001-008-introd ANPUR v10_n1

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001-008-introd ANPUR v10_n1
REVISTA BRASILEIRA DE
ESTUDOS
URBANOS
publicação da associação nacional de pós-graduação
e pesquisa em planejamento urbano e regional
E REGIONAIS
ISSN 1517-4115
REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS
Publicação semestral da ANPUR
Volume 10, número 1, maio de 2008
EDITOR RESPONSÁVEL
Geraldo Magela Costa (UFMG)
EDITORA ASSISTENTE
Jupira Gomes de Mendonça (UFMG)
COMISSÃO EDITORIAL
Ana Fernandes (UFBA), Carlos Antônio Brandão (Unicamp), Lilian Fessler Vaz (UFRJ), Luciana Corrêa do Lago (UFRJ)
CONSELHO EDITORIAL
Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ), Ângela Lúcia de Araújo Ferreira (UFRN), Brasilmar Ferreira Nunes (UnB),
Carlos Antonio Brandão (Unicamp), Ermínia Maricato (USP), Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG),
Henri Acselrad (UFRJ), João Rovati (UFRS), Lia Osorio Machado (UFRJ), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC),
Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBA), Margareth Pereira (UFRJ), Maria Cristina da Silva Leme (USP), Nadia Somekh
(Mackenzie), Norma Lacerda Gonçalves (UFPE), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Ricardo Cesar Pereira Lira (UERJ),
Roberto Monte-Mór (UFMG), Rosa Acevedo (UFPA), Sandra Lencioni (USP), Sarah Feldman (USP), Wrana Maria Panizzi (UFRS)
COLABORADORES
Alisson Barbieri (UFMG), Allaoua Saadi (UFMG), Ana Fernandes (UFBA), Ana Lúcia Brito (UFRJ),
Ester Limonad (UFF), Eduardo Mário Mendiondo (USP São Carlos), Felipe Nunes Coelho Magalhães (UFMG),
Jan Bitoun (UFPE), Marília Steinberger (UnB), Mônica Arroyo (USP), Ricardo Farret (UnB), Orlando Júnior (UFRJ),
Ricardo Machado Ruiz (UFMG), Rosa Moura (IPARDES), Virgínia Pontual (UFPE)
PROJETO GRÁFICO
João Baptista da Costa Aguiar
CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO
Ana Basaglia
REVISÃO
Ana Paula Gomes
IMPRESSÃO CTP
Assahi Gráfica e Editora
Indexada na Library of Congress (EUA)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.10, n.1,
2008. – Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor
responsável Geraldo Magela Costa : A Associação, 2008.
v.
Semestral.
ISSN 1517-4115
O nº 1 foi publicado em maio de 1999.
1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento
Urbano e Regional). II. Costa, Geraldo Magela
711.4(05) CDU (2.Ed.)
711.405 CDD (21.Ed.)
UFBA
BC-2001-098
REVISTA BRASILEIRA DE
ESTUDOS
URBANOS
publicação da associação nacional de pós-graduação
e pesquisa em planejamento urbano e regional
E REGIONAIS
S
U
M
ARTIGOS
Á
R
I
O
9 A G LOBALIZAÇÃO L IBERAL E A E SCALA U RBANA
– P ERSPECTIVAS L ATINO - AMERICANAS – Peter
Charles Brand
87 O S PARADIGMAS DA M ODERNIZAÇÃO DO E S TADO DO C EARÁ E O P ROCESSO DE C ONSTRUÇÃO
DA B ARRAGEM DO C ASTANHÃO – Francisca Silvania de Sousa Monte
29
P LANEJAMENTO : DO E CONOMICISMO
M ODERNO À D IALÉTICA S OCIOESPACIAL – Lucas
Linhares
105 C ULTURAS DA J UVENTUDE E A M EDIAÇÃO
DA E XCLUSÃO /I NCLUSÃO R ACIAL E U RBANA NO
B RASIL E NA Á FRICA DO S UL – Edgar Pieterse
49 T EMPOS , I DÉIAS E L UGARES – O E NSINO DO
P LANEJAMENTO U RBANO E R EGIONAL NO B RASIL
– Rosélia Périssé da Silva Piquet e Ana Clara Torres
Ribeiro
RESENHAS
127 Pelo espaço: uma nova política da espacialidade,
de Doreen Massey – por Gislene Santos
61 O S L IMITES P OLÍTICOS DE UMA R EFORMA I N COMPLETA – A I MPLEMENTAÇÃO DA L EI DOS R E CURSOS H ÍDRICOS NA B ACIA DO PARAÍBA DO S UL
– Antônio A. R. Ioris
129 São Paulo, cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem, de Mariana Fix – por Daniela
Abritta Cota
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ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL
–
ANPUR
GESTÃO 2007-2009
PRESIDENTE
Edna Castro (NAEA/UFPA)
SECRETÁRIO EXECUTIVO
Luiz Aragon (NAEA/UFPA)
SECRETÁRIO ADJUNTO
José Júlio Lima (FAU/UFPA)
DIRETORES
Adauto Lúcio Cardoso (IPPUR/UFRJ)
Leila Dias (CFH/UFSC)
Roberto Monte-Mór (CEDEPLAR/UFMG)
Virgínia Pontual (MDU/UFPE)
CONSELHO FISCAL
Brasilmar Nunes (SOC/UNB)
João Rovati (PROPUR/UFRS)
Renato Anelli (EESC/USP)
Apoio
EDITORIAL
Dois temas relevantes para a área do planejamento urbano e regional são abordados neste número da Revista. O primeiro refere-se às tendências e aos desafios do
planejamento territorial, bem como ao seu ensino, considerando, por um lado, os
processos recentes de globalização e reestruturação espacial e, por outro, os contextos
econômico e político de formações sociais específicas. O segundo tema é o da gestão
das águas, com a avaliação dos limites e das possibilidades da Política Nacional de Recursos Hídricos, de 1997, e uma análise sobre o discurso da elite política cearense no
processo de uso e de controle das águas. Além desses temas, é apresentada uma instigante análise sobre “culturas da juventude e a mediação da exclusão/inclusão racial e
urbana no Brasil e na África do Sul”.
Três artigos são dedicados à reflexão sobre a ampla problemática do planejamento
territorial. No primeiro deles, Peter Brand discute o novo arranjo territorial urbano na
América Latina, tendo como referência o processo de globalização e o surgimento da cidade-região. O artigo examina a cidade latino-americana tendo em conta as rápidas
transformações socioterritoriais recentes e à luz do que o autor denomina re-escalamento, um produto da globalização, com o objetivo de contribuir para a análise do Estado
e o estudo das políticas de desenvolvimento urbano latino-americanas, em diferentes escalas. O caráter elitista das políticas de competitividade e as formas de legitimação dos
governos locais na administração da crise urbana são identificados em estudos de caso
das quatro maiores cidades da Colômbia: Bogotá, Medellín, Cali e Barranquilla.
De natureza essencialmente epistemológica, o artigo de Lucas Linhares apresenta
uma trajetória dos enfoques teóricos das concepções de planejamento. Começando
com as abordagens do planejamento na era moderna, de matriz positivista e economicista, o autor desenvolve um resgate crítico do tema, que passa pelo pensamento dos
chamados neomarxistas dos anos 1970 – para introduzir o que ele considera imprescindível ao entendimento do objeto territorial do planejamento (o conceito de espaço)
– e chegando à visão dialética, lefebvriana em sua essência, sobre a produção social do
espaço. O autor sugere que este procedimento analítico é essencial para que o planejamento de fato leve em conta as contradições do modo de produção capitalista.
O terceiro artigo sobre o tema do planejamento tem como autoras Rosélia Piquet e Ana Clara Torres Ribeiro. Trata-se do resgate da história do planejamento e de
seu ensino, com ênfase em sua relação com as políticas e ideologias de desenvolvimento econômico vigentes no Brasil. A análise resgata de forma sintética as experiências
de políticas econômicas e de planejamento, começando nos anos 1950 e 60, quando
se perseguia a mudança através de ações do Estado. Foi também neste período que os
primeiros cursos sobre planejamento (no domínio público) sugiram na América Latina. No período seguinte, segundo as autoras, assiste-se à institucionalização tanto do
planejamento quanto do seu ensino em universidades no Brasil. O período de redemocratização que se segue faz com que os paradigmas do planejamento e seu ensino
do momento anterior sejam rejeitados e modificados. A ênfase dos cursos desloca-se
do planejamento para os estudos urbanos e regionais. Os desafios postos ao resgate da
idéia de planejamento e de seu ensino compõem as reflexões das autoras nas concluR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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sões do artigo. Atender às demandas regionais e locais de formação profissional, reconhecer e tratar as diferenças sem gerar perdas teóricas e superar generalizações são alguns desses desafios, que requerem o aprofundamento do debate entre especialistas e
atores políticos.
O tema das águas é tratado em dois artigos. No primeiro deles, Antônio Ioris discute os limites e possibilidades das reformas institucionais, especialmente aquelas materializadas na Política Nacional de Recursos Hídricos de 1997. Para avaliar tais limites e possibilidades na primeira década de existência da Política, o autor faz uso de um
estudo de caso sobre a gestão da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (BHRPS), localizada na região sudeste do país. Apesar de analisar um único caso, a riqueza das informações qualitativas obtidas essencialmente por meio de entrevistas com agentes sociais das instâncias participativas no processo de gestão faz com que o estudo apresente
resultados importantes para se pensar a questão da gestão das águas no Brasil. Como
principal conclusão, o estudo de caso permitiu constatar que as reformas institucionais
para o setor de recursos hídricos, em implantação desde fins dos anos 1990, têm sido
marcadas pela afirmação de uma racionalidade tecnoburocrática, a qual vem apenas
produzindo respostas inadequadas aos problemas de gestão das bacias hidrográficas,
com alto nível de conflitos e continuidade da degradação ambiental.
Em seguida, Francisca Silvania de Sousa Monte nos apresenta um estudo baseado em sua tese de doutorado, em que a questão das águas é analisada em outra dimensão: o uso do discurso da “modernidade” pela elite política do Ceará no processo de
uso e de controle das águas. Além de uma exaustiva revisão da legislação sobre a questão, a autora utiliza o estudo de caso da Barragem do Castanhão. Constata que a seca continua servindo ao discurso dos políticos locais, e agora não mais com a ênfase
na chamada “indústria da seca”. Os interesses clientelistas dos “coronéis” deram lugar
às demandas de uma burguesia urbano-industrial “moderna” – que governou o Ceará nas duas últimas décadas – pela implantação de mega-projetos hídricos de suporte
às indústrias e agroindústrias. A autora defende a necessidade de uma adequada gestão dos recursos hídricos no estado, que sempre conviveu com as irregularidades climáticas, ao mesmo tempo em que enfatiza o caráter excludente da “modernização hídrica” analisada.
O último artigo trata de um tema ao mesmo tempo atual e instigante: uma análise sobre “culturas da juventude e a mediação da exclusão/inclusão racial e urbana no
Brasil e na África do Sul”. Pela análise do hip hop e outras manifestações culturais congêneres, Edgar Pieterse mostra como isto tem contribuído para posicionamentos e
ações significativos de resistência entre os jovens negros e pobres na Cidade do Cabo
e no Rio de Janeiro. O artigo ainda contribui metodologicamente para a aproximação
entre a observação empírica de práticas culturais e políticas com temas caros ao meio
acadêmico, como participação, espaço público, cidadania e segurança.
Duas resenhas completam o presente número. A primeira, elaborada por Gislene
Santos, apresenta a publicação traduzida do mais recente livro de Doreen Massey – For
Space – que tem por título Pelo espaço: uma nova política da espacialidade e foi publicado em 2008. A segunda, de Daniela Abritta Cota, é sobre São Paulo, cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem, livro de Mariana Fix publicado em 2007.
GERALDO MAGELA COSTA
Editor responsável
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A RTIGOS
A GLOBALIZAÇÃO LIBERAL
E A ESCALA URBANA
PERSPECTIVAS LATINO-AMERICANAS
PETER CHARLES BRAND
R E S U M O O processo de globalização implicou o ressurgimento da cidade-região como
unidade geográfica chave no desenvolvimento econômico e o nascimento de um novo período de
transformação urbana. A reorganização da economia mundial requereu, ao lado de novas formas de governo local, a reformulação das bases econômicas e também da infra-estrutura, de equipamentos e da própria imagem das cidades. Este processo, que se iniciou nos Estados Unidos e nos
países da Europa Ocidental no começo dos anos 1980, levou uma década ou mais para se fazer
sentir na América Latina. Enquanto as políticas urbanas avançavam neste sentido, a investigação acadêmica e a reflexão teórica, circunscrevendo-se essencialmente às pautas analíticas e interpretativas estabelecidas em contextos radicalmente distintos do sul-americano, permaneceram na
retaguarda, limitadas aos aspectos operacionais da competitividade urbana e marcadas por velhas
preocupações com a consolidação da democracia local. Este trabalho examinaa cidade latinoamericana à luz do debate sobre o “re-escalamento” como produto da globalização, ao mesmo
tempo em que explora a contribuição representada por dito debate para a compreensão das estratégias de desenvolvimento urbano. Neste sentido, analisa-se a experiência de algumas cidades colombianas, com ênfase especial para o tema da relação com o Estado nacional e as questões que
dizem respeito às políticas de planejamento, às práticas de governo urbano e à reconstrução urbanística. Pretende-se também, aqui, contribuir com algumas idéias que sirvam à elaboração de
uma agenda de investigação para a América Latina.
PA
L A V R A S - C H A V E Globalização; “re-escalamento” geográfico; neoliberalismo; desenvolvimento urbano; América Latina.
INTRODUÇÃO
O fenômeno da globalização ocupa uma boa parte do esforço despendido pelas ciências sociais no seu intento de compreender as características e dinâmicas da vida contemporânea. Por sua própria natureza, a globalização tem um interesse especial para a ciência geográfica, e no presente estudo se destaca sua influência para a discussão da questão da escala.
Pode-se argumentar, em linhas gerais, que a globalização está mudando abruptamente a organização escalar herdada da época moderna, construída sobre uma hierarquia de escalas que
se articulava em torno da escala nacional. Este movimento se dá tanto para cima, com os
blocos de livre comércio nos níveis continental e global, como para baixo, no âmbito das regiões, cidades e localidades. A partir deste esquema, tem-se afirmado que o processo de globalização implicou a preeminência da escala supranacional (blocos econômicos, acordos
globais) e o ressurgimento da escala local (regional, urbana), ficando a escala propriamente
nacional relegada a uma posição secundária como locus de poder e princípio de organização
da vida econômica e social. Em outras palavras, a globalização ressalta as escalas tanto global
como local, em um processo de “glocalização” (Swyngedouw, 1997; Borja e Castells, 1998).
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A
1 O termo “re-escalamento”
– tema central do presente
artigo - refere-se à reconfiguração da importância
relativa e das relações funcionais entre direrentes escalas geográficas, a partir
do processo de globalização. Desta forma, entendese que o global não é simplesmente uma nova escala
mundial “superior” que se
soma às relações espaciais
existentes, mas uma escala
que afeta e recoloca o significado e as relações entre
todas as escalas anteriores,
tais como o local, o urbano,
o nacional, os bloco e os impérios.
G L O B A L I Z A Ç Ã O
L I B E R A L
Ora, o debate sobre o “re-escalamento”1 tem avançado principalmente entre geógrafos e outros cientistas sociais europeus e norte-americanos, situados, tanto em um
caso como no outro, nos centros mais dinâmicos desse processo, e cada qual com suas
referências específicas. No caso europeu, a paulatina consolidação da União Européia
implicou a cessão política de amplos poderes nacionais, de tal forma que hoje em dia
a União Européia conta, entre outros, com Parlamento, instituições de governo, moeda e passaporte próprios. Em conseqüência, a escala européia afeta uma enorme gama
de atividades, desde a organização econômica até as práticas da vida cotidiana, a que
se pode acrescentar o próprio contexto institucional e de trabalho dos pesquisadores
acadêmicos. Na América do Norte, não obstante a integração comercial em nível continental, o fenômeno ainda de maior impacto é a hegemonia dos Estados Unidos e o
novo imperialismo impulsionado por sucessivos governos com vistas a um novo “século norte-americano” (Harvey, 2003; Hardt e Negri, 2001). O que neste caso se torna
evidente é, mais propriamente, a subversão da ordem internacional herdada e o surgimento de novas formas de imposição da vontade imperial aos Estados nacionais nas
condições proporcionadas pela globalização. Em ambos os casos, contudo, tanto na
Europa como na América do Norte, as cidades e regiões também emergem com uma
importância renovada.
Tanto na realidade geopolítica como no debate acadêmico, poder-se-ia dizer que a
América Latina ficou um tanto marginalizada no que se refere à questão da escala. Ao longo das duas últimas décadas do século passado, enquanto o desenvolvimento econômico
e o surgimento de novos atores globais apontavam para o Oriente e a Ásia, os países sulamericanos estavam saindo de um período devastador caracterizado por guerras civis, governos militares e estagnação econômica. Os novos regimes democráticos, dos mais variados tipos e, em muitos casos, bastante frágeis politicamente, ficaram à mercê dos ditames
das agências multilaterais do desenvolvimento neoliberal. Em tais condições, a integração
econômica foi difícil e os acordos comerciais entre países evidenciaram-se frágeis e instáveis. Quanto à escala urbana, atribuía-se à cidade, durante uma boa parte desse período
e até certo ponto ainda hoje, um significado mais propriamente político, no sentido de se
constituir mais em espaço chave para a consolidação da democracia participativa do que
como unidade econômica.
Não obstante, juntamente com esta preocupação política com a democracia surgiram inevitavelmente novas estratégias econômicas das cidades, uma vez que os diferentes
países, por caminhos os mais variados, se integraram plenamente à globalização. Um tanto tardiamente as cidades latino-americanas viram-se obrigadas a adotar transformações
que respondessem aos desafios da globalização, mas em condições endógenas muito diferentes das verificadas nas cidades dos países desenvolvidos. Ainda que as estratégias adotadas pelas cidades latino-americanas não tenham recebido a mesma atenção acadêmica
que no caso das cidades européias e norte-americanas, poder-se-ia dizer, grosso modo, que
seguiram o padrão preestabelecido de “competitividade urbana” posto em prática em outras latitudes. O objetivo do presente trabalho é traçar um esboço do debate sobre o “reescalamento” e interrogar sobre a sua pertinência para a compreensão da heterogênea e
mutável situação que caracteriza a América Latina. À luz deste debate serão comentadas
as estratégias adotadas pelas quatro cidades colombianas mais importantes, destacando-se
os temas do papel do Estado nacional, as políticas de planejamento, a “governança” urbana e a reconstrução urbanística.
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P E T E R
C H A R L E S
B R A N D
CONTORNOS DO DEBATE ACADÊMICO SOBRE
A QUESTÃO DA ESCALA
A globalização é um termo que reúne múltiplos conteúdos e que tem sido amplamente utilizado, tanto nas ciências sociais como nos meios de comunicação, com o intuito de
captar e explicar o sentido e a direção de inúmeras dimensões da vida contemporânea. Como observa Brenner (2004), a essência indubitável da globalização é geográfica, no sentido da mundialização dos processos e dinâmicas de mudança econômica, política e social,
tendo como conseqüência a introdução de noções geográficas em muitas áreas das ciências
sociais. O especial interesse deste trabalho consiste na globalização como reformulação da
questão de escala, na medida em que a escala global deixa de ser vista como um fenômeno novo para ser encarada como algo mais amplo, profundo e determinante do que até então o fora, e atentando-se para sua relação com as outras escalas de organização da vida,
tais como as representadas pelo plano nacional e principalmente o urbano.
Ademais, depois de utilizada durante três décadas, tem-se argumentado haver recentemente certo esgotamento ou insuficiência da noção de globalização, com a crescente
adoção, nos estudos urbano-regionais, do conceito de neoliberalismo e do termo “neoliberalização” para se referir à sua concretização em espaços e lugares diferentes. Pretendese entender por neoliberalização não somente as novas interações multiescalares da globalização, mas também as forças que a regem e impulsionam, bem como os efeitos políticos,
organizacionais e individuais nela implicados.
Descrições do neoliberalismo são já suficientemente comuns, tornando desnecessária
sua explanação sistemática neste trabalho. O termo refere-se à ideologia de uma nova etapa
de acumulação capitalista (Moncayo, 2003), baseada na “crença de que os mercados abertos, competitivos e desregulados, livres de toda forma de interferência estatal, constituem o
mecanismo ótimo para o desenvolvimento econômico” (Brenner, 2004), descrito por Bourdieu (1998) como “uma utopia de exploração sem limites”, e por Harvey (2005) como “acumulação por meio da ‘despossessão’”. A noção de neoliberalismo não se limita a processos
puramente econômicos, mas sua concretização se dá através de políticas do Estado e de novas formas de regulação econômica e social. Como observa Sparke (2006: 357):
A lo largo de las ciencias sociales la ‘N’ en mayúsculas del Neoliberalismo se ha convertido en
un paraguas cada vez más omnipresente para denominar las diversas ideologías, políticas y prácticas
asociadas con la liberalización de los mercados y la expansión de las prácticas empresariales y relaciones de poder capitalista en esferas completamente nuevas de la vida social, política y biofísica. Desde
el libre comercio, la privatización y la desregulación financiera a la austeridad fiscal, la reforma del
bienestar y prácticas punitivas de control social (“policing”); a la imposición de ajustes estructurales; a
la expansión de modelos empresariales de identidad y las acciones de las instituciones de innovación
científico, educativa y de entretenimiento; numerosos autores están asignando al neoliberalismo
una increíble diversidad y exigente conjunto de responsabilidades explicativas. Por cierto, se emplea
tan ampliamente hoy día que se lo encuentra aplicado a una gama de fenómenos sociales, políticos y
económicos aún más amplia que en el caso de ‘globalización’ misma (tradução do inglês pelo autor).2
GLOBALIZAÇÃO, ESTADO NACIONAL E “RE-ESCALAMENTO”
Não obstante as múltiplas maneiras de enfocar e entender a globalização, um tema
constante tem sido o significado deste fenômeno para os Estados nacionais, os quais, à
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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2 “Ao longo do desenvolvimento das Ciências Sociais,
o ‘N’ maiúsculo de Neoliberalismo converteu-se numa
espécie de guarda-chuva cada vez mais onipresente
para denominar as diversas
ideologias, políticas e práticas associadas à liberalização dos mercados e à
expansão das práticas empresariais e relacionais de
poder capitalista em esferas
completamente novas da vida social, política e biofísica. Desde o livre comércio,
a privatização e a desregulação financeira até a austeridade fiscal, incluindo a
reforma dos sistemas de
proteção e práticas punitivas de controle social (policing), imposição de ajustes
estruturais, expansão dos
modelos empresariais e as
ações das instituições de
inovação científica, educativa e de entretenimento, numerosos autores têm atribuído ao neoliberalismo
uma incrível diversidade e
um exigente conjunto de
responsabilidades explicativas. Este conceito é hoje
em dia empregado amplamente, sendo aplicado a
uma gama de fenômenos
sociais, políticos e econômicos ainda de forma mais
generalizada do que a
própria ‘globalização’ ”.
A
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primeira vista, se veriam debilitados pela integração global. Com a desintegração dos
grandes blocos geopolíticos e o desmonte das barreiras protecionistas de países individuais, produziu-se uma formidável ampliação e intensificação, através das fronteiras nacionais, dos fluxos de bens, capitais, dinheiro, informação, serviços, produtos culturais e
pessoas. As corporações transnacionais, cujas receitas superam com vantagem até mesmo
o orçamento nacional de países medianamente desenvolvidos, determinam a dinâmica da
economia mundial e impõem seus interesses próprios sobre os governos nacionais. Favorecida pelo desenvolvimento da informática e das comunicações, esta globalização econômica foi promovida por instituições multilaterais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, que constituem novas
instâncias supranacionais de poder econômico, em face das quais têm surgido inúmeras
organizações, redes e foros não-governamentais de caráter também autenticamente global
no que diz respeito aos seus interesses, agendas e atuações.
Sendo cada vez mais difícil o controle de tais fluxos por parte dos governos nacionais, quer se trate de divisas, capitais, informação, rendas, etc., argumenta-se que a dinâmica da globalização implica uma transferência de poder para cima. A estreita circunscrição dos territórios nacionais deixa de atuar como principal unidade político-geográfica e
emergem novas formas transnacionais de governo, constituindo uma espécie de “governança” global exercida por uma ampla variedade de organizações inter e não-governamentais, representativas de uma grande diversidade de interesses (Held e McGrew, 2002).
Quais as conseqüências deste processo para o papel e o significado dos Estados nacionais? Mansfield (2005) observa que a globalização, se a aceitamos como um “fato” passível de mensuração e observação, adquire um status ontológico que a coloca em oposição
ao Estado nacional. Implícita aí está a idéia de que o Estado nacional entra em declínio
na medida em que surgem novos poderes “acima, abaixo e ao lado do Estado”. Contra esta posição, Mansfield defende, frente à questão da escala, uma visão relacional para a qual
os distintos níveis geográficos de poder se produzem mutuamente, sustentando, com respeito à globalização, que o Estado nacional tem atuado menos como espectador passivo
do que como um ator chave e promotor ativo. Juntamente com a reconsideração da escala nacional, esta concepção relacional tem sido um aspecto importante no amadurecimento do debate geográfico sobre a globalização (Boyer e Hollingsworth, 1997; Harvey,
2000; Jessop, 2000), que vale a pena resumir por constituir o marco conceitual imprescindível para uma indagação sobre o papel das cidades e a compreensão de suas estratégias de desenvolvimento. Nesta direção, Brenner propõe (2004: 8-12) as seguintes considerações gerais sobre a questão da escala geográfica:
• As escalas geográficas não são fixas, estáticas nem permanentes, e sim produções da história e dimensões de processos sociais, tais como a produção de capital, a reprodução
social, a regulação estatal e as lutas sócio-políticas.
• A configuração institucional, a função, a história e a dinâmica de uma escala particular (local, urbana, regional, nacional, global) tem sentido unicamente em função de
suas relações verticais e horizontais com as outras escalas.
• A organização escalar é um mosaico de hierarquias sobrepostas e mutuamente imbricadas, uma vez que cada processo social tem sua própria geografia, que impossibilita a
configuração de uma só pirâmide coerente capaz de englobar todas.
• Portanto, toda e qualquer configuração escalar não pode ser mais do que uma “fixação
temporal”, uma conveniência provisoriamente circunscrita pelas atividades políticas,
econômicas e culturais.
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• As transformações escalares não ocorrem mediante a substituição de um esquema
“ideal” por outro igualmente ajustado às novas circunstâncias históricas, mas esta
transformação é sempre experimental e condicionada por ajustes escalares herdados, isto é, pela “dependência do caminho” (path dependency).
O que está dito acima permite compreender a diversificação e complexidade crescente da questão de escala como resultado da globalização enquanto fenômeno contingente e gerador de conflitos. É fora de dúvida que a globalização trouxe consigo a desestabilização das sólidas escalas hierárquicas estabelecidas na época do pós-guerra, na
medida em que favoreceu a emergência de um sistema mais policêntrico, multiescalar e
polimórfico. Ademais, este processo acarretou não somente a redistribuição de funções estatais entre escalas, mas também a transformação qualitativa destas funções em diferentes
escalas no que se refere, por exemplo, ao desenvolvimento econômico e ao bem-estar social (Peck, 2002, citado por Brenner, 2004). Nesta perspectiva, a concepção relacional de
escala serve não apenas para ressaltar a importância da reconfiguração da relação entre o
Estado nacional e a cidade, reconfiguração esta que não necessariamente se circunscreve
a um reordenamento territorial formal, mas também às múltiplas interseções e dependências (incluídas as escalas supranacionais) que condicionam qualquer conjunto de iniciativas empreendidas pelas próprias cidades.
Na versão ortodoxa da globalização, por outro lado, argumenta-se com uma lógica
implacável e peremptória que é indispensável continuar racionalmente mediante a adoção de políticas congruentes. A estratégia argumentativa segundo a qual “só pode haver
um caminho” busca minimizar os conflitos de interesse resultantes da globalização. No
entanto, a lógica espacial abstrata da acumulação capitalista global entra em choque com
as racionalidades concretas das regiões e lugares, e com a história, tradições e configurações de poder em cada cidade-região ou localidade particular. Em conseqüência, a globalização produz conflitos entre os níveis escalares e no interior de cada um deles, isto é, entre interesses nacionais, regionais, urbanos e locais, bem como entre facções econômicas,
políticas e sociais em cada nível.
Pode-se dizer que uma boa parte da investigação sobre temas urbanos na América Latina se volta implicitamente para estes conflitos e contradições, tão evidentes nas cidades e
regiões de um extremo a outro do continente, freqüentemente em oposição aberta à globalização tal como se está desenvolvendo, posicionando-se também criticamente diante das
limitações das políticas de desenvolvimento territorial derivadas da globalização neoliberal.
O RESSURGIMENTO DA CIDADE-REGIÃO
O ressurgimento da escala urbano-regional constitui um dos aspectos mais visíveis
do processo de globalização. Nas duas últimas décadas, as grandes cidades, cuja importância econômica e cultural em nada diminuiu ao longo desse período, foram palco de
uma transformação arquitetônica e exerceram um papel tão preponderante na vida política e social, que pareciam “se independizar” de seus contextos nacionais. Também na
América Latina já nos acostumamos aos macro-projetos urbanos, o melhoramento de infra-estruturas, a renovação dos setores históricos, a criação de centros de negócios internacionais, a promoção do turismo, além da especulação com o espaço urbano e do “protagonismo” dos prefeitos. Embora as cidades latino-americanas apareçam com pouca
freqüência nas listas de “cidades globais”, elas são amplamente mencionadas em listas secundárias representativamente importantes.
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O alto perfil da cidade-região, do ponto de vista tanto arquitetônico e mediático como político, econômico e cultural, contribui para reforçar a visão da cidade como unidade territorial desvinculada de seu contexto nacional e movida diretamente pelas dinâmicas próprias da globalização. No entanto, as prematuras interpretações acadêmicas deste
tipo foram objeto de questionamento e revisão. Em seus trabalhos mais recentes, a mesma Sassen (2001, 2003), pioneira, nos anos 1990, da noção de cidades globais como centros de articulação no contexto da nova economia global, ressalta o papel exercido pelos
Estados nacionais como facilitadores da articulação da cidade com os circuitos globais.
Com seu interesse pela nova “arquitetura organizacional” dos articuladores empresariais
da globalização e a multiplicação dos circuitos globais especializados, como também pela
criação de novas interseções e oportunidades de articulação das cidades, a expansão hierárquica “lateral” e a diversificação das redes interurbanas, Saskia Sassen continua contribuindo de forma valiosa para a compreensão do papel e funcionamento das cidades, objeto de uma renovada preocupação de outros pesquisadores, mais diretamente voltados
para a dimensão política da escala, que nos interessa neste artigo.
O tema das implicações políticas da multiplicação e diversificação dos circuitos globais foi descrito em termos de uma “nova economia política da escala” (Jessop, 1999,
2004). Aqui se ressalta a produção e as relações entre escalas não só em termos de uma
nova geografia econômica, mas também no que diz respeito à regulação estatal, à reprodução social e às lutas sócio-políticas. Como já visto, a globalização não ocorre de forma
homogênea em um plano vazio, mas em interação com territórios historicamente constituídos, o que põe em jogo diversas forças políticas e sociais. Jessop (2004) argumenta que
as complexas dinâmicas do “re-escalamento” implicam não só a identificação de novas
oportunidades econômicas e novos atores, mas também a defesa dos interesses existentes
em face dos efeitos freqüentemente desagregadores da globalização. Neste processo essencialmente gerador de conflitos, Jessop (2004: 28) observa que “o jogo competitivo sempre
produz, comparativamente, perdedores e ganhadores”, tanto no nível inter-regional como
no interior de cada região.
Na mesma ordem de idéias, Brenner (2003) opina que a cidade-região, mais do que
simplesmente uma dinamizada unidade territorial, converteu-se em um espaço institucional chave no processo de reestruturação do poder do Estado nacional. Brenner recusa-se
a encarar a cidade-região como uma unidade relativamente autônoma dentro do território nacional e descarta, portanto, uma explicação do ressurgimento das cidades que tenha
em conta unicamente a globalização da economia. Argumenta que o Estado nacional continua exercendo um papel fundamental na formulação, implementação, coordenação e
direcionamento da política urbana, dando-se assim uma espécie de descentramento do poder nacional. Segundo Brenner (2003:7): “De acordo com este ponto de vista, não está
havendo erosão do poder do Estado nacional, mas sim uma re-articulação deste poder
tanto com as escalas subnacionais como supranacionais”.
Os trabalhos tanto de Brenner como de Jessop se situam na escola do “desenvolvimento geográfico desigual”, que se inspira no materialismo histórico-geográfico de Harvey (1985) e Smith (1984), e nas análises espaciais do processo de acumulação capitalista pós-fordista. O postulado básico consiste na necessidade de entender a produção
diferencial do espaço, bem como a transformação dos locais de sua regulação, que ao
mesmo tempo se constitui por é constitutiva de processos econômicos e políticos (Harvey, 1996: 6). O “re-escalamento” contemporâneo, portanto, pode ser entendido simultaneamente como resposta e resultado da reorganização do capital em escala global, com
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todos os conflitos e incoerências que este processo implica ao se superpor em territórios
e lugares herdados.
No caso da América Latina, o baixo nível de industrialização e as características próprias do processo de urbanização inibiram a homogeneização territorial significativa derivada da política keynesiana de acumulação, fato que também dissimula a produção de novas diferenças geográficas sob a lógica neoliberal. Talvez por esta razão, os estudos
geográficos se preocuparam mais com os novos padrões de organização e distribuição do
aparelho produtivo em si, tratando as diferenças geográficas como algo dado ou pano de
fundo. Em todo caso, depois do longo período marcado pela política de substituição de
importações, as conseqüências da globalização para o desempenho das economias urbanoregionais têm sido um tema importante nos estudos da nova geografia econômica da América Latina. As preocupações dos estudiosos têm privilegiado a análise da composição e distribuição nacional das atividades econômicas (por exemplo, Cuervo, 2003; Lotero, 2005;
Cao e Vaca, 2006) e a indagação das possibilidades da agenda neoliberal com base no desenvolvimento de uma plataforma competitiva local através da inovação, a aprendizagem,
o desenvolvimento tecnológico, as instituições e a “governança” econômica (ver, por exemplo, Helmsing, 2002; Méndez, 2002; Boisier, 2004; Sobrino, 2005; Dabat, 2006).
Em tais circunstâncias, as políticas nacionais de desenvolvimento territorial tendem
a dar prioridade àquelas cidades e regiões que apresentam maiores vantagens e melhores
possibilidades de êxito para o investimento público. Também podem promover ativamente a criação de condições de competitividade em zonas menos desenvolvidas com potencial em setores específicos como serviços e turismo, estimular diretamente a conectividade
entre regiões e com o exterior, e implementar reformas na organização político-administrativa do Estado. No entanto, a estratégia mais generalizada é aquela que induz ou obriga as cidades-região a adotar suas próprias estratégias de competitividade, por limitadas
que sejam, mediante o melhoramento de fatores básicos como a infra-estrutura, a educação, a capacitação da força de trabalho, a promoção de atitudes e iniciativas empresariais
etc., juntamente com incentivos e oportunidades para a atuação do setor privado por
meio de subsídios, isenção de impostos e privatizações.
Esta re-atribuição de funções nacionais às cidades-região constitui um deslocamento geográfico das responsabilidades políticas. A globalização neoliberal conduziu à desterritorialização da propriedade e do controle do aparelho produtivo, infra-estrutura e serviços públicos, à concentração da renda e da riqueza, ao descumprimento crônico das
promessas de elevação geral da qualidade de vida e à crescente desigualdade espacial e aumento das tensões sociais. Persistem, portanto, fortes contradições entre a reestruturação
do espaço urbano em função do capital e os seus efeitos distributivos negativos. Isto vem
a ser um desafio agudo para os governos locais, descrito por Brenner (2004) em termos
da necessidade de empreender uma estratégia permanente de “administração de crises”,
tipicamente voltada para problemas de pobreza extrema e exclusão, e implicando partnerships, isto é, parcerias e novas acomodações entre o Estado, o setor privado e organizações
da sociedade civil, para compensar o desmonte das instituições e programas de assistência do Estado do bem-estar.
A avaliação geral precedente refere-se especialmente à Europa e América do Norte,
cabendo fazer, com relação à América Latina, duas observações importantes. Em primeiro lugar, a reorganização territorial do Estado nacional, no caso latino-americano, ocorreu tipicamente antes do pleno impacto da globalização. Reorganizações importantes se
deram em resposta ao processo de rápido crescimento urbano dos anos 1960 e 70, e duR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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rante ou imediatamente após os regimes militares e conflitos armados dos anos 1980. Este fato, juntamente com o baixo nível de integração econômica e política dos países latino-americanos no período que se seguiu, inibiu a formulação e implementação de reformas na organização político-administrativa do Estado nacional que respondessem à
dinâmica específica da globalização.
Em segundo lugar, a noção da “administração de crises” adquire um sentido particular nas cidades latino-americanas. Enquanto as crises que tiveram lugar nas cidades européias e norte-americanas surgiram logo após um período de crescimento estável, altos
níveis de emprego, redução das desigualdades sociais e um aparelho público de bem-estar
mais ou menos sólido para amortecer seus piores efeitos, na América Latina as crises urbanas neoliberais produziram-se em circunstâncias de reduzido desenvolvimento industrial, altos níveis de desigualdade preexistentes, sistemas de seguridade social de baixa cobertura e com vastos setores da população urbana sobrevivendo na informalidade. Em
outras palavras, somavam-se novas crises às já acumuladas, agravadas ocasionalmente pelos preocupantes níveis de violência e a presença de economias ilegais e organizações políticas paraestatais.
O NEOLIBERALISMO: A GLOBALIZAÇÃO CAPITALISTA COMO PROJETO DE CLASSE DAS ELITES
É precisamente a dimensão sócio-política da globalização e suas práticas de regulação
em diferentes escalas geográficas que levaram à crescente utilização do conceito de neoliberalismo, ou melhor, neoliberalizações (Castree, 2006) para a compreensão das especificidades espaciais e territoriais da globalização. A este respeito, um detalhe não menos significante é o fato de que a globalização constitui uma vitória do capitalismo. Durante a maior
parte do século passado e até meados dos anos 1980, era perfeitamente admissível postular uma globalização socialista. Mas enquanto os aparelhos burocráticos do bloco soviético
iam-se derruindo na própria crise, comparável à crise de acumulação do modelo fordista
do regime capitalista, este último encontrou uma saída que, ao mesmo tempo, promoveu
a globalização e dela ficou dependente. Esta solução consistiu no crescimento baseado na
superação das fronteiras políticas, barreiras econômicas e obstáculos culturais em escala
mundial. Ou seja, nascia o projeto neoliberal, entendido como ideologia, estratégia política e tecnologia de governo para facilitar a expansão do mercado e da empresa privada.
Muitas análises do neoliberalismo têm enfatizado seu caráter de política econômica,
contribuindo, com isto, para dissimular seu caráter histórico e classista. Embora se tenha
reconhecido a importância de novas práticas de re-regulação estatal em múltiplos aspectos da vida econômica e social (Brenner e Theodore, 2002), bem como as amplas evidências empíricas dos custos sociais e ambientais, o neoliberalismo se apresenta com certa facilidade como uma evolução natural do capitalismo como modo de produção, na qual a
produção de desigualdades sociais e diferenças geográficas é considerada uma dificuldade
acidental e transitória.
Em contrapartida, Harvey (2005), por exemplo, argumenta que o longo processo de
neoliberalização foi um projeto para restaurar o poder político e econômico das elites e
das classes dominantes, ameaçado pela crise de acumulação dos anos 1970. O projeto
neoliberal, sustenta Harvey, deve ser entendido não simplesmente como um “projeto utópico para a realização de uma perspectiva teórica de reorganização do capitalismo internacional” que, hipoteticamente, beneficiaria a todo o mundo com o crescimento econômico. Ele deve ser visto, ao contrário, como um projeto destinado a restabelecer e
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concentrar o poder econômico e político cedido pelas elites no período do Estado keynesiano do bem-estar e que, em razão da crise de acumulação, se achava em situação de extremo perigo. Os efeitos reais do neoliberalismo em termos de concentração de renda e
agravamento das desigualdades sociais são amplamente reconhecidos, mas tendem a receber menos atenção nas análises políticas sobre a cidade.
No plano urbano, numerosos estudos têm sido dedicados à descrição da espacialização deste fenômeno. A concentração de renda nos setores econômicos e sociais articulados com a globalização resultou em agravamento das disparidades no mercado do solo,
fragmentação urbana, segregação socioespacial, implantação de “ilhas” e “arquipélagos”
urbanísticos para a expansão dos serviços financeiros, tecnológicos e dos negócios internacionais, condomínios residenciais fechados, mega-projetos infra-estruturais para atender às empresas multinacionais e elites locais, abandono e degradação do habitat das classes populares etc. Tudo isto constituiu, sem dúvida, um eixo principal da recente geografia
urbana da globalização na América Latina, tal como a “metropolização” (Prévot, Schapira, 2002; Pírez, 2006), as transformações da estrutura urbana (Janoschka, 2002; Azócar
e Henríquez, 2003), os padrões de segregação (Rodríguez, 2004; Hidalgo, 2004), as desigualdades sócio-territoriais (Cariola e Lacabanca, 2001; Rodríguez e Sugranyes, 2004),
os espaços exclusivos das elites (Cohen, 2005; Álvarez-Rivadulla, 2006) e as condições de
vida (Da Silva, 2003). Até que ponto tais fenômenos são produto direto da globalização
ou o resultado de tendências históricas endógenas é um tema de debate (De Mattos,
2002), cuja clarificação é dificultada pelas semelhanças estruturais dos padrões socioespaciais anteriores à plena inserção das cidades na globalização.
No entanto, entendida como projeto político das elites, a neoliberalização na
América Latina tem outras conotações na escala urbana talvez menos estudadas. Poderíamos citar, entre outras, a teoria neoliberal como discurso legitimador, sua mobilização mediante a tomada dos centros estratégicos de planejamento urbano, o papel dos
meios de comunicação, as diversas formas de uso da violência e da repressão como mecanismo de imposição do projeto neoliberal em escala urbana, o autoritarismo, etc. Enquanto temas como o papel das agências internacionais, o conflito, a governança e as
práticas participativas passam superfialmente pela questão do poder, são mais escassos
os estudos que a encaram abertamente (ver, por exemplo, Restrepo, 2002; Davis, 2006)
ou que tenham resultado em estudos empíricos e reflexões teóricas equivalentes, por
exemplo, a teoria dos regimes urbanos elaborada em relação à urbanização neoliberal
nos Estados Unidos.
É possível que as preocupações específicas da América Latina tenham levado a subestimar estes temas no nível urbano. Com as esperanças voltadas para a consolidação da democracia participativa e seus mecanismos institucionais formais, é possível que os estudos
urbanos tenham se descuidado da reconfiguração das classes e da promoção dos interesses
das elites (favorecidas pela desordem e o declínio dos partidos políticos tradicionais), das
alianças entre setores sócio-econômicos, do efeito da política de privatização, da aparição
de novos atores tanto públicos como privados no cenário da política urbana, do redirecionamento do investimento público no interesse do grande capital nacional e estrangeiro, das
políticas fiscais municipais, etc. Ademais, muitos dos fenômenos espaciais associados com
a globalização nas cidades do mundo desenvolvido, tais como a informalidade, a pobreza,
a marginalização e as migrações, já existiam nos anos 1980 em forma endógena, freqüentemente mesclados com a existência de economias ilegais, a corrupção e a presença de aparelhos paraestatais.
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Em todo caso, poder-se-ia dizer que ainda está por se elaborar uma análise política
sistemática deste tipo voltada para a cidade latino-americana. Existe uma tradição de estudos político-urbanos (sobre a configuração dos partidos, o caciquismo, o clientelismo como mecanismo de poder, os movimentos sociais e a violência, por exemplo) suficientemente forte para que se possa efetuar esta atualização no contexto da globalização neoliberal.
Neste sentido, um tema importante tem a ver com a reconfiguração das próprias elites. É
certo que, na América Latina, os caciques políticos regionais, as lideranças surgidas com a
indústria tradicional e a propriedade da terra se mesclaram e cederam terreno a outros grupos elitistas menos visíveis e menos comprometidos territorialmente. A representação política de seus interesses é, hoje em dia, menos personalizada e mais tecnocrática, concretizando-se através de organizações corporativas capazes de articular e mobilizar os interesses
das empresas multinacionais, a indústria local moderna e o setor financeiro, etc., em processos mais complexos de transformação urbana. Esta tecnocratização do poder das elites
contribui não somente para a orientação técnica da política urbana em função dos seus
próprios interesses de competitividade, mas também implica e requer, na chefia da administração municipal, um novo tipo de líder político urbano, ao mesmo tempo “global” e
“local”, “culto” e “popular”, “democrata” e “audaz”, enfim, uma espécie de “mago” capaz
de assumir a difícil gestão das contradições da cidade em tempos de neoliberalismo.
MATERIALIDADES E SUBJETIVIDADES
Por último, convém abordar não somente o tema dos processos e efeitos materiais e
espaciais da globalização neoliberal em escala urbana, como também a interrogação suscitada pelo fato de ter sido possível ir tão longe na execução de tal projeto, apesar dos conflitos políticos e custos sociais que implica. Harvey (2005) coloca o problema em termos
da “construção do consentimento”, com uma análise que se desenvolve sobretudo em escala nacional. Reconhece que em países como o Chile, o projeto neoliberal se realizou de
maneira rápida e brutal mediante um golpe de Estado orquestrado pelos Estados Unidos
e levado a cabo pelo ditador Pinochet. Entretanto, argumenta Harvey, na grande maioria
dos casos a neoliberalização se realizou de maneira gradual e mediante mecanismos democráticos. É indubitável que, na América Latina e outras regiões, o papel coercitivo das
instituições financeiras, como o FMI, e a imposição de políticas de ajuste estrutural freqüentemente se impuseram à vontade democrática nacional.
Nas profundas análises em que estuda detalhadamente os casos dos Estados Unidos
e do Reino Unido, Harvey não negligencia a escala urbana. No caso norte-americano,
destaca a maneira pela qual a crise fiscal da cidade de Nova York, em meados dos anos
1970, deu a oportunidade para se entregar a administração da cidade aos bancos privados, desregular o mercado imobiliário, desativar a força de trabalho organizada, desfalcar
os serviços sociais, transformar o emprego em uma responsabilidade individual, criminalizar condutas anti-sociais, etc., numa espécie de iniciativa prototípica de concretização
do projeto neoliberal em escala nacional. O caso de Londres foi diferente, pois ali o projeto neoliberal dependia do desmonte de um aparelho estatal de bem-estar muito mais
amplo, apresentando-se a escala urbana menos como portadora dos novos horizontes neoliberais do que como um espaço onde se exerciam velhos hábitos. Mesmo assim, na escala urbana, o projeto neoliberal conduziu à dissolução da autoridade metropolitana (bastião do poder intervencionista estatal), à intensificação do controle da cidade por parte do
governo nacional, à extensão da influência do centro financeiro internacional, à flexibili18
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zação e ocasionalmente ao desmonte total do sistema de planejamento urbano, à privatização da infra-estrutura e da habitação pública, etc. Estes casos evidenciam a tomada de
controle das cidades por parte do governo central e a simultânea entrega aos interesses e
organizações capitalistas.
As análises de Harvey voltam-se principalmente para os mecanismos políticos de redistribuição do poder, mas também dão ênfase à interação existente entre o avanço deste
processo e o apelo a valores culturais nacionais como liberdade, responsabilidade, oportunidade, justiça, sentimento religioso, etc, modificando o seu sentido prático em situações de mudança social radical. Na América Latina, sem dúvida, tem sido mais difícil
concretizar esta articulação, o que se reflete na instabilidade política, na violência e na
oposição aberta à globalização neoliberal.
O processo de neoliberalização, evidentemente, mais do que uma simples questão de
ideologia e de teoria econômica, também tem a ver com a transformação das relações sociais, a experiência cotidiana, a formação de subjetividades e a criação de identidades. A
construção do consentimento foi facilitada, sem dúvida, pela “desconfiguração” das instituições do Estado e organizações sociais estáveis como os partidos tradicionais, os sindicatos e as comunidades. Mas também influenciou o discurso neoliberal, enquanto esfera
ideológica na qual se constrói e se mobiliza o sentido comum juntamente com as maneiras aparentemente “óbvias” de entender o mundo, os problemas atuais, as aspirações e os
caminhos legítimos para alcançá-las, os horizontes do futuro e o lugar do indivíduo no
novo esquema neoliberal. A partir desta perspectiva, foram analisadas a globalização (Cameron e Palan, 2004), a cidade empresarial (Jessop, 1999) e muitos outros fenômenos da
neoliberalização como narrativas.
As opções analíticas abertas por tais perspectivas são amplas e não cabe aqui uma
abordagem sistemática do tema, que se limitará simplesmente à indagação geral sobre o
significado da escala urbana como lugar de formação de subjetividades. Se a escala nacional é percebida em seu papel de mero facilitador no processo de globalização e como
entidade abstrata na formação de identidades coletivas e individuais – em vários países
abriram-se, de fato, amplos debates sobre o que significa ser “inglês” ou “francês”, por
exemplo –, ao passo que as cidades-região assumem um papel cada vez mais predominante – porém não necessariamente mais determinante – na vida social, seria de se esperar
que as cidades voltassem a ser lugares privilegiados para a formação de subjetividades em
condições de globalização. Tal situação ofereceria, além disto, novas possibilidades de
aproveitamento político, no que se refere à readaptação dos cidadãos em função das oportunidades globais e das limitações locais. A cidade se converteria no lugar privilegiado para se construir a legitimidade governamental, a solidariedade territorial e o cidadão submisso, mediante estratégias locais baseadas na reconstrução de noções como cidadania,
direitos e deveres do cidadão, formas legítimas de participação, responsabilidade individual, relação com a autoridade, expectativas frente às instituições e a esfera pública.
