Como Diria Montaigne

Transcrição

Como Diria Montaigne
Como Diria
Montaigne
Ou
Trecho Ermo
Texto de Wilson Sayão
Para os nossos politizados tempos, uma peça sem-vergonha.
PERSONAGENS
IRENE - 60 anos, bem conservada, é uma figura que
constrange logo à primeira vista, pois se veste e se penteia
de acordo c/ a década de 40, e usa pesada maquilagem de
base branca.
NÁDIA - 30 anos
NEY - 32 anos
NEUSA - 34 anos
GUILHERME - 50 anos
CÁSSIO - 28 anos
MÁRIO - 34 anos
UM HOMEM - de quem se vê apenas o vulto
DOIS POLICIAIS
CENÁRIO
Embora a ação transcorra em cada uma das residências
dos filhos da personagem principal, o cenário pode ser
sempre o mesmo: uma porta à esquerda, de entrada; uma
janela; duas portas ao fundo; um sofá e um telefone. Para
indicar a mudança de local, as almofadas do sofá
poderão ser trocadas. Poderão ser iluminadas áreas
diferentes do cenário único, ou outra solução qualquer,
de acordo c/ a criatividade e/ou recursos da montagem. O
importante é sugerir uma espécie de fatal identidade
entre os três locais.
CENA 1
Nádia espia a chuva, mal-humorada, à janela. A mãe
folheia uma revista, atenta à filha. Ela, a mãe, está sempre
bem vestida, penteada e maquilada, embora no estilo da
década de 40, como já foi dito. Ouve-se a "Valsa em dó
menor", de Chopin.
IRENE - Que é que você está olhando aí há tanto tempo?
NÁDIA - Esses malucos.
IRENE - Por que malucos?
NÁDIA - Estão correndo da chuva.
IRENE (Alegre) - Você também acha que deviam dançar como Fred
Astaire?
NÁDIA - Uma chuvinha à toa...
IRENE (Sem inquietação) - Acho que tem roupa na área.
NÁDIA - Diabo! (Um pouco para a mãe, um pouco para a chuva).
IRENE (Intuindo a ofensa) - O quê?!
NÁDIA - Tô chamando a chuva de diabo.
IRENE - Você ia sair?
NÁDIA – Que é que você acha?
IRENE - Que pra ficar sentada na escada, não é preciso lua cheia.
NÁDIA - Tenho uma raiva desse tempo!... Nojento!...
IRENE - A chuva apenas torna tudo mais real... ou mais irreal... Será
que nem um guarda-chuva o seu namorado tem?
NÁDIA – Que é que isso interessa?
IRENE - Ou tudo interessa... ou nada interessa.. Pequenas coisas é
que desenham o perfil de uma pessoa...
NÁDIA - Não vai ver a roupa, não, na área?
IRENE - Se ele tiver, significa que é chato, mas é disciplinado. Posso
esperar que se case com você...
NÁDIA - E se não tiver?
IRENE - Significa que não vai se casar com você...
NÁDIA - Ah, é?
IRENE - Eu sei que os guarda-chuvas levam mais tempo
incomodando o braço do que protegendo a cabeça, mas não é por
isso que se vai deixar de ter um, não é? O dia é composto de coisas
desnecessárias. A vida é composta de coisas desnecessárias. E é
esse o lado menos assustador do seu mistério.
NÁDIA - Mas quem foi que disse que eu quero casar com ele ou com
o Pedro Aguinaga?
IRENE (Exageradamente ansiosa) - Então qual é a sua fantasia,
minha filha?
NÁDIA - Eu quero é paz... sossego...
IRENE - Outra vez isso? Não pode pedir nada mais concreto?
NÁDIA - Você é quem: Deus? Papai Noel?
IRENE - Deus... Papai Noel... Xerife... Despachante... Cheerleader...
Confeccionadora de faixas, suflês e mortalhas... Quando a gente ama
uma pessoa, tem que ser tudo de que ela precisa.
NÁDIA - Ih, chega desse papo, tá? Num tempo desses, então...
IRENE (Muda o tom e o assunto para satisfazer a filha) - Se ele
não tiver um guarda-chuva, olha só quantas outras coisas ele não
deve ter: uma caneta Parker, um pente de osso, um terno de linho
branco SS 120, um de tussor... e nem mesmo coisas como um
serrote, um martelo... Quando escangalhar alguma coisa na casa de
vocês, não vai ter quem conserte. Porque um homem que não tem um
guarda-chuva é dos que não se dispõem nem a trocar uma lâmpada...
Se é que algum dia vocês vão ter uma casa...
NÁDIA - Quem foi que disse que eu quero uma casa? Já tenho. Pelo
menos, tinha.
IRENE (Finge não entender a insinuação) - Você quer completar
bodas de ouro de masturbação na escada?
NÁDIA (Mal-humorada e maliciosa) - É isso aí... na escada...
IRENE - Afinal, por que é que esse camundongo não entra pra
namorar você aqui na sala?
NÁDIA - Porque é um camundongo: não gosta de luz, de falatório, e
encheção de saco...
IRENE - Não sei como uma linda moça pode se apaixonar por
camundongo, um sapo anti-social como esse... Pensei que isso só
acontecesse nos contos de fada... se apaixonar por um bicho que só
gosta de correr de um escuro pro outro...
NÁDIA - Vai ver que ele adivinha que aqui dentro tem uma
assombração...
IRENE - É que ele pensa que na minha frente você não ia poder
masturbá-lo.
NÁDIA - Quê?
IRENE - Por mim, você pode fazer com ele aqui no sofá tudo que faz
na escada. Vocês ficam aqui no sofá, à vontade, cada um com uma
almofada na frente, ou até mesmo sem almofada, e se masturbem à
vontade, caiam um por cima do outro, que eu não me incomodo,
sinceramente...
NÁDIA - Vou pensar nisso...
IRENE - A mim nada espanta. Depois de ler os Ensaios de Montaigne,
não tem panela quente que eu não pegue sem pano... Pode trazer
seus homens aqui pro quarto quando quiser...
NÁDIA (Tentando esconder a indignação) - Você tá falando sério,
é?
IRENE - Não respondo que "nunca falei mais sério na minha vida",
porque não suporto o lugar-comum. Mesmo porque, isso nunca é
verdade. Todo mundo fala sério mesmo quando está brincando.
NÁDIA - Vai dar pra isso também agora, é?
IRENE - Eu sempre dei pra tudo que as circunstâncias exigiram. Pelo
menos, sempre me esforcei para ser uma pessoa que encaixasse na
vida...
NÁDIA - Só te faltava essa, mesmo...
IRENE - Essa qual?
NÁDIA - De velha regateira, sem-vergonha...
IRENE – Que é isso, minha filha?! Você não me compreendeu...
NÁDIA - Tomara que não tenha compreendido mesmo...
IRENE - É que num tempo desses, então, não era melhor você ficar
namorando aqui no quarto, na sua própria cama, suas próprias
coisinhas, sua mãe, tudo, à mão?
NÁDIA - Ah, só me faltava essa!... Tá de gozação, né?... Queria era
que eu ficasse aqui te divertindo...
IRENE - Divertindo a mim, você? Ora, "Shirley Temple", cadê seus
cachos?
NÁDIA - É... Fala a verdade... queria que eu ficasse aqui te aturando
até no sábado..
IRENE - Absolutamente. O que eu acho é que não há necessidade
desse incômodo de ficar aí fora, com as costas no mármore frio, em
risco de serem flagrados, um com as pernas nos ombros do outro...
NÁDIA - Que jogo é esse, hein? Quer companhia, é?
IRENE - Eu? Antes só do que na companhia de dois tarados... Se o
pai matou os filhos, só porque discutiu com a mulher, imagine o quê
vocês não fariam comigo, quando um não esperasse o outro atingir o
orgasmo...
NÁDIA - Quer curtir com a minha cara, é? Quer encher o saco, né?
IRENE - Eu? Saco de quem? Se é o meu, tá pesadinho... Ocorre com
ele o mesmo milagre da multiplicação dos pães e peixes... Quanto
mais eu distribuo meus doces e brindes – minhas virtudes - mais ele
fica cheinho. Se for o seu, pode ser. Tenho distribuído meus doces e
brindes - minhas virtudes - mais com vocês do que com qualquer outra
pessoa, e talvez por hábito, continue insistindo pra que vocês comam
e durmam quando não têm vontade... Agora, o do seu namorado, eu
acho que não tenho como encher: um homem que não tem um
guarda-chuva é muito provável que não tenha nenhum tipo de saco.
NÁDIA - Por que é que você não me deixa em paz, hein?
IRENE - Paz... Paz... Paz o que é? Uma pomba branca? Eu quero que
você me dê o objetivo da sua vida. Se for uma pomba branca, é fácil,
eu não preciso te amofinar mais.. Arranjo uma na Cinelândia. O que é
paz pra você? É eu não falar mais com você? Não perguntar mais qual
é o teu sonho?
NÁDIA - Isso já ajudava bastante...
IRENE - Você está enganada, Nádia. A paz não é uma pomba branca,
nem a eliminação do que a gente não gosta. Ninguém fica em paz só
porque tira o sapato, aplaude aliviado o fim de um discurso, ou
simplesmente urina quando está apertado. O que a paz tem de pomba
é que voa sempre que a gente corre atrás dela... Como o suplício de
Tântalo... Você conhece a história de Tântalo... Você conhece a
história de Tântalo?
NÁDIA (Acendendo um cigarro) – Não faço questão, não...
IRENE (Meiga, como se tentasse distrair ou adormecer uma
criança) - É a seguinte: Tântalo roubou a receita do manjar dos
deuses e espalhou entre os homens, o peralta. Foi, então, condenado
a desejar o que não podia obter. Assim, a fonte desaparecia quando
ele tinha sede, e os galhos das árvores se encolhiam sempre que ele
tentava pegar um fruto. Pois assim são os homens e sua paz, querida
Nádia. (Noutro tom.) Você tem que desejar alguma coisa, fora a paz,
que é só um despeitado e rebelde desejo irrealizável.
NÁDIA - Eu desejo, sim, muita coisa... Eu tenho até dois grandes
desejos: um que você cale a boca, e outro, que essa merda dessa
chuva passe...
IRENE - E depois que eu tiver calado a boca e a chuva tiver passado?
NÁDIA - Depois? Deixa eu ver... Ah, um feriado!... um feriado que caia
numa sexta ou numa segunda-feira!... Tá vendo quanta coisa eu
desejo?
IRENE (Expressão consternada) - Pequenas coisas imediatas!
NÁDIA - Você falando aí, sabe o que eu sinto? Eu fico achando que
vai mesmo chover a noite inteira...
IRENE - Eu compreendo. Como dizia Montaigne, "em mim tudo tem
que ser inteiramente certo, ou inteiramente errado."... Eu
compreendo... Com Montaigne e com todo mundo, tudo tem que ser
inteiramente certo ou inteiramente errado.
NÁDIA - Mamãe, por favor...
IRENE - Está bem. Vou ficar alguns instantes calada pra ver se a
chuva passa e se a pomba branca finalmente pousa no seu ombro.
Não me custa nada. Quer dizer, não me custa muito... mas, até que é
melhor assim... Eu preciso me disciplinar... falar é uma coisa
compulsiva.. é como dar facadas... é como entrar numa multidão e
empurrar e ser empurrado... é...
NÁDIA - Ô, diabo!... (Joga o cigarro fora e esmaga-o sob o pé.).
IRENE - Agora foi a mim, sim, que você chamou de diabo!...
NÁDIA - Foi... Agora e antes foi você que eu chamei de diabo...
IRENE - Isso não me ofende. O diabo é apenas Deus mal-humorado,
aborrecido com a chuva, tentando cair na gandaia e no esquecimento.
(Pausa.) Vocês deviam passar a noite aqui...
NÁDIA - Tá com muita gracinha, hoje... Manera, mesmo...
IRENE - Eu sou, às vezes, involuntariamente engraçadinha. Deve ser
porque usei muita touca e muito camisolão da "Bonita"...
NÁDIA - Vai lá pra dentro, vai... vai... fazer sanduíche... vai... vai lavar
a louça...
IRENE - Já vou, filhinha. Mas primeiro eu queria combinar isso direito.
Leva ele pro quarto... é muito mais confortável... vocês podem passar
a chave, e até encostar a cômoda na porta, que eu sou tão "voyeur"
quanto todo o mundo, e posso ser tentada a espiar ou escutar...
NÁDIA - Fica me provocando... fica... Fica mexendo comigo...
IRENE - Essas coisas, "ad aeterno" e "ad aeternum" são muito mais
agradáveis no macio: na grama, nos montes de feno, na cama... Nos
degraus de mármore, machucando o corpo, sem poder abrir direito as
pernas, em risco de escorregar impotente ou frígida, sujar de "iogurte"
a palma da mão, o vestido, o lenço... Pra quê essa "Odisséia"? Ele
nem se chama Ulisses... se chama? Como é que se chama meu futuro
genro?
NÁDIA - Genro!... Ora se eu vou ficar agora dizendo nominho,
profissão, idade, naturalidade...
IRENE – Bom. Vocês é que sabem. Já apresentei meu projeto e até a
correspondente "exposição de motivos". De que é que você quer os
sanduíches?
NÁDIA - De lombinho...
IRENE - Isso é gosto dele, não é?
NÁDIA - Anda logo, tá? Tô com fome...
IRENE - Não, eu preciso saber. Porque meu saco de virtudes eu
distribuo com você, que é minha adorada. As preferências dele não
me interessam. Se for pra ele que você vai dar seu sanduíche...
NÁDIA (Cortando) - Quer parar com essa palhaçada?
IRENE - Tá bem. (Saindo.) Você querendo é quanto basta. (Volta.)
Agora, outra coisa: eu acho que ele devia ajudar, dar um tanto por
mês pros sanduíches...
NÁDIA (Rindo, irritada) - Sei... Ajuda... pros sanduíches... Ele... ele
quem?... Escuta: que papo é esse, hein? Tá querendo que eu fique
maluca também?
IRENE (Ar preocupado) - Também? Que outros defeitos, minha filha,
você acha que eu tenho?
NÁDIA - Gracinha... Não se enxerga, não?...
IRENE - É, sim, Nádia. Não me vejo direito, não. Queria tanto que
você tirasse um dia pra dizer como você me vê... Se eu fosse amiga
da Nair de Teffé, ela havia de fazer, sem eu pedir, minha caricatura...
Que coisa triste a gente só conhecer pessoas medíocres...
NÁDIA - Isso é fácil... É só desenhar um espantalho...
IRENE (Magoada) - É assim que você me vê?... Você está
enganada... Eu até hoje nunca assustei um pássaro!...
NÁDIA - Ah, vai... vai... (Enxotando-a para a cozinha.) Anda... vai...
IRENE – Que é isso de "vai, vai, vai", Nádia? Você nunca hesitou na
hora de me xingar... Sempre soube tão bem pra que inferno queria me
mandar...
NÁDIA - Eu sei, muito bem, sim, pra onde eu quero te mandar...
(Irene, cabisbaixa, dirige-se para a porta da esquerda, ao fundo.
Antes de atingi-la, volta-se.).
IRENE - Você vai falar com ele?
NÁDIA (Cínica) - Falo, sim, pode deixar...
IRENE - Quer que eu fale? Não há mais nada que eu não tenha
coragem de dizer a quem quer que seja. Desde que eu disse a certas
pessoas, pensando que eram semelhantes, que estava me sentindo
muito infeliz e precisava de ajuda - eu pensei que eram semelhantes e
não eram: eram... espantalhos cujo ofício era exatamente o de
assustar os pássaros indefesos como eu -... Desde que gritei a certas
pessoas: "não façam isso comigo!" e eles fizeram...
NÁDIA - Pensa que vai me comover, é? Tá muito enganada... Tenho
nada a ver com isso... Eu te conheço...
IRENE - Me conhece, é? De onde? Não, não estou querendo te
comover, não. Você sabe que eu detesto os clichês... Eu jamais seria
uma mãe choraminguenta... Depois, eu tomei enjôo à ternura... e à
carne moída... (Ânsia de vômito.) Acho que foi porque eu levei muitos
anos sendo terna e comendo carne moída, porque seu pai e vocês
gostavam... (Noutro tom.) Desde que eu falei a uma pessoa: "não me
manda pra esse lugar... eu não sou maluca"... E ela me mandou...
NÁDIA - Qual é, hein? Tá querendo o quê? Me botar com remorso?
Estragar mais ainda a minha noite é? Não tenho nada que ver com
isso... Eles é que decidiram...
IRENE - Da primeira vez, você só tinha quatro anos, Ney seis e
Neusa, oito... Depois, sim, os três já tinham idade para decidir e
decidiram... (Noutro tom.) Mas eu não estou fungando magoada,
não... Não sou uma mãe corriqueira... (Pausa.) Café ou chocolate?
NÁDIA - Café. E chocolate.
IRENE - É levar pra ele que você quer? Não tenho duas garrafas
térmicas. Manda ele trazer o farnel dele pronto de casa. Não tem uma
ratazana que cuide dele, não, esse camundongo?
NÁDIA (De "burros" e braços cruzados, impaciente, à janela) - Eu
vou sair, de qualquer maneira, nem que seja pra andar na chuva, sem
correr... Tempo desgraçado!...
IRENE - Ele já te levou pra conhecer a ratazana de avental?
NÁDIA - Que é, hein, mamãe? Que é que você ainda está aí
cacarejando, hein?
IRENE - Como é que ela é: fina ou grossa?
NÁDIA - Sei lá que maluquice é essa que você tá falando...
IRENE - Como é que eu sou? Por mais que eu olhe pra dentro de
mim, pra dentro de um decote, só vejo pedacinhos do bico dos meus
seios...
NÁDIA - Passar um sábado aqui dentro era o que me faltava...
IRENE - Ah, já sei... A ratazana de avental é uma Mãe... Uma mulher
de um passado cheio de mortos e de um amor nervoso, viciado e semvergonha.
NÁDIA (Avaliando a intensidade da chuva) - Acho que tá passando
essa nojenta... Tá passando, sim... (Discutindo "com a chuva".) Tem
é que passar mesmo... Nós estamos no verão, sebosa!...
IRENE (Aproxima-se da janela para espiar.) - Tá passando, é? Você
está contente?
NÁDIA - Mesmo que não passasse... Aqui dentro é que eu não
ficava...
IRENE - Às vezes uma bobagem deixa a gente tão contente, não é?
Aliás, eu acho que só as pequenas bobagens é que botam a gente
contente... As grandes alegrias botam a gente confusa... sem saber
que cara fez e que sentimento sente..
NÁDIA - Queria que chovesse bastante, não queria? Tava aí
torcendo... Queria que a rua enchesse... que ele não viesse... que eu
não saísse... É, mas não deu certo, não, tá vendo, a tua praga?
