Editorial A fecundidade do diálogo interdisciplinar

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Editorial A fecundidade do diálogo interdisciplinar
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2012). Editorial: a fecundidade do diálogo interdisciplinar. Memorándum, 22,1-12. Recuperado
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Editorial
Memorándum: memoria e historia em psicología
Número 22
A fecundidade do diálogo interdisciplinar
A edigáo 22 de Memorándum propóe os artigos organizados em torno de quatro eixos
temáticos:
1. O primeiro eixo concerne a reflexoes e debates epistemológicos sobre a psicología
contemporánea: B. F. Skinner e o mentalismo: urna análise histórico-conceitual (1931-1959), de Marcus
Bentes de Carvalho Neto; Emmanuel Zagury Tourinho; Diego Zilio e Bruno Angelo Strapasson,
aponta a contribuigáo de Skinner acerca do paradigma explicativo ñas ciencias psicológicas, a
partir de sua crítica ao mentalismo e aprofundando a importancia de sua proposta de
antimentalismo na formulagáo do behaviorismo radical; O método histórico-crítico e a pesquisa
epistemológica em psicologia: urna perspectiva de Jean Piaget de Paulo Coelho Castelo Branco e
Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas aborda a contribuigáo de Piaget para o desenvolvimento
metodológico de urna abordagem interdisciplinar que envolva as áreas da psicologia e da
epistemologia em psicologia, e discute a possibilidade de aplicar ás teorias psicológicas a
proposta piagetiana de um método histórico-crítico próprio da historia da ciencia; Notos sobre
aspectos epistemológicos e históricos da psicologia histórico-cultural de Nietsnie de Souza Duarte,
Rosalía Carmen de Lima Freiré e Izabel Hazin evidencia alguns aspectos históricos e
epistemológicos subjacentes á proposigáo do projeto científico próprio da psicologia históricocultural, apontando similaridades e diferengas com outras teorias filosóficas e psicológicas da
contemporaneidade.
Tema comum entre estes artigos é a evidencia de quanto o terreno constituido pelo debate
entre diferentes propostas conceituais e metodológicas - debates feitos por diálogos,
aproximagóes, distanciamentos, críticas e apropriagóes - tenha sido um bergo genético fecundo
para a psicologia científica.
2. Um segundo eixo apresenta algumas contribuigóes antigás e contemporáneas da filosofía
para a constituigáo do conhecimento psicológico: A espacialidade da memoria ñas Confissóes de
Agostinho de Sávio Passafaro Peres e Marina Massimi aborda um objeto presente na psicologia
tanto do passado quanto da atualidade, a memoria, na abordagem de Agostinho de Hipona e
evidencia a contribuigáo inovadora do filósofo acerca do caráter espacial da memoria; A vivencia
do outro em Edmund Husserl a partir das Meditagóes Cartesianas de Claudia Coscarelli Salum e
Miguel Mahfoud propoe a contribuigáo de Husserl para o estudo da vivencia da alteridade como
fenómeno próprio da experiencia da pessoa apreendida na mutua constituigáo entre sujeito e
mundo; Desejo e formagao de mundo em Sartre: breve contraponto com Merleau-Ponty de Reinaldo
Furlan apresenta a visáo antropológica de Sartre, específicamente as nogóes de desejo e de
Memorándum 22, abr/2012
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encarnagao, e evidencia as diferengas com Merleau-Ponty quanto a formulagao destas duas
nogóes. Encountering God through human experience: the Ufe and thought of Luigi Giussani de Davi
Chang Ribeiro Lin discute a contribuigao do pensamento de Luigi Giussani no que diz respeito a
tematizagao da experiencia humana em sua originalidade própria, sobretudo o conceito de senso
religioso.
A contribuigao destes artigos mostra a importancia da filosofía enquanto background para a
constituigao da psicologia na medida em que propoe uma antropología filosófica onde é possível
discutir e fundamentar objetos próprios da psicología, como memoria, desejo, carne, experiencia
humana.
3. Um terceiro eixo aborda contribuigoes sobre tópicos de historia da psicologia no Brasil: A
reforma psiquiátrica em contextos periféricos: o Piauí em análise de Joao Paulo Macedo e Magda
Dimenstein aborda a historia da reforma psiquiátrica na regiao piauiense, e os desafios
enfrentados pelo processo reformista diante daquela realidade regional, através de um estudo
histórico realizado com pesquisa documental, memoria oral, pesquisa participante.
4. Um quarto eixo tematiza estudos acerca das características e desafíos próprios da
sociedade brasileira focando a questao da familia em condigao de pobreza e as práticas
educativas. Trata-se de estudos que remetem para abordagens interdisciplinares envolvendo a
psicologia, a sociologia e as demais ciencias humanas: Familia, capital humano e pobreza: entre
estrategias de sobrevivencia e projetos de vida de Giancarlo Petrini, Miria Alves Ramos de Alcántara,
Lucia Vaz de Campos Moreira, Lílian Perdigáo Caixéta Reis, Ricardo Sampaio da Silva Fonseca e
Marcelo Couto Dias, estuda a tensáo entre projetos de vida elaborados a fim de melhorar as
condigóes de saúde, educagáo, moradia e trabalho, e estrategias de sobrevivencia em condigóes
de pobreza, tendo em vista o capital humano, o capital social e a inclusáo social; Um estudo atorrede para o brinquedo artesanal: heranga que se traduz em Minas de Maria de Fátima Aranha de
Queiroz e Meló, Roselne Santarosa de Souza, Yone Andrade Paiva Rogério, Ana Luiza Brandáo
Leal, Fernanda Rodrigues Ferreira, Liliam Medeiros da Silva e Elaine Almeida de Andrade
pesquisa brinquedos e jogos artesanais na tradigáo mineira buscando mapear, registrar e
preservar objetos que fazem parte da memoria e da identidade dos grupos sociais e deste modo
assinalando a importancia de uma psicologia ligada a cultura; Práticas parentais: um estudo sobre
escolhas educativas de Fernanda Santini Franco e Heloisa Szymanski aborda a temáticas das
escolhas parentais com uma pesquisa fenomenológica, de teor interventivo, evidenciando o fato
de que tais escolhas estáo enraizadas em problemas sociais e cultura familiar.
Estes artigos evidenciam que a complexidade da realidade social e cultural brasileira pode
ser abordada sob varias perspectivas disciplinares proporcionando um olhar mais atento aos
diferentes aspectos e valorizador de seus dinamismos próprios.
Por fim, o nosso tributo cheio de gratidáo, a saudosa memoria do Professor Cesar Ades,
pelo testemunho de um grupo de seus colegas, discípulos e amigos: César Ades (08/01/1943 -
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14/03/2012): entre telas, bichos, criangas e gente grande, a paixao pela ciencia de Ana M. A. Carvalho e
colaboradores.
Abril de 2012
Miguel Mahfoud
Marina Massimi
Editores
Editorial
Memorándum: memory and history in psychology
Issue 22
The fruitfulness of interdisciplinary dialogue
The issue 22 of Memorándum proposes to organize the articles around four thematic axis:
1. The first axis concerns the epistemological reflections and debates on contemporary
psychology: B. F. Skinner and mentalism: a conceptual and historical analysis (1931-1959), by Marcus
Bentes de Carvalho Neto; Emmanuel Zagury Tourinho; Diego Zilio; Bruno Angelo Strapasson,
indicates the contribution of Skinner on the explanatory paradigm in psychological sciences,
from his critiscism to mentalism and deepening the importance of his proposed antimentalism in
the formulation of radical behaviorism; The historical-critical method and epistemological research in
psychology: a perspective of Jean Piaget by Paulo Coelho Castelo Branco and Ricardo Lincoln
Laranjeira Barrocas addresses the contribution of Piaget for the methodological development of
an interdisciplinary approach involving the fields of psychology and epistemology in
psychology, and discusses the possibility of applying to psychological theory Piaget's proposal
of a historical-critical method from the history of science; Notes on epistemological and historical
aspects of historical-cultural psychology by Nietsnie de Souza Duarte, Rosália Carmen de Lima
Freiré, and Izabel Hazin highlights some historical and epistemological aspects underlying the
proposal of the scientific project of historical-cultural psychology, pointing out similarities and
differences with other philosophical and psychological theories of contemporaneity.
Common theme among these articles is the evidence on how much the ground made by
the debate among different conceptual and methodological proposals - debates made through
dialogues, approximations, distancing, criticisms, and appropriations - has been a fruitful genetic
place for scientific psychology.
2. A second axis presents some ancient and contemporary contributions of philosophy for
the establishment of psychological knowledge: The spatiality of the memory in Augustine's
Confessions. by Sávio Passafaro Peres and Marina Massimi addresses an object present in the
psychology of both past and present, the memory, in Augustine of Hippo's approach and
demonstrates the innovative contribution of the philosopher concerning the spatial nature of
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memory; The lived experience of the other in Edmund Husserl through Cartesian Meditations by
Claudia Coscarelli Salum and Miguel Mahfoud proposes the contribution of Husserl to the study
of the experience of alterity as a phenomenon peculiar to the experience of the person
apprehended in the mutual constitution of subject and world; Desire and world formation in Sartre:
a short counterpoint with Merleau-Ponty by Reinaldo Furlan presents the anthropological visión of
Sartre, specifically the notions of desire and incarnation, and highlights the differences with
Merleau-Ponty on the formulation of these two notions. Encountering God through human
experience: the Ufe and thought of Luigi Giussani by Davi Chang Ribeiro Lin discusses the
contribution of Luigi Giussani's thought with regard to the themes of human experience in its
own originality, especially the concept of religious sense.
The contribution of these articles shows the importance of philosophy as background for the
establishment of psychology as it proposes a philosophical anthropology where it is possible to
discuss and substantiate objects belonging to psychology as memory, desire, flesh, human
experience.
3. A third group encompasses contributions on topics of history of psychology in Brazil:
Psychiatric reform in the peripheral contexts: Piaui in analysis by John Paul and Magda Dimenstein
Macedo discusses the history of psychiatric reform in the región of Piauí and the challenges
faced by the reform process before this regional reality through a historical study carried out
with documentary research, oral memory, participant research.
4. A fourth axis thematizes studies on the characteristics and challenges typical of Brazilian
society focusing on the issue of the family in poverty and educational practices. These are studies
that point to interdisciplinary approach involving psychology, sociology, and other human
sciences: Family, human capital, and poverty: between strategies of survival and Ufe projects,
by
Giancarlo Petrini, Miriá Alves Ramos de Alcántara, Lucia Vaz de Campos Moreira, Lílian
Perdigao Caixéta Reis, Ricardo Sampaio da Silva Fonseca, and Marcelo Couto Dias, studies the
tensión between life projects designed to improve the health, education, housing, and work, and
survival strategies in poverty, taking into consideration the human capital, social capital, and
social inclusión; An actor-net study ofthe artisan toy: heritage that is translated in Minas by Maria de
Fátima Aranha de Queiroz e Meló, Roselne Santarosa de Souza, Yone Andrade Paiva Rogério,
Ana Luiza Brandao Leal, Fernanda Rodrigues Ferreira, Liliam Medeiros da Silva, Elaine Almeida
de Andrade searches handcrafted toys and games in Minas tradition seeking to map, record, and
preserve objects that belong to the memory and identity of social groups and, thus, indicating
the importance of psychology related to culture; Parental practices: a study about child rearing
choices by Fernanda Santini Franco and Heloisa Szymanski addresses the issues of parental
choice with a phenomenological research of interventional content highlighting the fact that such
choices are rooted in social problems and family culture.
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These articles show that the complexity of Brazilian social and cultural reality can be
approached from various disciplinary perspectives providing a closer look at different aspects
placing valué in its own dynamics.
Finally, our tribute, full of gratitude to the longing memory of Professor Cesar Ades, to the
testimony of a group of his colleagues, disciples, and friends: César Ades (08.01.1943 - 03.14.2012):
among webs, animáis, children, and grownups, the passionfor science by Ana M. A. Carvalho et al.
April 2012
Miguel Mahfoud
Marina Massimi
Editors
Equipe/Editorial Board
Editores
Miguel Mahfoud
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Marina Massimi
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Editores Assistentes
Roberta Vasconcelos Leite
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Yuri Elias Gaspar
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Consultores externos Ad Hoc / Ad Hoc Consultants - Memorándum 22
Adriano Roberto Af onso do Nascimento
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Ariane Patricia Ewald
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Brasil
Belinda Piltcher Haber Mandelbaum
Universidade de Sao Paulo
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Clélia Peretti
Pontificia Universidade Católica do Paraná
Brasil
Cristiana Facchinetti
Casa de Oswaldo Cruz/Fundagao Oswaldo Cruz
Brasil
Dante Marcello Claramonte Gallian
Universidade Federal de Sao Paulo
Brasil
Erika Lourengo
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Elaine Pedreira Rabinovich
Universidade Católica do Salvador
Brasil
Fábio Henrique Viana
Universidade do Estado de Minas Gerais
Brasil
Fernando de Almeida Silveira
Universidade Federal de Sao Paulo
Brasil
Francisco Teixeira Portugal
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Brasil
Lílian Perdigao Caixéta Reis
Universidade Federal da Bahia
Brasil
Márcio Luiz Fernandes
Pontificia Universidade Católica do Paraná
Brasil
María Fernanda Costa Waeny
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
Marilia Ancona López
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
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Mario Ariel González Porta
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
Paulo José Carvalho da Silva
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
Raquel Martins de Assis
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Raquel Souza Lobo Guzzo
Pontificia Universidade Católica de Campiñas
Brasil
Sandra María Sawaya
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Saulo de Freitas Araujo
Universidade Federal de Juiz de Fora
Brasil
Sávio Passafaro Peres
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Sergio Cirino
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Conselho Editorial/Advisory Board
Adalgisa Arantes Campos
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Alcir Pécora
Universidade de Campiñas
Brasil
Angela Ales Bello
Pontificia Universitas Lateranensis
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Aníbal Fornari
Universidad Católica de Santa Fe
Universidade Católica de La Plata
Argentina
Anna Unali
Universitá La Sapienza
Italia
Antonella Romano
École des Hautes Études en Sciences Sociales
France
Belmira Bueno
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Caio Boschi
Pontificia Universidade Católica de Minas Gerais
Brasil
Celso Sá
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Brasil
Danilo Zardin
Universitá Cattolica Sacro Cuore
Italia
Eclea Bosi
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Francesco Botturi
Universitá Cattolica Sacro Cuore
Italia
Franco Buzzi
Universitá Cattolica del Sacro Cuore
Italia
Gilberto Safra
Universidade de Sao Paulo
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
Helio Carpintero
Universidad Complutense
España
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Hugo Klappenbach
Universidad San Luis
Argentina
Isaías Pessotti
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Janice Theodoro da Silva
Universidade de Sao Paulo
Brasil
José Carlos Sebe Bom Meihy
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Luís Carlos Villalta
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Luiz Jean Lauand
Universidade de Sao Paulo
Brasil
María Armezzani
Universitá degli Studi di Padova
Italia
María do Carmo Guedes
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
María Efigénia Lage de Resende
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
María Fernanda Diniz Teixeira Enes
Universidade Nova de Lisboa
Portugal
Martine Ruchat
Université de Genéve
Suiss
Michel Marie Le Ven
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Monique Augras
Universidade Católica do Rio de Janeiro
Brasil
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Olga Rodrigues de Moraes von Simson
Universidade de Campiñas
Brasil
Pedro Morande
Universidad Católica de Chile
Chile
Pierre-Antoine Fabre
École des Hautes Études en Sciences Sociales
France
Regina Helena de Freitas Campos
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Sadi Marhaba
Universitá degli Studi di Padova
Italia
William Barbosa Gomes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Brasil
Conselho Consultivo/ Board of editorial consultants
Adone Agnolin
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Ana María Jacó-Vilela
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Brasil
André Cavazotti
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Arno Engelmann
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Bernadette Majorana
Universitá degli Studi di Bergamo
Italia
Davide Bigalli
Universitá degli Studi di Milano
Italia
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Deise Mancebo
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
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Edoardo Bressan
Universitá degli Studi di Milano
Italia
Eugenio dos Santos
Universidade do Porto
Portugal
Giovanna Zanlonghi
Universitá Cattolica del Sacro Cuore
Italia
José Francisco Miguel Henriques Bairrao
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Marcos Vieira da Silva
Universidade Federal de Sao Joao del Rei
Brasil
María Luisa Sandoval Schmidt
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Marisa Todeschan D. S. Baptista
Universidade de Sao Marcos
Brasil
Mitsuko Aparecida Makino Antunes
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
Nádia Rocha
Faculdade Ruy Barbosa
Brasil
Rachel Nunes da Cunha
Universidade de Brasilia
Brasil
Raúl Albino Pacheco Filho
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
Vanessa Almeida Barros
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
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Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
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Paulo - USP/Ribeirao Preto
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e Letras Universidade de Sao Paulo - USP/Ribeirao Preto.
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Carvalho Neto, M. B., Tourinho, E. Z., Zilio, D. & Strapasson, B. A. (2012). B. F. Skinner e o mentalismo: urna análise
histórico-conceitual (1931-1959). Memorándum, 22, 13-39. Recuperado em
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B. F. Skinner e o mentalismo: urna análise histórico-conceitual
(1931-1959)
B. F. Skinner and mentalism: a conceptual and historical analysis (1931-1959)
Marcus Bentes de Carvalho Neto
Emmanuel Zagury Tourinho
Universidade Federal do Para
Diego Zilio
Universidade de Sao Paulo
Bruno Angelo Strapasson
Universidade Positivo/Universidade de Sao Paulo
Brasil
Resumo
Urna das principáis características do Behaviorismo Radical de B. F. Skinner (1904-1990)
seria sua crítica sistemática as explicacoes mentalistas para o comportamento. O objetivo
do trabalho foi descrever o que Skinner definía por mentalismo e que críticas fazia a ele
entre 1931 e 1959. Com base em trabalhos do próprio autor, observou-se que o
mentalismo criticado entre os anos 30 e 40 foi principalmente o presente na Fisiología
Conceitual e nos Behaviorismos de Tolman, Hull, Boring e Stevens. Do final dos anos 40
até 1959, a crítica era dirigida a Psicanálise de Freud e a Psicología da Consciéncia. Em
relacao aos tipos de críticas, nao foram observadas mudancas significativas. Discute-se o
lugar e a funcao do antimentalismo no Behaviorismo Radical.
Palavras-chave: mentalismo; antimentalismo; behaviorismo radical; mente; Skinner
Abstract
One of the main characteristics of B. F. Skinner's Radical Behaviorism (1904-1990) is his
constant criticism against mentalistic explanations for behavior. The purpose of this work
was to describe what Skinner meant by mentalism and what criu'cisms he made against it
between 1931 and 1959. After analyzing some of Skinners' works at that period, it was
noticed that the mentalism crin'cized between the 30's and 40's was the one that was
found in Conceptual Physiology and in Tolman, Hull, Boring, and Stevens' Behaviorism.
From the late 40's to 1959, criticism was directed especially towards Freud's
Psychoanalysis and to Psychology of Consdousness. In relan'on to the type of criticism
made by Skinner, no meaningful change in his argumentation was found. It was also
discussed the importance and the function of antimentalism in Radical Behaviorism.
Key words: mentalism; antimentalism; radical behaviorism; mind; Skinner
Considerares Iniciáis
As bases e o alcance das formulagoes de B. F. Skinner (1904-1990) tém sido alvos
constantes de análise dentro e fora da Psicología (por exemplo, Catania & Harnad, 1988;
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Lattal & Chase, 2003; Moore, 2008; Thyer, 1999; Todd & Morris, 1995)1. Skinner foi
responsável pela criagáo de urna nova ciencia do comportamento (a Análise Experimental do
Comportamento) e da filosofía desta ciencia (o Behaviorismo Radical). Seu pensamento tem
inspirado um grande número de pesquisas empíricas e de reflexoes teóricas desde a década
de 30 do século XX. Parte destas reflexoes, algumas délas análises históricas, tiveram como
objeto o próprio pensamento skinneriano, suas bases e suas conseqüéncias (por exemplo,
Mills, 1998; Modgil & Modgil, 1987; Smith & Woodward, 1996).
Os trabalhos de natureza histórica podem vir a fornecer urna visao mais completa e
organizada do pensamento de um autor ou de um tema. O produto desse tipo de pesquisa
pode fornecer um material estruturado para urna análise crítica sobre um determinado
assunto (Coleman, 1995; Morris e outros, 1995). Entretanto, na análise histórica há sempre o
risco de ocorréncia de conclusoes heterogéneas, que dependem tanto dos aspectos específicos
que foram investigados quanto dos referenciais tomados por cada pesquisador em sua
empreitada. Risco que se torna ainda mais contundente no caso de Skinner. De acordó com
Moxley (1992, 1998, 1999), as dificuldades em se interpretar corretamente as proposigóes de
Skinner estariam, em parte, no fato do autor ter mudado sua teoría em alguns dos seus
aspectos centráis desde que ela comegou a ser elaborada nos anos 30.
As mudangas em si mesmas nao seriam táo problemáticas se Skinner as tivesse
sinalizado claramente ao longo de sua vida. Ao nao fazé-lo, abriu-se a possibilidade de todo
tipo de leitura parcial de sua obra, como, por exemplo, a classificagáo de Skinner como um
psicólogo do estímulo-resposta e determinista, que seria parcialmente correta, já que
efetivamente o behaviorismo skinneriano teria sido influenciado de forma significativa pelas
atividades inicialmente realizadas por Skinner nos laboratorios de fisiología de Harvard
durante o seu doutoramento, mas que é no mínimo imprecisa a luz do modelo de selegáo
pelas conseqüéncias (cf. Moxley, 1998).
Posigao semelhante sobre Skinner é defendida por Micheletto (1997). Para a autora,
devido a existencia de diferentes tratamentos dispensados por Skinner a certos temas ao
longo de sua vida, seria possível admitir a nogáo de "mais de um Skinner", dada a
radicalidade das mudangas observadas em seus escritos.
Em tempo, um dos tópicos que merece análise dentro dos diversos aspectos abordados
por Skinner consiste em sua posigao acerca dos eventos e conceitos mentalistas e seus papéis
na explicagáo do comportamento. Por criticar sistemáticamente as abordagens mentalistas,
Skinner acabou sendo descrito como um antimentalista (Day, 1969; Lampréia, 1993; Moore,
1990; Richelle, 1977/1981; Schnaiter, 1984). O antimentalismo é entendido como um trago
quase que definidor do behaviorismo radical de Skinner (Moore, 1990, 2008). Richelle
1
O presente trabalho é parte da Tese de Doutorado do Io autor, co-orientado pelo 2o e orientado pela Profa. Dra.
Maria Amelia Matos (falecida em 2005), a quem dedicamos o artigo. O trabalho foi parcialmente financiado pelo
CNPq na forma de bolsa de Doutorado concedida ao Io Autor.
Memorándum 22, abr/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
BSN1676-1669
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Carvalho Neto, M. B., Tourinho, E. Z., Zilio, D. & Strapasson, B. A. (2012). B. F. Skinner e o mentalismo: urna análise
histórico-conceitual (1931-1959). Memorándum, 22, 13-39. Recuperado em
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(1977/1981), por exemplo, sugere que a posigao antimentalista de Skinner seria tao central ao
seu modelo explicativo para o comportamento quanto a nogao de selegao pelas
conseqüéncias:
O behaviorismo (...) diferenciou-se desde o principio por sua posicao
antimentalista. Skinner nao parou de afirmar e de explicitar [esse
antimentalismo] até o ponto em que é legítimo ver nele urna característica
essencial do seu pensamento teórico e metodológico, ao lado da nocao da
acao seletiva do meio (p. 65).
De fato, desde a sua fundagao, o behaviorismo como um todo tem sido identificado
como urna alternativa a psicología mentalista (Heidbreder, 1933/1975; Keller, 1965/1974;
Marx e Hillix, 1963/1993). Contemporáneamente, há um conjunto de autores (Abreu, 1988;
Baum & Heath, 1992; Day, 1969,1980, 1983; Hayes & Brownstein, 1986; Matos, 1997; Moore,
1981,1989,1990, 2008; Schnaitter, 1984) que discutem o modelo skinneriano de explicagao do
comportamento a partir do tratamento que ele dá ao mentalismo. Isso se justifica por conta
de sua centralidade para a compreensao do behaviorismo radical, já que o mentalismo seria,
de certa forma, a sua antítese. O termo "mentalismo" é usado por Skinner para indicar
essencialmente o tipo de explicagao em psicología, ou em qualquer outra área que trate do
comportamento, da qual discorda e que para ele deveria ser substituida. O cerne de sua
divergencia reside, segundo Day (1980), na fonte explicativa interna para o comportamento
público. Outras razoes, de ordem ontológica, por exemplo, também sao aventadas (Day,
1969).
Nesse contexto, o presente trabalho versa exatamente sobre o antimentalismo de
Skinner, mais especificamente sobre a sua constituigao ao longo de sua obra. Haveria
ocorrido algum tipo de mudanga no pensamento de Skinner acerca do mentalismo ao longo
de sua obra? Teriam a definigao de mentalismo oferecida por Skinner e as críticas feitas a
essa forma de explicar o comportamento mudado ñas tres primeiras décadas da sua
produgao académica (de 1931 até 1959)? Em que consistiria a psicología antimentalista de
Skinner nessa fase? Há, nessas indagagoes, dois principáis objetivos interligados: (1) A
caracterizagao e discussao do que Skinner entendia por mentalismo e (2) o levantamento e
discussao das críticas feitas as explicagoes mentalistas. Essas descrigoes foram feitas de forma
sistemática levando-se sempre em consideragáo o período analisado. Tal período abrange o
inicio da obra de Skinner em Psicología (1931) até o final dos anos 50 (1959).
Em suma, considerando-se: (a) que a posigao antimentalista de Skinner seria um dos
pilares do seu behaviorismo (Delprato & Midgley, 1992; Moore, 1990; Richelle, 1977/1981,
1993); (b) que alguns autores tém identificado tanto mudangas em algumas posigoes
skinnerianas quanto manutengoes de certos pontos de vista ao longo do tempo (Micheletto,
1997; Moxley, 1992, 1998, 1999); (c) que haveria a possibilidade de que tanto a definigao de
mentalismo quanto as críticas feitas a ele tenham se alterado conforme o cenário das
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psicologías mentalistas em vigor também mudavam (Richelle, 1993); e, por último, (d) a
ausencia de pesquisas sistemáticas especificamente sobre esse tema central, espera-se
esclarecer como Skinner definia e criticava o mentalismo na fase estudada e se houve ou nao
alguma mudanga sobre esse ponto específico ñas proposigoes skinnerianas nesse período.
Para tratar dessas questoes, foram analisados os textos de Skinner listados em Epstein
(1995), Carrara (1992) e Catania e Harnard (1988) e datados entre o período de 1931 e 1959.
Dentre os textos encontrados nesse período forma selecionados 24 que mencionavam o
mentalismo, sao eles: Estes e Skinner, 1941; Skinner, 1931/1961g, 1935/1961k, 1938/1966,
1945, 1947, 1950, 1951/1961f, 1953, 1953/1965, 1954/1961b, 1954/19611, 1955/1961h,
1955/1961c, 1956/1961e, 1956/1961m, 1956/1961a, 1957/1961Í, 1957/1992,1957/1961d, 1958,
1958/1961], 1959/1972.
O período de análise selecionado justifica-se por permitir a caracterizagáo do
antimentalismo de Skinner antes do fortalecimento de urna nova forma de explicagáo
mentalista: o cognitivismo. A chamada "revolugáo cognitiva" (Gardner, 1985/2003;
Greenwood, 1999) da década de 1960 traz um novo e importante interlocutor para Skinner, o
que potencialmente interfere no seu discurso antimentalista. Entretanto, nao há espago neste
texto para explorar as proposigoes e interlocutores de Skinner nessa época, de modo que no
presente artigo optou-se por restringir a análise ao período 1931 a 1959, deixando a
investigagáo dos períodos posteriores para outros trabalhos.
O Conceito de Mentalismo na obra de Skinner
Conforme veremos a seguir, ao longo de sua obra, Skinner apresentou urna miríade de
características definidoras do mentalismo. Este nao se resumiría simplesmente a tese de que
há urna entidade interna denominada "mente". Por conta desse fato, no presente trabalho,
optou-se por delinear urna divisáo categorial das características demarcatórias do
mentalismo. Além de explicitar a complexidade do conceito, essa estrategia também pode
auxiliar no esclarecimento do posicionamento de Skinner acerca do tema.
1. A natureza dos eventos mentáis:
A primeira categoría diz respeito a natureza do evento sob análise, isto é, as
características essenciais a sua existencia. Nesse ámbito, Skinner apresenta o mentalismo
como eventos de natureza "mental" ou "psíquica" ñas seguintes obras: 1931/1961g,
1938/1966, 1945, 1947, 1950, 1953/1965, 1954/1961b, 1954/19611, 1956/1961m, 1956/1961a,
1957/1992, 1958/1961], 1959/1972. Em linhas gerais, o mentalismo consistiría na atribuigáo
das causas do comportamento aos eventos internos mentáis que nao possuiriam bases físicas.
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Skinner associa tal caracterizagao do mentalismo a filosofía cartesiana, a psicología
introspectiva e a psicanálise de Freud.
Outra diferente natureza atribuida aos eventos mentalistas utilizados na explicagáo do
comportamento seria a "fisiológica". Skinner discorre sobre essa natureza nos textos de
1931/1961g, 1935/1961k, 1938/1966, 1947, 1950, 1953, 1953/1965, 1954/1961b, 1956/1961a e
1958/1961]. Nesse caso, o mentalismo consistiría na atribuigáo das causas do comportamento
aos eventos internos fisiológicos. Nao se trata da negagáo da importancia desses eventos
como elo necessário da cadeia causal entre eventos ambientáis, eventos fisiológicos e as
respostas do organismo. O problema estaria em concentrar as causas do comportamento nos
eventos fisiológicos, destituindo, assim, de qualquer valor os determinantes ambientáis do
comportamento.
Urna terceira natureza sugerida para os eventos internos seria a "conceitual". Abib
(1997) distingue pelo menos tres tipos de teorias que envolvem eventos de natureza
conceitual: (1) teorias conceituais-neurofisiológicas, (2) teorias conceituais-mentais, e (3)
teorias puramente conceituais. Nesses tres casos, os eventos conceituais possuem como ponto
em comum urna ausencia de base real independente. No caso dos eventos mentalistas de
natureza fisiológica, por exemplo, tais eventos sao processos reais do sistema nervoso. Por
outro lado, os eventos conceituais seriam construtos ad hoc criados a partir da observagao do
comportamento para justamente explicar o comportamento que fundamentou a sua criagao.
Esses construtos nao se referem ao comportamento propriamente dito, mas a eventos que,
pelo menos num primeiro momento, só existem enquanto conceitos. Portanto, os eventos
conceituais carecem de qualquer fonte autónoma para justificar a sua existencia. Nao teriam
vida própria, pois seriam totalmente inferidos ou deduzidos dos eventos comportamentais.
Skinner trata dos eventos mentalistas conceituais ñas seguintes obras: 1931/1961g,
1938/1966,1944,1945,1947,1950,1953/1965,1956/1961m, 1956/1961a e 1957/1992.
Consideragóes adicionáis sobre aspectos ontológicos da proposigao mentalista sao
tratadas com outro vocabulario, mas se referindo ao mesmo problema já explicitado. Skinner
fala do "homem em si" como um agente autónomo ou de algumas "faculdades" ou
"capacidades" internas ao homem. Essas referencias podem ser encontradas nos seguintes
textos: 1947, 1953/1965, 1955/1961c, 1956/1961, 1957/1992. Em linhas gerais, Skinner
discorre sobre a concepgao que apresenta o individuo como o agente originador de sua
própria agao, livre de qualquer influencia do ambiente.
2. O status causal dos eventos mentalistas:
A segunda categoría de análise do conceito de mentalismo diz respeito ao status causal
atribuido aos eventos dessa forma classificados. Descrevem-se as diversas modalidades de
cadeias causáis envolvendo os eventos internos.
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Em apenas um texto, Skinner (1958/1961]) trata da cadeia causal direta "evento interno
-¥ comportamento" (a seta indica a existencia causalidade entre os elementos na diregáo
apontada). Nessa obra, o autor relaciona esse modelo causal ao pensamento psicanalítico, de
acordó com o qual um "homem interno" conduziria o "homem externo". Além dessa
descrigáo, Skinner acrescenta que seria urna prática comum fragmentar esse "homem
interno" ou "personalidade" em elementos causadores menores, como, por exemplo, os
construtos psicanalíticos do Id, Ego e Superego que supostamente seriam responsáveis pela
dinámica de funcionamento do mental e do próprio comportamento.
Outro tipo de cadeia causal tratada por Skinner possui tres elos: "ambiente -¥ evento
interno -¥ comportamento". O autor a analisa ñas seguintes obras: 1931/1961g, 1935/1961k,
1938/1966,1953/1965 e 1954/1961b. Nessa perspectiva, o evento interno seria um mediador
entre o mundo exterior e as agoes públicas. O comportamento nao seria diretamente afetado
pelo ambiente e nem os eventos internos seriam autónomos ou impermeáveis aos efeitos do
meio. Os tres elos estariam interligados, sendo que o elo intermediario interno funcionaria
como um filtro, um selecionador, um administrador que regularia como os "inputs" seriam
transformados em "outputs". Nessa perspectiva, o comportamento pode ser entendido como
apenas um sintonía, um mero efeito do funcionamento dos eventos internos. Nao se nega a
influencia das variáveis ambientáis antecedentes. Mas a historia de interagáo com o ambiente
afetaria o comportamento apenas na medida em que teria alguma influencia sobre os eventos
internos.
O terceiro tipo de cadeia causal descrita por Skinner no contexto do mentalismo inclui a
variável hereditaria: "ambiente & hereditariedade -¥ evento interno -¥ comportamento".
Trata-se de um refinamente da cadeia causal anteriormente exposta, já que há apenas a
adigáo das variáveis filogenéticas. O autor trata dessa cadeia causal em seu texto de
1956/1961m.
Skinner (1956/1961m) apresenta urna distingáo bastante importante no que concerne a
natureza dos eventos internos das cadeias causáis. Se os eventos internos sao vistos como
processos fisiológicos, entáo eles sao objetos de estudo de outra ciencia: a fisiología. A
Análise do Comportamento lidaria com a relagáo funcional entre os eventos ambientáis e as
agoes do organismo. Mas os eventos internos poderiam ser vistos como processos "mentáis"
e/ou "psíquicos", ou como construtos "conceituais". Nesse caso, tudo comegaria no primeiro
elo da cadeia com as variáveis hereditarias e ambientáis. Em seguida, esses eventos reais
concretos e públicos seriam transformados no segundo elo intermediario interno, em
"instintos", "necessidades", "vontades", "memorias", "hábitos", entre outros. Estas
capacidades internas estariam organizadas em urna "personalidade", ou qualquer tipo de
agencia cognitiva controladora, e seus produtos consistiriam nos eventos do último elo, isto
é, nos comportamentos públicos. Se a cadeia causal aceita for a primeira, nao haveria
problemas a nao ser a divisáo de tarefas entre fisiología e Análise do Comportamento. Se for
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a segunda, entao haveria os problemas inerentes a proposigao de urna dualidade entre
mente-corpo, ou a estrategia de explicagáo do comportamento que langa mao de construtos
hipotéticos criados a partir de observagóes do comportamento para explicá-lo.
3. Justificativas para o mentalismo:
A terceira categoría de análise do conceito de mentalismo abarca as possíveis razoes
que levariam a sua própria postulagao pelos seus defensores. Todas essas razoes sao
rejeitadas como ilegítimas nos textos de Skinner analisados neste artigo (ver segao "As
críticas de Skinner ao mentalismo"), mas para se entender a contra argumentagao de Skinner
é preciso primeiro ter clareza sobre o que levaría a elaboragao e ao uso de explicagoes
mentalistas. Ou, de outra forma, o que justificaría o seu uso ampio.
Urna primeira justificativa aventada para o surgimento das explicagoes mentalistas
estaría na incapacidade de identificar causas ambientáis externas presentes para a explicagao
de um certo comportamento em exame. Nao sendo possível ligar urna dada agao a variáveis
imediatas no ambiente que a expliquem, deduz-se que estes determinantes estariam dentro
de quem age e nao seriam, por isso, diretamente observáveis. Nesse sentido, urna
causalidade interna seria mantida por urna prova "negativa", ou seja, nao seria urna relagao
construida pela evidencia de algo (um "evento interno" afetando concretamente o
comportamento), mas pela ausencia de outra ("eventos ambientáis públicos imediatos"
afetando o comportamento). Essa justificativa é analisada por Skinner ñas seguintes obras:
1931/1961g, 1944,1947,1953/1965,1954/1961b e1955/1961c.
Outra justificativa residiría na hipótese de que o comportamento seria um evento
caótico e, por conta disso, inexplicável se analisado em si mesmo. Nesse caso, deveríamos
atentar para os eventos internos, pois estes sim seriam organizados e, dessa forma, passíveis
de análise científica. O comportamento seria, entao, um mero efeito do que ocorre
internamente - seja em sua "mente", "cerebro" ou aparato "conceitual". Skinner discorre
sobre essa justificativa ñas obras: 1938/1966,1947,1950,1953 e 1956/1961a.
A terceira justificativa para a reivindicagáo de explicagoes mentalistas estaría na lacuna
inerente a Análise do Comportamento: se se estuda a relagao funcional entre os eventos
ambientáis e as agoes do organismo, entao sao deixados de fora os eventos internos que
constituem o elo intermediario da cadeia causal. Haveria lacunas espagos-temporais entre a
historia de interagáo com ambiente e os e seus efeitos posteriores sobre o comportamento do
organismo. A relagao de dependencia entre eventos ambientáis e as agoes seria por vezes nao
contigua e, por isso, esses eventos seriam descartados como funcionalmente relacionados de
forma autónoma legítima. Para ligá-los nesse intervalo, utilizar-se-iam conceitos
intermediarios mentalistas que teriam o objetivo de fazer a ponte entre a historia de interagáo
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e o comportamento presente. Skinner trata dessa justificativa em dois textos: 1954/1961b e
1956/1961m.
Em quarto lugar, outra justificativa em potencial para a utüizagáo de explicagoes
mentalistas estaria na adogao de um modelo causal "animista", de acordó com a qual as
agoes ou movimentos de qualquer objeto seriam de responsabilidade de eventos
supostamente existentes em seu interior. A chave para a compreensao de um fenómeno
estaria na identificagao das forgas interiores que o moveriam. Tal justificativa é discutida por
Skinner ñas seguintes obras: 1953/1965,1954/1961b, 1956/1961m e 1957/1992.
A última justificativa identificada por Skinner estaria na prática de se buscar anomalias
fisiológicas para explicar o comportamento. Esta justificativa esteve sob foco em dois textos
de Skinner: 1938/1966 e 1953/1965. Tal justificativa seria específica de uma explicagao
mentalista de natureza fisiológica (real ou conceitual). A sua lógica é simples: há certos
disturbios comportamentais para os quais já se identificaram lesóes no sistema nervoso.
Entáo, qualquer comportamento, genéricamente, seria fungao do sistema nervoso. Entender
uma agao implicaría, dessa forma, identificar os seus controles subjacentes internos
fisiológicos.
As Críticas de Skinner ao Mentalismo
Assim como no caso da definigao do conceito de mentalismo, optou-se aqui por
apresentar as críticas de Skinner as explicagoes mentalistas a partir de categorías de análise.
Conforme dito na introdugao, o antimentalismo é característica central do behaviorismo
radical (Delprato e Midgley, 1992; Moore, 1990, 2008; Richelle, 1977/1981, 1993). Dessa
forma, é pertinente entender as razóes que levaram Skinner a criticar o mentalismo tal como
definido pelas categorías expostas na segao anterior.
1. O mentalismo nao seria ciencia:
Na caracterizagao de Skinner, um dos problemas do mentalismo está em sua
desqualificagao para apresentar explicagoes do comportamento por conta de seu suposto
caráter nao-científico. O mentalismo nao é adequado para explicar o comportamento por
partilhar de uma serie de pressupostos estranhos ou incompatíveis com o modo explicativo
das ciencias (físicas e naturais). Há diversos argumentos apresentados por Skinner que se
enquadram nessa categoría.
Primeiramente, a náo-cientificidade do mentalismo poderia ser atestada por seu
vínculo com tradigóes animistas e supersticiosas de explicagao dos fenómenos. No caso do
animismo, uma entidade ou esséncia interna ao organismo seria invocada para explicar sua
agao. Tais entidades internas estariam ligadas, por sua vez, a nogóes religiosas, mágicas
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(supersticiosas), como a presenga de "espíritos", "demonios" ou "homúnculos", de naturezas
distintas (imateriais) dos eventos físicos, que animariam os corpos e conduziriam os
comportamentos das pessoas por eles possuídos. Esses seres que habitariam o interior dos
hospedeiros teriam sua própria dinámica decisoria interna: seriam, assim, agentes em grande
parte autónomos, a determinar o que as pessoas estariam a fazer. Por conta dessa
característica, os homúnculos seriam livres de qualquer tipo de controle. Suas agóes seriam
resultantes de seu "capricho", ao invés do resultado de sua interagáo com o ambiente. Dessa
forma, nao haveria leis determinantes do comportamento, já que apenas as "vontades" do
homúnculo seriam responsáveis pelas suas agóes. Conseqüentemente, por se tratar de
fenómeno nao ordenado e nao regido por leis, nao seria possível fazer ciencia do
comportamento. Skinner apresenta essa crítica em quatro textos: 1953/1965, 1954/1961b,
1956/1961me 1957/1992.
Em segundo lugar, o mentalismo nao seria científico por conta de seu suposto
comprometimento com o dualismo entre mente e corpo. Nesse caso, haveria a dicotomía
entre mundo físico e mundo mental, cada qual possuindo naturezas e mecanismos
reguladores distintos. O problema do dualismo estaría no fato de que nao é possível urna
abordagem científica dos mecanismos mentáis que supostamente interfeririam no mundo
físico. Adicionalmente o problema de explicar como eventos de natureza distinta interagem
permanece. Ou seja, aínda é preciso responder como é possível que a mente nao-física exerga
qualquer tipo de influencia sobre o corpo físico. Skinner, interessado nos determinantes da
agáo, pergunta como um evento nao-físico - a mente cartesiana -, que nao possui extensáo e
que, por isso, nao ocupa lugar no espago e no tempo, poderia vir a afetar um outro evento
inteiramente físico, constituido de materia e substancia - o comportamento dos organismos.
O autor trata dessa crítica ñas seguintes obras: 1950,1953/1965,1954/1961b e 1956/1961m.
A terceira justificativa para a náo-cientificidade do mentalismo estaría no fato de que
certas características dos eventos mentalistas nao possibilitariam um exame científico. A
idéia segundo a qual o comportamento seria controlado por um agente interno "livre", por
exemplo, plenamente autónomo e espontáneo, impediría a pesquisa científica do
comportamento. Afinal, tal agente decisorio interior, como o "livre arbitrio", seria, por
definigáo, nao determinado por fatores exteriores a sua própria dinámica. Como o objetivo
da ciencia seria exatamente identificar as variáveis responsáveis pela ocorréncia de um
fenómeno, o agente livre rivalizaría com dois dos pressupostos fundamentáis da investigagáo
científica: (a) qualquer evento seria determinando (probabilisticamente) e (b) o ser humano
poderia conhecer as causas dos eventos investigados. Essa crítica é apresentada nos seguintes
textos de Skinner: 1938/1966,1954/1961b, 1955/1961h e 1957/1992.
Em adendo, o mentalismo seria problemático por adotar urna linguagem nao-científica.
Em diversos momentos, Skinner faz referencias ao caráter coloquial, impreciso, obscuro, sem
parcimónia e objetividade, equivocado, vernacular e pré-científico dos termos mentalistas.
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Trata-se, entao, de uma objegao com grandes variagoes formáis, mas com uma fungao muito
similar: desqualificar as explicagoes mentalistas por seu descompromisso com a adogao de
uma linguagem explicativa das ciencias naturais. O ponto em questao estaria ñas variáveis
de controle do comportamento verbal dos mentalistas. Ao apresentar explicagoes do
comportamento baseadas em eventos internos "mentáis" ou "conceituais", tais como
"vontade", "desejo", "memoria", "intengáo", e assim por diante, o mentalista está sob
controle nao dos eventos comportamentais que pretende explicar, mas de outras variáveis
que extrapolam o próprio dominio do fenómeno a ser explicado, estando em outro lugar e
em outro nivel de observagáo. Essa seria a quarta e última justificativa para a náocientificidade do mentalismo. Skinner a apresenta ñas seguintes obras: 1931/1961g,
1938/1966, 1945, 1947, 1951/1961f, 1953/1965, 1955/1961c, 1956/1961m, 1957/1992 e
1959/1972.
2. O mentalismo nao seria a melhor forma de se fazer ciencia:
Há outro conjunto de críticas ao mentalismo que nao parte da simples negagao de sua
cientificidade, mas aponta falhas no tipo de conhecimento científico produzido a partir de
suas próprias premissas. Para Skinner, o mentalismo até poderia fundamentar a prática
científica, mas de forma insatisfatória e parcial. Sao estas limitagoes na construgáo de uma
explicagao legítimamente científica que seráo agora exploradas.
Em primeiro lugar, Skinner considera o mentalismo empíricamente frágil, ou seja,
sugere que este tipo de explicagao do comportamento carecería de uma base observacional
sistemática consistente. As explicagoes mentalistas nao estáo ancoradas em dados copiosos
produzidos de forma cuidadosa e sistemática, mas acabam por misturar observagoes parciais
erráticas, em geral mal colhidas, com uma ampia tendencia a verbalizar mais do que os
dados permitiriam. Skinner inclusive chega a classificar o mentalismo de "irrealista" e
"retórico", por ver nesse modo explicativo uma descrigáo de um mundo inexistente,
meramente ficticio, incompatível com o mundo real observado com cuidados e criterios
rigorosos. Essa crítica está presente ñas seguintes obras de Skinner: 1938/1966, 1947, 1950,
1951/1961f, 1953/1965,1954/1961b, 1956/1961me 1957/1992.
Em segundo lugar, o mentalismo forneceria apenas explicagoes circulares acerca do
comportamento. Os construtos mentalistas seriam produto de inferencias feitas a partir do
comportamento que se pretende explicar. Observa-se uma dada relagáo comportamental
para, entáo, criar um modelo hipotético mentalista que explicaría tal relagáo. Esses modelos
hipotéticos, embora criados a partir do comportamento, nao se referem ao comportamento
propriamente dito, mas a algo que ocorreria dentro do sujeito, em sua "mente" ou
"cognigáo". O problema seria que nao explicamos o comportamento de um sujeito dizendo
que suas agóes sao conseqüéncias de suas "vontades", "emogóes", "intengóes",
Memorándum 22, abr/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
BSN1676-1669
http://www.fafidi.iifrng.br/rnernorandirm/a22/carvalhonetotoijrinhoziliostrapasson01
Carvalho Neto, M. B., Tourinho, E. Z., Zilio, D. & Strapasson, B. A. (2012). B. F. Skinner e o mentalismo: urna análise
histórico-conceitual (1931-1959). Memorándum, 22, 13-39. Recuperado em
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"inteligencia", etc., pois ainda faltaria explicar os próprios construtos mentalistas tomados
como causas. E para explicá-los precisaríamos recorrer as relagóes comportamentais a partir
das quais eles foram inferidos. Temos, assim, urna relagáo circular: diante de um
comportamento a ser explicado (por exemplo, o grito de urna pessoa) utilizam-se construtos
mentalistas (por exemplo, "urna frustragáo que levou a um ataque de furia"), mas para
explicar os construtos (frustragao e furia) é preciso voltar ao comportamento (o grito). A
única evidencia do constructo estaria no próprio comportamento a ser explicado. Devido a
esse fato, Skinner afirma que o mentalismo fornece apenas ficgóes explicativas. Essa crítica
foi localizada ñas seguintes obras: 1938/1966,1944,1945,1947,1950,1953/1965,1954/1961b,
1954/19611,1955/1961c, 1956/1961m, 1957/1992 e 1958/1961].
O terceiro ponto que justifica o argumento skinneriano de que o mentalismo nao seria a
melhor forma de se fazer ciencia advém da historia da ciencia. De acordó com Skinner,
explicagoes mentalistas foram consistentemente abandonadas ao longo do desenvolvimento
das ciencias. A explicagao mentalista nao seria exclusividade da Psicología e também estaria
presente na historia de outras ciencias, sendo usada para explicar inicialmente outros
fenómenos, a partir de supostos eventos internos ou subjacentes (como a vis viva explicando
o movimento das rochas ou o phlogiston explicando a combustao, por exemplo). Contudo,
tais explicagoes marcam apenas o comego destas ciencias. Ao progredirem, tais ciencias
sistemáticamente abandonaram o mentalismo explicativo e passaram a adotar explicagoes
funcionáis fisicalistas. Skinner parece entender o mentalismo como urna fase natural e
preliminar na busca de explicagoes para os fenómenos do mundo. Entretanto, esta forma de
descrever as causas dos eventos foi posteriormente rejeitada pelas próprias ciencias que a
adotaram e esta informagao conduziu Skinner a, segundo ele, "aprender com a historia",
chegando entao a duas conclusóes: Em primeiro lugar, que a explicagao mentalista já teria se
mostrado ineficaz na historia de outras disciplinas científicas. Em segundo lugar, que o
mesmo acontecería ou deveria acontecer na historia da Psicología, para que um efetivo
avango científico tivesse lugar. Essa crítica está presente nos seguintes textos de Skinner:
1931/1961g, 1945, 1947, 1953/1965, 1954/1961b, 1955/1961c, 1956/1961m, 1957/1961Í,
1957/1992 e 1958/1961j.