AS ESTRATÉGIAS URBANAS NA COLÔMBIA:
CONTRIBUIÇÃO A UMA REVISÃO CRÍTICA
Na parte anterior deste trabalho, foi esboçado o debate sobre o “re-escalamento” e
assinalados alguns pontos de maior relevância para o entendimento das políticas e práticas do governo local. Nesta seção, pretende-se explorar a pertinência dos argumentos deR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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rivados das propostas gerais do “re-escalamento”, com referência à experiência das grandes cidades colombianas. Na análise a seguir destacam-se os seguintes aspectos:
• A relação entre as escalas urbana e nacional: a orientação nacional das políticas de competitividade, as iniciativas urbanas perante a globalização, a incidência da distribuição
territorial do poder político, as configurações e relações institucionais, as culturas locais perante o empreendimento, etc.
• A concentração do poder e o papel das elites urbano-regionais: a reconfiguração do poder urbano, a composição e o papel das elites, as estratégias adotadas para impor e legitimar os interesses de classe, a orientação do investimento público, suas implicações
em termos de eqüidade socioespacial, a noção de cidadania, etc.
• As políticas urbanas como “administração de crises”: formas simbólicas de criar novos
sentidos de unidade e coerência territorial, a renovação urbana, a arquitetura e a infraestrutura, o espaço público, a cidade como espetáculo e cenário de atos culturais, a ordem pública e o exercício da autoridade, etc.
Uma revisão crítica dentro desta ordem de idéias atua como contrapeso à fetichização da cidade no processo de globalização. Criou-se a impressão de que o futuro das cidades depende somente delas, de sua capacidade endógena de transformação, inovação e
liderança. Ainda que esta fetichização da cidade seja uma característica geral da globalização, na Colômbia ela foi acentuada pelo forte sentido regionalista que existe no país, juntamente com o processo extraordinário de reconstrução de imagens e imaginários urbanos, especialmente nas cidades de Bogotá e Medellín, ao lado de casos igualmente
notórios, mas opostos, de degradação de cidades grandes como Cali e Barranquilla através de crises profundas e prolongadas. A aparição de um tipo de líder político à frente da
administração das cidades (prefeitos independentes, inovadores e carismáticos na sua forma de governar) também reforçou a sensação de uma autonomia funcionalista das cidades perante a globalização, na qual se descartam as trajetórias urbanas, os condicionamentos culturais e as articulações nacionais e internacionais como fatores significativos.
AS BASES PRINCIPAIS DA POLÍTICA URBANA NA COLÔMBIA
Em contraste com países como Chile, México, Brasil e Argentina, a plena inserção
da Colômbia nos circuitos da globalização e a adoção de políticas neoliberais tiveram início tardiamente, no início da década de 1990. Embora seja certo que a indústria manufatureira tradicional teve problemas na década anterior, o país manteve algumas medidas
protecionistas e evitou as grandes crises econômicas e a hiperinflação que tanto afetou a
outros países da região. Por sua vez, certa estabilidade fiscal e monetária permitiu que a
Colômbia chegasse a acordos menos rígidos com o FMI e os bancos internacionais. Somente a partir do governo de César Gaviria (1990-1994) foi empreendida com seriedade
a política de “abertura econômica”. Ainda assim, o processo foi gradual, e não houve uma
onda massiva de privatizações nem mudanças radicais na organização institucional do Estado, fenômeno que somente se verificaria no começo do novo século.
O que houve na Colômbia foi, mais propriamente, uma crise de ordem política, estreitamente associada com o problema do narcotráfico: a penetração das máfias em todas
as instâncias políticas, econômicas e civis, o estabelecimento de controles territoriais e
aparelhos paraestatais nos bairros populares e o aprofundamento de uma situação crônica de violência. Tamanha foi a gravidade, que em 1990 se convocou uma assembléia constituinte numa tentativa de salvaguardar as estruturas políticas e institucionais. Entre ou20
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tras coisas, a nova Constituição Política de 1991 aprofundou o processo de descentralização que havia se iniciado nos anos 1980, outorgando aos municípios uma boa dose de autonomia e uma extensa participação no orçamento nacional, e ampliando consideravelmente os mecanismos de participação cidadã nos assuntos locais.
Contra este pano de fundo se desenvolvia a política nacional de competitividade urbana, que não teve maior relevância até meados dos anos 1990. Desde finais dos anos
1980, o governo nacional havia começado a impulsionar a criação de um quadro normativo e institucional destinado a modernizar a economia mediante mecanismos concebidos
para acelerar e ampliar a abertura econômica, o comércio exterior, o investimento estrangeiro direto, o mercado de capitais e o mercado de trabalho nacional. Também neste período, o setor privado deu início a uma série de estudos prospectivos relacionados com a
inserção da Colômbia na economia global, sob a coordenação das Câmaras de Comércio
das grandes cidades. Entretanto, a dimensão territorial ficou relativamente esquecida. Esta situação foi remediada com a realização, entre 1995 e 1998, de uma série de estudos
sobre a competitividade nacional e das grandes cidades, contratados pela firma norteamericana Monitor, de Michael Porter. Adicionalmente, o governo nacional instituiu, em
1995, a política nacional urbana denominada Cidades e Cidadania, que se apropriou das
idéias em circulação naquele momento sobre o papel da cidade como “a força motriz do
desenvolvimento”. A última iniciativa estratégica foi a formulação, em 1999, da Política
Nacional para a Produtividade, a Competitividade e as Exportações, com um forte componente regional representado pelos Planos Estratégicos Exportadores Regionais (PEER),
elaborados pelas cidades sob as diretrizes do Ministério do Comércio Exterior, que por
sua vez convocou os Comitês Assessores Regionais de Comércio Exterior (CARCE) para
sua formulação. Controlados efetivamente pelas Câmaras de Comércio (ver Brand e Prada, 2003), tais comitês estavam, em princípio, abertos a todos os setores nas diferentes regiões em que houvesse “pessoas abertas a paradigmas e idéias distintas” (leia-se figuras de
inclinação neoliberal).
Os fatos acima foram objeto de estudo, mas são poucas as análises, entre os estudos
urbano-regionais e de planejamento, que os submetem a um exame crítico rigoroso. O
assunto mais óbvio do ponto de vista técnico diz respeito à crescente influência do setor
privado na formulação da nova geração de planos de desenvolvimento territoriais inspirada na competitividade, especialmente aqueles de ordem estratégica que definem as linhas tanto discursivas como programáticas e de investimento público por meio de macro-projetos. Claramente se pôs em evidência a manifestação do novo poder das
associações do setor privado na direção das cidades. Isto significou o ocaso definitivo dos
caciques políticos tradicionais e líderes civis patriarcais de outrora; a partir desse momento, o empresariado privado começa a operar corporativamente e mobiliza seu poder no
interior do sistema tecnocrático e participativo de planejamento, fazendo-o em nome da
sobrevivência das cidades, mas agindo, de fato, em defesa de seus próprios interesses políticos e econômicos nas condições criadas pela globalização.
Outro tema de interesse está relacionado com as transformações ocorridas no processo de planejamento. Atos legislativos que datam também de meados dos anos 1990 introduziram, entre outras coisas, medidas para separar os programas de governo dos prefeitos e os planos de desenvolvimento territorial, obrigando os primeiros (de 3 ou 4 anos)
a acomodarem-se aos segundos (de prazo mais longo e formulação participativa), e criaram, ao lado de mecanismos de supervisão e prestação de contas, instrumentos de intervenção no mercado do solo. Tudo isto despertou um inusitado interesse público pelo plaR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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A
3 A apresentação das atuais
políticas e projetos de cada
cidade pode ser encontrada
nas respectivas páginas web
oficiais: www.bogota.gov.co;
www.medellín.gov.co;
www.cali.gov.co; e www.
alcaldiabarranquilla.gov.co.
Também se pode encontrar informação valiosa em: www.
bogota.comovamos.org e www.
medellin.comovamos.org.
4 “A Bogotá que Sonhamos”.
Informe Monitor/Câmara de
Comércio de Bogotá, 1997,
Resumo executivo.
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nejamento urbano, cujas características e conseqüências merecem uma maior indagação.
É certo que, pelo menos nas grandes e médias cidades, as expectativas em torno dos novos planos resultaram em uma ampliação da participação cidadã, permitindo atrair amplos setores sociais para o discurso da competitividade e obtendo também a adesão de setores críticos como as ONGs e as universidades, por meio da atribuição de postos
burocráticos, consultorias e assessorias. Enquanto se impulsionava a modernização da infra-estrutura (aeroportos, estradas, comunicações, centros de negócios, etc.), dentro de
um processo heterogêneo de privatizações e concessões também dos serviços públicos,
produziram-se situações críticas em questões como a moradia, o acesso a serviços de saúde, a crescente precariedade do mercado de trabalho, o aumento da pobreza e a miséria.
Isto nos leva ao terceiro ponto, relacionado com a caracterização das políticas urbanas
como administração da crise. O Estado neoliberal operou um redirecionamento territorial
das responsabilidades pelo bem-estar econômico e social para os municípios, ao passo que
lhes retirou os instrumentos tradicionais que o asseguravam. Evidentemente, a reconstrução da noção de bem-estar tinha que ser buscada dentro da lógica própria do neoliberalismo, que incluía o mercado, a inovação, o empreendimento, as responsabilidades individuais etc., e em meio ao empobrecimento da vida material e econômica de amplos setores
da população e a uma acelerada fragmentação socioespacial. O êxito de tal empresa dependia, então, do reposicionamento da noção urbana de bem-estar no mundo simbólico; daí
o reiterado discurso sobre a cidade e os direitos e deveres da cidadania, os símbolos arquitetônicos e infra-estruturais, a conversão do espaço público em cenário de espetáculo. Isto
requeria um novo tipo de prefeito, relativamente independente das estruturas partidárias
tradicionais, culto e experimentado em matéria de globalização, e capaz de manejar convincentemente os instrumentos da cultura local. Estes temas serão comentados a seguir,
muito brevemente, tendo como referência as quatro maiores cidades da Colômbia.3
O CASO DE BOGOTÁ
Capital e principal cidade da Colômbia, com uma população de aproximadamente
sete milhões de habitantes, Bogotá apresentava condições urbanísticas lamentáveis para
enfrentar os desafios da globalização. No início dos anos 1990, Bogotá ainda contava com
uma infra-estrutura e equipamentos deficientes, um sistema de transporte caótico e apresentava um quadro de degradação física e social especialmente acentuada no centro. Em
um comentário do Informe Monitor lê-se que:
O problema fundamental [de Bogotá] não está na baixa qualidade de vida, nem em sua
escassa conectividade com a economia global, nem na deficiente capacidade de seus recursos humanos. O problema que impede a cidade de ser competitiva é muito mais profundo: Bogotá carece de uma visão sobre o que pretende ser e onde quer se posicionar no mundo. Bogotá pode solucionar seus problemas de insegurança, reorganizar seu sistema de transporte e suas finanças, mas
se a cidade não consegue visualizar o que deseja ser, seguramente não vencerá o desafio de se converter em uma cidade global capaz de oferecer prosperidade a seus cidadãos e cidadãs.4
Não obstante a típica fetichização da cidade e as falácias sociais da competitividade,
este informe de alguma forma acertou em seu diagnóstico no que diz respeito à crise de
identidade e direção da cidade. A recuperação de Bogotá na última década foi bastante
reconhecida internacionalmente, a partir de um esforço mais ou menos contínuo basea22
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do no saneamento fiscal, no assentamento de uma “cultura cidadã”, nos macro-projetos
infra-estruturais e de equipamentos, e no manejo do espaço público. Esta transformação
foi impulsionada por uma nova estirpe de prefeitos – Antanas Mockus, intelectual e exreitor da Universidade Nacional da Colômbia, e Enrique Peñalosa, jovem e entusiasta urbanista pertencente à elite de Bogotá, que tanto se sente em casa em Nova York como em
Bogotá (Dávila e Gilbert, 2001). No entanto, para entender integralmente o ressurgimento de Bogotá, haveria que se levar em conta, ainda, a sua posição privilegiada como capital, sua facilidade de acesso às instâncias de governo nacional e internacional, o fato de
constituir um elo na internacionalização da economia e centro financeiro, e as políticas
de segurança implementadas. Ainda assim, cresceram os problemas de pobreza, desigualdade e segregação socioespacial, apenas reconhecidos nos últimos anos pela administração
centro-esquerdista de “Lucho” Garzón.
O CASO DE MEDELLÍN
Segundo o Informe Monitor para a segunda cidade da Colômbia, cuja população ultrapassa dois milhões de habitantes:
Medellín é uma cidade de economia robusta, com um nível aceitável de tomada de riscos,
acesso a capital mais barato, e indústrias de apoio em vários setores, mas ainda marcada pela ausência de formação especializada em tecnologia, negócios e inovação que a leve a uma nova fase
de desenvolvimento.5
Sem dúvida, Medellín contava com um setor empresarial organizado, capaz de reestruturar-se e influenciar fortemente nas políticas e nos macro-projetos urbanos. Como
Bogotá, também contava com instituições públicas de planejamento capazes de materializar o projeto da competitividade. Entretanto, o desafio principal para Medellín nos anos
1980 e 90 foi sair dos altos níveis de violência que a situaram como a cidade mais violenta do mundo, em boa parte devido aos cartéis de narcotráfico estabelecidos na cidade. A
combinação da audácia política com a liderança empresarial, a solidariedade regional e a
capacidade de se inserir em redes internacionais com ou sem a intervenção do governo
central, permitiram que Medellín enfrentasse com êxitos os desafios da globalização (ver
Franco, 2005). Por outro lado, esta inserção nos circuitos globais foi alcançada logo após
a superação de uma crise social sem precedentes, de tal maneira que os conflitos posteriores, diretamente relacionados com a competitividade neoliberal, pareciam de menor importância, sendo habilmente monitorados, em primeiro lugar, através de uma estratégia
ambiental (Brand, 2005) e, em seguida, por meio de uma versão própria de “cultura cidadã”, renovação urbana e espetáculo. Ainda que nas primeiras etapas tenham sido importantes as lideranças políticas tradicionais, uma vez controlada a crise da ordem pública, apareceram prefeitos jovens provenientes das universidades e das instituições
vinculadas à pesquisa, quer em aliança com as classes políticas tradicionais, quer com base em um bem-sucedido movimento cívico independente.
OS CASOS DE CALI E BARRANQUILLA
A terceira e a quarta cidades do país, com população total estimada em três milhões
de habitantes (dois milhões em Cali e um milhão em Barranquilla), se caracterizam pelas
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5 “Construyendo la ventaja
competitiva en Medellín”. Informe Monitor/Câmara de
Comércio de Medellín, 1996.
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dificuldades de inserção nos circuitos da globalização. São casos distintos, que têm em comum a decadência das elites locais, a corrupção e os conflitos políticos locais. Além disso, enquanto as cidades de Bogotá e Medellín rapidamente solucionaram o problema de
suas finanças públicas, Cali e Barranquilla entraram, nos anos 1990, em um longo período de crises fiscais que, continuando no novo século, limitaram ainda mais qualquer
tentativa de competitividade. No caso de Cali, a emergência dos novos cartéis do narcotráfico em plena abertura econômica teve efeitos nefastos que minaram a economia, marginalizaram as classes políticas tradicionais e arruinaram as anteriormente sólidas instituições públicas. Já em Barranquilla, como principal porto colombiano na costa caribenha,
teria sido possível esperar uma dinamização da economia a partir da globalização, mas esta nunca se materializou. Seria uma simplificação abusiva atribuir o fato às administrações populares eleitas nos anos 1990 (ver Sáenz e Rodríguez, 1999), pois a empresa privada já controlava o porto e os serviços públicos, e o governo central interveio cada vez
mais nos assuntos internos da cidade. Tanto no caso de Barranquilla como no de Cali,
cabe se perguntar, entre outras considerações, sobre o papel das culturas regionais nas esferas política e empresarial dos setores tradicionais das economias urbanas (menos abertos que em Bogotá e Medellín), sobre as trajetórias urbanas, sobre o posicionamento de
cada cidade com relação aos governos centrais, sobre os efeitos de novos grupos ilegais associados ao narcotráfico e, mais recentemente, sobre o para-militarismo.
Nesta breve discussão da experiência das quatro principais cidades da Colômbia
chamamos a atenção, ainda que muito esquematicamente, para a presença das múltiplas
interseções da globalização em termos de dinâmica e regulação multiescalar da vida econômica, política e social. Frente à tendência geral da fetichização da cidade, notam-se alguns fatores supra-urbanos que matizam o significado desta escala espacial. O caso colombiano parece indicar o papel reduzido da escala nacional, embora análises mais
sistemáticas venham a considerar de forma mais detalhada sua função reguladora em relação às condições de operação da empresa privada e o mercado de trabalho. Alguns dos
fatores que mais sobressaem em escala urbana são o papel das elites locais e a capacidade gerencial dos novos líderes políticos locais. Afinal, se a globalização neoliberal é um
projeto das elites, a adequada configuração destas no plano urbano-regional e a presença de prefeitos simultaneamente globais – e enraizados na cultura regional – em sua formação seriam apenas uma condição lógica do êxito da “glocalização” em um lugar concreto e determinado. Há de se lembrar também que a inserção global e a busca da
competitividade urbana se desenvolvem com o problema, especialmente agudo na América Latina, da pobreza e da desigualdade socioespacial. Conseqüentemente, a “administração da crise” urbana implica o sempre delicado balanço entre as condições materiais
e as formas simbólicas do bem-estar das populações urbanas, a aplicação de novas tecnologias de governo e o uso da repressão.
COMENTÁRIOS FINAIS
O objetivo deste trabalho foi o de revisar a questão do “re-escalamento” e indagar
sua pertinência e possíveis contribuições para a análise das estratégias de desenvolvimento urbano. De um modo geral, tanto na Colômbia como na América Latina em geral este tema tem relativamente recebido pouca atenção. Tentou-se demonstrar aqui que
é possível contribuir com elementos úteis para reestimular a análise do Estado e o estu24
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do das políticas urbanas, particularmente quanto a diferentes variações de escala relativas ao desenvolvimento urbano, ao desmascaramento do caráter elitista das políticas de
competitividade e às formas de legitimação dos governos locais na administração da crise urbana.
Esta aproximação limitou-se a algumas observações gerais, às quais se acrescentou alguma exploração preliminar do caso da Colômbia e suas cidades principais. Nota-se que
a experiência da América Latina foi extremamente diferente no que diz respeito ao modo
e ritmo de inserção na globalização neoliberal. Desde o caso do Chile e as demais ditaduras do Cone Sul, passando pela integração do México, cuja particularidade está na sua situação fronteiriça com os Estados Unidos, os radicalismos dos países do Pacto Andino e
as saídas divergentes da América Central, existem diferenças, dependências e experiências
muito heterogêneas, tanto dentro de cada sub-região como entre elas. Por outro lado, no
novo milênio surgiram resistências nacionais à globalização neoliberal, assim como inovações significativas na administração progressista da crise urbana. Entretanto, não se
consolidou ainda um “projeto latino-americano” de integração econômica, e o futuro das
cidades se debate entre correntes multiescalares complexas e indeterminadas.
A democracia formal continua sendo uma preocupação compreensível de muitos estudos urbano-regionais, em meio ao que aparenta ser uma organização territorial do Estado relativamente estável. Entretanto, a tese do “re-escalamento” consiste não somente
na “re-calibração” das relações entre o Estado nacional e as instâncias locais, como esta
“re-calibração” se relaciona com a reconfiguração das múltiplas escalas e formas de regulação nas condições da globalização neoliberal, fenômeno que se verifica independente de
o arcabouço político-administrativo nacional ter que passar por reformas territoriais. Isto
significa a oportunidade de abordar em um novo contexto também os temas da descentralização e participação cidadã, assim como as crescentes preocupações com a desigualdade socioespacial e a fragmentação urbana.
Finalmente, embora seja certo que a globalização impõe uma agenda de competitividade única em seu caráter estrutural, também obriga que cada cidade elabore sua estratégia própria de articulação com os circuitos globais e administre sua crise interna particular. No caso da América Latina, a ausência de uma escala continental intitucionalizada,
comparável com a União Européia ou o NAFTA, por exemplo, acentua o papel que devem
assumir as administrações urbanas. Entretanto, isto não quer dizer que estas atuem sem
restrições nem condicionamentos. Os governos nacionais continuam cumprindo um papel fundamental de intermediação entre a escala urbana e os mercados internacionais, os
organismos financeiros da globalização e as agências multilaterais de desenvolvimento.
Por outro lado, as tradicionais políticas regionais e as trajetórias urbanas também condicionam a capacidade de atuação das cidades, e disso decorre a importância de um novo
tipo de líder político urbano, capaz de manejar a complexidade destas múltiplas intersecções da globalização que se produzem na escala urbana. A investigação comparativa seria
um caminho viável para explorar este fenômeno em profundidade.
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Peter Charles Brand é
professor da Escola de Planejamento Urbano-Regional,
Faculdade de Arquitetura,
Universidade Nacional da
Colômbia (Medellín). E-mail:
[email protected]
Artigo recebido em outubro
de 2008 e aprovado para
publicação em janeiro de
2009.
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A
B S T R A C T An integral part of the globalization process has been the resurgence of
the city-region as a key geographical unit for economic development, with the consequent birth
of a new period of urban transformation. The reorganization of the global economy and the
global redistribution of industry required the restructuring of urban economies, infrastructures
and images, as well as new forms of urban governance. This process, which began in the
United States and Western Europe in the early 80s, took a decade or so to have a significant
effect on Latin America cities. While urban policy has since consolidated considerably in this
sense in Latin America, academic research and theoretical reflection has somewhat lagged
behind, frequently circumscribed by analytic and interpretative frameworks imported from
outside the Latin American context, limited to operative aspects of ‘urban competitiveness’ or
dominated by regional concerns over local democracy. This paper examines the Latin American
city in the light of the theoretical debate on the reconfiguration of scalar hierarchies and
interrelations produced by globalization. It then goes on to review the recent experience of some
Colombian cities, with special reference to the themes of state reorganization, planning policy,
urban governance and spatial restructuring. The paper concludes with some suggestions
concerning a research agenda.
K
E Y W O R D S Globalization; geographic re-scaling; neoliberalism; urban development; Latin America.
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PLANEJAMENTO
DO ECONOMICISMO MODERNO
À DIALÉTICA SOCIOESPACIAL
LUCAS LINHARES
R
E S U M O A teoria e a práxis do planejamento, nas sociedades capitalistas modernas, refletem a consolidação de um modelo de racionalidade fundado numa visão mecanicista dos processos sociais. A matriz positivista da ciência – que busca enunciar (e predizer) os fenômenos sociais por meio de leis universais – alcançou posição hegemônica e assentou as bases
do planejamento moderno. No campo da Economia Política, dominada pela perspectiva mecanicista embutida na corrente neoclássica, a busca da construção de esquemas teóricos generalistas confere ao espaço, enquanto categoria analítica, um papel secundário. O presente artigo propõe inicialmente uma discussão epistemológica, buscando avaliar criticamente o
significado da incorporação de um paradigma economicista e mecanicista por parte da teoria
do planejamento. Entrecortando a discussão epistemológica, procuramos, amparados na perspectiva teórica neomarxista, reafirmar o papel do espaço como categoria elementar à compreensão dialética da dinâmica capitalista, sem a qual uma teoria do planejamento incorreria em
importante lacuna. O reconhecimento de que as contradições do modo de produção devem ser
desvendadas pela investigação do espaço socialmente engendrado é capaz de nos conduzir a
uma teoria social mais robusta no balizamento do planejamento.
PA
L AV R A S
espaço social.
-
C H AV E
Planejamento; dialética socioespacial; modernidade;
INTRODUÇÃO
O planejamento da coisa pública (res publica), envolvendo as instâncias social, econômica e espacial, é objeto de atenções e intenções desde a antigüidade. Pensadores do
quilate de Platão e Aristóteles tinham na política o arcabouço teórico-prático que fundamenta a atuação do Estado enquanto organismo de governo. Nessa concepção, o principal desígnio do Estado é encontrar a forma de vida ideal, que conduza os cidadãos à virtude e ao seu objetivo supremo: a felicidade. A política, na definição aristotélica, é a
ciência da felicidade humana.
Ademais, o corpus teórico-prático aristotélico considerava a cidade (polis) como o objeto por excelência da política, donde decorre que o meio concebido para o alcance da felicidade passaria necessariamente pela organização da polis, o espaço dos cidadãos. Observamos, pois, que Aristóteles revelava já naqueles tempos a percepção de que a felicidade
da coletividade humana é condicionada à edificação de formas socioespaciais adequadas;
formas essas que deveriam ser fomentadas e asseguradas pelo Estado. Assim, identificamos na obra do filósofo estagirita incursões pioneiras no campo do planejamento, ainda
que sem o caráter que a modernidade positivista conferiu à matéria séculos mais tarde.
Uma vez que se apresentavam esquemas teóricos que requeriam para si o status científico,
e que visavam ao balizamento de atuações no campo da praxis, começava a ser sedimentada a idéia do planejamento socioespacial, que, sob o epíteto genérico de política, versava
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29
P L A N E J A M E N T O
sobre os destinos da polis e, por conseguinte, sobre os destinos da reprodução social e material da humanidade, envolvendo uma dimensão espacial inescapável.
Não obstante, a modernidade interpôs ao germe aristotélico forças contrárias de reação, tanto no plano epistemológico quanto no plano político. Tais forças significaram a
tomada das ciências sociais pelo positivismo, que trazia embutida a primazia do indivíduo em detrimento da coletividade e a emergência do liberalismo como doutrina social
que garantiria aquela primazia.
No campo da economia política, embora a penetração do paradigma positivista tenha se dado retardatariamente, verificamos a consolidação hegemônica de um modelo de
racionalidade fundado numa visão mecanicista da sociedade, como se esta obedecesse aos
mesmos ditames das ciências naturais. É justamente a essa “física social” que vai sucumbir o planejamento nas sociedades capitalistas da modernidade.
Em última instância, no esquema teórico mecanicista clássico, a racionalidade do(s)
mercado(s) era imposta como virtuosa na consecução dos objetivos sociais, o que tinha
como contrapartida, no plano político, a legitimação da ordem liberal-individualista. A
suposta existência de indivíduos racionais maximizadores garantiria uma tendência inexorável ao “ótimo social”, donde deriva que as ingerências de instrumentos extra-mercado significariam um obstáculo à “harmonia natural dos interesses”.
Diante desse quadro, em que a economia política – dominada pela perspectiva da física social embutida na matriz neoclássica – buscava a construção de esquemas teóricos
generalistas, o espaço enquanto categoria analítica foi relegado a segundo plano, ao mesmo tempo em que o planejamento reduzia seu escopo ao mínimo, uma vez que, neste
mundo ideal, sua presença era praticamente dispensável.
É sabido que a extensão do capitalismo urbano-industrial como modo de produção
e reprodução social às mais diversificadas partes do mundo pauta-se por heterogeneidades. A dinâmica do capital no espaço é marcada por uma dualidade centro-periferia, que
concentra oportunidades de desenvolvimento em alguns pontos, mantendo outros à margem das benesses do sistema.
Considerando as partes do mundo em que as contradições do capitalismo imprimem uma realidade especialmente adversa, pautada por graves desequilíbrios sociais, econômicos e espaciais, como é o caso do Brasil, cumpre investigar em que medida a matriz
epistemológica que formou o alicerce do planejamento na modernidade, bem como seus
desdobramentos sobre os esquemas teóricos e práticos contemporâneos, oferecem subsídios para compreender e superar tais adversidades.
Buscamos, portanto, discutir a possibilidade teórica do planejamento e do desenvolvimento. Para tanto, encetamos uma visão segundo a qual o planejamento contempla pelo menos três instâncias: economia, sociedade e espaço. As especificidades do modus operandi dessas três instâncias articuladas explicam a condição de (sub)desenvolvimento. A
análise dialética das estruturas sociais, econômicas e espaciais historicamente engendradas
fornece elementos para a compreensão da realidade social periférica, constituindo um
ponto de partida para pensar os mecanismos de sua superação. Uma análise dessa natureza exige uma apreciação crítica das teorias e políticas do desenvolvimento hegemônicas,
afeitas às teleologias generalistas.
É nesse substrato teórico-político, sucintamente descrito acima, que o presente texto se planta. Inicialmente, realizamos uma discussão de cunho epistemológico, ou seja,
teorizamos sobre a própria ciência, buscando perscrutar as matrizes científicas que informaram o planejamento na modernidade. Nessa ambiência discursiva, discorremos acerca
30
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dos impactos da penetração do positivismo nas ciências sociais, e particularmente na economia, sobre a teoria do planejamento. A incorporação de um paradigma economicista e
mecanicista pelo planejamento significou, contraditoriamente, seu próprio fenecimento,
uma vez que tal paradigma veio a legitimar o liberalismo.
Entrecortando a discussão epistemológica, procuramos reafirmar o papel do espaço
como categoria elementar à compreensão da dinâmica capitalista, sem a qual uma teoria
do planejamento incorreria em importante lacuna. Com esse propósito, absorvemos dos
teóricos neomarxistas elementos para trazer o espaço ao primeiro plano da compreensão
dialética da realidade social. A configuração econômico-social é, por princípio, um corpo
sistêmico espacialmente referenciado. Mais do que a “cartografia cartesiana da ciência espacial”, que não permite ir além da superficialidade concreta do espaço, é preciso aprofundar a substância teórica, reconhecendo a relação dialética entre a configuração espacial
e os processos sociais e econômicos; nesse sentido ampliando a discussão sobre planejamento em torno da idéia mais ampla de uma “economia política da produção social do
espaço”, adutora da dialética socioespacial. Sob essa perspectiva, herdada de Henri
Lefebvre, o espaço torna-se a categoria privilegiada para entender a realidade social. Na
medida em que o espaço é concebido como instância realizadora do capital, uma vez que
este conforma aquele à lógica de reprodução do sistema, começam a ser reveladas as relações sociais dialeticamente embutidas na configuração espacial.
A EPISTEMOLOGIA DO PLANEJAMENTO
NA MODERNIDADE
O embrião das atividades de planejamento sócio-político, econômico e espacial pode ser identificado, a exemplo de boa parte do conhecimento em ciências sociais, na Grécia Antiga. Simultaneamente aos pródromos de tal exercício político, nasceu o embate de
idéias acerca de qual seria a melhor sistemática para tratar das questões de interesse geral,
do governo da res publica.
A Academia platônica era partidária da investigação científica de índole matemática
como o pavimento mais sólido para a ação política. A atividade humana, sob essa perspectiva, “requeria uma ciência (episteme) dos fundamentos da realidade na qual aquela
ação está inserida”.1 Destarte, o ideário platônico requeria um arcabouço referencial com
status científico, construído pela busca de verdades essenciais sobre o universo.
Aristóteles de Estagira, célebre filósofo que ainda hoje calça o alicerce do ethos e
do logos ocidentais, formou-se na Academia platônica, incrementando-a com seu espírito
investigativo de observação e uma perspectiva um tanto naturalista. Em sua obra denominada Política, Aristóteles argumenta que o Estado deve se constituir como um organismo moral, procurador da virtude de seus concidadãos. Nesse sentido, a política é a doutrina moral social, coletiva, sobreposta à ética individual e aos interesses particulares. Se a
coletividade é superior ao indivíduo, por um artifício lógico que o próprio Aristóteles desenvolveu, o Estado, mandatário da coletividade, tem ascendência sobre qualquer cidadão
individualmente. Sob esse prisma, o desígnio primeiro da atividade política seria elucidar
a melhor forma de vida que conduza à felicidade, para ulteriormente engendrar a forma
de governo e as instituições sociais garantidoras daquela forma de vida à coletividade. Esta última tarefa diz respeito ao estudo da constituição da cidade, donde podemos identificar no corpus aristotélico uma das primeiras incursões sistematizadas no campo do plaR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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1 Aristóteles – Vida e Obra.
São Paulo: Nova Cultural,
2000.
P L A N E J A M E N T O
nejamento que, uma vez político, versa sobre os domínios da polis, revelando-se, por conseguinte, indissociável e eminentemente espacial.
A cidade, assim como a práxis política, não escapam ao naturalismo aristotélico; ambas seriam decorrências naturais da condição humana enquanto “animal social”. Além
disso, subjacente a todo esse organismo considerado natural, desvela-se o aspecto coletivista, a ser comungado pelos cidadãos. Nos dizeres do filósofo, “na ordem natural a cidade tem precedência sobre a família e sobre cada um de nós individualmente, pois o todo
deve necessariamente ter precedência sobre as partes” (Aristóteles, 1997, p.15).
Logo nos primeiros excertos de Política, Aristóteles se propõe a decompor essa realidade totalizante que é a cidade, com vistas a deslindar analiticamente seus elementos
constituintes fundamentais, o que permitiria compreender os meandros da comunidade
política. A cidade é, assim, pioneiramente vista e conceituada como organismo-síntese do
sistema sócio-político. Lemos no capítulo 1 do livro primeiro:
2 Aristóteles atribui a Hipódamo de Mileto a invenção
da arte de planejar cidades
e tece muitas considerações também acerca dos
escritos pioneiros de Platão
sobre a matéria, contidos
principalmente em Leis e
República. No entanto, Aristóteles desfere muitas críticas contra as proposições
dos dois pensadores, aponta suas muitas lacunas, e
reivindica para si a constituição mais bem estruturada
acerca da cidade, em que
contempla com pormenores
os múltiplos aspectos da vida social, tais como as
questões atinentes aos âmbitos jurídico, demográfico,
econômico e político, além
de discorrer sobre a localização e o traçado urbanístico ideais para a cidade,
segundo critérios geomorfológicos e climáticos e também sob o ponto de vista da
estratégia militar. No capítulo 4 do livro sétimo de Política, Aristóteles propugna a
favor do equilíbrio na constituição demográfico-territorial da cidade. Esta deveria
ser suficientemente extensa
e populosa para garantir a
eficiência e a auto-suficiência econômicas, sem romper o limite que permite adequada coesão social e
gestão política: “(...) deve-se
então considerar mais perfeita e mais bela a cidade na
qual a magnitude é combinada com boa ordem” (Aristóteles, 1997, p.230).
Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com vistas a
algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes parece um
bem; se todas as comunidades visam a algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas,
e que inclui todas as outras, tem mais que todas esse objetivo e visa ao mais importante de todos
os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política (...) Da mesma forma que em outras matérias é necessário decompor o conjunto até chegar a seus elementos mais simples, com a cidade
também, examinando os elementos dos quais ela se compõe, discerniremos melhor, em relação a
estas diferentes espécies de mando, qual é a distinção entre elas, e saberemos se é possível chegar a
uma conclusão em bases científicas a propósito de cada afirmação feita pouco antes. (Aristóteles,
1997, p.13)
Infere-se assim que Aristóteles busca aplicar seu método lógico-analítico ao exame dos
elementos constituintes da cidade, de sua realidade social, econômica, espacial. Nesses termos, o que o filósofo estagirita faz não é outra coisa senão planejamento. Mais do que isso, faz planejamento de caráter espacial, urbano, ao aduzir sobre a disposição ideal de todo o organismo social assentado na cidade, reconhecendo que os processos sociais estão
incrustados no plano espacial, e o espaço da cidade exerce influência sobre a conformação
social. Assim, Aristóteles identifica a cidade com a comunidade política e ainda vai além,
ao conferir às suas análises e propostas um caráter científico, reclamando para si a edificação de um arcabouço teórico que versa sobre a complexa célula espacial mestra da organização social, qual seja, a cidade. Suas proposições trazem, portanto, o reconhecimento de
que o (proto)planejamento envolve ciência e ação política, teoria e prática, prenunciando
um porvir sobre o caráter que a matéria virá a assumir nos ulteriores tempos hodiernos.2
Essa viagem no tempo e no espaço rumo à Grécia antiga tem tão somente o propósito prosaico de revelar a presença importante que a verve do planejamento teve – ainda
que sem essa alcunha e sem o sentido que a ciência moderna lhe conferiu séculos mais
tarde – na organização socioespacial das populações humanas desde a antigüidade. A política, segundo Aristóteles, pertence ao grupo da filosofia prática, que busca o conhecimento como um meio para a ação, o que vai ao encontro da concepção moderna de planejamento. A cidade-estado deveria, assim, constituir um aparato institucional cujas
práticas ajam na condução da comunidade de cidadãos ao objetivo máximo e sentido último da existência, isto é, à felicidade. O organismo político tem como incumbência planejar a melhor conformação social que permita alcançar esse alvo em sua plenitude.
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No entanto, os meios para atingir os fins da comunidade política são raramente consensuais, o que origina embates num campo de muitas controvérsias. Não obstante o referido planejamento, identificado sinonimicamente com a teoria e a práxis políticas, tenha sido alçado ao status científico, requerendo um caráter de neutralidade e unicidade,
os valores morais enraizados e as ideologias sempre teimaram em se fazer presentes, projetando distintas visões sobre o mundo, refletidas nas diversas correntes de pensamento,
proponentes dos mais sortidos diagnósticos acerca da realidade, construídos com base em
diversificados métodos, advogando por distintos meios de se alcançar os fins, suscitando
muitas controvérsias entre as partes envolvidas no confronto de idéias. E assim foi desde
aqueles tempos até os atuais.
Realizando um largo salto temporal, trespassando séculos desde o berço helênico na
Idade Antiga até a Idade Moderna, podemos respirar por alguns instantes a atmosfera dos
séculos das luzes,3 época também marcante e definidora do caráter assumido pela atividade intelectual e pela prática política até hoje vigentes, “fermento de uma transformação
técnica e social sem precedentes na história da humanidade. Uma fase de transição, pois,
que deixava perplexos os espíritos mais atentos e os fazia refletir sobre os fundamentos da
sociedade em que viviam e sobre os impactos das vibrações a que eles iam ser sujeitos por
via da ordem científica emergente” (Sousa Santos, 2005, p.17). No campo do intelecto e
do fazer científico, afirmava-se a primazia da razão sobre ditames míticos ou religiosos.
No campo da política, as práticas influentes sobre a constituição social deveriam obedecer aos diagnósticos realizados pela intelligentsia, em geral serviente ao aparato estatal.
O modelo de racionalidade inerente à ciência moderna consolidada no século XVIII, com destacado desenvolvimento das ciências naturais, somente no século XIX4 atingiu
cabalmente as ciências sociais – que então sedimentaram alguns princípios epistemológicos e regras metodológicas que caracterizariam as formas de conhecimento social ditas racionais, distinguindo-as do saber medieval –, embora guardasse similaridades com a concepção de ciência fundada no corpus aristotélico, ao qual nos referimos.
A matemática configura-se como o instrumento de análise essencial da ciência moderna, sendo também o próprio modelo ou linguagem de representação dos fenômenos
estudados. Uma vez que o conhecer assume como pressuposto o quantificar, o rigor científico passa a ser depreendido da precisão das medições. “As qualidades intrínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas, e em seu lugar passam a imperar as quantidades
em que eventualmente podem se traduzir. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante” (Sousa Santos, 2005, p.28).
O objetivo da ciência moderna pauta-se pelo estabelecimento de relações causais entre fenômenos, com vistas à proposição de leis, pretensamente universais, capazes de descrever regularidades nos fatos naturais e sociais. Nesse contexto, os fatos sociais são tidos
como naturais; a ergodicidade própria dos fenômenos físicos é transposta aos fenômenos
sociais, fundando uma concepção mecanicista da sociedade. Consubstancia-se, assim, a
incorporação da perspectiva positivista às ciências sociais, dando origem a uma “física social” cujo pressuposto básico assevera que as ciências naturais representam a concretização de um modelo de conhecimento universalmente válido.
Todo esse pano de fundo compõe também o cenário em que atuam os teóricos do
planejamento. Ao alvorecer do século XIX, quando a ciência social se deixou definitivamente embeber pela lógica própria do cientificismo mecanicista moderno, emergia uma
visão segundo a qual os meios para o alcance dos objetivos gerais da sociedade deveriam
ser atribuídos a especialistas, dotados da racionalidade científica. Os governantes, investiR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
33
3 A abrangência temporal
do Iluminismo aqui considerada é compartilhada com
aquela definida por Sousa
Santos (2005), qual seja, o
período compreendido entre
meados do século XVII, nascedouro da revolução da física newtoniana, e meados
do século XIX, quando a racionalidade iluminista atinge
as Ciências Sociais, sendo a
economia uma das disciplinas retardatárias nesse processo.
4 O atraso e a dificuldade
das Ciências Sociais em incorporar tal racionalidade,
segundo Kuhn (1962), devese ao seu caráter “précientífico” e à conseqüente
ausência de consenso paradigmático.
P L A N E J A M E N T O
5 “(…) should concern
themselves primarily with
general goals of policy, leaving the choice of the appropriate means to specially
trained experts”.
6 “Ordinary minds, untrained in the subtleties of the
scientific method, were no
match for the rationality of
those who knew how to
make judgements about
efficiency in relating means
to ends. Parliaments could
talk, but the real business of
the state would be conducted by men of public spirit
and far reaching vision who
had received the proper
education. Tied to entrepreneurial talent and finance
capital, the myriad applications of science would
ensure the steady forward
march of social progress.”
7 Evidente que em uma parte considerável do mundo,
principalmente nos países
alinhados ao dito socialismo
real, já no início do século
XX adotavam-se outros critérios para o planejamento
centralizado de seu desenvolvimento econômico. No
entanto, uma análise das especificidades do bloco de
países socialistas foge ao
escopo deste trabalho.
8 “(…) the state would plan,
the economy would produce, and working people
would concentrate on their
private agendas: raising families, enriching themselves, and consuming whatever came tumbling out from
the cornucopia”.
dos de poderes políticos, representantes legítimos da população, “deveriam se ocupar dos
fins gerais da política, deixando a escolha dos meios apropriados a cargo de especialistas
treinados”5 (Friedmann, 1987, p.4). Sob esses termos, que pavimentam as bases do planejamento moderno, os caminhos a serem seguidos com vistas ao suprimento de demandas da coletividade constituem uma questão essencialmente técnica, que deve obedecer a
critérios de eficiência. Assim, aqueles desprovidos da racionalidade científica moderna
não estariam aptos a opinar sobre as questões de interesse geral que visem promover o
progresso social.
Mentes comuns, não versadas nas sutilezas do método científico, não estavam à altura da racionalidade daqueles que sabem como fazer julgamentos sobre eficiência na relação entre meios e fins.
Parlamentos podiam conversar, mas o real negócio do Estado seria conduzido por pessoas dotadas
de espírito público e visão de longo alcance, que receberam o treinamento adequado. Associada ao
talento empresarial e às finanças, a miríade de aplicações da ciência garantiria a marcha firme
rumo ao progresso social. 6 (Friedmann, 1987, p.5)
Planejar, enfim, assumia peremptoriamente o caráter de uma empreitada científica
e de viés economicista. No tocante aos aspectos econômicos do planejamento – campo
primaz da ação política em sociedades capitalistas modernas – , as regras hegemônicas
passavam a ser ditadas por uma vertente liberal que retomava os princípios subjacentes às
teorias clássicas de autores como Adam Smith e David Ricardo, recheando-os com a racionalidade positivista em ascensão nas ciências sociais durante o século XIX. O conceito
econômico de eficiência seria o balizador das decisões a serem tomadas pelas instâncias de
planejamento.
Essa toada liberal foi a tônica vigente na transição do século XIX ao século XX,7 que
claramente se refletia e se sustentava no ideário do planejamento, embotado pela racionalidade positivista que edificava “um conhecimento causal que aspira à formulação de leis”
(Sousa Santos, 2005, p.29). A identificação da causa formal de um fenômeno social permitiria a realização de predições, uma vez que a ergodicidade, fundada na idéia de ordem
e estabilidade do mundo, configurava o pressuposto metateórico que regia o fazer científico. Tais predições seriam, em última instância, o instrumento balizador do planejamento, que permitiria manipular e transformar a sociedade, de forma similar à que os cientistas naturais se valem para dominar a natureza. “Tal como foi possível descobrir as leis da
natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade” (Sousa Santos, 2005,
p.32). No tocante aos aspectos da reprodução material da sociedade, a lei social basilar
que então presidia os fenômenos econômicos era o mecanismo smithiano de interação entre oferta e demanda, acrescido da tendência ao equilíbrio geral aventado por Leon Walras (1996). A racionalidade de mercado, que supostamente norteia o comportamento dos
agentes econômicos, asseguraria uma tendência estrutural e inexorável do sistema econômico-social ao equilíbrio.
A divisão do trabalho social, que Smith (1996) teoriza como sendo a fonte primaz
do aprimoramento das forças produtivas e motor do crescimento econômico e do progresso social, se daria conforme o seguinte trâmite: “o Estado planejaria, a economia
produziria e a população de trabalhadores se concentraria em suas agendas privadas: formar famílias, enriquecer-se e consumir o que sua riqueza puder comprar”8 (Friedmann,
1987, p.8). Esta é a ordem de coisas que rege a sociedade liberal, amparada em um “guia
social” que mescla o naturalismo e o individualismo como princípios filosóficos da ciên34
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cia que fundamenta o planejamento de caráter positivista vigente no início do século XX,
e que retorna fortalecido em fins do mesmo século, após um interregno mais intervencionista e socialmente agitado em seus meados.
A idéia de que o mercado, formado por agentes econômicos auto-interessados,
deixados à sua própria sorte, conduz a um estado de equilíbrio eficiente e a um resultado social agregado positivo, é dificilmente corroborada pela realidade. No entanto, a
assunção dessa racionalidade de mercado impera sobre as teorias economicistas de planejamento. Paradoxalmente, a exacerbação dessa perspectiva findou por fazer do planejamento, no ocaso do século XX, uma prática dispensável, uma vez que o comportamento auto-interessado dos indivíduos conduziria a um resultado social desejado,
independentemente de esforços conscientes de planejamento ou coordenação entre os
agentes econômicos.
Como já mencionado, é forçoso reconhecer que o planejamento guarda uma relação
orgânica com os requisitos da prática política, procura voltar o conhecimento para a ação,
seja no sentido de transformar, seja no sentido de controlar a sociedade e as relações que
lhe subjazem. Entremeadas nesse palco assaz conflituoso, atuam algumas perspectivas teórico-metodológicas e/ou práticas que se abrigaram em algumas importantes tradições de
pensamento sobre o planejamento, dentre as quais podem-se citar, seguindo a tipologia
aduzida por Friedmann (1987), a “reforma social” (social reform) e a “análise de políticas”
(policy analysis), que se impuseram hegemonicamente no capitalismo urbano-industrial
moderno, quer sob a forma de um arcabouço teórico-conceitual de natureza científica,
quer sob a forma de proposições políticas de controle social. A tradição dominante, que
concebia o planejamento como reforma social, referenciava-se numa matriz de pensamento positivista comteana (e saint-simoniana),9 segundo a qual a “ciência da sociedade” guiaria o mundo por uma trajetória de progresso social. O planejamento serviria, pois, a um
processo de guia ou direcionamento social (societal guidance)10 rumo ao progresso; este
concebido sob um viés tecnicista.
REFORMA SOCIAL E ANÁLISE DE POLÍTICAS:11 DUAS TRADIÇÕES E UMA SÓ DOUTRINA
A lógica que permeia o modus operandi do capitalismo industrial, assim como a teoria econômica (neo)clássica que procura explicar tal sistema (e em certa medida o legitimar), estão assentadas na assunção de busca da eficiência econômica stricto sensu, adutora de uma racionalidade que pressupõe o compromisso individual com um
comportamento auto-interessado, que se desdobraria em um resultado social agregado
compatível com os interesses da coletividade. Evidencia-se, assim, uma perspectiva argumentativa ajustada à doutrina smithiana da harmonia natural de interesses, cujo mote clássico traz a idéia de que “vícios privados resultam em benefícios públicos” (private vices
yield public benefit). Nesses termos, identificamos na teoria econômica clássica de Smith
a perspectiva naturalista cara ao antigo discurso aristotélico, porém desprovida do aspecto coletivista próprio deste. O aspecto coletivista perde sua primazia para o individualismo associado à racionalidade de mercado (market rationality).
Ao contrário da visão aristotélica supra, a doutrina individualista propugna a ascendência lógica do indivíduo sobre a sociedade, donde decorre que a razão deva ser exercida em nome do indivíduo, sendo que a satisfação das necessidades materiais individuais
passa a ser a principal razão da vida das pessoas em grupos sociais. Nesses termos, a vida
em grupo é válida enquanto potencializadora da divisão social do trabalho, que propicia
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9 Claude Henri de Rouvroy,
o Conde de Saint-Simon, é
identificado com o socialismo utópico francês. Autor
de obras importantes e defensor da primazia de uma
racionalidade tecnicista a
ser imposta sobre a sociedade, prognosticou a emergência de uma sociedade
industrial na Europa e contribuiu para a constituição de
todo um ideal da modernidade, além de ser um precursor da filosofia positivista.
10 Cumpre considerar que
a carga semântica inerente
aos termos “guia” e “direcionamento”, derivados do termo em inglês “guidance”,
assume aqui um sentido de
aconselhamento, além de
manipulação e/ou controle.
11 O leitor perceberá que
tratamos as correntes reforma social e análise de políticas de forma quase indistinta. Isto porque concebemos
a análise de políticas como
um desdobramento direto
da reforma social, em razão
da similitude das premissas
e objetivos de ambas as vertentes, assim como a afinidade de sua filiação filosófica e da linguagem utilizada
em seus discursos científicos. Devemos, no entanto,
reconhecer que há dessemelhanças, sendo que os
autores identificados com
cada uma das tradições não
formam um bloco monolítico. Consideramos, todavia,
que esse tratamento genérico não compromete os argumentos.
P L A N E J A M E N T O
12 “(…) production and livelihood depend largely on
market rationality, but unrestrained profit making destroys the bonds of human reciprocity that lie at the
foundation of all social life”.
o desenvolvimento das forças produtivas e permite maior oferta de bens e serviços que
atenderão às necessidades do bem-estar de cada indivíduo.
No entanto, as forças cegas embutidas na racionalidade de mercado historicamente
geraram muitos resultados sociais nefastos, tais como desemprego, pobreza urbana e altos
graus de desigualdade de riqueza. Revelava-se necessário, pois, contrapor aos mecanismos
de mercado uma racionalidade social, consoante à qual a razão seria exercida com vistas
a dirimir os resultados indesejáveis oriundos do comportamento auto-interessado de
indivíduos e corporações, ou seja, da racionalidade de mercado. Isto porque o modo de
produção capitalista é um sistema contraditório, em que “a produção e a sobrevivência
dependem em grande medida da racionalidade de mercado, mas a busca irrestrita do lucro destrói os laços da reciprocidade humana que estão na base de toda a vida social” 12
(Friedmann, 1987, p.29).