IRENE – Que é isso, minha filha, que delírio é esse?
NÁDIA - Queria, sim... confessa... que chovesse a noite inteira... que
nunca mais parasse... que o mundo acabasse.
IRENE - Pra falar a verdade, é isso mesmo. Não sei por que, mas eu
estava mesmo querendo que a chuva não passasse e que o mundo
acabasse. Mas não é por maldade, não, eu tenho certeza. Não sei por
quê. Você pode deixar que eu vou refletir sobre isso a noite inteira.
NÁDIA - Egoísta!... Não tem vergonha não?
IRENE (Cabisbaixa) - Eu vou preparar seu farnel, mas pode avisá-lo
de que é só hoje, como se amanhã fosse uma quarta-feira de cinzas...
A ratazana que prepare a merendeira dele... No meu peito é que ele
não mama mais... (Essas tolas exigências são, entre outras coisas,
um meio de manifestar, de forma dissimulada, a contrariedade
que lhe causa o estilo de vida da filha.).
NÁDIA (Debochada) - Tá bem... digo sim... pode deixar...
IRENE (Dirige-se à porta ao fundo à esquerda. Volta-se) - Um
sanduíche feito por mãos de fada não se compara ao das lanchonetes,
você não acha?
NÁDIA (Rindo) - Hum... Mãos de fada... Era só o que faltava...
IRENE - Já é a terceira ou quarta coisa que você diz que é a única
coisa que faltava. É porque na verdade não falta mais nada, tudo já
aconteceu, tudo já foi dito, escrito, feito e principalmente, sentido. Há
muito tempo que a vida é só uma repetição... Acho que desde o
Renascimento... (Brusca, peremptória.) Ou ele entra aqui amanhã
pra falar comigo, ou não faço mais sanduíche nenhum.
NÁDIA - Tá bem... Eu digo a ele... Ele vem, sim...
IRENE - Eu duvido que vocês agüentem ficar nessa escada, sem os
meus sanduíches...
NÁDIA - Vem cá... Você acha mesmo... esse papo de escada,
sanduíche, é pra levar a sério? Você acha mesmo que eu fico sentada
aí fora, ou é mais uma palhaçada?
IRENE - Eu sei que você não fica. Eu sei que você se atraca com seus
namorados nos motéis e vai ver até que nos automóveis mesmo. Mas
os sanduíches você já comeu muitas vezes, sim, sentada ai fora,
esperando, e até café eu também já levei e você tomou... De modo
que tanto é uma coisa séria quanto uma palhaçada... como tudo na
vida... Tanto verdade quanto mentira...
NÁDIA (Retocando a pintura, o penteado) - Vai logo fazer esse
sanduíche, então, que eu vou comer sentada lá fora, mesmo... Vou
esperar lá fora, que aqui é capaz de começar a chover outra vez...
IRENE (Absorta nas próprias reflexões) - É que eu preciso educar
vocês, não preciso? E pra educar não é preciso fingir que os filhos são
elefantes e que a vida é um banquinho?... Daí meus carinhos, meus
torrões de açúcar, minhas chicoteadas... Você não entende?
NÁDIA - Entendo... entendo tudo... Mesmo que ele me encontre feito
uma mendiga, mastigando, de boca aberta, eu prefiro correr esse risco
a te aturar mais um minuto aí falando...
IRENE - Agora vê... Pra que motel, Nádia? Mete esse camundongo
aqui no quarto, junta as nossas camas e rola com ele o quanto quiser
que eu já disse que não me incomodo. (Nádia olha-a com uma
espécie de raiva perplexa.) Não durmo mesmo cedo... Se quiser
dormir, e vocês ainda estiverem se atracando, deito no sofá e pronto.
Pra que esse desperdício e esse desconforto de motel?
NÁDIA - Escuta, por que você não vai encher um pouco o Ney, a
Neusa, hein? Por que é que só eu tenho que te aturar?
IRENE - Você quer que eu vá embora?
NÁDIA - Só quero... (Acende um cigarro.).
IRENE (Vai se retirando para a cozinha. Volta-se enérgica) - Manda
ele trazer a mãe dele aqui pra conversar comigo, senão eu vou lá no
Banco e faço um escândalo...
NÁDIA - Olha, eu não tô agüentando, viu? A gente vai ter que entrar
num acordo, porque pra mim não tá mesmo dando... Eles vão ter que
segurar a tua barra também.
IRENE (Convenientemente alienada outra vez) - Eu e a mãe dele
temos muito que conversar sobre o futuro de vocês. Nós duas
treinamos elefantes a colocar a pata em cima do banquinho.
NÁDIA – Mamãe: toma jeito, sim? Deixa de palhaçada...
IRENE (Como se não a ouvisse) - Se ele trouxer a mãe dele pra
conversar comigo, fica como era antes. Se não trouxer, ele que traga a
merenda de casa ou dê quinhentos cruzeiros por mês para as
despesas. Afinal, come tudo dessa casa e não paga... Come você,
come meus sanduíches, e foge como um moleque irresponsável...
NÁDIA (À janela, com hesitação de consciência) - Eu não agüento
essa barra sozinha, não... Eles vão ter que entrar nessa também... Por
que só eu? Você tá ficando intragável...
IRENE - Se você quiser, eu falo com ele. Não se incomode: eu sou
muito discreta... Assovio antes de descer pra dar tempo dele abotoar a
braguilha e de você subir a calcinha...
NÁDIA - Eu vou chamar eles aqui amanhã... Amanhã mesmo eu vou
ligar pra eles... Isso não tá direito... Também tenho a minha vida... O
que é que há?
IRENE (Cada vez mais perturbada, ajeitando as almofadas do
sofá, tirando e recolocando o telefone no mesmo lugar) - Então,
fica assim: a quantia de quinhentos cruzeiros será reajustada
anualmente, de acordo com as ORTNs. Se essa bolinação ultrapassar
mais de um ano...
NÁDIA - Nem que seja três meses com cada um e seis comigo... Eles
vão ter que te aturar também... Não tenho mais liberdade, não tenho
sossego... O que é que há?
IRENE- Eu já vou fazer os sanduíches. (Vai se retirando. Volta-se
surpreendentemente dura.) Então, fica assim: se você chamar seus
irmãos pra fazer queixa de mim, se você exigir que eles me ponham
num canto da sala ou do quarto como um piano de cauda, eu boto
fogo nesse apartamento, como Nero em Roma... Eu cometo de uma
vez um ato qualquer que justifique o meu castigo... Eu viro um piano
mal assombrado que toca sozinho a "Tritsch, Tratsch Polka" de
Strauss, nas horas mais inoportunas...
NÁDIA - Será que você não vê que eu só tenho o fim-se-semana pra
me divertir, espairecer? É justamente quando você escolhe pra ficar
mais atacada... É pra torrar, não é?... Não é pra me sacanear? Que é
que você quer? Que é que você quer, porra?
IRENE - Você sabe que eu não suporto palavras de baixo calão... O
que é que eu estou fazendo de mal?
NÁDIA - Infernizando a minha vida... Não dá pra sacar não?
IRENE - Você também inferniza a minha... Você acha que alguém
pode coabitar sem conflito?
NÁDIA - Por isso mesmo eu moro sozinha... Você vai ter que ficar
com o Ney e com a Neusa uns tempos... Isso é que vai...
IRENE (Num fundo e sincero apelo) - Não...
NÁDIA - Vai, sim... (Progressivamente nervosa, indo muito a
janela.) Esse filho da puta também que não chega...
IRENE - Um piano de cauda cabe menos ainda no apartamento deles
do que no seu...
NÁDIA - Tô cheia de fome... E aí?... Não faz merda nenhuma pra eu
comer, né?... Esse filho da puta é capaz de nem me levar pra jantar...
IRENE - Exija... O que não nos dão espontaneamente, a gente exige.
NÁDIA (Em visível conflito) - Eles são teus filhos tanto quanto eu...
(À janela.) Se ele demorar mais quinze minutos... Só vou esperar
mais quinze minutos... (À mãe.) Não gostam tanto?
IRENE - O marido da sua irmã me odeia... Ele vai me maltratar... Vai
gritar comigo quando eu quebrar um copo... Vai ficar olhando pro meu
prato quando eu estiver comendo...
NÁDIA - Dane-se... A casa é dela também...
IRENE - Aquelas crianças não me acham nada parecida com a Dona
Benta, nem com a Tia Amélia...
NÁDIA - Danem-se... Dane-se todo mundo... Quero mais que se
danem... Tão pensando o quê? Aporrinhação todo mundo tem...
IRENE - Seu irmão precisa morar sozinho.
NÁDIA - E eu, não preciso?
IRENE - Ele mais do que você.
NÁDIA - Mais do que eu por quê? Até parece. (Esmaga o cigarro
sob o pé.).
IRENE - O ritual que ele celebra é mais secreto do que o seu. Eu já
disse que você pode trazer seus homens pro quarto. Se você insistir,
eles virão, mesmo comigo aqui.
NÁDIA - Trabalho o dia todo naquele inferno daquele Banco, a
semana toda, e quando chego, ainda tenho que ouvir histórias do
tempo da diligência, perguntas, maluquices... Ah, eu não tenho
paciência não... Eu não acredito em doença nenhuma tua... Doente!
Doente sou eu!... Pra mim isso tudo é palhaçada...
IRENE - Seu vocabulário como está restrito, Nádia! Tudo que foge à
sua capacidade de compreensão ou verbalização é definido como
palhaçada. Você precisa ler mais... Quer que eu organize uma
bibliografia básica pra você?
NÁDIA (À janela, quase chorando de tão nervosa e irritada) Nojento! (Olha o relógio de pulso.) Aí... 10 e 15... Só vou esperar
mais quinze minutos... Nojento!
IRENE (Olhando-a consternada) - Minha filha, como dizia Montaigne,
você é uma alma sem objetivo... A alma fica muito perturbada quando
lhe falta um objetivo e escolhe qualquer coisa a que culpar e contra
quem agir. Você me culpa e age contra mim, como ainda há pouco
culpava a chuva e agora esse amante ocasional que se atrasa...
NÁDIA - Eles que fiquem com você... Eles que acreditam... que têm
tanta peninha... Mas só de longe... Só no hospital levando uvinha,
revistinha... Eles que te papariquem...
IRENE - Você tem razão, Nádia. É tudo uma grande palhaçada. Isso
define mesmo tudo na vida. Eu nunca estive doente. Doente, como
você mesma reconhece, está você, uma pobre recepcionista de
Banco, que abre contas novas, distribui sorrisos, se enfeita e se pinta
e se curva sobre os arquivos de modo a mostrar a cauda pro gerente e
pros altos clientes, pra ver se seduz algum deles e muda de vida...
NÁDIA - Vai partir pra essa agora de agressão também, é?... Só
faltava essa!...
IRENE - Sua vida não vai mudar nunca. Como essa mecha de cabelo
que sempre lhe caiu na testa... (Tenta aproximar-se da filha, que a
repele.).
NÁDIA - É? Que mais? Vai falando... Vai rogando praga... Não me
falta mais nada mesmo... Vai pegar o álbum de retrato pra gente ficar
olhando a noite inteira... (Ri, meio histérica.) Ai... Bom programa...
Uma mostrando retratinho pra outra...
IRENE - Você será sempre essa sereia... pelo menos até que os seios
fiquem muito caídos e os olhos muito embaçados...
NÁDIA (Olhando o relógio de pulso) - Só mais quinze minutos...
desgraçado! Não olho nem pra cara mais...
IRENE - Você é uma sereia sentada num rochedo, penteando os
cabelos pra ver se seduz algum marinheiro, pra ver se faz naufragar
algum navio, retocando a pintura dos lábios no cair da tarde, no final
do expediente, olhando pelo espelho pra ver se alguém vem por trás...
(Aproxima-se de Nádia pelas costas, colocando-lhe a mão no
ombro.).
NÁDIA (Sem repeli-la) - Ele vem, sim... quer apostar? Não vai
adiantar a tua torcida, não... Ele que não venha... Ele não é besta...
IRENE - Sempre assistindo, entediada, o movimento das ondas
batendo no rochedo... Sempre assistindo as coisas acontecerem
indiferentes à bela sereia mal pintada e que canta desafinada...
esperando, irritada, o som de uma buzina como se fosse o apito de um
navio...
NÁDIA - Não fez sanduíche nenhum, né? Só de papo, só de papo e
não fez merda nenhuma... Aí... tô cheia de fome... Não tem nem um
biscoito nessa merda? Também, esse sacana vai ter que me levar pra
jantar... Tá pensando que é assim - de graça? (Acende um cigarro.).
IRENE - Eu vejo você pra sempre sentada no seu rochedo, de "burros"
e braços cruzados, fumando cigarros ansiosos, acesos nos trechos
mais ermos. Enquanto os marinheiros não chegam, na barca dourada
chamada Futuro ou Destino... (Ouve-se um som de buzina, repetido.
Nádia corre à janela e já com expressão menos amarga, pega a
bolsa e sai batendo a porta.). Onde é que você vai?... Espera o
sanduíche... o café... o chocolate. (Pausa. Senta-se no sofá,
parecendo muito cansada, segurando os rins.) Ai... Até que
enfim!... Coitada!... Eu gosto dela, mas não gosto muito dela perto de
mim... tão infeliz! Meus filhos são muito infelizes... Eu gosto deles, mas
não gosto muito deles perto de mim... Tão bom se tivessem ido
estudar no estrangeiro... trabalhassem na ONU... e só viessem nas
férias e no Natal! Tão infelizes!... Um caminho tão ermo!... E eu sou
obrigada a guiá-los em todos os trechos... mesmo os que não
conheço...
CENA 2
Nádia entra e acende a luz. Depara com a mãe sentada no
sofá, como numa sala de espera de teatro ou consultório
médico.
NÁDIA - Que é que você está fazendo aí? Me esperando, é? Era só o
que faltava!
IRENE (Ansiosa) - Falou com ele?
NÁDIA - Falei o quê? (Jogando a bolsa, tirando os sapatos, os
cordões, as pulseiras, mal-humorada.).
IRENE (Catando os objetos) - Eu mandei tantos recados...
NÁDIA - Ah, mamãe, vai dormir, vai... Deixa isso que amanhã eu
guardo...
IRENE - Ele se recusou a trazer a mãe dele pra conversar comigo?
Não quis vir aqui pro quarto?
NÁDIA (Desabotoando o vestido, dirigindo-se ao quarto, falando
de lá) - Amanhã tenho que acordar cedo... fazer o pé, a mão, enrolar
cabelo... Saco!
IRENE - Eu também estou acordada e também tenho muita coisa pra
fazer amanhã...
NÁDIA - Tem, é? O quê?
IRENE - Tudo a que me propus e até hoje não iniciei...
NÁDIA - Bom, então vamos deitar, né, que o nosso mal é sono...
IRENE - Isso não pode continuar, Nádia!
NÁDIA - O quê?
IRENE - Nada pode continuar como está.
NÁDIA - Ah, mamãe, tem dó, esculhambação agora? Deixa pra
amanhã, tá? E depois do café...
IRENE - Você não sabe do que eu estou falando.
NÁDIA - Sei, sim. Mas é assim mesmo que vai continuar.
IRENE - Não é dos seus amantes. É do seu embrutecimento, da sua
falta de sentido e objetivo. Como dizia Montaigne...
NÁDIA - Ah, não... Se você quiser, vem-me dizer deitada o que é que
ele dizia... (Agora apaga a luz do quarto.).
IRENE - Quem conversa deitado é soldado... prisioneiro... a copeira e
a cozinheira... Gente que dorme em beliche...
NÁDIA (Surge no umbral da porta da direita ao fundo) - Você que
sabe... Eu prefiro dormir, a saber, o que é que essa bunda-mole
dizia... (Bate a porta do quarto.).
IRENE (Surpreendentemente irada e "grossa") - Não fale assim
dele... com essa falta de respeito.. (Dá murros na porta do quarto.)
Ouviu, puta malcriada?... Hein? Vaca desgostosa! (Encontra nessa
falsa defesa de outra pessoa, um veículo para expressar, sem
pudor, seu descontentamento com o estilo de vida da filha.
Depois, atônita.) Que é que você queria? Que ele previsse todas as
situações? Ele não disse uma única palavra a esse respeito...
CENA 3
Nádia ultimando os preparativos para sair. É um sábado,
à noite. Sente-se que está cada vez mais difícil o
relacionamento entre ela e a mãe.
IRENE - Tomou a pílula?
NÁDIA - Que!...
IRENE - Ah, é... Esqueci que você teve aquele mioma e teve que tirar
um pedaço do útero...
NÁDIA - Choque apaga a memória... Você levou tantos... Não sei
como é que ainda se lembra de alguma coisa...
IRENE - Eu vou ficar te esperando... Se você não falar com ele, vai ser
pior... eu vou perder o sono te esperando e vou te chatear a noite
inteira outra vez... É melhor você trazê-lo aqui pra dentro, "figueira do
inferno"... (Nádia sai, batendo a porta.).
IRENE (Na soleira, fala para os bastidores) - E não tente chamar
seus irmãos pra me prender, que eu vou naquele Banco e te
ridicularizo... escutou? (Bate a porta. Noutro tom.) Lá se foi... a
sereia... Só é mulher da cintura pra cima, ainda por cima. Os
marinheiros se divertem com ela, depois largam ela, exausta, no
rochedo, mais desgostosa ainda... cheia de sementes que não
atravessam as escamas... (Suspira.) E eu sou obrigada a assistir,
cada dia, aos lamentos dela no rochedo...
CENA 4
Iluminação tênue, vinda apenas das luzes da rua. A mãe
está deitada no sofá, de olhos fechados. Nádia entra com
um homem. A mãe abre os olhos, mas logo a seguir
cobre a cabeça. Nádia e o homem entram no quarto e
fecham a porta. Irene levanta, pega uma espécie de
frasqueira embaixo do sofá, vai até a porta do quarto,
senta - com muita distinção - no chão, colocando um
travesseiro entra a porta e suas costas, como se
pretendesse passar ali muitas horas. Tira um sanduíche
da frasqueira e morde, colando o ouvido à porta. Depois,
numa pequena garrafa térmica, serve-se de café e volta a
colar o ouvido à porta.
CENA 5
Irene, deitada no sofá, de olhos abertos. Ouve que a porta
do quarto é aberta. Permanece deitada. Nádia leva o
amante até a porta. Irene pega o travesseiro, a coberta, e
dirige-se ao quarto, mecanicamente, como uma sentinela
sonolenta e finalmente liberada.
CENA 6
Iluminação como nas duas cenas anteriores. Nádia entra
com o mesmo homem. Antes que atinjam o quarto, Irene
intercepta-lhes o caminho, surgida da porta ao fundo, à
esquerda, acendendo a luz do cômodo, parecendo um
"anjo da guarda" ou qualquer sobrenatural aparição que
tem luz própria.
