Painel II “O audiovisual e as artes do espetáculo”

Transcrição

Painel II “O audiovisual e as artes do espetáculo”
Comunicação sobre a gravação em vídeo da montagem de:
Triunfo – Um delírio barroco – Espetáculo de dança-teatro-música inspirado no Triunfo
Eucharístico de Simão Ferreira Machado (Vila Rica- 1733)
Carmen Paternostro
Doutoranda do PPGAC/ UFBA
Orientador: Prof. Dr. Armindo Bião
Palavras-chave: Barroco mineiro. Sagrado e Profano. Festa. Espetacularidade.
1 Introdução
O Triunfo Eucarístico foi uma festa que aconteceu em Villa Rica, em 1733, para
celebrar o traslado da Santa Eucaristia da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos para
a nova Matriz da Senhora do Pilar. A população, numa demonstração de Cristandade,
conduziu de forma triunfal o Divino Sacramento, pelas ruas da cidade, numa celebração que
durou quase um mês. Os dias festivos que precederam a procissão foram iniciados com
bandos mascarados, cortejos musicais, seguidos de muitas danças, como Cavalhadas de
Mouros e Cristãos. Aconteceram diversos desfiles com pessoas a pé e montadas em cavalos,
usando trajes alegóricos ricamente trabalhados. No centro da cidade, foi montado um tablado
para representações teatrais. Em seu momento maior, a procissão foi realizada por diversas
Irmandades, com a participação de importantes personalidades do clero, do Senado e da
Câmara, militares e um bom número de figurantes tematicamente vestidos, representando os
planetas, os astros e a natureza, com ornamentos pomposos e, assim, misturados,
acompanharam o traslado da Eucaristia que aconteceu no dia 24 de maio do mencionado ano.
Graças à obra ensaística do poeta e escritor Affonso Ávila, sobre o barroco mineiro e
em especial sobre o Triunfo Eucarístico, é que foi possível vislumbrar-se o fato histórico e
encenar-se o espetáculo em sua memória, do qual apresentamos aqui algumas imagens. Foi a
partir dos encontros-aulas da equipe desse espetáculo – com Ávila – que as leituras sobre o
barroco tomaram corpo. Sem entender o “primado do visual na cultura barroca mineira”,
defendido pelo autor na obra Resíduos Seiscentistas em Minas, pouco poderíamos ter
aprofundado nas pesquisas.
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O espetáculo foi idealizado e produzido pela Fundação Clóvis Salgado, em 1986.
Participei como diretora convidada, elaborando a adaptação do conto e a concepção cênica.
As apresentações e ensaios foram realizados no Palácio das Artes, contando com a
participação da Companhia de Dança Palácio das Artes, o Grupo Galpão, músicos e
coreógrafos convidados.
O roteiro cênico do espetáculo foi criado a partir da crônica de Simão Ferreira
Machado, natural de Lisboa, convidado para relatar as festividades do Triunfo Eucarístico.
Seu conto TRIUNFO EUCHARISTICO: Narração De Toda A Ordem, E Magnífico Apparato
da Solemne Trasladação resultou em um primeiro depoimento sobre o estilo de vida da
nascente sociedade mineradora. Movido por expressar-se sensorialmente e demonstrar o seu
olhar ibérico, Ferreira Machado criou quadros barrocos deslumbrantes ao descrever a festa.
Levado pela magnificência do que via nos desfiles, ele cunhou sua apreensão do sacro e
profano numa festa popular. Conforme Ávila (1967), o autor “ateve-se ao plano meramente
visível do espetáculo, alheio a qualquer veleidade filosófica. Interessava a Simão Ferreira
Machado o instante em sua materialidade histórica, que ele buscava” apreender com os olhos,
concretamente: aos olhos sempre vario e agradável espetáculo.
Nessa festa tudo se vê: o europeu e o africano, o paulista emboaba e o
baiano, o rico e o pobre, o mitológico e o real, a fantasia e, sobretudo o
nascimento de uma nacionalidade, em uma mesclagem de raças e estampas
sociais, nobres e plebeus. Nada mais mineiro, portanto. (WERKEMA1·,
1986)
2 Apresentação do vídeo
Comentários e orientações sobre o vídeo conforme o Cenograma ou roteiro das cenas,
durante a exibição.
3 Conclusões
Leitura de um trecho da Crítica do jornalista Marcelo Castilho Avellar e da Ficha
Técnica.
1
Superintendente do Palácio das Artes em 1986, idealizador do projeto.
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Referências
ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil 1º. Tomo. Alvarenga, Oneida. (Org.).
Belo Horizonte: Itatiaia, 1982.
ÁVILLA, Affonso. Cantaria Barroca. Belo Horizonte: [S.n], 1971.
______ . O Lúdico e as Projeções do Barroco. São Paulo: Perspectiva, 1994.
CASCUDO, Câmara. Antologia do Folclore Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Livraria Martins
Editora, 1956.
______ . Lendas Brasileiras. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
FERREIRA, Delson G. Cartas Chilenas: retrato de uma época. Belo Horizonte: Ed. Lemi,
1982.
MACHADO, Simão F. Triunfo Eucharístico. In: ÁVILLA, Affonso. Resíduos Seiscentistas
em Minas: Textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco. Belo Horizonte:
Imprensa da UFMG publicação, 1967. v.1, pt. 2. p. 130 - 281.
WERKEMA, Mauro. Triunfo- Um Delírio Barroco: Apresentação. In: Programa do
espetáculo. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 1986.
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Ariane Mnouchkine e o Théâtre du Soleil:
notas de uma trajetória entre palco e tela
Deolinda Catarina França Vilhena2
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
“Em arte não existem técnicas proibidas;
o que existem são técnicas mal utilizadas.”
(MEYERHOLD, 2006)
Resumo
Essa intervenção parte da gênese da construção do “capital simbólico cinematográfico” de Ariane
Mnouchkine, agente revelador do fio que à liga ao cinema de suas origens e responsável, em grande
parte, pelas formas de influência propiciadas por esse fio condutor, expressas de várias maneiras ao
longo da trajetória da encenadora, ora nos processos de criação, ora nos espetáculos do Théâtre du
Soleil.
Palavras chave: Ariane Mnouchkine, cinema, novas tecnologias, teatro, Théâtre du Soleil
1 Ariane Mnouchkine e o cinema, gênese de uma paixão
2 Deolinda Catarina França de Vilhena é jornalista e produtora teatral, graduada em jornalismo pela
Faculdade da Cidade (Rio de Janeiro -1983); Mestre em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo (2001); Mestre em Arts du spectacle (DEA) pelo Institut d’Étude
théâtrales da Université de la Sorbonne Nouvelle – Paris III (2002); Doutora em Études théâtrales pelo
Institut d’Études théâtrales da Université de la Sorbonne Nouvelle – Paris III (2007). Pós-Doutoranda
em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo com bolsa da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Professora convidada do
Departamento de Artes Cênicas da USP ministrando, na Graduação, a disciplina Produção teatral.
Possui experiência na área de Prática teatral, com ênfase em Produção, atuando principalmente nos
seguintes temas: produção teatral, administração teatral, gestão, modos de produção, políticas culturais
públicas francesas e brasileiras, trupes, teatro de grupo, Théâtre du Soleil.
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Que Ariane Mnouchkine é um mestre, e um dos poucos que restam no vasto círculo do teatro
europeu ninguém duvida. Mesmo assim, desafio quem já a tenha visto contente consigo mesma, ou
calma durante um ensaio geral, ou uma apresentação. Como uma criança Ariane Mnouchkine parece
saber que sempre pode ir mais além, repetindo com frequência que o teatro pode tudo, incapaz de
imaginar que tudo já tenha sido conquistado.
Em busca desse teatro que tudo pode, ela compreendeu que o advento de novas tecnologias
acabou por determinar novas formas de percepção e comunicação, redefinindo por vezes a própria
noção de teatralidade. O confronto cotidiano com novas mídias: telefone, cinema, vídeo, computador,
influenciou não apenas nossa maneira de apreender a realidade, mas também nosso modo de produção
e percepção teatral.
Mnouchkine sabe que o teatro sempre esteve ligado à história das outras artes do espetáculo,
do mesmo jeito que sabe como poucos apropriar-se artisticamente das tecnologias, enquanto novos
meios de expressão. Afinal, foram essas mesmas tecnologias no final do século XIX, com o advento
da eletricidade e, por conseguinte da iluminação, que transformaram o palco, oferecendo novas
condições de criação e de percepção de uma obra.
Se, por um lado, o teatro, em pleno século XXI, reforça os laços que o unem às novas
tecnologias; por outro, “a cena teatral apresenta-se como dos raros lugares, experimental e lúdico,
onde podemos brincar com as mutações tecnológicas na presença de corpos vivos, atores e
espectadores” (PICON-VALLIN, 2005). Essas tecnologias estimulam a quebra de fronteiras entre
diferentes linguagens artísticas e permitem uma discussão em constante transformação, provocando
uma imbricação de territórios que, desde sempre, agrada Ariane Mnouchkine.
No caso do cinema, mais especificamente, posso dizer que é um namoro antigo. Como Obélix
que, em criança, caiu no caldeirão da poção mágica do druida Panoramix recebendo o poder dela
indefinidamente, Ariane era uma garotinha quando caiu nos braços do cinema. Não por acaso, o fio
que à liga ao cinema de suas origens se exprimirá de diversas maneiras ao longo do seu percurso
artístico.
Filha do produtor Alexandre Mnouchkine (1908/1993), judeu russo que chegou “à França fugindo
mais do anti-semitismo do que do comunismo”, Ariane nasce em março de 1939 poucos meses antes
da eclosão da Segunda Grande Guerra. Como diversas famílias judias os Mnouchkine se “escondem”
no interior da França.
O final da guerra, em 1945, traz a família de volta para Paris. Ariane tem apenas seis anos
quando o pai, por quem ela tem adoração, lhe faz uma declaração de amor ao escolher seu nome para a
produtora que acaba de criar, Les Films Ariane.
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Para Ariane, descobrir o cinema será uma questão de tempo, após a criação da companhia de
Alexandre Mnouchkine, Georges Dancigers e Francis Cosne. Nasce aí uma paixão que fará com que
anos mais tarde Ariane Mnouchkine, uma das maiores diretoras de teatro do século XX, não hesite em
afirmar que sua “cultura é mais cinematográfica do que teatral”.
Paradoxo totalmente compreensível quando se constata o currículo da empresa Les films
Ariane, no qual constam cerca de cem filmes produzidos entre 1946 e 2000. A importância de
Alexandre Mnouchkine será oficialmente reconhecida por seus pares, em 1982, quando ele recebe um
César de Honra – o Oscar do cinema francês – pelo conjunto de sua obra.