O quarto problema atribuido as explicagoes mentalistas estaria na dificuldade de
observagao e manipulagao dos eventos focalizados pelos mentalistas. Para Skinner urna
causa interna nao seria problemática em si mesma. O lugar ocupado por um agente interno
controlador nao seria em esséncia um criterio suficiente para invalidar ou nao urna
explicagao. O autor pondera apenas que processos causáis interiores ao organismo seriam
mais difíceis de observar e registrar com a precisáo exigida por urna análise científica. A
observagao e o registro dificultados, por sua vez, abririam espago para inferencias
equivocadas sobre as propriedades dos processos internos supostos pela teoría e a
interpretagáo dos dados estaria, dessa maneira, sob suspeita. Mais grave ainda para Skinner
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Carvalho Neto, M. B., Tourinho, E. Z., Zilio, D. & Strapasson, B. A. (2012). B. F. Skinner e o mentalismo: urna análise
histórico-conceitual (1931-1959). Memorándum, 22, 13-39. Recuperado em
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seria o fato de que urna interpretagao mentalista, mesmo equivocada, conseguiria em grande
parte se manter imune a crítica, pois as variáveis internas ao organismo imporiam
dificuldades ao examinador que, por sua vez, nao poderia fácilmente identificá-las, isola-las e
testá-las e, desse modo, verificar seus reais efeitos sobre a agáo observada. Essa crítica foi
apresentada por Skinner em 1953/1965.
Problemas com o vocabulario mentalista ocupam o quinto ponto crítico aqui
apresentado. Específicamente, o mentalismo para Skinner faz uso abusivo de certas
metáforas e construtos problemáticos na tentativa de explicar o comportamento. Note-se que
nao é urna oposigao pura e simples ao uso destes instrumentos conceituais na tentativa de
compreender um fenómeno complexo. O uso de metáforas e construtos explicativos é urna
estrategia legítima em ciencia, mas o mentalismo se utiliza de tipos inadequados destas
ferramentas explicativas. A inadequagáo decorre do fato de que as variáveis que controlam o
comportamento verbal do cientista mentalista extrapolam as contingencias comportamentais
que ele pretende explicar. Explicar urna dada relagáo comportamental atribuindo ao sujeito
urna "vontade" implica ir além da relagáo observada. Provavelmente, o cientista mentalista,
ao atribuir ao sujeito urna "vontade", está sob controle de outras contingencias verbais
relacionadas as explicagoes populares - nao científicas - do comportamento. Skinner trata do
problema das metáforas no texto de 1954/1961b.
Skinner também sustenta, sendo essa a sexta crítica a ciencia mentalista, que o
mentalismo, mais específicamente o ligado a Psicanálise de Freud e o apoiado na nogáo de
homem autónomo imprevisível, dispensaría o modelo de investigagáo das outras ciencias
físicas e naturais, como a medigáo precisa e a quantificagáo, e isso para Skinner traria
conseqüéncias negativas. Ao abdicar-se do sistema da Física e da Biología, abandona-se
também as técnicas de mensuragáo que foram a principal contribuigáo das primeiras
realizagóes das outras ciencias e que as fez avangar em suas fases iniciáis (quando estas
estavam imersas em concepgóes supersticiosas). O mentalismo fica, dessa forma, sem
instrumentos eficazes para avaliar com mais exatidáo a confiabilidade de suas teorías e
progredir através do teste empírico sistemático para um conhecimento cada vez mais preciso
sobre a parcela do mundo estudada. Essa crítica está presente nos seguintes textos de
Skinner: 1954/19611 e 1956/1961m.
3. O mentalismo impediría o desenvolvimento efetivo das ciencias do comportamento:
Em outro conjunto de críticas, Skinner vé no mentalismo um entrave ao
desenvolvimento das ciencias do comportamento, isto é, de qualquer área científica
interessada em estudar o fenómeno.
O primeiro entrave está na extrapolagáo mentalista. As explicagoes mentalistas seriam
extrapolagóes justamente por nao manterem no mesmo nivel ou sistema dimensional o
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Carvalho Neto, M. B., Tourinho, E. Z., Zilio, D. & Strapasson, B. A. (2012). B. F. Skinner e o mentalismo: urna análise
histórico-conceitual (1931-1959). Memorándum, 22, 13-39. Recuperado em
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fenómeno a ser explicado. O comportamento e as suas supostas causas, a "mente", a
"fisiologia" (real e conceitual) e as explicagóes "conceituais", nao estariam no mesmo nivel de
análise e, portante, nao poderiam constituir explicagoes aceitáveis. Assim, a variável
dependente e as variáveis independentes estariam em diferentes níveis de análise. Em
poucas palavras, as explicagoes mentalistas váo além do fenómeno observado. Ao observar
um conjunto de agóes de um organismo o mentalista se volta nao para o plano em que o
comportamento teve lugar, mas para outro plano, em outra esfera (suposta) de existencia.
Além de ser urna objegáo metodológica, esta crítica está estreitamente relacionada ao
argumento de Skinner segundo o qual o mentalismo fornece apenas ficgóes explicativas.
Encontramos a crítica a extrapolagáo mentalista ñas seguintes obras de Skinner: 1938/1966,
1944,1947,1950,1954/1961b, 1956/1961m, 1957/1992 e 1958/1961].
O problema da extrapolagáo também está relacionado, por sua vez, ao segundo
obstáculo mentalista para o desenvolvimento das ciencias do comportamento: o mentalismo
dificulta o estudo do comportamento em si mesmo. O fenómeno comportamental é tratado
no mentalismo apenas como urna expressao ou síntoma de processos mentalistas, tais como a
"mente", a "cognigáo", o "sistema nervoso real" e o "sistema nervoso conceitual". Ao partir
dessa premissa, o mentalismo teria a fungáo de afastar a investigagáo do comportamento em
si mesmo. Isto poderia ocorrer ao menos de tres formas diferentes: (1) parausando os estudos
com a sinalizagáo de já existirem respostas suficientes em outro ámbito mais importante
(mental, fisiológico ou conceitual); (2) desencorajando a investigagáo do comportamento ao
atribuir-lhe propriedades que seriam impeditivas da aplicagao das técnicas tradicionais das
ciencias naturais (como o imaterialismo e a autodeterminagáo); e (3) deslocando o foco de
atengáo do comportamento para outros supostos eventos ocorridos no interior do sujeito que
se comporta. Neste sentido, as agóes do sujeito sao, para o mentalismo, apenas um indicativo
da existencia e atividade de outra esfera de eventos internos mais importantes, o mundo
mental, fisiológico ou conceitual, estes sim merecedores de investigagáo. Esta crítica expóe
como Skinner via no mentalismo um obstáculo á implementagáo de seu próprio projeto de
urna ciencia autónoma do comportamento baseada em pressupostos filosóficos do
behaviorismo radical. Podemos encontrá-la nos seguintes textos de Skinner: 1938/1966,1947,
1950,1953/1965,1954/1961b, 1956/1961m, 1957/1992 e 1958/1961J.
Por conta de suas extrapolagóes, e por dificultar o estudo do comportamento em si
mesmo, o mentalismo também acaba por atrapalhar o desenvolvimento das ciencias
ínteressadas em estudar esse fenómeno, tais como a Análise do Comportamento, a fisiologia
e as ciencias sociais. O mentalismo descreveria o fenómeno comportamental
equivocadamente e, por isso, forneceria pistas falsas sobre o que seriam e como se deveria
lidar com os processos comportamentais. Skinner discorre sobre esse terceiro obstáculo ñas
seguintes obras: 1947,1956/1961m e 1957/1992.
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Carvalho Neto, M. B., Tourinho, E. Z., Zilio, D. & Strapasson, B. A. (2012). B. F. Skinner e o mentalismo: uma análise
histórico-conceitual (1931-1959). Memorándum, 22, 13-39. Recuperado em
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Em adendo, o mentalismo também acaba por obscurecer a cadeia causal responsável
pelo comportamento. Para Skinner as explicagóes mentalistas tendem a descrever de forma
simplista e imprecisa os eventos reais envolvidos na determinagáo do comportamento,
negligenciando assim muitos detalhes importantes dos fatos. Ao fazer isso, o mentalismo
obscurece a cadeia causal completa envolvida. O procedimento mentalista padrao parece ser
transformar as variáveis acessíveis ambientáis em obscuras variáveis "mentáis"
intermediarias, guardadas dentro do organismo. Com isso, perde-se de vista as variáveis
iniciáis concretas da cadeia causal, sendo o elo intermediario, criado verbalmente e inferido
do comportamento, incapaz de reproduzir todas as informagóes relevantes do elo original
que em tese deveria substituir. Enfim, as causas internas ou intermediarias mentalistas
seriam sempre mais simples que as reais historias de interagao ocorridas no primeiro elo da
cadeia comportamental. Os termos mentalistas nao podem substituir uma descrigao rigorosa
e detalhada de todo conjunto de variáveis que teriam atuado e estariam atuando sobre o
fenómeno comportamental. Consistindo no quarto obstáculo para o desenvolvimento efetivo
das ciencias do comportamento. Encontramos essa crítica nos seguintes textos de Skinner:
1954/1961b, 1946a, 1956/1961m e 1957/1992.
Cada fenómeno possui muitas propriedades ou dimensóes diferentes. Algumas se
mostram mais adequadas que outras ao longo de uma investigagáo. Em Psicología, as
propriedades tradicionalmente apontadas e adotadas pelo mentalismo nao se mostraram as
mais relevantes ou críticas para entender o fenómeno comportamental. Grande progresso
viria com a adogao das medidas comportamentais corretas e heurísticas, assim como ocorreu
na historia de outras ciencias. Nesse contexto, para Skinner, o quinto obstáculo para o
desenvolvimento das ciencias do comportamento está no fato de que o mentalismo usa
dimensóes incorretas do comportamento. Mas o autor nao apresenta a crítica sem uma
proposta substitutiva. Para ele, a propriedade dinámica relevante de uma agáo estaría na sua
probabilidade de ocorréncia, na freqüéncia de uma classe de respostas. Segundo Skinner, os
termos psicológicos tradicionais obscurecem esta dimensáo do evento estudado e com ela a
melhor estrategia para estudar o comportamento com sucesso (gerando previsáo e controle).
Essa crítica pode ser encontrada nos seguintes textos de Skinner: 1950, 1953, 1954/1961b e
1957/1992.
Finalmente, o sexto entrave mentalista consiste em sua violagáo das variáveis externas
no controle do comportamento. A justificativa de Skinner é que em um sistema
válido/aceitavel as variáveis causáis do comportamento devem estar fora do organismo que
se comporta por serem essas as únicas passíveis de manipulagáo direta. Admitindo-se a
existencia de tres elos encadeados: (1) eventos ambientáis externos; (2) eventos internos; e (3)
eventos comportamentais externos, Skinner considera o primeiro elo (ambiente externo)
como a única fonte legítima de informagoes sobre as causas dos dois elos subseqüentes. Por
atribuir as causas do comportamento aos eventos internos, sejam eles mentáis, fisiológicos ou
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conceituais, o mentalismo transgride este principio de boa conduta científica e por isso nao
merece confianga. Trata-se, enfim, do externalismo skinneriano. Podemos encontrar tal crítica
ao mentalismo ñas seguintes obras: 1953/1965,1955/1961c, 1957/1992 e 1958/1961].
4. O mentalismo dificulta a resoluto dos problemas humanos:
É coerente supor que por dificultar o desenvolvimento das ciencias do comportamento,
o mentalismo também dificulte a resolugáo dos problemas humanos que dependam da
tecnología fornecida por essas ciencias. Esta é justamente urna das categorías que compoem
as críticas de Skinner ao mentalismo.
Em primeiro lugar, para o autor, além de trazer dificuldades no ámbito científico, o
mentalismo tem influencia negativa sobre a vida concreta e cotidiana das pessoas. Os
problemas humanos sao, para Skinner, perpetuados pela estrategia mentalista de explicagáo
do comportamento. Tal estrategia mantém os investigadores afastados das solugoes
comportamentais para os grandes dilemas da humanidade. De acordó com Skinner, o
mentalismo já teria se mostrado ineficaz para ajudar a humanidade a resolver seus
problemas. Apesar de serem amplamente adotadas há pelo menos 2.500 anos na cultura
ocidental para lidar com o comportamento, as explicagoes mentalistas nao auxiliam no
diagnóstico preciso da génese e mecanismos de manutengáo dos males sociais e
conseqüentemente também nao produzem urna tecnología suficiente e eficiente para
eliminar tais males. Skinner apresenta essa crítica em quatro textos: 1953/1965, 1955/1961h,
1956/1961e1957/1992.
Em segundo lugar, o mentalismo dificulta a resolugao dos problemas humanos por nao
adotar o método adequado para o controle do comportamento. As explicagoes mentalistas
seriam esteréis na geragao de práticas úteis para resolver os problemas humanos, pois se
utilizariam de um método inadequado para permitir a manipulagao e o controle do
comportamento do individuo. Sem métodos e técnicas para controlar de forma precisa a agao
dos individuos, nenhuma solugao aos problemas práticos da humanidade poderia ser
concebida. Como para Skinner, os problemas sociais mais graves envolvem (direta e
indiretamente) comportamentos, sao entao estes eventos que precisam ser estudados,
entendidos e alterados de forma planejada. Sao dois os textos em que Skinner trata dessa
crítica: 1947 e 1958/1961].
5. O mentalismo permanece por conta da pouca divulgagao/produgao da ciencia do
comportamento:
Outro conjunto de críticas versa sobre o caráter provisorio e oportunista das explicagoes
mentalistas. Para Skinner, o mentalismo seria produto da ignorancia momentánea das causas
efetivas do comportamento (achadas na interagáo concreta entre um organismo
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biológicamente constituido e seu ambiente histórico e imediato). Na ausencia de evidencias
ambientáis para explicar a agáo, ou simplesmente no desconhecimento de tais evidencias,
surgiriam entao nesse vacuo funcional os supostos determinantes mentalistas.
Assim, o primeiro ponto crítico é o oportunismo do mentalismo. É a inexistencia ou
desconhecimento de explicagóes funcionáis que alimentariam a criagáo de explicagóes
mentalistas. Urna explicagáo mentalista segundo essa interpretagáo nao seria produto de
urna demonstragáo positiva (aditiva) de seus efeitos sobre o comportamento, mas um
artificio verbal apoiado em demonstragoes negativas (ou ignorancia das demonstragoes
positivas) da teoria a ela concorrente, a análise funcional defendida por Skinner. O autor
trata do oportunismo mentalista nos seguintes textos: 1931/1961g, 1944, 1953/1965 e
1956/1961a.
Sendo o mentalismo urna explicagao oportunista, a produgao e divulgagao das relagoes
funcionáis identificadas por urna ciencia do comportamento tornariam os determinantes
interiores mentáis dispensáveis. Este é o segundo ponto crítico ao mentalismo: o avango da
ciencia do comportamento reduz a necessidade de explicagoes mentalistas. Nesse caso,
Skinner sugere que a ampliagao da compreensao das variáveis das quais o comportamento é
urna fungao, e a divulgagao da ciencia do comportamento, reduzem sistemáticamente o
espago das explicagoes mentalistas. O autor discorre sobre o tema ñas seguintes obras:
1931/1961g, 1955/1961c, 1957/1961Í, 1957/1992 e 1958.
E mais, reduzindo o espago das explicagoes mentalistas, a ciencia do comportamento
provavelmente poderia chegar a um ponto em que seria possível substituí-la por completo. A
lógica da argumentagao dessa crítica é a de que as explicagoes mentalistas teriam se tornado
plenamente descartáveis diante do acumulo de evidencias empíricas e interpretagóes
científicas da agáo complexa geradas pela Análise do Comportamento. O mentalismo tornarse-ia dispensável para lidar com as agóes dos organismos em geral e dos seres humanos em
particular, na medida em que as explicagoes de inspiragáo behaviorista radical fossem
produzidas e divulgadas. Para Skinner, obviamente, a substituigáo traria ganhos tanto
metodológicos (aumento da precisáo, do rigor e da confiabilidade na investigagáo) quanto
em repercussóes práticas (através da edificagáo de urna tecnología do comportamento eficaz
em ajudar as pessoas a resolverem seus problemas sociais/ambientáis). Encontramos esse
terceiro ponto crítico do mentalismo ñas seguintes obras de Skinner: 1945, 1953, 1953/1965,
1954/1961b, 1956/1961m e 1957/1992.
6. O mentalismo fornece explicagoes desnecessárias ou supérfluas para a previsao e
controle do comportamento:
Um último tipo de crítica ao mentalismo é de ordem pragmática ou instrumental. As
variáveis concebidas ñas explicagoes mentalistas para ordenar as agóes sao entendidas por
Skinner como inacessíveis e intocáveis diretamente e por isso sem o poder para gerar nem a
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previsao e nem o controle do comportamento. Por outro lado, e aqui está a esséncia da
crítica, é possível falar/descrever/interpretar/mudar o comportamento satisfatoriamente
sem referencias aos eventos mentalistas, restringindo-se apenas aos eventos ambientáis
externos acessíveis.
O que justifica esse posicionamento? Skinner diz que urna vez estabelecida urna relagáo
funcional entre o ambiente e as agóes do organismo, o conhecimento do elo intermediario
interno seria pragmáticamente desnecessário ou supérfluo, pois o comportamento poderia
ser mudado (através da geragáo de previsao e controle) sem qualquer referencia ao elo
mediador, apenas alterando o primeiro elo ambiental/externo da cadeia causal. Skinner
apresenta esse argumento em tres textos: 1953/1965,1956/1961m e 1958/1961].
Os Interlocutores de Skinner no Debate com o Mentalismo
Nem sempre é possível identificar na obra de Skinner a quem as críticas sao dirigidas.
A partir da caracterizagao aqui apresentada parece prevalecer um tipo de mentalismo
ingenuo ou cotidiano, amplamente presente ñas descrigoes psicológicas ou comportamentais
da linguagem ordinaria, mas sem urna autoría claramente definida ou urna sofisticagáo
teórica que a ligue a um sistema ou escola de pensamento formalmente apresentada.
Entretanto, algumas vezes seus interlocutores sao nominados textualmente. Considerando
que a identificagao de quem sao os interlocutores de Skinner quando ele faz críticas ao
mentalismo pode ser elucidativo para se entender (e avaliar) as caracterizagóes e críticas
feitas a esse modelo explicativo, dispóe-se abaixo a indicagao dos autores mencionados.
Nos textos da década de 30, Skinner parece dialogar principalmente com as
proposigoes behavioristas concorrentes de Hull, Tolman e Boring e com a tradigao fisiológica
(real e conceitual). Em 1944, por sua vez, Skinner menciona os behaviorismos de Hull e
Tolman mais urna vez. Nada mais foi registrado sobre os dois depois disso. Aínda na década
de 40, Boring é mais urna vez mencionado no texto de 1945. Na mesma obra aparece pela
primeira vez urna referencia a psicología de S. S. Stevens. Após essa data, os autores nao sao
mais mencionados. Skinner também permanece dialogando com a Fisiología nessa fase,
especialmente agora a conceitual. No texto de 1947 Skinner pela primeira vez fala da
Psicanálise de Freud. Na década de 50, Skinner trata do sistema nervoso conceitual pela
última vez em seu texto de 1950. Na mesma obra registrou-se, pela primeira vez, urna
referencia a Psicología Introspectiva, interessada nos processos da consciéncia. Nessa fase,
sao feitas novas referencias a mente consciente e também a mente inconsciente da Psicanálise
de Freud. No texto de 1957/1992, urna única mengáo indireta é feita a Psicología Cognitiva,
com a crítica ao conceito de ínformagáo para explicar o comportamento verbal.
Em suma, Skinner parece ter de fato diferentes interlocutores ao longo das tres
primeiras décadas, prevalecendo o confronto com a tradigao fisiológica (real e conceitual) e
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com as proposigoes de Tolman, Hull, Boring e mais tarde Stevens até os anos 40. Em 1947 o
aparelho psíquico de Freud é específicamente tratado pela primeira vez e permanece sendo
alvo das críticas de Skinner durante os anos 50, ganhando em 195471961b, inclusive, um
artigo inteiro dedicado a discutir as suas bases. Também prevalecem a partir dos anos 50
referencias a mente consciente. O único elemento obtido que pode indicar alguma
preocupagao com a Psicología Cognitiva contemporánea foi registrado em 1957/1992. Nótese, porém, que essa versáo de mentalismo nao mereceu por parte de Skinner um tratamento
especial nessa ocasiáo e mais nada foi escrito a respeito até 1959.
O Lugar do Antimentalismo na Análise Comportamental de Skinner
Com o levantamento descrito até aquí, buscou-se identificar e discutir como Skinner,
entre 1931 e 1959, caracterizou o mentalismo e que tipos de críticas dirigiu a esse modo de
explicar o comportamento. Diante de consideragoes sobre a existencia de mudangas em
aspectos centráis do pensamento de Skinner (Micheletto, 1997; Moxley, 1992,1998,1999) e de
indicagoes como as de Richelle (1993) em que o antimentalismo Skinneriano teria urna
posigao básica que havia sido refinada com o passar do tempo, perguntou-se qual seria essa
posigao básica e, se houve mudangas, quais teriam sido elas.
Baseando-se ñas análises feitas até aqui, é possível notar que as críticas ao mentalismo
sao anteriores a própria elaboragáo dos conceitos de comportamento e condicionamento
operante. Já no primeiro trabalho estudado, dos anos 30, Skinner (1931/1961g) formula
objegoes a certas formas de explicagao do comportamento apelando para eventos interiores
supostamente em atividade dentro dos organismos. O conceito de operante foi importante
para a própria crítica ao mentalismo, já que abriu ampias possibilidades de interpretar
eventos comportamentais complexos, aparentemente sem qualquer relagáo com os
determinantes ambientáis e, por isso, fácilmente atribuíveis ao próprio organismo e/ou
capacidades mentáis dentro dele, como as atividades chamadas de intencionáis ou
voluntarias. Entretanto, o antimentalismo skinneriano parece independer da unidade de
análise adotada para entender a agáo dos organismos. Skinner já ingressou na Psicología
como behaviorista e o Behaviorismo de Watson, no qual ele havia se inspirado, era
essencialmente um rompimento radical com a tradigao subjeti vista/mentalista de lidar com
os processos psicológicos (Heidbreder, 1933/1975; Marx & Hillix, 1963/1993). Dado esse
contexto, parece plausível supor que, para Skinner, ser behaviorista implicava
necessariamente ser antimentalista. Diante dos processos psicológicos só havia urna
alternativa legítima: urna explicagao exclusivamente em termos de comportamento (a relagáo
entre um organismo genéticamente dotado e seu ambiente histórico e imediato, ambos
descritos em termos fisicalistas). Daí urna das principáis dificuldades de aceitar versóes de
urna ciencia do comportamento nos moldes propostos por Tolman, Hull, Boring e Stevens,
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que de alguma forma (por omissao ou por proposigao explícita) mantinham vivas as nogoes
mentalistas.
Ao analisar a nogao de reflexo na Fisiología e defender o uso dessa unidade, entendida
apenas como relagoes de dependencia (tratadas aínda por "correlagoes") entre estímulos e
respostas, em urna Ciencia (independente) do Comportamento, Skinner (1931/1961g) definía
qual conjunto de varia veis deveria entrar em sua equagao descritiva/explicativa do
comportamento, ditando métodos de investigagao e um modo de interpretagao dos dados
produzidos. Interpretagao que era baseada em urna análise funcional externalista, e nao
mentalista, dos dados. É interessante notar como Skinner, em 1931, em grande parte traga a
historia do afastamento de explicagoes de natureza mentalista da Fisiología. De certa forma,
esse parece ser o caminho que ele esperava que a psicología seguisse. A Análise do
Comportamento surge entáo como urna tentativa de caminhar nessa diregáo.
A compreensáo de que aquilo que era defendido nos seus primeiros textos (e.g.
1931/1961g) já configura urna crítica ao mentalismo ganha sustentagáo ñas avaliagoes do
próprio Skinner sobre sua produgáo na época: "Meu artigo era em parte um ataque as
explicagoes mentalistas do comportamento. No século 19, por exemplo, havia aqueles que
defendiam a 'alma' da medula espinhal, a 'Rückenmarkseele'" (1979, p. 68).
A "alma" que havia sido afastada sistemáticamente das explicagoes fisiológicas para
compreender o fenómeno da vida e as atividades básicas dos organismos, sempre
conseguindo achar outro refugio mais profundo e aparentemente impenetrável e seguro dos
inconvenientes da curiosidade desrespeitosa do método científico, tinha um paralelo com a
nogao de urna mente criadora, habitando algum lugar no organismo e responsável por sua
agáo. Restaría a urna Ciencia do Comportamento também expurgar as explicagoes
psicológicas de sua entidade mágica, religiosa, sua "alma", sua mente. O confronto com o
mentalismo parecía vital para Skinner abrir espago para urna ciencia do comportamento nos
moldes definidos por ele:
Eu tenho achado necessário de tempos em tempos atacar os conceitos
tradidonais que atribuem um controle espontáneo a um eu interno chamado
falante. Somente desse modo poderia abrir espaco para urna explicacao
alternativa da aeao que é o assunto de urna ciencia do comportamento verbal
a ser construida. (Skinner, 1957/1992, p. 460).
A determinagáo em reformar toda a Psicología se fosse necessário, entenda-se remover
déla todos os artificios mentalistas de explicagao do comportamento, já estava nos planos de
Skinner ainda nos anos 30, quando ainda fazia o seu doutorado:
Minha condicao atual é excelente. Estou trabalhando tao duro quanto antes,
mas mais livremente - com tempo e assuntos da minha própria escolha.
Quase mudei para a fisiología, que acho fascinante. Mas meu interesse
principal reside no campo da Psicología e eu devo provavelmente continuar
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nele, mesmo que para isso, se necessário, tenha que mudar o campo inteiro
ao meu modo [de vé-lo]. (Skinner, 1979, p. 38).
Mencionou-se anteriormente que o acumulo de dados experimentáis cuidadosos sobre
as relagóes funcionáis existentes entre as respostas de um organismo e seu ambiente,
histórico e imediato, nao parecia ser condigáo suficiente para impor ao mentalismo uma
retirada da Psicologia. Skinner (1947) menciona que uma teoría nao poderia ser combatida e
refutada apenas pelos fatos. Afirma que uma teoria só poderia ser substituida por outra
teoria. Ao estabelecer contato com a Psicología, Skinner deparou-se com uma teoria que
prevalecía: o mentalismo. Havia uma necessidade urgente de se produzir dados empíricos
capazes de elucidar principios básicos regendo o comportamento. Contudo, a produgao
empírica por si só nao garantiria o espago das propostas de Skinner dentro da Psicologia e
muito menos que a Psicologia fosse transformada em uma Ciencia do Comportamento. Uma
teoria rival deveria ser concebida, complementando as atividades experimentáis de pesquisa,
tanto para apontar as falhas das rivais quanto para, construtivamente, divulgar o
conhecimento obtido através da experimentagao cuidadosa e expandir, através da
interpretagao, o alcance da explicagao behaviorista radical aos fenómenos para os quais ainda
nao haveria pesquisa empírica conclusiva. Tal teoria seria em esséncia uma antítese da teoria
prevalecente para os mesmos conjuntos de fenómenos. O antimentalismo parece ser, se as
premissas indicadas estiverem corretas, o alicerce mais básico do behaviorismo radical.
Sugere-se aqui que o entendimento de Skinner é o de que uma das maiores missóes (se
nao a maior) do Behaviorismo Radical parece ser exatamente o combate ao mentalismo. A
importancia do antimentalismo seria táo central no ideario skinneriano que com a derrota
das explicagóes mentalistas o Behaviorismo Radical poderia ser enfim aposentado. No final
da década de 60, Skinner faz uma previsáo interessante sobre o futuro do Behaviorismo
Radical:
O Behaviorismo, tal como o conhecemos, eventualmente irá morrer - nao
porque é um fracasso, mas porque é um sucesso. Como uma filosofía crítica
da ciencia, ele vai necessariamente mudar como uma ciencia do
comportamento muda, e os assuntos correntes que o definem poderao estar
completamente resolvidos. Behaviorismo, como um - ismo, entao terá sido
absorvido por uma ciencia do comportamento. Sempre haverá espaco para
uma lógica de ciencia peculiar a tal ciencia, mas ela nao vai lidar com os
assuntos que definem o behaviorismo hoje. (Skinner, 1969, p. 267).
A morte do Behaviorismo seria um sucesso porque ele teria sido absorvido pelo campo
psicológico e transformado a Psicologia em uma Ciencia do Comportamento. Sendo o
Behaviorismo uma teoria cuja principal tarefa seria a expulsáo completa do mentalismo, nao
havendo mais o que combater, nao haveria mais também a necessidade de uma teoria
antimentalista. O Behaviorismo Radical poderia descansar. Na verdade ele poderia
permanecer amplamente modificado, com outras frentes de debate.
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Em urna carta datada de 17 de novembro 1932, Skinner elabora seu "Projeto de
Campanha Para os Anos 30-60" e explícita seus objetivos para o período, inclusive definindo
urna escala de prioridades para cumpri-las:
1. Descrigao experimental do comportamento. Continuar através das linhas
atuais. Propriedades de condicionamento, extincao, drives, emocoes, etc.
Nao se render a fisiología do sistema nervoso central. Publicar.
2. Behaviorismo versus Psicología. Sustentar a metodología behaviorista do
inicio ao fim. Definicoes operadonais de todos os conceitos psicológicos.
Nao publicar muito.
3. Teorías do conhecimento (somente as científicas). Definicoes de conceitos em
termos de comportamento. Urna ciencia descritiva do que acontece quando
as pessoas pensam. Relacionar ao trabalho experimental. Incluir urna teoría
do significado. Publicar tarde.
4. Teorías do conhecimento (nao-centíficas). Crítica literaria. Teoría
comportamental da criacao. Publicar muito tarde, se o fizer.
Estas estao em ordem de importancia, embora 2 e 3 estejam
aproximadamente no mesmo nivel. Urna consideravel parcela de tempo
deve ser dedicada ao 1.
Planos para os anos 60 - (?) (Estes estao além do meu controle atual).
(Skinner, 1979, p. 115, itálicos do autor).
Observem-se alguns pontos importantes desse planejamento de Skinner exatamente
para o período examinado no presente trabalho. Em primeiro lugar, a nota para nao se
entregar a Fisiología indica que urna Ciencia do Comportamento nao poderia ser reduzida ao
funcionamento do sistema nervoso. Havia a necessidade de se manter as fronteiras claras
entre as duas áreas. Em segundo lugar, o título "Behaviorismo versus Psicología" é
significativo, pois sugere como as propostas de Skinner rivalizavam com toda área
psicológica, essencialmente mentalista, e que urna Ciencia do Comportamento deveria
substituir todo aparato teórico da Psicología tradicional por termos behavioristas,
operacionalmente (funcionalmente) estabelecidos. A mesma fungáo teriam os itens 3 e 4.
O otimismo de Skinner, contudo, parece ter sido abalado nos anos 80 com o
crescimento da Psicología Cognitiva e a constatagáo de que a Psicología nao teria se tornado,
afinal, urna Ciencia do Comportamento após mais de cinqüenta anos de seus esforgos
antimentalistas. Artigos publicados no final da vida de Skinner, como Whatever happened to
psychology as the science of behavior? (Skinner, 1987), e o último, de 1990, intitulado Can
psychology be a science ofmind? (Skinner, 1990), estao permeados de auto-reflexáo, onde o foco
principal seria as razóes para a sobrevivencia do mentalismo (apesar dos esforgos do
Behaviorismo Radical e da Ciencia do Comportamento) e suas conseqüéncias, negativas,
para a Psicología e para a própria humanidade.
A despeito desse abalo, ressalta-se, a oposigáo ao mentalismo permanece como tema
central do behaviorismo radical. Tendo Skinner como principal sistematizador do ponto de
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vista antimentalista, behavioristas radicáis ainda insistem na validade de seu posicionamento
(e.g., JEAB, 1993; Behavior and Philosophy, 2007).
Em síntese, ao que parece, os aspectos definidores do mentalismo e as críticas de
Skinner foram constantes e recorrentes ao longo do período analisado no presente artigo,
sugerindo, assim, que o antimentalismo skinneriano consiste em posigao básica e estável no
behaviorismo radical. No entanto, embora Skinner tenha passado do otimismo do projeto
antimentalista, cujo sucesso resultaría na própria "morte" do behaviorismo radical, ao
pessimismo decorrente do caminho que a psicología tomou com o advento da chamada
"revolugáo cognitiva" (Gardner, 1985/2003, Greewood, 1999), o antimentalismo continua
vivo como característica central do behaviorismo radical. Os dois exemplos citados
anteriormente manifestam a atualidade da prescrigáo antimentalista. Nesse contexto, é
provável que o behaviorismo radical esteja muito longe de sua "morte" e ainda seria capaz
de fomentar muitos debates e pesquisas dentro e fora da psicología.
Urna dessas investigagóes seria, por exemplo, examinar o próprio alcance e
sustentabilidade (empírica e lógica) das caracterizagoes e críticas feitas por Skinner ao
mentalismo. As fragilidades indicadas pelo autor caberiam a qualquer mentalismo
académico ou se aplicaría apenas ou preponderantemente ao mentalismo ingenuo da
linguagem ordinaria? Todas as críticas seriam igualmente válidas e sustentáveis? Essas e
outras questoes derivadas sao cruciais e ainda precisariam ser respondidas para que o
pensamento skinneriano seja compreendido e avaliado.
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Notas Sobre os Autores
Marcus Bentes de Carvalho Neto é Doutor e Pós-Doutor em Psicologia Experimental
pela USP e Professor Associado II da UFPA.
Emmanuel Zagury Tourinho é Doutor em Psicologia Experimental pela USP, Bolsista de
Produtividade do CNPq e Professor Titular da UFPA.
Diego Zilio é Mestre em Filosofía da Mente, Epistemologia e Lógica pela UNESP de
Marília e atualmente é Doutorando com bolsa FAPESP em Psicologia Experimental pela USP.
Bruno Angelo Strapasson é Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e da
Aprendizagem pela UNESP de Bauru e atualmente é Doutorando em Psicologia
Experimental pela USP e Professor Adjunto da Universidade Positivo.
Data de recebimento: 20/10/2011
Data de aceite: 30/04/2012
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O método histórico-crítico e a pesquisa epistemológica em psicología:
urna perspectiva de Jean Piaget
The historical-critical method and epistemological research in psychology: a perspective
of Jean Piaget
Paulo Coelho Castelo Branco
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas
Universidade Federal do Ceará
Brasil
Resumo
Jean Piaget foi um pesquisador que contribuiu para o desenvolvimento da ciencia
psicológica. Este artigo propoe a análise de urna contribuicao deste pensador para o
desenvolvimento metodológico na pesquisa epistemológica em Psicología, através do
método histórico-crítico. Este se circunscreve em urna discussao que centra atencao nos
elementos que constituem a referencia objetiva de um conhecimento científico para
compreender e retracar sua evolucao em um caráter interno, ao interior da própria ciencia
em questao, e externo, que vincula a ciencia enfocada a um contexto sócio-histórico.
Descreve o método em suas: condicóes de uso, génese e lógica de aplicacao. Apresenta
um exemplo e, finalmente, aponta as possibilidades e limites do método histórico-crítico.
Palavras-chave: epistemología; métodos de pesquisa-psicología; teoría piagetiana
Abstract
Jean Piaget was a researcher who contributed to the development of psychological
sdence. This article proposes an analysis of the contribution of this thinker to
methodological development in epistemological research in psychology through the
historical-critical method. This is limited to a discussion that focuses attention on
elements that constitute the objective reference of a scientific knowledge to understand
and retrace its evolution in an internal character of the science in question, and external,
which links science focused on a socio-historical context. It describes the method in its:
conditions of use, génesis, and application logic. It presents an example and, finally,
highlights the possibilities and limits of historical-critical method.
Keywords: epistemology; research-psychology methods; piagetian theory
Introducto
Jean Piaget (1896-1980) foi um cientista suígo de reconhecimento internacional
considerado um dos maiores expoentes em estudos do desenvolvimento cognitivo.
1
O
1
Artigo elaborado combase na dissertagao de Paulo Coelho Castelo Branco, intitulada "A nogao de organismo no
fieri teórico de Carl Rogers: urna investigagao epistemológica", defendida em 2010 na Universidade Federal do
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dominio de seu conhecimento abrange as áreas da Biologia, Psicología, Filosofía, Lógica,
Lingüística, Educagáo, Psicanálise e Psiquiatría.
Tal dominio se deve especialmente ao interesse de Piaget pelo campo da epistemología,
definida enquanto "o estudo da constituigao dos conhecimentos válidos, recobrindo o termo
'constituigáo' ao mesmo tempo as condigóes de acesso e as condigóes propriamente constitutivas"
(Piaget, 1980, p.19, grifos do autor).
As condigóes constitutivas de um conhecimento se referem aos aspectos influentes que
contribuíram para a sua formagao. Averigua-se, entao, como um conhecimento (re)organiza
os dados que já estao disponibilizados em registros científicos estabelecidos. Por condigóes
de acesso, entende-se que um conhecimento somente se tornará válido com base no seu
posicionamento em relagáo a um paradigma, que dita os problemas científicos a serem
tratados (Piaget, 1980).
Para um conhecimento ser investigado epistemológicamente, ele deve ser circunscrito
em urna lógica que o analisa em suas múltiplas condigóes de acontecimento. Ressalta-se,
todavía, que as condigóes constitutivas para a emergencia de um conhecimento científico
válido variam de acordó com a área, e que isso é um processo inacabado (Piaget, 1980).
Deste modo, no aludido aporte sobre o campo da epistemología, percebemos urna
dupla vertente, no qual Piaget: (1) estabelece urna Psicología Genética que aborda as
questóes de como surge e ocorre o desenvolvimento do conhecimento humano, sustentado
pela hipótese de que as estruturas cognitivas nao ocorrem somente como formagóes
biogeneticamente determinadas, mas dependem, também, de urna interagáo do organismo
com o ambiente (Piaget, 1967/2003); e, (2) sitúa urna posigáo analítica que aprofunda urna
teoría do conhecimento científico que investiga as condigóes constitutivas da Psicología e o
aumento, ou nao, do seu conhecimento (Piaget, 1978; Penna, 2001).
Consideramos que na primeira vertente situam-se os estudos dos processos básicos de
percepgáo, inteligencia, aprendizagem e pensamento, enquanto que na segunda perspectiva
há urna concentragáo de estudos sobre a constituigao de urna ciencia e definigáo de seu
quadro epistémico em relagáo a outros saberes.
Este artigo trata, específicamente, deste último aporte piagetiano, que é pouco
discutido numa condigáo epistemológica e metodológica, sobretudo no Brasil, onde a
concentragáo de publicagóes e discussóes acerca do legado de Piaget enfoca mais a primeira
vertente mencionada.
Destarte, propomo-nos a retomar urna reflexáo da contribuigáo metodológica de Piaget
para investigar o desenvolvimento de urna ciencia, através do método histórico-crítico e a
aplicagáo que esse autor sugeriu. Inspirados por esta contribuigáo piagetiana sistematizamos
Ceará. Os autores agradecem ao apoio financeiro da Coordenagao de Aperfeigoamento de Pessoal de Nivel
Superior - CAPES.
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um plano metodológico que pode auxiliar pesquisas psicológicas que intencionan!
aprofundar e compreender epistemológicamente e históricamente teorias e conceitos.
Para tanto, utilizamos como principal base teórica as obras Psicogénese e Historia das
Ciencias, de autoría de Piaget e Rolando Garcia (1987), um físico e epistemólogo argentino, e
Lógica e Conhecimento Científico de Piaget (1980). Ambas sao de difícil acesso, estando
disponível predominantemente em edigóes portuguesas, o que restringe o acesso da
comunidade científica brasileira a discussao proposta. Todavía, ressaltamos que a primeira
obra referida foi langada em sua primeira edigao no Brasil recentemente (Piaget & Garcia,
2011), enquanto a segunda, na qual encontramos a melhor organizagao da proposta do
método histórico-critico, permanece aínda restrita.
Os mencionados textos foram analisados segundo um criterio de leitura seletiva (Lima
& Mioto, 2007), que elegeu os dados pertinentes a elucidagao do método histórico-critico e,
em seguida, os ordenou de modo a conferir uma coeréncia a apresentagao do método quanto
as suas condigóes de uso, génese e aplicagao.
As condigoes para o uso do método histórico-critico
Piaget (1978) postula uma concepgao de fieri, que significa o devir, o fato que faz uma
ciencia avangar e nao ficar estagnada em seu desenvolvimento. Com efeito, no entendimento
do autor:
Qual é pois, este fato, uma vez que se sabe que a ciencia evolui sem cessar?
A progressao do método é tudo... Por conseguirle, o fato da ciencia nao
pode ser compreendido senao como um fieri. Apenas este fieri é o fato. Todo
ser (ou objeto) que a ciencia tenta fixar deve-se dissolver de novo na corrente
do vir a ser [devir]. É deste vir a ser, e só dele, que se tem o direito de dizer
em último lugar: "é (um fato). O que se pode e deve entao procurar é a lei
deste processo" (p. 09, grifos do autor).
A concepgao de fieri nos dá um indicio para estabelecer como um conceito, uma nogao
ou um postulado teórico se constituíram no interior de uma ciencia (entendida aqui como
uma sistematizagao de conhecimentos) e a fizeram desenvolver-se.
Considerando a epistemología enquanto uma teoría que investiga as condigóes de
fundagóes do conhecimento, Piaget (1980) alude que uma pesquisa epistemológica deve
iniciar da pergunta "Como é que as ciencias sao possíveis?", para, em seguida, analisar a
validade e importancia de um conhecimento no interior de uma ciencia, sua singularidade
em relagao a outros conhecimentos e a sua dimensao histórica.
No pensamento de Piaget (1980): "para a compreensao dos problemas epistemológicos
tais como se póem hoje, convém fornecer um quadro previo e até partir de uma evocagao
histórica" (p. 25). Para isso, uma pesquisa epistemológica que se propóe a utilizar o método
histórico-critico deve iniciar de alguma crise ou lacuna teórica e/ou metodológica em uma
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ciencia, de modo a estabelecer urna lógica que investiga os seguintes criterios: se o
conhecimento (por exemplo, um conceito) advém de fontes externas a ciencia em questao; e
quais foram as condigoes gerais de surgimento desse conhecimento e a sua fungao no interior
dessa ciencia.
Logo, o caráter condicional que Piaget e Garcia (1987) dao ao uso do método históricocrítico centra atengao nos elementos que constituem a referencia objetiva de um
conhecimento científico para compreender e retragar sua evolugao num caráter interno (ao
interior da própria ciencia em questao) e externo (que vincula a ciencia enfocada a um
contexto sócio-histórico). Ambos estao vinculados a setores sociais que reclamam solugóes e
produgao de conhecimento.
Tal inferencia ocorre por Piaget (1980, 1967/2003) considerar que nenhum
conhecimento se desenvolve internamente por si próprio, dado que este está relacionado e
engendrado por acontecimentos contextuáis que o possibilitam em um espirito científico da
época (Zeitgeist). No entanto, a evolugao de um conhecimento no interior de urna ciencia
conduz a urna reformulagáo deste (Piaget 1980). Em outras palavras, nao se trata de
descobrir novas respostas para questóes clássicas, mas sim, descobrir novas questóes que
permitam formular os problemas de um modo diferente, o que muda o quadro epistémico de
um conhecimento.
Podemos apontar um exemplo disso na nogáo freudiana de inconsciente que, por
acontecimentos contextuáis que a possibilitam em um espirito científico de época e diante da
singular observagáo clínica de Freud, é recolada em um novo lugar de saber (Psicanálise) que
se estabelece fora dos campos da Psicologia, Medicina e Filosofía, e desenvolve-se dentro de
um sistema de coeréncia próprio, dotado de rigor metodológico e teórico para analisar os
fenómenos humanos e coletivos (Freud, 1914/1996).
Nesse exemplo, estabelecemos hipotéticamente o inconsciente como um fieri que
permite e desenvolve a construgáo do conhecimento psicanalítico. Outras nogóes poderiam,
também, ser estabelecidas hipotéticamente como o fieri da Psicanálise como, por exemplo, a
nogáo de pulsáo. O recorte que o pesquisador adota permite um horizonte de empreitadas
epistemológicas de investigagáo sobre um determinado conhecimento.
Assim, Piaget (1980) aponta para a emergencia de um método epistemológico que
possa ser utilizado pela Psicologia. Tal apontamento ocorre por ele perceber a necessidade de
urna reformulagáo epistemológica desta ciencia, haja vista que ela se ramificou por diversas
correntes de pensamento e práticas científicas - todas se distanciando de urna matriz original
- que se distinguen! quanto: ao objeto de estudo, ao método para abordar tal objeto, e ás
teorías e conceitos que definem concepgóes de mundo (Weltanschauung) confutantes (Penna,
2000).
Nao se intenciona utilizar um método que vise unificar a Psicologia em urna matriz
comum, mas pretende-se reconhecer e reconstruir um conhecimento científico, com apoio em
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seus propósitos de desenvolvimento próprio e suas respostas as questoes da época. Tal
método verifica se o conhecimento investigado nao é uma mera assimilagao e repetigao de
modelos já existentes e se nele há uma elaboragao própria.
A génese e a lógica do uso do método histórico-crítico
Segundo Piaget (1980), existem tres grandes formas de epistemologia que interessam a
Psicología: as metacientíficas, as paracientíficas e as científicas. Com base nelas, podemos
situar a emergencia do método histórico-crítico.
As epistemologías metacientíficas "partem de uma reflexao sobre as ciencias e tendem
a prolongá-las numa teoría geral do conhecimento" (Piaget, 1980, p. 26). Identifica-se nelas
um problema teórico e/ou metodológico e busca-se resolver isso com esteio em aportes
derivados de outros conhecimentos externos a ciencia em questao. Encontramos um exemplo
dessa epistemologia na Psicología Histórico-Cultural de Lev Vigotski (2004), que busca no
materialismo dialético de Karl Marx uma perspectiva para criticar o modelo fisiológico de
homem presente na Reflexologia e Reactológia soviética, de modo a elaborar uma nova
proposta de compreensao dos fenómenos psíquicos pelas condutas semióticas.
Por outro lado, as epistemologías paracientíficas sao aquelas que "apoiando-se numa
crítica das ciencias, procuram alcangar um modo de conhecimento distinto do conhecimento
científico (em oposigao a este e já nao como o seu prolongamento)" (Piaget, 1980, p. 26).
Nessa perspectiva nao se busca sair da ciencia para suprir algum problema déla, mas volta-se
a ela própria com a finalidade de levantar os seus fundamentos próprios e criar algo novo.
Um exemplo dessa perspectiva está na crítica de Edmund Husserl (1936/2008) a
Psicología do inicio do século passado, a qual se utilizava de métodos empíricos importados
das ciencias naturais para tratar do psiquismo (entendido como experiencia consciente),
tratando com insuficiencia a dimensáo subjetiva do humano. Como proposta paracientífica
ele sugere o uso do método fenomenológico para superar esse embate metodológico e
possibilitar que a Psicología alcance fundamentos próprios de compreensao do humano
(Ales Bello, 2006). Como desdobramento dessa proposta, citamos a Psicología da Gestalt
(Guillaume, 1937/2009), a Psicopatologia de Karl Jaspers (1912/2005) e a Daseinanálise
(Heidegger, 2009).
As epistemologías científicas sao aquelas "que permanecem no interior de uma
reflexao sobre as ciencias" (Piaget, 1980, p. 26). Ou seja, nao buscam uma resolugáo fora dos
limites da ciencia, mas dentro do que ela estabelece como criterios próprios para determinar
o valor do seu conhecimento e no empenho para comprová-lo, com fundamento em
delimitagóes do seu problema e do estabelecimento de condigóes para tratá-lo e replicar os
resultados alcangados. Podemos situar aqui as Psicologías Comportamentais que
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reivindicam métodos e atitudes positivistas para lidar com os seus problemas e acumular
conhecimentos que lhes sejam válidos (Figueiredo, 2002).