IRENE - Boa-noite!
NÁDIA – Que é que você tá fazendo aí?
IRENE - Dizendo boa-noite.
GUILHERME (Evidentemente embaraçado. É um homem de meiaidade, de têmperas grisalhas, aquele "perfeito cavalheiro" que foi
flagrado em luxúria) - Boa noite!... A senhora como está?... Meus
respeitos... (A caricatura do "homem fino" faz menção de beijarlhe a mão.).
IRENE (Indicando um lugar no sofá) - O senhor quer fazer o favor de
sentar? Nádia: prepare um cafezinho... (Acende a luz da sala.).
GUILHERME - Não, não se incomode... Já é tarde... Eu subi só... sem
maior... (Nádia apenas avalia a mãe, como um adversário avalia
outro, e dá muxoxos.).
IRENE - Mas ate que enfim, hein?... Pensei que ia esperar mais por
vocês do que tive que esperar pelas outras pequenas coisas boas que
me aconteceram até hoje...
GUILHERME (Sentando-se, constrangido, ao lado de Irene) Realmente, eu só vim trazer a Nádia... fomos ao cinema... Ela me
convidou pra subir e... (Olhar insinuante para Nádia, que parece
refletir sobre a melhor atitude a tomar.)... tomar um cafezinho...
IRENE (Simpática anfitriã) - Pois então... já foi encomendado. (Para
Nádia.) Filhinha, vai buscar o café... não foi você mesma que
convidou? (Nádia desaparece na porta da esquerda ao fundo,
decidida a viver a situação sem maiores constrangimentos.).
GUILHERME - Eu não quero incomodar... Nem reparei que já era tão
tarde... (Olhando o relógio.) Pensando bem, acho que nem o café eu
vou aceitar... fica para outra vez... (Fazendo menção de levantar.).
IRENE - Não, esse café o senhor vai tomar, sim... Cada coisa que eu
desejar, agora, é como se fosse a minha última vontade. E nesse
momento eu não quero mais nada senão tomar esse café em sua
companhia... Faça o favor... Eu sei que vocês iam pro quarto... O
senhor também sabe que eu sei... Já foram tantas vezes, na minha
cara... O senhor sabe que eu sei... todo mundo sabe de tudo...
Costuma-se confundir a capacidade de expressão com a de
percepção... Se o senhor quiser, pode ir com ela pro quarto depois, e
até saírem juntos, direto da cama pro Banco. Com toda certeza, o
senhor é do Banco, não é?
GUILHERME - Sou sim... Sou o subgerente... Mas a senhora acredita
que... (Ensaiando uma justificativa.).
IRENE - Vocês podem acordar de perninhas entrelaçadas e tudo... A
menos que o senhor tenha hora de chegar em casa.
GUILHERME - Não... Eu quero explicar que... essa é uma situação
que tudo leva a crer que seja uma coisa, e quando acaba, não é... A
senhora acredite, que...
IRENE (Olhando-o perplexa) - Como é possível que o senhor
consiga sobreviver? O senhor nunca teve uma crise?
GUILHERME - Crise? De que?
IRENE - Um desmoronamento, um terremoto em que caíssem
pedaços do senhor dentro da banheira, das panelas, em cima do
telhado?
GUILHERME (Com sorrisos e ademanes sociais, não sabe o que
concluir, nem o que responder) - Não, não... Crise não, não...
Sempre tive muito autodomínio... Se não tivesse, já tinha pulado no
pescoço de muita gente... (Riso nervoso.) Já estava na cadeia há
muito tempo... (Riso mais nervoso ainda.) cumprindo prisão
perpétua... (Riso francamente histérico.).
IRENE (Olhando-o com suspeita) - Bem, agora vamos tomar café e
conversar. Como dizia Kant: "o direito de cada um termina quando
começa o do outro", mas quem é "um"? E quem é "outro"? Kant não é
tão claro quanto Montaigne, de modo que nunca se sabe qual o direito
que deve predominar, não é verdade? Tanto parece que: todos os
direitos, como que: ninguém tem direito nenhum. Aqui no nosso caso,
por exemplo, segundo Kant, o que deveria ser feito? Eu quero
conversar, o senhor quer livrar-se o mais depressa possível dessa
situação embaraçosa, e Nádia deve estar lá dentro, emburrada, louca
pra dormir, farta de mim e do senhor.
GUILHERME (Adquirindo gradativo autodomínio) - Não, eu não
estou embaraçado, não... Eu me comunico com muita facilidade... Eu
sou muito aberto, muito franco... Já que estamos falando francamente,
a verdade é que a surpresa...
IRENE - Quer dizer que o senhor é o subgerente? Bom, então eu vou
guardar minhas demonstrações de erudição e encanto pra quando ela
trouxer o gerente. Todos os amantes dela são de lá. Ela nunca foi bem
relacionada, coitada... Um círculo restrito, medíocre...
GUILHERME (Ofendido) - Bem, lá nós temos funcionários de ótimo
nível... Muitos com nível universitário... Eu, por exemplo, tenho três
diplomas: Direito, Economia e Adminis...
IRENE (Cortando) - Eu tenho que defender a felicidade dela mesmo
contra a vontade dela. Essa é a missão de todos os que amam: ser
incômodo, se preciso; levar o ser amado, se preciso, ao pânico e ao
desespero, mas conduzi-lo e protegê-lo. O senhor deve entender isso:
tem cara de ter um casal...
GUILHERME (Risos e ademanes sociais) - Não, não... Não sou
casado, não... Reconheço que já está ficando um pouco tarde, mas
ate o momento...
IRENE - Como é o seu nome?
GUILHERME - Guilherme Azevedo de Cas...
IRENE (Cortando) - Encantada. Irene. (Estende a mão.).
GUILHERME - A Nádia nunca lhe falou a meu respeito?
IRENE (Indiferente) - O senhor acha que está mais pra Guilherme, o
Conquistador ou pra Guilherme, o Taciturno?
GUILHERME (Risinho) - Bom, pra falar a verdade... realmente... não
quero ser modesto, nem pretensioso... Vamos dizer, nem uma coisa,
nem outra... Não há nenhum Guilherme Intermediário?
IRENE - Claro. O senhor pertence àquele imenso bloco dos
descoloridos... O senhor está mais pra Guilherme, o Nulo...
GUILHERME (Ofendido e começando a ficar impaciente) - Não,
nem tanto... Não tenho "jogado a toalha" muitas vezes na vida, não...
Tenho sido sempre um lutador de fôlego e ânimo...
IRENE - Ela assim não pode continuar. O senhor não acha?
GUILHERME - Quem, a Nádia? (Parece defrontar-se com um
cliente.) O que há com ela? Qual é o problema?
IRENE (Olhando-o fixamente) - Eu não sei como o senhor não
enlouquece!
GUILHERME (Perdendo um pouco a "classe") - De que é que nós
estamos falando afinal? A senhora pediu a minha opinião...?
(Interrompe-se pela entrada de Nádia, cínica, descalça, com
ademanes sociais, trazendo duas xícaras numa bandeja cheia de
biscoitos. Irene e Guilherme retiram as xícaras, enquanto ela
própria cata todos os biscoitos, que fica comendo, à janela, em
ostensivo desdém, como um desaforo, como se os dois a
aborrecessem, e fossem culpados da sua fome, mas acima de
tudo como se ela os desprezasse.).
IRENE (Como se apontasse um monstro) - Ela assim não pode
continuar. O senhor não acha?
GUILHERME (Constrangido, de novo devido à atitude de Nádia,
mas decidido a fazer "boa figura") - Qual é o problema? Eu acho a
Nádia uma excelente moça. Tenho por ela um carinho todo especial...
Uma menina e tanto... Moça muito bem educada... faz seu serviço
direitinho, não se mete na vida de ninguém... trata a todos com
urbanidade..
IRENE (Que acompanhou a fala com expressão consternada) Como é possível que o senhor não enlouqueça?!
GUILHERME - Olha minha senhora, com todo respeito que eu lhe
devo... afinal... a senhora vai me desculpar, mas realmente...
(Fazendo menção de levantar, rançoso cavalheiro "desastrado".)
tive muito prazer em conhecê-la... Foi realmente um bate-papo muito...
informal... muito simpático... (Dirige olhares cúpidos à Nádia que
age como se estivesse a sós.).
NÁDIA (Debochada) - Não quer mais café, não? Quer um biscoito?
(Oferece de longe.).
GUILHERME (Com olhares indignados e críticos) - Não, obrigado...
Não como biscoito...
IRENE (Firme, num tom mais alto, tocando-lhe o braço) - Ela assim
não pode continuar. O senhor não acha? A libidinagem é agradável...
todos os vícios são... Eu sei, porque também já fui viciada... Não em
drogas, como a mãe de Eugene O'Neill... O senhor viu "Longa Jornada
Noite Adentro"?
GUILHERME - Realmente, eu não sou um amante do cinema... A
sétima arte...
IRENE - De cinema eu também não gosto muito. Mas "Longa Jornada
Noite Adentro" é uma peça teatral autobiográfica...
GUILHERME - Ah, sim? Bem, realmente, de teatro também não se
pode dizer que eu seja um espectador entusiasmado e assíduo... Vai
abrir um agora, aqui, perto do Túnel, não é?
IRENE - Eu já fui uma viciada no corpo e na visão de mundo do meu
marido...
GUILHERME - Ah, sim?... Que... interessante!
IRENE - Quando eu não o via, não o ouvia, e nem me encostava nele,
perdia o interesse pela vida...
GUILHERME (Com evidente dificuldade em manter a "atmosfera
social") – É. Isso realmente é uma situação...
IRENE - Isso antes de casar. Eu também tive relações sexuais antes
do casamento. Isso não é tão moderno quanto pensam. Depois eu me
separei dele, porque no dia-a-dia ninguém é tão atraente. Depois de
vê-lo todas as manhãs sair do banheiro - quarenta minutos depois de
ter entrado - dobrando aquele jornal cor-de-rosa, minha paixão foi
virando uma medusa de bobs. E eu digo sempre a ela... Casar depois
de ter tantas relações sexuais com o cônjuge é o mesmo que urinar
num chapéu várias vezes, e depois distraído, enfiá-lo na cabeça...
GUILHERME (Risinho social e nervoso) - Hahaha... Muito...
espirituoso...
IRENE - É uma adaptação livre de uma opinião de Montaigne.
Conhece?
GUILHERME - Montaigne... Não é estranho, não.
IRENE - Não sabe o que ele inventou?
GUILHERME - Assim de pronto... realmente... Eu fiz uma lista uma
vez de todos os inventores e respectivos inventos. (Risinho.) Ainda
tenho guardada... Coisa ligada à eletrônica, à cibernética, não é?
IRENE - Não... Ele não inventou coisa alguma... Pelo contrário, sua
matéria foi o que existiu e existirá sempre... (Com desdém.)
Montaigne foi um homem observador e sensível... o grande cético do
Renascimento! (Nádia dá uma risada, dirigindo-se à porta ao
fundo, à esquerda, de onde volta, pouco depois, com a mão
novamente cheia de biscoitos, que passa a comer
ostensivamente. Quando Guilherme olha para ela, ela oferece
um.).
GUILHERME - Ah, sim... o filósofo... o inventor tem um nome
parecido,, ("Criando".) Moranha... Moreno... Montanha... Eu fiz
confusão...
IRENE - Claro. O senhor confunde tudo. Já vi que é a sua
especialidade.
GUILHERME - Foi um lapso... Mas na minha lista, eu tinha certeza de
que não estava... Eu sei na ponta da língua aquela relação
(Orgulhoso.).
IRENE (Absorta) - Temos grandes afinidades...
GUILHERME (Equivocado) - É, de fato, desde que eu a vi senti como
se já a conhecesse de muito tempo.
IRENE (Olhando-o perplexa) - Eu e o senhor não temos nada a ver,
a não ser minha esfomeada filha... Eu me referia a mim e a Montaigne:
eu também sou cética e também sofro dos rins.
GUILHERME (Expressão socialmente consternada) - Ah, sim?...
Pedra? Deve extrair o quanto antes... Quanto mais cedo resolver o
problema...
IRENE (Ignorando-o, examina Nádia) - Que cara é essa, minha
filha? A quem você está desafiando? De que é que você está com
medo? De que é que você ainda pode ter medo, minha querida? Você
não abraça e beija esse homem?...
NÁDIA - Vocês vão ficar aí nesse papo até que horas, hein? Não
estão com soninho não? Eu estou.
IRENE - Como é que você suporta esse homem que pensa que na
vida só existem três espécies de fatos: os problemas, as situações e
as soluções dos problemas?
NÁDIA – Guilherme: pode ir... Mamãe não repara não... Não tá a fim
de dormir não?
IRENE - Você pensa que eu vou dizer coisas inconvenientes? O que é
que ainda pode chocar a quem já roubou tanta esmola de cego por aí?
Não foi isso que o senhor me confessou?
GUILHERME - Não estou entendendo bem qual é a situação... O
problema...
IRENE - Uma cética, um cínico e uma sereia! De que pestes ainda não
sobreviveram esses três danados?
GUILHERME - Bom, então eu vou andando. (À Nádia, com olhares
melindrados.) Estava muito gostoso o café.
IRENE (Brusca, peremptória) - Você gosta dela?
GUILHERME - Gosto, sim... gosto muito... A Nádia, como eu já tive
oportunidade de dizer, é uma moça excelente, ótima colega,
funcionária diligente... (Nádia dá uma risada.).
IRENE - Você não quer nada com ela, quer?
NÁDIA - Olha, se vocês não estão com sono: eu estou... Vocês estão
com a vida ganha... Eu ainda estou devendo... Ih, devendo de montão
à minha. Com licença... Guilherme, quando você estiver de saco
cheio, pode ir, viu? Vai saindo à francesa, mesmo, que ela não
repara... (Entra no quarto e bate a porta.).
IRENE (Num cochicho) - É um truque... pra nos deixar a sós... e
falarmos dela... Ou será que é um código, um discreto convite? Bom,
daqui a pouco, você vai...
GUILHERME (Confuso, mas animado com a perspectiva) – É...
daqui a pouco, talvez... A senhora acha? Acho que ela está
aborrecida... Não sei bem qual foi o problema... ela estava bem... De
repente...
IRENE (Dura) - Ela estava com fome.
GUILHERME - Ah, foi isso? Mas eu pensei... Ora, mas ela podia...
Que bobagem da Nádia! Fazer cerimônia comigo... como é que eu
podia adivinhar? Ela sempre já sai jantada...
IRENE - Com que será que o Homem sonha, exatamente? Você não
tem vontade de saber?
GUILHERME (Com a atenção voltada para o quarto) - Bem, eu acho
que aí depende... Os sonhos variam com as situações, não é? Cada
um...
IRENE - Eu tinha certeza de que você ia responder isso. Sabe o que
Pablo Neruda disse? Que a intermitência do sonho é que faz com que
se suporte a intermitência dos dias de trabalho. Acho que ele tem
razão, entendendo-se "dias de trabalho" como todo o resto, fora o
sonho. Por exemplo, eu estar aqui conversando com o senhor, só
deve ser possível porque é útil ao meu sonho e ele me conforta. Você
vê como é difícil achar um ator que fale claro como Montaigne...
GUILHERME (Contendo um bocejo) - A senhora não vai, realmente,
reparar, mas eu... Amanhã é segunda-feira... e eu tenho que estar no
Banco antes das nove... Muitos problemas pendentes... (Levantandose e dirigindo um olhar melancólico para o quarto.).
IRENE – Espera!... Você vai agora mesmo deitar com ela.
GUILHERME (Que já havia afastado tal possibilidade) - Hein?
Não... não... A senhora acha? Outra vez eu... (Olhando indeciso,
mas tentado, para a porta do quarto.).
IRENE - Você não percebeu que foi isso que ela insinuou quando
disse que eu "não ia reparar"? Você deve ir daqui a pouco sim, deitar
com ela, que é o que ela está esperando... Você não percebeu quando
ela perguntou, com malícia, se você "não queria dormir"? Ela queria
dizer "com ela"...
GUILHERME (Entusiasmado) - Será? A Nádia é tão... Não sei... se a
senhora acha... (Dirigindo-se cauteloso para o quarto.).
IRENE (Firme) - Mas não agora. Venha cá! (Ele volta.) Eu sei o
momento. Eu aviso.
GUILHERME - Está bem... A senhora então... desculpe... (Sentandose.).
IRENE - Eu queria tanto saber a motivação da vida dela! Eu estive
afastada deles várias vezes, e por longos períodos, de modo que não
sei direito com o quê sonham os meus filhos...
GUILHERME (Boceja menos discretamente) - Ah, sim? A senhora
tem outros filhos?
IRENE - Agora é a vez de ela ser conduzida. Depois vou procurar os
outros... Um de cada vez... ah, senão eu fico muito confusa e
cansada...
GUILHERME - Ah, sim... Muito bem.
IRENE - Eu amo meus filhos. Eles não entendem, porque como dizia
Montaigne, "o criador ama sua obra muito mais do que ela o amaria,
se fosse capaz de ter sentimentos." O senhor também não ama os
seus?
GUILHERME - Eu já lhe disse... não tenho filhos... Não sou casado...
IRENE - Claro que é. O senhor é do tempo em que os homens
casavam no mais tardar aos vinte e sete anos, como se fosse um
segundo e igualmente obrigatório alistamento militar...
GUILHERME - A senhora está enganada...
IRENE - Depois, o senhor quer esse corpo jovem, para envelhecê-lo,
como fez com o que dorme ao seu lado e assim, vingá-lo. Há esse
terrível acordo tácito entre os "casais bodas de prata"...
GUILHERME (Impaciente) - A senhora não acha? Daqui a pouco, ela
pensa que eu não vou e...
IRENE - Eu estive internada diversas vezes e por longos períodos
num hospício...
GUILHERME - Ah, sim? Que... (Não encontra um adjetivo que lhe
pareça conveniente.).
IRENE - O pai dela não tinha paciência com a minha tristeza... Aliás,
tinha sim, eu podia ficar triste o quanto quisesse desde que não fosse
muito escandalosa para sentir dor. Eu gritava muito, incomodava
muito, sim... Me ajoelhava diante de todas as imagens... até diante de
uma gravura que eu tinha na sala, em cima da rádio-vitrola, uma
reprodução de uma natureza morta de Cézanne - "Maçãs e Laranjas" eu me ajoelhei... Deus podia ser uma maçã, ou uma laranja, quem
sabe? E se fosse, eu estaria salva (Guilherme olha repetidas vezes
para o quarto, hesitante entre ir embora e deitar com Nádia.), mas
não era não... Eu posso lhe garantir, porque continuei e me ajoelhar
diante de todas as imagens e pessoas... (Nota que Guilherme não
está muito atento.) O senhor acha que esse é o momento?
