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REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional E REGIONAIS ISSN 1517-4115 REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS Publicação semestral da ANPUR Volume 10, número 1, maio de 2008 EDITOR RESPONSÁVEL Geraldo Magela Costa (UFMG) EDITORA ASSISTENTE Jupira Gomes de Mendonça (UFMG) COMISSÃO EDITORIAL Ana Fernandes (UFBA), Carlos Antônio Brandão (Unicamp), Lilian Fessler Vaz (UFRJ), Luciana Corrêa do Lago (UFRJ) CONSELHO EDITORIAL Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ), Ângela Lúcia de Araújo Ferreira (UFRN), Brasilmar Ferreira Nunes (UnB), Carlos Antonio Brandão (Unicamp), Ermínia Maricato (USP), Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG), Henri Acselrad (UFRJ), João Rovati (UFRS), Lia Osorio Machado (UFRJ), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC), Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBA), Margareth Pereira (UFRJ), Maria Cristina da Silva Leme (USP), Nadia Somekh (Mackenzie), Norma Lacerda Gonçalves (UFPE), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Ricardo Cesar Pereira Lira (UERJ), Roberto Monte-Mór (UFMG), Rosa Acevedo (UFPA), Sandra Lencioni (USP), Sarah Feldman (USP), Wrana Maria Panizzi (UFRS) COLABORADORES Alisson Barbieri (UFMG), Allaoua Saadi (UFMG), Ana Fernandes (UFBA), Ana Lúcia Brito (UFRJ), Ester Limonad (UFF), Eduardo Mário Mendiondo (USP São Carlos), Felipe Nunes Coelho Magalhães (UFMG), Jan Bitoun (UFPE), Marília Steinberger (UnB), Mônica Arroyo (USP), Ricardo Farret (UnB), Orlando Júnior (UFRJ), Ricardo Machado Ruiz (UFMG), Rosa Moura (IPARDES), Virgínia Pontual (UFPE) PROJETO GRÁFICO João Baptista da Costa Aguiar CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO Ana Basaglia REVISÃO Ana Paula Gomes IMPRESSÃO CTP Assahi Gráfica e Editora Indexada na Library of Congress (EUA) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.10, n.1, 2008. – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor responsável Geraldo Magela Costa : A Associação, 2008. v. Semestral. ISSN 1517-4115 O nº 1 foi publicado em maio de 1999. 1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional). II. Costa, Geraldo Magela 711.4(05) CDU (2.Ed.) 711.405 CDD (21.Ed.) UFBA BC-2001-098 REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional E REGIONAIS S U M ARTIGOS Á R I O 9 A G LOBALIZAÇÃO L IBERAL E A E SCALA U RBANA – P ERSPECTIVAS L ATINO - AMERICANAS – Peter Charles Brand 87 O S PARADIGMAS DA M ODERNIZAÇÃO DO E S TADO DO C EARÁ E O P ROCESSO DE C ONSTRUÇÃO DA B ARRAGEM DO C ASTANHÃO – Francisca Silvania de Sousa Monte 29 P LANEJAMENTO : DO E CONOMICISMO M ODERNO À D IALÉTICA S OCIOESPACIAL – Lucas Linhares 105 C ULTURAS DA J UVENTUDE E A M EDIAÇÃO DA E XCLUSÃO /I NCLUSÃO R ACIAL E U RBANA NO B RASIL E NA Á FRICA DO S UL – Edgar Pieterse 49 T EMPOS , I DÉIAS E L UGARES – O E NSINO DO P LANEJAMENTO U RBANO E R EGIONAL NO B RASIL – Rosélia Périssé da Silva Piquet e Ana Clara Torres Ribeiro RESENHAS 127 Pelo espaço: uma nova política da espacialidade, de Doreen Massey – por Gislene Santos 61 O S L IMITES P OLÍTICOS DE UMA R EFORMA I N COMPLETA – A I MPLEMENTAÇÃO DA L EI DOS R E CURSOS H ÍDRICOS NA B ACIA DO PARAÍBA DO S UL – Antônio A. R. Ioris 129 São Paulo, cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem, de Mariana Fix – por Daniela Abritta Cota R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 3 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL – ANPUR GESTÃO 2007-2009 PRESIDENTE Edna Castro (NAEA/UFPA) SECRETÁRIO EXECUTIVO Luiz Aragon (NAEA/UFPA) SECRETÁRIO ADJUNTO José Júlio Lima (FAU/UFPA) DIRETORES Adauto Lúcio Cardoso (IPPUR/UFRJ) Leila Dias (CFH/UFSC) Roberto Monte-Mór (CEDEPLAR/UFMG) Virgínia Pontual (MDU/UFPE) CONSELHO FISCAL Brasilmar Nunes (SOC/UNB) João Rovati (PROPUR/UFRS) Renato Anelli (EESC/USP) Apoio EDITORIAL Dois temas relevantes para a área do planejamento urbano e regional são abordados neste número da Revista. O primeiro refere-se às tendências e aos desafios do planejamento territorial, bem como ao seu ensino, considerando, por um lado, os processos recentes de globalização e reestruturação espacial e, por outro, os contextos econômico e político de formações sociais específicas. O segundo tema é o da gestão das águas, com a avaliação dos limites e das possibilidades da Política Nacional de Recursos Hídricos, de 1997, e uma análise sobre o discurso da elite política cearense no processo de uso e de controle das águas. Além desses temas, é apresentada uma instigante análise sobre “culturas da juventude e a mediação da exclusão/inclusão racial e urbana no Brasil e na África do Sul”. Três artigos são dedicados à reflexão sobre a ampla problemática do planejamento territorial. No primeiro deles, Peter Brand discute o novo arranjo territorial urbano na América Latina, tendo como referência o processo de globalização e o surgimento da cidade-região. O artigo examina a cidade latino-americana tendo em conta as rápidas transformações socioterritoriais recentes e à luz do que o autor denomina re-escalamento, um produto da globalização, com o objetivo de contribuir para a análise do Estado e o estudo das políticas de desenvolvimento urbano latino-americanas, em diferentes escalas. O caráter elitista das políticas de competitividade e as formas de legitimação dos governos locais na administração da crise urbana são identificados em estudos de caso das quatro maiores cidades da Colômbia: Bogotá, Medellín, Cali e Barranquilla. De natureza essencialmente epistemológica, o artigo de Lucas Linhares apresenta uma trajetória dos enfoques teóricos das concepções de planejamento. Começando com as abordagens do planejamento na era moderna, de matriz positivista e economicista, o autor desenvolve um resgate crítico do tema, que passa pelo pensamento dos chamados neomarxistas dos anos 1970 – para introduzir o que ele considera imprescindível ao entendimento do objeto territorial do planejamento (o conceito de espaço) – e chegando à visão dialética, lefebvriana em sua essência, sobre a produção social do espaço. O autor sugere que este procedimento analítico é essencial para que o planejamento de fato leve em conta as contradições do modo de produção capitalista. O terceiro artigo sobre o tema do planejamento tem como autoras Rosélia Piquet e Ana Clara Torres Ribeiro. Trata-se do resgate da história do planejamento e de seu ensino, com ênfase em sua relação com as políticas e ideologias de desenvolvimento econômico vigentes no Brasil. A análise resgata de forma sintética as experiências de políticas econômicas e de planejamento, começando nos anos 1950 e 60, quando se perseguia a mudança através de ações do Estado. Foi também neste período que os primeiros cursos sobre planejamento (no domínio público) sugiram na América Latina. No período seguinte, segundo as autoras, assiste-se à institucionalização tanto do planejamento quanto do seu ensino em universidades no Brasil. O período de redemocratização que se segue faz com que os paradigmas do planejamento e seu ensino do momento anterior sejam rejeitados e modificados. A ênfase dos cursos desloca-se do planejamento para os estudos urbanos e regionais. Os desafios postos ao resgate da idéia de planejamento e de seu ensino compõem as reflexões das autoras nas concluR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 5 sões do artigo. Atender às demandas regionais e locais de formação profissional, reconhecer e tratar as diferenças sem gerar perdas teóricas e superar generalizações são alguns desses desafios, que requerem o aprofundamento do debate entre especialistas e atores políticos. O tema das águas é tratado em dois artigos. No primeiro deles, Antônio Ioris discute os limites e possibilidades das reformas institucionais, especialmente aquelas materializadas na Política Nacional de Recursos Hídricos de 1997. Para avaliar tais limites e possibilidades na primeira década de existência da Política, o autor faz uso de um estudo de caso sobre a gestão da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (BHRPS), localizada na região sudeste do país. Apesar de analisar um único caso, a riqueza das informações qualitativas obtidas essencialmente por meio de entrevistas com agentes sociais das instâncias participativas no processo de gestão faz com que o estudo apresente resultados importantes para se pensar a questão da gestão das águas no Brasil. Como principal conclusão, o estudo de caso permitiu constatar que as reformas institucionais para o setor de recursos hídricos, em implantação desde fins dos anos 1990, têm sido marcadas pela afirmação de uma racionalidade tecnoburocrática, a qual vem apenas produzindo respostas inadequadas aos problemas de gestão das bacias hidrográficas, com alto nível de conflitos e continuidade da degradação ambiental. Em seguida, Francisca Silvania de Sousa Monte nos apresenta um estudo baseado em sua tese de doutorado, em que a questão das águas é analisada em outra dimensão: o uso do discurso da “modernidade” pela elite política do Ceará no processo de uso e de controle das águas. Além de uma exaustiva revisão da legislação sobre a questão, a autora utiliza o estudo de caso da Barragem do Castanhão. Constata que a seca continua servindo ao discurso dos políticos locais, e agora não mais com a ênfase na chamada “indústria da seca”. Os interesses clientelistas dos “coronéis” deram lugar às demandas de uma burguesia urbano-industrial “moderna” – que governou o Ceará nas duas últimas décadas – pela implantação de mega-projetos hídricos de suporte às indústrias e agroindústrias. A autora defende a necessidade de uma adequada gestão dos recursos hídricos no estado, que sempre conviveu com as irregularidades climáticas, ao mesmo tempo em que enfatiza o caráter excludente da “modernização hídrica” analisada. O último artigo trata de um tema ao mesmo tempo atual e instigante: uma análise sobre “culturas da juventude e a mediação da exclusão/inclusão racial e urbana no Brasil e na África do Sul”. Pela análise do hip hop e outras manifestações culturais congêneres, Edgar Pieterse mostra como isto tem contribuído para posicionamentos e ações significativos de resistência entre os jovens negros e pobres na Cidade do Cabo e no Rio de Janeiro. O artigo ainda contribui metodologicamente para a aproximação entre a observação empírica de práticas culturais e políticas com temas caros ao meio acadêmico, como participação, espaço público, cidadania e segurança. Duas resenhas completam o presente número. A primeira, elaborada por Gislene Santos, apresenta a publicação traduzida do mais recente livro de Doreen Massey – For Space – que tem por título Pelo espaço: uma nova política da espacialidade e foi publicado em 2008. A segunda, de Daniela Abritta Cota, é sobre São Paulo, cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem, livro de Mariana Fix publicado em 2007. GERALDO MAGELA COSTA Editor responsável 6 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 A RTIGOS A GLOBALIZAÇÃO LIBERAL E A ESCALA URBANA PERSPECTIVAS LATINO-AMERICANAS PETER CHARLES BRAND R E S U M O O processo de globalização implicou o ressurgimento da cidade-região como unidade geográfica chave no desenvolvimento econômico e o nascimento de um novo período de transformação urbana. A reorganização da economia mundial requereu, ao lado de novas formas de governo local, a reformulação das bases econômicas e também da infra-estrutura, de equipamentos e da própria imagem das cidades. Este processo, que se iniciou nos Estados Unidos e nos países da Europa Ocidental no começo dos anos 1980, levou uma década ou mais para se fazer sentir na América Latina. Enquanto as políticas urbanas avançavam neste sentido, a investigação acadêmica e a reflexão teórica, circunscrevendo-se essencialmente às pautas analíticas e interpretativas estabelecidas em contextos radicalmente distintos do sul-americano, permaneceram na retaguarda, limitadas aos aspectos operacionais da competitividade urbana e marcadas por velhas preocupações com a consolidação da democracia local. Este trabalho examinaa cidade latinoamericana à luz do debate sobre o “re-escalamento” como produto da globalização, ao mesmo tempo em que explora a contribuição representada por dito debate para a compreensão das estratégias de desenvolvimento urbano. Neste sentido, analisa-se a experiência de algumas cidades colombianas, com ênfase especial para o tema da relação com o Estado nacional e as questões que dizem respeito às políticas de planejamento, às práticas de governo urbano e à reconstrução urbanística. Pretende-se também, aqui, contribuir com algumas idéias que sirvam à elaboração de uma agenda de investigação para a América Latina. PA L A V R A S - C H A V E Globalização; “re-escalamento” geográfico; neoliberalismo; desenvolvimento urbano; América Latina. INTRODUÇÃO O fenômeno da globalização ocupa uma boa parte do esforço despendido pelas ciências sociais no seu intento de compreender as características e dinâmicas da vida contemporânea. Por sua própria natureza, a globalização tem um interesse especial para a ciência geográfica, e no presente estudo se destaca sua influência para a discussão da questão da escala. Pode-se argumentar, em linhas gerais, que a globalização está mudando abruptamente a organização escalar herdada da época moderna, construída sobre uma hierarquia de escalas que se articulava em torno da escala nacional. Este movimento se dá tanto para cima, com os blocos de livre comércio nos níveis continental e global, como para baixo, no âmbito das regiões, cidades e localidades. A partir deste esquema, tem-se afirmado que o processo de globalização implicou a preeminência da escala supranacional (blocos econômicos, acordos globais) e o ressurgimento da escala local (regional, urbana), ficando a escala propriamente nacional relegada a uma posição secundária como locus de poder e princípio de organização da vida econômica e social. Em outras palavras, a globalização ressalta as escalas tanto global como local, em um processo de “glocalização” (Swyngedouw, 1997; Borja e Castells, 1998). R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 9 A 1 O termo “re-escalamento” – tema central do presente artigo - refere-se à reconfiguração da importância relativa e das relações funcionais entre direrentes escalas geográficas, a partir do processo de globalização. Desta forma, entendese que o global não é simplesmente uma nova escala mundial “superior” que se soma às relações espaciais existentes, mas uma escala que afeta e recoloca o significado e as relações entre todas as escalas anteriores, tais como o local, o urbano, o nacional, os bloco e os impérios. G L O B A L I Z A Ç Ã O L I B E R A L Ora, o debate sobre o “re-escalamento”1 tem avançado principalmente entre geógrafos e outros cientistas sociais europeus e norte-americanos, situados, tanto em um caso como no outro, nos centros mais dinâmicos desse processo, e cada qual com suas referências específicas. No caso europeu, a paulatina consolidação da União Européia implicou a cessão política de amplos poderes nacionais, de tal forma que hoje em dia a União Européia conta, entre outros, com Parlamento, instituições de governo, moeda e passaporte próprios. Em conseqüência, a escala européia afeta uma enorme gama de atividades, desde a organização econômica até as práticas da vida cotidiana, a que se pode acrescentar o próprio contexto institucional e de trabalho dos pesquisadores acadêmicos. Na América do Norte, não obstante a integração comercial em nível continental, o fenômeno ainda de maior impacto é a hegemonia dos Estados Unidos e o novo imperialismo impulsionado por sucessivos governos com vistas a um novo “século norte-americano” (Harvey, 2003; Hardt e Negri, 2001). O que neste caso se torna evidente é, mais propriamente, a subversão da ordem internacional herdada e o surgimento de novas formas de imposição da vontade imperial aos Estados nacionais nas condições proporcionadas pela globalização. Em ambos os casos, contudo, tanto na Europa como na América do Norte, as cidades e regiões também emergem com uma importância renovada. Tanto na realidade geopolítica como no debate acadêmico, poder-se-ia dizer que a América Latina ficou um tanto marginalizada no que se refere à questão da escala. Ao longo das duas últimas décadas do século passado, enquanto o desenvolvimento econômico e o surgimento de novos atores globais apontavam para o Oriente e a Ásia, os países sulamericanos estavam saindo de um período devastador caracterizado por guerras civis, governos militares e estagnação econômica. Os novos regimes democráticos, dos mais variados tipos e, em muitos casos, bastante frágeis politicamente, ficaram à mercê dos ditames das agências multilaterais do desenvolvimento neoliberal. Em tais condições, a integração econômica foi difícil e os acordos comerciais entre países evidenciaram-se frágeis e instáveis. Quanto à escala urbana, atribuía-se à cidade, durante uma boa parte desse período e até certo ponto ainda hoje, um significado mais propriamente político, no sentido de se constituir mais em espaço chave para a consolidação da democracia participativa do que como unidade econômica. Não obstante, juntamente com esta preocupação política com a democracia surgiram inevitavelmente novas estratégias econômicas das cidades, uma vez que os diferentes países, por caminhos os mais variados, se integraram plenamente à globalização. Um tanto tardiamente as cidades latino-americanas viram-se obrigadas a adotar transformações que respondessem aos desafios da globalização, mas em condições endógenas muito diferentes das verificadas nas cidades dos países desenvolvidos. Ainda que as estratégias adotadas pelas cidades latino-americanas não tenham recebido a mesma atenção acadêmica que no caso das cidades européias e norte-americanas, poder-se-ia dizer, grosso modo, que seguiram o padrão preestabelecido de “competitividade urbana” posto em prática em outras latitudes. O objetivo do presente trabalho é traçar um esboço do debate sobre o “reescalamento” e interrogar sobre a sua pertinência para a compreensão da heterogênea e mutável situação que caracteriza a América Latina. À luz deste debate serão comentadas as estratégias adotadas pelas quatro cidades colombianas mais importantes, destacando-se os temas do papel do Estado nacional, as políticas de planejamento, a “governança” urbana e a reconstrução urbanística. 10 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 P E T E R C H A R L E S B R A N D CONTORNOS DO DEBATE ACADÊMICO SOBRE A QUESTÃO DA ESCALA A globalização é um termo que reúne múltiplos conteúdos e que tem sido amplamente utilizado, tanto nas ciências sociais como nos meios de comunicação, com o intuito de captar e explicar o sentido e a direção de inúmeras dimensões da vida contemporânea. Como observa Brenner (2004), a essência indubitável da globalização é geográfica, no sentido da mundialização dos processos e dinâmicas de mudança econômica, política e social, tendo como conseqüência a introdução de noções geográficas em muitas áreas das ciências sociais. O especial interesse deste trabalho consiste na globalização como reformulação da questão de escala, na medida em que a escala global deixa de ser vista como um fenômeno novo para ser encarada como algo mais amplo, profundo e determinante do que até então o fora, e atentando-se para sua relação com as outras escalas de organização da vida, tais como as representadas pelo plano nacional e principalmente o urbano. Ademais, depois de utilizada durante três décadas, tem-se argumentado haver recentemente certo esgotamento ou insuficiência da noção de globalização, com a crescente adoção, nos estudos urbano-regionais, do conceito de neoliberalismo e do termo “neoliberalização” para se referir à sua concretização em espaços e lugares diferentes. Pretendese entender por neoliberalização não somente as novas interações multiescalares da globalização, mas também as forças que a regem e impulsionam, bem como os efeitos políticos, organizacionais e individuais nela implicados. Descrições do neoliberalismo são já suficientemente comuns, tornando desnecessária sua explanação sistemática neste trabalho. O termo refere-se à ideologia de uma nova etapa de acumulação capitalista (Moncayo, 2003), baseada na “crença de que os mercados abertos, competitivos e desregulados, livres de toda forma de interferência estatal, constituem o mecanismo ótimo para o desenvolvimento econômico” (Brenner, 2004), descrito por Bourdieu (1998) como “uma utopia de exploração sem limites”, e por Harvey (2005) como “acumulação por meio da ‘despossessão’”. A noção de neoliberalismo não se limita a processos puramente econômicos, mas sua concretização se dá através de políticas do Estado e de novas formas de regulação econômica e social. Como observa Sparke (2006: 357): A lo largo de las ciencias sociales la ‘N’ en mayúsculas del Neoliberalismo se ha convertido en un paraguas cada vez más omnipresente para denominar las diversas ideologías, políticas y prácticas asociadas con la liberalización de los mercados y la expansión de las prácticas empresariales y relaciones de poder capitalista en esferas completamente nuevas de la vida social, política y biofísica. Desde el libre comercio, la privatización y la desregulación financiera a la austeridad fiscal, la reforma del bienestar y prácticas punitivas de control social (“policing”); a la imposición de ajustes estructurales; a la expansión de modelos empresariales de identidad y las acciones de las instituciones de innovación científico, educativa y de entretenimiento; numerosos autores están asignando al neoliberalismo una increíble diversidad y exigente conjunto de responsabilidades explicativas. Por cierto, se emplea tan ampliamente hoy día que se lo encuentra aplicado a una gama de fenómenos sociales, políticos y económicos aún más amplia que en el caso de ‘globalización’ misma (tradução do inglês pelo autor).2 GLOBALIZAÇÃO, ESTADO NACIONAL E “RE-ESCALAMENTO” Não obstante as múltiplas maneiras de enfocar e entender a globalização, um tema constante tem sido o significado deste fenômeno para os Estados nacionais, os quais, à R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 11 2 “Ao longo do desenvolvimento das Ciências Sociais, o ‘N’ maiúsculo de Neoliberalismo converteu-se numa espécie de guarda-chuva cada vez mais onipresente para denominar as diversas ideologias, políticas e práticas associadas à liberalização dos mercados e à expansão das práticas empresariais e relacionais de poder capitalista em esferas completamente novas da vida social, política e biofísica. Desde o livre comércio, a privatização e a desregulação financeira até a austeridade fiscal, incluindo a reforma dos sistemas de proteção e práticas punitivas de controle social (policing), imposição de ajustes estruturais, expansão dos modelos empresariais e as ações das instituições de inovação científica, educativa e de entretenimento, numerosos autores têm atribuído ao neoliberalismo uma incrível diversidade e um exigente conjunto de responsabilidades explicativas. Este conceito é hoje em dia empregado amplamente, sendo aplicado a uma gama de fenômenos sociais, políticos e econômicos ainda de forma mais generalizada do que a própria ‘globalização’ ”. A G L O B A L I Z A Ç Ã O L I B E R A L primeira vista, se veriam debilitados pela integração global. Com a desintegração dos grandes blocos geopolíticos e o desmonte das barreiras protecionistas de países individuais, produziu-se uma formidável ampliação e intensificação, através das fronteiras nacionais, dos fluxos de bens, capitais, dinheiro, informação, serviços, produtos culturais e pessoas. As corporações transnacionais, cujas receitas superam com vantagem até mesmo o orçamento nacional de países medianamente desenvolvidos, determinam a dinâmica da economia mundial e impõem seus interesses próprios sobre os governos nacionais. Favorecida pelo desenvolvimento da informática e das comunicações, esta globalização econômica foi promovida por instituições multilaterais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, que constituem novas instâncias supranacionais de poder econômico, em face das quais têm surgido inúmeras organizações, redes e foros não-governamentais de caráter também autenticamente global no que diz respeito aos seus interesses, agendas e atuações. Sendo cada vez mais difícil o controle de tais fluxos por parte dos governos nacionais, quer se trate de divisas, capitais, informação, rendas, etc., argumenta-se que a dinâmica da globalização implica uma transferência de poder para cima. A estreita circunscrição dos territórios nacionais deixa de atuar como principal unidade político-geográfica e emergem novas formas transnacionais de governo, constituindo uma espécie de “governança” global exercida por uma ampla variedade de organizações inter e não-governamentais, representativas de uma grande diversidade de interesses (Held e McGrew, 2002). Quais as conseqüências deste processo para o papel e o significado dos Estados nacionais? Mansfield (2005) observa que a globalização, se a aceitamos como um “fato” passível de mensuração e observação, adquire um status ontológico que a coloca em oposição ao Estado nacional. Implícita aí está a idéia de que o Estado nacional entra em declínio na medida em que surgem novos poderes “acima, abaixo e ao lado do Estado”. Contra esta posição, Mansfield defende, frente à questão da escala, uma visão relacional para a qual os distintos níveis geográficos de poder se produzem mutuamente, sustentando, com respeito à globalização, que o Estado nacional tem atuado menos como espectador passivo do que como um ator chave e promotor ativo. Juntamente com a reconsideração da escala nacional, esta concepção relacional tem sido um aspecto importante no amadurecimento do debate geográfico sobre a globalização (Boyer e Hollingsworth, 1997; Harvey, 2000; Jessop, 2000), que vale a pena resumir por constituir o marco conceitual imprescindível para uma indagação sobre o papel das cidades e a compreensão de suas estratégias de desenvolvimento. Nesta direção, Brenner propõe (2004: 8-12) as seguintes considerações gerais sobre a questão da escala geográfica: • As escalas geográficas não são fixas, estáticas nem permanentes, e sim produções da história e dimensões de processos sociais, tais como a produção de capital, a reprodução social, a regulação estatal e as lutas sócio-políticas. • A configuração institucional, a função, a história e a dinâmica de uma escala particular (local, urbana, regional, nacional, global) tem sentido unicamente em função de suas relações verticais e horizontais com as outras escalas. • A organização escalar é um mosaico de hierarquias sobrepostas e mutuamente imbricadas, uma vez que cada processo social tem sua própria geografia, que impossibilita a configuração de uma só pirâmide coerente capaz de englobar todas. • Portanto, toda e qualquer configuração escalar não pode ser mais do que uma “fixação temporal”, uma conveniência provisoriamente circunscrita pelas atividades políticas, econômicas e culturais. 12 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 P E T E R C H A R L E S B R A N D • As transformações escalares não ocorrem mediante a substituição de um esquema “ideal” por outro igualmente ajustado às novas circunstâncias históricas, mas esta transformação é sempre experimental e condicionada por ajustes escalares herdados, isto é, pela “dependência do caminho” (path dependency). O que está dito acima permite compreender a diversificação e complexidade crescente da questão de escala como resultado da globalização enquanto fenômeno contingente e gerador de conflitos. É fora de dúvida que a globalização trouxe consigo a desestabilização das sólidas escalas hierárquicas estabelecidas na época do pós-guerra, na medida em que favoreceu a emergência de um sistema mais policêntrico, multiescalar e polimórfico. Ademais, este processo acarretou não somente a redistribuição de funções estatais entre escalas, mas também a transformação qualitativa destas funções em diferentes escalas no que se refere, por exemplo, ao desenvolvimento econômico e ao bem-estar social (Peck, 2002, citado por Brenner, 2004). Nesta perspectiva, a concepção relacional de escala serve não apenas para ressaltar a importância da reconfiguração da relação entre o Estado nacional e a cidade, reconfiguração esta que não necessariamente se circunscreve a um reordenamento territorial formal, mas também às múltiplas interseções e dependências (incluídas as escalas supranacionais) que condicionam qualquer conjunto de iniciativas empreendidas pelas próprias cidades. Na versão ortodoxa da globalização, por outro lado, argumenta-se com uma lógica implacável e peremptória que é indispensável continuar racionalmente mediante a adoção de políticas congruentes. A estratégia argumentativa segundo a qual “só pode haver um caminho” busca minimizar os conflitos de interesse resultantes da globalização. No entanto, a lógica espacial abstrata da acumulação capitalista global entra em choque com as racionalidades concretas das regiões e lugares, e com a história, tradições e configurações de poder em cada cidade-região ou localidade particular. Em conseqüência, a globalização produz conflitos entre os níveis escalares e no interior de cada um deles, isto é, entre interesses nacionais, regionais, urbanos e locais, bem como entre facções econômicas, políticas e sociais em cada nível. Pode-se dizer que uma boa parte da investigação sobre temas urbanos na América Latina se volta implicitamente para estes conflitos e contradições, tão evidentes nas cidades e regiões de um extremo a outro do continente, freqüentemente em oposição aberta à globalização tal como se está desenvolvendo, posicionando-se também criticamente diante das limitações das políticas de desenvolvimento territorial derivadas da globalização neoliberal. O RESSURGIMENTO DA CIDADE-REGIÃO O ressurgimento da escala urbano-regional constitui um dos aspectos mais visíveis do processo de globalização. Nas duas últimas décadas, as grandes cidades, cuja importância econômica e cultural em nada diminuiu ao longo desse período, foram palco de uma transformação arquitetônica e exerceram um papel tão preponderante na vida política e social, que pareciam “se independizar” de seus contextos nacionais. Também na América Latina já nos acostumamos aos macro-projetos urbanos, o melhoramento de infra-estruturas, a renovação dos setores históricos, a criação de centros de negócios internacionais, a promoção do turismo, além da especulação com o espaço urbano e do “protagonismo” dos prefeitos. Embora as cidades latino-americanas apareçam com pouca freqüência nas listas de “cidades globais”, elas são amplamente mencionadas em listas secundárias representativamente importantes. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 13 A G L O B A L I Z A Ç Ã O L I B E R A L O alto perfil da cidade-região, do ponto de vista tanto arquitetônico e mediático como político, econômico e cultural, contribui para reforçar a visão da cidade como unidade territorial desvinculada de seu contexto nacional e movida diretamente pelas dinâmicas próprias da globalização. No entanto, as prematuras interpretações acadêmicas deste tipo foram objeto de questionamento e revisão. Em seus trabalhos mais recentes, a mesma Sassen (2001, 2003), pioneira, nos anos 1990, da noção de cidades globais como centros de articulação no contexto da nova economia global, ressalta o papel exercido pelos Estados nacionais como facilitadores da articulação da cidade com os circuitos globais. Com seu interesse pela nova “arquitetura organizacional” dos articuladores empresariais da globalização e a multiplicação dos circuitos globais especializados, como também pela criação de novas interseções e oportunidades de articulação das cidades, a expansão hierárquica “lateral” e a diversificação das redes interurbanas, Saskia Sassen continua contribuindo de forma valiosa para a compreensão do papel e funcionamento das cidades, objeto de uma renovada preocupação de outros pesquisadores, mais diretamente voltados para a dimensão política da escala, que nos interessa neste artigo. O tema das implicações políticas da multiplicação e diversificação dos circuitos globais foi descrito em termos de uma “nova economia política da escala” (Jessop, 1999, 2004). Aqui se ressalta a produção e as relações entre escalas não só em termos de uma nova geografia econômica, mas também no que diz respeito à regulação estatal, à reprodução social e às lutas sócio-políticas. Como já visto, a globalização não ocorre de forma homogênea em um plano vazio, mas em interação com territórios historicamente constituídos, o que põe em jogo diversas forças políticas e sociais. Jessop (2004) argumenta que as complexas dinâmicas do “re-escalamento” implicam não só a identificação de novas oportunidades econômicas e novos atores, mas também a defesa dos interesses existentes em face dos efeitos freqüentemente desagregadores da globalização. Neste processo essencialmente gerador de conflitos, Jessop (2004: 28) observa que “o jogo competitivo sempre produz, comparativamente, perdedores e ganhadores”, tanto no nível inter-regional como no interior de cada região. Na mesma ordem de idéias, Brenner (2003) opina que a cidade-região, mais do que simplesmente uma dinamizada unidade territorial, converteu-se em um espaço institucional chave no processo de reestruturação do poder do Estado nacional. Brenner recusa-se a encarar a cidade-região como uma unidade relativamente autônoma dentro do território nacional e descarta, portanto, uma explicação do ressurgimento das cidades que tenha em conta unicamente a globalização da economia. Argumenta que o Estado nacional continua exercendo um papel fundamental na formulação, implementação, coordenação e direcionamento da política urbana, dando-se assim uma espécie de descentramento do poder nacional. Segundo Brenner (2003:7): “De acordo com este ponto de vista, não está havendo erosão do poder do Estado nacional, mas sim uma re-articulação deste poder tanto com as escalas subnacionais como supranacionais”. Os trabalhos tanto de Brenner como de Jessop se situam na escola do “desenvolvimento geográfico desigual”, que se inspira no materialismo histórico-geográfico de Harvey (1985) e Smith (1984), e nas análises espaciais do processo de acumulação capitalista pós-fordista. O postulado básico consiste na necessidade de entender a produção diferencial do espaço, bem como a transformação dos locais de sua regulação, que ao mesmo tempo se constitui por é constitutiva de processos econômicos e políticos (Harvey, 1996: 6). O “re-escalamento” contemporâneo, portanto, pode ser entendido simultaneamente como resposta e resultado da reorganização do capital em escala global, com 14 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 P E T E R C H A R L E S B R A N D todos os conflitos e incoerências que este processo implica ao se superpor em territórios e lugares herdados. No caso da América Latina, o baixo nível de industrialização e as características próprias do processo de urbanização inibiram a homogeneização territorial significativa derivada da política keynesiana de acumulação, fato que também dissimula a produção de novas diferenças geográficas sob a lógica neoliberal. Talvez por esta razão, os estudos geográficos se preocuparam mais com os novos padrões de organização e distribuição do aparelho produtivo em si, tratando as diferenças geográficas como algo dado ou pano de fundo. Em todo caso, depois do longo período marcado pela política de substituição de importações, as conseqüências da globalização para o desempenho das economias urbanoregionais têm sido um tema importante nos estudos da nova geografia econômica da América Latina. As preocupações dos estudiosos têm privilegiado a análise da composição e distribuição nacional das atividades econômicas (por exemplo, Cuervo, 2003; Lotero, 2005; Cao e Vaca, 2006) e a indagação das possibilidades da agenda neoliberal com base no desenvolvimento de uma plataforma competitiva local através da inovação, a aprendizagem, o desenvolvimento tecnológico, as instituições e a “governança” econômica (ver, por exemplo, Helmsing, 2002; Méndez, 2002; Boisier, 2004; Sobrino, 2005; Dabat, 2006). Em tais circunstâncias, as políticas nacionais de desenvolvimento territorial tendem a dar prioridade àquelas cidades e regiões que apresentam maiores vantagens e melhores possibilidades de êxito para o investimento público. Também podem promover ativamente a criação de condições de competitividade em zonas menos desenvolvidas com potencial em setores específicos como serviços e turismo, estimular diretamente a conectividade entre regiões e com o exterior, e implementar reformas na organização político-administrativa do Estado. No entanto, a estratégia mais generalizada é aquela que induz ou obriga as cidades-região a adotar suas próprias estratégias de competitividade, por limitadas que sejam, mediante o melhoramento de fatores básicos como a infra-estrutura, a educação, a capacitação da força de trabalho, a promoção de atitudes e iniciativas empresariais etc., juntamente com incentivos e oportunidades para a atuação do setor privado por meio de subsídios, isenção de impostos e privatizações. Esta re-atribuição de funções nacionais às cidades-região constitui um deslocamento geográfico das responsabilidades políticas. A globalização neoliberal conduziu à desterritorialização da propriedade e do controle do aparelho produtivo, infra-estrutura e serviços públicos, à concentração da renda e da riqueza, ao descumprimento crônico das promessas de elevação geral da qualidade de vida e à crescente desigualdade espacial e aumento das tensões sociais. Persistem, portanto, fortes contradições entre a reestruturação do espaço urbano em função do capital e os seus efeitos distributivos negativos. Isto vem a ser um desafio agudo para os governos locais, descrito por Brenner (2004) em termos da necessidade de empreender uma estratégia permanente de “administração de crises”, tipicamente voltada para problemas de pobreza extrema e exclusão, e implicando partnerships, isto é, parcerias e novas acomodações entre o Estado, o setor privado e organizações da sociedade civil, para compensar o desmonte das instituições e programas de assistência do Estado do bem-estar. A avaliação geral precedente refere-se especialmente à Europa e América do Norte, cabendo fazer, com relação à América Latina, duas observações importantes. Em primeiro lugar, a reorganização territorial do Estado nacional, no caso latino-americano, ocorreu tipicamente antes do pleno impacto da globalização. Reorganizações importantes se deram em resposta ao processo de rápido crescimento urbano dos anos 1960 e 70, e duR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 15 A G L O B A L I Z A Ç Ã O L I B E R A L rante ou imediatamente após os regimes militares e conflitos armados dos anos 1980. Este fato, juntamente com o baixo nível de integração econômica e política dos países latino-americanos no período que se seguiu, inibiu a formulação e implementação de reformas na organização político-administrativa do Estado nacional que respondessem à dinâmica específica da globalização. Em segundo lugar, a noção da “administração de crises” adquire um sentido particular nas cidades latino-americanas. Enquanto as crises que tiveram lugar nas cidades européias e norte-americanas surgiram logo após um período de crescimento estável, altos níveis de emprego, redução das desigualdades sociais e um aparelho público de bem-estar mais ou menos sólido para amortecer seus piores efeitos, na América Latina as crises urbanas neoliberais produziram-se em circunstâncias de reduzido desenvolvimento industrial, altos níveis de desigualdade preexistentes, sistemas de seguridade social de baixa cobertura e com vastos setores da população urbana sobrevivendo na informalidade. Em outras palavras, somavam-se novas crises às já acumuladas, agravadas ocasionalmente pelos preocupantes níveis de violência e a presença de economias ilegais e organizações políticas paraestatais. O NEOLIBERALISMO: A GLOBALIZAÇÃO CAPITALISTA COMO PROJETO DE CLASSE DAS ELITES É precisamente a dimensão sócio-política da globalização e suas práticas de regulação em diferentes escalas geográficas que levaram à crescente utilização do conceito de neoliberalismo, ou melhor, neoliberalizações (Castree, 2006) para a compreensão das especificidades espaciais e territoriais da globalização. A este respeito, um detalhe não menos significante é o fato de que a globalização constitui uma vitória do capitalismo. Durante a maior parte do século passado e até meados dos anos 1980, era perfeitamente admissível postular uma globalização socialista. Mas enquanto os aparelhos burocráticos do bloco soviético iam-se derruindo na própria crise, comparável à crise de acumulação do modelo fordista do regime capitalista, este último encontrou uma saída que, ao mesmo tempo, promoveu a globalização e dela ficou dependente. Esta solução consistiu no crescimento baseado na superação das fronteiras políticas, barreiras econômicas e obstáculos culturais em escala mundial. Ou seja, nascia o projeto neoliberal, entendido como ideologia, estratégia política e tecnologia de governo para facilitar a expansão do mercado e da empresa privada. Muitas análises do neoliberalismo têm enfatizado seu caráter de política econômica, contribuindo, com isto, para dissimular seu caráter histórico e classista. Embora se tenha reconhecido a importância de novas práticas de re-regulação estatal em múltiplos aspectos da vida econômica e social (Brenner e Theodore, 2002), bem como as amplas evidências empíricas dos custos sociais e ambientais, o neoliberalismo se apresenta com certa facilidade como uma evolução natural do capitalismo como modo de produção, na qual a produção de desigualdades sociais e diferenças geográficas é considerada uma dificuldade acidental e transitória. Em contrapartida, Harvey (2005), por exemplo, argumenta que o longo processo de neoliberalização foi um projeto para restaurar o poder político e econômico das elites e das classes dominantes, ameaçado pela crise de acumulação dos anos 1970. O projeto neoliberal, sustenta Harvey, deve ser entendido não simplesmente como um “projeto utópico para a realização de uma perspectiva teórica de reorganização do capitalismo internacional” que, hipoteticamente, beneficiaria a todo o mundo com o crescimento econômico. Ele deve ser visto, ao contrário, como um projeto destinado a restabelecer e 16 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 P E T E R C H A R L E S B R A N D concentrar o poder econômico e político cedido pelas elites no período do Estado keynesiano do bem-estar e que, em razão da crise de acumulação, se achava em situação de extremo perigo. Os efeitos reais do neoliberalismo em termos de concentração de renda e agravamento das desigualdades sociais são amplamente reconhecidos, mas tendem a receber menos atenção nas análises políticas sobre a cidade. No plano urbano, numerosos estudos têm sido dedicados à descrição da espacialização deste fenômeno. A concentração de renda nos setores econômicos e sociais articulados com a globalização resultou em agravamento das disparidades no mercado do solo, fragmentação urbana, segregação socioespacial, implantação de “ilhas” e “arquipélagos” urbanísticos para a expansão dos serviços financeiros, tecnológicos e dos negócios internacionais, condomínios residenciais fechados, mega-projetos infra-estruturais para atender às empresas multinacionais e elites locais, abandono e degradação do habitat das classes populares etc. Tudo isto constituiu, sem dúvida, um eixo principal da recente geografia urbana da globalização na América Latina, tal como a “metropolização” (Prévot, Schapira, 2002; Pírez, 2006), as transformações da estrutura urbana (Janoschka, 2002; Azócar e Henríquez, 2003), os padrões de segregação (Rodríguez, 2004; Hidalgo, 2004), as desigualdades sócio-territoriais (Cariola e Lacabanca, 2001; Rodríguez e Sugranyes, 2004), os espaços exclusivos das elites (Cohen, 2005; Álvarez-Rivadulla, 2006) e as condições de vida (Da Silva, 2003). Até que ponto tais fenômenos são produto direto da globalização ou o resultado de tendências históricas endógenas é um tema de debate (De Mattos, 2002), cuja clarificação é dificultada pelas semelhanças estruturais dos padrões socioespaciais anteriores à plena inserção das cidades na globalização. No entanto, entendida como projeto político das elites, a neoliberalização na América Latina tem outras conotações na escala urbana talvez menos estudadas. Poderíamos citar, entre outras, a teoria neoliberal como discurso legitimador, sua mobilização mediante a tomada dos centros estratégicos de planejamento urbano, o papel dos meios de comunicação, as diversas formas de uso da violência e da repressão como mecanismo de imposição do projeto neoliberal em escala urbana, o autoritarismo, etc. Enquanto temas como o papel das agências internacionais, o conflito, a governança e as práticas participativas passam superfialmente pela questão do poder, são mais escassos os estudos que a encaram abertamente (ver, por exemplo, Restrepo, 2002; Davis, 2006) ou que tenham resultado em estudos empíricos e reflexões teóricas equivalentes, por exemplo, a teoria dos regimes urbanos elaborada em relação à urbanização neoliberal nos Estados Unidos. É possível que as preocupações específicas da América Latina tenham levado a subestimar estes temas no nível urbano. Com as esperanças voltadas para a consolidação da democracia participativa e seus mecanismos institucionais formais, é possível que os estudos urbanos tenham se descuidado da reconfiguração das classes e da promoção dos interesses das elites (favorecidas pela desordem e o declínio dos partidos políticos tradicionais), das alianças entre setores sócio-econômicos, do efeito da política de privatização, da aparição de novos atores tanto públicos como privados no cenário da política urbana, do redirecionamento do investimento público no interesse do grande capital nacional e estrangeiro, das políticas fiscais municipais, etc. Ademais, muitos dos fenômenos espaciais associados com a globalização nas cidades do mundo desenvolvido, tais como a informalidade, a pobreza, a marginalização e as migrações, já existiam nos anos 1980 em forma endógena, freqüentemente mesclados com a existência de economias ilegais, a corrupção e a presença de aparelhos paraestatais. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 17 A G L O B A L I Z A Ç Ã O L I B E R A L Em todo caso, poder-se-ia dizer que ainda está por se elaborar uma análise política sistemática deste tipo voltada para a cidade latino-americana. Existe uma tradição de estudos político-urbanos (sobre a configuração dos partidos, o caciquismo, o clientelismo como mecanismo de poder, os movimentos sociais e a violência, por exemplo) suficientemente forte para que se possa efetuar esta atualização no contexto da globalização neoliberal. Neste sentido, um tema importante tem a ver com a reconfiguração das próprias elites. É certo que, na América Latina, os caciques políticos regionais, as lideranças surgidas com a indústria tradicional e a propriedade da terra se mesclaram e cederam terreno a outros grupos elitistas menos visíveis e menos comprometidos territorialmente. A representação política de seus interesses é, hoje em dia, menos personalizada e mais tecnocrática, concretizando-se através de organizações corporativas capazes de articular e mobilizar os interesses das empresas multinacionais, a indústria local moderna e o setor financeiro, etc., em processos mais complexos de transformação urbana. Esta tecnocratização do poder das elites contribui não somente para a orientação técnica da política urbana em função dos seus próprios interesses de competitividade, mas também implica e requer, na chefia da administração municipal, um novo tipo de líder político urbano, ao mesmo tempo “global” e “local”, “culto” e “popular”, “democrata” e “audaz”, enfim, uma espécie de “mago” capaz de assumir a difícil gestão das contradições da cidade em tempos de neoliberalismo. MATERIALIDADES E SUBJETIVIDADES Por último, convém abordar não somente o tema dos processos e efeitos materiais e espaciais da globalização neoliberal em escala urbana, como também a interrogação suscitada pelo fato de ter sido possível ir tão longe na execução de tal projeto, apesar dos conflitos políticos e custos sociais que implica. Harvey (2005) coloca o problema em termos da “construção do consentimento”, com uma análise que se desenvolve sobretudo em escala nacional. Reconhece que em países como o Chile, o projeto neoliberal se realizou de maneira rápida e brutal mediante um golpe de Estado orquestrado pelos Estados Unidos e levado a cabo pelo ditador Pinochet. Entretanto, argumenta Harvey, na grande maioria dos casos a neoliberalização se realizou de maneira gradual e mediante mecanismos democráticos. É indubitável que, na América Latina e outras regiões, o papel coercitivo das instituições financeiras, como o FMI, e a imposição de políticas de ajuste estrutural freqüentemente se impuseram à vontade democrática nacional. Nas profundas análises em que estuda detalhadamente os casos dos Estados Unidos e do Reino Unido, Harvey não negligencia a escala urbana. No caso norte-americano, destaca a maneira pela qual a crise fiscal da cidade de Nova York, em meados dos anos 1970, deu a oportunidade para se entregar a administração da cidade aos bancos privados, desregular o mercado imobiliário, desativar a força de trabalho organizada, desfalcar os serviços sociais, transformar o emprego em uma responsabilidade individual, criminalizar condutas anti-sociais, etc., numa espécie de iniciativa prototípica de concretização do projeto neoliberal em escala nacional. O caso de Londres foi diferente, pois ali o projeto neoliberal dependia do desmonte de um aparelho estatal de bem-estar muito mais amplo, apresentando-se a escala urbana menos como portadora dos novos horizontes neoliberais do que como um espaço onde se exerciam velhos hábitos. Mesmo assim, na escala urbana, o projeto neoliberal conduziu à dissolução da autoridade metropolitana (bastião do poder intervencionista estatal), à intensificação do controle da cidade por parte do governo nacional, à extensão da influência do centro financeiro internacional, à flexibili18 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 P E T E R C H A R L E S B R A N D zação e ocasionalmente ao desmonte total do sistema de planejamento urbano, à privatização da infra-estrutura e da habitação pública, etc. Estes casos evidenciam a tomada de controle das cidades por parte do governo central e a simultânea entrega aos interesses e organizações capitalistas. As análises de Harvey voltam-se principalmente para os mecanismos políticos de redistribuição do poder, mas também dão ênfase à interação existente entre o avanço deste processo e o apelo a valores culturais nacionais como liberdade, responsabilidade, oportunidade, justiça, sentimento religioso, etc, modificando o seu sentido prático em situações de mudança social radical. Na América Latina, sem dúvida, tem sido mais difícil concretizar esta articulação, o que se reflete na instabilidade política, na violência e na oposição aberta à globalização neoliberal. O processo de neoliberalização, evidentemente, mais do que uma simples questão de ideologia e de teoria econômica, também tem a ver com a transformação das relações sociais, a experiência cotidiana, a formação de subjetividades e a criação de identidades. A construção do consentimento foi facilitada, sem dúvida, pela “desconfiguração” das instituições do Estado e organizações sociais estáveis como os partidos tradicionais, os sindicatos e as comunidades. Mas também influenciou o discurso neoliberal, enquanto esfera ideológica na qual se constrói e se mobiliza o sentido comum juntamente com as maneiras aparentemente “óbvias” de entender o mundo, os problemas atuais, as aspirações e os caminhos legítimos para alcançá-las, os horizontes do futuro e o lugar do indivíduo no novo esquema neoliberal. A partir desta perspectiva, foram analisadas a globalização (Cameron e Palan, 2004), a cidade empresarial (Jessop, 1999) e muitos outros fenômenos da neoliberalização como narrativas. As opções analíticas abertas por tais perspectivas são amplas e não cabe aqui uma abordagem sistemática do tema, que se limitará simplesmente à indagação geral sobre o significado da escala urbana como lugar de formação de subjetividades. Se a escala nacional é percebida em seu papel de mero facilitador no processo de globalização e como entidade abstrata na formação de identidades coletivas e individuais – em vários países abriram-se, de fato, amplos debates sobre o que significa ser “inglês” ou “francês”, por exemplo –, ao passo que as cidades-região assumem um papel cada vez mais predominante – porém não necessariamente mais determinante – na vida social, seria de se esperar que as cidades voltassem a ser lugares privilegiados para a formação de subjetividades em condições de globalização. Tal situação ofereceria, além disto, novas possibilidades de aproveitamento político, no que se refere à readaptação dos cidadãos em função das oportunidades globais e das limitações locais. A cidade se converteria no lugar privilegiado para se construir a legitimidade governamental, a solidariedade territorial e o cidadão submisso, mediante estratégias locais baseadas na reconstrução de noções como cidadania, direitos e deveres do cidadão, formas legítimas de participação, responsabilidade individual, relação com a autoridade, expectativas frente às instituições e a esfera pública. AS ESTRATÉGIAS URBANAS NA COLÔMBIA: CONTRIBUIÇÃO A UMA REVISÃO CRÍTICA Na parte anterior deste trabalho, foi esboçado o debate sobre o “re-escalamento” e assinalados alguns pontos de maior relevância para o entendimento das políticas e práticas do governo local. Nesta seção, pretende-se explorar a pertinência dos argumentos deR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 19 A G L O B A L I Z A Ç Ã O L I B E R A L rivados das propostas gerais do “re-escalamento”, com referência à experiência das grandes cidades colombianas. Na análise a seguir destacam-se os seguintes aspectos: • A relação entre as escalas urbana e nacional: a orientação nacional das políticas de competitividade, as iniciativas urbanas perante a globalização, a incidência da distribuição territorial do poder político, as configurações e relações institucionais, as culturas locais perante o empreendimento, etc. • A concentração do poder e o papel das elites urbano-regionais: a reconfiguração do poder urbano, a composição e o papel das elites, as estratégias adotadas para impor e legitimar os interesses de classe, a orientação do investimento público, suas implicações em termos de eqüidade socioespacial, a noção de cidadania, etc. • As políticas urbanas como “administração de crises”: formas simbólicas de criar novos sentidos de unidade e coerência territorial, a