AS IMAGENS NO JUDAÍSMO E NO CATOLICISMO IMAGES
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AS IMAGENS NO JUDAÍSMO E NO CATOLICISMO IMAGES
22 AS IMAGENS NO JUDAÍSMO E NO CATOLICISMO IMAGES IN JUDAISM AND CATHOLICISM Karina Santos de Oliveira1 RESUMO Este artigo apresenta um estudo comparativo entre judaísmo e catolicismo em relação à interpretação do segundo mandamento bíblico do Decálogo, que proíbe a confecção de imagens, durante a Antiguidade e a Idade Média. Palavras Chaves: arte e religião, arte e catolicismo, arte e judaísmo. ABSTRACT This article presents a comparative study between Judaism and Catholicism concerning the interpretation of the second biblical commandment of the Decalogue, which forbids manufactureimages, during Antiquity and Middle Age. Key Words: art and religion, Catholicism and art, Judaism and art. INTRODUÇÃO O objeto deste artigo é a influência do segundo mandamento bíblico do Decálogo, que proíbe a confecção de imagens, no judaísmo e no catolicismo, desde a Antiguidade até a Idade Média. 1 Karina Santos de Oliveira. Mestranda Universidade de São Paulo. [email protected] ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36. 23 Como o judaísmo e o catolicismo interpretaram historicamente este mandamento bíblico do Decálogo descrito no Livro do Êxodo e do Deuteronômio, já que as duas religiões se fundamentam no mesmo livro sagrado? A questão central é examinar como o monoteísmo foi da proibição das imagens de culto no judaísmo ao pluralismo das imagens no catolicismo, comparando o processo de rejeição e aceitação das imagens nas duas religiões ao longo do tempo, buscando primeiramente os fundamentos da proibição bíblica em Israel, em seguida os motivos para novas interpretações a esta passagem bíblica no seio do judaísmo e concluindo com os motivos para a aceitação das imagens no catolicismo, a construção dos dogmas a favor do uso das imagens pela Igreja Católica e as funções adquiridas pelas imagens no catolicismo medieval. A ideia é mostrar como a proibição bíblica das imagens foi considerada por estas duas religiões desde os seus primórdios até sua constituição enquanto religiões consolidadas e também o período em que as duas religiões tiveram contatos e influências culturais recíprocas. AS IMAGENS NO JUDAÍSMO Os mandamentos foram os meios pelos quais Deus firmou os princípios religiosos, culturais, rituais, morais e sociais de sua aliança com o povo de Israel. O Decálogo foi a base do pacto divino com Deus, feito pelo povo inteiro. O pacto mosaico é único por ser, não um tratado entre estados, mas uma aliança Deus-povo. Como afirma Paul Johnson, “nele a antiga sociedade israelita fundiu seus interesses com os de Deus e O aceitou, em troca de proteção e prosperidade, como um agente totalitarista cujos desejos governassem todo aspecto de suas vidas” (JOHNSON, [s.d.], p.45). Os Dez Mandamentos ou Decálogo significam “dez palavras” (Ex 34,28; Dt 4,13; 10,4), e resumem a Lei, que teria sido dada por Deus ao povo de Israel, no contexto da Aliança, por intermédio de Moisés. Seria pelo cumprimento da Lei que o povo de Israel preservaria a aliança com seu Deus e receberia suas bênçãos. Esta aliança entre o Deus YHWH e o povo de Israel, de acordo com o relato bíblico, tinha como condição essencial o culto exclusivo a Ele, exposto no primeiro mandamento “Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20,3; Dt 5,7). Os relatos bíblicos mostram que inicialmente os hebreus tinham consciência que para outros povos existiam outros deuses. Mas para eles, YHWH era o criador de todo ser e de todas as coisas e o único ao qual Israel deveria prestar culto. Concomitantemente à instituição do culto a um único Deus, a Lei determinou o que para os judeus é o segundo mandamento, “Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra. Não te prostrarás diante desses deuses e não os servirás...” (Ex 20,4-6; Dt 5, 8-10).Além de proibir o culto a outros deuses,YHWH também proibia que deles se confeccionassem imagens, parte essencial dos cultos pagãos, e também que fosse feita uma imagem Dele. Essa proibição é recorrente nos livros da Torah. No Livro do Levítico, YHWH estipula as condições para a sua benção sobre Israel: “Não fareis ídolos, não levantareis imagem ou estela, e não colocareis em vossa terra pedras trabalhadas para vos inclinardes diante delas, pois eu sou Iahweh vosso Deus” (Lv 26,1).As “dez palavras” ou mandamentos primeiramente expostos no livro do Êxodo, são repetidos no Livro do Deuteronômio (Dt 5, 6-22), que também contém a justificativa para esta proibição: “Ficai muito atentos a vós mesmos! Uma vez que nenhuma forma vistes no dia em que Iahweh vos falou no Horeb, do meio do fogo, não vos pervertais, fazendo para vós uma imagem esculpida em forma de ídolo: uma figura de homem ou de mulher, figura de ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36. 24 algum animal terrestre, de algum pássaro que voa no céu, de algum réptil que rasteja sobre o solo, ou figura de algum peixe que há nas águas, que estão sob a terra. Levantando teus olhos aos céus e vendo o sol, a lua, as estrelas e todo o exército do céu, não te deixes seduzir para adorá-los e servi-los!” (Dt 4,15-20). O texto do Deuteronômio explicita, assim, que não foi vista nenhuma forma na teofania sobre o Monte Horeb. Não faz, portanto, sentido representar e adorar qualquer forma de Deus, porque o povo não viu nenhuma forma Dele no mundo. A religião bíblica concebeu progressivamente um Deus que é transcendente, abstrato, incorpóreo, invisível e inacessível. Apesar de a Bíblia também dizer que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27; 2,7).O Deus judeu deveria manter-se inimaginável e abstrato, caracterizado pela transcendência espiritual. O segundo mandamento se refere, desta maneira, à proibição da representação da imagem de Deus, por Ele ser inimaginável e, portanto, não representável. E refere-se também à proibição da representação de imagens humanas e de animais imbuídas de qualquer conotação devocional, na forma de ídolo como os pagãos faziam, e também ao culto de seres celestiais, considerados criação do próprio Deus. Isto porque os textos mostram que os autores bíblicos não negavam, num primeiro momento, a existência dos deuses pagãos, porém, consideravam YHWH como “o único ser divino ativo” (KAUFMANN, 1989, p.15) capaz de criar e agir na vida do homem e na natureza. Apesar de uma