar. Ela também evitou que o filho estudasse em
uma escola que organizava passeios em grupo com os alunos, porque tinha medo
que não o cuidassem adequadamente e ocorresse uma desgraça. O filho manteve-se muito preso a ela até se casar, quando então transferiu os indispensáveis
cuidados da mãe à esposa.
Também observamos situações em que os pais competem frontalmente com os
filhos, não tolerando que se desenvolvam mais do que eles próprios, conquistem
o que não conseguiram conquistar e, principalmente, sejam mais independen-
A Ética nas Relações entre Pais e Filhos
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 283-296, 2014
288
tes do que eles, desfrutando a vida mais do que eles tiveram a possibilidade de
fazer. Como exemplo, citamos o caso de um pai que não conseguira ir muito
longe em sua profissão por ter medo de viajar de avião. Por conta disso, desfez do
filho quando, aos 25 anos, financiado pela empresa em que trabalhava, iria realizar a sua primeira viagem de avião, asseverando: “Só se é agora que perdeste o
medo. Tu sempre foste um medroso!” Uma mãe, com a mesma dificuldade, costumava dizer aos filhos, todos adultos: “Não vejo razão para andar naquela altura, 12
horas no escuro, arriscando cair, para passar alguns dias na Europa”.
Não podemos subestimar a influência desses comentários desanimadores na
vida emocional das pessoas. Eles se encontram relacionados com a dificuldade
de muitos casais em desenvolver uma vida própria, independente dos filhos. Alguns pais se dedicam exclusivamente ao cuidado da prole e ao trabalho. Quando
se aposentam e os filhos agora adultos saem de casa, ficam sozinhos, sem amigos e sem envolvimento afetivo com qualquer atividade criativa. As amizades e a
ocupação com a atividade profissional e, depois na aposentadoria, com um trabalho de interesse social, que mantenha o vínculo com as pessoas e com a vida
fora de casa, promovendo a autoestima e o reconhecimento, constituem ingredientes indispensáveis para aceitar a independização dos filhos e enfrentar o envelhecimento. No entanto, o aspecto mais frequente que se encontra por trás
das dificuldades em aceitar a saída dos filhos de casa é o relacionamento afetivo
dos pais. Mais precisamente, a impossibilidade do casal permanecer sozinho,
enfrentar o ódio que um nutre pelo outro, ou simplesmente a realidade de que
não se amam, tendo permanecido juntos apenas para desfrutar, por identificação, as várias etapas do desenvolvimento dos filhos. Não obstante, a forma mais
universal e antiga de aprisionamento é a religião. Imposta à criança sob a forma de
um imperativo, ela tem como objetivo castigar os filhos e submetê-los aos pais.
Diz Freud (1927):
Os precipitados dos processos semelhantes à repressão que se efetuou nos tempos pré-históricos, ainda permaneceram ligados à civilização por longos períodos. Assim, a religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade; tal
como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do
relacionamento com o pai (p. 57).
Antes, ao estudar a origem das religiões em Totem e tabu, Freud (1913 [1912-13])
destacou o autoritarismo paterno, consignando que “Deus nada mais é que um
pai glorificado” (p. 176). Nessa linha, Klein (1921) chamou a atenção para o efeito
avassalador dos dogmas religiosos, impondo graves inibições sobre o pensamento. Adverte a autora:
Introduzir a ideia de Deus na educação e deixar depois ao desenvolvimento
individual o enfrentar-se com ela não é de nenhum modo o recurso para dar à
289
Gley P. Costa
criança liberdade a este respeito. Porque por essa introdução autoritária dessa
ideia, em um momento em que a criança não está preparada intelectualmente
para a autoridade, e está indefesa frente a ela, sua atitude nesse assunto fica
tão influenciada que não pode nunca mais, ou só às custas de grandes lutas e
gasto de energia, liberar-se dela (p. 40).
A advertência de Klein parece visar a desculpa muito comum dos pais quando
dizem que colocam as ideias religiosas na mente dos filhos ainda crianças para
dar a elas uma opção mais tarde, quando tiverem discernimento para seguir ou
não uma religião. Trata-se de uma negativa, porque sabem muito bem que eles
mesmos se tornaram reféns dessas ideias colocadas em suas mentes pelos seus
pais.
Refúgio
Steiner (1993) estudou um grupo de pacientes cujas análises se tornam repetitivas,
estáticas e improdutivas devido à barreira defensiva que levantam com o objetivo de evitar uma ansiedade intolerável. Ele denominou de refúgio psíquico o isolamento, que inclui a relação com o analista, vista como uma ameaça a essa proteção. Tomamos o conceito de Steiner para definir a defesa que os filhos estabelecem ao lidar com a ação invasiva dos pais. Enquanto no aprisionamento o indivíduo se submete à missão que lhe é imposta, no refúgio ele procura se afastar ou
mesmo eliminar o objeto que se apropria do seu ego.
Um exemplo de refúgio encontramos em Marcelo que, durante a infância, resistiu bem mais do que o irmão, dois anos mais velho, o acirrado controle da mãe
despótica, que temia que os filhos morressem. No final da adolescência saiu a
viajar de carona pelo mundo e, por muitos anos, não parou de andar. Acabou se
fixando em um país distante do seu e poucas vezes voltou para visitar a família.
Aos 32 anos de idade, não teve dificuldade de dizer, em um tratamento
psicoterápico que empreendeu, que temia ser envolvido pela teia familiar e nunca mais conseguir se livrar dela.
Os casos de refúgio, relacionados com situações traumáticas, costumam ser mais
trágicos, como verificamos no filme Perdas e danos (1992), de Louis Malle, que
termina com o suicídio do filho ao descobrir que o pai e a noiva se relacionavam
sexualmente. O suicídio nessa situação resulta da perda súbita dos ideais, sentida pelo filho, a qual, em outra circunstância, pode levar ao homicídio do pai. No
3º livro do Antigo Testamento, Levítico XVIII, são relacionadas as proibições relacionadas ao incesto. Numa delas, a de número 15, diz o Senhor: Não descobrirás
a nudez da tua nora: é a mulher do teu filho. Apesar dessa recomendação bíblica,
acompanhamos um caso em que identificamos a atitude francamente filicida
A Ética nas Relações entre Pais e Filhos
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 283-296, 2014
290
de um pai que, como no filme Perdas e danos, mantinha uma conduta ostensivamente sedutora da namorada do filho, a qual, por sua vez, mostrava-se bastante
provocativa. A situação se arrastava há vários anos, período em que o filho abandonou os estudos, passou a beber e a drogar-se. Além disso, sofreu dois acidentes
sérios de carro, gastava o dinheiro do pai exageradamente e tinha atitudes violentas, quebrando objetos de casa e agredindo fisicamente o pai. Tudo indicava
que uma grande desgraça se avizinhava, mas nenhuma atitude para evita-la era
tomada.
Por sua configuração traumática, o incesto representa uma condição frequente
de refúgio, mas o que é traumático em relação ao incesto, questiona Bollas (1992).
É o próprio ato em si, que viola os códigos familiares e sociais de um comportamento convencional? É, como propôs Freud, a memória do evento que traz consigo a carga dos horrores reprimidos? O que exatamente faz mal à vítima? É a
violação física? O imaginário mental do ato? O horror disso? Responderemos
com as próprias palavras do autor:
Quando um pai comete um ato incestuoso, ele desestrutura a relação da criança
com ele como pai. Nesse momento, ele não age mais em nome do pai, uma vez
que quebrou a lei do Nome do pai (LACAN, 1977). Age, em vez disso, em nome da
mãe, ou mais precisamente, ele representa o corpo da mãe e anula o falo como
um objeto intrapsíquico que facilita a evolução da criança para a independência. O falo significa a não-mãe, e a identificação com ele ajuda a criança a
emergir de uma relação pré-edipiana com a mãe (p. 192).
Esclarece Bollas (1992) que a vítima do incesto se vê brutalmente jogada de volta
para uma relação com a mãe dos seus três primeiros anos de vida, representando essa projeção para trás um trauma temporal, uma distorção do tempo, tendo
em vista que a criança é transportada para uma vida passada, na qual reverencia uma mãe bastante diferente da mãe original, “na medida em que o pai se
deitou na cama da criança com a licença do corpo da mãe, somente que nesse
momento, com o corpo da mãe sendo portador de um pênis” (p. 192).
Segue o autor:
Quando o pai comete incesto, ele penetra na pele psíquica da mãe. Deitar com
o bebê, amamenta-lo, niná-lo contra o seu corpo, ser o primeiro travesseiro no
qual ele dorme, tem sido a atribuição dela. Sob esse aspecto, então, a mãe é
inconscientemente vista como uma parceira criminosa na violação, porque o
pai penetrou em seu corpo e explorou essa relação mãe-criança a fim de ter
acesso à filha. E a criança se sente muito confusa e culpada, porque permite o
pai em sua cama por meio da autorização da mãe, o que, na verdade, é um
291
Gley P. Costa
certo crime contra a mãe, uma ofensa ao seu conduzir produtivamente refreado das relações corpo-a-corpo (BOLLAS, 1992, p. 193).
Na medida em que o ato é realizado por esse pai-mãe, refere Bollas que a vítima
do incesto tende a recordar as qualidades masculinas da mãe. Em outras palavras, o incesto representa a anulação do pai, a sua transformação em um homem dentro da mãe, o que vai sustentar a fantasia da mãe fálica. Por tudo isso,
percebe-se que, no incesto, não é apenas o corpo da filha que é violado, mas
também a sua mente, gerando uma reversão topográfica da vida instintual que a
impossibilita de distinguir o sonho da realidade, uma vez que, como diz Bollas,
“se o pai é o objeto do desejo da criança, deveria então estar dentro do espaço do
sonho e não no mundo real externo” (p. 195).
Essas considerações se referem ao incesto cometido pelo pai, levando a filha –
roubada no seu desejo, distorcida no tempo e vítima de uma “reversão topográfica da vida instintual”, conforme Bollas (p. 194) – a abrigar-se no corpo
desestruturado e ameaçador da mãe. Quando o incesto é cometido pela mãe, a
situação se reveste de uma dramaticidade maior. Em nossa experiência hospitalar, acompanhamos o caso de um jovem que sofreu um surto psicótico gravíssimo
após manter uma relação sexual com a própria mãe. A propósito deste caso, em
1978, Janine Chasseguet-Smirgel, psicanalista reconhecida internacionalmente
por seus livros sobre perversão e ideal do ego, enfatizou que dificilmente esses
pacientes conseguem sair desse estado regressivo de reengolfamento pelo corpo
da mãe. Em uma situação da vida real, reproduzida pelo filme Savage grace (2007),
do diretor Tom Kalin, após o incesto, o filho mata a mãe a facadas e depois de
algum tempo se suicida. Apesar disso, o título no Brasil é Pecados inocentes.
Pseudomaturidade
Um dos assuntos mais candentes e controvertidos na sociedade contemporânea
é o dos limites. Sem dúvida, eles são indispensáveis nas relações familiares e se
impõem tanto aos pais quanto aos filhos em sua adequada medida. Nessa condição, são favorecedores do surgimento da segurança que permite o progressivo
desenvolvimento emocional do indivíduo. Por outro lado, encontra-se bem estabelecido que a ausência de limites não gera na criança sentimento de liberdade,
mas de abandono. Na verdade, quando os pais colocam limites apropriados, ela
se sente protegida e é esse sentimento que permite que ela exerça a sua liberdade. Por conta disso é que consideramos os limites um dos pilares da ética nas
relações entre pais e filhos.
A questão dos limites se coloca desde o momento do nascimento de uma criança
e enfrenta seu maior desafio no mundo atual durante a adolescência, particular-
A Ética nas Relações entre Pais e Filhos
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 283-296, 2014
292
mente em sua etapa final, quando juntam-se aos limites impostos pelos pais,
outros que são demandados pelo orgânico, pelo anímico e pelo social. Dificuldades surgidas nesta etapa podem levar o indivíduo a desenvolver uma
pseudomaturidade, a qual se relaciona com os estados de confusão entre o interior
e o exterior do objeto, e entre a realidade externa e a realidade psíquica, situação
abordada por Meltzer (1971) em seu estudo sobre as confusões geográficas observadas na análise. Diz o autor:
A atitude (do paciente) em relação a dinheiro, posses, status social, política e
mesmo seu campo de especialização e conhecimento, é passível de ser relativamente contaminada de significação infantil. No sentido estrutural, parece
certo que muitos adultos continuam a ter uma estrutura de personalidade
adolescente (p. 16).
Segundo Maldavsky (1992), um importante limite se apresenta ao adolescente
por volta dos dezoito anos, em consequência da culminação do processo de destituição da autoridade paterna, quando então se vê na contingência de renunciar à ilusão de contar para sempre com um pai supridor e substituí-lo por outro,
cuja tarefa consiste tão somente em sustentar palavras. Essa mudança ocorre
simultaneamente com o fortalecimento do erotismo genital, em boa medida, até
então, investido no crescimento do corpo e experimentado sob a forma de gozo
orgânico. A partir desse momento, rompe-se o limite determinado pela discrepância, vigente desde o início da vida, entre a pulsão e a capacidade de satisfazêla, tornando-se o seu desenlace através do coito impostergável. Com o descenso
do ideal endogâmico, o adolescente ingressa em um novo espaço conotado com
um significado diferencial a partir do estabelecimento de metas ligadas às atividades laborais e ao amor em um contexto extrafamiliar.
No entanto, o sucesso nessa incursão em espaços e vínculos extrafamiliares somente é atingido após o percurso de um caminho difícil ao longo das etapas
anteriores da adolescência, com barreiras que cobram, para serem ultrapassadas, a elaboração de lutos, o estabelecimento de novas representações, a constituição de novas identificações e, como meta mais exitosa, o acesso a formas de
maior complexidade nas relações com o outro – uma conquista que institui a
alteridade e, por consequência, a genitalidade adulta. É então que tudo o que era
percebido como quantidade se organizará como qualidade psíquica, e o desejo buscará o além de mim. Nessa caminhada, o indivíduo não encontrará jamais a
satisfação plena e definitiva, mas construirá sentidos para a sua vida em uma
gama infinita de possibilidades na sua relação com o desconhecido outro. Nesse
respeito pelo desconhecido outro, nascem a ética e a hospitalidade no relacionamento humano. No plano amoroso, o princípio de autoconservação se entrelaça
com o princípio de conservação da espécie sob a égide da pulsão sexual.
293
Gley P. Costa
Ao mesmo tempo, o pré-consciente se reestrutura com base na realidade
consensual, admitindo a incompletude humana e o juízo sobre a inevitabilidade
da morte, particularmente após a perda de entes queridos que, a partir dessa
etapa da vida, começa a ocorrer naturalmente. Isso é possibilitado pela hegemonia
do ego real definitivo e do juízo de existência conferido por esse desenvolvimento egóico, momento em que o indivíduo adquire a capacidade de sublimar as
aspirações pré-genitais, as quais vão gerar a pulsão social, que reinveste a representação do grupo no contexto laboral e institucional. A esse respeito, diz Freud
(1911):
Mesmo após a eleição do objeto heterossexual, as aspirações homossexuais
não são – como se poderia pensar – interrompidas ou abandonadas; são simplesmente desviadas da meta sexual e conduzidas a novas aplicações. Aliamse às pulsões do ego como componentes ligados para gerar a pulsão social, a
qual constitui uma contribuição do erotismo à amizade, à camaradagem, ao
sentimento comunitário e ao amor universal pela humanidade (p. 83).
Essa abertura para o universo exogâmico, no entanto, não raro revela impasses e
disfarces, os quais se expressam pela pseudomaturidade como forma de evitar as
exigências da vida adulta. Nessa linha, o esporte, a arte, a religião e até mesmo o
estudo são canais que muitas vezes facilitam a fuga. Por outro lado, o uso exagerado de mecanismos de defesa, como a desmentida e a desestimação, podem
gerar com o tempo graves manifestações psicopatológicas, entre as quais as psicoses, as perversões e as enfermidades psicossomáticas. Refere Maldavsky (1992)
que em um grupo de pacientes sobreadaptados com manifestações
psicossomáticas constatou-se que a desmentida da morte do pai fornecedor de
bens materiais era sustentada por uma identidade do tipo self-mademan, mediante a qual esses indivíduos procuravam se tornar pais supridores deles mesmos.
Uma das características da pseudomaturidade é o estancamento da libido, a qual,
como se sabe, tem dois tipos: narcisista e objetal. No estancamento da libido
narcisista, a angústia se apresenta como pânico hipocondríaco, prevalente nos
adolescentes que desenvolvem condutas aditivas. No estancamento da libido
objetal, um sadismo irrefreável, e sem objeto sobre o qual recair, promove um
tipo particular de afeto tóxico; isso gera uma angústia violenta que não pode ser
processada, se transformando em estado letárgico, no qual falta o matiz afetivo
que confere qualidade aos processos pulsionais. Entretanto, na maioria das vezes, essas manifestações dos estados de êxtase libidinal narcísica e objetal são
episódicas, não chegando a se estruturar como quadros estáveis (ALMASIA;
SCOKIN, 1994).
A Ética nas Relações entre Pais e Filhos
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 283-296, 2014
294
Um caso clínico ilustra o impacto e os desdobramentos anímicos do final da
adolescência. Trata-se de Paulo, atualmente com 36 anos, em uso de ansiolíticos
e antidepressivos, em pequenas doses e de forma descontinuada, desde aproximadamente os dezoito anos, quando ingressou na universidade. Queixa-se de
apresentar períodos de desânimo, de facilmente sentir-se diminuído diante dos
colegas de profissão e, com alguma frequência, de julgar que desconhecidos estão pondo dúvida em sua masculinidade. Quando procurou a ajuda de um analista, acabara de se separar de sua primeira esposa, após quatro anos de relacionamento, e seus sintomas haviam piorado bastante, a ponto de encontrar-se
com dificuldade para trabalhar.
Paulo é competente e destacado odontólogo, com especialização no exterior, assim como seus dois irmãos, com os quais divide uma clínica luxuosa em uma
cidade industrial próxima à capital. O pai, muito conhecido na região, trabalha
como consultor de empresas. Foi ele quem construiu a clínica dos três filhos e
arcou integralmente com as suas modernas e sofisticadas instalações. Seu escritório encontra-se no mesmo prédio e é ele quem cuida da parte financeira e dos
pagamentos da clínica. Na prática, os filhos apenas tomam conhecimento dos
seus ganhos líquidos mensais.
Aos dezessete anos, Paulo sentia-se muito franzino para enfrentar os colegas da
escola e com sérias dificuldades de se aproximar das garotas. Acredita que foi a
partir dessa idade que começaram a surgir os seus sintomas, atenuados, na ocasião, com a compra de uma moto. Quando completou dezoito anos, foi presenteado pelo pai com um carro esportivo de sua escolha, conferindo-lhe uma posição
inédita entre os jovens de sua faixa etária. A propósito, a aquisição de motos e
carros mais potentes e mais valiosos tem sido uma tônica na vida de Paulo, ocorrendo sempre que se sente diminuído. Essas trocas, na maioria das vezes, são
respaldadas pelo pai, que também se encarregou de fazer os acertos financeiros
com a sua esposa quando o casal se separou.
Muitos outros detalhes da vida desse paciente reforçam a constatação evidenciada pela clínica de que um número bastante grande de indivíduos não consegue
superar os limites dos contingenciamentos físicos e emocionais do final da adolescência, determinando o surgimento de sintomas que tendem a se agravar com
as exigências de vida adulta e a perda real dos pais. No caso de Paulo e de muitos
outros, de ambos os sexos, torna-se evidente o caráter homossexual desse
aferramento à figura paterna, bem lembrada por Freud (1905[1901]) no pós-escrito do Caso Dora, ao dizer:
Quanto maior o intervalo de tempo que me separa do fim desta análise, mais
provável me parece que a falha em minha técnica esteja nesta omissão: não
295
Gley P. Costa
consegui descobrir a tempo nem informar à paciente que seu amor homossexual por Frau K. era a corrente inconsciente mais poderosa de sua vida mental
(p. 116).
De fato, a desmentida da perda do pai provedor implica um esforço por conservar uma posição homossexual, sendo que, no caso da mulher, a meta geralmente é feminizar a figura paterna. No caso de Paulo, a aspiração homossexual encontrava-se projetada nos estranhos, cujo significado é bem conhecido pela psicanálise. Essas considerações, por fim, nos levam a concluir, como alerta
Maldavsky (1992), que os adolescentes se rebelam não apenas contra o que os
pais procuram sustentar com suas palavras e certas normas impostas pela sociedade, mas também contra seus próprios processos intrapsíquicos que percebem conduzi-los a uma vida adulta inevitável.
Finalmente, dentro do quadro de pseudomaturidade, cabe considerar os indivíduos que, independentemente de sua idade cronológica, não conseguiram ultrapassar a adolescência em seu desenvolvimento psicossexual e que, apesar disso,
tornaram-se pais. Na prática, é possível que consigam proporcionar os devidos
cuidados e limites aos filhos durante os primeiros meses de vida e durante o
período de infância, mas fracassam quando eles atingem a adolescência, período a partir do qual passam a ser vistos por eles como irmãos. Além das dificuldades que decorrem da competição que então se estabelece, os filhos ainda enfrentam o abandono que resulta da incapacidade dos pais de colocarem os necessários limites. Em muitos casos, ocorre neste momento uma inversão de papéis, ou
seja, os filhos assumem as funções de pais e estes, de filhos.
The Ethics in Relations Between Parents and Children
Abstract: The study emphasizes the importance of ethics in human relationships that takes
into account the individuality of the other; regardless of any differences are age, sex, social
status, knowledge, beliefs, and convictions, in the specific case, family roles. The respect to
adults within a family is the same that should be dispensed to children from birth, or even
before. Failures in this fundamental precept usually result in three defensive situations the
author describes under the title of imprisonment, refuge and pseudo-maturity.
Keywords: Adolescence. Current world. Incest. Paternity. Parent-child relationship. Psychological
distress.
Referências
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A Ética nas Relações entre Pais e Filhos
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 283-296, 2014
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Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Revisão de português: Victor Lourenço
Gley Silva de Pacheco Costa
Rua Mariante, 288 / 1308
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Patricia Alkolombre
A Diversidade nos Acessos à
Parentalidade na Cultura Atual
e nos Processos de Subjetivação
Artigo
Patricia Alkolombre
Membro Titular da Asociación Psicoanalítica Argentina.
Membro Enlace na APA do Comitê de Mulheres e
Psicanálise da IPA.
Resumo: O trabalho aborda a diversidade nos acessos à parentalidade na cultura atual nas
diferentes combinações entre a fertilidade natural, a fertilidade assistida e a adoção. Assinala
que estas mudanças apresentam questionamentos de grande interesse para a psicanálise.
São práticas que se articulam de modo quase indissolúvel com a implementação das técnicas
reprodutivas e constituem problemáticas a partir de três eixos vinculados entre si: seus alcances na clínica, a incidência no corpo teórico e sua articulação com o campo social. São
analisadas a diversidade no engendramento e as relações entre a filiação, o parentesco e os
laços de sangue. Destaca-se a importância das novas origens vinculadas com a implementação
da doação de gametas e a barriga de aluguel. O desejo de filho é um tema central na clínica, é
desenvolvido o conceito de paixão de filho e são apresentados dois casos clínicos.
Palavras-chave: Desejo de filho. Diversidade. Engendramento. Filiação. Paixão de filho.
Parentalidade.
Este trabalho está orientado a pensar a diversidade nos acessos à parentalidade,
que estão presentes na cultura atual nas diferentes articulações entre a fertilidade natural, a fertilidade assistida e a adoção no contexto da clínica psicanalítica.
Como introdução, podemos dizer que é um tema muito atual. Nas últimas décadas, observamos profundas mudanças na cultura ocidental em vários campos,
entre eles, as novas configurações familiares – as monoparentalidades e as
homoparentalidades em casais de gays e lésbicas – as transformações referentes
à identidade de gênero e, por último, as maternidades e paternidades obtidas a
partir do uso de técnicas reprodutivas.
As transformações nos acessos à parentalidade apresentam questionamentos
de muito interesse para a psicanálise. São práticas que se articulam de modo
quase indissolúvel com a implementação das técnicas reprodutivas e constitu-
A Diversidade nos Acessos à Parentalidade na Cultura Atual e ...
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 297-310, 2014
298
em problemáticas que abordarei neste trabalho a partir de três eixos vinculados
entre si: seus alcances na clínica, a incidência no corpo teórico e sua articulação
com o campo social.
Historicamente, como antecedentes no campo médico-tecnológico, encontramonos, nos anos 1960, com a criação do anticonceptivo oral. Inaugura-se a era da
pílula anticoncepcional, que permitiu que os casais tivessem sexo sem filhos. Vinte anos mais tarde, na década de 1980, a equação é invertida com a chegada das
técnicas de fertilização assistida: agora é possível ter filhos sem sexo.
Tort, em seu livro El deseo frío (1994), diz que os avanços médico-tecnológicos
sacodem nossas referências simbólicas como as feridas narcísicas ao transformar as identidades, as formas de parentesco e a filiação.
A diversidade nos acessos à parentalidade
Tudo começou em 20 de julho de 1978, em Londres, com o nascimento de Louise
Brown, o primeiro bebê de proveta, uma nova Eva, poderíamos dizer. Foi o primeiro ser humano nascido por fertilização assistida no mundo e concebido fora
do corpo materno.
Kaës (2001, p. 8), em relação a esse ponto, diz que a introdução de um terceiro
elemento técnico-médico na reprodução modifica radicalmente o nascimento e
as representações da procriação e assinala o seguinte:
Esta é feita a três, assim a técnica médica se insinua como uma instância fecundante e parental. Ainda não sabemos muito bem quais são as modificações
que introduzem nas relações entre as gerações e no status da criança. Também
ignoramos quais serão os efeitos destes nascimentos assistidos tecnicamente
sobre as representações da filiação. Os efeitos de ruptura entre gerações são
necessários para a distinção entre as gerações, mas neste caso os efeitos são
particularmente acentuados e requerem alguma forma de resolução.
Os destinatários do emprego das técnicas reprodutivas e de todos os esforços
médicos para resolver as dificuldades reprodutivas foram historicamente os casais heterossexuais com problemas de fertilidade. As alternativas que haviam
tido até este momento eram a possibilidade de adotar ou a escolha de uma vida
sem filhos.
Nesse sentido, a chegada das técnicas abriu um amplo leque de possibilidades
para os casais com dificuldades reprodutivas, que, deste modo, poderiam ser
pais de outra maneira. Frydman (1986), um médico ginecologista que participou
do nascimento do primeiro bebê de proveta na França, escreveu o seguinte no
299
Patricia Alkolombre
começo da implementação das técnicas reprodutivas:
Uma criança pode nascer de uma terceira pessoa da que não saberá nunca sua
identidade; um irmão mais novo pode nascer antes que o mais velho; uma
mulher pode dar à luz uma criança que não é sua ou trazer ao mundo uma
criança de um homem morto anos atrás; uma criança pode ter cinco pais; gêmeos podem nascer com 10 anos de diferença [...] (p. 122).
Com a chegada das técnicas reprodutivas, as demandas foram sendo ampliadas
em várias direções e com diferentes usos das mesmas, estendendo-se a casais
homoparentais e a solicitações de monoparentalidade em homens e mulheres.
A partir daí, a construção das famílias apresenta uma diversidade no engendramento,
refletindo diferentes projetos de parentalidade: maternidades e paternidades
obtidas através da fertilização natural, através da adoção e também através da
fertilização assistida. Neste último campo, surgem solicitações de maternidade
e paternidade que não apresentam precedentes: maternidades a destempo biológico – maternidades de idade avançada , paternidades e maternidades através
de barriga de aluguel e doação de óvulos, inseminação em mulheres sozinhas
através de bancos de esperma (uma prática em aumento) e solicitações de
inseminação após a morte.
Esses novos cenários na parentalidade implicaram ir além da maternidade e da
paternidade do modo como as conhecíamos, com possibilidades que eram
inimagináveis. Algo mais ligado a uma inquietante estranheza, diria Aulagnier (1992),
algo unheimlich (FREUD, 1919), o desconhecido dentro do familiar. São todos temas que têm um ponto ineludível referido às novas – e em alguns casos inéditas
– articulações entre a filiação, os laços de sangue e o parentesco.
Os dois avanços médico-tecnológicos que, do meu ponto de vista, revolucionaram o acesso à parentalidade no campo da fertilidade assistida atual são o aluguel de útero e a doação de gametas óvulos e espermatozoides.
Com o aluguel de ventre – também chamado de doação temporária de útero –
estamos perante a duplicação da maternidade em dois corpos: a mãe do desejo e
aquela que ocupa o lugar da mulher gestante. Pela primeira vez na história, uma
mulher pode estar em face de sua gravidez, já que havia sido sempre o homem
quem ocupava esse lugar, estava em face da gravidez.
A doação de esperma como prática é mais antiga, já que alguns textos assinalam que se remontam ao século XIX, e o congelamento de esperma começou a
ser realizado na década de 1970, na França, originando os primeiros bancos de
A Diversidade nos Acessos à Parentalidade na Cultura Atual e ...
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 297-310, 2014
300
sêmen (FRYDMAN, 1986). A doação de óvulos é uma técnica mais recente e requer uma intervenção cirúrgica. O primeiro caso relatado é de 1983 (ALKOLOMBRE,
2008).
Um tema muito importante vinculado à doação de gametas é o anonimato. Ainda não conhecemos sua incidência, nem os efeitos que essa herança muda gera
nos vínculos e a nível intrapsíquico. Em muitos casos, fica latente o fantasma
incestuoso e a investigação sobre os doadores compulsivos.
Um possível ponto de abordagem é como categorizar os elementos que são introduzidos nas parentalidades de hoje em homens e mulheres na teoria. Nesse
sentido, os avanços médico-tecnológicos nos levam a pensar não só do lado dos
que serão os pais das crianças no exercício das funções parentais, mas também
no modo como são gestados e chegam ao mundo. Podemos nos perguntar se
estamos perante elementos inéditos na concepção das crianças, já que o que
estava até pouco tempo atrás nos mitos ou nas fantasias agora se tornou uma
realidade.
Hoje em dia, se um homem sozinho decide adotar uma criança, isto é visto como
uma novidade e, de fato, chegou a ser notícia nos meios de comunicação; como
também o é que um juiz determine que crianças fiquem sob a tutela da pessoa
que as cria por considerar que é a mais adequada, – neste caso um travesti que
exerce o papel materno – (DIARIO LA NACIÓN, 2010). Ou que comece a ser ampliado o emprego da barriga de aluguel como prática socialmente instituída. Em
diferentes meios de difusão, vemos homens que escolheram a monoparentalidade
conseguida graças à barriga de aluguel e à doação de óvulos como um modo de
exercer o papel paterno a partir de seu desejo de filho (ALKOLOMBRE, 2009).
Como contraponto, a monoparentalidade feminina por escolha, isto é, a exclusão do homem do exercício do papel paterno, tem sido a forma de
monoparentalidade mais frequente até muito pouco tempo atrás. Mulheres sozinhas, sem figuras masculinas que acompanham a criação de seus filhos biológicos ou adotivos. Nestes últimos anos, como assinalamos anteriormente, foram
adicionados os filhos nascidos por inseminação com sêmen de banco – garantindo neste ato o anonimato do pai – junto com a adoção de embriões.
Novas origens. Novos enigmas
Do que foi exposto até aqui, poderíamos dizer que estamos, na cultura ocidental,
perante novas formas de construção das famílias no contexto de uma diversidade no engendramento: por fertilidade natural, por adoção ou por fertilidade assistida com todas as suas variantes. Entretanto, se nos trasladássemos por um
301
Patricia Alkolombre
instante à antiga Roma veríamos que existia como prática algo equivalente à
barriga de aluguel, já que segundo os costumes, um homem cuja mulher era
fecunda podia emprestar ou alugar a sua esposa temporariamente a quem não
tinha filhos e o solicitava. Tratava-se de um acordo entre homens e as mulheres
não tinham opinião, descreve a antropóloga Héritier (1992).
Essa autora descreve um costume particularmente interessante entre os Nuer
do Sudão, onde assimilam a mulher estéril a um homem, modificando seu gênero aos olhos da comunidade. Na qualidade de tio paterno, ela paga o preço da
noiva e o utiliza para comprar uma mulher que lhe dará filhos, e assim converter-se em pai e atribuir-se uma descendência. Nesta cultura, vemos que a mulher que não tem filhos adquire um papel de gênero e um status masculino – não
pôde ser mãe, mas tem a possibilidade de descendência sendo pai. Pode casar
sem manter relações com sua esposa e ter filhos através dos serviços de outro
homem que insemine sua mulher – e que não terá nenhum direito sobre os
filhos nascidos. Aqui, como assinala a autora, a diferença sexual masculino-feminino ocorre no terreno da reprodução e de suas representações consensuais
em cada grupo social (HÉRITIER, 1996).
Do ponto de vista da psicanálise, podemos dizer que a maternidade e a paternidade não pertencem somente à esfera privada, nem são apenas a expressão de
um desejo, mas que respondem simultaneamente a necessidades sociais e seus
parâmetros variam de cultura para cultura. O status e os papéis masculinos e
femininos no interjogo das parentalidades revelam-se diferenciados do sexo biológico em cada contexto cultural e apresentam-se na trama da singularidade
de cada sujeito.
Podemos afirmar que o engendramento – de raízes biológicas – e a filiação – do
campo da cultura – são os eixos sobre os que são construídos os laços humanos
em cada sociedade. Em relação a esses temas, Lévi-Strauss (2011, p. 84) assinala
o seguinte:
É um fato que nas sociedades contemporâneas a ideia de que a filiação deriva
de um vínculo biológico tende a prevalecer sobre aquela que vê na filiação um
vínculo social. Mas então, como resolver os problemas apresentados pela procriação assistida, onde, precisamente, o pai legal já não é o progenitor da criança e onde a mãe, no sentido social e moral do termo, não contribuiu com seu
próprio óvulo nem, talvez, o útero no qual se desenvolve a gestação?
Por outro lado, apresenta uma diferenciação entre a sociedade contemporânea e
outras culturas estudadas, como aquelas mencionadas por Héritier, e acrescenta o seguinte:
A Diversidade nos Acessos à Parentalidade na Cultura Atual e ...
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 297-310, 2014
302
Assim, comprovamos que o conflito entre a procriação biológica e a paternidade social que tanto nos confunde não existe nas sociedades estudadas pelos
antropólogos, que sem duvidar primam o social, sem que ambos os aspectos
choquem com a ideologia do grupo ou a mente do indivíduo (LÉVI-STRAUSS,
2011, p. 95).
Em nossa cultura, há uma coexistência de critérios, já que, por exemplo, para o
direito e a legislação, os laços de sangue são os que predominam nos direitos de
filiação, mas do ponto de vista subjetivo, os vínculos estão apoiados nas funções
de criação.
Vemos que tanto na antiga Roma como entre os Nuer do Sudão ou na cultura
atual, as coordenadas que regulam a reprodução na sucessão das gerações variam de acordo com a sociedade, que é a que estabelece as diferentes relações
entre os laços de sangue, o parentesco e a filiação.
Nesse ponto, poderíamos afirmar que hoje em dia não há nada novo sob o sol no
terreno da fertilidade humana, dos laços biológicos e da filiação social. Entretanto, algo diferente está ocorrendo com a chegada dos filhos, e aqui podemos tornar a formular a questão inicial sobre as transformações na parentalidade.
O inédito na atualidade, aquilo que marca a diferença, está do lado das origens,
com condições de gestação que marcam fenômenos sem precedentes na história. As novas origens nos impõem questões que requerem um trabalho de revisão e investigação. Os efeitos de ruptura incidem nas representações do corpo a
partir das novas origens. Podemos lembrar a importância do lugar do corpo nas
séries complementares – o constitucional – em Freud e também nas relações na
filiação e na identidade. O romance familiar do neurótico, a cena primária e as
fantasias sexuais infantis requerem ser pensadas nos contextos atuais.
São alterações nos ordenamentos das famílias em relação com as origens que
supõem o que poderíamos conjeturar como uma revolução nas parentalidades.
Hoje em dia, as células germinais, os fluidos e os órgãos podem ser permutados,
modificados e combinados de diferentes modos para obter uma gravidez. Isto
leva a estabelecer uma diferenciação entre mãe e genitora e pai e genitor, ou
seja, poder pensar nas novas relações entre os corpos e as funções parentais
exercidas por homens e mulheres.
No trabalho analítico do caso a caso, as novas origens se abrem a um universo de
significações singulares. Como assinala Leclaire (1992), a filiação tem múltiplos
determinantes e não pode ser reduzida a um critério de verdade biológica sem
incluir um critério de desejo que alude a uma ordem simbólica e se enlaça com a
história singular em cada sujeito.
303
Patricia Alkolombre
Desejo de filho. Paixão de filho
Nesta parte, desenvolverei o conceito de desejo de filho a partir de uma perspectiva freudiana e depois analisarei as buscas de filho a qualquer preço, que denomino paixão de filho, que estão situados nas fronteiras da maternidade. Depois, apresentarei material de dois casos clínicos.
Do ponto de vista da psicanálise, o desejo de filho é a base sobre a qual é construída
a pré-história da criança por nascer, uma pré-história que está inscrita nas
fantasmáticas parentais, imagos da sexualidade infantil. É o produto da elaboração de um desejo inconsciente e é singular em cada sujeito, com diferentes ressonâncias e formas de processamento.