renovação urbana, a arquitetura e a infraestrutura, o espaço público, a cidade como espetáculo e cenário de atos culturais, a ordem pública e o exercício da autoridade, etc. Uma revisão crítica dentro desta ordem de idéias atua como contrapeso à fetichização da cidade no processo de globalização. Criou-se a impressão de que o futuro das cidades depende somente delas, de sua capacidade endógena de transformação, inovação e liderança. Ainda que esta fetichização da cidade seja uma característica geral da globalização, na Colômbia ela foi acentuada pelo forte sentido regionalista que existe no país, juntamente com o processo extraordinário de reconstrução de imagens e imaginários urbanos, especialmente nas cidades de Bogotá e Medellín, ao lado de casos igualmente notórios, mas opostos, de degradação de cidades grandes como Cali e Barranquilla através de crises profundas e prolongadas. A aparição de um tipo de líder político à frente da administração das cidades (prefeitos independentes, inovadores e carismáticos na sua forma de governar) também reforçou a sensação de uma autonomia funcionalista das cidades perante a globalização, na qual se descartam as trajetórias urbanas, os condicionamentos culturais e as articulações nacionais e internacionais como fatores significativos. AS BASES PRINCIPAIS DA POLÍTICA URBANA NA COLÔMBIA Em contraste com países como Chile, México, Brasil e Argentina, a plena inserção da Colômbia nos circuitos da globalização e a adoção de políticas neoliberais tiveram início tardiamente, no início da década de 1990. Embora seja certo que a indústria manufatureira tradicional teve problemas na década anterior, o país manteve algumas medidas protecionistas e evitou as grandes crises econômicas e a hiperinflação que tanto afetou a outros países da região. Por sua vez, certa estabilidade fiscal e monetária permitiu que a Colômbia chegasse a acordos menos rígidos com o FMI e os bancos internacionais. Somente a partir do governo de César Gaviria (1990-1994) foi empreendida com seriedade a política de “abertura econômica”. Ainda assim, o processo foi gradual, e não houve uma onda massiva de privatizações nem mudanças radicais na organização institucional do Estado, fenômeno que somente se verificaria no começo do novo século. O que houve na Colômbia foi, mais propriamente, uma crise de ordem política, estreitamente associada com o problema do narcotráfico: a penetração das máfias em todas as instâncias políticas, econômicas e civis, o estabelecimento de controles territoriais e aparelhos paraestatais nos bairros populares e o aprofundamento de uma situação crônica de violência. Tamanha foi a gravidade, que em 1990 se convocou uma assembléia constituinte numa tentativa de salvaguardar as estruturas políticas e institucionais. Entre ou20 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 P E T E R C H A R L E S B R A N D tras coisas, a nova Constituição Política de 1991 aprofundou o processo de descentralização que havia se iniciado nos anos 1980, outorgando aos municípios uma boa dose de autonomia e uma extensa participação no orçamento nacional, e ampliando consideravelmente os mecanismos de participação cidadã nos assuntos locais. Contra este pano de fundo se desenvolvia a política nacional de competitividade urbana, que não teve maior relevância até meados dos anos 1990. Desde finais dos anos 1980, o governo nacional havia começado a impulsionar a criação de um quadro normativo e institucional destinado a modernizar a economia mediante mecanismos concebidos para acelerar e ampliar a abertura econômica, o comércio exterior, o investimento estrangeiro direto, o mercado de capitais e o mercado de trabalho nacional. Também neste período, o setor privado deu início a uma série de estudos prospectivos relacionados com a inserção da Colômbia na economia global, sob a coordenação das Câmaras de Comércio das grandes cidades. Entretanto, a dimensão territorial ficou relativamente esquecida. Esta situação foi remediada com a realização, entre 1995 e 1998, de uma série de estudos sobre a competitividade nacional e das grandes cidades, contratados pela firma norteamericana Monitor, de Michael Porter. Adicionalmente, o governo nacional instituiu, em 1995, a política nacional urbana denominada Cidades e Cidadania, que se apropriou das idéias em circulação naquele momento sobre o papel da cidade como “a força motriz do desenvolvimento”. A última iniciativa estratégica foi a formulação, em 1999, da Política Nacional para a Produtividade, a Competitividade e as Exportações, com um forte componente regional representado pelos Planos Estratégicos Exportadores Regionais (PEER), elaborados pelas cidades sob as diretrizes do Ministério do Comércio Exterior, que por sua vez convocou os Comitês Assessores Regionais de Comércio Exterior (CARCE) para sua formulação. Controlados efetivamente pelas Câmaras de Comércio (ver Brand e Prada, 2003), tais comitês estavam, em princípio, abertos a todos os setores nas diferentes regiões em que houvesse “pessoas abertas a paradigmas e idéias distintas” (leia-se figuras de inclinação neoliberal). Os fatos acima foram objeto de estudo, mas são poucas as análises, entre os estudos urbano-regionais e de planejamento, que os submetem a um exame crítico rigoroso. O assunto mais óbvio do ponto de vista técnico diz respeito à crescente influência do setor privado na formulação da nova geração de planos de desenvolvimento territoriais inspirada na competitividade, especialmente aqueles de ordem estratégica que definem as linhas tanto discursivas como programáticas e de investimento público por meio de macro-projetos. Claramente se pôs em evidência a manifestação do novo poder das associações do setor privado na direção das cidades. Isto significou o ocaso definitivo dos caciques políticos tradicionais e líderes civis patriarcais de outrora; a partir desse momento, o empresariado privado começa a operar corporativamente e mobiliza seu poder no interior do sistema tecnocrático e participativo de planejamento, fazendo-o em nome da sobrevivência das cidades, mas agindo, de fato, em defesa de seus próprios interesses políticos e econômicos nas condições criadas pela globalização. Outro tema de interesse está relacionado com as transformações ocorridas no processo de planejamento. Atos legislativos que datam também de meados dos anos 1990 introduziram, entre outras coisas, medidas para separar os programas de governo dos prefeitos e os planos de desenvolvimento territorial, obrigando os primeiros (de 3 ou 4 anos) a acomodarem-se aos segundos (de prazo mais longo e formulação participativa), e criaram, ao lado de mecanismos de supervisão e prestação de contas, instrumentos de intervenção no mercado do solo. Tudo isto despertou um inusitado interesse público pelo plaR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 21 A 3 A apresentação das atuais políticas e projetos de cada cidade pode ser encontrada nas respectivas páginas web oficiais: www.bogota.gov.co; www.medellín.gov.co; www.cali.gov.co; e www. alcaldiabarranquilla.gov.co. Também se pode encontrar informação valiosa em: www. bogota.comovamos.org e www. medellin.comovamos.org. 4 “A Bogotá que Sonhamos”. Informe Monitor/Câmara de Comércio de Bogotá, 1997, Resumo executivo. G L O B A L I Z A Ç Ã O L I B E R A L nejamento urbano, cujas características e conseqüências merecem uma maior indagação. É certo que, pelo menos nas grandes e médias cidades, as expectativas em torno dos novos planos resultaram em uma ampliação da participação cidadã, permitindo atrair amplos setores sociais para o discurso da competitividade e obtendo também a adesão de setores críticos como as ONGs e as universidades, por meio da atribuição de postos burocráticos, consultorias e assessorias. Enquanto se impulsionava a modernização da infra-estrutura (aeroportos, estradas, comunicações, centros de negócios, etc.), dentro de um processo heterogêneo de privatizações e concessões também dos serviços públicos, produziram-se situações críticas em questões como a moradia, o acesso a serviços de saúde, a crescente precariedade do mercado de trabalho, o aumento da pobreza e a miséria. Isto nos leva ao terceiro ponto, relacionado com a caracterização das políticas urbanas como administração da crise. O Estado neoliberal operou um redirecionamento territorial das responsabilidades pelo bem-estar econômico e social para os municípios, ao passo que lhes retirou os instrumentos tradicionais que o asseguravam. Evidentemente, a reconstrução da noção de bem-estar tinha que ser buscada dentro da lógica própria do neoliberalismo, que incluía o mercado, a inovação, o empreendimento, as responsabilidades individuais etc., e em meio ao empobrecimento da vida material e econômica de amplos setores da população e a uma acelerada fragmentação socioespacial. O êxito de tal empresa dependia, então, do reposicionamento da noção urbana de bem-estar no mundo simbólico; daí o reiterado discurso sobre a cidade e os direitos e deveres da cidadania, os símbolos arquitetônicos e infra-estruturais, a conversão do espaço público em cenário de espetáculo. Isto requeria um novo tipo de prefeito, relativamente independente das estruturas partidárias tradicionais, culto e experimentado em matéria de globalização, e capaz de manejar convincentemente os instrumentos da cultura local. Estes temas serão comentados a seguir, muito brevemente, tendo como referência as quatro maiores cidades da Colômbia.3 O CASO DE BOGOTÁ Capital e principal cidade da Colômbia, com uma população de aproximadamente sete milhões de habitantes, Bogotá apresentava condições urbanísticas lamentáveis para enfrentar os desafios da globalização. No início dos anos 1990, Bogotá ainda contava com uma infra-estrutura e equipamentos deficientes, um sistema de transporte caótico e apresentava um quadro de degradação física e social especialmente acentuada no centro. Em um comentário do Informe Monitor lê-se que: O problema fundamental [de Bogotá] não está na baixa qualidade de vida, nem em sua escassa conectividade com a economia global, nem na deficiente capacidade de seus recursos humanos. O problema que impede a cidade de ser competitiva é muito mais profundo: Bogotá carece de uma visão sobre o que pretende ser e onde quer se posicionar no mundo. Bogotá pode solucionar seus problemas de insegurança, reorganizar seu sistema de transporte e suas finanças, mas se a cidade não consegue visualizar o que deseja ser, seguramente não vencerá o desafio de se converter em uma cidade global capaz de oferecer prosperidade a seus cidadãos e cidadãs.4 Não obstante a típica fetichização da cidade e as falácias sociais da competitividade, este informe de alguma forma acertou em seu diagnóstico no que diz respeito à crise de identidade e direção da cidade. A recuperação de Bogotá na última década foi bastante reconhecida internacionalmente, a partir de um esforço mais ou menos contínuo basea22 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 P E T E R C H A R L E S B R A N D do no saneamento fiscal, no assentamento de uma “cultura cidadã”, nos macro-projetos infra-estruturais e de equipamentos, e no manejo do espaço público. Esta transformação foi impulsionada por uma nova estirpe de prefeitos – Antanas Mockus, intelectual e exreitor da Universidade Nacional da Colômbia, e Enrique Peñalosa, jovem e entusiasta urbanista pertencente à elite de Bogotá, que tanto se sente em casa em Nova York como em Bogotá (Dávila e Gilbert, 2001). No entanto, para entender integralmente o ressurgimento de Bogotá, haveria que se levar em conta, ainda, a sua posição privilegiada como capital, sua facilidade de acesso às instâncias de governo nacional e internacional, o fato de constituir um elo na internacionalização da economia e centro financeiro, e as políticas de segurança implementadas. Ainda assim, cresceram os problemas de pobreza, desigualdade e segregação socioespacial, apenas reconhecidos nos últimos anos pela administração centro-esquerdista de “Lucho” Garzón. O CASO DE MEDELLÍN Segundo o Informe Monitor para a segunda cidade da Colômbia, cuja população ultrapassa dois milhões de habitantes: Medellín é uma cidade de economia robusta, com um nível aceitável de tomada de riscos, acesso a capital mais barato, e indústrias de apoio em vários setores, mas ainda marcada pela ausência de formação especializada em tecnologia, negócios e inovação que a leve a uma nova fase de desenvolvimento.5 Sem dúvida, Medellín contava com um setor empresarial organizado, capaz de reestruturar-se e influenciar fortemente nas políticas e nos macro-projetos urbanos. Como Bogotá, também contava com instituições públicas de planejamento capazes de materializar o projeto da competitividade. Entretanto, o desafio principal para Medellín nos anos 1980 e 90 foi sair dos altos níveis de violência que a situaram como a cidade mais violenta do mundo, em boa parte devido aos cartéis de narcotráfico estabelecidos na cidade. A combinação da audácia política com a liderança empresarial, a solidariedade regional e a capacidade de se inserir em redes internacionais com ou sem a intervenção do governo central, permitiram que Medellín enfrentasse com êxitos os desafios da globalização (ver Franco, 2005). Por outro lado, esta inserção nos circuitos globais foi alcançada logo após a superação de uma crise social sem precedentes, de tal maneira que os conflitos posteriores, diretamente relacionados com a competitividade neoliberal, pareciam de menor importância, sendo habilmente monitorados, em primeiro lugar, através de uma estratégia ambiental (Brand, 2005) e, em seguida, por meio de uma versão própria de “cultura cidadã”, renovação urbana e espetáculo. Ainda que nas primeiras etapas tenham sido importantes as lideranças políticas tradicionais, uma vez controlada a crise da ordem pública, apareceram prefeitos jovens provenientes das universidades e das instituições vinculadas à pesquisa, quer em aliança com as classes políticas tradicionais, quer com base em um bem-sucedido movimento cívico independente. OS CASOS DE CALI E BARRANQUILLA A terceira e a quarta cidades do país, com população total estimada em três milhões de habitantes (dois milhões em Cali e um milhão em Barranquilla), se caracterizam pelas R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 23 5 “Construyendo la ventaja competitiva en Medellín”. Informe Monitor/Câmara de Comércio de Medellín, 1996. A G L O B A L I Z A Ç Ã O L I B E R A L dificuldades de inserção nos circuitos da globalização. São casos distintos, que têm em comum a decadência das elites locais, a corrupção e os conflitos políticos locais. Além disso, enquanto as cidades de Bogotá e Medellín rapidamente solucionaram o problema de suas finanças públicas, Cali e Barranquilla entraram, nos anos 1990, em um longo período de crises fiscais que, continuando no novo século, limitaram ainda mais qualquer tentativa de competitividade. No caso de Cali, a emergência dos novos cartéis do narcotráfico em plena abertura econômica teve efeitos nefastos que minaram a economia, marginalizaram as classes políticas tradicionais e arruinaram as anteriormente sólidas instituições públicas. Já em Barranquilla, como principal porto colombiano na costa caribenha, teria sido possível esperar uma dinamização da economia a partir da globalização, mas esta nunca se materializou. Seria uma simplificação abusiva atribuir o fato às administrações populares eleitas nos anos 1990 (ver Sáenz e Rodríguez, 1999), pois a empresa privada já controlava o porto e os serviços públicos, e o governo central interveio cada vez mais nos assuntos internos da cidade. Tanto no caso de Barranquilla como no de Cali, cabe se perguntar, entre outras considerações, sobre o papel das culturas regionais nas esferas política e empresarial dos setores tradicionais das economias urbanas (menos abertos que em Bogotá e Medellín), sobre as trajetórias urbanas, sobre o posicionamento de cada cidade com relação aos governos centrais, sobre os efeitos de novos grupos ilegais associados ao narcotráfico e, mais recentemente, sobre o para-militarismo. Nesta breve discussão da experiência das quatro principais cidades da Colômbia chamamos a atenção, ainda que muito esquematicamente, para a presença das múltiplas interseções da globalização em termos de dinâmica e regulação multiescalar da vida econômica, política e social. Frente à tendência geral da fetichização da cidade, notam-se alguns fatores supra-urbanos que matizam o significado desta escala espacial. O caso colombiano parece indicar o papel reduzido da escala nacional, embora análises mais sistemáticas venham a considerar de forma mais detalhada sua função reguladora em relação às condições de operação da empresa privada e o mercado de trabalho. Alguns dos fatores que mais sobressaem em escala urbana são o papel das elites locais e a capacidade gerencial dos novos líderes políticos locais. Afinal, se a globalização neoliberal é um projeto das elites, a adequada configuração destas no plano urbano-regional e a presença de prefeitos simultaneamente globais – e enraizados na cultura regional – em sua formação seriam apenas uma condição lógica do êxito da “glocalização” em um lugar concreto e determinado. Há de se lembrar também que a inserção global e a busca da competitividade urbana se desenvolvem com o problema, especialmente agudo na América Latina, da pobreza e da desigualdade socioespacial. Conseqüentemente, a “administração da crise” urbana implica o sempre delicado balanço entre as condições materiais e as formas simbólicas do bem-estar das populações urbanas, a aplicação de novas tecnologias de governo e o uso da repressão. COMENTÁRIOS FINAIS O objetivo deste trabalho foi o de revisar a questão do “re-escalamento” e indagar sua pertinência e possíveis contribuições para a análise das estratégias de desenvolvimento urbano. De um modo geral, tanto na Colômbia como na América Latina em geral este tema tem relativamente recebido pouca atenção. Tentou-se demonstrar aqui que é possível contribuir com elementos úteis para reestimular a análise do Estado e o estu24 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 P E T E R C H A R L E S B R A N D do das políticas urbanas, particularmente quanto a diferentes variações de escala relativas ao desenvolvimento urbano, ao desmascaramento do caráter elitista das políticas de competitividade e às formas de legitimação dos governos locais na administração da crise urbana. Esta aproximação limitou-se a algumas observações gerais, às quais se acrescentou alguma exploração preliminar do caso da Colômbia e suas cidades principais. Nota-se que a experiência da América Latina foi extremamente diferente no que diz respeito ao modo e ritmo de inserção na globalização neoliberal. Desde o caso do Chile e as demais ditaduras do Cone Sul, passando pela integração do México, cuja particularidade está na sua situação fronteiriça com os Estados Unidos, os radicalismos dos países do Pacto Andino e as saídas divergentes da América Central, existem diferenças, dependências e experiências muito heterogêneas, tanto dentro de cada sub-região como entre elas. Por outro lado, no novo milênio surgiram resistências nacionais à globalização neoliberal, assim como inovações significativas na administração progressista da crise urbana. Entretanto, não se consolidou ainda um “projeto latino-americano” de integração econômica, e o futuro das cidades se debate entre correntes multiescalares complexas e indeterminadas. A democracia formal continua sendo uma preocupação compreensível de muitos estudos urbano-regionais, em meio ao que aparenta ser uma organização territorial do Estado relativamente estável. Entretanto, a tese do “re-escalamento” consiste não somente na “re-calibração” das relações entre o Estado nacional e as instâncias locais, como esta “re-calibração” se relaciona com a reconfiguração das múltiplas escalas e formas de regulação nas condições da globalização neoliberal, fenômeno que se verifica independente de o arcabouço político-administrativo nacional ter que passar por reformas territoriais. Isto significa a oportunidade de abordar em um novo contexto também os temas da descentralização e participação cidadã, assim como as crescentes preocupações com a desigualdade socioespacial e a fragmentação urbana. Finalmente, embora seja certo que a globalização impõe uma agenda de competitividade única em seu caráter estrutural, também obriga que cada cidade elabore sua estratégia própria de articulação com os circuitos globais e administre sua crise interna particular. No caso da América Latina, a ausência de uma escala continental intitucionalizada, comparável com a União Européia ou o NAFTA, por exemplo, acentua o papel que devem assumir as administrações urbanas. Entretanto, isto não quer dizer que estas atuem sem restrições nem condicionamentos. Os governos nacionais continuam cumprindo um papel fundamental de intermediação entre a escala urbana e os mercados internacionais, os organismos financeiros da globalização e as agências multilaterais de desenvolvimento. Por outro lado, as tradicionais políticas regionais e as trajetórias urbanas também condicionam a capacidade de atuação das cidades, e disso decorre a importância de um novo tipo de líder político urbano, capaz de manejar a complexidade destas múltiplas intersecções da globalização que se produzem na escala urbana. A investigação comparativa seria um caminho viável para explorar este fenômeno em profundidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÁLVAREZ-RIVADULLA, M. J. 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This paper examines the Latin American city in the light of the theoretical debate on the reconfiguration of scalar hierarchies and interrelations produced by globalization. It then goes on to review the recent experience of some Colombian cities, with special reference to the themes of state reorganization, planning policy, urban governance and spatial restructuring. The paper concludes with some suggestions concerning a research agenda. K E Y W O R D S Globalization; geographic re-scaling; neoliberalism; urban development; Latin America. 28 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 PLANEJAMENTO DO ECONOMICISMO MODERNO À DIALÉTICA SOCIOESPACIAL LUCAS LINHARES R E S U M O A teoria e a práxis do planejamento, nas sociedades capitalistas modernas, refletem a consolidação de um modelo de racionalidade fundado numa visão mecanicista dos processos sociais. A matriz positivista da ciência – que busca enunciar (e predizer) os fenômenos sociais por meio de leis universais – alcançou posição hegemônica e assentou as bases do planejamento moderno. No campo da Economia Política, dominada pela perspectiva mecanicista embutida na corrente neoclássica, a busca da construção de esquemas teóricos generalistas confere ao espaço, enquanto categoria analítica, um papel secundário. O presente artigo propõe inicialmente uma discussão epistemológica, buscando avaliar criticamente o significado da incorporação de um paradigma economicista e mecanicista por parte da teoria do planejamento. Entrecortando a discussão epistemológica, procuramos, amparados na perspectiva teórica neomarxista, reafirmar o papel do espaço como categoria elementar à compreensão dialética da dinâmica capitalista, sem a qual uma teoria do planejamento incorreria em importante lacuna. O reconhecimento de que as contradições do modo de produção devem ser desvendadas pela investigação do espaço socialmente engendrado é capaz de nos conduzir a uma teoria social mais robusta no balizamento do planejamento. PA L AV R A S espaço social. - C H AV E Planejamento; dialética socioespacial; modernidade; INTRODUÇÃO O planejamento da coisa pública (res publica), envolvendo as instâncias social, econômica e espacial, é objeto de atenções e intenções desde a antigüidade. Pensadores do quilate de Platão e Aristóteles tinham na política o arcabouço teórico-prático que fundamenta a atuação do Estado enquanto organismo de governo. Nessa concepção, o principal desígnio do Estado é encontrar a forma de vida ideal, que conduza os cidadãos à virtude e ao seu objetivo supremo: a felicidade. A política, na definição aristotélica, é a ciência da felicidade humana. Ademais, o corpus teórico-prático aristotélico considerava a cidade (polis) como o objeto por excelência da política, donde decorre que o meio concebido para o alcance da felicidade passaria necessariamente pela organização da polis, o espaço dos cidadãos. Observamos, pois, que Aristóteles revelava já naqueles tempos a percepção de que a felicidade da coletividade humana é condicionada à edificação de formas socioespaciais adequadas; formas essas que deveriam ser fomentadas e asseguradas pelo Estado. Assim, identificamos na obra do filósofo estagirita incursões pioneiras no campo do planejamento, ainda que sem o caráter que a modernidade positivista conferiu à matéria séculos mais tarde. Uma vez que se apresentavam esquemas teóricos que requeriam para si o status científico, e que visavam ao balizamento de atuações no campo da praxis, começava a ser sedimentada a idéia do planejamento socioespacial, que, sob o epíteto genérico de política, versava R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 29 P L A N E J A M E N T O sobre os destinos da polis e, por conseguinte, sobre os destinos da reprodução social e material da humanidade, envolvendo uma dimensão espacial inescapável. Não obstante, a modernidade interpôs ao germe aristotélico forças contrárias de reação, tanto no plano epistemológico quanto no plano político. Tais forças significaram a tomada das ciências sociais pelo positivismo, que trazia embutida a primazia do indivíduo em detrimento da coletividade e a emergência do liberalismo como doutrina social que garantiria aquela primazia. No campo da economia política, embora a penetração do paradigma positivista tenha se dado retardatariamente, verificamos a consolidação hegemônica de um modelo de racionalidade fundado numa visão mecanicista da sociedade, como se esta obedecesse aos mesmos ditames das ciências naturais. É justamente a essa “física social” que vai sucumbir o planejamento nas sociedades capitalistas da modernidade. Em última instância, no esquema teórico mecanicista clássico, a racionalidade do(s) mercado(s) era imposta como virtuosa na consecução dos objetivos sociais, o que tinha como contrapartida, no plano político, a legitimação da ordem liberal-individualista. A suposta existência de indivíduos racionais maximizadores garantiria uma tendência inexorável ao “ótimo social”, donde deriva que as ingerências de instrumentos extra-mercado significariam um obstáculo à “harmonia natural dos interesses”. Diante desse quadro, em que a economia política – dominada pela perspectiva da física social embutida na matriz neoclássica – buscava a construção de esquemas teóricos generalistas, o espaço enquanto categoria analítica foi relegado a segundo plano, ao mesmo tempo em que o planejamento reduzia seu escopo ao mínimo, uma vez que, neste mundo ideal, sua presença era praticamente dispensável. É sabido que a extensão do capitalismo urbano-industrial como modo de produção e reprodução social às mais diversificadas partes do mundo pauta-se por heterogeneidades. A dinâmica do capital no espaço é marcada por uma dualidade centro-periferia, que concentra oportunidades de desenvolvimento em alguns pontos, mantendo outros à margem das benesses do sistema. Considerando as partes do mundo em que as contradições do capitalismo imprimem uma realidade especialmente adversa, pautada por graves desequilíbrios sociais, econômicos e espaciais, como é o caso do Brasil, cumpre investigar em que medida a matriz epistemológica que formou o alicerce do planejamento na modernidade, bem como seus desdobramentos sobre os esquemas teóricos e práticos contemporâneos, oferecem subsídios para compreender e superar tais adversidades. Buscamos, portanto, discutir a possibilidade teórica do planejamento e do desenvolvimento. Para tanto, encetamos uma visão segundo a qual o planejamento contempla pelo menos três instâncias: economia, sociedade e espaço. As especificidades do modus operandi dessas três instâncias articuladas explicam a condição de (sub)desenvolvimento. A análise dialética das estruturas sociais, econômicas e espaciais historicamente engendradas fornece elementos para a compreensão da realidade social periférica, constituindo um ponto de partida para pensar os mecanismos de sua superação. Uma análise dessa natureza exige uma apreciação crítica das teorias e políticas do desenvolvimento hegemônicas, afeitas às teleologias generalistas. É nesse substrato teórico-político, sucintamente descrito acima, que o presente texto se planta. Inicialmente, realizamos uma discussão de cunho epistemológico, ou seja, teorizamos sobre a própria ciência, buscando perscrutar as matrizes científicas que informaram o planejamento na modernidade. Nessa ambiência discursiva, discorremos acerca 30 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 L U C A S L I N H A R E S dos impactos da penetração do positivismo nas ciências sociais, e particularmente na economia, sobre a teoria do planejamento. A incorporação de um paradigma economicista e mecanicista pelo planejamento significou, contraditoriamente, seu próprio fenecimento, uma vez que tal paradigma veio a legitimar o liberalismo. Entrecortando a discussão epistemológica, procuramos reafirmar o papel do espaço como categoria elementar à compreensão da dinâmica capitalista, sem a qual uma teoria do planejamento incorreria em importante lacuna. Com esse propósito, absorvemos dos teóricos neomarxistas elementos para trazer o espaço ao primeiro plano da compreensão dialética da realidade social. A configuração econômico-social é, por princípio, um corpo sistêmico espacialmente referenciado. Mais do que a “cartografia cartesiana da ciência espacial”, que não permite ir além da superficialidade concreta do espaço, é preciso aprofundar a substância teórica, reconhecendo a relação dialética entre a configuração espacial e os processos sociais e econômicos; nesse sentido ampliando a discussão sobre planejamento em torno da idéia mais ampla de uma “economia política da produção social do espaço”, adutora da dialética socioespacial. Sob essa perspectiva, herdada de Henri Lefebvre, o espaço torna-se a categoria privilegiada para entender a realidade social. Na medida em que o espaço é concebido como instância realizadora do capital, uma vez que este conforma aquele à lógica de reprodução do sistema, começam a ser reveladas as relações sociais dialeticamente embutidas na configuração espacial. A EPISTEMOLOGIA DO PLANEJAMENTO NA MODERNIDADE O embrião das atividades de planejamento sócio-político, econômico e espacial pode ser identificado, a exemplo de boa parte do conhecimento em ciências sociais, na Grécia Antiga. Simultaneamente aos pródromos de tal exercício político, nasceu o embate de idéias acerca de qual seria a melhor sistemática para tratar das questões de interesse geral, do governo da res publica. A Academia platônica era partidária da investigação científica de índole matemática como o pavimento mais sólido para a ação política. A atividade humana, sob essa perspectiva, “requeria uma ciência (episteme) dos fundamentos da realidade na qual aquela ação está inserida”.1 Destarte, o ideário platônico requeria um arcabouço referencial com status científico, construído pela busca de verdades essenciais sobre o universo. Aristóteles de Estagira, célebre filósofo que ainda hoje calça o alicerce do ethos e do logos ocidentais, formou-se na Academia platônica, incrementando-a com seu espírito investigativo de observação e uma perspectiva um tanto naturalista. Em sua obra denominada Política, Aristóteles argumenta que o Estado deve se constituir como um organismo moral, procurador da virtude de seus concidadãos. Nesse sentido, a política é a doutrina moral social, coletiva, sobreposta à ética individual e aos interesses particulares. Se a coletividade é superior ao indivíduo, por um artifício lógico que o próprio Aristóteles desenvolveu, o Estado, mandatário da coletividade, tem ascendência sobre qualquer cidadão individualmente. Sob esse prisma, o desígnio primeiro da atividade política seria elucidar a melhor forma de vida que conduza à felicidade, para ulteriormente engendrar a forma de governo e as instituições sociais garantidoras daquela forma de vida à coletividade. Esta última tarefa diz respeito ao estudo da constituição da cidade, donde podemos identificar no corpus aristotélico uma das primeiras incursões sistematizadas no campo do plaR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 31 1 Aristóteles – Vida e Obra. São Paulo: Nova Cultural, 2000. P L A N E J A M E N T O nejamento que, uma vez político, versa sobre os domínios da polis, revelando-se, por conseguinte, indissociável e eminentemente espacial. A cidade, assim como a práxis política, não escapam ao naturalismo aristotélico; ambas seriam decorrências naturais da condição humana enquanto “animal social”. Além disso, subjacente a todo esse organismo considerado natural, desvela-se o aspecto coletivista, a ser comungado pelos cidadãos. Nos dizeres do filósofo, “na ordem natural a cidade tem precedência sobre a família e sobre cada um de nós individualmente, pois o todo deve necessariamente ter precedência sobre as partes” (Aristóteles, 1997, p.15). Logo nos primeiros excertos de Política, Aristóteles se propõe a decompor essa realidade totalizante que é a cidade, com vistas a deslindar analiticamente seus elementos constituintes fundamentais, o que permitiria compreender os meandros da comunidade política. A cidade é, assim, pioneiramente vista e conceituada como organismo-síntese do sistema sócio-político. Lemos no capítulo 1 do livro primeiro: 2 Aristóteles atribui a Hipódamo de Mileto a invenção da arte de planejar cidades e tece muitas considerações também acerca dos escritos pioneiros de Platão sobre a matéria, contidos principalmente em Leis e República. No entanto, Aristóteles desfere muitas críticas contra as proposições dos dois pensadores, aponta suas muitas lacunas, e reivindica para si a constituição mais bem estruturada acerca da cidade, em que contempla com pormenores os múltiplos aspectos da vida social, tais como as questões atinentes aos âmbitos jurídico, demográfico, econômico e político, além de discorrer sobre a localização e o traçado urbanístico ideais para a cidade, segundo critérios geomorfológicos e climáticos e também sob o ponto de vista da estratégia militar. No capítulo 4 do livro sétimo de Política, Aristóteles propugna a favor do equilíbrio na constituição demográfico-territorial da cidade. Esta deveria ser suficientemente extensa e populosa para garantir a eficiência e a auto-suficiência econômicas, sem romper o limite que permite adequada coesão social e gestão política: “(...) deve-se então considerar mais perfeita e mais bela a cidade na qual a magnitude é combinada com boa ordem” (Aristóteles, 1997, p.230). Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam a algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas, e que inclui todas as outras, tem mais que todas esse objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política (...) Da mesma forma que em outras matérias é necessário decompor o conjunto até chegar a seus elementos mais simples, com a cidade também, examinando os elementos dos quais ela se compõe, discerniremos melhor, em relação a estas diferentes espécies de mando, qual é a distinção entre elas, e saberemos se é possível chegar a uma conclusão em bases científicas a propósito de cada afirmação feita pouco antes. (Aristóteles, 1997, p.13) Infere-se assim que Aristóteles busca aplicar seu método lógico-analítico ao exame dos elementos constituintes da cidade, de sua realidade social, econômica, espacial. Nesses termos, o que o filósofo estagirita faz não é outra coisa senão planejamento. Mais do que isso, faz planejamento de caráter espacial, urbano, ao aduzir sobre a disposição ideal de todo o organismo social assentado na cidade, reconhecendo que os processos sociais estão incrustados no plano espacial, e o espaço da cidade exerce influência sobre a conformação social. Assim, Aristóteles identifica a cidade com a comunidade política e ainda vai além, ao conferir às suas análises e propostas um caráter científico, reclamando para si a edificação de um arcabouço teórico que versa sobre a complexa célula espacial mestra da organização social, qual seja, a cidade. Suas proposições trazem, portanto, o reconhecimento de que o (proto)planejamento envolve ciência e ação política, teoria e prática, prenunciando um porvir sobre o caráter que a matéria virá a assumir nos ulteriores tempos hodiernos.2 Essa viagem no tempo e no espaço rumo à Grécia antiga tem tão somente o propósito prosaico de revelar a presença importante que a verve do planejamento teve – ainda que sem essa alcunha e sem o sentido que a ciência moderna lhe conferiu séculos mais tarde – na organização socioespacial das populações humanas desde a antigüidade. A política, segundo Aristóteles, pertence ao grupo da filosofia prática, que busca o conhecimento como um meio para a ação, o que vai ao encontro da concepção moderna de planejamento. A cidade-estado deveria, assim, constituir um aparato institucional cujas práticas ajam na condução da comunidade de cidadãos ao objetivo máximo e sentido último da existência, isto é, à felicidade. O organismo político tem como incumbência planejar a melhor conformação social que permita alcançar esse alvo em sua plenitude. 32 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 L U C A S L I N H A R E S No entanto, os meios para atingir os fins da comunidade política são raramente consensuais, o que origina embates num campo de muitas controvérsias. Não obstante o referido planejamento, identificado sinonimicamente com a teoria e a práxis políticas, tenha sido alçado ao status científico, requerendo um caráter de neutralidade e unicidade, os valores morais enraizados e as ideologias sempre teimaram em se fazer presentes, projetando distintas visões sobre o mundo, refletidas nas diversas correntes de pensamento, proponentes dos mais sortidos diagnósticos acerca da realidade, construídos com base em diversificados métodos, advogando por distintos meios de se alcançar os fins, suscitando muitas controvérsias entre as partes envolvidas no confronto de idéias. E assim foi desde aqueles tempos até os atuais. Realizando um largo salto temporal, trespassando séculos desde o berço helênico na Idade Antiga até a Idade Moderna, podemos respirar por alguns instantes a atmosfera dos séculos das luzes,3 época também marcante e definidora do caráter assumido pela atividade intelectual e pela prática política até hoje vigentes, “fermento de uma transformação técnica e social sem precedentes na história da humanidade. Uma fase de transição, pois, que deixava perplexos os espíritos mais atentos e os fazia refletir sobre os fundamentos da sociedade em que viviam e sobre os impactos das vibrações a que eles iam ser sujeitos por via da ordem científica emergente” (Sousa Santos, 2005, p.17). No campo do intelecto e do fazer científico, afirmava-se a primazia da razão sobre ditames míticos ou religiosos. No campo da política, as práticas influentes sobre a constituição social deveriam obedecer aos diagnósticos realizados pela intelligentsia, em geral serviente ao aparato estatal. O modelo de racionalidade inerente à ciência moderna consolidada no século XVIII, com destacado desenvolvimento das ciências naturais, somente no século XIX4 atingiu cabalmente as ciências sociais – que então sedimentaram alguns princípios epistemológicos e regras metodológicas que caracterizariam as formas de conhecimento social ditas racionais, distinguindo-as do saber medieval –, embora guardasse similaridades com a concepção de ciência fundada no corpus aristotélico, ao qual nos referimos. A matemática configura-se como o instrumento de análise essencial da ciência moderna, sendo também o próprio modelo ou linguagem de representação dos fenômenos estudados. Uma vez que o conhecer assume como pressuposto o quantificar, o rigor científico passa a ser depreendido da precisão das medições. “As qualidades intrínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas, e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente podem se traduzir. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante” (Sousa Santos, 2005, p.28). O objetivo da ciência moderna pauta-se pelo estabelecimento de relações causais entre fenômenos, com vistas à proposição de leis, pretensamente universais, capazes de descrever regularidades nos fatos naturais e sociais. Nesse contexto, os fatos sociais são tidos como naturais; a ergodicidade própria dos fenômenos físicos é transposta aos fenômenos sociais, fundando uma concepção mecanicista da sociedade. Consubstancia-se, assim, a incorporação da perspectiva positivista às ciências sociais, dando origem a uma “física social” cujo pressuposto básico assevera que as ciências naturais representam a concretização de um modelo de conhecimento universalmente válido. Todo esse pano de fundo compõe também o cenário em que atuam os teóricos do planejamento. Ao alvorecer do século XIX, quando a ciência social se deixou definitivamente embeber pela lógica própria do cientificismo mecanicista moderno, emergia uma visão segundo a qual os meios para o alcance dos objetivos gerais da sociedade deveriam ser atribuídos a especialistas, dotados da racionalidade científica. Os governantes, investiR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 33 3 A abrangência temporal do Iluminismo aqui considerada é compartilhada com aquela definida por Sousa Santos (2005), qual seja, o período compreendido entre meados do século XVII, nascedouro da revolução da física newtoniana, e meados do século XIX, quando a racionalidade iluminista atinge as Ciências Sociais, sendo a economia uma das disciplinas retardatárias nesse processo. 4 O atraso e a dificuldade das Ciências Sociais em incorporar tal racionalidade, segundo Kuhn (1962), devese ao seu caráter “précientífico” e à conseqüente ausência de consenso paradigmático. P L A N E J A M E N T O 5 “(…) should concern themselves primarily with general goals of policy, leaving the choice of the appropriate means to specially trained experts”. 6 “Ordinary minds, untrained in the subtleties of the scientific method, were no match for the rationality of those who knew how to make judgements about efficiency in relating means to ends. Parliaments could talk, but the real business of the state would be conducted by men of public spirit and far reaching vision who had received the proper education. Tied to entrepreneurial talent and finance capital, the myriad applications of science would ensure the steady forward march of social progress.” 7 Evidente que em uma parte considerável do mundo, principalmente nos países alinhados ao dito socialismo real, já no início do século XX adotavam-se outros critérios para o planejamento centralizado de seu desenvolvimento econômico. No entanto, uma análise das especificidades do bloco de países socialistas foge ao escopo deste trabalho. 8 “(…) the state would plan, the economy would produce, and working people would concentrate on their private agendas: raising families, enriching themselves, and consuming whatever came tumbling out from the cornucopia”. dos de poderes políticos, representantes legítimos da população, “deveriam se ocupar dos fins gerais da política, deixando a escolha dos meios apropriados a cargo de especialistas treinados”5 (Friedmann, 1987, p.4). Sob esses termos, que pavimentam as bases do planejamento moderno, os caminhos a serem seguidos com vistas ao suprimento de demandas da coletividade constituem uma questão essencialmente técnica, que deve obedecer a critérios de eficiência. Assim, aqueles desprovidos da racionalidade científica moderna não estariam aptos a opinar sobre as questões de interesse geral que visem promover o progresso social. Mentes comuns, não versadas nas sutilezas do método científico, não estavam à altura da racionalidade daqueles que sabem como fazer julgamentos sobre eficiência na relação entre meios e fins. Parlamentos podiam conversar, mas o real negócio do Estado seria conduzido por pessoas dotadas de espírito público e visão de longo alcance, que receberam o treinamento adequado. Associada ao talento empresarial e às finanças, a miríade de aplicações da ciência garantiria a marcha firme rumo ao progresso social. 6 (Friedmann, 1987, p.5) Planejar, enfim, assumia peremptoriamente o caráter de uma empreitada científica e de viés economicista. No tocante aos aspectos econômicos do planejamento – campo primaz da ação política em sociedades capitalistas modernas – , as regras hegemônicas passavam a ser ditadas por uma vertente liberal que retomava os princípios subjacentes às teorias clássicas de autores como Adam Smith e David Ricardo, recheando-os com a racionalidade positivista em ascensão nas ciências sociais durante o século XIX. O conceito econômico de eficiência seria o balizador das decisões a serem tomadas pelas instâncias de planejamento. Essa toada liberal foi a tônica vigente na transição do século XIX ao século XX,7 que claramente se refletia e se sustentava no ideário do planejamento, embotado pela racionalidade positivista que edificava “um conhecimento causal que aspira à formulação de leis” (Sousa Santos, 2005, p.29). A identificação da causa formal de um fenômeno social permitiria a realização de predições, uma vez que a ergodicidade, fundada na idéia de ordem e estabilidade do mundo, configurava o pressuposto metateórico que regia o fazer científico. Tais predições seriam, em última instância, o instrumento balizador do planejamento, que permitiria manipular e transformar a sociedade, de forma similar à que os cientistas naturais se valem para dominar a natureza. “Tal como foi possível descobrir as leis da natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade” (Sousa Santos, 2005, p.32). No tocante aos aspectos da reprodução material da sociedade, a lei social basilar que então presidia os fenômenos econômicos era o mecanismo smithiano de interação entre oferta e demanda, acrescido da tendência ao equilíbrio geral aventado por Leon Walras (1996). A racionalidade de mercado, que supostamente norteia o comportamento dos agentes econômicos, asseguraria uma tendência estrutural e inexorável do sistema econômico-social ao equilíbrio. A divisão do trabalho social, que Smith (1996) teoriza como sendo a fonte primaz do aprimoramento das forças produtivas e motor do crescimento econômico e do progresso social, se daria conforme o seguinte trâmite: “o Estado planejaria, a economia produziria e a população de trabalhadores se concentraria em suas agendas privadas: formar famílias, enriquecer-se e consumir o que sua riqueza puder comprar”8 (Friedmann, 1987, p.8). Esta é a ordem de coisas que rege a sociedade liberal, amparada em um “guia social” que mescla o naturalismo e o individualismo como princípios filosóficos da ciên34 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 L U C A S L I N H A R E S cia que fundamenta o planejamento de caráter positivista vigente no início do século XX, e que retorna fortalecido em fins do mesmo século, após um interregno mais intervencionista e socialmente agitado em seus meados. A idéia de que o mercado, formado por agentes econômicos auto-interessados, deixados à sua própria sorte, conduz a um estado de equilíbrio eficiente e a um resultado social agregado positivo, é dificilmente corroborada pela realidade. No entanto, a assunção dessa racionalidade de mercado impera sobre as teorias economicistas de planejamento. Paradoxalmente, a exacerbação dessa perspectiva findou por fazer do planejamento, no ocaso do século XX, uma prática dispensável, uma vez que o comportamento auto-interessado dos indivíduos conduziria a um resultado social desejado, independentemente de esforços conscientes de planejamento ou coordenação entre os agentes econômicos. Como já mencionado, é forçoso reconhecer que o planejamento guarda uma relação orgânica com os requisitos da prática política, procura voltar o conhecimento para a ação, seja no sentido de transformar, seja no sentido de controlar a sociedade e as relações que lhe subjazem. Entremeadas nesse palco assaz conflituoso, atuam algumas perspectivas teórico-metodológicas e/ou práticas que se abrigaram em algumas importantes tradições de pensamento sobre o planejamento, dentre as quais podem-se citar, seguindo a tipologia aduzida por Friedmann (1987), a “reforma social” (social reform) e a “análise de políticas” (policy analysis), que se impuseram hegemonicamente no capitalismo urbano-industrial moderno, quer sob a forma de um arcabouço teórico-conceitual de natureza científica, quer sob a forma de proposições políticas de controle social. A tradição dominante, que concebia o planejamento como reforma social, referenciava-se numa matriz de pensamento positivista comteana (e saint-simoniana),9 segundo a qual a “ciência da sociedade” guiaria o mundo por uma trajetória de progresso social. O planejamento serviria, pois, a um processo de guia ou direcionamento social (societal guidance)10 rumo ao progresso; este concebido sob um viés tecnicista. REFORMA SOCIAL E ANÁLISE DE POLÍTICAS:11 DUAS TRADIÇÕES E UMA SÓ DOUTRINA A lógica que permeia o modus operandi do capitalismo industrial, assim como a teoria econômica (neo)clássica que procura explicar tal sistema (e em certa medida o legitimar), estão assentadas na assunção de busca da eficiência econômica stricto sensu, adutora de uma racionalidade que pressupõe o compromisso individual com um comportamento auto-interessado, que se desdobraria em um resultado social agregado compatível com os interesses da coletividade. Evidencia-se, assim, uma perspectiva argumentativa ajustada à doutrina smithiana da harmonia natural de interesses, cujo mote clássico traz a idéia de que “vícios privados resultam em benefícios públicos” (private vices yield public benefit). Nesses termos, identificamos na teoria econômica clássica de Smith a perspectiva naturalista cara ao antigo discurso aristotélico, porém desprovida do aspecto coletivista próprio deste. O aspecto coletivista perde sua primazia para o individualismo associado à racionalidade de mercado (market rationality). Ao contrário da visão aristotélica supra, a doutrina individualista propugna a ascendência lógica do indivíduo sobre a sociedade, donde decorre que a razão deva ser exercida em nome do indivíduo, sendo que a satisfação das necessidades materiais individuais passa a ser a principal razão da vida das pessoas em grupos sociais. Nesses termos, a vida em grupo é válida enquanto potencializadora da divisão social do trabalho, que propicia R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 35 9 Claude Henri de Rouvroy, o Conde de Saint-Simon, é identificado com o socialismo utópico francês. Autor de obras importantes e defensor da primazia de uma racionalidade tecnicista a ser imposta sobre a sociedade, prognosticou a emergência de uma sociedade industrial na Europa e contribuiu para a constituição de todo um ideal da modernidade, além de ser um precursor da filosofia positivista. 10 Cumpre considerar que a carga semântica inerente aos termos “guia” e “direcionamento”, derivados do termo em inglês “guidance”, assume aqui um sentido de aconselhamento, além de manipulação e/ou controle. 11 O leitor perceberá que tratamos as correntes reforma social e análise de políticas de forma quase indistinta. Isto porque concebemos a análise de políticas como um desdobramento direto da reforma social, em razão da similitude das premissas e objetivos de ambas as vertentes, assim como a afinidade de sua filiação filosófica e da linguagem utilizada em seus discursos científicos. Devemos, no entanto, reconhecer que há dessemelhanças, sendo que os autores identificados com cada uma das tradições não formam um bloco monolítico. Consideramos, todavia, que esse tratamento genérico não compromete os argumentos. P L A N E J A M E N T O 12 “(…) production and livelihood depend largely on market rationality, but unrestrained profit making destroys the bonds of human reciprocity that lie at the foundation of all social life”. o desenvolvimento das forças produtivas e permite maior oferta de bens e serviços que atenderão às necessidades do bem-estar de cada indivíduo. No entanto, as forças cegas embutidas na racionalidade de mercado historicamente geraram muitos resultados sociais nefastos, tais como desemprego, pobreza urbana e altos graus de desigualdade de riqueza. Revelava-se necessário, pois, contrapor aos mecanismos de mercado uma racionalidade social, consoante à qual a razão seria exercida com vistas a dirimir os resultados indesejáveis oriundos do comportamento auto-interessado de indivíduos e corporações, ou seja, da racionalidade de mercado. Isto porque o modo de produção capitalista é um sistema contraditório, em que “a produção e a sobrevivência dependem em grande medida da racionalidade de mercado, mas a busca irrestrita do lucro destrói os laços da reciprocidade humana que estão na base de toda a vida social” 12 (Friedmann, 1987, p.29). Nesse sentido, o Estado assume um papel de mediador de conflitos entre os interesses individuais e sociais. Enquanto expressão da totalidade da comunidade política, o Estado desempenha um papel ambivalente, que deve a um só tempo encorajar e potencializar os interesses de expansão do capital, e evitar que uma eventual exacerbação desses interesses provoque efeitos nocivos sobre o tecido social. A administração desses conflitos passa a ser a atribuição fundamental que cabe ao planejamento em sociedades de mercado. Para se concretizar enquanto agente de reforma social, o planejamento precisou se amparar em uma noção de racionalidade social que pudesse nortear o processo de “societal guidance”. Com vistas a catalisar uma reforma social, o planejador deveria munirse de uma capacidade de predizer o futuro com razoável grau de precisão, capacidade essa que é supostamente provida pelos modelos mecanicistas da “física social”. Para ser efetivo, o planejamento deveria proceder a uma dinâmica de “societal guidance” que fizesse convergir as ações individuais conforme as leis sociais “naturais” (de mercado), simultaneamente à adoção de medidas corretivas sobre as “falhas” de mercado. Este último procedimento é, no mais das vezes, a única ação afirmativa no processo de reversão dos efeitos nocivos da economia de livre mercado. Nesse sentido, em uma sociedade de mercado, muitos dos “usos” a que se presta o planejamento, embora levados a efeito em nome de uma racionalidade social, acabam por se identificar paradoxalmente com os princípios de mercado, na medida em que se enfeixa a garantir a realização de lucros por parte de negócios privados individuais, fonte da sobrevivência da maior parte das pessoas inseridas emuma sociedade capitalista. Dessa forma, encontram-se entre as atribuições do Estado-planejador as diretrizes gerais da economia, que incluem desde a provisão de serviços públicos – que muitas vezes significa parte dos custos de reprodução da força de trabalho – até investimentos em infra-estrutura, passando por políticas macroeconômicas de incentivo ao crescimento e conformação de um aparato jurídico-regulatório garantidor dos direitos de propriedade. Sob esse prisma, a ingerência do órgão planejador sobre algumas atividades, tais como provisão de serviços públicos de educação, saúde ou infra-estrutura urbana, embora apareça geralmente sob a alcunha de investimentos sociais – e portanto revestidos de uma racionalidade social –, constitui, com efeito, o atendimento às necessidades de aceleração do processo de rotação do capital. Embora não constituam setores diretamente produtores de lucros, configuram meios de consumo coletivo e meios de circulação material que impulsionam as engrenagens capitalistas, favorecendo indiretamente a reprodução do capital. Assim, a organização social capitalista permite uma (con)fusão entre interesses individuais e sociais. 