influência pagã nos seus primórdios, Israel foi capaz de construir uma concepção diferente de seu Deus e ir se afastando do paganismo, mesmo que os relatos bíblicos mostrem que isso nunca ocorreu completamente, pois são constantes as passagens que falam num retorno à idolatria em Israel. Apesar de algumas atitudes idolátricas do povo de Israel, os fundamentos da religião israelita presente nos textos bíblicos negavam qualquer tipo de poder a outros deuses que não o Deus de Israel. Para Israel somente um deus era Deus, já que somente ele tinha o poder de criar. “Aos outros deuses não se concedia nem participação na criação, nem função no cosmos, nem poder sobre os acontecimentos” (BRIGHT, 1978, p.159). Existem passagens bíblicas, especialmente nos textos proféticos, em que se observa que quando se menciona os deuses pagãos eles são vistos como deuses impotentes, que não tem nenhum poder sobrenatural ou capacidade de criação. Diferentemente da concepção do Deus de Israel.YHWH é descrito na Bíblia Hebraica como um Deus supremo, com domínio cósmico. O criador de todas as coisas, sem intermediários ou ajuda. Tendo o controle sobre todos os acontecimentos terrestres. A ideia de monoteísmo concebida em Israel gerou uma consequência doutrinal extrema: “a proibição da adoração de quaisquer outros seres ou objetos” (KAUFMANN, 1989, p. 138). O fato da religião mosaica não possuir imagens de YHWH não se deve a uma rejeição radical de imagens, mas sim a uma proibição de ter outros deuses, e isto decorre do fato de que a religião israelita desenvolve a ideia de que somente YHWH tem poderes sobrenaturais, sendo os deuses pagãos considerados inúteis ou falsos em sua divindade. O conceito de idolatria que existia nos primórdios em Israel combatia não a existência de outros deuses, mas o fetichismo, ou seja, o culto a deuses falsos esculpidos pelas mãos do homem. Para os pagãos a imagem não representava um deus, mas era o próprio deus. E um dos aspectos essenciais da crença na existência de deuses corporificados na natureza ou ligados de algum modo à natureza era a homenagem prestada a eles através do cuidado dedicado à sua imagem. Os autores bíblicos dedicaram boa parte de seus escritos ao combate à idolatria, esforçando-se para desacreditá-la perante aqueles que a praticavam e assim conseguir ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36. 25 acabar com qualquer vestígio de idolatria em Israel. Porém, ao se examinarem os textos bíblicos, vê-se que o combate à idolatria em Israel não tinha como pressuposto questionar a existência dos deuses pagãos, mas de ridicularizar a adoração fetichista de imagens. A Bíblia combatia os deuses pagãos através de suas imagens, tentando demonstrar ser uma loucura acreditar que ídolos de madeira e pedra possam ser deuses. Portanto, o problema não era a crença em outros deuses, mas a crença de que objetos inanimados sejam deuses. Para os israelitas, a imagem era a corporificação do deus e o ato de esculpir sua imagem era já uma forma de cultuá-lo. Para os redatores bíblicos a loucura da idolatria era substituir o Deus único e verdadeiro por um deus falso feito de qualquer matéria criada por Ele. A negação da existência de outros deuses veio mais tarde, principalmente a partir dos textos proféticos. Para Alain Besançon, a proibição bíblica presente na Torah bastaria para explicar a condenação da representação das imagens de outros deuses, mas não a das imagens que pudessem representar seu próprio Deus. Para o autor de A imagem proibida, a transcendência divina de YHWH não parece uma explicação satisfatória para justificar esta proibição da representação de Deus. Besançon afirma que “a iconofobia bíblica não é filosófica” (BESANÇON, 1997, p.116), ou seja, que os redatores da Lei não se preocuparam em elaborar uma justificativa filosófica para a proibição bíblica das imagens, porque não se trata de proibir a representação de Deus por causa de sua transcendência, mas que o próprio Deus YHWH foi responsável por esta proibição, por causa da relação que este Deus determinou e se propôs a manter com o povo de Israel. Cultuar a YHWH de uma maneira que não foi estabelecida por Ele na Lei também é uma forma de idolatria, pois é uma afronta a sua soberania e onipotência, pois somente Ele tem autoridade para estabelecer a maneira como quer ser cultuado e se relacionar com o povo de Israel. Portanto, nenhum culto pode influenciar a relação de Deus com o homem a não ser que tenha sido explicitamente ordenado por Ele. Deus não pode estar condicionado ao homem, e nem pode ser circunscrito a uma forma que o homem crie Dele, pois é muito superior ao homem. E foi YHWH que escolheu se manifestar ao homem através de palavras. Daí o sentido Dele ter entregado tábuas com leis escritas para o povo escolhido por ele cumprir. YHWH tinha um meio primordial de estar em contato com o povo de Israel, que não era pela vista, pela visão de sua imagem, mas pelo ouvido e pela escrita (dos Dez Mandamentos), ao transmitir suas mensagens através dos profetas. Enquanto para os povos pagãos a imagem era um aspecto essencial de sua religião, entre os israelitas a palavra, especialmente a escrita, adquiriu proporcionalmente a mesma importância. São inúmeros os relatos bíblicos em que aparece YHWH falando para o povo de Israel através dos profetas. Além das narrativas bíblicas, existe uma tradição judaica que afirma que todos os mandamentos, tanto os dez mais conhecidos (Decálogo) como os outros, totalizando seiscentos e treze a serem seguidos pelo povo judeu, foram ditados por Deus e escritos em pergaminho por Moisés e ambos falados diretamente ao povo de Israel. A representação de Deus para o povo de Israel deveria estar circunscrita ao campo do ouvido e do escrito, porque na Lei está contida a descrição detalhada do modo de ser divino e a única imagem que é lícita formar-se dele. E também da maneira lícita de se cultuá-Lo. Deus se revela e se faz visível ao povo de Israel através da palavra. As imagens de Deus são construídas através de uma estilística, de metáforas e outras ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36. 