Nesse sentido, o Estado assume um papel de mediador de conflitos entre os interesses individuais e sociais. Enquanto expressão da totalidade da comunidade política, o Estado desempenha um papel ambivalente, que deve a um só tempo encorajar e potencializar os interesses de expansão do capital, e evitar que uma eventual exacerbação desses
interesses provoque efeitos nocivos sobre o tecido social. A administração desses conflitos
passa a ser a atribuição fundamental que cabe ao planejamento em sociedades de mercado.
Para se concretizar enquanto agente de reforma social, o planejamento precisou se
amparar em uma noção de racionalidade social que pudesse nortear o processo de “societal guidance”. Com vistas a catalisar uma reforma social, o planejador deveria munirse de uma capacidade de predizer o futuro com razoável grau de precisão, capacidade essa que é supostamente provida pelos modelos mecanicistas da “física social”. Para ser
efetivo, o planejamento deveria proceder a uma dinâmica de “societal guidance” que fizesse convergir as ações individuais conforme as leis sociais “naturais” (de mercado), simultaneamente à adoção de medidas corretivas sobre as “falhas” de mercado. Este último procedimento é, no mais das vezes, a única ação afirmativa no processo de reversão
dos efeitos nocivos da economia de livre mercado.
Nesse sentido, em uma sociedade de mercado, muitos dos “usos” a que se presta o
planejamento, embora levados a efeito em nome de uma racionalidade social, acabam por
se identificar paradoxalmente com os princípios de mercado, na medida em que se enfeixa a garantir a realização de lucros por parte de negócios privados individuais, fonte da
sobrevivência da maior parte das pessoas inseridas emuma sociedade capitalista.
Dessa forma, encontram-se entre as atribuições do Estado-planejador as diretrizes
gerais da economia, que incluem desde a provisão de serviços públicos – que muitas vezes significa parte dos custos de reprodução da força de trabalho – até investimentos em
infra-estrutura, passando por políticas macroeconômicas de incentivo ao crescimento e
conformação de um aparato jurídico-regulatório garantidor dos direitos de propriedade.
Sob esse prisma, a ingerência do órgão planejador sobre algumas atividades, tais como
provisão de serviços públicos de educação, saúde ou infra-estrutura urbana, embora apareça geralmente sob a alcunha de investimentos sociais – e portanto revestidos de uma racionalidade social –, constitui, com efeito, o atendimento às necessidades de aceleração
do processo de rotação do capital. Embora não constituam setores diretamente produtores de lucros, configuram meios de consumo coletivo e meios de circulação material que
impulsionam as engrenagens capitalistas, favorecendo indiretamente a reprodução do capital. Assim, a organização social capitalista permite uma (con)fusão entre interesses individuais e sociais.
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Evidente que a concepção de planejamento consubstanciada na reforma social, que
traz à tona a idéia de racionalidade social, guarda em si alguns propósitos de constranger
a operação das forças de mercado. No entanto, seu regime fundamental de societal guidance visa essencialmente à manutenção da ordem social capitalista, donde a garantia de
direitos individuais ganha preeminência, ainda que esse discurso seja muitas vezes proferido em nome da coletividade.
Adutora de uma visão de planejamento fundada em uma razão técnica, a corrente
da reforma social em larga medida incorporou aspectos defendidos pela corrente identificada por Friedmann (1987) como “análise de políticas”. Esta última vertente, que pode
ser considerada o ressurgimento fortalecido da reforma social em meados do século XX,
sob uma nova roupagem, propugna que as soluções para os objetos sociais do planejamento derivam de uma análise “científica” de dados. O tratamento dos dados coletados por
investigadores sociais seriam porta-vozes da realidade empírica e forneceriam subsídios
para a elaboração de planos de intervenção no domínio público. A relação de complementaridade estabelecida entre reforma social e análise de políticas representa, pois, a síntese
do planejamento moderno em sociedades de mercado.
Segundo os argumentos incutidos nessa síntese, o mundo é passível de apreensão objetiva a partir dos instrumentos da ciência positivista; e o objetivo do planejamento moderno consiste em tornar o conhecimento técnico e científico útil às ações de direcionamento social. Assentado nas idéias comteanas e saint-simonianas segundo as quais o
corpo social é regido por leis mecânicas e orgânicas, o planejamento economicista moderno argumenta que a sociedade está apta a administrar seu destino quando apresenta habilidade para predizer resultados futuros de fenômenos ou ações presentes. August Comte escreve em seu Plan of Scientific Works Necessary for the Reorganization of Society (Plano
de Trabalho Científico Necessário para a Reorganização da Sociedade):
Não pode pairar nenhuma dúvida de que o estudo da natureza realizado pelo homem deve fornecer a única base de sua ação sobre a natureza; e, portanto, somente conhecendo as leis que regem os fenômenos e, por conseguinte, estando apto a predizê-los, é que nós podemos, na vida efetiva, ajustá-los e modificá-los em nosso benefício (...) A relação entre ciência e prática pode ser
resumida em uma curta expressão: da ciência deriva a previsão; da previsão deriva a ação.13
(Comte, 1822 apud Lenzer, 1975, p.88)
Esta é a linha mestra pela qual se guiam a ciência e o planejamento na modernidade; aquela estabelecendo relações causais imutáveis e unidirecionais entre fenômenos sociais, este levando a efeito ações de societal guidance. “É objeto da ciência estabelecer fatos e leis imutáveis. Ao planejador é deixada a tarefa de guiar o curso do progresso social
conforme tais leis”14 (Friedmann, 1987, p.71). O planejamento assentado no binômio
“reforma social–análise de políticas” ambicionava moldar a sociedade a partir da obediência às leis naturais. Assim como os corpos em queda livre se submetem à lei da gravidade, a sociedade sucumbe às leis sociais naturais e cientificamente enunciadas. O planejador teria à sua disposição um sistema analítico que descreve a mecânica social,
“baseado na conceitualização científica e na pesquisa empírica, através das quais poderia
predizer que tipo de instituições e processos a sociedade industrial emergente iria requerer”15 (Ionescu, 1976, p.7).
No processo de societal guidance, o papel do Estado é manter sob sua tutela o poder
de orientação da sociedade, conduzindo-a conforme os ditames das leis sociais sacramenR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
37
13 “There can be no doubt
that man´s study of nature
must furnish the only basis
of his actions upon nature;
for it is only by knowing the
laws of phenomena and thus
being able to foresee them,
that we can, in active life,
set them to modify one another to our advantage (...)
The relation of science to art
may be summed up in a brief expression: from science
comes prevision; from prevision comes action”.
14 “It is the business of science to establish facts and
immutable laws. For planner
is left the task of guiding the
course of social progress in
accordance with these
laws”.
15 “(…) based on scientific
conceptualization and empirical research, and through
which he could predict what
kind of institutions and processes the emerging industrial society would require”.
P L A N E J A M E N T O
tadas pelo paradigma científico hegemônico. O planejamento é uma empreitada científica, seguidor fiel do cânone positivista comteano:
16 “The formation of any
plan for social organization
necessarily embraces two
series of works as distinct in
their objects as in the intellectual efforts they demand.
One, theoretical or spiritual,
aims at developing the leading conception of the plan
– that is to say, the new principle destined to coordinate
social relations – and at forming the system of general
ideas, fitted to guide society. The other, practical or
temporal, decides upon the
distribution of authority and
the combination of administative institutions best adapted to the spirit of the system already determined by
the intellectual labors”.
17 “The reliance of policy
analysts on the tools of neoclassical economics implies
that the value premises of
that discipline are built into
their work; chief among these values are individualism,
the supremacy of the market in the allocation of resources, and the inherent
conservantism of the equilibrium paradigm. Because
market outcomes are regarded as ‘rational’ for the actors involved, deviations
from them are normally
thought to require special
justification and are admitted only reluctantly”.
A formulação de qualquer plano de organização social necessariamente envolve duas frentes de
trabalho distintas, tanto no tocante aos seus objetos quanto no que tange aos esforços intelectuais
demandados. Uma delas, de natureza teórica ou espiritual, visa desenvolver a concepção inicial
do plano – isto é, o novo princípio destinado a coordenar as relações sociais – e formar o sistema
de idéias gerais adequadas para guiar a sociedade. A outra, de ordem prática ou temporal, decide sobre a delegação de autoridade e sobre o conjunto de instituições melhor adaptado ao espírito do sistema previamente determinado pelos trabalhos intelectuais.16 (Comte, 1822 apud Lenzer, 1975, p.19)
A tradição da análise de políticas, aqui tratada como desdobramento direto da reforma social, em virtude de sua filiação aos mesmos paradigmas científicos e políticos, veio
a acrescentar elementos ao corpo do planejamento, elementos esses que, fundidos aos
princípios social-reformistas, sintetizam a essência do planejamento na modernidade.
Originalmente, os estudos da policy analysis se voltavam para as tomadas de decisões microeconômicas de firmas e corporações, sendo suas construções teóricas posteriormente
generalizadas. Esta abordagem tinha por objetivo identificar os melhores cursos de ação
dentre algumas possibilidades e condições iniciais dadas. Para tanto, dever-se-ia empregar
a habilidade em realizar escolhas “racionais”, que lancem mão do maior número possível
de informações disponíveis e calcule de maneira eficiente os custos e benefícios de cada
trajetória possível. Os autores identificados com essa tradição se auto-proclamam tecnocratas, típicos “engenheiros sociais” à la Saint-Simon ou à la Comte. Crêem-se capazes,
através de modelos matemáticos e técnicas estatísticas, de identificar e calcular precisamente as melhores soluções para os dilemas sócio-econômicos.
A reforma social e a análise de políticas representam o triunfo da razão economicista e caracterizam-se, ao fim e ao cabo, por um conservantismo em relação ao estado de
coisas. A idéia que habita o seio dessa visão de mundo passa pela pretensão de extirpar do
planejamento todo o conteúdo ideológico ou passional, preservando tão somente a pureza do teor científico, capaz de descrever as leis que regem a sociedade e assegurar seu funcionamento de maneira a mais desimpedida. Ao planejamento moderno, sob a batuta
dessa corrente de pensamento e ação, cabia promover a extensão das relações sociais de
produção capitalistas urbano-industriais, legitimando a racionalidade de mercado.
A confiança dos analistas de políticas no ferramental da economia neoclássica implica que os valores e as premissas dessa corrente estão embutidas em seus trabalhos; dentre tais valores destacamse o individualismo, a supremacia do mercado na alocação de recursos, e o conservadorismo inerente ao paradigma do equilíbrio. Dado que os resultados de mercado são considerados “racionais”
pelos atores envolvidos, discrepâncias em relação a tais resultados requerem justificativas e só são
admitidas com relutância.17 (Friedmann, 1987, p.79)
Não é preciso mais do que uma olhadela ao redor e um bocado de senso comum para constatar que a empreitada do planejamento na modernidade, se tinha o propósito de
colocar a ciência a serviço do bem público, não obteve êxito. Essa perspectiva do planejamento moderno em sociedades de mercado acabou por se identificar com uma lógica
conservadora de manutenção do status quo, revelando-se no máximo comprometida com
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mudanças evolucionárias modestas próprias do capitalismo, negando a possibilidade de
transformações estruturais que revertam o processo de exclusão social típicas do modo de
produção hegemônico. A reforma social e a análise de políticas devotam seus esforços ao
aprimoramento do capitalismo, um sistema de produção e reprodução sociais que, na visão dessas correntes de pensamento, incorre em falhas mas é passível de aperfeiçoamentos; sendo considerado o modo de organização social mais avançado do qual a humanidade pode dispor. Buscavam, destarte, instalar e manter a ordem social burguesa.
Valendo-se do economicismo, que busca a descrição do organismo social por meio da
construção de modelos expressos em termos universais – cujas hipóteses simplificadoras
negam eventuais particularidades históricas, institucionais ou estruturais, tratadas tão somente como “falhas” de mercado a serem corrigidas – , o planejamento moderno padece
de uma incompletude no tocante a sua descrição de realidades específicas, seja pelo afã de
se autoproclamar “científico” e explicar a sociedade por um discurso objetivo, seja como
arauto de uma ingerência mínima do Estado na mecânica social, contraditoriamente extirpando do planejamento sua compleição enquanto meio concreto de ação transformadora no domínio público.
Do que vimos, temos em mãos um breve relato da forma assumida pelo planejamento na modernidade, umbilicalmente ligado às concepções da ciência positiva e da razão tecnicista e economicista que povoa o imaginário do homem moderno. Reconhecendo que o planejamento define-se pela relação complementar e dialética entre teoria e
prática, conhecimento e ação, ciência e política; e considerando ainda o caráter naturalista, mecanicista e positivista assumido pelo planejamento moderno como reflexo dos
matizes científicos, duas tarefas se interpõem aos propósitos do nosso trabalho: primeiro, enfatizar uma visão espacial, partindo da concepção segundo a qual as sociedades são
organismos espacialmente referenciados, a um só tempo indagando e buscando responder qual o papel reservado ao espaço nas teorias do planejamento e do desenvolvimento.
Segundo, sabendo que o planejamento é depositário de uma visão sobre o mundo, cumpre retomar a crítica às perspectivas epistemológicas tipicamente modernas (e ainda aceitas contemporaneamente), sugerindo passos na direção de uma agenda alternativa, que
olhe o mundo não somente enquanto instrumento analítico para entender racionalmente a realidade social, mas também enquanto projeto teórico-político, capaz de engendrar
uma construção crítica e propositiva emancipatória. É sobre estas questões que nos debruçamos nas seções seguintes.
O PAPEL DO ESPAÇO NA TEORIA DO
PLANEJAMENTO
Embora presente desde os primeiros excertos, o espaço não mereceu ainda neste texto o devido cuidado. Mencionamos en passant o fato de que o planejamento, já nos seus
prolegômenos durante a Idade Antiga, conferia ao contexto espacial um tratamento privilegiado no corpo das teorias e filosofias sociais. Isto porque os pensadores da antigüidade tinham a cidade e sua complexidade como expressão máxima e genuína da comunidade política, objeto da filosofia política e social. As teorias, os métodos e os instrumentos
do pensar e do agir sobre a sociedade estão intrínseca e dialeticamente correlacionados ao
conhecimento e à atuação política sobre a configuração espacial. Assim, as cidades, as regiões e as outras múltiplas escalas espaciais das quais a sociedade participa como tecido viR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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18 “As a consequence, any
idea of development outside
of neoliberal capitalism is
prohibited, as well as any independency of development
theory as a discipline distinct from the dominant neoclassical corpus”.
19 “(…) there is a standart
model of behavior applicable in all times and places.
(...) Heavily mathematical,
strongly normative, and reliant upon a host of absurdly
unrealistic assumptions, general equilibrium theory is
the keystone of all standard
microeconomics”.
tal, e nas quais os grupos humanos organizam sua reprodução social, são, por princípio,
objeto do planejamento.
Dessa forma, o planejamento deve incutir como ponto de partida a noção de que
seu objeto é um sistema de relações sociais espacialmente referenciado. A geografia da organização social assume papel ativo na dinâmica dos processos sociais, porquanto devem
figurar como aspecto de suma relevância na construção do conhecimento que informa o
planejamento no domínio público (Friedmann & Weaver, 1979; Friedmann, 1987). Ultrapassando a perspectiva vigente na modernidade, Soja (1993) preconiza por “espacializar” criticamente a realidade social, deslindando-a de forma mais reveladora, erigindo um
arcabouço mais abrangente e incisivo não apenas para a apreensão racional dos fenômenos socioespaciais, mas também para a fundação de práticas emancipatórias.
Não obstante, a tomada das ciências sociais pela perspectiva epistemológica do positivismo teve como desdobramentos, na teoria econômica, as construções teóricas neoclássicas fundadas no individualismo metodológico e nas premissas de otimização e
equilíbrio geral. No campo político, o mecanicismo desses modelos teóricos legitimou
o liberalismo e mais recentemente sua “neo-roupagem”, que apostam nos mercados como mecanismo coordenador da reprodução material das sociedades humanas; mecanismo esse que idealmente garantiria uma convergência inexorável dos padrões de vida e
níveis de desenvolvimento interregionais, muitas vezes ignorando as “rugosidades” espaciais que impõem atritos à disseminação da modernização tecnológica e do crescimento econômico pelos territórios em sua totalidade. O ideário hegemônico da modernidade, no desiderato de transitar de uma economia política para uma economia pura,
reduzia ao mínimo qualquer intervencionismo deliberado de instituições extra-mercado, ferindo de morte o planejamento e condenando as políticas de desenvolvimento regional ao fenecimento. ”Por consequência, qualquer idéia de desenvolvimento fora do
capitalismo neoliberal é proibida, assim como também o é qualquer independência da
teoria do desenvolvimento enquanto disciplina destoante do corpus neoclássico dominante”18 (Herrera, 2006, p.5). Adita-se a isso o fato de que tais construções teóricas tendem, via hipóteses simplificadoras que calçam sua argumentação, a homogeneizar contextos, o que traz como corolário a secundarização ou mesmo exclusão do espaço
enquanto variável de análise. Ao adotar premissas de homogeneidade, a teoria econômica convencional acabou por conferir ao espaço um papel adiáforo, uma vez que supostamente “há um modelo padrão de comportamento aplicável em todos os tempos e
lugares. (…) Profundamente matematizada, fortemente normativa e dependente de
uma série de suposições irrealistas, a teoria do equilíbrio geral é a base de toda a microeconomia convencional”19 (Herrera, 2006, p.8). Em grande medida, essa perspectiva
esvaziada do elemento espacial pode ser também explicada pelo fato de que seus formuladores, em geral cidadãos de países centrais, pensam uma realidade com grau relativamente baixo de heterogeneidade, mais próxima de uma configuração “clean space”. Essa concepção, segundo Soja (1993), mostra-se pouco atenta “à espacialidade formadora
da vida social como padrão de discernimento crítico”; e a variável espaço comparece
(quando comparece) travestida em custos de transporte de mercadorias a serem minimizados pelos agentes econômicos com vistas à localização ótima da firma ou à alocação eficiente de recursos.
A reflexão geralmente situa os atores num espaço sem relevo nem densidade, onde os obstáculos são
identificáveis por um sistema de custos (...) Esta visão das coisas aparece em perfeita consonância
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com a interpretação walrasiana da coordenação econômica do mercado, fundado sobre a média e
a homogeneidade, na medida em que a introdução do espaço não faz mais do que completar a
formação dos custos e, por conseguinte, por meio dos comportamentos de localização, o programa
otimizador dos agentes. (Pecqueur e Zimmermann, 2005, p.77-8)
Na economia política, o exercício de imaginação geográfica, mesmo quando não era
limitado analiticamente, permanecia marginal no corpus teórico geral. A percepção teórica implícita nos argumentos espaciais seminais, levados a efeitos por pensadores identificados com a economia política, ou circunscreveu-se ao status categórico de um insight poderoso porém pouco “desenvolvido” (formalizado), como à idéia de vantagens locacionais
(pecuniárias e tecnológicas) aduzida por Alfred Marshall; ou estavam alçados ao status de
conceito teórico sintetizador porém marginal no arcabouço dos economistas, donde os
elementos espaciais sempre tiveram sua importância sistematicamente negligenciada.
Neste último caso incluímos com destaque duas formulações: a idéia de renda fundiária
de J. H. Von Thünen, argumento-síntese da lógica locacional e indispensável ao entendimento da dinâmica urbano-regional; e a “Lei Espacial da Demanda” enfeixada por August Lösch, teoria espacial de caráter economicista, adutora da idéia de área de mercado.
O que importa reter é que, no campo de uma economia que renegava gradativamente o
adjetivo “política”, o espaço não era incorporado senão através da “força física ‘neutra’ da
fricção de distância”, expressa de forma metafórica (ou, se quisermos, fetichizada e reificada) em custos de localização e custos de transporte.
Alternativamente, algumas vertentes de teorias econômicas e sociais que têm o espaço como categoria privilegiada de análise reconhecem a complexidade da configuração espacial e sua relação dialética com os processos sociais, e recusam assim uma teleologia simplificada em suas formulações. Destarte, os autores identificados com essa perspectiva
revelam-se ciosos por uma olhar crítico que engendre uma “economia política da produção social do espaço”, e não somente uma descrição de processos econômico-espaciais por
meio de estruturas lógicas e unidirecionais de causa e efeito.
RUMO AO PLANEJAMENTO SOCIOESPACIAL CRÍTICO
Segundo Lefebvre (1991, 1999) e Soja (1993), as teorias sociais fundadas na racionalidade mecanicista típica da modernidade padecem de uma “ilusão de opacidade” no
tocante ao tratamento do espaço e acabam por obnubilar a imbricação dialética entre a
espacialidade concreta e as relações sociais imersas nessa espacialidade. O espaço opaco é
um lugar “sombrio e fechado”, que não se permite ser enxergado em todas as suas nuances. É uma materialidade espacial reificada, vista pelo prisma dos universalismos abstratos característicos da ciência moderna – lente pela qual as teorias econômico-espaciais de
cunho neoclássico enxergam o mundo. Edward Soja adverte que essa lente, em vez de
corrigir, clarificar e ampliar o campo de visão, induz “a uma miopia que enxerga apenas
uma materialidade superficial, formas concretizadas que são passíveis de pouco mais do
que a mensuração e a descrição fenomênica: fixas, mortas e não-dialéticas – a cartografia
cartesiana da ciência espacial” (Soja, 1993, p.14). Edward Soja herda de Henri Lefebvre
a sensibilidade de que, no capitalismo contemporâneo, o espaço é a categoria analítica privilegiada para entender a realidade social. Pela dialética lefebvreana, sintetizada no conceito de “espaço social”, o espaço transfunde-se na própria realidade social. Simultaneamente o espaço é um produto social e também tem vida própria, adquirindo, em uma
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visão global do sistema, o mesmo caráter de elementos como a mercadoria e o próprio capital, vistos enquanto categorias que ocultam em si as relações sociais de exploração e
apropriação do mais-valor que é a razão de ser do sistema:
20 “(Social) space is a (social) product. This proposition might appear to border
on the tautologous, and
hence on the obvious. There
is good reason, however, to
examine it carefully, to consider its implications and
consequences (...) Many
people will find it hard to endorse the notion that space
has taken on, within the
present mode of production,
within a society as it actually
is, a sort of reality of its
own, a reality clearly distinct
from, yet much like, those
assumed in the same global
process by commodities,
money and capital”.
21 “We have already been
led to the conclusion that
any space implies, contains
and dissimulates social relationships”.
22 Henri Lefebvre rejeita o
termo “planejamento”, preferindo utilizar a noção de
“projeto” como substituto,
este definido como uma “intervenção estratégica que
supera o relativismo da filosofia através do cálculo político”, sempre deixando explícita a concepção dialética
segundo a qual o possível (o
virtual) integra e molda o
presente (o real). Considerando que a negação do uso
do termo “planejamento”
mais significa uma negação
à feição assumida por essa
atividade na modernidade,
levamos adiante o uso do
termo em nosso trabalho
com mesma carga semântica do “projeto” lefebvreano.
Assim, usamos os termos
“projeto” e “planejamento”
indistintamente, como sinônimos.
23 “I shall demonstrate the
active role of space, as
knowledge and action, in
the existing mode of production”.
24 Em A Revolução Urbana,
Henri Lefebvre delineia um
processo heurístico para a
definição (ou descoberta)
do urbano substantivo, visto
O espaço (social) é um produto (social). Esta proposição pode parecer redundante, tautológica,
e portanto óbvia. No entanto, há boas razões para examiná-la cuidadosamente e considerar suas implicações e conseqüências (...) Muitas pessoas acharão difícil defender a idéia de que o espaço assumiu, no presente modo de produção, em uma sociedade como a atual, uma espécie de
condição própria, uma realidade claramente distinta, ainda que muito similar, àquela assumida, no mesmo processo global, pelas mercadorias, pelo dinheiro e pelo capital.20 (Lefebvre,
1991, p.26)
Fomos levados à conclusão de que todo espaço implica, contém e oculta relações sociais.21 (idem,
p.83)
“Localizar” o espaço no primeiro plano da investigação social torna-se então a tarefa a que se propõe Henri Lefebvre, de forma a sistematizar um planejamento (ou projeto)22 teórico e prático aplicável à configuração socioespacial do capitalismo contemporâneo, e que contenha um teor crítico e politicamente emancipatório.
Teóricos convencionais concebem o espaço tão somente como um receptáculo; seguem uma linha que “afirma serem os processos sociais desenvolvidos no espaço, de forma que o espaço apenas os mantém ou suporta” (Gottdiener, 1993, p.125). Remando
contra essa corrente, Lefebvre (1991, p.11) chama para si a tarefa de desfazer a reificação
espacial em que incorrem esses teóricos: “Devo demonstrar o papel ativo do espaço, como
conhecimento e ação, no presente modo de produção”.23 Logo, o espaço traz a economia
(modo de produção) e suas relações sociais subjacentes como elementos de fundamental
importância para sua compreensão. A reprodução das relações sociais que sustêm o sistema capitalista é condicionada por efeitos da aglomeração urbana, donde constatamos que
a evolução e perpetuação do sistema, mormente em seu estágio contemporâneo mais
avançado, realiza-se através de formas espaciais, ou mais propriamente de um contexto socioespacial:
(...) o capitalismo como totalidade é um projeto histórico inacabado. Como modo de produção,
mudou e alterou-se a fim de sobreviver. Lefebvre concebe a sobrevivência do capitalismo como
uma conseqüência de sua capacidade de recriar todas as relações sociais necessárias para o modo
de produção numa base contínua. Isso foi conseguido, no decurso dos anos, pelo uso do espaço pelo capitalismo. (Gottdiener, 1993, p.147)
Foi em seu livro The Survival of Capitalism que Lefebvre (1976) enunciou essa que
talvez seja sua afirmação teórica mais vigorosa no que concerne à colocação do espaço como elemento central na teoria social: foi por meio de um processo de espacialização, de
produção de um espaço conformado à sua lógica de reprodução, que o capitalismo descobriu-se capaz de atenuar suas contradições internas e sobreviver. O complexo socioespacial fundido conceitualmente na idéia do urbano (substantivo24) traz embutida a noção de que a dimensão espacial, ao favorecer a reprodução das relações sociais de
produção, permitiu a sobrevivência e o crescimento do capitalismo. O urbano “se apresenta, desse modo, como realidade global (ou, se se quer assim falar: total), implicando o
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conjunto da prática social” (Lefebvre, 1999, p.53). Trata-se de uma “revolução urbana”
adutora de uma espacialidade que se estendeu “fagocitando” a realidade social e incutindo-lhe sua lógica; lógica da qual o capitalismo se apropriou e colocou sob sua égide a fim
de se reproduzir.
Esboçando pensamento similar, Edward Soja deriva do urbano lefebvreano o conceito de urbanismo, que diz respeito à espacialidade específica que o capitalismo cria e põe a
serviço da valorização do capital, de sua reprodução ampliada e da aceleração do ciclo do
capital-dinheiro. Nessa perspectiva, o espaço ganha status funcional similar ao dos elementos protagonistas do capitalismo, como a mercadoria ou o próprio capital. Da mesma forma que a mercadoria e o capital constituem “entidades” que ocultam em si as relações sociais de produção, o urbanismo seria a conceituação sumária da relação dialética
entre o modo capitalista de produção e sua espacialidade socialmente criada.
De forma complementar à formulação sojiana, David Harvey (1973, 1975, 1977,
1992) argumenta que o espaço urbano é alvo de sucessivas construções, desconstruções e
reconstruções, com vistas a moldar-se pelas conveniências da reprodução do capital. Para
ele, a forma urbana cristalizada no ambiente construído (the spatial “fix”) é a expressão
material do capital, constituindo uma paisagem física funcional à acumulação. Harvey salienta ainda a necessidade de ver o ambiente urbano como lugar privilegiado não só da
produção industrial, mas também do consumo; como sítio da produção de mercadorias
e também da circulação e “realização” destas. Como afirmava Karl Marx, a criação do valor é caracterizada quando do processo de valorização ocorrido paralelamente ao processo de trabalho na fábrica, no momento em que a mais-valia é extraída da força de trabalho e incorporada na mercadoria produzida. Entretanto, até esse momento, não foi criado
mais do que um valor em potencial, que somente será efetivamente “realizado” pela “socialização” da mercadoria, consubstanciada pela sua venda (consumo). Assim, Harvey traz
a percepção de que o centro urbano é o lugar concentrador da demanda e, portanto, espaço da realização da mais-valia e da reprodução sistêmica do capitalismo. Além disso, está contido nessa percepção um diagnóstico da dinâmica urbano-regional, vinculada à dupla dependência do capitalismo em relação à concentração e à desconcentração espacial
da apropriação de mais-valia. Os núcleos de produção e os contextos regionais que os circundam são ambos importantes na medida em que o capitalismo depende, primeiramente, da concentração e depois da circulação do sobreproduto gerado na cidade. Erige-se,
pois, no centro urbano e sua articulação regional, um sistema socioespacial auto-contido
para acumulação de capital, na medida em que abrange todo o espectro do processo capitalista (produção, circulação e consumo), contemplando assim todo o ciclo do capitaldinheiro (D-M-M’-D’), desde a produção de mercadorias até a realização do mais-valor via
consumo nos mercados. A contribuição de David Harvey, portanto, passa pela concepção
do espaço urbano como uma “máquina” produtora e apropriadora de mais-valia, donde
o urbano constitui a espacialidade ideal, o habitat do sistema capitalista.
Formado pelo estruturalismo althusseriano, Manuel Castells (1977, 1999), por seu
turno, também concebe o espaço urbano como núcleo serviente à dinâmica capitalista,
porém enfatizando seu papel como locus da reprodução da força de trabalho. Por esse prisma, o núcleo urbano significa a aglomeração de um aparelho infra-estrutural que envolve a concentração espacial da tecnologia que ampara a indústria e principalmente da mercadoria essencial que gera valor no processo de trabalho industrial, qual seja, a força de
trabalho. Para tanto, o ambiente urbano oferece, por intermédio do Estado e outras instituições, os denominados meios de consumo coletivo, atinentes a habitação, transporte
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como um fenômeno socioespacial que é mais do que
as formas urbanas. É uma
espécie de síntese dialética
entre uma espacialidade difundida à totalidade do espaço social sob as formas
de tecido urbano e de uma
práxis típica da sociedade
urbana, “hoje virtual, amanhã real”. Trata-se de uma
realidade totalizante que se
desdobra na urbanização
completa: do território e da
sociedade. Cumpre aqui demarcar que o conceito ultrapassa a noção incutida no
urbano adjetivo, que diz respeito à caracterização de
aspectos relacionados à cidade propriamente dita.
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(acesso à fábrica), educação (treinamento), saúde (força de trabalho), entre outros elementos afins à diluição social dos custos de reprodução da força de trabalho.
Outro estudioso de inspiração marxista, Jean Lojkine (1981) amplia o escopo do argumento castellsiano ao trabalhar a idéia de condições gerais de produção, que em última
instância definiria o núcleo urbano (e suas articulações sobre a rede regional) como a espacialidade propícia ao desenvolvimento capitalista, em termos similares ao urbanismo
aventado por Soja. As condições gerais de produção são assim denominadas por abranger
toda a estrutura socioespacial que põe o capital em movimento, circunscrita a um contexto urbano-regional. Corresponde à configuração espacial que abriga a concentração dos
meios de produção, dos meios de circulação material e dos meios de consumo coletivo.
Em suma, o capitalismo é um modo de produção essencialmente urbano, que usa
essa espacialidade em favor de sua reprodução ampliada. Fazendo a mesma afirmação de
maneira invertida, a urbanização é a manifestação espacial do processo capitalista de acumulação, no sentido em que o tecido urbano (e regional) conforma um aparato socioespacial que sedia a acumulação de capital e favorece sua reprodução ampliada por concentrar as condições gerais de produção, sendo estas a consubstanciação das várias facetas do
ciclo capitalista, quais sejam: produção, circulação, consumo.
Os espaços regionais, formados pela articulação entre centros urbanos, são hierarquizados conforme a maior ou menor presença dessas condições gerais que imprimem ritmo
à dinâmica do capital: “a armação urbana aparece então antes de tudo através de sua rede de cidades (...) como uma distribuição social e espacial das diferentes condições gerais
da produção” (Lojkine, 1981, p.149). Dessa forma, é mister ter em mente que a funcionalidade sistêmica do capitalismo reside não somente na materialidade de cada centro urbano isolado, mas primordialmente em um plano socioeconômico-espacial de escala mais
ampla, constituído pelos fluxos de relações estabelecidos entre uma miríade de núcleos de
produção, donde constatamos que o capitalismo, além de se referenciar no ambiente urbano, caracteriza-se também pela sua projeção no plano regional.
Como acabamos de mencionar, a presença das chamadas condições gerais da produção não é ubíqua. Pelo contrário, os espaços capitalistas apresentam como característica
geral a distribuição não uniforme dos frutos de suas modernizações e dá origem a “urbanismos” marcados pelo desenvolvimento desigual em termos sociais e espaciais.
A simultaneidade de relações sociais e espaciais pode ser aferida com clareza na divisão regional do espaço entre centros dominantes e periferias dependentes, em relações espaciais de produção socialmente criadas e polarizadas; ou seja, no desenvolvimento geograficamente desigual. Essa teorização dos vínculos entre diferenciações sociais e espaciais
traz implícita a dialética socioespacial: as relações (sociais e espaciais) de produção e as estruturas centro-periferia são dimensões não dissociáveis. “Ao contrário, os dois conjuntos
de relações estruturadas (o social e o espacial) são não apenas homólogos, no sentido de
provirem das mesmas origens no modo de produção, como também dialeticamente inseparáveis” (Soja, 1993, p.99).
Dessa forma, a assimetria fundamental no plano das relações sociais de produção capitalistas, resumida na dicotomia capital vs trabalho, tem como contrapartida, no plano
espacial, o descompasso entre centro e periferia. O avanço do capitalismo é intrinsecamente marcado pelo desenvolvimento desigual, pelo acesso social e espacialmente seletivo às benesses dos progressos técnicos e demais frutos do processo econômico. Assim, a
geografia específica do capitalismo é caracterizada pela contigüidade ou mesmo justaposição de realidades sociais heterogêneas, muitas vezes antagônicas.
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A dinâmica espacial do capital exibe uma tendência centralizadora e vários são os
elementos que se diferenciam geograficamente: a composição orgânica do capital, o valor de reprodução da força de trabalho (salários), níveis tecnológicos e o grau de acesso
ao aparato de mais elevada tecnologia. Esses diferenciais regionais perpetuam-se em razão da concentração dos investimentos de capital, da infra-estrutura social e da presença hegemônica das condições gerais de produção em alguns pontos do espaço em detrimento de outros; o que finda por ratificar a concentração espacial dos meios de
produção, circulação e consumo, e das atividades econômicas como um todo, significando, portanto, uma concentração espacial das oportunidades de desenvolvimento.
Soja (1993, p.140), endossando argumentos de Ernst Mandel (1976, 1987), identifica na dinâmica capitalista uma tendência à “transferência geográfica de valor”, processo pelo qual o valor produzido em uma dada localidade periférica de menor densidade econômica é realizado em um centro mais desenvolvido, somando-se à base de
acumulação deste através do intercâmbio comercial. O centro caracteriza-se como base
exportadora de bens e serviços mais avançados, auferindo uma espécie de “mais-valia espacial”, ainda que esse conceito não tenha sido sistematizado. Esse processo regionalmente desigual é o gatilho de uma configuração centro-periferia que marca caracteristicamente a espacialidade do capitalismo.
De toda essa senda teórica, cumpre aos nossos propósitos enfatizar o papel central da dialética socioespacial para a compreensão do capitalismo contemporâneo. O
reconhecimento de que as contradições do modo de produção devem ser desvendadas
pela investigação do espaço socialmente engendrado é capaz de nos conduzir a uma teoria social mais robusta no balizamento do planejamento. A base para uma teoria espacializada do planejamento no mundo contemporâneo requer necessariamente uma
teoria da acumulação de capital em ambientes urbanos, que na nossa concepção de base lefebvreana adquire significante sinonímico à “economia política da produção social
do espaço”. Além disso, o planejamento do desenvolvimento regional só faz sentido a
partir da percepção do caráter estruturalmente desigual da organização espacial específica do capitalismo.
Rastreamos o papel do espaço no planejamento ao identificar, com o auxílio de
Henri Lefebvre e outros estudiosos neomarxistas do espaço, que a produção social do espaço é o mecanismo pelo qual o sistema capitalista encontra meios de se reproduzir amplamente. A espacialidade do urbano, refletida em formas e fenômenos socioespaciais, é
o plano (material e imaterial) privilegiado da produção e da reprodução das relações sociais capitalistas. Sutilmente, a teorização lefebvreana subverte a lógica dos teóricos convencionais do espaço, que tratam o elemento geográfico como um fator contingente (um
custo) que limita a dinâmica do capital. Lefebvre, sem negar os obstáculos que a materialidade espacial (o espaço banal, diria François Perroux25) impõe ao movimento do capital, enfatiza que, contraditoriamente, a dialética socioespacial – cuja síntese é o urbano pleno de relações sociais – é a instância que oxigena o capitalismo em sua corrida para
chegar cada vez mais longe.
A ponte requerida entre o papel teórico-analítico do espaço e a perspectiva política, no âmbito de um arcabouço econômico planejador, é bem construída por Doreen
Massey:
o entendimento da organização geográfica é fundamental para se compreender a economia e a sociedade. A geografia da sociedade faz diferença no modo como esta funciona. Se isso é verdade em
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
45
25 François Perroux (1964,
1967), pensador da economia política do espaço, pode ser considerado pioneiro
numa sistematização conceitual que concebe o espaço como elemento multidimensional. O autor propõe
uma distinção entre o espaço banal, concreto, “geonômico” e o espaço abstrato
ou “econômico”. O espaço
banal diz respeito ao plano
concreto, o continente cujo
conteúdo é a vida social em
sua totalidade. O espaço
econômico, por sua vez, diz
respeito a um plano paralelo
abstrato envidado pelas
múltiplas relações sociais e
fluxos econômicos “delocalizados”, que conferem ao espaço um caráter multifacetado, composto por pelo
menos três dimensões analíticas: é um espaço definido
por um “plano relacional”
(onde são estabelecidas relações entre elementos sociais e econômicos, como
firmas e seus fornecedores
de insumos e compradores
de produtos); é um espaço
caracterizado como um
“campo de forças” (centros
dos quais emanam forças
centrípetas e centrífugas); e
é um espaço visto como um
“agregado homogêneo” (homogeneous aggregate), habitado por unidades econômicas que se avizinham e
apresentam estruturas mais
ou menos homogêneas.
P L A N E J A M E N T O
termos analíticos, também o é em termos políticos. Para que haja alguma esperança de alterar a
geografia fundamentalmente desigual da economia e da sociedade [capitalista], faz-se necessária
uma política que ligue as questões da distribuição geográfica às da organização social e econômica. (Massey,1984 apud Soja, 1993, p.84)
26 “Regions and space are
a neglected but necessary
dimension of the theory and
the practice of economic
development. Without the
spatial point of view, the
analysis is incomplete”.
Lucas Linhares é economista do BNDES, mestre em
Economia
pelo
Cedeplar/UFMG. E-mail: [email protected]
Artigo recebido em setembro de 2008 e aprovado para publicação em janeiro de
2009.
Nesses termos, o regime de acumulação seria moldado pela produção social do espaço, donde a compreensão do capitalismo urbano-industrial contemporâneo e das relações sociais que lhe são características não prescinde de uma perspectiva espacializada.
Reafirmamos assim o papel do espaço na teoria social crítica. “As regiões e o espaço conformam uma negligenciada, porém necessária, dimensão da teoria e da prática do desenvolvimento econômico. Sem o ponto de vista espacial, a análise é incompleta”26 (Friedmann & Alonso, 1964, p.1).
Diante disso, chegamos ao entendimento de que uma teoria do planejamento deve
ser necessariamente espacializada. Endossamos a perspectiva grega além-milenar de que a
socioeconomia das cidades e regiões constituem o objeto de reflexão da teoria do planejamento. O espaço, hoje mais do que nunca, é revelador da realidade econômica e social,
porquanto deve ser concebido criticamente de forma a sustentar um projeto de desenvolvimento. Sendo o âmbito econômico a esfera hegemônica no capitalismo urbano-industrial, o planejamento do desenvolvimento prima por orientar a configuração econômicoespacial real por uma via emancipatória que signifique melhores condições de reprodução
ao conjunto da sociedade, de sorte que esta adquira maior autonomia na apropriação e
produção social de seu próprio espaço.
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P L A N E J A M E N T O
A
B S T R A C T In modern capitalist societies, the Planning Theory and Praxis reflects
a consolidation of a “mechanical” rationality model which treats social phenomena as they
could be described by universal and immutable laws. Specifically in the field on Political
Economy which is dominated by neoclassical corpus, searching for general theoretical schemes
tends to neglect the “space” as analytical category. Initially, this paper aims to make an
epistemological discussion and to make a critical assessment of the embodiment of the
“mechanical paradigm” by the Planning Theory. Moreover, this paper intends to put the space
on foreground of the Social Theory, i.e., the space is taken as a fundamental category to
comprehend the capitalist dynamics. Looking into socially built space allows us to reach a
socio-spatial dialectics and hence a more comprehensive Social Theory and a stronger Planning
Theory.
K
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E Y W O R D S
Planning; socio-spatial dialectics; modernity; social space.
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TEMPOS, IDÉIAS E LUGARES
O ENSINO DO PLANEJAMENTO
URBANO E REGIONAL NO BRASIL
R O S É L I A P É R I S S É D A S I LVA P I Q U E T
ANA CLARA TORRES RIBEIRO
R
E S U M O O artigo resgata, de forma sintética, mudanças observadas no perfil dos
cursos de pós-graduação em planejamento urbano e regional no Brasil frente a transformações
na economia e no sistema nacional de planejamento. O tema é tratado segundo uma periodização que destaca idéias-mestras de quatro fases do debate nacional sobre planejamento, incluindo seus vínculos com leituras do território: década de 1950 e início da década de 1960
(planejamento para a mudança e relevância da questão do desenvolvimento); década de 1970
e início da década de 1980 (planejamento tecnocrático e controle da escala nacional); décadas de 1980 e 1990 (predomínio da gestão e centralidade atribuída às forças do mercado);
tendências atuais (retorno à questão do desenvolvimento e crescente preocupação com o planejamento de longo prazo).
PA
L AV R A S
tema urbano; região.
-
C H AV E
Pós-graduação; planejamento; desenvolvimento; sis-
INTRODUÇÃO
Desenvolvimento, tema banido da agenda econômica nacional nos últimos 25 anos,
retorna ao centro das atenções e, com ele, o papel do planejamento e da formação de pessoal qualificado. Voltam à cena as análises sobre os motivos que induziram o nosso desenvolvimento a apresentar um caráter espacial e socialmente tão desigual. Retomam-se, enfim, as questões de longo prazo, buscando as razões que, nas palavras de Celso Furtado,
levaram à construção interrompida do país.
A constatação desse fato motivou a elaboração do presente texto, que tem como escopo mais amplo o resgate, ainda que sintético, de mudanças observadas no perfil dos
cursos de planejamento urbano e regional no Brasil frente às transformações ocorridas
no plano econômico e no sistema de planejamento nacional. O tema é tratado segundo
uma periodização que seleciona quatro fases históricas distintas, sendo que, em cada
uma, são destacadas as idéias-mestras imperantes no período, segundo suas vinculações
teórico-ideológicas.
A primeira fase é construída pelas principais concepções de desenvolvimento e subdesenvolvimento dos anos 1950 e 1960 que, no cenário latino-americano, corresponde à
fase do “planejamento para a mudança”, quando são lançados os primeiros cursos sobre
planejamento na América Latina.
A seguir, analisa-se a fase marcada pela conquista do poder por grupos antagônicos
aos princípios democráticos, e se aprofunda o caráter centralizador, autoritário e tecnocrático das estruturas de planejamento então existentes. Nesse período, o ensino de planejamento urbano e regional institucionaliza-se em nossas universidades, com a implantação de cursos de pós-graduação stricto sensu.
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T E M P O S ,
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Na terceira fase, indica-se como a crença exacerbada no jogo das forças de mercado
leva à rejeição do planejamento, e os cursos da área perdem sua marca de cursos de planejamento e deslocam seus currículos para o campo dos estudos urbanos e regionais. Nessa fase, enquanto a questão regional perde centralidade, os temas urbanos/locais ganham
proeminência.
Finalizando o texto, são indicadas as condições da atual retomada das políticas econômicas de longo prazo e o perfil dos cursos da área, que adquirem novas dimensões em
número, localização e conteúdo. Nos mais recentes cursos propostos à Capes, não só novos temas são incorporados aos currículos, como também a questão regional é revisitada.
PLANEJANDO O DESENVOLVIMENTO
1 Segundo Celso Furtado
(1961), a falta desse esforço teórico teria levado muitos economistas a explicar,
por analogia com a experiência das economias desenvolvidas, problemas que
só poderiam ser bem equacionados a partir de uma
adequada compreensão do
fenômeno do subdesenvolvimento.
No longo período de crescimento econômico e de modernização das estruturas sociais que as sociedades capitalistas ocidentais atravessaram após a Segunda Guerra Mundial, ganham relevo teorias sobre desenvolvimento, em que as políticas públicas compensatórias de base keynesiana são vistas como capazes de fazer frente às fases recessivas dos
ciclos econômicos e, de forma complementar, de reduzir desequilíbrios sociais e setoriais
derivados da estrita lógica do mercado. O Estado é percebido como o agente político e econômico apto a conduzir projetos de desenvolvimento que resultariam não apenas na expansão do produto e do emprego, mas também, na superação das desigualdades espaciais.
É nesse contexto que o planejamento, até então considerado inerente e exclusivo do
sistema socialista, passa a ser aceito e adotado pelos países capitalistas, porquanto é visto
como uma técnica de aplicação de políticas. Boa parte dos economistas mais importantes
da época, como Jan Timberger, Gunnar Myrdal, François Perroux e Vittório Marrama,
acreditava no planejamento, sendo as suas concepções amplamente aceitas nos meios especializados latino-americanos.
Na América Latina, não só havia um paradigma aceito por atores políticos e sociais
de grande relevância, como também o desenvolvimento econômico era um objetivo compartilhado. Acreditava-se, firmemente, ser o Estado o principal responsável pelo desenvolvimento. Um Estado investidor, regulador e, ainda, protetor do mercado interno e da indústria nacional.
O pensamento da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) dominava as
análises sobre os processos de crescimento das economias latino-americanas e orientava
muitas das propostas de política econômica nesse período. Albert Hirschman, Raul
Prebisch e Celso Furtado eram seus principais representantes. O debate da época voltavase para as idéias de crescimento, desenvolvimento, subdesenvolvimento e centrava-se em questões relativas à possibilidade de universalização dos padrões de produção e consumo praticados nos países que lideraram a revolução industrial. Furtado, o maior expoente do
pensamento econômico sobre o tema no Brasil, assinalava então que “o subdesenvolvimento é um processo histórico autônomo, e não uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimento” (Furtado, 1961:180). Portanto, sendo o subdesenvolvimento um fenômeno específico,
requereria um esforço de teorização autônomo.1
Prebisch, em linhas gerais, argumentava que, até o período da grande depressão dos
anos 1930, os países da América Latina tiveram sua dinâmica interna determinada pelo
crescimento persistente das exportações, mas que essa alternativa não mais se apresenta50
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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va. Isso levaria a concluir que a industrialização seria uma imposição dos fatos e, longe de
ser uma escolha, seria a única via de desenvolvimento deixada aos países exportadores de
produtos primários. Propunha uma estratégia de crescimento “para dentro”, dinamizada
por uma “industrialização substitutiva”, com forte intervenção do Estado.2
Essas idéias passam a influenciar importantes partidos políticos e governos da região,
que, sob essas concepções, apresentam propostas de planos nacionais de desenvolvimento econômico e social, com base no avanço do processo de industrialização. No cenário latino-americano, esta é a fase do “planejamento para a mudança”. À medida que o planejamento ganha impulso, os diagnósticos passam a destacar a natureza espacialmente
desigual da distribuição de recursos. A proposta centrada na industrialização trazia implícita a contradição entre a aceleração das taxas de crescimento econômico e a equidade interregional. Um crescimento a taxas mais elevadas poderia ser atingido concentrando-se
investimentos nas zonas mais desenvolvidas – as de maior produtividade e com um mercado consumidor com grande potencial de ampliação –, embora sob o risco de ampliação das desigualdades regionais. Caberia ao Estado, frente a este risco, compensar as “tendências do mercado”, e os quadros técnicos, com freqüência, julgavam ter o poder de
atribuir funções e de definir o destino das regiões. A crença no planejamento é então inconteste, o que leva Mattos a considerá-lo
2 As idéias básicas de Raul
Prebisch foram publicadas
em seu artigo “El desarrollo
económico de la América
Latina y algunos de sus principales problemas”. Boletin
Económico para América
Latina, CEPAL, fevereiro de
1961.
uma das idéias medulares que marcam as peculiaridades do século XX, na medida em que foi a
primeira ocasião ao longo da história da humanidade na qual se generalizou a crença de que o
ser humano teria a plena capacidade para empreender e construir um futuro desenhado antecipadamente por ele. (Mattos, 2001:23)
No Brasil, a partir da década de 1940, várias foram as tentativas de coordenar, controlar e planejar a economia; mas, até 1956, essas tentativas limitaram-se à formulação de
diagnósticos, propostas, medidas setoriais ou de racionalização do processo orçamentário.
Até então, o planejamento regional havia se restringido a esforços voltados ao desenvolvimento de bacias hidrográficas e, no plano urbano, a experiências de cidades planejadas
segundo princípios do urbanismo funcional-racionalista. É com o Plano de Metas do Governo Juscelino Kubitschek (1956 -1961) que tem início, de modo mais consistente, o
planejamento governamental.
A decisão de planejar é essencialmente uma decisão política, pois, segundo Lafer, “é
uma tentativa de alocar explicitamente recursos e, implicitamente, valores, através do processo de planejamento e não através dos demais e tradicionais mecanismos do sistema político” (Lafer,1970:30). Na decisão de planejar incide, também, um conjunto de problemas concretos relacionados principalmente à disponibilidade de pessoal técnico
qualificado, à existência de informações acessíveis, à capacidade de geração de projetos e
programas no setor público e no setor privado e, ainda, à possibilidade de coordenação
entre setores e regiões.