36 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 L U C A S L I N H A R E S Evidente que a concepção de planejamento consubstanciada na reforma social, que traz à tona a idéia de racionalidade social, guarda em si alguns propósitos de constranger a operação das forças de mercado. No entanto, seu regime fundamental de societal guidance visa essencialmente à manutenção da ordem social capitalista, donde a garantia de direitos individuais ganha preeminência, ainda que esse discurso seja muitas vezes proferido em nome da coletividade. Adutora de uma visão de planejamento fundada em uma razão técnica, a corrente da reforma social em larga medida incorporou aspectos defendidos pela corrente identificada por Friedmann (1987) como “análise de políticas”. Esta última vertente, que pode ser considerada o ressurgimento fortalecido da reforma social em meados do século XX, sob uma nova roupagem, propugna que as soluções para os objetos sociais do planejamento derivam de uma análise “científica” de dados. O tratamento dos dados coletados por investigadores sociais seriam porta-vozes da realidade empírica e forneceriam subsídios para a elaboração de planos de intervenção no domínio público. A relação de complementaridade estabelecida entre reforma social e análise de políticas representa, pois, a síntese do planejamento moderno em sociedades de mercado. Segundo os argumentos incutidos nessa síntese, o mundo é passível de apreensão objetiva a partir dos instrumentos da ciência positivista; e o objetivo do planejamento moderno consiste em tornar o conhecimento técnico e científico útil às ações de direcionamento social. Assentado nas idéias comteanas e saint-simonianas segundo as quais o corpo social é regido por leis mecânicas e orgânicas, o planejamento economicista moderno argumenta que a sociedade está apta a administrar seu destino quando apresenta habilidade para predizer resultados futuros de fenômenos ou ações presentes. August Comte escreve em seu Plan of Scientific Works Necessary for the Reorganization of Society (Plano de Trabalho Científico Necessário para a Reorganização da Sociedade): Não pode pairar nenhuma dúvida de que o estudo da natureza realizado pelo homem deve fornecer a única base de sua ação sobre a natureza; e, portanto, somente conhecendo as leis que regem os fenômenos e, por conseguinte, estando apto a predizê-los, é que nós podemos, na vida efetiva, ajustá-los e modificá-los em nosso benefício (...) A relação entre ciência e prática pode ser resumida em uma curta expressão: da ciência deriva a previsão; da previsão deriva a ação.13 (Comte, 1822 apud Lenzer, 1975, p.88) Esta é a linha mestra pela qual se guiam a ciência e o planejamento na modernidade; aquela estabelecendo relações causais imutáveis e unidirecionais entre fenômenos sociais, este levando a efeito ações de societal guidance. “É objeto da ciência estabelecer fatos e leis imutáveis. Ao planejador é deixada a tarefa de guiar o curso do progresso social conforme tais leis”14 (Friedmann, 1987, p.71). O planejamento assentado no binômio “reforma social–análise de políticas” ambicionava moldar a sociedade a partir da obediência às leis naturais. Assim como os corpos em queda livre se submetem à lei da gravidade, a sociedade sucumbe às leis sociais naturais e cientificamente enunciadas. O planejador teria à sua disposição um sistema analítico que descreve a mecânica social, “baseado na conceitualização científica e na pesquisa empírica, através das quais poderia predizer que tipo de instituições e processos a sociedade industrial emergente iria requerer”15 (Ionescu, 1976, p.7). No processo de societal guidance, o papel do Estado é manter sob sua tutela o poder de orientação da sociedade, conduzindo-a conforme os ditames das leis sociais sacramenR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 37 13 “There can be no doubt that man´s study of nature must furnish the only basis of his actions upon nature; for it is only by knowing the laws of phenomena and thus being able to foresee them, that we can, in active life, set them to modify one another to our advantage (...) The relation of science to art may be summed up in a brief expression: from science comes prevision; from prevision comes action”. 14 “It is the business of science to establish facts and immutable laws. For planner is left the task of guiding the course of social progress in accordance with these laws”. 15 “(…) based on scientific conceptualization and empirical research, and through which he could predict what kind of institutions and processes the emerging industrial society would require”. P L A N E J A M E N T O tadas pelo paradigma científico hegemônico. O planejamento é uma empreitada científica, seguidor fiel do cânone positivista comteano: 16 “The formation of any plan for social organization necessarily embraces two series of works as distinct in their objects as in the intellectual efforts they demand. One, theoretical or spiritual, aims at developing the leading conception of the plan – that is to say, the new principle destined to coordinate social relations – and at forming the system of general ideas, fitted to guide society. The other, practical or temporal, decides upon the distribution of authority and the combination of administative institutions best adapted to the spirit of the system already determined by the intellectual labors”. 17 “The reliance of policy analysts on the tools of neoclassical economics implies that the value premises of that discipline are built into their work; chief among these values are individualism, the supremacy of the market in the allocation of resources, and the inherent conservantism of the equilibrium paradigm. Because market outcomes are regarded as ‘rational’ for the actors involved, deviations from them are normally thought to require special justification and are admitted only reluctantly”. A formulação de qualquer plano de organização social necessariamente envolve duas frentes de trabalho distintas, tanto no tocante aos seus objetos quanto no que tange aos esforços intelectuais demandados. Uma delas, de natureza teórica ou espiritual, visa desenvolver a concepção inicial do plano – isto é, o novo princípio destinado a coordenar as relações sociais – e formar o sistema de idéias gerais adequadas para guiar a sociedade. A outra, de ordem prática ou temporal, decide sobre a delegação de autoridade e sobre o conjunto de instituições melhor adaptado ao espírito do sistema previamente determinado pelos trabalhos intelectuais.16 (Comte, 1822 apud Lenzer, 1975, p.19) A tradição da análise de políticas, aqui tratada como desdobramento direto da reforma social, em virtude de sua filiação aos mesmos paradigmas científicos e políticos, veio a acrescentar elementos ao corpo do planejamento, elementos esses que, fundidos aos princípios social-reformistas, sintetizam a essência do planejamento na modernidade. Originalmente, os estudos da policy analysis se voltavam para as tomadas de decisões microeconômicas de firmas e corporações, sendo suas construções teóricas posteriormente generalizadas. Esta abordagem tinha por objetivo identificar os melhores cursos de ação dentre algumas possibilidades e condições iniciais dadas. Para tanto, dever-se-ia empregar a habilidade em realizar escolhas “racionais”, que lancem mão do maior número possível de informações disponíveis e calcule de maneira eficiente os custos e benefícios de cada trajetória possível. Os autores identificados com essa tradição se auto-proclamam tecnocratas, típicos “engenheiros sociais” à la Saint-Simon ou à la Comte. Crêem-se capazes, através de modelos matemáticos e técnicas estatísticas, de identificar e calcular precisamente as melhores soluções para os dilemas sócio-econômicos. A reforma social e a análise de políticas representam o triunfo da razão economicista e caracterizam-se, ao fim e ao cabo, por um conservantismo em relação ao estado de coisas. A idéia que habita o seio dessa visão de mundo passa pela pretensão de extirpar do planejamento todo o conteúdo ideológico ou passional, preservando tão somente a pureza do teor científico, capaz de descrever as leis que regem a sociedade e assegurar seu funcionamento de maneira a mais desimpedida. Ao planejamento moderno, sob a batuta dessa corrente de pensamento e ação, cabia promover a extensão das relações sociais de produção capitalistas urbano-industriais, legitimando a racionalidade de mercado. A confiança dos analistas de políticas no ferramental da economia neoclássica implica que os valores e as premissas dessa corrente estão embutidas em seus trabalhos; dentre tais valores destacamse o individualismo, a supremacia do mercado na alocação de recursos, e o conservadorismo inerente ao paradigma do equilíbrio. Dado que os resultados de mercado são considerados “racionais” pelos atores envolvidos, discrepâncias em relação a tais resultados requerem justificativas e só são admitidas com relutância.17 (Friedmann, 1987, p.79) Não é preciso mais do que uma olhadela ao redor e um bocado de senso comum para constatar que a empreitada do planejamento na modernidade, se tinha o propósito de colocar a ciência a serviço do bem público, não obteve êxito. Essa perspectiva do planejamento moderno em sociedades de mercado acabou por se identificar com uma lógica conservadora de manutenção do status quo, revelando-se no máximo comprometida com 38 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 L U C A S L I N H A R E S mudanças evolucionárias modestas próprias do capitalismo, negando a possibilidade de transformações estruturais que revertam o processo de exclusão social típicas do modo de produção hegemônico. A reforma social e a análise de políticas devotam seus esforços ao aprimoramento do capitalismo, um sistema de produção e reprodução sociais que, na visão dessas correntes de pensamento, incorre em falhas mas é passível de aperfeiçoamentos; sendo considerado o modo de organização social mais avançado do qual a humanidade pode dispor. Buscavam, destarte, instalar e manter a ordem social burguesa. Valendo-se do economicismo, que busca a descrição do organismo social por meio da construção de modelos expressos em termos universais – cujas hipóteses simplificadoras negam eventuais particularidades históricas, institucionais ou estruturais, tratadas tão somente como “falhas” de mercado a serem corrigidas – , o planejamento moderno padece de uma incompletude no tocante a sua descrição de realidades específicas, seja pelo afã de se autoproclamar “científico” e explicar a sociedade por um discurso objetivo, seja como arauto de uma ingerência mínima do Estado na mecânica social, contraditoriamente extirpando do planejamento sua compleição enquanto meio concreto de ação transformadora no domínio público. Do que vimos, temos em mãos um breve relato da forma assumida pelo planejamento na modernidade, umbilicalmente ligado às concepções da ciência positiva e da razão tecnicista e economicista que povoa o imaginário do homem moderno. Reconhecendo que o planejamento define-se pela relação complementar e dialética entre teoria e prática, conhecimento e ação, ciência e política; e considerando ainda o caráter naturalista, mecanicista e positivista assumido pelo planejamento moderno como reflexo dos matizes científicos, duas tarefas se interpõem aos propósitos do nosso trabalho: primeiro, enfatizar uma visão espacial, partindo da concepção segundo a qual as sociedades são organismos espacialmente referenciados, a um só tempo indagando e buscando responder qual o papel reservado ao espaço nas teorias do planejamento e do desenvolvimento. Segundo, sabendo que o planejamento é depositário de uma visão sobre o mundo, cumpre retomar a crítica às perspectivas epistemológicas tipicamente modernas (e ainda aceitas contemporaneamente), sugerindo passos na direção de uma agenda alternativa, que olhe o mundo não somente enquanto instrumento analítico para entender racionalmente a realidade social, mas também enquanto projeto teórico-político, capaz de engendrar uma construção crítica e propositiva emancipatória. É sobre estas questões que nos debruçamos nas seções seguintes. O PAPEL DO ESPAÇO NA TEORIA DO PLANEJAMENTO Embora presente desde os primeiros excertos, o espaço não mereceu ainda neste texto o devido cuidado. Mencionamos en passant o fato de que o planejamento, já nos seus prolegômenos durante a Idade Antiga, conferia ao contexto espacial um tratamento privilegiado no corpo das teorias e filosofias sociais. Isto porque os pensadores da antigüidade tinham a cidade e sua complexidade como expressão máxima e genuína da comunidade política, objeto da filosofia política e social. As teorias, os métodos e os instrumentos do pensar e do agir sobre a sociedade estão intrínseca e dialeticamente correlacionados ao conhecimento e à atuação política sobre a configuração espacial. Assim, as cidades, as regiões e as outras múltiplas escalas espaciais das quais a sociedade participa como tecido viR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 39 P L A N E J A M E N T O 18 “As a consequence, any idea of development outside of neoliberal capitalism is prohibited, as well as any independency of development theory as a discipline distinct from the dominant neoclassical corpus”. 19 “(…) there is a standart model of behavior applicable in all times and places. (...) Heavily mathematical, strongly normative, and reliant upon a host of absurdly unrealistic assumptions, general equilibrium theory is the keystone of all standard microeconomics”. tal, e nas quais os grupos humanos organizam sua reprodução social, são, por princípio, objeto do planejamento. Dessa forma, o planejamento deve incutir como ponto de partida a noção de que seu objeto é um sistema de relações sociais espacialmente referenciado. A geografia da organização social assume papel ativo na dinâmica dos processos sociais, porquanto devem figurar como aspecto de suma relevância na construção do conhecimento que informa o planejamento no domínio público (Friedmann & Weaver, 1979; Friedmann, 1987). Ultrapassando a perspectiva vigente na modernidade, Soja (1993) preconiza por “espacializar” criticamente a realidade social, deslindando-a de forma mais reveladora, erigindo um arcabouço mais abrangente e incisivo não apenas para a apreensão racional dos fenômenos socioespaciais, mas também para a fundação de práticas emancipatórias. Não obstante, a tomada das ciências sociais pela perspectiva epistemológica do positivismo teve como desdobramentos, na teoria econômica, as construções teóricas neoclássicas fundadas no individualismo metodológico e nas premissas de otimização e equilíbrio geral. No campo político, o mecanicismo desses modelos teóricos legitimou o liberalismo e mais recentemente sua “neo-roupagem”, que apostam nos mercados como mecanismo coordenador da reprodução material das sociedades humanas; mecanismo esse que idealmente garantiria uma convergência inexorável dos padrões de vida e níveis de desenvolvimento interregionais, muitas vezes ignorando as “rugosidades” espaciais que impõem atritos à disseminação da modernização tecnológica e do crescimento econômico pelos territórios em sua totalidade. O ideário hegemônico da modernidade, no desiderato de transitar de uma economia política para uma economia pura, reduzia ao mínimo qualquer intervencionismo deliberado de instituições extra-mercado, ferindo de morte o planejamento e condenando as políticas de desenvolvimento regional ao fenecimento. ”Por consequência, qualquer idéia de desenvolvimento fora do capitalismo neoliberal é proibida, assim como também o é qualquer independência da teoria do desenvolvimento enquanto disciplina destoante do corpus neoclássico dominante”18 (Herrera, 2006, p.5). Adita-se a isso o fato de que tais construções teóricas tendem, via hipóteses simplificadoras que calçam sua argumentação, a homogeneizar contextos, o que traz como corolário a secundarização ou mesmo exclusão do espaço enquanto variável de análise. Ao adotar premissas de homogeneidade, a teoria econômica convencional acabou por conferir ao espaço um papel adiáforo, uma vez que supostamente “há um modelo padrão de comportamento aplicável em todos os tempos e lugares. (…) Profundamente matematizada, fortemente normativa e dependente de uma série de suposições irrealistas, a teoria do equilíbrio geral é a base de toda a microeconomia convencional”19 (Herrera, 2006, p.8). Em grande medida, essa perspectiva esvaziada do elemento espacial pode ser também explicada pelo fato de que seus formuladores, em geral cidadãos de países centrais, pensam uma realidade com grau relativamente baixo de heterogeneidade, mais próxima de uma configuração “clean space”. Essa concepção, segundo Soja (1993), mostra-se pouco atenta “à espacialidade formadora da vida social como padrão de discernimento crítico”; e a variável espaço comparece (quando comparece) travestida em custos de transporte de mercadorias a serem minimizados pelos agentes econômicos com vistas à localização ótima da firma ou à alocação eficiente de recursos. A reflexão geralmente situa os atores num espaço sem relevo nem densidade, onde os obstáculos são identificáveis por um sistema de custos (...) Esta visão das coisas aparece em perfeita consonância 40 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 L U C A S L I N H A R E S com a interpretação walrasiana da coordenação econômica do mercado, fundado sobre a média e a homogeneidade, na medida em que a introdução do espaço não faz mais do que completar a formação dos custos e, por conseguinte, por meio dos comportamentos de localização, o programa otimizador dos agentes. (Pecqueur e Zimmermann, 2005, p.77-8) Na economia política, o exercício de imaginação geográfica, mesmo quando não era limitado analiticamente, permanecia marginal no corpus teórico geral. A percepção teórica implícita nos argumentos espaciais seminais, levados a efeitos por pensadores identificados com a economia política, ou circunscreveu-se ao status categórico de um insight poderoso porém pouco “desenvolvido” (formalizado), como à idéia de vantagens locacionais (pecuniárias e tecnológicas) aduzida por Alfred Marshall; ou estavam alçados ao status de conceito teórico sintetizador porém marginal no arcabouço dos economistas, donde os elementos espaciais sempre tiveram sua importância sistematicamente negligenciada. Neste último caso incluímos com destaque duas formulações: a idéia de renda fundiária de J. H. Von Thünen, argumento-síntese da lógica locacional e indispensável ao entendimento da dinâmica urbano-regional; e a “Lei Espacial da Demanda” enfeixada por August Lösch, teoria espacial de caráter economicista, adutora da idéia de área de mercado. O que importa reter é que, no campo de uma economia que renegava gradativamente o adjetivo “política”, o espaço não era incorporado senão através da “força física ‘neutra’ da fricção de distância”, expressa de forma metafórica (ou, se quisermos, fetichizada e reificada) em custos de localização e custos de transporte. Alternativamente, algumas vertentes de teorias econômicas e sociais que têm o espaço como categoria privilegiada de análise reconhecem a complexidade da configuração espacial e sua relação dialética com os processos sociais, e recusam assim uma teleologia simplificada em suas formulações. Destarte, os autores identificados com essa perspectiva revelam-se ciosos por uma olhar crítico que engendre uma “economia política da produção social do espaço”, e não somente uma descrição de processos econômico-espaciais por meio de estruturas lógicas e unidirecionais de causa e efeito. RUMO AO PLANEJAMENTO SOCIOESPACIAL CRÍTICO Segundo Lefebvre (1991, 1999) e Soja (1993), as teorias sociais fundadas na racionalidade mecanicista típica da modernidade padecem de uma “ilusão de opacidade” no tocante ao tratamento do espaço e acabam por obnubilar a imbricação dialética entre a espacialidade concreta e as relações sociais imersas nessa espacialidade. O espaço opaco é um lugar “sombrio e fechado”, que não se permite ser enxergado em todas as suas nuances. É uma materialidade espacial reificada, vista pelo prisma dos universalismos abstratos característicos da ciência moderna – lente pela qual as teorias econômico-espaciais de cunho neoclássico enxergam o mundo. Edward Soja adverte que essa lente, em vez de corrigir, clarificar e ampliar o campo de visão, induz “a uma miopia que enxerga apenas uma materialidade superficial, formas concretizadas que são passíveis de pouco mais do que a mensuração e a descrição fenomênica: fixas, mortas e não-dialéticas – a cartografia cartesiana da ciência espacial” (Soja, 1993, p.14). Edward Soja herda de Henri Lefebvre a sensibilidade de que, no capitalismo contemporâneo, o espaço é a categoria analítica privilegiada para entender a realidade social. Pela dialética lefebvreana, sintetizada no conceito de “espaço social”, o espaço transfunde-se na própria realidade social. Simultaneamente o espaço é um produto social e também tem vida própria, adquirindo, em uma R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 41 P L A N E J A M E N T O visão global do sistema, o mesmo caráter de elementos como a mercadoria e o próprio capital, vistos enquanto categorias que ocultam em si as relações sociais de exploração e apropriação do mais-valor que é a razão de ser do sistema: 20 “(Social) space is a (social) product. This proposition might appear to border on the tautologous, and hence on the obvious. There is good reason, however, to examine it carefully, to consider its implications and consequences (...) Many people will find it hard to endorse the notion that space has taken on, within the present mode of production, within a society as it actually is, a sort of reality of its own, a reality clearly distinct from, yet much like, those assumed in the same global process by commodities, money and capital”. 21 “We have already been led to the conclusion that any space implies, contains and dissimulates social relationships”. 22 Henri Lefebvre rejeita o termo “planejamento”, preferindo utilizar a noção de “projeto” como substituto, este definido como uma “intervenção estratégica que supera o relativismo da filosofia através do cálculo político”, sempre deixando explícita a concepção dialética segundo a qual o possível (o virtual) integra e molda o presente (o real). Considerando que a negação do uso do termo “planejamento” mais significa uma negação à feição assumida por essa atividade na modernidade, levamos adiante o uso do termo em nosso trabalho com mesma carga semântica do “projeto” lefebvreano. Assim, usamos os termos “projeto” e “planejamento” indistintamente, como sinônimos. 23 “I shall demonstrate the active role of space, as knowledge and action, in the existing mode of production”. 24 Em A Revolução Urbana, Henri Lefebvre delineia um processo heurístico para a definição (ou descoberta) do urbano substantivo, visto O espaço (social) é um produto (social). Esta proposição pode parecer redundante, tautológica, e portanto óbvia. No entanto, há boas razões para examiná-la cuidadosamente e considerar suas implicações e conseqüências (...) Muitas pessoas acharão difícil defender a idéia de que o espaço assumiu, no presente modo de produção, em uma sociedade como a atual, uma espécie de condição própria, uma realidade claramente distinta, ainda que muito similar, àquela assumida, no mesmo processo global, pelas mercadorias, pelo dinheiro e pelo capital.20 (Lefebvre, 1991, p.26) Fomos levados à conclusão de que todo espaço implica, contém e oculta relações sociais.21 (idem, p.83) “Localizar” o espaço no primeiro plano da investigação social torna-se então a tarefa a que se propõe Henri Lefebvre, de forma a sistematizar um planejamento (ou projeto)22 teórico e prático aplicável à configuração socioespacial do capitalismo contemporâneo, e que contenha um teor crítico e politicamente emancipatório. Teóricos convencionais concebem o espaço tão somente como um receptáculo; seguem uma linha que “afirma serem os processos sociais desenvolvidos no espaço, de forma que o espaço apenas os mantém ou suporta” (Gottdiener, 1993, p.125). Remando contra essa corrente, Lefebvre (1991, p.11) chama para si a tarefa de desfazer a reificação espacial em que incorrem esses teóricos: “Devo demonstrar o papel ativo do espaço, como conhecimento e ação, no presente modo de produção”.23 Logo, o espaço traz a economia (modo de produção) e suas relações sociais subjacentes como elementos de fundamental importância para sua compreensão. A reprodução das relações sociais que sustêm o sistema capitalista é condicionada por efeitos da aglomeração urbana, donde constatamos que a evolução e perpetuação do sistema, mormente em seu estágio contemporâneo mais avançado, realiza-se através de formas espaciais, ou mais propriamente de um contexto socioespacial: (...) o capitalismo como totalidade é um projeto histórico inacabado. Como modo de produção, mudou e alterou-se a fim de sobreviver. Lefebvre concebe a sobrevivência do capitalismo como uma conseqüência de sua capacidade de recriar todas as relações sociais necessárias para o modo de produção numa base contínua. Isso foi conseguido, no decurso dos anos, pelo uso do espaço pelo capitalismo. (Gottdiener, 1993, p.147) Foi em seu livro The Survival of Capitalism que Lefebvre (1976) enunciou essa que talvez seja sua afirmação teórica mais vigorosa no que concerne à colocação do espaço como elemento central na teoria social: foi por meio de um processo de espacialização, de produção de um espaço conformado à sua lógica de reprodução, que o capitalismo descobriu-se capaz de atenuar suas contradições internas e sobreviver. O complexo socioespacial fundido conceitualmente na idéia do urbano (substantivo24) traz embutida a noção de que a dimensão espacial, ao favorecer a reprodução das relações sociais de produção, permitiu a sobrevivência e o crescimento do capitalismo. O urbano “se apresenta, desse modo, como realidade global (ou, se se quer assim falar: total), implicando o 42 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 L U C A S L I N H A R E S conjunto da prática social” (Lefebvre, 1999, p.53). Trata-se de uma “revolução urbana” adutora de uma espacialidade que se estendeu “fagocitando” a realidade social e incutindo-lhe sua lógica; lógica da qual o capitalismo se apropriou e colocou sob sua égide a fim de se reproduzir. Esboçando pensamento similar, Edward Soja deriva do urbano lefebvreano o conceito de urbanismo, que diz respeito à espacialidade específica que o capitalismo cria e põe a serviço da valorização do capital, de sua reprodução ampliada e da aceleração do ciclo do capital-dinheiro. Nessa perspectiva, o espaço ganha status funcional similar ao dos elementos protagonistas do capitalismo, como a mercadoria ou o próprio capital. Da mesma forma que a mercadoria e o capital constituem “entidades” que ocultam em si as relações sociais de produção, o urbanismo seria a conceituação sumária da relação dialética entre o modo capitalista de produção e sua espacialidade socialmente criada. De forma complementar à formulação sojiana, David Harvey (1973, 1975, 1977, 1992) argumenta que o espaço urbano é alvo de sucessivas construções, desconstruções e reconstruções, com vistas a moldar-se pelas conveniências da reprodução do capital. Para ele, a forma urbana cristalizada no ambiente construído (the spatial “fix”) é a expressão material do capital, constituindo uma paisagem física funcional à acumulação. Harvey salienta ainda a necessidade de ver o ambiente urbano como lugar privilegiado não só da produção industrial, mas também do consumo; como sítio da produção de mercadorias e também da circulação e “realização” destas. Como afirmava Karl Marx, a criação do valor é caracterizada quando do processo de valorização ocorrido paralelamente ao processo de trabalho na fábrica, no momento em que a mais-valia é extraída da força de trabalho e incorporada na mercadoria produzida. Entretanto, até esse momento, não foi criado mais do que um valor em potencial, que somente será efetivamente “realizado” pela “socialização” da mercadoria, consubstanciada pela sua venda (consumo). Assim, Harvey traz a percepção de que o centro urbano é o lugar concentrador da demanda e, portanto, espaço da realização da mais-valia e da reprodução sistêmica do capitalismo. Além disso, está contido nessa percepção um diagnóstico da dinâmica urbano-regional, vinculada à dupla dependência do capitalismo em relação à concentração e à desconcentração espacial da apropriação de mais-valia. Os núcleos de produção e os contextos regionais que os circundam são ambos importantes na medida em que o capitalismo depende, primeiramente, da concentração e depois da circulação do sobreproduto gerado na cidade. Erige-se, pois, no centro urbano e sua articulação regional, um sistema socioespacial auto-contido para acumulação de capital, na medida em que abrange todo o espectro do processo capitalista (produção, circulação e consumo), contemplando assim todo o ciclo do capitaldinheiro (D-M-M’-D’), desde a produção de mercadorias até a realização do mais-valor via consumo nos mercados. A contribuição de David Harvey, portanto, passa pela concepção do espaço urbano como uma “máquina” produtora e apropriadora de mais-valia, donde o urbano constitui a espacialidade ideal, o habitat do sistema capitalista. Formado pelo estruturalismo althusseriano, Manuel Castells (1977, 1999), por seu turno, também concebe o espaço urbano como núcleo serviente à dinâmica capitalista, porém enfatizando seu papel como locus da reprodução da força de trabalho. Por esse prisma, o núcleo urbano significa a aglomeração de um aparelho infra-estrutural que envolve a concentração espacial da tecnologia que ampara a indústria e principalmente da mercadoria essencial que gera valor no processo de trabalho industrial, qual seja, a força de trabalho. Para tanto, o ambiente urbano oferece, por intermédio do Estado e outras instituições, os denominados meios de consumo coletivo, atinentes a habitação, transporte R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 43 como um fenômeno socioespacial que é mais do que as formas urbanas. É uma espécie de síntese dialética entre uma espacialidade difundida à totalidade do espaço social sob as formas de tecido urbano e de uma práxis típica da sociedade urbana, “hoje virtual, amanhã real”. Trata-se de uma realidade totalizante que se desdobra na urbanização completa: do território e da sociedade. Cumpre aqui demarcar que o conceito ultrapassa a noção incutida no urbano adjetivo, que diz respeito à caracterização de aspectos relacionados à cidade propriamente dita. P L A N E J A M E N T O (acesso à fábrica), educação (treinamento), saúde (força de trabalho), entre outros elementos afins à diluição social dos custos de reprodução da força de trabalho. Outro estudioso de inspiração marxista, Jean Lojkine (1981) amplia o escopo do argumento castellsiano ao trabalhar a idéia de condições gerais de produção, que em última instância definiria o núcleo urbano (e suas articulações sobre a rede regional) como a espacialidade propícia ao desenvolvimento capitalista, em termos similares ao urbanismo aventado por Soja. As condições gerais de produção são assim denominadas por abranger toda a estrutura socioespacial que põe o capital em movimento, circunscrita a um contexto urbano-regional. Corresponde à configuração espacial que abriga a concentração dos meios de produção, dos meios de circulação material e dos meios de consumo coletivo. Em suma, o capitalismo é um modo de produção essencialmente urbano, que usa essa espacialidade em favor de sua reprodução ampliada. Fazendo a mesma afirmação de maneira invertida, a urbanização é a manifestação espacial do processo capitalista de acumulação, no sentido em que o tecido urbano (e regional) conforma um aparato socioespacial que sedia a acumulação de capital e favorece sua reprodução ampliada por concentrar as condições gerais de produção, sendo estas a consubstanciação das várias facetas do ciclo capitalista, quais sejam: produção, circulação, consumo. Os espaços regionais, formados pela articulação entre centros urbanos, são hierarquizados conforme a maior ou menor presença dessas condições gerais que imprimem ritmo à dinâmica do capital: “a armação urbana aparece então antes de tudo através de sua rede de cidades (...) como uma distribuição social e espacial das diferentes condições gerais da produção” (Lojkine, 1981, p.149). Dessa forma, é mister ter em mente que a funcionalidade sistêmica do capitalismo reside não somente na materialidade de cada centro urbano isolado, mas primordialmente em um plano socioeconômico-espacial de escala mais ampla, constituído pelos fluxos de relações estabelecidos entre uma miríade de núcleos de produção, donde constatamos que o capitalismo, além de se referenciar no ambiente urbano, caracteriza-se também pela sua projeção no plano regional. Como acabamos de mencionar, a presença das chamadas condições gerais da produção não é ubíqua. Pelo contrário, os espaços capitalistas apresentam como característica geral a distribuição não uniforme dos frutos de suas modernizações e dá origem a “urbanismos” marcados pelo desenvolvimento desigual em termos sociais e espaciais. A simultaneidade de relações sociais e espaciais pode ser aferida com clareza na divisão regional do espaço entre centros dominantes e periferias dependentes, em relações espaciais de produção socialmente criadas e polarizadas; ou seja, no desenvolvimento geograficamente desigual. Essa teorização dos vínculos entre diferenciações sociais e espaciais traz implícita a dialética socioespacial: as relações (sociais e espaciais) de produção e as estruturas centro-periferia são dimensões não dissociáveis. “Ao contrário, os dois conjuntos de relações estruturadas (o social e o espacial) são não apenas homólogos, no sentido de provirem das mesmas origens no modo de produção, como também dialeticamente inseparáveis” (Soja, 1993, p.99). Dessa forma, a assimetria fundamental no plano das relações sociais de produção capitalistas, resumida na dicotomia capital vs trabalho, tem como contrapartida, no plano espacial, o descompasso entre centro e periferia. O avanço do capitalismo é intrinsecamente marcado pelo desenvolvimento desigual, pelo acesso social e espacialmente seletivo às benesses dos progressos técnicos e demais frutos do processo econômico. Assim, a geografia específica do capitalismo é caracterizada pela contigüidade ou mesmo justaposição de realidades sociais heterogêneas, muitas vezes antagônicas. 44 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 L U C A S L I N H A R E S A dinâmica espacial do capital exibe uma tendência centralizadora e vários são os elementos que se diferenciam geograficamente: a composição orgânica do capital, o valor de reprodução da força de trabalho (salários), níveis tecnológicos e o grau de acesso ao aparato de mais elevada tecnologia. Esses diferenciais regionais perpetuam-se em razão da concentração dos investimentos de capital, da infra-estrutura social e da presença hegemônica das condições gerais de produção em alguns pontos do espaço em detrimento de outros; o que finda por ratificar a concentração espacial dos meios de produção, circulação e consumo, e das atividades econômicas como um todo, significando, portanto, uma concentração espacial das oportunidades de desenvolvimento. Soja (1993, p.140), endossando argumentos de Ernst Mandel (1976, 1987), identifica na dinâmica capitalista uma tendência à “transferência geográfica de valor”, processo pelo qual o valor produzido em uma dada localidade periférica de menor densidade econômica é realizado em um centro mais desenvolvido, somando-se à base de acumulação deste através do intercâmbio comercial. O centro caracteriza-se como base exportadora de bens e serviços mais avançados, auferindo uma espécie de “mais-valia espacial”, ainda que esse conceito não tenha sido sistematizado. Esse processo regionalmente desigual é o gatilho de uma configuração centro-periferia que marca caracteristicamente a espacialidade do capitalismo. De toda essa senda teórica, cumpre aos nossos propósitos enfatizar o papel central da dialética socioespacial para a compreensão do capitalismo contemporâneo. O reconhecimento de que as contradições do modo de produção devem ser desvendadas pela investigação do espaço socialmente engendrado é capaz de nos conduzir a uma teoria social mais robusta no balizamento do planejamento. A base para uma teoria espacializada do planejamento no mundo contemporâneo requer necessariamente uma teoria da acumulação de capital em ambientes urbanos, que na nossa concepção de base lefebvreana adquire significante sinonímico à “economia política da produção social do espaço”. Além disso, o planejamento do desenvolvimento regional só faz sentido a partir da percepção do caráter estruturalmente desigual da organização espacial específica do capitalismo. Rastreamos o papel do espaço no planejamento ao identificar, com o auxílio de Henri Lefebvre e outros estudiosos neomarxistas do espaço, que a produção social do espaço é o mecanismo pelo qual o sistema capitalista encontra meios de se reproduzir amplamente. A espacialidade do urbano, refletida em formas e fenômenos socioespaciais, é o plano (material e imaterial) privilegiado da produção e da reprodução das relações sociais capitalistas. Sutilmente, a teorização lefebvreana subverte a lógica dos teóricos convencionais do espaço, que tratam o elemento geográfico como um fator contingente (um custo) que limita a dinâmica do capital. Lefebvre, sem negar os obstáculos que a materialidade espacial (o espaço banal, diria François Perroux25) impõe ao movimento do capital, enfatiza que, contraditoriamente, a dialética socioespacial – cuja síntese é o urbano pleno de relações sociais – é a instância que oxigena o capitalismo em sua corrida para chegar cada vez mais longe. A ponte requerida entre o papel teórico-analítico do espaço e a perspectiva política, no âmbito de um arcabouço econômico planejador, é bem construída por Doreen Massey: o entendimento da organização geográfica é fundamental para se compreender a economia e a sociedade. A geografia da sociedade faz diferença no modo como esta funciona. Se isso é verdade em R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 45 25 François Perroux (1964, 1967), pensador da economia política do espaço, pode ser considerado pioneiro numa sistematização conceitual que concebe o espaço como elemento multidimensional. O autor propõe uma distinção entre o espaço banal, concreto, “geonômico” e o espaço abstrato ou “econômico”. O espaço banal diz respeito ao plano concreto, o continente cujo conteúdo é a vida social em sua totalidade. O espaço econômico, por sua vez, diz respeito a um plano paralelo abstrato envidado pelas múltiplas relações sociais e fluxos econômicos “delocalizados”, que conferem ao espaço um caráter multifacetado, composto por pelo menos três dimensões analíticas: é um espaço definido por um “plano relacional” (onde são estabelecidas relações entre elementos sociais e econômicos, como firmas e seus fornecedores de insumos e compradores de produtos); é um espaço caracterizado como um “campo de forças” (centros dos quais emanam forças centrípetas e centrífugas); e é um espaço visto como um “agregado homogêneo” (homogeneous aggregate), habitado por unidades econômicas que se avizinham e apresentam estruturas mais ou menos homogêneas. P L A N E J A M E N T O termos analíticos, também o é em termos políticos. Para que haja alguma esperança de alterar a geografia fundamentalmente desigual da economia e da sociedade [capitalista], faz-se necessária uma política que ligue as questões da distribuição geográfica às da organização social e econômica. (Massey,1984 apud Soja, 1993, p.84) 26 “Regions and space are a neglected but necessary dimension of the theory and the practice of economic development. Without the spatial point of view, the analysis is incomplete”. Lucas Linhares é economista do BNDES, mestre em Economia pelo Cedeplar/UFMG. E-mail: [email protected] Artigo recebido em setembro de 2008 e aprovado para publicação em janeiro de 2009. Nesses termos, o regime de acumulação seria moldado pela produção social do espaço, donde a compreensão do capitalismo urbano-industrial contemporâneo e das relações sociais que lhe são características não prescinde de uma perspectiva espacializada. Reafirmamos assim o papel do espaço na teoria social crítica. “As regiões e o espaço conformam uma negligenciada, porém necessária, dimensão da teoria e da prática do desenvolvimento econômico. Sem o ponto de vista espacial, a análise é incompleta”26 (Friedmann & Alonso, 1964, p.1). Diante disso, chegamos ao entendimento de que uma teoria do planejamento deve ser necessariamente espacializada. Endossamos a perspectiva grega além-milenar de que a socioeconomia das cidades e regiões constituem o objeto de reflexão da teoria do planejamento. O espaço, hoje mais do que nunca, é revelador da realidade econômica e social, porquanto deve ser concebido criticamente de forma a sustentar um projeto de desenvolvimento. Sendo o âmbito econômico a esfera hegemônica no capitalismo urbano-industrial, o planejamento do desenvolvimento prima por orientar a configuração econômicoespacial real por uma via emancipatória que signifique melhores condições de reprodução ao conjunto da sociedade, de sorte que esta adquira maior autonomia na apropriação e produção social de seu próprio espaço. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES (1997). Política. Brasília: Editora UnB. CASTELLS, M. (1977). The Urban Question. Londres: Edward Arnold. __________. (1999). A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura – A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra. EDITORA NOVA CULTURAL (2000). Aristóteles – Vida e Obra. São Paulo: Nova Cultural. FRIEDMANN, J.; ALONSO, W. (eds) (1964). Regional Development and Planning. Cambridge, Massachussets: MIT Press. FRIEDMANN, J. e WEAVER, C. (1979). Territory and Function: the evolution of regional planning. Los Angeles: University of California Press. FRIEDMANN, J. (1987). 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Specifically in the field on Political Economy which is dominated by neoclassical corpus, searching for general theoretical schemes tends to neglect the “space” as analytical category. Initially, this paper aims to make an epistemological discussion and to make a critical assessment of the embodiment of the “mechanical paradigm” by the Planning Theory. Moreover, this paper intends to put the space on foreground of the Social Theory, i.e., the space is taken as a fundamental category to comprehend the capitalist dynamics. Looking into socially built space allows us to reach a socio-spatial dialectics and hence a more comprehensive Social Theory and a stronger Planning Theory. K 48 E Y W O R D S Planning; socio-spatial dialectics; modernity; social space. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 TEMPOS, IDÉIAS E LUGARES O ENSINO DO PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL NO BRASIL R O S É L I A P É R I S S É D A S I LVA P I Q U E T ANA CLARA TORRES RIBEIRO R E S U M O O artigo resgata, de forma sintética, mudanças observadas no perfil dos cursos de pós-graduação em planejamento urbano e regional no Brasil frente a transformações na economia e no sistema nacional de planejamento. O tema é tratado segundo uma periodização que destaca idéias-mestras de quatro fases do debate nacional sobre planejamento, incluindo seus vínculos com leituras do território: década de 1950 e início da década de 1960 (planejamento para a mudança e relevância da questão do desenvolvimento); década de 1970 e início da década de 1980 (planejamento tecnocrático e controle da escala nacional); décadas de 1980 e 1990 (predomínio da gestão e centralidade atribuída às forças do mercado); tendências atuais (retorno à questão do desenvolvimento e crescente preocupação com o planejamento de longo prazo). PA L AV R A S tema urbano; região. - C H AV E Pós-graduação; planejamento; desenvolvimento; sis- INTRODUÇÃO Desenvolvimento, tema banido da agenda econômica nacional nos últimos 25 anos, retorna ao centro das atenções e, com ele, o papel do planejamento e da formação de pessoal qualificado. Voltam à cena as análises sobre os motivos que induziram o nosso desenvolvimento a apresentar um caráter espacial e socialmente tão desigual. Retomam-se, enfim, as questões de longo prazo, buscando as razões que, nas palavras de Celso Furtado, levaram à construção interrompida do país. A constatação desse fato motivou a elaboração do presente texto, que tem como escopo mais amplo o resgate, ainda que sintético, de mudanças observadas no perfil dos cursos de planejamento urbano e regional no Brasil frente às transformações ocorridas no plano econômico e no sistema de planejamento nacional. O tema é tratado segundo uma periodização que seleciona quatro fases históricas distintas, sendo que, em cada uma, são destacadas as idéias-mestras imperantes no período, segundo suas vinculações teórico-ideológicas. A primeira fase é construída pelas principais concepções de desenvolvimento e subdesenvolvimento dos anos 1950 e 1960 que, no cenário latino-americano, corresponde à fase do “planejamento para a mudança”, quando são lançados os primeiros cursos sobre planejamento na América Latina. A seguir, analisa-se a fase marcada pela conquista do poder por grupos antagônicos aos princípios democráticos, e se aprofunda o caráter centralizador, autoritário e tecnocrático das estruturas de planejamento então existentes. Nesse período, o ensino de planejamento urbano e regional institucionaliza-se em nossas universidades, com a implantação de cursos de pós-graduação stricto sensu. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 49 T E M P O S , I D É I A S E L U G A R E S Na terceira fase, indica-se como a crença exacerbada no jogo das forças de mercado leva à rejeição do planejamento, e os cursos da área perdem sua marca de cursos de planejamento e deslocam seus currículos para o campo dos estudos urbanos e regionais. Nessa fase, enquanto a questão regional perde centralidade, os temas urbanos/locais ganham proeminência. Finalizando o texto, são indicadas as condições da atual retomada das políticas econômicas de longo prazo e o perfil dos cursos da área, que adquirem novas dimensões em número, localização e conteúdo. Nos mais recentes cursos propostos à Capes, não só novos temas são incorporados aos currículos, como também a questão regional é revisitada. PLANEJANDO O DESENVOLVIMENTO 1 Segundo Celso Furtado (1961), a falta desse esforço teórico teria levado muitos economistas a explicar, por analogia com a experiência das economias desenvolvidas, problemas que só poderiam ser bem equacionados a partir de uma adequada compreensão do fenômeno do subdesenvolvimento. No longo período de crescimento econômico e de modernização das estruturas sociais que as sociedades capitalistas ocidentais atravessaram após a Segunda Guerra Mundial, ganham relevo teorias sobre desenvolvimento, em que as políticas públicas compensatórias de base keynesiana são vistas como capazes de fazer frente às fases recessivas dos ciclos econômicos e, de forma complementar, de reduzir desequilíbrios sociais e setoriais derivados da estrita lógica do mercado. O Estado é percebido como o agente político e econômico apto a conduzir projetos de desenvolvimento que resultariam não apenas na expansão do produto e do emprego, mas também, na superação das desigualdades espaciais. É nesse contexto que o planejamento, até então considerado inerente e exclusivo do sistema socialista, passa a ser aceito e adotado pelos países capitalistas, porquanto é visto como uma técnica de aplicação de políticas. Boa parte dos economistas mais importantes da época, como Jan Timberger, Gunnar Myrdal, François Perroux e Vittório Marrama, acreditava no planejamento, sendo as suas concepções amplamente aceitas nos meios especializados latino-americanos. Na América Latina, não só havia um paradigma aceito por atores políticos e sociais de grande relevância, como também o desenvolvimento econômico era um objetivo compartilhado. Acreditava-se, firmemente, ser o Estado o principal responsável pelo desenvolvimento. Um Estado investidor, regulador e, ainda, protetor do mercado interno e da indústria nacional. O pensamento da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) dominava as análises sobre os processos de crescimento das economias latino-americanas e orientava muitas das propostas de política econômica nesse período. Albert Hirschman, Raul Prebisch e Celso Furtado eram seus principais representantes. O debate da época voltavase para as idéias de crescimento, desenvolvimento, subdesenvolvimento e centrava-se em questões relativas à possibilidade de universalização dos padrões de produção e consumo praticados nos países que lideraram a revolução industrial. Furtado, o maior expoente do pensamento econômico sobre o tema no Brasil, assinalava então que “o subdesenvolvimento é um processo histórico autônomo, e não uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimento” (Furtado, 1961:180). Portanto, sendo o subdesenvolvimento um fenômeno específico, requereria um esforço de teorização autônomo.1 Prebisch, em linhas gerais, argumentava que, até o período da grande depressão dos anos 1930, os países da América Latina tiveram sua dinâmica interna determinada pelo crescimento persistente das exportações, mas que essa alternativa não mais se apresenta50 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 R O S É L I A P. D A S I L V A P I Q U E T , A N A C L A R A T . R I B E I R O va. Isso levaria a concluir que a industrialização seria uma imposição dos fatos e, longe de ser uma escolha, seria a única via de desenvolvimento deixada aos países exportadores de produtos primários. Propunha uma estratégia de crescimento “para dentro”, dinamizada por uma “industrialização substitutiva”, com forte intervenção do Estado.2 Essas idéias passam a influenciar importantes partidos políticos e governos da região, que, sob essas concepções, apresentam propostas de planos nacionais de desenvolvimento econômico e social, com base no avanço do processo de industrialização. No cenário latino-americano, esta é a fase do “planejamento para a mudança”. À medida que o planejamento ganha impulso, os diagnósticos passam a destacar a natureza espacialmente desigual da distribuição de recursos. A proposta centrada na industrialização trazia implícita a contradição entre a aceleração das taxas de crescimento econômico e a equidade interregional. Um crescimento a taxas mais elevadas poderia ser atingido concentrando-se investimentos nas zonas mais desenvolvidas – as de maior produtividade e com um mercado consumidor com grande potencial de ampliação –, embora sob o risco de ampliação das desigualdades regionais. Caberia ao Estado, frente a este risco, compensar as “tendências do mercado”, e os quadros técnicos, com freqüência, julgavam ter o poder de atribuir funções e de definir o destino das regiões. A crença no planejamento é então inconteste, o que leva Mattos a considerá-lo 2 As idéias básicas de Raul Prebisch foram publicadas em seu artigo “El desarrollo económico de la América Latina y algunos de sus principales problemas”. Boletin Económico para América Latina, CEPAL, fevereiro de 1961. uma das idéias medulares que marcam as peculiaridades do século XX, na medida em que foi a primeira ocasião ao longo da história da humanidade na qual se generalizou a crença de que o ser humano teria a plena capacidade para empreender e construir um futuro desenhado antecipadamente por ele. (Mattos, 2001:23) No Brasil, a partir da década de 1940, várias foram as tentativas de coordenar, controlar e planejar a economia; mas, até 1956, essas tentativas limitaram-se à formulação de diagnósticos, propostas, medidas setoriais ou de racionalização do processo orçamentário. Até então, o planejamento regional havia se restringido a esforços voltados ao desenvolvimento de bacias hidrográficas e, no plano urbano, a experiências de cidades planejadas segundo princípios do urbanismo funcional-racionalista. É com o Plano de Metas do Governo Juscelino Kubitschek (1956 -1961) que tem início, de modo mais consistente, o planejamento governamental. A decisão de planejar é essencialmente uma decisão política, pois, segundo Lafer, “é uma tentativa de alocar explicitamente recursos e, implicitamente, valores, através do processo de planejamento e não através dos demais e tradicionais mecanismos do sistema político” (Lafer,1970:30). Na decisão de planejar incide, também, um conjunto de problemas concretos relacionados principalmente à disponibilidade de pessoal técnico qualificado, à existência de informações acessíveis, à capacidade de geração de projetos e programas no setor público e no setor privado e, ainda, à possibilidade de coordenação entre setores e regiões. Neste sentido, eram especialmente precárias as condições existentes do Brasil na época. O ingresso no serviço público pelo sistema de mérito (concurso público), embora exigência legal desde a Constituição de 1934, era ainda muito limitado: cerca de 10 a 17%. Diante dessa situação, foram apresentadas duas alternativas para a preparação do Plano de Metas: prosseguir na tentativa de uma reforma total da administração pública federal ou criar órgãos paralelos à administração normal, os “grupos executivos”, que seriam encarregados da implementação do plano, sendo essa a opção adotada.3 Além dessas limitações, R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 51 3 É preciso lembrar que em 1958, segundo dados do censo do servidor público federal, havia 229.422 funcionários públicos federais, porém apenas 28.406 eram concursados. Diante desta limitação, foram acionados os órgãos onde predominava o sistema do mérito, como era o caso do BNDE, Banco do Brasil, Superintendência da Moeda e do Crédito–SUMOC, e foram convocadas outras competências disponíveis na administração pública. T E M P O S , 4 Wilson Cano se destaca ao analisar em profundidade as condições da concentração industrial em nosso país. Seu livro Raízes da Concentração Industrial em São Paulo tornou-se um clássico da literatura sobre o tema. 5 Quando se procurou dotar o país de um parque industrial moderno, não se cogitou a imposição de normas quanto à localização, seja em termos regionais ou intra-urbanos. As decisões quanto à localização, ao serem tomadas livremente, pautadas unicamente por critérios de rentabilidade privada, provocam uma elevada concentração territorial, e os diferenciais de renda inter-regionais se ampliam. I D É I A S E L U G A R E S era restrita a disponibilidade de dados e de informações confiáveis sobre a economia brasileira, o que dificultava o detalhamento e a compatibilização de metas entre setores e entre regiões. Embora o Plano de Metas seja considerado exitoso, pois a maior parte de seus objetivos teve elevado grau de concretização, as medidas de política econômica adotadas foram baseadas em mecanismos concentradores de renda – não só por estratos sociais como também por regiões – e tenderam a beneficiar o eixo Rio–São Paulo.4 Os desníveis interregionais se ampliaram; mas, estes efeitos da implementação do Plano foram considerados inerentes ao estágio de desenvolvimento do país. Esperava-se que a indústria, no futuro, irradiaria dinamismo aos demais segmentos da economia nacional e conduziria a uma gradual redução das desigualdades inter e intra-regionais. Entretanto, no decorrer dessa fase da economia brasileira, os desequilíbrios regionais se agravam e as tensões sociais no Nordeste tornam-se explosivas, passando a ser vistas como uma questão de segurança nacional. É exatamente neste momento que é elaborada a primeira Política de Desenvolvimento Regional sob a condução de Celso Furtado, sendo que a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959, traduz a tentativa de redefinição das relações entre o centro hegemônico e essa região.5 A esmagadora maioria da produção intelectual brasileira sobre a dimensão territorial do desenvolvimento é então voltada para as questões relativas à concentração industrial e aos chamados “desequilíbrios regionais”. O desenvolvimento urbano ainda não é considerado uma questão relevante e não há no Plano de Metas proposições específicas para o seu tratamento. Neste contexto, a construção de Brasília pode ser interpretada muito mais como uma resposta à necessidade de incorporação de novas áreas ao circuito da acumulação capitalista. O próprio Plano de Metas considera Brasília um “ponto de germinação”, capaz de constituir-se em uma nova frente de expansão econômica. À medida que se ampliavam os sistemas de planejamento latino-americanos, considerou-se relevante a formação de especialistas, dado tratar-se de atividade nova, para a qual as diferentes administrações públicas nacionais careciam de pessoal qualificado. A Organização dos Estados Americanos (OEA), a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e o Instituto Latino-Americano e do Caribe de Planificação Econômica e Social (Ilpes) realizaram os primeiros esforços na formação de recursos humanos para apoiar e guiar os trabalhos de elaboração dos planos econômicos dos países da região. Nesse início, as dimensões regional e urbana foram tratadas de forma marginal, uma vez que o planejamento era dominado por economistas, mais preocupados com a “planificação do desenvolvimento nacional” do que com o impacto social e espacial que poderiam ter os planos que preparavam. (Hardoy, 1990:11). A acumulação de capital nesta fase – aqui e no mundo – era muito mais localizada em seu circuito de reinversão do que é hoje. As empresas cresciam em cada planta produtiva e esperava-se que a sua inscrição territorial durasse décadas. Assim, os diagnósticos elaborados como primeira etapa do processo de planejamento passam a destacar a importância das desigualdades regionais e a recomendar a incorporação de medidas capazes de enfrentá-las. Os governos dos países latino-americanos procuram então pôr em prática diversas formas de intervenção, com o objetivo de reduzir os chamados desequilíbrios interregionais e aumentar a capacidade de consumo da população de regiões mais atrasadas. Em quase todos os países da região, são propostas políticas de desconcentração da indústria e de modernização do setor agrícola, de modo a integrar as estratégias de desenvolvimento regional às do planejamento nacional. 