26 figuras de linguagens que estão presentes nos textos bíblicos. É através das palavras que Deus propõe ao povo de Israel sua própria imagem. Todo o pensamento religioso formulado em Israel foi transferido para a palavra escrita, tendo esta se transformado em parte fundamental da religião e da cultura hebraica. Segundo Eliana Malanga, “a concepção de um Deus abstrato corresponde à formulação de um pensamento abstrato decorrente do desenvolvimento da escrita” (MALANGA, 2005, p.184). A escrita foi elemento fundamental para o monoteísmo israelita também porque foi um elemento que permitiu sua aglutinação. A escrita permitiu a transmissão de geração em geração da Lei a ser seguida e de todos os pressupostos que compõem o monoteísmo na religião israelita, inclusive a imagem permitida a se fazer do Deus de Israel, através das figuras de linguagem. Em conformidade com esta ideia, Alain Besançon afirma que em toda a história de Israel somente existem duas encarnações do Eterno, “primeiro a Lei, continuamente estudada e escrutada, fornece não só a regra de vida, mas a descrição detalhada do modo de ser divino e a única imagem que é lícito formar-se dele; e depois, o povo, “detentor” da Lei e que, meditando seriamente sobre ela e “murmurando-a dia e noite” é por ela informado” (BENSANÇON, 1997, p. 118). Portanto, a escrita é um elemento fundamental no judaísmo, pois permitiu a reprodução da imagem de Deus, da única maneira que Ele se permitiu ver e reproduzir, e também porque é o meio primordial de comunicação de YHWH com o povo judeu em todos os momentos da sua história. Entretanto, a proibição bíblica não restringiu completamente a produção de imagens em Israel, pois não era todo o tipo de imagem que estava proibido. Algumas imagens eram prescritas pela Lei. Sendo assim, surge a necessidade de questionar que tipos de imagens eram permitidas em Israel e com que objetivo foram produzidas. Existem muitas passagens bíblicas que ilustram o fato de que os israelitas fizeram imagens nos diversos momentos de sua história e a confecção destas imagens era autorizada por Deus. Por exemplo, os relatos bíblicos contam que Moisés fez uma serpente de bronze a mando de Deus (Nm 21, 8) e também os querubins da arca da aliança (Ex 37,7; Dt 10,5). O apogeu dessa evolução teria sido a construção do Templo em Jerusalém sob o reinado de Salomão, que pela primeira vez na história judaica criou um local central para a religião e para os rituais. Os textos bíblicos relatam também a presença de objetos cultuais e figuras decorativas no Templo de Salomão, com imagens de plantas, animais e querubins (1Rs 6,1-37; 2Cr 3,1-15; 2Cr 4,1-22). Não há descrição da presença de figuras humanas, porém, as imagens eram entalhadas e esculpidas, o que mostra que o mandamento bíblico não era encarado como uma proibição a todo tipo de escultura, somente àquelas que tinham um sentido idolátrico, ou seja, que podiam ser cultuadas como deuses. Em geral, até o período do Segundo Templo as imagens produzidas pelo povo judeu se restringiam aos objetos de culto e de decoração sem a reprodução da figura humana. Uma posterior transformação desta realidade aconteceu a partir da influência da cultura helenística na Palestina e em todo o mundo oriental. Na era helenística “Grécia e Ásia casam-se para dar à luz o helenismo, a civilização dos povos orientais que assimilaram o idioma, o pensamento, e a maneira de viver dos gregos” (AZRIA, 2000, p.55). Porém, é na era cristã, sob o domínio romano, e posteriormente parta e sassânida, que se observa entre os judeus uma maior reprodução de imagens humanas. Os judeus adotam, então, alguns aspectos da arte produzida por estes povos gerando ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36. 27 uma mudança na posição relativa à ornamentação das sinagogas. São deste período as sinagogas de Dura Europos (século III d.C.) e Beth Alpha (século VI d.C.). Nestas sinagogas foram encontrados mosaicos de solo e afrescos com representações figurativas de temas bíblicos, com a presença de figuras humanas, além de animais, círculos do zodíaco e símbolos judaicos como a menorá. A função destas imagens era a ilustração e a explicação, em imagens, do significado para o povo judeu das histórias da Bíblia Hebraica com o objetivo de fazer lembrar aos que contemplavam a figura a ocasião em que Deus manifestara seu poder. Foram encontradas pelos arqueólogos uma centena de sinagogas construídas na Galiléia e na Judéia entre os séculos IV e VI d.C. As figuras humanas e outros motivos anteriormente não vistas nas sinagogas e no Templo de Salomão agora compunham a maior parte da decoração das sinagogas. Uma das explicações possíveis para essa mudança na forma de ornamentação das sinagogas judaicas é que a importância dos cultos pagãos havia diminuído consideravelmente com o advento do cristianismo e os motivos clássicos haviam perdido seu significado religioso, permanecendo apenas como valores estéticos aceitáveis de serem utilizados pelos judeus. Sendo assim, a proibição bíblica de imagens tinha o objetivo principal de combater a idolatria, e desta maneira durante bastante tempo contribuiu para o cerceamento da produção de imagens que reproduzissem animais e principalmente a figura humana no judaísmo, porém, não totalmente. Achados arqueológicos do final do período bíblico na Antiguidade e da Idade Média mostram que apesar da restrição bíblica, encarada na maior parte do tempo literalmente pelo povo de Israel, houve arte figurativa em sinagogas e objetos de ritualística. A proibição das imagens restringiu muito mais a produção de esculturas, já que o mandamento utiliza a palavra “esculpir” ou a expressão “imagem esculpida” em sua redação. O historiador da arte Ernest Hans Gombrich afirma que “na realidade, a Lei Judaica proibiu a realização de imagens por temor à idolatria. Não obstante, as colônias judaicas nas cidades da fronteira leste dedicaram-se à decoração das paredes de suas sinagogas com histórias do Antigo Testamento” (GOMBRICH, 1993, p.89). Além disso, na Idade Média no Ocidente, assimilando características da arte islâmica e cristã, os judeus realizavam escritos ilustrados mais conhecidos como iluminuras, especialmente nas agadás de Pesach, o texto utilizado para os serviços da noite da Páscoa judaica, contendo a história da libertação do povo de Israel do Egito. A agadá contém a narrativa dessa libertação, as orações, canções e provérbios judaicos que acompanham esta festividade. Nas agadás medievais eram ilustrados temas bíblicos, inclusive com a presença de figuras humanas. O que havia de especificamente judaico nessas iluminuras era a forma da escrita em hebraico, da direita para a esquerda. E enquanto nas iluminuras cristãs decorava-se apenas a primeira letra do texto, nas iluminuras judaicas decorava-se a primeira palavra do texto. A conclusão a que se pode chegar analisando a história do desenvolvimento da arte no judaísmo é que existiu produção artística entre os judeus, apesar da proibição bíblica das imagens ter contribuído para isso ser algo bem restrito. Porém, ainda há controvérsias quanto ao fato de ter existido uma arte judaica. Pois, se existiu uma arte judaica esta nunca teve um estilo próprio, sempre sofrendo a interferência e a influência de outras culturas. Especialmente na Diáspora, onde os judeus sempre foram uma minoria nos países onde se estabeleceram. Nesses locais, os judeus assimilavam o estilo predominante localmente. AS IMAGENS NO CRISTIANISMO ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36. 