Do ponto de vista teórico, está situado no campo do desenvolvimento libidinal
feminino, como um desejo de ordem fálica que culmina com a equação pênis =
filho. Apresenta-se assim vinculado ao desejo do pênis e à inveja do pênis no Édipo
feminino. Segundo Freud (1925, p. 274), a menina “resigna o desejo do pênis para
substituí-lo pelo desejo de um filho e com este objetivo toma o pai como objeto
de amor”. Uma perspectiva que parte de uma carência feminina.
Por sua vez, o desejo de filho se vincula, nas suas origens, com a etapa pré-edipiana,
na qual a menina toma a mãe como modelo e a partir da identificação deseja ser
mãe como a sua mãe (FREUD, 1931, 1933), recriando-se a partir do brincar com as
bonecas. Está também associado com libido pré-genital proveniente da etapa
anal – nas equivalências que Freud assinala fezes-pênis-filho-dinheiro-presente, o
filho como lumpf (FREUD, 1917).
Encontramos a presença dos componentes narcisistas através do filho como His
majesty the baby; é um representante do narcisismo quando assinala que “o ponto mais espinhoso do sistema narcisista, essa imortalidade do eu, que a força da
realidade assedia duramente, obteve sua segurança refugiando-se na criança”
(FREUD, 1914, p. 88).
Por sua vez, amplia estas ideias em direção ao campo vincular, poderíamos dizer,
quando assinala que “o comovente amor parental, no fundo tão infantil, não é
outra coisa que o narcisismo redivivo dos pais” (FREUD, 1914, p. 88).
O desejo de filho em Freud é emoldurado então como um desejo de ordem fálica
associado com o desejo de pênis na mulher, que deriva na inveja do pênis e está
atravessado por componentes pré-genitais anais, pré-edipianos e edipianos e vinculado com aspectos centrais do narcisismo.
A Diversidade nos Acessos à Parentalidade na Cultura Atual e ...
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 297-310, 2014
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Aulagnier (1992) estabelece uma diferenciação significativa, como é a diferença
entre o desejo de filho e o desejo de gravidez. Assinala que no desejo de filho, este
é considerado como um objeto diferenciado da mãe e implica o abandono da
posição narcisista, já que pressupõe para a mãe a possibilidade de enfrentar
suas carências. Por outro lado, no desejo de gravidez, o filho é um objeto não
diferenciado e está em jogo uma unidade ilusória e é o filho quem restaura a
unidade narcisista perdida.
Sabemos que existem sempre a tentação e a possibilidade de que o filho ocupe o
lugar de uma nova ilusão orientada a complementar a mulher imaginariamente.
Nessa linha, trabalhei no que se pode chamar de um filho a qualquer preço, que são
buscas de gravidez que chamaram a minha atenção na clínica e nas quais é
recriado um vínculo narcisista-passional com o filho: você será meu ou de ninguém.
Isto me levou a pensar num destino particular da maternidade nestes casos: a
passagem de um desejo de filho ao que denomino uma paixão de filho, onde o
filho se constitui em objeto único, insubstituível e destinatário do amor materno. São buscas de gravidez com características particulares que possuem uma
intensidade e uma fixação inusuais, mesmo que o preço seja a autodestruição
(ALKOLOMBRE, 2008).
Na clínica, observam-se mulheres que fazem um tratamento atrás do outro, nos
que estão presentes aspectos sacrificais e tanáticos associados com percursos
médico-tecnológicos. Neste movimento, tentam recriar um estado de fusão com
o objeto originário falido na infância através da maternidade.
A paixão de filho é a forma que adquire o sofrimento do eu submetido ao ideal
da maternidade e é acompanhada por certa naturalização de um desejo tipicamente feminino. Embora a escuta psicanalítica tenha diferentes linhas teóricas
e pontos de vista, o campo desejante da mulher apresenta-se quase completamente saturado na maternidade. Neste sentido, deixo como questão aberta a
possibilidade de poder pensar neste ponto.
Outro dos temas presentes neste campo e que também deve ser mencionado,
embora não pretenda desenvolvê-lo, é o lugar que ocupa o desejo de filho no
homem, já que o acesso à parentalidade implica tanto a mulher como o homem
(ALKOLOMBRE, 2009). Sem dúvida, as novas paternidades presentes na cultura
atual, as homoparentalidades e as monoparentalidade masculinas, junto com a
escuta do desejo de um filho no homem, nos conduzem a investigar nesta direção.
305
Patricia Alkolombre
Voltando então à clínica psicanalítica, nos encontramos nos consultórios com
pacientes individuais ou casais que consultam quando estão em tratamentos
médicos ou, estando em análise, iniciam consultas por fertilidade. Ali podemos
trabalhar sobre os fenômenos que se tornam visíveis a partir das técnicas
reprodutivas e fazer uma revisão e um questionamento sobre o que permanece
e o que se modifica neste campo.
O desejo de filho é um tema central, assim como a identidade da criança vinculada a um saber sobre suas origens junto com as projeções parentais sobre eles.
Vozes da clínica:
Carlos e Marta
Relatarei um breve caso de um tratamento de casal de Carlos (43 anos) e Marta
(39 anos). Chegam à análise por problemas conjugais e, pouco tempo depois,
começam com as consultas por fertilidade. Recebem a sugestão de adotar ou
realizar um tratamento de fertilidade assistida com doadores, em função dos
resultados dos exames médicos. Finalmente, decidem realizar um fertilização
com óvulos e espermatozoides doados. Marta fica grávida na primeira tentativa.
Na metade de uma sessão do sexto mês de gravidez, Carlos relata, com muita
angústia, que está com insônia há várias noites e teme que entrem ladrões na
sua casa, vigia e deambula para assegurar-se de que tudo está em ordem. No seu
bairro, vários vizinhos sofreram assaltos violentos. Nessa semana, haviam tido
um controle médico. Não se referiam muito a doadores e nem ao fato de que
fossem anônimos. Em determinado momento da sessão, diz a Marta, visivelmente
angustiado:
Carlos: E os embriões? De onde vêm? Há uma espécie de vazio... Como serão?
Marta olha para ele com surpresa. Falaram tantas vezes sobre o assunto antes
de conseguir a gravidez.
A pergunta de Carlos atravessa a sessão e percebo que vai além do enigma que
guarda em si cada gravidez. Assinala o indizível das origens desconhecidas do
filho que esperam e também vai além do desejo de filho que compartilham.
Contratransferencialmente, sinto que se aproxima da ideia de uma vivência de
estranheza vinculada com a origem dos embriões e que nos conduz ao lugar dos
doadores anônimos e às fantasmáticas associadas tanto nele como em Marta. O
clima da sessão muda a partir desse momento.
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Psicanálise v. 16 nº 2, p. 297-310, 2014
306
O vazio ao que se refere Carlos – e a angústia que o acompanha – refere-se inicialmente à carga genética desconhecida proveniente dos gametas doados. Mas é
um questionamento que o remete também a outra origem, proveniente de seu
desejo – não anônimo – de ser pai.
Formula sua pergunta sobre as origens desse modo: E os embriões? De onde vêm?
Como serão? Poderíamos conjeturar sua relação com outra pergunta que se apresenta na infância: de onde vêm os bebês, vinculada com o despertar da pulsão de
saber, aqui deslocada sobre as novas origens na procriação.
Os significados singulares, neste caso vinculados com o lugar do doador, situado
como genitor, promovem a emergência de uma busca de sentido e significação.
Desdobrou-se, na terapia, a problemática do luto pela morte do pai de Carlos,
ocorrida um ano antes, e as fantasias de usurpação – de roubo – de seu lugar ao
transformar-se em pai de uma criança que não tem seus genes. O trabalho de
filiá-lo e alojá-lo a partir de sua função paterna fez parte do percurso analítico.
Silvia e Jorge
O casal formado por Silvia (28 anos) e Jorge (30 anos) chega encaminhado pelo
médico que os atende e, na primeira consulta, relatam que estão com um dilema
entre iniciar o processo de adoção ou começar os tratamentos de fertilidade assistida com sêmen de banco. Dos exames de Jorge surge o diagnóstico de
azoospermia, isto é, ausência de espermatozoides. Perante este dilema, Jorge prefere recorrer a sêmen de banco e Silvia a uma adoção. Um fragmento da primeira
entrevista:
Silvia: O que ocorre é que faltam espermatozoides, já fizemos todos os exames.
Jorge: Tudo isso foi horrível para nós.
Silvia: O problema é saber se vamos ter um bebê da barriga ou por adoção, porque o Jorge
quer um bebê da barriga e eu por adoção.
Jorge: Eu prefiro que viva a experiência da maternidade.
Silvia: Eu preferiria a adoção, poder ter um bebê e saber de quem é.
Jorge fica em silêncio.
Silvia: Eu preferiria a adoção, poder ter um bebê e saber de quem é.
307
Patricia Alkolombre
Jorge fica calado.
Silvia: Eu penso em como vai ser esta família, com um filho adotado ou com um filho com
sêmen de doador.
Jorge: Isso não me afetaria, Deus não dá o mesmo para todos e eu aceito não ter
espermatozoides, que me doem o que não tenho... Deus fecha uma porta mas abre duas
janelas.
Silvia: Tudo bem! Mas quando tivermos um filho, o que vamos dizer a ele? Como vai
reagir? Isso não vai afetá-lo?
Na segunda entrevista, Silvia telefona quando estão indo para o consultório para
avisar que não poderão chegar porque estão no meio de um grande engarrafamento que os atrasou e acrescenta que Jorge teve um desarranjo.
Combinamos um novo horário. Contratransferencialmente, penso no desarranjo
de Jorge, na sua barriga e no projeto de filho biologicamente próprio que se desarranja no caminho da paternidade após o diagnóstico de azoospermia.
Alguns fragmentos da entrevista seguinte:
Jorge: Hoje aconteceu a mesma coisa, mas eu disse para a Silvia: vamos por outro caminho, é mais longe, mas é menos problemático.
Analista: Hoje foi diferente da sessão anterior à qual não puderam chegar, você teve um
desarranjo no caminho. Você relaciona isso com alguma coisa?
Jorge: Tive um desarranjo, sei lá... Devo ter comido algo com alho, o alho me faz mal (...)
Silêncio... Não sei, eu vivo nervoso o dia inteiro na clínica. (Jorge é o Diretor de uma Clínica
de Diagnóstico por Imagens)
Analista: Você vive nervoso o dia inteiro?...
Jorge: É, eu fico nervoso para que as coisas funcionem bem, para ver o resultado das
coisas, que esteja tudo pronto e organizado. Que os prontuários estejam, a organização
começa muito cedo. Há laboratórios que falham. Eu vinha brigando, fazem jogadas sujas,
encaminham os pacientes mal e o bioquímico passa os preços dos exames mal. O que está
fazendo é matar a galinha dos ovos de ouro! Em uma semana eu lhe enviei 25 pacientes,
não é brincadeira.
A Diversidade nos Acessos à Parentalidade na Cultura Atual e ...
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 297-310, 2014
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Analista: As coisas que ficam desorganizadas e saem do controle deixam você nervoso o
dia inteiro e depois parece que se expressam através do seu corpo.
Jorge: Claro, porque se 25 pessoas vão a um laboratório, agora com este problema vou lhe
dizer: não sei! Vou dar-lhes uma fotocópia com vários endereços e que vão aonde queiram.
Eu não vou me arriscar por nenhum, por isso eu me aborreço.
Nos fragmentos dessas primeiras entrevistas emergem vários elementos, entre
eles o longo caminho para ser pais e as dificuldades que surgem. Em Silvia, está
presente o desejo de conhecer as origens do filho que está por chegar e a pergunta sobre o tipo de família que quer ter junto com Jorge. Nele, as referências ao
desarranjo e as vivências de nervosismo aludem às vivências de um corpo descontrolado, desconhecido, cujo laboratório, que já não é confiável, já não gera
espermatozoides.
Foi muito impactante a expressão que utilizou para falar sobre o bioquímico:
matar a galinha dos ovos de ouro. Já não pode gestar com sua carga genética, é
necessário resigná-lo e viver o luto pela paternidade biológica.
O anonimato também está presente na lista anônima de laboratórios que não
conhece, já que não tem a quem encaminhar os seus pacientes. Jorge propôs
numa sessão posterior solicitar a um de seus irmãos a doação de esperma, mas
não houve acordo com Silvia sobre este tema. Foi muito difícil para Jorge resignar sua paternidade biológica, a fantasia de que fosse filho de seu irmão esteve
muito presente nele, como um modo de que seu filho tenha algo dele, de sua
família. Por outro lado, a tomada de decisão dentro do casal levou muito tempo,
e nesse processo tiveram dificuldades na elaboração psíquica, com descargas
somáticas, que se manifestaram através de problemas gástricos e outros sintomas em Jorge e dores de cabeça em Silvia.
Reflexões finais
Ao longo deste trabalho, fui desdobrando questionamentos e pontos críticos em
torno dos novos acessos à parentalidade e à diversidade no engendramento presentes na cultura atual. Estes apresentam muitos pontos sobre os quais pensar,
entre eles se o prévio sempre pode dar conta do novo.
Nesse sentido, é importante fazer uma atualização a partir da psicanálise sobre
estes temas que são muito atuais e de interesse, como assinalamos no começo.
São mudanças que envolvem os paradigmas da origem da disciplina psicanalítica, onde a família tipo, baseada no pai e na mãe como progenitores estáveis,
eram os modelos sobre os quais foi constituída a disciplina.
309
Patricia Alkolombre
Do ponto de vista da clínica psicanalítica, podemos pensar na ética dos casais,
até onde estão dispostos a chegar para conseguir uma gravidez, e, ao mesmo
tempo, que possibilidades têm de questionar a si mesmos, como nos casos de
Carlos e Marta e de Jorge e Silvia. O analista não é alheio a essas perguntas; e
embora na clínica não possamos fazer uma ecografia da mente, nem predizer o
que ocorrerá, já que trabalhamos sempre em um après-coup, podemos ter presentes as ideologias e os preconceitos que podem ser obstáculo no momento de
pensar sobre estes temas.
Sabemos que a origem tem um relevo fundante para o sujeito. Que efeitos pode
ter a impossibilidade de conhecer a procedência, como ocorre nos casos de doação de óvulos ou espermas anônimos? Como se manifestam todos esses elementos na clínica são questionamentos que não têm uma resposta unívoca. Por
outro lado, como sabemos, todo nascimento continua conservando em si mesmo algo da ordem do indizível.
Diversity in the access to parenthood in the current culture and
subjectivation processes
Abstract: The work treats diversity in the access to parenthood in today’s culture in the different
combinations between natural fertility, assisted fertility and adoption. It points out that these
changes bring about questions of great interest for psychoanalysis. These are practices that
take place in an almost unbreakable way with the implementation of reproductive techniques,
and they constitute problems from three interrelated axles: their scope in clinical psychology,
the incidence on the theoretical body, and their articulation with the social field. This article
analyzes diversity in conception, relations between filiation, kinship and blood bonds. It points
out the importance of the new origins linked to the implementation of gamete donation and
surrogate mothers. The desire to have a child is a central topic in clinical psychology, the
passion for a child concept is developed. Clinical material is presented.
Keywords: Conception-Filiation. Desire for a child. Diversity. Parenthood. Passion for a child.
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Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Revisão de português: Ana Rachel Salgado
Patricia Alkolombre
Rua Amenábar, 2190 / 12
C1428CQH – Buenos Aires – Argentina
e-mail: [email protected]
outras
contribuições
313
Luis Carlos Menezes
Totem e Tabu: um contraponto
cultural às errâncias do sexual
Artigo
Luis Carlos Menezes
Psiquiatra e Psicanalista. Membro Efetivo da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de São Paulo. Analista Didata SBPSP.
Resumo: O autor toma como ponto de partida a descoberta freudiana de que o sexual no ser
humano é a priori indeterminado em suas modalidades e seus objetos, abrindo-se desde o
início para relações de natureza incestuosa no âmbito familiar ou mais próximo. Daí a referência indispensável da instituição da proibição do incesto como função organizadora primordial do sexual, pela elaboração do complexo de Édipo que gravita em torno da questão da
castração. A estruturação psíquica que daí resulta leva à constituição das identificações
sexuadas, das orientações sexuais e dos ideais do eu. O personagem de um filme recente que
deseja ser mulher, embora seus desejos sexuais e amorosos estejam voltados para mulheres, é
objeto de discussão, com base na concepção tardia de Lacan, do sinthome como saída do complexo de Édipo.
Palavras-chave: Complexo de Édipo. Identificação sexual. Sexual. Sinthome.
Esta obra tenta cernir as restrições que operem ao mesmo tempo como referências para um sexual descoberto como condição da vida psíquica, mas que tende
a transbordá-la por sua natureza errática, incerta (FREUD, 1913). Os tabus descritos pelos etnólogos da época parecem convergir todos para o horror de qualquer contato, mesmo que apenas visual ou de simples ditos, que pudesse representar o início de uma aproximação corporal portadora da tentação de possessão sexual, ou assassina, do outro. Num mundo em que as pulsões pareciam
estar à flor da pele – carecendo de recalque – e podendo levar à busca de satisfação de um modo imediato.
A coligação fraterna inaugural da cultura – religião, moral e vínculo social –
corresponde à instauração de um ordenamento grupal, baseado na contenção
de cada um pelos demais, desde que potencializada pela força de um pacto
impositivo de renúncia, garantida pelo poder simbólico das instituições criadas
em torno da religião originária, a religião totêmica.
Este momento inaugural da epopeia humana teria sido propiciador de uma certa
interiorização da vida pulsional e, portanto, dos atos de cada um em sua história
Totem e Tabu: um contraponto cultural às errâncias do sexual
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 313-322, 2014
314
pessoal, já que o seu motor seria não só a idealização nostálgica do pai quetudo-podia, mas, principalmente, a aptidão ao sentimento de culpa em cada um
de seus membros. Estes passam a viver como responsáveis por seus atos perante
o clã totêmico a que pertencem, e o clã ajuda cada um deles a vencer a culpa,
por meio de rituais de purificação culturalmente estabelecidos. Sem isto, ele teria que se haver diretamente com a culpa, sem mediações, tomado pelo terror de
ações retaliatórias, terror que chegaria a causar a sua morte, a julgar por relatos
retomados por Freud. O trabalho da cultura, em seus primórdios, teria não só
criado um sistema repressivo e exigido renúncias, como também teria inventado
formas socialmente aceitáveis para a canalização das pulsões contidas, e para
dar conta da culpa associada às transgressões e aos ideais grupais do totemismo.
Sem esquecer, por outro lado, da prática entre eles de um sistema penal impiedoso
e eficiente.
Sabemos que a peça central do sistema de interdições como tabus, na cultura
totêmica, era a proibição das relações sexuais incestuosas dentro de cada clã,
um interdito indispensável para a constituição de qualquer sistema cultural assim como essencial para o processo de diferenciação psíquica de cada ser humano.
Em ambos os casos, trata-se de garantir que o sujeito irá buscar satisfação para
as suas pulsões sexuais numa vida amorosa voltada para fora do clã ou da família a que pertence. Busca exogâmica que garanta contra a tentação de permanecer atrelado psíquicamente aos pais e refém do vínculo erótico-amoroso do incesto originário com a mãe. Esta é uma barreira, com certeza a mais essencial,
para as errâncias do sexual na vida das pessoas.
O sexual, com efeito, tem o seu primeiro tempo, afirma Freud, na relação com o
seio da mãe, este “objeto sexual” (1905, p. 164) com o qual o bebê mantém uma
“relação sexual que é a primeira e a mais importante de todas [...]” (Ibid, p. 165).
Nela não se pode ignorar a sexualidade da mãe:
As relações da criança com a pessoa que cuida dela é para ela uma fonte contínua de excitação sexual e de satisfação partindo das zonas erógenas, tanto
mais que esta – que é, em geral, a mãe – dá à criança sentimentos que provêm
de sua própria vida sexual, o acaricia, o beija e o nana, e o toma claramente
como substituto de um objeto sexual pleno [...], assim ela desperta a pulsão
sexual de seu filho [...], acrescentando que se a mãe compreendesse melhor a
grande importância das pulsões no conjunto da vida psíquica, em todas as
realizações éticas e psíquicas, ela se pouparia de se recriminar disto (Ibid, p. 166).
“Ela não faz senão cumprir o seu dever quando ela ensina a criança a amar; esta
deve, com efeito, tornar-se um ser humano capaz, dotado de uma necessidade
315
Luis Carlos Menezes
sexual enérgica, e realizar em sua existência tudo aquilo para que a pulsão leva
o indivíduo” (FREUD, 1905, p. 166).
Assim Freud descreve, alguns anos antes de Totem e Tabu, a gênese, não da interdição cultural, mas da sexualidade humana de um bebê, de uma criancinha.
Esta encontrar-se-ia na relação – no início intensamente corpora l- com a mãe,
ela própria (a mãe) mobilizada em suas fantasias inconscientes pela relação tão
íntima vivida em sua maternidade com a criança. E insiste na grande importância das pulsões – que ali se engendram – para o conjunto da vida psíquica da
pessoa que esta criança virá a ser, para o seu apetite pela vida, para o prazer que
terá em suas atividades físicas e intelectuais, para o seu sentimento de existir,
em suma, para a sua capacidade de desejar e de se sentir existindo.
Na esquematização da problemática edípica feita por Lacan (1957-1958), apoiado em outras referências que vão se constituindo em seu sistema de pensamento, esta é desdobrada em três tempos. A descrição viva e forte de Freud da sedução originária da mãe – sedução, em princípio, para a vida – corresponde ao primeiro tempo.
O depositário da função interditora é o pai, pelo poder que tem sobre a mãe. O
pai tal como ele se forma no après-coup do crime primevo, e como ele vai sendo
constituído socialmente nos desenvolvimentos das culturas humanas. Se este
poder sobre a mãe tirar a sua força do desejo da mãe pelo pai e da “simbolização
primordial entre a criança e a mãe que leva à substituição do pai enquanto símbolo, ou significante, no lugar da mãe”, estaremos no segundo tempo, o da operação de recalcamento fundadora, nomeada metáfora paterna por Lacan (19571958, p. 180).
De toda maneira, o que vai se desenhando é o terreno da constituição narcísica
do sujeito, dos desafios e incertezas do complexo de Édipo e da constituição da
economia desejante do sujeito em relação ao seu corpo sexuado e ao dos objetos
de seu desejo. Neste terreno se constroem posições sexuadas e também os ideais
que norteiam a vida do sujeito com base em identificações que resultam na diferenciação entre o sexo masculino e o feminino.
Diferenciação esta que resulta de um processo iniciado na infância, o qual atravessa a puberdade e ainda que decisivo para “o modo de vida dos seres humanos”, no dizer de Freud (1905, p. 160), implica em distinções que não são unívocas
para a psicanálise. Ele afirma, neste sentido, que “é indispensável se dar conta que
os conceitos de ‘masculino’ e ‘feminino’, cujo conteúdo parece tão pouco ambíguo para a opinião comum, fazem parte das noções as mais confusas do domínio científico [...]” (Ibid, p. 161).
Totem e Tabu: um contraponto cultural às errâncias do sexual
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 313-322, 2014
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Evoca nesta passagem pelo menos três orientações possíveis. Uma se baseia na oposição atividade/passividade, que seria uma referência para a psicanálise, mas
que, sabemos, o autor considera inadequada em textos posteriores; a outra é a
biológica – o sexo anatômico do corpo; e a terceira, que chama de sociológica, não
parece reter a sua atenção, mas deve corresponder ao imaginário socialmente
compartilhado sobre a distinção dos gêneros, de acordo com as épocas e os diferentes meios culturais. Para Freud, a psicanálise visa é o que possa ser pensado
no terreno da metapsicologia.
Neste sentido, há um avanço decisivo com a construção da teoria do complexo
de Édipo articulado ao complexo de castração que foi possível com base na concepção de uma fase fálica (FREUD, 1923), esta sendo baseada em uma das teorias
sexuais infantis anteriormente descritas (FREUD, 1908). Em torno da posse do
pênis/falo – mais cobiçado narcisicamente na teorização freudiana que situado
como objeto do desejo sexual, Freud descreve as vicissitudes do complexo de
Édipo como diferentes nas pessoas de sexo masculino e nas pessoas,
anatomicamente, do sexo feminino.
Nestas alturas, portanto, a diferença biológica – ter ou não ter pênis – passa a ter
uma incidência significativa nos destinos das identificações e do desejo sexual
do sujeito, embora a problemática seja sempre a mesma: como sair do apego
incestuoso ao primeiro objeto sexual, que é ele mesmo sujeito de desejo sexual
em sua relação com a criança, como formulado tão explicitamente nos Três ensaios. Desejo materno que é retomado adiante na ênfase do que Freud chamou
de fase pré-edípica da relação da criança com a mãe na discussão da sexualidade feminina (FREUD, 1931). Neste período, nos anos 1920 e 1930, surgem trabalhos sobre tais questões com extensos relatos clínicos e reflexões metapsicológicas
enriquecedoras, escritos principalmente por analistas mulheres, alguns convergentes com as concepções freudianas do complexo de Édipo, outros, mais radicalmente originais como os de Melanie Klein, em cujas abordagens sobre as angústias arcaicas, as questões centrais para Freud referentes ao incesto e ao seu
impedimento, perdem importância. O complexo de Édipo, em sua versão de Édipo
arcaico, centrado em angústias agressivas de retaliação, qualquer que seja o seu
valor clínico, deixa de ter a função estruturante da sexuação e dos ideais do Eu,
entendida com fruto da conflitualidade envolvendo o terceiro paterno, entre mãe
e criança, no Édipo clássico.
Em seu rigoroso retorno à Freud, nos anos 1950, Lacan volta a centrar o falo na
lógica do desejo e, portanto, da relação ao outro. Partindo do falo como objeto do
desejo da mãe, ou seja, indicando algo que só um terceiro pode dar a ela, para o
seu gozo, confronta a criança com a insuficiência tanto da mãe, como dela, em
sua necessidade narcísica primária de ser tudo para a mãe e de ser tudo com a
317
Luis Carlos Menezes
mãe. No que Lacan descreve como terceiro tempo do complexo de Édipo, em que
a criança reconhece que há algo no desejo da mãe que só pode encontrar no pai
– o falo, a criança sendo levada por sua vez a se voltar para o pai, num movimento que implica na desistência da pretensão de ser o falo para a mãe, encontra-se
o ferimento narcísico da castração, tão sublinhado por Freud (1920). O sujeito é
deslocado para a condição de procurar ter o falo, sempre a priori não garantido e,
desde aí, buscar as satisfações possíveis sustentadas pelas fantasias de desejo,
seja em posição masculina, seja em posição feminina, tanto num como noutro
sexo biológico.
De toda maneira, neste processo, o sujeito sai do risco psicótico, abrindo-se para
uma vida em que há corpos sexuados e os desejos que os animam. O que é um
homem ou uma mulher para a psicanálise, o que deseja um homem, o que deseja uma mulher? Se voltarmos aos Três ensaios, encontraremos um Freud tão
categórico em recusar as respostas existentes para estas questões, quanto perplexo e tateando no escuro para encontrar outras referências. Ele é levado a
proceder a uma revisão radical e surpreendente das ideias sobre a sexuação no
ser humano.
Ao contrário da “opinião popular [...] para a qual um ser humano é ou um homem ou uma mulher [...]” (FREUD, 1905, p. 45), o que a psicanálise encontra é
bem mais ambíguo. Vejamos – peço-lhes um pouco mais de paciência – no que
isto vai dar, antes de tomarmos algumas situações precisas.
Discutindo a sexualidade dos chamados, na época, invertidos, em nota de 1920,
de homossexuais ou homoeróticos (Ibid, p. 52), Freud afirma que “as ligações de
sentimentos libidinais a pessoas do mesmo sexo não desempenham, enquanto
fatores da vida psíquica normal, um papel menor que aqueles que se dirigem ao
sexo oposto [...]” (Ibid, p. 51). E prossegue:
São antes a independência da escolha de objeto em relação ao sexo do objeto,
a liberdade de dispor indiferentemente de objetos masculinos e femininos –
como se pode observar na infância, nos estados primitivos e nos primeiros tempos da história – que a psicanálise considera como a base original a partir da
qual se desenvolvem, por restrição em um sentido ou noutro, tanto o tipo normal quanto o tipo invertido. Do ponto de vista da psicanálise, em consequência,
o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema
que requer uma explicação ser esclarecido e não algo evidente [...] (FREUD,
1905, p. 51).
Concluindo, algumas frases adiante, que “a multiplicidade de fatores
determinantes se reflete na diversidade das consequências sobre o comportamento sexual manifesto do ser humano” (FREUD, 1905, p. 51). Prolonga esta nota,
Totem e Tabu: um contraponto cultural às errâncias do sexual
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 313-322, 2014
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com novo acréscimo em 1920, reportando-se a Ferenczi, que faz a distinção entre “homoerotismo de sujeito, que se sente mulher e se comporta como tal, e
homoerotismo de objeto que é plenamente viril e que só troca o objeto feminino
por um objeto do mesmo sexo” (Ibid, p. 52).
Há, portanto, que distinguir entre se sentir mulher e se sentir homem e desejar um
homem. O personagem do filme (Laurence anyways, 2012) sobre o qual queria
discutir com vocês, é um homem que não se sente mulher mas tem o desejo de ser
mulher, embora não deseje homens e sim mulheres, ao mesmo tempo que tem horror das características masculinas de seu corpo e aversão por seus genitais.
Laurence, o personagem, quer ser uma mulher, embora o seu desejo sexual não
esteja voltado para homens; a sua vida amorosa é com mulheres, em particular
com Fred, com quem vive um intenso e tumultuado amor.
Mas, antes de voltar a Laurence, quero chamar a atenção, na passagem de Freud
que acabo de evocar, para o que ele chama de base original (forma original do
sexual), também nomeado por ele de predisposição perverso-polimorfa da sexualidade infantil. Esta é a sexualidade não só da criança, mas do que em Freud é o infantil
e que em seu pensamento coincide, essencialmente, com o inconsciente.
Freud faz assim uma descoberta radicalmente inovadora sobre a natureza do
sexual no ser humano, em cuja base há que considerar um afrouxamento... “da
conexão entre pulsão e objeto” (1905, p. 54), uma vez que “a experiência dos casos considerados como anormais nos ensina que existe neste caso uma solda
entre pulsão sexual e objeto sexual, que arriscamos não ver por causa da uniformidade da conformação normal, na qual a pulsão parece carregar nela o objeto”.
Mais adiante, no segundo ensaio, ao final da descrição de uma predisposição perverso polimorfa na base da sexualidade humana, Freud escreve: “torna-se finalmente impossível não reconhecer na igual predisposição a todas as perversões
um traço universalmente humano e original” (Ibid, p. 119).
Note-se que os casos considerados como anormais correspondem ao título do primeiro dos Três ensaios, dedicados às Aberrações sexuais. Gribinski (1987), em
seu prefácio aos Três ensaios, diz que o termo Abirrung, para aberrações, tem um
sentido mais nuançado em alemão, e que não tem o sentido normativo, nem, secundariamente, reprovador que tem em francês [...], como em português. É uma palavra
que tem o sentido de errância, perda do caminho, desorientação, e que Irre, do qual
deriva, significa perplexidade.
Consultei um dicionário alemão-português de bolso e outro alemão-francês. De
fato, abirren, significa errar (de errante), perder-se, desviar, etc. Abirrung, perdido, desviado, e (somente) no sentido figurado, aberração. São termos, deste campo se-
319
Luis Carlos Menezes
mântico, apropriados para evocar o irredutível descompasso que marca o sexual
em relação à vida funcional, lógico-operatória do auto-conservativo, nele residindo a margem incerta em que se movimentam os desejos, as fantasias, os
sonhos, em suma, tudo o que há de vivo em nós.
Ante as ambiguidades encontradas pela psicanálise nas sexualidades, seja dos
homens seja das mulheres, eu afirmei antes para vermos em que isto ia resultar,
na busca da enquete freudiana dos Três ensaios. A meu ver, resulta exatamente
nesta base original, universal, da perversão polimorfa das pulsões, as quais vão
sofrer transformações sublimatórias, recalques, vão engendrar sintomas, sonhos
e transferências nas análises como nas religiões, impregnando todas as realizações humanas, estão presentes inclusive, óbviamente, nos desejos sexuais e
amorosos de cada um. É no complexo de Édipo, de que falamos, que cada um vai
encontrar, nestes destinos pulsionais, as suas possibilidades de ser na vida, assim como os seus impasses.
Laurence, aos 35 anos, diz a Fred, a mulher com quem vive, que desde sempre ele
quis ser mulher. Não se reconhece no corpo e na identidade de um homem: isto não
sou eu... eu roubei a vida dessa pessoa. De quem, pergunta a mulher: Da pessoa que
eu nasci para ser (não um homem e sim uma mulher). Num diálogo com a mãe,
esta lhe diz que ele se vestia como mulher quando era criança e que ela não o via
como filho e sim como filha.
Já com o pai, não há diálogo, pois este aparece inerte numa poltrona assistindo
televisão e quando o filho tenta falar com ele, sem desviar o olhar da televisão, o
pai lhe diz: espere o intervalo.
Pouco antes de falar para a mãe sobre o seu desejo de se tornar mulher, ele
pergunta como ela tem passado os dias dela, o que tem feito além do trabalho
rotineiro e, diante do vago das respostas, pergunta sobre o que ela faz com papai,
para ouvir em retorno, nada de especial. Ele insiste, perguntando se ela não deseja
voltar a pintar.
O filme se estende por um período de dez anos da vida deste homem e o eixo é a
sua relação amorosa com Fred, com quem, no começo, já está há dois anos. Visivelmente se entendem bem, mantendo uma cumplicidade amorosa divertida e
permeada de erotismo que se mantém intacta ao longo dos dez anos. Ela, passado o susto, decide ajudá-lo nesta busca, a qual ele diz ser tão vital para ele, de ser
mulher, e compartilha com ele esta metamorfose. Mas as reações de
estranhamento social e os incidentes que se sucedem tornam, para ela, insuportável se manter ao lado dele, sem falar que a mulher (em quem ele quer tornar-se)
Totem e Tabu: um contraponto cultural às errâncias do sexual
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 313-322, 2014
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vai ocupando toda a vida entre eles. Acabam se dando conta de que não têm rido
mais. Ela casa com outro homem e tem um filho com ele.
Laurence, professor de literatura, torna-se um poeta, escritor conhecido. Passa
sua vida escrevendo cartas que não envia para Fred, até que anos depois lhe
manda um livro seu e eles voltam a ficar juntos por um tempo. Mas acabam se
separando. Voltam a ter novo encontro em que à pergunta dela sobre se ele tinha
se arrependido, se tinha valido a pena sacrificar a felicidade deles, ele diz: Eu não
me arrependo de levantar de manhã e ver o reflexo no espelho que eu sempre quis ver.
O que mais me intriga neste personagem é que este tornar-se mulher apresente-se
a ele como uma necessidade tão premente, tão essencial, a ponto de ser mais
importante que uma vida amorosa na qual estava intensamente envolvido, motivo de felicidade para ele, sem falar nos prejuízos que trouxe para a sua vida
profissional – era professor de literatura, fora demitido ficando sem nada, além
da rejeição social a que é exposto quando se apresenta em público travestido.
Intrigado, mas sem resposta, a ideia de sinthome, desenvolvida por Lacan no seminário de 1974-1975, pareceu-me como um ponto de partida possível. Encontrei apoio no livro de Morel (2008), analista que em um certo número de casos
seus encontrou neste desenvolvimento de Lacan um recurso mais efetivo para
pensá-los, do que no modelo anterior da metáfora paterna, em que intervém o
que o autor chamou de Nome do Pai como um significante transcendente e universal (LACAN,1957-1958). Já o sinthome “é abordável em cada caso, singularmente”
(MOREL, 2008, p. 8). Este seria, sendo breve, uma formação sintomática que teria
a função de operar como barreira contra o incesto, em cuja base está o gozo
materno, tendo-se presente que o sujeito só pode se constituir como sujeito de
desejo com as garantias desta barreira.
Fiquei, por enquanto, com a hipótese que ser mulher poderia ter tido a função de
sinthome para Laurence: tornar-se mulher sendo a condição para inserir-se numa
vida desejante afirmativa (Isto sou eu) por sua função demarcadora do desejo
materno. A única condição para ser alguém junto à mãe era poder sustentar um
diálogo de mulher para mulher como a do encontro em que ele diz a ela o seu
amor edípico, você está linda, o que só podia chegar a ela desde um filho-filha, e
que ela acaba tomando uma expressão em que se anima ao lhe responder você
também está linda.
O movimento de Laurence em sua metamorfose foi não só auto-terapêutico,
possibilitador de uma condição em que se apropria de sua vida, por assim dizer,
mas parece ter reavivado na mãe a sua libido, o seu desejo de viver, pois ela
voltou a pintar e rompeu a relação amorfa com o marido. Num gesto significati-
321
Luis Carlos Menezes
vo, ela dá de presente a Laurence um pequeno quadro pintado por ela, como em
retorno ao presente que ele dera para ela, no dia em que decidiu começar a
travestir-se, pincéis para pintar feito de pelo de zibelina.