Nessa incursao epistemológica, Piaget (1980) reconhece que houve ilustres pensadores
franceses que refletiram essas epistemologías, como Gastón Bachelard, Alexandre Koyré e
Georges Canguilhem. Contudo, ele ressalta a importancia de elaborar um método
epistemológico para analisar o desenvolvimento da Psicologia no interior de sua própria
ciencia, dado que as correntes contemporáneas de ciencia se aproximam mais desta
epistemología e se distanciam das epistemologías metacientíficas e paracientíficas.
Piaget (1978) foi filiado a preocupagao de elaboragao de uma Psicologia científica e isso
transpareceu em sua proposta de construgao de um método epistemológico que fosse interior
a ciencia psicológica em suas crises conceituais e metodológicas. Para tanto, Piaget (1980) se
inspirou na lógica exercida pelos epistemólogos franceses aludidos para tratar a ciencia
psicológica, de modo a "precisar os seus próprios métodos e delimitar os seus problemas de
maneira a poder tratá-los" (p. 62).
Encontramos, portanto, no trabalho de Piaget (1980) a concepgáo de um método,
intitulado "histórico-crítico", que pode ser trabalhado em pesquisas epistemológicas. Em seu
pensamento:
A historia das ciencias por si só, enquanto simples narrativa da sucessao das
descobertas nao interessa diretamente a epistemología. O problema
histórico-crítico é abordado em contrapartida, quando se é levado a utilizar a
reconstituicao histórica em vista de uma análise crítica (...), o método
histórico-crítico consistirá em determinar como é que procederam, de fato, o
inventor do principio ou os autores que preparam a sua descoberta: tratarse-á, por exemplo, de reconstituir com precisao, a que tipo de experiencias
recorreram (...), que dedueóes daí tiraram, mas também e sobretudo segundo
que sistema dedutivo ou interpretativo foram levados a imaginar essas
experiencias (p. 95).
O método histórico-crítico conduz "a uma epistemología específica do que poderia
chamar-se o devir \fierí\ radical do conhecimento científico" (Piaget, 1980, p. 96). Ele requer
que observemos nao somente um conhecimento em si, mas o que o vincula ao seu sujeito e a
sua historia. Atinar para isso implica investigar o conhecimento, suas herangas científicas,
tradigóes culturáis e as circunstancias que o atravessaram.
Assim, o método se ocupa também de investigar a ciencia, com base no olhar interno
dos seus próprios autores. Isto abrange conceitos, nogóes e postulados (Piaget, 1980),
entendidos como ofieri condutor dessa ciencia (Piaget, 1978). Na discussáo sobre o problema
do internalismo e do externalismo ñas ciencias, Antonio Gomes Penna (1991, 2000) ressalta
uma influencia de Canguilhem em Piaget. Ñas palavras do epistemólogo brasileiro:
Como observa Canguilhem, por internalismo se entende a posicao que
consiste em pensar que nao há historia das ciencias senao na medida em que
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nos colocamos no interior mesmo da obra científica para analisar as
operacoes pelas quais ela procura satisfazer as normas específicas que
permitem defini-la como ciencia e nao como técnica ou ideología No que
concerne ao externalismo - e aínda a definicao é de Canguilhem - trata-se de
urna forma de escrever a historia das ciencias condicionando um certo
número de acontecimentos (...) as suas relacoes com interesses económicos e
sodais, com exigencias práticas e técnicas, com ideologías políticas e
religiosas (Penna, 1991, p. 26).
Ressaltamos que isso nao implica em um "internalismo" ou "externalismo" científico
total. Aínda que urna ciencia tenha tido um desenvolvimento singular, suas ideias nascem no
contexto intelectual de urna época (Zeitgeist), que possibilita e conduz seus frutos (Penna,
2000).
Estas elucidagóes nos levam a tragar alguns procedimentos metodológicos específicos
para urna pesquisa que intenciona adotar o método histórico-crítico, inspirado no uso que
Piaget (1980) deu a ele com a fínalidade de tratar questóes epistemológicas que concernem ao
interior de alguma teoría e/ou sistema em Psicología.
Sao estas as premissas fundamentáis para adentrar os procedimentos do método de
investigagao epistemológica, entendido como "histórico-crítico": (1) conhecer profundamente
e internamente urna ciencia quanto: a historia do seu criador, seu objeto de estudo, seu
método e suas teorías e práticas, bem como recortar hipotéticamente qual seria o seu fieri
condutor, ou um deles; (2) discutir e apontar os problemas e as limitagóes dessa ciencia com
base em seu próprio terreno; (3) pelo fieri, estabelecer urna lógica formal de análise dentro da
própria ciencia respeitando a historia do seu criador e do seu contexto histórico; e (4) verificar
o que o criador da ciencia analisada assimilou e elaborou das ideias que lhe permeavam.
De fato, para Piaget e García (1987), o conhecimento científico nao toma elementos
externos sem antes remontar aos seus elementos internos. A referencia ao desenvolvimento
do conhecimento científico compreende, pois, tanto o seu caráter interno, quanto o externo.
A nogao piagetiana de autorregulagao, elemento interno a teoría da Psicología Genética
(Piaget, 1967/2003), por exemplo, nao acontece por um mero acaso e só é possível em um
contexto funcionalista que reclama solugóes a complexa relagao entre Psicología e Biología.
Piaget, no entanto, nao repete as proposigóes funcionalistas de autorregulagao, mas
desenvolve um funcionalismo próprio que analisa as formas de desenvolvimento das
estruturas cognitivas superiores - objeto do interesse desse autor - com base em urna teoría
dos estágios (Figueiredo, 2002).
Torna-se importante o entendimento de que todo conhecimento nao se desenvolve por
si só, ou seja, há um contexto que o engendra em suas possibilidades de formulagao e
significagao. No entanto, a assimilagao desse contexto ocorre mediante a um interesse
específico e próprio que nao replica o que é assimilado, mas o elabora em novas formulagóes
que podem modificar o contexto científico.
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Um exemplo da aplicagao do método histórico-crítico
Como exemplo de urna pesquisa inspirada pelo uso que Piaget deu ao método
histórico-crítico, citamos a dissertagáo de mestrado intitulada A nogao de organismo no fierí
teórico de Carl Rogers: urna investigagao epistemológica (Castelo Branco, 2010, 2011), realizada na
Universidade Federal do Ceará e vinculada ao Círculo de Pesquisas em Lógica e
Epistemología das Psicologías.
Nessa pesquisa Castelo Branco (2010) identificou que a Psicología Humanista herdou
um referencial organísmico oriundo do Funcionalismo norte-americano, havendo um
monismo teórico que centraliza a nogao de organismo como o fundamento de entendimento
para os fenómenos biológicos, psicológicos e sociais, em diversas abordagens humanistas.
Considerando Rogers como um legítimo representante da mencionada Psicología,
realizou-se, com base nos períodos de produgao e locáis de trabalho do psicólogo, urna
divisao das fases do seu pensamento, que englobaram: o aconselhamento nao-diretivo (19281945), a terapia centrada no cliente (1945-1964), a transigao entre a terapia centrada no cliente
e a abordagem centrada na pessoa (1964-1977) e a abordagem centrada na pessoa (1977-1987).
Essa organizagao foi imprescindível para compreender a vida e obra de Rogers e só foi
possível mediante a um conhecimento previo de sua historia (Castelo Branco, 2010).
Observou-se que a preocupagao de Rogers situa-se em torno da elaboragao de urna
proposta terapéutica compreensiva da pessoa. Assim, ponderou-se que urna investigagao
epistemológica sobre a nogao de organismo é importante para pensar como Rogers:
respondeu as exigencias de pesquisas e inovagóes em Psicología clínica, num EUA posguerra; desenvolveu um referencial teórico e prático de psicoterapia para a Psicología; e, para
isto, se inseriu em um modelo de ciencia norte-americano (Castelo Branco, 2010). Definiu-se,
entao, a nogao de organismo como ofieri de Rogers.
Embasado nisso, determinou-se a seguinte lógica de análise para pesquisar o
desenvolvimento da mencionada nogao, em relagao ao contexto histórico de cada fase do
pensamento de Rogers (Castelo Branco, 2010):
(a) Coletaram-se, em ordem cronológica de publicagao, todas as obras escritas de
Rogers, incluindo os textos nao publicados no Brasil. Todos os escritos foram enquadrados
ñas fases demarcadas. Foi realizada urna revisao bibliográfica de modo a identificar como a
nogao de organismo perpassou por todas as fases referidas e foi fundamentada.
Verificou-se que a citada nogao está presente em todos os fundamentos teóricos de
Rogers, apesar de ela ser pouco aprofundada por ele e por seus estudiosos - o que constituí
urna lacuna problemática a abordagem rogeriana.
(b) Em cada urna das fases aludidas, mapearam-se quais pensadores Rogers reconheceu
como influentes a sua concepgáo organísmica. No aconselhamento nao-diretivo (1928-1945)
Rogers reconheceu influencias do Funcionalismo de John Dewey e Leta Hollingworth, e da
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Psicanálise pós-freudiana de Otto Rank e Karen Horney. Na terapia centrada no cliente (19451963) Rogers assumiu influencias das ideias clínicas de Rank, Horney e Harry Sullivan, da
Psicología aplicada que se desenvolveu nos EUA, do cientificismo norte-americano, da
Psicología da Gestalt e Kurt Lewin, da filosofía educacional, social e política norte-americana
e do personalismo estadunidense. Na transigáo entre terapia centrada no cliente e abordagem
centrada na pessoa (1963-1977) Rogers admitiu como influencias: sua atuagáo no campo
educacional e de facüitagáo de grupos, sua imersao em debates e reflexoes sobre alternativas
as ciencias do comportamento, o conceito de "experienciagáo" de Eugene Gendlin e os
estudos de Andras Angyal, Abraham Maslow e Kurt Goldstein sobre tendencia a realizagáo e
organismo. Por fim, na abordagem centrada na pessoa (1977-1987) Rogers continuou
apontando os estudos de Angyal, Maslow e Goldstein e acrescentou as influencias de
Lancelot Whyte e Albert Szent-Gyoergy, além do paradigma sistémico e holístico de ciencia
encabegado por Fritjof Capra, Illya Prigogine e Magorah Maruyama.
(c) Após essa sistematizagao, foram coletadas e consultadas as obras dos autores
referenciados por Rogers, com o objetivo específico de apreender suas concepgoes
organísmicas. Esses dados foram coletados por meio de consultas bibliográficas diretas e, na
impossibilidade disto, realizaram-se consultas bibliográficas indiretas, através de
comentadores especializados.
(d) Retornou-se a Rogers e analisou-se o que ele assimilou e elaborou dessas ideias, de
modo a refletir sobre quais acréscimos teóricos possibilitaram o desenvolvimento de sua
posigáo organísmica.
Um exemplo específico dessa lógica pode ser observado na seguinte análise (Castelo
Branco, 2010):
(a) Na fase de terapia centrada no cliente, Rogers pareia a nogáo de organismo com a
de eu (se//). Segundo ele, o organismo se autorregula em fungáo de um eu real ou eu ideal.
(b) Ñas obras representativas dessa fase, Rogers explana que os fundamentos de sua
psicoterapia, embora diferentes, muito deviam ao pensamento psicanalítico norte-americano,
em especial a Karen Horney.
(c) Verificaram-se quais obras de Horney foram referenciadas por Rogers. Por exemplo,
na obra Neurose e desenvolvimento humano procurou-se o que a autora abordou sobre a relagáo
entre organismo e eu (se//), e constatou-se que as nogóes de eu real e ideal estáo presentes em
seu pensamento e anteceden! a formulagáo rogeriana.
(d) Retorna-se a Rogers de modo a verificar o que ele assimilou e elaborou de Horney.
No caso, ressalta-se que Rogers assimilou a perspectiva de Horney, entretanto elaborando-a
numa pesquisa empírica, que faz urna leitura do funcionamento do eu em real ou ideal com
suporte ñas autorregulagóes do organismo, aspecto este nao abordado pela psicanalista. Ora,
ñas décadas de 1930 a 1950 as concepgoes clínicas de Horney tinham grande circulagáo em
Nova Iorque e Chicago. Nesse ínterim Rogers se aproximou délas incluindo-as em sua teoría
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Castelo Branco, P. C. & Barrocas, R. L. L. (2012). O método histórico-crítico e a pesquisa epistemológica em psicología:
urna perspectiva de Jean Piaget. Memorándum, 22, 40-51. Recuperado em
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da personalidade e do comportamento. Ao pesquisar isso na Universidade de Chicago, um
dos bergos do Funcionalismo - portante nao por acaso a nogao de autorregulagao -, Rogers
demonstrou que a atuagao do psicólogo em nivel de psicoterapia consistiria em intervengóes
que objetivam a mudanga de personalidade.
Os procedimentos "a" e "b" serviram de base para os "c" e "á", que representaram o
grande escopo de resultados e discussoes da pesquisa. Essa lógica formal de análise,
inspirada ñas premissas do uso método histórico-crítico, retragou e recriou as linhas
epistemológicas gerais da nogao de organismo na teoria de Rogers, trazendo a tona diversas
elucidagóes e discussoes sobre o desenvolvimento de sua ciencia em suas condigóes
constitutivas (Castelo Branco, 2010, 2011).
Considerares fináis
Piaget e Garcia (1987) ponderam que
O problema crucial (...) no terreno histórico-crítico é o de estabelecer o que é
que se produz quando urna teoria substituí urna outra ou, mais
precisamente, quando um sistema de noeoes e de procedimentos dedutivos
ou experimentáis é substituido por outro (p. 100).
Por esta via, o método histórico-crítico é útil para: pesquisarmos como um
conhecimento substituí outro; examinarmos as conexóes entre um conhecimento e outro; e
verificarmos se esse conhecimento integra estruturas precedentes, evolui e constituí algo de
novo para a ciencia, ou é urna repetigao ou algo fortuito. Para nao se perder em
generalizagóes epistemológicas, torna-se imprescindível que o método se inicie pela
delimitagao de umfieri e cumpra com as premissas apresentadas.
Todavía, apontamos que o uso do método fica restrito caso o pesquisador nao tenha
um conhecimento apropriado da ciencia que ele visa investigar, bem como a aplicagao do
método fica limitada se nao for possível adquirir fontes de consulta confiáveis. Por se tratar
de um método epistemológico, pode ocorrer que muitas dessas fontes sejam antigás e talvez
nao mais publicadas ou disponíveis na língua vernácula do pesquisador. Todas essas
questóes devem ser levadas em consideragao para se seguir a lógica de aplicagao do método
histórico-crítico, inspirado no uso que Piaget (1980) deu a este.
Para finalizar, cabe ressaltar que Piaget (1980), apresentou outras possibilidades
metodológicas em epistemología, como os métodos: de análise direta, de análise
formalizante, do positivismo lógico e genético. Apontamos, portanto, a necessidade da
Psicología desenvolver mais planos metodológicos que aprofundem essa perspectiva de
pesquisa.
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Nota sobre os autores
Paulo Coelho Castelo Branco. Doutorando pelo Programa de Pós-Graduagáo em
Psicología da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Psicología pela
Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduado em Psicología pela Universidade de
Fortaleza (UNIFOR). Enderego: Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de
Filosofía e Ciencias Humanas, Departamento de Psicología, Avenida Antonio Carlos, 6627,
Pampulha,
31270-901,
Belo
Horizonte,
Minas
Gerais,
Brasil.
E-mail:
[email protected]
Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas. Doutor em Psicologia pela Université Paris XIII.
Professor Associado II do Departamento de Graduagáo e Pós-Graduagao da Universidade
Federal do Ceará (UFC). Enderego: Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades,
Departamento de Psicologia, Avenida da Universidade, 2762, Benfica, 60020-180, Fortaleza,
Ceará, Brasil. E-mail: [email protected]
Data de recebimento: 16/06/2011
Data de aceite: 20/05/2012
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Notas sobre aspectos epistemológicos e históricos da psicología
histórico-cultural
Notes on epistemological and historical aspects of historical-cultural psychology
Nietsnie de Souza Duarte
Rosalía Carmen de Lima Freiré
Izabel Hazin
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Brasil
Resumo
O objetivo do presente artigo foi tracar um panorama acerca de aspectos históricos e
epistemológicos subjacentes a proposicao do projeto científico avancado pela psicología
histórico-cultural, apontando aproximacóes e distanciamentos com diferentes correntes
filosóficas e psicológicas da contemporaneidade. Para tanto, foram problematizadas e
referendadas as contribuicóes psicológicas advindas da Defectologia, Psicanálise,
Reflexologia, Reactologia e Psicología da Gestalt. Além disto, foram investigadas as
influencias das idéias filosóficas de Marx, Engels, Hegel, Darwin, Espinosa e Janet.
Conclui-se que no decorrer do desenvolvimento da psicología histórico-cultural
ocorreram aproximacóes com algumas destas perspectivas e, ao mesmo tempo,
contraposicóes as mesmas. Entretanto, todas foram importantes para a fundamentacao
deste novo sistema teórico em psicología, que se constituiu como alternativa ao embate
estabeleddo entre a fisiología naturalista e a fenomenología.
Palavias chaves: psicología histórico-cultural; epistemología; historia
Abstract
This paper aimed at establishing both a historical and epistemological study concerning
the proposition of a sdentific project by historical-cultural psychology. The authors
established common and also divergent points with different psychological and
philosophical schools in contemporary contributions. Perspectives issued from
Defectology, Psychoanalysis, Reflexology, Reactology, and Gestalt Psychology were
considered in this effort of establishing common and different points. Additionally,
philosophical ideas issued from Marx, Engels, Hegel, Darwin, Espinosa, and Janet were
discussed. The main conclusión offered here stresses the occurrence of some points in
common among these perspectives in their constitutive process, together with points of
disagreement, during the development of historical-cultural psychology. Nevertheless, all
these perspectives were important in the establishment of this new theoretical system in
psychology, considered here as an alternative for the dichotomy established between
naturalist physiology and phenomenology.
Keywords: historical-cultural psychology; epistemology; history
Considerares Iniciáis
O objetivo do presente artigo é apresentar um panorama acerca de aspectos históricos e
epistemológicos subjacentes a proposigao do projeto científico avangado pela psicología
histórico-cultural, apontando aproximagóes e distanciamentos com diferentes correntes
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filosóficas e psicológicas da contemporaneidade. A tríade soviética constituida sob a
lideranga de Lev Semenovitch Vygotsky, com a colaboragáo de Alexander Romanovich Luria
e Alexei Nikolaevich Leontiev, inaugurou um novo paradigma na psicología, para além da
dicotomía estabelecida pela disputa entre a psicología naturalista e a psicología
fenomenología. Uma psicología que Vygotsky costumava chamar de "cultural",
"instrumental" ou "histórica", tendo cada um destes termos, a eles subjacentes, idéias de
base que sustentam a proposigáo deste projeto psicológico.
A primeira idéia de base defende a materialidade da atividade psicológica, baseada na
atividade do cerebro enquanto órgao resultante do desenvolvimento social e da especie
humana, constituindo-se, portanto, em sistema aberto e passível de modificagoes ao longo do
desenvolvimento do sujeito. A segunda premissa, conectada aos aspectos culturáis e
históricos, argumenta que o funcionamento psicológico está fundamentado ñas relagóes
sociais estabelecidas entre o sujeito e o mundo, mergulhados numa dimensao histórica
(formadora das instituigóes) e cultural, conferindo ao desenvolvimento humano o status de
processo dinámico e contextualizado. Por fim, a terceira idéia de base, o aspecto instrumental
da psicología histórico-cultural, discute que as relagóes estabelecidas entre individuo e
mundo nao sao diretas, mas requerem que a agáo do primeiro sobre/com o segundo seja
mediada por instrumentos (tecnológicos) e signos (Hazin & Meira, 2004; Kohl de Oliveira,
2000; Vygotsky, 1991).
A compreensáo das premissas de base da psicología sócio-histórica nao pode, no
entanto, ser exercitada a parte do contexto histórico a época vivenciado pela Rússia.
Defende-se aqui que a historia de um sistema psicológico pode e deve ser construida a partir
da consideragáo de dois níveis distintos, mas interelacionados, a saber, o nivel interno e o
nivel externo. O primeiro diz respeito as proposigóes teóricas, constructos, técnicas e
métodos próprios de um determinado sistema. O segundo nivel, exige uma articulagao deste
primeiro nivel com a dimensao histórica, social e cultural, problematizando acerca de
condigóes económicas e políticas subjacentes a tais propostas.
Sendo assim, a psicología sócio-histórica é fruto de determinado cenário político e
económico, bem como da articulagao deste com a psicología produzida na Europa e nos
Estados Unidos. Nesse sentido, torna-se essencial refletir, ainda que brevemente, acerca das
proposigóes filosóficas e psicológicas com as quais Vygotsky, Luria e Leontiev dialogaram,
uma vez que uma das características centráis dos seus textos é o embate com diferentes
posigóes acerca de constructos centráis para a psicología, tais como consciéncia e emogáo.
Fragmentos da Historia e Epistemología da Psicología Histórico-Cultural
A psicología histórico-cultural desenvolveu-se na Rússia no período pós-revolugáo
socialista de 1917, que inicialmente levou a nagáo russa a um contexto económico
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desfavorável, resultando em fome e pobreza. O desfecho dessa situagao veio com a
implantagao do comunismo de guerra, que em 1921, sob a lideranga de Lénin, estabeleceu
definitivamente o regime comunista no país (Lucci, 2006).
O maior desafio do novo regime foi a educagao. Com aproximadamente 70% de
analfabetos, a Rússia precisava renovar-se. O conhecimento deveria ser um dos pilares dessa
sociedade, uma vez que este evita a alienagao. Mas, de acordó com Rosa e Monteiro (1996) a
filosofía de Marx possui uma epistemología materialista e uma lógica dialética, o que exigia o
desenvolvimento de uma nova concepgao de ciencia.
A obrigatoriedade da construgao dessa nova ciencia sob a tutela da filosofía marxiana
constituiu um desafio, pois nao havia unanimidade entre os marxistas russos. Se para os
mecanicistas a ciencia é auto-suficiente e suas leis sao descobertas pela própria pesquisa,
para os dialéticos a exploragao científica deveria ser aberta e nao determinista.
Adicionalmente a falta de unidade dos marxistas, acontece a subida de Stalin, que promove
um governo absolutista, no qual, sob a alegagao do caráter deficitario da escola, impóe um
currículo fechado, suprimindo os projetos vigentes até o momento (Lucci, 2006).
Com tal medida, a interferencia política ganha maior abrangéncia em relagao a
psicologia com o decreto intitulado "Sobre as perversóes pedológicas no sistema de
comissariado do povo para a educagao". Este baniu os testes psicológicos, assim como a
própria psicologia, que perdeu seu espago junto a educagao e a industria.
Consequentemente, varios periódicos psicológicos deixaram de ser editados, cursos foram
fechados e a psicologia foi relegada ao plano de treinamento de professores ñas faculdades.
Muitos psicólogos, dentre os quais Vygotsky (já falecido) passaram a integrar uma lista
negra, tendo suas obras proibidas em todo o territorio nacional. Apenas com a morte de
Stalin, em 1953, os seus trabalhos voltaram a ser publicados e lidos (Rosa & Monteiro, 1996).
Foi neste cenário inicial que Vygotsky desenvolveu seus estudos. As exigencias da
nova sociedade direcionavam-se para uma nova concepgao de sujeito humano que
contemplasse a dimensao cultural. Sendo assim, o objetivo da psicologia histórico-cultural foi
fundar uma psicologia assumidamente marxiana, materialista e, nao menos importante, uma
psicologia que tivesse um papel relevante na construgao de uma sociedade socialista (Luria,
1992).
Depreende-se do exposto que Vygotsky e seus colaboradores pretendiam criar uma
nova abordagem abrangente dos processos psicológicos humanos. Segundo ele, a psicologia
de sua época vivia uma situagao de crise extrema devido a impossibilidade de suas teorias de
explicar o comportamento humano. Assim, a divisao entre aqueles teóricos que objetivaram
atribuir um caráter de ciencia natural a psicologia e os psicólogos fenomenológicos, que
descreveram os fenómenos subjetivos, dificultou a constituigao da psicologia enquanto
ciencia e a possibilidade desta em explicar e compreender os processos psicológicos humanos
(Luria, 1992).
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Para resolver esta crise, era necessária a criagao de urna teoria que tentasse unir e
sintetizar estas abordagens confutantes (Luria, 1992). Foi neste contexto que foi desenvolvida
a teoria histórico-cultural. Em sua constituigáo, esta abordagem sofreu a influencia de Marx e
Darwin, e igualmente de varias correntes contemporáneas da psicología, como a
Defectologia, a Psicanálise, a Reflexologia, a Reactologia, Psicologia da Gestalt, dentre outras
(van der Veer & Valsiner, 1996). Além disto, a psicologia histórico-cultural é também
fortemente influenciada pelas idéias de Engels, pela dialética de Hegel, pela filosofía de
Espinosa e pelas idéias de Pierre Janet, entre outros pensadores. A seguir, serao discutidas
algumas destas influencias (Molón, 1995).
1. Marxismo e Darwinismo
Eilam (2003) discute que o objetivo da psicologia histórico-cultural de desenvolver urna
psicologia baseada ñas premissas marxianas ainda carece de elaboragao e aprofundamento,
urna vez que Marx nao contribuiu diretamente para urna teoria psicológica. Por sua vez,
Vygotsky e Luria nao formularam em detalhes as premissas filosóficas de seu programa
científico, como o fez Leontiev, para quem a consciéncia humana só pode ser compreendida
a partir de pesquisas sobre as formas sócio-históricas concretas do trabalho humano.
Adicionalmente, vale retomar a acepgao que para a psicologia histórico-cultural as
fungóes mentáis dependem da evolugao biológica do organismo humano, notadamente o
cerebro, defendendo que estes nao sao produtos diretos da evolugao biológica, mas
desenvolvidos durante a historia da vida humana enquanto conseqüéncia da prática social
(material e teórica). Nesse sentido, nao estao fazendo referencia a um cerebro que se
desenvolveu sozinho, mas sim a um órgao que reflete na sua organizagao e funcionamento as
mudangas históricas de urna especie cuja atividade é estruturante.
A énfase marxiana desse paradigma psicológico está na defesa que os modos de
produgáo e aplicagáo das ferramentas de trabalho sao históricamente transmitidos. Sendo
assim, durante o trabalho o homem produz nao apenas artefatos, mas também significados
que serao transmitidos pela comunicagáo social através de signos e sistemas simbólicos, tais
como a linguagem, que possibilitam a representagáo da agáo (Eilan, 2003). Rejeitam assim a
concepgáo da consciéncia humana enquanto propriedade intrínseca da vida mental, para
defender a consciéncia enquanto produto histórico das formas sociais de existencia humana.
No que se refere a influencia do darwinismo, ganha notoriedade os postulados de
mutagáo, recombinagao e selegao natural. Juntos estes pressupoem a instabilidade do sistema
e a emergencia da novidade, ao mesmo tempo em que estabelecem a nogáo de ordem e
diregáo da evolugao. Tais premissas sao traduzidas em principios importantes da psicologia
histórico-cultural, tais como:
a) As mudangas nos próprios conhecimentos e significados sociais;
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b) O desenvolvimento nao pressupoe urna sucessao de estágios lineares, fixos e
aleatorios, mas cada estágio supóe o seguinte, isto é, o fato de o processo de desenvolvimento
ocorrer por estágios nao significa que estes sigam um percurso continuo; eles sao marcados
por avangos e retrocessos, seguindo urna ordem de aparecimento, o que nao implica que
tenham que ser vivenciados em sua plenitude, e um estágio constitui um pré-requisito para o
próximo;
c) O desenvolvimento cultural segué as mesmas leis da selegáo natural;
d) O individuo adulto é produto de comportamentos herdados, que sao modificados
pelas relagóes sociais;
e) Para explicar o comportamento humano é preciso considerar as condigóes biológicas
e como estas sao modificadas ñas relagóes sócio-culturais (Lucci, 2006).
A influencia teórica destas duas correntes, aparentemente contraditórias e
inconciliáveis é sintetizada na perspectiva de desenvolvimento proposta por tal sistema, para
o qual se devem considerar duas linhas constituintes: a linha natural e a linha cultural,
dentro de tres dimensóes: a sociogénese, a filogénese e a ontogénese (Hazin & Meira, 2004;
Kohl de Oliveira, 2000; Vygotsky, 1991; van der Veer & Valsiner, 1996).
A linha natural refere-se ao processo de crescimento e maturagáo do organismo,
enquanto a linha cultural refere-se a imersao da crianga em contexto sócio-histórico mediado
essencialmente pela linguagem. Tal processo possibilita o atravessamento da dimensáo
simbólica sobre as fungoes psicológicas inferiores, inaugurando o funcionamento psicológico
superior ou complexo, para o qual a atividade consciente é o elemento diferenciador (Hazin,
Leitáo, Garcia & Gomes, 2010; Hazin & Meira, 2004; Vygotsky, 1966/1991).
No tocante aos níveis de desenvolvimento, a filogénese contempla o desenvolvimento e
especificidades de cada especie; a sociogénese diz respeito as aquisigóes sociais, históricas e
culturáis da humanidade, da comunidade e do momento histórico no qual se desvela a agáo
humana; e, por fim, a ontogénese refere-se ao desenvolvimento individual, peculiar de cada
sujeito.
2. A filosofía de Espinosa
Ainda que tenha sido pouco abordada em seus escritos, a preocupagáo de Vygotsky
com a temática das emogoes pode ser destacada. O texto vygotskiano de aproximadamente
1931, consagrado ao estudo das emogoes (Vygotsky, 1998), sem tradugáo para o portugués,
revela a inquietagáo do autor em termos do papel das emogoes para o conhecimento. Neste
época, Vygotsky dedicava-se ao ensino de criangas com necessidades educativas especiáis,
buscando a construgáo de caminhos para o desenvolvimento do potencial que apresentavam.
No seu estudo, Vygotsky tece críticas severas ao posicionamento dualista de Descartes,
bem como a perspectiva organicista (periférica) de William James e Carl Lange. Como
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alternativa, retoma o paradigma monista-materialista do filósofo Espinosa. No entanto, como
discute Toassa (2011), o diálogo entre as teorias implicava em esforgo arduo, uma vez que o
materialismo nao tem uma fundamentagáo filosófica simples, bem como o contexto da época
era regido por um materialismo mecanicista, imposto pelo regime stalinista. O curto tempo
de vida de Vygotsky certamente contribuiu para que o texto tivesse varias versóes, mas que
fosse ainda um texto inacabado.
Espinosa tinha uma compreensao diferente da maioria dos filósofos e teóricos acerca
do papel da emogáo. Para este autor, a emogáo nao era entendida como um aspecto negativo
no campo do conhecimento, que deveria ser combatida e evitada, ou seja, a emogao nao se
contrapunha ao exercício da razao, como defendia Descartes. Pelo contrario, as emogóes
deveriam ser compreendidas como uma propriedade da natureza humana (Espinosa
1677/2008; Sawaia, 2000; Sawaia, 2009). Desta forma, tanto Espinosa, quanto Vygotsky,
entendiam que a dimensao emocional é necessária no contato do homem com a realidade, já
que o ser humano também compreende se emocionando.
A concepgáo de Espinosa e Vygotsky acerca do papel da emogao contrapunha-se a
epistemología dualista da psicologia que mantinha separada a mente do corpo, o intelecto da
emogao. Para Espinosa, nao existe oposigáo nenhuma entre razao e afetividade (Gleizer,
2005). Até mesmo, Vygostky dirá que este antagonismo em que é colocada as emogóes contra
a razao acaba trazendo uma serie de desvantagens para a psicologia, pois a impede de
explicar uma serie de fenómenos. Na visao de Vygotsky, o fenómeno psicológico constitui-se
como um todo integrado, fazendo parte desse todo a emogao. Para compreender o fenómeno
psicológico das emogóes, é imprescindível uma reflexáo acerca das relagóes deste com os
fatores fisiológicos, cognitivos e contextuáis. É interessante notar o quanto Vygotsky
antecipou discussóes contemporáneas ao aproximar a neurobiologia da psicologia. Na
atualidade, neurocientistas como Damásio (2003), retomam a dicussáo de Espinosa e
Vygotsky acerca do lugar das emogóes na experiencia humana, revelando o quanto tal
temática é atual e revestida de complexidade.
3. Pierre Janet
As idéias do psiquiatra e psicólogo francés Pierre Janet, que foi profundamente
influenciado pela escola sociológica francesa de Émile Durkheim, também contribuíram para
a formagáo do pensamento de Vygotsky (Wertsch & Tulviste, 2002). De acordó com Oliveira
(2001), as reflexóes de Vygotsky sobre o caráter social do desenvolvimento mental e da
subjetividade o conduziram ao encontró dos escritos de Janet.
Ressaltando a dimensao social da ontogénese dos processos humanos, Janet advogava
que a formagáo do individuo possui aspectos de sua historia social, bem como da evolugáo
da própria especie. Consoante com sua visao sociogenética, afirmava a concepgáo de
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personalidade constituida socialmente, na interagao com outras personalidades, numa
relagao recíproca do individuo com os outros. A base genética para a formagao do sujeito por
ele aludida, residia na proposigao que a individualizagao acontece primeiramente na
dimensao social, sendo posteriormente reconstruida pelo próprio sujeito (Góes, 2000).
Em consonancia com Janet e refletindo a sua influencia, Vygotsky afirmava que a
dimensao individual da consciéncia é secundaria e derivada da dimensao social (Vygotsky,
1966/1991; Wertsch & Tulviste, 2002). Além disso, segundo Góes (2000), em seus escritos
Vygotsky aponta que a perspectiva sócio-genética é o caminho para o entendimento dos
processos mentáis superiores, os quais sao exclusivamente humanos.
Desse modo, é possível observar que as contribuigoes de Janet tiveram papel
importante e basilar no desenvolvimento do pensamento da psicología histórico-cultural,
ancorando a concepgao de individuo construido socialmente a partir da relagao com o outro
que é estruturante de seu funcionamento mental.
4. Defectologia
Durante a época que Vygostsky trabalhou no Comissariado de Educagao, ele
desenvolveu urna serie de estudos defectológicos que tiveram influencias da teoria de Adler.
Defectologia é um ramo da ciencia que estudava criangas com diversos tipos de problemas,
sejam eles físicos ou mentáis. Vygotsky foi um dos primeiros autores a definir que as
deficiencias corporais afetavam antes de tudo as relagóes sociais das criangas deficientes e a
atribuir a importancia da educagao social destas, assim como a crenga no seu potencial para
desenvolver-se (Vygotsky, 1993; van der Veer & Valsiner, 1996).
A teoria de Adler contribuiu para os estudos defectológicos de Vygotsky porque
defendía que o sentimento de inferioridade que as criangas deficientes sentiam em seu meio
social se tornaría urna das mais poderosas motivagóes para seu desenvolvimento, pois as
levaria a urna luta pela superagao de suas dificuldades, o que possibilitava urna
compensagao ou até mesmo urna supercompensagao dos seus defeitos físicos. Em muitos
sentidos, esta visao poderia ser conciliada com as idéias anteriores de Vygotsky, já que como
Adler, defendia o potencial das criangas em superar-se. Porém, mais tarde, Vygotsky irá
abandonar os preceitos de Adler, afirmando que nao é o sentimento de inferioridade, mas
sim as oportunidades objetivas de vida presentes no coletivo da crianga que seriam o mais
importante para a possibilidade de compensagao (van der Veer & Valsiner, 1996).
As críticas de Vygotsky a defectologia tradicional estavam relacionadas a adogao de
métodos psicológicos quantitativos e comparativos no estudo do desenvolvimento infantil
em condigao de deficiencia. Esta abordagem, para Vygotsky, limitava-se a determinar
parámetros como a capacidade intelectual, sem caracterizar a deficiencia e suas repercussóes
sobre o desenvolvimento. Abordar a deficiencia sob a ótica da limitagáo e da debilidade
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impostas pela condigao significa considerar a pessoa com deficiencia um simples conjunto de
fungoes e propriedades cujo desenvolvimento se dá em condigoes adversas, precarias,
resultando em urna abordagem limitada. Vygotsky propunha o abandono de tal
metodología, urna vez que, para ele, as criangas cujo desenvolvimento é atravessado por urna
deficiencia nao sao simplesmente menos desenvolvidas do que seus pares normáis; estas
criangas se desenvolvem de modo qualitativamente diferente, por consistirem em variagoes
da especie humana; tais criangas nao deveriam ser consideradas como urna variante
quantitativa dos seres humanos ditos "normáis" (Vygotsky, 1924/1997b).
As leis do desenvolvimento da crianga especial, para Vygotsky, estao em unidade com
as leis fundamentáis de desenvolvimento da crianga normal. Se, por um lado, a deficiencia
impoe limitagoes e dificuldades, por outro lado impulsiona o individuo a compensagao. A
defectologia proposta por Vygotsky nao poderia limitar-se a determinagao do nivel e
gravidade da deficiencia; o estudo da deficiencia deveria considerar os processos
compensatorios e substitutivos no contexto de desenvolvimento do individuo (Vygotsky,
1924/1997b).
O desenvolvimento atravessado por urna deficiencia se constitui em um processo de
criagao e recriagao, fundado na reorganizagao de todas as fungoes, na formagao de novos
processos substitutivos e abertura de caminhos alternativos para o desenvolvimento. Urna
crianga cega ou surda pode alcangar o mesmo nivel de desenvolvimento de urna crianga sem
deficiencia, mas de modo diferente, através de outros meios e por caminhos distintos. Para o
pedagogo, é importante conhecer a peculiaridade do caminho através do qual deve conduzir
a crianga; a singularidade deste caminho é capaz de transformar o negativo da deficiencia no
positivo da compensagao (Vygotsky, 1924/1997b).
A defectologia forneceu a Vygotsky e seus colaboradores os principáis substratos
empíricos para a criagao de suas concepgoes teóricas gerais. A partir dos primeiros estudos,
os psicólogos soviéticos engajaram-se na busca pela compreensao acerca de como processos
naturais, tais como maturagao física e mecanismos sensoriais, conectam-se com processos
culturáis, produzindo as fungoes psicológicas complexas, questionamento que fundou as
bases da psicología histórico-cultural (Hazin e outros, 2010).
5. Psicanálise
A psicanálise na Rússia foi difundinda com enorme vigor no período que antecedeu a
Primeira Guerra Mundial, notadamente entre aqueles que integravam a vanguarda cultural.
No ano de 1922 é inaugurado o Institut Psychanalytique d'État, do qual Luria, aos 22 anos,
foi o secretario. De acordó com Doray (2002), o grande desafio avangado pela psicología
sócio-histórica, neste período, foi o desenvolvimento do argumento que a psicanálise poderia
ser integrada a um sistema de psicología monista, como defendía Vygotsky.
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Na visao de Luria, a psicanálise podia ser considerada urna abordagem científica,
compatível com a psicología objetiva e que possuía urna base fisiológica, logo materialista,
sendo por isto urna alternativa viável contra as velhas correntes idealistas da psicología. No
entanto, mesmo nesta época, Luria já reconhecia que era um erro supor, como os
psicanalistas faziam, que se poderia deduzir o comportamento humano a partir somente das
bases biológicas da mente, excluindo-se o fator social (van der Veer & Valsiner, 1996).
Vygotsky foi um dos autores a se opor as tentativas de Luria e outros em conciliar a
psicanálise com o marxismo. Segundo ele, Luria só poderia concluir que o marxismo e a
teoria psicanalítica eram compatíveis se distorcesse ambos os sistemas de pensamento a fim
que se adequassem entre si. Assim, as críticas feitas contra as tentativas de construgáo de um
freudo-marxismo baseavam-se na crenga de que a psicanálise nao é materialista, nao é
monista, nao é dialética, e que, principalmente, atribuía urna importancia primordial aos
fatores psicológicos subjetivos, em detrimento da influencia de fatores sócio-económicos
objetivos, o que no marxismo é essencial (van der Veer & Valsiner, 1996).
6. Reflexologia e Reactologia
Na época em que Vygotsky e seus colaboradores desenvolveram a psicología históricocultural, urna das correntes psicológicas mais influentes na Rússia, e também no mundo, era
a Reflexologia de Ivan Pavlov. O pressuposto básico desta teoria era que todo
comportamento humano possuía urna natureza reflexa. Inicialmente, Vygostsky considerou
que a Reflexologia poderia proporcionar a psicologia urna base sólida sobre a qual ela
poderia desenvolver-se (van der Veer & Valsiner, 1996).
Para a Reflexologia, o comportamento humano poderia ser explicado da seguinte
maneira: em principio, todo comportamento deriva de reagóes a estímulos exteriores. Estas
reagóes dividem-se em tres categorías: recepgáo, processamento e resposta ao estímulo. De
acordó com o que Vygotsky pensava na época, as criangas eram dotadas de reagóes inatas,
ou seja, os reflexos nao-condicionados, e os instintos. Cada reflexo nao-condicionado (reagáo
inata) poderia ser ligado a estímulos ambientáis, produzindo assim os reflexos
condicionados. Seriam estas reagóes condicionadas, adquiridas em experiencias pessoais, que
possibilitariam ao comportamento sua extrema flexibilidade. Isto constituía para Vygotsky a
grande descoberta feita por Pavlov e a chave para entender o comportamento humano
adulto (van der Veer & Valsiner, 1996).
Apesar de atribuir importancia metodológica para o conceito de reflexo,
posteriormente, Vygotsky elaborou que o mesmo nao pode ser um conceito principal para a
Psicologia como ciencia do comportamento humano. No conhecido texto sobre a crise da
psicologia Vygotsky argumenta que o reflexo constituí apenas um capítulo da psicologia, e
que nao perpassa toda totalidade dessa ciencia (Vygotsky, 1927/1997a).
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Desta forma, em seus escritos posteriores Vygotsky irá tecer diversas críticas ao caráter
reducionista da Reflexologia, exposto na sua incapacidade de descrever adequadamente
aspectos do funcionamento psicológico superior (Teixeira, 2005). Segundo ele, a Reflexologia
(e outras correntes psicológicas), ao simplesmente negar o problema da consciéncia e o seu
papel regulador em relagáo ao comportamento, estaria limitando o campo de estudos da
psicología para apenas aqueles fenómenos mais elementares dos seres vivos, e ignorando o
estudo de problemas mais complexos do comportamento humano (Vygotsky, 1996).
Conforme o apontado, o autor assinala: "este desarollo no se agota com la simple
complejidad de las reaciones entre estímulos y reacciones (...) Hay em su centro un salto
dialéctico que modifica cualitativamente la própria relación entre el estímulo y la reacción"
(Vygotsky, 1931/1995, p. 62). A negagáo da consciéncia, significaría, portanto, manter a falsa
concepgáo de que o comportamento é apenas urna soma de reflexos (Vygotsky, 1996).
Em 1924, após sua apresentagáo no II Congresso de Psiconeurologia em Leningrado,
Vygotsky foi convidado pelo do pelo entáo diretor - Kornilov - para se juntar ao grupo de
trabalho do Instituto de Psicología Experimental da Universidade de Moscou (Luria, 2006).
Foi neste centro, principal instituigáo formadora de psicólogos da Rússia, que Vygotsky
entrou em contato com Luria e Leontiev, os quais se tornaram importantes interlocutores de
seu pensamento.
Ao chegar ao Instituto de Moscou, Vygotsky já trazia influencias marxistas e o
momento histórico vivido pela sociedade soviética, transigao do comunismo de guerra para a
Nova Política Económica, foi propicio para o desenvolvimento de seu pensamento em
harmonía com esta linha teórica. Com o objetivo alinhar-se com o novo Estado soviético,
Kornilov orientou o instituto de acordó com as linhas da "psicología marxista" que ele
próprio anunciara. Assim, tanto Vygotsky como também Kornilov empenharam-se na
compreensáo da dinámica de processos complexos através da síntese hegeliana, defendendo
a dialética como método de investigagáo.
O inicio do trabalho de Vygotsky no Instituto de Moscou foi marcado pela influencia
do pensamento desenvolvido por Kornilov - a Reactologia. Para Kornilov "a vida (...) é
constituida de um grande número de reagóes, cada urna das quais envolve agáo recíproca
entre o organismo vivo e seu ambiente" (van der Veer & Valsiner, 1996, p. 128). Ressaltava-se
a forma das reagóes, destacando a inteireza do processo reacional e seu caráter holístico, que
confere características qualitativamente diferentes aos reflexos. Tal pensamento apresentava
oposigáo a Reflexologia, representada por Pavlov e Bekhterev (Minick, 2002). A Reactologia
também apresentava discordancia com a vertente da psicología subjetiva, linha tradicional
que preconizava a consciéncia como enfoque de estudo, liderada por Chepanov (Luria, 2006).
No entanto, no decorrer do desenvolvimento do pensamento de Vygotsky, juntamente
com Leontiev e Luria, suas idéias entraram em conflito com a Reactologia de Kornilov.
Questionou-se a visao dualista de Kornilov da problemática mente-corpo, perspectiva similar
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a apresentada pelo sistema refloxológico. Vygotsky (1996) ao citar os defeitos orgánicos
decorridos da exclusao do problema da natureza psicológica da consciéncia, aponta que sua
mais importante implicagao seria deixar intactos o dualismo e o espiritualismo na psicología
subjetiva. Para explicitar sua posigao, Vygosky (1996) aborda a questao em termos claros:
enquanto na psicologia subjetiva tem-se a psique sem comportamento, na Reflexologia temse o comportamento sem a psique. De urna forma ou de outra, mantem-se inalterado o
panorama do dualismo no campo psicológico, concluindo o autor que para as duas vertentes
a psique e o comportamento sao interpretados como dois fenómenos distintos.
Vygotsky também passou a apresentar insatisfagao como a retórica ideológica de
Kornilov, que defendia a aplicabilidade direta do materialismo dialético as questóes de
ciencias naturais e a psicologia (van der Veer & Valsiner, 1996). Kornilov defendia que urna
nova psicologia poderia ser concebida a partir da jungao da perspectiva subjetivista e
behaviorista. Já Vygotsky se opunha a esta nogao, apontando que seria necessário um novo
sistema de estudo, com construtos que possibilitassem o estudo unificado da consciéncia e
do comportamento (Minick, 2002), sendo este o objetivo da "troika" composta por Vygotsky,
Luria e Leontiev.
7. Gestalt
As críticas feitas pela psicologia histórico-cultural a perspectiva naturalista em
psicologia foram estendidas a perspectiva idealista, que também defendia e existencia de um
dualismo ontológico entre mente e corpo. Por isso, tal psicologia langava mao de um método
mentalista que descrevia o comportamento, mas nao o explicava. Dentre as teorias que
compunham este grupo, Vygotsky teve urna aproximagao mais significativa com a Psicologia
da Gestalt, ainda que sua visao sobre essa escola alema tenha se transformado bastante entre
1924 e 1934. Para van der Veer e Valsiner (1996), as consideragóes de Vygotsky sobre a
Psicologia da Gestalt denotavam urna "dupla perspectiva", pois, ao mesmo tempo em que
enfatizava sua importancia e seus avangos, o autor explicitava os limites da perspectiva
associacionista para resolver a crise da psicologia (Barros e outros, 2009).
O termo "Gestalt" ganha importancia na teoria vygotskiana acerca do
desenvolvimento. No entanto, há urna diferenciagao pontual entre a concepgao deste termo
para a psicologia sócio-histórica e para os psicólogos gestaltistas. Conforme discutido por
Blunden (2011), a crítica tecida por Vygotsky direcionava-se a concepgao de
desenvolvimento de Koffka e Kohler, para os quais a formagao do psiquismo acontecería
exclusivamente "dentro da cabega", enquanto Vygotsky defendia a necessidade de
considerar-se dialeticamente as interagóes sociais, ou seja, aspectos situados "fora da cabega".
Sendo assim, pode-se afirmar que o conceito de "gestalt" defendido pela psicologia sóciohistórica estava mais próximo dos argumentos tecidos por Goethe, Hegel e Marx, que
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terminaram por influenciar a proposigao de constructos centráis para a psicologia sóciohistórica, tais como a zona de desenvolvimento proximal.
Kornilov e Vygotsky empenharam-se em suplantar as tendencias do empirismo e do
behaviorismo sobre o pensamento psicológico. Para tanto, aliaram-se a filosofía dos
psicólogos da Gestalt, os quais apresentaram contribuigóes relevantes para o
desenvolvimento da teoria sócio-histórica, ainda que Vygotsky já antecedesse que sua
caminhada ao lado dos gestaltistas seria apenas em um momento inicial, já indicando a
ruptura futura, como o de fato ocorrido.
A Psicologia da Gestalt apresentou pontos de encontró com psicologia praticada no
Instituto de Moscou. Entre esses, apontam-se as consideragóes sobre a natureza complexa
dos fenómenos - constituidos por aspectos internos e externos simultáneos e indissociáveis e sobre a "síntese criadora". De acordó com este conceito, a associagáo de elementos nao
corresponde apenas a sua adigáo, deles emergem urna nova qualidade específica do produto,
que nao pode ser encontrada em seus elementos básicos (Figueiredo, 2002). "Considerava-se
que a psicologia da Gestalt aceitava a lei dialética de transformagáo de quantidade em
qualidade, o que, entáo, se adaptava bem ao fundamento da dialética marxista" (van der
Veer & Valsiner, 1996, p. 178). Além disso, o pensamento gestaltista estava em consonancia
com a importancia conferida por Vygotsky a síntese, possibilitando a compreensao de que os
fenómenos psicológicos sao constituidos por aspectos subjetivos e comportamentais, os quais
sao irredutíveis em sua comunháo. Perspectiva diversa do empirismo, em que existia
negligencia do lado comportamental, bem como do behaviorismo e sua negagáo da
consciéncia.