52 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 R O S É L I A P. D A S I L V A P I Q U E T , A N A C L A R A T . R I B E I R O Assim, ao desenvolvimento encontrava-se associada uma metodologia de como planejar, e nos primeiros cursos oferecidos não havia dúvida sobre o que deveria ser ensinado. Os princípios teóricos provinham do pensamento da Cepal e do Ilpes, e os manuais de metodologia para a programação econômica eram as peças-chave da bibliografia básica desses cursos. O pessoal qualificado para atuar nos principais órgãos de planejamento tinha sua formação aprimorada em universidades européias e no Chile, sede da Cepal e do Ilpes. O longo período de prosperidade do mundo ocidental entre o fim da Segunda Guerra Mundial até meados dos anos 1970, conhecido como os “trinta anos de ouro” do capitalismo, é bruscamente interrompido por uma profunda crise econômica que afeta países como os Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França. Na América Latina, multiplicam-se os golpes de Estado, gerando um quadro político dominado por regimes altamente repressores dos direitos civis e sociais fundamentais. O Brasil foi “precursor” nesse campo, pois uma década antes da instalação de ditaduras nos outros países latino-americanos, o término do mandato de Juscelino Kubitschek é marcado por grande instabilidade política e econômica, que culmina com o Golpe de Estado de 1964. O FUTURO DESENHADO AUTORITARIAMENTE Ao assumirem a direção do país em março de 1964, os militares adotam um discurso modernizador, comprometido com a retomada do crescimento econômico. Procuram legitimar o exercício do poder argüindo princípios de racionalidade econômica, justificando, assim, a adoção de políticas econômicas concentradoras e excludentes. É no período militar que o planejamento atinge seu auge no país, com a proposição de cinco planos: Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG, 1964-67), Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED, 1967-69), Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND, 1969-74), Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND, 1974-79) e Terceiro Plano Nacional de Desenvolvimento (III PND, 1979-84). O PAEG e o PED geraram poucas mudanças na organização territorial do país. O primeiro era voltado a implementação de políticas de curto prazo que visavam o controle das taxas inflacionárias, a retomada de relações com os organismos internacionais de financiamento e a redução da insatisfação decorrente do déficit habitacional e da precariedade do transporte urbano. Com o PED, o segundo plano do período militar, a recuperação econômica se processa basicamente por meio da utilização da capacidade ociosa da indústria instalada desde o período do Plano de Metas. É só a partir do I PND que a dimensão espacial do processo de desenvolvimento é vista sob novo formato, diverso dos recortes regionais até então dominantes. A incorporação de novas áreas ao circuito produtivo - tais como o sul do estado do Pará com sua rica reserva mineral de Carajás e as vastas áreas agriculturáveis do Centro-Oeste - impôs um olhar de conjunto mais complexo sobre o território. Desprezando as regiões tradicionais, a estratégia adotada pelo I PND será baseada nos chamados programas especiais, tais como: Programa Especial do Centro-Oeste; Programa Especial da Região Geoeconômica de Brasília; Programa Especial do Oeste do Paraná; Programa Especial do Grande Dourado; Programa de Desenvolvimento Integrado da Bacia do Araguaia-Tocantins; Programa de Pólos Agropecuários e Agro-minerais da Amazônia; Programa de Áreas Irrigadas do Nordeste; Programa de Desenvolvimento do Cerrado, entre tantos outros. Trata-se de uma R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 53 T E M P O S , I D É I A S E L U G A R E S outra lógica de ocupação territorial, em que o planejamento baseado nas agências regionais de desenvolvimento perde importância. O II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) corresponde ao projeto “Brasil: Grande Potência no Final do Século”, que é o programa do governo que se inicia em março de 1974. O II PND tem como base um elenco de projetos formulados e implantados diretamente pelo setor público. Se, na etapa anterior, os programas especiais romperam as fronteiras de antigas regiões e impuseram uma leitura da totalidade do território nacional, no II PND os grandes projetos de desenvolvimento irão definir novas regiões. É ainda no âmbito deste plano que a dimensão urbana do desenvolvimento do país adquire maior visibilidade. Ganham vulto as questões relativas ao “congestionamento” das grandes metrópoles e surgem as primeiras propostas de desconcentração industrial. Para implementar a política de desenvolvimento urbano, foi criada, em 1974, a Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU). O Banco Nacional de Habitação (BNH), que já vinha sendo preparado para assumir encargos relativos ao desenvolvimento urbano, institui programas que abrangem a infra-estrutura (Plano Nacional de Saneamento–Planasa e Projeto Comunidade Urbana para Recuperação Acelerada–Cura), a implantação de novas comunidades urbanas (Projeto de Apoio ao Desenvolvimento dos Pólos Econômicos–Prodepo), o transporte de massa (Programa de Integração de Transportes Urbanos–Piturb) e o planejamento urbano (Programa de Financiamento para o Saneamento–Finansa). São igualmente ligadas à questão da desconcentração urbana as propostas referentes ao fortalecimento dos centros de porte médio. Estas propostas deram origem ao “Programa de Apoio às Capitais e Cidades de Porte Médio”, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU). As cidades médias teriam – segundo os documentos que embasam esse programa – o papel de propiciar a criação de novos pontos de desenvolvimento no território nacional, de estimular a desconcentração de atividades econômicas e de população, de criar novas oportunidades de emprego e de contribuir para a redução das disparidades interregionais e da concentração da renda. Assim, a preocupação com a intensidade do crescimento demográfico das metrópoles nacionais – que absorviam grande parte do contingente populacional com origem nas zonas rurais das diversas regiões do país – levou à proposição de uma nova função para as cidades de porte médio: a de “dique” dos fluxos migratórios. É nesse período que o sistema de planejamento assume um elevado grau de institucionalidade, fazendo com que seja impulsionada a capacitação de pessoal através da criação dos primeiros cursos de pós-graduação no país. Como o projeto dos governos militares era dotar o Brasil de instituições mais fortes no campo da pesquisa tecnológica, foram propostos os primeiros cursos de pós-graduação stricto sensu nas áreas técnicas e em economia. São implantados os programas de mestrado em planejamento urbano e regional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1970), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (1972) e na Universidade Federal de Pernambuco (1975). Em 1967, a Universidade Federal de Minas Gerais já havia criado o Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional–Cedeplar, com a finalidade de abrigar um programa de pesquisa e ensino de pósgraduação na área da Economia Regional. Também em 1967, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada–Ipea, órgão criado em 1964, realiza diagnósticos inéditos da economia nacional, que propiciaram maior conhecimento da dinâmica de numerosos setores. A Secretaria de Planejamento da Presidência da República abrigava, além do Ipea, o Instituto de Planejamento (Iplan) e o Centro de Treinamento para o Desenvolvimento 54 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 R O S É L I A P. D A S I L V A P I Q U E T , A N A C L A R A T . R I B E I R O Econômico (Cendec). Era de tal ordem a importância atribuída à formação de quadros para atuação no sistema de planejamento, que a primeira turma do curso da UFRJ, então sob a responsabilidade da Coordenação dos Programas de Pós-graduação em Engenharia–COPPE, é destinada a técnicos do Banco Nacional de Habitação–BNH, do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo–SERFHAU e órgãos do governo federal envolvidos com o planejamento urbano ou regional. Nesses cursos predominava a formação voltada para as questões nacionais, uma vez que o projeto dos governos militares era transformar o país em uma grande potência no final do século. Acreditava-se que a senda para o desenvolvimento poderia ser trilhada por meio da elaboração de modelos econométricos e demográficos, baseados na geopolítica e na doutrina da Segurança Nacional. A ênfase nas disciplinas quantitativas – em que a Matriz de Insumo-Produto e os princípios da Programação Linear predominavam – e a crença nos princípios do planejamento racionalista dão o “toque de classe” nos cursos da época. Novas influências se fazem presentes no planejamento territorial, como exemplificam a política francesa de aménagement du territoire e as propostas relativas aos pólos de crescimento. Ambas tiveram ampla aceitação nos meios técnicos e serviram de base a propostas de regionalização do território nacional e a estratégias de desenvolvimento.6 Em março de 1979 inicia-se o último governo militar, quando evidenciam-se os sinais da desaceleração do crescimento da economia. No início dos anos 1980, o país enfrenta uma grave recessão: queda nos investimentos e no crescimento do produto interno, aumento das dívidas interna e externa, aceleração do processo inflacionário e renda per capita praticamente estagnada. Nestas circunstâncias, o regime militar se vê deslegitimado, uma vez que a tão propalada “eficiência econômica” não se sustentou na prática. Em 1985, assume o governo um presidente civil, eleito indiretamente pelo Congresso Nacional. O PLANEJAMENTO DOS NÍVEIS SUBNACIONAIS Novas tendências da dinâmica socioeconômica mundial manifestam-se a partir de meados dos anos 1970, configurando um cenário significativamente diferente daquele do período do segundo pós-guerra, e pondo em cheque o planejamento econômico. Mudanças em curso trazem uma problemática nova quanto ao processo de acumulação de capital: o grande capital passa a ter uma enorme ubiqüidade, podendo localizar-se em qualquer região e produzir em qualquer outra, e esta, por sua vez, não passará de uma opção entre muitas alternativas. Este não é mais um capital enraizado em seu circuito de reinversão. Ao contrário, cada parte desse capital articula-se diretamente com outras em escala global, integrando-se cada vez menos nas estruturas de produção regional ou nacional. Questiona-se, assim, se estariam ocorrendo a “dissolução das regiões” e a “aniquilação do espaço pelo tempo” (Harvey, 1992), pois, segundo Coraggio, “o capital pode moverse a uma velocidade que guarda pouca relação com os tempos sociais ou os tempos políticos” (Coraggio, 1999:60). No caso da América Latina, a crise fiscal do Estado e o esgotamento do modelo de crescimento sustentado pela industrialização, fortemente dependente de investimentos do setor público, conduzem à perda de legitimidade, e conseqüente enfraquecimento dos sistemas nacionais de planejamento. Em nosso país, o planejamento passa a ser criticado e rejeitado, posto que identificado com o autoritarismo do período militar, no qual foram R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 55 6 A Teoria dos Pólos de Crescimento, desenvolvida por François Perroux e seus colaboradores, surgiu como uma tentativa de resposta aos problemas criados pelos desequilíbrios setoriais e espaciais. Teve larga aceitação nos meios acadêmicos do país, mas sua aplicação encontrou obstáculos por apresentar certa imprecisão em conceitos centrais. T E M P O S , 7 Embora o planejamento regulatório clássico das décadas anteriores não tenha deixado boas lembranças, pois no caso brasileiro é estreitamente relacionado ao autoritarismo do regime militar, a mudança de ênfase para “menos planejamento e mais gestão” encobre uma falácia, uma vez que nenhuma ação (e quanto mais a direção de uma cidade ou país!) prescinde de um mínimo de “planejamento” e também porque o planejamento e a gestão pressupõem ações complementares, não-conflitantes. Essas questões podem ser mais bem entendidas em Carlos Vainer (2002). Marcelo Lopes de Souza (2006) também desenvolve uma longa discussão sobre as mesmas questões. I D É I A S E L U G A R E S atualizados conteúdos da dependência econômica, das desigualdades sociais e das disparidades regionais. Neste cenário, caracterizado por dinâmicas econômicas heterogêneas e distribuição do poder entre diferentes forças sociais, perdem sentido as tentativas de ressuscitar antigas concepções de planejamento. Com a redemocratização do país e as profundas mudanças no capitalismo, a gestão e as políticas públicas tornam-se radicalmente diferentes das que imperavam na época do planejamento centralizado. Por sua vez, surgem novos desafios para os programas de formação de recursos humanos na área do planejamento. Enquanto na década de 1970 intelectuais de esquerda viam o planejamento como sinônimo de intervenção estatal a serviço dos interesses do capital, nos anos 1980, a rejeição ao planejamento advém dos setores de orientação liberal e se dá por outros motivos: o planejamento estaria servindo mal a esses interesses, uma vez que o Estado deveria apoiar, da forma mais direta possível, a acumulação de capital, eliminando normas, reduzindo exigências legais, oferecendo incentivos fiscais, garantindo segurança aos investimentos e aumentando a fluidez do território. O discurso de base keynesiana é então substituído por outro, de fundamento neoclássico, segundo o qual é o jogo das forças de mercado que permite assegurar um maior crescimento da economia. A idéia básica que emerge desse corpo teórico é que a política econômica deve ter como função principal contribuir para gerar um ambiente atrativo para o investimento privado, descartando a utilização de políticas que impliquem em intervenção direta do Estado na vida econômica, como defendiam os modelos de desenvolvimento das décadas anteriores. Como os investidores dirigem-se para as atividades e espaços onde é mais lucrativo investir, resta aos lugares – regiões e cidades – competir entre si por investimentos, o que estimula o discurso que destaca o papel dos governos locais, vistos como agentes capazes de induzir, mobilizar e promover o crescimento econômico. Postula-se que a taxa de crescimento de um determinado país, região ou, até mesmo, de uma cidade é função do capital físico, do capital humano e de conhecimentos detidos pela coletividade. Postula-se, ainda, que caberia aos governos locais assegurar o fornecimento de equipamentos e serviços, baixar custos tributários e conceder subsídios, oferecendo um “ambiente adequado” à conquista da preferência para a localização de empresas.7 A nova agenda dos organismos multilaterais – fortemente influenciada pelas idéias de desenvolvimento sustentável, competitividade urbana e descentralização administrativa – reforça a tendência à valorização do aumento da competitividade das cidades. Desde o início dos anos 1990, estes organismos apóiam projetos e programas nesta direção, quase sempre negociados diretamente com prefeituras, sem interferência do Estado-nação. Abandona-se a perspectiva do desenvolvimento nacional e espera-se que a descentralização da responsabilidade para os governos locais produza o milagre de resolver os problemas de emprego e renda, miséria, questões ambientais e tantos outros, além de garantir a governabilidade do sistema. O nacional dá lugar ao local, e a gestão substitui o planejamento. Antes, o debate de concepções e projetos estava centrado em torno de questões relativas às desigualdades interregionais, às carências de equipamentos urbanos de uso coletivo e à racionalização do uso do solo, e agora a problemática do desenvolvimento remete ao campo da competitividade. Entra em moda o planejamento estratégico – inspirado e baseado no planejamento estratégico empresarial – no qual se advoga que as cidades devem ser administradas como se fossem empresas, competindo entre si para atrair investimentos ou turistas. E a 56 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 R O S É L I A P. D A S I L V A P I Q U E T , A N A C L A R A T . R I B E I R O expressão empreendedorismo urbano ganha popularidade: o perfil ideal dos novos prefeitos seria o de gestores urbanos, aparentemente mais afeitos aos negócios e ao marketing do que à política.8 Assim, com o enfraquecimento do Estado-nação, o planejamento na escala nacional cai em descrédito e os programas de pós-graduação, concebidos para a formação de pessoal na área, são mantidos mas têm seus currículos direcionados para estudos urbanos e regionais, em que o regional perde posição e as questões intra-urbanas ganham proeminência, inclusive pela relevância dos processos de organização social e política que permitiram o reconhecimento de direitos urbanos na Constituição Federal de 1988. É sintomático da crise do planejamento territorial, porém, que no período de quase 20 anos (entre 1975 e 1993), nenhum novo curso tenha sido implementado na área. Contudo, evidências empíricas da escala internacional, relacionadas ao desempenho da economia, passaram a indicar que a aceitação incondicional do neoliberalismo não promovia maiores taxas de crescimento e, muito menos, a redução da concentração de renda, seja no plano individual e familiar seja no plano das nações ou regiões. Ao contrário, esta aceitação provocava o acirramento das desigualdades sociais e espaciais. Com isso, novas vozes aparecem – não apenas aqui como também nos países pioneiros na aplicação dos princípios teóricos e ideológicos do neoliberalismo –, promovendo o debate sobre as políticas de longo prazo. Um debate que, cada vez mais, explicita a centralidade do espaço e, assim, dos conflitos e tensões relacionados à apropriação de recursos estratégicos. PARA PENSAR O LONGO PRAZO: CONCLUINDO O Brasil passou por profundas mudanças em todo o período analisado no presente texto, dando um salto gigantesco em sua base produtiva. Um salto apoiado pela difusão das redes de comunicação e informação, por mudanças institucionais e pelas novas formas de financiamento da economia. A expansão das condições técnicas de produção por todo o território nacional embora alterasse a direção dos fluxos de mercadorias e a natureza dos movimentos migratórios ou, ainda, provocasse a emergência de novas regiões econômicas, não foi capaz de fazer face à profunda desigualdade dos padrões de vida e às precárias relações de trabalho vigentes no campo e na cidade. Não foi capaz de superar a heterogeneidade estrutural com todas as suas conseqüências sociais. Desde 2005, o país dá claros sinais de recuperação econômica, e se volta a falar na importância de pensar o longo prazo. Neste contexto, as concepções de desenvolvimento passam a ser mais uma vez tema relevante nos debates sobre os destinos do país. O enfrentamento teórico e político dessa questão requer avançar nas análises territoriais com pesquisas que busquem identificar a lógica de funcionamento dos vários circuitos de valorização do capital, em seus vínculos com as condições de vida da população. Para que seja reconhecida a dimensão deste desafio, convém destacar que, no país, como afirma Brandão, seguindo as concepções de Tânia Bacelar e Celso Furtado, “nunca as diversidades produtivas, sociais, culturais, espaciais (regionais, urbanas e rurais) foram usadas no sentido positivo. Foram tratadas sempre como desequilíbrios, assimetrias e problemas”. (Brandão, 2007: 205) O autor alerta-nos, assim, para a necessidade de que sejam reconhecidas as potencialidades existentes na diversidade, o que implica na articulação entre processos econômicos transescalares e a história, relativamente autônoma, de regiões e lugares. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 57 8 Na análise de Vainer (op cit), os novos prefeitos teriam a “legitimidade” que os políticos “corrompidos” perderam e poderiam falar em nome de uma vontade única, que visaria antes de tudo defender e promover a “cidade” (vista como homogênea), em um processo despolitizador e autoritário, em que desapareceria a cidade do encontro e do confronto entre cidadãos. T E M P O S , Rosélia Périssé da Silva Piquet é doutora em Economia, professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do CNPq. Coordenadora do Mestrado em Planejamento Regional e Gestão de Cidades, da Universidade Candido Mendes–Campos. E-mail: [email protected] Ana Clara Torres Ribeiro é socióloga, doutora pela USP, professora do IPPUR/ UFRJ e pesquisadora do CNPq e da FAPERJ. Coordenadora do Grupo de Trabalho Desenvolvimento Urbano do CLACSO. E-mail: ana_ [email protected] Artigo recebido em novembro de 2008 e aprovado para publicação em fevereiro de 2009. I D É I A S E L U G A R E S Estamos diante, portanto, da necessidade de uma urgente resposta às seguintes perguntas: qual o novo perfil do profissional de nossa área? Quais são os conteúdos disciplinares e técnicos do planejamento socialmente necessário? (Ribeiro, 2002) Podemos reconhecer nossos cursos como ainda voltados à formação de planejadores? Acreditamos ser possível responder afirmativamente a esta última pergunta quando levamos em conta os acúmulos de conhecimento e o fato de o Brasil ser um país continental, periférico e ainda subdesenvolvido, e que requer ser mais bem entendido, sobretudo para propiciar uma apropriação mais justa de seu território. Questionar os interesses constituídos nos mais de cinco mil municípios, distribuídos numa grande variedade de contextos regionais, e estudar o papel exercido pelo capital imobiliário e industrial, pelo agronegócio, pelo capital financeiro, pelas organizações políticas e sociais nas mudanças territoriais são, sem dúvida, tarefas do presente. Além disso, o rescaldo da implantação abrupta e descoordenada das políticas liberais da década de 1990 ainda está por ser feito – uma implantação que trouxe perdas institucionais, destruição de investimentos pretéritos e o agravamento da crise social. A descentralização administrativa, determinada pela Constituição Federal, traz novas questões relacionadas à procura de pessoal qualificado. A consolidação deste processo vem exigindo um melhor aparelhamento das administrações públicas locais, com o conseqüente aumento da demanda por profissionais para atuar em prefeituras e órgãos públicos em geral. Embora o planejamento, neste âmbito, geralmente se limite a ser um esforço de coordenação administrativa, que não chega ao estágio de produzir efetivas mudanças estruturais, a ampliação de conhecimento de processos econômicos, sócioespaciais e culturais poderá expandir a capacidade de ação do corpo técnico envolvido nas tarefas administrativas. As mudanças em curso na economia, na administração de recursos e nas formas de organização dos interesses sociais evidenciam a necessidade de que o ensino do planejamento urbano e regional assuma diferentes programas e projetos entre as instituições de ensino, com vistas a atender às demandas regionais e locais de formação profissional (Piquet el al, 2005). O desafio é reconhecer e tratar as diferenças sem gerar perdas teóricas; aderir a modelos desconectados dos contextos investigados; aceitar modismos e cair em casuísmos. Mas, este desafio inclui, também, a superação de generalizações que, por estimularem falsas homogeneidades, pouco avançam no conhecimento da diversidade que caracteriza o país. Sem dúvida, cada vez mais, a sociedade brasileira requer ser mais bem conhecida, o que dependerá da promoção de debates, entre especialistas e atores políticos, centrados na construção de um futuro socialmente mais justo e territorialmente menos desigual. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRANDÃO, C. (2007) Território & Desenvolvimento – as múltiplas escalas entre o local e o global. Campinas: Editora Unicamp. CANO, W. (1977) Raízes da concentração industrial em São Paulo. Rio de Janeiro: Difusão Editorial, Coleção Corpo e Alma do Brasil, N. 53. CORAGGIO, J.L. (1988) Territorios en transición: crítica a la planificación en America Latina. Quito: Ciudad. FURTADO, C. (1961) Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura. 58 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 R O S É L I A P. D A S I L V A P I Q U E T , A N A C L A R A T . R I B E I R O HARDOY, J. E. (1990) La investigación urbana en América Latina durante las últimas décadas. In: CORAGGIO, J. L. (Org). La investigación urbana en América Latina. Caminos recorridos y por recorrer. Quito: Ciudad. HARVEY, D. (1992) Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola. INSTITUTO LATINOAMERICANO DE PLANIFICACIÓN ECONOMICA Y SOCIAL (1965) Debates sobre Planejamento. Rio de Janeiro: SEDEGRA. LAFER, C. (1970) O Planejamento no Brasil: Observações sobre o Plano de Metas (1956-1961). In: LAFER, B.M. (Org). Planejamento no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva. MATTOS, C. A. (2001) La Gestión Urbano-Regional en un Escenario Globalizado: nuevos retos para su enseñanza. 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The subject is organized under periods which highlights the master ideas of four phases of the national debate on planning, including its bonds to territorial interpretation: the 50´s decade and beginning of the 60’s decade (planning to the changing and relevance of the development question); 70’s decade and beginning of the 80’s decade (technocratic planning and control of the national scale); 80’s decade and 90’s (predominance of the management and centrality attributed to the forces of the market); current tendencies (return to the development question and growing concern with the long-term planning). K E Y W O R D S Graduate courses; planning; development; urban system; region. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 59 OS LIMITES POLÍTICOS DE UMA REFORMA INCOMPLETA A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI DOS RECURSOS HÍDRICOS NA BACIA DO PARAÍBA DO SUL* ANTÔNIO A. R. IORIS R E S U M O Na última década, o uso e a conservação dos recursos hídricos no Brasil têm sido objeto de um amplo processo de reformas e reorganização institucional. A experiência da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul foi selecionada como um exemplo paradigmático das reformas institucionais em andamento no país. Fazendo uso de métodos qualitativos de pesquisa, foram analisados os objetivos e as deficiências da nova decisória. O estudo identificou, como limitante fundamental, a afirmação de uma racionalidade tecnoburocrática, empregada tanto na avaliação de problemas, quanto na formulação de respostas. A expressão mais evidente é a importância estratégica atribuída à cobrança pelo uso da água, uma ferramenta de gestão altamente controvertida e que tem levado a uma polarização de posições políticas. Em larga medida, as reformas institucionais no Paraíba do Sul têm sido limitadas em si mesmas, uma vez que a nova estrutura ainda impede a incorporação das demandas da maioria da população local e a resolução efetiva de questões ambientais historicamente estabelecidas. PA L A V R A S - C H A V E Hidropolítica, Ecologia Política, Gestão Integrada de Recursos Hídricos, Cobrança pelo Uso da Água, Instrumentos Econômicos, Paraíba do Sul. INTRODUÇÃO: O CONTEXTO DAS REFORMAS DE GESTÃO AMBIENTAL A modernidade brasileira tem como características fundamentais não somente a alteração da estrutura produtiva e das relações intersociais, como também a acentuada apropriação dos recursos naturais e o comprometimento da estabilidade ecológica em todos os cantos do país. O processo de modernização, desencadeado especialmente a partir de 1930, produziu uma profunda complexificação socioeconômica, expansão agroindustrial e reorganização política, mas sem que tenha havido cuidado para se evitar o aprofundamento da degradação ambiental, legado da exploração agrária colonial, e o surgimento de novos conflitos relacionados ao uso do meio ambiente. A origem e o significado da problemática ambiental devem ser, portanto, entendidos como parte integrante de um processo de desenvolvimento socioeconômico essencialmente limitado e contraditório. Seguindo a terminologia sugerida por Habermas, a modernidade brasileira foi e continua sendo um “projeto incompleto”, caracterizado por resultados econômicos efêmeros, desigualmente distribuídos e às custas de uma devastação ambiental generalizada. Entre as diversas contradições ambientais da história recente do desenvolvimento nacional, no que se incluem a poluição atmosférica, a degradação do solo e a dependência do automóvel privado, as questões de acesso, uso e conservação de recursos hídricos certamente ocupam uma posição de destaque. Cabe relembrar que a manipulação dos estoques hidrológicos nunca deixou de ter um papel estratégico na industrialização e urbaR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 61 * Este artigo é parte dos resultados de pesquisa realizada em 2007, durante período de pós-doutoramento junto ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), sob coordenação do Prof. Dr. Henri Acselrad. Faz-se um sincero agradecimento ao apoio financeiro proporcionado pelo CNPq (protocolo PDJ-155167/2006-5). O mesmo agradecimento se estende a todos que contribuíram com informações e aos que gentilmente aceitaram ser entrevistados. O S 1 Por exemplo, um escândalo que surgiu durante a condução da nossa pesquisa envolveu a aprovação da Barragem de Pratagy, orçada em US$ 60 milhões, através da influência exercida pelo Presidente do Senado Renan Calheiros (O Globo, 28 Maio 2007). 2 De acordo com o Movimento dos Atingidos por Barragens, mais de 200.000 famílias foram desalojadas nas últimas décadas (cf. www.mabnacional. org.br). 3 Instituição é aqui entendida, no sentido sociológico, como “sistemas de regras estabelecidas e preponderantes que estruturam interações sociais” (Hodgson, 2006, p.2). 4 Gestão de recursos hídricos envolve um conjunto de medidas tomadas por órgãos governamentais e não governamentais no sentido de avaliar, dispor, usar e conservar reservas de água, processos hidrológicos e o próprio espaço da bacia hidrográfica. Regulação de uso da água inclui instrumentos legais, recomendações e incentivos utilizados por agências públicas para influenciar o comportamento individual e as instituições sociais. Na doutrina jurídica e administrativa contemporânea, os processos de gestão e regulação de uso da água passaram a ser diretamente relacionados ao emergente discurso de “governança ambiental” e “gestão integrada”. L I M I T E S P O L Í T I C O S nização ocorridas ao longo do século 20 no Brasil. Por meio de investimentos vultosos, alguns dos maiores projetos mundiais de engenharia hidráulica foram construídos no país, normalmente financiados por agências multilaterais, com o objetivo de gerar eletricidade e abastecer cidades, indústrias e perímetros de irrigação (Ioris, 2007). A fase crucial de expansão hidráulica coincidiu com as duas décadas de autoritarismo militar, quando foram executados projetos como Itaipu, Balbina, Itaparica e Tucuruí, entre muitas outras obras de infra-estrutura com orçamento bilionário e justificativa discutível. Se, por um lado, tais obras de infra-estrutura representaram uma fonte de prestígio e poder para gerações de políticos e engenheiros, por outro, a dramática transformação das bacias hidrográficas esteve notoriamente associada a escândalos de corrupção e à desestruturação de comunidades tradicionais.1 O período terminal da ditadura militar deu vazão a uma percepção mais apurada a respeito das conseqüências negativas de investimentos em infra-estrutura hidráulica e da falta de uma gestão mais conseqüente. O país que experimentava um lento retorno à democracia tinha também que buscar soluções para uma realidade de rios degradados, poluição fluvial e subterrânea e redução da biodiversidade aquática, ao mesmo tempo que grande parte da população continuava sofrendo com a falta de abastecimento de água e esgotamento sanitário, além de haver cerca de um milhão de pessoas desalojadas em função da construção das grandes barragens.2 No início da década de 1990, o tempo estava propício para novos arranjos institucionais que pudessem trazer resposta a antigos e recentes problemas de uso e conservação da água.3 Após anos de debate, descrito em Barth (1999), o processo de reformas culminou com a sanção, em janeiro de 1997, da Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/1997). Como uma contribuição à reflexão sobre a primeira década da nova legislação brasileira de recursos hídricos, o presente estudo pretende discutir a dimensão das reformas institucionais em andamento no Brasil à luz do contexto regulatório internacional e com um foco na gestão da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (BHRPS), localizada na região sudeste do país.4 Em função da evidente continuidade de problemas em quase todas as bacias brasileiras, os quais são devidamente reconhecidos pelo próprio Ministério do Meio Ambiente – conforme mostra, por exemplo, o Plano Nacional de Recursos Hídricos publicado em 2006 –, nosso objetivo fundamental é questionar até que ponto a busca de uma melhor gestão de recursos hídricos no país tem se mostrado contida em si mesma. Ou seja, indagar se os escassos resultados obtidos com a implementação das novas bases institucionais não são, primeiramente, decorrência dos próprios limites da reforma em curso. À guisa de introdução, pode ser mencionado que, tendo em conta os dados coletados na bacia e a análise de fontes secundárias de informação, dois processos fundamentais parecem caracterizar toda a experiência do Paraíba do Sul. Em primeiro lugar, as agências públicas e as organizações privadas envolvidas na gestão de recursos hídricos fazem uso cada vez maior de conceitos amealhados à literatura acadêmica contemporânea, mas sem necessariamente considerar as especificidades históricas e geográficas locais. Em segundo lugar, as reformas têm claramente seguido pressões dos setores com maior força política, em especial os grandes grupos industriais e a burocracia do governo central. Apesar de um discurso de inclusão social, o processo de gestão reflete de forma marcante o balanço desigual de poder entre, de um lado, os setores hegemônicos e, de outro, um universo social disperso, composto por pequenos usuários de água, os quais enfrentam múltiplas dificuldades para defender suas demandas frente a uma estrutura administrativa seletiva e (operacionalmente) fechada. Na prática, os pleitos e as opiniões dos pe62 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 A N T Ô N I O A . R . I O R I S quenos usuários de água e da população em geral têm sido significativamente ignorados, conquanto se tenta mistificar o impacto do envolvimento popular nas decisões que afetam a bacia hidrográfica. Para se perceber o alcance e os limites das novas bases institucionais de gestão de recursos hídricos, é preciso considerar a correspondência existente entre problemas ambientais, modernização socioeconômica e disputas políticas dentro e fora do aparato estatal. Como será demonstrado abaixo, as oportunidades de participação pública na BHRPS têm sucumbido a um longo legado de conflitos e barreiras políticas que dificultam o atendimento de demandas sociais e ambientais mais amplas. Em grande medida, as falhas das reformas institucionais em andamento podem ser atribuídas a uma racionalidade tecnoburocrática que vem sendo internacionalmente aplicada à avaliação de problemas e formulação de respostas. Estratégias tecnoburocráticas incluem a sistematização de conhecimentos científicos e gerenciais aplicados à gestão de recursos hídricos com o objetivo de produzir resultados circunstanciais, ao mesmo tempo que mantêm inalteradas as configurações políticas e sociais preexistentes (cf. Ioris, 2008). O caráter conservador da tecnoburocracia, na bacia em estudo e no país como um todo, pode ser diretamente relacionado às contradições das políticas públicas atuais. Como em outras partes do mundo, desde a década de 1990, a intervenção estatal na gestão de recursos hídricos no Brasil tem favorecido e atraído investimentos privados (como empresas de hidroeletricidade e de abastecimento de água), a expensas da diminuição da função anterior do Estado (também problemática, diga-se de passagem) de principal investidor e maior usuário de água. A pressão (neo)liberalizante sobre o Estado tem como característica básica a busca de novas formas de acumulação de capital, ao mesmo tempo que atenta, de modo centralizado e cientificista, à mitigação dos impactos ambientais mais prementes (ver McCarthy e Prudham, 2004). A influência do neoliberalismo fica demonstrada pelo argumento que, se no passado a expansão da infra-estrutura hídrica promovida pelo Estado era um requerimento básico do crescimento econômico, a gestão ambiental contemporânea não deve agora representar obstáculos às novas oportunidades abertas pela globalização dos mercados. Surgem assim estratégias inovadoras de acumulação de capital através do uso e da gestão do meio ambiente, tais como nos processos de privatização, mercantilização, desregulação e re-regulação, assim como na utilização da sociedade civil e ONGs para compensar as falhas da ação governamental (Castree, 2008). A consolidação de novas oportunidades de acumulação de capital é assim apresentada como algo desejável à sociedade como um todo, mesmo a custas de graves conflitos e da produção de novas formas de degradação ambiental (Heynen e Robbins, 2005). A máxima do “crescimento econômico a qualquer preço” – que serviu como pedra angular da industrialização e modernidade brasileira (cf. Guimarães, 1991) – continua a influenciar o uso e a gestão de recursos hídricos nos quatro cantos do país, mesmo que dissimulada em sustentabilidade e participação popular, como se verá no caso do Paraíba do Sul. AS BASES DAS REFORMAS INSTITUCIONAIS: IDÉIAS DE INTEGRAÇÃO E GOVERNANÇA Para se estudar as reformas institucionais no setor de recursos hídricos, antes de tudo, é importante compreender que a bacia hidrográfica é um espaço socionatural (ou socioambiental) complexo e em permanente transformação (Swyngedouw, 2004; ver tamR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 63 O S 5 Mais detalhes em: www. ana.gov.br. Existem atualmente mais de 140 comitês de bacia e 10.000 profissionais envolvidos no Sistema Nacional de Gestão de Recursos Hídricos (SINGREH). L I M I T E S P O L Í T I C O S bém Massey, 2005). Aquilo que mapas, hidrogramas e modelos de computador conseguem capturar são apenas momentos, ou fragmentos, de um sistema estruturado, aberto e dinâmico: mesmo os fatores que aparentemente demonstram ser estáticos, como os divisores de água, a rede fluvial e o regime hidrológico, são regularmente transgredidos em razão, por exemplo, de sucessões ecológicas, alterações geomorfológicas, migrações demográficas ou transferência e represamento de água. Desse modo, a bacia hidrográfica nada mais é do que a soma das várias dimensões do espaço geográfico, que é simultaneamente fixo, relativo e relacional (cf. Harvey, 1973), e tem como elemento integrador a contínua circulação de água. A água existe como um elemento vital da profunda e perene inter-relação entre sociedade e natureza, descrita por Marx (1976, p.637) como uma “interação metabólica entre homem e terra” – importante perceber que metabolismo (Stoffwechsel) tem aqui um sentido ao mesmo tempo especificamente ecológico e amplamente social. Longe de apresentar qualquer neutralidade política, essa interação metabólica entre sociedade e natureza incorpora diferenças e conflitos entre grupos sociais, uma vez que o acesso à natureza e os impactos da sua transformação são sentidos de forma diferenciada pelos vários segmentos da sociedade. Contestações em torno do uso e da conservação dos recursos e do espaço da bacia hidrográfica não emergem de forma abstrata, mas dependem de circunstâncias históricas e geográficas específicas. Pode-se afirmar que, em grande medida, a inaptidão das respostas oficiais aos problemas de gestão de recursos hídricos se deve à dificuldade de compreender essa dinâmica, complexa e politizada ontologia da água e da bacia hidrográfica. Nas últimas décadas, um grande número de reuniões internacionais e declarações multilaterais tem contribuído para fazer da problemática da água um assunto de grande interesse público, ainda que mantendo uma visão excessivamente setorial e fragmentada. Desde a Conferência de Mar del Plata em 1977, passando pelos encontros de Dublin em 1992 e Quioto em 2003, governos e programas de cooperação têm discutido como reduzir o nível de impactos ambientais e melhorar os serviços públicos de água e saneamento (cf. UNDP, 2006). Tendo por base a crescente pressão de agências de desenvolvimento – e.g. o Banco Mundial tem sido um dos principais núcleos de formulação de políticas públicas de recursos hídricos –, a maioria dos países, incluindo o Brasil, foi levada a iniciar uma reforma institucional baseada na gestão de água por bacia hidrográfica – coordenada por um comitê de representantes setoriais – e no emprego de instrumentos flexíveis de regulação ambiental – notadamente, taxas e incentivos econômicos.5 A contribuição acadêmica para esse debate internacional vem se desdobrando por diversas disciplinas, da economia à hidrologia, e pode ser claramente identificada pela formulação de novas metodologias, tais como gestão sustentável (Kay, 2000), gestão da demanda (Brooks, 2006), subsidiariedade (Moss, 2004) e gestão adaptativa (Pahl-Wostl, 2007). De todo modo, é provavelmente o termo “gestão integrada dos recursos hídricos” (IWRM para a sigla em inglês, acrônimo de integrated water resources management) o que melhor simboliza o novo “paradigma” de uso e conservação em expansão (Mitchell, 2005). Estudos recentes sobre a experiência brasileira demonstram que “a institucionalização de novas normas tem refletido diretamente a influência [no país] do conceito de gestão integrada de recursos hídricos” (Conca, 2006, p.309). IWRM tem sido definida como um processo que promove um desenvolvimento coordenado e uma gestão de água, solo e outros recursos relacionados de forma a maximizar os resultados econômicos e o bem-estar social de forma justa e sem comprometer a sustentabilidade de ecossistemas vitais (GWP, 2000). 64 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 A N T Ô N I O A . R . I O R I S Apesar da proliferação de publicações sobre a necessidade da integração da gestão, a maioria das políticas públicas de recursos hídricos, no Brasil e no mundo, continua restrita a ajustes administrativos dissociados das dinâmicas sociais e ambientais concretas. Ao se invocar o objetivo de integração de forma tecnocrática, há uma tendência de reduzir a complexidade e as demandas socionaturais a simples equações matemáticas (e.g. Gatirana et al., 2008). Foi já observado que a postura arraigada de gestores e hidrólogos normalmente continua a considerar as questões políticas e sociais como “desvios” dos objetivos genuínos de gestão de recursos hídricos (McCulloch e Ioris, 2007). De acordo com Mollinga (2001), as reformas institucionais em curso despertam grande interesse entre gestores públicos devido ao fato de que facilmente se prestam a soluções estandardizadas e que se aplicam igualmente a diferentes situações. Em especial, a influência do conceito de gestão integrada, em que pese uma mudança de discurso, leva à compreensão dos problemas de recursos hídricos como mera decorrência da má utilização de técnicas administrativas e, principalmente, da subvalorização econômica da água. Devido a esse pensamento reducionista, a maioria das políticas públicas insiste em considerar a água apenas como reserva de valor, mas não como um elemento básico de numerosos processos socioambientais e que operam em diferentes dimensões. Conseqüência direta desse raciocínio é o pagamento pelos serviços ambientais, o mais recente ‘ovo de Colombo’ dos economistas ligados aos recursos hídricos (ver Silvano et al., 2005, para um exemplo recente no Brasil). Ignora-se, assim, que intervenções nos sistemas hidrológicos tendem tradicionalmente a gerar custos, benefícios e riscos que são distribuídos de modo desigual nas escalas espaciais e temporais e percebidos de forma diferenciada pelos diversos grupos sociais (Molle, 2007). Assim como se busca uma gestão de recursos hídricos mais integrada, muitas das políticas ambientais contemporâneas advogam uma melhoria de “governança”, tida como a remoção de barreiras que existem entre sociedade, Estado e mercado (Lemos e Agrawal, 2006). A construção de uma nova governança deve passar por uma mudança paradigmática da gestão ambiental, baseada em um envolvimento mais amplo da sociedade na formulação e implementação de políticas públicas (Judge et al., 1995). Governança ambiental é também entendida como a criação, reafirmação ou mudança de instituições com o objetivo de se resolver conflitos relacionados aos recursos naturais com suficiente sensibilidade social (cf. Paavola, 2007). No setor de recursos hídricos, o conceito de governança é muitas vezes tomado como auto-evidente, sem a necessidade de uma definição precisa (e.g. Abers, 2007), mas geralmente relacionado a um tratamento dos problemas de gestão de água que prescinde da força coercitiva do Estado (Laban, 2007). A “crise” da água é tida como principalmente uma ‘crise’ de governança (GWP, 2000), a qual pode ser definida como a “capacidade de um sistema social de mobilizar energias, de forma coerente, para o desenvolvimento sustentável dos recursos hídricos” (Rogers, 2002, p.1). O último autor acrescenta que o conceito inclui uma habilidade de desenhar políticas públicas “que sejam socialmente aceitáveis, que tenham como propósito o desenvolvimento e uso sustentável de recursos hídricos, e que tornem sua implementação efetiva pelos diferentes atores/interessados envolvidos no processo”. Como pode ser facilmente percebido, existe uma clara associação entre governança e gestão integrada de recursos hídricos, demonstrada pela crescente procura por novas capacidades de geração e implementação de políticas e projetos (Rahaman e Varis, 2005). O sucesso da gestão integrada de recursos hídricos passa, assim, pela promoção de uma efetiva governança, a qual decorre do estabelecimento de consensos entre atores sociais e da R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 65 O S 6 Por outro lado, cabe ressaltar que as pressões econômicas sobre os recursos hídricos no Brasil não se restringem ao período neoliberal recente, mas estiveram profundamente associadas ao processo de modernização socioeconômica mencionadoa acima. A nova fase de regulação de uso da água, que é o objeto principal da presente discussão, apenas aprofunda e redireciona mecanismos anteriormente estabelecidos de apropriação privada de recursos comuns e geração de impactos negativos sobre largas parcelas da população. Um exemplo nesse sentido é a degradação da Bacia do Rio São Francisco, a qual passou por um processo de desenvolvimento hídrico (em um momento prévio à fase neoliberal) assentado no latifúndio, na construção de grandes barragens e na irrigação de frutíferas voltada ao mercado exterior. L I M I T E S P O L Í T I C O S concepção de sistemas de gestão com maior capacidade de perceber a complexidade dos problemas de recursos hídricos (CEPAL, 2006). Apesar de representar um avanço em relação às posturas antigas e mais tradicionais (e.g. baseadas em infraestrutura e na imposição de regras rígidas), governança hídrica não deixa de ser um conceito tão vago e contraditório quanto gestão integrada. Conforme descrito por Castro (2007), para alguns, governança é apenas um instrumento, um meio para se atingir certos fins, uma ferramenta administrativa e técnica que pode ser utilizada em diferentes contextos. Para outros, trata-se de um debate entre alternativas que estão em conflito, no qual a definição de fins e meios deve ser buscada no campo político e democrático. É importante ressaltar que a noção de governança surge no contexto histórico da expansão neoliberal, quando o Estado passa a ser sistematicamente atacado por interesses privados fortalecidos por uma economia cada vez mais globalizada e que favorece o surgimento de formas ‘plurais’ de ação, como, por exemplo, a formação de parcerias público-privadas e a substituição da sociedade civil por ONGs (Castro, 2007). O deslocamento de uma atuação centrada em “governo” para outra baseada em “governança” inevitavelmente envolve uma gama de interesses geográficos e econômicos diversos (Page e Kaika, 2003), mas muitos dos que advogam essa transição subestimam o conjunto de forças governamentais e de mercado que produzem a destituição de recursos, a degradação ambiental e a redução das oportunidades de sobrevivência das comunidades locais (Leff, 2003; Heynen e Robbins, 2005). Apesar das evidentes limitações dos conceitos que atualmente dominam o debate no setor de recursos hídricos, notadamente ‘gestão integrada’ e ‘governança ambiental’, são ainda muito restritas as análises políticas das reformas contemporâneas de recursos hídricos. Por exemplo, são poucos os autores que reconhecem a situação de falta de água como um processo socialmente fabricado e que reflete a interação entre grupos sociais e entre sociedade e Estado (Mehta, 2007). Da mesma forma, grande parte do debate sobre a nova agenda de recursos hídricos continua silenciada em relação à racionalização ideológica das políticas públicas, assim como ignora os mecanismos de controle relacionados ao “bio-poder” do Estado moderno (cf. Foucault, 1984). Permanece, assim, uma barreira conceitual que impede a percepção dos processos de exclusão urbana e rural, assim como uma extensa ignorância quanto às relações entre fluxos de água e circulação de capital (Swyngedouw, 2004). Mesmo aqueles que tentam relacionar as reformas institucionais em curso com pressões econômicas e a ideologia neoliberal muitas vezes são incapazes de compreender que a transformação da água em bem econômico (e mesmo em mercadoria) envolve arranjos sociais, econômicos, materiais e discursivos complexos (Köhler, 2005). Continua tímida a reflexão sobre as complexidades geográficas e políticas das reformas contemporâneas de recursos hídricos, ou, na linguagem de Sneddon e Fox (2006), falta ainda uma “hidropolítica crítica” que conecte elementos de geografia política e socionatureza. A análise hidropolítica é crucial para se compreender a evolução e as tendências dos problemas de gestão de água em países como o Brasil, onde as desigualdades sociais e econômicas deixam marcas indeléveis no meio ambiente.6 Existe e se mantém uma clara politização do uso e conservação da água, como no caso recente de construção de grandes barragens na Amazônia (e.g. na Bacia do Rio Madeira) e do início do projeto de transposição do Rio São Francisco para bacias mais ao norte. Os conflitos sobre recursos naturais estão também ligados a sistemas políticos e econômicos estabelecidos ainda na época colonial brasileira (Bryant, 1998), enquanto que mudanças ambientais não são apenas o re66 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 A N T Ô N I O A . R . I O R I S sultado do processo de desenvolvimento, mas o resultado de dinâmicas políticas e de conflitos de valores (Marsden, 1997). Importante ressaltar que essa dimensão política é continuamente negada pelo discurso oficial, especialmente no que diz respeito às desigualdades no acesso a serviços públicos ou pela exclusão de grupos marginalizados do processo de tomada de decisão (cf. Zhouri e Oliveira, 2005; a respeito da continuidade autoritária relacionada à construção de barragens, ver Ribeiro et al., 2005). As próximas seções deste texto deverão examinar alguns aspectos de hidropolítica na experiência na Bacia do Rio Paraíba do Sul, verdadeiro “microcosmos” das reformas institucionais em andamento no país. A análise seguirá uma abordagem de “economia política institucional”, conforme proposta por Bridge e Jonas (2002), para avaliar a consolidação de um sistema de regulação de recursos naturais por meio de “geografias específicas de confrontação” [specific geographies of struggle]. A discussão atentará também à articulação entre diferentes dinâmicas e políticas espaciais (cf. Swyngedouw, 2000), notadamente entre os estados que compartilham a bacia e a atuação do governo federal. No caso do Paraíba do Sul, a descrição de conflitos e dinâmicas geográficas é fundamental para se entender como a mediação de problemas por meio (principalmente) da expressão do valor monetário da água tem limitado o alcance das reformas institucionais. A EXPERIÊNCIA DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO PARAÍBA DO SUL AS CARACTERÍSTICAS SOCIONATURAIS DA BACIA HIDROGRÁFICA Ainda que o Brasil seja um país com rios imensos, alguns com mais água que nações ou subcontinentes inteiros, em termos hidrológicos, o Paraíba do Sul figura como um rio de porte mediano: a vazão média de longo período na altura da foz foi estimada em 1.118,40 m3/s – tomando-se em conta as séries históricas de 199 estações fluviométricas e obtida através de estudos de regionalização (cf. Coppetec, 2006, p. VII-1) –, o que é significativamente menor do que os valores equivalentes para as grandes bacias hidrográficas brasileiras.7 Mesmo assim, a BHRPS tem sido palco de alguns dos mais relevantes desdobramentos e contradições da história do uso e da gestão de recursos hídricos no país. Devido à sua localização estratégica, a BHRPS vem ocupando, há mais de 300 anos, uma importância econômica e política fundamental. A exploração da bacia teve início já no século XVII com as primeiras incursões ao interior do território para explorar minerais e aprisionar indígenas. No século XVIII, o Paraíba do Sul constituía o principal meio de comunicação entre a costa e os sítios de ouro em Minas Gerais.8 Com a introdução de café em 1770, vastas áreas de terra foram desmatadas para abrir espaço para fazendas cafeicultoras. São desse período as construções imponentes dos famosos “barões do café” que dominavam a economia do Império; a aristocracia local era constituída por 32 senhores com títulos nobiliárquicos, incluindo barões, viscondes e mesmo dois condes (para a lista completa, ver Müller, 1969). Em poucas décadas, porém, as altas taxas de erosão do solo começaram a comprometer a produtividade agrícola, e o centro da cafeicultura se deslocou para outros estados. Um novo ciclo econômico se iniciou no final do século 19, com a emergência da indústria têxtil e alimentícia, facilitada pela proximidade dos centros consumidores de São Paulo e Rio de Janeiro. O Vale do Paraíba foi uma das primeiras zonas a se industrializar no país, tendo como um importante marco histórico a fundação da R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 67 7 A área da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul é de 55.500 km2 distribuídos entre os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Mais de 5,4 milhões de pessoas vivem nos 180 municípios com território parcial ou totalmente contido na bacia; a calha do rio principal tem uma extensão de 1.100 km (Coppetec, 2006). 