GUILHERME (Riso constrangido) - Bom, não sei... creio que sim... O
que é que a senhora acha?
IRENE - Abra a porta e pergunte a ela...
GUILHERME - Não, não, não fica bem... Depois, não sei se foi isso
mesmo... Ela é até capaz de já estar dormindo...
IRENE - Bem, então preste atenção à minha história, sim? ... Quando
eu terminar, nós decidimos o que deve ser feito...
GUILHERME - Eu estou prestando atenção... A senhora estava
dizendo...
IRENE - Não era o senhor quem estava falando?
GUILHERME - Não, a senhora estava dizendo que esteve doente...
que esteve várias vezes...
IRENE - Eu estive doente? Não, não foi isso que eu disse, não. O que
eu tive, foram uns ataques de angústia e aflição, nojo e medo, uns
ataques de inconformada lucidez... Sua mãe nunca teve isso não?
GUILHERME (Nota-se que sua motivação é a possibilidade de
ainda vir a deitar com Nádia. Responde de má vontade) - Não,
mamãe sempre foi muito dura na queda, muito difícil de transparecer
um mal-estar, um aborrecimento... Ficou viúva cedo...
IRENE (Com desdém) - Entendo... (Volta à sua narrativa.) Eles
pensavam que era loucura... e talvez acabasse sendo mesmo, porque
eu quebrava coisas e xingava gente que eu gostava... Meus filhos, eu
pedia que nem se aproximassem, porque eu tinha medo de atirá-los
pela janela... Uma vez, eu estava fazendo compras num
supermercado, e, de repente, já na fila da caixa, larguei o carrinho pra
lá... "Dá licença... Dá licença...", e saí depressa, suando, me sentei na
porta feito uma mendiga... e olha que eu sempre me vesti, me pintei e
me penteei assim como o senhor está vendo... Todos sempre me
olharam com curiosidade, alguns até com repugnância, embora eu
não veja motivo... Eu sempre fui vestida assim no açougue, na
padaria, na feira, mas sei muito bem o que estou fazendo... Eu gosto
de me vestir como quando eu ia assistir às peças de Dulcina... e daí?
Outras vezes era de alegria o meu ataque... mas esse era menos
constrangedor... Então, eu me sentia como se ouvisse um cantochão
"diretamente" de um mosteiro em Roma, "via" meu delírio, minha
sensibilidade... (Cantarola uma melodia no estilo cantochão.) Eu
não fazia absolutamente nada nesse dia, largava tudo e ia a pé de
Copacabana ao fim do Leblon, que era o trecho e o tempo que durava
o meu estado de Glória e Graça... (Pausa.) O que é que tinha isso?
(Expressão ingênua e triste. Depois, seca.) O senhor acha que eu
sou obrigada a usar as roupas que todos usam e a viver exatamente
do jeito que todos vivem, hein? Acha?
GUILHERME (Absorto na sua hesitação) - Acho... hein? Ah, hoje em
dia cada um anda do jeito que quer... vive como quer... Não há mais
tanto rigor nos costumes.
IRENE (Irritada) - Mentira!... Mentiroso! Todo mundo tem que se vestir
de brim, e pensar do mesmo jeito, e ler os mesmos livros, e gostar das
mesmas peças de teatro, admirar os mesmos artistas, e chamar os
filhos de Bruno, Tatiana, Alessandra ou Rodrigo...
GUILHERME (Impaciente) – Bom: também o que é que a senhora
quer? Não se pode sair por aí feito um espantalho, falando outra
língua... A gente tem que fazer algumas concessões... senão, como é
que fica?
IRENE - Fica no trono, a moda... pra sempre... Obrigando a todos a
pensar da mesma maneira, incluindo a Arte, a Política, a Moral, tudo...
(Muxoxo.) Eles só tinham que ter um pouco de paciência comigo... O
senhor também não tinha com a sua mãe, não?
GUILHERME (Mal-humorado) – Que é que a minha mãe tem a ver
com isso? Uma criatura fora de série... Podia estar morrendo que
ninguém sabia...
IRENE - Não diga bobagem!... É porque não estava morrendo
mesmo... Essas sonsas, à menor dor de cabeça, correm e se deitam,
só que o que a sua mãe teve, já vi que não foi nada parecido com o
que eu tive, não... O que eu tive nada tem a ver com essas
depressões de viúva ou desquitada...
GUILHERME (Decidindo-se) - Bom, a senhora vai me dar licença,
mas eu não vou esperar mais, não... Amanhã é dia de muita agitação
no Banco...
IRENE - Você não quer saber o que ela me disse a seu respeito?
GUILHERME - A Nádia? Disse o quê?
IRENE - Quer dizer, então, que a sua mãe jogava, de uma hora pra
outra, todas as panelas no chão e sentava na sala, chorando dizendo
que não sabia mais cozinhar?!... coitada!... que não sabia mais nem
fazer café!...Eu sei muito bem o que é isso...
GUILHERME - A senhora estava dizendo que ia me contar o que a
Nádia disse de mim... O que foi?
IRENE (Evocativa) - Ah, minha Nádia menina-moça! Nós gostávamos
de ficar olhando aqueles retratos de casamento que botam na rua...
Parávamos em todos na Av. Copacabana... Ela até decidiu que o
vestido dela seria feito por um tal de Aszman...
GUILHERME (Exasperado) - Aszman é o fotógrafo...
IRENE - Eu sei. Queria ver se você também gostava de ver retratos de
casamento... Se você tinha bons sentimentos...
GUILHERME - Mas o que foi que a Nádia disse? É sobre mim,
fisicamente? Espiritualmente? Profissionalmente?
IRENE - Veja só! Todas as pessoas têm pelo menos dois segundos de
ingenuidade e doçura... Até o senhor!
GUILHERME - A senhora vai dizer ou não vai?
IRENE - Vou. Tenha mais um pouco de paciência. (Evocativa.) O
vestido dela seria feito pela Mena Fiala...
GUILHERME - É coisa boa ou má? Alguma coisa ligada ao Banco?
IRENE - Ah, eu tenho paixão pelo Teatro! Eu fiz parte do Teatro do
Estudante... Quase fui a "Julieta", que acabou sendo a Sonia Oiticica...
Mas, disso tudo eu não vou falar com o senhor, porque são coisas que
eu respeito muito... Fui também candidata ao papel de "Ofélia", no
"Hamlet", que acabou sendo dado à Maria Fernanda Meirelles Correia
Dias, filha da poetisa Cecília Meirelles... Mas essas lembranças são o
meu cemitério e a minha igreja, de modo que o senhor me desculpe,
mas nelas não é com qualquer um que eu entro, não... (Pausa
rápida.) Sua mãe também assistiu a "Nunca me Escaparás"?
GUILHERME - Não, mamãe, que eu saiba, nunca foi muito de ir a
teatro, não... Lutava muito, viúva, sozinha, quatro filhos...
IRENE (Enumerando peças em que Dulcina trabalhou) - "César e
Cleópatra"... "Bodas de Sangue"... "Santa Joana"... Eu nunca perdi
uma peça com Dulcina. Embora também apreciasse Madalena Nicoll...
Sua mãe não viu "A Esquina Perigosa"? Ah, que vida triste teve a sua
mãe!... Henriette Morineau. "Frenesi" E Aimée! E os concertos de
Guiomar Novais e Antonieta Rudge... Sua mãe nunca viu nada disso?
Ah, então sua mãe não viveu!
GUILHERME (Seco) - Eu acho que a senhora não tem é nada pra me
contar, não é? Era só mais uma... brincadeira... não era? A senhora
não sabia nem o meu nome.
IRENE (Corre à porta do quarto, que abre e grita para dentro) Nádia! Nádia! Levanta! Seu amante quer falar com você...
GUILHERME - O que é que a senhora está fazendo? Não quero falar
nada com ela... Pára de gritar... O que é isso? Já estou de saída...
IRENE - Nádia! (Gritando.) Minha filha! Venha ouvir o que esse
homem me pediu para fazer. (Nádia aparece na porta do quarto,
com a habitual expressão de amargura e desprezo.).
NÁDIA - Que foi, hein? Que palhaçada é essa?
GUILHERME - Eu não mandei te chamar, não... Já estava de saída...
Foi sua mãe que... (Como se fizesse uma queixa.) Ela queria saber
se eu podia ou não deitar com você... e queria que eu fosse
perguntar...
NÁDIA - Queria, é?
GUILHERME - Queria nada... Só estava esperando ela me dizer o que
foi que você disse a meu respeito...
NÁDIA (Com ostensivo pouco caso) - Eu? Falei de você? Quando?
IRENE - Eu disse a ele: “o senhor está me magoando... Todas as
mulheres se parecem com Blanche Dubois... Eu também... O senhor
está sendo indelicado comigo, e eu vou dizer à minha filha”. Mesmo
assim, ele continuou insistindo pra que eu fosse acordá-la e usasse o
meu prestigio pra você recebê-lo na cama.
NÁDIA (Sem dar importância) - Foi, é? Veja só! Só faltava essa!
GUILHERME - Pedi nada... Ora, se eu ia fazer um papel desses...
Você me conhece...
NÁDIA (Ambígua) - Conheço?
IRENE - Manda esse homem embora, Nádia... Estamos perdendo
tempo... Como dizia Montaigne, não é o nosso dinheiro, mas o nosso
tempo e a nossa vida que a gente deve poupar até à avareza. Você
precisava ver o desprezo que ele tem por você, minha filha... os
debochados adjetivos que empregou pra defini-la!
NÁDIA - Foi, é?
GUILHERME - Só fiz elogios a você... Ela é que insinuou que você
andou me metendo o malho.
NÁDIA (Sempre com afetado desdém) - Foi, é? Não diga!
IRENE - Depois, Nádia, a mãe dele é uma viúva deprimida que nunca
assistiu a nenhum espetáculo de Dulcina... Nunca ouviu falar em
Ziembinski, em Itália Fausta... Que diálogo eu poderia ter com essa
mulher?
NÁDIA - Vocês me acordaram pra quê, hein? Que é que vocês
querem comigo?
GUILHERME - Eu quero só que você entenda que não se passou
nada disso... Eu estava aqui em deferência a você... Você me
conhece.
NÁDIA (Firme) - Conheço.
IRENE - Eu te chamei pra pôr esse homem na rua, já que é você a
dona da casa e foi quem o convidou... Ele nos ofendeu tanto, Nádia,
que você nem sabe...
GUILHERME - Ofendi ninguém! Quase nem abri a boca...
NÁDIA - Vai na paz de Deus, vai, Guilherme... Outro dia a gente
conversa.
IRENE - Pra que conversar com esse homem outro dia? Lembre-se de
Montaigne... É melhor distribuir todo o dinheiro que você tenha na
bolsa, ficar até sem o da passagem, mas trazer bem oculto, num fundo
falso se preciso, seu rosto, seu tempo e sua vida... Ah, ele zombou
tanto de mim, Nádia!
NÁDIA (Altiva) - Tem nada pra zombar... Nem de você, nem de
ninguém...
GUILHERME - Zombei nada... Tratei com todo respeito sua mãe...
Você me conhece...
NÁDIA (Com desprezo) - Conheço.
IRENE - A única virtude dele, minha filha, é ser cínico, porque esse é
um defeito que se flagra com facilidade. Foi logo colocando o braço
nas costas do sofá, atrás das minhas, só porque eu sou sua mãe e
vocês foram para o quarto várias vezes na minha cara...
GUILHERME - Mentira!... Não houve nada disso... Tratei a senhora
com todo o respeito... E se eu vim aqui pro quarto algumas vezes foi
por insistência dela... Se eu vim foi por que...
IRENE (Num tom de voz bem alto, cortando, como se
completasse) - Você disse (À Nádia.) que sua mãe era cega e que
tinha sido puta enquanto foi desejável...
GUILHERME - Mentira! (Perdendo um pouco a linha.) Ora, você me
conhece, Nádia... Não disse nada disso... Foi você quem me
convenceu que assim era mais excitante, foi ou não foi?
NÁDIA (Impassível) - Foi. Vai embora, Guilherme, tudo bem.
GUILHERME - Boa-noite. (Encerrando como cavalheiro.).
NÁDIA - Tá... Boa-noite. (Bate a porta do quarto.).
GUILHERME - Boa-noite, minha senhora. (Saindo.).
IRENE - Some da minha frente, futuro cadáver! (Guilherme já saiu e
ela fala do umbral da porta de entrada.) Como dizia Montaigne, por
baixo da máscara das coisas e das pessoas só existe a morte. Você
por enquanto é uma mosca rondando o meu cadáver. Mas só me
picava, e à minha filha, se eu de fato estivesse morta.
CENA 7
Nádia preparando-se para sair. Um domingo, semanas
depois.
IRENE - É do Banco?
NÁDIA (Ar de triunfo) - Han... han...
IRENE - Finalmente, o gerente?!
NÁDIA (Cantarolando) - Han... han...
IRENE - Leva um agasalho.
NÁDIA - Prá quê? Ele tem cara de ser bem quente.
IRENE - Não vai a hotel vagabundo, hein? Levanta a tampa da
privada.
NÁDIA - Não, não vou a hotel, não... Vou trazer ele pra cá... Quero ver
ele deitado na minha cama.
IRENE - Traz, sim... Eu juro que não abro a boca... Eu juro por
Montaigne e por Dulcina...
NÁDIA - Se abrir, o problema é seu... Ninguém vai dar bola... Não
quer morar comigo? Tem que se acostumar.
IRENE - Eu me acostumo, sim... Com o que é que a gente não se
acostuma nessa vida? Até com a própria vida... Ninguém anda por ai
de olho arregalado, dizendo: "eu vivo... Eu falo... penso... sofro... não é
espantoso?"
NÁDIA (Saindo) - Tchau!
IRENE - Cadê? Já apitou o navio? Quer levar um pacote "wafles"?
NÁDIA - Ah, esse não vai me deixar com fome, não... Duvido... (Sai,
batendo a porta.).
IRENE (Vai até a porta e fala como se Nádia ainda pudesse ouvila) - Olha, seja carinhosa antes... Depois, não... Apenas vire para o
lado e durma... Nada de se chegar e deitar a cabeça no peito dele,
enquanto ele fuma, e muito menos falar de criança... Eu sei que as
mulheres quando amam, ficam como se tivessem bebido apenas uma
primeira taça de champagne, e querem prolongar a celebração... Mas
os homens, não... Eles ficam como se tivessem comido demais, e
querem logo dormir, afrontados. (Fecha a porta.).
CENA 8
Segunda-feira, de manhã. Nádia toma um copo de leite e
come um pedaço de pão, em pé, mal-humorada.
IRENE - Então? Vocês atingiram juntos, o orgasmo?
NÁDIA - Olha, não fala mais nesse cara, não, tá? Muito menos
quando eu estiver comendo.
IRENE - Ele usava "preservativo"?
NÁDIA - Ah, só faltava essa! (Um riso.).
IRENE - É desagradável quando eles usam isso, não é? Bom é a
gente sentir queimar o útero... quando aquilo cai dentro da gente,
como se fosse um jato de mercúrio... O útero das mulheres é uma
grande ferida, que só de tempos em tempos cicatriza.
NÁDIA (Com a boca cheia) - Não tá vendo que eu tô comendo não?
IRENE - Ele te levou pra jantar?
NÁDIA (Irônica) - Levou, sim.
IRENE - Não quis vir pra cá por quê?
NÁDIA - Disse que já tinha um "lugarzinho". Sabe qual era o
"lugarzinho"? O consultório de um dentista na Prado Júnior!
IRENE - E o ato foi na cadeira?
NÁDIA - Numa merda de um sofá menor do que a gente.
IRENE (Indignada) - Em risco de bater com a cabeça, torcer o
pescoço! (Muxoxo.) Você, antigamente, quando ia ao cinema, me
contava o filme todinho, com todos aqueles "aí... aí... aí... aí, mãe",
igual a Derci Gonçalves... Aquilo me comovia tanto que eu nem
escutava a história direito. (Olhando Nádia, com piedade.) Qual é a
sua grande aspiração, minha filha? Conta pra sua mãe... Se eu puder
ajudar a realizá-la...
NÁDIA - Vai começar com isso?
IRENE - Depois que eu souber isso, prometo que não te aborreço
mais. Vou aborrecer seus irmãos. Se eu puder realizar seu sonho,
muito bem, eu realizo; se não, eu vou embora, ver se posso realizar o
deles.
NÁDIA - É, né? Tá, então, eu vou pensar e depois te digo.
IRENE - Todo mundo tem que ter o seu sonho na ponta da língua e do
coração... Eu já estou até me demorando aqui mais do que devia...
NÁDIA - Também acho...
IRENE - Também preciso conduzir seus irmãos.
NÁDIA - É isso aí.
IRENE – Então?
NÁDIA - Assim de pronto, eu não sei, que é que eu posso fazer?
Quando eu chegar, a gente conversa, que eu estou atrasada.
IRENE - Você não é amante do gerente, do subgerente, do Caixa 1, 2
e 3, do Guarda de Segurança?
NÁDIA - Vê lá...
IRENE - Será que isso não te dá nem o privilégio de chegar um dia
atrasada? Você tem uma boa justificativa: estava abrindo seu coração
pra sua mãe...
NÁDIA - Sei...
IRENE - Você não está bem-humorada, está?
NÁDIA – Que é que você acha?
IRENE - Você não amou até as três horas da manhã? Será que isso
não te dá nem o privilégio de uma manhã bem-humorada? É o que eu
sempre digo a você, Nádia: a "sua" não é essa, minha filha...
NÁDIA - É essa, sim. A minha é essa mesmo. (Atira pela janela um
resto de pão e vai colocar o copo na cozinha.).
IRENE (Acompanhando-a) - Se fosse, você acordava feliz, com seu
útero cicatrizado, ainda que provisoriamente... Ferida nenhuma abre
de novo assim tão rapidamente...
NÁDIA - É, mas a minha abre, sim... A minha está sempre aberta,
cheia de pus, cheirando mal... Eu estou sempre assim - ainda não
reparou, não? - doente, emputecida, indisposta, cheia de fome e sem
vontade de comer... Ainda não reparou não? Não é possível... que eu
acorde sempre assim e passe o dia assim... e vá passar a vida assim,
como se a qualquer momento, eu vá ser presa ou morta... como se eu
tivesse dado um tiro em mim e vivesse escondida de mim... não
porque eu sou essa bacia de esperma, essa Miss Puta, que eu matei,
não, sabe?...Eu matei sem motivo. (Um riso histérico.) Eu me dei
vinte facadas por uma razão ignorada! (Pega a bolsa, ajeita o cabelo,
retoca a pintura).
IRENE - Como você está amarga, minha filha adorada! (Aproxima-se
de Nádia.) Tudo porque você casou com um vestido da Mena Fiala?