Tal como foi possível enxergar os limites da Reactologia, o desenvolvimento da
psicologia histórico-cultural também extrapolou o alcance da Psicologia da Gestalt. O foco de
estudo no significado das palavras como a unidade relevante de análise, afastou a psicologia
histórico-cultural da énfase excessiva na estrutura. O estruturalismo, por sua vez, configurase como um principio basilar da Gestalt. Por tal propriedade, Vygotsky afirmou que os
psicólogos gestaltistas nao conseguiam alcangar o caráter dialético do desenvolvimento, pois
nao reconheciam os saltos qualitativos em seu processo. Esta consistiu em urna das mais
importantes críticas feita a Gestalt e suplantou a esperanga inicialmente depositada sobre seu
caráter dialético (van der Veer & Valsiner, 1996).
Considerares Fináis
A partir do que foi discutido ao longo do presente artigo, é possível observar que no
decorrer do desenvolvimento da psicologia histórico-cultural ocorreram aproximagoes com
algumas perspectivas em psicologia e, ao mesmo tempo, contraposigóes as mesmas. Tal
sistema empreendeu esforgos na tentativa de suplantar a crise psicológica imposta pelo
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debate entre naturalistas e idealistas. Rejeitou de um lado a tendencia vigente na época de
impor a psicologia urna metodologia de investigagao do fenómeno psicológico semelhante ao
das ciencias naturais. Por outro lado, afastou-se da perspectiva idealista que inviabilizava o
desenvolvimento de um método objetivo para a pesquisa psicológica.
Para a psicologia histórico-cultural, nenhuma das duas perspectivas aproximava-se de
explicagao plausível para o que considerava essencialmente humano. Para se deslocar
fundamentalmente dos caminhos entao adotados por naturalistas e por mentalistas, a
psicologia histórico-cultural buscou subsidio metodológico no materialismo históricodialético de Marx e Engels (Barros e outros, 2009). Nesse sentido, langou mao do que se
denominou "método inverso", no qual a análise da constituigao do fenómeno humano exige
a compreensao desenvolvimental, em que a partir do conhecimento acerca das etapas
processuais do desenvolvimento se conhece o resultado para o qual se dirige tal
desenvolvimento, a forma final que adota e o percurso que segué.
Dessa forma buscou-se aqui apresentar brevemente o diálogo da psicologia sóciohistórica com diferentes perspectivas filosóficas e psicológicas, destacando pontos de
convergencia e divergencia entre tais sistemas. Salienta-se que todas as perspectivas aqui
destacadas contribuíram para a proposigao deste projeto científico para a psicologia,
adensando suas contribuigóes teórico-metodológicas, ainda que estabelecendo contrapontos
e cisóes importantes.
A proposigao teórica delineada por Vygotsky, Luria e Leontiev inaugurou um novo
olhar sobre o fenómeno psicológico, destacando a importancia do método genético
desenvolvimental, afirmando que os processos psicológicos superiores sao constituidos na
relagao dialética estabelecida entre o sujeito e o mundo social, relagao esta mediada
fundamentalmente pela linguagem.
É preciso atentar para o fato que a revisao histórica, o resgate dos fundamentos
filosóficos e epistemológicos que sustentam um projeto científico tém o papel de alimentar e
fomentar a discussao contemporánea deste projeto. Sendo assim, como discute Daniels
(2002), a produgáo da psicologia sócio-histórica na atualidade precisa ser comprendida
dentro de seu próprio contexto histórico e cultural. Torna-se essencial que seja feita filtragem,
selegáo, transformagáo e assimilagáo dos origináis, garantindo coeréncia com os preceitos
subjacentes a nogáo de síntese dialética em Vygotsky. Tal constructo propóe que o processo
de desenvolvimento é resultante de contradigóes, de negagáo de teses por suas antíteses, que
levam a sínteses, a emergencia da novidade, sendo esta fundamentalmente a experiencia de
contrarios, desenvolvidas com forga semelhante, mas inteiramente ligados uns aos outros.
Memorándum 22, abr/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
BSN1676-1669
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Nota sobre as autoras
Nietsnie de Souza Duarte, mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN), vinculada ao Laboratorio de Pesquisa e Extensáo em
Neuropsicologia da UFRN (LAPEN-UFRN), Natal, RN. Email: [email protected]
Rosália Carmen de Lima Freiré, mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN), vinculada ao Laboratorio de Pesquisa e Extensáo em
Neuropsicologia da UFRN (LAPEN-UFRN), Natal, RN. Email: [email protected]
Izabel Hazin, Professora Adjunta, Departamento de Psicologia, Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN), Coordenadora do Laboratorio de Pesquisa e Extensáo em
Neuropsicologia da UFRN (LAPEN-UFRN), Natal, RN. Email: [email protected]
Data de recebimento: 07/07/2011
Data de aceite: 03/04/2012
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A espacialidade da memoria ñas Confissoes de Agostinho
The spatiality of the memory in Augustine's Confessions
Sávio Passafaro Peres
Marina Massimi
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Resumo
O tema da memoria constituí urna das bases do pensamento teológico, filosófico e
psicológico de Agostinho de Hipona. A relevancia dessa faculdade pode ser observada no
livro X das Confissoes. Em poucas linhas, o que Agostinho se propóe neste livro é
justamente explorar a própria memoria em busca de Deus. Ao buscar Deus dentro da
memoria, Agostinho acaba desenvolvendo urna concepcao da memoria de grande
importancia na historia dos saberes no Ocidente: o eu entendido enquanto espaco interior
ou como espaco íntimo. Procuraremos reconstruir e detalhar a serie de argumentos
propostos por Agostinho a respeito do tema da memoria e observar em que sentido ela é
entendida metafóricamente como um espaco compartimentado. Finalmente,
procuraremos mostrar a relevancia e atualidade desta metáfora no modo como
atualmente se compreende a memoria.
Palavras-chave: memoria; Agostinho de Hipona; metáforas
Abstract
The theme of memory is one of the foundations of theological, philosophical, and
psychological thought of Augustine of Hippo. The relevance of this faculty can be
observed in book X of the Confessions. In a few lines, what Augustine intends in this
book is to precisely explore his own memory searching for God. By seeking God in the
memory, Augustine ends up developing a concept of memory of great importance in the
history of knowledge in the West: "I" understood as "inner space" or intímate space. We
will seek to rebuild and detail the set of arguments offered by Augustine on the subject of
memory and observe in what sense it is understood metaphorically as a
compartmentalized space. Finally, we will show the relevance and actuality of this
metaphor in the way we understand the memory nowadays.
Keywords: memory; Augustine of Hippo; metaphors
Introdujo
A metáfora espacial da memoria está táo arraigada em nossa cultura que, para nos,
parece natural e obvia. Todavía, nao se trata de algo obvio. Basta observar que a metáfora
carrega implícitamente importantes concepgoes concernentes a globalidade da mente. Essa
metáfora, amplamente empregada e desenvolvida por Agostinho, sugere muitas das
concepgoes de memoria que vieram posteriormente a ele (Draaisma, 2000). Possivelmente, a
concepgáo de inconsciente, entendido como topos, remonta sua raiz a essa origem. Ao tratar
da persistencia da metáfora da memoria em seu livro, Marking the Mina: A History of Memory,
o historiador da psicología Danziger (2008) comenta:
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A metáfora do armazenamento apareceu há muitos séculos. Urna variacao
desta metáfora representa o armazenamento da memoria em termos de
analogías muito concretas: ou o recipiente de armazenamento ou os itens
armazenados, e, as vezes ambos, sao descritos em termos de objetos
materiais palpáveis. Analogias oriundas da arquitetura para a descricáo do
recipiente foram por muito tempo as favoritas. "Nos pesquisamos nossa
memoria em busca urna ideia esquecida, assim como nos vasculhamos nossa
casa em busca de um objeto perdido... Voltamo-nos sobre as coisas em que,
ou dentro da qual, ou ao lado das quais, eventualmente, pode estar",
escreveu William James na aurora da psicologia moderna. E alguns anos
mais tarde, Freud também sugere urna casa como urna metáfora reconhecida
e direta para designar o recipiente de memorias: "O sistema inconsciente
pode ser comparado a urna grande antessala... adjacente a esta está um
segundo apartamento menor, urna especie de sala de recepcáo, na qual a
consciéncia reside."
Esse tipo de analogia se repete ao longo da historia dos discursos sobre a
memoria e parece ter pouco a ver com os comprometimentos filosóficos dos
autores. No final do século XVII, John Locke, muitas vezes considerado o pai
do empirismo moderno, se refere a memoria como "o celeiro de nossas
ideias". Bem mais de mil anos antes, a metáfora do armazém havia sido
celebrada por S. Agostinho, que escreveu sobre "os campos e vastos palacios
da memoria" e sobre a "caverna da memoria que é enorme, com os seus
misteriosos recantos secretos e indescritíveis fissuras". Descrevendo-a como
um « grande saláo »e « depósito maravilhoso», o seu texto desempenhou um
papel importante na persistencia da propagacáo da metáfora-armazém
durante um período muito longo em que o discurso sobre a memoria era
governado pela autoridade crista (p. 25, traducáo nossa).1
Embora urna simples metáfora, a nogao de memoria como espago, sugere até mesmo
um método próprio de investigagao desta potencia. De fato, Agostinho, ao investigar a
memoria, poe-se na situagao de um explorador de um lugar imenso, onde pode haver, até
mesmo, "esconderijos secretos".
1
Storage metaphor had appeared for many centuries. One variant represents memory storage in terms of very
concrete analogies: either the storage container or the items stored, and often both, are depicted in terms of
palpable material objects. Architectural analogies for the container were long a favourite. 'We make search in our
memory for a forgotten idea, just as we rummage our house for a lost object ... We turn over the things under
which, or within which, or alongside of which, it may possibly be', wrote William James at the dawn of modern
psychology (James, 1890/1952, p. 654). And a few years later, Freud too suggests a house as an admittedly crude
analogy for the container of memories: 'The unconscious system may therefore be compared to a large ante-room
... adjoining this is a second smaller apartment, a sort of reception room, in which consciousness resides.'(Freud,
1924/1952, p. 305). This kind of analogy recurs throughout the history of discourse about memory and it seems to
have little to do with the philosophical commitments of the authors. At the end of the seventeenth century, John
Locke, often regarded as the father of modern empiricism, referred to memory as 'the storehouse of our ideas'
(Locke, 1690/1959, p. 193). Well over a thousand years earlier, the storehouse metaphor had been celebrated by St
Augustine, who wrote about 'the fields and vast palaces of memory' and 'memory's huge cavern, with its
mysterious secret and indescribable nooks and crannies' (Agostinho, 397/1991). Describing memory as a 'vast
hall' and as 'wonderful storerooms', his text played a significant role in The persistence of metaphor propagating
the storehouse metaphor over a very long period during which memory discourse was governed by Christian
authority (Danziger 2008, p. 25).
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A metáfora da espacial da memoria acompanha praticamente toda obra de Agostinho,
porém é no livro X das Confissoes que ela vem desenvolvida até suas últimas consequéncias.
De modo geral, tres questoes norteiam as investigagóes da memoria no livro X das Confissoes.
1) O que há neste espago, ou seja, na memoria?
2) Como os conteúdos da memoria entraram nela?
3) Como Deus está presente na memoria?
As tres questoes estáo articuladas, pois se o homem é capaz de pensar em Deus, é
porque Deus está de alguma maneira na memoria.
Urna vez que a memoria é compreendida como urna especie de espago, o ato de
relembrar é tomado como urna especie de visáo interior do que está contido neste espago.
Esta concepgao exerceu enorme impacto na historia da subjetividade. Sobre este ponto em
particular, Cary, autor de Augustine's Invention of the Inner Self: The Legacy of a Christian
Platonist, comenta que, embora tenha tirado da tradigáo retórica a metáfora da memoria
como "lugar interior", o bispo de Hipona aprofunda a nogáo, levando-a um nivel, por assim
dizer, existencia! Com efeito, a memoria é mais do que um simples espago. Isso porque a
espacialidade da memoria coincide com a espacialidade do próprio espirito em sua
totalidade. Ou seja, o próprio "eu" torna-se um espago interior, urna regiáo de intimidade,
concepgao esta que, antes de Agostinho, ao contrario de hoje em dia, nao era de modo algum
vista como "obvia" pelos seus contemporáneos. (Cary, 2000, p. 128). E, de fato, a metáfora da
espacialidade nao só caracteriza o pensamento de Agostinho, mas também irá fecundar e
servir como um fio condutor em suas investigagoes da alma. Se nao, vejamos:
Irei também além desta forca da minha natureza (a memoria: n.d.r),
ascendendo por degraus até áquele que me criou, e dirijo-me para as
planicies e os vastos palacios da memoria, onde estao tesouros de
inumeráveis imagens veiculadas por toda a especie de coisas que se
sentiram. Ai está escondido também tudo aquilo que pensamos, quer
aumentando, quer diminuindo, quer variando de qualquer modo que seja as
coisas que os sentidos atingiram, e aínda tudo aquilo que lhe tenha sido
confiado, e nela depositado, e que o esquedmento ainda nao absorveu nem
sepultou (Conf., X, 8,13; Agostinho, 397/2004, p.454)2.3
As metáforas empregadas indicam a espacialidade da memoria. Temos a memoria
comparada ora a um palacio (praetoria), ora a um campo (campus). Agostinho afirma ainda
que ali está escondido tudo o que pensamos (ibi reconditum est, quidquid etiam cogitamos). Ora,
2
Para facilitar a consulta, usamos ao lado das referencias da APA, as referencias da patrologia latina de Migne,
que é de uso corrente. Abreviamos Confissoes por "Conf.", em seguida o número do livro da obra, do capítulo e do
artigo.
3
Transibo ergo et istam naturae meae, gradibus ascendens ad eum, qui fecit me, et venio in campos et lata
praetoria memoriae, ubi sunt thesauri innumerabilium imaginum de cuiuscemodi rebus sensis invectarum. ibi
reconditum est, quidquid etiam cogitamus, vel augendo vel minuendo vel utcumque variando ea quae sensum
attigerit, et si quid aliud commendatum et repositum est, quod nondum absorbuit et sepelivit oblivio (Conf. X, 8,
13; Agostinho, 397/2004, p. 454).
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já comega a ficar claro que a memoria é nao só entendida como um depósito, mas também
como urna especie de solo, de espago sobre o qual o eu habita. Interessante notar na
passagem que, como vínhamos apontando, tudo o que pode ser pensado tira sua materiaprima dos conteúdos da memoria. Pensar envolve nao apenas evocar as imagens daquilo que
foi absorvido pelos sentidos, mas também combinar, aumentar, diminuir tais imagens. Tratase de um espago complexo, porque contém inclusive compartimentos secretos. Na passagem
abaixo, Agostinho procura evidenciar diferentes maneiras pelas quais as coisas sao
lembradas. Vejamos
Quando ai estou, peco me seja apresentado aquilo que quero: urnas coisas
surgem imediatamente; outras sao procuradas por mais tempo e sao
arrancadas dos mais secretos escaninhos; outras, aínda, precipitam-se em
tropel e, quando urna é pedida e procurada, elas saltam para o meio como
que dizendo "Será que somos nos?". E eu afasto-as da face da minha
lembranca, com a mao do coracao, até que fique claro aquilo que eu quero e,
dos seus escamnhos, compareca na minha presenca. Outras coisas há que,
com facüidade e em sucessao ordenada, se apresentam tal como sao
chamadas, e as que vém antes cedem lugar as que vem depois, e, cedendo-o,
escondem-se, para reaparecerem de novo quando eu quiser. Tudo isto
acontece quando contó alguma coisa de memoria (Conf., X, 8,13; Agostinho,
397/2004, p.454).4
A metáfora mostra todo seu poder se observado que Agostinho equipara o ato de
lembrar ao ato de procurar o conteúdo neste espago interior. Lembrar é o ato de trazer algo
com a "mao do coragao" (manus coráis) para a "face da lembranga", (afacie recordationes meaé).
E é com essa mesma mao que ele tira diante do espirito os conteúdos que emergem
importunamente no lugar daqueles que sao realmente procurados. Ou seja, a memoria nao é
um lugar do qual o espirito tenha onisciéncia e sobre o qual é onipotente. Isso porque pode,
inclusive, ocorrer do espirito procurar determinado conteúdo na memoria e ser incapaz, ao
menos temporariamente, de ser bem sucedido. E, além disso, pode ocorrer o que caso de que
o espirito queira se lembrar de urna coisa e outra "emergir", sem que seja chamada. O fato de
que existem conteúdos que sao fácilmente acessados e outros nao, parece sugerir que alguns
conteúdos se encontrem em lugares de difícil acesso e outros nao. Quanto mais tempo
alguém fica sem se lembrar de um conteúdo, mais próximo este fica da sepultura. Exercer a
memoria pela lembranga é fundamental para que o conteúdo nao desaparega
permanentemente dos espagos da memoria.
4
ibi quando sum, poseo, ut proferatur quidquid voló, et quaedam statim prodeunt, quaedam requiruntur diutius
et tamquam de abstrusioribus quibusdam receptaculis eruuntur, quaedam catervatim se proruunt et, dum aliud
petitur et quaeritur, prosiliunt in médium quasi dicentia: ne forte nos sumus? et abigo ea manu cordis a facie
recordationis meae, doñee enubiletur quod voló atque in conspectum prodeat ex abditis. alia faciliter atque
inperturbata serie sicut poscuntur suggeruntur, et cedunt praecedentia consequentibus, et cedendo conduntur,
iterum cum voluero processura. quod totum fit, cum aliquid narro memoriter (Conf., X, 8, 13; Agostinho,
397/2004, p. 454).
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Seguindo adiante as metáforas da espacialidade da memoria podemos acompanhar o
seguinte raciocinio de Agostinho. Pensamos em Deus e, pensando, o vemos dentro de nos.
Por essa razáo, a memoria torna-se nao apenas um palacio, um campo, mas também um
santuario. E, Agostinho chega até mesmo a se questionar: "Em que lugar da memoria Deus
permanece?"
Mas onde estás em minha memoria, Senhor, onde é que nela estás? Que
habitáculo fabricaste para ti? Que santuario edificaste para ti? Tu concedeste
esta honra a memoria, a de permanecerdes nela, mas em que lugar déla
permaneces é o que estou a considerar (Conf., X, 25, 36; Agostinho, 397/2004,
p.489).5
Sabemos que podemos pensar em Deus, logo Deus está na memoria. Mas onde? Qual o
santuario que Deus construiu para si? Estaria guardado no mesmo receptáculo onde estao
guardadas as imagens das coisas sensíveis, ou estaria em outro lugar? De todo modo, o que
fica claro é que a memoria é um vasto campo em que há diferentes regioes. Explorar o
imenso territorio da memoria significa, para Agostinho, mapeá-lo, iluminando com nitidez
os diferentes lugares. O criterio adotado para a classificagáo dos comportamentos é o
conteúdo. Cada compartimento abriga um determinado tipo de conteúdo.
Tudo o que pode ser pensado encontra-se em algum lugar e de algum modo na
memoria. Logo, conclui-se que demarcá-la e conhecer seus conteúdos implica em
circunscrever os próprios limites da faculdade do pensamento, tal como conhecendo os
materiais, sabemos os tipos de construgoes que podemos erigir. Daí que o exame detalhado
da memoria invade e ilumina problemas epistemológicos. Ilumina de duas formas básicas: 1)
Por tomarmos conhecimento dos tipos de materia prima (conteúdos da memoria) a partir das
quais se formam os nossos pensamentos, 2) Dado que nossos conhecimentos se localizam na
memoria, conhecer a memoria significa conhecer os nossos conhecimentos.
Mas o que significa conhecer os nossos conhecimentos? Significa iluminar o lugar onde
residem na memoria, investigar sua origem, bem como a maneira como estao na memoria.
Ou seja, investigar o "de onde" e o "como" destes conteúdos.
As imagens das coisas na memoria e as portas de entrada do espirito
Havíamos dito que existem maneiras pelas quais as "coisas" podem estar na memoria.
O modo mais básico é o das coisas estarem em imagem. De fato, seguindo a ordem de
exploragáo da memoria no livro X das Confissoes, a primeira especie de conteúdo que se
encontra na memoria é a das imagens das coisas sensíveis, daquilo que é visto, tocado,
cheirado, escutado, saboreado, etc.
5
Sed ubi manes in memoria mea, domine, ubi illic manes? quale cubile fabricasti tibi? quale sanctuarium
aedificasti tibi? tu dedisti hanc dignationem memoriae meae, ut maneas in ea, sed in qua eius parte maneas, hoc
considero (Conf., X, 25, 36; Agostinho, 397/2004, p. 488).
Memorándum 22, abr/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
BSN1676-1669
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Peres, S. P. & Massimi, M. (2012). A espacialidade da memoria ñas Confissoes de Agostinho. Memorándum, 22, 68-91.
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Notemos que a nogao de "imagem" representa um dos conceitos centráis ñas análises
que Agostinho efetua da memoria. Imagem nao diz respeito apenas as imagens visíveis, pois,
segundo Agostinho, temos dentro de nos também "imagens sonoras", "imagens táteis", etc.
Quem vé um cávalo possui em sua própria visao a imagem visual do cávalo. Mas, se
escuta um cávalo relinchar, poderá relembrar posteriormente a "imagem" do relincho do
cávalo. Caso nunca tenha escutado um cávalo relinchar, nao terá a imagem do relincho do
cávalo. Um surdo terá na memoria a imagem do que viu, das cores, da luz, mas nao terá a
imagem dos sons. Com o corpo, nao só percebemos apenas sensagoes táteis concernentes aos
objetos sólidos que tocamos, mas também percebemos o frió e o quente, armazenando em
nossa memoria a imagem do quente e do frió.
A metáfora da memoria entendida como espago sugere o seguinte raciocinio no que
concerne a origem. Se algo se encontra neste espago, é porque entrou por alguma porta ou
fenda, ou porque sempre ai esteve. Nao há urna terceira opgáo. Levando adiante o raciocinio,
Agostinho é impelido a concluir que cada sentido é urna "porta de entrada" na alma para o
mundo corpóreo. Agora podemos estabelecer um novo criterio adotado por Agostinho no
que concerne a distingáo dos compartimentos. Cada compartimento possui urna "porta de
entrada". Em outras palavras, trata-se de um criterio ligado a origem do conteúdo.
Agostinho, com efeito, divide as imagens presentes na memoria conforme sua via de acesso,
de modo que cada via corresponda um sentido.
Ali estao arquivadas, de forma distinta e classificada, todas as coisas que
foram introduzidas cada urna pela sua entrada: a luz e todas as cores e
formas pelos corpos, pelos olhos; todas as especies de sons, pelos ouvidos;
todos os odores, pela entrada do nariz; todos os sabores pela entrada da
boca; e, pelo sentido todo do corpo, o que é duro, o que é mole, o que é
quente ou frío, o que é macio ou áspero, pesado ou leve, quer exterior, quer
interior ao corpo. Todas estas coisas recebe, para as recordar quando é
necessário, e para as retomar, o vasto recóndito da memoria e as suas
secretas e inefáveis concavidades: todas essas coisas entram nela, cada urna
por sua porta, e nela sao armazenadas. Contudo, nao sao as próprias coisas
que entram, mas sim as imagens das coisas, percebidas pelos sentidos, que
ali estao a disposicao do pensamento que as recorda" (Conf., X, 8,13;
Agostinho, 397/2004, p. 455)6.
Levando adiante a investigagáo, um fato se impóe e pede resolugáo: um mesmo objeto
sensível pode ser captado por diferentes sentidos. Portanto, quando pensamos no objeto
6
Ubi sunt omnia distincte generatimque servata, quae suo quaeque aditu ingesta sunt, sicut lux atque omnes
colores formaeque corporum per oculos, per aures autem omnia genera sonorum omnesque odores per aditum
narium, omnes sapores per oris aditum, a sensu autem totius corporis, quid durum, quid molle, quid calidum
frigidumve, lene aut asperum, grave seu leve sive extrinsecus sive intrinsecus corpori. haec omnia recipit
recolenda, cum opus est, et retractanda grandis memoriae recessus et nescio qui secreti atque ineffabiles sinus
eius: quae omnia suis quaeque foribus intrant ad eam et reponuntur in ea. nec ipsa tamen intrant, sed rerum
sensarum imagines illic praesto sunt cogitatione reminiscentis eas. quae quomodo fabricatae sint, quis dicit, cum
appareat, quibus sensibus raptae sint interiusque reconditae? (Conf. X, 8,13; Agostinho, 397/2004, p. 454).
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sensível como um todo, isso implica algum trabalho de síntese. Nao é possível que esta
síntese seja feita nem pela própria visáo, nem por qualquer outro sentido em particular.
Resta que é alguma faculdade da alma, superior aos sentidos, que sintetiza as diferentes
imagens sensiveis relativas a um mesmo objeto. A mesma xicara é amarela e dura. Quem me
informa que é dura, é meu tato; quem me informa que é amarela, sao meus olhos, mas quem
me informa que o mesmo objeto é simultáneamente duro e amarelo é outra fungao, que está
ácima dos sentidos. Essa fungao sintética pela qual a alma liga as imagens fornecidas pelos
diferentes sentidos está presente também nos animáis; também eles sao capazes de se
lembrar dos objetos sensiveis como um todo.
Agostinho nota que a recepgáo do objeto por um dos sentidos nao é afetada pelos
demais, isto é, cada um dos sentidos é autónomo perante os demais. Se estivermos em um
ambiente barulhento, isso nao impede que vejamos com nitidez a imagem visual do objeto e
que a retenhamos na memoria. E urna vez retida na memoria, essa imagem torna-se
disponível, para que, quando quisermos, evoquemo-la.
Mas o que a própria visáo do objeto pode oferecer que a memoria nao oferece? Qual a
diferenga e a semelhanga entre lembrar de algo sensível e perceber algo sensível? Nao
haveria urna diferenga de nitidez? O que Agostinho nos informa a esse respeito no livro X
das Confissoes é que as imagens presentes na memoria possuem tragos suficientes para
determiná-las e distingui-las de outras imagens contidas na memoria. "Na verdade, quando
estou as escuras ou em silencio, trago a memoria as cores, se quiser, e distingo o branco do
negro, e outras cores, que eu quiser, urnas das outras". (Conf., X, 8, 13; Agostinho, 397/2004,
p.455). O branco visto interiormente com o auxilio da memoria é semelhante ao branco visto
pelo sentido. Daí resulta que o conteúdo da memoria pode, em alguns casos, servir de base
para julgamentos táo seguros quanto se estivéssemos vendo, em carne e osso, a realidade
julgada "(...) sem nada cheirar, distingo o perfume dos lirios do das violetas e, sem nada
provar, nem tocar, mas apenas recordando, prefiro o mel ao arrobe e o macio ao áspero"
(Conf., X, 8,13; Agostinho, 397/2004, p.456).
A memoria das próprias coisas
Além dos conteúdos mencionados anteriormente, a memoria ainda contém o
conhecimento das artes liberáis, como a retórica e dialética.
Mas essa capaddade da minha memoria nao encerra apenas essas coisas
(imagens: n.d.r). Aqui estao também todas aquelas que, tomadas das artes
liberáis, ainda nao se perderam, como que escondidas num lugar interior,
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que nao é lugar. E nao levo comigo as suas imagens, mas as próprias coisas
(Conf., X, 9,16; Agostinho, 397/2004, p. 459)7.
A arte possui um lado teórico e um prático. Quem domina a retórica atualiza-a no seu
ato de falar ou escrever. Agostinho observa que o mestre de urna arte liberal nao a conhece
em imagem. Isso porque toda imagem pressupóe duplicagáo. A imagem de algo é diferente
do próprio algo. No caso das artes liberáis isso nao ocorre, como se a imagem estivesse
dentro do espirito e a própria arte liberal estivesse fora, como se dá com o conhecimento dos
corpos, dos quais retemos apenas a imagem e nao o próprio ser. Contudo, feitas as distingóes
ácima outras, vinculadas a essa sao necessárias. Assim, quando se diz que alguém conhece
retórica, se diz de dois modos: o de ter nogáo do que é a arte e o de conhecé-la no sentido de
dominá-la. Conhecimento enquanto nogao de urna habilidade e conhecimento enquanto
habilidade. Quem domina urna arte liberal possui em si nao imagem da arte, mas a própria
arte.
Ao que parece, portante, as coisas podem estar na memoria de duas formas, ou em
imagem ou elas próprias. Seguindo essa ordem de raciocinio, podemos, seguindo Agostinho
no livro X das Confissoes, dar um passo adiante, investigando o que significa conhecer os
números. Ora, quem os conhece, conhece a imagem dos números ou os próprios números?
Os números nao possuem cor, sabor, peso etc., logo nao é possível que tenham entrado
por nenhuma das portas carnais. Portanto, se há urna porta de entrada pela qual os números
entraram no espirito, foi pela porta intelectual, ou seja, pelo olhar da inteligencia. Mas como
se dá esse processo? Os números estavam "fora do espirito" e, urna vez vistos "no céu
metafísico", entraram no espirito?
Urna primeira hipótese seria a de que os números estavam na mente de Deus e, de
algum modo, se "deslocaram" daí para a mente do homem. Urna segunda hipótese seria a de
que os números já estavam eles mesmos, em algum lugar, na memoria do homem. Mas as
duas hipóteses seriam contraditórias? O que encontramos em Agostinho é a fusao das duas
hipóteses, que pode ser mais bem compreendida pela articulagao de alguns pontos chaves:
1) Deus é incorporal e espiritual, assim como o espirito do homem.
2) Por ser espiritual, Deus pode habitar, em sua inteireza, no interior mais profundo de
cada um dos espíritos humanos, bem como está todo inteiro em cada parte do universo
corporal.
3) Se Deus habita no espirito, logo as ideias de Deus também habitam no espirito.
4) Deus habita o espirito sempre, mas nem sempre estamos pensando em Deus, logo
Deus habita na memoria.
7
Sed non ea sola gestat immensa ista capacitas memoriae meae. Hic sunt et illa omnia quae de doctrinis
liberalibus percepta nondum exciderunt, quasi remota interiore loco, non loco; nec eorum imagines, sed res ipsas
gero (Conf., X, 9,16; Agostinho, 397/2004, p. 458).
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5) A memoria pode conter dois tipos de conteúdos: 1) entes que nao sao passados, mas
sim presentes eles mesmos no espirito (As artes liberáis, os números, Deus e as ideias de
Deus) 2) fatos ou imagens de coisas que foram e nao sao mais.
Sao estes pontos que iremos examinar com pormenores.
Os conteúdos inteligíveis da memoria
Tendo estabelecido que determinados objetos estao "eles próprios" na memoria, um
novo aspecto pode ser examinado, a saber, a relagao entre o signo e o próprio objeto. Para
Agostinho toda palavra é um signo que se refere a alguma coisa. Quando ouvimos o som
"pedra", o reconhecemos e sabemos o significado. Analisando tal processo, podemos
diferenciar algumas componentes envolvidas no processo: 1) o som "pedra" 2) a imagem do
som "pedra" na memoria. 3) a imagem da pedra na memoria 4) a própria pedra que nao está
no espirito, mas no mundo.
Por termos a imagem do som "pedra" gravada na memoria, isto é, da sequéncia de
fonemas, podemos reconhecer o signo. Mas isso de nada adiantaria se nao tivéssemos a
imagem do som "pedra" associada com a imagem da pedra captada pelos sentidos.
No processo ácima citado, um detalhe importante deve ser observado. Ao escutarmos o
som, a imagem da pedra emerge em nossa mente; mas também sabemos que essa imagem
mental nao é a pedra real, mas diz respeito a esta. Esta estrutura parece funcionar muito bem
quando estamos nomeando as coisas no mundo. Mas o que dizer quando escutamos o
vocábulo "tres"? Seria correto considerar que, fazendo um paralelo com o caso anterior
quando escutamos pedra, feriamos, neste último caso:
1) O som da palavra "tres" recebida pelos sentidos.
2) A imagem do som gravada na memoria, pela qual reconhecemos o signo.
E agora a parte problemática:
3) A imagem interior do número tres.
4) O próprio número tres.
Como vimos atrás, esse modo de se compreender a questáo é, ao ver de Agostinho,
falso. Isso porque o significado da palavra "tres" nao se refere a algo que está fora do
espirito, mas algo presente nele próprio. Ora, aquele que conhece o número tres, ao pensá-lo,
nao evoca sua imagem, mas o próprio número. Já aquele que pensa em urna pedra, ao
contrario, nao possui a própria pedra dentro de si. O conhecimento da pedra está dentro do
espirito, a própria pedra está fora. Já o significado de "tres", que está dentro do espirito, é o
próprio número tres. Quem pensa no tres tem ele próprio diante do olhar do espirito.
Dito isso, podemos ir para a etapa seguinte. As imagens das coisas sensíveis entram no
espirito e se alojam na memoria pelas portas dos sentidos. Entretanto, o que dizer dos objetos
que estao eles próprios no espirito? Eles entraram por algum lugar na memoria? Para seguir
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nesta investigagao, retomemos o livro I das Confissoes, no qual, em certa passagem, Agostinho
investiga a maneira como um bebé aprende os nomes das coisas.
Segundo Agostinho, antes de aprender a linguagem, o bebé precisa ter a memoria das
imagens das coisas e querer as coisas. De fato, toda vontade é vontade de algo: só podemos
querer algo se tivermos memoria deste algo. Embora o bebé tenha a vontade e vislumbre
interiormente aquilo que quer, falta-lhe o nome do que quer. Por isso, embora queira
comunicar suas vontades, nao possui os meios de fazé-lo, de modo que ele se vé sem outra
alternativa senao berrar e chorar, seja para exigir algo, seja para se vingar quando nao lhe
dao o que quer. Mas essa situagao nao dura para sempre, pois o bebé, movido por sua
vontade de expressar com precisao suas vontades, passa a observar atentamente as pessoas
dirigindo-se as coisas com determinados nomes, os quais, paulatinamente, vai decorando. A
manifestagao mais visível deste processo é que cada pessoa usa os signos da língua em que
nasceu. Mas os significados sao os mesmos para qualquer língua. Urna palavra pode
significar a mesma coisa em grego ou em latim, o que nao impede que algumas línguas
possuam nomes para designar certas realidades e outras nao.
Observando exteriormente os homens dirigindo-se as coisas com determinados nomes,
o bebé aprende a nomear os objetos corpóreos. Mas como o espirito humano aprende os
significados de palavras que dizem respeito as realidades incorpóreas, como no caso dos
termos "esséncia", "tempo", "alma", "número", ou mesmo de termos como "que", "o que".
Como aprendemos tais significados?
Mas, porém, quando ouco dizer que há tres especies de questoes: "se urna
coisa é; o que é; e como é", tenho as imagens dos sons de que se compoem
estas palavras e sei que eles passaram pelo ar, com ruido, e já nao existem.
Mas as próprias coisas que sao significadas por esses sons nao as atingi por
nenhum sentido do corpo. (Conf., X, 10,17; p.2004, p. 461)8.
Em seguida Agostinho procura explicar como essas coisas entraram em sua memoria:
Donde e por onde entraram na minha memoria? Nao sei como. Pois, quando
as aprendi, nao dei crédito ao coraeáo de outra pessoa, mas reconheci-as no
meu, e admití que eram verdadeiras e confiei-as no meu, como que
depositando-as onde pudesse buscá-las quando quisesse. Portanto, estavam
lá, e já antes de as ter aprendido, mas nao estavam na memoria. Quando pois
e porque motivo, ao serem proferidas, as reconheci e disse: "Sim, é
verdade"? A nao ser que o fizesse porque já estavam na minha memoria,
mas táo afastadas e escondidas, como que ñas concavidades mais recónditas,
8
At vero, cum audio tria genera esse quaestionum, an sit, quid sit, quale sit, sonorum quidem, quibus haec verba
confecta sunt, imagines teneo, et eos per auras cum strepitu transisse, ac iam non esse scio. res vero ipsas, quae
illis significantur sonis, ñeque ullo sensu corporis attigi ñeque uspiam vidi praeter animum meum(...) (Conf., X,
10,17; p.2004, p. 460).
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de tal maneira que, se de lá nao fossem arrancadas, por sugestao de alguém,
talvez eu nao pudesse pensar nelas (Conf., X, 10,17; p.2004, p. 461)9.
Vemos que Agostinho estende as fronteiras da memoria, dando cidadania a essas
ideias inteligíveis que habitam em cavidades secretas. Mas essa extensao nao é fortuita, pois,
quando ele escuta a respeito dessas realidades inteligíveis, é tomado de certeza. E ele sabe
que essa certeza nao deriva da confianga depositada na autoridade de quem lhe transmitiu as
ideias e as regras eternas, mas do clarao oriundo da visao interior, que as revela tais como
sao. O mais notável é que, embora essas verdades nao se sustentem na autoridade alheia, o
"outro" exerce a importante fungáo de indicá-las para que o ouvinte as encontré dentro de si.
Advertir para que o homem encontré dentro de si próprio as verdades constitui o
trabalho do verdadeiro professor, caso o que esteja em jogo seja as realidades inteligíveis.
Quando o mestre disserta oralmente aos seus pupilos, os significados das palavras nao vao
enganchados junto aos sons que saem de sua boca. Cabe aos alunos encontrarem em si
mesmos os significados dos sons. O mestre nada mais pode fazer do que apontar os
inteligíveis, seja com símbolos, seja pela jungao de outros termos conhecidos pelos alunos.
Processo sementante a alguém que usa o dedo indicador para nos apontar urna constelagao,
que, sozinhos, nao seríamos capazes de ver, ainda que estivéssemos livres para ver a massa
estelar. Do mesmo modo, caso o olhar da mente do aluno seja bem sucedido e visualize o
objeto ñas profundezas da memoria recóndita, restará apenas resgatá-lo, colocando-o a luz,
de modo que, a partir de entao, tal objeto resgatado se torne disponível ao pensamento. Pela
indicagao, é possível que o homem consiga intuir o conteúdo inteligível, o que nao ocorre
necessariamente, por exemplo, aqueles que possuem o olhar da inteligencia embagado pelos
vapores emanados de um coragao vil.
Dois diferentes espatos: a memoria disponível e memoria profunda
Na passagem ácima citada, Agostinho marca a distingao entre dois tipos de regioes na
memoria: urna memoria recóndita e urna memoria disponível. Aquilo que está na memoria
recóndita, ao ser percebido pelo olhar da mente, é depositado na memoria disponível, como
se alguém tivesse encontrado um objeto no sótao escuro de sua própria casa, passasse-o para
a dispensa. Por exemplo, quando entendemos pela primeira vez o significado do termo
qualidade, o significado que estava na memoria profunda passa para a memoria disponível.
Quando isso ocorre, diz-se que a pessoa aprendeu o que significa "qualidade". Portanto, o
aprendizado das coisas que nao possuem imagem ocorre da seguinte forma:
9
Unde et qua haec intraverunt in memoriam meam? nescio quomodo; nam cum ea didici, non credidi alieno
cordi, sed in meo recognovi, et vera esse approbavi et commendavi ei tamquam reponens, unde proferrem, cum
vellem. ibi ergo erant et antequam ea didicissem, sed in memoria non erant. ubi ergo, aut quare, cum dicerentur,
agnovi et dixi: ita est, verum est, nisi quia iam erant in memoria, sed tam remota et retrusa quasi in cavis
abditioribus, ut, nisi admonente aliquo eruerentur, ea fortasse cogitare non possem? (Conf., X, 10, 17; p.2004, p.
460).
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Por conseguirte, verificamos que aprender essas tais coisas, cujas imagens
nao absorvemos pelos sentidos, mas vemos, tal como sao, dentro de nos
mesmos, em si mesmas, sem imagens, nao é outra coisa senao como que
recolher, pensando, aquilo que a memoria, indistinta e desordenadamente,
conn'nha, e fazer com que, reparando nelas, as coisas, que estao como que
colocadas a disposicao na própria memoria, onde antes, dispersas e
esquecidas, estavam ocultas, ocorram fácilmente a atencao já familiar. E
quantas coisas desta natureza a memoria encerra, coisas que já foram
encontradas e tal como disse, colocadas a disposicao, e se diz que nos
aprendemos e conhecemos! (Conf., X, 11,18; Agostinho, 397/2004, p. 463)10.
Podemos dizer que aprender consiste: 1) numa visao interior (intus cernímos); 2) essa
visao interior acontece quando o pensamento reúne em um trabalho da alma o que estava
desordenadamente disposto na memoria; 3) após reunir o que estava esparso, o
conhecimento deve ser passível de se tornar, com facilidade, presente novamente ao olhar do
pensamento. Quando isso ocorre, podemos dizer que aprendemos algo, que temos o
conhecimento deste algo inteligível. Mas há algo que deve ser dito para nao recairmos em
ambiguidade. Esta aprendizagem carece de interpretagáo. A aprendizagem descrita em
questao é a aprendizagem dos objetos inteligíveis.
Até o momento, podemos afirmar que o que há na memoria disponível:
1) entrou pelos sentidos
2) nao entrou na memoria disponível, mas foi produzido a partir de um trabalho da
mente (mens) sobre as imagens sensíveis (centauro).
3) se trata de algo que passou da memoria profunda para a memoria disponível.
Colocando dessa forma o problema, Agostinho aínda precisa responder urna nova
questao. Como os números e os inteligíveis vieram parar na "memoria profunda"? Urna
solugáo seria de teor platónico, ou seja, o espirito humano viu as realidades inteligíveis antes
de vivermos essa vida. Segundo Gilson (1946/2006), o jovem Agostinho chegou partilhar
dessa concepgáo, mas vai abandonando gradativamente, para formular aquilo que a tradigao
denominou de "teoría da iluminagao" agostiniana. De forma muito resumida, o espirito
humano nao conhece os inteligíveis porque os viu em urna vida passada, mas porque o
espirito participa, em diferentes dosagens, da sabedoria divina, que é o próprio Deus
presente no íntimo e ácima do espirito. É o que iremos posteriormente observar com mais
pormenores.
No plano de fundo da teoría da iluminagao está a seguinte indagagáo. Se podemos
pensar em Deus, isso leva a considerarmos duas hipóteses. Ou o próprio Deus está na
10
Quocirca invenimus nihil esse aliud discere ista, quorum non per sensus haurimus imagines, sed sine
imaginibus, sicuti sunt, per se ipsa intuscernimus, nisi ea, quae passim atque indisposite memoria continebat,
cogitando quasi colligere atque animadvertendo curare, ut tamquam ad manum posita in ipsa memoria, ubi
sparsa prius et neglecta latitabant, iam familiari intentioni facile occurrant. Et quam multa huius modi gestat
memoria mea, quae iam inventa sunt, et sicut dixi, quasi ad manum posita, quae didicisse et nosse dicimur {Conf.,
X, 11,18; Agostinho, 397/2004, p. 462).
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memoria ou o que há na memoria nao é Deus, mas apenas a imagem. As duas hipóteses
podem, entretanto, ser combinadas. Analisemos, portante, por partes. Já sabemos que, no
caso do número, é o próprio número que está em nos. Ao contrario, no caso de urna casa, é a
imagem da casa que está na memoria. Mas, afinal, e no caso de Deus? É ele próprio ou sua
imagem que está na memoria?
Essa é a grande questáo, que Agostinho coloca-se no livro X das Confissoes que lhe
serve de fio condutor de suas investigagóes. Mas, antes de procurar respondé-la, é preciso
aprofundar a distingáo entre a imagem e as próprias coisas.
Lembranga dos sentimentos
Ao que parece, as coisas que estao elas próprias na memoria possuem algo em comum,
todas elas sao incorporáis. O número é incorporal, urna reta, urna figura geométrica, a artes
liberáis. Seria correto inferir daí um crivo capaz de distinguir o que está em pessoa na
memoria e o que está em imagem? Esse crivo poderia rezar o seguinte.
1) Tudo o que existe "ele próprio" na memoria é incorporal.
2) Tudo o que existe em imagem é imagem de algo corporal.
A primeira hipótese é aceita por Agostinho, apenas a segunda hipótese precisa ser
examinada. Caso encontremos um contraexemplo, a segunda hipótese pode ser derruba. É o
que Agostinho deixa entrever quando ele analisa a memoria dos sentimentos.
Partindo da validade da segunda hipótese, podemos tragar o seguinte raciocinio. Se os
sentimentos sao incorporáis, nao feriamos, por principio, necessidade de guardar na
memoria a imagem do sentimento; poderíamos guardá-los eles próprios. Nao seria razoável,
portanto, considerar que, ao recordar a alegria, trazemos a própria alegría para a superficie
do espirito? Mas se assim fosse, questiona Agostinho, por que razáo, quando nos lembramos
da alegria, nao ficamos alegres? Isso parece sugerir que, se nao nos alegramos, é porque nao
evocamos a própria alegria, mas apenas a sua imagem.
É neste ponto que Agostinho formula urna interessante teoria para explicar como é
possível se lembrar de um sentimento sem senti-lo. Afirma que memoria é urna especie de
estómago da alma. A teoria pode ser posta brevemente do seguinte modo: enquanto temos
na boca um alimento, percebemos dele o sabor: se é amargo, doce etc. Quando passa ao
estómago, ele continua dentro de nos, entretanto, nao mais sentimos o sabor. Do mesmo
modo, os afetos, após exercerem seus efeitos, passam a memoria e ali nao mais sao sentidos.
Ao lembrarmo-nos dos afetos, estes passam do estómago para a boca, como um animal que
rumina, mas diferentemente deste, nao mais sentimos em nossa boca o sabor. E é justamente
neste ponto que Agostinho marca o limite da metáfora.
Talvez, portanto, assim como a comida é tirada do estomago, pela
ruminacao, assim também estas coisas sao liradas da memoria, pela
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Peres, S. P. & Massimi, M. (2012). A espacialidade da memoria ñas Confissoes de Agostinho. Memorándum, 22, 68-91.
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ruminacao. Entao porque é que quem as discute, isto é, quem as recorda, nao
senté, na boca do pensamento, a docura da alegría e a amargura da tristeza?
Porventura as duas situacoes sao dissemelhantes por nao serem semelhantes
em todos os aspectos? Na verdade, quem, de livre vontade, falaria de tais
coisas, se, todas as vezes que nomeamos a tristeza ou o medo, outras tantas
fóssemos obrigados a sentir tristeza e medo? (Conf., X, 14, 22; Agostinho,
397/2004, p. 469)11.
A memoria da f elicidade
Observamos logo atrás como Agostinho entende a memoria das emogoes ou afetos.
Trata-se de urna etapa importante. Afinal, ela serve como urna especie de atalho para a
procura de Deus na memoria, como veremos. Ao tratar da memoria da felicidade, Agostinho
inicia com a seguinte sentenga: "Todos querem ser felizes (beatitude)". Se ninguém duvida
disso é porque todos sabem o que é a felicidade. E, se sabem, é porque a felicidade está na
memoria. Mas, se ela está na memoria, como ela foi parar ali? Por experiencia? Ou haveria da
felicidade ser urna nogáo que está dentro da memoria de todo homem, tenha ti'do experiencia
ou nao?
O primeiro procedimento de Agostinho para resolver o problema é investigar qual a
natureza da felicidade. Agostinho se questiona se a memoria da felicidade seria do mesmo
género da memoria de um objeto exterior, tal como a memoria que ele tem de Cartago? A
resposta é negativa, responde Agostinho, pois a vida feliz nao se vé com os olhos do corpo.
"Nao é por nenhum sentido do corpo que experimentamos nos outros a vida feliz" (Conf., X,
21, 30; Agostinho, 397/2004, p. 483).
Posto que a vida feliz é algo que nao provém dos sentidos, haveria o homem de
conhecé-la tal como conhece os números, já que ela é, como estes, urna realidade incorporal?
Agostinho também refuta essa hipótese. Quem tem os números na memoria disponível nao
precisa se esforgar em alcangá-los. Já aquele que tem na memoria o significado da vida feliz
procura e se esforga por alcangá-la. Ora, se alguém deseja a felicidade é porque nao a possui
dentro de si.
Seria, portanto, equivalente ao caso da eloquéncia? Afinal, algumas pessoas sabem o
significado do termo eloquéncia, mas aínda assim procuram alcangá-la. Agostinho também
refuta essa hipótese. Quem tem nogáo do que tal arte significa é porque já ouviu, com prazer,
urna pessoa falar eloquentemente. Em outras palavras, o conhecimento desta arte exige
observagáo exterior aliada a um sentimento íntimo de prazer estético. No entanto, nao é o
caso da felicidade, pois nao é por nenhum sentido que "vemos" nos outros a vida feliz.