8 Cabe mencionar que, além do papel econômico e geopolítico, a bacia contém o maior centro da religiosidade nacional, a Basílica de Nossa Senhora Aparecida, cuja imagem foi encontrada por pescadores nas águas do Paraíba do Sul em 1717. Tal fato enfatiza ainda mais o valor simbólico do Paraíba do Sul em relação a outras bacias hidrográficas brasileiras. O S 9 Essa transferência entre bacias hidrográficas, que serve também à geração de energia hidroelétrica, tem um resultado profundamente ambivalente. Por um lado, aumenta a disponibilidade de água para o Rio de Janeiro, uma região superpovoada, com alta demanda hídrica, mas com mananciais bastante degradados. Por outro lado, os volumes transferidos desde o Paraíba do Sul imediatamente são subordinados às desigualdades sociais e espaciais da região metropolitana. Ou seja, apesar da aparente eficiência técnica na operação de transposição de bacias, o resultado final é a produção de situações de escassez tanto na área doadora, quanto na ponta receptora, uma vez que sua distribuição segue padrões tradicionais e elitistas de abastecimento público. 10 Para maiores detalhes da condição ambiental da bacia, ver Coppetec (2002, 2006). 11 Apesar de nominalmente dedicada à sociedade civil, sua participação no CEIVAP tem sido sistematicamente negada pela nomeação de representantes de federações de negócios, conselhos profissionais e consórcios de municípios como se fossem genuínos representantes da população em geral (Projeto Marca d’Água, 2003). 12 “Mais especificamente, a pesquisa foi desenhada seguindo os objetivos e conceitos do “realismo crítico” (cf. Sayer, 1992), segundo o qual, o método inclui não somente o componente empírico, mas também teorização a respeito das relações sociais e da produção do conhecimento. A estratégia metodológica básica foi a busca de uma “síntese” da realidade concreta, que compreende estruturas, mecanismos e eventos. Foram examinadas tanto as bases qualitativas das relações sociais, como a dimensão material e a interação com o meio natural. Os trabalhos de campo (entre março e maio de 2007) envolveram 20 entrevistas confidenciais (semi-estruturadas) com usuários de água, servidores públicos e membros do comitê da bacia, seguidas de discussões complementares por e-mail nos meses subseqüentes; foram produzidas detalhadas análises de L I M I T E S P O L Í T I C O S Companhia Siderúrgica Nacional, a primeira grande instalação de siderurgia do Brasil, na década de 1940. Atualmente existe na bacia um parque industrial complexo, que contém mais de 6.000 unidades fabris e responde por aproximadamente 11% do PIB nacional. Neste contexto, a água é utilizada intensivamente por cidades, indústrias e agricultura, exercendo grande pressão sobre estoques relativamente restritos de recursos hídricos. Importante destacar que 2/3 da vazão no trecho médio do rio são desviados para o Rio Guandu com o propósito principal de abastecer de água 80% da população na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.9 Existem ainda mais de 120 estações hidroelétricas em operação na bacia, entre pequenas, médias e grandes geradoras. A variedade de interesses e atividades em torno da água na BHRPS, que justificaria um cuidado muito maior com a proteção e conservação da bacia, produziu um grave quadro de degradação e desequilíbrios ambientais severos. Na verdade, a história da bacia pode ser resumida a ciclos econômicos descontínuos, crescimento desigual e persistente degradação ambiental (Aquino e Farias, 1998). A grave condição ecológica é particularmente evidente na seção média do rio, justamente onde a maioria das hidroelétricas e das indústrias está localizada (Araújo et al., 2003). Além da poluição industrial, a descarga de efluentes urbanos representa uma fonte significativa de impactos ambientais, especialmente tendo-se em conta que apenas 17,6% do esgoto recebem alguma forma de tratamento. Como em tantas outras partes do país, ao mesmo tempo em que a água serve primeiramente às prioridades do crescimento econômico, os impactos ambientais e a falta de serviços públicos afetam especialmente populações de baixa renda e áreas semi-urbanizadas.10 REFORMAS INSTITUCIONAIS DE GESTÃO E A CENTRALIDADE DO INSTRUMENTO DA COBRANÇA O reconhecimento da extensa degradação do Rio Paraíba do Sul e de muitos de seus afluentes não é recente, mas tem sido objeto de repetidas, mas inócuas, respostas governamentais. A primeira tentativa de sistematizar o uso da água na bacia aconteceu em 1939, na seção de montante, no Estado de São Paulo, pelo denominado Serviço de Melhoramentos do Vale do Paraíba. Somente em 1968 o governo federal tomou a iniciativa de estabelecer um órgão com o propósito de conter a degradação da bacia, chamado Comissão do Vale do Paraíba do Sul (COVAP). A comissão foi substituída em 1979 pelo Comitê Executivo de Estudos Integrados da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (CEEIVAP), o qual congregava apenas representantes de órgãos governamentais e tinha o mandato de formulação de planos de recuperação ambiental. Como pode ser visto pelas datas, COVAP e CEEIVAP foram estabelecidos durante o período de ditadura militar, e sua composição excluía a participação da população local e dos usuários de água. Enquanto o governo federal e as administrações estaduais mostravam-se incapazes de responder aos problemas, na década de 1980, a bacia passou a ser conhecida internacionalmente por sua condição ambiental. Foi somente quando os níveis de poluição passaram a comprometer a própria atividade econômica, somado ao criticismo internacional, que reformas institucionais mais efetivas passaram a ser consideradas. Um novo comitê de bacia, chamado Comitê para Integração do Rio Paraíba do Sul (CEIVAP) foi instalado no final da década de 1990, segundo os preceitos da nova legislação nacional (Lei 9433/1997). A composição do CEIVAP inclui 24 representantes dos usuários de água, 21 representantes dos três níveis de administração pública e 15 membros da sociedade civil organizada.11 Desde seu 68 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 A N T Ô N I O A . R . I O R I S estabelecimento, o novo comitê recebeu apoio financeiro e político do governo federal e passou a se caracterizar como uma “vitrine” do novo modelo de gestão de recursos hídricos no Brasil (ver Braga et al., 2005). Tendo em conta a relevância simbólica e material da experiência local, especialmente o fato de ter sido a primeira bacia sob responsabilidade federal a adotar os novos instrumentos regulatórios, o Paraíba do Sul serve como excelente estudo de caso sobre a primeira década de vigência da nova lei brasileira de recursos hídricos. Nosso trabalho de investigação seguiu as orientações de Watts e Pett (2004) de que o exame das relações entre eventos, estruturas e mecanismos, através de um senso estratificado da realidade, permite a explicação de processos por meio da reconstrução de teorias e conceitos preestabelecidos.12 Ainda nos primeiros estágios dos levantamentos de campo, foi possível perceber que as atividades do CEIVAP têm se caracterizado por uma agenda repleta de reuniões e cerimônias, muitas vezes com a participação de ministros e altas autoridades, e que a bacia tem atraído uma crescente atenção de círculos acadêmicos e ocupado as manchetes da grande mídia. Uma investigação mais minuciosa permitiu identificar que, por trás dessa constante publicidade a respeito dos desdobramentos das atividades do comitê, grande parte do esforço tem se restringido a uma única questão: a implementação da cobrança pelo uso da água (conforme previsto no Artigo 19 da Lei 9.433/1997). 13 Mesmo o conteúdo dos planos e documentos produzidos pelo comitê (CEIVAP) tem se concentrado em torno do cálculo e da aplicação da cobrança. Por causa dessa “hipertrofia” do papel dedicado à cobrança, ainda no início nossos trabalhos de campo foram redirecionados e passaram a considerar de modo mais específico as controvérsias a respeito da cobrança pelo uso da água na BHRPS. A decisão de redirecionar o foco da pesquisa foi mais tarde justificada quando nas diversas entrevistas quase todos os informantes desejaram espontaneamente dedicar a maior parte do tempo discorrendo sobre como a cobrança vem afetando a gestão de recursos hídricos. Dessa forma, a implantação da cobrança passou a ser a principal referência a respeito do nível de participação pública e da efetividade do novo modelo institucional de gestão de recursos hídricos. Como vai ser discutido abaixo, a centralidade da cobrança pelo uso da água – um dos pilares do modelo de governança hídrica em implementação – gera uma evidente situação de ambigüidade institucional, uma vez que reduz o foco nas soluções dos problemas para dedicar especial atenção a processos administrativos altamente conflituosos. A adoção da cobrança pelo uso da água contribui para aumentar a percepção das questões socioambientais, mas sem necessariamente criar uma “totalidade” que inclua a multiplicidade de atores e interesses.14 Para ser consistente com os critérios metodológicos sugeridos por Watts e Pett (2004), foi necessário examinar não apenas os resultados finais das diversas esferas de decisão voltadas à aplicação da cobrança, mas também compreender o processo de negociação e o jogo de interesses envolvido, particularmente porque a aprovação da cobrança pelo uso da água na BHRPS seguiu uma longa e tortuosa jornada de disputas setoriais e articulações políticas. Embates similares têm ocorrido em instâncias do sistema nacional de gestão, como no Conselho Nacional de Recursos Hídricos, mas a experiência do Paraíba do Sul contém particularidades geográficas e históricas da maior relevância. A prioridade dedicada à cobrança passou a ser mais evidente a partir do ano 2000, quando ficou claro para a maioria dos membros do CEIVAP que era necessário reduzir a dependência em relação ao apoio financeiro proporcionado pelo governo federal (conforme detalhado por Gruben et al., 2002, e Tedeschi, 2003). Entre 2000 e 2002, as opiniões contra e a favor da cobrança dividiram o comitê em dois pólos de opiniões antagônicas. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 69 políticas públicas. Houve também a participação em diversas reuniões abertas e encontros de mobilização. A metodologia de seleção das entrevistas teve por base as recomendações de Cloke et al. (2004) no sentido de envolver informantes com conhecimento, experiência e disposição de participar. Foram escolhidos representantes de diferentes setores de usuários de água distribuídos entre os três estados da federação que compartilham a bacia (RJ, SP e MG). Os contatos preliminares foram feitos em função da análise de documentos oficiais e sugestões de outros participantes envolvidos no início da pesquisa. O conteúdo das entrevistas foi analisado de forma a salientar pontos de convergência e divergência entre as posições de diferentes grupos, mas também em relação às metas de políticas públicas e planos aprovados pelo comitê da bacia. A interpretação dos resultados situa-se no campo da “ecologia política”, ou seja, o entendimento que política é inevitavelmente ecológica, ao mesmo tempo que a ecologia é intrinsecamente política (Robbins, 2004). 13 Trata-se aqui da cobrança pela captação de água de manaciais e pela descarga de efluentes. As taxas de serviço água e esgoto tradicionamente cobradas desde o século 19 no Brasil dizem respeito aos custos de tratamento e distribuição de água e coleta e tratamento de efluentes, mas não incluem o chamado “custo ambiental”, que é justamente o propósito da nova legislação. Ou seja, a Lei 9433 estabelece o pressuposto legal (que havia sido vagamente mencionado, mas nunca implementado, no Código de Águas de 1934) de que os mananciais de água têm um valor econômico per se e, por essa razão, deve haver uma taxa correspondente a ser paga ao Estado, após aprovação pelo respectivo comitê de bacia hidrográfica. O Artigo 19 da lei determina ainda que a cobrança pelo uso de recursos hídricos deve incentivar o uso racional e financiar programas e intervenções. 14 Cabe agradecer a um revisor(a) (anônimo) a gentileza de nos alertar para essa questão. O S L I M I T E S P O L Í T I C O S A favor da imediata adoção da cobrança estavam os representantes do governo federal – cujo interesse principal não era diminuir seus gastos com o comitê, mas fazer avançar a implementação da nova lei de recursos hídricos –, executivos do próprio comitê, acadêmicos e a maioria das ONGs ambientalistas. Contra a cobrança posicionaram-se os representantes dos setores industrial, agrícola e de hidroeletricidade. Um pequeno número de participantes mantinha-se indeciso sobre a melhor alternativa. Durante essa fase de debates, as reuniões do CEIVAP passaram a se constituir em um “campo de batalha”, onde os representantes dos setores econômicos, indústria em particular, exprimiam sua inconformidade e questionavam a oportunidade de se adotar a cobrança naquele momento. De acordo com alguns dos nossos entrevistados, esse acalorado debate, em vez de aprofundar a democracia interna no comitê, resultou em mútuo cepticismo e gradualmente reduziu o papel de liderança que o comitê deveria estar ocupando na resolução dos problemas de gestão de recursos hídricos. A controvérsia apenas aumentava as incertezas sobre como a futura arrecadação dos valores advindos da cobrança seria revertida em benefício da bacia; ao mesmo tempo, não havia nenhuma definição a respeito de como taxar os usos não consuntivos de água (e.g. geração hidroelétrica) e como lidar com a transferência de água da bacia do Paraíba do Sul para o Rio Guandu. Durante essa fase inicial, importantes representantes do setor industrial mantiveram uma postura reticente em relação à formação da Agência Nacional de Águas (ANA) em 2001, uma vez que a mesma não estava prevista na legislação original de 1997. A disputa entre regulador (e.g. ANA) e aqueles a serem regulados (e.g. indústria) somente cresceu quando a Agência, já no início das operações, percebeu que a implementação da cobrança na BHRPS representaria um passo altamente estratégico para sua justificativa política e administrativa (cf. comunicação pessoal de superintendente da ANA ao autor). Considerando o jogo de disputas durante esse período inicial do CEIVAP, uma das nossas entrevistas com representantes dos usuários de água colheu a seguinte observação: Pergunta: ... levando-se em conta que a ANA foi criada anos depois de o CEIVAP ter sido instituído, como o senhor avalia a contribuição da agência para o processo de reorganização da gestão na bacia? Resposta: Não havia necessidade de se criar a ANA quando o sistema nacional de recursos foi estabelecido (…); o problema é que as pessoas vêem a ANA como um braço do governo e [por essa razão] apenas um coletor de taxas (...); no geral, a ANA tem alargado os conflitos na Bacia do Paraíba e muito além – membro do CEIVAP. (entrevista, Maio 2007) 15 Contudo, a CSN, o maior usuário de água, contestou a cobrança na Justiça. A controvérsia em torno da implantação da cobrança teve uma curiosa mudança de rumo quando em 2002 o setor industrial inverteu sua oposição contrária à cobrança e passou abertamente a concordar que se pagasse uma taxa proporcional ao uso da água.15 À primeira vista, parecia que os industrialistas passaram a concordar com o argumento dos demais membros do comitê e aceitaram a idéia que a cobrança representaria um “avanço” no tratamento dos problemas ambientais ao responsabilizar diretamente aqueles usuários que causam impactos ambientais. Contudo, com o tempo ficou claro que a real razão para a mudança de postura foi muito mais uma decisão estratégica do que uma tomada repentina de consciência ambiental: na verdade, uma vez que a introdução da cobrança estava prevista em lei e era inevitável, dada a pressão da ANA e de outros grupos com representação no comitê, a indústria preferiu adotar uma posição pró-ativa e garan70 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 A N T Ô N I O A . R . I O R I S tir tarifas reduzidas, além de capitalizar politicamente. Para o público externo criou-se a impressão de que as indústrias na BHRPS estariam contribuindo efetivamente para a resolução dos (graves) problemas que ela mesma ajudou a causar, mas de fato houve apenas um movimento de aceitação de valores de cobrança relativamente baixos, com o benefício de ter sua imagem politicamente consolidada. Como historiado por FormigaJohnsson et al. (2007), ao concordar voluntariamente com a cobrança, o setor industrial esvaziou qualquer tentativa de se ter um marco regulatório mais efetivo. A grande ironia nesse processo, indicada por diversos de nossos entrevistados, foi que as ONGs ambientais passaram ingenuamente a apoiar essa chicana política do setor industrial, inclusive desistindo de tentar aumentar o valor da cobrança para encerrar de pronto a polêmica. Desse modo, o processo de aprovação da cobrança nada mais fez do que submergir o CEIVAP no velho jogo político que havia deformado as agências que o precederam: em vez de mecanismos realmente participativos e que levassem em conta o interesse da maioria da população, a tomada de decisões continuava a ser controlada pelos grupos com maior poder político-econômico, ainda que dissimulada em um processo de consulta democrática. O resultado não poderia ser mais previsível e, apenas alguns anos mais tarde, nossas entrevistas detectaram um clima predominantemente apático entre muitos membros do comitê e moradores da bacia em relação à contribuição efetiva da cobrança. Como observado por um entrevistado: Pergunta: Em que condição o senhor participa das reuniões do CEIVAP? Resposta: Nunca fui membro oficial mesmo, mas ia lá como curioso, como interessado em saber mais sobre o processo todo de melhoria do rio. Mas agora não vou mais, não. Pergunta: E por que não? Por que o senhor deixou de participar? Resposta: As reuniões no comitê [CEIVAP] são na maioria das vezes uma perda de tempo; aqueles que deveriam ser mais críticos dos problemas da bacia, como as ONGs, ficam quietas, porque querem mesmo é obter dinheiro [através do comitê] e não devem contradizer as vozes que mandam, com o a ANA e a CSN (…). Outro problema grave é que a ANA tem uma visão puramente “hidrológica” em relação aos problemas de recursos hídricos – ativista ambiental e observador das reuniões do CEIVAP. (entrevista, Maio 2007) Na prática, em vez de reforçar um processo de mobilização popular que emergia na bacia desde a década de 1980, a organização do novo comitê rapidamente tomou um caminho formalista e burocrático em relação aos problemas sociais e ambientais. Hoje o CEIVAP parece, antes de tudo, uma agência pára-governamental e não um fórum de representação da diversidade de vozes que compõem o tecido popular da bacia. A controvérsia em torno da cobrança teve ainda o efeito de praticamente monopolizar as atividades do comitê e marginalizar a consideração dos problemas sociais e ambientais concretos. Tal situação pode ser facilmente detectada com a análise das atas das reuniões do CEIVAP entre 2000 e 2007, pela qual fica claro que, à medida que algum membro do comitê propunha, por exemplo, que questões relacionadas à poluição do rio, educação ambiental ou conflitos entre usuários de montante e jusante fossem incluídas na agenda, essa voz “inconveniente” era prontamente abafada pelo próprio desenrolar da reunião. Por exemplo, em 12/02/2004, um participante propôs que se discutisse qual seria a justa distribuição R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 71 O S 16 O aproveitamento hidroelétrico de Itaocara está sendo construído pela empresa Light, uma companhia que foi originalmente privada, posteriormente nacionalizada, privatizada, e que passa agora por um crescente controle do Estado (O Globo, 18 Maio 2007). Isso demonstra a não linearidade dos processos de comodificação e de-comodificação da água. L I M I T E S P O L Í T I C O S de água entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, mas a questão simplesmente não avançou. Igualmente, em 19/10/2006, outro participante queixou-se a respeito da grave degradação nos trechos inferiores do rio, mas não despertou o interesse do comitê. Provavelmente, o melhor exemplo da incapacidade do CEIVAP de administrar os problemas e conflitos na bacia esteja relacionado à aprovação da usina hidroelétrica de Itaocara, uma unidade com potencial de geração de 195 MW e que está associada a um reservatório com 76 km2 de área superficial. Em 23/08/2005, membros do comitê defenderam a aprovação sumária da nova barragem, mas foram então questionados por uma representante de ONG. Uma nova discussão sobre o mesmo assunto aconteceu em 16/09/2005 em uma reunião a que surpreendentemente compareceram apenas os representantes dos empreendedores, mas não a população local que seria desalojada com a construção da nova barragem (cf. Vainer et al., 2004).16 Esse simples exemplo demonstra como o comitê, que deveria ser uma arena de franco debate e de decisões democráticas, passou a funcionar como um órgão com as portas fechadas aos grupos mais vulneráveis da população. A controvérsia relacionada à barragem de Itaocara talvez seja o caso mais ilustrativo, mas seguramente não foi o único momento em que o papel do comitê como fórum legítimo e paritário de representação tenha sido aviltado (há menção a situações análogas nas próprias atas do comitê). Exemplos dessa natureza levam à conclusão que, apesar da retórica de participação e descentralização adotada pelo CEIVAP em suas publicações, o comitê de bacia tem de fato apenas um tênue compromisso com a maioria da população local e com o universo maior de pequenos usuários de água. Apesar de ter sido objeto de menções honrosas, como quando obteve em 2004 o prêmio “Melhores Práticas” do Programa Habitat das Nações Unidas, a incapacidade de lidar com a degradação ambiental e a falta de democracia interna vêm marcando a experiência do CEIVAP desde seu estabelecimento. Como referido por vários de nossos entrevistados, existe mesmo uma perplexidade com os resultados tão modestos atingidos até o momento. Algumas frases mencionadas durante as entrevista ilustram essa percepção entre aqueles envolvidos no processo: A complexidade do novo modelo de gestão [de recursos hídricos] foi subestimada quando a lei [9.433] foi aprovada; [por causa dessa complexidade] na prática, as decisões continuam sendo tomadas a portas fechadas e com mínimo envolvimento do público – engenheira e membro do CEIVAP. (entrevista, Abril 2007) A distorção do novo sistema [de gestão de recursos hídricos] é evidente; existe mobilização apenas onde tem cobrança. Essa tem sido a prática oficial, mas o problema é que isso deixa tudo na dependência da cobrança – professor e observador do CEIVAP. (entrevista, Abril 2007) Os conflitos pela água são evidentes, mas são silenciosos, pouco notados [no Paraíba do Sul]; (…) o que falta no processo todo é participação pública real, envolvimento do povo pra valer – morador da bacia e (auto-intitulado) “curioso” em relação ao CEIVAP. (entrevista, Maio 2007) Existe hoje uma grande falta de transparência na aprovação de documentos e dos planos por parte do CEIVAP; total falta de transparência – advogada e membro do CEIVAP. (entrevista, Abril 2007) 72 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 A N T Ô N I O A . R . I O R I S Cabe ressaltar que, apesar desse criticismo aberto, a maioria dos nossos entrevistados entende que os problemas do comitê são temporários e que, no longo prazo, as atividades tendem a melhorar. Para muitos, não houve uma avaliação adequada da complexidade do trabalho de gestão da bacia quando o CEIVAP foi organizado em 1996, em particular a dificuldade de se conciliar a responsabilidade pelo rio principal e alguns afluentes por parte do governo federal e a competência dos três governos estaduais pela maioria dos afluentes.17 Essa posição cautelosa é também ecoada pelos autores que entendem que o sistema regulatório é ainda muito jovem e deve possivelmente melhorar (Machado, 2006). Contudo, uma análise mais cuidadosa dos objetivos, procedimentos e resultados obtidos pelo comitê sugere que a manutenção da degradação ambiental e a falta de inclusão social significativa são demonstrações da inadequação estrutural do comitê e do modelo regulatório em implantação, que sistematicamente cede a soluções de caráter tecnoburocrático. Essa conclusão em relação aos problemas que persistem na bacia pode ser demonstrada pela “agenda única” dedicada à implantação da cobrança. Tomando-se em conta o contexto de reformas institucionais e a discrepância entre construção retórica e mudanças efetivas, fica claro que a principal deformação causada pela concentração de esforços em torno da cobrança se relaciona à neutralização da participação popular. A “burocratização” do envolvimento popular nada custa para aqueles que detêm poder econômico, mas serve para reduzir tensões sociais e diminuir os custos de transação relacionados ao novo modelo de gestão ambiental (Low e Gleeson, 1999). No caso específico, o CEIVAP tem basicamente imposto um modelo de gestão (inspirado na literatura internacional, conforme mencionado acima) a uma população desorganizada e incapaz de se envolver criativamente nas suas instâncias formais. Mas se o novo comitê tem sido instrumental para a homologação do novo modelo global de gestão de recursos hídricos (em especial, o conceito de IWRM), o mesmo tem sido incapaz de lidar com a complexidade dos problemas socioambientais na bacia e acomodar, de forma eqüitativa e sustentável, as múltiplas subjetividades e desigualdades sociais. Como observado por Brannstrom (2004), o objetivo central, ainda que não oficial, das reformas institucionais no Brasil parece se restringir tão somente à implementação da cobrança pelo uso da água. A DEMOCRACIA INTERNA NO COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA Para entender como funciona a democracia interna no comitê da bacia hidrográfica, é importante perceber o desequilíbrio de poder entre os setores envolvidos. Esquematicamente, é possível separar os membros do CEIVAP em pelo menos três “esferas concêntricas” de influência. A esfera central é ocupada pelos grupos com maior capacidade de interferir na tomada de decisão, a começar pela Agência Nacional de Águas. Muitos dos seus servidores estiveram envolvidos na formulação da nova legislação e participam agora da sua implementação – cabe observar que a maioria dos diretores da Agência provêm do Rio de Janeiro e de São Paulo, e muitas das vezes, têm razões pessoais para estar envolvidos na experiência do Paraíba do Sul. Como órgão central do novo modelo de gestão de recursos hídricos no Brasil, a ANA tem tido um papel dominante na reforma do setor, mas tem sido também em si mesma um “locus” de disputas políticas. Em vez de um perfil técnico ou meramente regulador, desde sua criação, a indicação de diretores e superintendentes tem seguido um longo processo de negociação política entre os partidos e grupos que apoiam o governo – tanto no Governo FHC, quanto no Governo Lula. Existe, portanto, uma persistente e perversa “simbiose” entre interesses paroquiais e a definição das R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 73 17 Segundo a Constituição de 1988, os corpos d’água têm duas formas de dominialidade: 1) pertencem à União os rios que cortam mais de um estado ou são compartilhados com outros países; 2) pertencem aos estados os rios contidos nos seus territórios e as águas subterrâneas. O S L I M I T E S P O L Í T I C O S prioridades nacionais de gestão de recursos hídricos. Ainda na esfera central de poder situam-se também os representantes do setor industrial e do agronegócio. Mesmo com uma minoria de cadeiras, esses grupos têm conseguido manipular importantes decisões do comitê, como a recente organização da agência de bacia (chamada AGEVAP, o braço executivo do comitê), conforme detalhado por Sousa Jr. (2004). A principal questão enfatizada pelo setor industrial é o risco de que a arrecadação dos recursos da cobrança seja desviada pelo governo para outros propósitos – como, em verdade, veio a acontecer no início do processo (ver abaixo). As indústrias, portanto, têm sistematicamente exigido garantias de que a arrecadação seja permanentemente tratada como uma taxa ambiental e não como um imposto. No segundo nível de hierarquia do comitê – aqui descrito como uma segunda “esfera de poder” – encontra-se um grupo mais heterogêneo de participantes, o que inclui a representação das prefeituras municipais e governos estaduais, ambientalistas, empresas de abastecimento de água e saneamento e representações profissionais – como a influente Associação Brasileira de Recursos Hídricos. Essa “esfera de poder” tem tido uma capacidade de influência mais discreta nas atividades do comitê do que os grupos que constituem o grupo decisório central – embora essa classificação seja meramente esquemática e haja freqüentemente situações em que o papel de certos grupos nessa categoria se destaque acima da média. Até mesmo o atendimento de reuniões do comitê tem se revelado mais difícil para esses setores intermediários, uma vez que as despesas de deslocamento devem ser pagas pelos próprios participantes, e não são reembolsadas pelo comitê. Por outro lado, há evidências de que muitos grupos insistem em participar das atividades do comitê por terem interesse em obter alguma forma de compensação financeira. Diversas pessoas entrevistadas durante nossa pesquisa teceram duras críticas, por exemplo, a respeito do envolvimento de certas ONGs e acadêmicos que parecem buscar o comitê apenas para assegurar contratos de consultoria ou de prestação de serviços. De fato, na última década muitos acadêmicos (e mesmo funcionários públicos) estiveram repetidas vezes envolvidos em consultorias relacionadas à organização do CEIVAP e, em especial, à introdução da cobrança. Em certo sentido, o processo se caracteriza como a “profecia que se auto-realiza”, haja vista que os consultores desenvolvem as bases teóricas e operacionais dos mecanismos de cobrança, que são utilizados para o pagamento de seus próprios serviços de consultoria. A terceira “esfera de poder” entre os grupos sociais envolvidos ou interessados nas atividades do comitê tem uma posição marginalizada e é, na maioria das vezes, ignorada pelos membros nas outras duas esferas centrais. Esse conjunto de atores sociais marginalizados inclui pequenos usuários de água independentes (urbanos e rurais), pequenos agricultores, pescadores, pequenas atividades produtivas e a população em geral. Pela falta de mandato formal, muitos enfrentam grandes barreiras para participar e acompanhar a evolução das atividades do CEIVAP – podendo normalmente participar das reuniões apenas como ouvintes. Ainda assim, os membros efetivos do comitê geralmente reagem contra as críticas e questionamentos feitos pela população como uma demonstração da “falta de compreensão a respeito da relevância do novo modelo de gestão de recursos hídricos”, mesmo quando a crítica é feita por moradores diretamente afetados pelas decisões do comitê (como no caso da barragem de Itaocara). A esse respeito, Valêncio e Martins (2004) descrevem a exclusão dos grupos menos organizados da população das bacias hidrográficas no Brasil como “a naturalização da exclusão”, o que está diretamente relacionado com a “política do esquecimento” teorizada por Bakker (1999). A constante tentativa de par74 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 A N T Ô N I O A . R . I O R I S ticipar e ser ouvido pelos outros grupos que comandam as atividades do comitê demonstra claramente a dimensão política do processo de gestão de recursos hídricos no Paraíba do Sul. Como descrito por ÎiÏek (1998), em referência a Rancière (1995), a disputa política não se restringe ao debate racional entre múltiplos interesses, mas está também associado à conquista da oportunidade de ser reconhecido pelos demais como uma voz legítima. Algumas pessoas entrevistadas protestaram até mesmo em relação à linguagem técnica e legalista utilizada nas reuniões do comitê, o que indica a formação de um campo cognitivo (no sentido proposto por Bourdieu) que sistematicamente exclui aqueles com alguma dificuldade de entender detalhes do marco regulatório, com sua enorme lista de siglas, acrônimos, convenções e termos legais. Como foi expresso por uma pessoa dessa terceira esfera de poder sobre a operação do CEIVAP: A nova estrutura de recursos hídricos, a nova lei [9.433], ficam muito distantes das necessidades dos moradores e dos movimentos sociais – ativista do movimento social. (entrevista, Abril 2007) As três “esferas de poder” esquematicamente descritas acima obviamente existiam antes de o comitê ser instalado, mas o ponto crucial a ser notado é que as assimetrias sociais foram reforçadas pela implantação tecnocrática e turbulenta da cobrança pelo uso da água na bacia. Em tese, o novo sistema de regulação deveria criar sinergias entre o Estado e a sociedade, bem como favorecer a cooperação entre grupos sociais, mas, na verdade, o que passou a acontecer foi um distanciamento ainda maior entre as três “esferas de poder”.18 Na prática, persistem graves problemas ambientais, juntamente com a dificuldade estrutural de aperfeiçoar a gestão da bacia. O problema crucial tem sido a afirmação de uma ideologia tecnoburocrática como base do novo modelo de gestão, a qual é diretamente influenciada pelo ambiente de reformas do Estado brasileiro e pela hegemonia de políticas conservadoras no país e no mundo. As contradições e limitações do novo “pacote” de gestão de recursos hídricos não podem ser entendidas em si mesmas, mas como expressão fidedigna de uma concepção de uma sociedade de consumo que é intrinsecamente problemática e insustentável. O restrito espaço de debates e interação proporcionado pelo CEIVAP está relacionado à visão convencional da bacia hidrográfica como uma arena propícia para a aplicação de tecnologias e capitais empregados no uso de recursos naturais, em vez de ser um espaço formado por múltiplas trajetórias e interações sociais (cf. Massey, 2005). A compreensão da bacia hidrográfica como um espaço socionatural em constante formação é o primeiro passo para se chegar a mudanças profundas, o que Massey (2005) magistralmente denomina o “espaço do [ato] político”. QUAL O VALOR DA COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA? Como discutido acima, a introdução da cobrança pelo uso da água no Paraíba do Sul tem ocupado grande parte das atividades do CEIVAP, uma vez que representa a principal ferramenta de políticas ambientais na bacia. Tal situação não é de modo algum excepcional, mas em todos os países que passam por reformas institucionais semelhantes, a cobrança inevitavelmente apresenta grande controvérsia – o exemplo da Escócia e da Irlanda do Norte são paradigmáticos – e passa a “contaminar” os esforços em outras áreR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 75 18 Sob crescentes críticas, em 2006 o CEIVAP contratou uma consultoria para desenvolver um “plano estratégico” para a implementação dos instrumentos regulatórios, em especial voltado aos afluentes do Rio Paraíba do Sul. O S 19 A metodologia de cálculo prevê que todos os usos acima de certos limites (e.g. usos consuntivos acima de 1 litro/segundo e hidroeletricidade com potencial acima de 1 MW) devem pagar uma taxa mensal, calculada de acordo com a quantidade de água utilizada, a percentagem de uso e a qualidade do efluente final. Há uma taxa padrão (R$ 0,02/m3) para indústrias, abastecimento público e mineração, e descontos significativos para agricultura e aquicultura. Durante o período dessa pesquisa, a metodologia da cobrança estava sendo revista (algo considerado inconveniente e desnecessário para alguns de nossos entrevistados). L I M I T E S P O L Í T I C O S as. As disputas políticas em torno da adoção da cobrança revestem-se de uma complexidade adicional, entre os possíveis instrumentos regulatórios, em razão da necessidade de haver um regime institucional que defina claramente a propriedade sobre os recursos hídricos – ou de delegação da propriedade do Estado para os usuários, como no caso do Brasil, através da outorga de direito de uso. Devido a essa exigência fundamental para o sucesso da cobrança, a discussão sobre os direitos de propriedade e a preparação de bases operacionais para a introdução da cobrança normalmente tornam-se a prioridade central das reformas associadas aos recursos hídricos, mesmo que isso reduza o interesse pela degradação socioambiental da bacia, pela democratização efetiva das decisões e pela adoção de medidas compensatórias para as desigualdades sociais e espaciais. No caso do Paraíba do Sul, a preponderância da cobrança foi definida exogenamente pelo governo federal ao decidir que a bacia seria um laboratório do novo modelo regulatório e, desse modo, o trabalho principal do comitê seria remover quaisquer obstáculos à implantação da cobrança. Como brevemente mencionado acima, houve um debate acirrado e marcado por oportunismo político no âmbito do comitê, que resultou em uma decisão favorável e, a partir de 2003, passou-se a cobrar pelo uso da água bruta. 19 No papel, o instrumento da cobrança se justifica como a melhor opção para se mitigar o passivo ambiental, induzir o uso racional e realocar recursos hídricos de acordo com a eficiência econômica (Garrido, 2004). Na prática, porém, até o momento produziramse somente pequenos investimentos na regeneração de margens dos rios e em sistemas isolados de saneamento. Para se avaliar objetivamente os resultados da cobrança na BHRPS, far-se-á aqui uso dos critérios propostos pela OCDE (1991) para instrumentos econômicos de gestão ambiental, quais sejam: eficiência ambiental, eqüidade, aceitabilidade, viabilidade administrativa e eficiência econômica. Quanto ao primeiro critério (eficiência ambiental), é indiscutível que o mecanismo da cobrança tem sido grandemente incapaz de restaurar a condição ambiental da bacia. Em termos concretos, os impactos negativos da falta de tratamento de esgotos urbanos e efluentes industriais, extração de areia e captação de água continuam praticamente inalterados. Entre 2003 e 2006, foi arrecadado um total de R$ 25,4 milhões (dados fornecidos pelo comitê), consideravelmente menos do que a necessidade estimada para recuperar a bacia: R$ 360 milhões por ano em investimentos ou R$ 4,6 bilhões até 2025 (Coppetec, 2006). Em 2006, quatorze municípios foram contemplados com recursos oriundos da cobrança, em um total de R$ 7,1 milhões, basicamente aplicados em projetos localizados e com limitado potencial de recuperação ambiental. Mesmo esses modestos investimentos têm sido selecionados em função de interesses político-partidários e pressão de empreiteiros sobre os prefeitos locais – principalmente pelo fato de serem recursos a fundo perdido. Uma seleção nem sempre transparente contribui para minar o diálogo entre os membros do comitê, além de aumentar o nível de desconfiança do público em relação aos reais propósitos do novo modelo de gestão. Considerando o segundo critério da OCDE (eqüidade), existem pelo menos dois fatores principais que comprometem o sucesso da cobrança. Em primeiro lugar, empresas comerciais e companhias de abastecimento de água transferem os valores pagos ao comitê diretamente a seus clientes, o que significa que os custos ambientais são meramente incorporados nos preços dos serviços e produtos sem que haja a possibilidade de se chegar à justa redistribuição de responsabilidades, apenas reforçando a situação dos grupos privilegiados (como observado por Enzensberger, 1996). Em segundo lugar, não existe qual76 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 A N T Ô N I O A . R . I O R I S quer previsão de compensação pela degradação ambiental causada nas últimas décadas, e que tenha gerado ganhos econômicos apropriados de modo desigual pelos grupos dominantes. Mais especificamente, muitas indústrias vêm fazendo uso de recursos hídricos e degradando o rio por muitos anos, mas têm valores de cobrança pelo uso da água igual a empresas mais recentemente instaladas na bacia. Isso significa uma desigual alocação de responsabilidades pela condição da bacia e constitui uma espécie de “subsídio” na forma de ganhos obtidos no passado, mas gratuitamente mantidos no presente. Passando para o terceiro critério (aceitabilidade), existe ainda muito ceticismo e falta de informação em grande parte da bacia com relação à cobrança. Mesmo economistas diretamente envolvidos na fundamentação teórica da cobrança reconhecem que a situação fica muito aquém do desejado (cf. Azevedo e Baltar, 2005). Entre os setores de usuários de água, os industrialistas têm mantido a posição mais oportunista e variável. Inicialmente, a representação do setor industrial no comitê, constituído pelas federações de São Paulo (FIESP), Rio de Janeiro (FIRJAN) e Minas Gerais (FIEMG), mostrou-se irredutível na sua desconfiança em relação à cobrança, mesmo que concordasse a respeito da grave condição ambiental da bacia (FIRJAN, 2002). Como descrito acima, em 2002, o setor decidiu aceitar o inevitável e concordou que a cobrança fosse implementada, essencialmente com o propósito de capitalizar politicamente e melhorar sua imagem de “responsabilidade corporativa”. Mesmo assim, existe ainda uma minoria de industrialistas que mantêm sua contrariedade com o fato de terem de passar a pagar pelo uso da água (Féres et al., 2005). Essa reação se repete em outros setores de usuários e, considerando-se o ano de 2004, mais de 50% se recusou a pagar ou atrasou o pagamento (Soares, 2005). De acordo com dados do CEIVAP, a receita obtida pela cobrança se mantém constante desde 2003, o que sugere que a aceitabilidade não tem melhorado. Em relação ao quarto critério (viabilidade administrativa), a experiência na BHRPS tem sido problemática. Em grande medida, a bacia tem pagado um alto preço por ter sido a primeira a adotar o instrumento da cobrança após a aprovação da nova lei em 1997. Em sua fase inicial, quando a bacia ainda não contava com uma agência executiva – agora em operação e denominada AGEVAP –, a receita era administrada diretamente pela ANA. Pelo fato de ser um órgão público, nos últimos anos a Agência teve a execução de seu orçamento sistematicamente restringido pela área financeira do governo – basicamente, com o propósito de assegurar superávit financeiro. Nesse contexto, nos primeiros meses a arrecadação dos valores da cobrança na bacia foi indistintamente considerada como uma forma de imposto e, portanto, passível de ser contingenciada. Esse desvio do propósito e da configuração jurídica da cobrança suscitou forte reação no setor de recursos hídricos e, em 2004, uma nova legislação foi aprovada no sentido de se evitar que o problema continuasse, uma vez que a nova agência de bacia (AGEVAP) ficou encarregada de coletar e administrar a cobrança. Até certo ponto, a nova lei provê alguma proteção contra a voracidade da área financeira. Contudo, persiste a questão da dualidade de competências entre governo federal e estadual (ver nota número 17). Na prática, isso significa que a BHRPS tem não um, mas quatro mecanismos de cobrança, com metodologias de cálculo distintas para o mesmo manancial hídrico, o que representa um desafio permanente para a gestão e administração da bacia.20 Embora não seja excludente do ponto de vista legal e de sua esfera competente, a dificuldade de integração entre estados e a união significa um dos pontos críticos de todo o modelo de governança em implementação, uma particularidade brasileira que torna ainda mais difícil atingir o objetivo de uma gestão integrada. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 77 20 Além das disputas entre estados, existe na BHRPS uma associação de usuários de água, quatro comitês de sub-bacias, sete consórcios de municípios, e um verdadeiro “consórcio rival” na seção paulista da bacia (e.g. CBH-PS). O S L I M I T E S P O L Í T I C O S Provavelmente, a falha principal do instrumento da cobrança na BHRPS esteja relacionada ao quinto critério de avaliação, eficiência econômica. Em termos da economia neoclássica, fonte direta de inspiração do novo marco regulatório, ganhos de eficiência estão relacionados à alocação de recursos de acordo com a utilidade marginal e à busca de baixos custos de transação [transaction costs]. Mesmo com esse claro objetivo econômico, até o momento a cobrança na bacia tem influenciado pouco qualquer situação de realocação de água entre usuários, e tampouco tem evitado a expansão indiscriminada do uso da água. Mesmo que algumas indústrias locais tenham recentemente investido em tratamento de efluentes, isso se deveu muito mais a decisões tomadas anteriormente e não ao incentivo da cobrança. Em uma pesquisa com 488 indústrias na bacia, Féres et al. (2005) concluíram que a cobrança, pelo menos na sua fase inicial, não se configurou como um incentivo eficaz para reduzir o nível dos efluentes. A pesquisa mostrou que as empresas que investiram na redução da poluição, o fizeram com o intuito de evitar má publicidade durante o processo de organização do comitê de bacia. Um de nossos entrevistados também expressou sua concordância com essa conclusão: O principal benefício da cobrança é melhorar a imagem das empresas multinacionais, porque elas usam a informação de que estão pagando pela água, de que estão observando o princípio do poluidor-pagador, como forma de ganhar certificação internacional (…). O mesmo entrevistado ainda acrescentou: A melhoria inicial da condição do rio é relativamente fácil, sem muito problema, mas a questão é como manter o ritmo de despoluição e garantir melhoria na qualidade da água – acadêmico e ex-membro do CEIVAP. (entrevista, Abril 2007) Nossos resultados a respeito da cobrança na BHRPS, especialmente tendo em conta os cinco critérios analisados acima, coincidem com as observações de Molle e Berkoff (2007) a respeito da necessidade de compatibilizar esse instrumento de regulação com reformas políticas mais profundas e que permitam um aprofundamento democrático e divisão de responsabilidades. Segundo Liodakis (2000), o conceito de “externalidades ambientais” contribui para o entendimento da degradação ambiental, mas a tentativa de internalizar tais externalidades – como pela aplicação de taxas ambientais semelhantes à cobrança – apenas torna óbvias as falhas de mercado e demonstra a inadequação das políticas convencionais de gestão do meio ambiente. Como antes observada por Kapp (1970), a dificuldade maior para a adoção de instrumentos de gestão ambiental baseados em regras de mercado é que um valor monetário passa a ser atribuído a um recurso que é totalmente dissociado do mercado (e.g. água). A conseqüência perversa desse processo de mistificação de valores é o fato de que os usuários de água passam a ser tratados de acordo com sua capacidade de pagamento, erodindo as diferenças sociais historicamente estabelecidas e, desse modo, acobertando as responsabilidades pela degradação e recuperação dos mananciais hídricos. Através da cobrança pelo uso da água, o novo marco regulatório passou a legitimar atividades que há décadas são responsáveis pela degradação da bacia, uma vez que o pagamento ao comitê se transforma em uma desculpa oficial para que não se questione a localização, operação e escala de tais atividades. De fato, industrialistas e irrigantes têm feito uso político da sua contribuição financeira ao comitê como argumento em favor de outras compensações fiscais e como garantia de uma aplicação 78 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 A N T Ô N I O A . R . I O R I S branda da nova legislação ambiental. Por tais razões, não é possível concordar com Formiga-Johnsson et al. (2007) – antes de mais nada, autores que têm prestado consultoria para o desenho do novo modelo de gestão (para mais detalhes da estreita relação entre acadêmicos e CEIVAP, ver Gruben et al., 2002) – quando afirmam que a introdução da cobrança na BHRPS tem sido um sucesso em termos de inclusão e eficiência técnica. Muito pelo contrário, a oportunidade de realmente se avançar na solução dos graves problemas da bacia tem sido perdida em função de uma insistência ideológica pela adoção de instrumentos econômicos de gestão de recursos hídricos. Apesar de toda a controvérsia, a cobrança tem sido pouco mais do que um pequeno contratempo para os grandes usuários de água, ao mesmo tempo em que significa o esvaziamento de ações na direção da sustentabilidade e da justiça ambiental. CONCLUSÃO: RECONHECER OS LIMITES DAS REFORMAS INSTITUCIONAIS A discussão acima buscou demonstrar como as reformas institucionais no setor de recursos hídricos têm sido marcadas pela afirmação de uma racionalidade tecnoburocrática, a qual vem apenas produzido respostas inadequadas aos problemas de gestão das bacias hidrográficas com alto nível de conflitos e degradação ambiental. É preciso reconhecer os limites metodológicos da pesquisa aqui relatada, especialmente pelo fato de se basear em um estudo de caso voltado a apenas uma única bacia, fazendo uso somente de métodos qualitativos de análise e cobrindo um momento histórico determinado. Não resta dúvida que se trata, portanto, de uma simplificação de uma realidade nacional muito maior, cheia de particularidades locais, incoerências administrativas e conflitos multifacetados. Mesmo assim, a experiência do Paraíba do Sul, dado o seu pioneirismo e complexidade, serve como amostra significativa dos limites e possibilidades do novo modelo institucional em implantação no país. No caso específico, os desdobramentos da última década representam apenas o capítulo mais recente de uma longa história de transformações socioambientais e desenvolvimento desigual. Os resultados de mais de 300 anos de intensa atividade agrícola, urbana e industrial continuam sendo rios e solos em sério estado de degradação, ao passo que saneamento básico e salubridade adequada ainda são fatores inacessíveis a significativas parcelas da população. A faceta conservadora e excludente de gestão de recursos hídricos continua indiscutivelmente tão evidente no presente como no passado, uma vez que o novo arranjo institucional – incluindo aqui o comitê de bacia e a cobrança pelo uso da água – mantém largamente inalteradas as bases desiguais de tomada de decisão e alocação de recursos hídricos. Se no passado a conservação ambiental esteve praticamente ausente quando grandes obras de engenharia foram construídas para atender a uma industrialização acelerada, o meio ambiente passou a receber maior atenção, embora ainda não se discuta como os impactos ambientais afetam de modo diferenciado os diversos grupos sociais, nem tampouco como o balanço desigual de poder condiciona a tomada de decisões a respeito da recuperação das condições ecológicas. A advocacia de conceitos como “governança ambiental” e “gestão integrada” vem sendo feita de modo centralizado e atendendo aos interesses dos atores sociais mais influentes, o que mostra como tais conceitos fazem com que se mantenham inalteradas as bases de uso e gestão da bacia, ainda que o discurso aponte exatamente na direção contrária. Ou seja, as reformas institucionais caminharam na direção dos objetivos de governança e R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 79 O S L I M I T E S P O L Í T I C O S integração previstos na doutrina internacional, mas houve pouca melhoria em termos de problemática socioambiental. Em outras palavras, a introdução das novas instituições de gestão (previstas na Lei 9.433/1997) pode ser avaliada como razoavelmente bem-sucedida, no que diz respeito a mudanças formais, mas constitui uma reforma limitada, haja vista que sua faceta tecnoburocrática tem comprometido o próprio entendimento dos problemas e a incorporação das demandas da maioria da população local. Apesar do evidente descompasso entre os objetivos e os resultados efetivos, é sintomático que existam ainda poucas avaliações críticas da experiência do Paraíba do Sul ou de outras bacias brasileiras. Tal fato contribui para manter a ilusão de que o processo caminha na direção correta, enquanto a água continua sendo objeto de interesses e acirradas disputas. O aspecto central a ser ressaltado é o fato de o novo modelo institucional de recursos hídricos refletir uma visão utilitarista da relação entre sociedade e natureza, basicamente em favor de políticas públicas que garantam, cada vez mais, a apropriação privada dos recursos naturais, mesmo que em detrimento da estabilidade ecológica de longo prazo. Para as políticas oficiais contemporâneas, a gestão de recursos hídricos deve se inserir na agenda de “modernização ecológica”, segundo os objetivos ambientais de uma “sociedade de mercado”. Exemplos nesse sentido são o envolvimento cada vez maior de empresas privadas na gestão de serviços públicos de água e energia hidroelétrica, assim como os programas da ANA ligados à compra de esgoto tratado (PRODES) e à “produção de água”, nos quais ações conservacionistas são pagas em dinheiro. Como descrito por Smith (2007), a modernização ecológica torna a própria conservação ambiental um mecanismo de acumulação de capital. Por meio da ocupação do cerne da gestão de recursos hídricos pela lógica de acumulação, os usuários de água são progressivamente reduzidos a uma condição de “sócios” do crescente “negócio da água” – negócio no sentido amplo de criação de um contexto favorável a transações, sem envolver necessariamente a compra e venda de água –, em vez de serem tratados como “cidadãos” com capacidade de contribuir ativamente, sem que sejam cooptados (ou corrompidos) por meio de incentivos monetários. É justamente nessa tendência de crescente expressão do valor econômico dos recursos hídricos que a introdução da cobrança pelo uso da água tem tido um papel estratégico de consolidação de uma racionalidade economicista na relação entre sociedade e natureza. Ao explicitar um valor monetário de um recurso natural de uso comum – na terminologia de economia política, sobrepor o valor-de-troca ao valor-de-uso e ao valorem-si da água –, a cobrança contamina todas as relações em torno da distribuição, uso e conservação dos recursos hídricos. Ou seja, em razão da cobrança, tanto os impactos ambientais quanto a importância socionatural da água são pensados somente em termos monetários, eliminado outras possíveis visões alternativas de mundo. Evidentemente que é preciso não tender para uma análise maniqueísta, mas perceber que, apesar das deficiências encontradas na implementação da Lei 9.433/1997, o processo de instalação de comitês tem também levado a avanços, especialmente por ampliar o debate a respeito dos problemas de gestão de recursos hídricos. Nesse sentido, como já indicado por Acselrad (1995), as contradições relacionadas aos instrumentos econômicos de gestão ambiental devem ser criativamente apropriadas pelos movimentos organizados e forças de resistência como uma oportunidade política para se questionar as experiências locais e os pressupostos do pensamento ambiental contemporâneo. Mas, antes de mais nada, é preciso compreender, na academia e fora dela, que a materialidade dos problemas ambientais e sociais associados aos recursos hídricos tem causas e repercussões políticas inexpugnáveis. 