Obra que conta com filmes de Jean Cocteau, Philippe de Broca, Claude Lelouch, Alain
Resnais, Eric Rohmer, Edouard Molinaro e Bertrand Blier e com estrelas do naipe de Gérard Philipe,
Jean Gabin, Brigitte Bardot, Gina Lollobrigida, Jean-Paul Belmondo, Françoise Dorléac, Catherine
Deneuve, Michel Piccoli, Philippe Noiret, Lino Ventura, Annie Girardot e Gérard Depardieu.
Um dos maiores sucessos de Alexandre Mnouchkine na produção é Fanfan la Tulipe com
Gérard Philipe e Gina Lollobrigida, que recebeu em 1952 os prêmios de Melhor diretor em Cannes –
Christian- Jaque – e Urso de Prata em Berlim. Além de ter levado quase sete milhões de espectadores
ao cinema, o que faz com que até hoje ele conste na lista dos 100 filmes recordistas de público na
França. Pura curiosidade: foi o primeiro filme francês dublado em chinês.
Entre os filmes mais conhecidos da produtora Les Films Ariane encontram-se L’Homme de
Rio(1964), de Philippe de Broca, com Jean-Paul Belmondo e Françoise Dorléac, Le Nom de la rose
(1986) de Jean-Jacques Annaud, aos quais não podemos esquecer de anexar os frutos das parcerias de
Alexandre Mnouchkine com Jean Cocteau – L’Aigle à deux têtes (1948) e Les Parents terribles
( 1948) e vários assinados por Claude Lelouch, entre eles Vivre pour vivre (1967), La Vie, l'amour, la
mort (1968), Un homme qui me plaît (1969), Le Voyou (1970), L’Aventure, c’est l’aventure (1972) e
Un autre homme, une autre chance(1977).
Tudo isso faz com que seja impossível menosprezar a influência da presença desse pai, o
processo de descoberta do cinema se dá de forma tão natural quanto intensa, pois em companhia dele,
Ariane tem acesso livre aos estúdios e sets de filmagens das grandes produções da época.
Difícil imaginar, que uma criança possa sair impune de visitas a estúdios de filmagens de
produções como Fanfan la tulipe ou L’aigle à deux têtes, quem – como eu – criou um filho em coxias
de teatro pode afirmar isso com convicção ainda maior. Entretanto, a grande companheira de aventuras
nessa fase será Joëlle, sua irmã, cinco anos mais nova, ao lado de quem Ariane estreitará seus laços
com o melhor do cinema mundial.
Ambas tornam-se frequentadoras assíduas das sessões de cinema do bairro em que habitavam.
Nessa época, para poder assistir mais de um filme, Ariane negociava com o porteiro do cinema a
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possibilidade de colocar a irmã no colo e, assim, pagariam um único ingresso, o que lhe garantia a
possibilidade de assistir a um número maior de filmes.
Segundo Béatrice Picon-Vallin, a primeira lembrança cinematográfica de Mnouchkine é
anterior ao final da Segunda guerra, o que significa que ela teria em torno de 4/5 anos, pois o filme
Aventures fantastiques du Baron de Münchhausen de Josef Von Baky data de 1943. Ainda de acordo
com Picon-Vallin, as lembranças do pós-guerra estão ligadas a dois filmes. O primeiro é Les voyages
de Gulliver, filme de animação de Dave Fleischer lançado nos estados Unidos em 1939, mas apenas
em 1944 na França. O segundo é um filme russo, Les Marins de Cronstadt, de Efim Dzigane filmado
em 1936 cuja ação se desenrola na Rússia de 1919.
Mesmo sem ter a noção exata do impacto ou da influência recebida dos filmes que assistiu em
criança, Mnouchkine sabe que as obras de Jean Renoir (1894/1979), George Cukor (1899/1983),
Vincent Minnelli (1903/1986) e certos filmes de John Ford (1894/1973) contribuíram para formar o
seu “capital simbólico cinematográfico”, acrescido do fascínio que nutria pelo jogo “teatral” dos atores
do cinema mudo, destaque especial para os filmes de Charles Chaplin e a atriz Lilian Gish.
O certo é que alguns encontros ao longo de sua adolescência e juventude serão importantes
para reafirmar a presença da “imagem” na trajetória de Mnouchkine. O primeiro deles foi com Martine
Franck, quando de seus estudos de adolescente na Suíça. Anos depois, é em companhia da mesma
Martine que Mnouchkine faz sua primeira viagem ao Extremo-Oriente. Decisiva para as duas. Martine
confessará que influenciada por Ariane opta pela carreira de fotógrafa e, quando do retorno a Paris,
são co-fundadoras do Théâtre du Soleil, do qual Mnouchkine torna-se naturalmente a diretora e
Martine a fotógrafa oficial. Parceria que dura até hoje e, a qual veio se juntar alguns anos depois
Michèle Laurent, a segunda “objetiva” do Théâtre du Soleil.
Filha de mãe inglesa, Mnouchkine fez parte dos seus estudos em Oxford, onde integra dois
grupos de teatro universitário, trabalhando ora como “terceira assistente”, ora fazendo figuração para
Ken Loach que lá terminava seus estudos. Vale dizer que foi nesse período que Mnouchkine se
decidiu pelo teatro, numa entrevista de 30 de janeiro de 2006, concedida a Picon-Vallin na
Cartoucherie de Vincennes, Ariane conta que um dia, ao sair dos ensaios em Oxford, ela se pegou
dizendo a si mesma: “pronto, isso é a minha vida. Foi demolidor – amor à primeira vista.”.
A origem desse amor à primeira vista pelo teatro está no encontro com as equipes de cinema
que ela viu trabalhar ao longo da infância/juventude, mas uma coisa a desagradava nessas equipes:
apesar de fortes e unidas elas eram extremamente efêmeras, giravam em torno de um único projeto,
com raras exceções como no caso de Ingmar Bergman. Ela queria mais, e se o seu desejo de trabalhar
em equipe nasceu aí, ela escolheu o teatro, mas um teatro diferente.
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Em busca desse teatro diferente, Ariane contará uma vez mais com o cinema. Pois foi dele que
seu pai tirou, durante toda a vida, o seu sustento e o de sua família. Quando, já adulta, Ariane ousou
criticar alguns filmes produzidos por ele, o velho produtor não demorou a dizer que foram esses filmes
que deram a ela uma vida de princesa. Ela não retrucou, pois sabe melhor que ninguém que a
bilheteria dos sucessos de Alexandre Mnouchkine permitiram que ela levasse adiante seu sonho de
criar o Théâtre du Soleil, do qual seu pai foi o primeiro grande mecenas.
Em 1959, ao fundar a Associação Teatral dos Estudantes de Paris (ATEP), célula mater do
Soleil, Ariane era a única dos membros que não precisava trabalhar e, em assim sendo, podia fazer
cursos de teatro e depois transmitir o que havia aprendido aos colegas obrigados a um cotidiano que
incluía jornadas triplas de trabalho, pois, além dos estudos e dos ensaios ainda faziam “bicos” para
sobreviverem.
Anos depois, o dinheiro que permitirá a Mnouchkine a realização daquela que seria a sua
viagem iniciática rumo à China, virá do cinema, pois ela se dedica à montagem cinematográfica, numa
tentativa de realizar o sonho que a acompanhava desde a infância.
O mesmo objetivo a leva a aceitar um trabalho de co-roteirista do filme L’homme de Rio, de
Philippe de Broca, com Jean-Paul Belmondo e Françoise Dorléac, produzido por Les Films Ariane.
Além do dinheiro necessário, o filme acrescentará ao currículo de Ariane uma indicação ao Oscar de
Melhor roteiro de filme estrangeiro (1964).
Entretanto, sem conseguir um visto para a China, ela parte de navio para o Japão, onde espera
obtê-lo, o que não acontece e após cinco meses no Japão parte para Hong Kong, Camboja, Tailândia,
Índia. Prevista para durar seis meses, a viagem dura 15 sem que Ariane realize seu sonho.
Ao fundar o Théâtre du Soleil em 29 de maio de 1964, a primeira sede administrativa da
“Sociedade Cooperativa Operária de Produção Théâtre du Soleil” é o escritório de Les Films Ariane,
no Champs-Elysées. Durante muitos anos, inúmeras foram as vezes em que o dinheiro de Alexandre
Mnouchkine salvou a companhia de situações financeiras dificílimas, pois Ariane nunca renuncia às
solicitações de seus espetáculos. Segundo Nathalie Posset, administradora do Théâtre du Soleil entre
1989 e 1996, a presença de Alexandre Mnouchkine era uma eterna “carta na manga” de Ariane,
principalmente na hora de solicitar empréstimos bancários, pois como avalista seu nome era um
verdadeiro passaporte.
O cinema vai marcar, particularmente, a vida do Théâtre du Soleil em duas ocasiões: entre
1976/1977, quando Ariane realiza o que viria a ser seu maior sucesso cinematográfico, Molière ou la
vie d’un honnête homme, e em 1989 quando aceita o convite para fazer La Nuit miraculeuse.
À época das filmagens de Molière a trupe, então com treze/quatorze anos de existência,
enfrentava a sua “crise de adolescência”. O filme nasce da vontade que Ariane tinha de falar sobre a
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sociedade, sobre as relações de um artista com o poder monarquista ou republicano, e contar o que ela
tinha em comum com o ator ambulante, com o diretor de trupe, transformado em autor célebre.
Molière explorou as possíveis formas de estabelecer a história de uma trupe e permitiu a Mnouchkine
usar o filme, para passar a limpo a história da trupe e vencer a crise que a ameaçava. Para David
Bradby (1990), o filme acabou sendo uma resposta de Ariane aos detratores da “criação coletiva”, uma
vez que, mesmo o maior dramaturgo da França tinha usado esse método.
A produção de Molière é um caso á parte na história das relações de Ariane com o cinema,
assinada que é pela empresa Les Films 13, fundada por Claude Lelouch em 1961. Lelouch de
protegido e produzido de Mnouchkine-pai passa a produtor de Mnouchkine-filha, numa das maiores
aventuras cinematográficas da época.
Molière foi uma produção fora de série, fora dos padrões do cinema francês, orçado em dois
bilhões de francos antigos, cerca de 12 milhões de euros, uma fortuna para a época, levou dois anos de
trabalho, dos quais seis meses de filmagem, envolvendo 120 atores, 600 figurantes, 1300 figurinos,
220 cenários e dois anos de trabalho. O filme se deu ao luxo de não ter uma única vedete, fato inédito
para um filme com a sua envergadura. Além de ter reunido, pela primeira vez na história do cinema
francês, a televisão à produção cinematográfica com participação dos canais Antenne 2 – francês – e
da RAI – italiano. Tudo isso para permitir que o filme chegasse ao final, pois reza a lenda que Ariane
quase levou o pai à loucura pela maneira nada cinematográfica com a qual trabalhava, em recente
entrevista – bônus do DVD do filme – ela conta as angústias pelas quais ele passou.