28 Em seus primórdios, o cristianismo era apenas uma das seitas surgidas no seio do judaísmo não se diferenciando muito em relação às crenças e práticas. Porém, à medida que o tempo foi passando, era cada vez maior o número de conversos cristãos de origem não judaica. Isso foi levando a uma reestruturação do grupo religioso cristão, que já em seu primeiro concílio dispensou uma serie de práticas essenciais na religião judaica, como a circuncisão. Isso marcou um gradual rompimento entre os cristãos e os antigos seguidores do judaísmo. A aceitação do cristianismo como religião oficial do Império Romano no século IV e a reestruturação da Igreja no I Concílio Ecumênico de Nicéia em 325 marcaram uma profunda separação das duas religiões e a consolidação de uma nova concepção de Deus por parte da Igreja através dos dogmas que foram estabelecidos a partir de passagens dos evangelhos e das cartas apostólicas do Novo Testamento. Em relação às imagens, três passagens do Novo Testamento foram fundamentais para a Igreja. No Evangelho de João está escrito: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9). A mesma ideia está descrita nas cartas apostólicas. A Carta aos Filipenses diz que: “Ele (Jesus), estando na forma de Deus...” (Fl 2,6). Enquanto na carta aos Colossenses a mesma ideia foi escrita mais claramente desta maneira: “Ele (Jesus) é a Imagem do Deus invisível...” (Cl 1,15). O cristianismo aceitou que Jesus Cristo era o Messias, o qual YHWH prometera enviar para libertar o povo de Israel. Utilizando-se especialmente dessas passagens bíblicas a Igreja instituiu como dogma que Jesus Cristo além de ser o Messias, ou seja, o enviado de Deus, é o próprio Deus, a encarnação humana de Deus. Isto é a essência da fé cristã: o mistério da Encarnação de Deus. A crença em um Deus único desenvolvida pelo judaísmo ganha com o cristianismo a partir do I Concílio Ecumênico de Nicéia uma complexa e paradoxal representação. Um Deus ao mesmo tempo uno por essência (porque só existe um Deus) e trino (porque está personalizado pelas pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo). O I Concílio de Nicéia também professou a divindade de Jesus, que seria a segunda pessoa da Trindade. Se na Bíblia Hebraica ou Antigo Testamento aparece um Deus invisível, abstrato, incorpóreo e inacessível, a interpretação do Novo Testamento pela Igreja traz a concepção de um Deus que se encarnou em uma forma humana e, portanto, se fez visível. De acordo com os ensinamentos da Igreja Católica, Deus foi se revelando ao homem em etapas e a última etapa desta revelação foi através de Jesus Cristo, o mediador e a plenitude de toda a revelação. Jesus Cristo é para os cristãos o símbolo da aliança definitiva de Deus com o povo de Israel. Segundo os evangelhos, o Deus que se manifestava por palavras se encarnou e assumiu uma forma humana. Jesus é apresentado como o Verbo de Deus: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos sua glória, glória como unigênito do Pai” (Jo 1, 14). Para a doutrina da Igreja Católica, Cristo não é apenas o Filho de Deus ou sua última revelação aos homens. Ele é definido, principalmente, como a encarnação do próprio Deus, tendo assumido uma natureza humana. “Podemos crer em Jesus Cristo porque ele mesmo é Deus, o Verbo feito carne...” (Catecismo da Igreja Católica, 2000, p.50, item 151). Ao aceitar que Jesus Cristo é o próprio Deus encarnado e que, por isso, ele assumiu uma verdadeira humanidade, a Igreja também aceitou, desde o VII Concílio Ecumênico, ou seja, o II Concílio de Nicéia,realizado no ano 787, que o rosto humano de Jesus pudesse ser “desenhado”, representado em uma imagem sagrada. Pois Deus, ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36. 29 que no Antigo Testamento era invisível e abstrato, tomou uma forma humana para si, e agora se tornou visível, portanto passível de ser representado por uma imagem sagrada. Para Besançon “a Igreja liga a imagem à Encarnação. O que autoriza a imagem na Nova Aliança é justamente sua proibição na Antiga.” (BESANÇON, 1997, p.198). Em Israel a representação da imagem de YHWH era proibida porque ninguém tinha visto forma alguma da divindade. Aceitando que Jesus seja Filho e ao mesmo tempo é o próprio Deus, pois os dois são consubstanciais, a Igreja Católica aceitou que Deus se fez visível para os homens e, portanto, passível de ser representado por meio de uma imagem a ser contemplada e venerada por todos. “Com efeito, as particularidades individuais do corpo de Cristo exprimem a pessoa divina do Filho de Deus. Este fez seus os traços de seu corpo humano a ponto de, pintados em uma imagem sagrada, poderem ser venerados, pois o crente que venera sua imagem venera nela a pessoa que está pintada” (Catecismo da Igreja Católica, 2000, p. 135, item 477). Esta ideia fez com que a Igreja assumisse uma postura em relação às imagens e, consequentemente, em relação à arte diferente daquela que os judeus tinham.A imagem ganha no cristianismo católico uma importância jamais observada no judaísmo, suplantando a relevância da palavra escrita, ao menos para os fiéis, que não tinham acesso aos textos bíblicos. Para o catolicismo “a iconografia cristã transcreve pela imagem a mensagem evangélica que a Sagrada Escritura transmite pela palavra. Imagem e palavra iluminamse mutuamente” (Catecismo da Igreja Católica, 2000, p.326, item 1160). A imagem sagrada adquire, na doutrina da Igreja Católica, uma importância tão grande quanto a que exercia nas religiões pagãs, porém, com um sentido diverso do que era praticado no paganismo. A Igreja Católica defende