O seu desejo de ter a mulher que amava, Fred, assim como um filho com ela (e
que ela abortara sem ele saber) só poderia se concretizar se esta pudesse ficar
com ele e aproveitar a vida, a nossa história, o nosso amor que nada e ninguém podem
estragar, como ele diz a ela. No que ela já tinha vivido, o custo de manter a relação com ele era excessivo, e ela lhe responde: Não vou estragar a minha vida para
você se encontrar. O preço era, de fato, muito alto ao que parece principalmente
devido ao estranhamento e rejeição social, embora fique a pergunta sobre a vida
sexual deles. Mesmo dez anos depois, no entanto, parece haver um vivo erotismo
no convívio dos dois e, em algumas falas, referências a terem feito sexo.
O avanço social rápido e visível de uma crescente liberdade para a diversidade de
configurações sexuais, relacionais e familiares, nas culturas ocidentais, está começando a confrontar a clínica psicanalítica com a diversidade vislumbrada por
Freud nos Três ensaios, e fortemente afirmada em suas descobertas sobre a natureza indeterminada a priori do sexual. Sempre que diminua “a inibição autoritária exercida pela sociedade [...]” afirma ele, referindo-se à homossexualidade,
poder-se-á ver que “onde a inversão não é considerada um crime, ela corresponde
plenamente às tendências sexuais de um número não negligenciável de indivíduos” (1905, p. 174). Com a evolução atual dos costumes, das leis e das mentalidades, no que Freud chamou de trabalho da cultura (Kulturarbeitung), apresentam-se hoje novos horizontes e novos desafios para a psicanálise na medida em
que estas configurações se farão presentes para nós através das pessoas que
buscam a nossa escuta e que nos levarão com certeza a um entendimento mais
fino e sutil do sexual.
Totem and Taboo: a cultural counterpoint to errant sexual behaviors
Abstract: As a starting point, the author uses Freud’s discovery that human sexuality is a priori
indeterminate in its modalities and in its objects, allowing, from the very beginning, for
incestuous relationships in the family circle or with the nearest relative. Hence, there inevitably
comes the prohibition against incest as an essential way to organize sexual behavior, hinged
upon the Oedipus complex that revolves around the issue of castration. The psychic structure
arising therefrom leads to the construction of sexed identifications, of sexual orientation, and
of the ideals of the self. The character in a recent movie, who wants to be a woman, although
his sexual and affective desires are directed toward women, is the subject of debate, based on
Lacan’s late conception of the sinthome as the way out of the Oedipus complex.
Keywords: Castration. Culture. Desire. Oedipus complex. Sexuality.
Totem e Tabu: um contraponto cultural às errâncias do sexual
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 313-322, 2014
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Referências
LAURENCE anyways. Direção Xavier Dolan. Canadá: Imovision, 2012. 168 min.
FREUD, S. (1905). Trois essais sur la théorie sexuelle. Paris: Gallimard, 1987.
. (1908). Des théories sexuelles infantilles. In: Oeuvres complètes. v. 8. Paris:
PUF, 2007.
. (1913). Totem et tabou. Paris: Gallimard, 1993.
. (1920). Au-delà du principe de plaisir. In: Oeuvres complètes. v. 15. Paris:
PUF, 1996.
. (1923). L´organisation génitale infantile. In: Oeuvres complètes. v. 16. Paris:
PUF, 1991.
. (1931). De la sexualité féminine. In: Oeuvres complètes. v. 19. Paris: PUF.
GRIBINSKI, M. Préface. In: FREUD, S. Trois essays sur la théorie sexuelle. Paris:
Gallimard, 1987.
LACAN, J. (1957-1958). Le séminaire, livre V, les formations de l´inconscient. Paris:
Seuil, 1998.
MOREL, G. La loi de la mère: essai sur le sinthome sexuel. Paris: Economica, 2008.
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Luis Carlos Menezes
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05418-000 Pinheiros – SP – Brasil
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Marco Aurélio Crespo Albuquerque
As Ideologias e os Estados
Mentais Ideológicos na Prática
Clínica
Artigo
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
Psiquiatra e Psicanalista. Membro Associado da
SBPdePA e da IPA. Analista Didata da SBPdePA.
Resumo: O autor examina do ponto de vista psicanalítico o conceito de ideologia, e aborda a
presença e o papel que esta desempenha na mente dos pacientes que chegam à sala de análise, enfatizando as relações existentes entre a ideologia, como fenômeno consciente, e os
significados inconscientes profundos que ela tem para cada pessoa. Sugere, a partir das evidências clínicas destas ligações, que as ideologias necessitam ser investigadas e compreendidas de forma mais ampla na vida de quem procura tratamento. Finalmente o autor diferencia
ideologia, enquanto sistema de ideias universalmente presente, daquilo que denomina estados mentais ideológicos, e propõe que estes se assemelham ao que a psicanálise conhece
como uma organização patológica da personalidade, um estado mental que serve à sobrevivência de um self ameaçado de desintegração, ou que representa uma tentativa desesperada
de reparação de um self já muito fragmentado.
Palavras-chave: Estados mentais. Ideologia. Psicanálise clínica.
Introdução
Na globalizada diversidade multicultural, uma espécie de marca da vida moderna nas sociedades ocidentais, todos os tipos de crenças, costumes e ideologias
parecem naturalmente justificados ou vistos de forma politicamente correta como
um mero exercício de liberdade pessoal, uma escolha tomada como consciente e
fruto do livre arbítrio, não necessariamente vinculada a significados psicológicos mais profundos. Tudo se tornou aceitável e pouco ou nada se questiona da
função que os sistemas de pensamento e certas formas de agir no mundo possam desempenhar na dinâmica psíquica de uma pessoa, de um grupo, ou mesmo da sociedade como um todo. Prolifera na sociedade ocidental moderna uma
atitude, individual e social, de um certo embotamento mental para os significados não manifestos. Como tudo está à vista, o que poderia ser símbolo transformou-se em ícone.
As Ideologias e os Estados Mentais Ideológicos na Prática Clínica
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 323-336, 2014
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Como consequência disso, proliferam visões de mundo animistas, mágicas e
racionalistas, que convivem entre si às vezes sem qualquer contradição aparente e tornam-se objetos próprios para serem idealizados e consumidos, atacados
ou defendidos, mas não para serem pensados e compreendidos. Assim, pessoas
acreditam simultaneamente em florais de Bach, em cristais egípcios da felicidade e do amor, em búzios que predizem negócios milionários, em terapias de vidas
passadas, em igrejas universais e em outras nem tanto, em determinismo biológico, médico ou psiquiátrico, travestido de ciência e assim por diante. Eventualmente até a psicanálise é vendida como parte do pacote que trará a felicidade
desejada. No mercado persa das ideias, vende mais quem grita mais alto ou
embrulha melhor seus pacotes.
Talvez esta seja uma resposta necessária e defensiva contra a crescente complexidade da vida moderna e ao sem número de estímulos que esta inflige ao aparelho psíquico, pois viver hoje parece ter se tornando algo cada vez mais fluido,
complexo e sem a segurança das certezas de antigamente, quando os bons eram
bons, os maus eram maus, Deus e o Diabo os dividiriam no Juízo Final, e assim
imperava uma certa ordem milenar, diminuindo o caos da angústia e das incertezas. Freud, Galileu, Darwin, entre outros, complicaram esta ordem estabelecida
de coisas, demolindo com ideias revolucionárias o narcisismo de quem se considerava regente de suas próprias emoções, no centro do universo, à imagem e
semelhança de Deus. Parece que desde então uma grande quantidade de angústia, fenômeno primariamente pessoal, vem sendo progressivamente liberada e
experimentada no meio social, e vive-se em busca de neutralizá-la ou descarregála a qualquer preço.
Uma das manobras defensivas utilizadas para lidar com a angústia, em nível
individual ou grupal, é o retorno ao pensamento mágico, a adesão a crenças
irracionais ou, o seu inverso, às ideologias racionais que obturem a ferida narcísica
das incertezas e produzam um estado mental/social ideal, no qual as faltas possam ser justificadas, compensadas ou nem mesmo sentidas.
Meu interesse nesse trabalho é, do ponto de vista clínico, mostrar como chegam
ao consultório algumas destas ideologias vigentes, descrever algumas das relações existentes entre a ideologia consciente e os significados dinâmicos profundos que têm para os pacientes, e reafirmar – a partir das evidências clínicas
destas ligações – como as ideologias necessitam ser investigadas e compreendidas de forma mais ampla na vida de quem procura tratamento.
Embora use o termo Ideologia ao longo do texto, em concordância com os autores citados, no final proporei uma diferenciação, que considero útil para a clínica
psicanalítica, entre uma ideologia e o que denomino estado mental ideológico.
325
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
As ideologias na sociedade e na clínica
Muitos autores de diferentes concepções teóricas têm analisado o conceito de
ideologia desde suas origens no pensamento ocidental bem como as características que as formas ideológicas assumem e o seu papel na vida social e política
de pessoas e grupos. No entanto, estas análises dos aspectos filosóficos, políticos
e sociais deixam em aberto um interessante campo de pesquisa, que falta a estes estudos, que é o papel das ideologias na vida mental de cada um de nós,
campo no qual nós, psicanalistas, podemos dar uma pequena contribuição através da visão de mundo oferecida pela psicanálise. As ideologias, e seu estudo,
têm vários pressupostos, ou conjunto de pressupostos, diferentes marcos teóricos, mas nenhum deles parece levar em conta que temos uma vida inconsciente
por trás de escolhas aparentemente conscientes.
De acordo com Thompson (2009), um dos elementos-chave para o surgimento
das ideologias na era moderna, além do surgimento do capitalismo industrial,
foi o declínio da religião e da magia, que prepararam o campo para a emergência
de sistemas de crenças seculares, ou ideologias, que serviam para mobilizar a
ação política e social no mundo sem referência a valores ou seres de outro mundo.
Acrescenta ele que foi no espaço aberto da esfera pública que o discurso das
ideologias apareceu, constituindo sistemas organizados de crenças que ofereciam intepretações coerentes dos fenômenos sociais e políticos e que serviam para
mobilizar movimentos sociais e justificar exercícios de poder. As ideologias, portanto, ofereceram marcos referenciais de sentido que possibilitaram às pessoas
se orientarem num mundo caracterizado pelo sentimento de falta de fundamento, uma sensação produzida pela destruição de estilos de vida tradicionais e
pela morte de cosmovisões religiosas e míticas. Thompson propõe que as ideologias se caracterizariam por serem totalizantes, utópicas, apaixonadas, dogmáticas.
Estas características, a meu ver, sugerem que as ideologias funcionam como novas
formas de se defender da falta de sentido na vida, correndo o risco de se transformarem em novas religiões, com o mesmo dogmatismo das antigas crenças. No
entanto, os sistemas de ideias, um dos significados da palavra Ideologia, já eram
constituintes intrínsecos da mente humana antes mesmo da era das ideologias
(final do século XIX e início do século XX). Por isso, quando alguém ingressa no
espaço analítico, o faz trazendo consigo os diversos registros mentais (sensoriais, afetivos, cognitivos, sociais, políticos, etc.) de suas experiências anteriores,
incluindo necessariamente aqueles organizados e representados em seu sistema de pensamento na forma de ideologias. Usarei neste trabalho o termo ideolo-
As Ideologias e os Estados Mentais Ideológicos na Prática Clínica
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 323-336, 2014
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gia com o sentido psicanalítico amplo que lhe dá Baranger (1994, p. 156), de um
“[...] sistema de ideias abstratas, conscientes ou inconscientes, cuja função é dar
conta do real e da ação do homem nesse real”, mas também como uma forma
particular de experiência mental que reproduz relações objetais primitivas, expressando fantasias inconscientes, e ajuda a lidar com as ansiedades, especialmente as de caráter persecutório. A menção que ele faz a ideias inconscientes
remete diretamente à noção de fantasia como elemento fundamental da vida
psíquica.
A senhorita X e a adesão à ideologia radical de seu partido político, a senhorita Y
e sua forte ligação com a igreja e o senhor Z, que é vegetariano e naturalista
convicto, logo me vêm à mente como exemplos de pacientes com poderosos
motivos inconscientes para suas escolhas pretensamente racionais, ideológicas,
todas elas articuladas com seus respectivos desenvolvimentos emocionais, através de seus mecanismos de defesa predominantes, suas relações de objeto e
fantasias inconscientes.
Comecemos pela senhorita X. Sempre que ela, uma mulher solteira de 25 anos
que procurou tratamento durante um longo período de depressão, esgrimia um
discurso político de militante da esquerda radical durante as sessões, me estimulava a pensar que funções esta convicção ideológica tão arraigada, e intensamente defendida como criadora de um ideal pessoal e social, desempenhava em
sua vida mental e na relação transferencial comigo, pois em geral servia mais
aos propósitos da resistência do que de comunicação, e principalmente atacava
suas capacidades de pensamento. Filiada a um partido político proprietário de
várias verdades definitivas, com uma cartilha ideológica rígida e maniqueísta
que se articulava com as ideias de sua mãe, X recriava assim uma parte de sua
relação objetal com ela, e encontrava no partido as mesmas explicações simplistas
e definitivas que recebia da mãe a respeito das complexidades da vida. Não se
pode confiar nos capitalistas ricos, pois eles só querem explorar os pobres e depois jogá-los
fora tinha para ela o mesmo sentido e a mesma sonoridade intrínseca do que sua
mãe lhe dizia na infância: Não se pode confiar nos homens, pois eles só querem sexo e
depois te jogam fora. Tal linguagem ela entendia bem e seguia à risca, tanto no
partido quanto nas relações afetivas com os homens.
A possibilidade de, através do tratamento, ter acesso a uma vida mais rica (mental e economicamente falando) a atemorizava mais do que estimulava, pois
ameaçava, entre outras coisas, romper a identificação com esta dupla pobreza
(dos pais e da ideologia partidária), dando-lhe acesso a coisas que jamais tivera a
oportunidade antes. Como não poderia deixar de ser, esta era uma importante
fonte de resistências e ataques ao tratamento e à própria capacidade de pensar.
Temia que eu, em meu consultório privado, situado num bairro de classe alta,
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Marco Aurélio Crespo Albuquerque
mexesse em sua cabeça e colocasse nela outros pensamentos, de forma que a
fizesse perder sua pureza ideológica e lhe introduzisse pensamentos burgueses,
valores dos ricos. Ou quem sabe temia apenas a posse de pensamentos e valores
mais enriquecidos?
Tendo vivido uma infância e adolescência muito pobres e com necessidades nunca
satisfeitas, sua raiva dos ricos e sua demanda por uma igualdade social utópica
encobria, entre outras coisas, uma profunda inveja daqueles que não passaram
pelas vicissitudes que ela enfrentou e foram atendidos em suas demandas de
continência e carinho, além dos confortos materiais aos quais ela pouco teve
acesso. É importante acrescentar que embora seu pai fosse de origem humilde e
tenha morrido pobre, além disso ele era estéril, sendo ela na verdade filha de um
homem muito rico, que havia sido amante de sua mãe por muitos anos, fato
mantido em segredo pelos pais, e que só lhe foi revelado pela mãe no final da
adolescência, após a morte de quem achava ser seu pai. O pai biológico nunca a
sustentou economicamente, nem nunca se aproximou dela afetivamente. Assim, uma queixa sua era de que meus colegas de faculdade eram todos de famílias
ricas, tinham tempo de estudar e por isso se saíam melhor. Eu tinha que trabalhar e
estudar ao mesmo tempo, não tive as mesmas oportunidades, ganhava uma nova dimensão de compreensão, quando conectada com sua história pregressa.
Seu sistema ideológico, altamente idealizado e acreditado por ela como a solução para todos os problemas sociais da humanidade, revelava assim parte das
suas relações de objeto primitivas, servindo também como uma eficaz defesa
contra o conhecimento dos segredos de sua origem familiar, as dores, as frustrações e as raivas aí contidas. A inveja e a raiva dos colegas que tinham pais ricos e
podiam conviver e usufruir deles foi transformada em áspera crítica social contra os ricos que maltratavam os pobres, que apenas os usavam (como acreditava
que seu pai biológico, um rico capitalista, tinha usado a mãe proletária). Além
disso, inconscientemente identificada com esta mãe proletária que fazia sexo
com um capitalista, tinha sua vida amorosa marcada por envolvimentos fracassados com homens casados e bem situados economicamente, exatamente como
aquela.
Sua adesão a uma ideologia que externamente lhe possibilitava vivenciar e expressar aspectos de seu mundo interno, mais do que uma escolha consciente,
tinha sido vitalmente necessária, pois além de evitar a tomada de conhecimento
consciente de aspectos muito dolorosos de seu mundo interno, também a fazia
sentir-se pessoal e socialmente importante, numa posição bem aceita e integrada em seu partido político e grupo de amigos, sem que isso logicamente solucionasse seus importantes conflitos inconscientes.
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Psicanálise v. 16 nº 2, p. 323-336, 2014
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Segundo Baranger (1994), a ideologia, como todo fenômeno psíquico, expressa
mais do que ela quer expressar conscientemente. Ela tem um conteúdo latente
que expressa como o sonho, como o brincar, como o sintoma neurótico, ou como
qualquer outro fenômeno mental, as fantasias inconscientes, relações objetais,
e pode ainda ser vivida ela mesma como um objeto para o self do sujeito. Além
disso, desempenha funções defensivas, ou de restauração do objeto, ou ainda de
um sistema regulador entre as diferentes estruturas mentais (id, ego e superego).
Diz Baranger (1994, p. 160) que “o ego, em suas funções de conhecimento e ação,
aparece como o centro privilegiado do processo ideológico” e que “[...] a ideologia
é administrada por ele [ego]”. Significa que o ego é o local desta articulação entre
os aspectos conscientes e inconscientes de uma ideologia, mas poderia significar
também que uma ideologia representa a expressão de um aglomerado de elementos inconscientes do ego, que chegam à consciência na forma de um sistema de ideias.
A ideologia se origina em parte também no superego, como se deduz pelo papel
restritivo e absoluto que certas ideologias desempenham. Baranger propõe uma
classificação rudimentar das ideologias em muito persecutórias ou idealizadas e
ideologias menos absolutas, mais em contato com o real. Em outras palavras, a
ideologia vai então assumir características ditadas pelo tipo de superego que o
sujeito possui e pelo grau de desenvolvimento emocional alcançado.
Sobre a função defensiva de uma ideologia, diz Baranger (1994, p. 162) ainda que
“[...] é uma das maneiras de lutar contra a ansiedade persecutória. Muito frequentemente, o conteúdo manifesto do sistema ideológico dá diretamente um
lugar aos objetos persecutórios, o que permite caracterizá-los, personificá-los e
controlá-los”. Isto está de acordo com a natureza idealizada das ideologias, e
bem sabemos o quanto um objeto idealizado torna-se ao mesmo tempo um objeto persecutório.
Um novo exemplo das raízes inconscientes de uma ideologia pode ser encontrado na história da senhorita Y. Ela iniciou seu tratamento aos 30 anos, ainda solteira e virgem, por sentir-se incapaz de estabelecer uma relação afetiva duradoura e profunda com um homem, ou sequer manter relações sexuais genitais
apenas. Estava muito angustiada pois se sentia tentada a pecar com seu namorado, o que a enchia de desejo e de temor por contrariar o sistema de ideias religiosas no qual tinha sido criada. Nascida numa família muito católica e fechada,
governada por uma avó materna severa e puritana, cresceu pedindo a proteção
dos anjos e temendo a ira de Deus caso tivesse maus pensamentos ou praticasse
más ações, especialmente as de natureza sexual. Quando a avó não a estivesse
vigiando, Deus certamente estaria, como aquele que tudo vê e tudo pune.
329
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
Na adolescência passou a ter crises severas de ansiedade e agorafobia
desencadeadas a partir de um orgasmo masturbatório no chuveiro, acompanhado de pensamentos impuros de natureza sexual. Ficou incapacitada de estudar,
não conseguia sair de casa e fisicamente sentia-se muito mal, com fortes sintomas fóbicos e ansiosos. Desenvolveu também sintomas e rituais obsessivo-compulsivos significativos, ligados à limpeza física e à alimentação, e também às
práticas religiosas purificadoras da alma.
Sua devoção à Virgem Maria e seu temor e obediência à Santa Madre Igreja nas
proibições sexuais recriavam e expressavam assim as relações objetais precoces
com figuras maternas persecutórias poderosas de sua infância (mãe e avó), bem
como as repressões e os temores ligados aos instintos sexuais sempre presentes
e exigindo satisfação plena. Por outro lado, a ideologia religiosa familiar desempenhava a função de manter racionalmente justificados os rituais obsessivos,
pois serviam de atos de purificação para o que chamava de as impurezas de sua
mente (repleta de fantasias eróticas e agressivas). Essas partes sujas do self eram
mantidas fortemente dissociadas e permanentemente projetadas, vividas
persecutoriamente como pecados ameaçadores, dos quais devia pedir perdão e
se purificar continuamente mediante os rituais obsessivos.
Através da ideologia religiosa e suas práticas (confissões, missas, orações, etc.)
procurava manter-se sempre numa espécie de assepsia interior, pedindo perdão
continuamente pelos seus aspectos destrutivos e sádicos, aplacando um superego
cruel e punitivo, mas com isso empobrecendo progressivamente sua vida mental, no que, aliás, sem querer, seguia à risca outra característica de sua ideologia,
pois como diz uma passagem bíblica muito conhecida: Bem-aventurados os pobres
de espírito [...].
Sendo a fantasia a representação mental do instinto, como diz Isaacs (1982),
então a ideologia, ao expressar fantasias inconscientes e permitir a liberação dos
instintos, funciona como condição e meio aceitável para o ego dar vazão às demandas pulsionais do id, numa forma final modificada pelas exigências do ambiente e pela interferência do superego. Assim, penso que a forma final do sistema ideológico escolhido terá a ver com a maior ou menor flexibilidade do ego e
com o tipo de superego do sujeito. Quanto mais rígido e cruel for o superego,
mais imporá ao ego um sistema de ideias restritivo e autoritário, com pouca
capacidade de negociação das diferenças, resultando em ideologias mais rígidas,
mais conservadoras ou mais autoritárias, mais afastadas do real.
Numa perspectiva das relações de objeto, pode-se dizer que um sistema ideológico mais rígido não consegue ver a realidade de uma forma abrangente e integrada, pois sempre toma a parte pelo todo, colocando o objeto parcial idealizado
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no lugar do objeto total, e, com isso, permanece estaticamente radicado, e
radicalizado, numa posição mais primitiva do desenvolvimento do aparelho psíquico, fugindo do crescimento e mutilando a realidade e as vivências através de
poderosas dissociações, necessárias para evitar o contato entre diferentes partes
do self e a sua integração. Pode-se inferir então que a rígida adesão a uma ideologia muito absoluta é indicativa da presença de aspectos mais primitivos do ego
e/ou do superego em funcionamento no self total.
Tomando emprestada de Bion (1994) a ideia de que todos somos portadores de
partes psicóticas da personalidade, sugiro que são estas partes que se tornam
assim naturalmente atraídas pelas ideologias mais restritivas e dissociadas da
realidade, pois justamente aí encontram uma ligação com as partes primitivas
do self capaz de justificá-las, com o benefício adicional de uma possibilidade de
expressão que seja socialmente aceita.
Por exemplo, alguém assim como Z, 30 anos, casado. Sua ideologia alternativa
naturalista, que incluía ser um vegetariano radical, praticar muita ioga e corridas tipo maratona (quando buscava a exaustão física e a eliminação das toxinas
negativas pelo suor), contraditoriamente associava-se ao uso de álcool e drogas e
de uma vida desregrada nos demais cuidados com sua saúde. Esses aspectos tão
contraditórios ressoavam dentro de mim como ligados a um contexto mais amplo de caos e confusão mental, a uma busca desesperada de alguma identidade,
que ele parecia não possuir, parecendo sua personalidade a expressão de um
tipo de colagem malfeita e mal costurada. Afirmava ter aspirações ascéticas e
místicas, que incluíam o desejo de mudar-se para o Oriente e viver pobremente,
dormindo no chão sobre uma esteira de palha, da forma mais minimalista possível.
Em determinada época chegou a viver assim, pois vendeu todos os seus livros e
discos, livrou-se dos demais bens materiais que possuía no apartamento e ficou
dormindo um ano num colchão no chão, fazia seis horas de ioga por dia, mas
nunca criou coragem de ir para a Índia, local idealizado de seu nirvana sobre a
Terra. Da mesma maneira, esperava fantasiosamente da psicanálise alguma experiência mística reveladora, mas também não teve coragem de ir muito longe
no tratamento, abandonando-o por ocasião do nascimento de seu primeiro filho,
fato que o havia deixado muito ambivalente, e logo quando havia conseguido
um bom e bem remunerado emprego na sua área de formação, na mesma empresa onde seu pai era um dos diretores. Ao tornar-se ele mesmo pai, teve que
confrontar-se com o sentimento de ódio intenso e marcante que nutria por aquele,
especialmente da ajuda que lhe dava desinteressadamente (na verdade odiava o
amor do pai ou, mais especificamente, a capacidade que este tinha de amar e
construir).
331
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
Demonstrava um forte ódio invejoso também dos irmãos, pois levavam vidas
muito diferentes da dele, descritos como felizes e socialmente bem postados
enquanto ele, apesar de ter sido criado numa família abastada, possuía o curso
superior e de falar fluentemente outras línguas, desqualificava e criticava com
acidez e agressiva ironia tudo isso. Casara-se com uma mulher bem mais velha e
socialmente bastante inferior (possuía apenas curso primário e era cozinheira
de um restaurante vegetariano frequentado por ele), com a qual morava num
pequeno apartamento alugado, pago pelo pai, e dirigia um carro antigo, caindo
aos pedaços, jamais tendo conseguido manter um bom emprego ou ter tido prazer genuíno ou criatividade em qualquer atividade produtiva.
Este ódio invejoso de um pai generoso e cuidador logo se estendeu para mim na
transferência, e a agressividade com que defendia suas convicções naturalistas
(sem que eu jamais as tivesse atacado, ou questionado), e a forma como as usava
contra mim e tudo que lhe dizia, por não reconhecer em mim um iniciado na sua
ideologia, portanto um adversário. Esta ideologia funcionava como via de descarga para a raiva e ao mesmo tempo lhe dava a sensação de ser alguém diferente da
massa, e esse sentimento de ser especial colaborava para lhe dar alguma coesão
num self precariamente organizado e de funcionamento predominantemente
em conflito com a realidade. Sentia-se superior e poderoso por ser tão radical na
questão alimentar e pelo seu completo desapego aos bens materiais, tão diferente dos demais que isso o fazia sentir-se melhor do que todos os outros (os pais, os
irmãos, eu). Ou, quem sabe, fazia com que se sentisse apenas vivo.
Este terceiro material clínico guarda semelhanças, embora menos drásticas em
seu desfecho, com uma história verídica publicada há alguns anos em livro no
Brasil, com o título de Na natureza selvagem (1998), que narra a saga de um jovem
norte-americano cujo comportamento, provavelmente uma forma inicial de
esquizofrenia, passou notavelmente despercebido até sua morte brutal, por inanição e congelamento no interior de um ônibus abandonado no gelo do Alasca.
Este jovem, chamado Chris Candles, começou a demonstrar durante o curso superior, no qual se graduou com notas altas, indícios sugestivos de deterioração
mental, o que, no entanto, foi considerado como característica peculiar de sua
ideologia pessoal, ligada a um retorno ao primitivismo e à vida em íntima ligação
com a natureza inóspita, inspirado nos romances de Jack London, novelista americano que também possuía aspectos extremamente invejosos e destrutivos.
Assim como o paciente do terceiro exemplo clínico, ele também se desfez de
seus bens materiais, enterrando seu carro no deserto e queimando todos seus
documentos de identidade, fato em si bastante significativo. Sonhava em viver
em algum lugar distante – mais especificamente no Alasca – em completa comunhão com a natureza selvagem, sem contato com a civilização e alimentan-
As Ideologias e os Estados Mentais Ideológicos na Prática Clínica
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do-se apenas de caça e raízes comestíveis. Após a conclusão do curso, sumiu
sem dar notícia à família, perambulando a pé ou de carona pelos Estados Unidos
durante dois anos. Seus pais, cegos à percepção do filho – achado comum nas
famílias psicóticas – nunca perceberam a real condição dele e o próprio autor do
livro, ele mesmo muito identificado com o personagem idealizado, defendeu com
plena convicção a ausência de doença mental, e descrevia o jovem como um
aventureiro de espírito livre, que apenas tinha grandes diferenças de opinião
com seus pais, como alguém que apenas não compartilhava da ideologia burguesa deles. Novamente encontramos aí a doença mental e suas manifestações
confundidas com uma opção ideológica consciente.
Os estados mentais ideológicos
Bollas (1994), ao descrever o estado mental fascista (e não é o fascismo uma
poderosa ideologia, ainda hoje?), cita um precioso trecho de Hannah Arendt:
[...] nas ideologias se acham as sementes do totalitarismo porque elas afirmam
trazer [...] uma explicação total dos fatos, se divorciam de toda a experiência, a
que não lhes ensina nada de novo, insistem na possessão de uma verdade secreta e poderosa que explica todos os fenômenos e operam a partir de uma
lógica que ordena os fatos de modo tal que sustentem o axioma ideológico
(p. 156).
Ele acrescenta que só se alcança este grau de totalidade se a mente (ou o grupo)
não abrigam dúvidas. Estas, as incertezas e os autoquestionamentos, equivalem
à debilidade e devem ser suprimidas da mente para manter a certeza e a pureza
ideológica.
Para Bollas (1994), as diferentes partes do self e de objetos representados no mundo
interno funcionam como um sistema parlamentar que, mediante a cobiça, a
inveja ou a angústia, pode evoluir para um sistema interno menos representativo e, portanto, menos democrático. Todos nós estamos sujeitos a tais variações e
tentações autoritárias, naturalmente.
A esta altura desejo acrescentar algumas questões derivadas da ideia expressa
acima por Bollas: onde se situa, em nosso aparelho psíquico, a fronteira entre as
variações dinâmicas do democrático parlamentarismo interno e a adesão a uma
ideologia rígida e totalitária? Quais as implicações na prática clínica desta diferenciação? Até onde a ideologia está articulada com uma estrutura mais íntegra
do self e onde passa a expressar o funcionamento de uma parte bastante
desestruturada deste?
333
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
Embora não creia que existam respostas definitivas para as questões acima, penso
que quando uma ideologia é muito dissociada da realidade, ou torna-se muito
rígida e restritiva, alcança um outro status, que passarei a denominar de estado
mental ideológico, para diferenciá-lo de ideologia enquanto sistema de ideias universalmente presente. Apoio-me para isso na descrição que diversos autores fizeram sobre estados da mente – Meltzer (1979) e os estados sexuais da mente,
Rosenfeld (1968) e os estados psicóticos, Bollas (1994) e o já referido estado mental fascista, etc. Estado, neste sentido, é uma palavra que denota uma conotação
dinâmica em vez de estática, seja ela mais temporária ou mais permanente, de
uma forma da mente se estruturar e funcionar, de gerar afetos, pensamentos,
significados e ações, e de expressar as relações internas e externas de objeto,
dando assim um destino aos afetos e às pulsões de vida ou de morte.
O estado mental ideológico seria então aquele estado da mente no qual uma
ideologia está mais rigidamente estruturada, adquirindo um significado extremado na economia mental, tornando-se dominante de uma forma totalitária
sobre o aparelho mental, modelando a sua maneira os afetos, pensamentos e
ações do sujeito daí em diante. O estado mental ideológico cumpriria funções
semelhantes às da ideologia, porém com algumas diferenças de qualidade e intensidade, e com repercussões mais deletérias sobre a vida mental e a vida de
relação do paciente. Ele se originaria de dificuldades maiores ou rupturas nas
relações de objeto mais precoces, expressando assim fantasias mais arcaicas e
lidando principalmente com ansiedades persecutórias mais intensas e primitivas. Naquelas que seriam suas raízes egoicas, o estado mental ideológico – por
seu absolutismo e desprezo final pelo objeto – estaria associado a estruturas
predominantemente narcisistas.
No entanto, reelaborando o que diz Baranger acima, sobre a ideologia ser proveniente em parte do superego, acrescento que quando há a predominância de um
estado mental ideológico, este provém principalmente do superego e dentro dele,
especialmente de seus aspectos mais arcaicos, cruéis e punitivos, sendo esta
uma diferença marcante com relação à ideologia enquanto um sistema de ideias
universalmente presente. Pessoas são capazes de mudar de ideia. Já quem é controlado internamente por um estado mental ideológico precisa reafirmá-lo e
fortalecê-lo cada vez mais, justamente para que não mude diante dos ataques
recebidos, reais ou imaginários.
Para que este estado mental ideológico se mantenha, é necessário que os mecanismos de defesa empregados predominantemente sejam os mais primitivos,
baseados primariamente na cisão (tanto de impulsos quanto de objetos), na
idealização, na negação da realidade (interna e externa) e na onipotência (KLEIN,
1991).
As Ideologias e os Estados Mentais Ideológicos na Prática Clínica
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Portanto, enquanto as ideologias – principalmente aquelas mais conectadas à
realidade – serviriam mais às defesas do ego num self razoavelmente bem organizado, o estado mental ideológico serviria mais à sobrevivência mesma do self.
Ele representaria uma tentativa extrema de manter a coesão do self, através da
cisão radical de aspectos indesejados do self, sentidos como muito perigosos ou
letais, ou ainda uma tentativa desesperada de reparação de um self já há muito
fragmentado. Isto pode nos ajudar a compreender porque é tão difícil, e às vezes
mesmo impossível, alguém com tal configuração mental mudar de ideias.
Por outro lado, a serviço de um superego cruel, o estado mental ideológico pode
prestar-se como veículo, muitas vezes grupal, social ou politicamente aceito, para
atacar e destruir, dando assim livre vazão à inveja e à pulsão de morte presente
nestas condições mentais. Qualquer semelhança com as razões utilizadas pelos
terroristas para seus atentados insanos portanto não é mera coincidência.
Conclusão
Este trabalho é uma tentativa, centrada em achados comuns na clínica, de pensar e compreender um fenômeno conhecido de todos nós, que é a presença consciente de uma ideologia ou um estado mental ideológico nos nossos pacientes, o
impacto disto em suas vidas e no espaço analítico, onde se expressa na relação
transferência/contratransferência, e frequentemente se torna uma fonte importante de resistências ao tratamento, mais do que uma comunicação de ideias
diferentes. Por outro lado, somos também um objeto do paciente e a nós é atribuída uma determinada posição no seu sistema ideológico, e é bom sabermos
que sistema é esse e que posição é essa, para podermos entrar e sair dela com
flexibilidade, e assim abrir novas possibilidades de pensamento, a partir da
introjeção de um objeto diferente dos objetos originais, representados pelo sistema ou estado mental ideológico existente.
Como se pode ver nos exemplos clínicos anteriores, independente da estrutura
predominante ou da psicopatologia, em cada um o funcionamento do que a princípio parecia uma ideologia consciente de cada pessoa, indicava na verdade um
estado mental ideológico que cumpria complexas funções na economia psíquica
inconsciente. No tratamento destas pessoas este estado mental mais rígido e
restritivo apareceu a princípio como um sistema consciente e racionalmente articulado, que dificultava ou impedia o acesso a uma área necessitada de exame,
ao mesmo tempo em que comunicava que ali havia algo importante, que necessitava ser explorado. Esta é mais uma dificuldade técnica que se apresenta: como
podem estas pessoas, tão necessitadas e tão dotadas de certezas absolutas, tole-
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Marco Aurélio Crespo Albuquerque
rar que o analista crie espaço para dúvidas e perguntas, ao invés de concordar e
dar respostas certeiras e definitivas a partir de uma outra posição, provavelmente também sentida como ideológica pelo paciente?
E finalmente outra pergunta complicada, mas sempre necessária: Como podemos lidar melhor com as nossas ideologias, inclusive teóricas, para entrar num
estado mental mais livre e adequado à compreensão de quem busca nossa ajuda?
Ideologies and ideological mental states in clinical practice
Abstract: The author examines the concept of ideology from a psychoanalytic point of view,
and addresses the presence and the role it plays in the minds of patients arriving in the analysis
room, emphasizing the relationship between ideology, as a conscious phenomenon, and
dynamic deep meanings it has for every person, and reaffirm – from clinical evidence of these
links – how ideologies need to be investigated and understood more broadly in the lives of
those in demand for treatment. Finally the author differentiates ideology, while universally
present system of ideas, from what he called “ideological states of mind”, and proposes that
these resemble that psychoanalysis known as a pathological personality organization, a mental state that serves the survival of a self threatened by disintegration, or represents a desperate
attempt to repair a self already very fragmented.
Keywords: Clinical psychoanalysis. Ideology. Mental states.
Referências
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psicoanalíticas. Buenos Aires: Kargieman, 1994.