Molière integrou a seleção oficial do Festival de Cannes de 1978, e apesar de vaiado pela
crítica tornou-se um dos maiores sucessos da história da televisão francesa e recebeu o César de
Melhor fotografia – Bernard Zitzermann – e de Melhor cenário – Guy-Claude François.
A presença de Claude Lelouch na produção está diretamente relacionada à sua posição de
amigo da família. Confirmando minha teoria de que para Ariane o ditado “amigos, amigos, negócios à
parte” não funciona. Uma simples olhadela nos nomes que a acompanham ao longo de seu percurso
profissional, é suficiente para comprovar que ela prefere trabalhar entre amigos.
Lelouch é um parceiro especial, de primeira hora e faz questão de expressar ainda hoje,
dezesseis anos após a morte de Alexandre Mnouchkine, em seu site oficial3, na rubrica Dois homens
importantes na vida de Claude Lelouch, a importância dele em sua vida.
Além disso, sua ligação com Ariane ultrapassa a produção de um grande “afresco”
cinematográfico. Com ela, em 1979, após uma visita ao Chile para estabelecer um diagnóstico da
3 Disponível em: <http://www.lesfilms13.com/dea_a_z/deAaZ.html>. Acesso em: 20 maio 2009.
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situação dos artistas sob o regime ditatorial de Pinochet, Lelouch funda a AIDA (Associação
Internacional de Defesa dos artistas vítimas de repressão no mundo).
A associação privilegia, em um contexto artístico, a informação e ações concretas de
solidariedade para com os artistas vítimas da repressão. A articulação entre a denúncia, a solidariedade
e a criação artística renova e reforça a ação em defesa dos direitos humanos, como disse Ariane
Mnouchkine
(1981, p.14) na época: “vamos fazer com os nossos recursos: o teatro, o cinema, o
canto, a pintura e o livro.”
Anos depois, uma temporada mal sucedida com L’Indiade ou L’Inde de leurs rêves, obriga a
companhia a usar toda a subvenção do ano para pagar as dívidas do espetáculo. Foi quando Bernard
Faivre d’Arcier, então conselheiro cultural do presidente da Assembléia Nacional francesa – Laurent
Fabius – propôs a Ariane Mnouchkine uma criação sobre a Declaração dos direitos do homem e do
cidadão, no âmbito das festividades do bicentenário da revolução Francesa.
Primeiro foi necessário convencê-la, pois ela se opunha totalmente a um novo trabalho sobre o
período revolucionário depois da criação de 1789 e 1793. Feito o acordo surgem os problemas com o
financiamento em função do inchaço do orçamento que, como sempre, com Ariane extrapolou. O
filme chegou ao fim graças à tenacidade de uns e outros, e principalmente de Jean-Pierre Guérin, o
último produtor chamado de afogadilho para salvar o filme.
La Nuit miraculeuse, um conto de Natal, foi o primeiro filme de Mnouchkine criado para a
televisão, exibido pelo canal SEPT em dezembro de 1989, mas, o mais importante foi que sua
realização permitiu que a companhia se reorganizasse e pudesse programar para a primavera seguinte
o começo dos ensaios do próximo espetáculo.
Analisando o histórico do Théâtre du Soleil pode-se encarar 1789 como uma concessão feita
por Mnouchkine, por motivos que veremos mais tarde, afinal, depois dele, Ariane passará um bom
tempo sem filmar seus espetáculos, e passará mesmo uma década e meia sem fazê-lo. Hoje, com
certeza, ela está entre os que se arrependem de não haver registro dos ciclos de Shakespeare e dos
Átridas. Mas tudo tem uma explicação.
Para o Théâtre du Soleil, filmar seus próprios espetáculos, nem de longe, é uma operação
simples. Existe uma necessidade de ver tudo funcionar como um espelho, estendido pelo próprio
teatro, permitindo que ele se veja de outro ponto de vista. Essa necessidade, ao mesmo tempo em que,
proporciona aos filmes por ele produzidos à integração ao repertório da companhia, oferecendo não
apenas a oportunidade de estabelecer um novo diálogo, mas, a descoberta de novos elos entre eles,
acabará por dificultar, impedir mesmo, a realização de determinados filmes.
Trabalhando numa lógica marginal na aparência, em realidade apenas diferente do préestabelecido, o Théâtre du Soleil deve sua sobrevivência e longevidade ao realismo e a coragem de
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Mnouchkine e dos membros da trupe pela competência que possuem de enfrentar e resolver os
problemas. Esta capacidade permite que eles consigam avançar enquanto teatro e organização social
longe das manifestações de reconhecimento oficial, fazendo com que ela possa preservar a relação
mais importante aos seus olhos, a que estabeleceu com o teatro. Mesmo, ou acima de tudo, na hora de
passá-lo para o cinema.
Talvez por isso ela se exaspere quando se vê diante do que ela chama de “espetáculos-álibis”.
Espetáculos feitos, segundo suas próprias palavras:
pelos que se pensam de esquerda e que são produzidos em condições de
total imbricação com o sistema”. No caso do Théâtre du Soleil, diz ela,
“preferimos ter a impressão de que o espetáculo nos escapa durante um
certo tempo, mas ter a certeza de que a abordagem do grupo está de acordo
conosco, nós preferimos que o espetáculo produzido pelo grupo seja o que o
grupo quer que ele seja, não o que o determina o sistema de produção
(MNOUCHKINE, 1971, p.14).4
Para Mnouchkine (1971), “um diretor de teatro faz parte de um coletivo, tendo como objetivo
essencial fazer circular uma certa energia na sala, enquanto o diretor de cinema precisa mostrar
alguma coisa de pessoal a cada instante”. Por outro lado, recusando-se terminantemente ao teatro
filmado, em aparência dando as costas ao teatro, não retendo dele que alguns instantes significativos,
Ariane reencontra a teatralidade essencial, como se fosse algo inerente a própria vida.
2 Os filmes do théâtre du soleil
“Ariane Mnouchkine prend son bien où elle le trouve:
dans ce que le théâtre actuel a de plus inventif et de plus libre (DORT, 1986)”
1789 foi o primeiro espetáculo – e até bem pouco tempo o único – filmado pela própria Ariane
Mnouchkine, que não o considera uma captação do espetáculo pura e simplesmente, ainda que tenha
consciência de que não podemos colocá-lo no nível de recriação que alcançaria anos depois com
Tambours sur la digue e Le dernier caravansérail.
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Ao realizar seu primeiro filme em 1974, durante as treze últimas representações do espetáculo
na Cartoucherie, Ariane, que até então não havia demonstrado interesse em deixar marcas, e muito
menos aceitava a captação pura e simples, oferece aos espectadores um testemunho inédito do trabalho
em curso naquele momento em seu teatro. Mesmo sabendo que sua atitude foi uma concessão, na
verdade Mnouchkine sucumbiu aos pedidos, que vinham de todos os lados, para filmar o espetáculo,
sem dúvida um divisor de águas no teatro francês da segunda metade do século XX.
Durante o dia Ariane cuidava da decupagem5, depois preparava a iluminação, nesse processo
foi importantíssima a participação de Bernard Zitzermann que, segundo a própria encenadora
(MNOUCHKINE, 2001)6, teve que “se virar” para que as intervenções da luz de cinema não
prejudicassem as luzes do espetáculo e, muito menos, fossem percebidas pelo público.
À noite filmavam com três câmeras Super 16, que foram dispostas de maneira a obter
diferentes pontos de vista do espetáculo, segundo ela, um pouco como estivessem filmando um jogo
de futebol. Um típico caso da necessidade de se estar no lugar certo na hora certa filmando “ao vivo”,
passando em meio do público que passeava pela sala e ao qual não se podia incomodar de forma
alguma, mesmo quando Ariane queria estar o mais próximo possível dos atores.
A acústica era satisfatória, o que permitiu que usassem som direto e ainda puderam na
mixagem combinar as diversas trilhas com os efeitos que desejavam. Foram quase cinco meses de
montagem, da qual apenas uns poucos atores participaram. Mnouchkine ressalta a importância da
participação/compreensão do público de cada noite “que sabia que o espetáculo estava sendo filmado
e foi de uma colaboração formidável ” (MNOUCHKINE, 1974).
A primeira verdadeira incursão cinematográfica de Ariane será Molière, com os atores do
Théâtre du Soleil, aos quais se juntaram para a ocasião Jean Dasté, Armand Delcampe, Maurice
Chevit, Roger Planchon, Daniel Mesguich, entre outros.
Como não era, e nem é, uma especialista em Molière, Mnouchkine (1974) conta apenas o que
lhe interessa e, quando não sabe e/ou desconhece algo, inventa. Certa de que se ninguém poderia lhe
contar de outra forma, foi assim que tudo se passou. Talvez, porque como poucos, ela conhecesse a
vida de uma trupe de teatro unida para o melhor e para o pior. Porque sua experiência e o amor pelo
5 Decupagem no sentido francês – découpage, derivado do verbo découper, recortar – significa,
originalmente, o ato de recortar, cortar dando forma. Em cinema e audiovisual, decupagem é o
planejamento da filmagem, a divisão de uma cena em planos e a previsão de como estes planos vão
se ligar uns aos outros através de cortes. No Brasil, especialmente entre os profissionais de televisão,
a palavra decupagem foi adotada com um significado diferente, na verdade oposto ao de qualquer
planejamento de filmagem, uma vez que ele começa depois que a filmagem está concluída.
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teatro, que ela compartilha com Molière, fazem com ela adivinhe o que não está escrito em lugar
algum.
Para além de um retrato de Molière, ou antes, do século 17 visto por um homem de teatro, o
filme mostra também (e isso é tocante) o que é, do que vive uma companhia de teatro, neste caso, o
Théâtre du Soleil. Verdadeiro bálsamo para a trupe que, após a criação de L’Âge d’or está em crise, e
tem necessidade de um importante projeto para se reunificar. Ao lhes oferecer esse filme titanesco,
Mnouchkine deu a si própria e aos seus parceiros de aventura a oportunidade de, ao interpretar
Molière, também falar deles mesmos, dos seus ideais, da sua visão do teatro.
Com Molière, eles expressam o que vivem no cotidiano, o que é a exigência e a felicidade de
amar apaixonadamente o teatro, pesquisar com seu corpo e sua voz a melhor interpretação possível de
um texto, escolher um autor que reflita a sociedade.
Molière vive de e na Corte, mas pintou o que vê e percebe: a hipocrisia da Igreja, o lugar
ocupado pelas mulheres reduzido ao mínimo. O filme mostra claramente que a inclinação do príncipe,
no caso do rei Luís XIV, para promover as artes releva ao mesmo tempo de uma afeição pessoal e de
um instrumento eficaz no desenvolvimento da sua política e, portanto, o seu poder. Ariane
Mnouchkine mostra que o artista jamais pode esquecer o que está subjacente a intervenção do
príncipe, correndo o risco de ser cerceado ou destruído.