NÁDIA (uma risada) - Ah, é bem capaz de ter sido...
IRENE - Eu passei a juntar dinheiro desde o dia em que você falou
que quando casasse, queria usar um vestido da Mena...
NÁDIA - Foi, é? E já dá pra comprar?
IRENE - Depois eu gastei não sei em quê...
NÁDIA - Que pena! Eu precisava dessa grana agora... É que eu me
caso na semana que vem... te contei, não? Como é que vai ser,
mamãe? (Muxoxos caricatos.).
IRENE - Você vai mesmo casar? Com quem?
NÁDIA - Com o Elvis! Você não queria saber qual é o meu sonho, a
grande aspiração da minha vida? Pois é essa... E eu vou realizá-la no
sábado que vem... Vou me casar com o Elvis Presley! (Sai, batendo a
porta e dando uma triste risada.).
IRENE (Sentada no sofá, fala como se Nádia ainda estivesse ao
seu lado) - Espera... Nunca gostei de ver vocês desejando nada...
Uma vez você cismou que queria tocar acordeom. Eu comprei. Quer
dizer, pedi a seu pai pra comprar. Antes de ficar "de quatro" pra ele. A
todo sacrifício tem que corresponder um privilégio. Te botei pra
aprender. Quer dizer, pedi a teu pai pra botar. Antes de ficar de
"quatro" pra ele. A todo aborrecimento deve corresponder uma
felicidade, como um débito a um crédito em contabilidade. Você foi só
umas três vezes. Deixou lá em cima do armário, jogados, o acordeom
e o meu "ânus" prostituído. (Encaminha-se para a porta de entrada.)
Elvis Presley! Ela sabe que ele já morreu... Pensa é que eu não sei.
(Abre a porta e fala como se Nádia ainda descesse as escadas.)
Olha, quando você voltar, acho que não estou mais aqui. Tenho que
ver se Neusa e Ney estão chorando muito alto. Por você, "noiva do
Elvis Presley", acho que já não posso mesmo fazer nada, já que seu
futuro marido está morto e a sua felicidade também morreu, parece
até que, muitos anos antes dele... (Fecha a porta.) Pensando bem,
bobagem isso de casamento... Como Sócrates dizia, casando ou não
casando, a gente há de se arrepender. (Aqui, a critério da direção,
pode ser ou não o fim do primeiro ato.).
Cena 9
Apartamento de Ney, que é um homossexual, mas nem
por isso deve ser apresentado de uma forma padrão. É
um homem de roupas, fala e gestos que só a um exame
mais perspicaz revela sua condição, Tornando-se, porém,
frenético e afetado clichê nos pontos indicados. Com o
palco ainda às escuras, ouve-se a "Valsa em Dó Menor"
de Chopin, que prossegue quando a luz se acende. Irene
está entrando.
NEY (Meio constrangido) - Eu estou tão contente de te ver, mamãe!
IRENE - Acredito meu filho. (Beijando-o.).
NEY - Tô sempre pra passar lá pra te ver... O problema é a Nádia... A
gente parece que não fala mais a mesma língua.
IRENE - Isso me entristece... Vocês eram tão amigos!
NEY - Vai ver que é ciúme que ela tem de mim com você. Ela e a
Neusa sempre tiveram... pensam que você gosta mais de mim do que
delas.
IRENE (Bem natural) - Não. É porque você é um homossexual...
NEY (Meio embaraçado) – Que é isso, mamãe?
IRENE - Elas pensam que devem encarar isso como uma ofensa, um
desaforo, uma traição a nós... aos retratos de vocês soprando
velinhas, de vocês vestidos de pirata e odalisca... Elas são tão
preconceituosas, tão rançosamente moralistas, coitadas! (Muxoxo.)
Foi minha culpa: eu fazia festas de aniversário pra vocês, com bolos
de castelos e anões pra elas, e campos de futebol pra você...
(Muxoxo. Expressão ansiosa.) Mas depois, eu mudei, não mudei?
Eu ensinei tantas coisas novas a vocês, não ensinei?
NEY - Claro mamãe. Você sempre foi extraordinária.
IRENE - Você acha que é por minha causa que você é um
homossexual?
NEY (Meio cínico) - Mamãe, eu ainda não me casei porque ainda não
encontrei a mulher ideal...
IRENE - Ora, Ney, os homens passam a vida sugando um seio que
não tem caldo que querem beber. De modo que elegem como ideal a
mulher que está na direção do seu pênis, e além do seio tenha duas
cavernas bem escuras onde possam se esconder.
NEY (Começando a ficar afetado) – Que é que eu posso fazer?
Ainda não encontrei minha "gruta milagrosa", ué!
IRENE - Meu filho, que coisa feia mentir pra sua mãe! Então eu não
sei que você é veado?
NEY (Meio chocado) - Qual é, hein, mamãe? Que é que houve, hein?
Foi a Nádia, não foi? Ela te contou que me viu, não foi?
IRENE (Cortando, firme) - Eu não vim me meter nisso, Ney. Só vim
ver se você estava com uma boa cara e uma boa aura, que é só o que
me interessa.
NEY - Eu vou bem... vou muito bem... Melhor do que muita gente...
IRENE - Ainda bem que você não disse que estava ótimo. Quem diz
isso, sempre está mentindo: ninguém vai ótimo.
NEY (Tentando recuperar-se) - Nem você? Você está me
parecendo... esplendorosa!
IRENE - Ainda bem que você não disse "maravilhosa"... Essa palavra
me embrulha o estômago. Todo mundo agora acha tanta gente
"maravilhosa", gente sem qualquer maravilha, que eu não faço a
menor questão de que me enfiem à força nesse grupo.
NEY - Você quer tomar alguma coisa? Me conta... Que é que você
tem feito?
IRENE (Olhando-o preocupada) - Ô meu filho... como você está
ficando prosaico! "O que é que você tem feito?"... Que pergunta mais
tola!... Que é que alguém faz na vida, a não ser andar de um lado pro
outro, fingindo que está fazendo alguma coisa importante?
NEY - Você não muda, hein?... Eu te adoro! (Beijando-lhe a testa.).
IRENE - Ô meu filho... Você está me preocupando... Com quem você
tem andado? É com aqueles rapazes arrogantes que classificam a si
mesmos, presunçosamente, de "entendidos", e olham em torno como
se fossem seres superiores?
NEY (Como um catedrático falando a um curioso) - O que é que
você entende disso, mamãe?
IRENE - Eu e qualquer pessoa entendemos de tudo tanto quanto
eles... Me diz, Ney, é com esses arrogantes que você tem andado?
NEY - Por quê? O que é que você tem contra eles?
IRENE (Muxoxo) - Ah, eu acho que preferia que você fosse um
desses que têm peitinhos e "convulsões".
NEY - Mamãe, que papo é esse, hein? O que foi que te contaram?
IRENE (Perdida nas próprias reflexões) - Não, também como esses
eu não queria, não... Esses parecem araras que a qualquer momento
vão bicar a nossa cabeça... Parecem rapazes sem cultura, com um
invisível cacho de bananas na cabeça...
NEY (Rancoroso e vingativo) - Que ela estava atracada com uma
"antigüidade", ela não disse, disse? Que ela estava "dando corda"
naquele "relógio de parede", ela não disse, disse? Você precisava ver
ela enfiando a língua no ouvido do velho...
IRENE - Ele já foi lá em casa... Não é má pessoa... É até um homem
distinto...
NEY ("Fulminante") - Sei... O porteiro aqui do prédio tem três viralatas: um se chama "Biônico", outro, "Excelência" e o mais
esculhambado é o "Distinto".
IRENE - Eu tinha tanta esperança de que você não fizesse nenhum
gênero! Que você fosse simplesmente um homossexual, uma pessoa
como outra qualquer, apenas com uma preferência como uma cor,
uma marca de cigarro... Que você não se encaixasse em nenhum
desses dois grupos...
NEY (Dissimulando a mágoa) - Mamãe, se você veio aqui pra me
ofender, é bobagem: eu não me ofendo mais. (Viril, com uma
espécie de "riso mau".) Pois é: como você está vendo, eu sou, sim,
uma hora "pavão", "moça altiva e culta"; outra hora, "arara",
"vagabunda escandalosa e analfabeta"...
IRENE - Você sabe escolher seus parceiros, Ney? De que tipo é a sua
tara? Você é daqueles que apreciam meninos, como Sócrates, ou
soldados como aquele general vizinho do seu avô?
NEY - Sou daqueles que obedecem à sua sensualidade.
IRENE - Não se mete com aquele tipo estúpido, Ney, que trata mal os
afeminados, porque sabe que no mínimo não superou completamente
a "fase anal" e...
NEY (Cortando) - Lamento, mas ás vezes gosto desses também.
(Muxoxo de Irene.) Mamãe, sabe de que é que eu me lembro sempre
nessa época?
IRENE - De quê, meu querido?
NEY - De quando a gente fazia aquelas compras de Natal... se
lembra? A gente comprava tudo no mesmo dia... que rumba! Ia em
casa e voltava, largando os embrulhos...
IRENE - É claro que me lembro, meu bem...
NEY (Sorri evocativo) - Pra encerrar, a gente sentava na Colombo,
se lembra? Eu tomava guaraná com "torradas de Petrópolis"... Pode?
Será que ainda existe isso? A Nádia comia um "mil-folhas"... A Neusa,
um croquete e uma coxinha... e você...
IRENE - Tomava um "creme suchard"...
NEY (infantil e terno) - Ah, era bom aquilo, não era?
IRENE - Se não era a felicidade, era sua irmã gêmea.
NEY - Qualquer dia, vamos sentar na Colombo, outra vez?
IRENE - Vamos, sim, meu querido.
NEY - Só eu e você.
IRENE (Triste) - Mas sem o "mil-folhas" da Nádia, nem a cara
lambuzada da Neusa?! (Tempo.) Ney, eu quero que você entenda que
eu não vim aqui convencê-lo a ser diferente do que é. Acho muito
cruel pedir a alguém um pedaço de sua alma, como se fosse uma fatia
de bolo.
NEY - E eu quero que você saiba que eu estou muito satisfeito com a
minha vida, com o que eu sou, com o gosto e o feitio do meu bolo.
Pelo menos, sou tão boa "doceira" quanto qualquer outra pessoa.
IRENE - Muito bem. O que eu vim saber, Ney, foi qual é o objetivo da
sua vida?
NEY - Assim tipo "minha meta"?
IRENE - Eu sei que delírios você tem muitos. E quando sentarmos na
Colombo, eu quero que você me conte todos, com todas as bailarinas
e gnomos. Por enquanto, eu só quero saber onde fica o ponto final da
sua corrida...
NEY (Lírica donzela) - Não sei... sinceramente... Queria tanta coisa...
tanto "passarinho", tanta "catarata"! Não sei... Ganhar todos os
concursos esse ano...
IRENE - E nos outros anos?
NEY (Pudica donzela) - Não sei... Acho que nunca pensei nisso...
Tirar o 1º lugar muitos anos seguidos!
IRENE - E quando você virasse "hors-concours"?
NEY - Ah, até lá eu já não devia querer mais nada... Já tinha virado
"feiticeira", "cigana de peito mole"... Só devia querer "caçar
pombinho"...
IRENE (Despudoradamente contraditória) - Que tal um casamento?
NEY (Riso canhestro) - Casamento? (De novo afetado, como uma
fuga e uma agressão.) Só se fosse com a Isadora Duncan!
IRENE - A bailarina que morreu estrangulada pela echarpe?
NEY (Palhaço) - Morreu? Que é que você tá me dizendo, mamãe?
Meu grande amor morreu?
IRENE - Você está debochando de mim ou de você mesmo?
NEY - Eu não sabia... palavra... Senão, eu só andava de preto e
óculos escuros... Ora, se eu ia perder essa oportunidade de dar uma
de Pola Negri, de Jaqueline Kennedy...
IRENE (Como se chamasse a atenção de uma criança) Chiuuuuuuuuu! Não faça assim! Ai, ai, ai!...
NEY (Canastrão viúvo) - Ah, minha noiva adorada! O único corpo e
espírito femininos capazes de atrair os meus! Como pôde me
acontecer essa desgraça?
IRENE - Existem outras mulheres belas e atraentes... Você já reparou
em Tônia Carrero?
NEY - Ah, não... Não ia dar certo, não... Duas glamorosas sob o
mesmo teto? Uma ia pisar na cauda da outra, o dia todo...
IRENE - Se você sentisse o seu perfume, alisasse a sua pele... Eu a vi
estreando, mocinha, em "Um Deus Dormiu Lá em Casa"... Um
topázio!... Uma "água-marinha"!... Homem nenhum pode ficar
indiferente à Tônia Carrero!
NEY (No auge do medo e da mágoa) - Ué, mas cadê o Homem?
Cadê? Cadê? Não foi você mesma que entrou aqui dizendo que eu
não sou um homem?
IRENE - Eu? Você apenas cultivou uma flor lilás, de forma estranha,
mas que todas as pessoas conhecem muito bem. Todos já viram essa
flor, alguma vez, no seu caminho ou na sua janela...
NEY - Você também acha, é?... É isso mesmo... Uma flor lilás!... Bem
escolhida a cor...
IRENE - Todas as pessoas viram essa flor um dia, mas fingiram que
estavam distraídas ou dormindo... você, não... você foi olhar muito de
perto e passou a regá-la várias vezes por dia... e passou a colocá-la
ora no sol, ora na sombra...
NEY - Ah, agora quer me chamar de "jardineira"! (Começa a cantar e
a dançar a marcha carnavalesca.) "Oh, jardineira/ Por que estás tão
triste?/ Mas o que foi que te aconteceu/? A flor lilás me caiu do galho/
Deu dois suspiros/ E depois morreu..."
IRENE (Repreendendo-o) - Chiiiiiiiuuu!... Não faz assim!... Ai, ai, ai!...
Por que isso de fazer assim feito um aleijado? Pra todo mundo ter
pena ou desprezo por você?
NEY - Não, mamãe, falando sério, que idéia maravilhosa você está me
dando pra uma fantasia!... "A Estranha Flor Lilás"! Assim bem
enigmático... Será que os jurados iam entender? Já estou até vendo:
uma roupa de brocado com aplicações de orquídeas em paetês e
miçangas...
IRENE - A flor lilás não é uma orquídea...
NEY (Empolgado) - "Glória e Pompa da Estranha Flor Lilás"! Pra esse
ano, não dá, que já está pronto o meu traje... Eu fiz uma coisa bem
"engajada", pra mostrar que a gente também tem consciência política.
Senão, ficam chamando a gente de "alienada"... Eu vou pegar pra
você ver... (Vai até o quarto - a porta ao fundo, à direita - enquanto
fala. Traz uma túnica marrom, bordada e franjada, com um
exagerado manto e um grotesco chapéu que lembra um
caldeirão.) "Seca e Fome em Noite Feérica"!... Que tal?... Eu vou
desfilar com uma expressão bem séria, bem digna, como se acusasse
os jurados, o público, todo mundo... (Vestindo a roupa, colocando o
chapéu e desfilando.) da miséria e da ignorância do povo... com um
discreto sorriso irônico, como se debochasse da apatia e da
indiferença de todos... A gente tem que apresentar o que o momento
exige... ocupar todos os espaços da "abertura"... Vou ganhar fácil
daqueles "pássaros de fogo" e "jardins suspensos" todos... Aquelas
"Emílias" todas vão ficar mais queixudas ainda, quando me virem
despontar... Ah, a trilha sonora, "Morte e Vida Severina", conhece?...
Ih, já pensou? (Começa a cantarolar enquanto desfila.) vão ficar
"uma coisa"!... É capaz de dar o maior rebu... A Censura cortar e
tudo... Atualmente, sem demonstrar consciência política, você não
ganha nem rifa. Ah, que é que você acha de no fim do desfile eu,
antes de sair, virar para os jurados e para as câmeras de televisão,
levantar a mão, assim, feito um Papa dando a bênção e falar em alto e
bom som: "ANISTIA"! “ANISTIA AMPLA, GERAL E IRRESTRITA!"?...
hein?... Depois, dou uma "rabanada de Virgínia Lane" e saio como
quem diz: "Não estou pedindo favor... estou cobrando uma dívida"...
IRENE (Com a expressão de desagrado que manteve durante todo
o "desfile") - Não seja modernoso!... Que coisa feia!... Não seja
ridículo...
NEY (Patético, trazendo o manto à frente) - Você não gostou? De
quê? Da roupa? (Quase em desespero.) De que é que você não
gostou mamãe?
IRENE - De nada. Nem da mise-en-scène, nem do traje... Esse
chapéu horroroso, que parece uma panela de quartel... Que mau
gosto! Tanta fantasia bonita pra você usar!...
NEY (Recompondo-se do "choque", readquirindo a sobriedade) Por exemplo...
IRENE - "O Doge de Veneza", "D’Artagnan", "Senhor de Montaigne"...
NEY - Você acha que essas fantasias são menos ridículas do que
essa?
IRENE - Vão rir de você com essa roupa horrorosa e essa mise-enscène boba e oportunista...
NEY (Tirando a fantasia) - Pode ser. Mas eu também vou rir, eu
também vou me divertir, você pensa que não? Eu sempre arranjei um
jeito de vomitar no sapato de quem vomita no meu. Eu sei de tudo,
mamãe. De que é que não sabe alguém que é ao mesmo tempo o
extravagante noivo de Isadora Duncan e um "circunspecto" caixa de
imobiliária?
IRENE - Não fale assim, Ney, com essa melancolia... Não há motivo...
A história da flor lilás que eu lhe contei é absolutamente verdadeira...
NEY - Eu sei. Eu já me contei muitas vezes uma história parecida. A
minha versão é intitulada "Ninguém é melhor do que eu". Eu me conto
essa história sempre que alguém me agride ou mesmo me magoa.
Sempre que eu estou com forte inclinação para a insegurança, o
desespero, o melodrama. Eu me acalmo, dizendo: "Eles é que não
sabem. Eu estou até num estágio superior, porque o meu corpo
conheceu um número de prazeres que esses pobres-diabos só
conheceram pela metade. O meu corpo esgotou todas as suas
possibilidades. (Escrachado palhaço, de mão na cintura.) É, porque
eu já comi "perereca", já fui "pincelado" e "andei de metrô", tá bem?
(Sóbrio.) E qualquer pessoa poderia ser como eu se tivesse tido
coragem de atravessar seus limites, de romper sua moldura." (Para a
mãe.) Não é uma história tão eficiente quanto a sua?
IRENE - Você está magoado, meu filho? Desculpe...
NEY - Está desculpada.
IRENE - É que eu não quero ver você frustrado, nem infeliz...
NEY - Eu não sou mais frustrado, nem infeliz do que ninguém,
mamãe.