Neste sentido, eram especialmente precárias as condições existentes do Brasil na época. O ingresso no serviço público pelo sistema de mérito (concurso público), embora exigência legal desde a Constituição de 1934, era ainda muito limitado: cerca de 10 a 17%.
Diante dessa situação, foram apresentadas duas alternativas para a preparação do Plano de
Metas: prosseguir na tentativa de uma reforma total da administração pública federal ou
criar órgãos paralelos à administração normal, os “grupos executivos”, que seriam encarregados da implementação do plano, sendo essa a opção adotada.3 Além dessas limitações,
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51
3 É preciso lembrar que em
1958, segundo dados do
censo do servidor público
federal, havia 229.422 funcionários públicos federais,
porém apenas 28.406 eram
concursados. Diante desta
limitação, foram acionados
os órgãos onde predominava o sistema do mérito, como era o caso do BNDE,
Banco do Brasil, Superintendência da Moeda e do Crédito–SUMOC, e foram convocadas outras competências
disponíveis na administração pública.
T E M P O S ,
4 Wilson Cano se destaca
ao analisar em profundidade
as condições da concentração industrial em nosso país. Seu livro Raízes da Concentração Industrial em São
Paulo tornou-se um clássico
da literatura sobre o tema.
5 Quando se procurou dotar
o país de um parque industrial moderno, não se cogitou a imposição de normas
quanto à localização, seja
em termos regionais ou intra-urbanos. As decisões
quanto à localização, ao serem tomadas livremente,
pautadas unicamente por
critérios de rentabilidade privada, provocam uma elevada concentração territorial,
e os diferenciais de renda inter-regionais se ampliam.
I D É I A S
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L U G A R E S
era restrita a disponibilidade de dados e de informações confiáveis sobre a economia brasileira, o que dificultava o detalhamento e a compatibilização de metas entre setores e entre regiões.
Embora o Plano de Metas seja considerado exitoso, pois a maior parte de seus objetivos teve elevado grau de concretização, as medidas de política econômica adotadas foram baseadas em mecanismos concentradores de renda – não só por estratos sociais como
também por regiões – e tenderam a beneficiar o eixo Rio–São Paulo.4 Os desníveis interregionais se ampliaram; mas, estes efeitos da implementação do Plano foram considerados inerentes ao estágio de desenvolvimento do país. Esperava-se que a indústria, no futuro, irradiaria dinamismo aos demais segmentos da economia nacional e conduziria a
uma gradual redução das desigualdades inter e intra-regionais.
Entretanto, no decorrer dessa fase da economia brasileira, os desequilíbrios regionais
se agravam e as tensões sociais no Nordeste tornam-se explosivas, passando a ser vistas como uma questão de segurança nacional. É exatamente neste momento que é elaborada a
primeira Política de Desenvolvimento Regional sob a condução de Celso Furtado, sendo
que a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959,
traduz a tentativa de redefinição das relações entre o centro hegemônico e essa região.5
A esmagadora maioria da produção intelectual brasileira sobre a dimensão territorial
do desenvolvimento é então voltada para as questões relativas à concentração industrial e
aos chamados “desequilíbrios regionais”. O desenvolvimento urbano ainda não é considerado uma questão relevante e não há no Plano de Metas proposições específicas para o
seu tratamento. Neste contexto, a construção de Brasília pode ser interpretada muito mais
como uma resposta à necessidade de incorporação de novas áreas ao circuito da acumulação capitalista. O próprio Plano de Metas considera Brasília um “ponto de germinação”,
capaz de constituir-se em uma nova frente de expansão econômica.
À medida que se ampliavam os sistemas de planejamento latino-americanos, considerou-se relevante a formação de especialistas, dado tratar-se de atividade nova, para a
qual as diferentes administrações públicas nacionais careciam de pessoal qualificado. A
Organização dos Estados Americanos (OEA), a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e o Instituto Latino-Americano e do Caribe de Planificação Econômica e Social (Ilpes) realizaram os primeiros esforços na formação de recursos humanos para apoiar
e guiar os trabalhos de elaboração dos planos econômicos dos países da região. Nesse início, as dimensões regional e urbana foram tratadas de forma marginal, uma vez que o planejamento era dominado por economistas, mais preocupados com a “planificação do
desenvolvimento nacional” do que com o impacto social e espacial que poderiam ter os
planos que preparavam. (Hardoy, 1990:11).
A acumulação de capital nesta fase – aqui e no mundo – era muito mais localizada
em seu circuito de reinversão do que é hoje. As empresas cresciam em cada planta produtiva e esperava-se que a sua inscrição territorial durasse décadas. Assim, os diagnósticos
elaborados como primeira etapa do processo de planejamento passam a destacar a importância das desigualdades regionais e a recomendar a incorporação de medidas capazes de
enfrentá-las. Os governos dos países latino-americanos procuram então pôr em prática diversas formas de intervenção, com o objetivo de reduzir os chamados desequilíbrios interregionais e aumentar a capacidade de consumo da população de regiões mais atrasadas.
Em quase todos os países da região, são propostas políticas de desconcentração da indústria e de modernização do setor agrícola, de modo a integrar as estratégias de desenvolvimento regional às do planejamento nacional.
52
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Assim, ao desenvolvimento encontrava-se associada uma metodologia de como planejar, e nos primeiros cursos oferecidos não havia dúvida sobre o que deveria ser ensinado. Os princípios teóricos provinham do pensamento da Cepal e do Ilpes, e os manuais
de metodologia para a programação econômica eram as peças-chave da bibliografia básica desses cursos. O pessoal qualificado para atuar nos principais órgãos de planejamento
tinha sua formação aprimorada em universidades européias e no Chile, sede da Cepal e
do Ilpes.
O longo período de prosperidade do mundo ocidental entre o fim da Segunda
Guerra Mundial até meados dos anos 1970, conhecido como os “trinta anos de ouro” do
capitalismo, é bruscamente interrompido por uma profunda crise econômica que afeta
países como os Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França. Na América Latina, multiplicam-se os golpes de Estado, gerando um quadro político dominado por regimes altamente repressores dos direitos civis e sociais fundamentais. O Brasil foi “precursor” nesse
campo, pois uma década antes da instalação de ditaduras nos outros países latino-americanos, o término do mandato de Juscelino Kubitschek é marcado por grande instabilidade política e econômica, que culmina com o Golpe de Estado de 1964.
O FUTURO DESENHADO AUTORITARIAMENTE
Ao assumirem a direção do país em março de 1964, os militares adotam um discurso modernizador, comprometido com a retomada do crescimento econômico. Procuram legitimar o exercício do poder argüindo princípios de racionalidade econômica,
justificando, assim, a adoção de políticas econômicas concentradoras e excludentes. É
no período militar que o planejamento atinge seu auge no país, com a proposição de
cinco planos: Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG, 1964-67), Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED, 1967-69), Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND, 1969-74), Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND,
1974-79) e Terceiro Plano Nacional de Desenvolvimento (III PND, 1979-84).
O PAEG e o PED geraram poucas mudanças na organização territorial do país. O primeiro era voltado a implementação de políticas de curto prazo que visavam o controle das
taxas inflacionárias, a retomada de relações com os organismos internacionais de financiamento e a redução da insatisfação decorrente do déficit habitacional e da precariedade do
transporte urbano. Com o PED, o segundo plano do período militar, a recuperação econômica se processa basicamente por meio da utilização da capacidade ociosa da indústria
instalada desde o período do Plano de Metas.
É só a partir do I PND que a dimensão espacial do processo de desenvolvimento é
vista sob novo formato, diverso dos recortes regionais até então dominantes. A incorporação de novas áreas ao circuito produtivo - tais como o sul do estado do Pará com sua rica reserva mineral de Carajás e as vastas áreas agriculturáveis do Centro-Oeste - impôs um
olhar de conjunto mais complexo sobre o território. Desprezando as regiões tradicionais,
a estratégia adotada pelo I PND será baseada nos chamados programas especiais, tais como:
Programa Especial do Centro-Oeste; Programa Especial da Região Geoeconômica de Brasília; Programa Especial do Oeste do Paraná; Programa Especial do Grande Dourado;
Programa de Desenvolvimento Integrado da Bacia do Araguaia-Tocantins; Programa de
Pólos Agropecuários e Agro-minerais da Amazônia; Programa de Áreas Irrigadas do Nordeste; Programa de Desenvolvimento do Cerrado, entre tantos outros. Trata-se de uma
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53
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outra lógica de ocupação territorial, em que o planejamento baseado nas agências regionais de desenvolvimento perde importância.
O II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) corresponde ao projeto “Brasil:
Grande Potência no Final do Século”, que é o programa do governo que se inicia em março de 1974. O II PND tem como base um elenco de projetos formulados e implantados
diretamente pelo setor público. Se, na etapa anterior, os programas especiais romperam as
fronteiras de antigas regiões e impuseram uma leitura da totalidade do território nacional, no II PND os grandes projetos de desenvolvimento irão definir novas regiões.
É ainda no âmbito deste plano que a dimensão urbana do desenvolvimento do país
adquire maior visibilidade. Ganham vulto as questões relativas ao “congestionamento”
das grandes metrópoles e surgem as primeiras propostas de desconcentração industrial.
Para implementar a política de desenvolvimento urbano, foi criada, em 1974, a Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU). O Banco Nacional de
Habitação (BNH), que já vinha sendo preparado para assumir encargos relativos ao desenvolvimento urbano, institui programas que abrangem a infra-estrutura (Plano Nacional
de Saneamento–Planasa e Projeto Comunidade Urbana para Recuperação Acelerada–Cura), a implantação de novas comunidades urbanas (Projeto de Apoio ao Desenvolvimento dos Pólos Econômicos–Prodepo), o transporte de massa (Programa de Integração de
Transportes Urbanos–Piturb) e o planejamento urbano (Programa de Financiamento para o Saneamento–Finansa).
São igualmente ligadas à questão da desconcentração urbana as propostas referentes
ao fortalecimento dos centros de porte médio. Estas propostas deram origem ao “Programa de Apoio às Capitais e Cidades de Porte Médio”, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU). As cidades médias teriam – segundo os documentos que
embasam esse programa – o papel de propiciar a criação de novos pontos de desenvolvimento no território nacional, de estimular a desconcentração de atividades econômicas e
de população, de criar novas oportunidades de emprego e de contribuir para a redução
das disparidades interregionais e da concentração da renda. Assim, a preocupação com a
intensidade do crescimento demográfico das metrópoles nacionais – que absorviam
grande parte do contingente populacional com origem nas zonas rurais das diversas regiões do país – levou à proposição de uma nova função para as cidades de porte médio: a
de “dique” dos fluxos migratórios.
É nesse período que o sistema de planejamento assume um elevado grau de institucionalidade, fazendo com que seja impulsionada a capacitação de pessoal através da criação dos primeiros cursos de pós-graduação no país. Como o projeto dos governos militares era dotar o Brasil de instituições mais fortes no campo da pesquisa tecnológica, foram
propostos os primeiros cursos de pós-graduação stricto sensu nas áreas técnicas e em economia. São implantados os programas de mestrado em planejamento urbano e regional na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1970), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (1972) e na Universidade Federal de Pernambuco (1975). Em 1967, a Universidade
Federal de Minas Gerais já havia criado o Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional–Cedeplar, com a finalidade de abrigar um programa de pesquisa e ensino de pósgraduação na área da Economia Regional. Também em 1967, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada–Ipea, órgão criado em 1964, realiza diagnósticos inéditos da economia
nacional, que propiciaram maior conhecimento da dinâmica de numerosos setores.
A Secretaria de Planejamento da Presidência da República abrigava, além do Ipea, o
Instituto de Planejamento (Iplan) e o Centro de Treinamento para o Desenvolvimento
54
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R O S É L I A P. D A S I L V A P I Q U E T , A N A C L A R A T . R I B E I R O
Econômico (Cendec). Era de tal ordem a importância atribuída à formação de quadros
para atuação no sistema de planejamento, que a primeira turma do curso da UFRJ, então
sob a responsabilidade da Coordenação dos Programas de Pós-graduação em Engenharia–COPPE, é destinada a técnicos do Banco Nacional de Habitação–BNH, do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo–SERFHAU e órgãos do governo federal envolvidos com
o planejamento urbano ou regional.
Nesses cursos predominava a formação voltada para as questões nacionais, uma vez
que o projeto dos governos militares era transformar o país em uma grande potência no
final do século. Acreditava-se que a senda para o desenvolvimento poderia ser trilhada por
meio da elaboração de modelos econométricos e demográficos, baseados na geopolítica e
na doutrina da Segurança Nacional. A ênfase nas disciplinas quantitativas – em que a Matriz de Insumo-Produto e os princípios da Programação Linear predominavam – e a
crença nos princípios do planejamento racionalista dão o “toque de classe” nos cursos da
época. Novas influências se fazem presentes no planejamento territorial, como exemplificam a política francesa de aménagement du territoire e as propostas relativas aos pólos de
crescimento. Ambas tiveram ampla aceitação nos meios técnicos e serviram de base a propostas de regionalização do território nacional e a estratégias de desenvolvimento.6
Em março de 1979 inicia-se o último governo militar, quando evidenciam-se os sinais da desaceleração do crescimento da economia. No início dos anos 1980, o país enfrenta uma grave recessão: queda nos investimentos e no crescimento do produto interno, aumento das dívidas interna e externa, aceleração do processo inflacionário e
renda per capita praticamente estagnada. Nestas circunstâncias, o regime militar se vê
deslegitimado, uma vez que a tão propalada “eficiência econômica” não se sustentou na
prática. Em 1985, assume o governo um presidente civil, eleito indiretamente pelo Congresso Nacional.
O PLANEJAMENTO DOS NÍVEIS SUBNACIONAIS
Novas tendências da dinâmica socioeconômica mundial manifestam-se a partir de
meados dos anos 1970, configurando um cenário significativamente diferente daquele do
período do segundo pós-guerra, e pondo em cheque o planejamento econômico. Mudanças em curso trazem uma problemática nova quanto ao processo de acumulação de capital: o grande capital passa a ter uma enorme ubiqüidade, podendo localizar-se em qualquer região e produzir em qualquer outra, e esta, por sua vez, não passará de uma opção
entre muitas alternativas. Este não é mais um capital enraizado em seu circuito de reinversão. Ao contrário, cada parte desse capital articula-se diretamente com outras em escala global, integrando-se cada vez menos nas estruturas de produção regional ou nacional. Questiona-se, assim, se estariam ocorrendo a “dissolução das regiões” e a “aniquilação
do espaço pelo tempo” (Harvey, 1992), pois, segundo Coraggio, “o capital pode moverse a uma velocidade que guarda pouca relação com os tempos sociais ou os tempos políticos” (Coraggio, 1999:60).
No caso da América Latina, a crise fiscal do Estado e o esgotamento do modelo de
crescimento sustentado pela industrialização, fortemente dependente de investimentos do
setor público, conduzem à perda de legitimidade, e conseqüente enfraquecimento dos sistemas nacionais de planejamento. Em nosso país, o planejamento passa a ser criticado e
rejeitado, posto que identificado com o autoritarismo do período militar, no qual foram
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55
6 A Teoria dos Pólos de
Crescimento, desenvolvida
por François Perroux e seus
colaboradores, surgiu como
uma tentativa de resposta
aos problemas criados pelos desequilíbrios setoriais e
espaciais. Teve larga aceitação nos meios acadêmicos
do país, mas sua aplicação
encontrou obstáculos por
apresentar certa imprecisão
em conceitos centrais.
T E M P O S ,
7 Embora o planejamento
regulatório clássico das décadas anteriores não tenha
deixado boas lembranças,
pois no caso brasileiro é estreitamente relacionado ao
autoritarismo do regime militar, a mudança de ênfase
para “menos planejamento e
mais gestão” encobre uma
falácia, uma vez que nenhuma ação (e quanto mais a direção de uma cidade ou país!) prescinde de um mínimo
de “planejamento” e também porque o planejamento
e a gestão pressupõem
ações complementares,
não-conflitantes. Essas questões podem ser mais bem
entendidas em Carlos Vainer
(2002). Marcelo Lopes de
Souza (2006) também desenvolve uma longa discussão sobre as mesmas questões.
I D É I A S
E
L U G A R E S
atualizados conteúdos da dependência econômica, das desigualdades sociais e das disparidades regionais.
Neste cenário, caracterizado por dinâmicas econômicas heterogêneas e distribuição
do poder entre diferentes forças sociais, perdem sentido as tentativas de ressuscitar antigas concepções de planejamento. Com a redemocratização do país e as profundas mudanças no capitalismo, a gestão e as políticas públicas tornam-se radicalmente diferentes das
que imperavam na época do planejamento centralizado. Por sua vez, surgem novos desafios para os programas de formação de recursos humanos na área do planejamento.
Enquanto na década de 1970 intelectuais de esquerda viam o planejamento como
sinônimo de intervenção estatal a serviço dos interesses do capital, nos anos 1980, a rejeição ao planejamento advém dos setores de orientação liberal e se dá por outros motivos: o planejamento estaria servindo mal a esses interesses, uma vez que o Estado deveria
apoiar, da forma mais direta possível, a acumulação de capital, eliminando normas, reduzindo exigências legais, oferecendo incentivos fiscais, garantindo segurança aos investimentos e aumentando a fluidez do território.
O discurso de base keynesiana é então substituído por outro, de fundamento neoclássico, segundo o qual é o jogo das forças de mercado que permite assegurar um maior
crescimento da economia. A idéia básica que emerge desse corpo teórico é que a política
econômica deve ter como função principal contribuir para gerar um ambiente atrativo para o investimento privado, descartando a utilização de políticas que impliquem em intervenção direta do Estado na vida econômica, como defendiam os modelos de desenvolvimento das décadas anteriores.
Como os investidores dirigem-se para as atividades e espaços onde é mais lucrativo
investir, resta aos lugares – regiões e cidades – competir entre si por investimentos, o que
estimula o discurso que destaca o papel dos governos locais, vistos como agentes capazes
de induzir, mobilizar e promover o crescimento econômico. Postula-se que a taxa de crescimento de um determinado país, região ou, até mesmo, de uma cidade é função do capital físico, do capital humano e de conhecimentos detidos pela coletividade. Postula-se,
ainda, que caberia aos governos locais assegurar o fornecimento de equipamentos e serviços, baixar custos tributários e conceder subsídios, oferecendo um “ambiente adequado”
à conquista da preferência para a localização de empresas.7
A nova agenda dos organismos multilaterais – fortemente influenciada pelas idéias
de desenvolvimento sustentável, competitividade urbana e descentralização administrativa –
reforça a tendência à valorização do aumento da competitividade das cidades. Desde o
início dos anos 1990, estes organismos apóiam projetos e programas nesta direção, quase
sempre negociados diretamente com prefeituras, sem interferência do Estado-nação.
Abandona-se a perspectiva do desenvolvimento nacional e espera-se que a descentralização da responsabilidade para os governos locais produza o milagre de resolver os problemas de emprego e renda, miséria, questões ambientais e tantos outros, além de garantir a
governabilidade do sistema.
O nacional dá lugar ao local, e a gestão substitui o planejamento. Antes, o debate de
concepções e projetos estava centrado em torno de questões relativas às desigualdades interregionais, às carências de equipamentos urbanos de uso coletivo e à racionalização do
uso do solo, e agora a problemática do desenvolvimento remete ao campo da competitividade. Entra em moda o planejamento estratégico – inspirado e baseado no planejamento estratégico empresarial – no qual se advoga que as cidades devem ser administradas
como se fossem empresas, competindo entre si para atrair investimentos ou turistas. E a
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expressão empreendedorismo urbano ganha popularidade: o perfil ideal dos novos prefeitos seria o de gestores urbanos, aparentemente mais afeitos aos negócios e ao marketing do
que à política.8
Assim, com o enfraquecimento do Estado-nação, o planejamento na escala nacional
cai em descrédito e os programas de pós-graduação, concebidos para a formação de pessoal na área, são mantidos mas têm seus currículos direcionados para estudos urbanos e regionais, em que o regional perde posição e as questões intra-urbanas ganham proeminência, inclusive pela relevância dos processos de organização social e política que permitiram
o reconhecimento de direitos urbanos na Constituição Federal de 1988. É sintomático da
crise do planejamento territorial, porém, que no período de quase 20 anos (entre 1975 e
1993), nenhum novo curso tenha sido implementado na área.
Contudo, evidências empíricas da escala internacional, relacionadas ao desempenho
da economia, passaram a indicar que a aceitação incondicional do neoliberalismo não promovia maiores taxas de crescimento e, muito menos, a redução da concentração de renda,
seja no plano individual e familiar seja no plano das nações ou regiões. Ao contrário, esta
aceitação provocava o acirramento das desigualdades sociais e espaciais. Com isso, novas
vozes aparecem – não apenas aqui como também nos países pioneiros na aplicação dos
princípios teóricos e ideológicos do neoliberalismo –, promovendo o debate sobre as políticas de longo prazo. Um debate que, cada vez mais, explicita a centralidade do espaço e,
assim, dos conflitos e tensões relacionados à apropriação de recursos estratégicos.
PARA PENSAR O LONGO PRAZO: CONCLUINDO
O Brasil passou por profundas mudanças em todo o período analisado no presente
texto, dando um salto gigantesco em sua base produtiva. Um salto apoiado pela difusão
das redes de comunicação e informação, por mudanças institucionais e pelas novas formas de financiamento da economia. A expansão das condições técnicas de produção por
todo o território nacional embora alterasse a direção dos fluxos de mercadorias e a natureza dos movimentos migratórios ou, ainda, provocasse a emergência de novas regiões
econômicas, não foi capaz de fazer face à profunda desigualdade dos padrões de vida e às
precárias relações de trabalho vigentes no campo e na cidade. Não foi capaz de superar a
heterogeneidade estrutural com todas as suas conseqüências sociais.
Desde 2005, o país dá claros sinais de recuperação econômica, e se volta a falar na
importância de pensar o longo prazo. Neste contexto, as concepções de desenvolvimento passam a ser mais uma vez tema relevante nos debates sobre os destinos do país. O
enfrentamento teórico e político dessa questão requer avançar nas análises territoriais
com pesquisas que busquem identificar a lógica de funcionamento dos vários circuitos
de valorização do capital, em seus vínculos com as condições de vida da população. Para que seja reconhecida a dimensão deste desafio, convém destacar que, no país, como
afirma Brandão, seguindo as concepções de Tânia Bacelar e Celso Furtado, “nunca as diversidades produtivas, sociais, culturais, espaciais (regionais, urbanas e rurais) foram usadas no sentido positivo. Foram tratadas sempre como desequilíbrios, assimetrias e problemas”. (Brandão, 2007: 205) O autor alerta-nos, assim, para a necessidade de que
sejam reconhecidas as potencialidades existentes na diversidade, o que implica na articulação entre processos econômicos transescalares e a história, relativamente autônoma, de
regiões e lugares.
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57
8 Na análise de Vainer (op
cit), os novos prefeitos teriam a “legitimidade” que os
políticos “corrompidos” perderam e poderiam falar em
nome de uma vontade única, que visaria antes de tudo defender e promover a
“cidade” (vista como homogênea), em um processo
despolitizador e autoritário,
em que desapareceria a cidade do encontro e do confronto entre cidadãos.
T E M P O S ,
Rosélia Périssé da Silva
Piquet é doutora em Economia, professora titular da
Universidade Federal do Rio
de Janeiro e pesquisadora
do CNPq. Coordenadora do
Mestrado em Planejamento
Regional e Gestão de Cidades, da Universidade Candido Mendes–Campos. E-mail:
[email protected]
Ana Clara Torres Ribeiro
é socióloga, doutora pela
USP, professora do IPPUR/
UFRJ e pesquisadora do
CNPq e da FAPERJ. Coordenadora do Grupo de Trabalho Desenvolvimento Urbano
do CLACSO. E-mail: ana_
[email protected]
Artigo recebido em novembro de 2008 e aprovado para publicação em fevereiro
de 2009.
I D É I A S
E
L U G A R E S
Estamos diante, portanto, da necessidade de uma urgente resposta às seguintes perguntas: qual o novo perfil do profissional de nossa área? Quais são os conteúdos disciplinares e técnicos do planejamento socialmente necessário? (Ribeiro, 2002) Podemos
reconhecer nossos cursos como ainda voltados à formação de planejadores? Acreditamos
ser possível responder afirmativamente a esta última pergunta quando levamos em conta os acúmulos de conhecimento e o fato de o Brasil ser um país continental, periférico
e ainda subdesenvolvido, e que requer ser mais bem entendido, sobretudo para propiciar uma apropriação mais justa de seu território. Questionar os interesses constituídos nos
mais de cinco mil municípios, distribuídos numa grande variedade de contextos regionais, e estudar o papel exercido pelo capital imobiliário e industrial, pelo agronegócio,
pelo capital financeiro, pelas organizações políticas e sociais nas mudanças territoriais
são, sem dúvida, tarefas do presente. Além disso, o rescaldo da implantação abrupta e
descoordenada das políticas liberais da década de 1990 ainda está por ser feito – uma implantação que trouxe perdas institucionais, destruição de investimentos pretéritos e o
agravamento da crise social.
A descentralização administrativa, determinada pela Constituição Federal, traz novas questões relacionadas à procura de pessoal qualificado. A consolidação deste processo vem exigindo um melhor aparelhamento das administrações públicas locais, com o
conseqüente aumento da demanda por profissionais para atuar em prefeituras e órgãos
públicos em geral. Embora o planejamento, neste âmbito, geralmente se limite a ser um
esforço de coordenação administrativa, que não chega ao estágio de produzir efetivas
mudanças estruturais, a ampliação de conhecimento de processos econômicos, sócioespaciais e culturais poderá expandir a capacidade de ação do corpo técnico envolvido
nas tarefas administrativas.
As mudanças em curso na economia, na administração de recursos e nas formas de
organização dos interesses sociais evidenciam a necessidade de que o ensino do planejamento urbano e regional assuma diferentes programas e projetos entre as instituições de ensino, com vistas a atender às demandas regionais e locais de formação profissional (Piquet
el al, 2005). O desafio é reconhecer e tratar as diferenças sem gerar perdas teóricas; aderir
a modelos desconectados dos contextos investigados; aceitar modismos e cair em casuísmos. Mas, este desafio inclui, também, a superação de generalizações que, por estimularem
falsas homogeneidades, pouco avançam no conhecimento da diversidade que caracteriza o
país. Sem dúvida, cada vez mais, a sociedade brasileira requer ser mais bem conhecida, o
que dependerá da promoção de debates, entre especialistas e atores políticos, centrados na
construção de um futuro socialmente mais justo e territorialmente menos desigual.
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58
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(Orgs). A Cidade do Pensamento Único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes,
3ª.ed.
A
B S T R A C T This article brings, synthetically, the changes observed in the profile of
postgraduate courses on Urban and Regional Planning in Brazil in face to the transformations
in the economy and in the national planning system. The subject is organized under periods
which highlights the master ideas of four phases of the national debate on planning, including
its bonds to territorial interpretation: the 50´s decade and beginning of the 60’s decade
(planning to the changing and relevance of the development question); 70’s decade and
beginning of the 80’s decade (technocratic planning and control of the national scale); 80’s
decade and 90’s (predominance of the management and centrality attributed to the forces of
the market); current tendencies (return to the development question and growing concern with
the long-term planning).
K
E Y W O R D S
Graduate courses; planning; development; urban system; region.
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
59
OS LIMITES POLÍTICOS DE
UMA REFORMA INCOMPLETA
A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI DOS RECURSOS
HÍDRICOS NA BACIA DO PARAÍBA DO SUL*
ANTÔNIO A. R. IORIS
R
E S U M O Na última década, o uso e a conservação dos recursos hídricos no Brasil têm
sido objeto de um amplo processo de reformas e reorganização institucional. A experiência da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul foi selecionada como um exemplo paradigmático das reformas institucionais em andamento no país. Fazendo uso de métodos qualitativos de pesquisa,
foram analisados os objetivos e as deficiências da nova decisória. O estudo identificou, como limitante fundamental, a afirmação de uma racionalidade tecnoburocrática, empregada tanto na
avaliação de problemas, quanto na formulação de respostas. A expressão mais evidente é a importância estratégica atribuída à cobrança pelo uso da água, uma ferramenta de gestão altamente controvertida e que tem levado a uma polarização de posições políticas. Em larga medida, as
reformas institucionais no Paraíba do Sul têm sido limitadas em si mesmas, uma vez que a nova estrutura ainda impede a incorporação das demandas da maioria da população local e a resolução efetiva de questões ambientais historicamente estabelecidas.
PA
L A V R A S - C H A V E Hidropolítica, Ecologia Política, Gestão Integrada
de Recursos Hídricos, Cobrança pelo Uso da Água, Instrumentos Econômicos, Paraíba do Sul.
INTRODUÇÃO: O CONTEXTO DAS REFORMAS
DE GESTÃO AMBIENTAL
A modernidade brasileira tem como características fundamentais não somente a alteração da estrutura produtiva e das relações intersociais, como também a acentuada apropriação dos recursos naturais e o comprometimento da estabilidade ecológica em todos
os cantos do país. O processo de modernização, desencadeado especialmente a partir de
1930, produziu uma profunda complexificação socioeconômica, expansão agroindustrial
e reorganização política, mas sem que tenha havido cuidado para se evitar o aprofundamento da degradação ambiental, legado da exploração agrária colonial, e o surgimento de
novos conflitos relacionados ao uso do meio ambiente. A origem e o significado da problemática ambiental devem ser, portanto, entendidos como parte integrante de um processo de desenvolvimento socioeconômico essencialmente limitado e contraditório. Seguindo a terminologia sugerida por Habermas, a modernidade brasileira foi e continua
sendo um “projeto incompleto”, caracterizado por resultados econômicos efêmeros, desigualmente distribuídos e às custas de uma devastação ambiental generalizada.
Entre as diversas contradições ambientais da história recente do desenvolvimento
nacional, no que se incluem a poluição atmosférica, a degradação do solo e a dependência do automóvel privado, as questões de acesso, uso e conservação de recursos hídricos
certamente ocupam uma posição de destaque. Cabe relembrar que a manipulação dos estoques hidrológicos nunca deixou de ter um papel estratégico na industrialização e urbaR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
61
* Este artigo é parte dos resultados de pesquisa realizada em 2007, durante período de pós-doutoramento
junto ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e
Regional (IPPUR/UFRJ), sob
coordenação do Prof. Dr.
Henri Acselrad. Faz-se um
sincero agradecimento ao
apoio financeiro proporcionado pelo CNPq (protocolo
PDJ-155167/2006-5). O
mesmo agradecimento se
estende a todos que contribuíram com informações e
aos que gentilmente aceitaram ser entrevistados.
O S
1 Por exemplo, um escândalo que surgiu durante a
condução da nossa pesquisa envolveu a aprovação da
Barragem de Pratagy, orçada em US$ 60 milhões, através da influência exercida
pelo Presidente do Senado
Renan Calheiros (O Globo,
28 Maio 2007).
2 De acordo com o Movimento dos Atingidos por Barragens, mais de 200.000 famílias foram desalojadas
nas últimas décadas (cf.
www.mabnacional. org.br).
3 Instituição é aqui entendida, no sentido sociológico,
como “sistemas de regras
estabelecidas e preponderantes que estruturam interações sociais” (Hodgson,
2006, p.2).
4 Gestão de recursos hídricos envolve um conjunto de
medidas tomadas por órgãos governamentais e não
governamentais no sentido
de avaliar, dispor, usar e
conservar reservas de água,
processos hidrológicos e o
próprio espaço da bacia hidrográfica. Regulação de
uso da água inclui instrumentos legais, recomendações e incentivos utilizados
por agências públicas para
influenciar o comportamento individual e as instituições
sociais. Na doutrina jurídica
e administrativa contemporânea, os processos de gestão e regulação de uso da
água passaram a ser diretamente relacionados ao
emergente discurso de “governança ambiental” e “gestão integrada”.
L I M I T E S
P O L Í T I C O S
nização ocorridas ao longo do século 20 no Brasil. Por meio de investimentos vultosos,
alguns dos maiores projetos mundiais de engenharia hidráulica foram construídos no
país, normalmente financiados por agências multilaterais, com o objetivo de gerar eletricidade e abastecer cidades, indústrias e perímetros de irrigação (Ioris, 2007). A fase crucial de expansão hidráulica coincidiu com as duas décadas de autoritarismo militar, quando foram executados projetos como Itaipu, Balbina, Itaparica e Tucuruí, entre muitas
outras obras de infra-estrutura com orçamento bilionário e justificativa discutível. Se, por
um lado, tais obras de infra-estrutura representaram uma fonte de prestígio e poder para
gerações de políticos e engenheiros, por outro, a dramática transformação das bacias hidrográficas esteve notoriamente associada a escândalos de corrupção e à desestruturação
de comunidades tradicionais.1
O período terminal da ditadura militar deu vazão a uma percepção mais apurada a
respeito das conseqüências negativas de investimentos em infra-estrutura hidráulica e da
falta de uma gestão mais conseqüente. O país que experimentava um lento retorno à democracia tinha também que buscar soluções para uma realidade de rios degradados, poluição fluvial e subterrânea e redução da biodiversidade aquática, ao mesmo tempo que
grande parte da população continuava sofrendo com a falta de abastecimento de água e
esgotamento sanitário, além de haver cerca de um milhão de pessoas desalojadas em função da construção das grandes barragens.2 No início da década de 1990, o tempo estava
propício para novos arranjos institucionais que pudessem trazer resposta a antigos e recentes problemas de uso e conservação da água.3 Após anos de debate, descrito em Barth
(1999), o processo de reformas culminou com a sanção, em janeiro de 1997, da Lei da
Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/1997). Como uma contribuição à reflexão sobre a primeira década da nova legislação brasileira de recursos hídricos, o presente estudo pretende discutir a dimensão das reformas institucionais em andamento no Brasil à luz do contexto regulatório internacional e com um foco na gestão da Bacia
Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (BHRPS), localizada na região sudeste do país.4
Em função da evidente continuidade de problemas em quase todas as bacias brasileiras, os quais são devidamente reconhecidos pelo próprio Ministério do Meio Ambiente – conforme mostra, por exemplo, o Plano Nacional de Recursos Hídricos publicado
em 2006 –, nosso objetivo fundamental é questionar até que ponto a busca de uma melhor gestão de recursos hídricos no país tem se mostrado contida em si mesma. Ou seja,
indagar se os escassos resultados obtidos com a implementação das novas bases institucionais não são, primeiramente, decorrência dos próprios limites da reforma em curso.
À guisa de introdução, pode ser mencionado que, tendo em conta os dados coletados na
bacia e a análise de fontes secundárias de informação, dois processos fundamentais parecem caracterizar toda a experiência do Paraíba do Sul. Em primeiro lugar, as agências
públicas e as organizações privadas envolvidas na gestão de recursos hídricos fazem uso
cada vez maior de conceitos amealhados à literatura acadêmica contemporânea, mas sem
necessariamente considerar as especificidades históricas e geográficas locais. Em segundo lugar, as reformas têm claramente seguido pressões dos setores com maior força política, em especial os grandes grupos industriais e a burocracia do governo central. Apesar de um discurso de inclusão social, o processo de gestão reflete de forma marcante o
balanço desigual de poder entre, de um lado, os setores hegemônicos e, de outro, um
universo social disperso, composto por pequenos usuários de água, os quais enfrentam
múltiplas dificuldades para defender suas demandas frente a uma estrutura administrativa seletiva e (operacionalmente) fechada. Na prática, os pleitos e as opiniões dos pe62
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
A N T Ô N I O
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quenos usuários de água e da população em geral têm sido significativamente ignorados,
conquanto se tenta mistificar o impacto do envolvimento popular nas decisões que afetam a bacia hidrográfica.
Para se perceber o alcance e os limites das novas bases institucionais de gestão de recursos hídricos, é preciso considerar a correspondência existente entre problemas ambientais, modernização socioeconômica e disputas políticas dentro e fora do aparato estatal.
Como será demonstrado abaixo, as oportunidades de participação pública na BHRPS têm
sucumbido a um longo legado de conflitos e barreiras políticas que dificultam o atendimento de demandas sociais e ambientais mais amplas. Em grande medida, as falhas das
reformas institucionais em andamento podem ser atribuídas a uma racionalidade tecnoburocrática que vem sendo internacionalmente aplicada à avaliação de problemas e formulação de respostas. Estratégias tecnoburocráticas incluem a sistematização de conhecimentos científicos e gerenciais aplicados à gestão de recursos hídricos com o objetivo de
produzir resultados circunstanciais, ao mesmo tempo que mantêm inalteradas as configurações políticas e sociais preexistentes (cf. Ioris, 2008). O caráter conservador da tecnoburocracia, na bacia em estudo e no país como um todo, pode ser diretamente relacionado às contradições das políticas públicas atuais. Como em outras partes do mundo, desde
a década de 1990, a intervenção estatal na gestão de recursos hídricos no Brasil tem favorecido e atraído investimentos privados (como empresas de hidroeletricidade e de abastecimento de água), a expensas da diminuição da função anterior do Estado (também problemática, diga-se de passagem) de principal investidor e maior usuário de água.
A pressão (neo)liberalizante sobre o Estado tem como característica básica a busca
de novas formas de acumulação de capital, ao mesmo tempo que atenta, de modo centralizado e cientificista, à mitigação dos impactos ambientais mais prementes (ver McCarthy
e Prudham, 2004). A influência do neoliberalismo fica demonstrada pelo argumento que,
se no passado a expansão da infra-estrutura hídrica promovida pelo Estado era um requerimento básico do crescimento econômico, a gestão ambiental contemporânea não deve
agora representar obstáculos às novas oportunidades abertas pela globalização dos mercados. Surgem assim estratégias inovadoras de acumulação de capital através do uso e da
gestão do meio ambiente, tais como nos processos de privatização, mercantilização, desregulação e re-regulação, assim como na utilização da sociedade civil e ONGs para compensar as falhas da ação governamental (Castree, 2008). A consolidação de novas oportunidades de acumulação de capital é assim apresentada como algo desejável à sociedade
como um todo, mesmo a custas de graves conflitos e da produção de novas formas de degradação ambiental (Heynen e Robbins, 2005). A máxima do “crescimento econômico a
qualquer preço” – que serviu como pedra angular da industrialização e modernidade brasileira (cf. Guimarães, 1991) – continua a influenciar o uso e a gestão de recursos hídricos nos quatro cantos do país, mesmo que dissimulada em sustentabilidade e participação popular, como se verá no caso do Paraíba do Sul.
AS BASES DAS REFORMAS INSTITUCIONAIS:
IDÉIAS DE INTEGRAÇÃO E GOVERNANÇA
Para se estudar as reformas institucionais no setor de recursos hídricos, antes de tudo, é importante compreender que a bacia hidrográfica é um espaço socionatural (ou socioambiental) complexo e em permanente transformação (Swyngedouw, 2004; ver tamR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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5 Mais detalhes em: www.
ana.gov.br. Existem atualmente mais de 140 comitês
de bacia e 10.000 profissionais envolvidos no
Sistema Nacional de Gestão
de Recursos Hídricos
(SINGREH).
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bém Massey, 2005). Aquilo que mapas, hidrogramas e modelos de computador conseguem capturar são apenas momentos, ou fragmentos, de um sistema estruturado, aberto
e dinâmico: mesmo os fatores que aparentemente demonstram ser estáticos, como os divisores de água, a rede fluvial e o regime hidrológico, são regularmente transgredidos em
razão, por exemplo, de sucessões ecológicas, alterações geomorfológicas, migrações demográficas ou transferência e represamento de água. Desse modo, a bacia hidrográfica nada
mais é do que a soma das várias dimensões do espaço geográfico, que é simultaneamente
fixo, relativo e relacional (cf. Harvey, 1973), e tem como elemento integrador a contínua
circulação de água. A água existe como um elemento vital da profunda e perene inter-relação entre sociedade e natureza, descrita por Marx (1976, p.637) como uma “interação
metabólica entre homem e terra” – importante perceber que metabolismo (Stoffwechsel)
tem aqui um sentido ao mesmo tempo especificamente ecológico e amplamente social.
Longe de apresentar qualquer neutralidade política, essa interação metabólica entre sociedade e natureza incorpora diferenças e conflitos entre grupos sociais, uma vez que o acesso à natureza e os impactos da sua transformação são sentidos de forma diferenciada pelos vários segmentos da sociedade. Contestações em torno do uso e da conservação dos
recursos e do espaço da bacia hidrográfica não emergem de forma abstrata, mas dependem de circunstâncias históricas e geográficas específicas. Pode-se afirmar que, em grande medida, a inaptidão das respostas oficiais aos problemas de gestão de recursos hídricos
se deve à dificuldade de compreender essa dinâmica, complexa e politizada ontologia da
água e da bacia hidrográfica.
Nas últimas décadas, um grande número de reuniões internacionais e declarações
multilaterais tem contribuído para fazer da problemática da água um assunto de grande
interesse público, ainda que mantendo uma visão excessivamente setorial e fragmentada.
Desde a Conferência de Mar del Plata em 1977, passando pelos encontros de Dublin em
1992 e Quioto em 2003, governos e programas de cooperação têm discutido como reduzir o nível de impactos ambientais e melhorar os serviços públicos de água e saneamento (cf. UNDP, 2006). Tendo por base a crescente pressão de agências de desenvolvimento – e.g. o Banco Mundial tem sido um dos principais núcleos de formulação de
políticas públicas de recursos hídricos –, a maioria dos países, incluindo o Brasil, foi levada a iniciar uma reforma institucional baseada na gestão de água por bacia hidrográfica – coordenada por um comitê de representantes setoriais – e no emprego de instrumentos flexíveis de regulação ambiental – notadamente, taxas e incentivos econômicos.5
A contribuição acadêmica para esse debate internacional vem se desdobrando por diversas disciplinas, da economia à hidrologia, e pode ser claramente identificada pela formulação de novas metodologias, tais como gestão sustentável (Kay, 2000), gestão da demanda (Brooks, 2006), subsidiariedade (Moss, 2004) e gestão adaptativa (Pahl-Wostl,
2007). De todo modo, é provavelmente o termo “gestão integrada dos recursos hídricos”
(IWRM para a sigla em inglês, acrônimo de integrated water resources management) o que
melhor simboliza o novo “paradigma” de uso e conservação em expansão (Mitchell,
2005). Estudos recentes sobre a experiência brasileira demonstram que “a institucionalização de novas normas tem refletido diretamente a influência [no país] do conceito de
gestão integrada de recursos hídricos” (Conca, 2006, p.309). IWRM tem sido definida
como um processo que promove um desenvolvimento coordenado e uma gestão de água,
solo e outros recursos relacionados de forma a maximizar os resultados econômicos e o
bem-estar social de forma justa e sem comprometer a sustentabilidade de ecossistemas
vitais (GWP, 2000).
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Apesar da proliferação de publicações sobre a necessidade da integração da gestão, a
maioria das políticas públicas de recursos hídricos, no Brasil e no mundo, continua restrita a ajustes administrativos dissociados das dinâmicas sociais e ambientais concretas. Ao
se invocar o objetivo de integração de forma tecnocrática, há uma tendência de reduzir a
complexidade e as demandas socionaturais a simples equações matemáticas (e.g. Gatirana et al., 2008). Foi já observado que a postura arraigada de gestores e hidrólogos normalmente continua a considerar as questões políticas e sociais como “desvios” dos objetivos genuínos de gestão de recursos hídricos (McCulloch e Ioris, 2007). De acordo com
Mollinga (2001), as reformas institucionais em curso despertam grande interesse entre
gestores públicos devido ao fato de que facilmente se prestam a soluções estandardizadas
e que se aplicam igualmente a diferentes situações. Em especial, a influência do conceito
de gestão integrada, em que pese uma mudança de discurso, leva à compreensão dos problemas de recursos hídricos como mera decorrência da má utilização de técnicas administrativas e, principalmente, da subvalorização econômica da água. Devido a esse pensamento reducionista, a maioria das políticas públicas insiste em considerar a água apenas
como reserva de valor, mas não como um elemento básico de numerosos processos socioambientais e que operam em diferentes dimensões. Conseqüência direta desse raciocínio
é o pagamento pelos serviços ambientais, o mais recente ‘ovo de Colombo’ dos economistas ligados aos recursos hídricos (ver Silvano et al., 2005, para um exemplo recente no
Brasil). Ignora-se, assim, que intervenções nos sistemas hidrológicos tendem tradicionalmente a gerar custos, benefícios e riscos que são distribuídos de modo desigual nas escalas espaciais e temporais e percebidos de forma diferenciada pelos diversos grupos sociais
(Molle, 2007).
Assim como se busca uma gestão de recursos hídricos mais integrada, muitas das
políticas ambientais contemporâneas advogam uma melhoria de “governança”, tida como a remoção de barreiras que existem entre sociedade, Estado e mercado (Lemos e
Agrawal, 2006). A construção de uma nova governança deve passar por uma mudança
paradigmática da gestão ambiental, baseada em um envolvimento mais amplo da sociedade na formulação e implementação de políticas públicas (Judge et al., 1995). Governança ambiental é também entendida como a criação, reafirmação ou mudança de instituições com o objetivo de se resolver conflitos relacionados aos recursos naturais com
suficiente sensibilidade social (cf. Paavola, 2007). No setor de recursos hídricos, o conceito de governança é muitas vezes tomado como auto-evidente, sem a necessidade de
uma definição precisa (e.g. Abers, 2007), mas geralmente relacionado a um tratamento
dos problemas de gestão de água que prescinde da força coercitiva do Estado (Laban,
2007). A “crise” da água é tida como principalmente uma ‘crise’ de governança (GWP,
2000), a qual pode ser definida como a “capacidade de um sistema social de mobilizar
energias, de forma coerente, para o desenvolvimento sustentável dos recursos hídricos”
(Rogers, 2002, p.1). O último autor acrescenta que o conceito inclui uma habilidade de
desenhar políticas públicas “que sejam socialmente aceitáveis, que tenham como propósito o desenvolvimento e uso sustentável de recursos hídricos, e que tornem sua implementação efetiva pelos diferentes atores/interessados envolvidos no processo”. Como pode ser facilmente percebido, existe uma clara associação entre governança e gestão
integrada de recursos hídricos, demonstrada pela crescente procura por novas capacidades de geração e implementação de políticas e projetos (Rahaman e Varis, 2005). O sucesso da gestão integrada de recursos hídricos passa, assim, pela promoção de uma efetiva governança, a qual decorre do estabelecimento de consensos entre atores sociais e da
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6 Por outro lado, cabe
ressaltar que as pressões
econômicas sobre os recursos hídricos no Brasil não
se restringem ao período
neoliberal recente, mas estiveram profundamente associadas ao processo de
modernização socioeconômica mencionadoa acima. A
nova fase de regulação de
uso da água, que é o objeto
principal da presente discussão, apenas aprofunda e
redireciona mecanismos anteriormente estabelecidos
de apropriação privada de
recursos comuns e geração
de impactos negativos sobre largas parcelas da população. Um exemplo nesse
sentido é a degradação da
Bacia do Rio São Francisco,
a qual passou por um
processo de desenvolvimento hídrico (em um momento
prévio à fase neoliberal) assentado no latifúndio, na
construção de grandes barragens e na irrigação de
frutíferas voltada ao mercado exterior.
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concepção de sistemas de gestão com maior capacidade de perceber a complexidade dos
problemas de recursos hídricos (CEPAL, 2006).
Apesar de representar um avanço em relação às posturas antigas e mais tradicionais
(e.g. baseadas em infraestrutura e na imposição de regras rígidas), governança hídrica não
deixa de ser um conceito tão vago e contraditório quanto gestão integrada. Conforme
descrito por Castro (2007), para alguns, governança é apenas um instrumento, um meio
para se atingir certos fins, uma ferramenta administrativa e técnica que pode ser utilizada
em diferentes contextos. Para outros, trata-se de um debate entre alternativas que estão
em conflito, no qual a definição de fins e meios deve ser buscada no campo político e democrático. É importante ressaltar que a noção de governança surge no contexto histórico
da expansão neoliberal, quando o Estado passa a ser sistematicamente atacado por interesses privados fortalecidos por uma economia cada vez mais globalizada e que favorece o
surgimento de formas ‘plurais’ de ação, como, por exemplo, a formação de parcerias público-privadas e a substituição da sociedade civil por ONGs (Castro, 2007). O deslocamento de uma atuação centrada em “governo” para outra baseada em “governança” inevitavelmente envolve uma gama de interesses geográficos e econômicos diversos (Page e
Kaika, 2003), mas muitos dos que advogam essa transição subestimam o conjunto de forças governamentais e de mercado que produzem a destituição de recursos, a degradação
ambiental e a redução das oportunidades de sobrevivência das comunidades locais (Leff,
2003; Heynen e Robbins, 2005).
Apesar das evidentes limitações dos conceitos que atualmente dominam o debate no
setor de recursos hídricos, notadamente ‘gestão integrada’ e ‘governança ambiental’, são
ainda muito restritas as análises políticas das reformas contemporâneas de recursos hídricos. Por exemplo, são poucos os autores que reconhecem a situação de falta de água como um processo socialmente fabricado e que reflete a interação entre grupos sociais e entre sociedade e Estado (Mehta, 2007). Da mesma forma, grande parte do debate sobre a
nova agenda de recursos hídricos continua silenciada em relação à racionalização ideológica das políticas públicas, assim como ignora os mecanismos de controle relacionados ao
“bio-poder” do Estado moderno (cf. Foucault, 1984). Permanece, assim, uma barreira
conceitual que impede a percepção dos processos de exclusão urbana e rural, assim como
uma extensa ignorância quanto às relações entre fluxos de água e circulação de capital
(Swyngedouw, 2004). Mesmo aqueles que tentam relacionar as reformas institucionais
em curso com pressões econômicas e a ideologia neoliberal muitas vezes são incapazes de
compreender que a transformação da água em bem econômico (e mesmo em mercadoria) envolve arranjos sociais, econômicos, materiais e discursivos complexos (Köhler,
2005). Continua tímida a reflexão sobre as complexidades geográficas e políticas das reformas contemporâneas de recursos hídricos, ou, na linguagem de Sneddon e Fox
(2006), falta ainda uma “hidropolítica crítica” que conecte elementos de geografia política e socionatureza.