No seu caso, para jamais correr o risco de perder sua alma ou sua liberdade, Mnouchkine
baseia seu teatro, num elevado índice de ética e política. E paga um preço muito alto, numa sociedade
na qual, um artista só pode rejeitar a dupla dependência, em relação ao poder e à submissão a leis do
mercado se estiver coberto pelas formas mais tradicionais do capital econômico: dinheiro herdado,
fortuna pessoal, ou juros sobre eventuais rendas (CHARTIER, 2003, p.255), o que, pouco tem a ver
com o seu caso.
Mnouchkine e os seus se encontram, tanto na sua filosofia militante quanto na aventura teatral,
solidária e humana, e é isso que conta neste filme, que, verdade seja dita, acabou com os bocejos em
muitas salas de aula de língua e/ou literatura francesa no mundo e, mais ainda, na própria França.
Afinal, “sabíamos que Ariane Mnouchkine era capaz de quebrar as leis do teatro tradicional, dando
origem às epopéias. Seu Molière demonstra com esplendor que ela tem o mesmo dom com a câmera.”
(ARBOIS-CHARTIER, 1978).
Em 1980, durante a temporada de Méphisto, le Roman d’une carrière, baseado na obra de
Klaus Mann, Bernard Sobel, conhecido germanista, diretor de teatro e de filmes para a televisão, é
convidado por Ariane a realizar o filme do espetáculo. Sua versão de Lulu, a ópera de Alban Berg para
a televisão está na origem do convite de Mnouchkine. Sobel, além dos anos passados à frente do teatro
de Gennevilliers, certamente ficará na memória de muitos como um diretor de filmes de teatro, entre
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os quais destaco Peer Gynt e Lucio Silla de Patrice Chéreau, e acrescento Wozzeck de Alban Berg,
mais uma encenação de Chéreau, para o Teatro Musical de Paris, levada às telas por Sobel.
Méphisto era um chamado à vigilância, ao questionamento, a análise permanente dos
acontecimentos, à honestidade intelectual. Uma crítica violenta as atitudes dogmáticas, as lavagens
cerebrais e ao ser apolítico, afinal se você não se ocupa da política, a política se ocupa de você. O
espetáculo foi uma homenagem a todos aqueles que tiveram força para resistir a toda tentativa de
modificar suas personalidades, recusando-se a adaptá-las às necessidades do Estado.
Em 1988, quando resolve filmar L’Indiade ou l’Inde de leurs rêves de Hélène Cixous, a
escolha de Mnouchkine recairá, uma vez mais, em Bernard Sobel.
O próximo contato com o cinema virá por intermédio de uma encomenda, da Assembléia
Nacional. Em 1989 a França comemora o bi-centenário da Revolução Francesa e recai sobre Ariane a
escolha de fazer um filme tendo como cenários a Assembléia Nacional e a Place de la Concorde e por
tema o nascimento da Declaração dos direitos do homem e os primórdios do parlamentarismo.
Ariane (2005) conta que as filmagens de La nuit miraculeuse acabaram por gerar uma querela
entre ela e o então presidente da Assembléia Nacional Francesa, Laurent Fabius, responsável pela
encomenda do filme. Fabius não podia suportar a idéia de que o filme começasse nos banheiros da
Assembléia Nacional, e fez saber a Ariane que “não se entra na Assembléia Nacional pelos banheiros,
os deputados não vão tolerar isso”.
Em parceria com Hélène Cixous, Ariane assina o roteiro, cuja idéia inicial era reconstituir um
debate sobre os direitos humanos, mas durantes as visitas feitas ao hemiciclo da Assembléia ela
abandona a idéia por demais realista. Para ela tornou-se indispensável visar à universalidade, algo
como transformar a Assembléia Nacional Francesa, ainda que por um momento, numa assembléia do
mundo inteiro diante dos direitos do homem, como queriam na verdade os constituintes.
Ela acaba apostando suas fichas num conto fantástico e humanista, a história de um garoto,
que em meio ao frio, tenta vender alguns bonecos aos passantes, sem sucesso. Enquanto perto dali, um
grupo de artistas discute o destino para alguns bonecos, utilizados numa exposição da Assembléia
Nacional da França, por ocasião do bicentenário da Revolução Francesa (1789-1989).
Os bonecos ganham vida e passam a “reencenar” as calorosas discussões ocorridas durante as
jornadas, o que acaba por atrair cada vez mais pessoas, por diferentes razões. Inicialmente previsto
para o cinema, La Nuit miraculeuse será um filme para a televisão por falta absoluta de meios.
Em 1999 é a vez do filme D’après la Ville parjure, que usará cenas do espetáculo La ville
parjure ou Le Réveil des Erinyes (1999), texto de Hélène Cixous cuja história aborda a morte dos
filhos de uma mulher em decorrência de transfusões de sangue contaminado, fato ocorrido na França
em 1992-93, que ficou conhecido como o “caso do sangue contaminado”, e teve intensa repercussão
na mídia.
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O filme é composto por imagens do espetáculo filmadas por Eric Darmon, e por uma espécie
de documentário realizado por Catherine Vilpoux que utiliza as imagens de Darmon, as quais
acrescenta os registros de arquivo relatando o escândalo do sangue contaminado origem da fábula
épica escrita por Cixous. Para Mnouchkine era um espetáculo que, embora tratando diretamente da
atualidade, tinha ao mesmo tempo uma dimensão mitológica muito forte. Segundo ela “o espetáculo
tinha grandes defeitos, a duração, mas se nós tivéssemos tido mais tempo, se nós tivéssemos sido um
pouco mais econômicos, nos os teríamos eliminado facilmente. Sobre a duração total do espetáculo –
duas partes de três horas cada – eu estimo que haviam quatro horas de bom trabalho”.
(MNOUCHKINE, 2000).
O espetáculo foi um dos raros fracassos do Théâtre du Soleil no quesito público, criado em
1994 ele será tirado de cartaz e só retornará aos palcos por insistência de Mnouchkine, no festival de
Avignon em 1995, em alternância com Tartufo, criado de afogadilho para salvar a companhia das
dívidas geradas pelo insucesso de La Ville parjure.
Vale registrar que, somente quatro anos depois da estréia do espetáculo, o filme foi realizado,
sendo que, antes dele, em 1996, Catherine Vilpoux e Éric Darmon “em harmonia” com Ariane
Mnouchkine realizam Au Soleil même la nuit.
Com Au Soleil même la nuit (1996/1997) Mnouchkine inaugura uma nova fase na sua relação
com o vídeo e a imagem cinematográfica, a partir de agora o teatro passa a ser criado em non-stop sob
o olhar de uma câmera.
E, nesse caso, a câmera de Éric Darmon captura o Soleil, demonstrando estar em perfeita
harmonia/cumplicidade com a companhia. Foram 524 horas de filmagens para um filme de 180
minutos. Graças à montagem de Catherine Vilpoux, Au Soleil même la nuit marca época nas relações
do Soleil com as imagens do teatro.
Não se fala apenas da preparação do espetáculo, de ensaios, mas da vida da trupe, os membros
do grupo, suas relações, as dúvidas sobre o jogo do ator. É como um livro não escrito pela chefe da
trupe. Béatrice Picon-Vallin chama a atenção para o fato de Mnouchkine se dizer incapaz de escrever
e, no entanto ter conseguido escrever de fato, a partir do material Molière, dois filmes – Molière e Au
Soleil même la nuit – que se assemelham a livros de caráter testamentário sobre o papel e o lugar do
teatro, a vida de trupe e a arte do ator.
O filme tem a duração de uma representação teatral, começa com as pancadas de Molière,
termina com os aplausos e o agradecimento ao público, e o que ele apresenta é a encenação daquilo
que o público de teatro não vê e que o cinema construiu para ele segundo o ritual mesmo do
espetáculo.
Para Brigitte Salino, crítica do jornal Le Monde este filme
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é excepcional por diversos motivos. É preciso amar aqueles que filmamos
para que possamos nos apoderar assim de suas emoções, de suas dúvidas,
suas angústias, seus sucessos, mas também seus fracassos de homens e
mulheres as voltas com o nascimento de um espetáculo [...]. A câmera não é
apenas uma testemunha, ela “assiste” em total solidariedade, o entusiasmo,
o desânimo e o cansaço dos atores, as dúvidas da encenadora, até a vertigem
provocada por alguns momentos de puro prazer teatral (SALINO, 1997).
Esse filme nos permitiu, ao contrário da peça, porque o teatro é efêmero, inscrito na areia,
guardar as marcas do que resta habitualmente secreto: as hesitações, a longa paciência, tudo o que é
necessário de trabalho humilde para que um espetáculo nasça7.
Inegavelmente o olhar de Éric Darmon sob o mundo de Mnouchkine é extraordinário, ele
acentua a força da trupe, a forma do jogo expressionista, na linhagem direta do cinema mudo, que
brilha aqui com todo seu esplendor. Sem falar nas cenas antológicas como a discussão na cozinha do
Théâtre du Soleil com Bernard Faivre d’Arcier, então diretor do Festival de Avignon, e a discussão
hilária de Ariane com Myriam Azencot, ao mesmo tempo ríspida e afetiva, por conta um papel
desejado pela atriz e que não o que lhe foi dado por Mnouchkine.
Uma cena genial: a diretora, cansada e sem saber que rumo dar ao seu Tartufo, encontra uma
solução genial, suspende os ensaios e sugere a seus atores que partam rumo à militância dizendo-lhes
explicitamente “vamos militar”.
Em 2001 Ariane Mnouchkine dirige o filme baseado em Tambours su la digue, espetáculo de
1999 que narra a história de uma comunidade ameaçada pelo rompimento de um dique. Realizado na
Cartoucherie, por uma questão orçamentária, afinal, um filme de teatro é um filme pobre por definição
nesse quesito, entretanto, o fato de Mnouchkine optar por filmar na sua própria casa, transformando a
Cartoucherie em estúdio e ao mesmo tempo um lugar de vida para a trupe e para a turma do cinema,
acrescenta um novo ingrediente ao trabalho, um companheirismo estimulante com resultados
excelentes.
Mnouchkine (2001) numa mensagem destinada aos membros do grupo em janeiro de 2001
dizia não querer “fazer uma simples captação de um espetáculo do qual a beleza, eu diria quase o
milagre, se deve ao fato de que sua teatralidade é tão extrema que ela é quase inatingível de outra
7 Dossiê de imprensa do filme Au Soleil même la nuit. Acervo do Théâtre du Soleil.
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maneira que não o olhar imaginativo do espectador. Então, eu propus um outro ponto de vista. Que é
este aqui: como atingir o inatingível?”