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THOMPSON, J. B. Ideologia nas sociedades modernas: uma análise crítica de alguns
As Ideologias e os Estados Mentais Ideológicos na Prática Clínica
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 323-336, 2014
336
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. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na
era dos meios de comunicação de massa. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
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Marília Amaro da Silveira Modesto Santos
O Ideal do Ego e as Paixões
Artigo
Marília Amaro da Silveira Modesto Santos
Membro Filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São
Paulo. Mestra pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Resumo: Este trabalho tem por objetivo mostrar a ligação entre o narcisismo e o superego
remontando à origem e aos diversos caminhos que o narcisismo pode tomar e o quanto esses
caminhos são determinantes na formação de um superego cruel ou protetor. Partindo do trajeto que Freud seguiu para definir o conceito de superego e utilizando alguns autores pós
freudianos, como por exemplo Chasseguet Smirguel, percorro um pouco a história do senhor
B que foi vivenciada nas sessões de análise.
Palavras-chave: Ideal do Ego. Narcisismo. Superego.
Quando narciso morreu, o lago de seu prazer transformou-se de receptáculo
de águas doces em poço de lágrimas salgadas, e as Orédeas vieram chorando
pelo bosque cantar para o lago para dar-lhe conforto; e disseram: – Não nos
admiramos de que chores desta maneira por Narciso, tão belo era ele. – Mas
Narciso era belo? – perguntou o lago – Quem saberia melhor do que tu? – responderam as Oréades. – Ele deitava-se às tuas margens e fitava-te, e no espelho de tuas águas admirava sua própria beleza. E o lago respondeu: – Mas eu
amava Narciso porque, quando ele se deitava em minhas margens e olhava
para mim, no espelho de seus olhos eu sempre via a minha própria beleza
refletida.
(Oscar Wilde – O Discípulo)
O que acontece com os estados de amor e paixão da alma humana quando esta
é assolada por sentimentos de ódio, rancor, desespero?
A palavra paixão vem do latim. Enquanto substantivo, passione indica uma agonia intensa e prolongada. Enquanto verbo, patior, significa sofrer (FERREIRA, 1995,
p. 101).
Seria sofrer por amor? Por quê?
Se são estes estados envolventes de paixão que impulsionam o mundo, a criatividade, a perpetuação da humanidade, o que leva muitas vezes tais estados a
serem entrecortados por críticas impiedosas, severas auto–recriminações, gra-
O Ideal do Ego e as Paixões
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 337-345, 2014
338
ves melancolias, relações sadomasoquistas, que deixam o sujeito aprisionado
em um pântano de lamúrias e desesperanças?
Certa vez ouvi uma frase de um autor desconhecido que dizia o seguinte: Apaixonar-se é enamorar-se pela igualdade; amar é poder se apaixonar pelas diferenças.
Seria então a paixão o abrigo de Eros e Thanatos vivendo em uma luta constante? Enquanto Eros luta pelo amor do outro, Thanatos impede este amor para não
perder o encantamento por si mesmo?
Os romances, mitos e até mesmo os contos de fadas nos contam histórias em
que o amor e ódio permeiam toda a trama do enredo. Por exemplo:
Em 1605, William Sheakspeare escreveu a peça O rei Lear inspirado em antigas
lendas britânicas. A peça trata da saga familiar de um idoso rei da Bretanha e
suas três filhas: Goneril, Regan, e a favorita Cordélia. O rei, ao dividir os bens,
pede às filhas que expressem a gratidão e o amor que sentem por ele. Goneril e
Regan afirmam que o amam mais que tudo na vida, mas justo a sua filha favorita, Cordélia, afirma que o ama simplesmente como uma filha, nada mais, nada
menos. Lear, extremamente ofendido, a deserda e a expulsa do reino. Mas as três
filhas se unem contra o pai, recusando-se a recebê-lo em suas casas. Lear, já
mostrando sinais de loucura, refugia-se em uma cabana, acabando completamente louco. Mas a trama não para por aí. Regan morre envenenada por Goneril
na disputa de um mesmo amor, matando-se em seguida. Cordélia e Lear são
condenados à forca pelo chefe do exército inglês. Lear, que já tinha se arrependido do que fez com a filha, tenta em vão salvá-la. Ele consegue matar o carrasco,
mas morre em seguida com Cordélia em seus braços.
Muitos anos depois, em 1985, Akira Kurosawa fez o filme Ran: os senhores da guerra baseado na história do rei Lear. A história trata de um senhor feudal de 70
anos, Hidedora, que decide dividir o reino entre seus três filhos: Taro, Jiro e Saburo.
Taro, o mais velho, seguindo a tradição do patriarcado japonês, torna-se o líder
do clã e recebe o primeiro castelo, centro do poder. Jiro e Saburo recebem, respectivamente, o segundo e o terceiro castelo. Mas Hidetora retém para si o título de
grande senhor para permanecer com os privilégios, sem se responsabilizar com os
deveres do cargo. Nos planos de Hidetora, Jiro e Saburo dariam apoio a Taro e os
três, unidos, manteriam as conquistas da família. Saburo contraria a ideia de seu
pai, mas Hidedora segue adiante com a decisão e o que ele vivencia é a destruição de sua família, a derrocada do poder e a violência descontrolada que atingiu
a todos. Ao presenciar o massacre que provocou, Hidetora enlouquece e vaga
pelas ruínas como um fantasma. Saburo e Hidetora reconciliam-se em vida, mas
339
Marília Amaro da Silveira Modesto Santos
ambos morrem quando faziam planos para desfrutar de uma convivência pacífica.
Vimos nestas duas histórias a luta entre Eros e Thanatos. Ambas têm como personagem principal um grande senhor que não aceita perder os privilégios – o rei
Lear, obrigando as suas filhas a recebê-lo em suas casas, mesmo quando elas já
estavam morando com os seus esposos. Hidedora se recusa a perder os privilégios de rei, exige permanecer o senhor do castelo. O reino (falo) não pode ser dividido
entre os filhos, não há renúncia.
O que me fez lembrar destas histórias foi a intensa lembrança delas enquanto
atendia o senhor B. Era como se o mundo mental dele fosse habitado por esses
personagens.
Trata-se de um senhor de 46 anos que me procurou devido a uma depressão
profunda. Atualmente ele está passando por um processo de separação litigiosa.
Tem dois filhos adolescentes. Quanto a sua família de origem, eram três irmãos.
O senhor B é o filho do meio. O mais novo morreu com 17 anos no fundo de uma
piscina porque ao treinar apneia (devido a um curso de mergulho) acabou pegando no sono. A família tinha uma holding. Eram três empresas. O senhor B
trabalhava em uma delas, o pai em outra e o irmão mais velho em outra. As
empresas que o irmão e o pai tomavam conta faliram, o que fez com que eles
fossem trabalhar com o senhor B, a contra gosto deste. As brigas entre os três
(porque o irmão não trabalhava e o pai defendia o irmão) foram ficando insuportáveis. Chegavam a rolar os três pelo chão. O senhor B disse ao pai que se o irmão
não saísse da empresa ele sairia. Como o irmão não quis sair, o senhor B decidiu
vender as cotas dele e com o dinheiro montar uma nova empresa. Segundo o
senhor B, a irmã da ex-esposa, por trabalhar no fórum, manipula o processo da
separação fazendo com que a juíza decrete um valor de pensão completamente
fora da sua remuneração atual. Por ele não ter este dinheiro já foi preso uma vez.
Mais tarde o pai e o irmão decidiram não pagar as cotas enquanto não saísse a
separação pelo fato dos bens dele estarem bloqueados devido ao litígio. Por este
motivo, o senhor B corre o risco de ser preso novamente.
O que vimos nessas três histórias foi um ego aprisionado em seu próprio
narcisismo – eu sou o objeto de minha própria admiração. Assim como Narciso, o
irmão caçula do senhor B morreu dragado pelas águas do seu mergulho autônomo.
Nesse estado não há lugar para o outro, não há lugar para o filho. O senhor B
contou: O meu pai sempre me criticava, para ele tudo o que eu fazia era errado. Um dia
ele me deu uma pipa, eu fiquei muito feliz e saí correndo com ela para mostrar e brincar
com os meus amigos na rua. Um amigo meu furou a pipa. Quando eu entrei em casa com
a pipa furada o meu pai acabou comigo. Outra vez ele me deu um caminhãozinho. Eu era
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muito curioso, queria saber como se montava um caminhão, então eu o desmontei. Ele
arrasou comigo novamente. A única vez que o meu pai me elogiou foi quando eu levei
minhas amigas da faculdade para casa. Elas eram muito bonitas. Aí eu comecei a namorar uma delas e o meu pai deu em cima da minha namorada.
É como se para o pai do senhor B não existisse a interdição ao incesto. Preso em
seu amor edípico, fixado na posição do eu posso ser como o meu pai, antes do você
não pode fazer tudo o que ele faz; algumas coisas permanecem reservadas a ele, transformou-se mais tarde em: Eu posso ter tudo o que o meu filho tem; nada é reservado a
ele – Eu furto a sua namorada, eu furto a sua empresa.
Nestas histórias, na luta entre Eros e Thanatos, a pulsão de morte triunfou. A
rivalidade não se transformou em amor. A sublimação fracassou. O pai do senhor B não conseguiu ser criativo o suficiente para fazer as suas empresas progredirem, todas fracassaram. A figura de autoridade não interditou, ao contrário,
burlou a lei. O proibido se transformou em sadismo, rivalidades excessivas, desintegração e morte. Regan acabou morrendo envenenada por Goneril pela disputa de um mesmo amor, matando-se em seguida. O senhor B não falou mais
com o pai e o irmão. Disse o senhor B em determinada sessão: Nós três brigávamos
até rolarmos no chão.
Já Cordélia e Saburo podem estar representando o alcançe da elaboração edípica.
Cordélia declara ao pai que o ama como uma filha deve amá-lo, nada mais, nada
menos. Saburo, por sua vez, pode contrariar o pai e depois perdoá-lo, só que
mesmo assim ambos sucumbem à morte. O que pode ter acontecido nesses casos? O que houve com o curso natural do desenvolvimento destes grandes senhores, nos quais não vimos o complexo de Édipo dar lugar ao seu herdeiro, o superego;
abarcando normas e valores morais e culturais cumprindo a função de proteção.
Partindo da ideia de censura, consciência moral, Freud foi desenvolvendo ao longo da sua obra o conceito de superego e as suas funções. Segundo Laplanche
(1967) Freud em uma carta a Flies (1897) evocou pela primeira vez o termo censura para exprimir o caráter de certos delírios. Em 1900 em A interpretação dos
sonhos, desenvolveu este conceito para explicar os diferentes mecanismos de
deformação dos sonhos. Em Introdução ao narcisismo (1914), Freud usou pela primeira vez o termo ideal do ego. E relatou que pela necessidade do homem de
reprimir os instintos que entram em conflito com os valores culturais e morais, o
instinto do ego se separa do instinto libidinal. O ego, na busca do eu ideal, para
não perder o amor do outro, reprime os impulsos libidinais que entram em conflito com as ideias culturais e éticas do indivíduo. O objeto é absorvido pelo ego e
investido de libido e ele é chamado de ideal do ego. É por amor ao seu ideal que o
homem se submete às suas exigências.
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Marília Amaro da Silveira Modesto Santos
No ideal do ego o indivíduo projeta no outro o que foi para ele o ideal – o paraíso
perdido da infância no narcisismo primário, onde não há diferenciação entre o
ego e id, onde o outro se faz ele – e a este ideal tenta conformar-se. Aqui Freud
separou a instância crítica do ideal do ego. A instância crítica ou de censura é de
auto-observação. Ela observa o ego real e o compara com o ideal. Só em 1923 que
ele chamou a instância crítica de superego, tendo aí a função de juiz, abrangendo duas estruturas parciais: o ideal do ego e a instância crítica propriamente
dita, não diferenciando a função de julgamento (instância crítica) do ideal. A
mesma instância – superego ou ideal do ego – encarna a lei e proíbe a sua transgressão.
Em 1932, em Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, reaparece a distinção entre ideal do ego e superego, sendo o superego a consciência moral responsável pelo sentimento inconsciente de culpa e o ideal do ego o responsável pelo
sentimento de inferioridade devido ao amor ao objeto idealizado. Mas ambos
não deixam de ser herdeiros do complexo de Édipo. Depois de Freud, outros autores, como por exemplo Numberg, Lagache e Lacan, diferenciaram ego ideal de
ideal de ego relacionando o ego ideal ao amor narcísico, ao superego arcaico, a
serviço da morte, e o ideal do ego ao amor ao outro ao superego protetor, guardião
das leis e da ordem social (LAPLANCHE, 1967).
Chasseguet-Smirgel levantou em seu livro O ideal do ego (1992) um estudo deste
conceito diferenciando-o do Superego e relacionando-o com o narcisismo. Para
ela, é a partir do Ideal do Ego que o homem pode passar da busca da pura satisfação pulsional, resgatando a sua onipotência narcísica no objeto. E assim ela
percorre alguns autores, como os que se seguem:
Nunberg (1932) definiu o ideal do ego como o objeto amado absorvido pelo ego e
investido de libido, tornando-se assim uma parte do ego. Deste modo, é por amor
ao seu ideal que o homem se submete ao ideal do ego e é por medo da punição
que o homem se submete ao superego. O ideal do ego está relacionado aos objetos amados e o superego aos objetos odiados. Vemos aí uma aproximação da
definição de ideal do ego de Freud de 1914 em Introdução ao narcisismo.
Jacobson (1946-1954) falou sobre a origem materna do ideal do ego, ligando as
fantasias de incorporação do objeto gratificante ao desejo de restabelecer a unidade perdida. Segundo ela, a experiência de fusão física no prazer do ato sexual
pode abrigar os sentimentos de felicidade pelo retorno à união original perdida
com a mãe. Então, para ela, o ideal do ego primitivo está ligado ao desejo de
fazer-se um com o objeto de amor. Por fim, Chasseguet-Smirgel conclui a sua
ideia compartilhando com a ideia de Jacobson sobre a origem do ideal do ego,
visto aqui como o superego protetor. Ela relatou: “É a prematuração humana que
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fundamenta o conceito ideal do ego [...]. É à impotência primária da criança, pela
explosão da fusão primitiva que ele deve a sua origem” (p. 29). É à proibição do
incesto que faz com que a criança se pergunte o que faz do pai o objeto da mãe,
para lá retornar, para depois poder deslocar o amor ao outro.
Ela enfatiza a importância da função materna de conduzir o filho a projetar o
ideal do ego para além de si mesma, cuidando para que cada fase da vida não
seja tão boa a ponto de a criança não querer ir para frente e nem tão ruim a
ponto de ela querer voltar atrás. E cita Grunberge (apud CHASSEGUET-SMIRGEL,
1992): “Se o investimento narcísico da mãe for insuficiente, ela não permite ao
ego alcançar sua integração” (p. 32). E conclui que o investimento narcísico que a
mãe faz em seu filho está ligado aos cuidados e carícias que ela lhe proporciona,
unificando assim seu ego corporal e psíquico, valorizando suas diversas funções.
Ela conta que em certos mamíferos, o filhote de uma ninhada que não foi lambido pela mãe morre.
Esta ideia me fez lembrar que o senhor B curiosamente não mencionava a sua
mãe em nenhuma sessão, e lembrei-me que nos contos de Sheakspeare e
Kurosawa também não aparece a figura materna. Quando apontei ao senhor B
que ele nunca havia se referido à mãe dele, ele disse que se sentia filho de mãe
autista. Isto me fez pensar o quanto a falta do investimento narcísico da mãe
impossibilita o retorno ao paraíso perdido. Como que a criança vai trocar o eu quero
ter o que o meu pai tem com o eu vou me identificar com o meu pai para assim retornar
ao paraíso perdido, para que assim eu possa deslocar o meu amor ao outro se não
houve um paraíso suficientemente bom para a criança? A mãe que não pode fazer
o investimento narcísico suficiente ao seu bebê, não possibilitou a ele a existência de um paraíso nem na memória inconsciente, nem na memória corporal,
para que ele possa voltar a ele no momento da interdição.
Podemos conjeturar sobre o que ocorreu com o senhor B. Quando ele foi submetido a uma interdição, esta se deu de modo sádico, por exemplo: Meu pai só me
depreciava e quando viu que eu tinha uma namorada bonita tentou roubá-la assim como
roubou as minhas empresas, ficou a seguinte mensagem: Você não pode ter o que eu
tenho, mas eu devo ter o que você tem. E o senhor B se identificou com este superego
cruel. Ele é tão cruel com ele quanto o pai que ele relatou ter. Na sua melancolia,
ele repete com ele mesmo as torturas que sofreu da figura parental.
E mais. Podemos também levantar a hipótese de que, se no momento da interdição ele tentou um retorno ao narcisismo primário, se deparou com uma mãe
autista, com a falta de um olhar que o achasse belo. Pensei que também podia ser
por esse motivo que eu sentia no meu encontro com ele que precisava me fazer
presente mesmo no silêncio.
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Marília Amaro da Silveira Modesto Santos
Talvez o que ocorra nesses casos é que o herdeiro do complexo de Édipo não é
um superego protetor, e sim um superego cruel, sádico e destruidor. Um superego
agressivo e punitivo, mais a serviço da morte do que da vida. O senhor B passa as
suas sessões chorando um choro silencioso, lamentando o seu corpo, desfiando
fracassos mesmo tendo conseguido montar outras empresas, tendo casado e
tido dois filhos, e estado com uma namorada após a separação. Em um estado
extremamente melancólico, ele reclama do que não fez, do que não teve. Suas
palavras me faziam escutar um grande flagelo.
Relatarei aqui o trecho de uma sessão em que podemos ver este estado, quando
ele se queixava pelos planos de morar com a sua namorada terem sido adiados.
Ao mesmo tempo em que chorava ele dizia: Eu não consigo ficar sozinho, eu fico
desesperado... Eu me sinto tão fracassado...
M: Onde está aquele B que fez aeromodelismos, que toda a empresa que monta dá certo,
que é curioso, que quando criança montava e desmontava os caminhões que ganhava, que
brincava de pipa?
B: Eu não sei, mas os aeromodelismos são só uma brincadeira, as empresas eu tenho que
fazer dar certo porque senão eu morro de fome.
M: Sim, mas dá certo, porque você deprecia tudo isso?
B: Eu sempre me senti feio, gordo, desengonçado. Sabe quando eu tinha lá por volta dos 14
anos, eu fui em um bailinho e tinha uma menina que era prima de um amigo meu. Ela era
lindinha. Aí eu dançava com ela, ela me aceitava e todo o bailinho que eu ia eu ficava com
ela. Um dia eu comecei a usar óculos, estava na minha casa e esse meu amigo ligou
dizendo que a prima dele estava lá e queria falar comigo. Eu fiquei tão feliz, aí corri para
o telefone para falar com ela e imediatamente eu tirei os óculos. Eu ainda não tinha contado para ela que usava óculos e eu me achava horrível com eles. É assim que eu era.
B chora muito e diz: Nada do que eu faço adianta; eu sinto que falta alguma coisa...
M: O que falta?
B: Faltou o meu casamento ter dado certo ou ter dado certo com a A, faltou eu não ter que
dar as minhas empresas para o meu pai e o meu irmão...
M: Eu achei que você ia falar outra coisa.
B: É, o que?
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M: Que o que faltou foi o olhar de admiração de uma mulher.
B: Era o que eu ia falar mesmo, mas eu fiquei com vergonha.
ETC...
Voltando ao tema deste trabalho, O ideal do ego e as paixões, lembro Green (1988)
quando afirmou que a intensidade da paixão e sua ligação com o objeto apresentam suas raízes na sexualidade infantil.
Concluindo: a possibilidade de um superego protetor, ou de um ideal do ego segundo Chasseguet-Smirgel (1992), depende dos destinos do narcisismo primário.
Isto é, da possibilidade do narcisismo primário se transformar em amor próprio,
e isto depende da experiência do sujeito de ter sido suficientemente amado pelo
objeto primário. Portanto, a formação do superego e do ideal do ego está intimamente ligada ao investimento narcísico. É o combustível da mãe que permite ao
bebê ir em direção ao outro, ao mundo, porque se não for assim, o mundo é visto
por ele como aterrorizante.
Lembrei-me de um paciente que me disse em determinada sessão que estava
muito triste porque se sentia em um estado de apaixonamento (sic), mas era
uma paixão que saia de dentro dele sem encontrar um anteparo que pudesse
fazê-la retornar. Não, ao invés disso, era uma paixão que ia para o espaço perdendo-se no infinito.
Mas Narciso era belo? [...] eu amava Narciso porque, quando ele se deitava em
minhas margens e olhava para mim, no espelho de seus olhos eu sempre via a
minha própria beleza refletida.
The Ideal of the Ego and the Passions
Abstract: This work has for objectives to show the relation between the narcissism, the superego
dating back to the origin and the diferents ways that the narcissism could take and how these
ways determine the formation of a protective or hard superego. Starting to the way follewd by
Freud to explain the concept of the superego on this way, this work is using some authors post
Freudians, for exemple: Chasseguet Smirguel. For that I use a little bit Mister B history that I
listend in the analysis sessions.
Keyswords: Ego Ideal. Narcissism. Superego.
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Marília Amaro da Silveira Modesto Santos
Referências
CHASSEGUET-SMIRGUEL, J. O ideal do ego. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio básico da literatura portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
FREUD, S. (1923). O eu e o id (1923-1925). Obras Completas. v. 16. São Paulo. Companhia das Letras.
GREEN, A. As paixões e suas vicissitudes. In:
Janeiro: Imago, 1988.
. Sobre a loucura pessoal. Rio de
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins
Fontes, 1967.
PICKLES. S. A linguagem do amor. São Paulo: Melhoramentos, 1988.
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Revisão de português: Victor Lourenço
Marília Amaro da Silveira Modesto Santos
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Robert Waska
A Mentira que os Casais
Vivem: explorando o filme A
mentira. Terapia de casais e as
barganhas interiores
perniciosas que vinculam e
aprisionam
Artigo
Robert Waska
Psicoterapeuta Licenciado. Terapeuta de Família
e de Casais. PhD Membro do San Francisco
Center for Psychoanalysis.
Resumo: O filme A Mentira (The Lie) é analisado a partir da perspectiva psicanalítica para a
compreensão das mentiras inconscientes que podem tornar-se o elo destrutivo ou a
desvinculação entre casais. Utilizando conceitos da abordagem kleiniana, o autor discute o
embate psicológico de cada personagem e a maneira como a verdade da diferença, conflito e
decepção acabou alimentando um entranhamento mútuo de mentiras que os protegiam, mas
os mutilavam e os mantinham solitários, vazios e distantes. Apenas quando o peso de seu
sentimento interno de fracasso foi exposto, eles conseguiram encontrar força uns nos outros
para sentirem-se completos e lutarem pela mudança e pela escolha. Ademais, relatos de terapias de casais são usados para ilustrar o desdobramento desses problemas na prática clínica.
Palavras-chave: Identificação projetiva. Mentira. Terapia de casais. Verdade.
O filme A mentira (The lie, 2011) é dirigido por Joshua Leonard e dá ênfase às
personagens Lonnie, Clover, sua filha ainda bebê e seu amigo Tank. Uma sinopse
do filme foi publicada por Jeannette Catsoulis no New York Times: a mentira questiona se é possível reescrever vidas e refazer escolhas. Muito desse questionamento
vem de Lonnie (Joshua Leonard, também diretor), um homem de vinte e poucos
anos, deprimido, cujos sonhos juvenis de uma carreira musical e de um estilo de
vida natureba perderam-se diante das necessidades de um novo filho e de sua
esposa, Clover (Jess Weixler), estudante de Direito. Quando Clover recebe a proposta de emprego em uma companhia farmacêutica – o tipo de empresa que
ambos costumavam menosprezar – Lonnie não consegue aturar mais um dia de
trabalho sem perspectivas como editor. Uma receita de maconha medicinal e
A Mentira que os Casais Vivem: explorando o filme A mentira ...
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 347-364, 2014
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um dia de folga talvez ajudem, contanto que o chefe irritadiço de Lonnie aceite
sua mentirinha ingênua.
Baseado em um curta-metragem de 2008, de T. Coraghessan Boyle (originalmente publicado em The New Yorker), A mentira desenrola-se com uma sinceridade
tranquila, em que cada diálogo comedido faz eco à percepção tácita da dor da
concessão. A medida que a mentira de Lonnie assume vida própria, a fotografia
de Benjamin Kasulke concentra-se em rostos que se esforçam para adaptar-se a
uma vida adulta indesejada, contrastando a infelicidade do casal com a liberdade plácida de seu amigo de longa data, Tank (Mark Webber), cujo trailer a beiramar e a linha de cosméticos vegetarianos simbolizam a arte de não se vender.
Com atuações memoráveis e emoções retumbantes – na melhor cena do filme, o
rosto de Clover silenciosamente manifesta a percepção reveladora de que a nova
canção horrorosa de Lonnie trata-se, na verdade, de uma confissão terrível –, A
Mentira tem relação com o ajuste do autorretrato, a fim de acomodar realidades
em transformação, e com o entendimento de que, às vezes, uma mentira é, na
verdade, um grito de socorro inconsciente.
De uma perspectiva psicanalítica, entendemos que as mentiras que as pessoas
contam a si mesmas e aos outros são relações inconscientes conciliadas entre as
versões unidimensionais do eu e do outro. Tais barganhas interiores (WASKA,
2006), sacrifícios do eu ou as manipulações dos outros, são consideradas necessárias a fim de evitar as ansiedades esquizo-paranóides (KLEIN, 1946) ou
depressivas (KLEIN, 1935, 1940). São lutas inconscientes entre visões arcaicas do
eu e do outro em diversas formas de conflito, apego ou perda, em que as ansiedades persecutórias ou depressivas tornam-se insuportáveis. No modo de defesa,
estes estados psíquicos primitivos são estruturados através de identificações
maciças que se expressam através de um relacionamento patológico (WASKA,
2004, 2005).
A mentira é uma história sobre um casal, mas também sobre dois indivíduos que
estimulam ou evitam essa união. O enredo fornece vários elementos complexos,
observados na clínica psicanalítica durante a terapia de casais. Geralmente, se
temos a oportunidade de atender um casal durante um período significativo de
tempo e podemos estabelecer um grau consistente de contato analítico (WASKA,
2007), conseguimos entender as camadas complexas de suas lutas psíquicas individuais e mútuas. Tentamos transmitir isso com nossas interpretações (WASKA
2010a, 2011a). Cada um dos cônjuges geralmente tem uma organização patológica (ROSENFELD, 1987) ou refúgio psíquico (STEINER, 1990, 1993) que é mantida
e fortalecida por padrões destrutivos da identificação projetiva. Esse é o ambiente psicológico no qual as mentiras surgem e proliferam-se.
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Robert Waska
Como defesa, numa concessão e uma barganha interior contra os conflitos de
natureza paranoide ou depressiva, cada cônjuge opera de acordo com os
parâmetros de uma mentira específica que conta para si. Assim os cônjuges sentem-se forçados a contar a mentira aos seus parceiros. Essa convicção psíquica,
raramente questionada, é repentinamente posta em xeque pelo analista durante a investigação analítica. E torna-se uma ameaça aos estados familiares do
equilíbrio psíquico mútuo do casal (SPILLIUS, 1989), portanto, geralmente, apresenta resistência.
Não é raro dois indivíduos encontrarem-se e compatibilizarem sua visão psicológica peculiar do mundo. Eles encontram alguém que parece acreditar em sua mentira ou que está aprisionado pela mesma mentira. Na verdade, esse ciclo projetivo
geralmente é destrutivo e defensivo, ao mesmo tempo, nas relações entre casais
(WASKA, 2013a, 2013b). Ambas as partes estão interessadas em evitar certas verdades próprias, certas verdades dolorosas sobre seu relacionamento. Portanto,
elas mantêm inconscientemente as mentiras que as unem e, ao mesmo tempo,
as separam.
No filme, tanto Lonnie como Clover costumavam ter uma vida que consideravam despreocupada e ideal, em que se sentiam em sintonia um com o outro.
Agora, eles acabaram adotando um modo de vida que os afasta e os aliena de si
mesmos. Seu amigo em comum, Tank, ainda mantém-se fiel ao seu chamado
interior, correndo atrás daquilo que o torna genuíno e completo. Eles o respeitam, mas não conseguem ficar perto dele como antes. Eles teriam que enfrentar
sua própria desonestidade se quisessem ter uma relação mais honesta com ele.
No filme, Tank aparentemente representa o perdido, o projetado e o renegado,
mas está ancorado em aspectos deles próprios que costumavam incorporar e
respeitar. As mentiras interiores que vieram a adotar como indivíduos e as barganhas interiores que eles justificam e defendem como casal dizem respeito à
realização de certas expectativas que possuem de si mesmos e de seu lugar na
vida, uma combinação sufocante de projeções mútuas.
Clover costumava trabalhar para uma clínica de assistência jurídica, mas achava que não sabia o bastante para fazer alguma diferença e ajudar os outros.
Agora está pronta para tornar-se uma advogada e recebeu uma proposta de uma
grande firma. Ela mantém isso em segredo por vergonha, culpa e conflito. Porém,
para justificar suas ações, diz a Lonnie que é bom para a família, já que eles
terão planos de saúde e de aposentadoria. Tank está inconformado por ela ter se
vendido, talvez a projeção da dúvida de Clover e de sua decepção consigo mesma.
Lonnie está chateado por ela não o ter incluído na decisão, um resultado de
como a mentira exclui os outros. Uma, ou ambas as partes, está geralmente
fazendo concessões, mentindo e negociando com seu próprio superego e elenco
A Mentira que os Casais Vivem: explorando o filme A mentira ...
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 347-364, 2014
350
de objetos interiores. Esse nó psíquico e o efeito afetivo fazem com que seja muito
difícil para eles compartilharem isso com seu parceiro.
Identificação projetiva e mau relacionamento entre
casais
As dinâmicas da identificação projetiva baseiam-se em fantasias inconscientes
arcaicas e em estados conflitantes de amor, ódio e conhecimento. Desejo infantil, medo, agressão e curiosidade distorcem-se e intensificam-se com a complexidade da realidade interna e externa, entremeada através de ciclos de projeção
e de introjeção (FELDMAN, 2009; SPILLIUS, 1992; WASKA, 2010b, 2010c, 2010d). As
influências do superego podem perverter ou dominar a paisagem interior. Na
vida adulta, as dinâmicas patológicas da identificação projetiva influenciam a
escolha do parceiro e impactam sobre os padrões em curso em um relacionamento. Durante o tratamento psicanalítico, deparamo-nos com convicções inconscientes profundas e expectativas do eu e do outro. As exigências com o eu e
o objeto são ativadas e realizadas (SANDLERS, 1976) em relacionamentos íntimos. O que vemos protagonizado ao nível interpessoal, como resultado dessas
dinâmicas inconscientes de identificação projetiva, são contra-argumentos e reações a expectativas percebidas no relacionamento. Mentiras defensivas, barganhas e concessões patológicas surgem para que se possa lidar com a ansiedade,
a culpa ou a perseguição em tais estados psicológicos.
Então, gradualmente desvendamos tais atitudes mentais como “Sinto que ele/ela
nunca quer me dar o que eu preciso”, mesclado com a atitude mental da outra parte
de “Nunca ganho reconhecimento pelo que dou a ela/ele”. Ou ainda: “Quero ser notado e
amado, mas tenho medo de tomar a iniciativa, então quero que ela/ele o faça primeiro e
fico zangado se ela/ele não o faz”, misturado com “Sou eu quem sempre toma a iniciativa e cuida dos outros sempre que necessitam de algo. Mas estou triste e zangado porque
nunca sou eu quem é cuidado. E não quero ter que perguntar. Depois de todos os meus
esforços, porque tenho que implorar por um pouco mais de atenção”? Ou então: “Não
gosto de como ele/ela está me tratando, mas tenho medo de ser punido se disser alguma
coisa e, além do mais, talvez eu não esteja sendo o suficiente para ele/ela e mereço o que
está acontecendo” mesclado com “por que ele/ela é um capacho. Por que ele/ela nunca
compartilha nada comigo, fazendo com que eu tenha que tomar todas as decisões e ficar
na liderança? Estou cansado disso e quero que ele/ela assuma as rédeas às vezes”.
Estes diálogos de representação interior são protagonizados na transferência entre
casais bem como entre casais e o analista. No filme, começamos a entender tais
demandas interiores e gritos de desespero de Lonnie. Ele ainda quer ser um músico maconheiro que encontra a felicidade em uma vida livre, assim como Tank
parece ter no momento. Porém, diferentemente de Tank, que diz em uma certa
351
Robert Waska
ocasião, “Tomei uma decisão consciente de viver a vida que eu quero e na qual acredito”,
Lonnie está vivendo uma mentira. Ele nunca foi realmente um músico, apenas
alguém que se aventurou ligeiramente na arte juntamente com Tank. Agora ele
percebe que deixou este seu lado às traças e tenta retomá-lo com Tank. Sua
canção, intitulada Triturador de alma (Soul crusher), mostra-nos o que ele sente a
respeito da vida e do custo de estar vivendo uma mentira. Portanto, até agora no
filme somos expostos a vários exemplos desse emaranhado interior de mentiras
e de barganhas entre Lonnie e Clover. Mas, mais concretamente, o título do filme
advém do momento em que Lonnie está tão deprimido com esses problemas
que acaba dizendo ao seu chefe que não irá trabalhar. Quando pressionado para
ir de qualquer jeito, Lonnie diz ao seu chefe zangado que não pode porque sua
filha morreu.
Acho que isso simboliza dois aspectos. Seu chefe é um homem muito abusivo
que sempre grita com Lonnie. Além disso, o trabalho de Lonnie é uma labuta
maçante de edição de vídeos de ketchup (talvez o sangramento de sua energia
psíquica?). Ao escolher trabalhar com este chefe, acho que o Lonnie associou-se
a uma projeção externa, a um espelho de seu superego cruel. Ele está cheio de si
mesmo, sempre criticando suas conquistas e nunca permitindo-se nenhuma
chance ao que buscar. Ele nunca demonstrou motivação ou auto orientação,
apenas chateado por não estar vivendo para a Clover e sua família como ele
acha que deveria. Lonnie é próximo de sua filha, mas incapaz de realmente sentir ou canalizar seu amor a este bebê até romper o laço com seu chefe zangado
ao afirmar que sua filha morreu. Somente enfrentando o objeto crítico ele poderá finalmente começar a amar a si próprio e à sua filha de forma completa e
significativa. O eu da concessão deve morrer para que o verdadeiro eu viva. No
entanto, isso significa manifestar pesar pelos laços familiares e pelas ilusões
inconscientes do sentimento de controle e da capacidade de sempre atender às
exigências do seu público interior. Ele precisa arriscar abandonar o objeto danoso e encarar as consequências psíquicas.
Portanto, o título do filme é sobre quando Lonnie mente para seu chefe e sobre o
efeito externo desta mentira. Porém, como clínicos psicanalíticos, questionamonos acerca da luta interior que leva Lonnie a esse lugar em sua vida. Aos nossos
pacientes, oferecemos um trabalho de frente para trás, partindo da visão externa de seus problemas ou aquela mais embasada na realidade até a parte mais
interior e ilógica do inconsciente (WASKA, 2011b, 2012). Assim, perguntamo-nos
por que Lonnie teria aceito um trabalho tão chato e maçante e por que toleraria
um chefe tão abusivo? E por que não se confidencia com a Clover, trabalhando
junto com ela para achar opções e fazer mudanças em prol de algo mais gratificante. Por que ele simplesmente não se comunicou com ela, compartilhando
seus medos e desejos?
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Estes são problemas aparentemente de bom senso com soluções também aparentemente simples. Entretanto, os estados de conflito inconsciente objetorelacionais em que os pacientes se encontram eliminam as escolhas e opções,
bem como o livre pensamento ou a liberdade de sentimento. O paciente sente-se
forçado a manter as mentiras que criou por culpa, medo ou sentimento justificado de lealdade ao superego. Então, no decorrer do filme, conseguimos entender como Lonnie sente-se obrigado a sacrificar seu verdadeiro eu para ser o sustento de sua família. Ele está aprisionado por sua visão distorcida de superego,
de um marido e pai trabalhador. Para atingir o objetivo impossível, ele decidiu
que a barganha ou a mentira precisa incluir sofrimento. Portanto, ele tolera um
emprego chato e um chefe abusivo. Lonnie sente-se ansioso e envergonhado para
admitir que não quer esse tipo de vida, preocupando-se com o fato de que, se
assim o fizer, ele será um fracasso e um marido e pai ofensivo ou negligente.
Então, ele precisa mentir e manter escondidos seus sentimentos verdadeiros de
si mesmo, da Clover e do Tank. Esta é a essência de seu estado psíquico destrutivo,
que ele se esforça para manter e com o qual Clover inconscientemente é conivente.
Essa dinâmica vale para a Clover também. Ela chegou a acreditar na sua própria
mentira sobre a necessidade de tornar-se uma advogada empresarial, aceitando
o emprego para o bem de sua família. Portanto, tanto ela como Lonnie adotaram
essa visão masoquista de si mesmos no mundo, sendo incapazes de enxergar a
verdade sobre seu descontentamento. Clover esforça-se bastante para não enxergar seu próprio conflito e infelicidade ao ponto de não ver e não querer ver
também a infelicidade de Lonnie. Para perceber o quanto ele é infeliz, ela teria
que olhar para sua própria dor e ansiedade. Todavia, quando Lonnie e Clover vão
acampar uma noite, eles se encontram novamente, conseguindo superar as mentiras. Lembram da verdade sobre seu amor, do compromisso com eles mesmos, e
percebem o que estavam perdendo.