11
Forte ergo sicut de ventre cibus ruminando, sic ista de memoria recordando proferuntur. cur igitur in ore
cogitationis non sentitur a disputante, hoc est a reminiscente, laetitiae dulcedo vel amaritudo maestitiae? an in
hoc dissimile est, quod non undique simile est? Quis enim talia volens loqueretur, si quotiens tristitiam metumve
nominamus, totiens maerere vel timere cogeremur? (Conf., X, 14, 22; Agostinho, 397/2004, p. 468).
Memorándum 22, abr/2012
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Agostinho segué o raciocinio questionando-se se conhecemos a felicidade (beatitude) do
mesmo modo como conhecemos a alegría (laetítía). Ora, mesmo estando tristes é possível que
lembremos da alegría, a qual é incorporal, pois nao podemos tocá-la, cheirá-la etc. Ademáis,
todos já experimentaram a alegría e, portanto, todos tém dentro de si a nogáo da alegría.
Mas, afinal, qual a diferenga entre a vida feliz e a alegría? A distingáo entre laetítía e beatitude
se dá, segundo Agostinho, pelas razoes seguintes.
Toda alegria tem um motivo. E esse motivo pode ser variável. De fato, antes de sua
conversao, Agostinho sentía alegria por motivos os quais o austero bispo considera torpe.
Sentía alegria, por exemplo, em ganhar concursos de retórica, ou seja, urna especie de alegria
cujo motivo é a realizagáo da vaidade. Posto que toda alegria tem seus motivos, Agostinho
procurará sustentar que o que diferencia a alegria da felicidade sao básicamente os motivos.
Em outras palavras, alegria e felicidade sao idénticas quanto ao género, mas se diferenciam
quanto a especie. Para sermos mais exatos, a alegria é o género do qual a felicidade é especie.
O trago distintivo da felicidade com relagao as demais alegrías é que a felicidade é motivada
pela contemplagao da verdade. Agostinho diz que esse é o sentido das palavras escritas no
Evangelho de Joao: "É urna alegria que vem de ti, que és a Verdade,(...)" (Joao, 14:16).
Dado o que foi dito, podemos questionar: a afirmagao contida no Evangelho de Joao,
segundo a qual todos os homens querem ser felizes continua sendo válida? Será possível que
seja válida, se alguns homens se recusam a amar a verdade? Nao seria mais correto dizer que
todos os homens querem alegria, mas nem todos querem a felicidade? Por outro lado, nao
seria um absurdo dizer que alguns homens nao amam a verdade? Sao estas as questoes
merecem ser examinadas. Talvez elas tragam alguma pista sobre a presenga de Deus na
memoria, afinal, já sabemos que a felicidade e verdade andam juntas.
O que entáo Agostinho passa a examinar é justamente se todo homem ama a verdade
ou nao, ou se existem diferentes modos de se amá-la. Por verdade, ele entenderá o contrario
do engaño ou mentira. Amar a verdade implica, portanto, em desgostar do engaño.
Partindo deste principio, podemos agora procurar responder novamente a questáo.
"Os homens amam a verdade?" A resposta de Agostinho é clara. Sim, todos os homens
amam a verdade, contudo - e este é o ponto - sob determinado aspecto. Agostinho faz notar
que mesmo os mentirosos amam a verdade, pois aínda que eles amem engañar os outros,
odeiam quando sao engañados, isto é, odeiam quando os outros lhes faltam com a verdade.
Todavía, há um segundo sentido implicado no fato de que os homens amam a verdade.
Essa segunda implicagáo é engenhosa: ninguém gosta de descobrir que está engañado.
Quando se tenta tirar os homens do engaño, expondo-lhes a verdade, ocorre que a "verdade
gera odio" (Joao, 3:20). Gera o odio porque os homens engañados muitas vezes acreditam, sem
que tenham consciéncia, que seu engaño é a verdade. Eis ai um estranho modo pelo qual a
verdade é amada. Sem que o saibam, amam o próprio engaño como se fosse verdadeiro. "E
assim odeiam a verdade por causa daquilo que amam no lugar da verdade. Com efeito, urna
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vez que nao querem ser engañados e querem engañar, amam-na quando ela se anuncia e
odeiam-na quando ela os denuncia" (Conf., X, 23, 34; Agostinho, 397/2004, p. 487)12.
Outra forma de dizer é, o homem odeiam a "verdadeira verdade" porque a veem como
falsa e amam a "verdade mentirosa" porque a veem como verdadeira. Portanto, a verdade
gera o odio quando denuncia a mentira, seja a mentira intencional, seja a mentira que os
engañados tomam por verdadeira. Estes últimos, por crerem que é verdadeira, amam-na
mais ainda. E, por amá-la, querem-na verdadeira. Esse ciclo vicioso do homem engañado
frequentemente ocorre por lhe faltar a coragem de examinar criticamente a ilusao amada. Os
homens simplesmente acatam falsas opinioes recebidas de engañadores, os quais, em muitos
casos, nao estao conscientes do engaño, tal como Agostinho define a si mesmo quando
maniqueísta: "engañado e engañador".
Urna vez que o homem passe a depositar sua fé na falsa opiniao, tomando-a como
verdadeira, ele terá dificuldade de abandoná-la. A falsa opiniao é tratada como um pertence,
como um objeto de amor. O homem, ao ver o seu engaño denunciado, senté como se o seu
objeto amado fosse atacado, sente-se igualmente atacado em sua inteligencia e em seu
orgulho. Todos os homens, mesmos os ímpios, amam, de algum modo, a verdade. Amam-na
quando ela se anuncia, odeiam-na quando ela os denuncia.
Da felicidade para a verdade e da verdade para Deus
Como vimos, ter a nogao de felicidade implica em se ter a nogao de verdade. E de certo
modo, assim como todos querem ser felizes, todos amam a verdade. Agora fica, pois, a
questao: como conhecemos a verdade? Ou seja, como a verdade veio parar na memoria? O
que significa a verdade? A verdade, sem dúvida, nao é a imagem de nada. Por outro lado, a
verdade, ao que parece, nao é urna coisa. Podemos dizer que a verdade é algo que qualifica
as coisas e os significados das palavras. Neste sentido, a verdade é compreendida como um
predicado. Mas e quanto a Deus, o que significa dizer que Deus é a Verdade. Parece ser
necessário distinguir a verdade como substancia e como predicado e entender, em seguida, a
relagao entre ambos os sentidos.
É entao que Agostinho monta um intricado raciocinio. Comenta que os homens
preferem sentir alegrias em coisas verdadeiras do que em coisas falsas. O que Agostinho
quer dizer com isso, poderia ser ilustrado pelo seguinte exemplo. Se um homem senté alegría
de ser amado por urna mulher, ele senté alegria porque eré que o amor de sua mulher é
verdadeiro, ou seja, é real, efetivo. Caso descubra que o amor era falso, sua alegria se
extinguiría. Neste sentido, Agostinho comenta acerca dos homens que desrespeitam a
verdade:
12
amant eam lucentem, oderunt eam redarguentem. quia enim fallí nolunt et fallere volunt, amant eam, cum se
ipsa indicat, et oderunt eam, cum eos ipsos indicat" (Conf. X, 23, 34; Agostinho, 397/2004, p. 487).
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Todavía, sendo infeliz, mesmo assim antes quer sentir alegría ñas coisas
verdadeiras do que ñas falsas. Feliz será, pois, se, sem que nenhuma
infelicidade o perturbe, se alegrar únicamente com a verdade, em virtude da
qual sao verdadeiras todas as coisas (Conf., X, 25, 36; Agostinho, 397/2004, p.
489; negritos sao nossos)13.
É neste ponto que Agostinho dá um interessante passo, no qual, por assim dizer, passa
do conceito de verdade, enquanto atributo, para o de Verdade, enquanto esséncia pura, ou
seja, Deus. A base do raciocinio é a seguinte. É em razao da Verdade que todas as coisas
podem ter o atributo de serem verdadeiras. Ora, a questao é, portanto, entender que aqueles
que amam o que é verdadeiro, de certo modo, amam a própria Verdade, quer saibam, quer
nao. Afinal, é em fungao de Verdade que algo pode ser verdadeiro. Se alguém ama a criatura,
do mesmo modo, saiba ou nao, ama o criador. Se alguém ama o que é belo, saiba ou nao, ama
a Beleza. Nao é de forma alguma coincidencia encontrarmos o mesmo raciocinio em Platao.
No Banquete, Sócrates fala aos que se encontram presentes na festa que, certa vez,
quando ele era jovem, havia encontrado a profetisa Diotima, que lhe ensinara que o amor
tende a Beleza:
Beleza incriada perpetua imperecível incapaz de aumento ou diminuicao.
Beleza que nao é ora bela, ora horrível; bela a este aspecto, horrível sob a
aquele; bela para uns e nao para outros; bela aqui, nao ali. Beleza que nao
pode afigurar-se a itnaginacao com rosto ou maos ou quer que seja de
corporal. Beleza que nao é tal palavra ou ciencia; que nao reside em um
animal, ou na térra, ou no céu, ou em qualquer coisa semelhante; mas em si
mesma, e que permanece sempre idéntica a si própria. Beleza da qual
partidpam todas as outras, sem que seu aparecimento ou desaparecimento
lhe tragam diminuicao ou acréscitno, ou lhe facam sofrer a mais
insignificante modificacao (Platao, séc IV/1996, p. 61).
Ou seja, todas as belezas mundanas e corporais sao reflexos da beleza eterna e
incorporal. Assim como Agostinho diz que as coisas verdadeiras só o sao em virtude da
Verdade, do mesmo modo as belezas no mundo só o sao em virtude da Beleza. Ora, tanto em
Platao, quanto em Agostinho, o Bem, a Beleza e Verdade, o Ser Verdadeiro coinciden!.
Sabemos que Agostinho foi leitor de Plotino, e com este aprendeu a doutrina da substancia
incorporal. De fato, ser verdadeiro, para Agostinho, significa também ser eterno e
imperecível. A Verdade, para que seja verdade, deve ser eterna. Nao é possível que 2+2=4
seja hoje verdadeiro, amanha seja falso. Os seres corporais, sempre transitorios, existem
porque subsistem na verdade. A Verdade, por ser eterna, sustenta tudo o que há de
transitorio e corporal. Nota-se ai, em Agostinho, urna segunda semelhanga com Platao. O
amor pelas belezas corpóreas é apenas o primeiro passo de um amor mais profundo, que é o
amor a verdadeira beleza. A mesma estrutura argumentativa está em Agostinho: queremos
13
tamen etiam sic, dum miser est, veris mavult gaudere quam falsis. beatus ergo erit, si milla interpellante
molestia, de ipsa, per quam vera sunt omnia, sola veritate gaudebit (Conf., X, 25, 36; Agostinho, 397/2004, p. 488).
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amar o que é verdadeiro, nao queremos amar a falsidade; e amando as coisas verdadeiras,
estamos caminhando em diregáo a Verdade.
Urna vez que se aceite esse panorama conceitual, novos problemas emergem como que
naturalmente. Certo, Deus é a verdade e é incorporal, mas como ele está presente no espirito?
Ele próprio ou sua imagem? Já sabemos que é o próprio Deus que está no espirito. E isso nao
impede que Deus também esteja em imagem, pois o próprio espirito é imagem de Deus.
Deixando de lado as investigagoes de como o espirito é imagem de Deus, tema que é
abordado com riqueza de detalhes por Agostinho na Trindade, podemos aprofundar,
entretanto, fundamentados ñas Confissoes, o modo como Deus está presente no espirito. Em
primeiro lugar, devemos observar, como dissemos anteriormente, que o próprio Deus nao
está presente em imagem. De fato, se considerássemos que o homem tenha visto Deus antes
de nascer e nao mais o vé, teríamos como consequéncia que o homem lembra-se de um
objeto ausente. Mas dizer que Deus está ausente é negar sua onipresenga. Este nao é o caso,
logo, Deus deve sempre estar presente, "ele mesmo".
Portanto, Deus está sempre "ele mesmo" presente. Mas e quando o homem nao pensa
em Deus? Aínda assim Deus está presente? Sim, responde Agostinho, Deus está presente na
memoria, nao como realidade passada, mas como realidade presente.
Com isso, chegamos a tese que vínhamos, juntos com Agostinho, defendendo. A
memoria nao contém apenas realidades passadas, ou seja, imagens do que já foi. A memoria
também contém realidades que nao estáo em imagens, mas presentes elas mesmas (res ipsas).
A fim de examínarmos melhor essa concepgáo, examinemos o que Agostinho nos diz
acerca da memoria que temos da memoria.
A memoria da memoria
O termo "memoria" possui um significado. Se assim é, podemos nos questionar: ao
enunciarmos tal termo, o que surge diante do olhar da mente? A própria memoria ou a sua
imagem?
Como vínhamos observando, tudo aquilo que pode ser pensado deve estar, de alguma
maneira, na memoria ou deve ter nela suas partes constituíntes. De fato, o doente só é capaz
de pensar na saúde porque tem a imagem da saúde na memoria. Se nomeamos o Sol, o que
temos presente na mente é a imagem do Sol e nao o próprio Sol. Ao nomearmos o número,
temos presente na mente nao a imagem do número, mas o próprio número. Mas retornando
a questáo inicial: quando nomeamos a memoria e entendemos o que isso quer dizer, o que
temos presente na mente? A própria memoria ou a imagem da memoria?
Nomeio os números de que nos servimos para fazer cálculos; e logo estao
presentes na minha memoria nao as suas imagens, mas eles mesmos.
Nomeio a imagem do sol e esta está presente na minha memoria; nao é a
imagem da sua imagem que eu recordó, mas a própria imagem. É ela que se
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me torna presente, quando a relembro. Nomeio a memoria e reconheco o
que nomeio. E onde a reconheco senao na própria memoria? Acaso também
ela está presente a si mesma por meio da sua imagem e nao por si mesma?
{Conf., X, 15, 23; Agostinho, Agostinho, 397/2004, p. 471)M.
Lembramos que tudo aquilo que o espirito pode se lembrar, deve estar no espirito.
Tudo o que está no espirito pode ter entrado pelas portas dos sentidos ou sao realidades que
o espirito encontrou em si mesmo. A dificuldade de Agostinho é que tanto os afetos quanto
os números e a própria memoria possuem em comum o fato de serem realidades que o
espirito encontra dentro de si. Todavia, os números estáo eles mesmos no espirito. Já os
afetos podem estar de dois modos no espirito: vivos, perturbando a alma, ou enquanto
imagem, como ocorre quando urna paixáo extinta é recordada. A memoria guarda apenas a
imagem dos afetos e nao os próprios afetos. Mas dentro dessa ordem de classificagáo, como
inserir a memoria? A resposta de Agostinho é clara: quando nomeamos a memoria, o que nos
vem a mente nao é a imagem da memoria, mas a própria memoria. Ou seja, a memoria
lembra-se de si mesma. A memoria está na memoria. Se me lembro do significado do termo
memoria é porque tenho memoria da própria memoria e nao de sua imagem.
Mas, refutamos. Quando nao pensamos na memoria, isso significa que a memoria está
ausente? Ora, ninguém diria isso. A memoria está sempre presente. Portanto, embora a
memoria guarde eventos passados, a própria memoria é sempre presente. Isso só reforga o
que vínhamos argumentando. A memoria nao se resume a um lugar onde foram
armazenados os fatos passados, mas também um lugar onde se encontram realidades
presentes, realidades "elas mesmas". Alias, é justamente essa a grande revolugáo agostiniana
com relagáo a Plotino (204/5-270), o qual considerava o espirito urna fagulha divina.
Segundo Agostinho, essa concepgáo resultava em heresia, pois identificava o homem e Deus.
Por outro lado, Agostinho queria retomar a nogáo de que Deus nao é nada de exterior, de
"coisal". Esse é o problema, Deus está dentro, mas Deus nao é o espirito humano. O modelo
espacial de Agostinho serve perfeitamente para resolver a questáo. Deus está dentro e ao
mesmo tempo ácima, como um sol interior e espiritual que ilumina o espirito, mas nao é o
espirito. Cary apresenta bem o problema:
Embora aquém da prova cabal, espero ter oferecido urna forte evidencia em
favor da afirmacao de que ninguém antes de Agostinho concebeu a si
mesmo como um espaco interior privado, ao demonstrar que este conceito
surgiu como a solucao para um problema muito específico que ninguém
antes de Agostinho provavelmente tenha tido. O problema de Agostinho é
como encontrar Deus dentro da alma, sem afirmar a divindade da alma. Ele
quer (como Plotino) encontrar o divino dentro de si e, ao mesmo tempo
14
nomino números, quibus numeramus; en assunt in memoria mea non imagines eorum, sed ipsi. nomino
imaginem solis, et haec adest in memoria mea; ñeque enim imaginem imaginis eius, sed ipsam recoló: ipsa mihi
reminiscenti praesto est. nomino memoriam et agnosco quod nomino, et ubi agnosco nisi in ipsa memoria? num
et ipsa per imaginem suam adest ac non per se ipsam? (Conf., X, 15, 23; Agostinho, 397/2004, p. 470).
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afirmar (como um cristao ortodoxo) que o divino é totalmente diferente de si
próprio. Ele resolve este problema localizando Deus, nao só dentro da alma,
mas ácima déla (como seu criador), modificando o 'voltar-se para dentro' de
Plotino em um movimento em que, primeiro, volta-se para dentro, em
seguida, olha-se para cima (Cary, 2000, p. 140, traducao nossa)15.
Como pudemos observar, a memoria nao é, de forma alguma, um apéndice ao espirito,
ou uma faculdade ao lado das demais, mas é, isto sim, compreendida como constituinte da
esséncia do espirito. A memoria continuará, após as Confissóes, no foco das investigagoes
agostinianas durante anos. Na Trindade, a memoria será concebida como constituinte da
mente (mens), ao lado da vontade e da inteligencia. E de fato, Agostinho responde, na
Trindade, a uma serie dificuldades que emergem a partir do modo como ele concebe a
memoria no livro X das Confissóes. Uma das dificuldades de Agostinho ñas Confissóes ocorre
quando ele, por exemplo, procura raciocinar sobre o que é o esquecimento, e como o
esquecimento está na memoria.
A memoria do esquecimento e o problema da ausencia.
Se nos aplicarmos a mesma ordem de raciocinios anteriormente feita no exame de
como a memoria está na memoria, para o caso do esquecimento, chegamos a algumas
estranhas conclusoes. Ao nomearmos o "esquecimento", sabemos do que se trata. Isso é o
fato. Mas de que modo aprendemos o que é o esquecimento? Ora, se conhecemos o
esquecimento é porque ele já esteve presente ou está presente.
De que forma poderei dizer que a imagem do esquecimento, e nao o próprio
esquecimento, é conservada na minha memoria, quando me lembro dele? E
de que forma direi isto, uma vez que, quando se imprime na memoria a
imagem de cada coisa, é necessário que antes esteja presente a mesma coisa,
a partir da qual se possa gravar aquela imagem? (Conf., X, 16, 24; Agostinho,
397/2004, p. 473)i6.
Partamos da hipótese de que, ao nomearmos o esquecimento, o que nos vem ao espirito
seja a "imagem do esquecimento" e nao o próprio esquecimento. Nesse caso, a memoria do
esquecimento seria comparável a memoria do medo. O fato de vivenciarmos o medo deixa
15
Though it falls short of proof. I hope I have offered strong evidence in favor of the claim that no one before
Augustine conceived of the self as a private inner space, by demonstrating that this concept aróse as the solution
to a quite specific problem that no one before Augustine is likely to have had. Augustine's problem is how to
lócate God within the soul, without affirming the divinity of the soul. He wants (like Plotinus) to find the divine
within the self, while affirming (as an orthodox Christian) that the divine is wholly other than the self. He solves
this problem by locating God not only within the soul but above it (as its Creator) thus modifying Plotinus' turn
"into the inside" into a movement in then up —first entering within the soul and then looking above it (Cary, 2000,
p. 140).
16
quo pacto dicam imaginem oblivionis teneri memoria mea, non ipsam oblivionem, cum eam memini? quo pacto
et hoc dicam, quandoquidem cum imprimitur rei cuiusque imago in memoria, prius necesse est, ut adsit res ipsa,
unde illa imago possit imprimi? (Conf., XVI, 24; Agostinho, 397/2004, p. 472).
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no espirito uma marca, a imagem do medo, a qual poderemos evocá-la a qualquer momento.
Mas se transportamos esse caso para o esquecimento, um obstáculo logo surge. Como é
possível que o esquecimento deixe sua marca na memoria? Afinal, se o esquecimento é a
ausencia da memoria, é inconcebível que ele deixe uma marca na memoria, pois sua presenga
implica, por definigáo, a ausencia da memoria. Logo, ao que parece, nao há como o
esquecimento deixar uma marca na memoria. Mas se o esquecimento nao pode deixar sua
marca na memoria, nao poderíamos sequer entender o que o termo nos diz.
Ao tratar do esquecimento, uma das dificuldades enfrentadas por Agostinho resulta da
maneira razoavelmente indeterminada como ele usa ñas Confissoes o termo memoria
(memoria). Nesta obra, ele ainda nao distinguiu com precisáo suficiente os sentidos do termo
memoria, evitando ambiguidades. Designa com a mesma expressáo ora faculdade retentiva,
ora a faculdade de se lembrar, ora o "lugar" onde estáo armazenados os conteúdos da
memoria. As solugóes dos problemas viráo quando ele distinguir com mais precisáo as
diferentes concepgóes que o próprio termo designa. Entretanto, os problemas que a
concepgáo tópica da memoria traz á tona já mostra sua fecundidade, como instrumento
intelectual. Interessante notar, além disso, que Agostinho, ao iluminar a fundo os problemas
relativos á memoria entendida como espago, chega, por assim dizer, ao limite da metáfora.
Pois se tudo que lembramos está em determinado compartimento, o esquecimento também é
"algo" que está em algum compartimento. Assim como a memoria é "algo" que também está
em algum compartimento. Nao é difícil perceber que tal modo de se conceber o
esquecimento e a memoria é insatisfatório e pede uma revisáo do que é a memoria e um
exame crítico dos limites da metáfora. De todo modo, isso só revela o poder teórico da
metáfora, pois uma boa teoría deve, além de explicar os fenómenos, abrir os olhos para
outros fenómenos e também propor novos problemas.
Conclusao
Esperamos ter mostrado como a aplicagáo de um modelo espacial para a compreensáo
da memoria inspirou uma rica descrigáo desta potencia, servindo como uma especie de fio
condutor na exploragáo de Agostinho da faculdade. Essa exploragáo, como procuramos
mostrar, vai até os limites da própria metáfora.
Um primeiro ponto que foi enfatizado é que o modelo da memoria armazem sugere a
investigagáo das "portas de entrada" desse armazém, dos itens presentes no armazém e dos
compartimentos desse armazém. Assim, um dos modelos mais simples para se pensar a
memoria é considerar a mente como uma caixa na qual existem apenas imagens do mundo,
com essas imagens dispostas de diferentes formas e com muitas combinagóes. Esse modelo,
que servirá de inspiragáo ao empirismo na modernidade, ao ver de Agostinho, é insuficiente.
Agostinho percebe a insuficiencia comparando o que há na "caixa" com as "portas dos
sentidos". É verdade que existem tais géneros de conteúdos, como "imagens sensíveis", na
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memoria, mas estes nao sao os únicos tipos de conteúdos existentes. Assim, Agostinho, sem
que mencione explicitamente, critica essa posigáo "empírica". Mais interessante do que o
simples fato de criticá-la, é observar o método de raciocinio adotado por Agostinho para ir
além dessa posigao.
Agostinho parte, em varias ocasioes, sem explicitar o método, da linguagem. Um termo
só pode significar algo se este algo estiver, de alguma forma, na memoria. Portanto,
Agostinho nao parte da "experiencia sensivel" como a única porta de entrada de conteúdos
na memoria. Se a experiencia sensivel for incapaz de explicar determinado significado é
porque há outra forma experiencia que nao a sensivel. Se definirmos experiencia como tudo
aquilo que traz algo ou a imagem de algo para dentro do espirito, fica claro que a experiencia
sensivel é apenas urna das portas de entrada da memoria.
Assim sendo, Agostinho nao negaria que todo termo que tem significado só o tem
porque foi dado na experiencia. Mas, como procuramos mostrar neste artigo, a experiencia
sensivel é, segundo Agostinho, limitada, de tal sorte que ela, sozinha, é incapaz de explicar o
fato de compreendermos o significado de termos como "número", "que", "quando", "o que",
"memoria", "esquecimento", "Deus", "retórica" Se compreendemos o que tais termos
significam é porque, de algum modo, experienciamos tais coisas.
De fato, Agostinho está convencido de que muito do que há na memoria provém de
experiencias sensíveis, mas, ao lado desta, é fundamental observar aquilo que poderíamos
chamar de experiencia inteligível, ou visáo da inteligencia. A experiencia inteligível é capaz
de fornecer dados táo auténticos quanto os dados da experiencia sensivel. Na verdade, os
dados da experiencia inteligível constituem urna carnada superior aos da experiencia
sensivel, pois também os animáis possuem esta última, mas apenas o homem a primeira.
A própria prática de investigar a memoria é dependente da experiencia inteligível.
Apreender a vida do espirito e examiná-la é tarefa que apenas seres dotados de inteligencia
sao capazes. Urna vez dotado de introspecgáo, o homem está em relagáo nao apenas com o
mundo, mas consigo mesmo, urna relagáo de intimidade, todavía sempre observada por
Deus. Daí que a memoria, compreendida como espago, terá nao apenas urna dimensáo de
"armazém do espirito", mas será também como um ampio palacio, dotado de varios
compartimentos, inclusive templos e secretos escaninhos. Mas como pode existir na
memoria um lugar secreto ao próprio espirito?
Isso coloca um novo problema intricado, pois Agostinho afirma que o espirito nao é
nem mais ampio, nem menos ampio do que a memoria. Agostinho chega mesmo a afirmar
que a memoria é espirito. Mas a relagáo exata entre ambos nao se encontra plenamente
desenvolvida ñas Confissoes. O desenvolvimento desta ideia será mais bem trabalhado em a
Trindade, obra em que Agostinho apresentará sua visáo madura da dinámica do espirito. É
significativo deste processo o fato de que Agostinho, no livro X das Confissoes, enfatiza a
memoria, usando como chave de compreensáo, o modelo espacial e que, no livro XI ele
venha a focar justamente o tempo tal qual é vivido no espirito. Ora, é justamente as
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consideragoes sobre o tempo que explicitará as dificuldades do modelo espacial para a
compreensao da memoria.
Esperamos ter fornecido suficientes evidencias de que o "modelo espacial" serviu como
um instrumento racional e trouxe sugestoes metodológicas que propiciou a Agostinho
analisar fenómenos que, sem tal modelo, passariam despercebidos.
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Nota sobre os autores
Sávio Passafaro Peres é doutor em Psicologia pela Faculdade de Filosofía Ciencias e
Letras da Universidade de Sao Paulo, Campus de Ribeirao Preto, Brasil. Área de pesquisa:
historia da psicologia Email: [email protected]
Marina Massimi é Professora Titular e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e
Educagao na Faculdade de Filosofía Ciencias e Letras da Universidade de Sao Paulo, Campus
de Ribeirao Preto, Brasil. Especialista na área de Historia das Idéias Psicológicas na Cultura
LusoBrasileira. Contato: Departamento de Psicologia e Educagao. Avenida Bandeirantes,
3900, CEP 14040-901, Ribeirao Preto (SP) / Brasil. Email: [email protected]
Data de recebimento: 13/04/2011
Data de aceite: 03/05/2012
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A vivencia do outro em Edmund Husserl a partir das Meditagoes
Cartesianas
The lived experience of the other in Edmund Husserl through Cartesian Meditations
Claudia Coscarelli Salum
Miguel Mahfoud
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Resumo
Tomando a vivencia do outro como fenómeno a ser pesquisado neste trabalho, esta
pesquisa tem como objetivo explicitar a abertura para a vivencia do outro incluida na
experiencia da pessoa, através das indicacóes da fenomenología husserliana. Realizamos
urna pesquisa teórica de cunho fenomenológico, a partir da obra Meditacoes Cartesianas.
Reconhecendo a especificidade da visao husserliana, problematizamos questóes teóricas
fundamentáis a compreensao do tema do outro, refletindo a respeito das objecóes feitas a
vivencia do outro em Husserl. Concluímos que a exigencia do método fenomenológico
para o conhecimento da alteridade nos revela um caminho que aponta tanto para a
irredutibilidade entre o eu e o outro, quanto para a possibilidade de encontró com um
sentido existencial na vivencia do outro pela pessoa. Na vivencia desse sentido emerge a
percepcao do valor do outro para o eu, mobilizando o sujeito a assumir um
posicionamento livre e interessado na convivencia com o outro enquanto alteridade.
Palavras-chave: Alteridade; Fenomenología; Husserl, Edmund.
Abstract
Taking the lived experience of the other as a phenomenon to be studied in this work, this
research aims to clarify the openness to the lived experience of the other included in the
person's experience, using Edmund Husserl's phenomenology. We did a theoretical
research following phenomenological indications, through Cartesian Meditations.
Recognizing the specificity of the Husserlian view, we discussed theoretical issues
fundamental to understand the theme of the other, reflecting about the objections related
to the lived experience of the otherness in Husserl's phenomenology. We concluded that
the requirement of the phenomenological method to the knowledge of the other reveáis a
path that points to both the irreducibility between the self and the other and for the
possibility of finding an existential meaning in the person's experience of the otherness.
In the experience of this meaning appears the perception of the valué of the other for the
self, mobilizing the subject to take a free and interested position in the relationship with
the other as an alterity.
Keywords: Alterity; phenomenology; Husserl, Edmund.
Introdujo: A retomada de urna pergunta sobre a vivencia do outro
Interrogar a posigao do homem moderno diante do que é exige urna pergunta sobre o
sentido da técnica, na medida em que o relacionamento do homem com a realidade hoje é
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tecnológico (Oliveira, 1993).1 Compreende-se, com Oliveira (1993), que "há no pensamento
moderno um processo de liberagáo do eu, que cada vez mais toma consciéncia da sua
especificagáo" (p. 121). Assim, a subjetividade relaciona todas as coisas na perspectiva da
fungáo que elas possam ter para si. Ñas palavras do autor:
Para essa consciéncia, só é o que se deixa objetivar. O sentido de realidade
manifesta-se aqui como objetividade, a capaddade de ser posto diante do
homem, de ser usado pelo homem em sua auto-realizacao; só é o que é
dominável pelo homem em funcao de si mesmo. (...) O material, a realidade
chega a si mesma, adquire seu verdadeiro caráter de realidade, tornando-se
objeto e o homem, por sua vez, atinge sua verdadeira dimensao de homem
fazendo-se sujeito. Sujeito e objeto é a polaridade característica da
consciéncia tecnológica, e tudo é visto a partir dessa polaridade (Oliveira,
1993, p.122-123).
Oliveira (1993) observa aínda que essa visao objetivante inclui a objetivagao do homem
pelo próprio homem, fazendo com que o outro da subjetividade se torne "náo-subjetividade".
Contudo, considerando, a partir de um posicionamento crítico, que a racionalidade científica
nao corresponde a única perspectiva de conhecimento possível, Oliveira (1993) propoe a
seguínte reflexao: "o relacíonamento de objetivagao é o relacionamento adequado as subjetividades?"
(p. 126, itálicos nossos).
Para Oliveira, a subjetividade é subjetividade, e nao objeto, nao apenas pela
contraposigáo com o mundo natural ou pela sua capacidade de significar a realidade, mas
sim quando esta é interpelada por outra liberdade, ou seja, outra subjetividade. É no
reconhecimento da reciprocidade das subjetividades, possível na relagáo intersubjetiva, que a
subjetividade pode adquirir autoconsciéncia.
Também Japiassu (1978), ao efetuar a crítica a respeito da falta de sentido vivida pelos
homens em geral, destaca a importancia do reconhecimento da reciprocidade das
subjetividades. Ao argumentar sobre a necessidade de restauragáo de um espago de sentido
para o sujeito falante, "um espago que seja realmente um lugar onde o homem possa falar e
nao um lugar, entre outros, onde 'isto' fale" (Japiassu, 1978, p. 233), o autor afirma que se
deve dar atengao a possibilidade de urna palavra do sujeito que remeta a outros sujeitos. Para
Japiassu (1978), é necessário "descobrir aquilo que no homem, é sujeito, o que faz dele um
sujeito, o que pode entrar numa relagao, nao somente com 'isto', com um 'Id', mas com um 'tu'"
(p.253, itálicos nossos).
Por sua vez, Husserl, ao fundamentar a sua crítica das ciencias, a partir do problema do
objetivismo como fonte do fracasso das ciencias na tarefa da compreensáo do homem, irá
propor a recondugáo da ciencia ao mundo-da-vida (Lebenswelt) (Zules, 1996; Goto, 2008;
1
Este artigo é baseado na dissertagao de mestrado: Salum, C.C. (2011). A vivencia do outro em Edmund Husserl.
Dissertagao de Mestrado, Programa de Pós-graduagao em Psicologia, Faculdade de Filosofía e Ciencias Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Realizada sob orientagao do Prof. Dr. Miguel Mahfoud.
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Husserl, 1935/1996). Husserl define mundo-da-vida como o mundo sempre dado, précientífico, "histórico-cultural concreto, sedimentado intersubjetivamente em usos e costumes,
saberes e valores", compreendido nao tanto a partir do ser, mas sim do seu sentido, sendo
que "o erro do objetivismo foi esquecé-lo ou desvalorizá-lo como subjetivo" (Zules, 1996, p.
43). O mundo-da-vida se apresenta na correlagao existente entre mundo e consciéncia de
mundo e, assim, podemos fazer experiencia do mundo (Goto, 2008). Segundo Zules (1996):
Quando se fala de experiencia é ingenuo querer reduzi-la a empiria sensível
do mundo físico. A experiencia, sem dúvida, é um ato de consciéncia.
Vinculando a experiencia ao mundo-da-vida, ou seja, ao mundo précientífico, pode falar-se de experiencia estética ou religiosa, enfim, de
experiencia de subjetividade. De modo algum a experiencia pode ser
reduzida ao mundo das ciencias físico-objetivas. Husserl busca, pois, a
experiencia além da experiencia da natureza das ciencias objetivas enquanto
vinculada a categoría do Lebenswelt (p. 45).
O caminho apontado por Husserl, a partir da problematizagao da crise das ciencias e
da humanidade, afirma a possibilidade de um sentido na vivencia do outro além da
racionalidade científica, em um mundo-da-vida sedimentado intersubjetivamente. A crítica de
Husserl ao objetivismo se apóia na nogao de intersubjetividade e chega a apontar a perda da
dimensao ética na experiencia do sujeito, "pois o matemático-objetivista renuncia
explícitamente a tomar posigao sobre o mundo do dever-ser" (Zules, 1996, p. 46). Dessa
forma, o retorno de Husserl a subjetividade transcendental nos apresentaria a possibilidade
de estabelecer um modo particular de existencia do próprio sujeito humano (Zules, 1996; Husserl,
1935/1996; Husserl, 1989/2002).
Compreendendo o modo como se apresenta a vivencia do outro na
contemporaneidade, encontramos um relacionamento entre o homem e a realidade pautado
pela relagao técnica entre sujeito e objeto. É possível identificar, ainda, reflexoes
fundamentáis que propoem novas formas para essa vivencia, a partir da dimensao da
intersubjetividade, entre as quais destacamos a crítica husserliana. Na medida em que
encontramos a vivencia do outro na contemporaneidade sob a perspectiva da objetivagao,
reconhecemos a importancia de aprofundarmos na compreensao dessa vivencia para
encontrarmos a possibilidade de outros sentidos na relagao do sujeito com a alteridade. Este
trabalho, portanto, busca explicitar a intencionalidade incluida na vivencia do outro, para
que possamos compreender a abertura para esta vivencia na experiencia da pessoa2, através
da fenomenología de Edmund Husserl.
Ao falarmos de "experiencia da pessoa", nos referimos ao projeto husserliano que inaugura a possibilidade de
realizarmos urna psicologia fenomenológica. "Husserl, ao mesmo tempo que foi elaborando a fenomenología
transcendental, no caminho para a subjetividade transcendental, foi também propondo urna psicologia
fenomenológica com a intengao de expor a expressividade psíquica de tal subjetividade" [itálicos do autor] (Goto,
2008, p. 211). Se tomarmos o sujeito nesta diregao, descubrimos, implicada na experiencia do conhecimento, a
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Pesquisa teórica de cunho fenomenológico
Realizamos urna pesquisa teórica de cunho fenomenológico, utilizando as indicagóes
de van der Leeuw (Leite & Mahfoud, 2010; Araújo & Mahfoud, 2002; Mahfoud, 2003; van der
Leeuw, 1964). Analisamos a obra Meditagóes Cartesianas (1931/2001) de Edmund Husserl
escolhida intencionalmente a partir de dois criterios: fazer parte das obras do autor que
compóem o campo da filosofía fenomenológica transcendental e ser indicada por
especialistas da área, explicitamente ou em referencias bibliográficas, como urna obra
relevante ao estudo da vivencia do outro (Luna, 2006). Husserl publica o livro Meditagóes
Cartesianas, com o intuito de apresentar urna versáo definitiva de urna introdugáo a
fenomenología transcendental (Souza, 2001). Encontramos nessa obra "urna exposigáo das
mais abrangentes, embora bastante sintética, de sua filosofía transcendental" (Villela-Petit,
2001, p. 134). No conjunto da obra husserliana, as Meditagóes visam o esclarecimento da
radicalizagáo do propósito da fenomenologia enquanto filosofía transcendental (Souza,
2001).
Apresentaremos a seguir cada etapa do procedimento adotado, procurando explicitar o
que o caracteriza como essencialmente fenomenológico. Para Ales Bello (2004), fazer
pesquisa em fenomenologia "trata-se de um movimento intelectual e ético do ser humano;
trata-se da disponibilidade para procurar, e da disponibilidade para aceitar aquilo que se
apresenta, e este é um caminho arduo" (p. 80).
Segundo o método fenomenológico, quando nos dedicamos ao conhecimento de um
objeto, compreendemos que o que se conhece está em relagáo tanto com aquilo que é
conhecido (objeto) quanto com aquele que conhece (sujeito) (van der Leeuw, 1964).
Entretanto, essa premissa, básica na pesquisa qualitativa, adquire na fenomenologia um alto
grau de complexidade. Segundo Amatuzzi (2001a): "Se ñas ciencias naturais se pretende
evitar ao máximo o envolvimento do pesquisador, ñas humanas o que se tem a fazer é tirar
proveito desse envolvimento" (p. 48).
Partimos, entáo, da relagáo homem-mundo, na qual acessamos urna vivencia carregada
de significados, tal como experienciada por nos (Amatuzzi, 2001a). Contudo, a pesquisa
fenomenológica exige que nos tenhamos atengáo ao modo como nos operamos dentro desse
relacionamento com o objeto estudado. Dessa forma, precisamos considerar que para a
vivencia da pessoa na atitude natural. Desta forma, Goto (2008, p. 184) aponta que encontramos urna motivagao
dupla na fenomenologia transcendental, que "está presente na vinculagao de todas as experiencias concretas do
ser humano, e nao apenas ñas experiencias do conhecimento, mas também ñas experiencias de vida e
humanidade, tais como se apresentam na formagao da historia e da cultura". Este modo de conceber a
"experiencia da pessoa", realizado primeiramente por Husserl, foi assumido por Stein (2003), que nos apresenta a
estrutura da pessoa humana - ñas suas dimensoes corpórea, psíquica e espiritual - e em seu aspecto unitario e
relacional (Mahfoud, 2008; Coelho Júnior & Mahfoud, 2006).
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pesquisa fenomenológica é indispensável que sigamos um caminho para o conhecimento do
nosso objeto. Adentraremos agora as indicagóes de van der Leeuw (Leite & Mahfoud, 2010;
Araújo & Mahfoud, 2002; Mahfoud, 2003; van der Leeuw, 1964) que nos descreve passos da
pesquisa fenomenológica, seguidos por nos nessa pesquisa teórica. Veremos que o fato de
termos assumido o texto husserliano como forma de identificar o surgimento da vivencia do
outro apresenta uma serie de implicagóes importantes para a presente pesquisa.
Iniciamos nosso percurso quando nos interessamos pela vivencia do outro. Em
seguida, escolhemos o texto de Husserl que, através do método fenomenológico, realiza uma
análise das vivencias. Assumindo o texto husserliano como forma de acessar a vivencia do
outro na experiencia humana, normamos o nosso objeto, entendendo o texto enquanto uma
expressao do vivido. Para entendermos melhor a relagao entre nomeagao e o vivido,
recorreremos as conceituagóes de Amatuzzi (2001b):
Dizer que o vivido é sempre acompanhado de alguma significacao significa
dizer que nao temos acesso direto a ele. Qualquer acesso já é uma forma de
significá-lo, tanto por parte do próprio sujeito que o vive, como por parte do
pesquisador (ou do sujeito que reflete sobre ele). Por isso devemos dizer que
o vivido "se diz" dentro de nos, ele se expressa, e assim assume um
significado. E é nesse ato de se dizer que ele se constitui como vivido pleno,
pois é a partir de sua inscricao mínima na consciéncia que ele se torna vivido
propriamente, e nao apenas um evento físico (p. 55).
A tarefa de nomeagao nos indica que a "vivencia originaria" é inseparável da sua
interpretagao enquanto vivencia (van der Leeuw, 1964, p. 643). Contudo, ao realizarmos a
etapa de insergao na própria vida, podemos acessar a vivencia na forma como ela se apresenta
a nossa consciéncia. Esse passo corresponde a entrega a vivencia do que se pretende
interpretar ou, como afirma van der Leeuw (1964), a "continua e enérgica ativagao de uma
convivencia" (p. 646). Durante a nossa pesquisa, estivemos diante do texto de Husserl
abertos as descrigóes do autor a respeito da vivencia do outro. Nessa convivencia com texto,
examinamos também a vivencia do outro em nos, na medida em que nos disponibilizamos a
refazer um percurso juntamente com o filósofo.
Porém, para que essa insergao se configure como um passo característico da pesquisa
fenomenológica é importante que seja, ao mesmo tempo, insergao entre parénteses. Esse passo
corresponde a uma conduta frente a realidade, em que se suspendem as concepgoes previas
do pesquisador "que visa evitar a sobreposigao de construgóes categoriais ao significado do
fenómeno estudado, de modo a favorecer que emerja o que lhe é mais próprio, sua estrutura"
(Gaspar, 2010, p. 14). Assim, nossa disponibilidade para refazer com o autor um percurso
que nos revela a vivencia do outro se traduz também no esforgo de estarmos constantemente
atentos aos nossos julgamentos sobre o que o texto nos diz, suspendendo nossa tendencia de
afirmar antecipadamente conclusóes e opinióes sobre seu conteúdo. Dedicamo-nos, portante,
a conhecer o texto em sua estrutura própria, em seus próprios termos. Nesta pesquisa, a
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insergao entre parénteses se configurou como um passo fundamental, urna vez que, ao longo
de suas análises, Husserl resignifica sua própria teoria tecendo suas conclusoes de forma
progressiva no texto. Ao final de sua obra é possível ver um amadurecimento das questoes
tratadas ao longo do texto, que nao seriam compreendidas adequadamente caso nao
tivéssemos acompanhado todo a sua trajetória.
A partir daí, passamos ao momento da elucidagao, procurando identificar no texto
conexoes de sentido que compoem os significados próprios da vivencia que estamos
investigando, passo esse que nos permite chegar a compreensao da vivencia. A passagem a
compreensao, no caso da pesquisa teórica, nao pode ser estabelecida separadamente do
momento de reconstrugao. Isso acontece urna vez que a pergunta que norteia a realizagao
dessa pesquisa corresponde a urna interrogagao própria dos autores desse trabalho, nao
sendo respondida diretamente pelo autor do texto.
Colhemos no texto de Husserl momentos em que o autor se dedica a questoes que
dizem respeito a vivencia do outro e, examinando os significados presentes em suas
indicagóes, formamos urna compreensao da abertura para a vivencia do outro incluida na
experiencia da pessoa. Sendo assim, o momento da compreensao, por meio da reconstrugao,
inclui tanto a tarefa do pesquisador quanto a expressao do texto. Contudo, encontramos urna
importante consideragao de van der Leeuw (1964) sobre a necessidade de um esforgo de
retificagao continua, na medida em que a interpretagao precisa ser continuamente confrontada
com o próprio material, nao para suprimir a tarefa de interpretagao, mas para impedir que a
compreensao se converta em urna visao completamente divergente daquilo que é
apresentado pelo objeto. Assim, pelo nosso testemunho, reconstruímos a abertura para a
vivencia do outro, a partir do encontró com essa vivencia nos textos de Husserl.
Sobre os resultados encontrados, precisamos ressaltar mais urna especificidade da
pesquisa teórica de cunho fenomenológico. Nossas análises nao visam estabelecer urna
conexao de sentidos típica ideal, urna vez que o texto de Husserl já se dedica ao exame de
aspectos essenciais da experiencia humana. Portanto, diferentemente da pesquisa empírica
em fenomenología, que busca colher os elementos estruturais presentes na vivencia singular
dos sujeitos, nossa pesquisa realiza o caminho inverso, partindo de aspectos fundamentáis da
vivencia e revelando o modo como eles se apresentam na experiencia.
Na discussao dos resultados, consideramos importante ter acesso a trabalhos que
dialogam diretamente com os textos husserlianos. Dessa forma, percebemos a pertinencia de
definir alguns criterios para a selegao dos textos estudados. Assim, em primeiro lugar,
escolhemos textos de autores que possuem formagao académica dedicada ao estudo de
Edmund Husserl. Em seguida, decidimos utilizar textos que se voltassem a problematizagao
de questoes teóricas e conceituais. Finalmente, distinguimos os textos que debatiam
exclusivamente as idéias do filósofo daqueles que procuravam realizar um estudo
comparativo do pensamento do autor. Ao final da nossa pesquisa, evidenciamos a
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Salum, C. C. & Mahfoud, M. (2012). A vivencia do outro em Edmund Husserl a partir das Meditacoes Cartesianas.
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importancia de nos mantermos atentos a urna reflexao sistemática capaz de nos levar a
experiencia vivida (Mahfoud, 2006).
Quao diferente é na fenomenología! Nao apenas porque ela precisa de um
método antes mesmo de todo método de determinacao das coisas, isto é, de
um método para trazer a apreensao do olhar o campo das coisas da
consciéncia transcendental pura; nao apenas porque nela é preciso desviar
laboriosamente o olhar dos dados naturais de que nao se cessa de ter
consciéncia, e que, portanto, estao por assim dizer entrelacados aqueles
novos dados que se intenta alcancar, e assim é sempre iminente o risco de
confundir uns com os outros... (Husserl, 2006, p. 144).
A abertura para a vivencia do outro apresentada na obra Meditares Cartesianas
Apresentaremos agora os resultados alcangados quando buscamos explicitar a
intencionalidade incluida na experiencia do outro, para que possamos compreender abertura
para esta experiencia na vivencia da pessoa, a partir da leitura das Meditagóes Cartesianas
(Husserl, 1931/2001). No texto de Husserl, encontramos a indicagáo de duas vias da análise
fenomenológica que explicitam os significados que emergem entre o eu e o mundo. Nesta
obra, o autor realiza um percurso de progressao sistemática, na tarefa de descobrir o sentido
transcendental do mundo-da-vida, através de urna explicitagáo fenomenológica do ego
transcendental. Contudo, Husserl aponta aínda a possibilidade de urna análise regressiva do
mundo da cultura, ao discutir os problemas ligados a intersubjetividade. Esse caminho se
inicia na atitude natural e corresponde a tarefa de urna "'arqueología fenomenológica" 3 (Ales
Bello, 1998, 2004; Barreira & Massimi, 2005).
Adotamos a arqueología fenomenológica, para a reconstrugáo dos resultados
alcangados na obra Meditagóes Cartesianas. Emnossas consideragóes, percebemos que essa vía
nos revela com maior nitidez pontos da análise fenomenológica já presentes na análise
progressiva do ego transcendental, mas que ficam obscurecidos pela mediagáo intelectual
dos sentidos, característica da dimensao noética da vivencia. Com Barreira e Massimi (2005),
entendemos que "a perspectiva husserliana considera a razáo e a sensagáo como motivos do
conhecimento e empenha-se contra as propostas teoréticas, ou racionalistas, da leitura da
realidade" (p. 4). Dessa forma, partindo da atitude natural, indagamos a respeito da abertura
para a vivencia do outro, percorrendo reflexivamente o caminho da pessoa ao fazer
3
A expressao "arqueologia fenomenológica" "se refere a urna operagao de escavagao nos elementos constitutivos
daquilo que é construido através das operagoes sensoriais perceptivas que se nos oferecem já prontas e formam o
mundo da experiencia. Trata-se, portanto, de urna indagagáo regressiva envolvendo cada urna dessas operagoes
voltadas a determinar o sentido de qualquer coisa até reconduzi-las as fontes últimas" (Ales Bello, 1998, p. 18). A
tarefa de realizagao de urna arqueologia deriva do projeto de Edmund Husserl, "embora nao fosse objeto de seus
trabalhos por nao corresponder aos interesses mais urgentes do filósofo" (Barreira & Massimi, 2005, p. 1).