Se, enquanto chefe de trupe o único luxo de Mnouchkine é o tempo de criação dos seus
espetáculos, no cinema tempo é sinônimo de dinheiro, e, por vezes, ela precisa ceder: “para nossos
filmes de teatro as dificuldades são enormes, devo filmar oito minutos por dia. Não era o caso para
Molière onde tínhamos o ritmo do cinema ‘normal’: dois a três minutos por dia.” Acrescente-se a isso
o problema do espaço, os filmes são realizados na Cartoucherie de Vincennes e são inúmeras as
acrobacias na gestão desses dois fatores, Mnouchkine prova diariamente a possibilidade de trabalhar
em liberdade mesmo com as pressões e fatores externos ao trabalho de criação, pois há muito ela tem o
dom de transformar as limitações financeiras em desafios à imaginação.
O filme de Tambours sur la digue, mais do que a síntese de uma longa reflexão, de uma
perspectiva inédita sobre a maneira de filmar uma peça de teatro, é um filme que:
[...] queria juntar dois heróis que, um dia, estiveram unidos e mostrar os
traços de seu parentesco. Ele queria se situar à beira do rio no qual eles vêm
ao encontro um do outro. Todos dois, teatro e cinema, poderiam se
contemplar na amizade emocionante de sua memória comum, e sentir como
cada um tem no outro uma parte de sua potência mágica.” (CIXOUS, [200?]).
Com a bagagem de quem encenou todos os espetáculos da companhia, Mnouchkine rejeita a
hipocrisia e diz que chegou a um método que lhe permite ao menos tatear os mistérios com os quais se
depara a cada montagem. Observa, porém, que apropriar-se de um método nas artes cênicas é como
“atravessar as cataratas do Niágara sobre uma corda, e de olhos fechados”. “De maneira simbólica,
resume o risco ao dizer que “o teatro é uma questão de vida ou morte.” (MNOUCHKINE, 2002).
Um artigo de Béatrice Picon-Vallin ([200-?]), para o encarte do DVD de Tambours sur la
digue, mostra que o olhar desse “estrangeiro próximo” que é o cinema, considerando a cena de hoje
dentro das suas manifestações concretas pode também ser uma fonte de emoção. Se o filme de teatro
contrai empréstimos deste último a partir do princípio de confronto que o funda, se ele transfere o
diálogo palco/sala em diálogo teatro/cinema, ele pode ser o objeto de um confronto dialético e fecundo
entre dois autores, duas equipes, ou duas artes, apesar das dificuldades em organizar esta confrontação,
geri-la, atingi-la. Pode tornar-se uma obra de arte completa, testemunha, ao mesmo tempo, de uma
outra obra de arte.
Perecível, o espetáculo é irreprodutível na sua iminência, na necessidade que imediato que ele
comporta. Como qualquer objeto, ele é diferente de sua imagem... Filmar o teatro torna necessário
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encontrar para cada espetáculo um dispositivo visual específico que refletirá o desempenho, tendo
como objetivo criar um novo objeto que participe das duas artes de uma só vez.
Picon-Vallin afirma que trata-se de repensar a obra cênica para o cinema, e este ato pode dizer
respeito a uma tentativa de tradução de uma língua, com os seus códigos, suas leis, a um outro; de
modo que a passagem da cena à tela torne o teatro acessível a um maior número de espectadores que
não necessariamente partilham da cultura daqueles que assistiram à peça.
Com Tambours sur la digue, o objetivo é diferente: é a representação – sem a presença do
público, no entanto – que a câmera olha. Para espetáculo limite, filme extremo, radical. A decisão de
filmar esse espetáculo (e não fazer uma simples captação de lembrança) renovava em outro nível a
audácia da qual a trupe e a diretora tinham demonstrado durante os longos meses de gestação da obra e
os riscos assumidos coletivamente. Não estivesse a arte diretamente relacionada ao risco, a audácia e a
liberdade infinita que flui das limitações conhecidas.
Em vez de tentar “fazer filmes” e, assim, suavizar o “jogo marionete” dos atores, ela decide
acentuá-lo. Acentuando o teatral para melhor filmá-lo. Por conseguinte, solicita aos atores que
interpretam as marionetes que não usem no cinema suas vozes de palco, que tinham encontrado para a
peça, mas, de mexer fora de sincronismo “seus” lábios de madeira, enquanto outros dizem o texto,
assim Renata Ramos-Maza disse o texto da Sra. Li, a vendedora de nouilles, em vez de Juliana
Carneiro da Cunha, que interpreta o personagem.
Curiosamente, ela retoma em parte, algumas experiências feitas nos ensaios nas quais os
atores-marionetes falavam resmungando indistintamente: ela grava em segredo a história da criação
complexa do espetáculo no coração do filme que está sendo feito e assim dá aos espectadores
entusiastas a vontade de rever um espetáculo que os deslumbrou e tocou, e àqueles que nunca mais
poderão vê-lo uma idéia da experiência que as representações permitiam viver.
Finalmente, em 2003, ela monta Le Dernier caravansérail do qual ela fará um filme que
estréia nos cinemas em Paris em novembro de 2006. Não é uma ousadia dizer que este espetáculo, de
certa forma, nasceu do cinema, pois suas origens datam das filmagens de Tambours sur la digue,
quando Ariane sentiu novamente o gosto dos travellings, com os olhos deslizando pela câmera.
Charles-Henri Bradier, numa entrevista concedida a Françoise Lauwaert, dizia que se um dia
eles filmassem Le Dernier caravansérail, seria necessário devolver ao cinema todos os instrumentos
dele “roubados”: a multiplicidade de planos, o enquadramento. Como faremos virar a câmera? Será a
câmera que deverá rodar em volta dos palcos móveis? Ou serão os palcos móveis a executar o
movimento? Em frente da câmera fixa? Será que devemos deixar a câmera olhar de maneira mais
objetiva o conjunto de uma cena que já está enquadrada? Ou será que poderemos enquadrá-la ainda
mais?
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Na verdade, para cantar esses exílios Ariane Mnouchkine e sua equipe “convocaram, cruzaram
todas as espécies de formas teatrais e cinematográficas, do drama realista ao lirismo e a poesia
passando pela comédia e pelo documentário” (DEFFONTAINES, 2007).
Na nota de intenção do filme Ariane explica que Le Dernier Caravansérail (Odyssées) já
existe, é um espetáculo de teatro, criado em 2003 pelo Théâtre du Soleil, composto por uma série de
histórias, de migalhas de destinos, de parcelas de vidas de homens e mulheres. Aqueles a quem
chamamos de refugiados, clandestinos, migrantes, e que, entre eles, se chamam mais nobremente de
viajantes. É um oceano de odisséias descamadas pelo tempo, heróicas ou banais, sempre dramáticas. E
diz que Le Dernier Caravansérail (Odyssées) queria ser agora um filme, um verdadeiro filme. De
cinema.
Segundo ela, não se trata de realizar uma simples captação, mas de se lançar em condições de
viver uma nova aventura artística e, graças ao cinema, gozar do benefício de aprofundar ainda mais o
material original que é quase inesgotável. Dando assim possibilidade ao teatro de reforçar a potência
de seu testemunho e de exorcizar o efêmero. E, sobretudo, de cumprir a promessa feita àqueles dos
quais contamos as histórias: devolvendo-lhes a palavra.
Deixar uma marca daqueles que não a deixam jamais, de quem não escutamos nem gritos, nem
murmúrios. Aqueles a quem sempre calamos. O material que moldou Le Dernier Caravansérail é uma
mistura de lembranças, de relatos, escutados, ouvidos, e recolhidos ao longo de uma enquete, de uma
busca que eu fiz junto de viajantes afegãos, curdos, ou iranianos, encontrados quando de suas escalas
européias, indonésias, neozelandesas, (Sangatte, Douvres, Lombock) ou nas suas prisões australianas
(Villawood).
O espetáculo se divide em duas partes, a primeira Le Fleuve Cruel conta as partidas, os
êxodos. A segunda, Origines et Destins, revela o porquê dessas partidas, desses êxodos.
Alguns fugitivos caminham ao longo das estradas que sulcam uma Ásia que poderíamos qualificar de
mediana, e atravessam com dificuldade, uma enorme quantidade de fronteiras naturais por vezes: rios,
montanhas, lagos, mares; outras vezes menos naturais: grandes cicatrizes políticas talhadas pelo
Ocidente a golpes de uma espada cega, e grandes tiros de canhão nos impérios muito antigos. Os mais
audaciosos, os mais sortudos, chegam enfim na próspera Europa. Vivos.
Outros almejam um outro pedaço do mundo. Vão atravessar a Índia, o sudeste asiático, para
chegar à Indonésia, de lá, atravessarão o mar do Timor, para tentar atingir as margens tão
ciumentamente guardadas da Austrália.
Cada quadro entra com seu próprio cenário, seus personagens, sua independência, por
intermédio de palcos móveis empurrados pelos próprios atores. Cada palco móvel que se desloca é
como um fragmento do mundo e, a sucessão de suas aparições termina por povoar a cena transformada
em planisfério. “O mundo é um palco” nos disse e redisse o Bardo!
A disciplina de movimento desses praticáveis montados sobre rodas, a exigência do quadro
estreito que eles induzem e a multiplicidade de planos que eles permitem, a narração liberada de sua
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exigência cronológica, a infinidade de línguas utilizadas e as possibilidades infinitas de personagens
com destinos que se cruzam, são ferramentas que o teatro tomou emprestado, furtou do cinema (de
todos os cinemas, ficção ou documentário), ferramentas que ele poliu com toda sua potência poética e
que se trata agora de devolver ao cinema.
Do cinema, Mnouchkine também empregou o recurso do flashback. Uma cena conduz a outra
que surge como que da memória de uma personagem. Um palco se oculta ao ser abandonado pelos
refletores e parte para a coxia, enquanto um outro chega. Os cenários ficam um pouco e se vão,
carregando suas personagens, tendo como acompanhamento a música de Jean-Jacques Lemêtre. De
que são feitas essas histórias? Dos depoimentos desses seres a quem tiramos as vozes.
Nada justificaria o espetáculo se, além da banalidade aparente desse cotidiano, os atores do
Soleil não deixassem surgir, pouco a pouco, toda a riqueza, as alegrias e os infortúnios da vida
apresentados diante de todos. Nenhum recurso ao espetacular. Os praticáveis móveis, em cima dos
quais as histórias se desenrolam, são manipulados a olhos vistos, deslizam e giram como que sobre um
fio de água, semelhante ao fio da vida.
A qualidade do projeto está intimamente ligada à capacidade de Mnouchkine e sua trupe de
transformar esse material de base em verdadeira fábula teatral e num espetáculo de soberbo
desdobramento estético, resultado – em parte – da extraordinária intuição poética de fazer evoluir os
atores sobre pequenos palcos de madeira conduzidos por outros atores.
Uma das coisas que mais impressiona no filme de Le dernier caravansérail é ver que
Mnouchkine investe num novo estilo, como em Tambours sur la digue, trata-se realmente de recriar o
espetáculo ao transportá-lo para a tela, e ela consegue isso de forma brilhante, pois mesmo que
vejamos as manhas do teatro, está claro que o se fez ali, foi cinema.