A análise hidropolítica é crucial para se compreender a evolução e as tendências dos
problemas de gestão de água em países como o Brasil, onde as desigualdades sociais e econômicas deixam marcas indeléveis no meio ambiente.6 Existe e se mantém uma clara politização do uso e conservação da água, como no caso recente de construção de grandes
barragens na Amazônia (e.g. na Bacia do Rio Madeira) e do início do projeto de transposição do Rio São Francisco para bacias mais ao norte. Os conflitos sobre recursos naturais
estão também ligados a sistemas políticos e econômicos estabelecidos ainda na época colonial brasileira (Bryant, 1998), enquanto que mudanças ambientais não são apenas o re66
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sultado do processo de desenvolvimento, mas o resultado de dinâmicas políticas e de conflitos de valores (Marsden, 1997). Importante ressaltar que essa dimensão política é continuamente negada pelo discurso oficial, especialmente no que diz respeito às desigualdades no acesso a serviços públicos ou pela exclusão de grupos marginalizados do processo
de tomada de decisão (cf. Zhouri e Oliveira, 2005; a respeito da continuidade autoritária
relacionada à construção de barragens, ver Ribeiro et al., 2005).
As próximas seções deste texto deverão examinar alguns aspectos de hidropolítica na
experiência na Bacia do Rio Paraíba do Sul, verdadeiro “microcosmos” das reformas institucionais em andamento no país. A análise seguirá uma abordagem de “economia política institucional”, conforme proposta por Bridge e Jonas (2002), para avaliar a consolidação de um sistema de regulação de recursos naturais por meio de “geografias específicas
de confrontação” [specific geographies of struggle]. A discussão atentará também à articulação entre diferentes dinâmicas e políticas espaciais (cf. Swyngedouw, 2000), notadamente entre os estados que compartilham a bacia e a atuação do governo federal. No caso do
Paraíba do Sul, a descrição de conflitos e dinâmicas geográficas é fundamental para se entender como a mediação de problemas por meio (principalmente) da expressão do valor
monetário da água tem limitado o alcance das reformas institucionais.
A EXPERIÊNCIA DA BACIA HIDROGRÁFICA DO
RIO PARAÍBA DO SUL
AS CARACTERÍSTICAS SOCIONATURAIS DA BACIA HIDROGRÁFICA
Ainda que o Brasil seja um país com rios imensos, alguns com mais água que nações
ou subcontinentes inteiros, em termos hidrológicos, o Paraíba do Sul figura como um rio
de porte mediano: a vazão média de longo período na altura da foz foi estimada em
1.118,40 m3/s – tomando-se em conta as séries históricas de 199 estações fluviométricas
e obtida através de estudos de regionalização (cf. Coppetec, 2006, p. VII-1) –, o que é significativamente menor do que os valores equivalentes para as grandes bacias hidrográficas
brasileiras.7 Mesmo assim, a BHRPS tem sido palco de alguns dos mais relevantes desdobramentos e contradições da história do uso e da gestão de recursos hídricos no país. Devido à sua localização estratégica, a BHRPS vem ocupando, há mais de 300 anos, uma importância econômica e política fundamental. A exploração da bacia teve início já no
século XVII com as primeiras incursões ao interior do território para explorar minerais e
aprisionar indígenas. No século XVIII, o Paraíba do Sul constituía o principal meio de comunicação entre a costa e os sítios de ouro em Minas Gerais.8 Com a introdução de café
em 1770, vastas áreas de terra foram desmatadas para abrir espaço para fazendas cafeicultoras. São desse período as construções imponentes dos famosos “barões do café” que dominavam a economia do Império; a aristocracia local era constituída por 32 senhores com
títulos nobiliárquicos, incluindo barões, viscondes e mesmo dois condes (para a lista completa, ver Müller, 1969). Em poucas décadas, porém, as altas taxas de erosão do solo começaram a comprometer a produtividade agrícola, e o centro da cafeicultura se deslocou
para outros estados. Um novo ciclo econômico se iniciou no final do século 19, com a
emergência da indústria têxtil e alimentícia, facilitada pela proximidade dos centros consumidores de São Paulo e Rio de Janeiro. O Vale do Paraíba foi uma das primeiras zonas
a se industrializar no país, tendo como um importante marco histórico a fundação da
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7 A área da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul é
de 55.500 km2 distribuídos
entre os estados de São
Paulo, Minas Gerais e Rio de
Janeiro. Mais de 5,4 milhões de pessoas vivem nos
180 municípios com território parcial ou totalmente
contido na bacia; a calha do
rio principal tem uma extensão de 1.100 km (Coppetec, 2006).
8 Cabe mencionar que,
além do papel econômico e
geopolítico, a bacia contém
o maior centro da religiosidade nacional, a Basílica de
Nossa Senhora Aparecida,
cuja imagem foi encontrada
por pescadores nas águas
do Paraíba do Sul em 1717.
Tal fato enfatiza ainda mais
o valor simbólico do Paraíba do Sul em relação a outras bacias hidrográficas
brasileiras.
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9 Essa transferência entre
bacias hidrográficas, que
serve também à geração de
energia hidroelétrica, tem um
resultado profundamente ambivalente. Por um lado, aumenta a disponibilidade de
água para o Rio de Janeiro,
uma região superpovoada,
com alta demanda hídrica,
mas com mananciais bastante degradados. Por outro lado, os volumes transferidos
desde o Paraíba do Sul imediatamente são subordinados às desigualdades sociais
e espaciais da região metropolitana. Ou seja, apesar da
aparente eficiência técnica
na operação de transposição
de bacias, o resultado final é
a produção de situações de
escassez tanto na área doadora, quanto na ponta receptora, uma vez que sua
distribuição segue padrões
tradicionais e elitistas de
abastecimento público.
10 Para maiores detalhes
da condição ambiental da
bacia, ver Coppetec (2002,
2006).
11 Apesar de nominalmente
dedicada à sociedade civil,
sua participação no CEIVAP
tem sido sistematicamente
negada pela nomeação de
representantes de federações de negócios, conselhos
profissionais e consórcios de
municípios como se fossem
genuínos representantes da
população em geral (Projeto
Marca d’Água, 2003).
12 “Mais especificamente, a
pesquisa foi desenhada seguindo os objetivos e conceitos do “realismo crítico” (cf.
Sayer, 1992), segundo o
qual, o método inclui não somente o componente empírico, mas também teorização
a respeito das relações sociais e da produção do conhecimento. A estratégia metodológica básica foi a busca
de uma “síntese” da realidade
concreta, que compreende
estruturas, mecanismos e
eventos. Foram examinadas
tanto as bases qualitativas
das relações sociais, como a
dimensão material e a interação com o meio natural. Os
trabalhos de campo (entre
março e maio de 2007) envolveram 20 entrevistas confidenciais (semi-estruturadas)
com usuários de água, servidores públicos e membros
do comitê da bacia, seguidas
de discussões complementares por e-mail nos meses
subseqüentes; foram produzidas detalhadas análises de
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Companhia Siderúrgica Nacional, a primeira grande instalação de siderurgia do Brasil, na
década de 1940.
Atualmente existe na bacia um parque industrial complexo, que contém mais de
6.000 unidades fabris e responde por aproximadamente 11% do PIB nacional. Neste contexto, a água é utilizada intensivamente por cidades, indústrias e agricultura, exercendo
grande pressão sobre estoques relativamente restritos de recursos hídricos. Importante
destacar que 2/3 da vazão no trecho médio do rio são desviados para o Rio Guandu com
o propósito principal de abastecer de água 80% da população na Região Metropolitana
do Rio de Janeiro.9 Existem ainda mais de 120 estações hidroelétricas em operação na bacia, entre pequenas, médias e grandes geradoras. A variedade de interesses e atividades em
torno da água na BHRPS, que justificaria um cuidado muito maior com a proteção e conservação da bacia, produziu um grave quadro de degradação e desequilíbrios ambientais
severos. Na verdade, a história da bacia pode ser resumida a ciclos econômicos descontínuos, crescimento desigual e persistente degradação ambiental (Aquino e Farias, 1998).
A grave condição ecológica é particularmente evidente na seção média do rio, justamente onde a maioria das hidroelétricas e das indústrias está localizada (Araújo et al., 2003).
Além da poluição industrial, a descarga de efluentes urbanos representa uma fonte significativa de impactos ambientais, especialmente tendo-se em conta que apenas 17,6% do
esgoto recebem alguma forma de tratamento. Como em tantas outras partes do país, ao
mesmo tempo em que a água serve primeiramente às prioridades do crescimento econômico, os impactos ambientais e a falta de serviços públicos afetam especialmente populações de baixa renda e áreas semi-urbanizadas.10
REFORMAS INSTITUCIONAIS DE GESTÃO E A CENTRALIDADE DO INSTRUMENTO
DA COBRANÇA
O reconhecimento da extensa degradação do Rio Paraíba do Sul e de muitos de seus
afluentes não é recente, mas tem sido objeto de repetidas, mas inócuas, respostas governamentais. A primeira tentativa de sistematizar o uso da água na bacia aconteceu em
1939, na seção de montante, no Estado de São Paulo, pelo denominado Serviço de Melhoramentos do Vale do Paraíba. Somente em 1968 o governo federal tomou a iniciativa
de estabelecer um órgão com o propósito de conter a degradação da bacia, chamado Comissão do Vale do Paraíba do Sul (COVAP). A comissão foi substituída em 1979 pelo Comitê Executivo de Estudos Integrados da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (CEEIVAP), o qual congregava apenas representantes de órgãos governamentais e tinha o
mandato de formulação de planos de recuperação ambiental. Como pode ser visto pelas
datas, COVAP e CEEIVAP foram estabelecidos durante o período de ditadura militar, e sua
composição excluía a participação da população local e dos usuários de água. Enquanto
o governo federal e as administrações estaduais mostravam-se incapazes de responder aos
problemas, na década de 1980, a bacia passou a ser conhecida internacionalmente por sua
condição ambiental. Foi somente quando os níveis de poluição passaram a comprometer
a própria atividade econômica, somado ao criticismo internacional, que reformas institucionais mais efetivas passaram a ser consideradas. Um novo comitê de bacia, chamado
Comitê para Integração do Rio Paraíba do Sul (CEIVAP) foi instalado no final da década
de 1990, segundo os preceitos da nova legislação nacional (Lei 9433/1997). A composição do CEIVAP inclui 24 representantes dos usuários de água, 21 representantes dos três
níveis de administração pública e 15 membros da sociedade civil organizada.11 Desde seu
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estabelecimento, o novo comitê recebeu apoio financeiro e político do governo federal e
passou a se caracterizar como uma “vitrine” do novo modelo de gestão de recursos hídricos no Brasil (ver Braga et al., 2005).
Tendo em conta a relevância simbólica e material da experiência local, especialmente o fato de ter sido a primeira bacia sob responsabilidade federal a adotar os novos instrumentos regulatórios, o Paraíba do Sul serve como excelente estudo de caso sobre a primeira década de vigência da nova lei brasileira de recursos hídricos. Nosso trabalho de
investigação seguiu as orientações de Watts e Pett (2004) de que o exame das relações entre eventos, estruturas e mecanismos, através de um senso estratificado da realidade, permite a explicação de processos por meio da reconstrução de teorias e conceitos preestabelecidos.12 Ainda nos primeiros estágios dos levantamentos de campo, foi possível
perceber que as atividades do CEIVAP têm se caracterizado por uma agenda repleta de reuniões e cerimônias, muitas vezes com a participação de ministros e altas autoridades, e
que a bacia tem atraído uma crescente atenção de círculos acadêmicos e ocupado as manchetes da grande mídia. Uma investigação mais minuciosa permitiu identificar que, por
trás dessa constante publicidade a respeito dos desdobramentos das atividades do comitê, grande parte do esforço tem se restringido a uma única questão: a implementação da
cobrança pelo uso da água (conforme previsto no Artigo 19 da Lei 9.433/1997). 13 Mesmo o conteúdo dos planos e documentos produzidos pelo comitê (CEIVAP) tem se concentrado em torno do cálculo e da aplicação da cobrança. Por causa dessa “hipertrofia”
do papel dedicado à cobrança, ainda no início nossos trabalhos de campo foram redirecionados e passaram a considerar de modo mais específico as controvérsias a respeito da
cobrança pelo uso da água na BHRPS. A decisão de redirecionar o foco da pesquisa foi
mais tarde justificada quando nas diversas entrevistas quase todos os informantes desejaram espontaneamente dedicar a maior parte do tempo discorrendo sobre como a cobrança vem afetando a gestão de recursos hídricos. Dessa forma, a implantação da cobrança
passou a ser a principal referência a respeito do nível de participação pública e da efetividade do novo modelo institucional de gestão de recursos hídricos. Como vai ser discutido abaixo, a centralidade da cobrança pelo uso da água – um dos pilares do modelo de
governança hídrica em implementação – gera uma evidente situação de ambigüidade institucional, uma vez que reduz o foco nas soluções dos problemas para dedicar especial
atenção a processos administrativos altamente conflituosos. A adoção da cobrança pelo
uso da água contribui para aumentar a percepção das questões socioambientais, mas sem
necessariamente criar uma “totalidade” que inclua a multiplicidade de atores e interesses.14 Para ser consistente com os critérios metodológicos sugeridos por Watts e Pett
(2004), foi necessário examinar não apenas os resultados finais das diversas esferas de decisão voltadas à aplicação da cobrança, mas também compreender o processo de negociação e o jogo de interesses envolvido, particularmente porque a aprovação da cobrança
pelo uso da água na BHRPS seguiu uma longa e tortuosa jornada de disputas setoriais e
articulações políticas. Embates similares têm ocorrido em instâncias do sistema nacional
de gestão, como no Conselho Nacional de Recursos Hídricos, mas a experiência do
Paraíba do Sul contém particularidades geográficas e históricas da maior relevância. A
prioridade dedicada à cobrança passou a ser mais evidente a partir do ano 2000, quando
ficou claro para a maioria dos membros do CEIVAP que era necessário reduzir a dependência em relação ao apoio financeiro proporcionado pelo governo federal (conforme
detalhado por Gruben et al., 2002, e Tedeschi, 2003). Entre 2000 e 2002, as opiniões
contra e a favor da cobrança dividiram o comitê em dois pólos de opiniões antagônicas.
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políticas públicas. Houve também a participação em diversas reuniões abertas e encontros de mobilização. A
metodologia de seleção das
entrevistas teve por base as
recomendações de Cloke et
al. (2004) no sentido de envolver informantes com conhecimento, experiência e
disposição de participar. Foram escolhidos representantes de diferentes setores de
usuários de água distribuídos
entre os três estados da federação que compartilham a
bacia (RJ, SP e MG). Os contatos preliminares foram feitos em função da análise de
documentos oficiais e sugestões de outros participantes
envolvidos no início da pesquisa. O conteúdo das entrevistas foi analisado de forma
a salientar pontos de convergência e divergência entre as
posições de diferentes grupos, mas também em relação às metas de políticas públicas e planos aprovados
pelo comitê da bacia. A interpretação dos resultados situa-se no campo da “ecologia
política”, ou seja, o entendimento que política é inevitavelmente ecológica, ao mesmo tempo que a ecologia é
intrinsecamente política (Robbins, 2004).
13 Trata-se aqui da cobrança
pela captação de água de
manaciais e pela descarga
de efluentes. As taxas de serviço água e esgoto tradicionamente cobradas desde o
século 19 no Brasil dizem
respeito aos custos de tratamento e distribuição de água
e coleta e tratamento de efluentes, mas não incluem o
chamado “custo ambiental”,
que é justamente o propósito
da nova legislação. Ou seja,
a Lei 9433 estabelece o
pressuposto legal (que havia
sido vagamente mencionado, mas nunca implementado, no Código de Águas de
1934) de que os mananciais
de água têm um valor econômico per se e, por essa razão, deve haver uma taxa
correspondente a ser paga
ao Estado, após aprovação
pelo respectivo comitê de bacia hidrográfica. O Artigo 19
da lei determina ainda que a
cobrança pelo uso de recursos hídricos deve incentivar
o uso racional e financiar programas e intervenções.
14 Cabe agradecer a um revisor(a) (anônimo) a gentileza de nos alertar para essa
questão.
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A favor da imediata adoção da cobrança estavam os representantes do governo federal –
cujo interesse principal não era diminuir seus gastos com o comitê, mas fazer avançar a
implementação da nova lei de recursos hídricos –, executivos do próprio comitê, acadêmicos e a maioria das ONGs ambientalistas. Contra a cobrança posicionaram-se os representantes dos setores industrial, agrícola e de hidroeletricidade. Um pequeno número de
participantes mantinha-se indeciso sobre a melhor alternativa. Durante essa fase de debates, as reuniões do CEIVAP passaram a se constituir em um “campo de batalha”, onde os
representantes dos setores econômicos, indústria em particular, exprimiam sua inconformidade e questionavam a oportunidade de se adotar a cobrança naquele momento. De
acordo com alguns dos nossos entrevistados, esse acalorado debate, em vez de aprofundar a democracia interna no comitê, resultou em mútuo cepticismo e gradualmente reduziu o papel de liderança que o comitê deveria estar ocupando na resolução dos problemas de gestão de recursos hídricos. A controvérsia apenas aumentava as incertezas sobre
como a futura arrecadação dos valores advindos da cobrança seria revertida em benefício
da bacia; ao mesmo tempo, não havia nenhuma definição a respeito de como taxar os
usos não consuntivos de água (e.g. geração hidroelétrica) e como lidar com a transferência de água da bacia do Paraíba do Sul para o Rio Guandu.
Durante essa fase inicial, importantes representantes do setor industrial mantiveram
uma postura reticente em relação à formação da Agência Nacional de Águas (ANA) em
2001, uma vez que a mesma não estava prevista na legislação original de 1997. A disputa entre regulador (e.g. ANA) e aqueles a serem regulados (e.g. indústria) somente cresceu
quando a Agência, já no início das operações, percebeu que a implementação da cobrança na BHRPS representaria um passo altamente estratégico para sua justificativa política e
administrativa (cf. comunicação pessoal de superintendente da ANA ao autor). Considerando o jogo de disputas durante esse período inicial do CEIVAP, uma das nossas entrevistas com representantes dos usuários de água colheu a seguinte observação:
Pergunta: ... levando-se em conta que a ANA foi criada anos depois de o CEIVAP ter sido instituído, como o senhor avalia a contribuição da agência para o processo de reorganização da gestão
na bacia?
Resposta: Não havia necessidade de se criar a ANA quando o sistema nacional de recursos foi estabelecido (…); o problema é que as pessoas vêem a ANA como um braço do governo e [por essa
razão] apenas um coletor de taxas (...); no geral, a ANA tem alargado os conflitos na Bacia do
Paraíba e muito além – membro do CEIVAP. (entrevista, Maio 2007)
15 Contudo, a CSN, o maior
usuário de água, contestou
a cobrança na Justiça.
A controvérsia em torno da implantação da cobrança teve uma curiosa mudança de
rumo quando em 2002 o setor industrial inverteu sua oposição contrária à cobrança e
passou abertamente a concordar que se pagasse uma taxa proporcional ao uso da água.15
À primeira vista, parecia que os industrialistas passaram a concordar com o argumento
dos demais membros do comitê e aceitaram a idéia que a cobrança representaria um
“avanço” no tratamento dos problemas ambientais ao responsabilizar diretamente aqueles
usuários que causam impactos ambientais. Contudo, com o tempo ficou claro que a real
razão para a mudança de postura foi muito mais uma decisão estratégica do que uma tomada repentina de consciência ambiental: na verdade, uma vez que a introdução da cobrança estava prevista em lei e era inevitável, dada a pressão da ANA e de outros grupos
com representação no comitê, a indústria preferiu adotar uma posição pró-ativa e garan70
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tir tarifas reduzidas, além de capitalizar politicamente. Para o público externo criou-se a
impressão de que as indústrias na BHRPS estariam contribuindo efetivamente para a resolução dos (graves) problemas que ela mesma ajudou a causar, mas de fato houve apenas
um movimento de aceitação de valores de cobrança relativamente baixos, com o benefício de ter sua imagem politicamente consolidada. Como historiado por FormigaJohnsson et al. (2007), ao concordar voluntariamente com a cobrança, o setor industrial
esvaziou qualquer tentativa de se ter um marco regulatório mais efetivo. A grande ironia
nesse processo, indicada por diversos de nossos entrevistados, foi que as ONGs ambientais
passaram ingenuamente a apoiar essa chicana política do setor industrial, inclusive desistindo de tentar aumentar o valor da cobrança para encerrar de pronto a polêmica. Desse
modo, o processo de aprovação da cobrança nada mais fez do que submergir o CEIVAP no
velho jogo político que havia deformado as agências que o precederam: em vez de mecanismos realmente participativos e que levassem em conta o interesse da maioria da população, a tomada de decisões continuava a ser controlada pelos grupos com maior poder
político-econômico, ainda que dissimulada em um processo de consulta democrática. O
resultado não poderia ser mais previsível e, apenas alguns anos mais tarde, nossas entrevistas detectaram um clima predominantemente apático entre muitos membros do comitê e moradores da bacia em relação à contribuição efetiva da cobrança. Como observado por um entrevistado:
Pergunta: Em que condição o senhor participa das reuniões do CEIVAP?
Resposta: Nunca fui membro oficial mesmo, mas ia lá como curioso, como interessado em saber
mais sobre o processo todo de melhoria do rio. Mas agora não vou mais, não.
Pergunta: E por que não? Por que o senhor deixou de participar?
Resposta: As reuniões no comitê [CEIVAP] são na maioria das vezes uma perda de tempo; aqueles que deveriam ser mais críticos dos problemas da bacia, como as ONGs, ficam quietas, porque
querem mesmo é obter dinheiro [através do comitê] e não devem contradizer as vozes que mandam, com o a ANA e a CSN (…). Outro problema grave é que a ANA tem uma visão puramente “hidrológica” em relação aos problemas de recursos hídricos – ativista ambiental e observador
das reuniões do CEIVAP. (entrevista, Maio 2007)
Na prática, em vez de reforçar um processo de mobilização popular que emergia na
bacia desde a década de 1980, a organização do novo comitê rapidamente tomou um caminho formalista e burocrático em relação aos problemas sociais e ambientais. Hoje o
CEIVAP parece, antes de tudo, uma agência pára-governamental e não um fórum de representação da diversidade de vozes que compõem o tecido popular da bacia. A controvérsia em torno da cobrança teve ainda o efeito de praticamente monopolizar as atividades do comitê e marginalizar a consideração dos problemas sociais e ambientais concretos.
Tal situação pode ser facilmente detectada com a análise das atas das reuniões do CEIVAP
entre 2000 e 2007, pela qual fica claro que, à medida que algum membro do comitê propunha, por exemplo, que questões relacionadas à poluição do rio, educação ambiental ou
conflitos entre usuários de montante e jusante fossem incluídas na agenda, essa voz “inconveniente” era prontamente abafada pelo próprio desenrolar da reunião. Por exemplo,
em 12/02/2004, um participante propôs que se discutisse qual seria a justa distribuição
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71
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16 O aproveitamento hidroelétrico de Itaocara está
sendo construído pela empresa Light, uma companhia
que foi originalmente privada, posteriormente nacionalizada, privatizada, e que
passa agora por um crescente controle do Estado (O
Globo, 18 Maio 2007). Isso
demonstra a não linearidade
dos processos de comodificação e de-comodificação
da água.
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de água entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, mas a questão simplesmente não
avançou. Igualmente, em 19/10/2006, outro participante queixou-se a respeito da grave
degradação nos trechos inferiores do rio, mas não despertou o interesse do comitê. Provavelmente, o melhor exemplo da incapacidade do CEIVAP de administrar os problemas
e conflitos na bacia esteja relacionado à aprovação da usina hidroelétrica de Itaocara, uma
unidade com potencial de geração de 195 MW e que está associada a um reservatório com
76 km2 de área superficial. Em 23/08/2005, membros do comitê defenderam a aprovação sumária da nova barragem, mas foram então questionados por uma representante de
ONG. Uma nova discussão sobre o mesmo assunto aconteceu em 16/09/2005 em uma reunião a que surpreendentemente compareceram apenas os representantes dos empreendedores, mas não a população local que seria desalojada com a construção da nova barragem (cf. Vainer et al., 2004).16 Esse simples exemplo demonstra como o comitê, que
deveria ser uma arena de franco debate e de decisões democráticas, passou a funcionar como um órgão com as portas fechadas aos grupos mais vulneráveis da população. A controvérsia relacionada à barragem de Itaocara talvez seja o caso mais ilustrativo, mas seguramente não foi o único momento em que o papel do comitê como fórum legítimo e
paritário de representação tenha sido aviltado (há menção a situações análogas nas próprias atas do comitê). Exemplos dessa natureza levam à conclusão que, apesar da retórica
de participação e descentralização adotada pelo CEIVAP em suas publicações, o comitê de
bacia tem de fato apenas um tênue compromisso com a maioria da população local e com
o universo maior de pequenos usuários de água.
Apesar de ter sido objeto de menções honrosas, como quando obteve em 2004 o
prêmio “Melhores Práticas” do Programa Habitat das Nações Unidas, a incapacidade de
lidar com a degradação ambiental e a falta de democracia interna vêm marcando a experiência do CEIVAP desde seu estabelecimento. Como referido por vários de nossos entrevistados, existe mesmo uma perplexidade com os resultados tão modestos atingidos até o
momento. Algumas frases mencionadas durante as entrevista ilustram essa percepção entre aqueles envolvidos no processo:
A complexidade do novo modelo de gestão [de recursos hídricos] foi subestimada quando
a lei [9.433] foi aprovada; [por causa dessa complexidade] na prática, as decisões continuam
sendo tomadas a portas fechadas e com mínimo envolvimento do público – engenheira e membro do CEIVAP. (entrevista, Abril 2007)
A distorção do novo sistema [de gestão de recursos hídricos] é evidente; existe mobilização apenas onde tem cobrança. Essa tem sido a prática oficial, mas o problema é que isso deixa tudo na dependência da cobrança – professor e observador do CEIVAP. (entrevista, Abril
2007)
Os conflitos pela água são evidentes, mas são silenciosos, pouco notados [no Paraíba do
Sul]; (…) o que falta no processo todo é participação pública real, envolvimento do povo pra
valer – morador da bacia e (auto-intitulado) “curioso” em relação ao CEIVAP. (entrevista,
Maio 2007)
Existe hoje uma grande falta de transparência na aprovação de documentos e dos planos
por parte do CEIVAP; total falta de transparência – advogada e membro do CEIVAP. (entrevista, Abril 2007)
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Cabe ressaltar que, apesar desse criticismo aberto, a maioria dos nossos entrevistados
entende que os problemas do comitê são temporários e que, no longo prazo, as atividades tendem a melhorar. Para muitos, não houve uma avaliação adequada da complexidade do trabalho de gestão da bacia quando o CEIVAP foi organizado em 1996, em particular a dificuldade de se conciliar a responsabilidade pelo rio principal e alguns afluentes por
parte do governo federal e a competência dos três governos estaduais pela maioria dos
afluentes.17 Essa posição cautelosa é também ecoada pelos autores que entendem que o
sistema regulatório é ainda muito jovem e deve possivelmente melhorar (Machado,
2006). Contudo, uma análise mais cuidadosa dos objetivos, procedimentos e resultados
obtidos pelo comitê sugere que a manutenção da degradação ambiental e a falta de inclusão social significativa são demonstrações da inadequação estrutural do comitê e do modelo regulatório em implantação, que sistematicamente cede a soluções de caráter tecnoburocrático. Essa conclusão em relação aos problemas que persistem na bacia pode ser
demonstrada pela “agenda única” dedicada à implantação da cobrança. Tomando-se em
conta o contexto de reformas institucionais e a discrepância entre construção retórica e
mudanças efetivas, fica claro que a principal deformação causada pela concentração de
esforços em torno da cobrança se relaciona à neutralização da participação popular. A
“burocratização” do envolvimento popular nada custa para aqueles que detêm poder econômico, mas serve para reduzir tensões sociais e diminuir os custos de transação relacionados ao novo modelo de gestão ambiental (Low e Gleeson, 1999). No caso específico, o
CEIVAP tem basicamente imposto um modelo de gestão (inspirado na literatura internacional, conforme mencionado acima) a uma população desorganizada e incapaz de se envolver criativamente nas suas instâncias formais. Mas se o novo comitê tem sido instrumental para a homologação do novo modelo global de gestão de recursos hídricos (em
especial, o conceito de IWRM), o mesmo tem sido incapaz de lidar com a complexidade
dos problemas socioambientais na bacia e acomodar, de forma eqüitativa e sustentável, as
múltiplas subjetividades e desigualdades sociais. Como observado por Brannstrom
(2004), o objetivo central, ainda que não oficial, das reformas institucionais no Brasil parece se restringir tão somente à implementação da cobrança pelo uso da água.
A DEMOCRACIA INTERNA NO COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA
Para entender como funciona a democracia interna no comitê da bacia hidrográfica, é importante perceber o desequilíbrio de poder entre os setores envolvidos. Esquematicamente, é possível separar os membros do CEIVAP em pelo menos três “esferas concêntricas” de influência. A esfera central é ocupada pelos grupos com maior capacidade de
interferir na tomada de decisão, a começar pela Agência Nacional de Águas. Muitos dos
seus servidores estiveram envolvidos na formulação da nova legislação e participam agora
da sua implementação – cabe observar que a maioria dos diretores da Agência provêm do
Rio de Janeiro e de São Paulo, e muitas das vezes, têm razões pessoais para estar envolvidos na experiência do Paraíba do Sul. Como órgão central do novo modelo de gestão de
recursos hídricos no Brasil, a ANA tem tido um papel dominante na reforma do setor, mas
tem sido também em si mesma um “locus” de disputas políticas. Em vez de um perfil técnico ou meramente regulador, desde sua criação, a indicação de diretores e superintendentes tem seguido um longo processo de negociação política entre os partidos e grupos
que apoiam o governo – tanto no Governo FHC, quanto no Governo Lula. Existe, portanto, uma persistente e perversa “simbiose” entre interesses paroquiais e a definição das
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17 Segundo a Constituição
de 1988, os corpos d’água
têm duas formas de dominialidade: 1) pertencem à
União os rios que cortam
mais de um estado ou são
compartilhados com outros
países; 2) pertencem aos
estados os rios contidos
nos seus territórios e as
águas subterrâneas.
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prioridades nacionais de gestão de recursos hídricos. Ainda na esfera central de poder situam-se também os representantes do setor industrial e do agronegócio. Mesmo com uma
minoria de cadeiras, esses grupos têm conseguido manipular importantes decisões do comitê, como a recente organização da agência de bacia (chamada AGEVAP, o braço executivo do comitê), conforme detalhado por Sousa Jr. (2004). A principal questão enfatizada pelo setor industrial é o risco de que a arrecadação dos recursos da cobrança seja
desviada pelo governo para outros propósitos – como, em verdade, veio a acontecer no
início do processo (ver abaixo). As indústrias, portanto, têm sistematicamente exigido garantias de que a arrecadação seja permanentemente tratada como uma taxa ambiental e
não como um imposto.
No segundo nível de hierarquia do comitê – aqui descrito como uma segunda “esfera de poder” – encontra-se um grupo mais heterogêneo de participantes, o que inclui
a representação das prefeituras municipais e governos estaduais, ambientalistas, empresas
de abastecimento de água e saneamento e representações profissionais – como a influente Associação Brasileira de Recursos Hídricos. Essa “esfera de poder” tem tido uma capacidade de influência mais discreta nas atividades do comitê do que os grupos que constituem o grupo decisório central – embora essa classificação seja meramente esquemática
e haja freqüentemente situações em que o papel de certos grupos nessa categoria se destaque acima da média. Até mesmo o atendimento de reuniões do comitê tem se revelado mais difícil para esses setores intermediários, uma vez que as despesas de deslocamento devem ser pagas pelos próprios participantes, e não são reembolsadas pelo comitê. Por
outro lado, há evidências de que muitos grupos insistem em participar das atividades do
comitê por terem interesse em obter alguma forma de compensação financeira. Diversas
pessoas entrevistadas durante nossa pesquisa teceram duras críticas, por exemplo, a respeito do envolvimento de certas ONGs e acadêmicos que parecem buscar o comitê apenas para assegurar contratos de consultoria ou de prestação de serviços. De fato, na última década muitos acadêmicos (e mesmo funcionários públicos) estiveram repetidas vezes
envolvidos em consultorias relacionadas à organização do CEIVAP e, em especial, à introdução da cobrança. Em certo sentido, o processo se caracteriza como a “profecia que se
auto-realiza”, haja vista que os consultores desenvolvem as bases teóricas e operacionais
dos mecanismos de cobrança, que são utilizados para o pagamento de seus próprios serviços de consultoria.
A terceira “esfera de poder” entre os grupos sociais envolvidos ou interessados nas
atividades do comitê tem uma posição marginalizada e é, na maioria das vezes, ignorada
pelos membros nas outras duas esferas centrais. Esse conjunto de atores sociais marginalizados inclui pequenos usuários de água independentes (urbanos e rurais), pequenos agricultores, pescadores, pequenas atividades produtivas e a população em geral. Pela falta de
mandato formal, muitos enfrentam grandes barreiras para participar e acompanhar a evolução das atividades do CEIVAP – podendo normalmente participar das reuniões apenas
como ouvintes. Ainda assim, os membros efetivos do comitê geralmente reagem contra
as críticas e questionamentos feitos pela população como uma demonstração da “falta de
compreensão a respeito da relevância do novo modelo de gestão de recursos hídricos”,
mesmo quando a crítica é feita por moradores diretamente afetados pelas decisões do comitê (como no caso da barragem de Itaocara). A esse respeito, Valêncio e Martins (2004)
descrevem a exclusão dos grupos menos organizados da população das bacias hidrográficas no Brasil como “a naturalização da exclusão”, o que está diretamente relacionado com
a “política do esquecimento” teorizada por Bakker (1999). A constante tentativa de par74
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ticipar e ser ouvido pelos outros grupos que comandam as atividades do comitê demonstra claramente a dimensão política do processo de gestão de recursos hídricos no Paraíba
do Sul. Como descrito por ÎiÏek (1998), em referência a Rancière (1995), a disputa política não se restringe ao debate racional entre múltiplos interesses, mas está também associado à conquista da oportunidade de ser reconhecido pelos demais como uma voz legítima. Algumas pessoas entrevistadas protestaram até mesmo em relação à linguagem
técnica e legalista utilizada nas reuniões do comitê, o que indica a formação de um campo cognitivo (no sentido proposto por Bourdieu) que sistematicamente exclui aqueles
com alguma dificuldade de entender detalhes do marco regulatório, com sua enorme lista de siglas, acrônimos, convenções e termos legais. Como foi expresso por uma pessoa
dessa terceira esfera de poder sobre a operação do CEIVAP:
A nova estrutura de recursos hídricos, a nova lei [9.433], ficam muito distantes das necessidades dos moradores e dos movimentos sociais – ativista do movimento social. (entrevista,
Abril 2007)
As três “esferas de poder” esquematicamente descritas acima obviamente existiam
antes de o comitê ser instalado, mas o ponto crucial a ser notado é que as assimetrias sociais foram reforçadas pela implantação tecnocrática e turbulenta da cobrança pelo uso da
água na bacia. Em tese, o novo sistema de regulação deveria criar sinergias entre o Estado e a sociedade, bem como favorecer a cooperação entre grupos sociais, mas, na verdade, o que passou a acontecer foi um distanciamento ainda maior entre as três “esferas de
poder”.18 Na prática, persistem graves problemas ambientais, juntamente com a dificuldade estrutural de aperfeiçoar a gestão da bacia. O problema crucial tem sido a afirmação
de uma ideologia tecnoburocrática como base do novo modelo de gestão, a qual é diretamente influenciada pelo ambiente de reformas do Estado brasileiro e pela hegemonia de
políticas conservadoras no país e no mundo. As contradições e limitações do novo “pacote” de gestão de recursos hídricos não podem ser entendidas em si mesmas, mas como expressão fidedigna de uma concepção de uma sociedade de consumo que é intrinsecamente problemática e insustentável. O restrito espaço de debates e interação proporcionado
pelo CEIVAP está relacionado à visão convencional da bacia hidrográfica como uma arena
propícia para a aplicação de tecnologias e capitais empregados no uso de recursos naturais, em vez de ser um espaço formado por múltiplas trajetórias e interações sociais (cf.
Massey, 2005). A compreensão da bacia hidrográfica como um espaço socionatural em
constante formação é o primeiro passo para se chegar a mudanças profundas, o que
Massey (2005) magistralmente denomina o “espaço do [ato] político”.
QUAL O VALOR DA COBRANÇA PELO USO DA
ÁGUA?
Como discutido acima, a introdução da cobrança pelo uso da água no Paraíba do
Sul tem ocupado grande parte das atividades do CEIVAP, uma vez que representa a principal ferramenta de políticas ambientais na bacia. Tal situação não é de modo algum excepcional, mas em todos os países que passam por reformas institucionais semelhantes,
a cobrança inevitavelmente apresenta grande controvérsia – o exemplo da Escócia e da
Irlanda do Norte são paradigmáticos – e passa a “contaminar” os esforços em outras áreR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
75
18 Sob crescentes críticas,
em 2006 o CEIVAP contratou uma consultoria para desenvolver um “plano estratégico” para a implementação
dos instrumentos regulatórios, em especial voltado
aos afluentes do Rio Paraíba
do Sul.
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19 A metodologia de cálculo prevê que todos os usos
acima de certos limites (e.g.
usos consuntivos acima de
1 litro/segundo e hidroeletricidade com potencial acima
de 1 MW) devem pagar uma
taxa mensal, calculada de
acordo com a quantidade
de água utilizada, a percentagem de uso e a qualidade
do efluente final. Há uma taxa padrão (R$ 0,02/m3) para indústrias, abastecimento
público e mineração, e descontos significativos para
agricultura e aquicultura.
Durante o período dessa
pesquisa, a metodologia da
cobrança estava sendo revista (algo considerado inconveniente e desnecessário para alguns de nossos
entrevistados).
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as. As disputas políticas em torno da adoção da cobrança revestem-se de uma complexidade adicional, entre os possíveis instrumentos regulatórios, em razão da necessidade
de haver um regime institucional que defina claramente a propriedade sobre os recursos
hídricos – ou de delegação da propriedade do Estado para os usuários, como no caso do
Brasil, através da outorga de direito de uso. Devido a essa exigência fundamental para o
sucesso da cobrança, a discussão sobre os direitos de propriedade e a preparação de bases operacionais para a introdução da cobrança normalmente tornam-se a prioridade
central das reformas associadas aos recursos hídricos, mesmo que isso reduza o interesse pela degradação socioambiental da bacia, pela democratização efetiva das decisões e
pela adoção de medidas compensatórias para as desigualdades sociais e espaciais. No caso do Paraíba do Sul, a preponderância da cobrança foi definida exogenamente pelo governo federal ao decidir que a bacia seria um laboratório do novo modelo regulatório e,
desse modo, o trabalho principal do comitê seria remover quaisquer obstáculos à implantação da cobrança. Como brevemente mencionado acima, houve um debate acirrado e marcado por oportunismo político no âmbito do comitê, que resultou em uma decisão favorável e, a partir de 2003, passou-se a cobrar pelo uso da água bruta. 19 No
papel, o instrumento da cobrança se justifica como a melhor opção para se mitigar o
passivo ambiental, induzir o uso racional e realocar recursos hídricos de acordo com a
eficiência econômica (Garrido, 2004). Na prática, porém, até o momento produziramse somente pequenos investimentos na regeneração de margens dos rios e em sistemas
isolados de saneamento.
Para se avaliar objetivamente os resultados da cobrança na BHRPS, far-se-á aqui uso
dos critérios propostos pela OCDE (1991) para instrumentos econômicos de gestão ambiental, quais sejam: eficiência ambiental, eqüidade, aceitabilidade, viabilidade administrativa e eficiência econômica. Quanto ao primeiro critério (eficiência ambiental), é indiscutível que o mecanismo da cobrança tem sido grandemente incapaz de restaurar a
condição ambiental da bacia. Em termos concretos, os impactos negativos da falta de
tratamento de esgotos urbanos e efluentes industriais, extração de areia e captação de
água continuam praticamente inalterados. Entre 2003 e 2006, foi arrecadado um total
de R$ 25,4 milhões (dados fornecidos pelo comitê), consideravelmente menos do que a
necessidade estimada para recuperar a bacia: R$ 360 milhões por ano em investimentos
ou R$ 4,6 bilhões até 2025 (Coppetec, 2006). Em 2006, quatorze municípios foram
contemplados com recursos oriundos da cobrança, em um total de R$ 7,1 milhões, basicamente aplicados em projetos localizados e com limitado potencial de recuperação
ambiental. Mesmo esses modestos investimentos têm sido selecionados em função de
interesses político-partidários e pressão de empreiteiros sobre os prefeitos locais – principalmente pelo fato de serem recursos a fundo perdido. Uma seleção nem sempre transparente contribui para minar o diálogo entre os membros do comitê, além de aumentar o nível de desconfiança do público em relação aos reais propósitos do novo modelo
de gestão.
Considerando o segundo critério da OCDE (eqüidade), existem pelo menos dois fatores principais que comprometem o sucesso da cobrança. Em primeiro lugar, empresas
comerciais e companhias de abastecimento de água transferem os valores pagos ao comitê diretamente a seus clientes, o que significa que os custos ambientais são meramente incorporados nos preços dos serviços e produtos sem que haja a possibilidade de se chegar
à justa redistribuição de responsabilidades, apenas reforçando a situação dos grupos privilegiados (como observado por Enzensberger, 1996). Em segundo lugar, não existe qual76
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quer previsão de compensação pela degradação ambiental causada nas últimas décadas, e
que tenha gerado ganhos econômicos apropriados de modo desigual pelos grupos dominantes. Mais especificamente, muitas indústrias vêm fazendo uso de recursos hídricos e
degradando o rio por muitos anos, mas têm valores de cobrança pelo uso da água igual a
empresas mais recentemente instaladas na bacia. Isso significa uma desigual alocação de
responsabilidades pela condição da bacia e constitui uma espécie de “subsídio” na forma
de ganhos obtidos no passado, mas gratuitamente mantidos no presente.
Passando para o terceiro critério (aceitabilidade), existe ainda muito ceticismo e falta de informação em grande parte da bacia com relação à cobrança. Mesmo economistas
diretamente envolvidos na fundamentação teórica da cobrança reconhecem que a situação fica muito aquém do desejado (cf. Azevedo e Baltar, 2005). Entre os setores de usuários de água, os industrialistas têm mantido a posição mais oportunista e variável. Inicialmente, a representação do setor industrial no comitê, constituído pelas federações de
São Paulo (FIESP), Rio de Janeiro (FIRJAN) e Minas Gerais (FIEMG), mostrou-se irredutível na sua desconfiança em relação à cobrança, mesmo que concordasse a respeito da grave condição ambiental da bacia (FIRJAN, 2002). Como descrito acima, em 2002, o setor
decidiu aceitar o inevitável e concordou que a cobrança fosse implementada, essencialmente com o propósito de capitalizar politicamente e melhorar sua imagem de “responsabilidade corporativa”. Mesmo assim, existe ainda uma minoria de industrialistas que
mantêm sua contrariedade com o fato de terem de passar a pagar pelo uso da água (Féres
et al., 2005). Essa reação se repete em outros setores de usuários e, considerando-se o ano
de 2004, mais de 50% se recusou a pagar ou atrasou o pagamento (Soares, 2005). De
acordo com dados do CEIVAP, a receita obtida pela cobrança se mantém constante desde
2003, o que sugere que a aceitabilidade não tem melhorado.
Em relação ao quarto critério (viabilidade administrativa), a experiência na BHRPS
tem sido problemática. Em grande medida, a bacia tem pagado um alto preço por ter sido a primeira a adotar o instrumento da cobrança após a aprovação da nova lei em 1997.
Em sua fase inicial, quando a bacia ainda não contava com uma agência executiva – agora em operação e denominada AGEVAP –, a receita era administrada diretamente pela
ANA. Pelo fato de ser um órgão público, nos últimos anos a Agência teve a execução de
seu orçamento sistematicamente restringido pela área financeira do governo – basicamente, com o propósito de assegurar superávit financeiro. Nesse contexto, nos primeiros meses a arrecadação dos valores da cobrança na bacia foi indistintamente considerada como
uma forma de imposto e, portanto, passível de ser contingenciada. Esse desvio do propósito e da configuração jurídica da cobrança suscitou forte reação no setor de recursos hídricos e, em 2004, uma nova legislação foi aprovada no sentido de se evitar que o problema continuasse, uma vez que a nova agência de bacia (AGEVAP) ficou encarregada de
coletar e administrar a cobrança. Até certo ponto, a nova lei provê alguma proteção contra a voracidade da área financeira. Contudo, persiste a questão da dualidade de competências entre governo federal e estadual (ver nota número 17). Na prática, isso significa
que a BHRPS tem não um, mas quatro mecanismos de cobrança, com metodologias de
cálculo distintas para o mesmo manancial hídrico, o que representa um desafio permanente para a gestão e administração da bacia.20 Embora não seja excludente do ponto de
vista legal e de sua esfera competente, a dificuldade de integração entre estados e a união
significa um dos pontos críticos de todo o modelo de governança em implementação,
uma particularidade brasileira que torna ainda mais difícil atingir o objetivo de uma gestão integrada.
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20 Além das disputas entre
estados, existe na BHRPS
uma associação de usuários
de água, quatro comitês de
sub-bacias, sete consórcios
de municípios, e um verdadeiro “consórcio rival” na seção paulista da bacia (e.g.
CBH-PS).
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Provavelmente, a falha principal do instrumento da cobrança na BHRPS esteja relacionada ao quinto critério de avaliação, eficiência econômica. Em termos da economia
neoclássica, fonte direta de inspiração do novo marco regulatório, ganhos de eficiência estão relacionados à alocação de recursos de acordo com a utilidade marginal e à busca de
baixos custos de transação [transaction costs]. Mesmo com esse claro objetivo econômico,
até o momento a cobrança na bacia tem influenciado pouco qualquer situação de realocação de água entre usuários, e tampouco tem evitado a expansão indiscriminada do uso
da água. Mesmo que algumas indústrias locais tenham recentemente investido em tratamento de efluentes, isso se deveu muito mais a decisões tomadas anteriormente e não ao
incentivo da cobrança. Em uma pesquisa com 488 indústrias na bacia, Féres et al. (2005)
concluíram que a cobrança, pelo menos na sua fase inicial, não se configurou como um
incentivo eficaz para reduzir o nível dos efluentes. A pesquisa mostrou que as empresas
que investiram na redução da poluição, o fizeram com o intuito de evitar má publicidade durante o processo de organização do comitê de bacia. Um de nossos entrevistados
também expressou sua concordância com essa conclusão:
O principal benefício da cobrança é melhorar a imagem das empresas multinacionais, porque elas usam a informação de que estão pagando pela água, de que estão observando o princípio do poluidor-pagador, como forma de ganhar certificação internacional (…).
O mesmo entrevistado ainda acrescentou:
A melhoria inicial da condição do rio é relativamente fácil, sem muito problema, mas a
questão é como manter o ritmo de despoluição e garantir melhoria na qualidade da água – acadêmico e ex-membro do CEIVAP. (entrevista, Abril 2007)
Nossos resultados a respeito da cobrança na BHRPS, especialmente tendo em conta
os cinco critérios analisados acima, coincidem com as observações de Molle e Berkoff
(2007) a respeito da necessidade de compatibilizar esse instrumento de regulação com reformas políticas mais profundas e que permitam um aprofundamento democrático e divisão de responsabilidades. Segundo Liodakis (2000), o conceito de “externalidades ambientais” contribui para o entendimento da degradação ambiental, mas a tentativa de
internalizar tais externalidades – como pela aplicação de taxas ambientais semelhantes à
cobrança – apenas torna óbvias as falhas de mercado e demonstra a inadequação das políticas convencionais de gestão do meio ambiente. Como antes observada por Kapp
(1970), a dificuldade maior para a adoção de instrumentos de gestão ambiental baseados
em regras de mercado é que um valor monetário passa a ser atribuído a um recurso que
é totalmente dissociado do mercado (e.g. água). A conseqüência perversa desse processo
de mistificação de valores é o fato de que os usuários de água passam a ser tratados de
acordo com sua capacidade de pagamento, erodindo as diferenças sociais historicamente
estabelecidas e, desse modo, acobertando as responsabilidades pela degradação e recuperação dos mananciais hídricos. Através da cobrança pelo uso da água, o novo marco regulatório passou a legitimar atividades que há décadas são responsáveis pela degradação
da bacia, uma vez que o pagamento ao comitê se transforma em uma desculpa oficial para que não se questione a localização, operação e escala de tais atividades. De fato, industrialistas e irrigantes têm feito uso político da sua contribuição financeira ao comitê como argumento em favor de outras compensações fiscais e como garantia de uma aplicação
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branda da nova legislação ambiental. Por tais razões, não é possível concordar com Formiga-Johnsson et al. (2007) – antes de mais nada, autores que têm prestado consultoria
para o desenho do novo modelo de gestão (para mais detalhes da estreita relação entre acadêmicos e CEIVAP, ver Gruben et al., 2002) – quando afirmam que a introdução da cobrança na BHRPS tem sido um sucesso em termos de inclusão e eficiência técnica. Muito
pelo contrário, a oportunidade de realmente se avançar na solução dos graves problemas
da bacia tem sido perdida em função de uma insistência ideológica pela adoção de instrumentos econômicos de gestão de recursos hídricos. Apesar de toda a controvérsia, a cobrança tem sido pouco mais do que um pequeno contratempo para os grandes usuários
de água, ao mesmo tempo em que significa o esvaziamento de ações na direção da sustentabilidade e da justiça ambiental.