Contudo, "sob sua inspiragao, tem sido desenvolvido por Ales Bello" como forma de apreender, "com
autenticidade, as experiencias vivenciais de outras culturas" (Barreira & Massimi, 2005, p.10).
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experiencia do mundo. Indicamos pontos fundamentáis dessa análise através de quatro
perguntas: Como os homens se encontram no mundo? O que é esse mundo humano para nos? Quais
vivencias da consciéncia nos permitem conhecer o sentido do mundo? Como é possível que esse mundo
com o qual nos nos relacionamos tenha valor para nos ?
1. Como os homens se encontram no mundo?
Iniciemos na atitude natural. Neste plano da experiencia, consideramos aquilo que
Husserl denomina uma comunidade de homens, entendendo o termo homem como aquele
que é membro de uma sociedade, ou seja, aquele que tem sua existencia implicada em uma
"existencia recíproca de um para outro" (Husserl, 1931/2001, p. 164).4
O sentido dessa comunidade de homens pode ser definido, a priori, como uma
"natureza comum a todos". Contudo, essa comunidade transforma seu mundo "pela sua
agao individual e comum com outros, num mundo de cultura - por mais primitiva que seja revestido de valor para o homem" (p. 168).
É essencialmente como sujeitos de uma intercomunhao possível que encontramos os
homens na realidade:
É igualmente claro que os homens só podem ser apreendidos como
encontrando (na realidade ou em potencia) outros homens em torno de si. A
própria natureza infinita e ilimitada torna-se entao uma natureza que abarca
uma multiplicidade ilimitada de homens, distribuidos nao se sabe como no
espaco infinito, como sujeitos de uma intercomunhao possível (p. 165).
O eu, na atitude natural, só pode ser concebido na relagao com um nos, uma vez que
esse aspecto é fundante da sua existencia como um ser do mundo. Assim, o meu eu:
só pode ser um ego que possui experiencia do mundo se estiver em relacao
com outros egos, seus semelhantes, se for membro de uma sociedade de
mónadas que lhe é dada de uma maneira orientada. A justificacao
conseqüente do mundo da experiencia objetiva implica uma justificacao
conseqüente da existencia de outras mónadas. Inversamente, só poderia
imaginar uma pluralidade de mónadas como estando explícitamente ou
implícitamente em comunicacao, quer dizer, como sociedade que constituí
nela um mundo objetivo e que se espacializa, se temporaliza, se realiza ela
própria nesse mundo sob a forma de seres vivos e, em particular, de seres
humanos (p. 176).
4
Na sessao "A abertura para a vivencia do outro apresentada na obra Meditagoes Cartesianas" as numeragoes
das páginas indicadas ñas citagoes se referem sempre a obra Meditagoes Cartesianas (Husserl, 1931/2001).
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Dessa forma, assumindo a intercomunhao como um processo que define o mundo dos
homens enquanto urna comunidade, Husserl nos mostra o papel que o outro homem exerce no
processo de constituigáo do eu e do mundo:
O outro eu, o primeiro nao eu, torna possível a constituicáo de um dominio
novo e infinito do "estranho a mim", de um mundo do qual pertencem os
outros e eu próprio. Em última análise, trata-se de urna comunidade de
mónadas e, nomeadamente, de urna comunidade que constitui (pela sua
intencionalidade constituinte comum) um só e mesmo mundo (p. 137).
O contato com o "estranho a mim", proveniente da experiencia do outro, inaugura urna
segunda carnada por cima da natureza constituida de forma primordial. Sobre a constituigao
dessa experiencia, Husserl afirma: "Isso diz respeito antes de mais ao organismo corporal de
outrem que é, por assim dizer, o objeto primeiro em si, exatamente da mesma maneira como o outro
homem é na ordem da constituigao o homem primeiro em si" (p. 158, itálicos do autor).
Em sua descrigáo sobre o mundo dos homens, Husserl faz apenas urna breve mengao
aos problemas que compoem o campo da cultura, denominando-os como problemas de nivel
superior. Entretanto, ao invés de se ater na discussao desses problemas, Husserl analisa a
experiencia do outro pela via fenomenológica eidético-transcendental.
Seguindo o caminho das redugoes efetuadas na análise husserliana, somos retirados da
atitude natural e levados para outro plano da experiencia. Fazemos urna pergunta sobre o
outro que nao "trata da génese temporal deste género de experiencia, a partir de urna
experiencia de si mesmo que a teria precedido no tempo", mas que busca "urna explicagáo
exata da intencionalidade, efetivamente incluida na experiencia do outro, que nos faga ver a
motivagáo interna desta experiencia" (p. 154-155).
2. O que é esse mundo humano para nos?
Realizamos urna pergunta sobre a experiencia do outro que nao se refere ao campo da
atitude natural, mas que interroga a forma como se estrutura essa experiencia. Assim, a
partir de agora, "esta comunidade corresponde, bem entendido, no concreto transcendental,
há urna comunidade ilimitada de mónadas que designamos pelo termo de intersubjetividade
transcendental" (p. 165). Vejamos o que o autor denomina como intersubjetividade
transcendental:
"O ser, primeiro em si", que serve de fundamento a tudo aquilo que há de
objetivo no mundo é a intersubjetividade transcendental, a totalidade das
mónadas que se unem em formas diferentes de comunidade e de comunhao.
Mas, no interior de qualquer esfera monádica efetiva, e, a título de
possibilidade ideal, no interior da esfera monádica imaginável, tornam a
aparecer todos os problemas da realidade contingente da morte, do destino, o
problema da possibilidade de urna vida "auténticamente" humana e que
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possui um "sentido" na acepcao mais forte deste termo e, entre estes
problemas, os do "sentido" da historia e assim por diante, elevando-se sempre
mais. Podemos dizer que residem ai os problemas éticos e religiosos, mas
colocados num terreno em que deve ser colocada qualquer questao que
possa ter para nos um sentido possivel (p. 197-198, itálicos do autor).
Constatamos que urna comunidade de homens inaugura um mundo humano, ou,
ainda, que, na medida em que é fundada por homens, a realidade passa a ter um caráter de
urna vida de sentido, em que problemas a respeito da realizagao de urna vida auténticamente
humana nos interpelam. Assim, os problemas devem ter para nos homens ao menos um
sentido possivel.
Para que alcancemos a compreensao da relagao que se estabelece entre a minha
experiencia humana e o sentido do mundo que me cerca, somos levados a urna pergunta
mais fundamental: o que permite que o mundo tenha para nos um sentido possivel? Assim, a
tarefa da fenomenología se constitui em elucidar os fundamentos últimos da relagao eu mundo, tendo como base fundamental um movimento de "plena, inteira e universal tomada
de consciéncia de si próprio" (p. 197).
De acordó com as indicagoes do autor, é necessário buscar a explicagao exata da
intencionalidade que constitui a relagao entre o eu e o sentido do mundo. Encontraremos, a
partir desse passo, o mundo submetido ao ponto de vista da redugao eidética. A grande
conseqüéncia que devemos enfrentar, depois de realizada a primeira redugao, trata do
sentido da transcendencia do mundo. Para Husserl, o sentido da transcendencia do mundo
só pode ser apreendido na vida de consciéncia do sujeito.
O ser do mundo (das Sein der Welt) é, portanto, necessariamente
"transcendente" a consciéncia, mesmo na evidencia originaria,
permanecendo ai necessariamente transcendente. Mas isto nao altera em
nada o fato de qualquer transcendencia se constituir únicamente na vida da
consciéncia, como inseparavelmente ligada a esta vida, e de esta vida da
consciéncia - tomada nesse caso particular como consciéncia do mundo trazer em si mesma a unidade de sentido que constitui esse "mundo", assim
como a de "este mundo realmente existente". Apenas a explicitacao dos
horizontes da experiencia esclarece, no final de contas, o sentido da
"realidade do mundo" e da sua "transcendencia". Mostra-nos, em seguida,
que essa transcendencia e essa realidade sao inseparáveis da subjetividade
transcendental na qual se constitui qualquer especie de sentido e qualquer
especie de realidade (p. 83).
A partir das consideragoes sobre a transcendencia do mundo e a vida da consciéncia,
Husserl problematiza o sentido da objetividade, levantando as seguintes questoes: "Mas
como é que todo esse jogo, desenrolando-se na imanéncia da minha consciéncia, poderá
adquirir urna significagao objetiva? Como é que a evidencia (a clara et distinta perceptio)
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poderá pretender ser algo mais do que uma característica da minha consciéncia em mim?"
(p. 108).
A resposta de Husserl é categórica. Tais perguntas, quando formuladas na forma de
um paradoxo, representam um contra-senso acerca do verdadeiro sentido da redugao. Supor
que o ser e a consciéncia se referem um ao outro de uma maneira exterior é um absurdo, na
medida em que ser e consciéncia:
pertencem essencialmente um ao outro; e o que está essencialmente ligado é
concretamente uno, é uno no concreto único e absoluto da subjen'vidade
transcendental. Se esta é o universo do sentido possível, qualquer coisa que
lhe seja exterior é um nao-sentido. Mas até qualquer nao-sentido é apenas
um modo do sentido e o seu absurdo pode tornar-se evidente (p. 110).
E para clarificagao de tal unidade é preciso afirmar o valor da apercepgao do mundo na
própria formulagao do problema, pois "ao apreender-me a mim próprio como homem
natural, efetuo imediatamente a apercepgao do mundo do espago, capto-me a mim próprio
como me encontrando no espago no qual possuo já um mundo que me é exterior" (p. 109).
Assim, ao examinarmos o que é o mundo humano para nos, explicitamos como o ego
constituí em si "os 'outros', a 'objetividade' e, em geral, tudo aquilo que para o ego - seja no
eu ou no nao eu - possui um valor existencial" (p. 111).
Em vez de procurar, de uma maneira absurda, concluir da imanéncia
imaginaria uma transcendencia - que nao o é menos - de nao se sabe que
"coisas em si" essencialmente incognoscíveis, a fenomenología ocupa-se
exclusivamente em elucidar sistemáticamente a funcao do conhedmento,
único meio de o tornar inteligível na qualidade de operacao intencional (p.
111).
3. Quais vivencias da consciéncia nos permitem conhecer o sentido do mundo?
Continuando nosso trabalho de escavagao, procuramos compreender quais vivencias
do sujeito fazem dessa consciéncia uma consciéncia do mundo. Neste momento, devemos
destacar a nogao de intencionalidade: "A palavra intencionalidade significa apenas esta
particularidade intrínseca e geral que a consciéncia tem de ser consciéncia de qualquer coisa,
de trazer, na sua qualidade de cogito, o seu cogitatum em si próprio" (p. 48). Na relagao cogitocogitatum emerge uma qualidade perceptiva, processos passivos e ativos que determinam a
possibilidade de conhecer os objetos da forma como eles se apresentam ao sujeito e nao
através de representagóes que o antecipem.
O ponto de partida é necessariamente o objeto "simplesmente" dado; daí, a
reflexao ascende ao modo de consciéncia correspondente e aos horizontes de
modos potenciáis implicados nesse modo, em seguida aos outros modos de
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urna vida de consciéncia possível nos quais o objeto pode apresentar-se
como "o mesmo" (p. 68).
Interessa-nos nesse ponto observar alguns processos coñudos na relagao consciénciaobjeto. Husserl aponta para o fato de que a percepgao, que se realiza na relagao intencional
entre consciéncia e objeto, contém em si urna serie de determinagóes, indeterminagoes e
ultrapassamentos.
No que diz respeito as determinagóes, encontramos um processo denominado síntese
passiva, em que as qualidades do objeto se apresentam a consciéncia, trazendo, juntamente
com suas particularidades físicas, algumas peculiaridades a respeito do seu sentido próprio.
A síntese passiva nos indica características próprias do modo como o objeto se apresenta ao
eu:
É assim o objeto que as atividades do "espirito" - que já comecam com a
apercepcao ativa - encontram perante elas "já feito" e dado como tal.
Enquanto essas atividades desempenham as suas funcoes sintéticas, a síntese
passiva, fornecendo-lhes, "a materia" continua a decorrer. A coisa dada na
intuicao passiva continua a aparecer na unidade da intuicáo e, qualquer que
seja a importancia das modificacoes devidas a atividade que a explícita, que
capta as particularidades das partes e dos pormenores, a coisa continua a ser
dada durante e no exercído desta atividade. Os modos de apresentacáo
múltiplos, as unidades das "imagens perceptivas", tácteis e visuais fluem,
elementos na síntese manifestamente passiva dos quais "aparece" a unidade
da coisa e da sua forma. Mas esta síntese - justamente síntese de forma - tem
a sua "historia" que se anuncia em si própria. É gracas a urna génese
universal que posso, eu, o ego, e a partir do primeiro olhar, ter a experiencia
de urna "coisa".... Gracas a esta síntese passiva (que engloba assim a obra da
síntese ativa) o eu está sempre rodeado por objetos. O fato de que tudo
aquilo que afeta o meu eu - o eu do ego "plenamente desenvolvido" - ser
apercebido como objeto, como substrato dos predicados a conhecer, é já
devido a esta síntese passiva (p. 103-104).
Concomitante as apresentagóes do objeto no decorrer do acontecimento perceptivo, a
constituigao dos sentidos das coisas passa por outros processos. Estes se constituem como
momentos de indeterminagoes e ultrapassamentos que abrem novas possibilidades e
perspectivas na relagao da coisa com a consciéncia, determinando um horizonte intencional
aberto a experiencia do objeto. Vejamos como esses momentos fazem parte da nossa
percepgao:
Além disso a percepcáo possui horizontes que abarcam outras possibilidades
perceptivas, quer dizer, as possibilidades que poderíamos ter se, ativamente,
déssemos ao curso da percepcáo urna outra direcáo... (p. 62).
Todo cogito, enquanto consciéncia, é num sentido muito largo "significacáo"
da coisa que visa, mas esta "significacáo" ultrapassa a todo instante, aquilo
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que, no próprio instante, é dado como "explícitamente visado". Ultrapassa-o
quer dizer, é maior com um "excesso" que se estende para além (p. 65).
Este "deixar na indeterminacáo" das particularidades, - anteriormente as
determinacoes efetivas mais precisas do que, talvez, alguma vez possam
acontecer, - é um momento contido na própria consciénda perceptiva, é
precisamente aquilo que constituí o horizonte (p. 63).
A evidencia desse horizonte de indeterminagoes e ultrapassamentos como algo
essencial a própria percepgao, nos indica uma abertura do sujeito em relagao a realidade inclusive a percepgao de si mesmo - propriedade intrínseca a vida intencional.
É pelo progresso real da percepcao - oposto ao simples "esclaredmento"
pelas "representacoes" antecipantes - que se efetua a determinacáo mais
precisa, confirmando ou infirmando as "antecipacoes", mas sempre
implicando novos "horizontes" e abrindo perspectivas novas (p. 63).
4. Como é possível que esse mundo com o qual nos nos relacionamos tenha valor para
nos?
No que diz respeito a percepgao de si mesmo, ou seja, a possibilidade de tomar-se
como objeto de experiencia, Husserl inaugura um novo campo, o da experiencia
transcendental. Trata-se de uma experiencia do eu diferente de todas as experiencias que
analisamos até aqui. Neste momento, o eu do sujeito também passa por uma redugao - a
redugao transcendental - a partir da qual encontramos o ego transcendental que "tem como
tarefa nao o reproduzir uma segunda vez o estado primitivo, mas de o observar e de lhe
explicitar o conteúdo" (p. 49).
O que acontece aqui também pode ser descrito da seguinte forma: se
dizemos do eu que percebe o "mundo" e ai vive muito naturalmente, que
está interessado no mundo, entao teremos, na atitude fenomenologicamente
modificada, um desdobramento do eu; ácima do eu ingenuamente
interessado no mundo estabelecer-se-á um espectador desinteressado, o eu
fenomenológico. Este desdobramento do eu é, por sua vez, acessível, a uma
reflexao nova, reflexao que, enquanto transcendental, exigirá mais uma vez,
a atitude "desinteressada do espectador", preocupado apenas em ver e
descrever de maneira adequada (p. 50).
Devemos compreender o que define o terreno da experiencia transcendental. Em
primeiro lugar, é necessário nao esquecermos que, para chegarmos até aqui, passamos por
uma primeira redugao em que nos perguntamos sobre o sentido do mundo para nos. Assim,
falar de experiencia transcendental nao significa eliminar o sentido existencial da experiencia
do mundo.
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É igualmente importante sublinhar que a alma e o mundo objetivo, em geral,
nao perdem, na consideracao transcendental, o seu sentido existendal; pelo
contrario, este torna-se-nos inteligível porque a análise revela-nos a natureza
multiforme (p. 185-186).
Compreendendo que no ego transcendental nao pode haver nada do mundo tal como
é visto na atitude natural, evitamos cair em um realismo transcendental, posigao filosófica
criticada por Husserl (p. 38) como um "contra-senso filosófico", adotado por Descartes5.
Mas o que o eu transcendental anuncia sobre a nossa experiencia do mundo? Ao
alcangarmos o campo da experiencia transcendental, reencontramos o mundo, percebendo-o
em uma vida de consciéncia que nos é própria.
Pode-se dizer também que a epoqué é o método universal e radical pelo qual
me capto como eu puro, com a vida de consciéncia pura que me é própria,
vida na e pela qual o mundo objetivo na sua totalidade existe para mim,
exatamente tal como existe para mim. Tudo o que é "mundo", todo o ser
espacial e temporal existe para mim, quer dizer, vale para mim, pelo simples
fato de que dele tenho experiencia, percebo-o, rememoro-o, penso-o de
qualquer maneira, faco sobre ele juízos de existencia ou de valor, desejo-o e
por ai adiante (p. 33).
Neste momento, o eu percebe que na sua vida de consciéncia está presente a
possibilidade de uma serie de vivencias e, ainda, que essa vida inclui a possibilidade de
conhecer a si próprio como um objeto do mundo em um horizonte aberto e infinito.
A percepcao exterior (que, certamente, nao é apodítica) é na verdade uma
experiencia do próprio objeto - o próprio objeto está ai [perante mim] -, mas
nesta presenca (in diesem Selbstadastehen), o objeto possui, para o sujeito que
percebe, um conjunto aberto e infinito de possibilidades indeterminadas nao
sendo elas próprias atualmente percebidas. ... De um modo semelhante, a
certeza apodítica da experiencia transcendental alcanca o "eu sou"
transcendental como implicando a indeterminacao de um horizonte aberto (p. 36,
itálicos nossos).
Dessa maneira, compreendemos que o descobrimento do ego transcendental revela, em
contrapartida, uma abertura para o mundo na experiencia do eu. Assim, o encontró com eu
transcendental nao se constitui enquanto uma experiencia fechada no ego cogito, mas como a
possibilidade de uma nova tomada de consciéncia sobre si mesmo. Nesse instante, eu me
5
Segundo Moura (2001), "se é verdade que Husserl afirma que toda filosofía moderna é cartesiana e remete o
nascimento da própria fenomenologia ao estudo das Meditagoes, é certo também que em seus textos os elogios a
Descartes sao invariavelmente seguidos por restrigóes que parecem neutralizar muito a apologia inicial" (p. 208).
ínteres sa-nos, assim, localizar uma diferenga fundamental entre os dois filósofos, exposta ñas palavras de Barreira
e Massimi (2005): "Husserl retoma o cogito e o valida, assumindo-o recurrentemente como ponto de partida de
suas análises, que tém na consciéncia o residuo fenomenológico; porém, a diferenga de Descartes, toma a
consciéncia como possível quando em relagao com algo, isto é, a consciéncia vem ao universo da mesma forma
que o universo vem a consciéncia" (p. 4).
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encontró nao apenas como eu, mas como um outro para mim, como objeto da minha própria
experiencia do mundo, pois eu já me encontrava ali antes mesmo que soubesse de mim:
Apercebo-me também que já anteriormente, sem me ter captado, estava
sempre ai para mim mima intuicáo original (percebida no sentido mais largo
do termo) e, de alguma maneira, "antecipadamente presente". Sou-me
presente com um horizonte aberto e infinito das propriedades internas aínda
nao-descobertas (p. 130).
Nessa intuigao original sobre si mesmo, em que o eu descobre urna inseparável
determinagao interna da relagao da vida de consciéncia com o mundo, reconhecemos o valor
da experiencia de que o mundo existe para nos, na medida em que um nao poderla se constituir
sem o outro. Percebemos que há urna congruencia entre a experiencia do outro e a experiencia
de si mesmo.
Eu, o "eu humano" reduzido (o eu psico-físico), sou portanto constituido
como membro do "mundo", com urna "exterioridade" múltipla; mas sou eu
quem constituí tudo isso, eu próprio, na minha alma e trago tudo isso
comigo como objeto das minhas "intencoes". ... Há urna inseparável
determinacáo interna entre eu constituinte-objeto constituido, mas em urna
auto-explicitacáo do eu encontraría o "mundo" que lhe pertence como lhe
sendo "interior" e, por outro lado, ao percorrer esse "mundo", o eu
encontrar-se-ia ele próprio como membro dessas "exterioridades" e
distinguir-se-ia do mundo exterior (p. 126).
Entendemos que Husserl sustenta o plano da experiencia transcendental como um
fundamento que perpassa toda a experiencia. Entretanto, vemos que o dominio
transcendental só se constitui enquanto intersubjetividade transcendental. E, assim, o sentido
da experiencia do outro emerge na simultaneidade e na irredutibilidade da experiencia do eu
sou.
A análise da nossa experiencia do mundo permitiu que percebéssemos o surgimento
da vivencia do outro na experiencia da pessoa em diferentes momentos. Na atitude natural,
encontramo-nos espontáneamente em relagao, numa comunidade de homens baseada em um
plano de intercomunhao possível. Estamos constantemente fazendo experiencia do mundo e
encontramos a nossa própria presenga enquanto sujeitos da experiencia.
Adentrando a orientagao fenomenológica, interrogamos o mundo tal como este se
apresenta a nos, evidenciando a experiencia do sentido em um horizonte Intencional aberto a
vivencia do outro. Dessa forma, ao fazermos urna pergunta sobre a nossa própria experiencia do
mundo, vivenciamos, simultáneamente, a alteridade dessa vivencia e a abertura da nossa
subjetividade ao sentido dessa experiencia.
Na intencionalidade da consciéncia, captamos o modo de apresentagao dos objetos em
um horizonte intencional aberto a alteridade. Reconhecemos que é na dimensao do sentido
que o mundo e a consciéncia se encontram. Trata-se de um horizonte que permite conhecer a
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realidade de modo intersubjetivo, apresentando continuamente a possibilidade da vivencia
do outro.
Na abertura a essa vivencia ainda captamos a nossa própria presenga como parte do
mundo, descobrindo a presenga deste em nos através da nossa vida de consciéncia.
Percebemo-nos também enquanto outros e reconhecemos o valor existencial do mundo como
correspondente a possibilidade da experiencia de si mesmo. O aprofundamento nessa
percepgáo de nos mesmos enquanto sujeitos da experiencia coincide com o reconhecimento
de urna abertura constante para o outro. Constatamos, assim, que a análise regressiva a
subjetividade transcendental nos leva ao reconhecimento do encontró com a vivencia do outro
na experiencia da pessoa.
A especificidade da fenomenología husserliana
Nos resultados apresentados evidenciamos a possibilidade de urna vivencia de um
sentido existencial frente a alteridade. Contudo, propomos agora aprofundar algumas
questoes teóricas fundamentáis para compreensao desta vivencia, para que possamos
compreender a especificidade do pensamento de Edmund Husserl no que diz respeito a
vivencia do outro. Realizaremos, portanto, um diálogo com as principáis objegóes atribuidas
a nogao do outro na fenomenología husserliana.
Iniciemos estas análises voltando nossa atengao ao tipo de racionalidade presente na
reflexao sistemática proposta por Husserl. Para Fabri (2007), "a racionalidade
fenomenología é intencional, ou seja, ela valoriza as diferentes perspectivas, numa palavra,
é urna racionalidade aberta a multiplicidade" (p. 46). Vimos que, ao realizar o trabalho das
redugoes, Husserl propoe um novo modo de olhar para experiencia, que corresponde a orientacao
fenomenológica. Neste procedimento, passo a passo, a experiencia, antes definida pela atitude
natural, vai ganhando novas significagoes, próprias da relagáo intencional e do dominio
transcendental. Vejamos, entáo, o que a análise da orientagáo fenomenológica revela sobre o
tipo de racionalidade presente na reflexao fenomenológica.
Em primeiro lugar, nao podemos mais compreender a nogao de experiencia
estritamente nos termos da experiencia sensível. Ampliando esse conceito, Mahfoud (2003),
ao expor as reflexóes de Giannini6 sobre a nogao de experiencia, define que esta pode ser
compreendida como urna "abertura incondicionada frente ao dado" (p. 136). Essa nova
nogao de experiencia inclui a experiencia sensível, enquanto "a percepgao imediata de algo
concreto", porém, vai além, "e registra o encontró do sentido dessa operagáo" (Mahfoud,
2003, p. 136).
6
Discutiremos as idéias de Giannini, G. (1987). La nozione di esperienza: implicazioni filosofiche ed esistenziali Roma:
Cittá Nuova, a partir da apropriagao realizada por Mahfoud (2003).
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Aprofundando nesse novo olhar, podemos acompanhar outros graus de experiencia.
Seguindo um caminho a partir da experiencia sensível, encontramos a experiencia
intelectiva, em que apreendemos aspectos dos entes oferecidos ao conhecimento,
distinguindo-os e captando a sua totalidade. Ñas palavras de Mahfoud (2003):
Voltar a atencáo a esséncia, ao inteligível ou ao significado é urna operacáo
espontánea na atividade intelectiva e também um elemento próprio da
fenomenologia husserliana, conhecido como "reducáo eidética". É
espontáneo ao homem pensar, por exemplo, em casa (quididade) vendo urna
casa (ente), passando entáo do sensível ao inteligível, segundo a estrutura
psíco-física do sujeito conhecedor (p. 137).
Assim, a passagem do sensível ao inteligível corresponde a um passo de um caminho
que visa "interpretar e exprimir urna estrutura dinámica própria do dado" (Mahfoud, 2003,
p. 136). Trata-se, portanto, de um aprofundamento do olhar, de um sentido que o sujeito
realiza na experiencia do dado.
Entretanto, podemos contrapor essa nossa interpretagao a respeito do efeito da
primeira redugao áquela feita por Pelizzoli (1994), em que a fenomenologia "resolve o
sentido do verdadeiro antes de toda aparéncia" (p. 16). Para o autor, a epoqué tem como
primeira tarefa o "ataque a tese natural", orientando a consciéncia sobre si mesma. Neste
procedimento: "... a coisa e sua multiplicidade de modos de apreensao e apresentagao
aparecem sob urna configuragao do 'mesmo'" (Pelizzoli, 1994, p. 22). E, dessa forma, o "ego
constituinte conduz a multiplicidade do que vem a consciéncia a 'unidade da síntese no
mesmo', multiplicidade que se reúne por condigoes essenciais e que forma urna totalidade ou
conjunto ordenado, semcaos nem condigoes acidentais" (Pelizzoli, 1994, p. 24-25).
Entendemos que a crítica segundo a qual a fenomenologia capta o objeto limitando-o
dentro do sentido do mesmo impossibilitaria o surgimento da vivencia do outro. Tal fato nos
leva a considerar a importancia de distinguir novamente a relagao entre a consciéncia e o
campo da experiencia sensível. Ressaltamos que a primeira redugao nao visa substituir a
experiencia sensível pela visao intelectiva, desqualificando-a. Trata-se de reconhecer que, ao
fazermos a experiencia sensível, podemos ir além déla, ao encontró de um sentido. Para
Husserl, esse sentido adquirido diante do dado apresenta necessariamente a característica de
urna imperfeigao, o que instiga o sujeito a continuar ornando, para que possa apreender
novos modos de doagao do objeto. Segundo Mahfoud (2003), é exatamente a experiencia
sensível que possibilita o caráter unitario do sentido, e nao a atuagao isolada da dimensao
intelectiva:
Á luz da experiencia metafísica, a experiencia sensível aparece como dado
ineliminável do qual todo o processo parte - partir déla é impresdndível
porque trata-se de apreender o ente na sua realidade factual com a qual se
faz contato. É esse contato com a realidade que fornece a garantía de que
todas as fases do processo que se seguem desenvolvam um tema unitario. A
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experiencia sensível é, no homem, virtualmente experiencia metafísica
porque portadora de um inteligível (ou significado), objeto das experiencias
óntica e ontológica (p. 139).
Por sua vez, Fabri (2007) contribuí para a compreensao da redugao husserliana,
definindo o horizonte de sentido proposto pela fenomenología como um vai-e-vem entre a
multiplicidade e a individualidade. Neste movimento, a determinagao do sentido nao se
propoe a realizar urna síntese entre as polaridades, ao contrario, pretende permitir urna
interlocugao que redescubra continuamente o sentido de um e de outro. Assim:
Na perspectiva fenomenológica nao há, portanto, um horizonte de sentido
que torna absoluto ou supostamente verdadeiro diante dos outros. O
envolvimento de urna individualidade (seja um sujeito individual, seja urna
cultura) com a multiplicidade de outros mundos se desenvolve num
crescente movimento de saída e retorno a si, mas neste processo nao há
síntese, nao há elevacáo dos interlocutores ao plano comum do conceito, ou
sua submissáo ao juízo da historia universal. Em fenomenología, a
interlocucáo das monadas nunca termina. O movimento monadológico
jamáis encontra termo, sendo que outras possíveis verdades podem sempre
ser descobertas (Fabri, 2007, p. 46).
Neste momento, podemos refletir sobre um segundo questionamento importante para
elucidar as questoes próprias do surgimento da vivencia do outro. Trata-se da crítica de que,
enquanto urna filosofía do mesmo, a fenomenología também assumiria urna posigáo
idealista. Para Pelizzoli (1994), na fenomenología husserliana compreendemos "a
subjetividade prioritariamente enquanto subjetividade conhecedora, como sujeito que nao
apenas vive um mundo e suas relagóes, mas que capta as realidades enquanto lhes confere
um sentido através do pensamento" [grifos nossos] (p. 18). Nesse sentido, a realizagao da
redugao nao só "distancia-nos de nosso engajamento no mundo", mas, "seguramente, a
redugao fenomenológica exclui o que transcende ao cogito, pois todo conhecimento passará
pelo crivo da evidencia do ego..." (Pelizzoli, 1994, p. 20). Dessa forma, para Pelizzoli (1994) a
existencia das realidades "vive na dependencia da unidade de consciéncia do Eu
transcendental, que comanda a existencia e que possibilita um sujeito esclarecido e
autónomo" (p. 27).
Novamente consideramos a importancia de que, a partir desses questionamentos,
possamos avangar no conhecimento da proposta husserliana. Discutiremos, entao, o sentido
do segundo passo da redugao, a redugao transcendental. Voltemos ao texto de Husserl.
Segundo o autor, a base fundamental da fenomenologia nao pode ser compreendida como "o
axioma do ego cogito, mas urna plena, inteira e universal tomada de consciéncia de si
próprio" (Husserl, 1931/2001, p. 197). Sendo assim, compreendemos que nao podemos
definir o ego cogito como urna regiao que abarcaria em si um conteúdo próprio, mas
precisamos problematizá-la enquanto urna operagao de urna tomada de consciéncia do eu.
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Para aprofundarmos essa discussao, vejamos uma passagem do texto husserliano "Idéias
para uma fenomenología pura e para uma filosofía fenomenología" (Husserl, 1913/2006).
Neste primeiro livro de Idéias, Husserl define precisamente a relagáo que se estabelece entre
o eu e o cogito:
O eu parece estar ali de maneira constante e até necessária, e essa constancia
nao é, manifestadamente, a de um vivido que persiste estúpidamente, a
constancia de uma "idéia fixa". Ele faz parte, ao contrario, de cada vivido
que chega e se escoa, seu olhar se dirige ao objeto "através" de cada cogito,
iluminando-se de novo a cada novo cogito e desaparecendo junto com ele. O
eu, porém, é um idéntico. Toda cogitatio, ao menos em principio, pode variar,
vir e ir embora caibam dúvidas se cada uma délas é algo necessariamente
efémero e nao apenas, tal como a encontramos, /áticamente efémero. O eu
puro, em contrapartida, parece ser algo necessário por principio e enquanto
absolutamente idéntico em toda mudanca real ou possível dos vividos, ele
nao pode, em sentido algum ser tomado por parte ou momento real dos próprios
vividos (Husserl, 1913/2006, p. 132, itálicos do autor).
Examinando o sentido da experiencia transcendental, constatamos a presenga do eu,
nao como um agente regulador que está ácima da experiencia, mas como possibilidade de
uma percepgáo de si na experiencia do dado. Esse eu nao possui substancia. Assim, nao
podemos atribuir-lhe nem a mesma qualidade do dado, nem uma existencia independente
da experiencia. O eu puro, enquanto residuo da exclusao fenomenológica do mundo e da
subjetividade empírica, "oferece uma especie própria de transcendencia - nao constituida uma transcendencia na imanencia" [grifos do autor] (Husserl, 1913/2006, p. 132).
Assim, afirmar o sentido da experiencia transcendental nao nos coloca em oposigáo a
qualquer sentido de realismo. O verdadeiro sentido do idealismo transcendental
é a explicitacao do sentido de qualquer tipo de ser que eu, o ego, posso
imaginar; e mais especialmente, do sentido da transcendencia que a
experiencia me dá realmente: a da Natureza, da Cultura, do Mundo, em
geral; o que quer dizer o seguinte: desvendar de maneira sistemática a
própria intencionalidade constituinte (Husserl, 1931/2001, p. 112).
Entendemos que a expressao "idealismo transcendental", utilizada por Husserl,
corresponde ao esforgo de elucidagao da constituigao dos objetos. O contraste entre o
realismo e o idealismo perde a sua validade. Assim, para Husserl, nao é tarefa da
fenomenología comprovar a faticidade do mundo, na medida em que esse já é o seu ponto de
partida. Trata-se, contudo, de entender como tal objetividade é constituida (Ales Bello, 2000).
Precisamos avangar um pouco mais para dialogar com uma importante conseqüéncia
das objegoes apresentadas anteriormente. Interpretando o idealismo transcendental como um
idealismo racionalista, a argumentagáo de Pelizzoli nos convida a refletir sobre o problema
do solipsismo:
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Certamente, diante deste "idealismo racionalista" centrado na consdéncia de
si e no ego cogito transcendental absoluto, nao faltaram vozes alertando para
a periculosidade solipsista que se vislumbra a partir do dominio
autolegislativo e auto-reflexivo do ego (Pelizzoli, 1994, p. 17).
Diante do que temos visto nao é difícil entender a periculosidade solipsista,
tao ventilada por muitos pensadores que entram em contato com o método
fenomenológico. Ela ocorre diante de urna teoría que se quer como ciencia
"absolutamente subjetiva", que tem um objeto que é independente da
existencia ou nao do mundo (Pelizzoli, 1994, p. 31-32).
Dessa forma, o autor apresenta o que denomina a "falencia do projeto husserliano para
a intersubjetividade" (Pelizzoli, 1994, p. 41). Contudo, diante do que expomos até aqui,
podemos ir além da crítica para encontrarmos o sentido da relagao entre subjetividade e
intersubjetividade. No que diz respeito ao problema do solipsismo, Merleau-Ponty
(1960/1991) responde diretamente a objegao direcionada a fenomenología de Husserl. O
filósofo apresenta o erro de relacionamos a redugao fenomenológica a ausencia do outro na
experiencia do eu:
Esta observacao tem largo alcance. Dizer que o ego "antes" do outro está só, é
situá-lo já em relacao a um fantasma de outro, é pelo menos conceber um
meio que outros poderiam estar. A verdadeira e transcendental solidao nao é
essa: somente ocorre se o outro nao é sequer concebível, exigindo isto que
também nao haja eu para o reivindicar (p.192).
O fato de que é o eu quem dá testemunho da vivencia do outro nao desqualifica essa
vivencia enquanto do outro. E, para compreendermos essa complexidade, devemos retomar
a nogao de experiencia, submetida ao olhar próprio da orientagao fenomenológica. Vimos
que a experiencia sensível corresponde a experiencia imediata que obtemos do dado.
Entretanto, a dimensao do sentido, apoiada no esteio da sensibilidade, passa por outros
momentos da experiencia, momentos em que o eu resignifica continuamente a experiencia
do dado. A presenga do eu neste processo nao impede o verdadeiro se mostrar daquilo que é
dado, pelo contrario, "o dado revela seu caráter dinámico a luz do ser que o apreende"
(Mahfoud, 2003, p. 136). Assim,
em urna tal concepcao de experiencia, a imediatez vem a ser inteirada pela
mediacao que a própria imediatez exige. Entao, a mediacao recai sobre a
experiencia mesma, sem necessidade de justificar a passagem da experiencia
imediata a experiencia mediata. Evita-se assim o risco de colocar a mediacao
além da experiencia, o que reduziria a experiencia a experiencia sensível
(Mahfoud, 2003, p. 140).
A presenga da subjetividade na descoberta da intersubjetividade, portanto, nao se
configura como um obstáculo, mas "trata-se nao só de condigáo para a experiencia, mas
também e sobretudo de experiencia da condigáo" (Mahfoud, 2003, p. 136). Fabri (2007)
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acrescenta que, para Husserl, a recorréncia ao eu busca o retorno as "situagoes humanas
concretas e originarias", sendo que, só assim poderíamos obter "a elucidagao da esfera
transcendental de sentido":
A insistencia sobre urna subjetividade auto-referente, isto é, sobre o Eu livre,
coincide com o esforco de recuperar a vida que ficou esquecida de si mesma.
Mais aínda: a atitude transcendental proposta por Husserl nao significa a
defesa de urna "regiao pura", indiferente ao mundo. Ela é, antes, a
redescoberta do mundo e das experiencias que nao podem ser consideradas
pela atitude natural, isto é, pela atitude ingenua e espontánea, na qual
sempre nos encontramos antes da reflexao (Fabri, 2007, p. 43).
Dessa forma, a subjetividade, fundada na experiencia intersubjetiva do mundo-davida, ao atingir a experiencia transcendental, redescobre o seu pertencimento a comunidade
de homens, a luz de urna nova consciéncia de si.
Conclusao
Diante da perspectiva de objetivagao da vivencia do outro, encontramos a crítica
husserliana, que nos permitiu retomar urna pergunta sobre o outro. Em nosso trabalho,
realizamos a análise do texto de Husserl e buscamos explicitar abertura para a vivencia do
outro, incluida na experiencia da pessoa. Assim, ao assumirmos um trabalho reflexivo de
reconstrugao da experiencia do sujeito no mundo, foi possivel evidenciar a possibilidade de
um sentido existencial frente a alteridade, em diversos momentos da experiencia do eu.
Nesse momento de conclusao, consideramos importante ressaltar alguns significados
presentes nesses diferentes encontros com a alteridade.
Percebemo-nos primeiramente na atitude natural, constantemente fazendo experiencia
do mundo e espontáneamente abertos a presenga do outro. Em seguida, nossa vivencia do
mundo se modifica por meio de urna pergunta própria do sujeito, que se interroga sobre o
sentido do que se apresenta diante dele. Apreendemos, assim, tanto nossa abertura para a
dimensao do sentido quanto a condigao de alteridade do outro. Á medida que captamos o
sentido daquilo que se apresenta diante de nos, reconhecemos um horizonte intencional, no
qual consciéncia e realidade se encontram. A vivencia do sentido apresenta a complexidade
da experiencia do outro no campo da subjetividade. A multiplicidade de significados
presentes nesse horizonte renova a todo instante nossa percepgao dessa vivencia de abertura
para o outro. Ainda captamos a nossa própria presenga como parte dessa vivencia de
significagao, nos percebendo como parte da nossa vida de consciéncia. Finalmente, nesse
movimento de tomada de consciéncia de nos mesmos, a vivencia de alteridade emerge como
urna experiencia de valor e reciprocidade, em que encontramos continuamente o outro e a
nossa própria existencia enquanto urna existencia partilhada.
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No caminho do transcendentalismo husserliano, encontramos urna reflexao sistemática
realizada de forma muito particular. Reconhecemos que a fenomenología husserliana nao se
limita a propor um conhecimento filosófico e transcendental da experiencia do eu e da
alteridade, enquanto o ponto de chegada de um percurso de reflexao sobre o sujeito. A
exigencia de um método, de que fagamos a análise fenomenología para o conhecimento do
outro e de si mesmo corresponde a necessidade de assumir que o eu e o mundo nao sao
termos coincidentes. Partindo de um desconhecimento a priori, intrínseco a vivencia da
alteridade, o filósofo nos convida a adotar um modo específico de nos posicionar diante das
coisas, para colher, neste relacionamento, aquilo que se apresenta diante de nos, da maneira
como se apresenta. Assim, em primeiro lugar, retomamos urna pergunta sobre o outro e
assumimos urna determinada distancia, para, em seguida, nos voltarmos atentamente ao
encontró da alteridade, "num crescente movimento de saída e retorno a si" (Fabri, 2007, p.
46). Compreendemos, assim, que Husserl nao vé a fenomenología como urna teoría que se
imprime as coisas e que, desse modo, exerceria a fungáo de um espelho revelador, na qual
ditaria urna determinada razao de ser da realidade. A necessidade de sempre voltarmos ao
método fenomenológico apresenta um fundamento filosófico que nos abre para a experiencia
do sentido e, conseqüentemente, da alteridade, sem determiná-los antecipadamente.
Segundo Fabri (2006), ao tomarmos como referencia as Meditagóes Cartesianas, encontramos,
"paralelamente a auto-explicitagao do Eu transcendental, urna meditagao interminável sobre o
quefica no extremo oposto desta tarefa". Neste sentido, a fenomenología pode ser compreendida
"como meditagao sobre o fenómeno do estrangeiro, do estranho ou inapropriável" [itálicos
nossos] (p. 75).
De modo contrario, percebemos que na perspectiva do objetivismo, prevalece urna
resposta técnica anterior ao posicionamento do sujeito, propiciando que a pessoa responda
automáticamente as provocagóes vindas da realidade. O sujeito, entáo, nao toma consciéncia
do próprio desconhecimento e produz urna resposta sobre o outro anterior as perguntas que
emergem nessa vivencia. Tal perspectiva, que se impóem como um modelo global no
relacionamento com a realidade, limita a possibilidade do sujeito de fazer experiencia,
prejudicando a vivencia do outro no campo da subjetividade.
Ao situar um método, urna pergunta, entre a subjetividade e o mundo, Husserl nos
mostra a possibilidade do encontró com a vivencia do outro na experiencia do eu. Sem
antecipar urna resposta aquilo que se mostra a nos, somos provocados a adotar um
posicionamento, ativando a nossa capacidade humana de agir livremente e de responder
ativamente, tanto em relagáo a nos mesmos quanto em relagáo ao conhecimento do outro.
Descobrimo-nos, assim, imersos em urna vivencia de alteridade em que o reconhecimento de
um sentido existencial na vivencia do outro e a percepgáo de reciprocidade nessa vivencia
com outra subjetividade coincidem com a possibilidade de sentido frente a nossa própria
existencia.
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Ao encontrarmos a possibilidade de um sentido na relagao com a alteridade,
reconhecemos o valor da nossa experiencia em um mundo compartilhado
intersubjetivamente. A complexidade dessa experiencia contém, simultáneamente e
reciprocamente, o reconhecimento da consciéncia de si e da inescapável condigao de
alteridade do outro. Diante do valor dessa presenga, somos incessantemente instigados a
responder e permanentemente provocados a nos dedicar a urna convivencia segundo
criterios éticos.
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Nota sobre os autores
Claudia Coscarelli Salum - psicóloga e mestre em Psicología pela Universidade Federal
de Minas Gerais. Atua na linha de pesquisa "Cultura, modernidade e processos de
subjetivagao". Contato: [email protected]
Miguel Mahfoud - doutor em Psicología Social, professor associado do Departamento de
Psicología da Faculdade de Filosofía e Ciencias Humanas e do Programa de Pós-Graduagao
em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Atua na linha de pesquisa "Cultura
e subjetividade". Contato: [email protected]
Data de recebimento: 25/09/2011
Data de aceite: 01/06/2012
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Desejo e formac,ao de mundo em Sartre: breve contraponto com
Merleau-Ponty
Desire and world formation in Sartre: a short counterpoint with Merleau-Ponty
Reinaldo Furlan
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Resumo
A realidade humana aparece em Sartre como urna falta ortológica no seio da realidade
das coisas. Essa falta é a consciéncia, ocasiao de deflagracao do Ser e desejo de ser. Nesse
sentido o homem é projeto, buscando realizar seu próprio ser através do ser das coisas,
assim configurando o mundo. Essa tentativa é sempre fracassada, ou sempre iniciada, na
medida em que a consciéncia nao pode se transformar em ser algum, ou só é
ultrapassando os projetos nos quais procura realizar o próprio ser. A nocao de
encarnacao se destaca na medida em que representa um principio de má-fé da
consciéncia que, em seu projeto de ser, busca se perder no ser-em-si da materia sensível.
O uso da filosofía de Merleau-Ponty, no artigo, visa apenas evidenciar, por diferenca, as
nocóes de desejo e encarnacao em Sartre, e indicar a passagem para outra filosofía através
da inversao do significado das mesmas.
Palavras-chave: Fenomenología; Sartre; desejo; Merleau-Ponty
Abstract
The human reality appears in Sartre as an ontological lack in the heart of the reality of
things. This lack is the consdousness, occasion of deflagration of Being and desire to be.
In this sense the man is project, seeking to carry out his own being through the being of
things, thus setting the world. This attempt always fails, or it is initiated, since the
conscience can not be turned into any being, or it is just surpassing the projects in which
it seeks to carry out the own being. The notion of incarnation stands out insofar as it
represents a principie of bad faith of the conscience that, in its project of being, searches to
lose itself in the being-in-itself of the sensible matter. The use of the Merleau-Ponty's
philosophy, in the article, aims at just highlighting, by difference, the notions of desire
and incarnation in Sartre, and at indicating the passage for another philosophy by
reversing their the meaning.
Keywords: Phenomenology; Sartre; desire; Merleau-Ponty
Introdujo
Nesse artigo1 nos ocupamos, sobretudo, da nogao geral de desejo em O Ser e o Nada
(Sartre, 1940/1976), e de contrapor a mesma a nogao de carne em Merleau-Ponty, que teve
em Sartre um grande alter ego. Dados os limites do artigo, cujo objetivo é destacar um dos
sentidos primordiais da filosofía sartreana, nao se trata de urna comparagao sistemática entre
esses filósofos, nem mesmo através da nogao de carne. Tal contraposigao ou diferenga visa
apenas favorecer um espago de reflexao e apontar um viés do vínculo da filosofía de
Apoio CNPq
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Merleau-Ponty com o pensamento sartreano, ainda que pelo avesso. Podemos lembrar,
inclusive, o que disse Merleau-Ponty (1960/1984) por ocasiao de uma homenagem ao
pensamento de Husserl: que retomar o pensamento do outro para pensar de novo é a melhor
forma de homenageá-lo.
Daremos inicio a nossa temática com o próprio Merleau-Ponty (1957-1960/2000), que
termina destacando a nogáo de desejo como animagáo da própria percepgao (O corpo
estesiológico já é desejo, p. 436ss). Isto é, o desejo, que constitui o sentido do corpo
estesiológico2, impulsiona o olhar, a motricidade ou o tato, assim como a expressao e a
relagao com o outro, enquanto "busca do interior no exterior e do exterior no interior", e o
prazer, "do qual o desejo pode ser ocasiao, é a integragao do que se vé ao que se faz"
(Merleau-Ponty, 1957-1960/2000, p. 443). É como se a percepgao já fosse resultado de um
movimento do corpo vivo em diregáo ao outro, enquanto corpo desejante: "a estrutura
estesiológica do corpo humano é, portante, uma estrutura libidinal, a percepgao um modo de
desejo, uma relagao de ser e nao de conhecimento" (Merleau-Ponty, 1957-1960/2000, p. 340).
Faz parte desse contexto teórico a nogao de carne3, para dizer as relagoes no sensível
entre o seu lado de dentro e seu lado de fora, com a qual Merleau-Ponty pretende desfazer a
dicotomia cartesiana entre corpo (objeto) e alma (pensamento), fazendo déla um sentido
segundo ou derivado de uma relagao mais íntima em que tais distingóes nao operam, pois a
diferenga (entre o lado de dentro e o lado de fora) que na carne habita brota de uma origem
comum, que é o próprio sensível, do qual o corpo humano é um exemplo privilegiado.
Assim, o fenómeno ou a percepgao surge como um vir a si do sensível, que, por fim se
reflete: vé e é visto, toca e é tocado, fala e escuta, de tal forma que a visáo nao é estranha ou
de outra ordem daquilo que é visto, e assim com todas as outras relagoes de sentidos que se
expressam na experiencia do mundo. Por isso a carne é ao mesmo tempo passividade e
atividade ("Todo ativo ou todo passivo, ele nao é corpo" e "Sentir é sentir-se", MerleauPonty, 1957-1960/2000, p. 357 e p. 439).