No cinema há que se mostrar uma imagem, no teatro pode-se sugeri-la, o que leva
Mnouchkine (2006) a afirmar que “seria necessário poder medir a atividade cerebral do espectador de
teatro. O realizador e os atores devem produzir a encenação que faz esse espectador. É necessário que
o filme seja diferente para que o espectador de cinema experimente a mesma sensação, mesmo se os
dois tipos de emoção não são idênticas.”
Uma das coisas que chama atenção no filme são os enquadramentos provocados pelas
cabines/palcos móveis, no teatro eles eram responsáveis por um efeito cinematográfico enquanto no
filme eles reduzem o espaço vital dos personagens, reduzindo ou dividindo a tela. Em compensação, o
filme permite ver com mais detalhes o trabalho dos atores, as transformações/alterações/sutilezas do
jogo, os figurinos, a maquiagem, o impacto do aprendizado das inúmeras línguas faladas pelos
“outros”.
Ariane Mnouchkine (2006) demonstra aqui, mais uma vez, seu dom de transformar a falta de
recursos financeiros em desafios à imaginação. O que era impossível de ser mostrado diretamente
como imagem, como a multidão, a dimensão de uma paisagem, a profundidade de um campo, pela
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impossibilidade de filmá-los em internas, aparece de outra forma. Por meio de um signo, uma
referência visual – um cartaz, o luar de uma televisão ou da trilha sonora. Elementos que permitem
conservar na tela os artifícios e as convenções sem perder a energia e o lirismo do palco, tendo como
prêmio extra uma espécie de sensualidade pictural própria do cinema.
Concebido para guardar a memória de um espetáculo, Le Dernier caravansérail/filme marca
na história do Théâtre du Soleil uma nova etapa na maneira de abordar as histórias e os personagens,
entre documento e ficção, de repensar os espaços e o estreito parentesco entre teatro e cinema. Mais
ainda do que Tambours sur la digue, ele é um filme na acepção maior do termo, que tem como
objetivos e por tema os mesmos do espetáculo mas também, subterraneamente o diálogo entre as duas
artes. Algo que Mnouchkine (2006) reconhece e confirma quando diz “nossa ambição era que ele
tivesse as duas emoções.”
O fio que liga Ariane ao cinema de suas origens se exprime tanto ao nível das técnicas
utilizadas, como também, ao nível das referências diretas. Uma das cenas do espetáculo se intitula Os
cinéfilos e apresenta o cinema como alvo do obscurantismo dos talibãs. Nascida de duas
improvisações, uma sobre os livros e o relato de um afegão que tinha uma bíblia em sua casa,
descoberta por um fundamentalista por meio de uma denúncia; e a outra, inspirada pelo documentário
sobre a cinemateca de Cabul onde as pessoas salvaram filmes enterrando-os ou escondendo-os dentro
dos muros.
A cena se passa no Afeganistão e mostra um pai e sua filha assistindo um filme – Le Kid
(1921) de Charles Chaplin. Os espectadores vêem apenas a luz das imagens refletida nos rostos
encantados dos dois, entretanto, ouvem a música célebre do filme, o que permite, a alguns, identificálo. Justo nesse momento os talibãs invadem a casa, Azizulah tem a esperança de transformá-los, de
comovê-los e os convida a compartilhar a beleza do filme incapaz de imaginar o tamanho da cegueira
de seus carrascos e sua infinita ignorância. Azizulah, cinéfilo e antigo projecionista de um velho
cinema em desuso, é brutalmente assassinado com uma bala à queima roupa. Não satisfeitos, os talibãs
queimam os filmes e os cartazes que cobriam o muro, entre os quais destaca-se o de Roma cidade
aberta, e, com uma bala, abatem o “diabólico projetor”, cujas bobinas, como que a desafiar a cretinice,
continuam a funcionar apesar do massacre.
Poucos instantes antes da chegada dos talibãs, um vizinho trouxera para Azizulah uma grande
e pesada bobina contendo La Nuit des chasseurs (1955) de Charles Laughton, no original The Night of
the hunter, em português O Mensageiro do diabo. Ao ouvir o nome do filme, aperta a bobina contra
seu peito e, numa demonstração clara da paixão que nutre pela sétima arte, diz o elenco do filme e,
ainda evoca uma passagem muito conhecida sobre o bem e o mal8.
8 La Nuit des chasseurs traz à tona, diversos dos medos da infância, tais como medo de perder a
família, medo de pessoas estranhas, de se ver sozinho no mundo, sendo também uma mistura entre o
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Para Mnouchkine La Nuit des chasseurs é um dos vinte maiores filmes de toda a história do
cinema, não por acaso a escolha de incluí-lo na improvisação de seus atores partiu dela, e normal que
essa escolha tenha recaído sobre dois filmes cults, numa cena, que para ela é um exemplo da barbárie
cultural dos fundamentalistas de Cabul. Como que para lembrar que são os mesmos que pulverizaram,
em fevereiro de 2001, os Budas de Bamyan, que há cerca de 1.400 anos estavam incrustados nas
falésias vermelhas da região. Os mesmos que decepam os seios das mulheres sem véus, em
verdadeiros agentes de uma violência cretina, instrumentos de uma bestialidade ancestral, destruindo
não apenas os homens, mas também o espírito, dilacerando as obras e assassinando os criadores. Os
talibãs “vêm aumentar as fileiras de todos os praticantes de auto-de-fé. Como os pássaros, as pipas, e o
riso das mulheres e das crianças, o cinema é proibido no Afeganistão. É um inimigo muito poderoso,
muito perigoso, aos olhos dos talibãs” (MNOUCHKINE, 2006)
Sur la route (Bosnie-Herzégovine), outra cena do mesmo espetáculo, ao ser transportada para
as telas, faz referência direta ao mesmo La Nuit des chasseurs. Se no palco, essa que é uma das cenas
leves do espetáculo, mostra o afegão Kokar, sua mulher Reena e um companheiro de estrada Kourosh,
alimentados por um ovo de codorna e antigos provérbios, se passa sobre um único – e minúsculo
praticável – sobre o qual foi instalado um poste de luz, no filme ela foi inteiramente ambientada numa
granja.
Mas não será a última cena de Le Dernier caravansérail a utilizar a referência direta aos
filmes, pois, Ariane recorrerá a esse recurso em L’Histoire caucasienne (Les pommes de terre) –
segunda das três cenas que compõe essa lenda da Géorgia, na qual Abaï, um idiota osseto, decide
ajudar Assia, jovem camponesa, a atravessar a fronteira com a Turquia, para reencontrar seu irmão
mais velho na Alemanha. Em meio a uma estrada coberta de neve eles se deparam com um velho
curtidor bêbado, espécie de guardião das portas do vale, e propõem que divida com ele as batatas que
cozinha na imensa e velha panela. Diante da recusa do velho, Abaï numa demonstração do seu
entusiasmo pela jovem Assia enfia suas mãos na água fervente para pescar as batatas do “reconforto”.
A sequência fílmica de L’Histoire caucasienne (Les pommes de terre) foi baseada numa cena
do filme de Howard Hawaks, La Captive aux yeux clairs (1955), no original The Big Sky e, em
português, O Rio da aventura. Mais do que um simples western o filme de Hawaks procurava salientar
o aspecto humano do romance e não criar personagens estereotipados, com predomínio da placidez, do
sentido do pitoresco e mais ainda do grandioso, características do diretor, que cria sequências bastante
bonitas, como a que inspira o beijo final da cena de L’Histoire caucasienne.
bem e o mal. O reverendo Harry Powell, cuja interpretação de Robert Mitchum é responsável em
grande parte pelo sucesso do filme, conta uma história explicando que sempre existe o lado bom e o
lado mau, usando suas mãos decoradas com as palavras “LOVE” e “HATE”, numa jogada primorosa
do roteirista do filme.
96
Em junho de 2005 Mnouchkine parte com cerca de 50 membros da trupe para instalar um
ateliê na sede da Fondation pour la culture et la société civile no centro de Cabul, para ela uma
ocasião extraordinária de fazer algo com as pessoas desse país, no qual estivera pela primeira vez em
1964. A idéia era de dividir com um grupo local a experiência artística e técnica da companhia. Graças
à generosidade de muitos teatros da França o grupo pode levar em aviões da força aérea francesa
máquinas de costura, cenários, etc...
Durante três semanas, entre 16 de junho e 6 de julho, num país destruído por duas décadas de
guerra, e ainda sob a proteção de uma força internacional de paz, uma centena de jovens afegãos, dos
quais a idade não ultrapassa 25 anos seguiram vários ateliês com os atores do Théâtre du Soleil.
Oito horas de trabalho por dia em busca de “alguns segundos de teatro! E porque não alguns
minutos”9 como soprava para eles uma Mnouchkine (2005) mais do que nunca engajada, desta vez
pronta a ajudar a reescrever a história do teatro afegão.
Essa humilde missão deu origem, em meio às ruínas e as rosas de um jardim, de uma jovem
companhia de teatro afegã, mista e corajosa, o Theatreh Aftab, um pequeno Soleil da Ásia central.
No mês de agosto, Shaghayegh Beheshti e Maurice Durozier, atores do Théâtre du Soleil,
voltam a Cabul para ajudar os jovens afegãos a montar seu primeiro espetáculo, Romeu e Julieta de
Shakespeare. O espetáculo será apresentado em Cabul e Dushambe, capital no Tajikistão.
Não satisfeita Mnouchkine recebe no dia 4 de fevereiro de 2006, os 20 atores do Theatreh
Aftab para uma temporada de aprendizado na Cartoucherie de Vincennes, em parte financiada pelo
público fiel do Théâtre du Soleil.
O filme, Un Soleil à Kaboul...ou plutôt deux, realizado por Duccio Bellugi Vannuccini,
Philippe Chevallier e Sérgio Canto Sabido, membros do Théâtre du Soleil, é uma verdadeira viagem
de Paris a Cabul, e permite aos espectadores seguir o processo criativo orquestrado por Mnouchkine e
dividido entre os atores afegãos e os atores do Théâtre du Soleil.
Entre dezembro de 2006 e abril de 2007, o Théâtre du Soleil apresentou Les Éphémères na
Cartoucherie de Vincennes, antes de iniciar uma turnê que chegaria à América Latina e traria pela
primeira vez a mítica companhia ao Brasil, com um espetáculo magistral, fruto de um ano de trabalho
em improvisações dos atores, que revelava ao público uma seleção de episódios vividos, sonhados ou
imaginados pelos atores.
Cenas da vida familiar normal, lutos e separações, amor e esperança, “instantes que nos
fizeram” como dizia Mnouchkine (2006), desfilavam diante dos espectadores sobre pequenos palcos
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montados sobre rodas conduzidos por dois ou três atores, que não raro atuavam na cena seguinte. O
espetáculo, dividido em duas apresentações de três horas e quinze minutos cada, é um trabalho sobre o
“concreto das nossas vidas”, e aposta na inevitável semelhança entre aqueles que o conceberam e
aqueles que o assistem.