CONCLUSÃO: RECONHECER OS LIMITES DAS
REFORMAS INSTITUCIONAIS
A discussão acima buscou demonstrar como as reformas institucionais no setor de
recursos hídricos têm sido marcadas pela afirmação de uma racionalidade tecnoburocrática, a qual vem apenas produzido respostas inadequadas aos problemas de gestão das bacias hidrográficas com alto nível de conflitos e degradação ambiental. É preciso reconhecer os limites metodológicos da pesquisa aqui relatada, especialmente pelo fato de se
basear em um estudo de caso voltado a apenas uma única bacia, fazendo uso somente de
métodos qualitativos de análise e cobrindo um momento histórico determinado. Não resta dúvida que se trata, portanto, de uma simplificação de uma realidade nacional muito
maior, cheia de particularidades locais, incoerências administrativas e conflitos multifacetados. Mesmo assim, a experiência do Paraíba do Sul, dado o seu pioneirismo e complexidade, serve como amostra significativa dos limites e possibilidades do novo modelo institucional em implantação no país. No caso específico, os desdobramentos da última
década representam apenas o capítulo mais recente de uma longa história de transformações socioambientais e desenvolvimento desigual. Os resultados de mais de 300 anos de
intensa atividade agrícola, urbana e industrial continuam sendo rios e solos em sério estado de degradação, ao passo que saneamento básico e salubridade adequada ainda são fatores inacessíveis a significativas parcelas da população. A faceta conservadora e excludente de gestão de recursos hídricos continua indiscutivelmente tão evidente no presente
como no passado, uma vez que o novo arranjo institucional – incluindo aqui o comitê de
bacia e a cobrança pelo uso da água – mantém largamente inalteradas as bases desiguais
de tomada de decisão e alocação de recursos hídricos. Se no passado a conservação ambiental esteve praticamente ausente quando grandes obras de engenharia foram construídas para atender a uma industrialização acelerada, o meio ambiente passou a receber
maior atenção, embora ainda não se discuta como os impactos ambientais afetam de modo diferenciado os diversos grupos sociais, nem tampouco como o balanço desigual de
poder condiciona a tomada de decisões a respeito da recuperação das condições ecológicas. A advocacia de conceitos como “governança ambiental” e “gestão integrada” vem sendo feita de modo centralizado e atendendo aos interesses dos atores sociais mais influentes, o que mostra como tais conceitos fazem com que se mantenham inalteradas as bases
de uso e gestão da bacia, ainda que o discurso aponte exatamente na direção contrária.
Ou seja, as reformas institucionais caminharam na direção dos objetivos de governança e
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integração previstos na doutrina internacional, mas houve pouca melhoria em termos de
problemática socioambiental. Em outras palavras, a introdução das novas instituições de
gestão (previstas na Lei 9.433/1997) pode ser avaliada como razoavelmente bem-sucedida, no que diz respeito a mudanças formais, mas constitui uma reforma limitada, haja vista que sua faceta tecnoburocrática tem comprometido o próprio entendimento dos problemas e a incorporação das demandas da maioria da população local.
Apesar do evidente descompasso entre os objetivos e os resultados efetivos, é sintomático que existam ainda poucas avaliações críticas da experiência do Paraíba do Sul ou
de outras bacias brasileiras. Tal fato contribui para manter a ilusão de que o processo caminha na direção correta, enquanto a água continua sendo objeto de interesses e acirradas disputas. O aspecto central a ser ressaltado é o fato de o novo modelo institucional
de recursos hídricos refletir uma visão utilitarista da relação entre sociedade e natureza,
basicamente em favor de políticas públicas que garantam, cada vez mais, a apropriação
privada dos recursos naturais, mesmo que em detrimento da estabilidade ecológica de
longo prazo. Para as políticas oficiais contemporâneas, a gestão de recursos hídricos deve se inserir na agenda de “modernização ecológica”, segundo os objetivos ambientais de
uma “sociedade de mercado”. Exemplos nesse sentido são o envolvimento cada vez maior de empresas privadas na gestão de serviços públicos de água e energia hidroelétrica,
assim como os programas da ANA ligados à compra de esgoto tratado (PRODES) e à “produção de água”, nos quais ações conservacionistas são pagas em dinheiro. Como descrito por Smith (2007), a modernização ecológica torna a própria conservação ambiental
um mecanismo de acumulação de capital. Por meio da ocupação do cerne da gestão de
recursos hídricos pela lógica de acumulação, os usuários de água são progressivamente
reduzidos a uma condição de “sócios” do crescente “negócio da água” – negócio no sentido amplo de criação de um contexto favorável a transações, sem envolver necessariamente a compra e venda de água –, em vez de serem tratados como “cidadãos” com capacidade de contribuir ativamente, sem que sejam cooptados (ou corrompidos) por
meio de incentivos monetários.
É justamente nessa tendência de crescente expressão do valor econômico dos recursos hídricos que a introdução da cobrança pelo uso da água tem tido um papel estratégico de consolidação de uma racionalidade economicista na relação entre sociedade e natureza. Ao explicitar um valor monetário de um recurso natural de uso comum – na
terminologia de economia política, sobrepor o valor-de-troca ao valor-de-uso e ao valorem-si da água –, a cobrança contamina todas as relações em torno da distribuição, uso e
conservação dos recursos hídricos. Ou seja, em razão da cobrança, tanto os impactos ambientais quanto a importância socionatural da água são pensados somente em termos monetários, eliminado outras possíveis visões alternativas de mundo. Evidentemente que é
preciso não tender para uma análise maniqueísta, mas perceber que, apesar das deficiências encontradas na implementação da Lei 9.433/1997, o processo de instalação de comitês tem também levado a avanços, especialmente por ampliar o debate a respeito dos problemas de gestão de recursos hídricos. Nesse sentido, como já indicado por Acselrad
(1995), as contradições relacionadas aos instrumentos econômicos de gestão ambiental
devem ser criativamente apropriadas pelos movimentos organizados e forças de resistência como uma oportunidade política para se questionar as experiências locais e os pressupostos do pensamento ambiental contemporâneo. Mas, antes de mais nada, é preciso
compreender, na academia e fora dela, que a materialidade dos problemas ambientais e
sociais associados aos recursos hídricos tem causas e repercussões políticas inexpugnáveis.
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Como observado por Latour (2004, p.58), a importância histórica da crise ambiental
atual decorre da impossibilidade de se continuar a imaginar o ato político dissociado do
mundo natural que serve de base à política.
Por todas essas razões, o novo marco regulatório de gestão de recursos hídricos no
Brasil, como em muitos outros países, significa em grande medida uma reforma circunstancial e restrita – enfim, incompleta em si mesma – porque é interna e subordinada ao
mesmo modelo econômico e político que foi historicamente responsável pela degradação
ambiental e pela consolidação de privilégios. Em vez de favorecer a recuperação do dano
causado, políticas ambientais baseadas na lógica de mercado – simbolizadas, sobretudo,
pelo princípio neoclássico do “poluidor-pagador”, o qual dissocia o ato poluidor de qualquer responsabilidade política pela degradação e pelos ganhos acumulados ao longo de
anos – são intrinsecamente limitadas pelo fato de ignorarem a importância das assimetrias sociais e injustiças ambientais. É essencialmente impossível se esperar ganhos em termos de sustentabilidade ambiental sem que ao mesmo tempo se aprofundem as condições democráticas e se reduzam as desigualdades socioeconômicas. Como bem observado
por Middleton e O’Keefe (2001:16), “a não ser que a análise de desenvolvimento comece não com os sintomas, instabilidade ambiental e econômica, mas com a causa, injustiça social, nenhuma forma de desenvolvimento pode ser sustentável”.
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Antônio A. R. Ioris é professor da Escola de Geociências (School of Geosciences) da Universidade de
Aberdeen, Escócia, Reino
Unido. Pesquisador do Centro de Sustentabilidade Ambiental de Aberdeen (ACES).
E-mail: [email protected]
Artigo recebido em maio de
2008 e aprovado para publicação em janeiro de 2009.
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A
B S T R A C T In the last decade, the use and conservation of water resources in Brazil have been the object of an ample process of reforms and institutional reorganisation. The
experience of the Paraíba do Sul River Basin was selected as a paradigmatic example of the
institutional reforms ongoing in the country. Through qualitative research methods, the aims
and the deficiencies of the new decision-making structure were analysed. The study identified,
as the crucial shortcoming, the affirmation of a technobureaucratic rationality, which is applied both to the assessment of problems and the formulation of responses. The most evident
expression is the strategic relevance attributed to water use charges, a highly controversial management instrument that is leading to a polarisation of political positions. The reforms in the
Paraíba do Sul have been largely limited in themselves, given that the new institutional structure still prevents the incorporation of the demands of the majority of the local population and
the proper solution to environmental questions historically established.
K
E Y W O R D S Hydropolitics, Political Ecology, Integrated Water Resources Management, Water Charges, Economic Instruments, Paraíba do Sul.
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OS PARADIGMAS
DA MODERNIZAÇÃO DO
ESTADO DO CEARÁ
E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
DA BARRAGEM DO CASTANHÃO
F R A N C I S C A S I LVA N I A
DE
SOUSA MONTE
R
E S U M O Este trabalho resulta de pesquisa para tese de doutorado cujo objetivo foi
investigar em que medida o processo de uso e controle das águas no Ceará, tendo como base a
Barragem do Castanhão, contribuiu para levar o estado a se transformar em paradigma da modernização, principalmente a modernização hídrica. Foram realizadas entrevistas com políticos,
agentes governamentais, organizações da sociedade civil e outros agentes relevantes no processo.
Foram também consultados documentos e relatórios de várias instituições envolvidas na implantação da Barragem. Concluiu-se que a modernidade hídrica está desenhando uma nova configuração territorial no estado do Ceará, transformando o espaço geográfico no espaço da racionalidade técnica a serviço de interesses privados, e que o desenvolvimento pretendido com a
implantação da Barragem ocasionou um processo de modernização excludente, principalmente
dos mais diretamente atingidos pelas obras.
PA
L AV R A S
água; exclusão.
-
C H AV E
Modernização; desenvolvimento; Ceará; barragem;
A CONSTRUÇÃO DO CEARÁ MODERNO
Nas duas últimas décadas, o estado do Ceará tem sido apresentado no cenário nordestino e nacional como expressão de transformação na estrutura tradicional de poder.
Segundo Barreira (2002), foi sob o signo da ruptura, exemplificado no slogan “governo
das mudanças”, que um grupo de empresários liderados por Tasso Jereissati ocupou a cena política cearense, projetando o Ceará para o restante do país como um exemplo de
Estado moderno.
Diógenes (2002) destaca que tivemos no Ceará, no final dos anos 1980, a produção de novas imagens políticas que se estabeleceram no cenário local, baseadas na oposição e legitimação diante das chamadas oligarquias coronelísticas. A construção de um
Ceará moderno teve por base uma retórica das mudanças, com o governo estadual assumindo compromissos:
[...] com a superação de valores deformados, que colocavam o interesse de pequenos grupos
acima dos interesses maiores da sociedade. Compromisso com o combate a todas as formas de clientelismo. Compromisso com a recuperação da moralidade do serviço público, onde o Estado deve
ser visto como instrumento para a realização do bem comum e não para o serviço das oligarquias.
Compromisso com o combate à miséria e o respeito à cidadania como direito inalienável de todos
os homens e mulheres do Ceará. (Ceará, 1987, p.8)
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87
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1 Este discurso foi utilizado
na campanha de Maria Luíza
Fontenelle à prefeitura de
Fortaleza em 1985 (Barreira, 1993, 2002) e também
em campanhas para a Assembléia Legislativa no final
da década de 1970 por candidatos de esquerda (Lemenhe, 1998).
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O discurso de ataque aos “coronéis” e ao “coronelismo” já havia sido anunciado anteriormente,1 mas, pela primeira vez, de acordo com Barreira (op.cit.), tornara-se elemento
fundamental da estratégia que deu suporte ao surgimento de novos atores políticos. De acordo com a autora, a evocação às mudanças pôs em destaque um capital político e simbólico
que toma a forma de regras e legitimação de competências diferentes das até então existentes, de maneira que a herança partidária e laços de fidelidade foram substituídos por critérios que destacavam e priorizavam a formação intelectual e a experiência administrativa.
Para Abu-El-Haj (1997), a mudança política acontecida no Estado teve esta peculiaridade devido à existência de uma herança política tradicional, com muita freqüência tachada de coronelista; foi este tom anticoronelista que assinalou o “marketing político” do
candidato Tasso Jereissati ao governo do Estado nas eleições de 1986, facilitado pelas patentes militares de “coronéis” de seus opositores políticos. Pode-se depreender isto da observação feita a seguir:
O tema das mudanças polarizou-se basicamente na promessa de transplante da racionalidade do moderno empresariado nordestino para o plano político administrativo, erradicando o clientelismo político e substituindo-o pela utilização asséptica e eficiente dos recursos públicos. A imagem
ressuscitada nos meios de comunicação de massa foi a do velho e truculento “coronel” defendendo os
“currais eleitorais” que as forças modernas se dispunham a romper. (Carvalho, 1987, p.204)
O Ceará passou de estado considerado miserável na imprensa nacional para se tornar exemplo de Estado que deu certo, um modelo a ser seguido ou, para usar uma expressão muito em voga nas manchetes, para ser “uma ilha de prosperidade”. Entretanto, para
quem quer ir além do discurso e das aparências das estatísticas, Teixeira (1995, p.7) faz
perguntas instigantes:
[...] pode-se alegar, como o fazem os dirigentes atuais da coisa pública, do Estado, que todo este processo representa uma ruptura com o passado, com o tempo dos ”coronéis”? Até que ponto esta propalada modernização corresponde a uma ruptura real? [...] podem estes dirigentes reclamar a autoria exclusiva dessas transformações como produto de seu jeito de fazer política, de
governar? Há, de fato, uma ruptura com a economia passada, ao ponto de se julgar que o presente não guarda mais nenhuma relação com o passado?
Para Gondim (2002), as mudanças ocorridas na sociedade cearense, a partir da eleição de Tasso Jereissati, aconteceram em função das mudanças estruturais que ocorreram
na economia e na sociedade cearense desde a década de 1950, e que criaram as condições
para a emergência destas novas elites.
Parente (2000), analisando as elites políticas no estado, defende que estas sempre
apresentaram uma fragilidade estrutural causada pela situação de secas freqüentes numa
economia fortemente baseada no consórcio gado-algodão. Para o autor, a seca é “um fator importante na decomposição das elites políticas e econômicas cearenses, sobretudo
numa situação em que as elites estão despreparadas para enfrentar as intempéries da natureza” (Id., Ibid.,p.58).
Um outro fator desta fragilidade seria a desarticulação destas elites nas regiões Norte, Sul e Centro do próprio estado, não existindo nem “homogeneidade nem integração
espacial” entre elas (Parente, 2002, p. 126). Dizer que estas elites são frágeis politicamente é, para o autor, dizer que “em situação de normalidade, não formam oligarquias fortes
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e permanentes como em Pernambuco, Paraíba e Bahia” (Id., Ibid., loc.cit.). A fraqueza estrutural das elites cearenses revela, a seu ver, “que elas necessitam de maior criatividade
para sobreviverem” (Parente, 2000, p.73), e que “a modernização sempre se apresentou
como uma estratégia de sobrevivência das elites cearenses” (Parente, 2002, p.126).
Ao mesmo tempo em que tornava frágeis as elites econômicas e políticas, a seca teria tido um papel importante no processo de modernização, uma vez que o seu aparecimento contribuía para a emergência de um quadro técnico e moderno, formado para interferir de forma racional nos seus efeitos (Parente, 2002).
As elites cearenses tinham consciência de que a modernidade2 era uma estratégia de
sobrevivência política, sem a qual elas não se tornariam independentes dos efeitos climáticos. Essa convicção ter-se-ia evidenciado na década de 1950, com a criação do Banco do
Nordeste do Brasil (BNB) e da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), dois órgãos sem os quais não seria possível conceber a eficácia de uma política de
modernização conservadora: o BNB sediado em Fortaleza desde 1954, e a Sudene criada
em 1959 e sediada em Recife, Pernambuco. “O BNB e a Sudene foram instrumentos importantes na estruturação de um modelo de desenvolvimento regional que tornasse não
só a região, mas sobretudo o Estado do Ceará, com mais condições de conviver com as
secas” (Parente, Ibid., p.135).
Camilo Calazans de Magalhães, no documento “O desenvolvimento do Nordeste e
a ação do BNB”, publicado pelo BNB, enfatiza o papel da criação do Banco do Nordeste e
da Sudene como “fatos marcantes da fase moderna da história econômica nordestina”. Para ele, “é com a entrada do BNB em funcionamento, em 1954, que se inicia esta fase [de
modernização], consolidada com a criação da Sudene quase no fim daquela década”. Magalhães destaca que esta fase é marcada por uma nova visão do problema regional, procurando-se a solução dos problemas das disparidades regionais através de uma política de
promoção do desenvolvimento, tendo por influência as idéias de desenvolvimento, advindas da Europa e dos Estados Unidos, especialmente as experiências da Tenesse Valley Authority e da Cassa per il Mezzogiorno (Magalhães, 1979, p.13).
Além do BNB e da Sudene, mais três instituições de interesse para o desenvolvimento da região tinham sua área de atuação no Nordeste: o Departamento Nacional de Obras
contra as Secas (DNOCS), a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), criada em 1947,
e a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), criada em 1945. A preocupação
era fazer com que o BNB e a Sudene cumprissem um papel político e econômico já explicitado pela ideologia desenvolvimentista. “Eram instrumentos ideológicos com objetivos
de ‘modernizar’ também as tradicionais elites da região” (Parente, 2000, p. 135).
Parente (Ibid.) apresenta a tese de que o mergulho do Ceará na ideologia da modernidade se deve a este processo de treinamento e socialização de uma elite técnica e preparada para uma administração racional do estado, sendo o BNB a força difusora da ideologia de modernidade. Para ele, este ambiente propiciou o surgimento de uma elite moderna
formada por uma nova geração de empresários. No entanto, argumenta que a passagem de
uma mentalidade e de uma prática inscritas no conservadorismo para uma outra de maior
racionalidade técnica, identificadas com a modernidade, teve um outro ator destacado:
Virgílio Távora, o último governante da “fase dos ‘coronéis’”3 da política cearense.
Virgílio Távora tinha a intenção clara de modificar o perfil econômico do estado. De
acordo com Aragão (1998), no final dos anos 1970, a produção algodoeira entrou em
profunda crise, da qual até hoje não se recuperou; ao mesmo tempo, Virgílio Távora conseguiu a instalação no Estado do III Pólo Industrial do Nordeste, cedendo incentivos, vanR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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2 Pode-se considerar que o
termo modernidade utilizado pelo autor é perpassado
de ambigüidade, uma vez
que o sentido implícito aos
textos é na maioria das vezes, o de modernização, entendida como o desenvolvimento da racionalidade
instrumental, que tem por
base o cálculo custo/benefício, presente na eficácia, na
produtividade e na competitividade. Esta modernização
foi, em certa medida, alcançada pelas elites políticas
do estado; no entanto, esta
se apresenta muito distante
da modernidade fundamentada na soberania popular e
nos direitos humanos que leva à autodeterminação política (LECHNER, 1990). Outras vezes, porém, o termo
se refere à "ideologia de modernidade" das elites cearenses, utilizada nos discursos como indicativo de
ruptura em relação ao passado.
3 Período compreendido pelos governos de César Cals,
Adauto Bezerra e Virgílio Távora, de 1971 a 1982.
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tagens ou mesmo capital aos empresários, assegurado pelo Banco de Desenvolvimento do
Ceará (Bandece). Estava desta forma criado o II Distrito Industrial de Fortaleza.
Além do III Pólo Industrial, com a consolidação do II Distrito Industrial de Fortaleza, foram obras do governo de Virgílio Távora: a expansão do apoio à indústria pesqueira e à média indústria; desenvolvimento do pólo têxtil e de vestuário; pólo metal mecânico; expansão da indústria pesqueira; integração da indústria coureira; aproveitamento de
novas oportunidades industriais; apoio infra-estrutural; apoio tecnológico e promoção industrial. No setor mineral, foi criada a Companhia Cearense de Mineração (Ceminas) e
foi instalado o Centro de Artesanato de Fortaleza (Linhares, 1996). Nesse segundo governo, Virgílio Távora consolidou a transição para a modernidade, que já havia iniciado no
seu primeiro governo (Parente, 2002).
Para Parente (2000), a outra condição para desencadear o processo de modernidade
nas elites políticas foi a existência de uma tradicional elite homogênea social organizada,
reunida no Centro Industrial do Ceará (CIC). O CIC foi fundado em 1919 por um grupo de empresários com o objetivo de tratar de assuntos de interesses comuns aos industriais e estudar possibilidades de novos empreendimentos. Os objetivos da entidade eram
voltados, prioritariamente, para os interesses corporativos do setor: suprimento de matéria-prima, comercialização, preços e salários (Matos et al., 1999).
Seu primeiro presidente, Tomás Pompeu de Sousa Brasil, foi também o responsável
pela implantação da primeira indústria têxtil do estado do Ceará, no ano de 1881. Esta
primeira fase do CIC teve início com um presidente ligado à indústria têxtil, mas 15 anos
depois, a presidência passou para os setores salineiro e madeireiro. Este fato esteve ligado
à criação de duas organizações: a Federação das Associações de Comércio e Indústria do
Ceará (FACIC) em 1928 e o Sindicato das Indústrias Têxteis do Ceará em 1935. Na década de 1940, o CIC foi desativado devido à criação da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (FIEC) (Parente, 2000).
Segundo Teixeira (1995), alguns jovens empresários, em 1977, estimulados pela
conjuntura de abertura política, começaram a se unir, de forma paralela à FIEC. Havia
uma homogeneidade ideológica pelo fato de pertencerem a uma segunda geração de empresários no estado. O então presidente da FIEC, Flávio Costa Lima, percebendo a homogeneidade desse grupo e suas diferenças com os tradicionais empresários, cedeu o espaço
do CIC, que estava praticamente desativado desde 1945, para que estes jovens pudessem
desenvolver o seu potencial. Era, de acordo com Teixeira (Ibid), o espaço de que eles precisavam para por em prática suas idéias modernizadoras.
Os jovens empresários passaram a pregar uma gestão profissional da administração
pública, sem clientelismo, fisiologismo, paternalismo ou corrupção; duras críticas ao mau
gerenciamento dos recursos e da política industrial do Governo para o Nordeste. Posicionavam-se contra o controle e o intervencionismo estatais na economia, e eram favoráveis
à redemocratização do país e à implantação de um projeto liberal (Farias, 1997).
...[Este] grupo de empresários cearenses se apresentava à sociedade como portador de um
“projeto civilizatório” para o Estado, na tentativa de imitar os filósofos do iluminismo, que tinham a tarefa, como se sabe, de ajudar a sociedade de sua época a alcançar a liberdade através
do uso da razão. Arvorando-se da pretensão de serem herdeiros do espírito iluminista, estes jovens
empresários julgavam que [...] cabia a eles a tarefa de libertar a sociedade [cearense] das trevas,
da “desrazão”, do apadrinhamento e de fidelidade, estas últimas consideradas como sendo responsáveis por uma ”mercantilização feudalesca” dos aparelhos de Estado. [...] mercantilização que
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impedia, sempre de acordo com eles, o uso racional da máquina estatal para implementar uma
política de desenvolvimento econômico-social. (Teixeira, 1995, p.3)
Na avaliação de Bonfim (1999), o CIC chamou a si a tarefa de resgatar os instrumentos estatais para a retomada do desenvolvimento econômico estadual, por meio da reforma das contas públicas e do modelo de gestão fiscal. Viabilizou a construção das salvaguardas financeiras que dariam lastro aos ambiciosos projetos de reconfiguração do capitalismo
estadual. Para Bonfim, não condiz com a realidade a afirmativa de que o grupo chegou ao
poder com tal propósito e a ele se dedicou desde o primeiro instante. Pelo contrário,
[...] a consciência da profundidade da ruptura a empreender e das possibilidades por ela
abertas veio com o tempo, que forneceu as lições necessárias para o aprendizado sobre a organização da tarefa, em especial a de continuar vencendo eleições à medida que trilhava a senda da mudança. (Bonfim, Ibid., p.57)
Entretanto, para Farias (op. cit.), os jovens empresários tinham a consciência de que
para realizar as mudanças preconizadas precisavam conquistar o poder institucional. No
discurso de posse de Tasso Jereissati na terceira diretoria do CIC, em 1981, há uma passagem na qual fica claro o projeto de conquistar o poder: “o CIC tem um compromisso estadual, regional e nacional com a formação, o mais rápido possível, de uma classe política competente e forte, capaz de influenciar e até assumir o poder” (Farias, 1997, p.259).
Na mesma linha de raciocínio de Farias (Ibid.), Abu-el-Haj (1997) analisa que a atuação política da nova geração de empresários cearenses, em particular a geração do CIC,
foi condicionada pela posição ocupada na produção e por suas relações com o Estado. E
o método mais eficaz no seu processo de intervenção política foi através da conquista do
cargo de governador estadual por Tasso Jereissati. O perfil destes empresários era, segundo este autor, baseado nos seguintes aspectos: engajamento em atividades industriais tradicionais de médio porte, e inserção em mercados complexos e de altos lucros.
O governo estadual adotou medidas para a interiorização do desenvolvimento, por
meio de políticas diferenciadas de incentivo à localização do investimento industrial, trazendo aos municípios mais importantes do estado a oportunidade de empregar parte de
seu contingente populacional em plantas industriais modernas, que não apenas se beneficiassem dos incentivos ofertados, mas também dos níveis salariais mais baixos e da pequena força da organização sindical nativa (Bonfim, 1999).
Farias (op.cit., p.274) destaca os projetos estruturais prioritários que, no segundo governo de Tasso Jereissati, tinham por objetivo fortalecer a economia do Ceará em longo
prazo: a construção do Porto do Pecém, a internacionalização do aeroporto Pinto Martins, o Metrofor, os linhões Banabuiú-Fortaleza e da CHESF (para ampliar a oferta de energia elétrica), a melhoria das rodovias estaduais, a interligação das bacias hidrográficas e a
construção do açude Castanhão, além dos investimentos no setor turístico.
A MODERNIZAÇÃO HÍDRICA DO “GOVERNO
DAS MUDANÇAS”
A atuação governamental no estado do Ceará no decorrer dos anos, na questão das
águas, sempre foi predominantemente feita pelo governo federal, com o governo estadual
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4 O Projeto Nordeste continha alguns projetos específicos, tais como o Programa
de Apoio ao Pequeno Produtor Rural (PAPP/PDSFN),
Programa de Irrigação Pública e Privada, Programa de
Apoio às Micro e Pequenas
Empresas no Interior, Programas de Educação Básica
e Profissional do Meio Rural,
Programas de Ações Básicas de Saúde no Meio Rural
e Programa de Saneamento
Básico no Meio Rural (Amaral Filho, 2003).
5 As informações referentes
ao aparato estatal da Política de Recursos Hídricos
são de Ceará (1995a).
6 O SIGERH foi instituído pela Lei 11.196 de 24 de junho de 1992, complementado pela Lei 12.217 de 18
de novembro de 1993, que
cria a Companhia de Gestão
de Recursos Hídricos (COGERH), e pela Lei 12.245 de
30 de dezembro de 1993,
que dispõe sobre o Fundo
Estadual dos Recursos Hídricos (FUNORH). A sua
composição reúne um conjunto de órgãos colegiados
de coordenação e participação, deliberação e execução da política estadual de
recursos hídricos. Congrega
instituições estaduais, federais e municipais, que, de algum modo, se relacionam
com recursos hídricos e
com aqueles representativos dos usuários de água e
da sociedade civil.
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participando de forma muito tímida. Em conseqüência, acontecia uma inevitável dissociação entre os objetivos institucionais a as ações propostas nos programas. O processo de
planejamento era marcado pela quase total desarticulação dos órgãos envolvidos nos programas, desprovido de qualquer estratégia de ação integrada.
A implantação de uma nova política de recursos hídricos passou a fazer parte do pensamento estratégico do grupo que assumiu o poder no estado do Ceará em 1987, e foi incluída no conjunto das macro-reformas, ao lado da reforma do Estado e dos ajustes fiscal e
financeiro. A partir daí, o governo estadual passou a implantar um ambicioso plano de oferta e disciplina do uso da água, tendo por base o argumento de que no passado não havia
nenhuma preocupação, nem no estado nem na região, em se estabelecer uma estrutura capaz de ajudar a população das áreas rurais a lidar racionalmente com a escassez de água.
Segundo Amaral Filho (2003, p.15), no primeiro Plano de Governo de Tasso Jereissati (1987-1991), ainda não havia uma “idéia clara” do modelo de gestão de água para o
estado, embora existisse a consciência da necessidade de se formular um modelo, orientado para o disciplinamento e a racionalização do uso dos recursos hídricos.
Considerando que as intervenções do governo contra os efeitos da seca eram emergenciais e de caráter assistencialista, com práticas de clientelismo, o Plano de Governo
destacava que as soluções emergenciais deveriam ser abandonadas e deveriam ser estabelecidas soluções integradas, estruturais e permanentes (Ceará, 1987). Amaral Filho
(op.cit.) destaca que o governo do estado depositou sua confiança na estratégia de desenvolvimento rural preconizada pelo Projeto Nordeste,4 que seria financiado pelos governos
federal e estadual e pelo Banco Mundial.
No início de 1987 foram dados os primeiros passos na implantação da política estadual de recursos hídricos. Foi dado início ao estabelecimento de um aparato estatal5 e à
implantação de políticas públicas para encaminhar a questão dos recursos hídricos, com
destaque para a criação da Secretaria de Recursos Hídricos (SRH) – lei 11.306 de 1º de
abril de 1987 –, com a missão de promover o aproveitamento racional e integrado dos recursos hídricos do estado, coordenar, gerenciar e operacionalizar estudos, pesquisas, programas, projetos e serviços tocantes a recursos hídricos, e promover a articulação dos órgãos e entidades estaduais do setor com aqueles das instâncias federal e municipais.
Outras medidas institucionais foram: a criação da Superintendência de Obras Hidráulicas do Estado (SOHIDRA) – lei 11.380 de 15 de dezembro de 1987 –, com o objetivo de
ser o braço técnico e executor das obras da Secretaria de Recursos Hídricos; a vinculação da
Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) ao sistema de recursos hídricos. Desta forma, a SRH, a Funceme, a SOHIDRA e o Conselho de Recursos Hídricos passaram a compor o Sistema de Recursos Hídricos do Estado (Amaral Filho, 2003).
Uma das providências adotadas pela SRH foi a elaboração do Plano Estadual de Recursos Hídricos (PERH), que lançou as bases da política adotada pelo setor. O Plano propôs todo um aparato jurídico e institucional para o setor, além de promover a integração
dos órgãos estaduais, federais e municipais, organizando-os no Sistema Integrado de Gestão de Recursos Hídricos (SIGERH).6
O Plano Estadual de Recursos Hídricos, que levou quatro anos para ficar pronto,
constitui o mais importante estudo técnico consolidado já realizado no Ceará e pode ser
considerado como a principal fonte arquitetônica do atual modelo estadual de gestão dos
recursos hídricos (Amaral Filho, 2003).
Com a posse de Ciro Gomes em 1991, houve continuidade no processo de implantação do novo modelo de gestão de recursos hídricos, de forma a permitir a propagação dos
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desdobramentos do Plano Estadual de Recursos Hídricos, elaborado no governo de Tasso
Jereissati (Id., Ibid.). O autor ressalta que, embora os princípios básicos da nova política já
tivessem sido implementados pelo PERH, estes ainda não tinham penetrado no discurso
político do novo governo.
A Política das Águas no Ceará,7 prevista no artigo 326 da Constituição Estadual, foi
disciplinada pela Lei Estadual de Recursos Hídricos n. 11.996 de 24 de julho de 1996, e
visa proporcionar os meios para que a água, recurso essencial ao desenvolvimento sócioeconômico, seja usada de forma racional e justa pelo conjunto da sociedade, em todo território do Ceará.
A Lei Estadual de Recursos Hídricos tem como objetivos: assegurar o desenvolvimento sustentado compatível com a oferta de água; assegurar a oferta de água em quantidade e qualidade para as gerações atuais e futuras; planejar e gerenciar, de forma integrada, descentralizada e participativa, o uso múltiplo, controle, conservação, proteção e
preservação dos recursos hídricos.
A Política Estadual de Recursos Hídricos tem como elementos básicos: o Plano Estadual dos Recursos Hídricos, que contém um estudo detalhado da capacidade e das potencialidades dos recursos hídricos do estado do Ceará (este plano foi revisado em 2004);
o Sistema Integrado dos Recursos Hídricos, em que os Comitês de Bacia, as Câmaras Técnicas e o Conselho de Recursos Hídricos do Estado do Ceará (CONERH), órgãos colegiados, definem e executam a Política Estadual de Recursos Hídricos; e o Fundo Estadual
de Recursos Hídricos, criado em 1992 para dar suporte financeiro à Política Estadual de
Recursos Hídricos, que conta com recursos de programas e projetos governamentais e
com aqueles oriundos da cobrança pelo uso da água bruta.
A adoção da bacia hidrográfica8 como unidade de planejamento é um dos princípios
fundamentais do gerenciamento dos recursos hídricos. O estado do Ceará foi dividido em
onze bacias hidrográficas: Coreaú, Litoral, Curu, Metropolitana, Baixo Jaguaribe, Parnaíba, Acaraú, Banabuiú, Médio Jaguaribe, Alto Jaguaribe e Salgado (Amaral Filho, 2003).
As funções do Comitê de Bacia são permanentes e intermitentes, abrangendo desde
o planejamento e acompanhamento da operação dos açudes estratégicos e principais sistemas hídricos até a negociação de tarifas pelo uso de água bruta. Também são atribuições
do Comitê: acompanhar a implementação dos cadastros de usuários de água bruta, contribuir para a negociação de conflitos pelo uso da água em sua bacia, implementar campanhas educativas e participar do processo de elaboração dos Planos de Gerenciamento
de Bacias.
Em 1993 foi criada a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará
(COGERH)9 (Amaral Filho, Ibid.), com a finalidade de gerenciar a oferta dos recursos hídricos constantes dos corpos d’água superficiais e subterrâneos de domínio do estado, e
equacionar as questões referentes ao seu aproveitamento e controle, operando, para tanto, de forma direta, por meio de subsidiária ou de pessoa jurídica de direito privado, mediante contrato, realizado sob forma remunerada.
Além da aprovação da Lei 11.996, de 24 de junho de 1992, que dispõe sobre a Política Estadual de Recursos Hídricos, Amaral Filho (2003) destaca mais três realizações do
Governo Ciro Gomes: o aumento da capacidade de armazenamento e da oferta de água
no Estado através da construção de açudes, barragens e canais; a realização de novas rodadas de estudos técnico-científicos que aconteceram no âmbito do Projeto Áridas,10 que
contribuíram para ajudar a atualizar o Plano Estadual de Recursos Hídricos, ao mesmo
tempo em que definiam os contornos da Política de Recursos Hídricos do Ceará; e o feR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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7 Os princípios, instrumentos, diretrizes e elementos
da Política de Recursos Hídricos são de Ceará [s.d.].
8 Bacia hidrográfica é uma
área onde toda chuva que
cai, drena, por riachos e
rios secundários, para um
mesmo rio principal, localizado em um ponto mais baixo da paisagem, sendo separada das outras bacias
por uma linha divisória denominada divisor de água.
9 A COGERH foi criada pela
Lei n° 12.217, de 18 de novembro de 1993, em conformidade com o artigo 326
da Constituição do Estado
do Ceará como entidade da
Administração Pública Indireta dotada de personalidade jurídica própria, organizada sob a forma de
sociedade anônima, de capital autorizado.
10 O Projeto Áridas foi uma
reflexão realizada por equipes estaduais integradas
dos estados do Nordeste,
com a finalidade de repensar o desenvolvimento da
região, tendo como referência o conceito de desenvolvimento sustentável. O Projeto Áridas nasceu na
Fundação Esquel e teve o
apoio da Secretaria de Planejamento, Orçamento e
Coordenação da Presidência da República (SEPLAN/PR), além de cooperação técnica e institucional
do Instituto Interamericano
de Cooperação para a Agricultura (IICA). A idéia original
deste projeto aconteceu na
Conferência Internacional
sobre Impactos de Variações Climáticas e Desenvolvimento Sustentável em Regiões Semi–Áridas (ICID),
realizada em Fortaleza no
início de 1992, como base
preparatória para a Conferência Mundial de Desenvolvimento e Meio Ambiente
(Eco–92) para assuntos relacionados ao Semi-Árido,
desertificação e meio-ambiente (Amaral Filho, 2003).
O S
11 O contrato 4531-BR para a
implantação do PROGERIRH foi
assinado com o Banco Mundial
em 10 de fevereiro de 2000,
com um valor total do projeto
de US$ 247,270,000.00; destes, o valor do contrato de financiamento do BIRD foi de
US$ 136,000,000.00 e o valor
da contra-partida, de US$
111,270,000.00. Foi assinado
também o contrato de nº
01.2.329.3.1 com o BNDES,
em 30 de abril de 2002,
para o financiamento de
R$ 126.000.000,00, divididos
em dois subcréditos, o subcrédito A, de R$ 43.400.000,00,
e subcrédito B, de R$
82.600.000,00 (Ceará, 2005a).
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chamento de negociações com o Banco Mundial para obtenção de empréstimos para o financiamento do PROURB – Hídrico.
A parceria entre o estado e o Banco Mundial na questão das águas foi iniciada em
1994, com o financiamento do Projeto de Desenvolvimento Urbano e Gestão de Recursos Hídricos (PROURB), que teve como objetivos a consolidação do sistema estadual de
gerenciamento de recursos hídricos, inclusive com a criação da COGERH, e o início da cobrança pelo uso desses recursos. O PROURB também implementou um ambicioso programa de construção de barragens e adutoras para o suprimento de água a diversas cidades
do Estado.
Depois do início das obras do PROURB, o governo propôs ao Banco Mundial um
programa de integração das bacias hidrográficas do Ceará, por meio da implantação do
Programa de Gerenciamento e Integração dos Recursos Hídricos (PROGERIRH), que tem
a concepção básica de transferência de recursos hídricos de zonas úmidas para zonas de
escassez hídrica. O PROGERIRH foi criado pelo Governo do Estado em parceria com o
Banco Mundial11 com o objetivo de promover a gestão eficiente e integrada dos recursos
hídricos do estado do Ceará, mediante a racionalização do uso de água, o aumento de sua
oferta para usos múltiplos, o incentivo à adequada gestão do solo e da vegetação nas bacias hidrográficas tributárias, a minimização de sua erosão, a construção de açudes estratégicos, a transposição de bacias, a criação de agrovilas e a irrigação ao longo dos eixos de
transferência, com a abertura de novas fronteiras agrícolas, compondo assim, a Política de
Recursos Hídricos do estado.
Amaral Filho (Ibid., p.29) destaca que o envolvimento do estado com o Banco Mundial foi importante, não somente pelo aporte financeiro, mas também:
[...] pela introdução do disciplinamento dos instrumentos, pelo aperfeiçoamento
institucional, pela modernização dos procedimentos administrativos, pela mudança de
mentalidade e também devido à melhoria da capacidade técnica dos recursos humanos
envolvidos no sistema. Isto ocorrendo através da interação técnica, bem como através dos
condicionantes econômico, financeiro, ambiental e social atrelados à concessão de empréstimos.
O segundo e terceiro governos de Tasso Jereissati continuaram a Política de Recursos
Hídricos. O Plano de Governo do terceiro governo tomou como base as teses e propostas
dos estudos do Projeto Áridas. Foram estes estudos, conforme afirma Amaral Filho (2003),
que deram visibilidade à Política Estadual de Recursos Hídricos, dando contornos mais
precisos ao modelo, inclusive agregando o conceito de desenvolvimento sustentável.
A MODERNIZAÇÃO EXCLUDENTE DA BARRAGEM
DO CASTANHÃO
Nas seções anteriores, buscou-se explicar de que forma foi construído o “Ceará moderno” e como aconteceu a implantação da “modernidade hídrica” no estado, processos
que estão imbricados com a construção da Barragem do Castanhão, que será analisada a
partir dos pressupostos deste mesmo processo de modernização.
Duas grandes obras de infra-estrutura se destacam no projeto de desenvolvimento
instaurado no estado do Ceará: o Complexo Industrial e Portuário do Pecém e o açude
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Castanhão. O Complexo Industrial e Portuário do Pecém foi concebido com o objetivo
de dotar o estado do Ceará de um núcleo de irradiação de desenvolvimento. A Barragem
do Castanhão, considerada um elemento central na política da gestão integrada das principais bacias e na política estadual de águas, visa superar a vulnerabilidade das atividades
sociais e econômicas quanto à incerteza de disponibilidade de água, e induzir o uso eficiente da água, como bem econômico escasso (Ceará, [199-]).
Localizados na bacia hidrográfica do Jaguaribe, principal rio cearense, a barragem do
Castanhão e seu reservatório estão situados nos municípios de Alto Santo, Jaguaribara, Jaguaretama e Jaguaribe. O vale do Rio Jaguaribe ocupa uma área de 72 mil quilômetros
quadrados, ou a metade do território do Ceará. O Vale está situado em uma região semiárida e, em função do clima e da base geológica predominantemente cristalina, o regime
dos rios é intermitente, fluindo apenas no período das chuvas. Até 1980, o Rio Jaguaribe
era considerado o “maior rio seco do mundo”, tendo sido perenizado com a construção
do Açude Orós em 1960 e com a instalação de equipamentos hidráulicos em 1980.
Três vezes e meio maior que o açude Orós, o Castanhão tem capacidade para armazenar 6,7 bilhões de m3 de água, com um volume útil de 4,211 bilhões na cota 100 e um
volume morto de 250 milhões de m3 na cota 71. O reservatório tem um comprimento
máximo de 48 km, área inundada de 32.500 hectares na cota 100 (cota de sangria), de
operação normal, e 60.000 hectares na cota de cheia máxima.
A Barragem do Castanhão é considerada pelo Governo do Estado do Ceará como
um projeto de uso múltiplo com forte componente de desenvolvimento regional, e representa fato de grande repercussão sócio-econômica no estado. A construção da Barragem
do Castanhão foi apresentada como um importante meio de atender não apenas as necessidades de água da população do semi-árido, vítima de secas periódicas, mas também como um investimento estratégico de longo prazo capaz de oferecer múltiplos benefícios. A
água, como um recurso territorial estratégico, tem se revelado elemento de fundamental
importância para garantir a atração de indústrias para o estado, bem como para garantir
o funcionamento do Complexo Industrial e Portuário do Pecém.
Com a finalidade de levar água para Fortaleza e região e para o Porto do Pecém,
está sendo construído o Eixo de Integração Castanhão-Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) pela SOHIDRA,12 com recursos do PROGERIRH: um sistema de adução, com
255 km de comprimento, composto por uma estação de bombeamento, 166,59 km de
canais, 93,0 km de adutoras e 1,1 km de túneis. A obra permitirá a transposição do açude Castanhão para reforçar o abastecimento da Região Metropolitana de Fortaleza e
também do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, fazendo a integração das bacias
hidrográficas do Jaguaribe e da Região Metropolitana.13 Este empreendimento é considerado fundamental para o suprimento, com garantia adequada, das demandas hídricas da Região Metropolitana de Fortaleza, incluindo o Complexo Industrial e Portuário do Pecém.
Os primeiros estudos topográficos e geológicos sobre a Barragem do Castanhão datam de 1910. De acordo com Tavares (2004), o geólogo americano Roderic Crandall,
consultor do Serviço de Geologia e Mineralogia do Brasil, descobriu o Boqueirão do Cunha, hoje situado no município de Alto Santo, na aproximação do chamado Baixo Vale
do Rio Jaguaribe, ao estudar seções naquele rio que poderiam ser fechadas para o armazenamento d’água, como forma de regularizar a oferta deste recurso, em um território regido pelas irregularidades climáticas e constituído, em quase toda sua totalidade, de solos
rasos de geologia cristalina.
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12 Informações disponíveis
em: http://www.sohidra.ce.
gov.br.
13 O primeiro trecho do
Eixo de Transposição foi
inaugurado em dezembro
de 2004.
O S
14 Em julho de 1995, o
DNOCS celebrou um Convênio
com o Governo do Estado do
Ceará, a fim de viabilizar as
ações decorrentes da Construção da Barragem do Castanhão, no que se refere ao envolvimento com populações,
como a construção da cidade
de Nova Jaguaribara e o Reassentamento da População Rural, bem como outras ações
pertinentes à execução da
obra. Em 22 de outubro de
1996, o DNOCS assinou o Contrato nº PGE 16/96 com o Consórcio Aguasolos/Hidroterra,
vencedor da licitação para Execução de Serviços de Consultoria para Acompanhamento, Assessoria e Fiscalização das
Obras da Barragem do Castanhão. (Araújo, op. cit).
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Conforme Tavares (Ibid.), a descoberta não foi tão festejada na época, pois o relatório de Crandall adiantou que o sítio barrável em questão seria mais adequado à construção de uma barragem de pequeno porte, para derivação das águas para futuros canais de
irrigação, pois se situava no limite extremo sul das manchas irrigáveis do baixo Jaguaribe.
Apenas em meados de 1955, a construção do eixo barrável foi cogitada, quando se apresentou como alternativa à barragem do Orós, sendo preterido por esta última, que teve as
obras iniciadas e concluídas ainda no Governo Juscelino Kubitscheck.
A partir do início dos anos 1980, a Barragem do Boqueirão do Cunha, atualmente
Barragem Castanhão, passou então a ser estudada, agora pelo Departamento Nacional de
Obras de Saneamento (DNOS), no âmbito dos estudos de transposição das águas do São
Francisco para o Nordeste Semi-Árido, com a finalidade de desempenhar o papel de reservatório pulmão (Tavares, Ibid.). Em setembro de 1987 foi contratado o Consórcio Hidroservice/Noronha pelo DNOS, para elaboração dos Estudos Básicos, Anteprojeto, Projeto Básico e Projeto Executivo (Araújo, 1997).
Com a extinção do DNOS, seu patrimônio e competências foram transferidos para o
DNOCS, inclusive o futuro empreendimento Barragem do Castanhão. Desta forma, o
Projeto do Castanhão só chegou ao conhecimento do DNOCS em dezembro de 1986 (Tavares, Ibid.).
Em 1989, o DNOCS iniciou a contratação do Relatório de Impacto Ambiental
(RIMA), o cadastramento das terras e benfeitorias, e o remanejamento da população atingida. O Projeto Básico, devidamente aprovado, serviu de suporte para efetivação da Concorrência Pública nº 08/89-DGO/G, realizada em dezembro de 1989. A vencedora da licitação foi a Construtora Andrade Gutierrez S.A., porém, o resultado esteve "sub-judice"
por quase dois anos, em função de recursos interpostos por empresa concorrente. Em outubro de 1991, o Supremo Tribunal de Justiça deu provimento a recurso interposto pela
Construtora Andrade Gutierrez, encerrando assim o processo licitatório, dando ganho de
causa à empresa que apresentou o menor preço (Araújo, op. cit.).
As obras de construção da Barragem do Castanhão14 foram contratadas pelo DNOCS
em 05 de dezembro de 1991, através do Contrato nº PGE 01/91, com a Construtora Andrade Gutierrez S.A., porém, a 1ª Ordem de Serviço só foi emitida em 16 de novembro
de 1995.
Desde que o DNOS lançou a idéia e projetou a construção do Castanhão, com o
conseqüente aparecimento das notícias de sua construção em 1985, o Castanhão se
constituiu em uma obra polêmica, cercada de imensos questionamentos. As divergências
técnicas foram o principal elemento desencadeador da polêmica em torno da obra (Silveira, 2000). Um dos líderes dessa oposição técnica foi o engenheiro civil Manfredo Cássio de Aguiar Borges, que foi por mais de vinte anos chefe da Divisão de Hidrologia do
DNOCS. Borges dirigiu suas críticas aos erros do dimensionamento hidráulico do reservatório; aos erros e conseqüências da concentração de água no terço inferior do Vale do
Jaguaribe; e aos erros e conseqüências da implantação de um lago com superfície extremamente grande para uma região seca e quente, o que ocasionaria uma grande perda de
água por evaporação.
Igualmente foi objeto de críticas a “dança” dos objetivos e benefícios advindos da Barragem. Críticas estas que foram bastante consistentes, uma vez que os objetivos dessa obra
sempre variaram ao sabor do contexto da época, dos projetos e das conveniências governamentais, bem de conformidade com o que uma barragem de “usos múltiplos” pode oferecer. Exemplo muito claro disso pode ser percebido quando se constata a importância da
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Barragem do Castanhão para o Complexo Industrial e Portuário do Pecém, e de como,
uma Barragem que agora é considerada o coração da política de águas do estado, não recebeu a mesma qualificação quando da elaboração do Plano Estadual de Recursos Hídricos.
Esta “dança” de objetivos também é citada por Bernadete Neves, freira que liderou a
organização da comunidade de Jaguaribara frente à construção da barragem do Castanhão:
Os objetivos da barragem sempre foram apresentados de acordo com o contexto da época.
Sabemos que o projeto teve origem nos gabinetes do DNOS, no Rio de Janeiro, fora da realidade
do Semi–Árido. De início, eles apresentavam dois objetivos: um era a irrigação da Chapada do
Apodi, e o outro era a transposição do São Francisco. Em 1985 houve muitas enchentes, então eles
aproveitaram para dizer que o projeto iria atenuar o nível de enchentes no Vale. Diziam mesmo
que acabaria com as enchentes. Numa outra época, o projeto passou a ter como objetivo a geração de energia. Eles vão mudando os objetivos de acordo com os interesses do momento. [...] Eles
vão manipulando, vão fazendo os objetivos de acordo com o contexto da época, para conseguirem
a aprovação do povo. Durante um ano de seca, um outro objetivo foi levar água para Fortaleza.
Agora é a transposição do São Francisco. O que sentimos é que isto faz parte de um plano maior,
de favorecimento de empreiteiras. (IMOPEC, 1999, p.26)
A população de Jaguaribara, cidade que foi submersa pelas obras da Barragem,15 teve um papel fundamental na discussão que se estabeleceu em torno de sua construção,
embora, segundo os próprios moradores, não se possa dizer que o povo de Jaguaribara tenha se organizado em decorrência da construção da barragem. Quando a notícia da barragem chegou, já há seis anos se desenvolvia a discussão, organização e formação de lideranças, com forte presença da Igreja Católica, em particular de Irmã Bernadete. A
população utilizou todas as estratégias disponíveis para impedir a realização da obra.
Quando se constatou a inevitabilidade do projeto, surgiram as discussões de compensações sociais, econômicas e financeiras à população urbana e rural.