Note-se a dificuldade da questáo, ou o que ela implica: o desejo surge com a formagáo
de um lado de dentro (vida) no lado de fora (mundo), o que inaugura a relagao entre o
dentro e o fora do corpo (vivo). A percepgao expressa, por fim essa relagao, como se nascesse
do desejo do próprio corpo pelo seu lado de fora, no qual o outro será privilegiado.4
2
Estesiologia deriva do grego aisthésía: capacidade de perceber sensagoes. Ao contrario, como se sabe, anestesia é
a ausencia de sensagoes ou sensibilidade. "O corpo estesiológico" significa, portanto, o corpo sensível, que se
senté. Quando Merleau-Ponty diz que o corpo estesiológico já é desejo, quer dizer, pois, que sentir é desejar.
3
Particularmente exposta no capítulo "O Entrelagamento - O Quiasma", de O Visível e o Invisível (Merleau-Ponty,
1964/2000b), manuscrito inacabado publicado postumamente sob iniciativa de Claude Lefort. Nessa obra
inacabada Merleau-Ponty visava dar novos fundamentos ontológicos a suas primeiras obras, ainda presas a uma
filosofía da consciéncia.
4
Nos termos de Tréguier (1996): "O desejo é, deste modo, como abertura, o acontecimento da diferenga, essa
distancia primordial que é a fonte de todo sentir e como o principio de toda expressao" (p.165), e "Como
diferenga o desejo tende a visibilidade e nos leva na diregao de um fora onde sao os outros corpos, é exatamente,
nisso, a primeira modalidade da relagao a presenga corporal do outro" (p.166).
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De fato, a partir da análise da própria percepgao, Merleau-Ponty já constatava, desde a
primeira obra (Merleau-Ponty, 1942/2002), que para ver é preciso olhar, ou seja, que o corpo
sai da diplopia5 para a visao de um único objeto, movido pelo próprio interesse de se fixar no
mundo para dele se apropriar, o que nao deixa de ser urna forma de integragao.6
Descobre-se, assim também, a importancia da motricidade no ato de ver. Trata-se,
agora, de definir esse movimento como o próprio desejo.
Destacamos o significado das nogóes de carne e de desejo na última filosofía de
Merleau-Ponty, pois nos servirao de contraponto com o pensamento de Sartre.
O desejo ontológico e as posses
Merleau-Ponty descreve a dimensao ontológica originaria a partir da nogao de sensível,
em contrapartida a relagao entre o ser e o nada descrita por Sartre (1940/1976), onde o nada
se constitui justamente enquanto negagao do ser (em-si) que ele nao é (doravante, enquanto
consciéncia ou ser-para-si), ou ocasiao de manifestagao do próprio ser (em-si). Isto é,
segundo Sartre, sem o ser-para-si o ser-em-si seria realidade densa, fechada ou sem fissuras,
sem, portanto, consciéncia. Pode-se pensar tal realidade como anterior ao homem, e, de fato,
a aparigao do ser por ocasiao do homem a revela como independente dele, isto é, como em-si,
enquanto o homem só aparece no seio do em-si do qual se destaca. Nesse sentido Sartre fala
da autonomía do ser-em-si, que repousa em si, e da dependencia do ser do homem, na
medida em que este só é destacando-se do em-si, o que significa, veremos, "apoiando-se"
nele.
Pode-se perguntar, como diz Sartre (1940/1976) ao final de O Ser e o Nada, sobre as
razóes do advento do para-si no seio do em-si. Mas essa é urna questao metafísica, na medida
em que ultrapassa os limites da ontologia, que trata apenas de descrever o Ser, o que ocorre
sempre em regime de presenga do para-si.
Em certo sentido, pode-se dizer que disso decorre que a completude do ser nao é
propriamente nem em regime metafísico, onde o em-si carece da própria consciéncia, nem
em regime ontológico, onde o ser só é enquanto realidade destotalizada pelo para-si que naoé (Barbaras, 2003).
O que nos interessa marcar, a partir desse solo geral da ontologia sartreana, é a entrada
da nogao de desejo como central em sua obra.
Em primeiro lugar, e contrapondo-se a Heidegger (1929/1979), Sartre enfatiza a
necessidade de um "agente" ou atividade de nadificagao para que a nogao de nada nao seja
5
Diplopia significa visao dupla das coisas. Nesse caso, visao dupla porque vista por dois olhos. O ato de olhar
pressupoe, pois, a síntese das duas imagens da retina enquanto visao de urna coisa só.
6
Nos termos da última ontologia, e sugestiva expressao de Tréguier (1996), desejo da carne por um "corpo
glorioso" (p.163), isto é, que convoca o corpo ao trabalho de integragao entre o seu lado de dentro e seu lado de
fora, e que será ocasiao de gozo, frustragao ou sofrimento enquanto a carne nao se desfaz, mantendo a
diferenciagao entre os seus dois lados, a diferenga que os une e atrai.
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abstrata ou aínda sem fundamento ontológico: esse é o papel do para-si, que se realiza com o
surgimento do homem.
Ora, enquanto nadificagáo do ser-em-si, o homem carece, em sua própria constituigáo,
de ser, e, enquanto para-si ou nao-ser (em-si), é o que deseja sé-lo. É a falta ontológica que
constitui o desejo ou o projeto do homem (de tentar supri-la).
Fica claro, entao, que a falta que constitui o para-si nao é um buraco ou vazio de
indiferenga no ser, mas um movimento que afeta o ser (em-si) de nao-ser ou carencia de ser.
Ou seja, com o surgimento do homem o ser (em-si) se afeta de nao-ser ou de urna falta que o
langa em busca de urna integragao de nova ordem, que é a tentativa de síntese entre o em-si e
o para-si, e nao de um simples retorno ao em-si da realidade sem consciéncia (o que seria a
morte, que, de fato, colocará fim a essa busca).
Nesse sentido Sartre diz que o homem é um projeto fracassado de ser Deus, porque o
que ele almeja é a síntese impossível entre o seu para-si com o em-si do qual ele se afasta
enquanto nao-ser e ao qual almeja enquanto desejo de ser. Deus é realidade plena e
consciente de si, em-si-para-si. A Deus, portanto, nao falta nada. E por isso Deus nao deseja.
As coisas em-si também sao plenas de realidade, porém sem consciéncia. O homem, entao,
aparece com sua consciéncia como um oco ou vazio no seio do em-si, e essa é a deflagragao
do Ser.
Assim surge o mundo, por ocasiao do aparecimento do para-si e como a situagao do
para-si, que é a partir do seu projeto de ser. A chave de compreensao disso tudo está na
correta articulagáo entre as nogoes de mundo, situagao e projeto do para-si, que nao sao
termos ou processos independentes. Isto é, o mundo já aparece como projeto de ser do parasi em situagao.
Naturalmente, a situagao do para-si, que já é, portanto, um sentido de mundo, traz sua
contingencia, que é a de ser em determinado em-si: seu corpo e a realidade das coisas a sua
volta. Mas o sentido que se dá a sua contingencia é o que representa a situagao do para-si e a
formagáo de seu mundo. Assim, o mundo nao é nem a realidade em-si independente do
para-si, nem apenas um projeto do para-si, pois, se assim fosse, o mundo nao haveria de
manifestar nenhuma adversidade, já que seria apenas fruto do desejo do para-si.
Sendo em situagao, o para-si qualifica o ser (em-si) enquanto seu projeto de ser. Sentir e
perceber a situagao de urna forma ou de outra já é, nesse sentido, um projeto de ser do parasi. Por isso urna montanha aparece como obstáculo desde que se pretenda passar para o seu
outro lado; um campo de nevé aparece como brancura na perspectiva de um espectador, ou,
sobretudo, como espago liso na perspectiva do esquiador; o frió e o calor parecem excessivos,
desde que se queira um estado de conforto ou até mesmo, em última instancia, preservar a
vida, etc.
Ora, dada sua dependencia do em-si, já que o para-si nao é ou só é negando o ser-emsi, o para-si deseja ser com o ser das coisas (em-si), tentando assim preencher o nao-ser que o
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constitui. Ou ainda, enquanto projeto, o homem é tentando compor-se com o ser das coisas
(em-si), isto é, sendo com elas.
Nesse sentido se destacam as análises sartreanas da posse, que mostram que o sentido
da mesma é seu usufruto, que se revela, assim, como composigao do para-si com o ser da
coisa possuída. Nao é por acaso que jurídicamente a definigao de propriedade é o "direito de
usar, gozar e dispor de um bem" (Houaiss, Villar & Franco, 2001). Afinal, de nada valeria
possuir de direito o mundo inteiro sem poder usufruí-lo, isto é, sem poder fazer a
experiencia de seu ser, onde, inclusive, menos pode valer mais. Tome-se o exemplo das
viagens: sabe-se que é preciso um ajuste fino entre o espago e o tempo para a possibilidade
de urna boa experiencia (de ser). Num extremo, pode-se percorrer muito espago de mundo
sem tempo adequado para a sua experiencia, onde muito, portante, pode valer pouco. E, em
contrapartida, pode-se ter o mundo no "quintal da própria casa", onde pouco, portanto,
pode valer muito.
De fato, como diz Sartre (1940/1976), "cada objeto possuído, que se eleva sobre fundo
de mundo, manifesta o mundo inteiro... Apropriar-se desse objeto é, pois, apropriar-se do
mundo simbólicamente" (p. 657). Nesse sentido ele relata a dificuldade de parar de fumar.
Diz que o mais difícil nao foi vencer a dependencia do tabaco, mas reformar o mundo que se
constituía junto com o seu uso. Foi preciso tornar independente do fumo tudo que se
associava a ele em seu ato de fumar, na medida em que seu consumo fazia parte de um
mundo ou de seu projeto de ser no mundo. Assim, fumar enquanto se escreve é ser escritor
fumando, usando a cañeta ou o computador, em determinado ambiente, etc. Fumar após o
almogo é ser aquela hora do dia com a sensagao do cigarro e sua fumaga a volta. O tabaco,
assim, é expressao de um mundo que se habita, isto é, que se é enquanto projeto.
Ou ainda, noutro exemplo, se tenho urna bicicleta, o que importa é o que fago com ela.
Pilotando-a, componho com ela, e com o mundo disposto com a perspectiva dessa atuagao.
Assim o mundo se revela como um sistema de utensilios na perspectiva dos projetos ou da
situagao do para-si, e o para-si enquanto projeto que manifesta esse sistema de conexoes
entre as coisas do mundo (sua utensilidade) nao tem um fundamento atrás de si. Ele é o polo
sempre implícito e que nao pode ser considerado utensilio para si mesmo enquanto é projeto
de si no mundo. O para-si, nessa dimensao de ser, é o corpo próprio, pois é enquanto corpo
que ele se projeta descobrindo ou estabelecendo conexoes entre as coisas. Posso considerar
meu corpo como um utensilio entre os outros, por exemplo, olhar para minha mao que
segura a cañeta com a qual escrevo. Mas, nesse momento deixo de compor com ela e ser agao
compondo com o corpo da cañeta, ou, como diz Sartre, deixo de ser na ponta da cañeta, e
passo a considerar a cañeta e a mao como objetos ou utensilios para a minha visao (onde sou,
portanto, nesse momento, enquanto para-si). Em outros termos, o corpo que eu sou nao é
utensilio para si mesmo, mas a referencia implícita do mundo enquanto sistema de utensilios
(Sartre, 1940/1976, p. 372), embora a ameaga ou docilidade dos utensilios ao meu corpo seja
principio que também o revela como coisa (em-si) entre as coisas, isto é, a sua contingencia.
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Um buraco a frente pode me derrubar da bicicleta, escancarando o peso de meu corpo e a
adversidade do chao, o em-si que eles sao e que acompanham os meus projetos, mostrando,
entao, suas faces cruas, independentes do para-si que eu era com eles.
Encarnado e desejo sexual
Sartre privilegia as possibilidades ou projetos de ser do para-si. Toma como central a
irradiagáo de nao ser a partir da faticidade da realidade humana, que configura assim sua
situagáo ou o mundo. Mas descarta, por principio, qualquer possibilidade de síntese
ontológica, na medida em que entre o ser e o nada nao é possível mistura. Elimina, dessa
forma, o problema cartesiano da uniao de duas substancias diferentes por natureza (res
cogitans e res extensa), pois a consciéncia é nada, sem substancia alguma. Consciéncia e
mundo sao diferentes e ao mesmo tempo nao há hiato entre eles, pois a distancia que os
separa nao é, ou é nao sendo. Como diz Silva (2003), "o ser do para-si consiste em estar
presente ao em-si. Logo essa presenga nao emana de um ser, ela é a relagáo ontológica do
para-si ao em-si, na medida em que o para-si se faz negando o ser" (p. 116). Essa relagáonegagáo é a aparigao do mundo, como dissemos. Isso ao mesmo tempo confere urna ligagao
tao íntima entre consciéncia e mundo que eles compoem um único ser, já que separados por
nada, e, no entanto, marcados por essa diferenga que os coloca mais distantes um do outro
do que o mais longínquo exterior. É a definigao de campo transcendental que, segundo
Deleuze e Guattari (1992), recupera as prerrogativas da imanéncia: "Um fora mais longínquo
que todo mundo exterior, porque ele é um dentro mais profundo que todo mundo interior: é
a imanéncia... o fora nao exterior ou o dentro nao interior" (p. 78-79)7
Ora, o pensamento de Sartre pode ser visto como urna das principáis referencias de
reelaboragao dos pressupostos da metafísica clássica por Merleau-Ponty. Enquanto Sartre
leva ao extremo ou acabamento o movimento iniciado pela filosofía do cogito (Descartes),
Merleau-Ponty privilegia o movimento inverso, fazendo do corpo, e nao da consciéncia, o
leitmotiv de seu pensamento. Ou, ainda em termos cartesianos, é como se Sartre levasse ao
acabamento a Segunda Meditagao (Descartes), a da distingao entre corpo e alma, mas de tal
forma que, segundo ele, o problema da sua uniao se desfaz, porque entre o ser e o nada nao
há distancia, mas também nao há mistura. Merleau-Ponty, por sua vez, procura desenvolver
a o problema colocado pela Sexta Meditagao (Descartes), o da mistura substancial entre
corpo e alma, questao que, segundo ele, Descartes abriu e ao mesmo tempo fechou, visto que
sua metafísica impossibilitava tal entendimento. Mas Merleau-Ponty a retoma, sobretudo,
como contraponto a fenomenología sartreana.8
7
Ou, "A suposigao de Sartre, de um campo transcendental impessoal, devolve a imanéncia seus direitos"
(Deleuze, 1992, p. 65).
8
Nesse sentido, há toda urna sequéncia de oposigoes a Sartre, nem sempre suficientemente embasadas na ocasiao,
para superar aquilo que o autor pretendia. Basta lembrar o embarago da nogao de cogito tácito na Fenomenología
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Ou ainda, encontramos em Sartre a desautorizagao de um projeto que representa a
intengáo mesma da filosofía de Merleau-Ponty: "O problema do corpo e de suas relagóes com
a consciéncia é frequentemente obscurecida pelo fato (...) que eu tentó unir minha consciéncia
nao a meu corpo, mas ao corpo dos outros" (Sartre, 1940/1976, p. 350).9 Ou seja, é obscurecido
quando considero meu corpo como urna coisa entre outras coisas, objeto da fisiologia, e
depois procuro uni-lo a "interioridade absoluta" de minha consciéncia, ou a meu corpo como
eu o vivo, e nao como posso olhá-lo ou observá-lo. Segundo Sartre, nao é possível unir essas
duas experiencias, que sao de ordens completamente distintas. Meu corpo, "Ou bem ele é
coisa entre as coisas, ou bem ele é isso pelo qual as coisas se revelam a mim. Mas ele nao
poderia ser as duas ao mesmo tempo" (Sartre, 1940/1976, p. 351).
Ou ainda,
Ttocar e ser tocado, sentir que se toca e sentir que se é tocado, eis duas
especies de fenómenos que se tenta em vao reunir sob o nome de 'dupla
sensacao'. De fato, eles sao radicalmente distintos e existem sobre dois
planos incomunicáveis" (Sartre, 1940/1976, p. 351).
Em síntese, entre essas duas perspectivas (enquanto para-si sou a experiencia do corpo
próprio, mas também posso me relacionar com o próprio corpo como um em-si entre outros)
nao há confusao ou mistura, enquanto, para Merleau-Ponty, a nogao de carne tem justamente
a tarefa de tornar possível essa uniáo e comunicagáo.
Vamos destacar, a esse respeito, como Sartre descreve o desejo e a relagáo sexual entre
os amantes. Mas lembremos, antes, que o projeto de ser Deus, embora seja o sentido
fundamental do desejo dos projetos do para-si, nao lhe aparece como tal. Tal sentido é
revelado pela ontologia fenomenológica (sartreana), pois o para-si deseja sempre coisas ou
modos determinados de ser através dos quais o mundo é. O que significa que, através de
seus fins particulares, é o próprio mundo que ele deseja, e esse mundo é o substituto possível
do desejo de ser Deus que o anima.
Ou seja, passeando de bicicleta, esquiando, fumando, etc, o para-si pretende realizar
seu desejo de ser compondo-se com o ser desses objetos, sendo assim, nessa composigáo,
fundamento de seu mundo ou de seu próprio ser. Mas a medida do sucesso dessa integragáo
da Percepgao (Merleau-Ponty, 1945/1994) com a nogao sartreana de nao-ser. De qualquer forma, desde o principio
Merleau-Ponty procurou assumir como leitmotiv de sua filosofía a encarnagao do espirito ou da consciéncia, e daí
as ideias, contrarias ao espirito da filosofía sartreana, de urna liberdade provisoria, do caráter impessoal de parte
de nossa existencia, da mistura das instancias do si (onde Sartre aceita apenas a alternancia entre as perspectivas
do para-si e do para-outrem), e, finalmente, a ideia de urna negatividade natural, básica para a conversao
ontológica merleau-pontyana, que se completa apenas ao final de sua obra.
9
A dimensao objetiva do ser humano é finalizada com o seu sentido carnal, pois o corpo do outro aparece
originariamente como situagao de um para-si (nos termos de Sartre, como transcendencia transcendida pelo meu
olhar, e vice-versa). Ou seja, o olhar do outro capta o sentido de meu ser (meu projeto de mundo), estancando,
assim, o jorro nadificante de minha liberdade, ainda que sucessivamente, de acordó com o sentido de meu
comportamento. Ora, o passo conclusivo dessa objetivagao é a consideragao do sentido do corpo enquanto carne,
o que escancara a oposigao latente entre as dimensoes objetivas e subjetivas do ser humano. É com essa
objetividade nua e crua que Sartre explicita aqui o problema tradicional da relagao entre corpo e consciéncia.
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do para-si ao em-si em seu projeto de ser, é o risco de sua própria alienagao, pois, desejoso de
ser (em-si), o homem pode seduzir-se por essa imagem de ser construida através de seus
projetos, e assumir a atitude de má-fé, que consiste justamente em tratar seu próprio ser
como se fosse um ser-em-si. Mas o para-si nao é nessa composigáo senao de forma sempre
negada ou ultrapassada. Por isso Sartre diz que o homem é um projeto fracassado de ser
Deus, ou urna paixao inútil, porque a completude que o projeto almeja é a de ser em-si-parasi, isto é, síntese do em-si e do para-si, mas o movimento do para-si, enquanto negagao,
sempre ultrapassa aquilo que ele é enquanto situagao projetada de ser. Em outros termos,
cada projeto de ser no mundo (professor, psicólogo, pai, mae, filho, ou qualquer outra
"coisa", bondoso, maldoso, agressivo, passivo, etc.) só é enquanto sustentado a cada instante
pela decisao do para-si em manter-se nesse projeto, que, enquanto realizagao sua é sempre
ultrapassada pela fuga do para-si em diregao ao em-si que ele deseja ser, e que, portante,
nunca é (em-si). De modo que o homem auténtico para Sartre assume a responsabilidade de
cada ato, e jamáis é seduzido pela própria imagem que, enquanto ser visível, expressa-se
através de tudo aquilo que faz, e é destacada pelo olhar do outro que, ao contrario da sua
perspectiva (para-si), ocupada apenas em ser, abre-lhe a dimensao do sentido (objetivo) de
seu comportamento ou projeto de ser.
Aqui, frisemos que a realizagao de projetos de mundo é urna realidade intermediaria
entre a falta ontológica que nos constitui, que nos langa em diregao ao mundo que desejamos
ser, e Deus, que seria a idéia de sua realizagao sem falta.
Ora, o desejo sexual é apenas um caso particular do desejo ontológico que está por tras
de todo e qualquer projeto humano. Aqui, vamos apresentá-lo apenas na perspectiva de
nossa temática. No caso, voltando a comparagáo com Merleau-Ponty, a carne tem, ñas
descrigóes sartreanas do desejo sexual, o sentido apenas da passividade, na qual tanto o
para-si mergulha, como, através da própria encarnagáo, procura seduzir o outro para
encarná-lo consigo também. Sartre descreve as nuances dessa relagáo, e de como ela sempre
acaba mal, no sentido em que visava a integragáo do para-si a própria materia sensível. A
carne nao é, em Sartre, unidade sensível do ativo e do passivo no corpo, como para MerleauPonty, mas é apenas o polo passivo e objetivo (ser em-si) de um modo de ser do para-si que,
por definigáo, é sempre ativo e nao pode ser em-si, isto é, deixar de ser seu próprio
ultrapassamento, e, portanto, sua negagao. No caso, desejando, o corpo deixa de ser a
contingencia do para-si em diregao de seus possíveis e torna-se o possível mais imediato: "O
ser que deseja é a consciéncia sefazendo corpo" (Sartre, 1940/1976, p. 439). Da agáo no mundo
enquanto sistema de utensilios que se remetem, o para-si procura ser na sensualidade,
encarnagáo ou volúpia próprias. O desejo revela, assim, minha própria carne. Da mesma
forma, a carne do outro nao é, como adiantamos em nota, sua presenga originaria para mim:
o corpo do Outro aparece como forma sintética em ato; nos vimos, nao se
poderia perceber o corpo do Outro como carne pura, quer dizer a título de
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objeto isolado tendo com os outros isto relaeoes de exterioridade. O corpo do
Outro é originalmente corpo em situacao; a carne, ao contrario, aparece
como contingencia pura da presenca (Sartre, 1940/1976, p. 439).
Por isso, conclui Sartre, "a caricia revela a carne despindo o corpo de sua agáo,
separando-o das possibilidades que o circundam: ela é feita para descobrir sob o ato a trama
de inercia - quer dizer o puro 'ser-lá' - que o sustenta" (Sartre, 1940/1976, p. 440).
Ora, minha encarnagáo provoca também a encarnagáo do mundo, na medida em que
deixo de visar as coisas como instrumentos de meus projetos, e passo a senti-las em sua
materialidade:
Assitn sou sensível, mais que a forma do objeto e mais que a sua
instrumentalidade, a sua materia... e descubro em minha percepcao
desejante algo como urna carne dos objetos (...) Desse ponto de vista, o desejo
nao é apenas empastamento de urna consciéncia por sua fatiddade, ele é
correlativamente a enviscacao de um corpo pelo mundo; e o mundo se torna
viscoso; a consciéncia se enterra em um corpo que se enterra no mundo.
Assitn o ideal que se propoe aqui é ser-no-meio-do-mundo; o para-si tenta
realizar um ser-no-meio-do-mundo como pro-jeto último de seu ser-nomundo; é por isso que a volúpia é freqüentemente ligada a morte - que é
também urna metamorfose ou ser-no-meio-do-mundo (Sartre, 1940/1976, p.
442-443).
Para Sartre, na medida do possível a realizagáo do desejo sexual é ausencia de sentido,
isto é, desestruturagáo do mundo, onde se esvaem as possibilidades do para-si em seu
mergulho na materia sensível (Sartre, 1940/1976, p. 445).
Considerares fináis
Nesse artigo procuramos mostrar a centralidade da nogao de desejo na ontologia
sartreana: o homem é desejo, na medida em que o que o constitui é urna falta de ser no seio
do ser-em-si das coisas. Ou ainda, o homem é projeto que configura o mundo na relagao com
o ser-em-si das coisas, tentando suprir a falta ontológica que o constitui.
O fracasso dessa tentativa decorre da definigao sartreana desse conceito de falta
enquanto nada ou nao-ser, que define a consciéncia ou o para-si do homem. O para-si é o
corpo próprio enquanto projeto de mundo, mas essa perspectiva nao se mistura com a
dimensao objetiva do corpo enquanto mais um em-si no mundo. O para-si traz consigo, atrás
de si, isto é, de forma sempre superada, essa dimensao objetiva de seu ser, cuja expressáo
mais acabada é a de seu corpo enquanto carne ou materia sensível. Nesse sentido destacamos
no artigo o contraponto com Merleau-Ponty, que procura pensar a existencia humana aquém
da oposigáo estabelecida por Sartre entre o ser-em-si e o ser-para-si, projeto que passa
necessariamente por outra concepgáo de encarnagao da consciéncia. Mas nossa intengáo,
aqui, foi antes de tudo destacar o sentido da filosofía sartreana através dessa diferenga, e
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apontar para a possibilidade de outra filosofia a partir da revisao de seus pressupostos
ontológicos. Ou seja, mais do que sugerir o encaminhamento da filosofia de Merleau-Ponty
como possível "solugáo aos impasses" da ontologia sartreana, o que nos motivou foi a
descoberta de como as temáticas sartreanas foram reelaboradas por seus contemporáneos a
partir de outros pressupostos ontológicos. Além do próprio Merleau-Ponty, que foi da
mesma geragáo e amigo de Sartre, cujo contraponto, aqui, apenas iniciamos com a nogáo de
carne, lembramos também de Deleuze e Guattari (da geragáo seguinte mais próxima)10, cujo
"materialismo" teria incorporado o sentido das descrigóes sartreanas numa concepgáo
maquínica do Ser. Apenas anunciando a perspectiva que nos parece promissora no resgate
dessa heranga, retomamos um de nossos exemplos, em que um passeio de bicicleta nao seria
mais urna "paixáo inútil", ou, pior, o risco de minha alienagáo através do meu estado de ser
com a bicicleta, mas eu e a bicicleta, como afirmam Deleuze e Guattari através de outros
inúmeros exemplos, formamos, de fato, urna nova composigáo de ser, onde meu devir
bicicleta nao é minha semelhanga com ela, mas um tornar-me outra coisa na relagáo com ela,
e o que importa agora é nao estancar o fluxo do desejo, e nem pensá-lo enquanto falta.
Enfim, é toda urna semántica que se refaz a partir de novos pressupostos ontológicos,
mas o que surpreende é a possibilidade de vislumbrar a apropriagáo do sentido do
movimento do pensamento sartreano, aqui destacado através da nogáo de desejo, numa
outra perspectiva por essas filosofías.
Referencias
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Intentionnalité (pp. 55-63). Paris: Vrin.
Deleuze, G. & Guattari, F. (1992). O que é a filosofia? (B. Prado Jr. & A. A. Muñoz, Trads.). Rio
de Janeiro: Editora 34. (Original publicado em 1991).
Heidegger, M. (1979). Que é metafísica? (E. Stein, Trad.). (Colegáo Os Pensadores). Sao Paulo:
Abril Cultural. (Original publicado em 1929).
Houaiss, A, Villar, M. S. & Franco, F. M. M. (2001). Dicionário de língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva.
Merleau-Ponty, M. (2002). La structure du comportement (2a ed.). Paris: PUF. (Original
publicado em 1942).
10
Poderíamos citar inclusive Foucault, mas feriamos que ter apresentado as relagoes concretas com o outro na
filosofia de Sartre (o que nao foi possível aqui), onde se desenvolve a ideia, muito explorada históricamente por
Foucault, da objetivagáo do sujeito através do olhar do outro. Enfim, é todo um grupo de filósofos franceses que
de alguma forma assumiram as temáticas sartreanas, mesmo que para lhe contrapor outro sentido ou
encaminhamento. De modo que o ocaso da nogáo de consciéncia na filosofia contemporánea nao deveria ocultar o
sentido do movimento das descrigóes sartreanas do vivido, que se encontra presente na atualidade desses autores.
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Merleau-Ponty, M. (1994). Fenomenología da percepgao (C. A. R. Moura, Trad.). Sao Paulo:
Martins Fontes. (Original publicado em 1945).
Merleau-Ponty, M. (1984). O filósofo e sua sombra (M. S. Chauí, Trad.). (Colegao Os
Pensadores). Sao Paulo: Abril Cultural (Original publicado em 1960).
Merleau-Ponty, M. (2000). A natureza (A. Cabral, Trad.). Sao Paulo: Martins Fontes. (Origináis
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Silva, F. L. (2003). Ética e literatura em Sartre. Sao Paulo: Edunesp.
Tréguier, J-M. (1996) Le corps selon la chair. Paris: Kimé.
Nota sobre o autor
Reinaldo Furlan - professor de filosofia no Departamento de Psicología da Faculdade
de Filosofia, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto - USP. E-mail: [email protected]
Data de recebimento: 17/06/2011
Data de aceite: 18/05/2012
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A reforma psiquiátrica em contextos periféricos: o Piauí em análise
Psychiatric reform in peripheral contexts: P iauí in analysis
Joao Paulo Macedo
Universidade Federal do Piauí
Magda Dimenstein
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Brasil
Resumo
Para contribuir com o debate sobre a reforma psiquiátrica em localidades periféricas,
objetiva-se conhecer a realidade piauiense, evidenciando os principáis desafios que
constituíram seu processo reformista e particularidades perante a realidade nacional e
regional. Trata-se de um estudo qualitativo com base no levantamento documental e
pesquisa participante para acompanhar as movimentacoes sociopolíticas mais recentes do
contexto investigado. Como resultado, identificou-se que o Piauí foi marcado por
significativo atraso quanto a implantacáo da rede psicossodal. Porém, rápidamente, o
Estado alcancou boa cobertura de servicos devido a participacao do Ministerio Público
como principal ator do processo reformista local. Se antes, o desafio era reverter a rede
manicomial de servicos para a psicossodal; hoje, mais do que nunca, é urgente fazé-la
operar sob tal perspectiva para compor acoes de continuidade do cuidado e afirmacáo da
cidadania, espedalmente em contextos periféricos ou "minúsculos", onde a cultura
manicomial ainda se mantém forte ou absoluta.
Palavras-chaves: Reforma Psiquiátrica - Historia; Piauí; Atencáo Psicossodal;
Formulacáo de Políticas.
Abstract
To contribute with the debate about psychiatric reform in peripheral places, this work
aims at knowing Piauí reality, highlighting the main challenges that built the reformist
process and particularities before national and regional reality. It is a qualitative study
based on documental research and oral memory (n=12), combined with participatory
research to accompany the most recent sodopolitical movements in the investigated
context. As a result, it was identified that Piauí was marked by significant delay on the
implantation of the psychosocial net. Nevertheless, it rapidly reached good coverage due
to participation of Public Ministration as main actor of local process. If before, the
challenge was to reverse the asylum service net to the psychosocial; today, more than
never, it is urgent to make it opérate under this perspective to compose continuity actions
on care and citizenship affirmation, especially in peripheral or "tiny"contexts, where
asylum culture is still strong and absolute.
Keywords: Psychiatric Reform - History; Piauí; Psychosocial Attention; Policymaking.
Introducto
O Movimento de Reforma Psiquiátrica em curso no país há pelo menos 30 anos tem
provocado inúmeros progressos quanto ao modo de se compreender e assistir as
necessidades em saúde Lmental da populagao. Nesse meio tempo avangou-se nos planos
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epistemológico, jurídico-político, técnico-assistencial e sociocultural da Reforma, apesar das
dificuldades inerentes a este campo (Amarante, 2007; Bezerra Jr., 2007). *
Quanto ao aspecto epistemológico, tivemos a ampliagáo dos pressupostos teóricos e
conceituais que definem as compreensoes sobre a loucura. Trabalhou-se na criagao de novos
referentes que qualificam a loucura como experiencia da existencia humana. Assim,
trabalhou-se no deslocamento: da centralidade do saber médico-psiquiátrico (ou do poder do
especialista) para a interdisciplinaridade de saberes; da nogáo de doenga para a de produgáo
da saúde; da ideia de isolamento como tratamento para circulagáo na cidade; do conceito de
doenga mental para existéncia-sofrimento; do julgamento de incapaz e tutelado para o de
cidadáo com foco na produgáo do cuidado e aumento do coeficiente de autonomía e
participagáo comunitaria (Costa-Rosa, 2000; Ramminger, 2006).
Tais compreensoes surgidas no plano teórico e conceitual deram sustentagáo para que
no ámbito político-jurídico fosse atualizado o tradicional aparato normativo que fixou as
bases legáis para urna relagáo excludente entre loucura/sociedade. Desde entáo diversas
movimentagóes foram realizadas, culminando com o fortalecimento da luta antimanicomial
enquanto movimento social, além da criagao de leis e portarías ministeriais que figuraram
como instrumentos de indugáo para a transformagao do parque manicomial brasileiro numa
rede de servigos de base comunitaria e territorial. Outros dispositivos também foram criados
para ampliar as agóes no plano técnico-assistencial da reforma: espagos de sociabilidade,
convivencia, moradia, trabalho e/ou ocupagáo laboral. Esses espagos foram criados com a
finalidade de contribuírem com a produgáo de outras possibilidades materiais de vida para
os usuarios e familiares assistidos pela Saúde Mental (Amarante, 2007; Bezerra Jr., 2007).
No plano sociocultural os avangos foram quanto ao amadurecimento político do
próprio movimento antimanicomial num tipo "diferenciado" de participagáo, luta e agáo
política, cujo propósito extrapola a questáo da saúde mental constituida apenas no campo
sanitario (Dimenstein & Liberato, 2009). Transformar o imaginario social relacionado á
loucura, por meio da articulagáo com outros setores da sociedade para que seja construida
urna cultura da solidariedade e do cuidado, trata-se de urna postura que pode (e deve) ser
efetuada por todo e qualquer cidadáo, agencia estatal e política pública, e nao somente por
técnicos e servigos especializados em Saúde Mental. Nesse aspecto, intenciona-se o desmonte
dos manicomios que configuram nao apenas os nossos estabelecimentos de saúde, mas,
principalmente, as relagóes que estruturam nossa sociedade e organizam nossas cidades,
compondo, inclusive, nossas subjetividades (Amarante, 2007; Dimenstein & Liberato, 2009).
Posto isso, compreendemos a Reforma Psiquiátrica como um processo social complexo,
considerando que foi constituido por um campo ampio, plural e heterogéneo de questóes,
1
Trabalho elaborado com base no terceiro eixo de análise da tese de doutorado do primeiro autor, e orientado
pelo segundo. Agradecemos pelo apoio financeiro da Coordenagao de Aperfeigoamento de Pessoal de Nivel
Superior (CAPES).
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além de configurar-se como contraditório e conflituoso devido aos diversos interesses,
objetivos e principios que permeiam o cenário da saúde mental no país (Amarante, 2007). O
maior exemplo da complexidade e contradigáo que permeia esse campo, talvez, esteja no fato
de conviverem no país dois modelos de atengáo em saúde mental: o asilar e o psicossocial.
Para Yasui e Costa-Rosa (2008), o modelo asilar ancora-se no entendimento de que a
loucura é uma doenga, portante, pressupoe um processo doenga-cura em que os
determinantes orgánicos sao seu principal agente causador. Além disso, os processos de
trabalho envolvidos estáo centrados na supressáo do síntoma, através da hospitalizagáo e da
mediealizagáo, ou seja, na objetificagáo do paciente, cujos saberes envolvidos encontram-se
hierarquizados pelo protagonismo médico. Diferente deste, o modelo psicossocial considera
os fatores políticos, culturáis e biopsicossociais como determinantes do sofrimento psíquico,
sendo que existe uma aposta nos meios básicos enquanto dispositivos de reintegragao social
além das psicoterapias e medicamentos. Portanto, investe-se na desinstitucionalizagáo dos
valores, verdades e práticas asilares, bem como na construgáo de redes sociais de cuidado e
experimentagao de novas possibilidades de vida e sociabilidades que escapem a produgao
em serie daquelas vistas nos manicomios. Por fim, no modelo psicossocial, a énfase da agáo
do cuidado estar no protagonismo e empoderamento dos usuarios que, em conjunto com a
comunidade, participam dos processos decisorios com agoes de cidadanizagáo.
Além da coexistencia do modelo asilar e psicossocial, nao podemos esquecer que a
Reforma Psiquiátrica no Brasil é atravessada: 1) pelos efeitos do fortalecimento das políticas
neoliberais que "acentúa a crise do Estado e o desinvestimento de políticas sociais,
particularmente, a saúde pública"; 2) pelo corporativismo médico para a aprovagáo do
Projeto de Lei do Ato Médico (PL 7.703/06), proposta completamente contraria ao SUS e aos
idearios da reforma sanitaria e psiquiátrica; e 3) pelo lobby das empresas médicas e da
industria farmacéutica que pressionam os poderes legislativo e executivo para operarem
agoes de desregulamentagáo das políticas universais, conformando-as sobre a lógica dos
interesses privados e de mercado (Vasconcelos, 2010, p. 10). Tais atravessamentos acabam
por provocar a precarizagáo e a fragilidade da estrutura e funcionamento da rede
psicossocial de atengáo, seja no sentido de tornar mais moroso a ampliagáo dos servigos e a
criagáo de outros dispositivos assistenciais; seja no sentido de fazer com que a rede de
servigos continué fragmentada e desarticulada, sem qualquer agáo intersetorial, voltada
apenas para o consumo de procedimentos e agoes isoladas em saúde mental.
As demandas que tém surgido para o setor também sao prova do complexo processo
que configura a saúde mental na atualidade. É cada vez mais urgente a necessidade dos
servigos, em conjunto com outros setores do SUS e demais políticas públicas, construírem
respostas efetivas para: a) o problema do crack e a internagáo compulsoria de dependentes
químicos; b) a questáo dos adolescentes (usuarios de drogas) em confuto com a lei; c) a
atengáo á crise e urgencia psiquiátrica; d) os casos de pacientes crónicos, populagáo de rúa ou
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casos que envolvem o problema de transtornos psiquiátricos menores; e) a carencia de agoes
para o público infantil, especialmente os casos de autismo ou mesmo em torno da questao da
medicalizagáo do sujeito escolar; f) o fortalecimento do cuidado e suporte familiar; g) o
surgimento de sofrimento psíquico fruto do contexto de violencia social e situagoes de
catástrofes/desastres, etc.; por fim, h) a falta de assisténcia a saúde mental do trabalhador,
notadamente do trabalhador da saúde (Vasconcelos, 2010).
Dentre varios outros elementos que indicam a complexidade da saúde mental,
gustaríamos de enfatizar pelo menos um, que, em nossa opiniáo, torna ainda mais plural,
heterogéneo e contraditório o processo de reforma psiquiátrica no Brasil, trata-se do
movimento de expansáo e interiorizagáo da rede psicossocial em todo país. A prova disso é
que dos 1.742 Centros de Atengáo Psicossocial (CAPS) em funcionamento, a maioria está
implantada em municipios de 20.000 a 70.000 habitantes (47,2%) ou em municipios de 70.000
a 200.000 habitantes (26,5%) (Brasil, 2012). Quanto ao Núcleo de Apoio a Saúde da Familia
(NASF), que tém a responsabilidade pelo suporte e o apoio em diversas linhas de cuidado na
atengáo básica, inclusive na saúde mental, das 1.733 equipes em funcionamento, cerca de 90%
localizam-se nos municipios do interior do país. Além disso, ainda há os casos em que o
próprio municipio, especialmente os de menor porte, organiza a assisténcia em saúde mental
por meio de urna equipe mínima que realiza agoes na atengáo básica. Minas Gerais, por
exemplo, conta com 300 equipes de saúde mental na atengáo primaria em saúde (Volpe,
Silva, Carmo & Santos, 2010). Desse modo, a questáo da descentralizagáo dos servigos de
saúde mental para regioes mais periféricas, especialmente para municipios de pequeño e
medio portes em todo o país, é urna realidade. Trata-se, portanto, de um cenário que
aprofunda o processo de Reforma Psiquiátrica para as regioes mais interioranas e periféricas
do país.
As ideias quanto á descentralizagáo das políticas de saúde e saúde mental surgiram
com o movimento sanitario e de luta antimanicomial ocorrido nos anos 1980, meio ao
processo de redemocratizagáo do Brasil. A descentralizagáo enquanto tema da agenda
política da época considerava urgente a ideia de fortalecer os municipios tanto na oferta de
servigos essenciais á populagáo, quanto na participagáo dos cidadáos no controle sobre os
governos locáis. No entanto, foi nos anos 1990, com a descentralizagáo políticaadministrativa, que os municipios passaram a experimentar maior autonomía financeira e
poder de decisáo para prover á populagáo de servigos, além da responsabilidade de
desenvolver dispositivos de participagáo política e controle social ñas instancias decisorias
(Cotrim, 2006).
No caso do Sistema Único de Saúde (SUS), a diretriz da descentralizagáo foi efetuada
pela mudanga no modelo de gestáo em que os municipios passaram a assumir a coordenagáo
e o gerenciamento da política de saúde em cada territorio (Oliveira, 2009). A IX Conferencia
Nacional de Saúde (1992) - que teve como tema central "Municipalizagáo é o caminho" - e o
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Conselho Nacional dos Secretarios Municipais de Saúde (CONASEMS), por exemplo,
desempenharam papel político importante em torno desse processo. Outros dispositivos que
também contribuíram com a descentralizagao do SUS foram as Normas Operacionais
Básicas/NOB (1991,1993 e 1996), a Norma Operacional de Assisténcia a Saúde/NOAS (2001)
e o Pacto da Saúde (2006), que funcionaran! como ferramenta de indugao, definindo formas
de transferencias de recursos, modalidades de pagamento e condigoes de gestao na oferta e
definigao do modelo de atengao de estados e municipios (Cotrim, 2006; Santos & Andrade,
2007).
Como resultado, alcangamos a municipalizagao de 97,6% dos servigos da atengao
primaria em saúde e 60% da atengao secundaria em todo o país. Quanto as unidades de
internagao, a descentralizagao ficou por conta da estadualizagao, sendo que 56,12% dos
servigos estao sob a responsabilidade das Secretarias Estaduais de Saúde (Oliveira, 2009).
Apesar dos avangos, nao sao poucas as dificuldades que enfrentam os municipios quanto ao
processo de descentralizagao do SUS: 1) problemas quanto ao financiamento e falta de
definigoes claras quanto a participagao de cada ente federado na provisao dos recursos; 2)
fragilidade quanto a organizagao de urna rede mínima de servigos no próprio territorio para
assegurar o acesso e a atengao a populagao; 3) obstáculos para gerir a política de saúde local
ou de articular redes regionais de servigos devido a precariedade de sua estrutura
administrativa; 4) transformagao dos municipios e estados em meros gestores de projetos e
programas federáis; 5) transferencia de responsabilidades para os municipios sem autonomía
e poder de decisao; 6) burocratizagao das agoes de descentralizagao dos servigos hospitalares
(Wagner, 2006).
Por outro lado, nao podemos esquecer 70% dos municipios brasileiros contam com
populagao de até 20.000 habitantes, portanto, caracterizam-se como de pequeño porte. Além
disso, sao municipios marcados pela insuficiencia administrativa e económica em fungao da
dependencia das transferencias fiscais do governo federal; logo, reféns das desigualdades
históricas do país. Específicamente quanto a reorganizagao do sistema de saúde, é fato que o
processo de descentralizagao prosseguiu de maneira heterogénea, inclusive redundando em
desigualdades na oferta de servigos, devido a diversidade do contexto político e sanitario das
cidades e regióes de todo o país (Oliveira, 2009).
Quanto a Saúde Mental, o debate sobre a descentralizagao e regionalizagao da atengao
ganhou forga no plano nacional a partir da III Conferencia de Saúde Mental (2001). Nesta,
além de responsabilizar as tres esferas de governo quanto ao desenvolvimento, gestao e
financiamento da política, o propósito era fortalecer a participagao dos municipios na
construgao de urna rede integral de servigos priorizando agoes territoriais e de base
comunitaria. Tal qual ocorrido com a organizagao dos servigos de saúde em geral, o processo
de descentralizagao da saúde mental também progrediu de maneira heterogénea devido as
condigoes políticas e sanitarias de cada localidade. O processo de construgao da rede
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psicossocial ora avangou em localidades longínquas e periféricas, ora se deu ñas áreas de
maior concentragáo populacional em grandes centros urbanos.
Em 2002, apenas um ano depois da aprovagáo da Lei 10.216 (Brasil, 2002), as regioes
Sul e Sudeste figuravam como as localidades de melhor cobertura CAPS do país, 29% e 26%
respectivamente. Atualmente, tal cenário foi alterado com o aprofundamento da expansao e
regionalizagáo da rede psicossocial, resultando numa distribuigáo mais equánime da
cobertura CAPS em todo o país, apesar da fragilidade em algumas regioes: Sul (88%),
Nordeste (83%), Sudeste (58%), Centro-Oeste (49%) e Norte (42%) (Brasil, 2012).
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Figura l:Mapa Cobertura CAPS/2011 (BRASIL, 2012).
O atual mapa da cobertura CAPS revela o quanto se avangou na expansao do acesso
aos servigos de base territorial e comunitario em saúde mental no país. Nesse aspecto,
analisando a distribuigáo dos servigos, a reforma psiquiátrica se complexificou bem mais,
considerando, como bem expressou Bezerra Jr. (2007), que num país "de dimensoes
continentais e enorme diversidade cultural, nao é possível construir um modelo assistencial
que sirva igualmente para as megalópoles e as pequeñas cidades do interior" (p. 244).
Tal problematizagao tem sido uma preocupagao da própria literatura especializada,
que ao mesmo tempo em que indica experiencias exitosas da reforma psiquiátrica ñas
principáis capitais, centros urbanos e regioes metropolitanas do país, ressalva que
municipios de menor porte, inclusive aqueles localizados ñas regioes mais periféricas,
também tém sido paradigmáticos no processo de reforma psiquiátrica no Brasil. Este é o caso
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de Alegrete-RS (Ferrari & Mulazzani, 1997), Bagé-RS (Rocha, Rocha & Magalháes, 1995) e
outros localizados no Rio Grande do Sul (Consoli, Hirdes & Costa, 2009; Fagundes, 2010);
municipios do interior paulista (Luzio & L'Abbate, 2009) ou do interior mineiro, como por
exemplo, Andradas-MG (Antunes & Queiroz, 2007), Prados-MG e Barbacena-MG (Passos,
2009); ou ainda pertencentes ao Nordeste brasileiro, como por exemplo, Aracaju-SE (Oliveira
& Passos, 2007), Camaragibe-PE (Casé, 2001), Campiña Grande-PB (Andrade, Medeiros &
Patriota, 2010; Kinker, Cirilo, Campos, Robortela & Medeiros Jr., 2010), Caicó-RN e a regiao
do Seridó-Potiguar (Dias, Araújo, Freitas & Biegas, 2010a; Dias, Ferigato & Biegas, 2010b),
Quixadá-CE (Sampaio & Barroso, 2001), Sobral-CE (Pereira & Andrade, 2001), e outros (Rosa,
2006) que fazem referencia, de alguma maneira, sobre os desafios de avangar nesse campo
em localidades periféricas.
Apesar da expansao e interiorizagao dos CAPS em todo país, no geral, a atengao
efetuada nos municipios de pequeño e medio portes tém se dado com a inclusao de equipes
de saúde mental na atengao básica do SUS, ou mesmo reforgada com a presenga do NASF em
suas localidades. Na análise de Luzio e L'Abbate (2009) em dois municipios do interior de
Sao Paulo, por exemplo, um de pequeño e outro de medio porte, constatou-se que mesmo
com a implantagáo de novos servigos ou equipes de saúde mental, tal feito nao contribuiu de
forma significativa para que os municipios assumissem os principios e diretrizes do projeto
da reforma psiquiátrica. Isso por que os municipios estáo bem mais preocupados em assumir
a "responsabüidade de cuidar de seus usuarios (...) reproduzindo apenas o modelo
psiquiátrico hegemónico" (p. 106). Antunes e Queiroz (2007), por sua vez, ao analisarem um
municipio de pequeño porte de Minas Gerais, que conta com um CAPS integrando a rede de
saúde local, expuseram que apesar dos profissionais entrevistados reconhecerem a
complexidade da questao da saúde mental e do adoecer psíquico, ainda continuam a recorrer
a hegemonía do saber médico, configurando seus processos de trabalho a partir da relagáo
queixa-conduta, cuja principal agáo é a medicamentosa. Realidade semelhante foi observada
no Rio Grande do Sul e na Paraíba, que apesar de constarem como os Estados com melhor
cobertura psicossocial do país, muitos dos seus municipios contam com urna atengao em
saúde mental reduzida somente ao uso da medicagáo. No caso de crise e urgencia
psiquiátrica, esses mesmos municipios recorrem a tradicional prática de internagáo em
hospitais psiquiátricos dos centros mais desenvolvidos do seu Estado (Consoli e outros, 2009;
Fagundes, 2010).