Uma cena conduz a outra que surge como que da memória de uma personagem. Como álbuns
que se folheiam, histórias guardadas na lembrança, fragmentos de memória, perguntas que ficaram
sem respostas. Tudo se dá através da família, em especial da figura materna, dos irmãos, dos
ancestrais, da reconciliação com os filhos. São histórias, muitas delas de lembranças da infância com
crianças em cena. São pequenos mundos, como anuncia o programa.
Mesmo os que achavam ingênuos esses pedaços de vida, não conseguiam negar a genialidade
da encenadora ao sublimá-los pela forma da representação e pelo jogo da trupe. Genial a idéia de
avançar e recuar na área de representação central os palcos móveis e desenhando sucessivos quadros.
A primeira parte começa com a venda de uma casa. Uma filha vende a casa da mãe que
acabou de morrer; um homem que acaba de ter o primeiro filho, uma menina, a compra. E a história se
conclui em uma outra família, com uma mãe inglesa, prestes a abandonar os seus numa noite de Natal
a fim de seguir seu amante, tirando do marido a filha mais nova, diante da mais velha em grande
sofrimento.
A cenografia se impõe de imediato: um dispositivo bi-frontal, os palcos móveis do Le Dernier
caravansérail que em Les Éphémères serão quase sempre circulares e vão girar em torno de si num
movimento lento, quase coreográfico, pilotados por atores/empurradores cuja “agilidade de
cameramen propõem travellings circulares, fades e flash backs” (COELHO, 2007).
O dispositivo móvel e modulável, os ritmos e os movimentos cinematográficos (plano
sequência, plano fixo, plano próximo) conduzem cada espectador a dois processos perceptivos: a visão
e a rememoração, pois trazem com eles as inumeráveis vidas anônimas ou identificadas dos quais
foram testemunhos.
Em Les Éphémères, mais uma vez as reminiscências cinematográficas de Mnouchkine estão
em cena. O 11º episódio da primeira coletânea do espetáculo atende pelo sugestivo nome de King
Kong – referência mais que direta ao filme King Kong de Merian C. Cooper de 1933. Já o último
episódio da segunda coletânea, Um lugar maravilhoso é marcado pela exibição de Stagecoach (1939)
– No Tempo das diligências – de John Ford.
King Kong é a continuação do episódio O Aniversário de Sandra, uma inglesa de meia idade,
com cabelos curtos, uma saia longa, que prepara sua festa de aniversário: um só prato, um bolo, uma
taça, uma garrafa de champagne. Sandra é um transexual. Ouve um ruído na porta. Levanta-se
elegantemente e flagra as crianças quando abre a porta. Todas fogem, menos uma menina loirinha.
Sandra deixa a porta aberta onde a menina se encosta e volta para o sofá. Convida a vizinha para
entrar. A menina se aproxima e senta-se, ao lado do bolo de morango, cheio de velinhas apagadas.
Toca o telefone. É a mãe da inglesa. Falam sobre as dificuldades da vida. Enquanto isso a menininha
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pega um fósforo e acende uma a uma as velas do bolo. A inglesa pede licença à mãe para poder apagar
as velinhas. Corta um grande pedaço do bolo. Real, de farinha, chocolate e morangos frescos. A
menina, sempre em silêncio começa a comer. A aniversariante lhe oferece um sofá mais cômodo, em
frente à televisão e juntas assistem um filme em branco e preto. O filme é King Kong.
Uma das minhas cenas preferidas – praticamente final do espetáculo – é o 29º episódio da
segunda coletânea, Um lugar maravilhoso, quando, num aparente momento de sossego em meio à
Segunda guerra, uma família judia está reunida em volta de uma mesa, usando um lençol como tela,
assistindo ao clássico de John Ford No Tempo das diligências, com certeza, um dos maiores westerns
já produzidos por Hollywood. Com uma excelente trilha sonora e uma ótima fotografia, o filme tem
ainda em seu elenco, um dos seus pontos fortes. Thomas Mitchell – Oscar de ator coadjuvante em
1940 – , no papel do médico alcoólatra, está insuperável.
Mathurin (Maurice Durozier, Nora Altunian (Juliana Carneiro da Cunha), Alexeï Menuhin
(Andreas Simmas), Tatiana Menuhin (Renata Ramos-Maza), a impagável Morgane (Camille
Grandville), a pequena Aline (Galatea Kraghede-Bellugi) e o oficial alemão Klaus Pfeffer (Duccio
Bellugi-Vannuccini) fazem dessa cena uma das mais belas do espetáculo.
Uma homenagem/referência à família de Ariane Mnouchkine, sendo o casal Menuhin seus
próprios pais e ela a pequena Aline? Talvez. Algumas frases ditas durante a exibição do filme por
Nora, personagem de Juliana Carneiro da Cunha, esclarecem que a cópia do filme chegou até Alexeï
Menuhin graças a um tio – Nahum – que trabalha num cinema no Brooklyn, em Nova Iorque.
Coincidências? Não creio.
A versão cinematográfica de Les Éphémères foi realizada no Palais des spectacles de SaintEtienne nos dias 31 de maio e 1º de junho de 2008, e exibida no canal ARTE, nas manhãs dos
domingos 3, 10, 17 e 24 de maio. Les Éphémères encerrará sua carreira em julho próximo, quando o
Théâtre du Soleil se apresentará no festival do Lincoln Center em Nova Iorque, de 9 a 19 de julho, no
Park Avenue Armory.
3 O cinema como ferramenta de trabalho
No final dos anos 70, uma frase polêmica de Éric Rohmer (2008) expunha claramente as
intrigas que separavam teatro e cinema 10, entretanto, pode-se dizer que desde a criação do cinema,
ele e o teatro se interpelam.
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Inúmeros são os estudos a esse respeito, quase sempre baseados no uso do cinema e da
imagem nos espetáculos teatrais, ou, no uso do teatro no cinema. No caso específico do Théâtre du
Soleil, Béatrice Picon-Vallin há anos pesquisa as intersecções entre palco e tela na obra
mnouchkiniana, partindo sempre do princípio que ao filmar o espetáculo encenado, mais do que
questionar a diferença entre as duas linguagens, deve-se levar em conta a diversidade dos desafios
enfrentados.
Mnouchkine, apaixonada pelo cinema, pela pintura, pelas artes visuais, faz um teatro
visualmente belo, muitas das cenas vistas nos espetáculos do Théâtre du Soleil restam em nossas
mentes como verdadeiros quadros. Mas, essa influência do cinema é vista, do nosso ponto de vista, de
uns anos para cá, existe, sobretudo, na preparação dos espetáculos. Durante o processo criativo às
imagens cinematográficas vêm se juntar a fotografia e a pintura.
A importância da fotografia na trajetória de Mnouchkine pode ser medida pela constante
presença de duas fotógrafas – Martine Franck e Michèle Laurent – na companhia e pelo fato de que só
elas, e apenas elas, podem fotografar o processo criativo do grupo. Processo esse que, em diversas
etapas, passa pela pintura.
Numa entrevista bônus do DVD de Molière Ariane confessa que recorreu e muito à pintura
das escolas holandesa e flamenca do século XVII, durante a pesquisa para o filme. Isso não significa
que ela buscasse algo à holandesa ou à flamenca, mas sim que buscava uma fonte de inspiração, muito
mais do que encontrar uma simples moldura para enquadrar o objeto de sua busca. Mesmo assim, ela
reconhece que sua inspiração maior vem do que se passa no estúdio ou no palco, “um filme ou um
espetáculo são como uma viagem num barco à vela, a gente prepara tudo com muito cuidado, a gente
entra no barco, iça a vela, mas tudo depende dos ventos do dia.” (MNOUCHKINE, 2001).
A pintura funciona como instrumento de pesquisa para os atores, por permitir um contato com
determinados elementos, por exemplo, a postura corporal de uma época, os figurinos e com o vestir
esse figurino, pois se o hábito não faz o monge, com certeza um ator não se comporta da mesma
maneira quando veste um jeans ou um uniforme de soldado de Napoleão.
A exibição de filmes durante a criação dos espetáculos do Théâtre du Soleil é uma constante.
Ariane “alimenta” o espírito e a imaginação de seus atores com filmes nos quais eles possam ver
representar os atores. Segundo Charles-Henri Bradier, assistente de Mnouchkine há mais de dez anos
no Soleil, Ariane sempre fala e usa o cinema, pelo simples fato de que, para ela, alguns filmes são
essenciais, sendo tão importantes quanto algumas das grandes obras literárias.
O trabalho começa sempre com um filme de Charles Chaplin. Para Mnouchkine, Chaplin é,
sem dúvida, um mestre. Todo ator de teatro deveria buscar conhecer sua obra e ser capaz de utilizá-la
100
como referência em seu trabalho diário. Impressionada pela sua versatilidade, ela aconselha olhá-lo
sempre, buscando extrair de cada exibição de seus filmes uma nova descoberta.
Aliás, o cinema mudo está sempre presente nas conversas de Ariane, durante os estágios, os
ensaios, ela chama atenção para as pausas, a imobilidade, o olhar. Uma de suas atrizes-referência é
originária desse cinema, Lilian Gish.
E, se todos conhecem o interesse de Mnouchkine pelos teatros asiáticos, poucos sabem o lugar
ocupado pelo cinema japonês em sua vida, por depois dos atores do cinema mudo, ela recomenda os
atores de Mizoguchi e de Kurosawa.
No caso de Le Dernier caravansérail (2006) os atores viram muitos documentários, filmes
para televisão e fotos. Em particular Clandestins, le voyage infernal, dirigido por Jean-Paul Mudry
para a TSR (Télévision Suisse Romande), cuja produção data de 2001. O filme acabou sendo uma das
referências do espetáculo.
O cinema ganhou espaço na última década no Théâtre du Soleil, particularmente depois que
Mnouchkine, após anos trabalhando com os clássicos – os gregos, Shakespeare, Molière – ou em
parceria com Hélène Cixous, optou pela aparente retomada da criação coletiva. Aparente porque dava
a impressão de estar retomando os anos 70, quando a trupe se estabeleceu como um ícone da “criação
coletiva”. Mera impressão. O que se viu nos espetáculos mais recentes do Théâtre du Soleil – Le
dernier caravansérail e Les Éphémères – foi um método de trabalho e de organização inédito.
Essa observação foi extremamente bem feita por Tackels (2007) num artigo publicado na
revista Mouvement. Segundo Tackels o Soleil passou a trabalhar com documentos da vida a fim de
tornar possível o teatro. Como se a fábula pura não pudesse mais ser apresentada ao mundo, pois ele
não mais estaria a sua altura, a sua intensidade de injustiça, de violência e de traição.