Uma questão muito importante a ser resolvida dizia respeito ao desejo da população
de ficar nas margens do rio, em vez de ser deslocada para assentamentos de reforma agrária em outras localidades. Para muitos, isso seria uma violência à tradição deles. Jaguaribara era um lugar com uma tradição cultural que deveria ter sido preservada. Desde que
a Confederação do Equador teve o desfecho na região e o corpo de Tristão Gonçalves teria sido sepultado na igreja local, Jaguaribara passou a fazer parte do mapa histórico do
Ceará.16 A praça principal da cidade tinha o nome de Tristão Gonçalves. Existia um marco que era muito visitado e, particularmente no dia 31 de outubro, o marco era alvo de
visitas por alunos das escolas locais.
O desrespeito aos critérios estabelecidos para as indenizações (justa, prévia e em dinheiro) criou problemas para as pessoas que compraram propriedades nos municípios vizinhos confiando nelas, pois tiveram que devolver as terras porque não puderam consolidar a compra devido a atrasos nos processos de indenização.
Outro problema grave dizia respeito ao descompasso muito grande entre o ritmo das
obras da barragem e o da construção da nova cidade e, principalmente da formação dos
assentamentos rurais. Para muitos, o pagamento das indenizações e o citado descompasso constituíram um dos problemas mais sérios.
Com a transferência para a nova cidade sendo anunciada pelo Governo do Estado,
persistia a disputa e a negociação entre Governo e comunidade, conforme mostra Nascimento (2003, p.21), ao mencionar a produção de uma série especial de matérias veiculaR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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15 Embora Jaguaribara tenha sido o município mais
atingido, as obras de construção da Barragem atingiram também Jaguaretama,
Alto Santo e Morada-Nova,
os quais cederam parte de
seus territórios para o novo
município de Jaguaribara.
Jaguaretama ainda teve parte de seu território atingido
pelas obras.
16 Escavações feitas na
Igreja Santa Rosa de Lima,
quando da demolição da cidade de Jaguaribara, não localizaram os restos mortais
de Tristão Gonçalves. (Diário do Nordeste, 15 de outubro de 2001).
O S
17 Informação constante
nos Planos de Reassentamento do IDACE.
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das no Programa “No Ceará é assim” da TV Jangadeiro, emissora de propriedade de Tasso Jereissati, sobre a transferência dos moradores e a estrutura da nova sede.
Segundo a autora, tais matérias difundiam os benefícios de uma cidade planejada,
“nascida do processo democrático”, na qual “seu planejamento, desde a sua localização até
a estrutura física urbana, contou com a participação da população” – conforme Informativo da Secretaria do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do Governo do Estado
do Ceará –, embora não se constituíssem em fonte isenta, dado que não havia espaço nestas mesmas matérias para a divulgação das idéias contrárias ao Governo. Enquanto isso, a
comunidade, com apoio de algumas entidades, produzia e divulgava material declarando
sua posição divergente no processo.
A transferência dos moradores para Nova Jaguaribara teve início em 2000. Em
2002, a nova cidade, distante 55 km da antiga sede, foi inaugurada pelo Governo do Estado. Nova Jaguaribara possui área territorial de 595,60 km2 e passou a ter como limites
o município de Morada Nova, ao norte; os municípios de Alto Santo e Iracema, a leste;
o município de Jaguaribe, ao sul e o município de Jaguaretama, a oeste (Ceará, 1995b).
Segundo Pontes (2004), as recomendações relativas ao reassentamento estavam ligadas essencialmente à população urbana, em função de exemplos negativos que já haviam
ocorrido em outras obras no Brasil e, também devido à organização da população urbana de Jaguaribara. A área rural não se constituía em motivo de preocupação, dada a dispersão da população e a ausência de resistência e organização. Eles não estavam incluídos
nos planos de modernidade.
A construção da Barragem Castanhão deslocou compulsoriamente uma população
de 2.268 famílias no meio rural, em área circunscrita ao futuro lago, até a cota 110. Destas famílias, 1.515 foram consideradas reassentáveis, uma vez que não tinham condições
de se restabelecer por sua própria conta, por serem simples moradores ou porque, sendo
proprietários, receberam uma indenização que não lhes permitia se restabelecer dignamente (Ceará, 2004).17
O Governo do Estado, vislumbrando a magnitude das ações do reassentamento e
não possuindo recursos para o cumprimento do convênio que tratava da execução de
ações referentes à barragem do Castanhão, solicitou uma alteração no mesmo, através de
aditivo. No momento da rediscussão das competências e valores, coube ao DNOCS a responsabilidade pelo reassentamento rural, inicialmente com o Governo do Estado, e este,
como contrapartida, construiria a nova sede de Jaguaribara. O DNOCS repassaria os recursos necessários ao Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (IDACE), que seria
o executor do reassentamento rural (Pontes, op. cit.)
Não havia uma idéia de movimento de atingidos na região até os anos 1990. A história do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Castanhão, enquanto movimento organizado de luta contra barragens, se iniciou a partir de 1993, especialmente
quando um dos atuais líderes do movimento começou a participar das reuniões que aconteciam em Jaguaribara, Fortaleza e São Paulo, em 1997. A idéia do movimento começou
a tomar forma a partir da insatisfação quanto ao modo como a questão da barragem estava sendo tratada pelas lideranças de Jaguaribara. Hoje, o MAB tem destacada atuação no
enfrentamento dos problemas advindos da implantação da Barragem.
A liderança exercida pela freira Bernadete Neves provocou, por volta de 1999/2000
vários confrontos internos, com discordâncias quanto à maneira como o trabalho estava
sendo conduzido, principalmente no enfrentamento com o governo, estabelecendo-se
uma clara disputa entre a Igreja, na pessoa da Irmã Bernadete, e o MAB.
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A falta de planejamento do Estado para o equacionamento dos problemas dos atingidos no meio rural foi outro fato que contribuiu para a organização do MAB na região,
que veio dar maior visibilidade a estas questões, organizando manifestações, encaminhando documentos, conseguindo meios para resolver emergencialmente a situação de penúria em que se encontrava a maioria dos atingidos, e buscando uma interlocução direta
com os órgãos envolvidos, principalmente com o DNOCS.
O reassentamento dos atingidos do meio rural, com a multiplicidade de órgãos estatais envolvidos, esteve cercado de problemas, desde o início; o desenvolvimento ou modernização pretendido com a implantação da Barragem passou ao largo do processo descrito por Cernea e McDowell (2000), que tem em vista elevar o padrão de vida, saúde,
alfabetização, reduzir a pobreza e fortalecer o meio ambiente.
Se os componentes fundamentais que devem ser considerados nos processos de deslocamento, a fim de se alcançar o desenvolvimento, são a ausência de pessoas sem terra e
sem teto, desempregadas, marginalizadas, sofrendo de insegurança alimentar, com falta de
acesso aos recursos comunitários e sem desarticulação dos laços comunitários, o modelo
de desenvolvimento e de modernização posto em prática no Castanhão realmente falhou
nesse sentido.
É se é possível também, como advogam Cernea e McDowell (Ibid.), que, sob políticas claras, podem ser protegidas mais efetivamente as práticas que constituem os direitos civis, dignidade humana e os direitos econômicos dos que são sujeitos à realocação involuntária, constata-se que faltou no Castanhão uma política clara para o reassentamento
rural. Se nessa perspectiva, reassentamento e restabelecimento das condições de vida são
domínios nos quais se afirmam os direitos humanos, estendendo a justiça social e promovendo a inclusão em vez de exclusão proeminente nas agendas políticas, pode-se afirmar
que aconteceu no Castanhão um processo de modernização excludente.
Se tomarmos como base as recomendações da Comissão Mundial de Barragens, fundadas nos valores de equidade, sustentabilidade, eficiência, processo decisório participativo
e responsabilidade, a situação dos atingidos pode ser considerada ainda mais excludente.
Sem dúvida, foi um avanço a instalação do Grupo de Trabalho Multiparticipativo
para Acompanhamento das obras da Barragem do Castanhão, instância criada pelo Governo do Estado com o objetivo de discutir as ações relacionadas à Barragem do Castanhão e para servir como um fórum de debates acerca dos problemas oriundos de sua construção. Em que pese a inovação da medida, diferente das adotadas até então na
construção de grandes obras de infra-estrutura, o Grupo Multiparticipativo funcionou
muito mais no sentido de legitimação das ações governamentais do que como fórum efetivo de participação da sociedade civil. Isto se verifica fundamentalmente em seu funcionamento. Afinal, a participação democrática da sociedade efetivamente não ocorreu, se
for considerado que a participação não se restringe a expor os problemas, mas em ter a
possibilidade de influir nos resultados.
Como pode ser considerado democrático um fórum para tratar das questões referentes à construção de uma grande obra, se é fechada a porta à participação formal de um
movimento de representação dos atingidos por ela? O convite formal para a participação
do MAB no referido Grupo só ocorreu quando não havia mais o que ser decidido e quando os movimentos sociais passaram a ter mais visibilidade. Como se pode dizer que a população participou efetivamente, se só podia decidir questões que não implicassem em realocação dos recursos, que foram prioritariamente dirigidos para a obra da barragem e da
construção da nova cidade?
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No que tange à participação da comunidade tão propagada pelo Governo do Estado, cabe uma reflexão particular acerca da ação desenvolvida pelo Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (IDACE), representante do governo estadual no processo de reassentamento. O trabalho do IDACE teve por base uma metodologia participativa que já
vinha sendo utilizada em assentamentos de reforma agrária no Ceará, mas que se mostrou
problemática no caso da Barragem do Castanhão, dado o pouco poder de decisão que tinham seus técnicos no processo de reassentamento e à forma como se processou o reassentamento rural, sempre a reboque dos outros processos.
A modernização pretendida pelo governo das “mudanças” apresentou, pelo menos no
discurso, todos os aspectos relacionados por Gomes (2000) como indicativos do moderno:
o caráter de ruptura, a imposição do novo e a pretensão de alcançar a totalidade. Como o
mecanismo de substituição do antigo pelo novo é a ruptura, a necessidade imperiosa de
ruptura com os “coronéis” fazia parte da afirmação de sua modernidade pretendida. Conforme Heller e Feher (1994), a instituição existente é atacada do ponto de vista de um imaginário (futuro), sendo transformada em instituição velha. Assim, todos os que se posicionaram contra o “novo” que estava sendo implantado no Ceará, também passaram a ser
considerados como “forças do atraso”, numa pretensão clara de alcançar a totalidade.
Outro aspecto a ser considerado na modernização do governo das “mudanças” diz respeito ao que Touraine (2002) chama de concepção ocidental da modernidade, em que a
racionalização era a própria razão e a necessidade histórica que preparava seu triunfo. Desta forma, a racionalização se torna um aspecto essencial da modernidade e um mecanismo
necessário para realizar a modernização. Neste aspecto, as ações do governo das “mudanças” se revestiram de um caráter técnico-racional sem precedentes na história do Ceará.
Se a modernização pode ser entendida como o desenvolvimento da racionalidade
instrumental e representa o marco econômico e cultural de nossa época, sendo um critério necessário ao desenvolvimento econômico e estabelecendo o referencial obrigatório
para qualquer política, conforme Lechner (1990), o processo de uso e controle das águas
no Ceará certamente tem contribuído para levar o estado a se transformar num paradigma da “modernização hídrica”, pensada nos seus aspectos puramente técnicos, citada como exemplo a ser seguido por outros estados do país.
Entretanto, a modernização das práticas de planejamento e gestão de recursos hídricos em escala estadual se concretiza através de práticas tradicionais. Na verdade, seria mais
justo dizer, no caso do Castanhão, que se assiste a uma combinação híbrida de formas modernas, planejadas e abertas, mesmo que de maneira incompleta à participação, com fortes traços de exclusão política, em que o social ainda é moeda de troca.
Isto pode ser percebido muito claramente na questão do valor teto das indenizações
– que determinava quem teria direito ao reassentamento –, apenas apresentado e não discutido com os atingidos, que não tiveram qualquer ingerência na definição deste valor,
restando apenas a aceitação, ou a migração, como aconteceu com um número razoável de
famílias. Isto também é verificado quando se compara o número de reassentáveis nos planos iniciais de reassentamento e os dados mais recentes de famílias reassentadas.
A participação “adjetiva” que os atingidos tinham no Grupo Multiparticipativo,
quando se tratava de resolver as questões mais importantes, e que diziam respeito às verbas, certamente não pode ser configurada como inclusão. E o tratamento dispensado ao
MAB não poderia ser caracterizado como exclusão política? No Castanhão, as dimensões
sociais do processo de modernização fracassam em um modelo que não consegue incorporar importantes segmentos sociais.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise permite constatar que o processo de uso e controle das águas no Ceará, tendo como base o processo de construção da Barragem do Castanhão, colocou o estado como exemplo a ser seguido, e contribuiu para levá-lo a se transformar em um modelo de
modernização, no que diz respeito a “modernização hídrica”. Se pensarmos em todo o
aparato técnico e no desenvolvimento institucional, certamente houve modernização; entretanto, esta modernização ocorreu em detrimento de interesses e direitos de setores sociais que continuam estruturalmente à margem do mercado e à margem da proteção estatal, pois a modernidade hídrica implantada no Ceará buscou transformar o espaço
geográfico no espaço da racionalidade técnica a serviço de interesses privados.
O aparato institucional criado para dar corpo à modernização hídrica foi funcional
para a concretização deste projeto de modernidade, inclusive com o envolvimento do Estado com o Banco Mundial, que propiciou a introdução do disciplinamento dos instrumentos, conseguidos através do aperfeiçoamento institucional e da modernização dos
procedimentos administrativos. Isto ocorreu não apenas pela interação técnica, mas também por meio dos condicionantes atrelados à concessão de empréstimos.
O Ceará, como cliente do Banco Mundial, se empenhou em desenvolver leis, regulamentos e instituições requeridas para administrar os recursos hídricos de maneira mais
economicamente produtiva, socialmente aceitável e ambientalmente sustentável e, a
exemplo dos demais prestatários do Banco Mundial, também precisou desenvolver e
manter uma ação apropriada de infra-estrutura de água.
Entretanto, a institucionalização posta em prática nas questões ligadas diretamente
ao reassentamento da população rural afigurou-se como um elemento complicador do
processo, tendo gerado interferências e conflitos entre os diversos níveis e instâncias, tanto governamentais, como com a Igreja, o MAB e representantes da comunidade.
Não restam dúvidas quanto à necessidade de uma adequada gestão dos recursos hídricos em um estado que sempre sofreu em decorrência das irregularidades climáticas.
Resta esperar que os benefícios desta pretensão de modernidade não fiquem concentrados nas mãos de poucos e se convertam em benefícios sociais que irão melhorar a vida da
população, ou ao menos, formular um novo conceito que reinvente o progresso.
Na época em que imperavam os interesses clientelistas, a implantação de indústrias
era apresentada como solução para libertar a população nordestina dos efeitos da seca. E
foi no esteio deste discurso que o grupo urbano-industrial que governou o Ceará nas duas últimas décadas se formou, ou pelo menos se fortaleceu, se beneficiando dos incentivos fiscais da Sudene, com o aval dos “coronéis” da política cearense.
A seca continua sendo usada, não mais pela “indústria da seca”, mas como justificativa para a acumulação de água para beneficiar a indústria, de acordo com a visão empresarial dada à água; os interesses clientelistas da época dos “coronéis” no uso e controle da
água, expressos pela construção de açudes e poços em propriedades particulares e outros
expedientes que ficaram marcados no imaginário popular como a “indústria da seca”, se
transformaram em interesses dos “industriais da seca” para atender a uma burguesia urbano-industrial. A implantação de indústrias (ou agroindústrias) continua sendo a resposta para o desenvolvimento, mas desta vez ancorada pela implantação de mega projetos hídricos associados à modernidade.
Os cearenses deverão agora se acostumar a olhar para o solo, redesenhado pelo “caminho das águas”, na esperança de que a modernização promovida deixe de ser excludenR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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Francisca Silvania de
Sousa Monte é doutora em
Planejamento Urbano e Regional -IPPUR/UFRJ e professora adjunta da Universidade Federal do Ceará. E-mail:
[email protected]
Artigo recebido em agosto
de 2008 e aprovado para
publicação em janeiro de
2009.
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te e contemple todos aqueles que durante séculos se acostumaram a olhar para o céu, na
esperança de chuva, especialmente a população do meio rural, a mais atingida pelas irregularidades climáticas.
Além dos processos de exclusão econômica que são a marca do capitalismo na periferia (e aqui estamos falando de periferia da periferia), o processo político e social foi engendrado e engendrou sua modernização de forma incompleta ou truncada no processo
de construção da Barragem do Castanhão. Será este o destino da modernização tropical?
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B S T R A C T This study is part of a doctorate thesis that investigated how the process of use and control of water supply in Ceará State from the Castanhão Dam contributed
to transform the state in paradigm of modernization, particularly water resources modernization. Politicians, government agents, social organizations, and other relevant agents involved
in the process, were interviewed. Many documents and reports from several institutions involved in the dam construction were also analyzed. It was concluded that water resources modernization is drawing a new territorial configuration in the Ceará State, transforming the geographic space in a space of technical rationality to serve private interest, and that the
development intended with the dam construction resulted in a process of excluding modernization mainly to those directly affected by the dam.
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Modernization, Development, Ceará, Dam, Water, Exclusion.
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CULTURAS DA JUVENTUDE
E A MEDIAÇÃO DA EXCLUSÃO/INCLUSÃO RACIAL
E URBANA NO BRASIL E NA ÁFRICA DO SUL*
EDGAR PIETERSE
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E S U M O Neste artigo assume-se que a condição urbana contemporânea está fortemente marcada por uma crescente pluralidade. Associada a esta mudança na natureza do contexto urbano, pode-se também observar a proliferação de lugares (sites) de engajamento político e de ação, sendo alguns deles formalmente ligados a fóruns institucionais do Estado, mas
muitos outros podem ser caracterizados pela sua insistência em permanecer fora do Estado,
uma forma de afirmar autonomia e clamar por termos próprios de reconhecimento e formas
de agir. O artigo chama a atenção para o significado de uma categoria de atores urbanos –
hip-hoppers – que ocupa uma posição “marginal” na relação com o Estado, mas que é muito relevante para a existência marginalizada da maior parte da juventude negra nas cidades
do sul global, particularmente no Rio de Janeiro e na Cidade do Cabo. O artigo demonstra
que as culturas hip hop oferecem uma poderosa estrutura de interpretação e resposta para a
juventude pobre que sofre sistematicamente o impacto de forças urbanas extremamente violentas e exploradoras. A base do poder do hip hop (e congêneres) é sua complexa sensibilidade estética, que funde valores afetivos – como o desejo, a paixão e o prazer, mas também a ira e a
crítica –, que por sua vez se traduzem em identidades políticas e às vezes em ação (ou seja, posicionamento) para seus participantes. Em última instância, o artigo procura associar o potencial da cultura política do hip hop a temas acadêmicos mais amplos, tais como participação,
espaço público, cidadania e segurança.
P A L A V R A S - C H A V E Hip hop; política cultural; violência urbana; exclusão/inclusão urbana; registros afetivos.
Um ponto de partida para este artigo é a idéia de que a natureza da condição urbana é substancialmente diferente hoje se comparada ao que era apenas algumas décadas
atrás. Consequentemente, a forma como pensamos sobre quem e o que é incluído e excluído das cidades não pode ser concebida com as mesmas ferramentas conceituais que
estavam à nossa disposição no passado recente. Hoje, a condição urbana é marcada por
uma série de mudanças rápidas em termos de quem vive e se move pela cidade, pela forma como as infra-estruturas são projetadas e instaladas, pela proliferação de sinais que caracterizam as diferentes identidades – frequentemente em alternância – de determinadas
partes da cidade; tudo isto, pode ser dito, tem aumentado a intensidade plural das cidades em quase todos os lugares.
A primeira seção deste artigo chama atenção para a natureza violenta e criminal de
cidades do sul global e sugere que, se os aspectos desumanizantes dessas tendências não
forem confrontados, é impossível imaginar, e muito menos forjar, uma cidade inclusiva.
A violência gera uma exclusão traumática que é irremediável.
A segunda seção explora a importância das práticas culturais do hip hop como recurso para a juventude capturada pelas economias violentas, criminosas e sustentadas pelo
tráfico de drogas nos bairros pobres dessas cidades. Após discutir sobre a definição do moR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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* Versões deste artigo foram apresentadas em dois
seminários, em Barcelona
(6-8 Novembro, 2006) e Johanesburgo (12-13 Março,
2007), respectivamente,
reunidos sob o patrocínio do
Centro Internacional para
Acadêmicos Woodrow Wilson, do Centro para Cultura
Contemporânea de Barcelona e do Banco de Desenvolvimento da África do Sul.
Gostaria de agradecer aos
membros destes seminários
pelos seus comentários , e
ainda a Christa Kuljian, por
sua contribuição construtiva.
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vimento hip hop, esta seção passará a uma descrição sumária de seu crescimento como
subcultura no Brasil e na África do Sul.
A terceira seção explora a natureza deste movimento como manifestação política e
como ela pode promover perspectivas de inclusão urbana. Na seção final deste artigo procura-se associar as principais conclusões sobre o potencial da política cultural do hip hop
a temas mais abrangentes, como participação, espaço público, cidadania e segurança.
NATUREZA DA CONDIÇÃO URBANA
Para a maior parte da juventude negra e pobre em muitos países do sul global, a cidade se assemelha a um funil fortemente circunscrito que os leva a contextos em que têm
muito poucas opções a não ser uma vida de violência, excesso e terror, devido à profunda privação que caracteriza suas condições de moradia e de vizinhança. Ailsa Winton
(2004) nos lembra que o trabalho seminal de John Galtung (1991) sobre a violência estrutural identificou como a privação é em si mesma uma forma de violência.
(...) as compreensões de violência incluem dano psicológico e, por sua vez, a alienação, a repressão e a privação [...] Em contextos urbanos, é a privação enquanto desigualdade que é a mais
importante forma de violência estrutural e também aquela que está relacionada de forma mais
significativa com a emergência da violência reacionária cotidiana. A privação neste sentido inclui não só diferenças de renda, mas também a falta de acesso aos serviços sociais básicos, a falta
de proteção universalizada pela previdência estatal, bem como a corrupção intensa, a ineficiência e a brutalidade, que geralmente atingem os pobres de forma mais intensa, e a falta de coesão
social [...] Em situações de desigualdade severa e generalizada, os pobres urbanos são desconsiderados e marginalizados, e a sua condição de vida cotidiana aumenta a probabilidade da emergência de conflitos, crime e violência. (Winton, 2004:166-7)
A partir desta perspectiva, não é surpreendente verificar que a violência é realmente
um fator dominante no cotidiano, particularmente nos enclaves urbanos onde a população pobre se concentra – as favelas no Brasil e as townships na África do Sul. Uma conseqüência determinante é a banalização da violência como rotina na resolução de conflitos ou nas relações com outras pessoas. A literatura sugere que isto é particularmente
comum em sociedades que presenciaram conflitos no passado recente, tais como Colômbia (Ferrandiz, 2004), Nicarágua (Rogers, 2006), África do Sul (Standing, 2004) e Jamaica (Clarke, 2006), entre muitas outras (Winton, 2004). O tráfico de drogas se estabelece
com facilidade nestas sociedades porque exige e produz violência. Quase todas as dimensões do tráfico de drogas envolvem a violência; por exemplo, uma guerra entre gangues
que se deflagra para o controle dos mercados e do território, ataques contra viciados em
ondas de purificação social (especialmente no Brasil) e as incessantes brigas e violências domésticas ligadas ao gênero (ver Sousa, 2005; Winton, 2004; Zaluar, 2006).
A violência estrutural, associada em particular a economias baseadas no comércio de
drogas, dá origem a configurações espaciais particulares nas favelas, que restringem e direcionam o movimento das pessoas comuns. O geógrafo Marcelo Lopes de Sousa (2005:
6-7) oferece uma visão esclarecedora desta espacialidade:
O tráfico varejista de drogas implantado na favela combina uma forte hierarquia na escala da favela com uma organização em rede descentralizada na escala dos comandos. Em cada fa106
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vela esta hierarquia compreende (em ordem decrescente): o dono do morro, os gerentes (aqueles que
controlam os pontos de venda), os soldados (equipe de segurança), os “vapores” (vendedores de rua)
e os “aviões” (transportadores entre vendedores). Cada grupo traficante ou quadrilha tem seu próprio território composto de uma ou mais favelas e, enquanto os traficantes que pertencem ao mesmo comando geralmente respeitam seus respectivos territórios, bandidos pertencentes a comandos
rivais frequentemente tentam tomar posse dos territórios inimigos. Isto resulta em guerras territoriais que duram vários dias ou mesmo semanas, normalmente envolvendo várias quadrilhas pertencentes ao mesmo comando e imbuídos do espírito de ajuda mútua. A proteção dos negócios como também de outros aspectos mais simbólicos, como a demonstração de poder e virilidade (ver
Zaluar, 1994; 2002a), tem contribuído não somente para um aumento do uso da violência entre quadrilhas criminosas, como também para um aumento da atmosfera de tirania vivida pelos
habitantes da favela.
As descrições de ex-traficantes em Culture is our Weapon (Neate e Platt, 2006) capturam o modo como a vontade e a capacidade de praticar a violência são fatores-chave
para se subir na hierarquia do tráfico, tanto em termos de status como de espaço. O balanço final da violência é desconcertante: “entre 1948 e 1999, estima-se que 13.000 pessoas foram mortas no conflito entre Israel e Palestina. Entre 1979 e 2000, mais de
48.000 morreram vítimas de ferimentos relacionados a armas de fogo na cidade do Rio”
(Neate e Platt, 2006: 102). Em outras palavras, para as crianças negras,1 crescer nas favelas do Rio de Janeiro significa crescer em uma zona de guerra, e os piores impactos psicosociais que isso acarreta ocorrem porque não se admite que de fato se vive um tempo
de guerra.
Há muito mais para se dizer sobre a real dinâmica das gangues envolvidas no tráfico de drogas e as implicações da banalização (e internalização) da violência como parte
inevitável da vida cotidiana; mas aqui se pretende apenas registrar a violência estrutural
como parte do contexto social consolidado nas regiões pobres, identificando possibilidades existentes ou imagináveis para modificar essas condições, de forma a promover políticas e sistemas urbanos mais inclusivos e socialmente justos.
Se aceitarmos que a privação constitui uma forma de violência, a pesquisa sobre a
privação urbana no Brasil e na África do Sul demonstra um claro padrão de diferenciação
racial. A juventude negra e pobre está cada vez mais incapacitada de participar da economia formal, que continua sua transição dos setores primário e secundário para o setor terciário, baseado em serviços que exigem habilidades específicas da força de trabalho. Estas
habilidades são inacessíveis aos pobres devido ao fracasso dos sistemas educacionais e às
diversas condições familiares, que contribuem para abalar a auto-estima, confiança, tempo, apoio e oportunidade para o sucesso educacional. Deste modo, as seguintes conclusões acerca das tendências brasileiras não surpreendem:
Podemos também notar a presença da discriminação social no mercado de trabalho, onde a
população não branca apresenta as maiores taxas de desemprego, a menor educação formal, os menores salários e é ocupada principalmente nas atividades informais. A taxa de emprego é diretamente proporcional ao nível de educação e é inversamente proporcional à idade, afetando os jovens com maior força. A taxa de desemprego cresceu entre 1993 e 1998 e é mais severa entre as
mulheres (14,4%) e os não brancos, enquanto a taxa de desemprego para os homens é de 9,2%.
Também encontramos condições de segurança mais baixas entre os domicílios chefiados por mulheres não brancas. (Morais et al., 2003:11)
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1 Refere-se aqui a um entendimento abrangente de negritude que inclui a população parda que reconhece e
aceita a linhagem africana de
seus ancestrais.
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Condições muito similares são encontradas em cidades da África do Sul, como a
Cidade do Cabo, onde os níveis de desemprego são substancialmente mais altos que no
Brasil, no patamar de 28% (CCT, 2006:20). Esta taxa média esconde a taxa de desemprego nas áreas de população predominantemente pobre e negra, onde os níveis de desemprego superam os 50% (Parnell e Boulle, 2006). A dura realidade é que a vasta maioria da população pobre da Cidade do Cabo permanece presa na condição de pobreza
devido às condições sociais adversas que enfrenta em seus bairros e escolas, que tornam
a realização educacional extremamente difícil. Na província do Cabo Ocidental, entre
48 e 55% dos estudantes que entram no sistema escolar acabam saindo antes de completarem 12 anos de estudo, e é desnecessário dizer que quase todos esses estudantes são
negros e pobres (Department of Education, 2005). Além disso, menos de 10% dos estudantes oriundos de comunidades pobres que chegam a completar a educação secundária possuem as qualificações apropriadas para entrar no sistema educacional superior. As
taxas de evasão no ensino superior atingem 50% antes que os estudantes completem a
graduação. Desta forma, os pobres permanecem estruturalmente excluídos das novas
oportunidades de emprego, que demandam qualificações mais altas associadas à educação e ao treinamento formais. Além disso, índices extraordinariamente altos de violência social nas famílias e comunidades pobres são frequentemente o padrão, em parte sustentados por gangues criminosas ligadas à droga, que servem como importantes fontes
de governabilidade alternativa nestas áreas (Chipkin, 2005; Standing, 2004). Nos últimos anos, a maioria das townships negras (mas não exclusivamente) tem sido severamente prejudicada por uma epidemia de drogas, com o uso de “Tik” (metanfetamina de cristal) se tornando endêmico, alimentando a violência e aprofundando ainda mais a
marginalização social e econômica da juventude pobre da cidade. Nestas condições, para
a vasta maioria da juventude negra, a masculina em particular, o ingresso no mercado
de trabalho formal é improvável, e sua participação nas atividades criminosas relacionadas à droga aumenta. Ademais, as estruturas das gangues que intermedeiam estas economias ilegais e ilícitas também provêem uma fonte de pertencimento e identidade, em
um momento em que a perspectiva de falta de futuro pode tornar vulneráveis até as
identidades mais sólidas.
Pesquisas de diversos acadêmicos indicam que durante as duas últimas décadas, juntamente com a intensificação do processo de globalização, a escala, a complexidade e a
abrangência das economias (e dos mercados) de drogas têm explodido, deixando em seu
rastro um legado devastador de violência (Castells, 1997; Naím, 2006). Durante este
mesmo período, a retração e a reestruturação da economia – favorecendo os setores baseados em serviços, que requerem níveis maiores de qualificação – tenderam a agravar as desigualdades de renda na maioria das cidades, deixando os mais marginalizados em situações ainda mais precárias, e com pouca esperança de inserção no mercado de trabalho
formal (UNDP 1999).
Como conseqüência destes fatores, muitos jovens negros, especialmente homens, se
envolvem de uma forma ou de outra com as gangues que administram e dirigem particularmente o tráfico de drogas em áreas pobres. Os bairros pobres cumprem funções particulares em uma extensa e frequentemente globalizada cadeia de valor de produção, refinamento, manufatura, armazenamento, distribuição e consumo, em mercados locais,
nacionais e globais. Em torno dessas atividades, as gangues relacionadas às drogas exercem um controle quase total sobre os territórios onde estão localizadas, frequentemente
em colisão com elementos das forças de segurança (Souza, 2005).
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Uma questão fundamental a ser considerada é que embora as atividades cotidianas
relacionadas à droga façam uso da violência nas favelas e townships e estejam inseridas de
forma generalizada nestas áreas, a cadeia de valor das economias da droga engloba diversos circuitos que se estendem muito além da favela, em espaços onde ocorre o comércio
e onde os que mais se beneficiam do tráfico vivem, fazem compras e se entretêm – espaços que são ostensivamente separados da favela/township. Esta geografia da segregação de
classe é reforçada pela economia política de atuação da polícia, pelo sistema de justiça
criminal (tribunais e prisões) e pelas instituições reguladoras do Estado que reproduzem
a exclusão e a segregação urbana (Souza, 2005). Em outras palavras, a intensa e extrema
situação de violência recorrente nas favelas cria um desvio, no sentido de que a vigilância anti-drogas se preocupa apenas com os níveis mais baixos da cadeia de valor da economia da droga, sem tocar os níveis mais altos que detêm o controle e os lucros (Neate
e Platt, 2006).
Isto certamente é entendido por certos “intelectuais orgânicos” da favela, que procuram “falar a verdade para o poder” a respeito deste uso desconcertante de dois pesos e
duas medidas:
Mas o que você precisa entender sobre esta sociedade é que questões de violência e crime não
envolvem apenas armas e drogas. No Brasil, as únicas pessoas que vão para a prisão são aqueles
que roubam pouco. Aqueles que roubam muito ficam na liberdade. Colocar as pessoas em condições subumanas nas favelas? Quando eu mostro isso, sou criticado, mas isso é uma forma de violência. No Rio ainda há uma forte influência colonial. Ouvi dizer que uma garota negra em uma
escola pública foi vítima de racismo. Ela se trancou no banheiro e tentou cortar sua pele para se
tornar branca. Porém, quando se tenta falar sobre racismo, dizem que somos neuróticos. Isso é
uma forma de violência. As crianças das favelas sempre vão para as escolas públicas, mas elas têm
que trabalhar para suas famílias também. Por isso, as crianças das favelas nunca têm uma educação boa o bastante para entrar nas universidades públicas. Eles nunca têm uma chance. Aqueles lugares são tomados por crianças de classe média vindas de escolas particulares. Isso também é
uma forma de violência. Você sabe... eu estou falando sobre os negros, mas isso também se aplica
aos índios e brancos que não têm nada. As pessoas dizem que o hip hop só trata da violência, mas
elas não entendem. O rap neste país é muito contra a violência, e faz muito bem. Claro que não
é a única forma de ajudar as pessoas, mas eu sei que me ajudou. Algumas pessoas querem mudar
o hip hop para “eu amo esta mulher” e esse tipo de coisa. Mas nós ouvimos isso tantas vezes em
outros tipos de música, e eu te pergunto: as pessoas realmente têm todo esse amor?” (MV Bill2 citado em Neate, 2003:191-2)
A partir desta observação, é oportuno passar ao papel da música popular, particularmente o hip hop, em desafiar a condição urbana predominante de crescente marginalização da juventude negra e pobre, oferecendo um sentido alternativo de lugar, de interpretação do mundo, e “uma capacidade de aspirar” (ver Appadurai, 2004).
GENEALOGIAS PARALELAS DO HIP HOP
Nesta seção do artigo eu defino os fundamentos do hip hop enquanto forma cultural e prática estética. Então irei, brevemente, relatar dois instrutivos e inspiradores exemplos de movimentos sociais movidos pela cultura no Rio de Janeiro e na Cidade do CaR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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2 MV Bill (Alexandre Barreto)
é um artista de hip hop oriundo de uma das regiões mais
violentas da cidade do Rio de
Janeiro, a favela Cidade de
Deus.
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bo, que lidam diretamente com as causas e resultados da violência e exclusão urbanas relacionadas à economia da droga, através da música popular e suas práticas associadas. Isto fundamentará a próxima seção do artigo, que irá explorar as potencialidades do hip hop
como um registro de esperança.
Imani Perry (2004: 38) explica que “A música rap é uma forma mista. Como forma
de arte, combina poesia, prosa, canção, música e teatro. Pode se apresentar como uma
narrativa, autobiografia, ficção científica ou debate”. Na prática, o hip hop pode ser categorizado em cinco elementos centrais: a atividade do MC e do rapper, a discotecagem, o
grafite, o break e aquilo que se denomina “conhecimento de si”, mesmo que este último
seja motivo de controvérsia. Conhecimento de si, nomeado por Afrika Bambata como o
“quinto elemento” do hip hop, refere-se a uma consciência crítica a respeito da história negra e das raízes da opressão e exclusão racial. É considerado por alguns como um pré-requisito essencial para se ter um desempenho acima da média nos outros quatro aspectos
da cultura hip hop. Com o passar dos anos, desde que o hip hop surgiu nos anos 1970, a
música hip hop tem evoluído e mudado com incrível rapidez, engolindo cada vez mais em
sua passagem a cultura popular americana (Chang, 2005; Shapiro, 2005). Atualmente,
representa o gênero musical mais vendido no maior mercado musical do mundo – o dos
Estados Unidos. Com seu crescimento exponencial de vendas e influência, o hip hop incorporou uma grande quantidade de outros símbolos culturais públicos, e se tornou globalizado em sua essência, constituindo uma profunda influência nas preferências de consumo (Neate, 2003). Dois países cujos cenários no hip hop são significativos são o Brasil
e a África do Sul.
Existem paralelos espantosos no que diz respeito ao surgimento e ao crescimento do
hip hop nas cidades brasileiras e, especialmente, na Cidade do Cabo, na África do Sul. Antes de mais nada, obviamente, o hip hop é um gênero musical afro-americano, que emergiu como a mais recente invenção musical da América negra, seguindo o blues, o jazz, o
soul e o funk. Como acontece com estas outras formas, ele também se inspira nestas tradições mais antigas, retrabalhando-as e ampliando repertórios-chave e sensibilidades estéticas (Huq, 2006). Na próxima seção retomaremos ao hip hop americano, considerando
algumas implicações deste movimento cultural.
HIP HOP BRASILEIRO E HÍBRIDOS POPULARES
O hip hop no Brasil tem suas origens em meados dos anos 1980, quando B-Boys
(dançarinos de break) e artistas de graffiti começaram a aparecer em São Paulo, imitando
e apropriando-se da forma musical que havia surgido nos Estados Unidos. Curiosamente, nos anos iniciais havia conflitos frequentes entre estes grupos, que competiam pelo território em diferentes praças públicas da cidade (Essinger, 2007). As primeiras coletâneas
de rap apareceram em 1987 e 1988. Desde o início, os líderes hip hop se inspiravam na
veia crítica de consciência negra do gênero, o que se reflete na coletânea de 1988 intitulada Consciência Black, que incluiu aquele que se tornaria o grupo brasileiro mais importante, Racionais MCs. Esta compilação “proporcionou às audiências uma visão da vida duríssima dos jovens pobres e negros na periferia de São Paulo, perdidos entre o crime e a
privação social” (Essinger, 2007:2). Este elemento de “consciência” permaneceu crucial na
cultura brasileira do hip hop durante a sua proliferação nos anos 1990, incorporando diferentes inflexões regionais à medida que se enraizava em diferentes centros urbanos do
país. Por exemplo, o membro do grupo carioca Planet Hemp, Marcelo D2, lançou em
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1998 seu primeiro álbum, uma fusão paradigmática de rap e samba. Assim, atualmente
há múltiplos sub-gêneros no rap brasileiro, desde fusões com a música nordestina, ao rock
(como no México e no Chile) e ao reggae, conforme adotado nas impressionantes melodias do afroreggae centradas nos tambores (Neate, 2003).
De forma significativa, os artistas de hip hop mais vendidos, Racionais MCs (de São
Paulo) e MV Bill (do Rio de Janeiro) conduzem sua arte no registro da consciência negra.
O auge da carreira dos Racionais foi o lançamento em 1998 de seu álbum Sobrevivendo
no Inferno, que quebrou todos os recordes. Eles venderam acima de um milhão de cópias de um CD gravado de forma independente, e o vídeo que o acompanhava ganhou o
prêmio de “escolha da audiência” na MTV Brasil, transformando-os num fenômeno nacional. Curiosamente, o vídeo descreve a rotina de um preso na véspera do conhecido
massacre carcerário no dia 1 de outubro de 1992, com uma letra que, militantemente,
responsabiliza o Estado pela chacina. Dada a popularidade e influência dos grupos de hip
hop “conscientes”, cabe a seguinte afirmação de um analista:
O hip hop tornou-se uma das ferramentas centrais de crítica social para uma juventude marginalizada que tem poucas perspectivas de emprego e que possui acesso extremamente
limitado à educação. Através do rap, os jovens aprendem sobre Zumbi dos Palmares – herói
da luta contra a escravidão – e outros importantes líderes afro-brasileiros; eles aprendem sobre a história da luta da população brasileira para acabar com a ditadura militar; e para
muitos, é por onde lhes são introduzidos conceitos de revolução, socialismo e democracia.
(Marshall, 2003:1)
A outra figura emblemática do hip hop brasileiro é MV Bill. Ele foi criado e continua
a viver no bairro periférico e de classe trabalhadora que se tornou famoso pelo filme Cidade de Deus. Ainda que esta área seja fisicamente diferente, comparada com a natureza
mais transitória das favelas mais centrais, ela apresenta as mesmas condições sociais relacionadas à droga mencionadas na seção anterior. MV Bill se tornou uma figura de enorme sucesso no movimento do hip hop brasileiro, mas é uma exceção, na medida em que
ele tem trabalhado consistentemente para aperfeiçoar sua prática artística ao lado de sua
visionária agenda ativista, que utiliza os registros do hip hop para desestabilizar os discursos e estereótipos dominantes [do mainstream]. Além disso, MV Bill tem trabalhado continuamente na institucionalização de infra-estruturas populares de base voltadas à criação
de oportunidades alternativas para que a juventude da favela possa se inserir em diversas
atividades culturais. Esta prática se manifesta em sua própria narrativa sobre tomada de
consciência através do hip hop:
No Brasil, o hip hop não é mais apenas um tipo de música, uma cultura; ele já se tornou um instrumento de transformação, de mudança da vida das pessoas. E este encontro foi
para mim um momento de recomeço. Eu consegui superar meus traumas de infância. Os mesmos traumas a que muitos jovens como eu estão sujeitos e que não podem superar através do hip
hop; o próprio hip hop me ensinou que não é a saída para tudo e todos; que através do hip
hop é possível procurar diversos outros trajetos. O hip hop é apenas um de vários trajetos e há
muitos jovens que precisam ter um encontro com este momento de lucidez, e eles não o têm. Isto é o que tentamos promover com a CUFA (Central Única das Favelas), tentamos promover
este encontro com as pessoas, cada uma julgando por si mesma o que é bom ou ruim, tentamos
levar esta oportunidade às pessoas. Eu acredito na teoria de que, quando damos uma oportuR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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nidade a uma pessoa, nós temos a chance de trazê-la para este lado. Por outro lado, negar-lhes
esta chance é provar que elas não são seres humanos porque não terão oportunidades na vida e,
de algum modo, é contribuir para o seu assassinato e para o de suas vítimas. (MV Bill, entrevistado em Lou, 2005)
Com esta combinação de excelência artística e engajamento ativista, ele ganhou reconhecimento global, sendo honorificado pela Unicef em 2005. Foi uma posição que o
tornou mais conhecido no Brasil e que permitiu que ele tivesse seu trabalho filmado em
documentário – que expõe o cotidiano da juventude do tráfico de drogas em muitas cidades brasileiras – exibido em rede nacional de televisão no Brasil e aclamado pelos críticos. O documentário, por sua vez, estava ligado a um projeto de livro que também causou grande impacto na esfera pública nacional pelo país inteiro, especialmente devido ao
fato de que teve como co-autor Luis Eduardo Soares (isto será elaborado adiante).
A prática cultural e a intuição política sagaz de MV Bill são espelhadas por outros
atores no cenário brasileiro de hip hop/música popular. Já me referi à abordagem dos
Racionais MCs, mas o outro exemplo proeminente é o movimento social organizado
em torno da liderança de José Junior, o fundador do grupo AfroReggae (Neate e Platt,
2006). De alguma forma, eles foram mais além ao institucionalizar uma prática cultural crucial no nível das bases populares, com a ambição específica de fornecer uma
governabilidade alternativa àquela das gangues da droga, porém, imitando delas os códigos disciplinares. A energia e a determinação de Junior foram bem captadas no seguinte comentário:
Junior descreve o AfroReggae como uma pirâmide, com a banda no seu ápice. Abaixo, há
diversos tijolos: a caridade, os negócios e a cooperativa. A ONG trabalha em diversas favelas.
Seu principal propósito é afastar as crianças do tráfico, dando-lhes meios de se expressarem. O
AfroReggae organiza workshops de música, dança, capoeira e circo; tudo sustentado por trabalhadores sociais e assistência médica. Quanto aos negócios, é essencialmente uma empresa de
produção. “Nós somos uma ONG que ganha seu próprio dinheiro”, sorri Junior. “Temos excelentes conexões urbanas e então estamos capacitados a produzir shows para as maiores estrelas
brasileiras [...] Há a cooperativa, que lida com toda a parte de comercialização e cria oportunidades de emprego na favela. [...] O AfroReggae é uma ideologia – para ensinar cultura, responsabilidade social e criatividade. Hoje em dia, se você realmente quiser mudar uma situação, primeiro você precisa mudar a auto-imagem das pessoas naquela situação”. (Junior, citado
em Neate, 2003: 199-200)
O HIP HOP DE CAPE FLATS
O hip hop também criou raízes na zona de Cape Flats, na Cidade do Cabo. Os incontestáveis “fundadores” do hip hop de Cape Flats foram os músicos do grupo chamado
Prophets of da City (POC). O grupo foi fundado por Shaheen Ariefdien e Ready D. Desde o início, eles também se inspiraram na corrente da consciência negra militante do hip
hop americano, porque ela oferecia uma ferramenta para interpretar e resistir a então virulenta máquina opressiva do regime do apartheid (Haupt, 2001; 2004). Como Ready D
explica, quando Niggers With Attitude (NWA) lançou “Fuck Tha Policy” no final do anos
1980, “nós nos identificamos imediatamente com isso porque nós estávamos passando
pelas mesmas coisas que esses caras estavam falando” (citado em Neate, 2003: 131). Ou112
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tro grupo que surgiu junto com POC foi Black Noise, estabelecido por Emily XY?, que naquela época era na verdade uma professora escolar. Black Noise (ver discografia nas referências) sempre foi deferente, porque absorveu ativamente todas as dimensões do hip hop
e usou-o como um veículo para o trabalho de base com jovens e crianças de comunidades pobres (Battersby, 2004).
Em meados dos anos 1990, alguns membros-chave do POC formaram um interessante grupo derivado chamado Brasse vannie Kaap (Caras do Cabo) (BVK) que optaram
por cantar o rap no dialeto africâner de Cape Flats chamado gamtaal. Artisticamente, na
minha leitura, a obra do BVK é na verdade mais bem elaborada e interessante que a militância mais reducionista e dissimulada do POC e, até certo ponto, do Black Noise. Isso foi
confirmado recentemente pelo primeiro lançamento de outro MC, Jitsvinger (intraduzível), que pratica sua arte em gamtaal com efeito artístico brilhante. O hip hop oriundo de
Johanesburgo também transformou completamente o gênero na África do Sul ao longo
dos últimos anos, com o aparecimento de excelentes grupos e MCs, como Skwatta Kamp,
Proverb e Zubz, entre muitos outros. Retornarei adiante ao tema da qualidade artística,
quando examinar o significado artístico e político do hip hop.
A maioria dos grupos da Cidade do Cabo também participa de uma vibrante e mais
abrangente comunidade hip hop que trabalha com shows educacionais itinerantes envolvendo tópicos relacionados à educação, à conscientização e prevenção do HIV/AIDS e à exploração criativa. Sem dúvida, os membros do Black Noise foram os pioneiros e líderes
neste sentido (Haupt, 2001; Watkins, 2001). A maior estação de rádio comunitária da
Cidade do Cabo dedica um programa, intitulado Headwarmers, à comunidade de hip hop
nas noites de sexta-feira. Este programa ofereceu (e continua a oferecer) uma plataforma
para discursos abertos sobre a política e a prática de hip hop, e permitia que os fãs se engajassem com os grupos de hip hop e dividissem informações sobre eventos iminentes e
oportunidades de mostrar novos talentos. A rádio fornece uma fascinante perspectiva dos
repertórios discursivos das comunidades hip hop e do aprofundamento de uma ideologia
compartilhada (Haupt, 2004).
Os cenários do hip hop no Brasil e na África do Sul são muito diferentes. Para começar, o tamanho do mercado brasileiro é enorme, e a cultura da música brasileira está bem
estabelecida. Este definitivamente não é o caso na África do Sul, ainda que importantes
mudanças estejam começando a aparecer no que tange à música kwaito. Os artistas de hip
hop da África do Sul enfrentam dificuldades porque o público consumidor é mínimo;
uma tendência não amenizada pela relutância das lojas de discos em ter disponível e muito menos em promover a música (Battersby, 2004).
HIP HOP COMO POLÍTICA DE RECONHECIMENTO
E IRA...
No momento em que o hip hop americano está se tornando uma força desgastada,
o resto do mundo está acordando para o poder transformador do rap. “No início, o hip
hop americano era ótimo”, diz [MV] Bill, que começou a cantar rap em 1988, aos 12 anos
de idade, depois de ter visto o drama sobre as gangues de Los Angeles, Colors. “Mas porque as gravadoras estavam assustadas com o conteúdo político e o discurso de gueto de
bandas como NWA e Public Enemy, eles injetaram tanto dinheiro nos rappers que agora
eles não sabem falar de outra coisa senão dinheiro – ou degradação feminina. A indústria
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fonográfica emasculou o hip hop nos Estados Unidos. Mas, ao mesmo tempo, o hip hop
se tornou uma forma de arte para os marginalizados do mundo” (Hodgkinson 2006).
Seria fácil construir uma narrativa sobre a “redenção terceiro-mundista” da tradição
política e militante do hip hop para salvá-la dos caprichos do comercialismo. É certamente plausível argumentar que a orientação do hip hop pelo mundo é quase exclusivamente
crítica, tentando “mantê-lo autêntico” e mais intimamente alinhado com a militância do
hip hop em seu início (ver Haupt, 2004; Huq, 2006). Entretanto, isto seria muito simplista e ignoraria a complexa estética que impulsiona a dimensão artística e, por extensão,
a dimensão política do hip hop. Para desenvolver este ponto com mais profundidade, gostaria de me voltar para a análise pioneira de Imani Perry (2004:3) a respeito das “difíceis
questões políticas e culturais apresentadas pelo hip hop”, sem cair na apologia da comercialização escancarada do gênero no contexto dos Estados Unidos em particular.
Perry argumenta que é necessário valorizar ao menos quatro grandes dimensões da
prática artística do hip hop, para que se possa apreciar completamente sua estética e suas
potencialidades. Em primeiro lugar, “há uma constante dinâmica de especificidade, ainda que o hip hop crie uma cultura jovem na escala nacional no que diz respeito às roupas, ao discurso e ao posicionamento ideológico e possua reverberações internacionais.
A especificidade de um lar, de uma comunidade de artistas, constitui um elemento fundamental para a criação. Ela enraíza a música numa comunidade histórica, cultural e lingüística e educa o ouvinte a respeito daquela comunidade específica” (Perry 2004:23).