Quando a Clover descobre a mentira de Lonnie, e eles brigam por causa disso,
algo dramático acontece, uma descoberta de honestidade mútua. Em vez de culparem um ao outro de uma maneira que protege e reforça sua mentira conjunta
de identificação projetiva, deixam de mentir um para o outro, são honestos consigo mesmos e admitem o que acham um para o outro. Acontece que ambos
estão sofrendo de forma semelhante. Essa revelação os aproxima.
Perdoando um ao outro, eles se sentem reconectados e com base para criar algo
melhor em seu relacionamento bem como em suas vidas individuais. É isso que
esperamos na terapia de casais. No filme, a nova verdade os ajuda a decidir a
mudar e a iniciar uma nova vida. Na terapia de casais, raramente existe uma
solução, mudança ou descoberta imediata. Geralmente, há uma série de peque-
353
Robert Waska
nos momentos de avanço que se combinam a fim de produzir uma mudança
gradual e um equilíbrio psíquico novo e mais saudável. É preciso passar por um
período de luto ou de perda, uma luta com os novos aspectos da mudança e da
diferença e o encaramento do futuro desconhecido com suas ansiedades
(STEINER, 1996, 2011; WASKA, 2002).
Embora o filme basicamente condense todos estes elementos no rápido final
feliz, ainda nos comovemos com o fato de que a mudança é possível e que dois
indivíduos podem admitir para si mesmos as mentiras em que vivem. Vemos
como eles construíram um relacionamento sobre as barganhas emocionais e
concessões, mas como agora conseguem admitir, encarar e desvencilhar-se disso, trabalhando juntos para encontrar uma nova verdade para eles mesmos. Isso
é resumido quando Clover diz a Lonnie, “Você é um bom pai! Você é mesmo um
bom pai!” Ela o ajuda a ver a bondade e a realidade de quem ele é por detrás das
histórias em que ele havia se perdido. Ao fazer isso, ela se permitiu começar a ver
quem ela era e em que ela é boa. Juntos, com sua filha, eles conseguiram encontrar-se de novo e partilhar seus eus verdadeiros um com o outro.
Estudo de caso
Helen e Mark fazem terapia de casais comigo há seis meses. Fizemos um progresso significativo nesse período, mas ainda há muitas formas pelas quais eles
defendem veementemente as barganhas inconscientes que fizeram um com o
outro e com seus objetos interiores. Existem certas mentiras que eles tendem a
manter inconscientemente, vivendo-as no casamento. Quando chegaram até
mim, Mark estava infeliz porque Helen não queria uma intimidade espontânea. Ele
percebia que ela nunca dava muita atenção a ele, era ríspida e séria demais.
Helen disse que estava cansada do fato de Mark sempre querer se divertir e deixar todo o trabalho para ela, sem nunca pensar nas necessidades da família,
esperando que ela, repentinamente, fosse sexy após um dia longo e difícil. Helen
frequentemente o considerava irresponsável com o dinheiro, querendo gastá-lo
com seus brinquedinhos e não pensando no futuro da família. Ao mesmo tempo,
Mark achava Helen muito conservadora com o dinheiro e muito crítica, vendo-o
injustamente como um gastador sem limites. Com o tempo, percebi que minha
contratransferência era um guia útil (WASKA, 2007). Em meu pensamento, inicialmente concordava com Mark. Achava que a Helen era realmente ríspida demais, controladora e crítica. Eu me perguntava por que ela tinha que estar tão
preocupada com dinheiro, tão rígida com horários, e por que ela não permitia
que Mark se divertisse mais.
Porém, depois de um tempo, percebi que ele estava se esquivando de muitas
coisas ao não querer realmente participar das sessões de terapia. Ele costumava
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fazer perguntas que aparentemente demonstravam apoio, curiosidade e carinho
sobre como ela se sentia, ou por que ela poderia pensar tal coisa. Mas, então, ele
sentava e a deixava falar sozinha durante toda a sessão. Helen então falava,
chorava, criticava, deprimia-se, ficava zangada, sentia-se desesperançosa e então falava um pouco mais. Tudo parecia genuíno, produtivo e importante na tentativa de solucionar seus problemas. Mas Mark nunca participava e Helen contentava-se em fazer isso sozinha.
Em vez de envolver-se emocionalmente, percebi que ele era muito racional e
lógico a respeito do que ela mencionava, que ele falava de seus problemas conjugais como se fosse um projeto com problemas específicos a serem resolvidos.
Portanto, ele estava ausente emocionalmente. Com o tempo, Helen começou a
verbalizar isso e dizer a Mark que ela se sentia excluída e solitária. Ele respondia
dizendo que estava trabalhando em mais corais e fazendo o que ela pedira. Então, percebendo os papéis desequilibrados que eles assumiam um com o outro e
comigo, comecei a interpretar como Helen parecia ser a emotiva enquanto Mark
era o conformado, o lógico. Isso poderia dar um pouco de equilíbrio aos dois e
criar um quebra-cabeças que se encaixava bem. No entanto, na maioria das vezes, isso também gerava distanciamento, confusão e um vazio. Passei a interpretar como a Helen parecia confortável, mas insatisfeita, fazendo o papel da mãe
responsável, e como Mark parecia familiar, mas infeliz, fazendo o papel da criança que sempre fica pedindo dinheiro à sua mãe ou permissão para sair e divertirse, ao mesmo tempo sentindo-se rejeitado e repreendido.
Comentei como ambos tinham dificuldades em apenas ser dois adultos batalhando juntos para dar conta dos negócios e do prazer. Eles pareciam ansiosos
para encontrar uma combinação de amor e responsabilidade da qual ambos
pudessem participar sem ser tão claros e diretos. Clivagem e identificação projetiva
eram seu método principal de lidar com a situação, de se comunicarem, lutar e
exercer controle.
Durante uma sessão recente, Mark mostrou-se visivelmente muito interessado
em ouvir as preocupações da Helen sobre a falta de planejamento dos dois em
relação ao futuro e as ideias dela sobre como eles deveriam encarar o próximo
ano como uma família. Mas percebi que Mark estava sendo muito racional e
lógico. Embora ele atenciosamente estivesse focado nela, fazendo-lhe perguntas
sobre suas necessidades e parecendo estar interessado, estava, na verdade, delegando emocionalmente tudo a ela, deixando que ela conduzisse toda a conversa.
Quando Helen indagava sobre como Mark se sentia sobre o futuro dos dois, ele
dizia: “Então, quero entender como você vê meu lugar no planejamento do futuro e como isso se parece”.
355
Robert Waska
Interpretei que Mark não estava respondendo as perguntas de Helen. Comentei
sobre como ele redireciona qualquer atenção sobre ele para ela. Então, Helen
assume, com entusiasmo, o controle da conversa e fala de forma loquaz sobre si
mesma. Mas ela nunca tem um retorno dele, fazendo com que se sinta sozinha.
Portanto, Mark se esconde, projetando um objeto exigente e controlador para
Helen, e age demonstrando muito apoio ou que está sendo tratado muito injustamente. Ele nunca precisa contribuir para a igualdade emocional da dinâmica
do casal. Mark faz com que Helen assuma sua preocupação, seu dever, sua visão
adulta e qualquer outra coisa que não seja divertida e afável. Porém, isso também significa que ele se priva das recompensas da igualdade. Ele não consegue
ser um adulto e participar da relação. Assim, a consequência é que ele se sente
excluído e sozinho. O excesso de identificações projetivas expulsivas deixa Mark
dilapidado.
Mark parece reagir à falta de poder e constante vazio queixando-se de que eles
não fazem sexo espontaneamente e de como Helen nunca dá atenção suficiente
para ele. Existe um desvio lógico defensivo dele para ela, seguido de sua exigência de atenção com sexo emocional. Quando interpretei estas dinâmicas para
ambos, Helen entendeu, mas Mark ficou confuso e não tinha certeza do que eu
queria dizer. Na verdade, ele parecia desconfortável e numa situação difícil.
Dando respostas defensivas, Mark começou a fazer isso na transferência comigo. Ele perguntou o que eu achava do que acabara de dizer e das várias implicações disso. Perguntou o que eu achava que poderia ser feito a respeito e como
imaginava as mudanças a serem feitas. Era exatamente assim que ele geralmente desviava a atenção dele para a Helen. Interpretei que Mark estava muito ansioso para abrir-se comigo e com a Helen, e não queria mostrar suas reais necessidades, medos ou diferenças. Ao invés disso, ele as projeta em Helen e agora em
mim, e então sente que ela sempre exige coisas e não se deixa levar o suficiente.
Esse momento analítico em particular veio à tona quando observei como Mark
sentava-se em relação à Helen, e percebendo minha raiva de contratransferência
com ela, por falar tanto e com ele, por ficar tão calado. Fiquei impressionado,
com uma certa cisma, sobre o quão disposto a apoiá-la Mark estava ao fazer
suas perguntas atenciosas. Também percebi que torci o nariz quando Helen pôsse a fazer perguntas de uma frase só e então passou cinco a dez minutos expondo seus pensamentos e sentimentos sobre si mesma e sobre suas visões acerca
do casamento.
Mark estava sentado com seu corpo virado na direção de Helen, na ponta do
sofá, olhando atentamente para ela e sentado bem perto. Helen, por outro lado,
estava sentada de forma descontraída e olhava para frente, não na direção do
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Mark e ligeiramente em minha direção. Ela não estava ligada fisicamente a ninguém e falava apenas sobre si mesma enquanto Mark estava muito conectado a
ela e falava apenas sobre ela e nunca sobre si mesmo. Comentei sobre isso tudo
e interpretei o desequilíbrio como algo com o qual sentiam-se confortáveis, fazendo com que ambos se sentissem no controle. Entretanto, como na maioria
dos ciclos de identificação projetiva excessiva, ambos acabaram sentindo-se carentes e vazios. Portanto, cada um deles precisava rebelar-se e reagir a fim de
obter um pouquinho de atenção ou carinho.
Mark percebeu que Helen sempre estava na condição de receber e controlar,
embora ele estivesse se doando a ela, sacrificando seu poder como alguém igual.
Agindo tão gentilmente e doando-se a ela, ele acabou se sentindo como se nunca
houvesse tido alguma gentileza ou doação da parte dela. Então, precisava achar
um escape, comprando brinquedinhos de alto valor e saindo sozinho para se divertir. Helen tentava prover aquilo que achava que a família precisava e via-se como
a pessoa que tinha de fazer todo o trabalho em prol de sua visão de uma vida
familiar feliz, com todos nós nos sentindo próximos. Ela achava que deveria sacrificar
qualquer felicidade para encontrar a felicidade. Foi esta mentira, a noção de culpa contrária que a levou a agir como uma mãe para o Mark, acreditando que, em
troca, ele a ajudaria a empenhar-se nesse objetivo comum. Porém, o custo de tal
projeção de diversão e liberdade foi um fardo deprimente que a deixou ressentida e sem esperança. Isso é bem semelhante à mentira entre Lonnie e Clover no
filme.
Interpretei tais dinâmicas e como ambos queriam que eu basicamente convencesse o outro a compactuar com suas mentiras, concessões e objetivos distorcidos
e me esforçasse a fim de manter intacto o equilíbrio frágil que eles haviam estabelecido ao longo dos anos. Quando fiz tais interpretações sobre a transferência,
eles ficaram ansiosos e preocupados. Mark estava preocupado por eu não respeitar sua abordagem racional e querer forçá-lo a olhar para seus sentimentos em
vez de manter o foco na Helen. Helen estava preocupada que eu quisesse que ela
perdesse o controle e se tornasse potencialmente irresponsável ou se entregasse
sexualmente a Mark quando ela não tinha vontade. No entanto, pouco a pouco,
usamos esta reação de transferência e dinâmica de fantasia para aprender, construir mudanças e encarar os desconhecidos no processo de crescimento. Exploramos esta fantasia de mudança como perigo, como sendo uma ameaça ao seu
refúgio psíquico mútuo.
Paulatinamente, estamos trabalhando com estes problemas para entender melhor as mentiras interiores e as convicções com as quais Mark e Helen se afeiçoavam. Estamos explorando como eles tentavam manipular um ao outro por vá-
357
Robert Waska
rios motivos, tanto positivos como negativos, levando tanto à cura quanto à destruição.
Relato de caso
Atendi Jerry e Kat em apenas oito sessões de terapia de casais até agora. Mas eles
já vêm revelando várias mentiras que os mantêm juntos, mas também os mantêm separados. Jerry e Kat estavam juntos há onze anos quando ela teve um
caso amoroso breve. Eles concordaram em tentar terapia antes de consideramos o
divórcio porque nos amamos e queremos achar uma forma de fazer as coisas darem certo,
se possível. Ambos sentiam-se completamente apaixonados nos primeiros dez anos e
relataram uma vida sexual intensa e prazerosa no primeiro ano. No entanto,
durante os últimos dez anos, eles raramente fizeram sexo e quando o fizeram,
Kat diz que foi porque ela se sentia culpada e queria proporcionar isso ao Jerry. Ela
disse que não sente atração física por Jerry e que nunca se sentiu excitada ao fazer
sexo com ele. Kat disse que estava arrasada por admitir que nunca houve uma
química entre eles e não conseguir entender como isso veio à tona de repente.
Jerry afirmou que curtia fazer sexo com Kat, mas que se sente bem sem isso, porque
todo o resto é tão bom. Pensei que isso se tornaria uma parte de nosso relacionamento em
algum momento. Kat nunca estava a fim e pedia que Jerry lhe desse mais espaço. Ele
agiu assim e isso acabou levando a uma vida praticamente sem sexo durante
uma década. Quando perguntei como ele tolerava isso, com base em meu sentimento de transferência de choque e indignação frente à possibilidade de um
casamento sem sexo, Jerry disse que ele pensava ter um casamento 80% perfeito e,
portanto, estava disposto a abrir mão do resto. Kat mencionou que sempre sentiu que eles eram melhores amigos, um par perfeito em todos os sentidos, exceto no
sexo, e então ela se sentia culpada e desconfortável em tocar no assunto.
Quando comentei sobre como ambos pareciam totalmente alienados um do outro, sem nenhum diálogo sobre a situação devastante, ambos disseram que eram
avessos a qualquer tipo de conflito. Eu disse que o fato de Kat ter tido um caso e de
Jerry ter descoberto deve ter sido muito difícil, pois tratava-se de um verdadeiro
conflito. Ambos assentiram com a cabeça. Perguntei se Kat tinha curtido o sexo
no caso que ela teve e ela disse que sim, confirmando que havia conseguido ter
uma química, mas não com Jerry.
Em quase todas as sessões, Kat chorava por causa do fracasso de seu relacionamento e dizia que tinha vontade de culpar-se, mas que também estava ciente
que se trata de um problema compartilhado pelos dois. Ela disse como havia
negado o problema com a química durante anos e, então, nos últimos dois anos,
começou a ficar deprimida com isso, mas ainda se culpava. Ela se convenceu que
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deve ser algo biológico e, então, passou meses indo a vários médicos e especialistas, fazendo exames e procedimentos. Após uma ficha saudável, ela teve que
encarar a verdade sobre seu relacionamento e foi então que ela teve o caso
extraconjugal.
Durante várias sessões, percebi a maneira como Kat passava a maior parte do
tempo chorando e dizendo o quanto ela se sentia culpada por perceber que tinha
acabado e provavelmente não tinha mais conserto. Ela falava muito em não querer
magoar o Jerry, como ele era seu melhor amigo e como ela recorria a ele para
pedir orientação e ajuda financeira durante boa parte do relacionamento. Mas
agora ela era independente devido a sua carreira de sucesso, e confiava mais
nela mesma. Interpretei que ela sentia culpa por achar que o havia usado para
crescer e por agora querer voar por conta própria. Disse que ela provavelmente
tinha receio de admitir a falta de química anos atrás, pois isso poderia tê-los
levado à separação antes que ela se sentisse pronta para abandonar o ninho. Kat
disse que concordava, mas que queria poder se sentir bem em ter o Jerry como
seu melhor amigo, sem sexo. Porém, ela sabia que iria ofendê-lo ainda mais.
Interpretei que Jerry era reticente comigo porque não queria arriscar extravasar
algum sentimento de raiva ou de ressentimento. Primeiro, ele se mostrava na
defensiva diante dos meus comentários e falava muito sobre como ele estava
bem com Kat do jeito que está, já que isso é tudo o que temos. Ela é tão maravilhosa que
acho que poderia viver assim se eu precisasse. Interpretei que o precisasse indicava
que ele estava infeliz e queria mais, mas sentia-se ansioso para admitir isso para
mim, para ele mesmo e para a Kat. Ele concordou e disse que não gostava de se
sentir assim. Perguntei se ele achava que ela ainda era sua melhor amiga quando o traiu. Repentinamente Jerry disse: Ela mentiu para mim e isso me leva a pensar
que ela mentiu nos últimos dez anos, que tudo isso era uma merda. Kat sobressaltou-se
e pôs-se a chorar. Ela disse em voz alta, Não! Não se sinta assim! Não quero que você
sinta raiva. Para com isso! Após parar de chorar, interpretei que ela estava se assegurando de que ele nunca teve sentimento de raiva por ela, apenas sentimentos
de amizade, e certificou-se de nunca revelar ressentimentos para ele. Portanto,
ambos estavam castrados emocionalmente e incapazes de realmente expor a
verdade sobre seus pensamentos e sentimentos.
Jerry e Kat estavam vivendo uma mentira mútua, um mecanismo de identificação projetiva destrutiva. Eles fizeram uma barganha interior com eles mesmos,
na qual eram um par perfeito através da ansiedade depressiva mútua que causava esforços defensivos constantes para evitar, negar e impedir qualquer dano ao
objeto. Todavia, eles eram diferentes na maneira que utilizavam para atingir isso.
Enquanto Kat era mais exaltada em suas exposições, Jerry era mais neutro e
obsessivo. Ele disse que via tudo como um projeto e, na transferência, frequente-
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Robert Waska
mente esperava que eu dissesse a ele como resolver o problema. Embora Jerry parecesse tranquilo e racional ao dizer isso, o tom interpessoal era mais de exigência
e pressão sobre mim na transferência (JOSEPH, 1985). Disse ao Jerry que não
considerava seu casamento como um problema a ser resolvido, mas mais como um
relacionamento no qual ambas as partes estavam misteriosamente infelizes e
distantes, mesmo quando diziam como eram perfeitos um para o outro. Disse
que achava que ele poderia estar se protegendo de sentimentos mais fortes em
relação à Kat e ao que estava acontecendo no casamento.
Jerry disse: Quero apenas que me diga o que tem de errado para que eu conserte! Eu
respondi: Na semana passada, Kat me disse que você havia dito exatamente isso a ela e
que isso a fez se sentir distante e incompreendida. Agora, acho que você está tentando
essa abordagem comigo. O que você está sentindo que é tão complicado? Jerry disse:
Sinto-me traído. Percebo que ela nunca me falou o que havia de errado; então, ela nunca
me deu a chance de melhorar as coisas. Eu insisti: E agora você se depara com o sentimento terrível de que seu casamento pode não ser algo que vá melhorar, algo que você não
pode consertar. Ele deu de ombros e assentiu com a cabeça.
No caso da Kat, parecia que ela não queria dizer a mim ou ao Jerry como ela
realmente se sentia sobre o casamento, seu estado atual, ou o que ela queria
fazer ao seguir em frente. O que Kat disse para mim e para o Jerry foi que ela
sentia muito pelo jeito como as coisas tinham se encaminhado. Ela se arrependeu por
não ter sido mais honesta com o Jerry, pois a intenção dela não era magoá-lo.
Além disso, ela não tinha se sentido confiante o bastante para ficar sozinha.
Tudo era informação sobre o passado, relatada no pretérito, e ela não estava me
contando sobre a natureza atual de todos aqueles sentimentos.
Kat disse que queria ver se eles conseguiriam descobrir uma forma de viver juntos como bons amigos ou, de alguma maneira, encontrar um pouco de química.
Porém, pela forma como relatou tudo isso para mim na transferência, me pareceu uma mentira ou, pelo menos, um deslocamento ao tempo passado em vez
de falar sobre o agora. Percebi que ela estava sendo agradável, otimista e muito
flexível na tentativa de não me contar suas outras opções e escolhas. Eu disse:
Creio que você esteja ocultando alguma coisa. Parece-me que você quer sair desse relacionamento agora, mas não quer tocar no assunto porque isso irá causar conflito e diferença. Kat começou a chorar e falou que não conseguia imaginar ficar sem o Jerry,
mas que também não conseguia continuar vivendo essa mentira.
Eu disse: Você quer estar em um relacionamento perfeito, mas agora se sente vazia e
deseja mais. Mas você tem medo de dizer isso para mim e para o Jerry porque significa
que vocês ficarão separados e distantes. Ela caiu em prantos novamente e disse que
sentia mesmo, mas que não queria magoar o Jerry porque ele estava tentando muito
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mudar. Eu disse: Você se sente culpada em dizer a ele que é tarde demais. Ela respondeu: Não quero que seja tarde demais! Mas acho que pode ser mesmo!
Duas semanas depois, o Jerry me ligou para cancelar as próximas sessões. Ele
disse que estavam se divorciando. Aparentemente, a verdade sobre seus sentimentos tinha respingado sobre sua organização patológica. A mentira mútua
tinha acabado e agora eles teriam que achar uma nova verdade para si, individualmente e como um casal. Ofereci-me para continuar atendendo-os a fim de
ajudá-los nesse processo, e eles aceitaram. Vamos ver onde a verdade nos levará.
Sumário
Uma forma fundamental para que uma mentira se torne a base de uma relação
é quando ambas as partes toleram certas diferenças, decepções ou desafios no
relacionamento. Se as expectativas que estão arraigadas nas formas internas de
ver o eu e o outro não forem atingidas, as ansiedades primitivas podem surgir e
a verdade do casal torna-se uma ameaça. Portanto, a mentira é uma forma de
controlar a ameaça, de manter os equilíbrios psíquicos originais e de evitar diferenças ou mudanças. Cada um dos cônjuges pode ter sua versão da verdade ou
sua própria mentira individual, mas o casal acabará inconscientemente construindo uma mentira em comum através de ciclos repetidos de identificação
projetiva.
Colman (1993) descreve estes indivíduos que não toleram a percepção de que os
outros são independentes e, portanto, podem frustrar, rejeitar ou abandonar. Eles
não querem enfrentar um objeto que não conseguem controlar. A diferença básica do objeto em relação ao eu pode ser difícil de suportar, pois significa que
eles não serão exatamente como queremos que sejam ou como queremos imaginar que eles sejam. A aceitação desses aspectos da humanidade significa que
temos que aceitar nossas próprias limitações e os inevitáveis fracassos, perda e
conflito ou mágoa dos quais faremos parte. Colman (1993) alega que todos os
casamentos apresentam um conflito entre a luta para relacionar-se com o outro
como ele/ela realmente é e a tentativa de evitar esta luta por meio de um refúgio
na fantasia compartilhada ou defensiva. A cumplicidade para reter ideais é o
que constitui o cerne da mentira que encontramos em muitos relacionamentos.
Ambas as partes evitam a verdade sobre quem são ou sobre quem não conseguiram ser.
Grier (2011) escreve sobre como os casais chegam a um acordo, lamentando o
fracasso de suas ideias em comum sobre o relacionamento. Eu acrescentaria
que muitos casais mentem constantemente para si mesmos sobre o fracasso de
seus ideais e sobre os sentimentos resultantes de tristeza, raiva e ansiedade.
361
Robert Waska
Cohen e Levite (2012) observaram como os casais disfuncionais geralmente funcionam em esferas objeto-relacionais primitivas com clivagem e processos
projetivos bem nítidos. Eles acham difícil tolerar a ambivalência e a discordância.
Alguns casais materializam isso através de conflitos fortes enquanto outros, como
as personagens do filme, Lonnie e Clover, escondem isso sob negação e justificação.
Nathans (2012) afirma que a infidelidade pode ser uma tentativa maníaca de
substituir a depressão ou dor psíquica pelo entusiasmo. O casal talvez tenha um
passado mal resolvido ou uma perda atual e um luto a ser enfrentado, mas o
evita através da infidelidade. Isso ficou evidente no relato de caso bem como na
personagem do filme Lonnie, traindo a Clover com uma garota mais jovem no
dispensário de maconha.
Grier (2011) discorre sobre como o desenvolvimento saudável de casais permite
diferença e separação enquanto o funcionamento não saudável produz esforços
mais narcisistas ou paranoide-esquizoides para evitar qualquer diferença ou
separação. Acho que isso geralmente inclui mentiras não externalizadas e barganhas interiores acerca da procura por ideais em comum, felicidade, ausência
de conflito, e uma regra de não se questionar, mesmo quando estiver infeliz.
Estas mentiras podem ser paranoides ou narcisistas, mas podem incluir também um posicionamento depressivo primitivo. Para alguns casais, a intensidade
de seus medos paranoicos ou depressivos em comum, de não possuir um alicerce ideal (KLEIN, 1952), compensa pelo enfoque do tipo maníaco, em negar qualquer problema e evitar qualquer evidência de diferença. A idealização defensiva
para evitar a ruptura interna ou externa das expectativas, colocadas no relacionamento, é o que ficou evidente no filme, no caso de Lonnie e Clover, mas Lonnie
não conseguia mais manter a mentira.
Colman (2008) discute a ideia de casamento como um continente saudável que
fornece segurança, crescimento e flexibilidade para que o casal seja diferente,
mas se mantenha junto e aja como uma unidade com dois seres separados. Alguns de nossos casais mais problemáticos, incluindo Lonnie e Clover no filme e
os casais do relato de caso, construíram um continente perverso. Esse continente perverso é construído de uma maneira prejudicial, pois exclui a verdade e
mantém a mentira viva e protegida. O continente conjugal para casais mais problemáticos é usado como uma fortaleza para proteger seu idealismo narcisista
em comum e para evitar que tenham que enfrentar a verdade sobre quem são
como indivíduos e quem são como casal.
Na resenha de Roger Ebert sobre o filme A mentira, ele diz: No final de muitos filmes,
você nunca pensa nas personagens novamente, o que quer dizer que, com esse filme,
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ficamos na contemplação das personagens de Lonnie e Clover. Acho que isto
está relacionado à forma como as mentiras geralmente tornam os indivíduos e
casais desprovidos de um rosto, de caráter. Sem diferenças, sem individualidade
e sem riscos, não há alma, nada para se lembrar. Mas, quando os casais conseguem perceber a mentira, encarar a verdade e perdoar um ao outro a fim de
seguir em frente, eles descobrem a triste realidade e veem os erros que cometeram. E, então, também encontram a possibilidade do perdão, da verdade e da
mudança.
Essa é a face do crescimento. Sempre nos lembramos da luta e da vitória muito
tempo depois de a história ter acabado.
The Lie Couples Live Within: exploring the film “The Lie”. Psychoanalytic couples treatment, and the poisonous internal bargains that bind
and trap
Abstract: the film “The Lie” is examined from a psychoanalytic perspective to
understand the unconscious lies that can become the destructive link or antilink between couples. Using concepts from the Kleinian approach, the author
discusses the psychological struggle each character had and the manner in which
the truth of difference, conflict, and disappointment came to fuel a mutual set of
lies that protected them yet crippled them and kept them lonely, empty, and
apart. Only when the weight of their internal sense of failure was exposed could
they find strength in each other to feel whole and strive toward change and
choice. In addition, case material from psychoanalytic couple’s treatment is used
to illustrate these issues as they unfold in the clinical situation.
Keywords: Couples therapy . Lie. Projective identification. Truth.
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A Mentira que os Casais Vivem: explorando o filme A mentira ...
364
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 347-364, 2014
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. The modern kleinian approach to psychoanalysis: clinical illustrations.
New York: Jason Aronson, 2010d.
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. The total transference and the complete counter-transference: the
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. Treating severe depressive and persecutory anxieties states: to transform
the unbearable. London: Karnac, 2010a.
. Selected theoretical and clinical issues in psychoanalytic psychotherapy:
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. Klein in the trenches:
working with disturbed patients. Rodopi: Amsterdam, 2012.
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Revisão de português: Victor Lourenço
Robert Waska
P.O Box 2769
San Anselmo, CA 94979 – EUA
e-mail: [email protected]
seção
por que ler
367
José Facundo Oliveira
Por que ler Maldavsky?
José Facundo Oliveira
Membro Titular da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de Porto Alegre.
David Maldavsky é psicanalista e professor, Doutor em Filosofia e Letras, um dos
pesquisadores mais produtivos da atualidade em nossa área.
Criou a teoria do desvalimento e o estudo somático das alterações do matiz afetivo
no ego real primitivo. Através destes estudos, percebeu que a desestimação dos
afetos pode levar a afecções tóxicas e traumáticas, adições e doenças
psicossomáticas, facilitando diagnósticos e tratamentos.
Desenvolveu um método científico para interpretação analítica que chamou de
ADL (Algoritmo David Lieberman). Baseado em relatos de pacientes, a técnica
avalia sequências narrativas, frases e análise computacional das palavras, que
em conjunto referendam um método epistemológico válido para pesquisa em
psicanálise.
A leitura de seu trabalho inicialmente parece difícil, mas à medida que nos
aprofundamos em sua obra percebemos a riqueza de sua lógica e sistemática.
Além disso, o aprendizado do ADL permite avanços significativos no trabalho
solitário do consultório, funcionando como se fosse uma autossupervisão contínua.
Considero sua contribuição valiosa para a pesquisa científica em psicanálise, já
que o método é dinâmico e aplicável no consultório, permitindo traçarmos um
equilíbrio entre o lógico e o científico sem que se perca a Arte em psicanálise.
Para contribuir com a questão proposta, convidei outros três professores e colegas da UCES, Universidade de Ciências Empresariais e Sociais de Buenos Aires,
também alunos de David Maldavsky, para expressarem a seguir sua opinião a
respeito do tema.
Por que ler Maldavsky?
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 367-371, 2014
368
Dra. Nilda Neves
(Coordenadora do Mestrado em Patologia do Desvalimento da UCES)
Embora não fosse a intenção inicial do David fundar uma escola, esta escola
existe pelo grande número de profissionais que, ao longo de décadas, nutrem-se
de seus ensinamentos teóricos e de suas supervisões clínicas. Para alguns de
nós, este caminho começou com o intercâmbio pessoal, em grupo de estudo ou
seminários, cursos e conferências nas principais instituições psicanalíticas e
universitárias da Argentina e no exterior, e foi continuada através da leitura de
seus escritos.
A obra de David Maldasky se desenvolve há várias décadas, sua produção incessante inclui uma série de artigos e livros publicados, tanto em espanhol como
em outros idiomas, onde é abordada uma ampla temática no campo psicanalítico e afins. O autor sustenta que a psicanálise é uma ciência, e que estudar a
subjetividade é compatível com a manutenção de um forte rigor metodológico e
epistemológico. Sua aspiração e interesse têm sido iniciar um projeto científico
no ambiente acadêmico em parceria com diversas instituições universitárias que
lhe ofereçam o contexto mais adequado para estes desenvolvimentos.
A partir da obra Freudiana, Maldavsky realiza uma detalhada reflexão sobre suas
categorias conceituais, conjugando-as com a de outros continuadores desta obra.
Bion, Winnicott, Liberman, Klein, Lacan e Sptiz foram alguns dos autores com
quem dialogou, buscando delinear uma teoria mais refinada que abarque uma
clínica complexa.
É nesta forma de exercício dialético que ele sintetiza seu próprio esquema
referencial teórico e clínico. Os diversos temas que aborda se entrelaçam e formam um corpo consistente, sólido e altamente integrado. Ilumina aspectos distintos da teoria psicanalítica, resgata conceitos que estavam esquecidos e vai
mais além, construindo uma nova teoria a partir de questionamentos que o próprio criador da psicanálise deixou em aberto.
Reflexões sobre a constituição do aparelho psíquico, a psicopatologia, a clínica,
os vínculos, a epistemologia, a psicanálise aplicada às artes, entre outras, recorrem a suas obras. O diferencial é a criatividade e a originalidade de seus postulados, que vislumbram diversos aspectos da teoria e da clínica psicanalítica, expandindo seus limites ao aprofundar temas como o da consciência originária,
relacionada ao ego real primitivo, que culmina em suas propostas acerca da Teoria e Clínica do Desvalimento. Nos últimos anos, postula um método de investigação absolutamente inovador centralizado no estudo da linguagem, ao qual
369
José Facundo Oliveira
denominou de ADL (Algoritmo David Lieberman), em homenagem ao seu professor.
O interesse por casos em que predominam fixações muito primitivas o levou a
reconsiderar os textos de Freud que se referem às ligações com a biologia, a
neurologia e a física, focando temáticas pouco consideradas naquela época, como
a consciência originária e o corpo como estrutura química. Ele considera em sua
análise a fixação libidinal e egoica, as defesas em jogo e as formações substitutivas
transacionais. Estes conceitos teóricos resultaram na proposta de abordagens e
estratégias particulares para as ditas patologias.
É um autor essencial para compreender os desafios propostos pela clínica atual.
Dr. Sebastián Plut
(Doutor em Psicologia, professor titular do Doutorado em Psicologia da UCES, Membro do Conselho
editorial da revista Subjetividad y Processos Cognitivos)
Poderia começar dizendo que, antes de ler Maldavsky, tive a oportunidade de
escutá-lo. Foi em meados dos anos 1980, primeiramente em um congresso, e
depois em um grupo de estudos.
Na mesma ordem em que se constitui a palavra no pré-consciente, a minha
relação com sua obra começou ouvindo suas palavras e, em seguida, registrando
a escrita de seus livros.
Seu livro, “El complejo de Edipo positivo: constitución y transformaciones”, foi o
primeiro que li. Este livro foi o complemento inicial do que eu ouvia quinzenalmente nas aulas do grupo de estudo. Assim como outros colegas, ficava impressionado com sua clareza, complexidade e profundidade dos seus desenvolvimentos teóricos e clínicos. Tudo isso combinado ao seu trato pessoal e sua atitude
generosa e destituída de soberba.
Ao finalizar a “Introdução” deste livro, Maldavsky descreve seu processo de escrita como “um oscilar pensante que transforma cada iluminação teórica em nova
interrogação”, frase que, além de sempre lembrar, pude comprovar, seja em suas
próprias reflexões teóricas, na formulação de hipóteses sobre um caso, ou então
quando alguém faz comentários sobre suas próprias elaborações.
O habitual é o seu inconformismo às conclusões definitivas e fechadas. Ao contrário, todo avanço o conduz ou a um questionamento específico, ou ao indício
de que “há algo mais”.
Por que ler Maldavsky?
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 367-371, 2014
370
Dra. Liliana Alvarez
(Psicanalista, Coordenadora do Doutorado em Psicologia da UCES)
Compreender David Maldavsky está vinculado ao entendimento do ADL, e quando nos perguntamos como o “ADL” pode constituir-se em um elemento de valor à
nossa prática clínica, a primeira consideração que se destaca refere-se à articulação especial que este instrumento possui com as categorias fundamentais da
teoria psicanalítica.
Seguindo a Freud, David Maldavsky, levou em conta duas dimensões centrais de
análise na investigação psicopatológica e clínica: por um lado, os conceitos de
fixação pulsional e seu derivativo, o desejo e, por outro, o da defesa.
Lembremos que o criador da psicanálise considerava estes conceitos como
determinantes básicos responsáveis pelos traços diferenciais das estruturas e
das manifestações clínicas dos pacientes.
O ADL é essencialmente um método de investigação sistemática do discurso de
um paciente, que oferece resultados enriquecedores, tanto na elaboração
metapsicológica quanto na compreensão dos fenômenos clínicos.
Neste sentido, é possível reconhecer a peculiaridade de sua organização préconsciente a partir da composição dos diferentes erotismos no discurso que produz e das defesas com que os estrutura. Portanto, quando identificamos os desejos e defesas que aparecem como dominantes no discurso do paciente, podemos
estar frente ao primeiro esboço dos traços principais de sua estruturação psíquica.
Um dos valores do método ADL para a clínica refere-se à consideração de que,
para a interpretação de seus resultados, sobressai o valor mediador atribuído ao
conceito de correntes psíquicas, o qual permite entrelaçar os estudos clínicos
sobre as defesas com a reflexão metapsicológica sobre as estruturas egoicas e os
senhores do ego.
Dentre os vários elementos significativos que nos oferece o método ADL, poderia
citar aquele que permite distinguir, a partir da perspectiva da intersubjetividade
no intercâmbio entre paciente e terapeuta, os fenômenos transferenciais, especialmente aqueles que podem estar operando como resistência e que interferem
nas relações fluídas na seção.
Estes breves comentários tentam oferecer uma alternativa à original resistência
com que nós, analistas clínicos, costumamos nos posicionar frente à investiga-
371
José Facundo Oliveira
ção sistemática e seus instrumentos, revelando a interessante contribuição que
o Algoritmo David Lieberman pode chegar a constituir na nossa função como
terapeutas quando nos aventuramos a utilizá-lo.
Estou certo de que meu apelo aos comentários dos Drs. Nilda Neves, Liliane Alvarez
e Sebastián Plut contribuiu como estímulo ao estudo da obra de David Maldavsky
e uma tentativa de melhor compreender sua profunda e complexa maneira de
escrever.
Desvendar seus caminhos intrincados nos revela uma obra rica e inovadora. É
quase como aprender uma nova linguagem: precisamos vencer a estranheza, a
angústia e até o rechaço. Tenho certeza de que, com algum treino e persistência,
sairemos desta experiência gratificados e mais capazes.