IRENE - Eu tenho certeza de que você sentiria alguma coisa se
cheirasse o pescoço de Tônia Carrero...
NEY - É possível. Mas você não compreendeu? Eu prefiro ser levado
a galope, galopando, cada vez mais longe, compreendeu? , ga-lo-pando pra cada vez mais longe de tudo, mamãe...
IRENE (Muxoxo) - Longe de quê? Isso é teimosia... Eu acho...
NEY (Cortando, firme) - Chega, sim, mamãe? (Irene se cala. Tempo.
Meio saltitante.) Ah, eu tenho uma coisa que você vai adorar...
IRENE - O que é?
NEY - Eu tomo um pouquinho sempre que estou com muita saudade
de você. (Dirige-se a porta ao fundo, à esquerda.).
IRENE - Saudade de mim? (Encantada.).
NEY (Surge ostentando uma garrafa e dois cálices) - Ó...
"Liebfraumilch"!
IRENE (Enlevada) - Ah!... E toma quando se lembra de mim?
NEY (Colocando as bebidas nos cálices) - É. Quando a saudade é
de outras pessoas, aí eu encho a cara de "bagaceira" mesmo, e caio
por ai "beiçuda e arrombada".
IRENE (Alarmada) - Você também já se sentiu assim, meu filho? Por
que não chamou a mamãe?
NEY - Mas quando é de você, eu sento, coloco a "Valsa em Dó Menor"
de Chopin, e bebo cálices de "Liebfraumilch", só curtindo você, como
um exilado lembrando o seu país...
IRENE (Comovida) - Ah, Ney... (Acariciando-lhe o rosto.) Por
favor... não me comova... Eu fico tão imprevisível e perigosa quando
me comovo. (Bebe de um só gole todo o conteúdo do cálice.) Eu
viro uma ameaça a mim mesma, quando me exalto. (Ney torna a
encher o cálice. Vai até o quarto. Quando reaparece, ouve-se a
“Valsa em Dó Menor". Irene fica de olhos arregalados, escutando
a música, com uma expressão de dor.) Ah, Ney... por favor... não
me comova... Eu fico sentindo me rondando, uma tragédia...
(Emocionada.) Por favor...
NEY (Impassível) - Calma. Isso não mata. Me fala de você... O que é
que tem acontecido... qualquer coisa...
IRENE - Quando eu começo a pensar em mim - você sabe - me dá
uma alegria muito passageira, que eu fico inconsolável quando acaba,
ou numa tristeza que só em parte eu consegui domesticar, de modo
que não quero me arriscar. Muito menos nesse clima de vida, paixão e
morte...
NEY - Você nunca mais vai ter nada daquilo... passou...
IRENE - É... passou, mas quem já esqueceu várias vezes o discurso,
acaba nunca mais falando em público...
NEY - Olha, eu acho que eu nunca te vi tão bem... Você está mais
magra, mais elegante...
IRENE (Vaidosa) – É. Fisicamente eu estou numa boa fase, sim...
NEY - A Nádia te trata bem?
IRENE - Tão bem quanto um infeliz pode tratar outro.
NEY - Se você quiser ficar comigo... não faz cerimônia, hein?
IRENE - Ela me trata como um desgraçado trata outro com quem se
identifica: com um ódio cheio de piedade... com uma maldade cheia de
sofrimento...
NEY - O apartamento não é grande - você tá vendo - mas cabe você
muito bem... Vou ter o maior prazer de ter você perto de mim...
IRENE - Não seja convencional, quer dizer, hipócrita, Ney...
NEY - Foi você que preferiu ficar com ela... Eu cansei de oferecer... de
insistir... Tanto eu quanto a Neusa... Isso você não pode negar...
IRENE - Não se torture meu filho. Que é que você quer? Provar que é
bom? Claro que é.
NEY - Você pode vir pra cá a hora que você quiser. Se quiser, nem
volta pra lá. Eu vou lá e pego as tuas coisas...
IRENE – Que é isso? Que ódio é esse da sua irmã? Você está
enganado: também não é melhor do que ninguém. Não pense que é
só porque tem uma "flor lilás" que cheira e põe no cabelo, de vez em
quando.
NEY - Tá bem. Você que sabe com quem você se sente melhor...
IRENE - O que me atrai para vocês três é a impressão de que eu
podia ter feito alguma coisa por mim mesma. (Três toques curtos de
campainha. Ney hesita, vai ao quarto desligar a vitrola.).
NEY - Deve ser alguém pra chatear...
IRENE - É gente de casa...
NEY - Aqui entra vendedor, padre, cego... Não estou esperando
ninguém...
IRENE - Nem padre, nem cego, nem vendedor bate assim. Depois, até
os mortos e os objetos estão esperando alguém que os desencante.
(Três toques mais irritados.) Vai abrir, Ney... É o seu amante. Deixa
eu conhecê-lo. (Ney vai abrir. Entra Cássio, que não percebe logo
a presença de Irene.).
CÁSSIO - Pô, tava bordando, cagando ou fazendo cachinho?
IRENE - Estava conversando comigo. (Ney e Cássio entreolham-se.)
Ele nunca fez cachinho, e acredito que ainda não faça. Tem os
cabelos naturalmente ondulados e sedosos. O seu penteado é que me
parece que exige...
NEY (Fazendo as apresentações) - Minha mãe... Cássio...
IRENE - Ah, o "conspirador"!...
CÁSSIO (Estendendo a mão) - Satisfação...
IRENE - Da mesma forma...
CÁSSIO - Olha, eu só vim saber se você podia me emprestar... aquele
livro...
NEY (Ajudando na mentira) - Claro... O do Garcia Marques, né? (Vai
pegar o livro.).
IRENE (A Cássio) - "Cem Anos de Solidão"?
CÁSSIO (Inseguro) - É... isso aí... A senhora já leu?
IRENE - Todo mundo leu isso. Menos eu. Todo mundo agora lê os
mesmos livros. Os "Ensaios do Senhor de Montaigne” aposto que
você nunca leu...
CÁSSIO - Qual?
NEY (Entrando com o livro) - Montaigne... o filósofo francês...
Mamãe é uma grande admiradora dele...
CÁSSIO - Não, esse... (Balançando a cabeça, coçando o nariz.).
IRENE (A Ney) - Quem foi que disse que Montaigne era um filósofo?
Pelo menos, não do tipo convencional... Foi apenas um homem que,
entre muitas verdades, escreveu: "Um remo é reto, e, no entanto,
quando mergulha na água, Parece curvo." Você, Cássio, é reto ou
curvo?
CÁSSIO (Sorri, canhestro) - Bom, muito prazer, hein? Depois eu
trago...
IRENE - Deixem de bobagem. Quem está de saída sou eu. Só estava
mesmo esperando para cumprimentá-lo, "conspirador"...
CÁSSIO - Ah, é? Já tinha ouvido falar de mim?
IRENE - Ih, muito!...
CÁSSIO (Desconfiado) - Eu não sabia que o Ney tinha uma
confidente...
IRENE - Não foi ele quem me falou de você...
CÁSSIO - Não?!
NEY (Fazendo menção ao livro para mudar o clima) - Cássio, não
tem pressa, não, viu?
IRENE - Quem me falou de você fui eu mesma... Eu já o conheço há
muito tempo...
CÁSSIO (Mais desconfiado ainda. Começa a se instalar um
equívoco) - Me conhece? Morou no Lido?
IRENE - Você é um estereótipo... desde que conspirou contra Júlio
César...
CÁSSIO (Lívido) - Que Júlio César?
IRENE - Qual poderia ser?
NEY - Ih, gente, que equívoco!...
CÁSSIO - É daquele caso do decorador que a senhora está falando?
NEY - Não, Cássio, é do político e militar romano...
IRENE - Estou falando de Júlio César, que foi assassinado por Cássio
e Brutus no Senado...
CÁSSIO - E que é que eu tenho com isso?
IRENE - Nada, é claro. (Tentando ser ironicamente espirituosa.)
Esse "seu" crime já prescreveu...
CÁSSIO (Confuso) - Que crime? Foi suicídio... Ficou provado...
NEY - Ih, o papo de vocês tá parecendo uma "cama-de-gato"! Cássio,
depois eu telefono pra você...
IRENE - Nada disso. Fique à vontade. (A Cássio.) É com você que eu
vou deixar meu filho passar a tarde. Olha lá a sua responsabilidade,
hein?... Eu nunca deixei nenhum deles com qualquer um... só com a
avó e com a madrinha...
NEY - Você já vai, mamãe? Almoça comigo... A gente pode ir à
Colombo praquela "Sessão Nostalgia"... (Cássio vai assoviando até
a janela.).
IRENE - Ney, você não está pensando que eu estou dizendo frases,
está? Eu detestaria que esse rapaz pensasse que eu sou uma mãe
corriqueira, que sai daqui chorando e quase foi atropelada. Desejo,
sinceramente, que você e ele tenham uma romântica tarde. É verdade,
meu filho. (Sincera.) Tenho certeza de que não ficaria mais contente
de vê-lo almoçando na casa de sua sogra, arrotando cerveja e
macarronada com seu sogro e cunhado, assistindo a uma partida de
futebol. Disso eu tenho absoluta certeza. Até logo... Adeus, Cássio...
CÁSSIO (Sentado, espalhado, no sofá) - Tchau, "mamãe"!...
IRENE (Seca) - Eu sou mãe dele. Não sua.
NEY - Eu levo você... Faço questão...
IRENE (A Cássio) - Tenho certeza de que não preferia ter você a ele
como filho...
CÁSSIO - Tudo bem! (Dirige-se à porta ao fundo, à esquerda.).
NEY - Você quer que eu te leve a algum lugar? Quer ir ao Pão de
Açúcar?
IRENE - Não... Eu quero andar bastante, sozinha, enquanto me decido
a visitar ou não a Neusa. Antes de fazer certas coisas, eu me sinto
como se tivesse me aproximando de uma placa onde está escrito
"TRECHO ERMO". Em certos momentos, também, à toa.
NEY - Ah, lá eu não tô a fim de ir, não. Adoro a Tatiana, sou uma
"dindinha" muito em falta, mas aquele "casal azul e rosa", de braço
dado na missa, na praia e na churrascaria, dá "curto" comigo...
IRENE (Inquieta com a ausência de Cássio) - Como dizia
Montaigne, a dúvida impede a decisão, mas essa é a melhor das
decisões, às vezes. (Cássio surge comendo uma maça.) Lavou
direitinho?
CÁSSIO - Oi?... Ah, tá... Tá lavadinha, sim...
IRENE - Você não usa canivete, usa?
CÁSSIO – Não. (Sem compreender.) Serve esse cortador de unha?
(Estendendo-o.).
IRENE (Recua-se e coloca-se à frente de Ney) - Guarda isso... Que
é que você está insinuando? Que é que você pretende com isso?
NEY - Mamãe, que é isso?!... Que rumba é essa?...
IRENE - Ele está nos ameaçando, Ney...
CÁSSIO - Calma “mamãe”... Não me pediu um canivete? Pensei que
servisse, pô! (Volta a sentar-se, espalhado, comendo a maçã.).
IRENE - Meu filho não sabe se tem mais medo de que você o traia,
mate ou abandone...
CÁSSIO (Meio surpreso, meio divertido) - Que!... Vai ter isso
também?!
NEY (Dissimulando o constrangimento) - Que folhetim é esse,
mamãe?
IRENE - É assim com todos os amantes. Eu sei que Montaigne dizia
que para nos consolar da nossa miserável condição, a natureza só
nos deu a presunção. Mas não exagere, sim? Você não tem nada de
próprio. Você também tem a marca de um gado qualquer, gravado a
fogo na bunda...
CÁSSIO (Como se assistisse a um "pastelão) - Não!... Vai ter isso
também?...
NEY - Mamãe, por favor, Bette Davis não, tá?
IRENE (A Cássio) - Acho que não preciso dizer-lhe que não pode
desprezar meu filho, nem deve tratá-lo com brutalidade, porque tanto
você quanto ele têm a obrigação de saber que são idênticos, apesar
do seu ar olímpico e dos seus sapatos brancos...
CÁSSIO - Somos, é?
NEY - Mãezinha, please... Fica calma... Vamos... Eu levo você...
Cássio, vai embora, tá?
CÁSSIO - Não tô entendendo. É pra ir ou pra ficar? A "Lady Laura" aí
não disse que "tudo bem”?
IRENE (A Cássio) - Vocês são idênticos, apesar da provável loura
pregada na sua parede, ou na porta do seu guarda-roupa... Apesar da
empregada que porventura você tenha engravidado e da noiva dele
morta pela echarpe...
CÁSSIO (Debochado) - Ah, o Neyzinho foi noivo, é? Foi ele que fez o
vestido?
NEY - Vamos, mamãe... Deixo você em casa... vem...
IRENE (Progressivamente agitada) - Nada de maltratar o meu filho,
nem de gritar com ele, ouviu, safado?
CÁSSIO (Cínico) - Êpa!... Isso também? (A Ney.) Pô, fez um bocado
de queixa pra mamãe, hein?... Bom, pra mim chega dessa transa
familiar. (Dirigindo-se à porta de entrada. À Irene.) Safado é o
cacete!
IRENE (Fechando a passagem) - Safado, sim... Se der maconha ou
pozinho pro meu filho cheirar, se picar os braços dele, eu te crucifico,
ouviu, "Cássio do Lido"?
CÁSSIO (Olhando para Ney com suspeita) - Tem isso também?
"Tudo bem"... Depois a gente conversa. Deixa eu passar, ô "Dona
Gertrudes"!...
NEY (Num velado deboche) - Você está enganada, mamãe. Cássio
não é nada disso. É um rapaz de família, estudante de Direito da
Gama Filho...
IRENE (Convencida depressa demais) - Ah, é? (Não deixa Cássio
sair, agarrando-o pela camisa, segurando-lhe os braços, etc.) Eu o
exasperei?... Eu não quis ofendê-lo... Fique com ele, por favor... Eu
lhe mando uma garrafa de "Ballantines" no Natal, está bem?
NEY - Mamãe, por favor... Que tango é esse?
CÁSSIO - Quer mandar a "Lady Laura" me soltar?
NEY - Mamãe, deixa ele ir...
CÁSSIO - Solta a minha camisa, ô "Lady Lelé"!
IRENE (Em desespero) - Ele vai se vingar de você, Ney... Vai te dar
tanto na cara, quando eu sair...
CÁSSIO (Dando um arranco definitivo) - Vai me largar ou não vai,
puta velha? (Irene o solta como se tivesse levado uma bofetada.
Cássio sai.).
NEY (Do umbral, impotente irado, frágil, patético) - Puta não, viu?
Olha como fala... Puta é a puta que te pariu, desgraçado, filho da puta!
(A mãe olha-o penalizada.) Eu te mato se você xingar minha mãe de
novo... Te dou uma navalhada no saco, na bunda, na pica, traficante!
(Num grito meio histérico.) Assassino! (Irene vai até ele e o abraça,
fechando a porta.) Desculpe, mamãe... Ele me paga... (Irene o
conduz até o sofá.) Uma vez, ele tava doido, cheio de pico, e me
confessou que foi ele quem matou aquele Júlio César, aquela
"decoradora" que apareceu "enforcada"... Transou com ele três anos...
Já eram marido e mulher... Foi ele. (Triste e vingativa "Medeia".)...
Foi ele quem matou... Ele me contou numa daquelas horas em que a
gente fala qualquer coisa a qualquer pessoa... Depois me agarrou pelo
cabelo, me deu um beijo na boca e disse que era pra sugar o que ele
tinha me contado. (Irene faz com ele deite a cabeça em seu colo.
Ele obedece, indefeso, feminino, infantil, como ainda não se tinha
mostrado.) Eu vou à polícia... Que é que ele pensa?...Que eu vou me
comover com aquele beijo a vida inteira?
IRENE - Você arranja outro, meu filho. Quer que eu vá com você, de
beco em beco, de escritório em escritório? Só nos banheiros de
cinema é que eu não posso ir junto. Mas eu fico perto da porta,
esperando. Quer que eu procure por você, no Maracanã, meu
querido? (Beija-lhe a cabeça, o rosto.).
NEY (Choroso) - Mamãe, você não gostou da minha fantasia!...
IRENE - Não é muito feia, não. Eu tenho certeza de que você vai
valorizá-la. Você sempre teve muito garbo, muita presença...
NEY (Fungando) - É que você me viu assim "toda desarrumada"... No
dia, eu maquiada, tomada pelo espírito da roupa, você vai ver... Vai
ficar diferente... Eu vou pintar o cabelo... Fica um pedaço de fora...
Que cor você acha que fica bom?
IRENE - "Acaju sol"...
NEY (Procurando animar-se) - É... Vai ficar bom, sim. (Sem
conseguir.) E se eu tirar de novo o 4º lugar? (Tempo de drama.) Eu
me mato diante das câmeras! (Expressão de pânico.) E se eu for
"desclassificada"? (Tempo de tragédia.) Eu entro na passarela e
arranco os olhos com dois garfos, feito Édipo diante do povo de
Tebas... E se ninguém der muita importância, eu desço até o salão, e
passeio no meio dos foliões, espalhando horror e sangue. (Engole
decisão e coragem.).
CENA 10
Apartamento de Nádia. Irene deitada no sofá. Escuta a
Proximidade da filha. Finge dormir, mas abre um pouco
os olhos para acompanhar tudo. Nádia e um homem
entram no quarto, fechando a porta. Irene disca seis
números, mas depois parece que se arrepende e
continua a discar até esgotar todos os números do disco.
IRENE - Ney? Sou eu. Meu filho, vem me buscar. Eu não agüento
mais. Você acha que uma pessoa da minha estirpe pode viver num
rendez-vous? O que será que Montaigne diria de tudo isso? Você tem
que me livrar dessa situação. Você me desculpe, mas está me
parecendo tão mais confortável ter um filho que tome satisfações...
Você tem que vir aqui e tomar uma atitude, chamar sua irmã de
vagabunda, pra eu me convencer de uma vez que ela não tem mesmo
sonho nenhum que eu seja obrigada a concretizar. (Tempo.) Com
você, também, Ney, estou tão aflita!... Cuidado com os cintos, hein?
Você tem macho em casa?... E cortina com gravata?..."Cássio do
Lido" voltou?... É de confiança esse tarado novo que está montado em
você? (Muxoxo.) De confiança o quê!... Desculpe meu filho, mas na
verdade está me parecendo tão mais seguro ter uma virgem que se
apalpe e se boline no cinema!... Mas eu juro a você que vou refletir
sobre isso, e hei de me livrar desses conflitos e preconceitos todos...
Vou, sim... Eu quero. (Acionando o gancho do aparelho.) Alo, Ney...
Está captando o meu sinal? Alo... É a mamãe... Câmbio... Até a vista...