80 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 A N T Ô N I O A . R . I O R I S Como observado por Latour (2004, p.58), a importância histórica da crise ambiental atual decorre da impossibilidade de se continuar a imaginar o ato político dissociado do mundo natural que serve de base à política. Por todas essas razões, o novo marco regulatório de gestão de recursos hídricos no Brasil, como em muitos outros países, significa em grande medida uma reforma circunstancial e restrita – enfim, incompleta em si mesma – porque é interna e subordinada ao mesmo modelo econômico e político que foi historicamente responsável pela degradação ambiental e pela consolidação de privilégios. Em vez de favorecer a recuperação do dano causado, políticas ambientais baseadas na lógica de mercado – simbolizadas, sobretudo, pelo princípio neoclássico do “poluidor-pagador”, o qual dissocia o ato poluidor de qualquer responsabilidade política pela degradação e pelos ganhos acumulados ao longo de anos – são intrinsecamente limitadas pelo fato de ignorarem a importância das assimetrias sociais e injustiças ambientais. É essencialmente impossível se esperar ganhos em termos de sustentabilidade ambiental sem que ao mesmo tempo se aprofundem as condições democráticas e se reduzam as desigualdades socioeconômicas. Como bem observado por Middleton e O’Keefe (2001:16), “a não ser que a análise de desenvolvimento comece não com os sintomas, instabilidade ambiental e econômica, mas com a causa, injustiça social, nenhuma forma de desenvolvimento pode ser sustentável”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABERS, R.N. “Organizing for governance: building collaboration in Brazilian river basins”. World Development, v. 35, n. 8, p.1450-63, 2007. ACSELRAD, H. “Internalização de custos ambientais“. Cadernos IPPUR, v.1-4, p.13-27, 1995. AQUINO, L.C.S.; FARIAS, C.M.M.C. “Processo de ocupação e desenvolvimento econômico da bacia”. In: BIZERRIL, C.R.S.F.; ARAÚJO, L.M.N.; TOSIN, P.C. (Org.) Contribuição ao conhecimento da Bacia do Rio Paraíba do Sul. Brasília: ANEEL, 1998. p.49-54. 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The reforms in the Paraíba do Sul have been largely limited in themselves, given that the new institutional structure still prevents the incorporation of the demands of the majority of the local population and the proper solution to environmental questions historically established. K E Y W O R D S Hydropolitics, Political Ecology, Integrated Water Resources Management, Water Charges, Economic Instruments, Paraíba do Sul. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 85 OS PARADIGMAS DA MODERNIZAÇÃO DO ESTADO DO CEARÁ E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA BARRAGEM DO CASTANHÃO F R A N C I S C A S I LVA N I A DE SOUSA MONTE R E S U M O Este trabalho resulta de pesquisa para tese de doutorado cujo objetivo foi investigar em que medida o processo de uso e controle das águas no Ceará, tendo como base a Barragem do Castanhão, contribuiu para levar o estado a se transformar em paradigma da modernização, principalmente a modernização hídrica. Foram realizadas entrevistas com políticos, agentes governamentais, organizações da sociedade civil e outros agentes relevantes no processo. Foram também consultados documentos e relatórios de várias instituições envolvidas na implantação da Barragem. Concluiu-se que a modernidade hídrica está desenhando uma nova configuração territorial no estado do Ceará, transformando o espaço geográfico no espaço da racionalidade técnica a serviço de interesses privados, e que o desenvolvimento pretendido com a implantação da Barragem ocasionou um processo de modernização excludente, principalmente dos mais diretamente atingidos pelas obras. PA L AV R A S água; exclusão. - C H AV E Modernização; desenvolvimento; Ceará; barragem; A CONSTRUÇÃO DO CEARÁ MODERNO Nas duas últimas décadas, o estado do Ceará tem sido apresentado no cenário nordestino e nacional como expressão de transformação na estrutura tradicional de poder. Segundo Barreira (2002), foi sob o signo da ruptura, exemplificado no slogan “governo das mudanças”, que um grupo de empresários liderados por Tasso Jereissati ocupou a cena política cearense, projetando o Ceará para o restante do país como um exemplo de Estado moderno. Diógenes (2002) destaca que tivemos no Ceará, no final dos anos 1980, a produção de novas imagens políticas que se estabeleceram no cenário local, baseadas na oposição e legitimação diante das chamadas oligarquias coronelísticas. A construção de um Ceará moderno teve por base uma retórica das mudanças, com o governo estadual assumindo compromissos: [...] com a superação de valores deformados, que colocavam o interesse de pequenos grupos acima dos interesses maiores da sociedade. Compromisso com o combate a todas as formas de clientelismo. Compromisso com a recuperação da moralidade do serviço público, onde o Estado deve ser visto como instrumento para a realização do bem comum e não para o serviço das oligarquias. Compromisso com o combate à miséria e o respeito à cidadania como direito inalienável de todos os homens e mulheres do Ceará. (Ceará, 1987, p.8) R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 87 O S 1 Este discurso foi utilizado na campanha de Maria Luíza Fontenelle à prefeitura de Fortaleza em 1985 (Barreira, 1993, 2002) e também em campanhas para a Assembléia Legislativa no final da década de 1970 por candidatos de esquerda (Lemenhe, 1998). P A R A D I G M A S D A M O D E R N I Z A Ç Ã O O discurso de ataque aos “coronéis” e ao “coronelismo” já havia sido anunciado anteriormente,1 mas, pela primeira vez, de acordo com Barreira (op.cit.), tornara-se elemento fundamental da estratégia que deu suporte ao surgimento de novos atores políticos. De acordo com a autora, a evocação às mudanças pôs em destaque um capital político e simbólico que toma a forma de regras e legitimação de competências diferentes das até então existentes, de maneira que a herança partidária e laços de fidelidade foram substituídos por critérios que destacavam e priorizavam a formação intelectual e a experiência administrativa. Para Abu-El-Haj (1997), a mudança política acontecida no Estado teve esta peculiaridade devido à existência de uma herança política tradicional, com muita freqüência tachada de coronelista; foi este tom anticoronelista que assinalou o “marketing político” do candidato Tasso Jereissati ao governo do Estado nas eleições de 1986, facilitado pelas patentes militares de “coronéis” de seus opositores políticos. Pode-se depreender isto da observação feita a seguir: O tema das mudanças polarizou-se basicamente na promessa de transplante da racionalidade do moderno empresariado nordestino para o plano político administrativo, erradicando o clientelismo político e substituindo-o pela utilização asséptica e eficiente dos recursos públicos. A imagem ressuscitada nos meios de comunicação de massa foi a do velho e truculento “coronel” defendendo os “currais eleitorais” que as forças modernas se dispunham a romper. (Carvalho, 1987, p.204) O Ceará passou de estado considerado miserável na imprensa nacional para se tornar exemplo de Estado que deu certo, um modelo a ser seguido ou, para usar uma expressão muito em voga nas manchetes, para ser “uma ilha de prosperidade”. Entretanto, para quem quer ir além do discurso e das aparências das estatísticas, Teixeira (1995, p.7) faz perguntas instigantes: [...] pode-se alegar, como o fazem os dirigentes atuais da coisa pública, do Estado, que todo este processo representa uma ruptura com o passado, com o tempo dos ”coronéis”? Até que ponto esta propalada modernização corresponde a uma ruptura real? [...] podem estes dirigentes reclamar a autoria exclusiva dessas transformações como produto de seu jeito de fazer política, de governar? Há, de fato, uma ruptura com a economia passada, ao ponto de se julgar que o presente não guarda mais nenhuma relação com o passado? Para Gondim (2002), as mudanças ocorridas na sociedade cearense, a partir da eleição de Tasso Jereissati, aconteceram em função das mudanças estruturais que ocorreram na economia e na sociedade cearense desde a década de 1950, e que criaram as condições para a emergência destas novas elites. Parente (2000), analisando as elites políticas no estado, defende que estas sempre apresentaram uma fragilidade estrutural causada pela situação de secas freqüentes numa economia fortemente baseada no consórcio gado-algodão. Para o autor, a seca é “um fator importante na decomposição das elites políticas e econômicas cearenses, sobretudo numa situação em que as elites estão despreparadas para enfrentar as intempéries da natureza” (Id., Ibid.,p.58). Um outro fator desta fragilidade seria a desarticulação destas elites nas regiões Norte, Sul e Centro do próprio estado, não existindo nem “homogeneidade nem integração espacial” entre elas (Parente, 2002, p. 126). Dizer que estas elites são frágeis politicamente é, para o autor, dizer que “em situação de normalidade, não formam oligarquias fortes 88 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 F R A N C I S C A S I L V A N I A D E S O U S A M O N T E e permanentes como em Pernambuco, Paraíba e Bahia” (Id., Ibid., loc.cit.). A fraqueza estrutural das elites cearenses revela, a seu ver, “que elas necessitam de maior criatividade para sobreviverem” (Parente, 2000, p.73), e que “a modernização sempre se apresentou como uma estratégia de sobrevivência das elites cearenses” (Parente, 2002, p.126). Ao mesmo tempo em que tornava frágeis as elites econômicas e políticas, a seca teria tido um papel importante no processo de modernização, uma vez que o seu aparecimento contribuía para a emergência de um quadro técnico e moderno, formado para interferir de forma racional nos seus efeitos (Parente, 2002). As elites cearenses tinham consciência de que a modernidade2 era uma estratégia de sobrevivência política, sem a qual elas não se tornariam independentes dos efeitos climáticos. Essa convicção ter-se-ia evidenciado na década de 1950, com a criação do Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), dois órgãos sem os quais não seria possível conceber a eficácia de uma política de modernização conservadora: o BNB sediado em Fortaleza desde 1954, e a Sudene criada em 1959 e sediada em Recife, Pernambuco. “O BNB e a Sudene foram instrumentos importantes na estruturação de um modelo de desenvolvimento regional que tornasse não só a região, mas sobretudo o Estado do Ceará, com mais condições de conviver com as secas” (Parente, Ibid., p.135). Camilo Calazans de Magalhães, no documento “O desenvolvimento do Nordeste e a ação do BNB”, publicado pelo BNB, enfatiza o papel da criação do Banco do Nordeste e da Sudene como “fatos marcantes da fase moderna da história econômica nordestina”. Para ele, “é com a entrada do BNB em funcionamento, em 1954, que se inicia esta fase [de modernização], consolidada com a criação da Sudene quase no fim daquela década”. Magalhães destaca que esta fase é marcada por uma nova visão do problema regional, procurando-se a solução dos problemas das disparidades regionais através de uma política de promoção do desenvolvimento, tendo por influência as idéias de desenvolvimento, advindas da Europa e dos Estados Unidos, especialmente as experiências da Tenesse Valley Authority e da Cassa per il Mezzogiorno (Magalhães, 1979, p.13). Além do BNB e da Sudene, mais três instituições de interesse para o desenvolvimento da região tinham sua área de atuação no Nordeste: o Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS), a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), criada em 1947, e a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), criada em 1945. A preocupação era fazer com que o BNB e a Sudene cumprissem um papel político e econômico já explicitado pela ideologia desenvolvimentista. “Eram instrumentos ideológicos com objetivos de ‘modernizar’ também as tradicionais elites da região” (Parente, 2000, p. 135). Parente (Ibid.) apresenta a tese de que o mergulho do Ceará na ideologia da modernidade se deve a este processo de treinamento e socialização de uma elite técnica e preparada para uma administração racional do estado, sendo o BNB a força difusora da ideologia de modernidade. Para ele, este ambiente propiciou o surgimento de uma elite moderna formada por uma nova geração de empresários. No entanto, argumenta que a passagem de uma mentalidade e de uma prática inscritas no conservadorismo para uma outra de maior racionalidade técnica, identificadas com a modernidade, teve um outro ator destacado: Virgílio Távora, o último governante da “fase dos ‘coronéis’”3 da política cearense. Virgílio Távora tinha a intenção clara de modificar o perfil econômico do estado. De acordo com Aragão (1998), no final dos anos 1970, a produção algodoeira entrou em profunda crise, da qual até hoje não se recuperou; ao mesmo tempo, Virgílio Távora conseguiu a instalação no Estado do III Pólo Industrial do Nordeste, cedendo incentivos, vanR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 89 2 Pode-se considerar que o termo modernidade utilizado pelo autor é perpassado de ambigüidade, uma vez que o sentido implícito aos textos é na maioria das vezes, o de modernização, entendida como o desenvolvimento da racionalidade instrumental, que tem por base o cálculo custo/benefício, presente na eficácia, na produtividade e na competitividade. Esta modernização foi, em certa medida, alcançada pelas elites políticas do estado; no entanto, esta se apresenta muito distante da modernidade fundamentada na soberania popular e nos direitos humanos que leva à autodeterminação política (LECHNER, 1990). Outras vezes, porém, o termo se refere à "ideologia de modernidade" das elites cearenses, utilizada nos discursos como indicativo de ruptura em relação ao passado. 3 Período compreendido pelos governos de César Cals, Adauto Bezerra e Virgílio Távora, de 1971 a 1982. O S P A R A D I G M A S D A M O D E R N I Z A Ç Ã O tagens ou mesmo capital aos empresários, assegurado pelo Banco de Desenvolvimento do Ceará (Bandece). Estava desta forma criado o II Distrito Industrial de Fortaleza. Além do III Pólo Industrial, com a consolidação do II Distrito Industrial de Fortaleza, foram obras do governo de Virgílio Távora: a expansão do apoio à indústria pesqueira e à média indústria; desenvolvimento do pólo têxtil e de vestuário; pólo metal mecânico; expansão da indústria pesqueira; integração da indústria coureira; aproveitamento de novas oportunidades industriais; apoio infra-estrutural; apoio tecnológico e promoção industrial. No setor mineral, foi criada a Companhia Cearense de Mineração (Ceminas) e foi instalado o Centro de Artesanato de Fortaleza (Linhares, 1996). Nesse segundo governo, Virgílio Távora consolidou a transição para a modernidade, que já havia iniciado no seu primeiro governo (Parente, 2002). Para Parente (2000), a outra condição para desencadear o processo de modernidade nas elites políticas foi a existência de uma tradicional elite homogênea social organizada, reunida no Centro Industrial do Ceará (CIC). O CIC foi fundado em 1919 por um grupo de empresários com o objetivo de tratar de assuntos de interesses comuns aos industriais e estudar possibilidades de novos empreendimentos. Os objetivos da entidade eram voltados, prioritariamente, para os interesses corporativos do setor: suprimento de matéria-prima, comercialização, preços e salários (Matos et al., 1999). Seu primeiro presidente, Tomás Pompeu de Sousa Brasil, foi também o responsável pela implantação da primeira indústria têxtil do estado do Ceará, no ano de 1881. Esta primeira fase do CIC teve início com um presidente ligado à indústria têxtil, mas 15 anos depois, a presidência passou para os setores salineiro e madeireiro. Este fato esteve ligado à criação de duas organizações: a Federação das Associações de Comércio e Indústria do Ceará (FACIC) em 1928 e o Sindicato das Indústrias Têxteis do Ceará em 1935. Na década de 1940, o CIC foi desativado devido à criação da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (FIEC) (Parente, 2000). Segundo Teixeira (1995), alguns jovens empresários, em 1977, estimulados pela conjuntura de abertura política, começaram a se unir, de forma paralela à FIEC. Havia uma homogeneidade ideológica pelo fato de pertencerem a uma segunda geração de empresários no estado. O então presidente da FIEC, Flávio Costa Lima, percebendo a homogeneidade desse grupo e suas diferenças com os tradicionais empresários, cedeu o espaço do CIC, que estava praticamente desativado desde 1945, para que estes jovens pudessem desenvolver o seu potencial. Era, de acordo com Teixeira (Ibid), o espaço de que eles precisavam para por em prática suas idéias modernizadoras. Os jovens empresários passaram a pregar uma gestão profissional da administração pública, sem clientelismo, fisiologismo, paternalismo ou corrupção; duras críticas ao mau gerenciamento dos recursos e da política industrial do Governo para o Nordeste. Posicionavam-se contra o controle e o intervencionismo estatais na economia, e eram favoráveis à redemocratização do país e à implantação de um projeto liberal (Farias, 1997). ...[Este] grupo de empresários cearenses se apresentava à sociedade como portador de um “projeto civilizatório” para o Estado, na tentativa de imitar os filósofos do iluminismo, que tinham a tarefa, como se sabe, de ajudar a sociedade de sua época a alcançar a liberdade através do uso da razão. Arvorando-se da pretensão de serem herdeiros do espírito iluminista, estes jovens empresários julgavam que [...] cabia a eles a tarefa de libertar a sociedade [cearense] das trevas, da “desrazão”, do apadrinhamento e de fidelidade, estas últimas consideradas como sendo responsáveis por uma ”mercantilização feudalesca” dos aparelhos de Estado. [...] mercantilização que 90 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 F R A N C I S C A S I L V A N I A D E S O U S A M O N T E impedia, sempre de acordo com eles, o uso racional da máquina estatal para implementar uma política de desenvolvimento econômico-social. (Teixeira, 1995, p.3) Na avaliação de Bonfim (1999), o CIC chamou a si a tarefa de resgatar os instrumentos estatais para a retomada do desenvolvimento econômico estadual, por meio da reforma das contas públicas e do modelo de gestão fiscal. Viabilizou a construção das salvaguardas financeiras que dariam lastro aos ambiciosos projetos de reconfiguração do capitalismo estadual. Para Bonfim, não condiz com a realidade a afirmativa de que o grupo chegou ao poder com tal propósito e a ele se dedicou desde o primeiro instante. Pelo contrário, [...] a consciência da profundidade da ruptura a empreender e das possibilidades por ela abertas veio com o tempo, que forneceu as lições necessárias para o aprendizado sobre a organização da tarefa, em especial a de continuar vencendo eleições à medida que trilhava a senda da mudança. (Bonfim, Ibid., p.57) Entretanto, para Farias (op. cit.), os jovens empresários tinham a consciência de que para realizar as mudanças preconizadas precisavam conquistar o poder institucional. No discurso de posse de Tasso Jereissati na terceira diretoria do CIC, em 1981, há uma passagem na qual fica claro o projeto de conquistar o poder: “o CIC tem um compromisso estadual, regional e nacional com a formação, o mais rápido possível, de uma classe política competente e forte, capaz de influenciar e até assumir o poder” (Farias, 1997, p.259). Na mesma linha de raciocínio de Farias (Ibid.), Abu-el-Haj (1997) analisa que a atuação política da nova geração de empresários cearenses, em particular a geração do CIC, foi condicionada pela posição ocupada na produção e por suas relações com o Estado. E o método mais eficaz no seu processo de intervenção política foi através da conquista do cargo de governador estadual por Tasso Jereissati. O perfil destes empresários era, segundo este autor, baseado nos seguintes aspectos: engajamento em atividades industriais tradicionais de médio porte, e inserção em mercados complexos e de altos lucros. O governo estadual adotou medidas para a interiorização do desenvolvimento, por meio de políticas diferenciadas de incentivo à localização do investimento industrial, trazendo aos municípios mais importantes do estado a oportunidade de empregar parte de seu contingente populacional em plantas industriais modernas, que não apenas se beneficiassem dos incentivos ofertados, mas também dos níveis salariais mais baixos e da pequena força da organização sindical nativa (Bonfim, 1999). Farias (op.cit., p.274) destaca os projetos estruturais prioritários que, no segundo governo de Tasso Jereissati, tinham por objetivo fortalecer a economia do Ceará em longo prazo: a construção do Porto do Pecém, a internacionalização do aeroporto Pinto Martins, o Metrofor, os linhões Banabuiú-Fortaleza e da CHESF (para ampliar a oferta de energia elétrica), a melhoria das rodovias estaduais, a interligação das bacias hidrográficas e a construção do açude Castanhão, além dos investimentos no setor turístico. A MODERNIZAÇÃO HÍDRICA DO “GOVERNO DAS MUDANÇAS” A atuação governamental no estado do Ceará no decorrer dos anos, na questão das águas, sempre foi predominantemente feita pelo governo federal, com o governo estadual R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 91 O S 4 O Projeto Nordeste continha alguns projetos específicos, tais como o Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural (PAPP/PDSFN), Programa de Irrigação Pública e Privada, Programa de Apoio às Micro e Pequenas Empresas no Interior, Programas de Educação Básica e Profissional do Meio Rural, Programas de Ações Básicas de Saúde no Meio Rural e Programa de Saneamento Básico no Meio Rural (Amaral Filho, 2003). 5 As informações referentes ao aparato estatal da Política de Recursos Hídricos são de Ceará (1995a). 6 O SIGERH foi instituído pela Lei 11.196 de 24 de junho de 1992, complementado pela Lei 12.217 de 18 de novembro de 1993, que cria a Companhia de Gestão de Recursos Hídricos (COGERH), e pela Lei 12.245 de 30 de dezembro de 1993, que dispõe sobre o Fundo Estadual dos Recursos Hídricos (FUNORH). A sua composição reúne um conjunto de órgãos colegiados de coordenação e participação, deliberação e execução da política estadual de recursos hídricos. Congrega instituições estaduais, federais e municipais, que, de algum modo, se relacionam com recursos hídricos e com aqueles representativos dos usuários de água e da sociedade civil. P A R A D I G M A S D A M O D E R N I Z A Ç Ã O participando de forma muito tímida. Em conseqüência, acontecia uma inevitável dissociação entre os objetivos institucionais a as ações propostas nos programas. O processo de planejamento era marcado pela quase total desarticulação dos órgãos envolvidos nos programas, desprovido de qualquer estratégia de ação integrada. A implantação de uma nova política de recursos hídricos passou a fazer parte do pensamento estratégico do grupo que assumiu o poder no estado do Ceará em 1987, e foi incluída no conjunto das macro-reformas, ao lado da reforma do Estado e dos ajustes fiscal e financeiro. A partir daí, o governo estadual passou a implantar um ambicioso plano de oferta e disciplina do uso da água, tendo por base o argumento de que no passado não havia nenhuma preocupação, nem no estado nem na região, em se estabelecer uma estrutura capaz de ajudar a população das áreas rurais a lidar racionalmente com a escassez de água. Segundo Amaral Filho (2003, p.15), no primeiro Plano de Governo de Tasso Jereissati (1987-1991), ainda não havia uma “idéia clara” do modelo de gestão de água para o estado, embora existisse a consciência da necessidade de se formular um modelo, orientado para o disciplinamento e a racionalização do uso dos recursos hídricos. Considerando que as intervenções do governo contra os efeitos da seca eram emergenciais e de caráter assistencialista, com práticas de clientelismo, o Plano de Governo destacava que as soluções emergenciais deveriam ser abandonadas e deveriam ser estabelecidas soluções integradas, estruturais e permanentes (Ceará, 1987). Amaral Filho (op.cit.) destaca que o governo do estado depositou sua confiança na estratégia de desenvolvimento rural preconizada pelo Projeto Nordeste,4 que seria financiado pelos governos federal e estadual e pelo Banco Mundial. No início de 1987 foram dados os primeiros passos na implantação da política estadual de recursos hídricos. Foi dado início ao estabelecimento de um aparato estatal5 e à implantação de políticas públicas para encaminhar a questão dos recursos hídricos, com destaque para a criação da Secretaria de Recursos Hídricos (SRH) – lei 11.306 de 1º de abril de 1987 –, com a missão de promover o aproveitamento racional e integrado dos recursos hídricos do estado, coordenar, gerenciar e operacionalizar estudos, pesquisas, programas, projetos e serviços tocantes a recursos hídricos, e promover a articulação dos órgãos e entidades estaduais do setor com aqueles das instâncias federal e municipais. Outras medidas institucionais foram: a criação da Superintendência de Obras Hidráulicas do Estado (SOHIDRA) – lei 11.380 de 15 de dezembro de 1987 –, com o objetivo de ser o braço técnico e executor das obras da Secretaria de Recursos Hídricos; a vinculação da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) ao sistema de recursos hídricos. Desta forma, a SRH, a Funceme, a SOHIDRA e o Conselho de Recursos Hídricos passaram a compor o Sistema de Recursos Hídricos do Estado (Amaral Filho, 2003). Uma das providências adotadas pela SRH foi a elaboração do Plano Estadual de Recursos Hídricos (PERH), que lançou as bases da política adotada pelo setor. O Plano propôs todo um aparato jurídico e institucional para o setor, além de promover a integração dos órgãos estaduais, federais e municipais, organizando-os no Sistema Integrado de Gestão de Recursos Hídricos (SIGERH).6 O Plano Estadual de Recursos Hídricos, que levou quatro anos para ficar pronto, constitui o mais importante estudo técnico consolidado já realizado no Ceará e pode ser considerado como a principal fonte arquitetônica do atual modelo estadual de gestão dos recursos hídricos (Amaral Filho, 2003). Com a posse de Ciro Gomes em 1991, houve continuidade no processo de implantação do novo modelo de gestão de recursos hídricos, de forma a permitir a propagação dos 92 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 F R A N C I S C A S I L V A N I A D E S O U S A M O N T E desdobramentos do Plano Estadual de Recursos Hídricos, elaborado no governo de Tasso Jereissati (Id., Ibid.). O autor ressalta que, embora os princípios básicos da nova política já tivessem sido implementados pelo PERH, estes ainda não tinham penetrado no discurso político do novo governo. A Política das Águas no Ceará,7 prevista no artigo 326 da Constituição Estadual, foi disciplinada pela Lei Estadual de Recursos Hídricos n. 11.996 de 24 de julho de 1996, e visa proporcionar os meios para que a água, recurso essencial ao desenvolvimento sócioeconômico, seja usada de forma racional e justa pelo conjunto da sociedade, em todo território do Ceará. A Lei Estadual de Recursos Hídricos tem como objetivos: assegurar o desenvolvimento sustentado compatível com a oferta de água; assegurar a oferta de água em quantidade e qualidade para as gerações atuais e futuras; planejar e gerenciar, de forma integrada, descentralizada e participativa, o uso múltiplo, controle, conservação, proteção e preservação dos recursos hídricos. A Política Estadual de Recursos Hídricos tem como elementos básicos: o Plano Estadual dos Recursos Hídricos, que contém um estudo detalhado da capacidade e das potencialidades dos recursos hídricos do estado do Ceará (este plano foi revisado em 2004); o Sistema Integrado dos Recursos Hídricos, em que os Comitês de Bacia, as Câmaras Técnicas e o Conselho de Recursos Hídricos do Estado do Ceará (CONERH), órgãos colegiados, definem e executam a Política Estadual de Recursos Hídricos; e o Fundo Estadual de Recursos Hídricos, criado em 1992 para dar suporte financeiro à Política Estadual de Recursos Hídricos, que conta com recursos de programas e projetos governamentais e com aqueles oriundos da cobrança pelo uso da água bruta. A adoção da bacia hidrográfica8 como unidade de planejamento é um dos princípios fundamentais do gerenciamento dos recursos hídricos. O estado do Ceará foi dividido em onze bacias hidrográficas: Coreaú, Litoral, Curu, Metropolitana, Baixo Jaguaribe, Parnaíba, Acaraú, Banabuiú, Médio Jaguaribe, Alto Jaguaribe e Salgado (Amaral Filho, 2003). As funções do Comitê de Bacia são permanentes e intermitentes, abrangendo desde o planejamento e acompanhamento da operação dos açudes estratégicos e principais sistemas hídricos até a negociação de tarifas pelo uso de água bruta. Também são atribuições do Comitê: acompanhar a implementação dos cadastros de usuários de água bruta, contribuir para a negociação de conflitos pelo uso da água em sua bacia, implementar campanhas educativas e participar do processo de elaboração dos Planos de Gerenciamento de Bacias. Em 1993 foi criada a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará (COGERH)9 (Amaral Filho, Ibid.), com a finalidade de gerenciar a oferta dos recursos hídricos constantes dos corpos d’água superficiais e subterrâneos de domínio do estado, e equacionar as questões referentes ao seu aproveitamento e controle, operando, para tanto, de forma direta, por meio de subsidiária ou de pessoa jurídica de direito privado, mediante contrato, realizado sob forma remunerada. Além da aprovação da Lei 11.996, de 24 de junho de 1992, que dispõe sobre a Política Estadual de Recursos Hídricos, Amaral Filho (2003) destaca mais três realizações do Governo Ciro Gomes: o aumento da capacidade de armazenamento e da oferta de água no Estado através da construção de açudes, barragens e canais; a realização de novas rodadas de estudos técnico-científicos que aconteceram no âmbito do Projeto Áridas,10 que contribuíram para ajudar a atualizar o Plano Estadual de Recursos Hídricos, ao mesmo tempo em que definiam os contornos da Política de Recursos Hídricos do Ceará; e o feR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 93 7 Os princípios, instrumentos, diretrizes e elementos da Política de Recursos Hídricos são de Ceará [s.d.]. 8 Bacia hidrográfica é uma área onde toda chuva que cai, drena, por riachos e rios secundários, para um mesmo rio principal, localizado em um ponto mais baixo da paisagem, sendo separada das outras bacias por uma linha divisória denominada divisor de água. 9 A COGERH foi criada pela Lei n° 12.217, de 18 de novembro de 1993, em conformidade com o artigo 326 da Constituição do Estado do Ceará como entidade da Administração Pública Indireta dotada de personalidade jurídica própria, organizada sob a forma de sociedade anônima, de capital autorizado. 10 O Projeto Áridas foi uma reflexão realizada por equipes estaduais integradas dos estados do Nordeste, com a finalidade de repensar o desenvolvimento da região, tendo como referência o conceito de desenvolvimento sustentável. O Projeto Áridas nasceu na Fundação Esquel e teve o apoio da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Coordenação da Presidência da República (SEPLAN/PR), além de cooperação técnica e institucional do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA). A idéia original deste projeto aconteceu na Conferência Internacional sobre Impactos de Variações Climáticas e Desenvolvimento Sustentável em Regiões Semi–Áridas (ICID), realizada em Fortaleza no início de 1992, como base preparatória para a Conferência Mundial de Desenvolvimento e Meio Ambiente (Eco–92) para assuntos relacionados ao Semi-Árido, desertificação e meio-ambiente (Amaral Filho, 2003). O S 11 O contrato 4531-BR para a implantação do PROGERIRH foi assinado com o Banco Mundial em 10 de fevereiro de 2000, com um valor total do projeto de US$ 247,270,000.00; destes, o valor do contrato de financiamento do BIRD foi de US$ 136,000,000.00 e o valor da contra-partida, de US$ 111,270,000.00. Foi assinado também o contrato de nº 01.2.329.3.1 com o BNDES, em 30 de abril de 2002, para o financiamento de R$ 126.000.000,00, divididos em dois subcréditos, o subcrédito A, de R$ 43.400.000,00, e subcrédito B, de R$ 82.600.000,00 (Ceará, 2005a). P A R A D I G M A S D A M O D E R N I Z A Ç Ã O chamento de negociações com o Banco Mundial para obtenção de empréstimos para o financiamento do PROURB – Hídrico. A parceria entre o estado e o Banco Mundial na questão das águas foi iniciada em 1994, com o financiamento do Projeto de Desenvolvimento Urbano e Gestão de Recursos Hídricos (PROURB), que teve como objetivos a consolidação do sistema estadual de gerenciamento de recursos hídricos, inclusive com a criação da COGERH, e o início da cobrança pelo uso desses recursos. O PROURB também implementou um ambicioso programa de construção de barragens e adutoras para o suprimento de água a diversas cidades do Estado. Depois do início das obras do PROURB, o governo propôs ao Banco Mundial um programa de integração das bacias hidrográficas do Ceará, por meio da implantação do Programa de Gerenciamento e Integração dos Recursos Hídricos (PROGERIRH), que tem a concepção básica de transferência de recursos hídricos de zonas úmidas para zonas de escassez hídrica. O PROGERIRH foi criado pelo Governo do Estado em parceria com o Banco Mundial11 com o objetivo de promover a gestão eficiente e integrada dos recursos hídricos do estado do Ceará, mediante a racionalização do uso de água, o aumento de sua oferta para usos múltiplos, o incentivo à adequada gestão do solo e da vegetação nas bacias hidrográficas tributárias, a minimização de sua erosão, a construção de açudes estratégicos, a transposição de bacias, a criação de agrovilas e a irrigação ao longo dos eixos de transferência, com a abertura de novas fronteiras agrícolas, compondo assim, a Política de Recursos Hídricos do estado. Amaral Filho (Ibid., p.29) destaca que o envolvimento do estado com o Banco Mundial foi importante, não somente pelo aporte financeiro, mas também: [...] pela introdução do disciplinamento dos instrumentos, pelo aperfeiçoamento institucional, pela modernização dos procedimentos administrativos, pela mudança de mentalidade e também devido à melhoria da capacidade técnica dos recursos humanos envolvidos no sistema. Isto ocorrendo através da interação técnica, bem como através dos condicionantes econômico, financeiro, ambiental e social atrelados à concessão de empréstimos. O segundo e terceiro governos de Tasso Jereissati continuaram a Política de Recursos Hídricos. O Plano de Governo do terceiro governo tomou como base as teses e propostas dos estudos do Projeto Áridas. Foram estes estudos, conforme afirma Amaral Filho (2003), que deram visibilidade à Política Estadual de Recursos Hídricos, dando contornos mais precisos ao modelo, inclusive agregando o conceito de desenvolvimento sustentável. A MODERNIZAÇÃO EXCLUDENTE DA BARRAGEM DO CASTANHÃO Nas seções anteriores, buscou-se explicar de que forma foi construído o “Ceará moderno” e como aconteceu a implantação da “modernidade hídrica” no estado, processos que estão imbricados com a construção da Barragem do Castanhão, que será analisada a partir dos pressupostos deste mesmo processo de modernização. Duas grandes obras de infra-estrutura se destacam no projeto de desenvolvimento instaurado no estado do Ceará: o Complexo Industrial e Portuário do Pecém e o açude 94 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 F R A N C I S C A S I L V A N I A D E S O U S A M O N T E Castanhão. O Complexo Industrial e Portuário do Pecém foi concebido com o objetivo de dotar o estado do Ceará de um núcleo de irradiação de desenvolvimento. A Barragem do Castanhão, considerada um elemento central na política da gestão integrada das principais bacias e na política estadual de águas, visa superar a vulnerabilidade das atividades sociais e econômicas quanto à incerteza de disponibilidade de água, e induzir o uso eficiente da água, como bem econômico escasso (Ceará, [199-]). Localizados na bacia hidrográfica do Jaguaribe, principal rio cearense, a barragem do Castanhão e seu reservatório estão situados nos municípios de Alto Santo, Jaguaribara, Jaguaretama e Jaguaribe. O vale do Rio Jaguaribe ocupa uma área de 72 mil quilômetros quadrados, ou a metade do território do Ceará. O Vale está situado em uma região semiárida e, em função do clima e da base geológica predominantemente cristalina, o regime dos rios é intermitente, fluindo apenas no período das chuvas. Até 1980, o Rio Jaguaribe era considerado o “maior rio seco do mundo”, tendo sido perenizado com a construção do Açude Orós em 1960 e com a instalação de equipamentos hidráulicos em 1980. Três vezes e meio maior que o açude Orós, o Castanhão tem capacidade para armazenar 6,7 bilhões de m3 de água, com um volume útil de 4,211 bilhões na cota 100 e um volume morto de 250 milhões de m3 na cota 71. O reservatório tem um comprimento máximo de 48 km, área inundada de 32.500 hectares na cota 100 (cota de sangria), de operação normal, e 60.000 hectares na cota de cheia máxima. A Barragem do Castanhão é considerada pelo Governo do Estado do Ceará como um projeto de uso múltiplo com forte componente de desenvolvimento regional, e representa fato de grande repercussão sócio-econômica no estado. A construção da Barragem do Castanhão foi apresentada como um importante meio de atender não apenas as necessidades de água da população do semi-árido, vítima de secas periódicas, mas também como um investimento estratégico de longo prazo capaz de oferecer múltiplos benefícios. A água, como um recurso territorial estratégico, tem se revelado elemento de fundamental importância para garantir a atração de indústrias para o estado, bem como para garantir o funcionamento do Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Com a finalidade de levar água para Fortaleza e região e para o Porto do Pecém, está sendo construído o Eixo de Integração Castanhão-Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) pela SOHIDRA,12 com recursos do PROGERIRH: um sistema de adução, com 255 km de comprimento, composto por uma estação de bombeamento, 166,59 km de canais, 93,0 km de adutoras e 1,1 km de túneis. A obra permitirá a transposição do açude Castanhão para reforçar o abastecimento da Região Metropolitana de Fortaleza e também do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, fazendo a integração das bacias hidrográficas do Jaguaribe e da Região Metropolitana.13 Este empreendimento é considerado fundamental para o suprimento, com garantia adequada, das demandas hídricas da Região Metropolitana de Fortaleza, incluindo o Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Os primeiros estudos topográficos e geológicos sobre a Barragem do Castanhão datam de 1910. De acordo com Tavares (2004), o geólogo americano Roderic Crandall, consultor do Serviço de Geologia e Mineralogia do Brasil, descobriu o Boqueirão do Cunha, hoje situado no município de Alto Santo, na aproximação do chamado Baixo Vale do Rio Jaguaribe, ao estudar seções naquele rio que poderiam ser fechadas para o armazenamento d’água, como forma de regularizar a oferta deste recurso, em um território regido pelas irregularidades climáticas e constituído, em quase toda sua totalidade, de solos rasos de geologia cristalina. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 95 12 Informações disponíveis em: http://www.sohidra.ce. gov.br. 13 O primeiro trecho do Eixo de Transposição foi inaugurado em dezembro de 2004. O S 14 Em julho de 1995, o DNOCS celebrou um Convênio com o Governo do Estado do Ceará, a fim de viabilizar as ações decorrentes da Construção da Barragem do Castanhão, no que se refere ao envolvimento com populações, como a construção da cidade de Nova Jaguaribara e o Reassentamento da População Rural, bem como outras ações pertinentes à execução da obra. Em 22 de outubro de 1996, o DNOCS assinou o Contrato nº PGE 16/96 com o Consórcio Aguasolos/Hidroterra, vencedor da licitação para Execução de Serviços de Consultoria para Acompanhamento, Assessoria e Fiscalização das Obras da Barragem do Castanhão. (Araújo, op. cit). P A R A D I G M A S D A M O D E R N I Z A Ç Ã O Conforme Tavares (Ibid.), a descoberta não foi tão festejada na época, pois o relatório de Crandall adiantou que o sítio barrável em questão seria mais adequado à construção de uma barragem de pequeno porte, para derivação das águas para futuros canais de irrigação, pois se situava no limite extremo sul das manchas irrigáveis do baixo Jaguaribe. Apenas em meados de 1955, a construção do eixo barrável foi cogitada, quando se apresentou como alternativa à barragem do Orós, sendo preterido por esta última, que teve as obras iniciadas e concluídas ainda no Governo Juscelino Kubitscheck. A partir do início dos anos 1980, a Barragem do Boqueirão do Cunha, atualmente Barragem Castanhão, passou então a ser estudada, agora pelo Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), no âmbito dos estudos de transposição das águas do São Francisco para o Nordeste Semi-Árido, com a finalidade de desempenhar o papel de reservatório pulmão (Tavares, Ibid.). Em setembro de 1987 foi contratado o Consórcio Hidroservice/Noronha pelo DNOS, para elaboração dos Estudos Básicos, Anteprojeto, Projeto Básico e Projeto Executivo (Araújo, 1997). Com a extinção do DNOS, seu patrimônio e competências foram transferidos para o DNOCS, inclusive o futuro empreendimento Barragem do Castanhão. Desta forma, o Projeto do Castanhão só chegou ao conhecimento do DNOCS em dezembro de 1986 (Tavares, Ibid.). Em 1989, o DNOCS iniciou a contratação do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), o cadastramento das terras e benfeitorias, e o remanejamento da população atingida. O Projeto Básico, devidamente aprovado, serviu de suporte para efetivação da Concorrência Pública nº 08/89-DGO/G, realizada em dezembro de 1989. A vencedora da licitação foi a Construtora Andrade Gutierrez S.A., porém, o resultado esteve "sub-judice" por quase dois anos, em função de recursos interpostos por empresa concorrente. Em outubro de 1991, o Supremo Tribunal de Justiça deu provimento a recurso interposto pela Construtora Andrade Gutierrez, encerrando assim o processo licitatório, dando ganho de causa à empresa que apresentou o menor preço (Araújo, op. cit.). As obras de construção da Barragem do Castanhão14 foram contratadas pelo DNOCS em 05 de dezembro de 1991, através do Contrato nº PGE 01/91, com a Construtora Andrade Gutierrez S.A., porém, a 1ª Ordem de Serviço só foi emitida em 16 de novembro de 1995. Desde que o DNOS lançou a idéia e projetou a construção do Castanhão, com o conseqüente aparecimento das notícias de sua construção em 1985, o Castanhão se constituiu em uma obra polêmica, cercada de imensos questionamentos. As divergências técnicas foram o principal elemento desencadeador da polêmica em torno da obra (Silveira, 2000). Um dos líderes dessa oposição técnica foi o engenheiro civil Manfredo Cássio de Aguiar Borges, que foi por mais de vinte anos chefe da Divisão de Hidrologia do DNOCS. Borges dirigiu suas críticas aos erros do dimensionamento hidráulico do reservatório; aos erros e conseqüências da concentração de água no terço inferior do Vale do Jaguaribe; e aos erros e conseqüências da implantação de um lago com superfície extremamente grande para uma região seca e quente, o que ocasionaria uma grande perda de água por evaporação. Igualmente foi objeto de críticas a “dança” dos objetivos e benefícios advindos da Barragem. Críticas estas que foram bastante consistentes, uma vez que os objetivos dessa obra sempre variaram ao sabor do contexto da época, dos projetos e das conveniências governamentais, bem de conformidade com o que uma barragem de “usos múltiplos” pode oferecer. Exemplo muito claro disso pode ser percebido quando se constata a importância da 96 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 F R A N C I S C A S I L V A N I A D E S O U S A M O N T E Barragem do Castanhão para o Complexo Industrial e Portuário do Pecém, e de como, uma Barragem que agora é considerada o coração da política de águas do estado, não recebeu a mesma qualificação quando da elaboração do Plano Estadual de Recursos Hídricos. Esta “dança” de objetivos também é citada por Bernadete Neves, freira que liderou a organização da comunidade de Jaguaribara frente à construção da barragem do Castanhão: Os objetivos da barragem sempre foram apresentados de acordo com o contexto da época. Sabemos que o projeto teve origem nos gabinetes do DNOS, no Rio de Janeiro, fora da realidade do Semi–Árido. De início, eles apresentavam dois objetivos: um era a irrigação da Chapada do Apodi, e o outro era a transposição do São Francisco. Em 1985 houve muitas enchentes, então eles aproveitaram para dizer que o projeto iria atenuar o nível de enchentes no Vale. Diziam mesmo que acabaria com as enchentes. Numa outra época, o projeto passou a ter como objetivo a geração de energia. Eles vão mudando os objetivos de acordo com os interesses do momento. [...] Eles vão manipulando, vão fazendo os objetivos de acordo com o contexto da época, para conseguirem a aprovação do povo. Durante um ano de seca, um outro objetivo foi levar água para Fortaleza. Agora é a transposição do São Francisco. O que sentimos é que isto faz parte de um plano maior, de favorecimento de empreiteiras. (IMOPEC, 1999, p.26) A população de Jaguaribara, cidade que foi submersa pelas obras da Barragem,15 teve um papel fundamental na discussão que se estabeleceu em torno de sua construção, embora, segundo os próprios moradores, não se possa dizer que o povo de Jaguaribara tenha se organizado em decorrência da construção da barragem. Quando a notícia da barragem chegou, já há seis anos se desenvolvia a discussão, organização e formação de lideranças, com forte presença da Igreja Católica, em particular de Irmã Bernadete. A população utilizou todas as estratégias disponíveis para impedir a realização da obra. Quando se constatou a inevitabilidade do projeto, surgiram as discussões de compensações sociais, econômicas e financeiras à população urbana e rural. Uma questão muito importante a ser resolvida dizia respeito ao desejo da população de ficar nas margens do rio, em vez de ser deslocada para assentamentos de reforma agrária em outras localidades. Para muitos, isso seria uma violência à tradição deles. Jaguaribara era um lugar com uma tradição cultural que deveria ter sido preservada. Desde que a Confederação do Equador teve o desfecho na região e o corpo de Tristão Gonçalves teria sido sepultado na igreja local, Jaguaribara passou a fazer parte do mapa histórico do Ceará.16 A praça principal da cidade tinha o nome de Tristão Gonçalves. Existia um marco que era muito visitado e, particularmente no dia 31 de outubro, o marco era alvo de visitas por alunos das escolas locais. O desrespeito aos critérios estabelecidos para as indenizações (justa, prévia e em dinheiro) criou problemas para as pessoas que compraram propriedades nos municípios vizinhos confiando nelas, pois tiveram que devolver as terras porque não puderam consolidar a compra devido a atrasos nos processos de indenização. Outro problema grave dizia respeito ao descompasso muito grande entre o ritmo das obras da barragem e o da construção da nova cidade e, principalmente da formação dos assentamentos rurais. Para muitos, o pagamento das indenizações e o citado descompasso constituíram um dos problemas mais sérios. Com a transferência para a nova cidade sendo anunciada pelo Governo do Estado, persistia a disputa e a negociação entre Governo e comunidade, conforme mostra Nascimento (2003, p.21), ao mencionar a produção de uma série especial de matérias veiculaR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 97 15 Embora Jaguaribara tenha sido o município mais atingido, as obras de construção da Barragem atingiram também Jaguaretama, Alto Santo e Morada-Nova, os quais cederam parte de seus territórios para o novo município de Jaguaribara. Jaguaretama ainda teve parte de seu território atingido pelas obras. 