tratar-se de um culto de veneração. Sem ignorar o perigo de um ressurgimento das práticas idolátricas do paganismo, a Igreja admitia que não somente Jesus, mas também Maria, os mártires, os anjos e santos fossem representados em formas pictóricas ou plásticas para favorecer a oração e a devoção dos fiéis. A representação dos “seguidores de Cristo” é aceita pela Igreja, pois afirma que o homem foi criado “à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,26) e que a encarnação do Verbo tornou o homem “participante da natureza divina” (2Pd, 1,4). Segundo Alain Besançon, a posição da Igreja em relação às imagens está totalmente embasada na ideia da encarnação de Deus através de Jesus Cristo, criando-se uma oposição com o que aconteceu no Horeb e é relatado no Antigo Testamento. “A proibição do Horeb já não é valida, do momento em que Deus se manifestou na carne, e pôde ser percebido, portanto, não apenas pelo ouvido, mas pela vista também” (BESANÇON, 1997, p. 206). Ao estabelecer sua doutrina a Igreja se preocupou em incluir os escritos da Bíblia Hebraica ou Antigo Testamento dentro de um processo histórico, a história da revelação divina aos homens, na qual os acontecimentos do Êxodo e a entrega do Decálogo são uma etapa intermediária. O Antigo Testamento passou a ser lido “à luz de Cristo morto e ressuscitado” (Catecismo da Igreja Católica, 2000, p.45, item 129). Segundo sua doutrina, os evangelhos do Novo Testamento mostram que Jesus Cristo não aboliu a Lei do Decálogo, mas veio levá-la à perfeição pelo amor ou caridade. A Igreja defende que o Decálogo, ao apresentar os mandamentos do amor a Deus (os quatro primeiros mandamentos) na primeira tábua e ao próximo (os outros seis mandamentos) na segunda tábua traça para o povo eleito e para cada um em particular, o caminho de uma vida liberta da escravidão do pecado. ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36. 30 Sobre os Dez Mandamentos é importante esclarecer que a Igreja Católica os organiza de maneira diferente em relação ao judaísmo. Seguindo a divisão feita por Santo Agostinho, na Idade Média, a Igreja considera os versículos de 3 a 6 (primeiro e segundo mandamento no judaísmo) do capítulo 20 do Livro do Êxodo como sendo o primeiro mandamento resumido nas seguintes palavras: “Amar a Deus sobre todas as coisas”. O Decálogo em sua fórmula catequética ditada pela Igreja Católica deixou de falar explicitamente sobre a proibição de se confeccionar imagens. O processo de exclusão desta passagem foi acompanhado da aceitação e desenvolvimento da arte sacra nas Igrejas Católicas durante a Idade Média. Ao explicar o ponto de vista da Igreja Católica sobre cada um dos Dez Mandamentos, o Catecismo afirma em relação ao “primeiro” mandamento que seu significado está relacionado à obrigatoriedade de louvar e adorar ao único e verdadeiro Deus, proibindo-se prestar honra a outros afora o único Senhor que se revelou a seu povo. Para o catolicismo, o primeiro mandamento condena principalmente o politeísmo, exigindo que o homem não acredite em outros deuses e que não venere outras divindades, pois ao contrário do Deus vivo estas divindades são “ídolos, ouro e prata, obras das mãos dos homens” conforme está escrito no Antigo Testamento e em conformidade com o conceito de ídolos-fetiches defendido por Yehezkel Kaufmann. A Igreja define a idolatria como o ato de “divinizar o que não é Deus. Existe idolatria quando o homem presta honra e veneração a uma criatura em lugar de Deus...” (Catecismo da Igreja Católica, item 2113, p.556). A Igreja Católica julga que o primeiro mandamento estava proibindo a representação de Deus por mão do homem porque até aquele momento não se tinha visto sua forma. Mas que ao se encarnar, o Filho de Deus inaugurou uma nova “economia” das imagens. Isto para a Igreja justifica o culto dos ícones de Cristo, da mãe de Deus, dos anjos e de todos os santos. Neste sentido, de forma alguma as imagens sagradas contrariam o primeiro mandamento, pois “desde o Antigo Testamento que Deus ordenou ou permitiu a instituição de imagens que conduziriam simbolicamente à salvação por meio do Verbo encarnado, como são a serpente de bronze, a Arca da Aliança e os querubins” (Catecismo da Igreja Católica, p.560, item 2130). E para aqueles que a acusam de práticas idolátricas por causa das inúmeras imagens sagradas em seus templos, a Igreja Católica rebate dizendo que a honra prestada às santas imagens é apenas uma “veneração respeitosa” e não uma adoração, que só compete a Deus, não interpretando esta prática como uma forma de idolatria, pois de forma alguma os santos e os anjos tomam o lugar do culto ao Deus único. Já do ponto de vista histórico, no início do cristianismo não havia uma unidade em torno da aceitação das imagens. Uma visão unitária a ser seguida por todos os cristãos só foi possível a partir da organização dos concílios ecumênicos quando o cristianismo se tornou religião oficial do Império Romano. Estes concílios só tinham validade se deles participassem o Bispo de Roma e os Patriarcas do Oriente já que a Igreja estava dividida em duas sedes, Ocidente e Oriente, assim como o Império Romano. O último concílio plenamente reconhecido pelas duas Igrejas foi o II Concílio Ecumênico de Nicéia,em 787, aquele que discutiu e aprovou a legitimidade da veneração dos ícones (imagens). Anteriormente à realização do concílio estava havendo divergências entre os padres e doutores da Igreja quanto à aceitação das imagens. No Oriente, o movimento iconoclasta iniciado pelo imperador Leão III, em 726, era motivo de constantes embates e destruição dos ícones. E mesmo após este concílio a discussão iconoclasta continuou neste território. No Ocidente, a Igreja de Roma seguiu sem ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36. 