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Revisão de português: Ana Rachel Salgado
José Facundo Oliveira
Rua Tobias da Silva, 99 / 202
90570-020 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Por que ler Maldavsky?
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 367-371, 2014
372
resenha
375
Ane Marlise Port Rodrigues
Resenha do Livro A Obra de
Salvador Célia: Empatia,
Utopia e Saúde Mental das
Crianças
Resenha
Ane Marlise Port Rodrigues
Membro Titular da SBPdePA. Psicanalista
de Crianças, Adolescentes e Adultos.
O livro A obra de Salvador Célia foi lançado em maio de 2013, durante a Semana do
bebê de Canela. Foi pensado e organizado por Celso Gutfreind, Isabel Leite Célia,
Norma Beck e Victor Guerra após a morte do psiquiatra e professor Salvador
Hackmann Célia (1940-2009). Vitimado por um câncer aos 68 anos, sua morte
colocou aos que trabalhavam com ele ou o conheciam frente a um vazio: era
único no cenário da psiquiatria do Rio Grande do Sul na busca pela integração do
individual com o coletivo, demonstrando a relação da saúde psíquica com o
ambiente familiar, social e cultural. Dedicou-se aos sofrimentos e ao desenvolvimento das capacidades e da resiliência do bebê ao adulto, integrando em seu
trabalho o indivíduo, sua família e seu grupo social.
Enfatizava a importância da prevenção primária, voltando-se aos começos da
vida: a mãe e seu bebê. Celso Gutfreind descrevia Salvador Célia como um grande fazedor, pois fazia com que suas ideias acontecessem na realidade do dia a dia.
Essas experiências são trazidas para o livro, que tem 30 capítulos e é subdividido
em sete partes. Os primeiros 19 capítulos contem textos de Salvador Célia escritos de 1968 a 2009. O Capítulo 20 mostra Ricardo Gorodish (Argentina) entrevistando o autor e, no Capítulo 21, temos o relato de uma experiência de supervisão
de Celso Gutfreind com Salvador. Do Capítulo 22 ao Capítulo 30, encontramos
depoimentos de profissionais de diversos países sobre o autor.
Na parte 1 – Saúde mental grupos e comunidade – em cinco capítulos, descreve
a criação de uma comunidade terapêutica juntamente com a psicóloga Norma
Beck; são pontuados os principais aspectos psiquiátricos na infância em seus
Resenha do Livro A Obra de Salvador Célia: Empatia, Utopia e ...
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 375-377, 2014
376
períodos críticos, bem como o papel da família, da escola e do ambiente social
com ênfase na prevenção primária e estimulação precoce; em grupos comunitários relata a criação do Projeto Vida com o trabalho na resiliência e nos potenciais
de saúde, levando à diminuição da doença mental e da violência; em Parentalidade
e pobreza destaca os fatores de risco e de proteção à infância com ênfase na
interação mãe-bebê e nas poucas condições de maternagem no Brasil; o pediatra
como agente de saúde mental mostra o grande destaque que dava à capacitação
desse profissional como agente de prevenção primária.
Na parte 2 – A saúde mental sem dramas: o teatro – traz, em dois capítulos, a
experiência de Canela/RS onde o teatro tornou-se grande mobilizador de organização comunitária e de transformação. Também ressalta a criatividade e os espaços lúdicos como essenciais ao desenvolvimento da esperança, do apego e da
base afetiva segura.
Na parte 3 – Os bebês e a psicoterapia – introduz, em três capítulos, a psiquiatria
do bebê e sua relação com o ambiente cuidador. Salienta que até os três anos
muitas intervenções precoces irão prevenir doenças psíquicas no futuro.
Na parte 4 – Desenvolvimento e resiliência – em quatro capítulos, coloca como
questão de saúde pública a formação de agentes de saúde, ações de prevenção e
profilaxia, bem como a humanização da rede escolar. Refere dados do Brasil em
relação à desigualdade social e violência. Exemplifica o trabalho do Projeto Vida
Centro Humanístico na Zona Norte de Porto Alegre como uma saída possível,
criando resiliência e uma pele psicossocial. Assim, a história não se tornaria o
destino da pessoa.
Na parte 5 – O professor Salvador: o ensino da saúde mental – descreve, em dois
capítulos, as experiências de observação de bebês e de acompanhamento de adolescentes grávidas na graduação médica da Universidade Luterana do Brasil.
Na parte 6 – Balanço final para recomeçar – coloca, em três capítulos, a importância da continuidade dos laços na construção dos vínculos; fala da cultura, da
psicopatologia no Brasil e dos recursos terapêuticos.
Na parte 7 – Ecos de Salvador – encontram-se os dez últimos capítulos do livro,
nos quais autores da Argentina, Brasil, França, Portugal, Suíça e Uruguai trazem
entrevista e depoimentos sobre suas experiências e vivências com o autor.
Finalizo com Alberto Konicheckis (França) cujas palavras encontrarão eco tanto
nos que o conheceram como nos leitores desse livro organizado com carinho e
dedicação por Celso Gutfreind, Isabel Célia, Norma Beck e Victor Guerra (2013):
377
Ane Marlise Port Rodrigues
“Salvador vive em mim como um sopro de vida, de entusiasmo e de humor, de
conhecimento e de afeto”.
Sua ausência encontra nesse livro uma presença e uma possibilidade de encontrálo além da lembrança.
Referências
GUTFREIND. C. et. al. (Org.). A obra de Salvador Célia: empatia, utopia e saúde
mental das crianças. Porto Alegre: Artmed, 2013.
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Revisão de português: Ana Rachel Salgado
Ane Marlise Port Rodrigues
Rua Carvalho Monteiro, 234 / 606
90470-100 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Resenha do Livro A Obra de Salvador Célia: Empatia, Utopia e ...
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 375-377, 2014
378
interfaces
381
Maria Berenice Dias
A Ética do Afeto
Artigo
Maria Berenice Dias
Advogada Presidenta da Comissão da Diversidade
Sexual do Conselho Federal da OAB. Vice-Presidenta do
IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito das Famílias.
Resumo: O presente artigo versa sobre a visão da sociedade e do Direito, em relação à união de
casais do mesmo sexo, no decorrer da história da humanidade. Traz ainda os últimos alcances
jurídicos conquistados no que diz respeito às novas configurações familiares em relação à
união estável e adoções. Ressalta a importância de ser substituída a expressão homossexualidade por homoafetividade, uma vez que família designa qualquer relação íntima de afeto,
pela lei.
Palavras-chave: Casamento. Família. Homoafetividade. Homoparentalidade.
1 Um Olhar no Tempo
A homossexualidade sempre existiu. É tão antiga quanto a própria humanidade.
Na Idade Antiga era não só aceita, mas enaltecida e até glorificada.
Tanto o Estado como todas as religiões, credos e crenças sempre tentaram amarrar e eternizar os vínculos afetivos, ao menos os heterossexuais. Para isso foi
criado o casamento, uma instituição, um sacramento com a finalidade de obrigar o casal a se multiplicar até a morte.
Apesar de todos os dogmas, princípios e regras que buscam assegurar a primazia
dos direitos humanos, a sociedade, em nome da moral e dos bons costumes,
impõe rígidos padrões de comportamento. Com seu perfil nitidamente conservador, cultua valores absolutamente estigmatizantes, insistindo em repetir os
modelos postos.
É no âmbito das relações familiares onde mais se evidencia a tendência de
formatar os vínculos afetivos segundo os valores culturais dominantes em cada
época. Tal postura gera um sistema de exclusões baseado, muitas vezes, em meros
preconceitos. Tudo o que se situa fora do estereótipo acaba sendo rotulado de
anormal, ou seja, fora da normalidade, por não se encaixar nos padrões aceitos
pela maioria. Essa visão polarizada é extremamente limitante.
A Ética do Afeto
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 381-395, 2014
382
Não se pode esquecer o que a sociedade fez com o negro: em face de sua cor, o
tornou escravo. Também as mulheres foram – e ainda são – alvo de discriminações. Só em 1932 adquiriram a cidadania e até 1962, ao casar, perdiam a plena
capacidade. O mesmo ocorreu com os filhos que, antes de 1988, tinham direitos
limitados, sendo alvo de expressões ultrajantes pela singela circunstância de
haverem sido concebidos fora de uma família constituída pelo casamento: ilegítimos, espúrios, bastardos, etc.
Sempre houve a tentativa de engessar o exercício da sexualidade ao casamento.
Sua mantença tinha acentuada finalidade patrimonial: permitir a identidade dos
elos de consanguinidade e assegurar a transmissão do patrimônio familiar aos
sucessores legítimos do pater familiae. Por isso é regulada a própria postura dos
cônjuges, chegando ao ponto de se invadir a privacidade do casal. Basta ver a
imposição do dever de fidelidade.
A família consagrada pela lei – a sagrada família – é matrimonializada, patriarcal, assimétrica, hierarquizada, patrimonializada, indissolúvel e heterossexual.
Pelas regras do Código Civil de 1916, os relacionamentos que fugissem ao molde
legal, além de não gerarem quaisquer direitos ou obrigações, estavam sujeitos a
severas sanções. Chamados de marginais, os vínculos afetivos extramatrimoniais
nunca foram reconhecidos como família.
O casamento gerava um vínculo indissolúvel. Apesar de ocorrer por vontade dos
nubentes, era mantido independente e até contra a vontade dos cônjuges. Mesmo com o advento da Lei do Divórcio, a separação e o divórcio só eram deferidos
ou após o decurso de determinado prazo, ou mediante a identificação de um
culpado – o qual não podia tomar a iniciativa do processo, o que evidencia a
intenção de punir quem simplesmente queria se desvencilhar do casamento. Foi
a Emenda Constitucional 66/2010 que acabou com a separação, a perquirição da
culpa e a imposição de prazos para a concessão do divórcio, que pode ser obtido
inclusive extrajudicialmente.
Como a única finalidade da família era a atividade procriativa, a prática sexual
antes ou fora do casamento – ao menos para as mulheres –, além de proibida,
era punida. Daí o dogma da virgindade feminina, que só agora deixou de agregar
valor à mulher. A ausência da virgindade era causa de anulação do casamento.
Ora, se a noiva casava virgem e se mantinha casta, os seus filhos só poderiam ser
filhos do marido. É o que a lei, até hoje, pressume. Em contrapartida, como os
filhos concebidos fora do casamento não podiam ser reconhecidos, a liberdade
sexual dos homens sempre foi incentivada e até invejada.
Com a evolução político-cultural, deixou o Estado de se submeter aos rígidos
383
Maria Berenice Dias
dogmas da Igreja, que atribuía à família uma natureza divina. Esse movimento,
denominado secularização ou laicização, é a base da cultura liberal. Conforme
Welter (2003, p. 229), “a moral, a contar da separação entre a Igreja e o Estado,
não é mais um mandato das alturas, não é sacra, e sim profana”.
A dificuldade de as relações extramatrimoniais serem identificadas como famílias revela a visão sacralizada do conceito de família. Ainda que não exista qualquer diferença estrutural com os relacionamentos oficializados, a negativa sistemática de estender a outros arranjos as normas do casamento evidencia a
tentativa de preservação da família dentro dos padrões convencionais.
Apesar da proibição legal, estruturas de convívio fora do casamento sempre existiram. Mesmo sem nome, mesmo sem lei, acabaram forçando sua inserção social e foram bater às portas do Poder Judiciário. Primeiro procurou-se identificá-las
a uma relação de natureza trabalhista, e só se via labor onde existia amor. Depois, a jurisprudência passou a permitir a partição do patrimônio, considerando
uma sociedade de fato, o que nada mais era do que uma sociedade de afeto.
As causas da evolução foram muitas: a revolução industrial, o movimento feminista, o surgimento dos métodos contraceptivos, a engenharia genética. Mas a
consequência foi uma só: o reconhecimento de o afeto ter valor jurídico, o que
levou à pluralização do conceito de família.
Quando a Constituição Federal albergou no conceito de entidade familiar o que
chamou de união estável, inserindo as relações extramatrimoniais no âmbito familiar, tal não foi suficiente para que as uniões de pessoas do mesmo sexo fossem dignas da tutela. Continuaram condenadas à total invisibilidade, como se,
assim, fossem desaparecer.
Há 25 anos, as uniões homossexuais não eram reconhecidas em país algum do
mundo. Os parceiros, ainda que tendo vivido juntos por décadas, nunca tiveram
qualquer direito. Foi a Dinamarca, no ano de 1989, que admitiu a união civil,
ainda assim fora do Direito das Famílias.
Há 15 anos, os homossexuais não podiam casar. Tal só foi possível a partir de
2001, na Holanda. Agora 18 países admitem o casamento, todos por força de lei.
Mas no Brasil, tal possibilidade decorre de decisão da Justiça.
2 Família e Casamento
A família sempre foi abençoada por todas as religiões, que buscam perpetuá-la
por meio do casamento, considerado um sacramento. É invocada a interferência
A Ética do Afeto
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 381-395, 2014
384
divina para garantir sua indissolubilidade: o que deus uniu o homem não separa!
Parece que o casamento confere uma aura de santidade aos seus membros, única forma de justificar o injustificável: negar aos pares do mesmo sexo acesso ao
casamento.
A naturalização da ideia de que o casamento é entre um homem e uma mulher
é de tal ordem que sequer o Código Civil faz essa exigência. Ao ser flagrada dita
omissão, surgiu a teoria do casamento inexistente, com o só intuito de não admitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
O receio de comprometer o conceito do casamento, limitado à ideia da procriação e, por consequência, à heterossexualidade do casal, não permitia que se inserissem as uniões homoafetivas no âmbito do Direito das Famílias. Quando reconhecida sua existência, eram relegadas ao Direito das Obrigações. Chamadas
de sociedades de fato, limitava-se a Justiça a conferir-lhes sequelas de ordem
patrimonial. Se um dos sócios conseguisse provar sua efetiva participação na
aquisição dos bens amealhados durante o período de convívio, era determinada
a partição do patrimônio, operando-se verdadeira divisão de lucros.
Tudo isso não conseguiu fazer com que uniões de pessoas do mesmo sexo deixassem de existir. Percorreram o mesmo calvário que foi imposto às uniões
extramatrimoniais.
3 Novas Estruturas Familiares
No Brasil, o evoluir da sociedade ao longo do último século levou a uma verdadeira transformação da família, que passou a ser referida no plural: famílias. A
mudança foi inserida na Constituição Federal, que trouxe o conceito de entidade
familiar, mas não logrou enlaçar todas as formatações da família.
O constituinte se limitou a citar as espécies mais frequentes: o casamento, a
união estável entre um homem e uma mulher e a constituída por um dos genitores
com sua prole, que recebeu da doutrina o nome de família monoparental. O
elenco constitucional é somente exemplificativo e não exaustivo. “Os tipos de
entidades familiares explicitamente referidos na Constituição não são números
fechados” (LOBO, 2002, p. 106).
Da ideia sacralizada de casamento, passou-se ao pluralismo das entidades familiares, com o alargamento de seu conceito, abrigando estruturas não convencionais, em que nem sequer o número ou o sexo dos partícipes é determinante para
385
Maria Berenice Dias
seu reconhecimento. A partir dessa evolução – verdadeira revolução –,passou-se
a buscar uma definição de família que albergasse as diversas estruturas de convívio. E foi o IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) que isolou o seu
elemento identificador: o afeto. Esse é o elemento fundante que permite reconhecer quando se está frente a uma estrutura familiar merecedora da tutela
jurídica (VILLELA, 1999).
Relacionamentos afetivos geram obrigações mútuas, direitos e deveres de parte
a parte. E, quando se fala em afeto e responsabilidade, sempre vem à mente a
famosa frase de Saint-Exupéry: você é responsável por quem cativas! Não se pode
deixar de visualizar nesse enunciado a origem do Direito das Famílias. Basta a
existência de um comprometimento mútuo para se estar frente a um vínculo
familiar. Assim, quem ama, seja quem for, assume deveres e encargos. Como o
afeto gera ônus e bônus, as obrigações são recíprocas, pois quem tem direitos
também tem obrigações. Esse é o componente ético que precisa ser reconhecido
e preservado.
A maneira de o ser humano buscar a felicidade perpassa pelo estabelecimento
de elos de afetividade. Há até uma música que diz: é improvável, é quase impossível, ver alguém feliz de fato sem alguém para amar1. Se as relações se estabelecem da
forma não legal ou não convencional, cabe ao juiz identificar a existência de um
vínculo familiar para abrigá-las sob o manto da juridicidade. Essa é a única forma de se fazer Justiça: enxergar a realidade e flagrar as situações merecedoras
de tutela.
A garantia da Justiça é o dever maior do Estado, que tem o compromisso de
assegurar respeito à dignidade da pessoa humana, dogma que se assenta nos
princípios da liberdade e da igualdade. Essa é uma nova realidade, contra a qual
não adianta se rebelar. Simplesmente não ver o que está diante dos olhos não
faz nada desaparecer. Tentar engessar a família ao modelo do casamento é deixar ao desabrigo da juridicidade uma legião de famílias que constituem a sociedade dos dias de hoje.
É mais atual do que nunca a célebre afirmativa de Virgílio de Sá que, já nos idos
de 1923, reconhecia que a família não é criada pelo homem, mas pela natureza:
“o legislador não cria a família, como o jardineiro não cria a primavera” (OLIVEIRA, 2009, p. 25).
1
ROSA, Samuel; ZANETI, Lelo; AMARAL, Chico. Te ver. Intérprete: Skank. In: SKANK. Calango. Belo
Horizonte: EPIC, p1994. 1 CD. Faixa 7.
A Ética do Afeto
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 381-395, 2014
386
4 Homoafetividade
O último censo revelou a existência de 60 mil famílias constituídas por pessoas
do mesmo sexo. Às claras que esse número não quantifica as pessoas lésbicas,
gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais, identificadas pela sigla
LGBTI. Como não existe uma legislação que reconheça seus direitos e criminalize
atos homofóbicos de que são vítimas, são reféns de toda a sorte de violência e
agressões. Nada há de mais perverso do que condenar alguém à invisibilidade.
Tanto assim que a indiferença, o ignorar a existência é a pior forma de maltratar
alguém.
É indispensável admitir que os vínculos homoafetivos – muito mais do que relações homossexuais – configuram uma categoria social que não pode mais ser
discriminada ou marginalizada pelo preconceito. Embora não reconhecidas pelo
ordenamento jurídico, são uma entidade familiar. A doutrina é amplamente favorável ao reconhecimento dos relacionamentos homoafetivos que têm por base
o afeto e a solidariedade. Por elementar princípio de igualdade indispensável,
que aos pares do mesmo sexo sejam concedidos os mesmos direitos dos companheiros heterossexuais. O dever de mútua assistência entre os parceiros homossexuais parte de uma perspectiva moral, desembocando em um verdadeiro dever de solidariedade, decorrente da própria união. “A convivência implica dever
de consciência e um dever social e jurídico de atender ao sustento do convivente” (MEDINA, 2001, p. 239).
Apesar do perverso preconceito de que são alvo, das perseguições que sofrem,
mantém-se omisso o legislador. O fato de não haver previsão legal para uma
situação específica, não significa a inexistência de direito à tutela jurídica. Ausência de lei não quer dizer ausência de direito, nem impede que se extraiam
efeitos jurídicos de determinada situação fática. A falta de previsão específica
nos regramentos legislativos não pode servir de justificativa para negar a prestação jurisdicional ou de motivo para que se deixe de reconhecer a existência de
um direito merecedor de tutela.
Por medo de serem rotulados de homossexuais, de comprometerem sua reeleição, os parlamentares invocam preceitos bíblicos para pregar o ódio e a discriminação. Nada mais do que o preconceito disfarçado em proteção à sociedade. Não
é por outro motivo que, até hoje, não foi aprovada qualquer lei que criminalize a
homofobia ou garanta direitos às uniões homoafetivas.
A dificuldade de reconhecer que não é a possibilidade procriativa, mas a convivência afetiva, que caracteriza uma entidade familiar, sempre impediu que as
387
Maria Berenice Dias
uniões homoafetivas fossem tidas como união estável ou lhes fosse assegurado
acesso ao casamento.
5 Avanços Jurisprudenciais
Até parece singelo ou piegas, mas é imperioso repetir o significado da vida e a
finalidade do Estado. Se o cidadão busca a felicidade, cabe ao Estado garantir-lhe
esse direito. Quando o legislador se omite, essa função é exercida pelo Poder
Judiciário, que tem o encargo de fazer Justiça, sem que com isso se possa falar
em afronta à divisão dos poderes ou de ativismo judicial.
As mudanças sempre têm início no meio social e acabam sendo trazidas aos
tribunais. Os juízes trabalham mais rente aos fatos e, aos que têm mais sensibilidade, resta a missão pioneira de atentar a essas evoluções e julgar segundo a
feição atual da sociedade. E a consolidação de novos paradigmas acaba por forçar sua inserção na lei e na própria Constituição.
Como a Justiça não consegue conviver com injustiças, passou a assegurar direitos à população LGBTI e a reconhecer as uniões homoafetivas como entidade
familiar.
Mas, até 25 anos atrás, os juízes se consideravam mágicos. Simplesmente diziam
que as uniões homossexuais não existiam. Não admitiam sequer que os homossexuais ingressassem na Justiça. As ações eram extintas. Somente no ano de
2008, o Superior Tribunal de Justiça veio a reconhecê-las.
A grande mudança começou no ano de 2000, quando o Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul reconheceu que a união homossexual é uma união estável e não
uma mera sociedade de fato.
Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal proclamou-as uniões homoafetivas
como entidade familiar, concedendo aos casais homoafetivos os mesmos direitos dos casais que vivem em união estável.
A partir daí começou a jurisprudência a admitir a conversão da união homoafetiva
em casamento, até que, em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça proibiu
a qualquer autoridade negar o reconhecimento da união estável e o acesso ao
casamento direto ou por conversão.
A consolidação das decisões judiciais deveria motivar o legislador a regulamentar situações que não mais podem ficar à margem do Direito. Consagrar os direitos em regras legais talvez seja a maneira mais eficaz de romper tabus e derru-
A Ética do Afeto
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 381-395, 2014
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bar preconceitos. “Afinal, é preciso que o Direito esteja acima de conceitos
estigmatizantes, porque das relações de afeto, hétero ou homossexuais, decorrem consequências patrimoniais, e não dar a cada um o que é seu foge aos ideais
de Justiça” (PEREIRA, 2004, p. 155). “Mas, enquanto a lei não vem, é o Judiciário
que deve suprir a lacuna legislativa, mas não por meio de julgamentos permeados
de preconceitos ou restrições morais de ordem pessoal” (DIAS, 2003, p. 18).
6 Lei Maria da Penha: a legalização das uniões
homoafetivas
O advento da legislação visando coibir a violência doméstica teve mais um mérito. A Lei 11.340/2006, que passou a ser chamada Lei Maria da Penha, é o primeiro
marco legal que faz referência expressa às famílias homossexuais, ao proibir
discriminação por orientação sexual. Diz reiteradamente que a toda mulher, independentemente de sua orientação sexual, goza do direito fundamental inerente à pessoa humana, e que as situações que configuram violência doméstica
independem de orientação sexual.
O preceito dispõe enorme repercussão. Como é assegurada proteção legal a fatos
que ocorrem no ambiente doméstico, isso quer dizer que as uniões de pessoas do
mesmo sexo são entidades familiares. Violência doméstica, como diz o próprio
nome, é violência que acontece no seio de uma família. Assim, a Lei Maria da
Penha ampliou o conceito de família, alcançando as uniões homoafetivas.
Assim está assegurada proteção tanto às lésbicas como às travestis e transexuais
do gênero feminino, que mantêm relação íntima de afeto, em ambiente familiar
ou de convívio. Em todos esses relacionamentos, as situações de violência justificam especial proteção.
A lei define como família qualquer relação íntima de afeto, o que não permite
excluir as famílias homoafetivas desse conceito. Sem dúvida, os vínculos de pessoas do mesmo sexo constituem uma sociedade de afeto. Assim, quer as uniões
formadas por um homem e uma mulher, quer as formadas por duas mulheres,
quer as formadas por um homem e uma pessoa com distinta identidade de gênero, todas configuram famílias. Ainda que a lei tenha por finalidade proteger a
mulher, ampliou o conceito de família, independentemente do sexo dos parceiros. Se também família é a união entre duas mulheres, igualmente é família a
união entre dois homens. Basta invocar o princípio da igualdade.
A partir da nova definição de entidade familiar, não mais cabe questionar a natureza dos vínculos formados por pessoas do mesmo sexo. Ninguém pode conti-
389
Maria Berenice Dias
nuar alegando omissão legislativa para deixar de emprestar-lhes efeitos jurídicos.
O avanço é significativo, pois coloca um ponto na discussão que entretém a doutrina e ainda divide os tribunais. Agora, não mais é possível excluir as uniões
homoafetivas do âmbito do Direito das Famílias. Diante da definição de entidade
familiar, não se justifica que o amor entre iguais seja banido do âmbito da proteção jurídica, visto que suas desavenças são reconhecidas como violência doméstica. A realidade demonstra que a unidade familiar não se resume apenas a casais heterossexuais. A legislação apenas acompanhou essa evolução para permitir que o Estado intervenha para garantir a integridade física e psíquica dos membros de qualquer forma de família.
7 Homoparentalidade
Não só a família, também a filiação foi alvo de profunda transformação.
O afeto, elemento identificador das entidades familiares, igualmente começou a
servir de parâmetro para a definição dos vínculos parentais. A jurisprudência
passou a atentar ao melhor interesse da criança e do adolescente e a reconhecer
o vínculo de filiação a quem eles consideram pai e que os ama como filhos. Isso
fez surgir uma nova figura jurídica, a filiação socioafetiva, que se sobrepôs tanto
à realidade biológica como a registral.
Das presunções legais de paternidade, chegou-se à plena liberdade de reconhecimento de filhos e à imprescritibilidade das ações para perquirir os vínculos de
parentalidade, mesmo na hipótese de adoção. Está assegurado o direito ao conhecimento da ascendência genética, ainda que tal reconhecimento não gere
direitos de natureza alimentar ou sucessória. Sequer se admite a alteração do
registro de nascimento caso seja demonstrada a existência de uma filiação de
natureza afetiva com quem registrou o filho como seu.
Indispensável reconhecer que crianças e adolescentes vivem e sempre viveram
em lares de pessoas do mesmo sexo. Mas a maior aceitação das famílias
homoafetivas tornou impositivo o estabelecimento do vínculo jurídico paternofilial com ambos os genitores, ainda que sejam dois pais ou duas mães.
Negar reconhecimento à homoparentalidade, que se estabelece fora da realidade biológica, é gerar irresponsabilidades e inaceitáveis injustiças que não mais
se conformam com as garantias constitucionais de respeito à dignidade da pessoa humana. Como lembra Veloso, o princípio capital norteador do movimento
de renovação do Direito das Famílias é fazer prevalecer, em todos os casos, o bem
A Ética do Afeto
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 381-395, 2014
390
da criança; valorizar e perseguir o que melhor atender aos interesses do menor
(VELOSO, 1997, p. 180).
Com o surgimento da manipulação genética e dos métodos reprodutivos de fecundação assistida, o sonho de ter filhos se tornou realidade para todos. Assim,
qualquer pessoa, independentemente da capacidade procriativa, vivendo sozinho ou sendo casado, mantendo união estável hétero ou homossexual, todos
viram a possibilidade de concretizar o sonho de constituir uma família.
De forma para lá de desarrazoada, o Conselho Federal de Medicina impõe o anonimato às concepções heterólogas2, o que veda identificar a filiação genética. Ou
seja, os vínculos de filiação não podem ser buscados na realidade biológica. No
entanto, existindo um núcleo familiar, presente a vontade do par pela filiação,
imperioso permitir que os pais elejam o doador do material genético, o que não
gera qualquer confronto ético. Ao menos garante ao filho o direito de conhecer
sua ancestralidade, se assim o desejar.
A definição da paternidade é condicionada à identificação do desejo do casal,
nada mais do que o reconhecimento prévio da posse do estado de filho. A identificação da dupla paternidade independe de ter havido a participação de algum
deles no processo reprodutivo. Para assegurar a proteção do filho, os dois pais
precisam assumir os encargos decorrentes do poder familiar. Vetar a possibilidade do duplo registro, já quando do nascimento, só traz prejuízo ao filho, que não
terá qualquer direito com relação a quem também desempenha a função de pai
ou de mãe. Comprovado o consenso do casal quanto à procriação, seja pela assinatura conjunta do Termo de Consentimento Informado, seja por qualquer outro meio de prova, deve a identidade de ambos os pais constar da Declaração de
Nascido Vivo e do próprio registro de nascimento.
Para o estabelecimento do vínculo de parentalidade, basta que se identifique
quem desfruta da condição de pai, quem o filho considera seu pai, sem perquirir
a realidade biológica, presumida, legal ou genética. “Também a situação familiar
dos pais em nada influencia a definição da paternidade, pois família é uma
estruturação psíquica, em que cada um de seus membros ocupa um lugar, desempenha uma função, sem estarem necessariamente ligados biologicamente”
(PEREIRA, 1999, p. 47).
Mais uma vez o critério deve ser a afetividade, elemento estruturante da filiação
socioafetiva. Pretender excluir gays e lésbicas do direito a terem filhos é postura
discriminatória com nítido caráter punitivo. Situação que surge com frequência
3
Resolução CFM nº 2.013/2013, publicada em 09/05/2013.
391
Maria Berenice Dias
é quando o casal faz uso da reprodução assistida. Será o pai ou a mãe somente
quem se submeteu ao procedimento procriativo? O parceiro ou a parceira que
não forneceu material genético fica excluído da relação de parentesco, mesmo
que o filho tenha sido concebido por vontade de ambos? Legalmente, pai ou mãe
será somente um deles, o genitor biológico, ainda que o filho tenha sido concebido por desejo dos dois. Mas permitir exclusivamente que a verdade biológica
identifique o vínculo jurídico é olvidar tudo o que a doutrina vem sustentando e
a Justiça, construindo. Como afirma Fachin (1997, p. 85), a verdade genética não
interessa, pois o filho foi gerado pelo afeto, e não são os laços bioquímicos que
indicam a figura do pai, mas, sim, o cordão umbilical do amor.
Não reconhecer a paternidade homoparental é retroagir um século, ressuscitando a perversa classificação do Código Civil de 1916, que, em boa hora, foi banida
pela Constituição Federal de 1988. Além de retrógrada, a negativa de reconhecimento escancara flagrante inconstitucionalidade, pois é expressa a proibição de
quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Rejeitar a
homoparentalidade afronta um leque de princípios, direitos e garantias fundamentais.
É gaúcha a decisão que, pela vez primeira, e isso no ano de 2005, reconheceu o
direito à adoção a um casal formado por pessoas do mesmo sexo. Os filhos haviam sido adotados por uma das parceiras, vindo a outra a pleitear a adoção em
juízo. A sentença foi confirmada pelo Tribunal de Justiça e pelo Superior Tribunal
de Justiça.
De lá para cá, muito se avançou, ao se admitir a habilitação do par à adoção,
procedendo ao registro em nome de ambos. Também é assegurado o duplo registro quando uma gesta o óvulo da outra, fecundado em laboratório. Mesmo quando uma das mães não fornece material genético vem sendo reconhecida a dupla
maternidade.
Mas, ao contrário do que acontece com o casamento, não existe qualquer norma, nem ao menos de natureza administrativa, admitindo que o registro seja
levado a efeito quando do nascimento. Assim, se faz necessária a propositura de
uma demanda judicial e, até o trânsito em julgado da sentença – que pode demorar muito tempo –, a criança permanece sem direito à identidade, ao nome de
um dos genitores, o que lhe subtrai a condição de dependente para todos os
efeitos, quer previdenciários, quer sucessórios.
Desse modo, no atual estágio, os grandes desprotegidos pela ausência de uma
legislação são as crianças que, ironicamente, deveriam ser alvo de proteção integral com prioridade absoluta, como determina a Constituição Federal.
A Ética do Afeto
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 381-395, 2014
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8 Estatuto da Diversidade Sexual
Todos os avanços levados a efeito pelo Poder Judiciário desafiam o Poder Legislativo
a cumprir com o seu dever de fazer leis. No entanto, a maioria de seus integrantes, por puro preconceito, se mantém inerte, escudando-se em alegações
pretensamente de ordem religiosa.
Como existe o direito subjetivo à livre orientação sexual e à identidade de gênero, há o dever jurídico de esse direito ser reconhecido, positivado e respeitado.
Daí o desafio assumido pela Ordem dos Advogados do Brasil, que criou a Comissão da Diversidade Sexual no âmbito do Conselho Federal e comissões em todas
as Seccionais e em mais de cem Subseções.
Um grupo de juristas, com a colaboração dos movimentos sociais, elaborou o
anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual e apresentou propostas de emenda constitucionais para a alteração de sete dispositivos da Constituição Federal,
o que deu origem a três Propostas de Emenda Constitucional. Duas delas já se
encontram em tramitação no Senado Federal. Uma proíbe discriminação por
orientação sexual ou identidade de gênero, inclusive nas relações de trabalho.
Outra substitui a licença-maternidade e a licença-paternidade pela licença-natalidade, a ser concedida indistintamente a qualquer dos pais. A terceira assegura acesso ao casamento igualitário, substituindo a expressão homem e mulher por
duas pessoas.
O Estatuto da Diversidade Sexual é o mais arrojado projeto de lei do mundo, pois
não existe uma legislação tão ampliativa. Visa promover a inclusão de todos,
sem distinção; combater a discriminação e a intolerância por orientação sexual
ou identidade de gênero; dar efetividade a uma série de prerrogativas e direitos a
homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais.3
Por se tratar de um segmento alvo de perseguição religiosa e de preconceito social, sujeito à marginalização e à exclusão, o projeto foi desenhado a partir da
concepção moderna de um microssistema. Teve por espelho outras legislações
especiais, como o Código de Defesa do Consumidor, os Estatutos da Criança e do
Adolescente, do Idoso e da Igualdade Racial, todos voltados a segmentos sociais
vulneráveis, que merecem regras protetivas diferenciadas. Por isso são elencados
princípios e garantidos direitos. Há normas de conteúdo material e processual,
de natureza civil e penal. A homofobia é criminalizada e é imposta a adoção de
políticas públicas a serem implementadas nas esferas federal, estadual e municipal.
3
Íntegra do Estatuto da Diversidade Sexual no site www.estatutodiversidadesexual.com.br.
393
Maria Berenice Dias
Diante da enorme repercussão alcançada pela Lei da Ficha Limpa, foi desencadeado um movimento para angariar adesões e apresentar o Estatuto por iniciativa popular. A luta por sua aprovação certamente não é fácil, pois é necessário
reunir cerca de um milhão e meio de assinaturas. Mas esta é a primeira vez que
ocorre uma movimentação social pela aprovação de uma lei que assegure direitos às pessoas LGBTI. Certamente é o único jeito de driblar a postura omissiva do
legislador que não mais poderá alegar que o projeto desatende ao desejo do povo.
Não há outra forma de a sociedade reivindicar tratamento igualitário a todos,
independentemente de sua orientação sexual ou de identidade de gênero. Assim, todos que acreditam que o Brasil é um estado livre e democrático precisam
aderir à campanha.4
É chegada a hora de homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e
intersexuais saírem da margem do sistema legislativo brasileiro. Não se justificam as resistências às suas lutas.
9 Finalmente...
Como as uniões entre pessoas do mesmo sexo eram estéreis – ao menos até o
surgimento das técnicas de reprodução assistidas –, sempre foram rejeitadas,
consideradas crime, pecado, uma abominação, uma aberração.
Por isso, muita gente se arvora o direito de rejeitar, punir, matar gays, lésbicas,
bissexuais, travestis e transexuais. E a tendência da sociedade sempre foi assistir
de forma indiferente e até aplaudir tais manifestações.
Daí a necessidade de se ter uma legislação não só para conceder direitos, mas
também para criminalizar a homofobia. Mas enquanto a lei não vem, a missão é
do juiz. Não basta procurar a lei que preveja uma situação que retrate paradigmas
preestabelecidos. Ao juiz cabe identificar a presença de um vínculo de afetividade.
É desnecessária expressa previsão legal para o estabelecimento dos vínculos
afetivos e, via de consequência, para o reconhecimento de direitos e imposição
de obrigações recíprocas.
Punir quem vive fora dos parâmetros aceitos pela moral conservadora não é
função do juiz nem do Estado nem de ninguém. O juiz não pode usar a espada
que consta do símbolo de sua profissão para podar direitos. Precisa arrancar a
venda nos olhos e ver a necessidade de ser respeitada a diferença, cânone maior
do direito à igualdade e à liberdade.
4
Adesões pelo site: www.estatutodiversidadesexual.com.br.
A Ética do Afeto
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 381-395, 2014
394
Está na hora de o Estado mudar o perverso tratamento discriminatório que atinge um segmento da sociedade ainda refém do preconceito.
Já que a Constituição Federal consagra como princípio maior o respeito à dignidade da pessoa humana, é indispensável reconhecer que todos os cidadãos dispõem do direito individual à liberdade, direito social de escolha e direito humano
à felicidade.
Se o século XX foi o século das mulheres, o século XXI será o século de a população LGBTI ter seus direitos garantidos.