16 Escavações feitas na Igreja Santa Rosa de Lima, quando da demolição da cidade de Jaguaribara, não localizaram os restos mortais de Tristão Gonçalves. (Diário do Nordeste, 15 de outubro de 2001). O S 17 Informação constante nos Planos de Reassentamento do IDACE. P A R A D I G M A S D A M O D E R N I Z A Ç Ã O das no Programa “No Ceará é assim” da TV Jangadeiro, emissora de propriedade de Tasso Jereissati, sobre a transferência dos moradores e a estrutura da nova sede. Segundo a autora, tais matérias difundiam os benefícios de uma cidade planejada, “nascida do processo democrático”, na qual “seu planejamento, desde a sua localização até a estrutura física urbana, contou com a participação da população” – conforme Informativo da Secretaria do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do Governo do Estado do Ceará –, embora não se constituíssem em fonte isenta, dado que não havia espaço nestas mesmas matérias para a divulgação das idéias contrárias ao Governo. Enquanto isso, a comunidade, com apoio de algumas entidades, produzia e divulgava material declarando sua posição divergente no processo. A transferência dos moradores para Nova Jaguaribara teve início em 2000. Em 2002, a nova cidade, distante 55 km da antiga sede, foi inaugurada pelo Governo do Estado. Nova Jaguaribara possui área territorial de 595,60 km2 e passou a ter como limites o município de Morada Nova, ao norte; os municípios de Alto Santo e Iracema, a leste; o município de Jaguaribe, ao sul e o município de Jaguaretama, a oeste (Ceará, 1995b). Segundo Pontes (2004), as recomendações relativas ao reassentamento estavam ligadas essencialmente à população urbana, em função de exemplos negativos que já haviam ocorrido em outras obras no Brasil e, também devido à organização da população urbana de Jaguaribara. A área rural não se constituía em motivo de preocupação, dada a dispersão da população e a ausência de resistência e organização. Eles não estavam incluídos nos planos de modernidade. A construção da Barragem Castanhão deslocou compulsoriamente uma população de 2.268 famílias no meio rural, em área circunscrita ao futuro lago, até a cota 110. Destas famílias, 1.515 foram consideradas reassentáveis, uma vez que não tinham condições de se restabelecer por sua própria conta, por serem simples moradores ou porque, sendo proprietários, receberam uma indenização que não lhes permitia se restabelecer dignamente (Ceará, 2004).17 O Governo do Estado, vislumbrando a magnitude das ações do reassentamento e não possuindo recursos para o cumprimento do convênio que tratava da execução de ações referentes à barragem do Castanhão, solicitou uma alteração no mesmo, através de aditivo. No momento da rediscussão das competências e valores, coube ao DNOCS a responsabilidade pelo reassentamento rural, inicialmente com o Governo do Estado, e este, como contrapartida, construiria a nova sede de Jaguaribara. O DNOCS repassaria os recursos necessários ao Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (IDACE), que seria o executor do reassentamento rural (Pontes, op. cit.) Não havia uma idéia de movimento de atingidos na região até os anos 1990. A história do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Castanhão, enquanto movimento organizado de luta contra barragens, se iniciou a partir de 1993, especialmente quando um dos atuais líderes do movimento começou a participar das reuniões que aconteciam em Jaguaribara, Fortaleza e São Paulo, em 1997. A idéia do movimento começou a tomar forma a partir da insatisfação quanto ao modo como a questão da barragem estava sendo tratada pelas lideranças de Jaguaribara. Hoje, o MAB tem destacada atuação no enfrentamento dos problemas advindos da implantação da Barragem. A liderança exercida pela freira Bernadete Neves provocou, por volta de 1999/2000 vários confrontos internos, com discordâncias quanto à maneira como o trabalho estava sendo conduzido, principalmente no enfrentamento com o governo, estabelecendo-se uma clara disputa entre a Igreja, na pessoa da Irmã Bernadete, e o MAB. 98 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 F R A N C I S C A S I L V A N I A D E S O U S A M O N T E A falta de planejamento do Estado para o equacionamento dos problemas dos atingidos no meio rural foi outro fato que contribuiu para a organização do MAB na região, que veio dar maior visibilidade a estas questões, organizando manifestações, encaminhando documentos, conseguindo meios para resolver emergencialmente a situação de penúria em que se encontrava a maioria dos atingidos, e buscando uma interlocução direta com os órgãos envolvidos, principalmente com o DNOCS. O reassentamento dos atingidos do meio rural, com a multiplicidade de órgãos estatais envolvidos, esteve cercado de problemas, desde o início; o desenvolvimento ou modernização pretendido com a implantação da Barragem passou ao largo do processo descrito por Cernea e McDowell (2000), que tem em vista elevar o padrão de vida, saúde, alfabetização, reduzir a pobreza e fortalecer o meio ambiente. Se os componentes fundamentais que devem ser considerados nos processos de deslocamento, a fim de se alcançar o desenvolvimento, são a ausência de pessoas sem terra e sem teto, desempregadas, marginalizadas, sofrendo de insegurança alimentar, com falta de acesso aos recursos comunitários e sem desarticulação dos laços comunitários, o modelo de desenvolvimento e de modernização posto em prática no Castanhão realmente falhou nesse sentido. É se é possível também, como advogam Cernea e McDowell (Ibid.), que, sob políticas claras, podem ser protegidas mais efetivamente as práticas que constituem os direitos civis, dignidade humana e os direitos econômicos dos que são sujeitos à realocação involuntária, constata-se que faltou no Castanhão uma política clara para o reassentamento rural. Se nessa perspectiva, reassentamento e restabelecimento das condições de vida são domínios nos quais se afirmam os direitos humanos, estendendo a justiça social e promovendo a inclusão em vez de exclusão proeminente nas agendas políticas, pode-se afirmar que aconteceu no Castanhão um processo de modernização excludente. Se tomarmos como base as recomendações da Comissão Mundial de Barragens, fundadas nos valores de equidade, sustentabilidade, eficiência, processo decisório participativo e responsabilidade, a situação dos atingidos pode ser considerada ainda mais excludente. Sem dúvida, foi um avanço a instalação do Grupo de Trabalho Multiparticipativo para Acompanhamento das obras da Barragem do Castanhão, instância criada pelo Governo do Estado com o objetivo de discutir as ações relacionadas à Barragem do Castanhão e para servir como um fórum de debates acerca dos problemas oriundos de sua construção. Em que pese a inovação da medida, diferente das adotadas até então na construção de grandes obras de infra-estrutura, o Grupo Multiparticipativo funcionou muito mais no sentido de legitimação das ações governamentais do que como fórum efetivo de participação da sociedade civil. Isto se verifica fundamentalmente em seu funcionamento. Afinal, a participação democrática da sociedade efetivamente não ocorreu, se for considerado que a participação não se restringe a expor os problemas, mas em ter a possibilidade de influir nos resultados. Como pode ser considerado democrático um fórum para tratar das questões referentes à construção de uma grande obra, se é fechada a porta à participação formal de um movimento de representação dos atingidos por ela? O convite formal para a participação do MAB no referido Grupo só ocorreu quando não havia mais o que ser decidido e quando os movimentos sociais passaram a ter mais visibilidade. Como se pode dizer que a população participou efetivamente, se só podia decidir questões que não implicassem em realocação dos recursos, que foram prioritariamente dirigidos para a obra da barragem e da construção da nova cidade? R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 99 O S P A R A D I G M A S D A M O D E R N I Z A Ç Ã O No que tange à participação da comunidade tão propagada pelo Governo do Estado, cabe uma reflexão particular acerca da ação desenvolvida pelo Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (IDACE), representante do governo estadual no processo de reassentamento. O trabalho do IDACE teve por base uma metodologia participativa que já vinha sendo utilizada em assentamentos de reforma agrária no Ceará, mas que se mostrou problemática no caso da Barragem do Castanhão, dado o pouco poder de decisão que tinham seus técnicos no processo de reassentamento e à forma como se processou o reassentamento rural, sempre a reboque dos outros processos. A modernização pretendida pelo governo das “mudanças” apresentou, pelo menos no discurso, todos os aspectos relacionados por Gomes (2000) como indicativos do moderno: o caráter de ruptura, a imposição do novo e a pretensão de alcançar a totalidade. Como o mecanismo de substituição do antigo pelo novo é a ruptura, a necessidade imperiosa de ruptura com os “coronéis” fazia parte da afirmação de sua modernidade pretendida. Conforme Heller e Feher (1994), a instituição existente é atacada do ponto de vista de um imaginário (futuro), sendo transformada em instituição velha. Assim, todos os que se posicionaram contra o “novo” que estava sendo implantado no Ceará, também passaram a ser considerados como “forças do atraso”, numa pretensão clara de alcançar a totalidade. Outro aspecto a ser considerado na modernização do governo das “mudanças” diz respeito ao que Touraine (2002) chama de concepção ocidental da modernidade, em que a racionalização era a própria razão e a necessidade histórica que preparava seu triunfo. Desta forma, a racionalização se torna um aspecto essencial da modernidade e um mecanismo necessário para realizar a modernização. Neste aspecto, as ações do governo das “mudanças” se revestiram de um caráter técnico-racional sem precedentes na história do Ceará. Se a modernização pode ser entendida como o desenvolvimento da racionalidade instrumental e representa o marco econômico e cultural de nossa época, sendo um critério necessário ao desenvolvimento econômico e estabelecendo o referencial obrigatório para qualquer política, conforme Lechner (1990), o processo de uso e controle das águas no Ceará certamente tem contribuído para levar o estado a se transformar num paradigma da “modernização hídrica”, pensada nos seus aspectos puramente técnicos, citada como exemplo a ser seguido por outros estados do país. Entretanto, a modernização das práticas de planejamento e gestão de recursos hídricos em escala estadual se concretiza através de práticas tradicionais. Na verdade, seria mais justo dizer, no caso do Castanhão, que se assiste a uma combinação híbrida de formas modernas, planejadas e abertas, mesmo que de maneira incompleta à participação, com fortes traços de exclusão política, em que o social ainda é moeda de troca. Isto pode ser percebido muito claramente na questão do valor teto das indenizações – que determinava quem teria direito ao reassentamento –, apenas apresentado e não discutido com os atingidos, que não tiveram qualquer ingerência na definição deste valor, restando apenas a aceitação, ou a migração, como aconteceu com um número razoável de famílias. Isto também é verificado quando se compara o número de reassentáveis nos planos iniciais de reassentamento e os dados mais recentes de famílias reassentadas. A participação “adjetiva” que os atingidos tinham no Grupo Multiparticipativo, quando se tratava de resolver as questões mais importantes, e que diziam respeito às verbas, certamente não pode ser configurada como inclusão. E o tratamento dispensado ao MAB não poderia ser caracterizado como exclusão política? No Castanhão, as dimensões sociais do processo de modernização fracassam em um modelo que não consegue incorporar importantes segmentos sociais. 100 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 F R A N C I S C A S I L V A N I A D E S O U S A M O N T E CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise permite constatar que o processo de uso e controle das águas no Ceará, tendo como base o processo de construção da Barragem do Castanhão, colocou o estado como exemplo a ser seguido, e contribuiu para levá-lo a se transformar em um modelo de modernização, no que diz respeito a “modernização hídrica”. Se pensarmos em todo o aparato técnico e no desenvolvimento institucional, certamente houve modernização; entretanto, esta modernização ocorreu em detrimento de interesses e direitos de setores sociais que continuam estruturalmente à margem do mercado e à margem da proteção estatal, pois a modernidade hídrica implantada no Ceará buscou transformar o espaço geográfico no espaço da racionalidade técnica a serviço de interesses privados. O aparato institucional criado para dar corpo à modernização hídrica foi funcional para a concretização deste projeto de modernidade, inclusive com o envolvimento do Estado com o Banco Mundial, que propiciou a introdução do disciplinamento dos instrumentos, conseguidos através do aperfeiçoamento institucional e da modernização dos procedimentos administrativos. Isto ocorreu não apenas pela interação técnica, mas também por meio dos condicionantes atrelados à concessão de empréstimos. O Ceará, como cliente do Banco Mundial, se empenhou em desenvolver leis, regulamentos e instituições requeridas para administrar os recursos hídricos de maneira mais economicamente produtiva, socialmente aceitável e ambientalmente sustentável e, a exemplo dos demais prestatários do Banco Mundial, também precisou desenvolver e manter uma ação apropriada de infra-estrutura de água. Entretanto, a institucionalização posta em prática nas questões ligadas diretamente ao reassentamento da população rural afigurou-se como um elemento complicador do processo, tendo gerado interferências e conflitos entre os diversos níveis e instâncias, tanto governamentais, como com a Igreja, o MAB e representantes da comunidade. Não restam dúvidas quanto à necessidade de uma adequada gestão dos recursos hídricos em um estado que sempre sofreu em decorrência das irregularidades climáticas. Resta esperar que os benefícios desta pretensão de modernidade não fiquem concentrados nas mãos de poucos e se convertam em benefícios sociais que irão melhorar a vida da população, ou ao menos, formular um novo conceito que reinvente o progresso. Na época em que imperavam os interesses clientelistas, a implantação de indústrias era apresentada como solução para libertar a população nordestina dos efeitos da seca. E foi no esteio deste discurso que o grupo urbano-industrial que governou o Ceará nas duas últimas décadas se formou, ou pelo menos se fortaleceu, se beneficiando dos incentivos fiscais da Sudene, com o aval dos “coronéis” da política cearense. A seca continua sendo usada, não mais pela “indústria da seca”, mas como justificativa para a acumulação de água para beneficiar a indústria, de acordo com a visão empresarial dada à água; os interesses clientelistas da época dos “coronéis” no uso e controle da água, expressos pela construção de açudes e poços em propriedades particulares e outros expedientes que ficaram marcados no imaginário popular como a “indústria da seca”, se transformaram em interesses dos “industriais da seca” para atender a uma burguesia urbano-industrial. A implantação de indústrias (ou agroindústrias) continua sendo a resposta para o desenvolvimento, mas desta vez ancorada pela implantação de mega projetos hídricos associados à modernidade. Os cearenses deverão agora se acostumar a olhar para o solo, redesenhado pelo “caminho das águas”, na esperança de que a modernização promovida deixe de ser excludenR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 101 O S Francisca Silvania de Sousa Monte é doutora em Planejamento Urbano e Regional -IPPUR/UFRJ e professora adjunta da Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected] Artigo recebido em agosto de 2008 e aprovado para publicação em janeiro de 2009. P A R A D I G M A S D A M O D E R N I Z A Ç Ã O te e contemple todos aqueles que durante séculos se acostumaram a olhar para o céu, na esperança de chuva, especialmente a população do meio rural, a mais atingida pelas irregularidades climáticas. Além dos processos de exclusão econômica que são a marca do capitalismo na periferia (e aqui estamos falando de periferia da periferia), o processo político e social foi engendrado e engendrou sua modernização de forma incompleta ou truncada no processo de construção da Barragem do Castanhão. Será este o destino da modernização tropical? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABU-EL-HAJ, J. “Neodesenvolvimentismo no Ceará: autonomia empresarial e política industrial”. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v.28, n.3, pp.327-45, jul./set.1997. AMARAL FILHO, J. do. Reformas estruturais e economia política dos recursos hídricos. Texto para discussão n.7. Fortaleza: IPECE, 2003. ARAGÃO, R. B. História do Ceará. 2a. ed. Fortaleza: Ed. do Autor, 1998. ARAÚJO, M. Z. T. de. Barragem do Castanhão: projeto e aspectos da construção. Fortaleza: Departamento Nacional de Obras contra as Secas, 1997. BARREIRA, Y. A. 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A B S T R A C T This study is part of a doctorate thesis that investigated how the process of use and control of water supply in Ceará State from the Castanhão Dam contributed to transform the state in paradigm of modernization, particularly water resources modernization. Politicians, government agents, social organizations, and other relevant agents involved in the process, were interviewed. Many documents and reports from several institutions involved in the dam construction were also analyzed. It was concluded that water resources modernization is drawing a new territorial configuration in the Ceará State, transforming the geographic space in a space of technical rationality to serve private interest, and that the development intended with the dam construction resulted in a process of excluding modernization mainly to those directly affected by the dam. K 104 E Y W O R D S Modernization, Development, Ceará, Dam, Water, Exclusion. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 CULTURAS DA JUVENTUDE E A MEDIAÇÃO DA EXCLUSÃO/INCLUSÃO RACIAL E URBANA NO BRASIL E NA ÁFRICA DO SUL* EDGAR PIETERSE R E S U M O Neste artigo assume-se que a condição urbana contemporânea está fortemente marcada por uma crescente pluralidade. Associada a esta mudança na natureza do contexto urbano, pode-se também observar a proliferação de lugares (sites) de engajamento político e de ação, sendo alguns deles formalmente ligados a fóruns institucionais do Estado, mas muitos outros podem ser caracterizados pela sua insistência em permanecer fora do Estado, uma forma de afirmar autonomia e clamar por termos próprios de reconhecimento e formas de agir. O artigo chama a atenção para o significado de uma categoria de atores urbanos – hip-hoppers – que ocupa uma posição “marginal” na relação com o Estado, mas que é muito relevante para a existência marginalizada da maior parte da juventude negra nas cidades do sul global, particularmente no Rio de Janeiro e na Cidade do Cabo. O artigo demonstra que as culturas hip hop oferecem uma poderosa estrutura de interpretação e resposta para a juventude pobre que sofre sistematicamente o impacto de forças urbanas extremamente violentas e exploradoras. A base do poder do hip hop (e congêneres) é sua complexa sensibilidade estética, que funde valores afetivos – como o desejo, a paixão e o prazer, mas também a ira e a crítica –, que por sua vez se traduzem em identidades políticas e às vezes em ação (ou seja, posicionamento) para seus participantes. Em última instância, o artigo procura associar o potencial da cultura política do hip hop a temas acadêmicos mais amplos, tais como participação, espaço público, cidadania e segurança. P A L A V R A S - C H A V E Hip hop; política cultural; violência urbana; exclusão/inclusão urbana; registros afetivos. Um ponto de partida para este artigo é a idéia de que a natureza da condição urbana é substancialmente diferente hoje se comparada ao que era apenas algumas décadas atrás. Consequentemente, a forma como pensamos sobre quem e o que é incluído e excluído das cidades não pode ser concebida com as mesmas ferramentas conceituais que estavam à nossa disposição no passado recente. Hoje, a condição urbana é marcada por uma série de mudanças rápidas em termos de quem vive e se move pela cidade, pela forma como as infra-estruturas são projetadas e instaladas, pela proliferação de sinais que caracterizam as diferentes identidades – frequentemente em alternância – de determinadas partes da cidade; tudo isto, pode ser dito, tem aumentado a intensidade plural das cidades em quase todos os lugares. A primeira seção deste artigo chama atenção para a natureza violenta e criminal de cidades do sul global e sugere que, se os aspectos desumanizantes dessas tendências não forem confrontados, é impossível imaginar, e muito menos forjar, uma cidade inclusiva. A violência gera uma exclusão traumática que é irremediável. A segunda seção explora a importância das práticas culturais do hip hop como recurso para a juventude capturada pelas economias violentas, criminosas e sustentadas pelo tráfico de drogas nos bairros pobres dessas cidades. Após discutir sobre a definição do moR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 105 * Versões deste artigo foram apresentadas em dois seminários, em Barcelona (6-8 Novembro, 2006) e Johanesburgo (12-13 Março, 2007), respectivamente, reunidos sob o patrocínio do Centro Internacional para Acadêmicos Woodrow Wilson, do Centro para Cultura Contemporânea de Barcelona e do Banco de Desenvolvimento da África do Sul. Gostaria de agradecer aos membros destes seminários pelos seus comentários , e ainda a Christa Kuljian, por sua contribuição construtiva. C U L T U R A S D A J U V E N T U D E vimento hip hop, esta seção passará a uma descrição sumária de seu crescimento como subcultura no Brasil e na África do Sul. A terceira seção explora a natureza deste movimento como manifestação política e como ela pode promover perspectivas de inclusão urbana. Na seção final deste artigo procura-se associar as principais conclusões sobre o potencial da política cultural do hip hop a temas mais abrangentes, como participação, espaço público, cidadania e segurança. NATUREZA DA CONDIÇÃO URBANA Para a maior parte da juventude negra e pobre em muitos países do sul global, a cidade se assemelha a um funil fortemente circunscrito que os leva a contextos em que têm muito poucas opções a não ser uma vida de violência, excesso e terror, devido à profunda privação que caracteriza suas condições de moradia e de vizinhança. Ailsa Winton (2004) nos lembra que o trabalho seminal de John Galtung (1991) sobre a violência estrutural identificou como a privação é em si mesma uma forma de violência. (...) as compreensões de violência incluem dano psicológico e, por sua vez, a alienação, a repressão e a privação [...] Em contextos urbanos, é a privação enquanto desigualdade que é a mais importante forma de violência estrutural e também aquela que está relacionada de forma mais significativa com a emergência da violência reacionária cotidiana. A privação neste sentido inclui não só diferenças de renda, mas também a falta de acesso aos serviços sociais básicos, a falta de proteção universalizada pela previdência estatal, bem como a corrupção intensa, a ineficiência e a brutalidade, que geralmente atingem os pobres de forma mais intensa, e a falta de coesão social [...] Em situações de desigualdade severa e generalizada, os pobres urbanos são desconsiderados e marginalizados, e a sua condição de vida cotidiana aumenta a probabilidade da emergência de conflitos, crime e violência. (Winton, 2004:166-7) A partir desta perspectiva, não é surpreendente verificar que a violência é realmente um fator dominante no cotidiano, particularmente nos enclaves urbanos onde a população pobre se concentra – as favelas no Brasil e as townships na África do Sul. Uma conseqüência determinante é a banalização da violência como rotina na resolução de conflitos ou nas relações com outras pessoas. A literatura sugere que isto é particularmente comum em sociedades que presenciaram conflitos no passado recente, tais como Colômbia (Ferrandiz, 2004), Nicarágua (Rogers, 2006), África do Sul (Standing, 2004) e Jamaica (Clarke, 2006), entre muitas outras (Winton, 2004). O tráfico de drogas se estabelece com facilidade nestas sociedades porque exige e produz violência. Quase todas as dimensões do tráfico de drogas envolvem a violência; por exemplo, uma guerra entre gangues que se deflagra para o controle dos mercados e do território, ataques contra viciados em ondas de purificação social (especialmente no Brasil) e as incessantes brigas e violências domésticas ligadas ao gênero (ver Sousa, 2005; Winton, 2004; Zaluar, 2006). A violência estrutural, associada em particular a economias baseadas no comércio de drogas, dá origem a configurações espaciais particulares nas favelas, que restringem e direcionam o movimento das pessoas comuns. O geógrafo Marcelo Lopes de Sousa (2005: 6-7) oferece uma visão esclarecedora desta espacialidade: O tráfico varejista de drogas implantado na favela combina uma forte hierarquia na escala da favela com uma organização em rede descentralizada na escala dos comandos. Em cada fa106 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 E D G A R P I E T E R S E vela esta hierarquia compreende (em ordem decrescente): o dono do morro, os gerentes (aqueles que controlam os pontos de venda), os soldados (equipe de segurança), os “vapores” (vendedores de rua) e os “aviões” (transportadores entre vendedores). Cada grupo traficante ou quadrilha tem seu próprio território composto de uma ou mais favelas e, enquanto os traficantes que pertencem ao mesmo comando geralmente respeitam seus respectivos territórios, bandidos pertencentes a comandos rivais frequentemente tentam tomar posse dos territórios inimigos. Isto resulta em guerras territoriais que duram vários dias ou mesmo semanas, normalmente envolvendo várias quadrilhas pertencentes ao mesmo comando e imbuídos do espírito de ajuda mútua. A proteção dos negócios como também de outros aspectos mais simbólicos, como a demonstração de poder e virilidade (ver Zaluar, 1994; 2002a), tem contribuído não somente para um aumento do uso da violência entre quadrilhas criminosas, como também para um aumento da atmosfera de tirania vivida pelos habitantes da favela. As descrições de ex-traficantes em Culture is our Weapon (Neate e Platt, 2006) capturam o modo como a vontade e a capacidade de praticar a violência são fatores-chave para se subir na hierarquia do tráfico, tanto em termos de status como de espaço. O balanço final da violência é desconcertante: “entre 1948 e 1999, estima-se que 13.000 pessoas foram mortas no conflito entre Israel e Palestina. Entre 1979 e 2000, mais de 48.000 morreram vítimas de ferimentos relacionados a armas de fogo na cidade do Rio” (Neate e Platt, 2006: 102). Em outras palavras, para as crianças negras,1 crescer nas favelas do Rio de Janeiro significa crescer em uma zona de guerra, e os piores impactos psicosociais que isso acarreta ocorrem porque não se admite que de fato se vive um tempo de guerra. Há muito mais para se dizer sobre a real dinâmica das gangues envolvidas no tráfico de drogas e as implicações da banalização (e internalização) da violência como parte inevitável da vida cotidiana; mas aqui se pretende apenas registrar a violência estrutural como parte do contexto social consolidado nas regiões pobres, identificando possibilidades existentes ou imagináveis para modificar essas condições, de forma a promover políticas e sistemas urbanos mais inclusivos e socialmente justos. Se aceitarmos que a privação constitui uma forma de violência, a pesquisa sobre a privação urbana no Brasil e na África do Sul demonstra um claro padrão de diferenciação racial. A juventude negra e pobre está cada vez mais incapacitada de participar da economia formal, que continua sua transição dos setores primário e secundário para o setor terciário, baseado em serviços que exigem habilidades específicas da força de trabalho. Estas habilidades são inacessíveis aos pobres devido ao fracasso dos sistemas educacionais e às diversas condições familiares, que contribuem para abalar a auto-estima, confiança, tempo, apoio e oportunidade para o sucesso educacional. Deste modo, as seguintes conclusões acerca das tendências brasileiras não surpreendem: Podemos também notar a presença da discriminação social no mercado de trabalho, onde a população não branca apresenta as maiores taxas de desemprego, a menor educação formal, os menores salários e é ocupada principalmente nas atividades informais. A taxa de emprego é diretamente proporcional ao nível de educação e é inversamente proporcional à idade, afetando os jovens com maior força. A taxa de desemprego cresceu entre 1993 e 1998 e é mais severa entre as mulheres (14,4%) e os não brancos, enquanto a taxa de desemprego para os homens é de 9,2%. Também encontramos condições de segurança mais baixas entre os domicílios chefiados por mulheres não brancas. (Morais et al., 2003:11) R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 107 1 Refere-se aqui a um entendimento abrangente de negritude que inclui a população parda que reconhece e aceita a linhagem africana de seus ancestrais. C U L T U R A S D A J U V E N T U D E Condições muito similares são encontradas em cidades da África do Sul, como a Cidade do Cabo, onde os níveis de desemprego são substancialmente mais altos que no Brasil, no patamar de 28% (CCT, 2006:20). Esta taxa média esconde a taxa de desemprego nas áreas de população predominantemente pobre e negra, onde os níveis de desemprego superam os 50% (Parnell e Boulle, 2006). A dura realidade é que a vasta maioria da população pobre da Cidade do Cabo permanece presa na condição de pobreza devido às condições sociais adversas que enfrenta em seus bairros e escolas, que tornam a realização educacional extremamente difícil. Na província do Cabo Ocidental, entre 48 e 55% dos estudantes que entram no sistema escolar acabam saindo antes de completarem 12 anos de estudo, e é desnecessário dizer que quase todos esses estudantes são negros e pobres (Department of Education, 2005). Além disso, menos de 10% dos estudantes oriundos de comunidades pobres que chegam a completar a educação secundária possuem as qualificações apropriadas para entrar no sistema educacional superior. As taxas de evasão no ensino superior atingem 50% antes que os estudantes completem a graduação. Desta forma, os pobres permanecem estruturalmente excluídos das novas oportunidades de emprego, que demandam qualificações mais altas associadas à educação e ao treinamento formais. Além disso, índices extraordinariamente altos de violência social nas famílias e comunidades pobres são frequentemente o padrão, em parte sustentados por gangues criminosas ligadas à droga, que servem como importantes fontes de governabilidade alternativa nestas áreas (Chipkin, 2005; Standing, 2004). Nos últimos anos, a maioria das townships negras (mas não exclusivamente) tem sido severamente prejudicada por uma epidemia de drogas, com o uso de “Tik” (metanfetamina de cristal) se tornando endêmico, alimentando a violência e aprofundando ainda mais a marginalização social e econômica da juventude pobre da cidade. Nestas condições, para a vasta maioria da juventude negra, a masculina em particular, o ingresso no mercado de trabalho formal é improvável, e sua participação nas atividades criminosas relacionadas à droga aumenta. Ademais, as estruturas das gangues que intermedeiam estas economias ilegais e ilícitas também provêem uma fonte de pertencimento e identidade, em um momento em que a perspectiva de falta de futuro pode tornar vulneráveis até as identidades mais sólidas. Pesquisas de diversos acadêmicos indicam que durante as duas últimas décadas, juntamente com a intensificação do processo de globalização, a escala, a complexidade e a abrangência das economias (e dos mercados) de drogas têm explodido, deixando em seu rastro um legado devastador de violência (Castells, 1997; Naím, 2006). Durante este mesmo período, a retração e a reestruturação da economia – favorecendo os setores baseados em serviços, que requerem níveis maiores de qualificação – tenderam a agravar as desigualdades de renda na maioria das cidades, deixando os mais marginalizados em situações ainda mais precárias, e com pouca esperança de inserção no mercado de trabalho formal (UNDP 1999). Como conseqüência destes fatores, muitos jovens negros, especialmente homens, se envolvem de uma forma ou de outra com as gangues que administram e dirigem particularmente o tráfico de drogas em áreas pobres. Os bairros pobres cumprem funções particulares em uma extensa e frequentemente globalizada cadeia de valor de produção, refinamento, manufatura, armazenamento, distribuição e consumo, em mercados locais, nacionais e globais. Em torno dessas atividades, as gangues relacionadas às drogas exercem um controle quase total sobre os territórios onde estão localizadas, frequentemente em colisão com elementos das forças de segurança (Souza, 2005). 108 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 E D G A R P I E T E R S E Uma questão fundamental a ser considerada é que embora as atividades cotidianas relacionadas à droga façam uso da violência nas favelas e townships e estejam inseridas de forma generalizada nestas áreas, a cadeia de valor das economias da droga engloba diversos circuitos que se estendem muito além da favela, em espaços onde ocorre o comércio e onde os que mais se beneficiam do tráfico vivem, fazem compras e se entretêm – espaços que são ostensivamente separados da favela/township. Esta geografia da segregação de classe é reforçada pela economia política de atuação da polícia, pelo sistema de justiça criminal (tribunais e prisões) e pelas instituições reguladoras do Estado que reproduzem a exclusão e a segregação urbana (Souza, 2005). Em outras palavras, a intensa e extrema situação de violência recorrente nas favelas cria um desvio, no sentido de que a vigilância anti-drogas se preocupa apenas com os níveis mais baixos da cadeia de valor da economia da droga, sem tocar os níveis mais altos que detêm o controle e os lucros (Neate e Platt, 2006). Isto certamente é entendido por certos “intelectuais orgânicos” da favela, que procuram “falar a verdade para o poder” a respeito deste uso desconcertante de dois pesos e duas medidas: Mas o que você precisa entender sobre esta sociedade é que questões de violência e crime não envolvem apenas armas e drogas. No Brasil, as únicas pessoas que vão para a prisão são aqueles que roubam pouco. Aqueles que roubam muito ficam na liberdade. Colocar as pessoas em condições subumanas nas favelas? Quando eu mostro isso, sou criticado, mas isso é uma forma de violência. No Rio ainda há uma forte influência colonial. Ouvi dizer que uma garota negra em uma escola pública foi vítima de racismo. Ela se trancou no banheiro e tentou cortar sua pele para se tornar branca. Porém, quando se tenta falar sobre racismo, dizem que somos neuróticos. Isso é uma forma de violência. As crianças das favelas sempre vão para as escolas públicas, mas elas têm que trabalhar para suas famílias também. Por isso, as crianças das favelas nunca têm uma educação boa o bastante para entrar nas universidades públicas. Eles nunca têm uma chance. Aqueles lugares são tomados por crianças de classe média vindas de escolas particulares. Isso também é uma forma de violência. Você sabe... eu estou falando sobre os negros, mas isso também se aplica aos índios e brancos que não têm nada. As pessoas dizem que o hip hop só trata da violência, mas elas não entendem. O rap neste país é muito contra a violência, e faz muito bem. Claro que não é a única forma de ajudar as pessoas, mas eu sei que me ajudou. Algumas pessoas querem mudar o hip hop para “eu amo esta mulher” e esse tipo de coisa. Mas nós ouvimos isso tantas vezes em outros tipos de música, e eu te pergunto: as pessoas realmente têm todo esse amor?” (MV Bill2 citado em Neate, 2003:191-2) A partir desta observação, é oportuno passar ao papel da música popular, particularmente o hip hop, em desafiar a condição urbana predominante de crescente marginalização da juventude negra e pobre, oferecendo um sentido alternativo de lugar, de interpretação do mundo, e “uma capacidade de aspirar” (ver Appadurai, 2004). GENEALOGIAS PARALELAS DO HIP HOP Nesta seção do artigo eu defino os fundamentos do hip hop enquanto forma cultural e prática estética. Então irei, brevemente, relatar dois instrutivos e inspiradores exemplos de movimentos sociais movidos pela cultura no Rio de Janeiro e na Cidade do CaR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 109 2 MV Bill (Alexandre Barreto) é um artista de hip hop oriundo de uma das regiões mais violentas da cidade do Rio de Janeiro, a favela Cidade de Deus. C U L T U R A S D A J U V E N T U D E bo, que lidam diretamente com as causas e resultados da violência e exclusão urbanas relacionadas à economia da droga, através da música popular e suas práticas associadas. Isto fundamentará a próxima seção do artigo, que irá explorar as potencialidades do hip hop como um registro de esperança. Imani Perry (2004: 38) explica que “A música rap é uma forma mista. Como forma de arte, combina poesia, prosa, canção, música e teatro. Pode se apresentar como uma narrativa, autobiografia, ficção científica ou debate”. Na prática, o hip hop pode ser categorizado em cinco elementos centrais: a atividade do MC e do rapper, a discotecagem, o grafite, o break e aquilo que se denomina “conhecimento de si”, mesmo que este último seja motivo de controvérsia. Conhecimento de si, nomeado por Afrika Bambata como o “quinto elemento” do hip hop, refere-se a uma consciência crítica a respeito da história negra e das raízes da opressão e exclusão racial. É considerado por alguns como um pré-requisito essencial para se ter um desempenho acima da média nos outros quatro aspectos da cultura hip hop. Com o passar dos anos, desde que o hip hop surgiu nos anos 1970, a música hip hop tem evoluído e mudado com incrível rapidez, engolindo cada vez mais em sua passagem a cultura popular americana (Chang, 2005; Shapiro, 2005). Atualmente, representa o gênero musical mais vendido no maior mercado musical do mundo – o dos Estados Unidos. Com seu crescimento exponencial de vendas e influência, o hip hop incorporou uma grande quantidade de outros símbolos culturais públicos, e se tornou globalizado em sua essência, constituindo uma profunda influência nas preferências de consumo (Neate, 2003). Dois países cujos cenários no hip hop são significativos são o Brasil e a África do Sul. Existem paralelos espantosos no que diz respeito ao surgimento e ao crescimento do hip hop nas cidades brasileiras e, especialmente, na Cidade do Cabo, na África do Sul. Antes de mais nada, obviamente, o hip hop é um gênero musical afro-americano, que emergiu como a mais recente invenção musical da América negra, seguindo o blues, o jazz, o soul e o funk. Como acontece com estas outras formas, ele também se inspira nestas tradições mais antigas, retrabalhando-as e ampliando repertórios-chave e sensibilidades estéticas (Huq, 2006). Na próxima seção retomaremos ao hip hop americano, considerando algumas implicações deste movimento cultural. HIP HOP BRASILEIRO E HÍBRIDOS POPULARES O hip hop no Brasil tem suas origens em meados dos anos 1980, quando B-Boys (dançarinos de break) e artistas de graffiti começaram a aparecer em São Paulo, imitando e apropriando-se da forma musical que havia surgido nos Estados Unidos. Curiosamente, nos anos iniciais havia conflitos frequentes entre estes grupos, que competiam pelo território em diferentes praças públicas da cidade (Essinger, 2007). As primeiras coletâneas de rap apareceram em 1987 e 1988. Desde o início, os líderes hip hop se inspiravam na veia crítica de consciência negra do gênero, o que se reflete na coletânea de 1988 intitulada Consciência Black, que incluiu aquele que se tornaria o grupo brasileiro mais importante, Racionais MCs. Esta compilação “proporcionou às audiências uma visão da vida duríssima dos jovens pobres e negros na periferia de São Paulo, perdidos entre o crime e a privação social” (Essinger, 2007:2). Este elemento de “consciência” permaneceu crucial na cultura brasileira do hip hop durante a sua proliferação nos anos 1990, incorporando diferentes inflexões regionais à medida que se enraizava em diferentes centros urbanos do país. Por exemplo, o membro do grupo carioca Planet Hemp, Marcelo D2, lançou em 110 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 E D G A R P I E T E R S E 1998 seu primeiro álbum, uma fusão paradigmática de rap e samba. Assim, atualmente há múltiplos sub-gêneros no rap brasileiro, desde fusões com a música nordestina, ao rock (como no México e no Chile) e ao reggae, conforme adotado nas impressionantes melodias do afroreggae centradas nos tambores (Neate, 2003). De forma significativa, os artistas de hip hop mais vendidos, Racionais MCs (de São Paulo) e MV Bill (do Rio de Janeiro) conduzem sua arte no registro da consciência negra. O auge da carreira dos Racionais foi o lançamento em 1998 de seu álbum Sobrevivendo no Inferno, que quebrou todos os recordes. Eles venderam acima de um milhão de cópias de um CD gravado de forma independente, e o vídeo que o acompanhava ganhou o prêmio de “escolha da audiência” na MTV Brasil, transformando-os num fenômeno nacional. Curiosamente, o vídeo descreve a rotina de um preso na véspera do conhecido massacre carcerário no dia 1 de outubro de 1992, com uma letra que, militantemente, responsabiliza o Estado pela chacina. Dada a popularidade e influência dos grupos de hip hop “conscientes”, cabe a seguinte afirmação de um analista: O hip hop tornou-se uma das ferramentas centrais de crítica social para uma juventude marginalizada que tem poucas perspectivas de emprego e que possui acesso extremamente limitado à educação. Através do rap, os jovens aprendem sobre Zumbi dos Palmares – herói da luta contra a escravidão – e outros importantes líderes afro-brasileiros; eles aprendem sobre a história da luta da população brasileira para acabar com a ditadura militar; e para muitos, é por onde lhes são introduzidos conceitos de revolução, socialismo e democracia. (Marshall, 2003:1) A outra figura emblemática do hip hop brasileiro é MV Bill. Ele foi criado e continua a viver no bairro periférico e de classe trabalhadora que se tornou famoso pelo filme Cidade de Deus. Ainda que esta área seja fisicamente diferente, comparada com a natureza mais transitória das favelas mais centrais, ela apresenta as mesmas condições sociais relacionadas à droga mencionadas na seção anterior. MV Bill se tornou uma figura de enorme sucesso no movimento do hip hop brasileiro, mas é uma exceção, na medida em que ele tem trabalhado consistentemente para aperfeiçoar sua prática artística ao lado de sua visionária agenda ativista, que utiliza os registros do hip hop para desestabilizar os discursos e estereótipos dominantes [do mainstream]. Além disso, MV Bill tem trabalhado continuamente na institucionalização de infra-estruturas populares de base voltadas à criação de oportunidades alternativas para que a juventude da favela possa se inserir em diversas atividades culturais. Esta prática se manifesta em sua própria narrativa sobre tomada de consciência através do hip hop: No Brasil, o hip hop não é mais apenas um tipo de música, uma cultura; ele já se tornou um instrumento de transformação, de mudança da vida das pessoas. E este encontro foi para mim um momento de recomeço. Eu consegui superar meus traumas de infância. Os mesmos traumas a que muitos jovens como eu estão sujeitos e que não podem superar através do hip hop; o próprio hip hop me ensinou que não é a saída para tudo e todos; que através do hip hop é possível procurar diversos outros trajetos. O hip hop é apenas um de vários trajetos e há muitos jovens que precisam ter um encontro com este momento de lucidez, e eles não o têm. Isto é o que tentamos promover com a CUFA (Central Única das Favelas), tentamos promover este encontro com as pessoas, cada uma julgando por si mesma o que é bom ou ruim, tentamos levar esta oportunidade às pessoas. Eu acredito na teoria de que, quando damos uma oportuR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 111 C U L T U R A S D A J U V E N T U D E nidade a uma pessoa, nós temos a chance de trazê-la para este lado. Por outro lado, negar-lhes esta chance é provar que elas não são seres humanos porque não terão oportunidades na vida e, de algum modo, é contribuir para o seu assassinato e para o de suas vítimas. (MV Bill, entrevistado em Lou, 2005) Com esta combinação de excelência artística e engajamento ativista, ele ganhou reconhecimento global, sendo honorificado pela Unicef em 2005. Foi uma posição que o tornou mais conhecido no Brasil e que permitiu que ele tivesse seu trabalho filmado em documentário – que expõe o cotidiano da juventude do tráfico de drogas em muitas cidades brasileiras – exibido em rede nacional de televisão no Brasil e aclamado pelos críticos. O documentário, por sua vez, estava ligado a um projeto de livro que também causou grande impacto na esfera pública nacional pelo país inteiro, especialmente devido ao fato de que teve como co-autor Luis Eduardo Soares (isto será elaborado adiante). A prática cultural e a intuição política sagaz de MV Bill são espelhadas por outros atores no cenário brasileiro de hip hop/música popular. Já me referi à abordagem dos Racionais MCs, mas o outro exemplo proeminente é o movimento social organizado em torno da liderança de José Junior, o fundador do grupo AfroReggae (Neate e Platt, 2006). De alguma forma, eles foram mais além ao institucionalizar uma prática cultural crucial no nível das bases populares, com a ambição específica de fornecer uma governabilidade alternativa àquela das gangues da droga, porém, imitando delas os códigos disciplinares. A energia e a determinação de Junior foram bem captadas no seguinte comentário: Junior descreve o AfroReggae como uma pirâmide, com a banda no seu ápice. Abaixo, há diversos tijolos: a caridade, os negócios e a cooperativa. A ONG trabalha em diversas favelas. Seu principal propósito é afastar as crianças do tráfico, dando-lhes meios de se expressarem. O AfroReggae organiza workshops de música, dança, capoeira e circo; tudo sustentado por trabalhadores sociais e assistência médica. Quanto aos negócios, é essencialmente uma empresa de produção. “Nós somos uma ONG que ganha seu próprio dinheiro”, sorri Junior. “Temos excelentes conexões urbanas e então estamos capacitados a produzir shows para as maiores estrelas brasileiras [...] Há a cooperativa, que lida com toda a parte de comercialização e cria oportunidades de emprego na favela. [...] O AfroReggae é uma ideologia – para ensinar cultura, responsabilidade social e criatividade. Hoje em dia, se você realmente quiser mudar uma situação, primeiro você precisa mudar a auto-imagem das pessoas naquela situação”. (Junior, citado em Neate, 2003: 199-200) O HIP HOP DE CAPE FLATS O hip hop também criou raízes na zona de Cape Flats, na Cidade do Cabo. Os incontestáveis “fundadores” do hip hop de Cape Flats foram os músicos do grupo chamado Prophets of da City (POC). O grupo foi fundado por Shaheen Ariefdien e Ready D. Desde o início, eles também se inspiraram na corrente da consciência negra militante do hip hop americano, porque ela oferecia uma ferramenta para interpretar e resistir a então virulenta máquina opressiva do regime do apartheid (Haupt, 2001; 2004). Como Ready D explica, quando Niggers With Attitude (NWA) lançou “Fuck Tha Policy” no final do anos 1980, “nós nos identificamos imediatamente com isso porque nós estávamos passando pelas mesmas coisas que esses caras estavam falando” (citado em Neate, 2003: 131). Ou112 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 E D G A R P I E T E R S E tro grupo que surgiu junto com POC foi Black Noise, estabelecido por Emily XY?, que naquela época era na verdade uma professora escolar. Black Noise (ver discografia nas referências) sempre foi deferente, porque absorveu ativamente todas as dimensões do hip hop e usou-o como um veículo para o trabalho de base com jovens e crianças de comunidades pobres (Battersby, 2004). Em meados dos anos 1990, alguns membros-chave do POC formaram um interessante grupo derivado chamado Brasse vannie Kaap (Caras do Cabo) (BVK) que optaram por cantar o rap no dialeto africâner de Cape Flats chamado gamtaal. Artisticamente, na minha leitura, a obra do BVK é na verdade mais bem elaborada e interessante que a militância mais reducionista e dissimulada do POC e, até certo ponto, do Black Noise. Isso foi confirmado recentemente pelo primeiro lançamento de outro MC, Jitsvinger (intraduzível), que pratica sua arte em gamtaal com efeito artístico brilhante. O hip hop oriundo de Johanesburgo também transformou completamente o gênero na África do Sul ao longo dos últimos anos, com o aparecimento de excelentes grupos e MCs, como Skwatta Kamp, Proverb e Zubz, entre muitos outros. Retornarei adiante ao tema da qualidade artística, quando examinar o significado artístico e político do hip hop. A maioria dos grupos da Cidade do Cabo também participa de uma vibrante e mais abrangente comunidade hip hop que trabalha com shows educacionais itinerantes envolvendo tópicos relacionados à educação, à conscientização e prevenção do HIV/AIDS e à exploração criativa. Sem dúvida, os membros do Black Noise foram os pioneiros e líderes neste sentido (Haupt, 2001; Watkins, 2001). A maior estação de rádio comunitária da Cidade do Cabo dedica um programa, intitulado Headwarmers, à comunidade de hip hop nas noites de sexta-feira. Este programa ofereceu (e continua a oferecer) uma plataforma para discursos abertos sobre a política e a prática de hip hop, e permitia que os fãs se engajassem com os grupos de hip hop e dividissem informações sobre eventos iminentes e oportunidades de mostrar novos talentos. A rádio fornece uma fascinante perspectiva dos repertórios discursivos das comunidades hip hop e do aprofundamento de uma ideologia compartilhada (Haupt, 2004). Os cenários do hip hop no Brasil e na África do Sul são muito diferentes. Para começar, o tamanho do mercado brasileiro é enorme, e a cultura da música brasileira está bem estabelecida. Este definitivamente não é o caso na África do Sul, ainda que importantes mudanças estejam começando a aparecer no que tange à música kwaito. Os artistas de hip hop da África do Sul enfrentam dificuldades porque o público consumidor é mínimo; uma tendência não amenizada pela relutância das lojas de discos em ter disponível e muito menos em promover a música (Battersby, 2004). HIP HOP COMO POLÍTICA DE RECONHECIMENTO E IRA... No momento em que o hip hop americano está se tornando uma força desgastada, o resto do mundo está acordando para o poder transformador do rap. “No início, o hip hop americano era ótimo”, diz [MV] Bill, que começou a cantar rap em 1988, aos 12 anos de idade, depois de ter visto o drama sobre as gangues de Los Angeles, Colors. “Mas porque as gravadoras estavam assustadas com o conteúdo político e o discurso de gueto de bandas como NWA e Public Enemy, eles injetaram tanto dinheiro nos rappers que agora eles não sabem falar de outra coisa senão dinheiro – ou degradação feminina. A indústria R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 113 C U L T U R A S D A J U V E N T U D E fonográfica emasculou o hip hop nos Estados Unidos. Mas, ao mesmo tempo, o hip hop se tornou uma forma de arte para os marginalizados do mundo” (Hodgkinson 2006). Seria fácil construir uma narrativa sobre a “redenção terceiro-mundista” da tradição política e militante do hip hop para salvá-la dos caprichos do comercialismo. É certamente plausível argumentar que a orientação do hip hop pelo mundo é quase exclusivamente crítica, tentando “mantê-lo autêntico” e mais intimamente alinhado com a militância do hip hop em seu início (ver Haupt, 2004; Huq, 2006). Entretanto, isto seria muito simplista e ignoraria a complexa estética que impulsiona a dimensão artística e, por extensão, a dimensão política do hip hop. Para desenvolver este ponto com mais profundidade, gostaria de me voltar para a análise pioneira de Imani Perry (2004:3) a respeito das “difíceis questões políticas e culturais apresentadas pelo hip hop”, sem cair na apologia da comercialização escancarada do gênero no contexto dos Estados Unidos em particular. Perry argumenta que é necessário valorizar ao menos quatro grandes dimensões da prática artística do hip hop, para que se possa apreciar completamente sua estética e suas potencialidades. Em primeiro lugar, “há uma constante dinâmica de especificidade, ainda que o hip hop crie uma cultura jovem na escala nacional no que diz respeito às roupas, ao discurso e ao posicionamento ideológico e possua reverberações internacionais. A especificidade de um lar, de uma comunidade de artistas, constitui um elemento fundamental para a criação. Ela enraíza a música numa comunidade histórica, cultural e lingüística e educa o ouvinte a respeito daquela comunidade específica” (Perry 2004:23). Assim, em todos os diferentes subgêneros da música hip hop, a contextualização da localidade e especialmente da comunidade (os “home boys”) é uma referência constante, assim como são também a identificação de quem é o MC e o grupo que se junta a ele/ela numa faixa específica e o seu local de origem. Esta dinâmica relacionada ao lugar é crucial e, durante alguns anos “insanos”, em meados dos anos 1990, ela provocou violentas guerras entre os grupos ditos da costa leste e da costa oeste, que deixaram Tupac Shakur e Biggie Smalls como tristes memórias. Este sentido de orgulho em relação ao lugar e à comunidade – e a concomitante necessidade de “representar” – é utilizada de modo semelhante nas tradições de hip hop tanto do Brasil como da África do Sul, que dá à música uma estética visual altamente urbanizada e sólida, frequentemente reproduzida em vídeos musicais. Em segundo lugar, o discurso aberto é fundamental no hip hop. O discurso aberto se refere à não-regra de que quase tudo é permitido no hip hop desde que possa ser defendido artisticamente. Deste modo, Perry argumenta que “encontramos em muitos destes textos [de hip hop] o sexo ao lado da espiritualidade, a depravação junto com a beleza. Deveríamos estender o discurso aberto já existente no hip hop para nossa conversa sobre hip hop [...] Por ser uma forma de arte falada que nutre o discurso aberto, encontramos no hip hop um espaço dialógico no qual as vozes de artistas articulam idéias sobre a existência em várias formas de registros musicais” (Perry, 2004: 42-3). Quase todos os artistas de hip hop americanos prestam homenagem às suas linhagens soul, blues, jazz e, especialmente, gospel. Assim, considerando a obra do alto sacerdote do hip hop Tupac Shakur, encontram-se no mesmo CD faixas que vão denegrir e celebrar as mulheres; que promovem o materialismo de forma grosseira e transmitem mensagens anticapitalistas; que celebram a comunidade e a disposição de tomar armas para proteger e aumentar o território. O erro frequentemente cometido por muitos críticos sociais é o de tentar decifrar uma política progressista consistente, sendo, porém, óbvia e invariavelmente frustrados. Em outro plano, este discurso aberto é crucial porque permite que 114 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 E D G A R P I E T E R S E a contraditória e complicada política de identidade, comunidade, pertencimento e aspirações venha à tona com toda sua crueza não resolvida – sem nenhuma intenção de impedir a confrontação e o engajamento –, frequentemente na forma de posturas agressivas. Para compreender completamente a produtividade dinâmica do hip hop, deve-se estar aberto para a importância do discurso aberto no hip hop, que está intimamente ligado à dimensão do fazer artístico no hip hop. Em terceiro lugar, os discursos do hip hop são densos e contêm múltiplas camadas. A destreza com as letras, através de jogos de palavras e o emprego do inesperado, é altamente apreciada tanto nas letras como nas batidas do hip hop (Berman, 1996; Huq, 2006; Neate, 2003). Isto também se liga a um desenvolvimento da tradição do diálogo praticado nas letras da música negra americana, no sentido de que a interação com outros MCs é um aspecto central do conteúdo e da rima do hip hop. Assim, fora as letras auto-referenciais, os MCs procuram sempre estender e retrabalhar diálogos com outros MCs, que podem ser tanto amigos/“manos” (“homeys”, ou seja “os de casa”) ou inimigos. Estas trocas normalmente exigem um conhecimento detalhado das políticas e das “beefs” (rixas) do hip hop, porque as referências são tipicamente sutis e escondidas nas rimas engenhosas.3 Outra dimensão da complexidade ou talento discursivo é o uso do “contraste dramático” (Perry, 2004). Um dos exemplos mais memoráveis seria o uso por Puff Daddy da música do The Police, “Every Breath She Takes”, para enfatizar seu tributo a Biggie Smalls – uma música que se tornou a mais tocada em muitos países do mundo. Não se poderia imaginar maior contraste do que aquele entre a banda de rock inglesa dos anos 1970, The Police, e o estilo de vida e a economia de imagens de Biggie Smalls. No caso do grupo de rap da África do Sul, BVK, ele também brinca com o tema musical da novela popular africâner chamada Sevende Laan (Sétima Avenida), que descreve um mundo africânder multiracial e perfeito, que está tão afastado da vida cotidiana das townships como se poderia imaginar. Mas, por meio desta produção espirituosa, eles também conseguiram explorar mercados diferentes e transmitir sua crítica social sobre a imaginação “ficcionalizada” das novelas televisivas, que apresentam negros bem comportados assimilados pela cultura branca africâner. Um dos meus exemplos favoritos da natureza do discurso de múltiplas camadas do hip hop é uma faixa do Common, “A Film Called (Pimp)”, de seu brilhante CD, Like Water for Chocolate. Nesta faixa, ele se envolve em um diálogo entre um cafetão politicamente consciente (bom exemplo do inesperado!) e uma de suas mulheres trabalhadoras potenciais. O que se segue na faixa é um efervescente e engenhoso diálogo (ou “chamada-e-resposta”) entre o cafetão, que diz que ele apenas “cafeteia com a verdade” e que quer oferecer um serviço, expondo suas prostitutas “a determinado papel, à liberdade e à cultura, como um cafetão moralmente correto deve fazer”; e então promete levar a prostituta para “a terra prometida de um cafetão, onde nenhum homem pode te quebrar”. Em resposta, a prostituta a quem ele fez a proposta diz: “Negão, você não me conhece, quem é o garanhão sou eu, eu vou te “cafetear”, vou te fazer escrever poesia pra mim, eu sou de uma terra chamada dinheiro, você é muito devagar pra mim... Você acha que vou arriscar o meu e depois te dar o dinheiro? Aquela merda já era. Eu tenho minha própria cavalariça, vou furar teu umbigo e te colocar numa pista. Na verdade, ando procurando uma puta que seja abstrata”. Mais para o final da faixa, quando é óbvio que ela já o venceu como principal protagonista da faixa, ele se conforma, dizendo: “Vá se ferrar, que eu vou virar pregador...”