O autor reforça a idéia de que o Théâtre du Soleil é, sem dúvida, um dos lugares onde mais se
acredita no teatro, observando, porém, a laicidade dessa crença. Além disso, o Soleil é um dos raros
lugares que postulam que o se faz no palco produz efeitos, imediatos, diretos, sobre aqueles que
assistem.
Não é novidade que Mnouchkine sempre viu o teatro como um vetor, mesmo modesto, de
transformação da vida, de toda vida. Para ela “o teatro nos ajuda a perceber que o que se passa na
atualidade não é tão somente midiático, mas também histórico. O teatro ajuda a nos posicionar na
história. “[...] eu tenho fé no fato de que o teatro, a longo prazo, pode agir como um instrumento a
serviço de certas causas” (MNOUCHKINE, 2006).
Esta consciência extrema da vocação do teatro contribui para mexer muitas linhas, começando
pelas linhas estéticas. Comparando o tratamento dado a Shakespeare no Théâtre du Soleil no começo
dos anos 80, onde as técnicas tradicionais do Kabuki e do Khatakali eram empregadas, e a mais
recente criação, que evoca a história da França de um modo ultra-realista (por aqueles que a viveram),
nos encontraremos diante de um enigma teatral!
101
Entretanto, L’Age d’or (1975) já apontava duas das chaves para compreender a atual evolução
do Soleil: o coletivo e o documento, contando a atualidade de uma época, sobre a base de uma trama
coletiva, utilizando as formas e técnicas da Commedia dell’arte. Em descendente direta de Copeau,
Mnouchkine buscava a “comédia dos tempos modernos”.
Ou seja, a preocupação com o tempo presente sempre existiu, mas os anos 2000 marcam uma
verdadeira ruptura, e os espetáculos buscam se apoiar nos documentos extraídos da vida, se possível
da vida dos que fazem o espetáculo. Não por acaso Ariane afirma que depois de L’Âge d’or, Les
Éphémères foi o mais coletivo dos espetáculos do Soleil. Talvez porque nele os atores representam,
muitas vezes, a si mesmo, talvez o exercício mais difícil sobre um palco.
Mnouchkine (2006) tem o hábito de dizer que os espetáculos “estão chegando”, que eles se
impõem aos seus intérpretes mais do que estes os criam. Nos casos de Le Dernier Caravansérail e Les
Éphémères, inúmeras questões dramáticas “documentaram” os processos de criação dos espetáculos.
No primeiro a contribuição documental foi fortemente acentuada, pela presença da própria
Ariane partindo ao encontro dos refugiados em diversos campos de “trânsito” como o de Sangatte,
mas também na Austrália, passando meses a recolher testemunhos. Esses testemunhos que ela fez com
que os atores escutassem. Num processo onde existem os que ouvem e aqueles que falam. Quando
aqueles que ouvem os que falam, fazendo disso teatro, criam o Bruno Tackels de “um teatro que toca,
nem documentário puro nem de modo algum ficção, um gênero novo, retomando a lógica dos
contadores: aqueles que falam e aqueles que ouvem. (Mnouchkine, 2006)”
Mnouchkine (2006) afirma que o vídeo deu um novo élan ao teatro, e permite que se façam
coisas antes impensáveis. Cita como exemplo a época de L’Âge d’or, quando só as palavras
registradas no gravador testemunhavam as improvisações. Mas, inúmeras vezes o silêncio tomava
conta da fita, e com ele a impossibilidade de lembrar mais das mil maravilhas que tinham sido
produzidas durante os ensaios. O advento do vídeo transforma a improvisação em texto.
Tambours sur la digue (1999) marca o encontro definitivo do Théâtre du Soleil com as novas
tecnologias. Mnouchkine, Charles-Henri Bradier, Etienne Lemasson, Naruna Andrade, Liliana
Andreone e outros integrantes da trupe elegem o computador como um novo membro da companhia.
Em todas as áreas ele encontra espaço, exceto no setor de reservas, deliciosamente arcaico em pleno
século XXI.
O fato de o computador permitir arquivar e classificar filmes e fotos, facilitando ainda o
trabalho de identificação dos mesmos, fará com que sua presença nos ensaios seja indispensável, assim
como, anos depois, durante os espetáculos é graças ao computador que os textos, ditos nas mais
diversas línguas aparecem na tradução em francês.
Ariane diz que todas essas inovações, toda essa aparelhagem tecnológica e, todas as mudanças
que elas proporcionaram, não influenciam em nada o que se passa no palco. Acredita mesmo que o
que se passa no palco pode acabar influenciando o computador, afirmando que esse avanço
tecnológico contribui para amainar o trabalho sem, no entanto, causar uma transformação da estrutura.
102
Quando das filmagens dos ensaios de Tartufo para Au Soleil même la nuit os atores não tinham
direito de ver o material filmado ao final do dia, em Le Dernier caravansérail a situação se apresenta
de maneira oposta.
O espetáculo nasce de improvisações, o trabalho no teatro é filmado, fotografado, exibido aos
atores durante os ensaios, em seguida discutido com cada um e com todos, e por todos. O comentário
das imagens faz parte do trabalho de ensaio. O vídeo funciona aqui como um diário de bordo do
espetáculo, um pouco como a memória viva e talvez sem ele fosse impossível realizar o espetáculo.
O jogo de cena é afinado graças à imagem digital; tudo é filmado e os vídeos tornam-se
verdadeiros diários de bordo com direito a vários croquis, sobre os quais os atores trabalham, vendo e
revendo as variantes para compor e guardar seu “texte visuel”. Vidas privadas, improvisações
coletivas, música, objetos, vídeo, tais são os instrumentos desse laboratório de escrita cênica para
compor, no caso de Les Éphémères, um “relato íntimo a trinta vozes”.
Os atores criam cerca de quatrocentas cenas, baseadas na improvisação, dessas, apenas cerca
de 50 serão usadas, para constituir os diferentes capítulos das duas coletâneas que compõem o
espetáculo. Mnouchkine encontra no computador um aliado que torna mais fácil sua “busca pelo
pequeno para encontrar o grande”, um dos seus princípios heurísticos.
Com Le Dernier caravansérial e Les Éphémères a presença do cinema no Soleil atinge seu
ápice e prova que quando o filme de teatro “se torna uma obra e não é apenas um trabalho de
documentação, o filme de teatro é um filme, sem dúvida, e dá testemunho – por intermédio dos atores
– das duas artes: de seu encontro, não de sua fusão” (PICON-VALIN, 2008).
4 Quando o cinema gera produtos derivados e que tais
O uso do vídeo/cinema no Théâtre du Soleil de uns anos para cá passou a ser uma opção para
formar platéias, para oferecer público a possibilidade de guardar diversas lembranças da companhia
tais como vídeos-cassetes e, versão mais recente, DVDs.
Tambours sur la digue inaugurou a série de DVDs. Em seguida tivemos Molière, Le Dernier
caravansérail e, em breve, Les éphémères. Segundo a própria Ariane o lançamento de 1789,
espetáculo que lançou as bases da legenda na qual se transformou a companhia, é apenas uma questão
de tempo, e a promessa de que os outros espetáculos registrados em vídeo-cassete sairão em DVD
parece estar parte de se concretizar.
Se do ponto de vista do público, estas ofertas eventualmente respondem a seus impulsos
afetivos/emocionais, do ponto de vista da produção, são, também, marketing e podem ser entendidas
103
como produtos derivados. Afinal, os produtos vendidos trazem receitas adicionais, ainda que
marginais no orçamento global da trupe.
Podemos traçar um paralelo entre os benefícios assim gerados e certas discussões sobre o
desaparecimento dos rolos de papel toalha ou dos custos desnecessários com eletricidade relatados por
Mnouchkine no filme Au Soleil même la nuit. Como num orçamento, uma entrada corresponde a uma
saída. Além disso, as lembranças adquiridas pelo público funcionam como uma rede informal de
difusão das atividades do Théâtre du Soleil. Dessa forma, se informa e se forma um público potencial.
O boca a boca, o fator de comunicação mais antigo e, do meu ponto de vista, o mais eficaz do teatro,
não apenas funciona, como tende a crescer.
Além do aspecto puramente comercial, cito alguns exemplos vivenciados aqui mesmo no
Brasil, quando tive a oportunidade de assistir à uma conferência intitulada Le Tartuffe: de Molière à
Mnouchkine, pela ex-diretora da Aliança Francesa de Santos a partir da fita de vídeo-cassete de Au
Soleil même la nuit. Nesse dia, uma centena de pessoas, incluindo jovens atores, talvez futuros
estagiários/integrantes do Soleil, participaram dessa intervenção.
Pessoalmente, apresentei um seminário sobre o mesmo tema na Universidade de São Paulo
durante o meu Mestrado e que só foi possível graças a um encontro com Stéphane Brodt, ex-ator do
Soleil radicado no Brasil, que me emprestou a fita.
Anos mais tarde, voltando do meu Doutoramento pleno em Paris, tenho usado esse material de
vídeo do Théâtre du Soleil ora como instrumento precioso de trabalho para preparar o público para
conhecer o trabalho de Mnouchkine e companhia, como foi o caso da exposição/mostra realizada
durante o 14º Porto Alegre Em cena, em 2007. Ora, para como elemento instigador de um debate com
a platéia de um seminário de teatro organizado pelo Grupo Divulgação em Juiz de Fora, quando após a
exibição de Un Soleil à Kaboul...ou plutôt deux, discutimos com uma atenta platéia de cerca de 200
pessoas, a importância da formação na vida dos atores. Ora numa palestra na Universidade Estadual de
Feira de Santana, permitindo assim que o Théâtre du Soleil seja conhecido e admirado nos recantos
mais longínquos.
Sem falar no uso como material didático em sala de aula, quando desvendo aos alunos
imagens capazes de dizer mais do que toda a teoria e informação adquiridas ao longo dos meus anos
de estudo e pesquisa.
Estes exemplos parecem ilustrar o poder da comunicação em todos os níveis (recrutamento,
formação, divulgação) que podem conter esses discos, livros e, particularmente esses filmes. O CNDP
– Centre National de Documentation Pédagogique – vai mais longe, oferece um site de recursos
educacionais e de informação para a comunidade educativa para o sucesso do aluno. Editando também
dossiês pedagógicos que estimulam o trabalho em sala de aula tendo os vídeos/DVDs como suporte.
104
Finalmente, não podemos ignorar que o filme realizado ou cuja realização tenha sido
permitida por Ariane Mnouchkine são os únicos vestígios de seu trabalho. Com efeito, ao contrário de
Peter Brook e Eugenio Barba, ela não escreve livros sobre seu teatro, nem tece teorias sobre sua arte.
O seu público fiel sabe disso, logo, a venda encontra aí um aliado potencial da sua venda.
Afinal, para aqueles que não têm a oportunidade de ir à Cartoucherie ou de receber o Théâtre
du Soleil em sua cidade ou país de origem, esses vídeos tornam-se importantes, quando não as únicas,
ferramentas de trabalho e de pesquisa.
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