31 rupturas sua ação a favor das imagens, pois não estava subordinada à autoridade do imperador bizantino. O II Concílio de Nicéia determinou que uma das funções da arte sacra é a realização do culto de veneração da Cruz de Cristo, de Maria e dos anjos e santos, devido à concepção da encarnação do Verbo e santificação da carne. A veneração é uma forma respeitosa de homenagear aqueles que fizeram parte da história da salvação junto com Jesus Cristo. A imagem sagrada, de acordo com esta doutrina, não é vista como um ídolo porque a honra prestada a uma imagem se dirige ao modelo original e quem venera uma imagem venera a pessoa que nela está pintada. Porém, ao adotar este ponto de vista, o catolicismo se aproximou, de certa forma, das práticas religiosas pagãs, pois historicamente no judaísmo não há veneração de imagens. Mas enquanto para algumas religiões pagãs da Antiguidade a imagem era vista como a portadora do deus e a ela era atribuído algum tipo de poder mágico, no catolicismo, não é atribuído nenhum tipo de poder às imagens, que são vistas como meros instrumentos de veneração, ou seja, admiração e respeito à pessoa que está nela representada, servindo como uma forma de incentivo ao fervor religioso. De acordo com a doutrina da Igreja Católica os santos, de forma alguma, possuem o status de deuses ou semideuses. Eles são considerados “coparticipantes da história da salvação” e “exemplos de santidade para os cristãos” (Catecismo da Igreja Católica, 2000, p.534, item 2030).Apesar disso, as imagens religiosas católicas fizeram com que a religião cristã fosse mais facilmente aceita pelos povos bárbaros, pois estes faziam relações entre seus antigos deuses e os santos católicos. De qualquer modo, a veneração deveria servir para lembrar ao cristão a história sagrada e despertar seu lado emotivo para assim suscitar o arrependimento dos pecados e levar aquele que contempla a imagem a se aproximar cada vez mais de Deus, o único a quem se deve o culto de adoração. Ao aceitar plenamente as decisões do II Concílio de Nicéia, na Idade Média, a Igreja de Roma assumiu consequentemente uma visão positiva em relação às artes plásticas, atividade inerente à natureza humana. A Igreja, em seu Catecismo (2000, p.644, item 2502), afirma que a arte é uma forma de expressão propriamente humana nascida de um talento dado pelo Criador e do esforço do próprio homem, tendo uma forte semelhança com a atividade de Deus na criação. A arte vista assim é uma maneira do homem se aproximar de Deus, através de sua criação ou da meditação e veneração de obras criadas por outras pessoas. Esta ideia levou a Igreja Católica a incentivar as artes durante a Idade Média, em suas manifestações na arquitetura das igrejas e na realização de esculturas e pinturas de caráter sagrado. Além de ter um sentido contemplativo a arte nas igrejas tinha também uma função decorativa servindo também para ornamentar ou embelezar a “Casa de Deus”. Porém, além da questão doutrinária, resolvida pela Igreja Católica da maneira como foi exposta acima, e da decoração, havia uma questão muito mais prática para a Igreja de Roma relacionada à confecção das imagens: a conversão e evangelização dos povos que passaram a habitar o antigo território do Império Romano do Ocidente. Neste sentido, vemos historicamente que em seus três primeiros séculos de existência o cristianismo era uma religião perseguida e praticada às escondidas, nas casas dos membros mais ricos e, principalmente, nas catacumbas, galerias subterrâneas onde os cristãos romanos enterravam seus mortos e, local em que os cristãos conseguiam se reunir em paz, longe de perseguições, torturas e assassinatos transformados em espetáculos públicos. ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36. 32 Foram nas catacumbas em Roma que apareceram as primeiras imagens feitas pelos cristãos. No início, os cristãos ainda eram, na maior parte, judeus da Diáspora que haviam aceitado que Jesus era o Messias enviado por Deus. Os judeus já vinham reproduzindo em sinagogas e em objetos de ritualística algumas imagens, inclusive de figuras humanas, apesar da proibição bíblica. Esses judeus que se converteram ao cristianismo começaram a reproduzir nas catacumbas a mesma espécie de “arte” que realizavam nas sinagogas e objetos, com apenas uma diferença, além de reproduzir passagens do Antigo Testamento as imagens reproduziam também cenas da vida de Jesus e de outras figuras importantes na história do cristianismo. Inicialmente, não havia no cristianismo uma total aceitação das imagens como se deu posteriormente com a definição da ortodoxia e da doutrina da Igreja Católica através dos Pais da Igreja. Por influência do judaísmo ainda havia um respeito à proibição bíblica de se reproduzir imagens. Porém, a cultura helenística provocou uma abertura nos costumes e práticas da religião judaica que se repetiram também no cristianismo. As imagens nas catacumbas estavam ligadas diretamente à importância dos ritos fúnebres e à proteção dos túmulos para os cristãos, pois sua fé se assentava na esperança de uma vida eterna no Paraíso. Da mesma forma que no judaísmo, evitava-se a realização de esculturas, já que o mandamento bíblico fala na proibição de se esculpir imagens, preferindo-se as pinturas afrescos, mosaicos ou esculturas com pouco relevo. Até o século I essas imagens nas catacumbas eram basicamente a reprodução de símbolos pagãos com um novo significado à luz do cristianismo e muitas cenas ou passagens do Antigo Testamento, sendo uma arte muito simples e rudimentar. No fim do século II começam a aparecer nestas imagens os símbolos propriamente cristãos e cenas descritas nos evangelhos, mas não se manifestou uma especialização no processo de confecção dessas imagens. Essas imagens ainda não tinham uma conotação contemplativa, não eram imagens de culto, e também não tinham a função de evangelizar, apenas procuravam manter viva a lembrança de alguns momentos ou passagens importantes para os cristãos num processo de representação visível de sua história sagrada. Seguindo o argumento bíblico de que Deus era invisível e, portanto, irrepresentável por meio de uma imagem humana, as primeiras imagens cristãs não representavam propriamente a imagem de Jesus, apenas símbolos relacionados a ele como monogramas ou metáforas. Mas conforme foi sendo aceito entre os cristãos o fato de que Jesus era a encarnação visível de Deus, Ele passou a aparecer representado nas imagens nas catacumbas. Inicialmente na forma de um jovem sereno de cabelos cacheados, quando se valorizava mais o seu poder de nos redimir da morte, e posteriormente, por volta do século V, na forma adulta e barbada e com aspecto sofredor ou severo, quando se passou a valorizar mais os tormentos pelos quais Ele passou quando se fez carne. No século IV, o cristianismo passou por uma grande transformação e o responsável por isso foi Constantino, o primeiro imperador romano a se converter ao cristianismo. A partir dele, Roma passa a ser o centro oficial da fé cristã com a concessão da liberdade de culto aos cristãos através do Edito de Milão. O cristianismo, com um número cada vez maior de fiéis entre os pagãos em suas diversas comunidades, poderia a partir do Édito de Milão, em 312, se reunir abertamente e era preciso então construir locais de culto. Adotou-se o modelo das “basílicas” romanas, amplos locais de reunião, para a construção das primeiras igrejas, para comportar o grande número de cristãos, que já superavam os pagãos em quantidade. Surge a questão de como decorar as basílicas e um ponto comum, apesar das controvérsias sobre as imagens, era a de ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36. 