Câmbio... Um guia urgente, mesmo cego, pra me acompanhar.
(Repõe o fone, corre para o sofá, deita e cobre a cabeça.).
CENA 11
Dia seguinte. Apartamento de Neusa. Irene tem três rosas
na mão, e parece mais angustiada e alheia. Ouve-se a
"valsa em dó menor", de Chopin.
NEUSA - Como é que você pode dizer isso, mamãe? Constrangida
por quê?
IRENE - Desde que eu nasci, que eu constranjo as pessoas: era o
único bebê de cabelos até os ombros no berçário...
NEUSA - Eu estou é surpresa... Você nem avisou... Eu nem sabia que
você já tinha saído da clínica... A Nádia também!...
IRENE (Impaciente) - Seu marido chega a que horas?
NEUSA - Daqui a pouco ele está aí... Mas que é que tem?... Vai
querer ir embora antes dele chegar?... Você não vai começar com
implicância, vai?
IRENE - Eu tenho tanta vontade de vê-lo quanto ele a mim.
NEUSA - Ah, isso já passou, mamãe... Vai ficar a vida toda...?
IRENE - É... passou e foi se juntar no canto onde ficam as outras
coisas que não passam...
NEUSA - Aquilo já foi superado... Ele, de vez em quando, até pergunta
pela senhora...
IRENE - É pra saber se eu morri ou fiquei inválida ou louca de uma
vez. Cada derrota minha é uma vitória dele.
NEUSA – Que é isso, mamãe!... O Mário não é rancoroso assim,
não... Eu expliquei a ele que você não queria a nossa visita lá porque
se comovia com as crianças...
IRENE (Indignada) - Você disse isso?... Tomara que ele tenha
percebido que era mentira...
NEUSA - Ih, mamãe... Não gosto quando você fala assim... não
entendo isso...
IRENE - Dos três, é a você que eu causo maior embaraço...
NEUSA - Que embaraço? Deixa de bobagem... Eu gosto tanto de
você quanto o Ney ou a Nádia... É. Eles não gostam mais de você do
que eu, não. (Cheia de "espinhos na pata".) Você é que sempre
gostou muito menos de mim do que deles...
IRENE (Dá um muxoxo, impaciente) - Bom, vamos "virar essa
omelete", sim?
NEUSA - Então, me conta... O que é que você tem feito?
IRENE (Irritada) - E alguém faz outra coisa na vida, a não ser andar
de um lado pro outro, ou ficar sentado, fingindo que está fazendo
alguma coisa importante?
NEUSA (Ressentida) - A Nádia tá boa? Ela não vem aqui sabe desde
quando? Nem pra ver os sobrinhos!... Nem me lembro quando foi a
última vez que ela veio aqui... Acho que foi na Copa... Assim mesmo
deve ter sido pra ver o jogo a cores...
IRENE - Ora, se a minha filha ia se dar a esse trabalho! E porque é
que eles não vão com a mamãe ver a titia?
NEUSA - Ah, a minha vida é diferente, né? De 2ª a 6ª é colégio, é
balé, inglês, judô... No sábado é piscina e violão... no domingo...
IRENE (Cortando, aborrecida) - Ora, cada qual tem sua rotina que
não pode deixar de ser cumprida. Até os ociosos têm um ritual de
ociosidade que não pode deixar de ser cumprido... A Nádia trabalha,
chega muito cansada e desiludida pra ainda achar graça em visitar
sobrinhos...
NEUSA – É. Você tá sempre defendendo... Então ela não podia
arranjar um tempinho? Ah, quando a gente quer, acha sim... Eu acho
isso o fim... um absurdo. (Raiva impotente.) Eu fico!...
IRENE (Cara de nojo) - Ora, Neusa, não vamos perder tempo com
essa "troca de embrulhinhos", sim?
NEUSA - Tudo que defende... você nem disfarça, hein? Poxa, o
Bruninho é afilhado dela! O Ney é outro... aparece aqui uma vez na
vida, outra na morte...
IRENE - Que expressão idiota! Ora, meu filho tem um ritual secreto a
ser cumprido... tem que cuidar o tempo todo da "flor lilás" dele... Que é
que ele tem a fazer aqui? Pra esse homem chamá-lo de mulherzinha?
NEUSA - Péra aí, mamãe... Isso, honra seja feita... o Mário sempre
tratou o Ney muito bem... nunca se meteu nisso, não... Claro que certa
distância tem que haver né? Naquele dia da briga, eu sou testemunha:
foi o Ney que disse que o Mário não era mais homem do que ele...
IRENE (Cortando, entediada) - Chega Neusa, dessa "conversa de
costureiras"!
NEUSA - Então ele não podia vir quando o Mário não está pelo
menos? Poxa, a Tatiana é afilhada dele!... (Raiva impotente.) Eu
fico!...
IRENE - Que importância tem sobrinhos e afilhados diante do ritual
secreto que todos nós temos que cumprir diariamente? Cada um se
consome feito uma vela diante desse altar e só mesmo quando
nenhum vento ameaça a chama é que a gente se lembra do resto...
NEUSA - Eu acho que eles deviam ter mais consideração, pelo menos
comigo... Poxa, eu fico até sem jeito... Tanta gente na família do Mário
pra gente escolher pra padrinho e madrinha... Que é que ele não deve
dizer lá pra dentro dele?
IRENE - Vamos encerrar essa "intriguinha de comadres", sim? Eu
nunca gostei de brincar disso nem quando era menina... As famílias
são espécies em extinção, e um dia hão de desaparecer da terra como
os dinossauros... Pelo menos, esse horroroso tipo de família "Santa
Ceia", com muito amor e traição, de que você e seu marido são portabandeira e mestre-sala...
NEUSA - Você não perde isso, hein, mamãe? Não perde essa
hostilidade com a gente... Eu fico!
IRENE (Impaciente) - Afinal, a que horas chega o "mestre-sala"?
NEUSA - Não precisava correr que ele não avança, nem morde, não...
IRENE - Não, não vou correr, não... Eu quero que ele chegue logo...
quero me defrontar com ele...
NEUSA - Vê lá, hein, mamãe? Vê lá se vai tratar ele com frieza, com
piadinha...
IRENE - E eu lá sou algum "engraxate desdentado"?
NEUSA - Eu sou testemunha: ele sempre fez o que pôde pra te
receber bem, pra se relacionar bem com você... te chamava de
"sogrona", te levantava no colo...
IRENE (Repugnada) - Não me lembra isso...
NEUSA - Você é que foi culpada... sempre fria, agressiva...
IRENE - Ah, Neusa, é inútil: dos três, você é a que menos se parece
comigo...
NEUSA - Você já cansou de me dizer isso... Me disse isso a vida
toda...
IRENE - Os palhaçinhos onde estão?
NEUSA (Meio invocada) - O Bruninho no judô e a Tatiana no balé.
(De vez em quando joga um olhar comprido para as rosas na mão
de Irene, sem coragem de perguntar se são pra ela e se
desiludir.).
IRENE - Vocês formam uma família tão... tão.. (Boca de quem prova
uma papa azeda.).
.
NEUSA - Ah, mamãe, que é que a gente tem de mais? A gente é igual
a todo mundo...
IRENE - É justamente isso que pro meu gosto vocês são demais...
NEUSA - Você devia levantar as mãos pro céu de ter uma filha como
eu, uns netos como o Bruninho e a Tatiana... Não entendo isso.
IRENE (Com sincera tristeza) - Nem eu. Levantar as mãos pro céu,
não digo, que tanta exaltação só admito na primeira mulher que tenha
visto o sol nascer e se pôr... Mas, pelo menos, mais... resignada e até
contente... Ah, todos os adjetivos estão gastos como chicletes
chupados anos seguidos. (Encara Neusa com uma espécie de
vergonha.) pelo menos, menos irritada eu também acho que devia
ficar, sim. Mas não fico.
NEUSA - Agora vê, se quando o Mário chegar, você fica falando essas
coisas...
IRENE - Sabe o que seu marido me lembra?
NEUSA - Até a ele você já disse: um macaco...
IRENE - Não, um cachorro idiota desses que correm pra pegar um
pau, que os moleques atiram cada vez mais longe...
NEUSA - É macaco, é cachorro... Você também!
IRENE - Um cachorro estúpido, com a língua de fora, mas abanando o
rabo, pra continuar correspondendo e escondendo o cansaço.
NEUSA - Agora vê se o Mário entra aí e você fica...
IRENE (Corta, num grito) - Cala a boca, "murrinha"!
NEUSA – Que é isso, mamãe?!
IRENE - "Murrinha", sim... Não tem uma palavra melhor pra definir a
tua falta de perfume... de um cheiro forte - bom ou mal - qualquer...
NEUSA - Eu, hein, agora é comigo, é? Agora vê se quando ele
chegar, você fica provocando ele, vê... Acaba acontecendo uma
desgraça aqui dentro...
IRENE (Olhando em torno, mística) - Eu também sinto isso. Aqui,
principalmente, eu sinto a proximidade de uma desgraça...
NEUSA – Que é que custa? Será que você não pode fazer essa
concessão a mim?
IRENE - Como dizia Montaigne, a gente não pode dizer sempre tudo o
que pensa. Seria tolice. Mas o que se diz, deve ser o que se pensa.
Eu sempre senti uma tristeza aqui nessa sala como a que Montaigne
provavelmente sentia no dia em que decidiu trancar-se na torre do
castelo e começar a escrever. Sempre que eu vinha aqui nos
aniversários, nos almoços, naquelas insuportáveis celebrações em
homenagem à Morte...
NEUSA (Tentando mudar o clima) – Mamãe: sabe que o Bruninho
está nadando muito bem? Noutro dia, o professor dele me chamou pra
elogiar... Quer ver a medalha que ele ganhou? (Indo pegar.).
IRENE (Alto e firme) - Não quero ver medalha nenhuma.
NEUSA - Agora vê se isso é coisa que uma avó diga! A Dona Celeste,
nesse ponto, isso honra seja feita...
IRENE (Cortando, levanta-se pega a bolsa, como se já fosse sair) Acho melhor eu não esperar que o seu cachorro entre por aí com mais
um jornal na boca, esbaforido... Não temos muito tempo. O que eu vim
fazer aqui foi saber qual é o seu grande delírio. Você pode me dizer,
por favor, rapidamente?
NEUSA – Que é isso, mamãe?
IRENE - Qual a idéia que não sai da sua cabeça embaixo disso tudo:
deveres domésticos, ran ran ran, compras de mês, ran ran ran,
deveres conjugais, e que faz com que você suporte tudo isso
diariamente? Qual é o teu grande delírio dourado, Neusa?
NEUSA - Suportar o quê, mamãe? (Dando início a um show de
chavões.) Você pensa que eu vivo como? Nós vivemos muito bem,
graças a Deus... não me falta nada... adoro meus filhos... Nós temos
nossos desentendimentos, mas qual é o casal que não tem? Também
só "mar de rosas", enjoa né? Quem dera a muita mulher a minha vida!
O Mário é muito bom marido... tem gênio, mas eu também tenho, né?
Se tem algum caso por aí e muito bem escondido... Um pai dedicado,
um chefe de família como poucos... É tudo pra casa, pros filhos... O
nosso apartamento vai ficar pronto em maio do ano que vem... Aí
sim... quando as crianças crescerem mais um pouco, aí a gente vai ter
mais liberdade, eu vou arranjar um emprego. (Contraditória.) Aí sim...
IRENE - vai ser tudo como era antes. Está bem. Chega. Mais uma
frase dessas com cantiga de supermercado, eu desfaleço. Eu já sei.
Eu me lembrei de quando você vivia ansiosa pro cachorro trazer um
carro na boca. Agora é o apartamento que pediram pra ele ir buscar...
Coitado... que peso!
NEUSA - Mamãe, não começa com deboche, não sim? Quem dera a
muita gente um apartamento próprio, um teto!
IRENE - Agora é o apartamento em "Pasárgada", onde vocês
finalmente tentarão fazer amizade com o Rei, que há de dar sempre
uma desculpa pra não recebê-los. Eu já entendi. Sempre uma
expectativa de felicidade. Enquanto ela não chega, você manda seu
cachorro ir buscar com a língua de fora uma notícia qualquer, que te
distraia; leva as crianças no colégio, no judô, no balé; espera que elas
cresçam que "aí, sim...", aí sim vocês vão continuar sem fazer tudo
que não têm feito até agora porque elas não deixam... (Mário mete a
chave na porta e entra. Neusa corre para dar-lhe um beijo, como
se com isso tentasse domesticá-lo. Irene prossegue falando,
indiferente. Mário esboça um cumprimento de cabeça, que não é
correspondido.).
NEUSA - Oi... Foi tudo bem? (Mário, "cabreiro", visivelmente
constrangido com a presença da sogra, faz que sim com a
cabeça.).
MÁRIO (Pousando a pasta e o paletó. Parece avaliar as condições
gerais de Irene) - Boa-noite...
IRENE - Você não é mais feliz do que seus irmãos. O que sempre me
irritou no seu marido é que ele parece pensar que você é, que ele te
deu uma felicidade que seus irmãos não souberam alcançar... Você foi
a única privilegiada, porque o encontrou. (Mário, pouco à vontade,
de sobrecenho franzido, arregaça as mangas, afrouxa a gravata e
toma a direção do quarto. Neusa, muito agitada, faz sinais ora
para um e ora para o outro, tenta dizer frases socialmente
adequadas, etc.).
NEUSA - Mamãe veio me fazer essa surpresa hoje... nem avisou... Ela
não está bem? Trouxe essas rosas pra mim. (Quase arrebatando das
mãos da mãe as rosas.).
IRENE (Mantendo as rosas nas mãos) - Desculpe, mas não são pra
você, Neusa. São pra mim mesma. (Sorriso de escárnio de Mário.).
NEUSA (Sem poder dissimular a vergonha e a decepção) - Eu
sei... (Risinho quase histérico.) Então eu não sabia? Você disse
quando entrou, boba... Eu estava brincando. (Mário, parado na
soleira da porta do quarto, é um frio juiz. Quando Irene pressente
que ele vai se retirar, provoca-o num tom mais alto.).
IRENE (Sem se voltar para ele) - Não me viu aqui não?
MÁRIO - Eu disse boa noite...
NEUSA - Disse, sim. (Cordial.) Você fala pra dentro, Mário... Ela não
escutou...
IRENE (À Neusa) - Seu caminho é tão ermo quanto o meu e o deles...
Você está tão desorientada e sozinha quanto nós, na sua charrete,
atrás do seu cocheiro. (Mário lança um olhar de desdém à Neusa e
à Irene e tenta mais uma vez entrar no quarto. Irene, embora de
costas para ele, parece ver o que se passa.) Onde é que você vai,
"cocheiro"?
NEUSA - Mamãe, por favor...
MÁRIO (Juiz debochado) - Foi comigo? Que é que há, hein? Que
negócio é esse de "cocheiro"?
IRENE - Os maridos ou são nossos cocheiros ou são nossos
cavalos... Os namorados que iam com a gente no banco de trás,
nunca mais...
MÁRIO (Progressivamente irritado) – Que é que tá havendo, hein?
NEUSA - Mamãe está brincando, Mário...
IRENE - Diga a seu cocheiro que não houve nada, infelizmente. Ele
está sempre pensando que houve alguma coisa, em alguma parte,
alguma coisa que talvez até o prejudique, e ele não soube. (Sem se
virar para ele.) Ah, que ódio que eu tenho de você, rapaz!
NEUSA - Mamãe, isso é coisa? Você me prometeu!...
MÁRIO (Juiz implacável) - E o que é que está fazendo na minha
casa?
NEUSA - Mário, por favor, sim? Se não procura, reclama; se procura,
dá nisso... Ah, eu não sei mais o que é que eu faço, sabe?
MÁRIO - Ah, eu é que ainda estou errado? No fim, o errado ainda sou
eu! Ela diz que tem ódio de mim, na minha cara... Que é que ela tá
fazendo aqui? Não disse que não queria mais ver a gente?
NEUSA - Vai falar a vida toda nisso? Eu não já expliquei? É que as
crianças...
MÁRIO - Pra cima de mim...?
IRENE - Não acredite mesmo, não... é mentira... Eu não queria ver
vocês, porque vocês me fazem mal...
NEUSA (Ao marido) - Ela é minha mãe, não é? Quando a Dona
Celeste vier aqui me encher os ouvidos com as doenças dela, eu
também vou me trancar no quarto...
MÁRIO - Foi você que andou telefonando, "cheirando", é? Chamou ela
pra quê? Tá precisando de quê? Não tem vergonha não? Parece que
bebeu água de cu lavado...
NEUSA - Água de cu lavado bebeu você...
IRENE (Expressão consternada, passeia pela sala como se
andasse num beco sujo) – Que nível! O que foi que eu vim fazer
aqui, Montaigne?
NEUSA (Confusa, descontrolada) - Mamãe, a senhora também!
Vocês não têm consideração é comigo, sabe? Vocês têm ódio é de
mim... não é um do outro, não... é de mim... Eu fico!
MÁRIO - Ah, vão bancar as "comedoras de gravata" noutras bandas
tá? Já tô com a cabeça quente... converso e tomo cafezinho com
"porre de mijo" o dia todo, tá?
NEUSA (Ao mesmo tempo) - Não vê que ela não pode se aborrecer?
IRENE - Quem disse isso?
NEUSA - Quer que ela tenha uma coisa aqui dentro?
MÁRIO - Eu quero é sossego, tá? (Entra no quarto e bate a porta.).
IRENE - É o que parece que deseja tanto a Nádia também... Eu digo a
ela que é um sonho irrealizável... objeto de muita competição tanta
gente querendo!
NEUSA - Mamãe, ele já parou, não já? Agora vê se você fica quietinha
também, tá?
IRENE - Eu já vou embora. Como dizia Montaigne, "se olho
atentamente para uma pessoa, algo dessa pessoa se imprime em
mim" e eu não quero que nenhum traço de vocês se fixe em mim.
(Indo até a porta do quarto, que abre e fala para dentro.) Adeus,
sim, Mário? Eu só vim saber qual era o sonho da minha filha, mas ela
disse que você realizou todos os sonhos dela, menos um. (Deixa a
soleira. Mário surge sem camisa, com o cinto e alguns botões da
braguilha abertos.).
MÁRIO (À Neusa) – Que é que há? Ficou se queixando, é? Falando
mal de mim às minhas costas? Você deve mais a mim do que a ela, tá
bom? Vai com ela... Pode ir... O que não falta é mulher querendo uma
sopa dessas. (Volta para o quarto.).
NEUSA (Alto, para ser ouvida no quarto, antes mesmo de chegar
lá) - Te devo o quê? Péra aí... Vem cá... Que é que eu te devo? E
quem é que tem sopa aqui? Essa é boa!... Sem empregada há dois
meses... acordando às seis horas da manhã!