Assim, em todos os diferentes subgêneros da música hip hop, a contextualização da localidade e especialmente da comunidade (os “home boys”) é uma referência constante, assim como são também a identificação de quem é o MC e o grupo que se junta a ele/ela
numa faixa específica e o seu local de origem. Esta dinâmica relacionada ao lugar é crucial e, durante alguns anos “insanos”, em meados dos anos 1990, ela provocou violentas
guerras entre os grupos ditos da costa leste e da costa oeste, que deixaram Tupac Shakur
e Biggie Smalls como tristes memórias. Este sentido de orgulho em relação ao lugar e à
comunidade – e a concomitante necessidade de “representar” – é utilizada de modo semelhante nas tradições de hip hop tanto do Brasil como da África do Sul, que dá à música uma estética visual altamente urbanizada e sólida, frequentemente reproduzida em
vídeos musicais.
Em segundo lugar, o discurso aberto é fundamental no hip hop. O discurso aberto
se refere à não-regra de que quase tudo é permitido no hip hop desde que possa ser defendido artisticamente. Deste modo, Perry argumenta que “encontramos em muitos destes textos [de hip hop] o sexo ao lado da espiritualidade, a depravação junto com a beleza. Deveríamos estender o discurso aberto já existente no hip hop para nossa conversa
sobre hip hop [...] Por ser uma forma de arte falada que nutre o discurso aberto, encontramos no hip hop um espaço dialógico no qual as vozes de artistas articulam idéias sobre a existência em várias formas de registros musicais” (Perry, 2004: 42-3). Quase todos os artistas de hip hop americanos prestam homenagem às suas linhagens soul, blues,
jazz e, especialmente, gospel. Assim, considerando a obra do alto sacerdote do hip hop
Tupac Shakur, encontram-se no mesmo CD faixas que vão denegrir e celebrar as mulheres; que promovem o materialismo de forma grosseira e transmitem mensagens anticapitalistas; que celebram a comunidade e a disposição de tomar armas para proteger e
aumentar o território. O erro frequentemente cometido por muitos críticos sociais é o
de tentar decifrar uma política progressista consistente, sendo, porém, óbvia e invariavelmente frustrados. Em outro plano, este discurso aberto é crucial porque permite que
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a contraditória e complicada política de identidade, comunidade, pertencimento e aspirações venha à tona com toda sua crueza não resolvida – sem nenhuma intenção de impedir a confrontação e o engajamento –, frequentemente na forma de posturas agressivas. Para compreender completamente a produtividade dinâmica do hip hop, deve-se
estar aberto para a importância do discurso aberto no hip hop, que está intimamente ligado à dimensão do fazer artístico no hip hop.
Em terceiro lugar, os discursos do hip hop são densos e contêm múltiplas camadas.
A destreza com as letras, através de jogos de palavras e o emprego do inesperado, é altamente apreciada tanto nas letras como nas batidas do hip hop (Berman, 1996; Huq,
2006; Neate, 2003). Isto também se liga a um desenvolvimento da tradição do diálogo
praticado nas letras da música negra americana, no sentido de que a interação com outros MCs é um aspecto central do conteúdo e da rima do hip hop. Assim, fora as letras
auto-referenciais, os MCs procuram sempre estender e retrabalhar diálogos com outros
MCs, que podem ser tanto amigos/“manos” (“homeys”, ou seja “os de casa”) ou inimigos. Estas trocas normalmente exigem um conhecimento detalhado das políticas e das
“beefs” (rixas) do hip hop, porque as referências são tipicamente sutis e escondidas nas
rimas engenhosas.3
Outra dimensão da complexidade ou talento discursivo é o uso do “contraste dramático” (Perry, 2004). Um dos exemplos mais memoráveis seria o uso por Puff Daddy da
música do The Police, “Every Breath She Takes”, para enfatizar seu tributo a Biggie Smalls
– uma música que se tornou a mais tocada em muitos países do mundo. Não se poderia
imaginar maior contraste do que aquele entre a banda de rock inglesa dos anos 1970, The
Police, e o estilo de vida e a economia de imagens de Biggie Smalls. No caso do grupo de
rap da África do Sul, BVK, ele também brinca com o tema musical da novela popular africâner chamada Sevende Laan (Sétima Avenida), que descreve um mundo africânder multiracial e perfeito, que está tão afastado da vida cotidiana das townships como se poderia
imaginar. Mas, por meio desta produção espirituosa, eles também conseguiram explorar
mercados diferentes e transmitir sua crítica social sobre a imaginação “ficcionalizada” das
novelas televisivas, que apresentam negros bem comportados assimilados pela cultura
branca africâner.
Um dos meus exemplos favoritos da natureza do discurso de múltiplas camadas do
hip hop é uma faixa do Common, “A Film Called (Pimp)”, de seu brilhante CD, Like Water for Chocolate. Nesta faixa, ele se envolve em um diálogo entre um cafetão politicamente consciente (bom exemplo do inesperado!) e uma de suas mulheres trabalhadoras
potenciais. O que se segue na faixa é um efervescente e engenhoso diálogo (ou “chamada-e-resposta”) entre o cafetão, que diz que ele apenas “cafeteia com a verdade” e que quer
oferecer um serviço, expondo suas prostitutas “a determinado papel, à liberdade e à cultura, como um cafetão moralmente correto deve fazer”; e então promete levar a prostituta para “a terra prometida de um cafetão, onde nenhum homem pode te quebrar”. Em
resposta, a prostituta a quem ele fez a proposta diz: “Negão, você não me conhece, quem
é o garanhão sou eu, eu vou te “cafetear”, vou te fazer escrever poesia pra mim, eu sou de
uma terra chamada dinheiro, você é muito devagar pra mim... Você acha que vou arriscar o meu e depois te dar o dinheiro? Aquela merda já era. Eu tenho minha própria cavalariça, vou furar teu umbigo e te colocar numa pista. Na verdade, ando procurando
uma puta que seja abstrata”. Mais para o final da faixa, quando é óbvio que ela já o venceu como principal protagonista da faixa, ele se conforma, dizendo: “Vá se ferrar, que eu
vou virar pregador...”. Este diálogo contém ironia, inversões surpreendentes de papéis,
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3 Um excelente exemplo de
hip hop engenhoso e inventivo é o CD duplo do OutKast,
vencedor do prêmio Grammy
em 2004. Esta foi uma produção seriamente funky e
iconoclasta, que reuniu subgêneros e registros textuais
(e visuais) em combinações
jamais vistas anteriormente
no hip hop, e que acabou por
ganhar não apenas aceitação do hip hop nas ruas,
mas também por atrair públicos de fora do hip hop.
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4 Imani Perry desenvolve este ponto de forma mais aprofundada, que vai além do
meu atual objeto: “A construção histórica da negritude, em oposição à ‘brancura’, na qual a negritude é
demonizada, se tornou parte
da consciência desta forma
de arte. Enquanto as gerações anteriores de negros
americanos utilizaram vários
meios para estabelecerem
uma autodefinição que negasse a construção da negritude como sendo demoníaca
ou depravada, muitos membros da geração do hip hop
escolheram, em vez disso,
se apropriar e explorar estas
construções como ferramentas metafóricas para a expressão do poder. Devido ao
fato de que este gesto é extremamente agressivo (pois
ele reivindica o poder através principalmente da voz
dos homens negros, o que,
dada a estrutura racial dicotomizada dos Estados Unidos, retira o poder dos Estados Unidos branco, mesmo
que isso se opere apenas
através do medo dos brancos), a comunidade negra
geralmente não percebe estes atos como sendo de traidores com ódio de si próprios, da forma que poderia
perceber os atos de negros
que adotassem outras posturas estereotipadas. Pelo contrário, estes jovens podem
ser vistos até como suportes
de um tipo particular de empoderamento negro. Obviamente, esse tipo de empoderamento se relaciona a um
nível mais abrangente de impotência” (Perry, 2004:47-8).
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identidades incongruentes, apelações nostálgicas a épocas passadas de estilo e classe, resgate da figura do bandido na cultura negra popular, a autocrítica, a idéia de que há uma
linha divisória muito tênue entre o cafetão e o pregador. E a riqueza textual exclui comentários sobre as batidas hipnóticas e funky que literalmente impelem a música para frente.
Este é um artista que é conhecido por ser abertamente politizado e consciente, mas que
também está procurando expandir seus registros e suas habilidades como escritor de uma
forma que claramente revigora e amplia o gênero. Em outras palavras, a faixa, enquanto
arte é brilhante, ainda que sua política seja obscura e, possivelmente, até questionável. Essa ambiguidade é precisamente o subtexto da peça, impossibilitando ao ouvinte chegar a
uma zona de conforto politicamente correta. Também enfatiza que, no hip hop, diversos
níveis de discurso coexistem: “Conhecer a gíria pode ser um nível; conhecer profundamente a música hip hop, em geral, pode ser outro; conhecer a cidade natal do cantor ou
seu bairro, mais um outro, e conhecer os artistas como membros de sua própria comunidade seria ainda outro… O nomear às vezes funciona como um elemento-chave na sinalização do subtexto” (Perry, 2004:31).
Por último, e possivelmente a questão mais perturbadora, é que uma das principais
funções políticas do hip hop no contexto americano seja o “Shine-ism”, que denota “exemplos incontidos de masculinidade e excesso negros que assustam a sociedade e a cultura
convencionais, explorando seus temores e simultaneamente desafiando a privação econômica que oprime as comunidades americanas” (Perry, 2004:29). Segundo Perry, isto remonta ao papel do malandro (“trickster”) que “subverte seu próprio poder relativo através
da trapaça e da destreza verbal”. A autora também identifica os chamados “negões maus”,
cujo papel, desde a escravidão, “caracteriza a pessoa negra que se recusa a se submeter às
regras da sociedade, que é destemido e rebelde e que ri das regras de adequação e regulação social” (Perry, 2004:29). Nesta leitura, a primeira imagem que surge é a de MV Bill e
seu discurso eloquente (citado acima) sobre o medo da classe média brasileira em relação
à mensagem e à força potencial do hip hop de falar a verdade para o poder.
Entretanto, há outra dimensão nisso tudo. O gangsta rap e o rap R&B tendem a ir a
outro extremo: ambos os gêneros alimentam estereótipos sobre negros, especialmente homens negros, e exageram e celebram os mesmos estereótipos. Deste modo, o gangsta rap
celebra o “bandido fora da lei” que vive a vida extravagante ao máximo – carros atraentes, armas, mulheres na espera, bebidas à vontade e festas na piscina, além de qualquer
outra coisa que a imaginação possa invocar. Isto envolve uma apropriação e resignificação
das marcas mais exclusivas, a fim de indicar para o sistema que os negros americanos entrarão nos clubes de golfe, nos bares exclusivos e nos restaurantes de primeira classe, mas
sem deixar a rua. Em outras palavras, os ideais do establishment branco ficam completamente deturpados e remoldados como significantes da cultura hip hop e não da sociedade branca. Um repertório simbólico igualmente indulgente e excessivo estabelece-se para
o sexo e as relações sexuais: a vida extravagante é tipicamente acompanhada por mulheres excessivamente sexualizadas que estão determinadas a ficar inteiramente à disposição
do MC em questão. Obviamente, em um determinado plano trata-se de simples fantasia,
mas em outro significa que, apesar da exclusão econômica e social em larga escala por parte dos Estados Unidos convencional, os Estados Unidos negro está corroendo os símbolos culturais de superioridade e dominância através de sua apropriação deliberadamente
crassa. Esta leitura não pretende justificar ou minimizar o caráter politicamente problemático do gangsta rap e do seu gêmeo contemporâneo, o R&B, mas chamar a atenção
para os inevitáveis efeitos culturais do hip hop mainstream nos Estados Unidos.4 Christa
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Kuljian, uma colega de trabalho, sugere: “É uma resposta a uma sociedade que valoriza o
excesso e o ganho material como a expressão mais elevada do sucesso”.
Estas quatro dimensões do hip hop – especificidade, discurso aberto, discurso em camadas múltiplas e “Shine-ismo” – o tornam uma forma complexa e dinâmica de cultura
popular que oferece um rico reservatório de materiais para a construção de identidades.
O hip hop oferece não somente compreensões e perspectivas sobre o funcionamento do
mundo, mas também como se posicionar – política, estilística, ideológica, social e psicologicamente – nesse mundo. Os estudos de caso do Rio de Janeiro e da Cidade do Cabo
enfatizam como o hip hop politicamente consciente oferece uma ideologia coerente para
se resistir às fragmentadas realidades de espaços e estilos de vida cotidianos dominados pelas gangues da droga, em busca de alternativas mais sólidas.
Entretanto, a práxis do AfroReggae sugere que isso não é simples. Além de uma
narrativa mais abrangente e politizada a respeito da exclusão e marginalização estruturais ligadas à cumplicidade oficial com os lucros do tráfico de drogas, especialmente nos
circuitos mais altos da cadeia de valor, o líder do AfroReggae, José Junior, sabe que ele
deve espelhar a disciplina e a hierarquia da cultura de gangues. A questão é que ele sabe
que seu movimento deve oferecer um lar e um sentido de pertencimento alternativos,
porque é isso que as gangues oferecem em primeira instância, além do acesso aos recursos financeiros, que não estão disponíveis por meio da participação no mercado de trabalho formal. Em outras palavras, a solução não é simplesmente uma questão de restaurar o sentido de identidade, orgulho e dignidade destes jovens para que então, de alguma
forma, eles milagrosamente consigam permanecer na linha estreita do estilo de vida alternativo que o movimento oferece. Novamente, MV Bill captura claramente esta dinâmica quando argumenta:
Eles não tem a oportunidade de se tornarem outra coisa; cada um deles é seu próprio juiz e
pode dizer o que é certo ou errado, mas a criminalidade atualmente no Brasil se tornou apenas
mais uma opção; parte meu coração dizer isto, mas a criminalidade de hoje se tornou, tragicamente, uma bela opção para aqueles que nascem sem perspectivas. Não vou ser hipócrita e dizer
o contrário porque isto é o que eu vi, esta é a verdade e mesmo eu tenho dificuldades em dizer para alguém “Saia do tráfico de drogas”, porque eu não tenho nada melhor para oferecer. E não é
suficiente oferecer assistência, caridade, coisas pequenas, porque a televisão mostra as coisas boas
da vida e isso é o que todos estão querendo.5
Simultaneamente, MV Bill fala também sobre sua organização de hip hop, a CUFA
(Central Única das Favelas), que busca oferecer alternativas para os jovens. O fato com o
qual ele tem que se conformar, nesse contexto, é que, tendo em vista os fatores estruturais mais amplos que reproduzem as economias criminosas, ele não é tão ingênuo para acreditar que sua intervenção fragmentária seja por si só uma solução. Esta pode ser a razão
pela qual ele recentemente colaborou com o proeminente antropólogo/criminologista
brasileiro, Luis Eduardo Soares, na produção de um livro – Cabeça de Porco – e um documentário sobre a violência urbana em nove cidades brasileiras. Este livro traz à tona a
escala e a convergência da violência urbana no Brasil e em particular o fato de que aqueles que perpetram a violência nas favelas são cada vez mais jovens e mais numerosos. O
livro tem a intenção de alertar o establishment brasileiro e também, sem dúvida, de ser
uma forma de mobilização de recursos externos para apoiar iniciativas como a CUFA e o
AfroReggae. Mais importante, esta iniciativa sublinha o fato de que são necessárias interR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8
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5 Entrevista publicada na revista Leros, de junho de
2005. Disponível em: www.
leros.co.uk (acessado em
outubro de 2006).
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venções estruturais para lidar com a violência urbana, intervenções que possam operar em
conjunto com programas de base popular inspirados no hip hop, como aqueles de MV Bill,
e iniciativas educacionais em prisões juvenis (ver Pardue, 2004). Soares fala muito claramente sobre os tipos de reformas/transformações que são necessárias, em sua resposta à
pergunta: Você acha que ter acesso a informação, educação superior e projetos que aumentam
a auto-estima poderia ser uma saída para a violência?
6 Entrevista com Luis Eduardo Soares. Disponível em:
www.dreamscanbe.org/con
trolPanel/materia/view/433
(acessado em outubro de
2006).
Sem dúvida. Estou convencido disso. Em nosso livro, não esquecemos a importância do
poder econômico, mas enfatizamos a importância da inter-subjetividade, do simbolismo, da
afeição, da psicologia e da cultura. Não que sejam aspectos mais importantes, mas porque a
sociedade não tem dado a eles a atenção adequada. Temos que oferecer à juventude no mínimo o que o tráfico de drogas oferece: recursos materiais, é claro, mas também reconhecimento,
um sentimento de pertencimento e de valor. Enfim, há uma fome mais profunda que a fome
física: a fome de afeição e de reconhecimento, que aumentam a auto-estima [...] Acho que a repressão deveria ser o último recurso. Antes dela, há muito o que ser feito no sentido da prevenção, como a reinserção, a educação e o estímulo à auto-estima. Se queremos que alguém mude,
temos que fornecer as bases. Ninguém muda se pensa que não vale nada. Queremos exterminar a juventude pobre ou integrá-la? Perdoar e dar uma segunda chance também significa nos
perdoar e nos dar uma segunda chance, como sociedade. Não seria ótimo termos uma chance
de escapar da culpa terrível de ter abandonado milhares de crianças ao destino de pegar uma
arma? 6
Soares levanta duas questões. A primeira, que é vital não perder de vista a humanidade da juventude negra que cresce em meio ao terror e a um abandono social efetivo.
Não existe a possibilidade de recuperar esta classe de (não) cidadãos para integrar uma política urbana inclusiva se não se reconhecer a necessidade fundamental de eles se afirmarem como pessoas. Claramente, em meus dois exemplos, a posição de rejeição social entrelaçada com a redundância econômica está fortemente correlacionada com a raça. Deste
modo, grande parte da recuperação da ação para que uma política abrangente seja possível requer um confronto com o racismo institucional. A segunda, que a escala das reformas preventivas identificadas por Soares envolve o Estado. Os jovens pobres continuarão
a enfrentar futuros truncados enquanto as instituições estatais de justiça penal não forem
transformadas para adotar a filosofia que trata a repressão como último recurso. Evidentemente, os projetos de hip hop nas favelas e townships não são capazes de, sozinhos, darem conta dessa tarefa ambiciosa. O que eles oferecem de fato é um ponto de partida vital para que os jovens possam agir em lutas culturais e políticas mais abrangentes e em
diversas instâncias para conseguir tanto o reconhecimento quanto as reformas voltadas
para prevenção.
Entretanto, para a juventude negra e pobre ter uma voz significativa, isto deve acontecer em seus próprios termos, e é justamente isso que os registros do hip hop potencialmente oferecem. Em primeira instância, isto significa uma política e uma estética de ira
e de crítica militante perante a atitude mal disfarçada de dois pesos e duas medidas da sociedade convencional (mainstream society). Aqui eu tenho em mente letras e análises potentes de lideranças do hip hop como MV Bill, Racionais MC, Black Noise, BVK, Jitsvinger, Proverb, entre muitos outros. No caso brasileiro, o impacto dos grupos de hip hop
como Racionais MC, que vendem acima de um milhão de unidades, é certamente profundo. Em segundo lugar, nos complexos registros estéticos que a cultura hip hop instiga, os
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jovens devem ser encorajados a buscar suas identidades, aspirações, contextos sem muita
censura. A expressão artística criativa pode potencialmente criar uma nova linguagem política e um novo registro simbólico que seja significativo para os jovens e impenetrável e
alienante para as elites e classes médias. Esta é a questão de fato. Para o engajamento político ocorrer, deve-se forçar os poderosos e privilegiados a reconhecer suas diferentes culturas e suposições, que normalmente se tornam invisíveis por serem a norma social – se
eles estão interessados em se engajar ou “fazer a diferença” como parte de uma política
cosmopolita mais abrangente. Isto é uma pré-condição para “uma ética de mutualidade
em um contexto urbano”, como invocado por Ash Amin. Por último, os registros do hip
hop oferecem à juventude pobre uma plataforma para criarem diversos tipos de redes regionais, nacionais e internacionais de engajamento e apoio mútuo, a fim de promover
uma agenda de escalas múltiplas que permita unir múltiplas especificidades locais. Pesquisas feitas sobre a práxis da Slum Dwellers International sugerem que as políticas locais
de reconhecimento tendem a funcionar de forma muito mais eficaz se reforçadas por
redes globais de solidariedade e intercâmbio (Appadurai, 2004).
CODA: IMPLICAÇÕES CONCEITUAIS PARA A
INCLUSÃO/EXCLUSÃO URBANA
James Holston argumenta que a multiplicação de reivindicações pela cidade que segue a intensificação da urbanização esgota as noções tradicionais de cidadania. Ele argumenta a favor de uma avaliação da “cidadania insurgente” que, segundo ele, surge de “batalhas em torno do significado de ser membro do Estado moderno” (Holston, 1998:47).
Além disso, a cidadania “muda, expandindo seu domínio à medida que novos membros
surgem para apresentar suas reivindicações, e erodindo-o à medida que novas formas de
segregação e de violência criam obstáculos a esses avanços. Os locais de cidadania insurgente são encontrados na interseção destes processos de expansão e erosão” (Ibid., p.48).
Evidentemente, grande parte da prática cultural do hip hop consiste em dar voz e reconhecimento à posição marginalizada das comunidades pobres e de seus residentes e, ao
mesmo tempo, em propor uma concepção alternativa de vida cotidiana, justiça urbana e
inclusão, uma concepção dirigida aos fatores econômicos e institucionais sistêmicos que
reproduzem essa situação, conforme refletido na análise de MV Bill e outros MCs citados
anteriormente. Neste sentido, pode-se argumentar que a essência das práticas de hip hop,
em termos de seus registros simbólicos, suas intervenções localizadas no espaço e suas reformulações (de praças públicas, estações de trens, estacionamentos, etc.), consiste em
aprofundar a cidadania insurgente e oferecer um caminho diferente de participação na esfera pública da cidade.
Entretanto, enquanto as práticas do hip hop continuarem desconectadas de outros
espaços e domínios da prática política urbana, seu potencial transformador continuará
enfraquecido. Mostrei em outros escritos que a forma mais eficaz de se conceituar e abordar a política urbana é por meio da interseção de cinco domínios institucionais e interdependentes da prática: (1) fóruns políticos representativos; (2) mecanismos políticos “neocorporatistas” que se compõem de organizações representativas, principalmente o
governo, o setor privado, os sindicatos e, às vezes, organizações de base comunitária; (3)
ação direta ou mobilização contra políticas estatais ou em prol de demandas políticas específicas; (4) a política da prática do desenvolvimento, especialmente no nível das bases
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populares; e (5) contestação política simbólica, que se expressa através da contestação discursiva na esfera pública (Pieterse, 2005; 2006).
As culturas hip hop tanto no Brasil como na África do Sul estão fortemente relacionadas às intervenções ativistas de base – no domínio da prática do desenvolvimento –
para fornecer refúgios de segurança e aprendizado para crianças e jovens pobres, espaços
onde se fomentam uma socialização alternativa e um sentimento de lugar devido ao
quinto elemento do hip hop: o conhecimento de si próprio. Entretanto, procurar ligações explícitas com as iniciativas adotadas pelo Estado é potencialmente perigoso para o
hip hop enquanto discurso verdadeiramente aberto, como ilustra o estudo de caso realizado por Derek Pardue sobre o hip hop como ferramenta pedagógica em uma prisão juvenil em São Paulo. Comparando o hip hop “livre” com o programa educacional patrocinado pelo Estado, Pardue (2004: 429) encontrou “diferenças significativas no processo
de representação e performance, especialmente nos casos das letras de rap e do grafite”.
Ele notou particularmente que os instrutores moderavam os discursos sobre raça, racismo e brutalidade policial, a favor de uma sensibilidade muito mais comunitária, em que
as noções abstratas de construção da comunidade eram valorizadas. Tal estratégia pode
obviamente tirar do hip hop sua força, tal qual descrita na seção anterior a respeito dos
registros do hip hop na tentativa de se tornar uma prática política de ira e confrontação,
a fim de perturbar as estruturas normativas da sociedade e da cultura convencionais. Não
obstante, Pardue (2004) também reconhece que, apesar do risco de domesticação do hip
hop, existe grande mérito em se ter um Estado que se dispõe a patrocinar programas de
serviço público que mantêm as lideranças do hip hop com emprego remunerado e com
uma plataforma para estender suas sensibilidades artísticas e estéticas. E não há, obviamente, como prever o tipo de loucura e ira que poderia surgir dos impulsos criativos e
transgressivos dos jovens apresentados às habilidades e idéias do hip hop “com uma mensagem” ou agenda.
Em último lugar, as práticas culturais do hip hop sublinham a importância de se
prestar mais atenção aos registros afetivos, ao projetar uma política urbana agonística e inclusiva como aquela reivindicada por acadêmicos como Amin (2006), Connolly (2002),
Massumi (2202) e Thrift (2004) (cf. Hemmings 2005). O afeto é muito mais importante no pensamento e no julgamento do que foi reconhecido anteriormente. O que isto implica é que “os modos de consciência afetivo e cognitivo” estão ambos sempre em ação
quando atuamos. Mais especificamente, “a tomada de decisões voltada para a ação é sempre marcada por orientações afetivas preliminares de percepção e julgamento, que servem
para reduzir o peso do material considerado em análises custo-benefício, julgamentos de
princípios e experimentos reflexivos” (Krause, 2006). Em outras palavras, como nos sentimos e as diferentes formas de predisposições internas são elementos vitais de nosso ser
enquanto agente (político) urbano, com grande influência sobre os tipos de possibilidades coletivas que irão ou não ter repercussão. Dadas as alternativas, antes impensadas, de
ação e emoções inconcebíveis que o hip hop pode engendrar entre a juventude urbana, ele
certamente se qualifica como uma fonte potencial de esperança, no sentido proposto por
Ash Amin no seu comentário em fórum de discussão na Internet: “A esperança pode funcionar como um afeto urbano, uma ética de mutualidade em um contexto urbano cheio
de diferenças e diversidade. A partir desta visão, muitos elementos podem ser reunidos,
incluindo uma política de restituição, justiça redistributiva, aspiração e fé”. Entretanto,
isso parece exigir que instituições como a CUFA, Black Noise e AfroReggae se tornem mais
fortes e se multipliquem.
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Em resumo, ainda que eu tenha conseguido apenas tocar na superfície da política e
da estética culturais do hip hop, está claro que ele oferece pistas vitais sobre o processo de
desenvolvimento de novas linguagens para a compreensão da inclusão e exclusão, especialmente em cidades contemporâneas do sul global. Neste sentido, o hip hop certamente não é perfeito, sendo particularmente falho no que diz respeito ao empoderamento da
mulher e à política cultural feminista, mas também é suficientemente fértil para ao menos lidar com este vetor de exclusão particularmente difícil. Os registros e práticas culturais cotidianos desse grupo cada vez mais numeroso de jovens nessas cidades são claramente atores cruciais na luta mais abrangente por cidades inclusivas; então, como
urbanistas, vamos nos sintonizar aos ritmos.
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Edgar Pieterse é diretor
do Centro Africano para Cidades da University of Cape
Town e pesquisador associado no Instituto Isandla.
E-mail: edgar.pieterse@uct.
ac.za
Artigo recebido em outubro
de 2008 e aprovado para
publicação em janeiro de
2009.
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A
B S T R A C T It is assumed in the paper that the contemporary urban condition is
marked by an increased pluralistic intensity in cities. Coupled to this shift in the nature of the
urban context, one can also observe a proliferation of sites of political engagement and agency,
some of which are formally tied to the various institutional forums of the state, and many that
are defined by their insistence to stand apart from the state, asserting autonomy and
clamouring for a self-defined terms of recognition and agency. This paper draws attention to
the significance of one category of urban actors – hip-hoppers – that can be said to occupy a
“marginal” location in relation to the state but uniquely relevant to the marginalised existence
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of most poor black youth in cities of the global South, particularly Rio de Janeiro and Cape
Town. The paper demonstrates that hip hop cultures offer a powerful framework of
interpretation and response for poor youth who are systemically caught at the receiving end of
extremely violent and exploitative urban forces. The basis of hip hop’s power is its complex
aesthetical sensibility that fuses affective registers such as rage, passion, lust, critique, pleasure,
desire, which in turn translates into political identities, and sometimes agency (i.e.
positionality), for its participants. In the final instance, the paper tries to link conclusions
about the potential of hip hop cultural politics to larger academic themes such as participation,
public space, citizenship and security.
K E Y W O R D S Hip hop; cultural politics; urban violence; urban exclusion/
inclusion; affective registers.
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R ESENHAS
PELO ESPAÇO: UMA NOVA
POLÍTICA DE ESPACIALIDADE
Doreen Massey
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008
Gislene Santos
Professora Adjunta do Departamento
de Geografia da UFPR
O crescente interesse que diferentes áreas do conhecimento e da arte têm apresentado em relação ao
conceito de espaço, poderia, à primeira vista, trazer aos
geógrafos um certo sentimento de conquista e conforto epistemológico: enfim, depois de longos anos subordinados a uma representação de mundo comandado pela dimensão do tempo, o espaço passa a ser
valorado. A lista desta evocação atual ao espaço é extensa: no cinema, a imagem focada na problemática
dos conflitos ao longo das fronteiras internacionais; na
literatura contemporânea, migrantes-estrangeiros
desenraizados em alguma grande cidade e cenas de
violência urbana comumente apresentam-se como personagens e cenários. Na Antropologia, Filosofia e Sociologia, o uso das topologias espaciais também se
apresenta recorrente. Noções como território, desterritorialização, fluxos, redes, nações, fronteiras, local,
lugar, transnacional, para citar as mais frequentes, de
certa maneira transmitem, em primeiro plano, uma
clara perspectiva espacial. Entretanto, ao lermos Pelo
espaço, livro recentemente traduzido e publicado no
Brasil, escrito pela geógrafa Doreen Massey, a aparente
sensação de conforto epistêmico desequilibra-se; em
vez da revigoração conceitual do espaço, nos diz a autora: “muitos dos discursos correntes acerca da globalização fogem do pleno desafio do espaço” (p.148).
A estrutura do livro compõe-se de cinco partes:
ao longo das 312 páginas distribuídas em 15 capítulos,
a autora propõe construir pressupostos e argumentos
heurísticos com o objetivo de restituir ao espaço características e princípios que respondam às questões contemporâneas, mas sem cair na apologia discursiva de
que tudo hoje é espacial, e muito menos na inevitabilidade da globalização neoliberal, sedenta por novos lugares. Parte do pressuposto de que o espaço é produto
de relações sociais – relações essas que se formam coetaneamente e cujo emalhamento é tecido por uma mi-
ríade de distintos tempos e lugares. O espaço aqui, já
para adiantar, é um encontro de múltiplas trajetórias,
cujo arranjo não se conforma à representação de uma
superfície plana e pontual. Espaço não é mapa, adverte a autora.
Página a página o leitor debruça-se sobre um
denso e laborioso raciocínio acerca das características
e princípios constitutivos do espaço. Em todo o texto, a autora conversa com diferentes pensadores:
Bergson, Espinoza, Levi-Strauss, Althusser, Derrida,
Deleuze, De Certeau, Chantal Mouffe, Laclau. No
entanto, o diálogo mais fino que atravessa e estimula
o seu pensamento se mediatiza com o filósofo Henri
Bergson, por sua investidura (no início do século XX)
sobre o tempo associado ao espaço. Mas se Bergson,
seguindo as pistas de Massey, investe para um tempo
múltiplo e conflui para a idéia de duração como experimento de vida, composto por um presente perfilado de temporalidades distintas, sua concepção de
espaço é refém do tempo; o espaço abriga o tempo.
Massey aproxima-se de Bergson por sua abertura em
relação ao tempo, porém, traz um elemento novo: o
espaço não é um desdobramento do tempo, ao contrário, espaço e tempo existem em conjunção. Tempo
e espaço são co-constitutivos. Assim, a autora, na primeira parte do livro, teoriza sobre as categorias tempo e espaço e propõe um tensionamento epistêmico
entre espaço-tempo ou tempo-espaço. Não há aqui, é
importante que se registre, uma prioridade hierárquica do tempo em relação ao espaço, ou vice-versa. Estas dimensões se constituem conjuntamente. O mundo é temporal e espacial. O tempo-espaço que a
autora laboriosamente edifica constitui-se de múltiplas trajetórias que se encontram no aqui agora. Se o
tempo como processo está aberto ao imprevisto, assim também pode ser pensada a conjunção tempo-espaço: “Se o tempo é a dimensão da mudança, então o
espaço é a dimensão do social: da coexistência contemporânea dos outros. E isso é ao mesmo tempo um
prazer e um desafio” (p. 15).
Mas, nesta direção, qual a sua definição de espaço? Quando e como o espaço começa a tomar forma e
a se delimitar? A primeira atenção, seguindo Massey, é
evitar cairmos aqui na distinção dada pela Geografia
Humanística entre espaço e lugar. Esta polaridade entre o espaço (hostil, externo e abstrato) e o lugar (refúgio/pertencimento, sentido, vivido e cotidiano) pouco
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nos ajuda a elaborar um raciocínio espacial. A autora
não está pré-ocupada em distinguir essas duas noções.
Espaço e lugar/local se equivalem. Em rápidas palavras, esse legado em relação ao lugar (refúgio sedimentado de formas e heranças que diretamente nos pertencem) deve ser renunciado, pois, podemos dizer, esse
lugar nunca existiu.
No capítulo 1, a autora apresenta duas proposições iniciais para se pensar o espaço: 1) O espaço
como produto de inter-relações – do global ao intimamente pequeno. Não se trata, nesta primeira proposição, de uma poética do espaço ao estilo Bachelard. Ao
contrário, o que ela propõe é uma ação reflexiva sobre
uma “política relacional do lugar” – e o lugar aqui, importante reiterar, é formado pelo encontro de múltiplas trajetórias. Este encontro, diga-se de passagem,
não é portador de um sentido angélico e adâmico do
lugar. A autora mergulha em águas mais profundas e
turvas: o local não é a exposição de uma única herança de histórias sedimentadas numa circunscrição fechada. Para Massey, o sentido do local guarda sua relação
com outras escalas. Isso não impede que se compreendam as singularidades locais, mas o lugar é a manifestação do encontro de muitas outras heranças e de acontecimentos em curso, e não de uma única história.
Assim, evitamos cair no sentido de lugar como
escala cartográfica e administrativa, e tampouco direcionamos um apelo à particularidade fechada de uma
localidade. Antes de mais nada, locais são processos.
2) O espaço como a esfera de possibilidade, de existência da multiplicidade, da coexistência conflituosa
de muitas outras vozes e trajetórias. Um espaço onde
a pluralidade humana e a heterogeneidade estejam
presentes. Assim, ao propor a pluralidade como pressuposto para a formação e entendimento do espaço,
Massey refina sua imaginação e já nos adverte que o
sentido de sua reflexão se pauta por um exercício político, pois onde se concebe a pluralidade e a heterogeneidade estão presentes os conflitos, as diferenças de
uso e distribuição do poder, os consensos, as rupturas
e as forças que percorrem e usam desigualmente os recursos dos espaços. A força do argumento é dada pela
possibilidade de um devir do espaço, posto que aberto, plural, múltiplo e em conflito. Ao pensarmos que
espaço e multiplicidade de trajetórias são co-constitutivos, abrimos uma nova paisagem política, composta
por diferentes narrativas.
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Conceber assim o lugar como escala heurística
privilegiada demanda renunciar a uma perspectiva unívoca de identidade, portadora de paroquialismos e localismos exclusivistas. Massey enfatiza a tarefa crítica
da Geografia: desfazer-se de uma concepção de espaço
como abstrato e do seu contraponto lugar como vivido para, em vez dessa dupla oposta, advir um sentido
de uma política do espaço, dado pelo princípio da “política da interconectividade”, de um lugar em relação a
outro. Não encontramos, assim, em Massey, uma teoria fechada, pronta para ser aplicada em estudos de casos empíricos. Não se trata de uma transposição didática e muito menos de procedimentos metodológicos
para futuros estudos sobre o lugar. O que o leitor encontrará é uma profunda reflexão e inspiração para um
exercício atento às multiplicidades que um lugar abriga. E, com rigor, a autora analisa várias problemáticas
atuais, como: a política habitacional em Londres; a demarcação de terras dos índios Deni, no oeste da Amazônia; as políticas localistas em relação ao migrante-estrangeiro; a dominância das indústrias financeiras
globais em Londres; o local como produtor do global;
a organização do espaço do trabalho e do espaço doméstico pelos altos funcionários dos tecnopolos; a
apropriação do espaço público urbano; a conexão local
entre os humanos e não-humanos (natureza); e uma
crítica à adesão das ciências humanas às teorias no
campo da física, especificamente em relação à teoria da
complexidade.
O texto é acompanhado de imagens fotográficas,
charges e mapas. O uso destas imagens não deve ser
programado como suporte didático para a compreensão do texto escrito e tampouco como enfeite e/ou
ilustração. Mas merecem ser lidas como linguagem
que, junto ao texto escrito, gera um segundo texto, no
qual os objetos e os significados se atritam, abrindo a
visão para a imaginação de um espaço múltiplo de narrações. Massey nos propõe, assim, outro exercício: junto a Espinoza, faz apelo ao experimento da imaginação
do outro, um outro que não se situa necessariamente
em alguma localidade distante (quanto mais distante
maior a diferença cultural, como nos clássicos estudos
das ciências humanas). Não é sobre distâncias métricas
que trata sua reflexão espacial. O diferente e o estranho
não habitam somente o distante; a margem também
está no centro. Esse lugar, como experimento heurístico, ainda está para ser construído.
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Das páginas deste livro emerge um feixe de experimento de idéias, dado pela elegância na escrita, o cuidado com a textura e o significado das palavras. Qualidades estas transmitidas pela “boa tradução” do livro,
que nos oferece a difícil tarefa de conciliar e manter as
diferenças entre línguas diferentes e criar sobre o intraduzível. Ao terminar a leitura, temos um sentido restituído: o de que o mundo ainda apresenta novidade.
Massey traz um pouco de “ar puro” para a Geografia.
“Lugares, em vez de serem localizações de coerência,
tornam-se os focos do encontro e do não-encontro do
previamente não-relacionado e, assim, essenciais para a
geração do novo” (p. 111). A amplitude de seus questionamentos nos permite multiplicar os olhos, gesto
esse especialmente urgente para pensar as questões
contemporâneas. Há em suas reflexões uma serenidade
epistemológica para questões tão complicadas e densas,
como o acesso e controle desigual do poder. Posição essa que somente a maturidade de uma rica trajetória intelectual pode oferecer.
Em síntese, para que a teoria de Massey seja compreendida, é fundamental termos em mente que sua
crítica é direcionada a todas as abordagens positivistas
e essencialistas que cultivam uma idéia de lugar circunscrito e fadado a uma única identidade. Pensar desta maneira o lugar é empobrecer o cotidiano, as experiências contemporâneas, o mundo e o devir. Com
todas as implicações políticas, como legado de uma representação de mundo colonialista, não é mais possível
pensarmos o espaço como superfície plana. Ancorar-se
nesta interpretação é silenciar as muitas outras vozes e
muitos outros atores que formam o espaço. Nesta direção, as Ciências Humanas e os atores do planejamento, nas mais diversas escalas de ação, podem e devem
assumir o compromisso de elaborar uma reflexão e
ação política para construção de um espaço heterogêneo, múltiplo e plural, pois essa é a única condição humana da qual somos herdeiros.
SÃO PAULO, CIDADE
GLOBAL: FUNDAMENTOS
FINANCEIROS DE UMA
MIRAGEM
Mariana Fix
São Paulo: Boitempo, 2007
Daniela Abritta Cota
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação
em Geografia da UFMG
A transição do regime de acumulação fordista para o regime de acumulação flexível levou, em muitos casos, à adoção pelos países centrais de formas mais flexíveis de organização espacial, seja do ponto de vista das
normas de ordenamento territorial, seja nas formas de
relacionamento entre o poder público e o setor privado.
Por outro lado, o processo de globalização e de flexibilização da produção, bem como a quebra das barreiras
espaciais (Harvey, 1995) como conseqüência da contínua revolução nos meios de transporte e de comunicação, reforçaram a política do local e a importância dos
lugares, que passaram a competir pela atração de investimentos e fluxos de consumo. Nesse contexto, produtividade, competitividade e subordinação dos fins à lógica do mercado são elementos que dominam a “nova”
forma de se pensar o urbano, constituindo o que Harvey chamou de empresariamento da gestão urbana
(Harvey, 1996). Tais elementos passam, assim, a ser incluídos na discussão de políticas urbanas locais mais
recentes, sendo adotados especialmente por aquelas
cidades com “vocação global”. Nesse contexto de transformação da “cidade-empresa”, instrumentos de planejamento mais flexíveis – contrapondo-se aos tradicionais, tanto do ponto de vista da regulação do uso e da
ocupação do solo urbano quanto da governança urbana
– são colocados em pauta tanto nos países centrais
quanto nos periféricos, a exemplo da parceria públicoprivada, que se apresenta como possível mecanismo de
captação de recursos e de gestão pública eficaz, considerando o seu papel na promoção da inserção competitiva de cidades nos fluxos econômicos globais.
Mariana Fix, em sua última obra (Fix, 2007), dá
abertura para diferentes reflexões, nos instigando, inclusive, a refletir sobre este tema – a parceria públicoprivada – quando investiga as conexões existentes en-
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tre capital imobiliário e capital financeiro na cidade de
São Paulo, metrópole periférica, em um contexto de
mundialização da economia. Destaca-se na investigação realizada pela autora especialmente a riqueza do
trabalho de campo e o expressivo número de entrevistas qualitativas realizadas ao longo da pesquisa – 56 entrevistas envolvendo 61 pessoas de 46 entidades diferentes –, capazes de subsidiar o entendimento e as
reflexões acerca do circuito de circulação do capital no
meio ambiente construído. Mérito também deve ser
conferido à clareza com que Fix apresenta os novos
mecanismos financeiros que podem, em tese, aproximar o mercado imobiliário do modo de funcionamento do mercado de capitais, a exemplo dos fundos de investimentos utilizados no caso brasileiro.
A discussão realizada pela autora tem como objeto de estudo uma parte da cidade de São Paulo que se
projeta como uma nova centralidade – Faria LimaBerrini, também alvo de análise da autora em suas
obras anteriores (Fix, 2001, 2003) – ao ser submetida
às estratégias de planejamento e gestão capazes de produzir a “face globalizada” da metrópole. Nesse livro, a
autora procura identificar as formas assumidas na produção imobiliária e no consumo do espaço urbano de
São Paulo, investigando como a financeirização e a
mundialização do capital produzem paisagens como
esta, objeto de seu estudo: torres de escritórios, shopping centers, prédios de uso misto, dentre outros exemplares existentes nas paisagens dos centros de negócios
dos países centrais.
Por trás dessa aparente paisagem globalizada, Fix
identifica as estratégias colocadas em prática para viabilizar a cidade global, mostrando como em São Paulo o elo entre mercado imobiliário e capital financeiro
se mostra truncado e imperfeito, evidenciando as características específicas que essa aliança assume na realidade brasileira.
Primeiramente, a análise busca mostrar que a
produção do ambiente construído, resultado desse elo
em São Paulo, não conta com um crédito efetivo, como é o caso das hipotecas nos Estados Unidos. Na falta de crédito financeiro para os edifícios comerciais, o
setor utiliza os fundos de pensão – a maioria deles ligados a empresas estatais, como a Caixa Econômica Federal e a Petrobrás – que funcionaram nos anos de
1980 e 1990 como uma espécie de substituto ao crédito, tentando reproduzir o mecanismo da promoção
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imobiliária norte-americana. Dessa forma, a financeirização da promoção imobiliária, que nos países centrais se deu ao mesmo tempo que a combinação explosiva das instituições de crédito com o setor imobiliário,
adquiriu no Brasil uma outra configuração. Na ausência do crédito, são os fundos de pensão que, ao assumirem o papel de investidor, aproximam o mercado imobiliário do modo de funcionamento do mercado de
capitais. Isso representa uma nova forma de reunir
recursos para investimentos, ao considerar a terra um
ativo financeiro – porque permite a apropriação de
rendas que prometem ser cada vez mais elevadas –, garantindo, assim, rentabilidade. A partir desse enfoque,
a autora nos mostra como em São Paulo o capital financeiro transforma a produção imobiliária em títulos
mobiliários atraentes para investidores do mercado
financeiro. A produção imobiliária nessa parte da cidade passa a ser regida pela busca de liquidez: o imóvel se torna um título mobiliário, e as cidades, sobretudo aquelas com “vocação global” como São Paulo,
são financeirizadas.
Para viabilizar essa transformação da paisagem de
São Paulo, dotando-a de um status “global”, utiliza-se
o instrumento da Operação Urbana, aquela mesma
forma de parceria público-privada abordada pela autora em seus trabalhos anteriores e responsável por criar
as condições necessárias à atração de investidores e à
conseqüente submissão da cidade (ou parte dela) à lógica do capital financeiro. Segundo Mariana Fix, a
construção da “face global” da cidade de São Paulo,
além de ser sustentada por grandes investidores brasileiros, como os fundos de pensão, encontra na parceria
entre o poder público e a iniciativa privada o instrumento capaz de viabilizar financeiramente os negócios
imobiliários, garantindo fluxo permanente de recursos
públicos para modernizar a infra-estrutura na região
Faria Lima-Berrini. A Operação Urbana – essa forma
de parceria público-privada aplicada no urbano – estimula a produção imobiliária do espaço em áreas inicialmente baratas (próximas às favelas), porém, com
localização interessante para a atuação do mercado,
que vê na região uma possibilidade de rentabilidade.
Assim, o Estado é mobilizado a transformar a cidade
em uma “máquina de crescimento” capaz de inseri-la
no ranking das cidades com funções globais, canalizando recursos públicos que são investidos em infra-estrutura necessária para atrair investimentos imobiliários e
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alavancar negócios privados. Como visto, a Operação
Urbana aparece como instrumento que viabiliza o elo
financeiro dos empreendimentos imobiliários, mas de
forma perversa: concentração de renda e segregação espacial são os resultados da utilização deste instrumento – resultados abordados também em trabalhos anteriores da autora, mas, agora, com destaque para o
papel da parceria na relação local-global. Isso contribui
para o enfraquecimento do mito criado ao considerar
São Paulo uma “cidade global”, o que, na verdade, parece ser o caso de apenas uma parte da cidade, direcionada para poucos.
Em segundo lugar, a autora busca nos mostrar como, no caso brasileiro, há uma “fratura” que caracteriza o processo de financeirização e internacionalização
da economia, a partir desse estudo sobre São Paulo. Na
busca de mobilidade e liquidez, as grandes empresas
deixam de se estabelecer em sedes próprias e passam a
alugar andares em edifícios construídos naquelas paisagens globalizadas – no exemplo deste livro, a da FariaLima-Berrini –, o que lhes permite se deslocar no território com maior facilidade. Sendo assim, a aparente
paisagem globalizada, edificada para servir ao capital
transnacional, sofre conseqüências da constante migração que caracteriza as grandes empresas: a alta taxa de
vacância dos imóveis e a consequente superoferta dos
mesmos acabam provocando a queda dos preços e a fuga de novos investidores. Segundo a autora, o mito das
cidades globais já nasce enfraquecido e, por isso, “ganha ares de farsa”, apresentando, essas novas centralidades produzidas em São Paulo, o caráter de uma miragem, que busca mimetizar os centros de comando e
controle em um país periférico.
Assim, São Paulo, ao reivindicar seu status de “cidade global”, tentando ser mais competitiva, reflete
sua condição de subordinação e dependência do capitalismo financeirizado. Essa tentativa de readequar a
capital paulista às características de uma cidade global
revela também as conseqüências da implantação da
paisagem globalizada – que representa nada mais que a
importação de modelos dos pólos de negócios dos países centrais – em uma formação social específica, periférica e “arcaica”, destacando, dentre essas conseqüências, o reforço à segregação socioespacial. As estratégias
e os instrumentos utilizados para dotar a cidade desse
caráter global nos fazem refletir – e, por que não, rever
–, no contexto da relação centro-periferia, sobre as re-
centes formas de atuação no âmbito do planejamento
e da gestão urbana no Brasil. A discussão em torno do
instrumento da Operação Urbana e da ação do Estado
nas políticas integram essa reflexão. Como abordado
na obra de Fix, a construção dessa face empresarial e
mundial da cidade de São Paulo se ergueu às custas da
segregação socioespacial financiada pelo Estado e pelos
fundos de pensão. Ao que parece, a utilização da parceria público-privada como instrumento de planejamento urbano, ao ser aplicado na realidade brasileira,
vem servindo aos interesses da acumulação – seja pela
sua atuação na produção das condições gerais de produção, na forma de ambiente construído, gerando
mais-valias fundiárias, seja viabilizando intervenções
associadas a maior permissividade quanto à aplicação
de parâmetros urbanísticos, ou financeirizando a produção imobiliária –, em detrimento do caráter redistributivo que caracteriza o discurso da política urbana
brasileira mais recente, incluindo-se aí as Operações
Urbanas. Cabe refletirmos, a partir do excelente trabalho de Mariana Fix, sobre até que ponto a roupagem
de um planejamento democrático e participativo, na
forma em que vem se estruturando no Brasil, não estaria, na prática, mascarando estratégias de produção de
“cidades empresas”.
REFERÊNCIAS
FIX, Mariana. (2001). Parceiros da exclusão: duas histórias da construção de uma “nova cidade” em São Paulo:
Faria Lima e Água Espraiada. São Paulo: Boitempo.
__________. (2003). A fórmula mágica da parceria:
Operações Urbanas em São Paulo. In: SCHICCHI, Maria Cristina; BENTAFFI, Dênio. Urbanismo: dossiê São
Paulo – Rio de Janeiro (Óculum – Edição Especial).
Campinas/Rio de Janeiro: PUCCamp/ PROURB, 2003.
__________. (2007). São Paulo, cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo: Boitempo. 192p.
HARVEY, D. (1996). Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação urbana no capitalismo tardio. Espaço e Debates, n.39, ano XVI. São Paulo: NERU, p. 48-64.
__________. (1995). Espaços urbanos na “aldeia global”:
reflexões sobre a condição urbana no capitalismo do final
do século 20. (Transcrição de uma conferência proferida
em Belo Horizonte, em 1995).
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BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1981.
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