33 evitar as esculturas ou estátuas de Jesus ou dos santos, pois isso poderia causar confusão entre os pagãos recém-convertidos, mas não se estabeleceu restrição em relação à pintura, mosaicos e baixos relevos. No ano 380, o imperador Teodósio, através do Édito de Constantinopla, tornou o cristianismo a religião oficial do Império Romano. A igreja cristã caminhava num crescente processo de estruturação e hierarquização. A transferência da capital para Bizâncio e a posterior divisão do Império Romano em duas sedes influenciaram no estabelecimento de diferenças notáveis entre A Igreja do Oriente e a do Ocidente, processo que culminou na separação total entre as duas no ano de 1054. Em maio de 330, Constantino transferiu a capital do Império de Roma para a cidade grega de Bizâncio, posteriormente denominada Constantinopla em sua homenagem, reconhecendo a importância econômica e política do lado oriental do Império Romano, enquanto uma crise econômica, política e militar tomava conta do lado ocidental. Em 395, Teodósio, sucessor de Constantino, reorganizou o Império com duas capitais, Roma no Ocidente e Constantinopla no Oriente. Isso influenciou o posterior desenvolvimento do cristianismo e o cisma da Igreja Cristã também em duas Igrejas, a Católica no Ocidente a Ortodoxa no Oriente. A divisão em duas sedes, em contextos políticos e sociais diferentes, contribuiu para uma diferenciação no estilo arquitetônico das igrejas e na adoção de pontos de vista muitas vezes contrários em relação ao uso das imagens nas igrejas. No Oriente, a Igreja Cristã estava subordinada ao Império e eram os imperadores bizantinos que patrocinavam a construção de igrejas. No Ocidente, com o declínio e queda do Império Romano, a Igreja se sobressaiu como a instituição sucessora deste Império e os papas passaram a ter imenso poder temporal e espiritual sobre a cristandade, determinando como seriam construídas e decoradas as igrejas. No Oriente, os imperadores durante alguns séculos encorajaram a veneração das imagens religiosas, os ícones, à semelhança do culto que era prestado às imagens imperiais no tempo do paganismo no Império Romano. As imagens de Cristo e da Virgem Maria ocuparam o espaço antes ocupado pelas estátuas dos imperadores, recebendo um culto semelhante ou igual àquele que era realizado pelos pagãos na Antiguidade. Porém, a questão iconoclasta, iniciada em 726 e que durou mais de cem anos, e que envolvia, no plano teológico, a discussão entre o humano e o divino na pessoa de Jesus e, no plano social, uma luta pelo poder entre Estado e Igreja, provocou uma acentuada queda na produção de imagens religiosas, sem nunca conseguir eliminálas completamente. Pouco tempo após a vitória dos iconófilos, em 843, os ícones, especialidade da arte religiosa bizantina, se espalharam novamente nas igrejas, palácios e casas bizantinas. A Igreja no Ocidente jamais enfrentou um debate tão profundo em relação à iconoclastia como enfrentou a Igreja do Oriente, tendo produzido durante a Idade Média um grande número de imagens de diversos tipos. De acordo com Alain Besançon “jamais houve no Ocidente debate sobre a imagem que se comparasse em profundidade, em amplitude, em precisão e em violência àquele que ocupou por muito tempo o Oriente” (BESANÇON, 1997, p.242), sendo a questão das imagens tratada muito mais do ponto de vista retórico do que filosófico, teológico ou metafísico. Tanto que a Igreja de Roma aceitou plenamente as decisões do II Concílio Ecumênico de Nicéia, de 787, que aprovou o uso e a veneração das imagens sagradas. A história do Ocidente pode ser uma das causas dessa superficialidade no debate em relação às imagens. A desintegração do Império Romano do Ocidente devido às invasões das tribos bárbaras germânicas e o isolamento em que mergulhou a Europa Ocidental, no século VIII, devido às invasões dos árabes muçulmanos levaram a um ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36. 34 declínio da cultura ocidental e, um consequente afastamento do Império Bizantino. A Igreja de Roma caminhava para o rompimento de seus laços com a Igreja do Oriente. Sob o caos e a degradação cultural que se instalaram na Europa Ocidental a Igreja soube utilizar seu papel de única organização cosmopolita e centralizada no Ocidente para adquirir o monopólio da cultura intelectual, inclusive no tocante às artes. A Igreja se preocupava com a conversão dos povos bárbaros que estavam habitando os territórios do antigo Império Romano do Ocidente. Inicialmente estes povos constituíram diversos reinos bárbaros, aceitando a estrutura da fase final da civilização romana cristã. Destes reinos o mais importante foi o Reino Franco ao qual a Igreja se aliou ao coroar Carlos Magno, rei dos francos, no Natal do ano 800, como imperador. Assim, a Igreja buscava apoio político e econômico, sem se subordinar ao imperador carolíngio, e ao mesmo tempo, subordinava o poder temporal ao poder espiritual chefiado por ela. Neste processo, a conversão desses povos era essencial para o fortalecimento espiritual e material da Igreja. As conversões em massa foram o resultado da conversão forçada de seus povos por parte dos reis bárbaros. A Igreja se preocupava em encontrar meios de atrair e ao mesmo tempo instruir na fé cristã estas pessoas sem que isso colocasse em risco o seu domínio exclusivo sobre a interpretação da Bíblia. Como nos informa Eliana Malanga, com a “conversão das massas pagas à nova religião, uma grande massa de analfabetos teve contato com o texto bíblico” o que acabou sendo um problema para a Igreja, pois isso abria possibilidades para interpretações diferentes daquela que “fundamentava sua doutrina e seus dogmas” (MALANGA, 2005, p.236). De acordo com a autora não houve por parte da Igreja um grande empenho para que o texto