The Ethics of Affection
Abstract: The present paper deals with the perspective of society and Law about the union of
same-sex couples throughout the history of humankind. It presents the latest legal
developments regarding new family patterns, including common-law marriage and adoptions.
It also underscores the importance of replacing the term homosexuality with homoaffective
relationship, as family designates, by law, any close affective relationship.
Keywords: Family. Marriage. Homoaffective Parenting. Homoaffective Relationship.
Referências
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novo Código Civil. 6. ed. São Paulo: Método, 2009.
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VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros,
1997.
395
Maria Berenice Dias
VILLELA, João Baptista. O modelo constitucional da filiação: verdades e supertições.
Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, v. 1, n. 2, jul./set.. 1999.
Editora Síntese e IBDFAM.
WELTER, Belmiro Pedro. Estatuto da União Estável. 2 ed. Porto Alegre. Síntese, 2003.
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Revisão de português: Antônio Paim Falcetta
Maria Berenice Dias
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A Ética do Afeto
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 381-395, 2014
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entrevista
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SBPdePA Entrevista Elisabeth Zambrano
SBPdePA Entrevista
Elisabeth Zambrano
Médica psicanalista. Doutora em Antropologia Social.
SBPdePA – Gostaríamos de saber um pouco sobre sua trajetória profissional, e
sobre como surgiu seu interesse no estudo da Parentalidade, Homoparentalidade e
Família?
E.Z. – A minha trajetória profissional e o interesse por determinados temas, certamente, vêm se cruzando permanentemente ao longo da vida. Sou formada em
Medicina pela UCPEL, e quando terminei a graduação já tinha claro que queria
fazer a formação psicanalítica sem ter que passar por uma residência em psiquiatria. Mudei-me para o Rio de Janeiro e iniciei a formação psicanalítica na SBPRJ.
Ao entrar em contato com as ideias freudianas sobre complexo de Édipo, teoria
da castração, simetria entre a sexualidade masculina e a feminina, feminilidade
etc., achei que essas formulações não respondiam de modo satisfatório às minhas dúvidas e interrogações sobre o desenvolvimento psíquico de homens e
mulheres e suas especificidades. A minha principal questão, já naquele momento, era: o que faz com que um indivíduo nascido biologicamente homem ou mulher
se constitua psiquicamente como homem ou mulher? Também já questionava a
maneira como era entendida pela psicanálise a construção da orientação do desejo sexual na direção da hetero ou da homossexualidade. Essas dúvidas continuaram presentes até o final da formação psicanalítica. Quando retornei a Porto
Alegre, além do trabalho no consultório, coordenei alguns grupos de estudo sobre gênero e sexualidade buscando autores psicanalíticos que tivessem avançado
em outras hipóteses, mais esclarecedoras e mais adequadas ao contexto
sociocultural do final do século XX. Aos poucos, fui confirmando que o estudo da
identidade sexual, considerada como sendo composta pelo conjunto sexo/gênero/sexualidade, não poderia ser feito sem considerar os atravessamentos sociais
e culturais da nossa época.
Neste momento, procurei a antropologia, na tentativa de ampliar o conhecimento do tema, abrindo a reflexão de maneira a incluir não apenas o sujeito em
relação a si mesmo, mas também o sujeito em relação ao seu contexto externo e
posição sociocultural. Ou seja, me interessava conhecer tanto os componentes
intrassubjetivos quanto os intersubjetivos do sistema sexo/gênero/sexualidade.
SBPdePA Entrevista Elisabeth Zambrano
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 399-407, 2014
400
Partindo daí, fiz um mestrado em antropologia social na UFRGS, cujo tema de
pesquisa foi a transexualidade e a cirurgia de troca de sexo. Naquele momento, o
meu objetivo era saber o que levava homens e mulheres nascidos normais biologicamente a buscarem uma adequação anatômica ao sentimento de pertencer ao
outro sexo e quais as implicações individuais e sociais daí decorrentes.
O acesso à antropologia me abriu um extenso campo de estudo sobre como eram
percebidos e vivenciados sexo/gênero/sexualidade nas diferentes culturas, mostrando, inclusive, como as estruturas familiares eram organizadas em relação ao
sexo/gênero/sexualidade dos seus componentes. Permitiu, também, relativizar
algumas certezas que trazia da formação médica. Pude observar a influência da
cultura nas nossas concepções de saúde/doença, constatar que a diferença não é
sinônimo de patologia e, principalmente, desconstruir a ligação natural do sexo
(biológico) com o gênero (social) e, consequentemente, com a sexualidade (orientação do desejo sexual). Percebi que nem sempre um homem (ou mulher) biológico se sente como sujeito masculino (ou feminino) e deseja uma mulher (ou
homem). E mais, em outras culturas nem sempre o masculino (ou feminino) se
apoia no biológico. As variações são enormes e, mais do que ao biológico, obedecem às regras sociais específicas de cada cultura. Um rápido exemplo são os índios guaiaquil, do Equador, para os quais a determinação do gênero, com suas
atribuições sociais, se dá pela escolha de cada sujeito do uso do arco e flecha
(masculino) ou do cesto (feminino). Não existe o desconhecimento da realidade
anatômica do sujeito, mas existe a aceitação social do gênero ao qual ele quer
pertencer. Até a escolha, o gênero é intercambiável.
Da mesma maneira, os estudos antropológicos da família e do parentesco mostram a existência de formas muito variadas de configurações familiares, nem
sempre levando em consideração o fato biológico da fecundação.
Ao terminar o mestrado, tive contato com um grupo de psicólogos e assistentes
sociais do Fórum Central de Porto Alegre, interessados em conhecer mais sobre
homossexualidade e transexualidade, a fim de atenderem adequadamente as
demandas de adoção por pessoas ou casais homossexuais que, já naquele momento, começavam a aparecer. Naturalmente, depois dessa experiência, me senti muito motivada a estudar a estrutura familiar específica dos casais do mesmo
sexo e como era exercida a parentalidade nessas famílias. Este foi o tema do meu
doutorado, feito também na UFRGS.
Embora o mestrado e o doutorado tenham sido feitos na antropologia social,
durante a sua duração sempre busquei fazer um paralelo com a visão da psicanálise. Por isso, atualmente estou me dedicando a fazer a junção entre o conhecimento antropológico e o psicanalítico relacionado ao tema.
401
SBPdePA Entrevista Elisabeth Zambrano
SBPdePA – Estamos falando em como tem se apresentado a parentalidade e a
família na cultura ocidental ao longo do tempo. Sob uma ótica apurada, houve
diferenças marcantes?
E.Z. – Sim, houve muitas diferenças, pois nem sempre a família ocidental se
manifestou da forma como a conhecemos atualmente. Existiram agrupamentos
ao longo do tempo que foram considerados familiares e não tinham a mesma
configuração contemporânea.
Para entender o porquê dessas diferenças, temos que identificar o objetivo de
determinada configuração, o sentido e/ou o valor atribuído a cada um dos seus
elementos e os vínculos estabelecidos entre eles.
Tomando o exemplo da Roma antiga, vemos que na família romana o lugar mais
importante era o do pai e todos os indivíduos que pertenciam a ela lhe deviam
obediência e o serviam. Embora houvesse uma esposa e crianças, o grupo familiar incluía igualmente os agregados, os servos e os escravos. Importava pouco
que as crianças não fossem seus filhos biológicos. O pai era o chefe da família e
não necessariamente o genitor. Era mais uma questão de poder sobre os membros do que de consanguinidade.
Pouco a pouco, o sentido da família foi sendo modificado e passou a significar
apenas os descendentes, caracterizando tanto aqueles originados do pai quanto
os da mãe.
Durante a Idade Média, devido à influência da igreja e do direito canônico, o que
fundava uma família não era mais a existência do pai, mas o casamento. Foram
sendo misturadas a noção de vida conjugal com a de filiação e os vínculos que
uniam as pessoas foram sendo considerados cada vez mais importantes.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que aconteciam profundas mudanças da
sociedade, a família foi adquirindo o significado de centro de estruturação da sociedade. A partir de 1792, com a criação do estado laico na França e, depois de 1804,
com a criação do Código Napoleônico, a filiação ficou cada vez mais subordinada
ao casamento. Neste momento, o pai era, legal e socialmente, o marido da mãe,
não importando se houvesse a dúvida de ser ou não o pai biológico, pois a finalidade do casamento e da família que ele funda era, cada vez mais, fortalecer o
vínculo entre seus membros, principalmente o que liga o pai a uma criança.
Assim, a partir daí, o que faz existir uma família é a relação entre seus componentes: a criança no centro, o pai e a mãe em torno dela. É apenas no final do
século XIX que aparece a família nuclear tal como a conhecemos hoje. É também neste contexto que o afeto começa a ser considerado um valor familiar. O
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afeto (ou amor) passa a ser incluído neste conjunto de relações como uma das
características da concepção moderna de família.
Embora pareça óbvia, a definição de família não é muito simples. A antropologia
nos mostra que, com algumas poucas exceções, em todas as culturas existe um
tipo de agrupamento que poderia ser entendido como família, e em todos eles
encontramos um conjunto de elementos que estão presentes, senão na totalidade, pelo menos em parte. São eles: o casamento (uma união sexual socialmente
legitimada, com ideia de permanência), residência comum, obrigações econômicas recíprocas entre os cônjuges, direitos e deveres da parentalidade, relações de
parentesco extenso e tabu do incesto. Entretanto, é necessário analisar a diferença que existe entre esta noção geral de família, de um lado, e suas diferentes
manifestações, de outro.
As configurações podem ser muito diferentes, pois não existe um modelo de
família natural, universal e fora da história.Temos que pensá-la como não fixa e
não separada do contexto social no qual está inserida.
Por exemplo, na nossa sociedade, o modelo de família é a chamada família nuclear, composta de pai/mãe/filho. Este modelo é considerado o mais natural, já que
está baseado em uma verdade biológica incontestável: até o momento atual, é
necessário um óvulo e um espermatozoide para se conceber uma criança. Assim, a família nuclear procriativa parece se impor como uma verdade
inquestionável, justamente por estar apoiada socialmente no fato biológico. Como
consequência, é comum pensarmos que uma criança deva ter apenas um pai e
uma mãe, juntando na mesma pessoa o fato biológico da procriação, a filiação, o
parentesco e a parentalidade. Nem nos ocorre que esta relação tão natural possa
ser submetida às leis sociais.
Por isso, é importante primeiro esclarecer que o vínculo familiar ligando um adulto
a uma criança pode ser desdobrado em quatro elementos: a) a procriação, vínculo
biológico dado pela concepção e herança genética; b) o parentesco, vínculo que
une dois indivíduos em relação a uma genealogia, determinando o seu
pertencimento a um grupo; c) a filiação, reconhecimento jurídico desse
pertencimento, de acordo com as leis sociais do seu grupo; b) a parentalidade,
exercício da função parental, implicando cuidados com alimentação, vestuário,
educação, saúde etc., que se tecem no cotidiano em torno do parentesco.
Como se pode ver, com exceção da procriação, os outros vínculos serão sempre
submetidos às leis sociais.
Mesmo no momento atual e em uma mesma sociedade, as estruturas familiares
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SBPdePA Entrevista Elisabeth Zambrano
se apresentam de forma muito variada. Basta considerar os modelos de família
com os quais convivemos: a monoparental, quando apenas um indivíduo (homem ou mulher) é responsável pela criação de um filho; a família pluriparental
recomposta, quando o casal parental se separa e constitui nova família, sendo a
responsabilidade pela criação dos filhos repartida entre ambos os casais; a família adotiva, a família de criação e, ainda, as famílias homoparentais, quando os
pais são do mesmo sexo. Todos esses modelos são chamados família por terem
bem estabelecidos os vínculos entre seus componentes, independente do número e do sexo dos pais.
É interessante notar que a nomeação das configurações atuais da família é derivada da relação vincular estabelecida entre pais e filhos.
SBPdePA – Qual seria o aspecto fundamental que define família (função família)
e parentalidade, independente da cultura na qual está inserida, e da época?
E.Z. – O aspecto mais universal dessa imensa variedade de modelos da instituição chamada família é, justamente, o vínculo estabelecido entre os indivíduos
que são considerados como componentes dela. Podem ser diferentes em cada
sociedade, e vai depender do que cada uma dessas sociedades considera necessário existir para que o grupo seja visto como a instituição família.
É por meio da relação entre adultos entre si e adultos com as crianças (sejam
eles pais biológicos ou cuidadores, casados ou solteiros) que são definidos os
valores e as características que constituem a família. A transmissão dos valores
(familiares e sociais) de uma geração a outra, em qualquer época ou sociedade,
se dá por meio da parentalidade, reproduzindo e mantendo as características de
cada sociedade.
Assim, devido à grande variação dos papéis sociais parentais desempenhados
nas diferentes culturas e períodos históricos — sem prejuízo ao desenvolvimento dos filhos — temos que compreender que parentalidade (o cuidado cotidiano
das crianças) não é sinônimo de parentesco e filiação, e pode ser exercida por
pessoa sem nenhum vínculo legal ou de consanguinidade com a criança como
ocorre, por exemplo, nas famílias homoparentais, nas quais os pais ou mães participam cotidianamente da criação do filho, mesmo que legal e/ou biologicamente a criança seja filha de apenas um dos cônjuges.
Embora a antropologia não se detenha nos aspectos psíquicos da construção do
indivíduo, ela considera o ser humano como essencialmente social, ou seja, só se
constitui como sujeito humano na relação com outro humano. Já nós, psicanalistas, sabemos da importância dessas primeiras relações para o desenvolvimen-
SBPdePA Entrevista Elisabeth Zambrano
Psicanálise v. 16 nº 2, p. 399-407, 2014
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to psíquico do sujeito, aí incluída a capacidade de viver satisfatoriamente as suas
relações afetivas e sociais.
SBPdePA – No vértice psicanalítico, quando falamos em função materna e função paterna, estamos falando de funções psíquicas, independente da diferença
biológica ou anatômica de quem as exerça. Mas as questões referentes a diferenciação sexual e identidade de gênero ficariam comprometidas para os filhos de
casais Homoparentais? Há estudos sobre essa questão?
E.Z. – Freud nos proporciona uma ferramenta muito rica para pensar a família
usando o complexo de Édipo como o lugar de articulação dos vínculos mais precoces do ser humano. Esta entidade restrita que une um homem, uma mulher e
seu filho pode ser considerada como existindo desde a origem da humanidade,
mas não tanto pelos indivíduos em si, ou pela sua anatomia, quanto pelos vínculos que estabelecem entre eles. Sabemos que isso tem a ver com a dialética de
gerações (adulto/criança) e a dialética dos sexos/gêneros (masculino/feminino)
antes do que diferença de sexos ou diferença de gerações. São esses vínculos que
constituem a família, ou antes as famílias, pois se na nossa sociedade se poderia
pensar que é o complexo de Édipo que estrutura a família, poderíamos pensar,
também, que são as variações infinitas desse vínculo intrafamiliar – os variados
complexos de Édipo – que caracterizam as formas infinitas de famílias.
Assim, o que cria o complexo, fator concreto da psicologia familiar, é o seu aspecto social. O complexo de Édipo define particularmente as relações psíquicas
dentro da família humana mas não se pode realizar um salto teórico da família
conjugal, nuclear, para uma hipotética família primitiva concebida como uma
horda onde um macho domina, pela sua superioridade biológica, as mulheres
férteis.
Ao invés de pensar a família universalizando o modelo edípico freudiano (que
corresponde à família conjugal moderna fixando o trio pai-mãe-filho), talvez
pudéssemos pensar em universalizar o complexo, permitindo buscar como traço comum a todas as sociedades a existência de vínculos no interior da
multiplicidade de tipos de família, buscar um complexo que ligue sem fixar, o
que se concebe em outras sociedades como sendo pai, mãe e filho.
Como ilustração, merece ser lembrado o famoso debate entre Freud e Malinowski,
no qual o antropólogo questionava a universalidade do complexo de Édipo por
não ter encontrado essa configuração em uma tribo matriarcal na qual a função
paterna era exercida pelo irmão da mãe. O debate ficou sem conclusão na época
mas, atualmente, se aceitarmos a premissa de que o que importa são os vínculos, o que consideramos função materna e função paterna poderia ser exercida por
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qualquer pessoa que ocupe o lugar simbólico correspondente, inclusive o irmão
da mãe.
Em relação à diferenciação sexual e identidade de gênero dos filhos de casais
homossexuais, as pesquisas empíricas não indicam diferenças significativas em
comparação com filhos de casais heterossexuais.
É importante saber que as pesquisas sobre famílias homoparentais tiveram início em meados dos anos 70, em alguns países da Europa, no Canadá e nos Estados Unidos. No começo, o que orientava as pesquisas era saber se haveria diferenças no desenvolvimento psicossocial das crianças, se os filhos de homossexuais seriam mais comprometidos psiquicamente, mais sujeitos à depressão ou
outras doenças mentais, se haveria uma maior percentagem de filhos homossexuais, se pais homossexuais poderiam ser bons pais, entre outras questões de
menor importância. O conjunto dos resultados, como já disse, não apontou diferenças, mas sim especificidades. As crianças de famílias homoparentais tendem
a aceitar melhor as diferenças, não sofrem por parte dos pais imposições severas
quanto à identidade ou papel de gênero, na adolescência têm mais probabilidade de fazer experiências sexuais com os dois sexos, embora a percentagem de
autorreconhecimento posterior como gays seja semelhante em ambas as famílias.
O reconhecimento da diferença de sexo/gênero dessas crianças não depende
apenas do sexo anatômico dos pais, ele é dado principalmente pela cultura. Alguns antropólogos assinalam que a atribuição de homem ou mulher se dá baseada
no que chamam órgãos sexuais culturais, ou seja, não necessitamos ver os órgãos
sexuais de alguém para considerá-lo homem ou mulher, essa atribuição é feita
considerando a vestimenta, o cabelo, a atitude, etc. Ou seja, depende de como a
pessoa se situa frente às proibições e prescrições dos papéis de gênero de cada
cultura.
Muito antes de conhecer os órgãos sexuais dos pais e entender a sua sexualidade, as crianças já sabem o que é ser um homem ou uma mulher naquela sociedade. Isso acontece também com filhos de homossexuais.
Atualmente, as pesquisas se propõem a não mais buscar diferenças e possíveis
patologias, mas estudar as especificidades dessas famílias.
SBPdePA – Como se apresenta a configuração edípica na criança, filho de um
casal homoparental? Seria diferente de um casal heteroparental?
E.Z. – Ainda não existem pesquisas suficientes no campo da psicanálise para
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afirmar se há diferenças na construção e elaboração do complexo de Édipo e
quais são elas. A imensa maioria das pesquisas realizadas até hoje são do campo
da psicologia e da antropologia, não enfocam o complexo de Édipo em si, mas as
suas consequências. Porém, se pensarmos o Édipo em termos de lugar simbólico
onde se constituem os vínculos familiares, ou seja, a função parental, podemos
dizer que a função psíquica chamada materna ou paterna poderá ser desempenhada por qualquer dos parceiros, mesmo quando exercida de forma mais
marcante por um ou outro dos membros do casal. O necessário é a presença de
um terceiro para a separação psíquica entre cuidador(a) principal e o filho, uma
das atribuições da chamada função paterna. Entretanto, nas discussões sobre famílias nas quais os pais são do mesmo sexo, há uma confusão entre o entendimento do que seja a função psíquica cumprida pelo terceiro e a anatomia da
pessoa que a cumpre. Tanto nos casais gays quanto lésbicos, a função do terceiro
pode ser exercida pelo parceiro/a do pai/mãe. Ao ser ele/ela o objeto de desejo do
pai/mãe, introduz-se na fusão mãe-pai/filho inicial, mostrando ao filho a existência de um outro desejado e, com isso, inaugura a alteridade. Para o filho, não
importa o sexo da pessoa para a qual o desejo do pai/mãe está direcionado. O
importante é a descoberta da existência de uma outra pessoa, que não ele/ela,
por quem o pai/mãe sente desejo.
Como já disse antes, não há nada indicando serem os filhos de casais homossexuais mais neuróticos do que os filhos de casais heterossexuais, mesmo que
essas crianças tenham que realizar um trabalho psíquico maior para se adaptarem a uma sociedade que os discrimina.
SBPdePA – Observamos resistência e até mesmo preconceito, ao longo do tempo
na sociedade, a respeito da formação de famílias homoparentais. Em sua visão, o
que este preconceito estaria representando?
E.Z. – Acho que são muitos os fatores que levam ao preconceito. Talvez o principal seja o desconhecimento ou a falta de conhecimento, em um sentido amplo.
Em relação ao conceito de família, não conhecer a enorme variedade de modelos
de configurações familiares, não apenas nas sociedades atuais, mas ao longo da
história, sem que haja prejuízo para as crianças do ponto de vista do seu desenvolvimento como sujeito humano.
Outro fator importante é a influência religiosa, principalmente das religiões judaico-cristãs, que nos oferecem como modelo a sagrada família, uma forma de
família idealizada e sem sexualidade, ou com uma sexualidade apenas a serviço
da procriação. Este talvez seja um dos maiores empecilhos para a aceitação da
família homoparental, já que nela a sexualidade é explicitamente direcionada
ao prazer e não procriativa.
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SBPdePA Entrevista Elisabeth Zambrano
Os conceitos de natureza ou natural, normal, patológico também fazem parte da
construção de um senso comum que vê as famílias homoparentais como problemáticas por estarem fora dos parâmetros normais. É preciso não esquecer que a
forma como encaramos a homossexualidade vai definir a forma como vamos
conceber a homoparentalidade. Se consideramos a homossexualidade como patologia, dificilmente vamos aceitar a homoparentalidade. Daí a ideia de que pais
homossexuais poderiam fazer muito mal aos seus filhos.
No próprio meio psicanalítico não existe consenso. Alguns consideram a homossexualidade como doença e acham que, por isso, seriam prejudiciais aos filhos;
outros não são contrários à homossexualidade, mas temem os malefícios que
essa condição possa ocasionar aos filhos; e outros, ainda, dentre os quais me
incluo, consideram que tanto a homossexualidade quanto a homoparentalidade
são apenas formas menos comuns de viver a sexualidade e a parentalidade.
Essa opinião é decorrência de uma das percepções mais importantes que obtive
da minha experiência antropológica, com reflexo direto na minha prática psicanalítica: o ser humano é capaz de viver as suas relações e construir as suas instituições sociais de formas infinitamente diversas.
Outra constatação importante é de que tanto a psicanálise quanto a antropologia são saberes analíticos e não prescritivos. Ou seja, ambas se propõem a perceber, analisar, compreender e evidenciar os processos que ocorrem na construção
psíquica do indivíduo e na construção social de cada cultura, sem ter como objetivo nada além do conhecimento. Nenhuma das duas está autorizada a fazer um
julgamento moral sobre o seu objeto de estudo. É preciso ter claro que pessoas
que fazem sexo com pessoas do mesmo sexo sempre existiram, assim como famílias que não correspondem ao nosso modelo atual. O que acontece neste momento é um aumento da sua visibilidade, o que explica a chegada desses indivíduos/famílias aos nossos consultórios.
Assim, a minha preocupação como psicanalista e antropóloga é auxiliar essas
pessoas a conhecer e enfrentar as consequências psíquicas e sociais das suas
especificidades, na direção de uma vida mais satisfatória, sem tentar induzi-las
na direção de valores que são apenas meus.
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Elisabeth Zambrano
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tema da
jornada 2014
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Victor Guerra
Indicadores de Intersubjetividad
0-12 Meses: del encuentro de
miradas al placer de jugar juntos
(Parte II)
Artigo | Parte I publicada na Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre,
v. 16, n. 1, p. 209-235, 2014.
Victor Guerra
Psicólogo. Psicoanalista. Miembro de la
Asociación Psicoanalítica del Uruguay.
Resumen: En este trabajo el autor presenta sus hipótesis sobre la relación entre la
Intersubjetividad y el Proceso de Subjetivación del bebe en el primer año de vida. Se presentael
resumen de la primera parte del video del mismo nombre, que grafica una Grilla de:
“Indicadoresde Intersubjetividad de 0-12 m. Del encuentro de miradas al placer de jugar juntos”. Se describen las interacciones registradas en los encuentros intersubjetivos de 9 bebes
consus madres (y padre), a lo largo del primer año de vida, como soportes de su estructuración
psíquica. Estos encuentros propician tanto la contención afectiva del infante, como la
progresivaco-construcción de experiencias lúdicas que permitirían al bebe ir adquiriendo diferentes formasde regulación de su afectividad, construir una posibilidad de separación del
objeto, e ir explorando y descubriendo nuevas vivencias consigo mismo y con su entorno.
Palabras clave: Interludicidad. Intersubjetividad. Juego. Parentalidad. Simbolización.
Subjetivación.
GRILLA DE INDICADORES DE INTERSUBJETIVIDAD (0-12 m)1: DEL ENCUENTRO
DE MIRADAS AL PLACER DE JUGAR JUNTOS
1)
2)
3)
4)
5)
6)
7)
ENCUENTRO DE MIRADAS (Sostén corporal) (0-2 m)
PROTOCONVERSACIONES (Juegos cara a cara) (2m)
PAPEL DE LA IMITACIÓN
JUEGOS DE COSQUILLAS Y SUSPENSO (3-5 m)
VOCATIVOS ATENCIONALES (5-12 m)
DESPLAZAMIENTO EN EL ESPACIO Y MIRADA REFERENCIAL (5-7 m)
ATENCIÓN CONJUNTA-OBJETO TUTOR. (6-9 m)
1
La referencia cronológica está referida a la edad aproximada de aparición de cada ítem, y esto
implica también un cierto grado de elasticidad, signado por el ritmo de emergencia diferente en cada bebé.
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412
8) JUEGO ESCONDIDA (8 m)
9) SINTONÍA AFECTIVA (9-12 m)
10) INTERLUDICIDAD (8-12 m)
11) SEÑALAMIENTO PROTODECLARATIVO Y NARRATIVIDAD CONJUNTA
(12 m)
Sexto Indicador: desplazamiento en el espacio y
mirada referencial (6-8m)
A partir del sexto mes se producen cambios fundamentales en el desarrollo del
bebé, hecho que ya jerarquizara hace muchos años Klein (1935) con la integración
de la posición depresiva en el desarrollo emocional del bebé.
Pero desde otro ángulo, podremos decir también que la posibilidad de quedar
sentado implica un cambio remarcable en su posición en el mundo. Además,
muchas veces es el momento en que se modifica su estilo de alimentación,
comenzando a ingerir alimentos más sólidos, y comienza el uso de la cuchara, y
de las iniciativas en la alimentación (HOFFMAN, 2001).
Por otra parte, es también a partir de allí que el bebé comienza a desplazarse por
el espacio a través del gateo.
En el video se observa la beba Francesca, de 7 meses, que es estimulada por el
padre para que desarrolle el gateo.
Figura 1: Gateo
413
Victor Guerra
El padre quiere provocar la atención de su hija mostrándole un juguete que golpea suavemente en el piso procurando que ella vaya a buscarlo.
Él le insiste suavemente llamándola por su nombre. Francesca lo mira con atención, mira
el objeto y recorre con su mirada el espacio como verificando la distancia que los separa.
Antes de lanzarse al espacio en busca del objeto, reitera varias veces su mirada en relación
al rostro del padre. La beba parece calma y se toma su tiempo para iniciar el movimiento.
Se lanza con sus brazos hacia adelante, queda en esa posición y de a poco comienza su
desplazamiento en el espacio, que al principio es titubeante, ya que para coordinar el
movimiento de brazos y piernas, tantea con sus manos el piso, al tiempo que alterna su
mirada entre el objeto y el rostro de su padre. Realiza el gateo lentamente, toma el objeto,
mientras la voz del padre parece darle aliento en el movimiento. Cuando toma el objeto
retrocede un poco, el padre lo festeja, y la saluda intensamente por el logro alcanzado.
Este ejemplo es sumamente ilustrativo de cómo participa el otro en un logro de
la subjetivación que desarrolla la beba. Su desplazamiento en el espacio está
asistido por la mirada y el estímulo del padre, pero éste deja que ella se tome su
tiempo para avanzar a su ritmo por la nueva experiencia. Podríamos decir que
opera una forma de “negociación” entre ambos. Por momentos, parece que el
padre estuviera urgido de que su beba se desplace y la estimula directamente, y
a su vez ella parece tener una forma de confianza en sí misma y en el vínculo,
porque lo mira con mucha tranquilidad, se detiene y se lanza al desplazamiento
en el gateo, a su propio tiempo. Desde hace ya muchos años la perspectiva de
Pikler (1984) nos ha enseñado de la importancia de respetar los tiempo del bebé
para el cambio de posturas y el desplazamiento en el espacio.
En el video, observamos el valor de la “mirada referencial”. Cada pequeño cambio que va a hacer Francesca con su postura corporal, se correlaciona con una
mirada a los ojos del Padre, para indagar el espesor afectivo de lo nuevo que va a
advenir.
La “mirada referencial” es también parte de las funciones de espejo del rostro del
adulto que cuida del bebé, y es un indicador de un grado de confiabilidad en el
otro. Cuando aparecen distorsiones importantes en el vínculo, observamos que
muchos bebés son más temerarios, y se lanzan intensamente a la experiencia
nueva sin el apoyo del otro.
Parecería que se autosostienen en la intensidad sensorial y muscular de la
experiencia. Transformarían incertidumbre en intensidad, sin posibilidad de
metabolización psíquica, sentando así las bases de una forma de inquietudhiperactividad que hemos denominado “falso self motriz” (GUERRA, 2012).
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Septimo Indicador: atención conjunta-objeto tutor
(6-9 m)
A medida que el bebé se acerca al octavo mes, se van produciendo cambios muy
importantes. Uno de ellos es la atención conjunta.
“La atención conjunta sería la capacidad de orientar su mirada hacia un mismo
objeto que el partenaire con el que interactúa”.
“Busca captar la atención del otro (generalmente la madre) con el objetivo de
obtener un objeto ansiado, o de compartir un centro de interés”.
Se trata tanto de una experiencia intersubjetiva, como una forma de
descubrimiento, y un procedimiento de designación”.
Bruner (1986) nos dice que atraer la atención de los otros a un foco común es un
hecho muy difundido en el orden de los primates.
Agrega que el hombre es el único que maneja la atención conjunta simplemente
solicitando y ofreciendo por medio de índices, íconos y símbolos.
El bebé se muestra mucho más interesado en los objetos con los cuales desea
realizar acciones y demuestra ese interés a través de su experiencia de atención
con la madre.
A su vez, la mamá se muestra más abierta aún con su deseo de que su bebé se
interese por objetos terceros, que no sean ni su propio cuerpo ni el cuerpo del
bebé y a partir de captar la intencionalidad y la atención del bebé ella se los
presente, muchas veces de forma lúdica.
De esta manera, el universo del bebé se amplía, pasan a tener importancia estos
objetos terceros que son presentados por la madre y al mismo tiempo descubiertos
por él.
Pero la atención conjunta como evento intersubjetivo estará en parte determinada por la característica afectiva que el entorno adulto ponga en juego. Por eso
podremos plantear que existen dos formas diferentes de atención conjunta: la
atención conjunta operatoria y la atención conjunta transicional.
La atención conjunta operatoria es aquella en la cual la madre atiende lo que
atiende el bebé, pero no introduce en el momento ni una experiencia lúdica y
415
Victor Guerra
tampoco hace uso de la narratividad (abrir, inaugura una pequeña historia o
cuento en relación a ese objeto). Su cuidado es operatorio, está atenta pero sin
infiltración fantasmática, parece una acción sin mucho espesor psíquico, ni
posibilidad de juego.
En cambio es otra la situación cuando la madre tiene la posibilidad (por sus
recursos interiores) de captar los puntos de interés de los objetos que son atendidos por el bebé (forma, color, contenido, sonido) y “presentárselos” de forma lúdica,
narrativa y rítmica, de manera de poder armar una “frase lúdica” en un proceso
de atención conjunta transicional, que permite una apertura hacia el espacio
intersubjetivo.
Para graficar esto, pasaremos ahora a presentar la interacción que se observa en
la filmación entre la mamá Adriana y su bebé Manuel, de 9 meses.
FILMACIÓN MADRE-BEBÉ
Madre y bebé se encuentran sentados en el piso frente a frente. Manuel atiende intensamente a la madre y tiene sus manitos apoyadas en sus piernas. Ella le presenta un objeto
muy utilizado por ellos: los cuencos tibetanos, un instrumento de percusión que al hacerlo
sonar emite una vibración sonora especial. Cuando los trae y Manuel los mira, parece
reconocerlos y la madre lo registra diciéndole: ¿te gusta? Se lo repite de forma lúdica y con
cierto suspenso.
El bebé hace un gesto como diciendo: sí... Luego ella se lo acerca y da un golpe un poco más
fuerte, provocando un sonido especial. Manuel sonríe, mira a la madre, mira al objeto y
luego dirige su mirada hacia el techo como buscando al sonido que se expande por el
espacio. Parece querer hablarle al sonido emitiendo un: ehhhh, luego mirando a la madre
emite nuevamente un eHHH y la madre le responde con un Sí, a través del gesto del rostro.
Ella vuelve a golpear el objeto que produce otro sonido y él la mira, luego ella le acerca los
cuencos y él los toma y trata de imitar el gesto de la madre, queriendo provocar un sonido
con un golpe.
Luego de un rato, la madre le presenta dos pequeños platillos que al chocarlos producen un
sonido agudo, Manuel ríe, la mira a los ojos y emite un ehhh, moviendo también los hombros,
ella le responde de la misma manera tanto vocal como corporalmente.
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416
Figura 2: Atención conjunta
La madre en esta situación presenta al bebé estos objetos musicales que parecen
propiciar una experiencia de atención concentrada especial, diferente de la
movilidad habitual en esta etapa.
La forma lúdica de presentación se manifiesta a través de la puesta en juego de
una forma de suspenso en la voz y en su gestualidad. A su vez, está muy atenta
a las reacciones del bebé para devolvérselas en forma especular. En este encuentro
propiciado por estos objetos, madre y bebé, a partir de una atención conjunta,
co-crean una experiencia lúdico-musical.
O sea, podríamos postular la hipótesis de que a partir de este diálogo de atenciones
y con la disponibilidad lúdica materna, el bebé afianza más su deseo de explorar
otros espacios, y así los objetos pasan a tener un valor especial en el proceso de
simbolización. ¿Por qué? Por diferentes motivos que esbozaremos, pero que
probablemente se inicien en el origen mismo de la palabra simbolización.
La palabra simbolización proviene del griego:
Symbolón quiere decir señal de reconocimiento; era un objeto partido en dos
entre dos individuos. Cada individuo retenía una mitad. Luego de una larga
ausencia uno de ellos presentaría su mitad y si se correspondía con la otra
mitad que tenía el otro individuo, pondría en evidencia un vínculo entre los dos
(Di CEGLIE, 1987).
La amplitud del concepto nos invita a una polisemia de la cual esbozaremos seis
caminos de sentido:
417
Victor Guerra
a) relación con un deseo de separación. Evidentemente en esta experiencia que
narra la etimología, son dos sujetos que deben o desean separarse. Es parte de la
historia de la constitución subjetiva, en la cual el sujeto no adviene si no es en la
separación del otro;
b) el interjuego de la presencia y de la ausencia, ya que se trataría de la
combinación de la presencia de un objeto concreto, a la cual se le adscribe la
memoria de una ausencia de un objeto pulsional;
c) el empleo de la agresividad para operar un corte, una ruptura, y tomándolo
como una metáfora válida de la constitución subjetiva: sin el empleo de algo de
agresividad, no se puede ejercer la separación del otro. Estaría esto en relación a
lo que Green (1998) denominara a la pulsión de muerte como desagregativa;
d) el corte del objeto implica ya una división del objeto mismo y es también una
división de espacios (tópicos) ya que los dos individuos pasarán a habitar espacios
físicos diferentes, con dos objetos que partiendo de un mismo origen, al dividirse
son diferentes. ¿Podríamos tomar esto como una metáfora de la puesta en juegos
de la “represión primaria “como condición de la división psíquica y de la
emergencia a posteriori de un trabajo de re-presentación?;
e) y hablando de metáforas, debemos tener en cuenta que no hay simbolización
sin una experiencia de separación-desplazamiento en el espacio2. El juego de
substituciones que configura toda simbolización, tiene como eje el trabajo de la
metaforización, el desplazamiento de una cosa en otra. Se desplazan en el espacio
las dos personas al separarse y se desplazan vivencias desde la mente del sujeto
hacia el objeto que pasaría entonces a ser continente de ciertos contenidos psíquicos, experienciales del sujeto. Ese “amuleto” tendría un valor superlativo frente
a otros objetos sin historia;
f) y, por último, tomaremos la utilización de un objeto concreto que testimonia
una relación y que se supone, fue elegido, investido por esas dos personas.
Entre todas estas posibilidades, querría jerarquizar especialmente el último punto:
el valor del objeto como marca, testimonio de un encuentro que posibilita una
separación. Encuentro que podemos analizarlo desde el ángulo de la
“intersubjetividad”, en la que la presencia del otro como sujeto separado y representado en ausencia, es fundamental.
2
Hay que tener en cuenta que aún hoy en Grecia a los vehículos de de transporte colectivo se les
llama “metáfora”. Y en el plano de la palabra, como dice M. Chnaiderman (2001), “es un transporte colectivo de
significaciones, montaje infinito de significantes intercambiables”.