. Este diálogo contém ironia, inversões surpreendentes de papéis, R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 115 3 Um excelente exemplo de hip hop engenhoso e inventivo é o CD duplo do OutKast, vencedor do prêmio Grammy em 2004. Esta foi uma produção seriamente funky e iconoclasta, que reuniu subgêneros e registros textuais (e visuais) em combinações jamais vistas anteriormente no hip hop, e que acabou por ganhar não apenas aceitação do hip hop nas ruas, mas também por atrair públicos de fora do hip hop. C U L T U R A S 4 Imani Perry desenvolve este ponto de forma mais aprofundada, que vai além do meu atual objeto: “A construção histórica da negritude, em oposição à ‘brancura’, na qual a negritude é demonizada, se tornou parte da consciência desta forma de arte. Enquanto as gerações anteriores de negros americanos utilizaram vários meios para estabelecerem uma autodefinição que negasse a construção da negritude como sendo demoníaca ou depravada, muitos membros da geração do hip hop escolheram, em vez disso, se apropriar e explorar estas construções como ferramentas metafóricas para a expressão do poder. Devido ao fato de que este gesto é extremamente agressivo (pois ele reivindica o poder através principalmente da voz dos homens negros, o que, dada a estrutura racial dicotomizada dos Estados Unidos, retira o poder dos Estados Unidos branco, mesmo que isso se opere apenas através do medo dos brancos), a comunidade negra geralmente não percebe estes atos como sendo de traidores com ódio de si próprios, da forma que poderia perceber os atos de negros que adotassem outras posturas estereotipadas. Pelo contrário, estes jovens podem ser vistos até como suportes de um tipo particular de empoderamento negro. Obviamente, esse tipo de empoderamento se relaciona a um nível mais abrangente de impotência” (Perry, 2004:47-8). D A J U V E N T U D E identidades incongruentes, apelações nostálgicas a épocas passadas de estilo e classe, resgate da figura do bandido na cultura negra popular, a autocrítica, a idéia de que há uma linha divisória muito tênue entre o cafetão e o pregador. E a riqueza textual exclui comentários sobre as batidas hipnóticas e funky que literalmente impelem a música para frente. Este é um artista que é conhecido por ser abertamente politizado e consciente, mas que também está procurando expandir seus registros e suas habilidades como escritor de uma forma que claramente revigora e amplia o gênero. Em outras palavras, a faixa, enquanto arte é brilhante, ainda que sua política seja obscura e, possivelmente, até questionável. Essa ambiguidade é precisamente o subtexto da peça, impossibilitando ao ouvinte chegar a uma zona de conforto politicamente correta. Também enfatiza que, no hip hop, diversos níveis de discurso coexistem: “Conhecer a gíria pode ser um nível; conhecer profundamente a música hip hop, em geral, pode ser outro; conhecer a cidade natal do cantor ou seu bairro, mais um outro, e conhecer os artistas como membros de sua própria comunidade seria ainda outro… O nomear às vezes funciona como um elemento-chave na sinalização do subtexto” (Perry, 2004:31). Por último, e possivelmente a questão mais perturbadora, é que uma das principais funções políticas do hip hop no contexto americano seja o “Shine-ism”, que denota “exemplos incontidos de masculinidade e excesso negros que assustam a sociedade e a cultura convencionais, explorando seus temores e simultaneamente desafiando a privação econômica que oprime as comunidades americanas” (Perry, 2004:29). Segundo Perry, isto remonta ao papel do malandro (“trickster”) que “subverte seu próprio poder relativo através da trapaça e da destreza verbal”. A autora também identifica os chamados “negões maus”, cujo papel, desde a escravidão, “caracteriza a pessoa negra que se recusa a se submeter às regras da sociedade, que é destemido e rebelde e que ri das regras de adequação e regulação social” (Perry, 2004:29). Nesta leitura, a primeira imagem que surge é a de MV Bill e seu discurso eloquente (citado acima) sobre o medo da classe média brasileira em relação à mensagem e à força potencial do hip hop de falar a verdade para o poder. Entretanto, há outra dimensão nisso tudo. O gangsta rap e o rap R&B tendem a ir a outro extremo: ambos os gêneros alimentam estereótipos sobre negros, especialmente homens negros, e exageram e celebram os mesmos estereótipos. Deste modo, o gangsta rap celebra o “bandido fora da lei” que vive a vida extravagante ao máximo – carros atraentes, armas, mulheres na espera, bebidas à vontade e festas na piscina, além de qualquer outra coisa que a imaginação possa invocar. Isto envolve uma apropriação e resignificação das marcas mais exclusivas, a fim de indicar para o sistema que os negros americanos entrarão nos clubes de golfe, nos bares exclusivos e nos restaurantes de primeira classe, mas sem deixar a rua. Em outras palavras, os ideais do establishment branco ficam completamente deturpados e remoldados como significantes da cultura hip hop e não da sociedade branca. Um repertório simbólico igualmente indulgente e excessivo estabelece-se para o sexo e as relações sexuais: a vida extravagante é tipicamente acompanhada por mulheres excessivamente sexualizadas que estão determinadas a ficar inteiramente à disposição do MC em questão. Obviamente, em um determinado plano trata-se de simples fantasia, mas em outro significa que, apesar da exclusão econômica e social em larga escala por parte dos Estados Unidos convencional, os Estados Unidos negro está corroendo os símbolos culturais de superioridade e dominância através de sua apropriação deliberadamente crassa. Esta leitura não pretende justificar ou minimizar o caráter politicamente problemático do gangsta rap e do seu gêmeo contemporâneo, o R&B, mas chamar a atenção para os inevitáveis efeitos culturais do hip hop mainstream nos Estados Unidos.4 Christa 116 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 E D G A R P I E T E R S E Kuljian, uma colega de trabalho, sugere: “É uma resposta a uma sociedade que valoriza o excesso e o ganho material como a expressão mais elevada do sucesso”. Estas quatro dimensões do hip hop – especificidade, discurso aberto, discurso em camadas múltiplas e “Shine-ismo” – o tornam uma forma complexa e dinâmica de cultura popular que oferece um rico reservatório de materiais para a construção de identidades. O hip hop oferece não somente compreensões e perspectivas sobre o funcionamento do mundo, mas também como se posicionar – política, estilística, ideológica, social e psicologicamente – nesse mundo. Os estudos de caso do Rio de Janeiro e da Cidade do Cabo enfatizam como o hip hop politicamente consciente oferece uma ideologia coerente para se resistir às fragmentadas realidades de espaços e estilos de vida cotidianos dominados pelas gangues da droga, em busca de alternativas mais sólidas. Entretanto, a práxis do AfroReggae sugere que isso não é simples. Além de uma narrativa mais abrangente e politizada a respeito da exclusão e marginalização estruturais ligadas à cumplicidade oficial com os lucros do tráfico de drogas, especialmente nos circuitos mais altos da cadeia de valor, o líder do AfroReggae, José Junior, sabe que ele deve espelhar a disciplina e a hierarquia da cultura de gangues. A questão é que ele sabe que seu movimento deve oferecer um lar e um sentido de pertencimento alternativos, porque é isso que as gangues oferecem em primeira instância, além do acesso aos recursos financeiros, que não estão disponíveis por meio da participação no mercado de trabalho formal. Em outras palavras, a solução não é simplesmente uma questão de restaurar o sentido de identidade, orgulho e dignidade destes jovens para que então, de alguma forma, eles milagrosamente consigam permanecer na linha estreita do estilo de vida alternativo que o movimento oferece. Novamente, MV Bill captura claramente esta dinâmica quando argumenta: Eles não tem a oportunidade de se tornarem outra coisa; cada um deles é seu próprio juiz e pode dizer o que é certo ou errado, mas a criminalidade atualmente no Brasil se tornou apenas mais uma opção; parte meu coração dizer isto, mas a criminalidade de hoje se tornou, tragicamente, uma bela opção para aqueles que nascem sem perspectivas. Não vou ser hipócrita e dizer o contrário porque isto é o que eu vi, esta é a verdade e mesmo eu tenho dificuldades em dizer para alguém “Saia do tráfico de drogas”, porque eu não tenho nada melhor para oferecer. E não é suficiente oferecer assistência, caridade, coisas pequenas, porque a televisão mostra as coisas boas da vida e isso é o que todos estão querendo.5 Simultaneamente, MV Bill fala também sobre sua organização de hip hop, a CUFA (Central Única das Favelas), que busca oferecer alternativas para os jovens. O fato com o qual ele tem que se conformar, nesse contexto, é que, tendo em vista os fatores estruturais mais amplos que reproduzem as economias criminosas, ele não é tão ingênuo para acreditar que sua intervenção fragmentária seja por si só uma solução. Esta pode ser a razão pela qual ele recentemente colaborou com o proeminente antropólogo/criminologista brasileiro, Luis Eduardo Soares, na produção de um livro – Cabeça de Porco – e um documentário sobre a violência urbana em nove cidades brasileiras. Este livro traz à tona a escala e a convergência da violência urbana no Brasil e em particular o fato de que aqueles que perpetram a violência nas favelas são cada vez mais jovens e mais numerosos. O livro tem a intenção de alertar o establishment brasileiro e também, sem dúvida, de ser uma forma de mobilização de recursos externos para apoiar iniciativas como a CUFA e o AfroReggae. Mais importante, esta iniciativa sublinha o fato de que são necessárias interR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 117 5 Entrevista publicada na revista Leros, de junho de 2005. Disponível em: www. leros.co.uk (acessado em outubro de 2006). C U L T U R A S D A J U V E N T U D E venções estruturais para lidar com a violência urbana, intervenções que possam operar em conjunto com programas de base popular inspirados no hip hop, como aqueles de MV Bill, e iniciativas educacionais em prisões juvenis (ver Pardue, 2004). Soares fala muito claramente sobre os tipos de reformas/transformações que são necessárias, em sua resposta à pergunta: Você acha que ter acesso a informação, educação superior e projetos que aumentam a auto-estima poderia ser uma saída para a violência? 6 Entrevista com Luis Eduardo Soares. Disponível em: www.dreamscanbe.org/con trolPanel/materia/view/433 (acessado em outubro de 2006). Sem dúvida. Estou convencido disso. Em nosso livro, não esquecemos a importância do poder econômico, mas enfatizamos a importância da inter-subjetividade, do simbolismo, da afeição, da psicologia e da cultura. Não que sejam aspectos mais importantes, mas porque a sociedade não tem dado a eles a atenção adequada. Temos que oferecer à juventude no mínimo o que o tráfico de drogas oferece: recursos materiais, é claro, mas também reconhecimento, um sentimento de pertencimento e de valor. Enfim, há uma fome mais profunda que a fome física: a fome de afeição e de reconhecimento, que aumentam a auto-estima [...] Acho que a repressão deveria ser o último recurso. Antes dela, há muito o que ser feito no sentido da prevenção, como a reinserção, a educação e o estímulo à auto-estima. Se queremos que alguém mude, temos que fornecer as bases. Ninguém muda se pensa que não vale nada. Queremos exterminar a juventude pobre ou integrá-la? Perdoar e dar uma segunda chance também significa nos perdoar e nos dar uma segunda chance, como sociedade. Não seria ótimo termos uma chance de escapar da culpa terrível de ter abandonado milhares de crianças ao destino de pegar uma arma? 6 Soares levanta duas questões. A primeira, que é vital não perder de vista a humanidade da juventude negra que cresce em meio ao terror e a um abandono social efetivo. Não existe a possibilidade de recuperar esta classe de (não) cidadãos para integrar uma política urbana inclusiva se não se reconhecer a necessidade fundamental de eles se afirmarem como pessoas. Claramente, em meus dois exemplos, a posição de rejeição social entrelaçada com a redundância econômica está fortemente correlacionada com a raça. Deste modo, grande parte da recuperação da ação para que uma política abrangente seja possível requer um confronto com o racismo institucional. A segunda, que a escala das reformas preventivas identificadas por Soares envolve o Estado. Os jovens pobres continuarão a enfrentar futuros truncados enquanto as instituições estatais de justiça penal não forem transformadas para adotar a filosofia que trata a repressão como último recurso. Evidentemente, os projetos de hip hop nas favelas e townships não são capazes de, sozinhos, darem conta dessa tarefa ambiciosa. O que eles oferecem de fato é um ponto de partida vital para que os jovens possam agir em lutas culturais e políticas mais abrangentes e em diversas instâncias para conseguir tanto o reconhecimento quanto as reformas voltadas para prevenção. Entretanto, para a juventude negra e pobre ter uma voz significativa, isto deve acontecer em seus próprios termos, e é justamente isso que os registros do hip hop potencialmente oferecem. Em primeira instância, isto significa uma política e uma estética de ira e de crítica militante perante a atitude mal disfarçada de dois pesos e duas medidas da sociedade convencional (mainstream society). Aqui eu tenho em mente letras e análises potentes de lideranças do hip hop como MV Bill, Racionais MC, Black Noise, BVK, Jitsvinger, Proverb, entre muitos outros. No caso brasileiro, o impacto dos grupos de hip hop como Racionais MC, que vendem acima de um milhão de unidades, é certamente profundo. Em segundo lugar, nos complexos registros estéticos que a cultura hip hop instiga, os 118 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 E D G A R P I E T E R S E jovens devem ser encorajados a buscar suas identidades, aspirações, contextos sem muita censura. A expressão artística criativa pode potencialmente criar uma nova linguagem política e um novo registro simbólico que seja significativo para os jovens e impenetrável e alienante para as elites e classes médias. Esta é a questão de fato. Para o engajamento político ocorrer, deve-se forçar os poderosos e privilegiados a reconhecer suas diferentes culturas e suposições, que normalmente se tornam invisíveis por serem a norma social – se eles estão interessados em se engajar ou “fazer a diferença” como parte de uma política cosmopolita mais abrangente. Isto é uma pré-condição para “uma ética de mutualidade em um contexto urbano”, como invocado por Ash Amin. Por último, os registros do hip hop oferecem à juventude pobre uma plataforma para criarem diversos tipos de redes regionais, nacionais e internacionais de engajamento e apoio mútuo, a fim de promover uma agenda de escalas múltiplas que permita unir múltiplas especificidades locais. Pesquisas feitas sobre a práxis da Slum Dwellers International sugerem que as políticas locais de reconhecimento tendem a funcionar de forma muito mais eficaz se reforçadas por redes globais de solidariedade e intercâmbio (Appadurai, 2004). CODA: IMPLICAÇÕES CONCEITUAIS PARA A INCLUSÃO/EXCLUSÃO URBANA James Holston argumenta que a multiplicação de reivindicações pela cidade que segue a intensificação da urbanização esgota as noções tradicionais de cidadania. Ele argumenta a favor de uma avaliação da “cidadania insurgente” que, segundo ele, surge de “batalhas em torno do significado de ser membro do Estado moderno” (Holston, 1998:47). Além disso, a cidadania “muda, expandindo seu domínio à medida que novos membros surgem para apresentar suas reivindicações, e erodindo-o à medida que novas formas de segregação e de violência criam obstáculos a esses avanços. Os locais de cidadania insurgente são encontrados na interseção destes processos de expansão e erosão” (Ibid., p.48). Evidentemente, grande parte da prática cultural do hip hop consiste em dar voz e reconhecimento à posição marginalizada das comunidades pobres e de seus residentes e, ao mesmo tempo, em propor uma concepção alternativa de vida cotidiana, justiça urbana e inclusão, uma concepção dirigida aos fatores econômicos e institucionais sistêmicos que reproduzem essa situação, conforme refletido na análise de MV Bill e outros MCs citados anteriormente. Neste sentido, pode-se argumentar que a essência das práticas de hip hop, em termos de seus registros simbólicos, suas intervenções localizadas no espaço e suas reformulações (de praças públicas, estações de trens, estacionamentos, etc.), consiste em aprofundar a cidadania insurgente e oferecer um caminho diferente de participação na esfera pública da cidade. Entretanto, enquanto as práticas do hip hop continuarem desconectadas de outros espaços e domínios da prática política urbana, seu potencial transformador continuará enfraquecido. Mostrei em outros escritos que a forma mais eficaz de se conceituar e abordar a política urbana é por meio da interseção de cinco domínios institucionais e interdependentes da prática: (1) fóruns políticos representativos; (2) mecanismos políticos “neocorporatistas” que se compõem de organizações representativas, principalmente o governo, o setor privado, os sindicatos e, às vezes, organizações de base comunitária; (3) ação direta ou mobilização contra políticas estatais ou em prol de demandas políticas específicas; (4) a política da prática do desenvolvimento, especialmente no nível das bases R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 119 C U L T U R A S D A J U V E N T U D E populares; e (5) contestação política simbólica, que se expressa através da contestação discursiva na esfera pública (Pieterse, 2005; 2006). As culturas hip hop tanto no Brasil como na África do Sul estão fortemente relacionadas às intervenções ativistas de base – no domínio da prática do desenvolvimento – para fornecer refúgios de segurança e aprendizado para crianças e jovens pobres, espaços onde se fomentam uma socialização alternativa e um sentimento de lugar devido ao quinto elemento do hip hop: o conhecimento de si próprio. Entretanto, procurar ligações explícitas com as iniciativas adotadas pelo Estado é potencialmente perigoso para o hip hop enquanto discurso verdadeiramente aberto, como ilustra o estudo de caso realizado por Derek Pardue sobre o hip hop como ferramenta pedagógica em uma prisão juvenil em São Paulo. Comparando o hip hop “livre” com o programa educacional patrocinado pelo Estado, Pardue (2004: 429) encontrou “diferenças significativas no processo de representação e performance, especialmente nos casos das letras de rap e do grafite”. Ele notou particularmente que os instrutores moderavam os discursos sobre raça, racismo e brutalidade policial, a favor de uma sensibilidade muito mais comunitária, em que as noções abstratas de construção da comunidade eram valorizadas. Tal estratégia pode obviamente tirar do hip hop sua força, tal qual descrita na seção anterior a respeito dos registros do hip hop na tentativa de se tornar uma prática política de ira e confrontação, a fim de perturbar as estruturas normativas da sociedade e da cultura convencionais. Não obstante, Pardue (2004) também reconhece que, apesar do risco de domesticação do hip hop, existe grande mérito em se ter um Estado que se dispõe a patrocinar programas de serviço público que mantêm as lideranças do hip hop com emprego remunerado e com uma plataforma para estender suas sensibilidades artísticas e estéticas. E não há, obviamente, como prever o tipo de loucura e ira que poderia surgir dos impulsos criativos e transgressivos dos jovens apresentados às habilidades e idéias do hip hop “com uma mensagem” ou agenda. Em último lugar, as práticas culturais do hip hop sublinham a importância de se prestar mais atenção aos registros afetivos, ao projetar uma política urbana agonística e inclusiva como aquela reivindicada por acadêmicos como Amin (2006), Connolly (2002), Massumi (2202) e Thrift (2004) (cf. Hemmings 2005). O afeto é muito mais importante no pensamento e no julgamento do que foi reconhecido anteriormente. O que isto implica é que “os modos de consciência afetivo e cognitivo” estão ambos sempre em ação quando atuamos. Mais especificamente, “a tomada de decisões voltada para a ação é sempre marcada por orientações afetivas preliminares de percepção e julgamento, que servem para reduzir o peso do material considerado em análises custo-benefício, julgamentos de princípios e experimentos reflexivos” (Krause, 2006). Em outras palavras, como nos sentimos e as diferentes formas de predisposições internas são elementos vitais de nosso ser enquanto agente (político) urbano, com grande influência sobre os tipos de possibilidades coletivas que irão ou não ter repercussão. Dadas as alternativas, antes impensadas, de ação e emoções inconcebíveis que o hip hop pode engendrar entre a juventude urbana, ele certamente se qualifica como uma fonte potencial de esperança, no sentido proposto por Ash Amin no seu comentário em fórum de discussão na Internet: “A esperança pode funcionar como um afeto urbano, uma ética de mutualidade em um contexto urbano cheio de diferenças e diversidade. A partir desta visão, muitos elementos podem ser reunidos, incluindo uma política de restituição, justiça redistributiva, aspiração e fé”. Entretanto, isso parece exigir que instituições como a CUFA, Black Noise e AfroReggae se tornem mais fortes e se multipliquem. 120 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 E D G A R P I E T E R S E Em resumo, ainda que eu tenha conseguido apenas tocar na superfície da política e da estética culturais do hip hop, está claro que ele oferece pistas vitais sobre o processo de desenvolvimento de novas linguagens para a compreensão da inclusão e exclusão, especialmente em cidades contemporâneas do sul global. Neste sentido, o hip hop certamente não é perfeito, sendo particularmente falho no que diz respeito ao empoderamento da mulher e à política cultural feminista, mas também é suficientemente fértil para ao menos lidar com este vetor de exclusão particularmente difícil. Os registros e práticas culturais cotidianos desse grupo cada vez mais numeroso de jovens nessas cidades são claramente atores cruciais na luta mais abrangente por cidades inclusivas; então, como urbanistas, vamos nos sintonizar aos ritmos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMIN, A. 2002. “Ethnicity and the multicultural city”. Environment and Planning A, Vol. 34(6): 959-80. __________. 2006. “The Good City”. Urban Studies, 43(5/6): 1009-23. APPADURAI, A. 2004. “The Capacity to Aspire: Culture and Terms of Recognition”. In RAO, V.; WALTON, M. (eds). Culture and Public Action. Stanford CA: Stanford University Press. BADSHA, F. 2004. “Old Skool Rules/New Skool Breaks: Negotiating Identities in the Cape Town Hip Hop Scene”. In WASSERMAN, H; JACOBS, S. (eds) Shifting Selves: Post-Apartheid Essays on Mass Media, Culture and Identity. Cape Town: Kwela Books. 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The paper demonstrates that hip hop cultures offer a powerful framework of interpretation and response for poor youth who are systemically caught at the receiving end of extremely violent and exploitative urban forces. The basis of hip hop’s power is its complex aesthetical sensibility that fuses affective registers such as rage, passion, lust, critique, pleasure, desire, which in turn translates into political identities, and sometimes agency (i.e. positionality), for its participants. In the final instance, the paper tries to link conclusions about the potential of hip hop cultural politics to larger academic themes such as participation, public space, citizenship and security. K E Y W O R D S Hip hop; cultural politics; urban violence; urban exclusion/ inclusion; affective registers. 124 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 R ESENHAS PELO ESPAÇO: UMA NOVA POLÍTICA DE ESPACIALIDADE Doreen Massey Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008 Gislene Santos Professora Adjunta do Departamento de Geografia da UFPR O crescente interesse que diferentes áreas do conhecimento e da arte têm apresentado em relação ao conceito de espaço, poderia, à primeira vista, trazer aos geógrafos um certo sentimento de conquista e conforto epistemológico: enfim, depois de longos anos subordinados a uma representação de mundo comandado pela dimensão do tempo, o espaço passa a ser valorado. A lista desta evocação atual ao espaço é extensa: no cinema, a imagem focada na problemática dos conflitos ao longo das fronteiras internacionais; na literatura contemporânea, migrantes-estrangeiros desenraizados em alguma grande cidade e cenas de violência urbana comumente apresentam-se como personagens e cenários. Na Antropologia, Filosofia e Sociologia, o uso das topologias espaciais também se apresenta recorrente. Noções como território, desterritorialização, fluxos, redes, nações, fronteiras, local, lugar, transnacional, para citar as mais frequentes, de certa maneira transmitem, em primeiro plano, uma clara perspectiva espacial. Entretanto, ao lermos Pelo espaço, livro recentemente traduzido e publicado no Brasil, escrito pela geógrafa Doreen Massey, a aparente sensação de conforto epistêmico desequilibra-se; em vez da revigoração conceitual do espaço, nos diz a autora: “muitos dos discursos correntes acerca da globalização fogem do pleno desafio do espaço” (p.148). A estrutura do livro compõe-se de cinco partes: ao longo das 312 páginas distribuídas em 15 capítulos, a autora propõe construir pressupostos e argumentos heurísticos com o objetivo de restituir ao espaço características e princípios que respondam às questões contemporâneas, mas sem cair na apologia discursiva de que tudo hoje é espacial, e muito menos na inevitabilidade da globalização neoliberal, sedenta por novos lugares. Parte do pressuposto de que o espaço é produto de relações sociais – relações essas que se formam coetaneamente e cujo emalhamento é tecido por uma mi- ríade de distintos tempos e lugares. O espaço aqui, já para adiantar, é um encontro de múltiplas trajetórias, cujo arranjo não se conforma à representação de uma superfície plana e pontual. Espaço não é mapa, adverte a autora. Página a página o leitor debruça-se sobre um denso e laborioso raciocínio acerca das características e princípios constitutivos do espaço. Em todo o texto, a autora conversa com diferentes pensadores: Bergson, Espinoza, Levi-Strauss, Althusser, Derrida, Deleuze, De Certeau, Chantal Mouffe, Laclau. No entanto, o diálogo mais fino que atravessa e estimula o seu pensamento se mediatiza com o filósofo Henri Bergson, por sua investidura (no início do século XX) sobre o tempo associado ao espaço. Mas se Bergson, seguindo as pistas de Massey, investe para um tempo múltiplo e conflui para a idéia de duração como experimento de vida, composto por um presente perfilado de temporalidades distintas, sua concepção de espaço é refém do tempo; o espaço abriga o tempo. Massey aproxima-se de Bergson por sua abertura em relação ao tempo, porém, traz um elemento novo: o espaço não é um desdobramento do tempo, ao contrário, espaço e tempo existem em conjunção. Tempo e espaço são co-constitutivos. Assim, a autora, na primeira parte do livro, teoriza sobre as categorias tempo e espaço e propõe um tensionamento epistêmico entre espaço-tempo ou tempo-espaço. Não há aqui, é importante que se registre, uma prioridade hierárquica do tempo em relação ao espaço, ou vice-versa. Estas dimensões se constituem conjuntamente. O mundo é temporal e espacial. O tempo-espaço que a autora laboriosamente edifica constitui-se de múltiplas trajetórias que se encontram no aqui agora. Se o tempo como processo está aberto ao imprevisto, assim também pode ser pensada a conjunção tempo-espaço: “Se o tempo é a dimensão da mudança, então o espaço é a dimensão do social: da coexistência contemporânea dos outros. E isso é ao mesmo tempo um prazer e um desafio” (p. 15). Mas, nesta direção, qual a sua definição de espaço? Quando e como o espaço começa a tomar forma e a se delimitar? A primeira atenção, seguindo Massey, é evitar cairmos aqui na distinção dada pela Geografia Humanística entre espaço e lugar. Esta polaridade entre o espaço (hostil, externo e abstrato) e o lugar (refúgio/pertencimento, sentido, vivido e cotidiano) pouco R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 127 R nos ajuda a elaborar um raciocínio espacial. A autora não está pré-ocupada em distinguir essas duas noções. Espaço e lugar/local se equivalem. Em rápidas palavras, esse legado em relação ao lugar (refúgio sedimentado de formas e heranças que diretamente nos pertencem) deve ser renunciado, pois, podemos dizer, esse lugar nunca existiu. No capítulo 1, a autora apresenta duas proposições iniciais para se pensar o espaço: 1) O espaço como produto de inter-relações – do global ao intimamente pequeno. Não se trata, nesta primeira proposição, de uma poética do espaço ao estilo Bachelard. Ao contrário, o que ela propõe é uma ação reflexiva sobre uma “política relacional do lugar” – e o lugar aqui, importante reiterar, é formado pelo encontro de múltiplas trajetórias. Este encontro, diga-se de passagem, não é portador de um sentido angélico e adâmico do lugar. A autora mergulha em águas mais profundas e turvas: o local não é a exposição de uma única herança de histórias sedimentadas numa circunscrição fechada. Para Massey, o sentido do local guarda sua relação com outras escalas. Isso não impede que se compreendam as singularidades locais, mas o lugar é a manifestação do encontro de muitas outras heranças e de acontecimentos em curso, e não de uma única história. Assim, evitamos cair no sentido de lugar como escala cartográfica e administrativa, e tampouco direcionamos um apelo à particularidade fechada de uma localidade. Antes de mais nada, locais são processos. 2) O espaço como a esfera de possibilidade, de existência da multiplicidade, da coexistência conflituosa de muitas outras vozes e trajetórias. Um espaço onde a pluralidade humana e a heterogeneidade estejam presentes. Assim, ao propor a pluralidade como pressuposto para a formação e entendimento do espaço, Massey refina sua imaginação e já nos adverte que o sentido de sua reflexão se pauta por um exercício político, pois onde se concebe a pluralidade e a heterogeneidade estão presentes os conflitos, as diferenças de uso e distribuição do poder, os consensos, as rupturas e as forças que percorrem e usam desigualmente os recursos dos espaços. A força do argumento é dada pela possibilidade de um devir do espaço, posto que aberto, plural, múltiplo e em conflito. Ao pensarmos que espaço e multiplicidade de trajetórias são co-constitutivos, abrimos uma nova paisagem política, composta por diferentes narrativas. 128 E S E N H A S Conceber assim o lugar como escala heurística privilegiada demanda renunciar a uma perspectiva unívoca de identidade, portadora de paroquialismos e localismos exclusivistas. Massey enfatiza a tarefa crítica da Geografia: desfazer-se de uma concepção de espaço como abstrato e do seu contraponto lugar como vivido para, em vez dessa dupla oposta, advir um sentido de uma política do espaço, dado pelo princípio da “política da interconectividade”, de um lugar em relação a outro. Não encontramos, assim, em Massey, uma teoria fechada, pronta para ser aplicada em estudos de casos empíricos. Não se trata de uma transposição didática e muito menos de procedimentos metodológicos para futuros estudos sobre o lugar. O que o leitor encontrará é uma profunda reflexão e inspiração para um exercício atento às multiplicidades que um lugar abriga. E, com rigor, a autora analisa várias problemáticas atuais, como: a política habitacional em Londres; a demarcação de terras dos índios Deni, no oeste da Amazônia; as políticas localistas em relação ao migrante-estrangeiro; a dominância das indústrias financeiras globais em Londres; o local como produtor do global; a organização do espaço do trabalho e do espaço doméstico pelos altos funcionários dos tecnopolos; a apropriação do espaço público urbano; a conexão local entre os humanos e não-humanos (natureza); e uma crítica à adesão das ciências humanas às teorias no campo da física, especificamente em relação à teoria da complexidade. O texto é acompanhado de imagens fotográficas, charges e mapas. O uso destas imagens não deve ser programado como suporte didático para a compreensão do texto escrito e tampouco como enfeite e/ou ilustração. Mas merecem ser lidas como linguagem que, junto ao texto escrito, gera um segundo texto, no qual os objetos e os significados se atritam, abrindo a visão para a imaginação de um espaço múltiplo de narrações. Massey nos propõe, assim, outro exercício: junto a Espinoza, faz apelo ao experimento da imaginação do outro, um outro que não se situa necessariamente em alguma localidade distante (quanto mais distante maior a diferença cultural, como nos clássicos estudos das ciências humanas). Não é sobre distâncias métricas que trata sua reflexão espacial. O diferente e o estranho não habitam somente o distante; a margem também está no centro. Esse lugar, como experimento heurístico, ainda está para ser construído. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 R E S E N H A S Das páginas deste livro emerge um feixe de experimento de idéias, dado pela elegância na escrita, o cuidado com a textura e o significado das palavras. Qualidades estas transmitidas pela “boa tradução” do livro, que nos oferece a difícil tarefa de conciliar e manter as diferenças entre línguas diferentes e criar sobre o intraduzível. Ao terminar a leitura, temos um sentido restituído: o de que o mundo ainda apresenta novidade. Massey traz um pouco de “ar puro” para a Geografia. “Lugares, em vez de serem localizações de coerência, tornam-se os focos do encontro e do não-encontro do previamente não-relacionado e, assim, essenciais para a geração do novo” (p. 111). A amplitude de seus questionamentos nos permite multiplicar os olhos, gesto esse especialmente urgente para pensar as questões contemporâneas. Há em suas reflexões uma serenidade epistemológica para questões tão complicadas e densas, como o acesso e controle desigual do poder. Posição essa que somente a maturidade de uma rica trajetória intelectual pode oferecer. Em síntese, para que a teoria de Massey seja compreendida, é fundamental termos em mente que sua crítica é direcionada a todas as abordagens positivistas e essencialistas que cultivam uma idéia de lugar circunscrito e fadado a uma única identidade. Pensar desta maneira o lugar é empobrecer o cotidiano, as experiências contemporâneas, o mundo e o devir. Com todas as implicações políticas, como legado de uma representação de mundo colonialista, não é mais possível pensarmos o espaço como superfície plana. Ancorar-se nesta interpretação é silenciar as muitas outras vozes e muitos outros atores que formam o espaço. Nesta direção, as Ciências Humanas e os atores do planejamento, nas mais diversas escalas de ação, podem e devem assumir o compromisso de elaborar uma reflexão e ação política para construção de um espaço heterogêneo, múltiplo e plural, pois essa é a única condição humana da qual somos herdeiros. SÃO PAULO, CIDADE GLOBAL: FUNDAMENTOS FINANCEIROS DE UMA MIRAGEM Mariana Fix São Paulo: Boitempo, 2007 Daniela Abritta Cota Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFMG A transição do regime de acumulação fordista para o regime de acumulação flexível levou, em muitos casos, à adoção pelos países centrais de formas mais flexíveis de organização espacial, seja do ponto de vista das normas de ordenamento territorial, seja nas formas de relacionamento entre o poder público e o setor privado. Por outro lado, o processo de globalização e de flexibilização da produção, bem como a quebra das barreiras espaciais (Harvey, 1995) como conseqüência da contínua revolução nos meios de transporte e de comunicação, reforçaram a política do local e a importância dos lugares, que passaram a competir pela atração de investimentos e fluxos de consumo. Nesse contexto, produtividade, competitividade e subordinação dos fins à lógica do mercado são elementos que dominam a “nova” forma de se pensar o urbano, constituindo o que Harvey chamou de empresariamento da gestão urbana (Harvey, 1996). Tais elementos passam, assim, a ser incluídos na discussão de políticas urbanas locais mais recentes, sendo adotados especialmente por aquelas cidades com “vocação global”. Nesse contexto de transformação da “cidade-empresa”, instrumentos de planejamento mais flexíveis – contrapondo-se aos tradicionais, tanto do ponto de vista da regulação do uso e da ocupação do solo urbano quanto da governança urbana – são colocados em pauta tanto nos países centrais quanto nos periféricos, a exemplo da parceria públicoprivada, que se apresenta como possível mecanismo de captação de recursos e de gestão pública eficaz, considerando o seu papel na promoção da inserção competitiva de cidades nos fluxos econômicos globais. Mariana Fix, em sua última obra (Fix, 2007), dá abertura para diferentes reflexões, nos instigando, inclusive, a refletir sobre este tema – a parceria públicoprivada – quando investiga as conexões existentes en- R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 129 R tre capital imobiliário e capital financeiro na cidade de São Paulo, metrópole periférica, em um contexto de mundialização da economia. Destaca-se na investigação realizada pela autora especialmente a riqueza do trabalho de campo e o expressivo número de entrevistas qualitativas realizadas ao longo da pesquisa – 56 entrevistas envolvendo 61 pessoas de 46 entidades diferentes –, capazes de subsidiar o entendimento e as reflexões acerca do circuito de circulação do capital no meio ambiente construído. Mérito também deve ser conferido à clareza com que Fix apresenta os novos mecanismos financeiros que podem, em tese, aproximar o mercado imobiliário do modo de funcionamento do mercado de capitais, a exemplo dos fundos de investimentos utilizados no caso brasileiro. A discussão realizada pela autora tem como objeto de estudo uma parte da cidade de São Paulo que se projeta como uma nova centralidade – Faria LimaBerrini, também alvo de análise da autora em suas obras anteriores (Fix, 2001, 2003) – ao ser submetida às estratégias de planejamento e gestão capazes de produzir a “face globalizada” da metrópole. Nesse livro, a autora procura identificar as formas assumidas na produção imobiliária e no consumo do espaço urbano de São Paulo, investigando como a financeirização e a mundialização do capital produzem paisagens como esta, objeto de seu estudo: torres de escritórios, shopping centers, prédios de uso misto, dentre outros exemplares existentes nas paisagens dos centros de negócios dos países centrais. Por trás dessa aparente paisagem globalizada, Fix identifica as estratégias colocadas em prática para viabilizar a cidade global, mostrando como em São Paulo o elo entre mercado imobiliário e capital financeiro se mostra truncado e imperfeito, evidenciando as características específicas que essa aliança assume na realidade brasileira. Primeiramente, a análise busca mostrar que a produção do ambiente construído, resultado desse elo em São Paulo, não conta com um crédito efetivo, como é o caso das hipotecas nos Estados Unidos. Na falta de crédito financeiro para os edifícios comerciais, o setor utiliza os fundos de pensão – a maioria deles ligados a empresas estatais, como a Caixa Econômica Federal e a Petrobrás – que funcionaram nos anos de 1980 e 1990 como uma espécie de substituto ao crédito, tentando reproduzir o mecanismo da promoção 130 E S E N H A S imobiliária norte-americana. Dessa forma, a financeirização da promoção imobiliária, que nos países centrais se deu ao mesmo tempo que a combinação explosiva das instituições de crédito com o setor imobiliário, adquiriu no Brasil uma outra configuração. Na ausência do crédito, são os fundos de pensão que, ao assumirem o papel de investidor, aproximam o mercado imobiliário do modo de funcionamento do mercado de capitais. Isso representa uma nova forma de reunir recursos para investimentos, ao considerar a terra um ativo financeiro – porque permite a apropriação de rendas que prometem ser cada vez mais elevadas –, garantindo, assim, rentabilidade. A partir desse enfoque, a autora nos mostra como em São Paulo o capital financeiro transforma a produção imobiliária em títulos mobiliários atraentes para investidores do mercado financeiro. A produção imobiliária nessa parte da cidade passa a ser regida pela busca de liquidez: o imóvel se torna um título mobiliário, e as cidades, sobretudo aquelas com “vocação global” como São Paulo, são financeirizadas. Para viabilizar essa transformação da paisagem de São Paulo, dotando-a de um status “global”, utiliza-se o instrumento da Operação Urbana, aquela mesma forma de parceria público-privada abordada pela autora em seus trabalhos anteriores e responsável por criar as condições necessárias à atração de investidores e à conseqüente submissão da cidade (ou parte dela) à lógica do capital financeiro. Segundo Mariana Fix, a construção da “face global” da cidade de São Paulo, além de ser sustentada por grandes investidores brasileiros, como os fundos de pensão, encontra na parceria entre o poder público e a iniciativa privada o instrumento capaz de viabilizar financeiramente os negócios imobiliários, garantindo fluxo permanente de recursos públicos para modernizar a infra-estrutura na região Faria Lima-Berrini. A Operação Urbana – essa forma de parceria público-privada aplicada no urbano – estimula a produção imobiliária do espaço em áreas inicialmente baratas (próximas às favelas), porém, com localização interessante para a atuação do mercado, que vê na região uma possibilidade de rentabilidade. Assim, o Estado é mobilizado a transformar a cidade em uma “máquina de crescimento” capaz de inseri-la no ranking das cidades com funções globais, canalizando recursos públicos que são investidos em infra-estrutura necessária para atrair investimentos imobiliários e R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 R E S E N H A S alavancar negócios privados. Como visto, a Operação Urbana aparece como instrumento que viabiliza o elo financeiro dos empreendimentos imobiliários, mas de forma perversa: concentração de renda e segregação espacial são os resultados da utilização deste instrumento – resultados abordados também em trabalhos anteriores da autora, mas, agora, com destaque para o papel da parceria na relação local-global. Isso contribui para o enfraquecimento do mito criado ao considerar São Paulo uma “cidade global”, o que, na verdade, parece ser o caso de apenas uma parte da cidade, direcionada para poucos. Em segundo lugar, a autora busca nos mostrar como, no caso brasileiro, há uma “fratura” que caracteriza o processo de financeirização e internacionalização da economia, a partir desse estudo sobre São Paulo. Na busca de mobilidade e liquidez, as grandes empresas deixam de se estabelecer em sedes próprias e passam a alugar andares em edifícios construídos naquelas paisagens globalizadas – no exemplo deste livro, a da FariaLima-Berrini –, o que lhes permite se deslocar no território com maior facilidade. Sendo assim, a aparente paisagem globalizada, edificada para servir ao capital transnacional, sofre conseqüências da constante migração que caracteriza as grandes empresas: a alta taxa de vacância dos imóveis e a consequente superoferta dos mesmos acabam provocando a queda dos preços e a fuga de novos investidores. Segundo a autora, o mito das cidades globais já nasce enfraquecido e, por isso, “ganha ares de farsa”, apresentando, essas novas centralidades produzidas em São Paulo, o caráter de uma miragem, que busca mimetizar os centros de comando e controle em um país periférico. Assim, São Paulo, ao reivindicar seu status de “cidade global”, tentando ser mais competitiva, reflete sua condição de subordinação e dependência do capitalismo financeirizado. Essa tentativa de readequar a capital paulista às características de uma cidade global revela também as conseqüências da implantação da paisagem globalizada – que representa nada mais que a importação de modelos dos pólos de negócios dos países centrais – em uma formação social específica, periférica e “arcaica”, destacando, dentre essas conseqüências, o reforço à segregação socioespacial. As estratégias e os instrumentos utilizados para dotar a cidade desse caráter global nos fazem refletir – e, por que não, rever –, no contexto da relação centro-periferia, sobre as re- centes formas de atuação no âmbito do planejamento e da gestão urbana no Brasil. A discussão em torno do instrumento da Operação Urbana e da ação do Estado nas políticas integram essa reflexão. Como abordado na obra de Fix, a construção dessa face empresarial e mundial da cidade de São Paulo se ergueu às custas da segregação socioespacial financiada pelo Estado e pelos fundos de pensão. Ao que parece, a utilização da parceria público-privada como instrumento de planejamento urbano, ao ser aplicado na realidade brasileira, vem servindo aos interesses da acumulação – seja pela sua atuação na produção das condições gerais de produção, na forma de ambiente construído, gerando mais-valias fundiárias, seja viabilizando intervenções associadas a maior permissividade quanto à aplicação de parâmetros urbanísticos, ou financeirizando a produção imobiliária –, em detrimento do caráter redistributivo que caracteriza o discurso da política urbana brasileira mais recente, incluindo-se aí as Operações Urbanas. Cabe refletirmos, a partir do excelente trabalho de Mariana Fix, sobre até que ponto a roupagem de um planejamento democrático e participativo, na forma em que vem se estruturando no Brasil, não estaria, na prática, mascarando estratégias de produção de “cidades empresas”. REFERÊNCIAS FIX, Mariana. (2001). Parceiros da exclusão: duas histórias da construção de uma “nova cidade” em São Paulo: Faria Lima e Água Espraiada. São Paulo: Boitempo. __________. (2003). A fórmula mágica da parceria: Operações Urbanas em São Paulo. In: SCHICCHI, Maria Cristina; BENTAFFI, Dênio. Urbanismo: dossiê São Paulo – Rio de Janeiro (Óculum – Edição Especial). Campinas/Rio de Janeiro: PUCCamp/ PROURB, 2003. __________. (2007). São Paulo, cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo: Boitempo. 192p. HARVEY, D. (1996). Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação urbana no capitalismo tardio. Espaço e Debates, n.39, ano XVI. São Paulo: NERU, p. 48-64. __________. (1995). Espaços urbanos na “aldeia global”: reflexões sobre a condição urbana no capitalismo do final do século 20. (Transcrição de uma conferência proferida em Belo Horizonte, em 1995). R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 131 REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional E REGIONAIS NORMAS PARA PUBLICAÇÃO Todos os artigos recebidos serão submetidos ao Conselho Editorial, ao qual cabe a responsabilidade de recomendar ou não a publicação. Serão publicados apenas artigos inéditos. Os trabalhos deverão ser encaminhados em CD ou DVD (Word 6.0 ou 7.0, tabelas e gráficos digitados em Excel, figuras grayscale em formato EPS ou TIF com resolução de 300 dpi) e em três vias impressas, digitadas em espaço 1.5, fonte Arial tamanho 11, margens 2.5, tendo no máximo 20 (vinte) páginas, incluindo tabelas, gráficos, figuras e referências bibliográficas, acompanhados de um resumo em português e outro em inglês, contendo entre 100 (cem) e 150 (cento e cinqüenta) palavras, com indicação de 5 (cinco) a 7 (sete) palavras-chave. Devem apresentar em apenas uma das cópias as seguintes informações: nome do autor, sua formação básica e titulação acadêmica, atividade que exerce, instituição em que trabalha e e-mail, além de telefone e endereço para correspondência. Os originais não serão devolvidos. Os títulos do artigo, capítulos e subcapítulos deverão ser ordenados da seguinte maneira: Título 1: Arial, tamanho 14, normal, negrito. Título 2: Arial, tamanho 12, normal, negrito. Título 3: Arial, tamanho 11, itálico, negrito. As referências bibliográficas deverão ser colocadas no final do artigo, de acordo com os exemplos abaixo: GODARD, O. “Environnement, modes de coordination et systèmes de légitimité: analyse de la catégorie de patrimoine naturel”. Revue Economique, Paris, n.2, p.215-42, mars 1990. BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1981. Se houver até três autores, todos devem ser citados; se mais de três, devem ser citados os coordenadores, organizadores ou editores da obra, por exemplo: SOUZA, J. C. (Ed.). A experiência. São Paulo: Vozes, 1979; ou ainda, a expressão “et al.” (SOUZA, P. S. et al.). Quando houver citações de mesmo autor com a mesma data, a primeira data deve vir acompanhada da letra “a”, a segunda da letra “b”, e assim por diante. Ex.: 1999a, 1999b etc. Quando não houver a informação, use as siglas “s.n.”, “s.l.” e “s.d.” para, respectivamente, sine nomine (sem editora), sine loco (sem o local de edição) e sine data (sem referência de data), por exemplo: SILVA, S. H. A casa. s.l.: s.n., s.d. No mais, as referências bibliográficas devem seguir as normas estabelecidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Para citações dentro do texto, será utilizado o sistema autor-data. Ex.: (Harvey, 1983, p.15). A indicação de capítulo e/ou volume é opcional. Linhas sublinhadas e palavras em negrito deverão ser evitadas. As citações de terceiros deverão vir entre aspas. Notas e comentários deverão ser reduzidos tanto quanto possível. Quando indispensáveis, deverão vir em pé de página, em fonte Arial, tamanho 9. Os editores se reservam o direito de não publicar artigos que, mesmo selecionados, não estejam rigorosamente de acordo com estas instruções. Os trabalhos deverão ser encaminhados para: Geraldo Magela Costa Universidade Federal de Minas Gerais – Instituto de Geociências Av. Antônio Carlos, 6627 – Pampulha 31270 901 – Belo Horizonte/MG E-mail: [email protected] R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 133 REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional E REGIONAIS ONDE ADQUIRIR ANPUR • Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo / UFBA Rua Caetano Moura, 121, Federação 40210-350 Salvador, BA Tel.: (71) 247 3803, ramal 220 [email protected] LIVRARIA VIRTUAL VITRUVIUS • Rua General Jardim, 645 conj 31 01223-011 São Paulo, SP Tel.: (11) 3255 9535 / 9560 [email protected] PROLIVROS • Rua Luminárias, 94 05439-000 São Paulo, SP Tel.: (11) 3864 7477 [email protected] COPEC • Rua Curitiba, 832, sala 201 30170-120 Belo Horizonte, MG Tel.: (31) 3279 9145 [email protected] EDUFAL • Editora da Universidade Federal de Alagoas Prédio da Reitoria – Campus A. C. Simões BR 104, km 97,6 – Tabuleiro do Martins 57072-970 Maceió, AL www.edufal.ufal.br SEADE • Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados Av. Cásper Líbero, 464, Centro 01033-000 São Paulo, SP Tel.: (11) 3224 17662 [email protected] UFMG FUPAM/USP • Faculdade de Arquitetura e Urbanismo / USP Rua do Lago, 876, Cidade Universitária 05508-900 São Paulo, SP Tel.: (11) 3091 4566 / 4648 [email protected] IBAM UFPE • Mestrado em Desenvolvimento Urbano / UFPE Caixa Postal 7809, Cidade Universitária 50732-970 Recife, PE Tel.: (81) 3271 8311 [email protected] • Largo Ibam, 1, Humaitá 22271-070 Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2536 9835 [email protected] INAY LIVROS • Congressos e eventos na área de arquitetura e urbanismo Tel.: (11) 3399 3856 [email protected] INSTITUTO POLIS • Rua Araújo,124, Centro 01220-020 São Paulo, SP Tel.: (11) 2174 6800 [email protected] 134 • Instituto de Geociências / UFMG Av. Antônio Carlos, 6627 Campus Pampulha 31270-901 Belo Horizonte, MG Tel.: (31) 3499 5404 [email protected] UFRJ • Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional / IPPUR Ilha do Fundão – Prédio da Reitoria, sala 533 21941-590 Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2598 1930 [email protected] OUTROS ASSOCIADOS E FILIADOS • www.anpur.org.br R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 1 0 , N . 1 / M A I O 2 0 0 8 REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional E REGIONAIS VENDAS E ASSINATURAS E XEMPLAR AVULSO : R$ 25,00 À venda nas instituições integrantes da ANPUR e nas livrarias relacionadas nesta edição. A SSINATURA A NUAL (dois números): R$ 45,00 Pedidos podem ser feitos à Secretaria Executiva da ANPUR, enviando a ficha abaixo e um cheque nominal em favor da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL – ANPUR (Gestão 2007 – 2009) Rua Augusto Corrêa, nº 1 Campus Universitário do Guamá, Setor Profissional CEP 66.075-900 Belém / PA Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – Sala 206 Fone: (91) 3409-7496 Fax: (91) 3409-7677 e-mail: [email protected] homepage: www.anpur.org.br Preencha e anexe um cheque nominal à Anpur Assinatura referente aos números ____ e ____. 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