MÁRIO (Na porta do quarto) - Mesmo assim, garanto que tem muita
"Ana Maria" por aí que queria o teu lugar. (Irene passeia pela sala
como por um beco imundo.).
NEUSA (Afastada risada de ópera) - Rararará... Ah, meu filho tem
que ser muito desorientada essa "Ana Maria". Se ela souber antes o
que é te aturar! Teu "Jornal dos Sports", de manhã, uma hora,
trancado no banheiro... teus arrotos... tua "sensualidade de sábado"...
rararará.... (Risada de filme de terror.).
IRENE (Quase para si mesma) - Ele também lê aquele jornal cor-derosa, trancado no banheiro? Quer dizer que ele também não superou
a "fase anal". (Sorriso de satisfação.).
MÁRIO (À mulher) - Não está satisfeita?... Vai com ela... Vai pra casa
da piranha ou da bichona... Aí, pode escolher. (Desaparece no
quarto.).
NEUSA (Indo até lá, furiosa) - Respeita a minha mãe! Piranha é a tua
irmã! (Volta.).
IRENE - Aquela moça de quem nós fomos à formatura no Municipal?
(Ar consternado.).
MÁRIO (Surge de cueca na porta do quarto) - Piranha é a puta-quete-pariu!...
NEUSA (Irreconhecível, megera, indo atrás) - Respeita a minha
mãe, nojento! Tu vai ver quando aquela bruxa vier aqui me encher o
saco falando de bronquite, de coluna, sei lá de que doença aquele
diabo não sofre. (Volta para a sala.).
IRENE (Solidária "vizinha") - Sofre de bronquite a mãe dele, é? Tem
que tomar banho frio... evitar poeira...
MÁRIO (Reaparece, enrolado numa toalha) - Se falar mais da minha
mãe, eu te dou uma porrada nos cornos, hein?
IRENE (Com a mão na face, parece assistir a um desastre na rua)
- O que é isso, Montaigne?
MARIO (Virando para ela, abre a toalha) - É isso aqui, ó. (Volta para
o quarto, batendo a porta.).
NEUSA (A caminho do quarto, que não atinge porque a mãe a
impede) - Indecente!... Ordinário!... Covarde!
IRENE - Calma, minha filha. Você está muito excitada... Aquilo não me
assustou, não. O do seu pai era muito maior...
NEUSA - Sem-vergonha!... Agora deu pra isso... Noutro dia, foi na
frente das crianças.
IRENE - Calma, meu bem. Eu já vou embora, e vocês se reconciliam
logo... com um delicioso beijinho, uma carícia bem demorada nas
nádegas e uma pressão nos peitinhos...
NEUSA (Procurando dominar-se e reassumir o papel de anfitriã) A senhora não tomou nem um café... Quer um pêssego com creme?
IRENE - Não é "chantilly", é?
NEUSA - Quer um refresco?... Desculpe mamãe!... Eu fico! (Confusa,
nervosa.).
IRENE - Não quero nada, não, meu bem. (Dirige-se ao quarto e abre
a porta.) Adeus, sim, Mário?... Eu fico satisfeita de ver que você
realizou todos os sonhos da minha filha. Ficou faltando só um... Pena
que parece que era justamente esse o único de que ela fazia
questão... Depois você pergunta a ela que sonho é esse, porque você
entrou e ela não teve tempo de me dizer. (Fecha a porta,
delicadamente.).
NEUSA – Mamãe: quer parar com isso também? Que negócio de
sonho é esse? Falei em sonho nenhum... Que merda mais de sonho
que eu tenho? Só tenho é amolação... Eu sou é uma "fodida"!...
MÁRIO (Surge apenas com a toalha tapando o sexo) - Vai embora
com ela. Tá decidido. Vai aproveitar a carona. Quer que eu chame o
motorista com a "Mercedes" do Pinel pra levar as duas?
(Desaparece.).
NEUSA (Indo atrás) – Que é que há? Pensa que é assim: "vai
embora, cachorro pulguento"? Vai você... Sai você... (Volta para a
sala, tentando dominar-se.).
IRENE (Indo até a porta do quarto) - Você chegou quando ela ia me
dizer. Aliás, é sempre assim: uma campainha estridente soa, uma
estatueta rara ameaça a cair de uma prateleira, um cachorro ameaça
a ganir sempre que alguém está pra entender ou revelar qualquer dos
mais insignificantes segredos da vida. (Deixando a porta.).
MÁRIO (Aparece na porta do quarto, se possível nu) - Cachorro é a
puta-que-te-pariu!... Que é que vocês ainda estão fazendo aí?... (À
Neusa.) Anda, vai com ela... Vai ajudar aquela bicha a bordar
fantasia... Vai ajudar a segurar o manto da "Imperatriz"!
NEUSA (Risada de ópera) - Rararará... Ah, meu filho, se procurar
bem na tua família tem veado também... Tá com a memória fraca,
"neném" (Feito Kojak.). E o Antônio Carlos? Que é que ele é? Bicha
de bigode, mas é!
IRENE (Ar consternado) - Aquele rapaz de quem nós fomos à
formatura no Municipal? (Como se recorda da pessoa-objeto de
uma notícia de morte.).
NEUSA (Para o quarto, cuja porta está fechada) - Vocês não podem
falar do meu irmão, nem da minha irmã, não. (Confusa, nervosa,
embaralhando ditados populares.) Quem tem rabo de palha, não
joga pedra... (Desiste com um muxoxo.).
IRENE (Dirige-se a porta do quarto, bate suavemente) - Até
loguinho, sim, Mário? Só quero que você escute mais uma coisa...
Está ouvindo? É em defesa dos meus filhos que eu vou falar, e eles
não pediram isso e talvez até nem gostassem que eu fizesse isso...
(Batendo na porta - com as mãos espalmadas - cada vez mais
forte.).
NEUSA - Mamãe, por favor... Vai embora de uma vez, vai... Vocês me
odeiam, é? Deixa ele... Deixa ele em paz... enrolando pentelho...
Deixa esse nojento aí arreganhado...
IRENE (Ainda meio contida, mas num tom bem alto) - Sua opinião
pra mim é sempre uma calúnia, mesmo sendo verdade, entendeu? Eu
amo os dois: a piranha e o veado... muito... tanto... Amo ainda mais
quando você despreza...
NEUSA - Mamãe, ela já parou, não já? Fica quieta também.
IRENE (Progressivamente descontrolada, até virar um
irreconhecível demônio) - Escutou desgraçado, homem médio,
normal e opaco? Eu passo a achar certo tudo o que você acha
errado... Eu amo a piranha e o veado muito mais do que a vocês,
incluindo Tatianas e Bruninhos... O meu amor os compreende e
justifica.
NEUSA - Pára com isso, mamãe! Que é que você quer mais?
IRENE - De modo que é pra eles que eu torço em qualquer
competição... e, principalmente nessa de felicidade...
NEUSA - Bobagens são essas que você está dizendo, mamãe? Que
raiva é essa que você tem de mim? ("Pobre-diaba".) Que é que eu fiz
a você?
IRENE - Tira as mãos de mim, desgraçada dona-de-casa que cheira a
gordura e a remédio pra matar barata!... Sai!... Sai!...
NEUSA (Explosão insensata de frustrações e ressentimentos) Vocês querem o quê? Acabar comigo? Querem me ver em cima de
uma cama... É isso que vocês querem...
IRENE - Sai!... Pobre-diabo do ombro caído e do beijo e do amor com
gosto de água... (Soca e chuta a porta.).
NEUSA - Vocês querem me ver debaixo da terra... de bruços, com a
bunda pro alto, dentro do caixão... Vão me enterrar antes de morta... É
isso que vocês querem...
IRENE - Eu vou ficar aguardando daqui pra frente qualquer má notícia
em que você esteja envolvido.
NEUSA - Então você não podia ter me dado aquela merda daquelas
rosas? Vai levar pra quem? Pra Nádia?
IRENE - Alguém algum dia vai me contar que a tua charrete bateu na
árvore, que você não viu - cocheiro bêbado - de tão escura que estava
a noite, bem na porta de casa...
NEUSA - Vem sentar, mamãe... Pára com isso... Pára!
IRENE - Vai ver essa motivação da minha vida: querer mal a quem me
desprezar, a quem zombar de mim e dos meus filhos.
NEUSA - E eu não sou sua filha também? (Irene soca e chuta
violentamente a porta.).
NEUSA - Vem, mamãe... Não faz assim, não... Ah, meu Deus!... Vem.
(Mário abre a porta, empurra Neusa e Irene e dirige-se ao telefone.
Neusa não sabe se tenta acalmar a mãe ou se corre atrás do
marido.).
IRENE (Confusa, fatigada) – É. Você é minha filha também... Você
não é má pessoa... Você é tão boazinha... Você é minha filha
também...
MÁRIO (Simultaneamente, ao telefone) - É da Polícia? Um doente
mental invadiu a minha casa... É... Manda alguém aqui depressa...
Rua Gomes Carneiro, 411, ap.901...
NEUSA – Que é que cê tá fazendo, Mário? Polícia? Tá maluco? Larga
isso... (Mário empurra Neusa e volta para o quarto. Irene circula
pela sala, com o olhar esgazeado, expressão terrivelmente
angustiada, apertando as rosas contra o peito. Neusa vai atrás do
marido.).
IRENE - Como dizia Montaigne... Montaigne dizia o quê? Que preferia
pão sem sal, que sentia comichões nas orelhas... Não, mas essas
tolices foram só num capítulo... Ele dizia: "O governo de uma família
não causa menos aborrecimentos do que o de um Estado"...
NEUSA (No quarto, de porta aberta) - Doida varrida é a sua mãe...
Você não podia ter feito isso, não... Pensa que eu vou deixar? Preso
devia ir você e toda a tua laia!...
IRENE - Eu estou tão angustiada! É essa família que vocês formam! É
esse ar de adversários que vocês têm de mim e dos meus filhos...
Cadê minha bolsa? Estou penteada? Como dizia Montaigne...
Montaigne dizia o quê? Eu não me sinto bem aqui...mas já estou
melhor... Nunca tinha visto essa casa assim. (Ajeitando-se diante de
um espelhinho, repassando a base branca no rosto, depois o
rouge.) Parecia sempre que eu estava num parque de diversões, e
Nádia e Ney em casa, de camisola, abraçados, chorando num
engradado, pensando que eu fui embora... (Com expressão
satisfeita.) Essa casa era mais iluminada. (As vozes exaltadas de
Neusa e Mário são quase simultâneas ao monólogo de Irene, na
sala.).
MÁRIO - Vai deixar, sim... Se não quiser, vai junto... Vai pro diabo que
te carregue! Ô "cheiro de bife"!
NEUSA - Tá pensando que eu não vou mesmo? Eu vou sim. (Volta à
sala.) Mamãe, vai depressa... Você não disse que já ia? É melhor...
Você quer que eu vá com você?...
IRENE (Olhando Neusa com piedade) - Desculpe minha filha... Você
é boazinha, sim... Ele também não é má pessoa... mas não sei o que
é... Você é tão boa filha... não sei o que é... Talvez falta de afinidade...
(Passa a mão no rosto da filha.).
NEUSA - Eu não tenho medo, não... Ele que se dane... Eu te levo em
casa... Vamos...
IRENE - Você é tão corriqueira! Não tem o carisma de Dulcina... nem
o glamour de Tônia Carrero... nem as visões e êxtases de Teresa de
Ávila...
NEUSA (Em tom bem alto, embora hesitante, para ser ouvida no
quarto) - Eu vou com você, mamãe...
IRENE (Prossegue acariciando a filha) - Você não tem a vitalidade
de Luísa Barreto Leite... nem uma voz bonita como a de Iara Salles!
Eu a vi estreando, mocinha, em "Leonor de Mendonça"... Esther Leão
dirigiu... Outra grande personalidade! Pois é, você não tem nada
desses vasos de porcelana, meu amor... De modo que falta
admiração, falta orgulho... e agora, que nos tornamos definitivamente
adversários... você me perdoa?...
NEUSA - Não perdôo, não, mamãe... Eu fui muito melhor filha pra
você do que eles... Nunca te dei um desgosto...
IRENE - Seus irmãos, pelo menos, têm certa rebeldia... alguma coisa
de Oswald e Mário de Andrade, de Anita Malfatti...
NEUSA - Eu nunca te dei motivo de queixa... nem preocupação...
Nunca nem fui malcriada como a Nádia... Quando acaba... você
sempre me tratou "a pão e água"...
IRENE - Não diga isso, minha filha. Eu sempre comprei três pães
doces, três chocolates, três bonequinhos. Nunca fiz distinção. Foi
depois. Foi mais tarde. Eu lhe daria essas rosas com prazer, se
pudesse... mas não posso... A mim, também, há quanto tempo não
dou nada... (Mário surge na sala. Vai até a janela, impaciente; volta
para o quarto. Neusa o segue. Recomeça calorosa discussão
quase simultânea ao monólogo de Irene na sala.) Como dizia
Montaigne, "deparamos em qualquer homem com o Homem". Não
pude realizar o sonho de nenhum dos meus filhos, e, portanto, não
pude realizar o meu... (Muito angustiada.) Como diria Montaigne...
não, acho que sobre os sonhos dos homens, Montaigne não arriscou
qualquer palpite... Montaigne não disse nada sobre tanta coisa...
NEUSA - Deixa ela vir aqui pra você ver só... Chamo o Corpo de
Bombeiros... O Jardim Zoológico...
MÁRIO - Chama, sim... E eu chamo o Pinel pra você, ô "feijão com
arroz"... ô "batata frita"!...
NEUSA - E já está decidido: nem o Bruninho, nem a Tatiana pisam
mais lá...
MÁRIO - Eles vão lá quantas vezes eu quiser...
IRENE - Ela disse que tinha certeza, aquela enfermeira... que eu fosse
num centro, que eles iam me dizer quem era, que nome e que história
teve o infeliz que me bate assim, até que eu fale por ele, até que eu
descubra porque ele não foi feliz... (Interrompe-se, às vezes, para
prestar atenção aos sons que vêm do quarto.).
NEUSA - E já está decidido: aqui também aquela cascavel não pisa
mais... Pode contar que essa desfeita que você fez à minha mãe vai
ter troco... não vai ficar assim, não...
MÁRIO - Se você disser mais uma palavra, ô "café com leite", eu "te
entorno", tá entendendo?
IRENE (Em tom baixo) - Até loguinho, sim, Neusa e Mário? Juntando
com vocês eu ia-me sentir comendo a carne da Nádia e do Ney...
como o banquete de Tiestes... (Indo até a janela.).
NEUSA (Aos prantos) - Eu vou embora... Vou embora, sim...
MÁRIO – Que é que tá esperando, ô "goiabada"?
IRENE - Vocês me lembram a tirania do Eterno, o arbítrio do Imutável,
do que será sempre, independentemente das revoluções e das
semanas de arte moderna... A odiosa ordem de todas as coisas que
faz com que o mundo pareça um grande reformatório, e as pessoas
dormindo, apenas automóveis estacionados.
NEUSA - Pensa que eu não tenho coragem? Vou com meus filhos...
Você nunca mais bota os olhos na gente...
MÁRIO (Ameaçador) - Ah, isso veremos! Com quem eles vão ficar,
veremos na justiça...
IRENE - Eu não tenho nada, não. Eu sou o "cavalo" de um rebelde
que foi baleado enquanto discursava num coreto ou numa mesa de
jantar. (Fecha a janela e cerra a cortina, tornando a cena mais
escura.).
NEUSA - Todo mundo sabe que os filhos ficam com a mãe... Eu sou
uma mulher honesta, não sou nenhuma "adúltera"...
MÁRIO - Mas eu também tenho muita coisa pra alegar a meu favor...
Você não tem como se sustentar, que fará com as duas crianças?
Ainda por cima com uma família bagunçada como a tua, han?...É
comigo que eles vão ficar...
IRENE (Com uma expressão serena, satisfeita, "saboreando" a
discussão e contemplando a sala escura) - Essa casa era mais
luminosa... Estou mais acostumada aos trechos ermos... Agora estou
bem...
NEUSA - Eu posso trabalhar... posso muito bem sustentar a eles e a
mim...
MÁRIO (Risada cruel) – Que é que tu sabes fazer além de fritar ovo?
IRENE - Eu não tenho nada de grave. Apenas uma angústia que me
morde o coração, mas também a barriga e a planta dos pés, de modo
que eu sinto, ao mesmo tempo, dor e cócegas. (Sorri. Do quarto,
vem a voz de Neusa, mais magoada do que enfurecida, e de
Mário, ainda enérgico, mas já traindo certo arrependimento.).
NEUSA - Por que você está fazendo isso comigo, Mário? Que é que
eu te fiz? Eu sempre fui tão boa pra você... Só vivo pra você e pras
crianças...
MÁRIO - Claro! É até um favor que a gente te faz... Pra quem você ia
viver? Pra quê?
NEUSA - Isso eu não vou esquecer nunca... Você nunca me falou
assim... Essa eu vou guardar pro resto da vida...
MÁRIO - Eu também vou guardar muita coisa... além das que já tenho
guardada... Quem é que você conhece melhor pai do que eu? Melhor
marido? E o que é que adianta? Ninguém reconhece porra nenhuma.
NEUSA - Eu reconheço... Eu reconheço, sim... Falo bem de você com
todo mundo... pergunta a quem você quiser...
MÁRIO - Fala nada... deve viver é me metendo o malho.
NEUSA - Eu adoro você, Mário... Não faz isso comigo, não. (O rosto
de Irene começa a se fechar, como se o início de reconciliação do
casal a desapontasse.).
MÁRIO - Adora nada. (Já num tom eroticamente magoado.).
NEUSA - Adoro, sim... Você é a pessoa que eu mais adoro no
mundo... Vocês são tudo que eu tenho... Que é que eu vou fazer por
aí sem você, sem as crianças? Não me manda embora, não. (O rosto
de Irene revela uma angústia violenta. Começa a desarrumar a
sala, mas faz isso como uma diligente dona-de-casa faria o
oposto: espalha pelo chão as almofadas do sofá, tira o telefone
do gancho, coloca os móveis enviesados, etc. Depois, espalha as
pétalas das três rosas por todo o cenário, enquanto fala. Ouve-se
uma sirene de carro policial, progressivamente próxima.).
IRENE (Agitada) - O que é que eu ainda estou fazendo aqui? Tenho
que fazer os sanduíches da Nádia... tinha que... (Dirigindo-se rápida,
à porta de entrada.) Eu sei que tenho que me apressar, mas não me
lembro direito por que. (Quando abre a porta, entram dois policiais.
A eles, tensa.) Depressa... No quarto... antes que ele violente e
esgane a minha filha. (Enquanto os homens se dirigem ao lugar
indicado, Irene sai rápida, pela porta da frente.)