Indicadores de Intersubjetividad 0-12 Meses: del encuentro de ...
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418
Pero el acceso de la re-presentación como trabajo del aparato psíquico es un
proceso complejo de interjuegos de unión-separación, continuidad-discontinuidad
y presencia-ausencia, con el otro fundante, y también con el ambiente y los objetos.
Como dice Roussillon (2001, p. 47): “los procesos psíquicos tienen necesidad de ser
materializados al menos transitoriamente, en una forma perceptible para recibir una forma de representación psíquica, una forma de auorrepresentación”.
¿Cómo aparecería esto en la infancia? La filósofa Langer (1990, p. 98) nos ilustra
de manera muy interesante este concepto:
Uno de mis más antiguos recuerdos es que las sillas de las mesas conservaban
una apariencia invariable, a diferencia de las personas, y que esa permanencia
me impactaba. Proyectar los sentimientos sobre los objetos exteriores es el
primer medio que tenemos de simbolizar y de concebir esos sentimientos […].
Vemos como en ella desde pequeña estaría presente esa especie de sorpresa o
fascinación por la permanencia, la continuidad de los objetos, y en tanto los
seres humanos se caracterizaban por cierto grado de impermanenciadiscontinuidad. De esta manera, ella nos describe que el proceso de simbolización
también estaría en relación con encontrar un continente seguro, permanente,
controlable por el niño pequeño: los objetos cotidianos. Que a través de la
animación propia de la visión infantil, conformarían un soporte fundamental de
su self.
Esos objetos que son plurales van teniendo un investimento especial porque son
marcas de encuentros placenteros, en este caso entre la madre y el bebé. En
Manuel, pudimos apreciar que esos objetos, los cuencos tibetanos, cumplen un valor importante de vínculo entre la madre y el bebé. La madre nos había relatado
que Manuel muchas veces se entretiene solo con ese objeto y con los sonidos
que produce. Así ella se puede retirar del espacio en que está, porque el bebé se
entretiene y se acompaña con los cuencos.
En otros bebitos son otros los objetos: puede ser un librito, un muñeco de peluche,
puede ser un autito, puede ser una pelota, y a veces van variando. El punto importante a tener en cuenta es que a través de esos objetos el adulto y el bebé cocrean una experiencia emocional en común.
Así decimos que son objetos, por lo tanto, que quedan impregnados por la historia
de un encuentro y que son testigos de esos encuentros.
419
Victor Guerra
Son objetos diferentes al objeto transicional porque el objeto transicional es único
y elegido por el bebé, y estos objetos son plurales y son co-presentados, codescubiertos por la mamá y por el papá y a veces por la educadora con el chiquito
en el jardín de infantes.
Esos objetos tienen un valor especial porque en ese sentido es como si estuvieran
impregnados de historias y son testigos de un encuentro, de manera que a veces
cuando la madre se retira el bebé queda jugando con esa serie de objetos. Por eso
es que los llamamos “objetos tutores”, porque transmitirían al inicio de esta
experiencia una vivencia de continuidad de un cuidado.
Teniendo al objeto consigo, el bebé sentiría que tiene también algo del otro que
quedó en ese objeto. Ese objeto fue tocado, narrado, fue envuelto por la mirada
atenta de la madre, y sería a través de la presencia del objeto que puedo tolerar
la ausencia materna.
Por ello postulamos la idea de que la capacidad para estar a solas, que postulara
Winnicott, no es solamente estar a solas “en presencia de la madre”, sino que
sería la “capacidad para estar a solas en presencia de objetos tutores”, que son
testigos del encuentro con la madre, y hacen más tolerable su ausencia..
Octavo Indicador: juegos de escondida (8 m)
Aproximadamente a partir de los 8 meses el bebé y su madre empiezan a jugar a
la escondida, al juego del ta-no ta.
Veamos un ejemplo de juego entre Francesca, de 9 meses, y su Mamá Cecilia.
Figura 3: Juego de escondida
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JUEGO DE ESCONDIDA
En la escena lúdica encontramos a la madre con su beba de 9 meses y un trapo. La madre
le dice
M: ¿Dónde está Fran? ¿Dónde está la beba?... (y la cubre con un pequeño trapo que le tapa
el rostro)
M: ¿No está la beba ahí? ¿Eh? ¿No está Fran? ¿Dónde está???
Beba: (se mantiene cubierta por un espacio corto de tiempo. Queda en espera, en expectativa)
La madre levanta el trapo y dice ¡está acááááá!!! Se aprecia un encuentro emocional intenso, con un júbilo compartido y miradas entrelazadas.
(El juego se repite en varias oportunidades, y en alguna situación es la propia beba la que
se coloca y retira la sabanita a su tiempo, o es la Mamá la que se esconde y pregunta
¿dónde está Mamá?)
Este juego marca un momento estructurante fundamental: la emergencia de la
angustia del 8º mes descripta por Spitz (1984) como segundo organizador.
Desde el momento subjetivante en el que el bebé reconoce que el rostro de otros
deviene extranjero y diferente al de su madre, lo expresa a través de la
manifestación de angustia. Y para ello su propio aparato psíquico crea una alternativa elaborativa: jugar a la escondida, jugar con la ausencia estando presente.
Este aspecto paradojal, muestra el esfuerzo del aparato psíquico para jugar con
el no, como forma de elaborar la ausencia materna (CASAS DE PEREDA, 1999).
Pero el juego de escondida se muestra rico en significados, de los cuales podríamos
extraer por lo menos cinco puntos:
a) trabajo sobre la ausencia del objeto. La ausencia puede ser dominable por el
yo, ya que deviene fuente de gratificación libidinal intersubjetiva. El bebé juega
placenteramente a aquello que teme: la desaparición del contacto con su madre.
Marca la posibilidad de que empiece a investir la ausencia como algo tolerable y
empiece a incorporar la noción de objeto interno. Seria por así decir un prólogo
del juego del fort-da descripto por Freud (1923);
421
Victor Guerra
b) importancia del no y del suspenso. En el juego la emergencia del no se instaura como un juego con la prohibición y con lo negativo, elemento en definitiva de
separación y corte. Al “No está el bebé”, se sigue generalmente de un momento
de silencio y espera tensa, de manera de producir un aumento de tensión, en
este caso placentera;
c) valor del enigma. La pregunta que la madre realiza “¿Dónde está el bebé?
conforma un valor de enigma… “¿Dónde está el bebé?”... El bebé se encuentra en
silencio verbal, en suspenso anhelante, esperando el reencuentro. Hay un enigma que la Madre pone en juego, que sería el corolario materno de lo que Laplanche
(2000) planteara como “significante enigmático” del lado del bebé. Pensamos que
también el bebé porta un sentido de enigma para la madre, y que ese grado
enigmático que posee es también fuente de trabajo psíquico en la madre;
d) jubilación del re-encuentro. En el momento final del re-encuentro, hay una
reencuentro visual, corporal y de sintonía afectiva con la intensidad de la vivencia
afectiva. Esta pequeña explosión de emociones, mostraría al bebé que es posible
superar la angustia porque al final de la historia se encuentra al objeto pleno de
deseo. Podríamos pensarlo también como una forma de “narrativa lúdica”, en la
cual, como en la mayoría de los cuentos infantiles, se desarrolla una intriga, con
un conflicto y un final feliz, reasegurador;
e) ritmo oscilante. El desarrollo de la trama narrativa del juego se configura con
un movimiento de aumento y descenso de la excitación pulsional. Movimiento
que tiene una cualidad rítmica en parte previsible (continuidad), pero que en
cada ocasión se modifica parcialmente (discontinuidad);
f) también este juego cobra plena validez en la medida de que haya una sintonía
afectiva con su madre.
Noveno Indicador: sintonía afectiva (9-12 m)
La SINTONÍA AFECTIVA es una experiencia muy cercana de la emergencia de la
atención conjunta.
Es una experiencia de compartir un estado afectivo, una experiencia de
mutualidad que abra la vía de la intersubjetividad.
El bebé ya metido de lleno en la intersubjetividad, tiene una enorme avidez de
contacto social, imita algunos gestos de los adultos que les producen enorme
placer a ambos. En general, según Stern (1990), es una actividad que se realiza a
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partir de la iniciativa del bebé, que al explorar un objeto e intentar jugar con él,
muestra a través de un gesto o de una vocalización, la intensidad emocional con
que vive el evento.
La madre que está “sintonizada” con el bebé le responde, sin imitarlo, mas
acoplándose generalmente con la misma intensidad efectiva con que él vivió la
situación. Y lo hace con un intenso gesto de acompañamiento vocálico con un
halo de sorpresa. Por ejemplo, si el bebé descubre que sacude rítmicamente un
juguete con fuerza y logra crear un sonido al tocar el piso, envuelto en una gran
intensidad emocional, la madre puede responder con sonidos de tipo:
uuuuuuuuuuppaaaaaaaaa, de manera de acompañar y sintonizarse con la mano
que sube para después acompañar con el aaaaaa el movimiento intenso del objeto en el espacio.
Figura 4: Sintonía afectiva
El punto clave de la experiencia es que la forma de emisión de las vocalizaciones
maternas estarían en el mismo rango de intensidad de lo que el niño siente, pero
lo expresa de otra forma, por otra vía como la palabra y no por el movimiento.
Así el bebé va descubriendo progresivamente que las cosas que siente se pueden
expresar por diferentes vías, siendo un punto fundamental en la construcción
de los procesos de simbolización.
423
Victor Guerra
Decimo Indicador: interludicidad
Tomando estos elementos podríamos coincidir con el hecho de que al final del
segundo semestre de vida se produce una verdadera revolución en el mundo del
bebé. Diferentes teorías intentan dar cuenta de ello, y emergen procesos tales
como: “atención conjunta” (BRUNER, 1986; TOMASELLO, 2005), acceso más pleno
a la posición depresiva (KLEIN, 1935), tercer tiempo del circuito de la pulsión
(LAZNIK, 2005), angustia del octavo mes (SPITZ, 1984), juego de escondida, sintonía
afectiva (STERN, 1990), objeto tutor, comienzo del desplazamiento en el espacio,
los cuales conformarían un momento fundamental de subjetivación del bebé.
Investigaciones de Muratori (2012) y Maestro (2005) muestran cómo muchos bebés
que después devinieron autistas o con rasgos autistas, en esta etapa de 8-12
meses mostraban más claramente su tendencia al repliegue, y un descenso
significativo en las iniciativas que manifiestan su deseo en el encuentro. Faltaría
la “eclosión” de intersubjetividad, con la pluralidad de iniciativas-llamados al
otro del bebé “normal”.
Entre otras cosas, ahora el bebé puede alternar claramente entre una atención a
la madre (ambiente humano) y una atención a los objetos. Un cambio fundamental es que ahora los objetos son incluidos en las interacciones sociales
como objetos a compartir con el otro3.
Además el bebé pasa de un pattern social simple a las interacciones sociales más
complejas de tipo triádico (MURATORI, 2012).
Y según las investigaciones de Tomasello (2005), con la consolidación de la
atención conjunta el bebé sería capaz de comprender a las otras personas como
sujetos que realizan acciones con un objetivo, y que son capaces de compartir
esos objetivos, interactuando de una manera triádica.
De esta manera, se abre un universo de experiencias y de sentidos diferentes en
relación al juego. Muchos autores psicoanalíticos han abordado el tema del juego
del bebé en relación con el otro como una de las bases del proceso de subjetivación
y de su vida simbólica (ANZIEU, 2002; FÉDIDA, 1978; GOLSE, 2004; KLEIN, 1929;
MILNER, 1990; WINNICOTT, 1971) etc.
En lo personal, considero que se inaugura más claramente una forma nueva de
interacción con el otro, que podríamos denominar como Interludicidad, enten3
Grilla.
Me refiero a los “objetos tutores”, concepto que desarrollara en el Séptimo Indicador de esta
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dida como la disposición mental a tomar al otro como partenaire lúdico de una
experiencia intersubjetiva.
Para ello, apreciaremos un juego que co-crearon la beba de 10 meses Francesca
con su Padre Pablo:
En la filmación se observa al Padre con su beba Francesca, de 10 meses. Ella está sentada
en una sillita que tiene un pequeña mesita incorporada. El padre se acerca con un pequeño
librito de tela en la mano, se sienta en una silla a su lado y le dice mirándola en los ojos, de
manera lúdica: Francesca no lo tires, ¡eh!, ¡no lo tires!!.Y se lo entrega en la mano, luego él
gira y se sienta al lado de ella en una silla dándole la espalda, mientras pasa a atender el
computador.
Francesa lo mira en forma pícara y cuando él se da vuelta y ya no la mira, con una sonrisa,
tira el librito al piso al tiempo que el padre se da vuelta y la mira sorprendido, diciendo
intensamente sorprendido: “¿Francesa que hiciste? No se tira, no se tira” (con una sonrisa
en el rostro).
En ese momento la beba estalla en una carcajada, y el padre le responde con una amplia
sonrisa.
El juego se repite varias veces, el padre simula estar enojado, levanta el librito del piso y le
vuelve a repetir la frase: ¡no lo tires!! Entre tanto las miradas de ambos revelan una
picardía cómplice.
Después del cuarto intento el padre hace una primer modificación del juego, que es el
colocar el librito en la cabeza de su hija. Él le da la espalda, ella observa el libro, atiende la
TV que estaba prendida y lo imita colocándose el librito sobre su cabeza.
Luego ya al final de la interacción Francesca vuelve a mirar pícaramente a su padre,
llamándolo para retomar la interacción. El padre vuelve a reiterar los enunciados verbales
que eran parte del juego: ¡No lo tires!!,sin que participe el objeto. Se acerca y se aleja
rítmicamente y finalmente el juego se cierra cuando el padre la besa.
Un primer aspecto interesante es que el vínculo se establece casi sin contacto
físico, el placer del encuentro se dará a través de la palabra y el juego con un
objeto, donde como parte del proceso de subjetivación es en el “jugando” con
otro, que se gesta un soporte afectivo, casi tan importante como el sostén físico.
El padre ensaya un juego que sería algo así como “el juego de la prohibición de
dejar caer algo”. Lo que es remarcable al inicio, es la mirada de picardía de
425
Victor Guerra
Francesca que demostraría el conocimiento implícito de las reglas de ese juego,
ya que anticipa la escena lúdica y el placer que generara ese encuentro.
Padre e hija co-crearon una estructura lúdica, que a manera de guión teatral,
interpretan juntos en el escenario del encuentro.
Sin duda hay un elemento fundamental que pone en juego el padre, que es la
plasticidad de la expresión emocional de su rostro, las variaciones de los tonos
de voz y el gesto de sorpresa, lo que demostraría su disponibilidad lúdica.
Así primero el padre le anuncia verbalmente que le va a entregar un objeto que
ella no debería tirar y Francesca sabe que una segunda regla del juego es la de
esperar que él se de vuelta para tirar el objeto al piso.
El tercer paso sería que cuando el padre gira y se da cuenta que lo que pasó,
reacciona de forma intensa, marcando especialmente la emoción. Así ambos
finalmente estallan en una risa. Esta es la estructura del juego que repiten varias veces con pequeñas variaciones.
Es importante apreciar que las reacciones y los tonos de voz del Padre que parecen
exagerados, son característicos en la mayoría de las interacciones lúdicas con
un bebé. Esta exageración, que ahora parecería más notoria, forma parte de un
aspecto fundamental que el investigador Gergely y el psicoanalista Fonagy (1990,
2000) llaman “marcación de afectos”.
Es que justamente es a través de esta exageración gestual que la beba tiene la
posibilidad de reconocer que su padre representa algo que no es estrictamente
su propio sentir. Esta exageración sienta las base de un “como si”, que es la esencia
del juego simbólico. En este juego, entonces el padre, a través de su exageración,
hace “como si” estuviera enojado con ella, y Francesca sabe que el padre simula
enojarse.
Ya el escenario dejar de ser corporal, para pasar a un plano mental, base de
procesos de simbolización.
El juego es también una forma de variación del jugar a perder algo y una variación
del juego con el no y la prohibición. Las prohibiciones que en la realidad el padre
le transmite, son ahora objeto de un juego de elaboración mutua.
Podríamos preguntarnos qué tipo de experiencia viven, qué tipo de experiencia
co-crean.
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Winnicott (1966) nos ha aportado el concepto del espacio del juego como un
espacio transicional, pero también podemos pensarlo desde el ángulo del compartir emocional. Ahora ambos comparten y co-crean un encuentro intersubjetivo
a través de un juego elaborado mutuamente. Por ello pensamos nominarlo como
Interludicidad. Salto cualitativo estructural que está atravesado por la terceridad,
base fundamental de la simbolización.
Esta experiencia en el bebé, que aparece mayoritariamente con sus padres, puede
ser extendida a otros cuidadores. A manera de hipótesis podríamos discriminar
dos momentos estructurantes complemtentarios4.
La interludicidad primaria (entre los 9 y 12 meses) y la interludicidad secundaria
(entre los 18 y 24 meses, momentos en los que la palabra cumple una función
fundamental en las experiencias intersubjetivas e interlúdicas).
La “interludicidad primaria” se expresaría en la disposición a compartir encuentros
gratificantes, expresados en variadas formas de ritmicidad, atención, imitación
y narratividad conjunta, que poseen reglas implícitas suficientemente maleables,
para dar un marco seguro a la excitación que experimenta el bebé, y a la
apropiación de lo inesperado.
La “interludicidad primaria” se expresaría básicamente de dos formas:
a) a través de la co-creación de experiencias lúdicas centradas en el cuerpo (juego
de cosquillas y de escondidas, juego de indio, etc);
b) a través de la co-creación de experiencias lúdicas con el uso de objetos juguetes
“co-presentados” por el bebé y su madre.
Esta experiencia no es solamente un momento emergente de la interacción, sino
fundamental en apertura hacia los procesos de simbolización previos a la marcha.
En nuestra experiencia personal en el campo de las consultas terapéuticas, se
hace un objetivo especial auspiciar el encuentro padres-bebé en dicho escenario
lúdico. Diríamos que es la via regia para el encuentro interpulsional padres-bebé,
que posibilitarán la emergencia de recursos simbólicos que auspicien “la
capacidad para estar a solas”, tal cual lo ha venido aportando Winnicott.
4
En consonancia con los planteos de R. Roussillon sobre Simbolización Primaria y Secundaria.
427
Victor Guerra
En muchos casos observamos cómo nuestra función seria también la de “guardián
del juego”, como puente en la intersubjetividad.
Lebovici (2000), a través de sus consultas, mostraba fehacientemente cómo el
co-participar con el bebé en sus interacciones lúdicas podía también ser motor
de cambio en los padres.
De esa manera, a través de la mediación del juego presentamos a los padres una
nueva imagen de su bebé, y los padres pueden también reinaugurar el placer
lúdico, muchas veces perdido a lo largo de la vida…
Pero la madre y el padre con su bebé no solamente se presentan mutuamente
experiencias y objetos lúdicos, sino también incluirían en eso la presentación de
un nuevo espacio a través del gesto de señalamiento protodeclarativo.
Undécimo Indicador: gesto de señalamiento y
narratividad conjunta (12 m)
Este último ítem de la grilla marca un momento fundamental de cambio en el
bebé: se encuentra en el inicio del caminar.
Su desplazamiento por el espacio será el corolario de las transformaciones vividas en el primer año de existencia.
Se grafica así parte de su proceso de separación, como momento de subjetivación
en el cual el espacio y los otros toman otro color en el horizonte de sus investimentos. Pero al mismo tiempo en que se da este logro motriz, que se expresa en
el movimiento de sus piernas y en toda su postura corporal, aparece también un
gesto significativo en su mano, a través del dedo índice: el gesto del señalamiento.
El señalamiento o puntuación seria un gesto de comunicación no verbal que
asocia un movimiento de designación del índice a la mirada de la persona referente (BEACHE, 1997; BURSZTEJN, 2001).
Según algunos investigadores habría dos tipos de señalamiento: el “señalamiento
protoimperativo” se daría cuando el niño señala en dirección a un objeto
(generalmente fuera de su alcance) con el objetivo de obtenerlo.
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Y el “señalamiento protodeclarativo”, que se da cuando el niño señala en dirección
de un objeto buscando captar la atención de otra persona sobre ese objeto, con
el solo fin de que el otro comparta junto con él su interés.
Este simple gesto parece revestir suma importancia, porque demostraría que el
bebé toma al otro como una figura de seguridad, a partir de la cual se permite
“interrogar” algo ajeno a él que se encuentra en otro espacio. De esta manera,
daría cuenta no solo del estatuto de separación del objeto, sino de que vivencia
íntimamente un vinculo de separación establecido.
Algunos autores, como Marcelli (1984), a partir del trabajo con niños pequeños
con grandes dificultades de subjetivación, sostenía que sería una posible muestra
de que el bebé sale del estado de “identificación adhesiva” con el objeto, para
vivenciar una separación y la puesta en juego de una forma de tridimensionalidad.
Tomamos el concepto de tridimensionalidad desde los aportes de Meltzer (1990),
que implica una forma de integración de la profundidad del espacio, o sea la
posibilidad de un espesor interno.
Cuando el bebé señala, al igual que en la atención conjunta, esperaría que ese
espacio que separa su dedo del objeto, pueda ser llenado con palabras por su
madre, abriéndose así uno de los puntos de la terceridad.
Es también una de las formas de las llamadas “triangulaciones precoces” (GOLSE,
2006; GUERRA, 2008).
Se encuentran el bebé, el objeto y la madre dando significado a la experiencia.
Mostraría también esa apertura del horizonte libidinal a un objeto que no es ni
su propio cuerpo, ni el cuerpo de la madre, sino el espacio de indagación de la
palabra, como elemento que une y separa al mismo tiempo.
De esta manera, el bebé co-crea nuevos significados ante la experiencia de
separación, en el descubrimiento del mundo y de los otros.
Veamos un ejemplo de ello a partir del análisis de la filmación realizada con
Bruno de 12 meses y su madre Sofia.
429
Victor Guerra
Figura 5: Señalamiento protodeclarativo
Vemos a Bruno de pie se encuentra interactuando con su madre, en un diálogo de expresiones
faciales, la madre que le hablaba de sus juguetes le dice: ¿Dónde está Doki (el nombre de
uno de sus muñecos preferidos)? ¿…no está?. Bruno señala en el aire como buscando al
objeto.
M: (también señala y dice: ¿Dónde estará? ¿Allá?... ¿Dónde estará?…. ¿Y dónde está
Piolin?… Bruno mira una repisa y parece buscar por el espacio a esos objetos, queda
detenido en un gesto de suspenso y su mirada brilla como en un signo interrogativo. Se lo
ve muy atento y en espera levantando su dedo índice y captando así también la atención
de su madre. Ésta parece muy calma a su lado, y sostiene ese momento de silencio y de
suspenso. Su rostro evidencia serenidad y placer. Parecen los dos atentos y en espera.
Virgen de las Rocas. Leonardo Da Vinci (1486)
Podemos encontrar también en el arte una pista sensible para abrir posibles
sentidos a esta experiencia. En el cuadro La Virgen de las Rocas, de Leonardo Da
Vinci (1486), se aprecia como un ángel “mirando” al espectador, le señala a San
Juanito, para mostrar el carácter insólito de la presentación de la Virgen al niño.
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Figura 6: La Virgen de las Rocas
El historiador de arte Chastel (2003) dice que: “El gesto del índice era tan notable, tan
cargado de sentido para Leonardo, que con él pasó a ser una especie de gesto puro, que
exige atención ante el misterio”.
Chastel en su intento de interpretación estética nos permite también establecer
un puente con lo que observamos en Bruno y en otros bebés. El gesto de
señalamiento marca un deseo por parte del bebé, de que hay algo allí que no
conoce o no está y desea atender con ella ese misterio.
La madre de Bruno lo pone en juego cuando le pregunta ¿dónde está doki? y
¿dónde está piolín?
Hay de nuevo una interrogación, un misterio, un no saber, que circula entre ambos. El gesto de Bruno, detenido, atento, con sus ojos abiertos tratando de responder a la pregunta, pareciera decir “no lo sé”.
Esa pregunta, esa intriga compartida, que se grafica en el gesto del dedo índice,
revela todo un trabajo del aparato psíquico sobre el papel de la interrogación
abierta.
431
Victor Guerra
Habría un “protomisterio” a revelar, y de esa manera podríamos decir que sería
una de las bases (intersubjetivas) de la pulsión epistemofílica o deseo de saber.
Por ello el gesto de señalamiento del dedo índice tiene un valor indicador de la
subjetivación del bebé, ya que no puede llegar a él sin haber integrado los otros
indicadores previos, en una forma de entrelazamiento progresivo. Sin encuentro
de miradas, sin capacidad de imitación, sin protoconversaciones, sin mirada
referencial, sin atención conjunta, sin sintonía afectiva y sin interludicidad el
bebé no integraría el valor del señalamiento (epistémico), como una de las
manifestaciones del deseo de saber.
Pero para ello cuenta de forma especial el estado interno con que la madre
establece el encuentro con su bebé. No basta con que señalara, que puede ser un
mero gesto motor. Lo que cuenta es el clima que lo envuelve.
En la observación apreciamos cómo la madre transmite en su rostro un placer
en la espera confiada. Bruno se siente mirado, atendido mientras él atiende otra
cosa. Sutil juego de miradas, en la cual la mirada de la madre sostiene a Bruno,
que mira un tercer objeto.
Por otro lado en el plano verbal, las preguntas que la madre realiza tienen un
tono lúdico, con un tono de suspenso compartido. Esto demuestra una parte
fundamental de la disposción lúdico-narrativa compartida, base de lo que puede
llegar a ser luego “el placer de pensar juntos”.
Habría una secuencia desde el placer de atender juntos, el placer de compartir
un enigma juntos, el placer de jugar juntos, hacia el placer de pensar juntos.
Esto formaría parte, desde mi punto de vista del papel simbolizante del objeto, y
del trabajo de ligazón psíquica “en presencia”, base de lo que será el trabajo de
simbolización en ausencia5.
Veamos entonces ahora, un puente entre el deseo de conocer, la palabra y la
narratividad.
NARRATIVIDAD CONJUNTA
Bruno se encuentra sentado en el piso junto a su madre. Entre ambos hay un librito que
contiene figuras de animales. La madre le presenta las figuras y le pregunta cuál es el
sonido que emite cada animal. Así Bruno imita el sonido o movimiento de la oveja, del
caballo, del perrito y del pollito. Cada vez que el bebé imita un sonido, la madre lo retoma
5
En este punto los aportes de R. Roussillon a lo largo de toda su obra son fundamentales.
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con un tono lúdico y se muestra alegre y orgullosa. Bruno la mira, sonríe y mueve su
cuerpo varias veces como bailando. Alternativamente será Bruno quien con su dedo índice
señala un animal, la madre lo nomina y él intenta imitarla. Luego de realizarlo varias
veces, él va con su dedo hacia la primera página del librito que tiene un pollito, y luego
busca la última imagen de un perrito. Parecería hacer un recorrido del libro desde el inicio
hasta el fin.
Figura 7: Narratividad conjunta
Ahora madre y bebé, a través del gesto del dedo índice y guiados por el deseo de
conocer, se introducen en otro espacio: en el espacio del librito, en el espacio de
la narración conjunta.
El dedito de Bruno en otra versión de la maleabilidad de las manos explora y
viaja por el espacio de los animalitos de la hoja, y la madre nomina la experiencia.
Bruno responde, reconociendo, imitando y expresándose con los movimientos
de su cuerpo.
Esta experiencia que podríamos denominar como de co-narración, se coconstruye a través de diferentes estilos narrativos: la madre arma frases verbales
y Bruno le responde con frases motrices-corporales y esbozos de verbalizaciones
primarias.
Esta experiencia implica ya una forma de pasaje a la terceridad, dada la separación
corporal, la atención conjunta y la presencia de un objeto tercero entre ambos,
que permite la disponibilidad de la libido por fuera de una erogeneidad anclada
433
Victor Guerra
en una zona erógena corporal. La zona erógena (mental) co-construida se esparce
en el espacio del librito. Se inaugura un placer de intercambio que no atañe
directamente al cuerpo, sino a la vida simbólica.
Finalmente él mismo establece su propia pauta narrativa, repite varias veces un
pequeño viaje desde la primer página del pollito hasta la del perrito. De esta
manera rítmicamente, vuelve una y otra vez a apropiarse del objeto. Así, ritmo,
atención y narratividad conjuntas van pulsando esta danza de la subjetivación.
Podríamos decir que Bruno, acompañado por su madre se desplaza ahora con su
dedo por las hojas del libro, para que luego, también apoyado en la mirada de su
madre, se desplace con sus piernas por el espacio del mundo.
Allí, el espacio será la hoja en blanco, en la cual sus desplazamientos serán como
su propia caligrafía, su propia forma de “narrar” su andar por el mundo.
Los “textos” que seguirá “narrando” en sus movimientos de subjetivación, en parte dependerán de la disponibilidad psíquica del otro a acompañarlo, aportando
el (incierto) equilibrio entre ilusión y desilusión, entre satisfacción y frustración.
Así su aparato psíquico podrá continuar la labor fecunda de tolerar la ausencia
del objeto, estar consigo mismo y descubrir el placer de jugar, pensar y crear con
los otros.
Intersubjectivity Indicators 0-12 Months: the meeting of glances to the
pleasure of playing together (Part II)
Abstract: In this paper the author presents his hypothesis about the relationship between
theIntersubjectivity and the baby’s Process of Subjectivation in the first year of life. The
summary of the first part of the video with the same name, which pictures a grid presents:
“Intersubjectivity Indicators 0-12 m. The encounter of glances to the pleasure of
playingtogether”... Describes recorded interactions in encounters of 9 babies with their mothers
(andfathers) along the first year of life, as his psychic structure support. These meetings provides
both emotional containment of the child as the progressive co-construction of ludic experiences
that allow the baby to acquire different forms of regulation of its emotions, build a possibility
of separation of the object, and explore and discover new experiences himself and with its
environment.
Keywords: Interludicidy. Intersubjectivity. Parenthood. Playing. Subjectivity. Symbolization.
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Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Revisão de espanhol: Ana Rachel Salgado
Victor Guerra
Rua Alfredo Baldomir 2442 / 202
11300 Montevideu – Uruguay
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Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação
Orientações aos Colaboradores
e Normas para Publicação
1 Informações Gerais
Psicanálise é uma publicação semestral, oficial, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre editada desde 1999. Tem por objetivo divulgar trabalhos
não só do campo da psicanálise como também de suas interfaces com as diversas áreas do conhecimento tanto em nível nacional como internacional. Esses
são apresentados sob forma de artigos, ensaios, conferências, entrevistas e reflexões.
Os manuscritos aceitos e publicados tornam-se propriedade da Psicanálise –
Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, sendo vedada a
sua reprodução, ainda que parcial, sem a devida autorização por escrito da Comissão Editorial da revista.
As opiniões emitidas nos trabalhos, bem como a exatidão, adequação e procedência das referências e citações bibliográficas, são de exclusiva responsabilidade dos autores.
2 Requisitos para submissão do manuscrito
2.1 o trabalho deve ser preferencialmente inédito (exceto os publicados em anais
de Congressos, Simpósios, Mesas Redondas ou Boletins de circulação interna de
Sociedades Psicanalíticas) exceções serão consideradas;
2.2 não infringir nenhuma norma ética. Não será exigido pela revista consentimento informado do paciente quando utilizado alguma vinheta clínica nos artigos, ficando na responsabilidade do autor as questões referentes a ética e sigilo;
2.3 respeitar as normas gerais que regem os direitos do autor;
2.4 não conter nenhum material que possa ser considerado ofensivo ou
difamatório;
2.5 caso o trabalho seja encaminhado simultaneamente para outra publicação
deve, o autor, comunicar explicitamente e por escrito a Comissão Editorial. A
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Psicanálise v. 16 nº 2, p. 437-440, 2014
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revista não colocará obstáculos à divulgação desse em outra publicação, desde
que informada previamente. Quaisquer violações destas regras que impliquem
em ações legais serão de responsabilidade exclusiva do autor;
2.6 por fim, o autor deve estar ciente que ao publicar o trabalho na Revista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre está transferindo automaticamente o “copyrigth” para essa, salvo as exceções previstas pela lei.
3 Forma de apresentação do manuscrito
3.1 os originais deverão ser enviados à “Psicanálise” – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre por e-mail para os endereços:
[email protected], [email protected], ou entregues pessoalmente
na Praça Maurício Cardoso, nº 7, Bairro Moinhos de Ventos, Porto Alegre;
3.2 ter extensão máxima de 20 páginas (frente), fonte Times New Roman, tamanho 12 em espaço 1 ½, com numeração no canto superior direito.
3.3 Folha de rosto identificada, contendo:
– título do trabalho em português, inglês e na língua a ser publicado (centralizado);
– nome completo do(s) autor(es) na margem direita;
– nota de rodapé com titulação e afiliação;
– quando se tratar de trabalho apresentado em evento informar em nota de
rodapé;
3.4 Resumo e palavras-chave em português, inglês e e na língua a ser publicado:
– resumo, abstratc deverá conter no máximo 150 palavras seguido das palavraschave. O resumo e palavras-chave em português deverão localizar-se na folha de
rosto após o título; resumos e palavras-chave em inglês (abstract e keywords) constarão no final do trabalho, antes das referências.
3.5 Texto
3.5.1
Citações
As seguintes orientações seguem o estabelecido nas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, NBR 10520 – Informação e documentação –
Citação em documentos – Apresentação.
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Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação
3.5.1.1 deverão ser identificadas através do sobrenome do autor, ano de publicação e número da página, por exemplo: Freud (1918, p. 5) ou (FREUD, 1918, p. 5).
Na citação direta curta (até 3 linhas), colocar entre aspas duplas; em citação
direta longa (mais de 3 linhas), destacar com recuo de 4cm da margem esquerda
com letra menor e sem aspas.
3.5.1.2 obras com dois autores, os dois devem ser mencionados, por exemplo,
Marty, de M’Uzan (1963) ou (MARTY de M’UZAN, 1963). Caso existam mais de
dois autores, indicar somente o primeiro seguido da expressão latina et al., pó
exemplo Rodrigues et al. (1983) ou (RODRIGUES ... et al., 1983).
3.5.1.3 consideração especial para as obras de Freud: as datas correspondentes
aos seus textos deverão aparecer entre parênteses, logo após o nome, seguido da
data de publicação da obra consultada.
3.5.2
Referências
As referências seguem o estabelecido nas normas da Associação Brasileira de
Normas Técnicas – ABNT, NBR 6023 – Informação e documentação – Referências
– Elaboração.
3.5.2.1 são apresentadas de forma completa, no final do trabalho, em ordem
alfabética de sobrenome dos autores e suas obras pela ordem cronológica de
publicação, correspondendo exatamente às obras citadas.
3.5.2.2 obras publicadas de um mesmo autor no mesmo ano, deve-se acrescentar à data de publicação, as letras a, b, c, etc. Quando um autor é citado individualmente e também como co-autor, serão citadas antes as obras onde ele é o
único autor, seguidas das publicações em que aparece como co-autor. Os autores
não são repetidos, mas indicados por seis traços sem espaçamento entre eles;
3.5.2.3 os títulos dos livros devem ser grifados, sendo que as palavras mais significativas serão escritas em maiúsculas; o lugar da publicação, o nome do editor e a data de publicação também devem ser indicados, nesta ordem;
3.5.2.4 nos títulos de artigos somente a primeira palavra figurará em letra maiúscula, seguido do título grifado da revista, volume, número e página inicial e
final do artigo.
3.5.2.5 consideração especial para as obras de Freud: as datas correspondentes
aos seus textos deverão aparecer entre parênteses, logo após o nome; a data de
publicação da obra consultada constará no final da referência.
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3.6 Forma de apresentação de resenha
A resenha deverá ter extensão máxima de quatro páginas (frente), fonte Times
New Roman, tamanho 12 em espaço entrelinhas de 1,5 com numeração no canto superior direito.
A resenha deverá mencionar:
– Título, autor(es), editora, ano e número de páginas da obra resenhada;
– síntese do conteúdo do livro;
– comentário sobre a inserção, contribuição ou importância da obra no contexto
da literatura psicanalítica.
Considerações sobre a pessoa do autor ou da relação pessoal com ele devem ser
evitadas.
4 Procedimentos de avaliação
4.1 todo artigo entregue para publicação será avaliado através de critérios padronizados, de modo paritário, por membros do Conselho Editorial da Revista e
as "cegas" (anonimamente);
4.2 avaliador e autor serão mantidos em sigilo pela Revista durante o processo
de avaliação;
4.3 sendo o artigo recomendado pela maioria dos avaliadores, será considerado, em princípio, aprovado para publicação. A decisão final quanto à data de sua
publicação dependerá do número de artigos aprovados e do programa editorial
estabelecido;
4.4 a Comissão Editorial reserva-se o direito de efetuar pequenas alterações no
texto aceito para publicação, afim de adequá-lo aos critérios de coerência, clareza, fluidez, correção gramatical e padronização editorial adotados pela revista. A
exatidão das informações é de responsabilidade do autor.
4.5 artigos que não forem publicados em 10 (dez) meses a partir da data de sua
aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse tenha liberdade
de enviá-lo a uma outra publicação.