bíblico fosse acessível a todos, justamente por esta preocupação em fechar uma interpretação única e impô-la como verdade indiscutível, e como a maior parte da população era analfabeta recorria-se às imagens para a sua conversão e evangelização. A Igreja precisava subordinar uma multidão de fiéis que falavam mal o latim e não sabiam ler. O Papa Gregório Magno defendeu, no século VI, que as imagens eram úteis porque ajudavam a congregação a recordar os ensinamentos que haviam recebido e mantinham viva a memória dos episódios sagrados do Antigo e do Novo Testamento, servindo para o analfabeto da mesma maneira que o livro para o que sabe ler. Neste sentido a imagem adquiria uma função pastoral e didática, da mesma maneira que o livro teria para alguém alfabetizado. Sobre o uso das imagens para a instrução dos iletrados na Idade Média disse São Basílio Magno: “o que o relato oferece ao ouvido, o quadro revela silenciosamente pela imitação” (BESANÇON, 1997, p. 244). E também Gregório de Nissa: “A imagem é um livro portador de linguagem” (BESANÇON, 1997, p.244). E posteriormente São Boaventura: “As imagens foram introduzidas na igreja por causa da incultura dos simples, da mornidão dos afetos, da impermanência da memória” (BESANÇON, 1997, p.256). Ao afastar o povo da leitura direta da Bíblia, a Igreja precisava investir em outro meio que motivasse a fé dos cristãos, de um modo que resultasse sensível, principalmente para aqueles que não sabiam ler. Assim as igrejas e catedrais eram como livros escritos em pedra, por meio de imagens pelas quais se podiam conhecer passagens bíblicas e histórias da vida dos santos que a Igreja visasse difundir sem a necessidade de saber ler. Este processo foi sendo concretizando ao longo de todo o período denominado pelos historiadores de Alta Idade Média. Posteriormente, na Idade Média Central e Baixa Idade Média, surgiram os estilos artísticos conhecidos como românico e gótico, ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36. 35 estritamente relacionados à arquitetura e ornamentação de igrejas e catedrais, e que mantiveram essa tendência do uso retórico das imagens pela Igreja Católica no Ocidente. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo apresentou um estudo sobre como o judaísmo e o cristianismo católico, durante a Antiguidade e a Idade Média, interpretaram o mandamento bíblico do Decálogo ou Lei do Monte Sinai que proíbe confeccionar imagens. As duas religiões são inspiradas pelo mesmo livro sagrado, porém, devido às suas especificidades históricas e teológicas deram interpretações diferentes para este mandamento bíblico. No judaísmo, durante a Antiguidade, o mandamento foi interpretado como uma proibição da idolatria, ou seja, da confecção e, consequentemente, adoração dos deuses pagãos devido à visão que Israel tinha dos deuses pagãos como ídolos fetiches. Também era visto como uma proibição da representação de Deus, pois o Deus de Israel era invisível e abstrato e incapaz de ser alcançado pela compreensão humana. A palavra era o meio primordial de comunicação de Iahweh com o povo de Israel, pois Ele assim determinara. Já a Igreja de Roma ou Católica Apostólica Romana afirmou na Idade Média o dogma da encarnação do Verbo, isto é, Jesus consubstancial ao Pai é o próprio Deus que se fez carne e foi visto enquanto imagem na Terra. Se Deus não era mais invisível foi permitido, então, a reprodução de sua feição humana, bem como a daqueles que sempre estiveram em comunhão com Ele como Maria, a Mãe de Deus, os anjos, os santos e os mártires. A partir da realidade da encarnação do Verbo o catolicismo interpretou o mandamento bíblico como uma proibição apenas da idolatria. Apesar da proibição bíblica das imagens, o judaísmo não se colocava contra a confecção de imagens que não se destinassem a culto de adoração. Em objetos rituais, na decoração do Templo de Salomão e sinagogas, imagens eram feitas, porém, sem a reprodução de figuras humanas. Somente no final da Antiguidade e início da Idade Média, por influência da cultura helenística, romana e parta-sassânida surgem as figuras humanas na decoração de sinagogas com o objetivo de ilustrar e explicar através de imagens as histórias da Bíblia Hebraica. No catolicismo as imagens adquiriram na Idade Média três significados. Primeiramente serviam para a veneração da pessoa representada pela imagem. Também tinham a função de decorar as igrejas, mosteiros e casas. E,numa Europa dominada por pessoas analfabetas após as invasões dos povos bárbaros que eram ágrafos, as imagens que retratavam cenas do Velho e do Novo Testamento eram uma forma de evangelizar e instruir estes povos incultos nos princípios essenciais da fé cristã. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZRIA, Régine. O judaísmo. São Paulo: EDUSC, 2000. BAUMGART, Fritz. Breve história da arte. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BESANÇON, Alain. A Imagem proibida: uma história intelectual da iconoclastia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. Bíblia, Português. A Bíblia de Jerusalém. 2ª impressão. São Paulo: Editora Paulus, 2003. BRIGHT, J. História de Israel. 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 1978. (Nova Coleção Bíblica, 7). ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36. 36 CARTUS, Niels. Olhares brasileiros judaicos: a presença do judaísmo na arte brasileira contemporânea. São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Edições Loyola, 2000. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A idade média: nascimento do ocidente. 2ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora Brasiliense, 2001. GOMBRICH, E. H. A história da arte. 15ª ed. Editora Guanabara Koogan S.A., 1993. JANSON, H.W. Iniciação à história da arte. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988. JOÃO PAULO II. Duodecim saeculum: carta apostólica sobre a veneração das imagens. Petrópolis: Vozes, 1988. JOHNSON, Paul. História dos judeus. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, (s.d.). KAUFMANN, Yehezkel. A religião de Israel: do início ao exílio babilônico. São Paulo: Editora Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo: Associação Universitária de Cultura Judaica, 1989. Coleção Estudos v. 114. MALANGA, Eliana Branco. A bíblia hebraica como obra aberta: uma proposta interdisciplinar para uma semiologia bíblica. 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