No caso de municipios "minúsculos", aqueles que sequer tém o número de habitantes
suficientes para instalar um servigo CAPS (menor que 20.000 hab.), Boarini (2009) é
contundente ao referir que nestas localidades "é declarada a inexistencia da atengao a saúde
mental na perspectiva extra-hospitalar"; e mais, que "os principios da reforma psiquiátrica
sao estranhos entre si" na maioria dessas realidades (p. 43-44). A autora ainda menciona que,
muitas vezes, profissionais e gestores dos municipios de pequeño porte nao tém claro que a
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saúde mental deve constar como urna das linhas guia da agao de cuidado a serem
desenvolvidas na atengao básica. Ademáis, as condigoes sociais em que vivem as familias, a
falta de suporte institucional das prefeituras para oferecer servigos de qualidade e agoes de
cidadania; a forga da cultura manicomial local que demanda a tradicional prática da
supressáo dos sintomas, seja via medicalizagáo, seja via internagáo; além da carencia de
trabalhos geradores de autonomia e empoderamento dos usuarios e familiares, portanto,
pouco implicados com a reabilitagáo psicossocial dos pacientes, todas elas sao questoes que
tornam mais difícil o trabalho nos municipios periféricos (Luzio & L'Abbate, 2009).
Manter a política de saúde mental ñas localidades periféricas sob tal perspectiva
significa, para Boarini (2009), apenas reafirmar um modelo assistencialista de atengao que, na
contramao do SUS e da reforma psiquiátrica, fragiliza ainda mais as poucas respostas que os
servigos dáo ao usuario e as necessidades em saúde mental da populagáo. O mais crítico é
que esse tipo de realidade nao é vivenciado somente por municipios de pequeño porte, mas
ñas grandes capitais, por exemplo, Manaus-AM (Colombarolli e outros, 2010).
Para contribuirmos com o debate sobre o processo de Reforma Psiquiátrica em
localidades periféricas, objetivamos com esse estudo apresentar as movimentagoes
reformistas do contexto piauiense e suas particularidades perante a realidade nacional e
regional. Tal propósito se justifica pelo entendimento de que semelhante a outras realidades
do país, o contexto piauiense concentra alguns acontecimentos que sinaliza bem os desafios
atuais da tentativa de consolidagáo da Política Nacional de Saúde Mental em muitas
localidades do país. Na verdade, por sua característica periférica, muito embora conté com
algumas cidades influentes na regiáo do meio-norte brasileiro e adjacéncias, o Piauí reúne
um misto de questoes no tocante a saúde mental, que ora se aproxima dos desafios dos
principáis Estados e capitais do país, ora dos chamados municipios "minúsculos".
Sobre os primeiros, enumeramos: a) baixa capacidade técnico-assistencial e de
empreendimento de agao política por parte dos trabalhadores quanto a reversáo do
paradigma asilar para o psicossocial, bem como na efetivagáo da Estrategia de Atengao
Psicossocial no cotidiano dos servigos; b) dificuldades de financiamento e de gestáo da
política de saúde; c) presenga marcante e direcionadora do poder psiquiátrico na
conformagáo da política de saúde mental local; d) além da forte cultura manicomial instalada
no tecido social devido a forga da estrutura asilar do Estado (Yasui & Costa-Rosa, 2008;
Vasconcelos, 2010). Quanto ao outro grupo de desafios, há aqueles que sao específicos da
realidade local em fungáo do Piauí constar como um dos Estados de menor capacidade
financeira da federagáo, como, por exemplo, dificuldades quanto a captagáo de recursos,
além de apresentar baixa capacidade gerencial e níveis incipientes de desempenho
institucional, inclusive para a execugáo dos projetos e programas do governo federal. Tal
realidade é responsável pela fragilizagáo da rede de servigos primarios e especializados em
saúde pública que, acompanhada das dificuldades institucionais, gerenciais, financeiras e
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políticas do setor, acarretou significativo atraso do movimento de reversao da rede
manicomial para a psicossocial na realidade piauiense.
Para dar cabo a esta investigagáo, objetivamos de forma mais específica: a) identificar
os principáis aspectos que configuraram as agóes da reforma psiquiátrica do Piauí; b)
analisar o processo de reforma psiquiátrica local a partir das dimensoes técnico-assistencial,
político-jurídico e sociocultural, evidenciando os principáis desafios constituidos; c)
identificar as principáis movimentagoes politico-profissionais que integraram as arenas de
luta e constituíram a política de saúde mental em curso no Piauí.
Método
Trata-se de um estudo de base qualitativa, apoiada no levantamento documental e
pesquisa participante. No primeiro momento, relacionamos o histórico dos principáis
espagos de debate/discussáo e demais arenas de luta política em torno do processo de
Reforma Psiquiátrica no Estado; além disso, identificamos os principáis atores institucionais
envolvidos e colhemos registros documentáis e alguns depoimentos, pertinentes a historia da
Saúde Mental no Piauí. A escolha justifica-se pelo entendimento de que para garantir a
realizagao de "eventos" nesse campo, normalmente, faz-se necessário urna serie de
articulagoes de ordem pessoal, profissional, associativa e institucional. Seguido disto, ainda
há o fato de que tanto nos momentos preparatorios quanto propriamente na realizagao dos
eventos, esses espagos se constituem em verdadeiras "arenas" de debate e confronto de
opinioes entre os grupos que compoem o coletivo social em torno da reforma psiquiátrica.
Tais movimentagoes fazem desse cenário um interessante palco de confluencia de forgas,
jogos de interesses, filiagoes, acordos, e reavaliagáo de posturas e estrategias dos atores
envolvidos nesse contexto. Ademáis, é comum após cada evento emergir novos atores, que,
muitas vezes, produzem novas agoes e estrategias para avangar ou dificultar o movimento de
reforma psiquiátrica em curso no país.
Deste modo, tomamos como análise os relatórios de gestáo, atas de reuniáo, projetos,
folders, relatórios e anais da realizagao dos eventos a partir de fontes primarias e
secundarias, além do depoimento dos principáis atores institucionais, através dos seus
representantes: Gerencia Estadual de Saúde Mental do Piauí (n=5); 11° Conselho Regional de
Psicología - Segáo Piauí (n=3); Associagáo Psiquiátrica do Piauí - APP e a extinta Associagáo
de Saúde Mental Comunitaria do Piauí - ASMC-PI (n=2); Associagáo dos Portadores de
Transtorno Mental, Familiares e Pessoas interessadas na Saúde Mental do Piauí - Áncora
(n=2). Como ferramenta de registro, estruturamos um protocolo de coleta de dados para
organizar as informagóes levantadas por meio dos registros documentáis e oráis,
descrevendo cada evento por: 1) data de acontecimento; 2) cenário e movimentagoes
sociopolíticas; 3) pontos de tensáo; 4) desdobramentos; 5) atores envolvidos.
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No segundo momento, acompanhamos de forma direta as movimentagoes
sociopolíticas (debates, fóruns de discussao e/ou de proposigao) a partir dos eventos
comemorativos do Dia Nacional de Luta Antimanicomial (18 de Maio) e do Dia Mundial da
Saúde Mental (10 de Outubro) ocorridos no bienio 2009/2010 em Teresina-PI, além das
etapas municipal e estadual da IV Conferencia Nacional de Saúde Mental realizada em 2010.
E de forma indireta, acompanhamos as agoes do Grupo de Trabalho em Saúde Mental
constituido para acompanhar e dar respostas sobre a problemática do fechamento de um
grande hospital psiquiátrico privado localizado na capital. Como ferramenta de investigagáo
deste momento utilizou-se a observagáo participante e o registro de diario de campo.
Quanto ao tratamento dos dados, trabalhamos com análise de conteúdo temática com
base em Minayo (2000), tendo como procedimentos: categorizagáo, inferencia e interpretagao
dos dados, relacionando-os com o debate sobre a desinstitucionalizagáo psiquiátrica e o
paradigma psicossocial (Amarante, 2007; Costa-Rosa, 2000; Yasui, 2010; Rosa, 2004, 2006;
Vasconcelos, 2010). Os resultados foram organizados a partir de seis importantes eventos
deflagradores de movimentagoes em torno dos aspectos assistencial, jurídico-político e
sociopolítico do processo reformista local, sao eles: a) instituigáo do PSMC-PI (1980); b)
realizagáo do Plano de Saúde Mental de Teresina (1990); c) propostas dos projetos de lei
estadual e municipal de saúde mental; d) estruturagao da rede psicossocial do Piauí; e)
movimentagoes sociopolíticas locáis e as etapas municipal e estadual da IV CNSM; f)
fechamento do Sanatorio Meduna.
Resultados
De acordó com os dados levantados, a Reforma Psiquiátrica do Piauí pode ser divida
em dois grandes momentos: antes e depois de 2001. O primeiro, caracterizado como
"Movimento de Reforma da Assisténcia Psiquiátrica", trata-se de um longo período que
iniciou ainda nos anos 1940 e perdurou até a aprovagáo da Lei 10.216 em 2001. Ao longo
desses 60 anos, a reforma piauiense foi entremeada de idas e vindas, cujo principal objetivo
foi o aperfeigoamento da estrutura asilar do Estado, notadamente centrado nos dois hospitais
psiquiátricos da capital, um público - Hospital Areolino de Abreu (HAA) e o outro privado Sanatorio Meduna (SM), consequentemente o fortalecimento da cultura manicomial local.
Entre os anos 1940 e 1970, o debate sobre a assisténcia psiquiátrica no Piauí ficou
centrado básicamente na estruturagao e aperfeigoamento administrativo-assistencial dos dois
pilares da estrutura manicomial do Estado: HAA e o SM. Além disso, tal debate teve um
caráter personalista, pois foi conduzido sob o poder de influencia dos principáis nomes da
psiquiatría local. Na década seguinte, o debate sobre a assisténcia psiquiátrica passou a ser
conduzido por atores institucionais, centralmente pela Associagáo de Saúde Mental
Comunitaria do Piauí (ASMC-PI) que seguía as orientagoes e preceitos da filiada local (APP)
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da Associagao Brasileira de Psiquiatria (ABP). As agoes que caracterizaram a década de 1980
também estiveram voltadas para melhoria da estrutura física e administrativo-financeira dos
hospitais psiquiátricos, aumentando sua capacidade de internagáo e atendimento
ambulatorial. Porém, foi na mesma década que surgiu a proposta de ampliar o campo de
agáo-profissional e poder psiquiátrico para fora dos muros dos hospitais com servigos
ambulatoriais em todo o Estado. No campo político foram empreendidos esforgos por parte
dos psiquiatras para afastar qualquer tentativa de chegada do discurso e o ideario
antimanicomial, que ganhou maior forga nos anos 1980/90 no plano nacional, as térras
piauienses. A estrategia dos psiquiatras locáis para inocular o poder de contestagáo do
movimento de luta antimanicomial em relagáo ao mandato social da psiquiatria foi rebatizálo sob o discurso de melhoria da assisténcia psiquiátrica, portante, de "humanizagáo" do
hospital. Com esse propósito nao só foi preservado o mandato social da psiquiatria como foi
fortalecido a centralidade da forga e hegemonía da estrutura asilar do Piauí.
O segundo momento iniciou com o surgimento da forga antimanicomial no Estado, que
promoveu a entrada do debate da Luta Antimanicomial nos principáis espagos de discussáo
e demais arenas políticas em torno do "movimento de reforma psiquiátrica" local. Tal
acontecimento acirrou os embates entre os atores sociais envolvidos, e mesmo com as
dificuldades para a abertura de novos servigos no Estado, houve significativos avangos
quanto a reversáo da rede asilar de servigos para a psicossocial. A maior prova foi que em
2002 o Piauí figurava entre os Estados de pior cobertura CAPS do país, atingindo apenas 3%
da populagáo (Brasil, 2003) e atualmente alcangamos a quinta posigáo, entre os Estados de
melhor cobertura do país, com 91% da populagáo coberta em saúde mental (Brasil, 2012).
Para compreendermos melhor sobre as movimentagóes reformistas no contexto local e
suas particularidades, além de justificar tal periodizagáo, aprofundaremos os principáis
aspectos que caracterizaram a implantagáo da política de saúde mental a partir dos
eventos/acontecimentos que marcaram a historia da reforma psiquiátrica do Piauí.
1. Programa de Saúde Mental Comunitaria - PSMC-PI
O PSMC-PI foi um modelo de gerenciamento da assisténcia psiquiatria no Estado que
perdurou por toda a década de 1980. Trata-se da primeira Política de Saúde Mental do Piauí
e sua implantagáo só foi possível por que ao longo dos anos 1980 (e antes disso, desde 1940)
os psiquiatras conquistaram de forma paulatina seu espago junto a classe política e a
sociedade piauiense em geral, com agóes que intensificaran! a hegemonía da forga e poder
psiquiátrico na condugáo do movimento de "reforma psiquiátrica" local.
Criado sob os moldes da experiencia americana da "psiquiatria preventiva" de Gerald
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Caplan,2 com o PSMC-PI os psiquiatras piauienses fortaleceram os hospitais psiquiátricos e
ampliaram a assisténcia para áreas periféricas da capital, além de regionalizarem os servigos
ambulatoriais de psiquiatria para os municipios do interior. Por um lado, o referido
programa descentralizou a assisténcia psiquiátrica localizada exclusivamente na capital e
ampliou o acesso a populagáo com a estruturagáo de núcleos regionais situado ñas principáis
cidades do Estado (Parnaíba, Campo Maior, Floriano e Picos), além de viabilizar a
contratagáo de mais profissionais, especialmente psiquiatras e psicólogos. Por outro lado, a
experiencia piauiense repetiu as mesmas imprecisoes ocorridas pela psiquiatria americana
que, apesar de criar novos servigos e aumentar o número de pessoas assistidas, ampliou o
campo de agáo do psiquiatra do hospital para a comunidade, estendendo o conceito de
doenga para o de desvio, mal-estar social e desajustamento. Tal operagáo acabou por
patologizar/medicalizar os problemas sociais, produzindo novas demandas para o hospital
(Desviat, 1999).
Os hospitais psiquiátricos piauienses sequer foram colocados em questáo com o
Programa de Saúde Mental Comunitaria, muito menos o mandato social da psiquiatria. Pelo
contrario, as agoes dos psiquiatras resultaram no fortalecimento da estrutura e do parque
manicomial do Estado, bem como passaram a interferir sobre a opiniáo pública
(trabalhadores, familiares e sociedade em geral), resfriando, no ámbito local, todo o debate
crítico-político vivido no plano nacional sobre a desinstitucionalizagáo e luta "Por urna
sociedade sem manicomios".
2. Plano de Saúde Mental de Teresina
Trata-se da primeira política de saúde mental da capital que perdurou por toda a
década de 1990. Foi estruturado com base no modelo de gerenciamento da assisténcia
psiquiatria firmado pelo PSMC-PI no sentido de revitalizá-lo. Os bastidores para a
construgáo do referido plano remonta o embate entre dois grupos, aparentemente opostos,
porém, surgidos de dentro do Hospital Areolino de Abreu, com finalidades semelhantes
quanto a condugáo das movimentagoes políticas em torno da diregáo da Saúde Mental na
capital. O primeiro grupo, ligado ao Governo do Estado, defendía únicamente o
fortalecimento dos hospitais psiquiátricos com a ampliagáo da sua capacidade de internagáo
e atendimento; enquanto o segundo, ligado aos representantes do antigo PSMC que, sem
espago político na gestáo estadual, abrigaram-se na gestáo municipal defendendo o
fortalecimento dos hospitais e o projeto de ampliar os raios de agáo da categoría com a
ambulatorizagáo da psiquiatria, pelo menos, na capital.
2
Principal teórico da "psiquiatria preventiva" que buscava meios alternativos (assistencial e gerencial-financeiro)
as instituigoes psiquiátricas, já que era evidente a falencia do modelo hospitalar. As bases teóricas desta escola
foram explicitadas no livro "Principios de Psiquiatria Preventiva (1964)" onde expós que todas as doengas
mentáis poderiam ser prevenidas, desde que detectadas precocemente (Desviat, 1999).
Memorándum 22, abr/2012
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Macedo, T. P. & Dimenstein, M. (2012). A reforma psiquiátrica em contextos periféricos: o Piauí em análise.
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É importante ressaltar que o referido plano municipal ocorreu meio ao processo de
"desospitalizagáo saneadora" do Ministerio da Saúde, que nesta época imprimiu urna
rigorosa política de redugáo de leitos com poucos subsidios para financiar a assisténcia extrahospitalar (Vasconcelos, 2008). Desse modo, em vez de ampliagáo dos leitos como pretendido
por ambos os grupos, a equipe que conduziu a execugáo do referido plano conseguiu resistir
a forga do poder psiquiátrico e estruturou nove servigos ambulatoriais em saúde mental,
composto por equipes multidisciplinares, em centros e unidades de saúde nos bairros
periféricos da capital. Além disso, a exemplo do que ocorria no plano nacional, foi
implantado em 1994, pelo municipio, o Núcleo de Apoio Psicossocial (NAPS) dirigido
específicamente para o atendimento ambulatorial de funcionarios do municipio com
problemas relacionados a álcool e drogas. Porém, alguns anos depois, esse servigo logo foi
desativado por falta de incentivos e a pouca procura pela populagáo-alvo ou da sociedade
teresinense em geral.
Na segunda metade dos anos 1990, o movimento de redugao de leitos é intensificado
no Estado pelo Ministerio da Saúde, que poe em exercício a portaria de reclassificagao dos
hospitais psiquiátricos, reduzindo de 817 para 580 o total de leitos na capital (Passamani,
2005). Portanto, um corte financeiro e assistencial drástico para urna realidade únicamente
centrada no modelo hospitalar. Como tentativa de resolver a crise no setor, diferente do
plano nacional que se investía na abertura de servigos extra-hospitalares e de base territorial,
no Piauí houve o fortalecimento das agoes hospitalares com servigos de semi-internagáo,
através da instalagáo do Instituto de Psiquiatría Infanto-Juvenil (1997) dentro dos muros do
Hospital Areolino de Abreu, e a abertura dos Hospitais-dia em Picos e Parnaíba, cada um
com 30 leitos (Rosa, 2004).
Tal agáo colocou a Saúde Mental do Piauí na contramáo das agoes ocorridas no ámbito
nacional, cuja prioridade era a organizagáo de servigos abertos e territoriais tipo
CAPS/NAPS, além da redugao de leitos em hospitais psiquiátricos e a abertura de leitos
psicossociais em hospitais gerais.
3. Projeto de Leí Estadual e Municipal de Saúde Mental
No plano jurídico-político, a saúde mental piauiense foi marcada no final de 1990 por
dois eventos: um na esfera do legislativo estadual; outro na esfera municipal. Desta vez,
houve o surgimento de novos atores, apesar da habilidade dos defensores do hospital na
corrida para a manutengáo da centralidade da sua forga e poder psiquiátrico na condugáo da
política local.
A despeito dos intensos debates e movimentagoes sociopolíticas ocorridas no plano
nacional sobre o projeto de Lei Paulo Delgado, inclusive com aprovagoes de similares em
varios Estados e municipios brasileiros, no Piauí tal discussáo só foi iniciada em 1997 quando
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materia semelhante foi apresentada no legislativo estadual pelo Dep. Olavo Rebelo (PT).
Entretanto, a discussao do projeto de lei estadual foi postergada por seu relator, o entao
médico e Dep. Kleber Eulálio (PMDB), até o tempo necessário para ser elaborado um
substituto por um dos representantes da Associagáo Piauiense de Psiquiatria. Assim feito, o
projeto reformulado foi apresentado áquela casa pelo médico e Dep. Wilson Martins (PSDB)3
(Rosa, 2004). A partir de entao o plano legislativo passou a ser o novo espago de investimento
político dos psiquiatras piauienses.
Com os dois projetos de lei tramitando no cenário reformista local, abrem-se novos
tempos de embates e disputas com a realizagao de eventos, ora proposto pelo Dep. Olavo
Rebelo, ora pelos psiquiatras do Hospital Areolino de Abreu aliados ao Dep. Wilson Martins
para a construgao de urna lei estadual para a saúde mental no Piauí. Os debates ocorreram
básicamente em torno do tema fechamento ou manutengao do hospital psiquiátrico. A
discussao alcangou a participagáo em massa dos psiquiatras da cidade, sendo tímida a
participagáo de outros profissionais desse segmento (Rosa, 2004). Os motivos para tanto era
que os trabalhadores estavam bem mais interessados na melhoria da estrutura dos servigos
existentes para que lhes fossem garantido o melhor espago para o exercicio de seus atos
profissionais.
Ao final das discussoes no legislativo estadual ficou evidenciado a forga dos
psiquiatras pela manutengao do hospital, acompanhado da ampliagáo dos servigos
ambulatoriais e abertura de leitos em hospitais gerais. No entanto, em fungáo da indefinigáo
de um consenso quanto aos leitos nos hospitais gerais, o projeto nao mais foi discutido e
acabou esquecido na Assembleia Legislativa do Estado (Rosa, 2004).
No ano de 1999, surge urna nova cena no plano legislativo local, porém no ámbito
municipal. O vereador Anselmo Dias (PCdoB) propoe um projeto de Lei para Teresina, sob
os moldes do projeto do Dep. Paulo Delgado, em que postulava a expansáo dos servigos
ambulatoriais, bem como a abertura de servigos substitutivos ao hospital na capital. Pela
primeira vez no meio legal, normativo ou mesmo sociopolítico, a expressáo "servigos
substitutivos" é pronunciada no Piauí como alternativa de mudanga do modelo da
assisténcia psiquiátrica oferecido na cidade. Rápidamente os psiquiatras se organizaram e
realizaram fortes investidas entre os profissionais dos hospitais psiquiátricos propalando que
caso o projeto de lei em questáo fosse aprovado, isso geraria o fechamento do hospital e
comprometería os empregos de todos os técnicos (Rosa, 2004).
Naturalmente o plenário daquela casa legislativa contou com a presenga massiva de
profissionais do setor, tendo o debate circulado em torno das expressoes "alternativo",
"complementar" ou "substitutivo", quanto á fungáo dos servigos extra-hospitalares que a
materia previa. Além disso, o debate fez ouvir os profissionais de Saúde Mental presentes no
plenário, que optaram pela proposta de servigos complementares em detrimento da
3
Wilson Martins é o atual governador do Estado pelo PSB (2011-2014).
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concepgao "servigos substitutivos". A justificativa: o medo da perda dos seus empregos.
Dada as dificuldades para se chegar a um consenso, a vereadora Flora Izabel (PT) aliou-se ao
propositor do projeto e, juntos, elaboraram urna materia substitutiva que foi aprovada com o
texto final concebendo o CAPS como servigo complementar ao hospital (Lei Municipal N°.
2.987 de 17.05.2001) (Guimaráes, Rosa & Evelim, 2008). Decisao que acabou conservando a
hegemonia do hospital e dos psiquiatras ñas decisoes sobre o rumo da Política de Saúde
Mental do Estado.
Como forma de resistir ao jogo de forgas instaurado no plano jurídico-político, os
defensores da luta antimanicomial no Estado buscaram conhecer de perto a realidade dos
CAPS no Ceará, para um maior aprofundamento sobre as propostas da Reforma Psiquiátrica
e sobre o funcionamento do modelo psicossocial. Por outro lado, a movimentagáo dos
psiquiatras piauienses nao ficou restrita apenas ao cenário local, chegou inclusive a ter
incursoes no plano nacional quando o Senador Lucídio Portella (PPB-PI), irmáo de Eustáchio
Portella - respeitado psiquiatra e professor livre-docente do IPUB/UFRJ, propós materia
substitutiva abrandando a radicalidade da proposta do Dep. Paulo Delgado (PT-MG), sendo
aprovado em sua versáo final como a Lei 10.216/2001 (Brasil, 2002).
Assim sendo, chama atengáo a capacidade de articulagáo e sagacidade dos defensores
do hospital meio aos eventos no legislativo estadual e municipal em termos de se
anteciparem aos acontecimentos, configurando o processo reformista em curso de acordó
com seus interesses. Foi assim no inicio da década de 1980 com as primeiras reivindicagoes
para a realizagao do PSMC-PI, e também por toda a década de 1990 com as movimentagoes
para fixar um tipo de reforma, que, no Piauí, ficou conhecida como "reforma da assisténcia
psiquiatra" com a manutengáo do hospital, logo com a hegemonia do poder médico.
4. Estruturagao da rede psicossocial do Piauí
Na contramáo do cenário nacional, em fungáo da forte política de diminuigáo de leitos
do Ministerio da Saúde, o Piauí manteve seu parque manicomial sem muita alteragáo com a
oferta de 438 leitos e sem qualquer agáo territorial até o ano 2003. Na verdade, as primeiras
experiencias reformistas no Estado, entendida como "reforma da assisténcia psiquiátrica",
partiram de dentro do próprio hospital, nao no sentido de transformá-lo, mas sim de
fortalecé-lo. Tanto o foi que as experiencias embrionarias de criagáo dos primeiros servigos
"complementares" ocorreram dentro do próprio espago físico do Hospital Areolino de
Abreu. Assim o foi com o CAPS ad em 2002, que funcionou inicialmente numa ala do
hospital voltada para o tratamento de alcoolistas, apesar de nao ter sido aprovado no MS,
consequentemente, cadastrado no SUS; e com o CAPS i, que nao apenas nasceu dentro do
hospital em 2002, com algumas mudangas realizadas no pavilhao do Instituto de Psiquiatria
Infanto-Juvenil, como lá funciona ainda hoje depois de ter sido cadastrado no SUS em 2005.
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A Residencia Terapéutica (SRT) também foi um servigo que teve inicio no hospital, porém,
sob o esforgo dos atores da luta antimanicomial no Estado, desde o inicio foi um laboratorio
de reabilitagao psicossocial e logo passou a funcionar fora dos muros do hospital com a
instalagao de quatro módulos, sendo tres na capital, e o outro, na cidade de Uniao.
Dada a hegemonia do hospital psiquiátrico na determinagao da política de saúde
mental e condugao dos debates sobre a reforma psiquiátrica no Estado, o que se viu no
cenário local foi o descompasso com os acontecimentos de desinstitucionalizagáo ocorridos
no plano nacional, consequentemente, o debate pouco qualificado sobre o tema entre os
profissionais e a opiniáo pública piauiense em geral. Enquanto no Nordeste o movimento de
luta antimanicomial se intensificava ñas principáis capitais da regiáo ainda nos anos 1990,
com a realizagáo de eventos, encontros, congressos, fóruns, e demais atividades de
mobilizagáo, o Piauí pouco se movimentou nesse sentido no mesmo período (Rosa, 2006). A
maior prova foi o entendimento de que o CAPS nao era um servigo substitutivo ao hospital,
mas somente complementar. Outra prova foi o fato dos trabalhadores ou gestores, inclusive
os psicólogos - ator importante da Luta Antimanicomial no ámbito nacional -, passarem a
defender a melhoria das estruturas já existentes invés da abertura de novos servigos.
Sob este cenário, o resultado nao poderia ser outro senáo a inexistencia de servigos e o
pouco interesse, até o ano de 2004, quanto a estruturagáo da rede psicossocial em territorio
piauiense alinhada aos principios da reforma psiquiátrica brasileira. Neste caso, o que se viu
no contexto local foi um processo tardio em que os primeiros servigos surgiram no Estado 17
anos depois do primeiro CAPS do país (Rosa, 2006). Apesar do significativo atraso, em curto
espago de tempo foram implantados muitos servigos, sendo que o Piauí alcangou
rápidamente boa cobertura (quinta posigáo nacional), devido as intensas (e tensas)
negociagoes entre a Gerencia Estadual de Saúde Mental e os gestores municipais. Esse nao foi
um processo simples, pois se deu quase que completamente intermediado pelo Ministerio
Público Estadual (MPE-PI), através de sucessivos Termos de Ajuste de Conduta (TAC) entre
as partes.
Nesse aspecto, semelhante ao ocorrido em outras realidades, a Reforma Psiquiátrica no
Piauí foi entremeada por posigóes, embates, conflitos e obstáculos, que só comegaram a
serem transpostos quando o poder psiquiátrico local foi questionado pelo poder jurídico
representado pelo MPE-PI a partir de 2004.4 Se no passado a psiquiatría e o direito foram
cúmplices para garantir o enclausuramento da loucura, conforme apontou Castel (1978), no
Piauí houve o tensionamento entre essas duas instancias agregadoras de relagóes de poder.
No entanto, diferente da capital que as agóes de desinstitucionalizagáo foram pouco
exitosas, como resultado houve apenas a abertura do CAPS ad (2004) de responsabilidade do
4
Nota-se que o questionamento nao foi técnico, mas em relagao a estruturagáo da mecánica institucional, que é
organizada pelo poder psiquiátrico e que nao reconhece os pacientes como sujeitos de direito. Desse modo, a agáo
do MPE-PI preservou o ato médico dos psiquiatras para nao polemizar o processo.
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municipio, e o credenciamento do CAPS i de responsabilidade do Estado no SUS (2005), no
interior tivemos a abertura de sete servigos nos mesmo período. Tal fato justifica-se por a
cultura manicomial ter mais forga nos locáis em que grandes hospitais psiquiátricos
imperaram na regiao (Dias e outros, 2010b).
Sobre o avango da implantagao da rede de atengao psicossocial no interior do Estado, é
importante ponderar alguns fatores:
a) O histórico de desassisténcia em saúde mental no interior devido a centralidade de
servigos na capital facilitou o diálogo com os municipios para a estruturagáo da rede
psicossocial do Estado. A única política visando urna rede de cobertura regionalizada foi o
Programa de Saúde Mental Comunitaria nos anos 1980. No entanto, a base do trabalho dos
núcleos criados pelo referido programa era básicamente ambulatoria!, ficando as situagoes de
crise e urgencia psiquiátrica sob a tradicional prática da "ambulancioterapia" e seus
deslocamentos para a capital. Evidente que tal situagáo ficou ainda mais precaria com a
desativagáo do PSMC. E mesmo com o funcionamento dos dois hospitais-dia (Picos e
Parnaíba) em meados de 1990, o poder de resposta destes servigos ficou restrito a demanda
repremida de suas localidades, ficando os demais municipios desassistidos.
b) O fato da implantagao dos CAPS significar para os gestores a entrada de mais
recursos financeiros para o municipio, além da visibilidade política que eles passariam a ter
com a conquista de mais um servigo para a populagáo de sua localidade; estes foram
argumentos fortes para sensibilizar os municipios para a abertura dos servigos.
c) O trabalho de pactuagáo entre a Gerencia Estadual e 12 municipios, intermediado
pelo Ministerio Público, possibilitou a expansáo da rede de servigos extra-hospitalares. O
pacto também visava sensibilizar os gestores para o desafio da resolutividade dos servigos
para evitar o envió de pacientes em ambulancias para longas internagoes na capital.
d) A saída dos primeiros egressos dos cursos de psicologia localizados na capital para o
mercado profissional foi outro fator que contribuiu para a implantagao dos servigos. Tais
profissionais visualizaram a abertura dos CAPS no interior do Estado como urna
oportunidade de emprego, sendo que muitos psicólogos foram, inclusive, os autores dos
projetos que originaran! os respectivos servigos.
Por meio dessas agóes, o processo de reforma local iniciou pelo interior e atualmente
conta com 44 CAPS em todo o Estado. Conforme informagoes da Gerencia Estadual existem
mais 10 servigos para serem abertos, que estáo em fase final de implantagao, e outros cinco
em fase de elaboragáo dos projetos para o envió para o Ministerio da Saúde. A rede
psicossocial do Estado ainda conta com outros dois importantes dispositivos em saúde
mental, que sao as Residenciáis Terapéuticas (n=4) - responsável para a
desinstitucionalizagáo de pacientes psiquiátricos de longa permanencia; e equipes de
Consultorio de Rúa (n=l) - responsável pela promogáo e prevengáo de cuidados primarios
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em saúde de pessoas que vivem em situagao de rúa. Sobre a "rede" de atengao a crise, além
do Hospital Areolino de Abreu que conta com 160 leitos, a capital conta com mais 30 leitos
psicossociais distribuidos em tres hospitais gerais localizados em bairros periféricos da
cidade; e o interior conta com outros 21 leitos. Ademáis, a Gerencia Estadual está negociando
a abertura de mais 10 leitos para a capital, e outros para os oito hospitais regionais ligados a
Secretaria Estadual de Saúde. Por fim, como agoes de enfrentamento ao uso abusivo do
álcool e outras drogas, especialmente no combate ao crack, a gestáo estadual abrirá um
Centro de Referencia Feminino em Tratamento e Recuperagao AD, além de tres CAPS AD III
ñas cidades de Teresina, Floriano e Parnaíba.
Quanto ao movimento de reforma na capital, esta só foi possível depois de varias
negociagoes entre o Ministerio Público e o gestor municipal para abertura dos servigos
psicossociais. Inicialmente foi assinado um Pacto de gestáo em 2005, para que fossem abertos
quatro CAPS II. No entanto, foram abertos somente dois CAPS II descumprindo assim o
acordó. Posteriormente, houve nova negociagáo por meio do Termo de Ajuste de Conduta
(TAC) assinado em 2008, para que os dois CAPS II restantes fossem colocados em
funcionamento. Porém, tal fato só aconteceu em 2010, depois das pressoes exercidas pelo
Ministerio Público em cumprimento do TAC/2009, com a iminéncia de fechamento do
Sanatorio Meduna. O municipio respondeu parcialmente ao Termo com a abertura de mais
dois CAPS II e um CAPS III.
Deste modo, observa-se que mesmo com o surgimento do Ministerio Público como o
principal ator do processo reformista local, nao podemos desconsiderar a forga do poder
psiquiátrico e da cultura manicomial piauiense em torno dos rumos da política de saúde
mental em curso no Estado.
5. Movimentagoes sociopolíticas locáis e as etapas municipal e estadual da IV CNSM
Nao sao poucos os estudos que afirmam que entre as dimensoes da reforma
psiquiátrica brasileira a que menos logrou éxitos foi a sociocultural (Bezerra Jr., 2007; Yasui,
2010, etc.), mesmo considerando as mobilizagoes e ampliagáo da agenda política do setor na
última década (Vasconcelos, 2010). Se no ámbito nacional registra-se o descompasso dessa
dimensáo em relagáo as demais, no plano local as agoes ou movimentagoes políticoprofissionais em torno da bandeira da Luta Antimanicomial foram quase inexistentes.
Conforme já comentado, ao longo de toda década de 1980 e 1990 quem comandou
qualquer movimentagáo sociopolítica em relagáo á Saúde Mental no Piauí foram os
psiquiatras partidarios das ideias "anti-reforma". Somente em 2002 é que surge a forga
antimanicomial no Estado, fomentada pela participagáo de Nilo Neto - usuario e militante do
Movimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNLA) pelo Estado de Santa Catarina, num
evento de psiquiatría organizado pela Associagáo Piauiense de Psiquiatría (APP). No próprio
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evento foi questionado a nao participagao dos usuarios na programagao, e entre urna
atividade ou outra houve reunioes paralelas para discutir sobre o MNLA e pensar formas de
iniciar a luta antimanicomial no Estado.
Alguns usuarios e trabalhadores que se encontravam no evento da APP faziam parte
da Associagáo de Portadores de Transtorno Mental, Familiares e Pessoas interessadas em
Saúde Mental do Piauí - Áncora. E ao entrarem em contato com as ideias e debates
apresentados por Nilo Neto, os usuarios e trabalhadores que lá estavam logo foram
contagiados pelo ideario do MNLA, sendo que no ano seguinte comemorou-se pela primeira
vez o "18 de Maio" no Estado, acontecimento este que alinhou o movimento de "reforma
psiquiátrica" local ao da Luta Antimanicomial. A partir daí deu-se inicio o movimento de
tensionamento por parte da Áncora contra a estrategia do poder psiquiátrico local de
produzir falseamentos e cooptagoes dos discursos antimanicomiais com base na cultura
manicomial do Estado.
Mesmo com o surgimento deste importante ator da reforma piauiense que foi a
Áncora, as reivindicagoes pautadas pela associagao nao conseguiram agregar aliados,
especialmente os trabalhadores dos servigos, no sentido de se posicionarem de forma
contraria ao poder psiquiátrico que imperava na capital. As etapas municipais e estaduais da
III Conferencia Nacional de Saúde Mental (CNSM) realizada em 2001 foram prova disso. Em
Teresina, por exemplo, apesar das pressoes, a etapa municipal da Conferencia nao foi
realizada; enquanto que a etapa Estadual, apesar de realizada, as propostas aprovadas na
plenária nao saíram do papel. Quanto as etapas locáis da IV CNSM realizada em 2010,
mesmo com certo amadurecimento técnico-assistencial no setor, nao houve qualquer
mobilizagáo por parte das equipes, usuarios e/ou familiares no sentido de qualificarem o
debate para sua participagao na Conferencia. Na prática, o que se observou foi, de um lado, a
participagao tímida por parte dos usuarios fazendo denuncias e reclames devido aos anos de
desrespeito, violencia institucional, tutela e silenciamentos; do outro, apesar de algumas
participagoes mais propositivas por parte de determinados atores históricamente envolvidos
com o processo reformista local, a grande maioria dos trabalhadores nao se apresentou para
o debate na plenária ou mesmo na discussáo das propostas nos grupos de trabalho.
6. Fechamento do Sanatorio Meduna
Desde o inicio dos anos 2000, o Meduna passava por dificuldades na manutengáo de
sua capacidade financeira, administrativa e gerencial, consequentemente, na oferta mínima
de urna assisténcia de qualidade a populagáo. A política de redugáo de leitos do Ministerio
de Saúde acarretou na diminuigáo de 517 leitos para 200 leitos somente no Meduna. Isso foi o
suficiente para gerar um colapso na capacidade de funcionamento do hospital. Ademáis, o
interesse do setor imobiliário na compra, se nao total, pelo menos parcial dos 20 hectares do
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terreno que o Meduna ocupava em área privilegiada da capital, foi outro fator que contribuiu
para o interesse do fechamento do mesmo por parte da familia (Oliveira, 2011).
Decidido pelo fechamento, a diregáo do hospital oficializou o comunicado ao
Ministerio Público em 2009, e este, por sua vez, instaurou urna comissáo que constatou a
precariedade do funcionamento: estrutura física deteriorada, aspecto de abandono, camas
sem colchoes, cheiro de amónia, banheiros com vazamento e infiltrando para as enfermarias,
refeitórios as moscas, enfim, pacientes abandonados (Oliveira, 2011). Diante desse quadro
foram realizadas reunioes e audiencias com os gestores municipal e estadual para garantir
assisténcia a saúde dos 200 internos. Mas a grande questáo para a comissáo era em relagáo á
rede psicossocial da capital que nao tinha como dar o suporte necessário aqueles pacientes. A
saída encontrada pelo Ministerio Público foi firmar o primeiro Termo de Ajuste de Conduta
em 2009, entre o Estado e municipio, no sentido de garantir o fornecimento de géneros
alimenticios, medicamentos, materiais médico-hospitalar e de limpeza, colchoes, roupas de
cama e para os pacientes; e realizar avaliagáo situacional e diagnóstica de cada paciente,
identificando sua historia e necessidades para a condugao de cada caso. Especificamente com
a diregáo do Meduna, o TAC em questáo previa o cumprimento do prazo legal de 120 dias
para o fechamento, além de garantir agoes diarias para manutengao dos cuidados necessários
aos pacientes. Em seguida foram organizadas audiencias públicas para a discussáo ampia do
caso, inclusive com a presenga dos interessados: Gestores municipal e estadual de Saúde,
Ministerio Público, Legislativo municipal, proprietários do Sanatorio Meduna, diretores do
Hospital Areolino de Abreu, representantes da Associagáo Piauiense de Psiquiatría,
trabalhadores da saúde mental, representantes da associagáo de usuarios, imprensa, etc.
Em fungáo do acontecimento "Fechamento do Meduna", os psiquiatras que defendiam
o modelo hospitalocéntrico logo mobilizaram outros profissionais com o discurso do
desemprego, que se geraria com tal feito. O argumento que se conviveria na cidade com
pacientes abandonados ñas rúas, entregues á própria sorte em seu adoecimento, podendo
fazer algum mal a si ou aos outros, também foi utilizado. Apesar de forte e apelativo, tais
argumentos em torno da desassisténcia, da periculosidade e do desemprego nao foram
suficientes para impedir o fechamento do hospital. Os psiquiatras da ala "anti-reforma" e o
próprio gestor municipal, que há décadas tratava a saúde mental com completa revelia
quando o assunto era a abertura de novos servigos, mesmo sobre pressáo do Ministerio
Público, nao contavam com o fato dos proprietários do Meduna nao quererem mais o seu
funcionamento. Diante deste fato, a comissáo composta pelo MPE-PI - também sintonizada
com o argumento de nao gerar desassisténcia aos internos do Meduna, porém sobre outros
principios éticos e políticos -, propós como alternativa a abertura de mais servigos
substitutivos, fortalecendo a rede psicossocial da capital.
Feito a referida avaliagáo situacional e diagnóstica dos pacientes do Meduna, a
comissáo concluiu que se tratava de casos com historias de dependencia de álcool e drogas,
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com intercorréncias clínicas e inabilidades sociais. Ademáis, era necessário encontrar formas
de regular as internagoes psiquiátricas do Hospital Areolino de Abreu, com leitos 72h para
atuar no momento mais crítico das crises. A ideia nao era evitar as internagoes e gerar mais
desgastes com os psiquiatras e o seu ato médico, mas apenas evitar os casos desnecessários.
Por meio desta estrategia reguladora, cada caso seria analisado e composto um projeto
terapéutico a ser pactuado com os servigos substitutivos e leitos integráis em hospital gerais,
para garantir a continuidade do cuidado no territorio e evitar a prática de longas internagoes.
Posto isso, foram firmados, por meio de um segundo Termo de Ajuste de Conduta em
2010, os seguintes compromissos: manutengáo dos subsidios ao Meduna pelo Estado e
municipio; implantagáo de um CAPS ad, um CAPS i, um CAPS III e duas SRT, além da
instituigáo da Gerencia Municipal de Saúde Mental - reponsabilidade do municipio; abrir o
Servigo de Referencia Álcool e Drogas no Hospital do Mocambinho (bairro de Teresina) com
10 leitos disponíveis, e abertura de outros 20 leitos em hospitais gerais para pacientes com
dependencia química - responsabilidade do Estado; instituir enfermaría de atengáo a crise no
HAA (regulagáo das internagoes) - responsabilidade do Estado; por fim, abertura de um
CAPS ad na cidade de Floriano - responsabilidade do Estado. Os avangos, de fato,
ocorreram. A rede psicossocial da capital foi fortalecida, conforme acordado com o MPE-PI,
restando ainda abrir outro CAPS i e duas SRT na capital.
Para Oliveira (2011), tudo aconteceu sem qualquer desassisténcia, como também sem
que o Sanatorio Meduna se fizesse necessário a construgao da rede psicossocial da capital e
do Estado. O hospital ficou restrito a 20 leitos, e em meados de 2010 foi descredenciado do
SUS, sendo cancelado o seu cadastro no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde
como hospital psiquiátrico.
Algumas reflexoes para concluir...
Apresentamos o processo de reforma psiquiátrica piauiense, com base nos avangos e
desafios técnico-assistenciais, político-jurídico e sociocultural que constituíram a política de
saúde mental local, tendo como principal objetivo contribuirmos para o debate sobre o
movimento reformista em realidades periféricas do país.
Em resumo, a reforma psiquiátrica no Piauí iniciou muito tardíamente se comparada a
outras realidades, pois foi falseada e cooptada pela forga e poder psiquiátrico, aliado a forte
cultura manicomial local. Além do mais, os psiquiatras (e demais atores manicomiais) do
Estado se mostraram bastantes habilidosos no campo político; isto por que, mesmo com o
fortalecimento da rede psicossocial no Estado, eles conseguiram impor determinadas
manobras para modelarem por qual discurso/concepgoes/práticas deveria caracterizar o
tipo de reforma psiquiátrica firmada no Estado. Tal quadro foi agravado com o reflexo de um
processo que nao foi disparado e nao teve sustentagáo dos tradicionais atores envolvidos
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com a causa: trabalhadores, usuarios e familiares. Na verdade, nao houve forga política dos
trabalhadores e sociedade civil, e muito menos retaguarda política e institucional no ámbito
local para avangar nesse campo. Portante, caso nao fosse o surgimento do Ministerio Público
como o mais importante ator da reforma psiquiátrica no Piauí, nao feriamos efetivamente
avangado táo rápidamente na estruturagáo da atual rede psicossocial do Estado.
Outro agravante é que no plano técnico-assistencial, avangamos com a abertura de
muitos servigos, no entanto contamos com pouca sustentagao técnica e política por parte dos
profissionais e gestores quanto ao movimento de reversáo do modelo asilar para o
psicossocial de atengáo. Isso por conta do pouco envolvimento desses atores com o sentido
histórico do movimento de reforma psiquiátrica e suas bandeiras de luta, especialmente por
se tratar de profissionais que nao vivenciaram diretamente tal contexto, seja por serem jovens
e recém-formados, seja pela pouca experiencia na área ou o fato de nao serem simpatizantes
do movimento (Vasconcelos, 2010).
Quanto aos membros dos Conselhos Estadual e Municipal de Saúde, estes mostraram
nao ter qualquer implicagáo com o ideario da Reforma Psiquiátrica. Tanto ñas plenárias
sobre o fechamento do Meduna quanto ñas etapas da IVCNSM, os conselheiros partiram em
defesa de propostas vinculadas ao modelo manicomial, demonstrando que nao sao parceiros
da Luta e estáo totalmente desapropriados sobre o tema e agenda política do processo de
Reforma. Por outro lado, a Áncora tem realizado um importante trabalho de formagáo
política e desenvolvimento cultural dos usuarios com agóes "Ponto de Cultura", além disso,
seus membros tém fomentado o surgimento de outras associagóes no interior do Estado
(Uniáo, Agua Branca e Parnaíba) para renovar e fortalecer a participagáo e o controle social.
Talvez o próximo passo das Associagóes seja o de avangar, interferindo de maneira mais
firme nos espagos decisorios da política local, com questoes pautadas especificamente pelos
usuarios.
Diante de tais questoes, os desafios e obstáculos a serem enfrentados na realidade
investigada nao sao poucos. Eis os efeitos de um processo reformista recente, dinámico e
pouco maduro, sem muita sustentagao profissional, gerencial e política para efetivar no
ámbito dos servigos - como também fora deles -, a perspectiva da desinstitucionalizagáo e
atengáo psicossocial, logo, a construgáo de um novo lugar social para a loucura nos
municipios piauienses.
No entanto, considerando as aproximagóes e diferengas entre o contexto investigado e
os acontecimentos ocorridos no plano nacional, bem como em relagáo aos contextos mais
específicos discutidos na literatura especializada, arriscamos a afirmar que muitos
municipios de medio e pequeño porte, ou mesmo de grande porte localizados em áreas mais
periféricas do país, lidam com dificuldades semelhantes as enumeradas anteriormente. E se,
antes, o desafio era estruturar urna rede de servigos de atengáo psicossocial em todo o país;
hoje, mais do que nunca, é urgente fazé-la operar sob tal perspectiva, inclusive,
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intersetorialmente, voltada para a continuidade do cuidado e afirmagao da cidadania,
especialmente em contextos periféricos ou "minúsculos", onde a cultura manicomial ainda se
mantém forte ou absoluta.
A situagáo se agrava ñas localidades em que há urna estrutura maior de servigos,
porém, na prática, estes nao constituem urna rede de atengao articulada na perspectiva da
gestao do cuidado, que acolhe as necessidades dos usuarios. Pelo contrario, o que há, muitas
vezes, sao tres sistemas: (1) rede básica - unidades/centros de saúde/NASF; (2) rede
psicossocial - ambulatórios/CAPS; e (3) rede de atengao a crise - hospital, que atuam de
forma independente, com pouca articulagáo entre si e com os demais equipamentos urbanos
e sociais do municipio.
Sendo assim, a situagao torna-se crítica nos casos em que as localidades nao tém perfil
para servigos especializados, em fungáo do seu porte populacional, considerando que 70%
dos municipios brasileiros convivem com este dilema. A saída para tanto nao é outra senáo
organizar redes integradas de atengao, com dispositivos claros de regulagáo e
corresponsabilizagáo do cuidado, que operem de forma regionalizada. Porém, para avangar
neste feito precisamos junto com o processo de reversáo do parque manicomial para o
psicossocial, reverter também a lógica tradicional de operar os modos de gestao da política
pública. No Piauí, por exemplo, os modos de realizar a gestao da política de saúde mental
nunca ocorreram de forma pactuada, muito menos participativa, no sentido de compor
coletivos gestores e mesas de negociagáo permanente, por meio de dispositivos de pactuagáo
regionalizada, integrando municipios de pequeño porte a polos regionais, formando redes
mais complexas de atengao psicossocial. Tal feito requer ainda o acompanhamento
supervisionado dos servigos, inclusive com dispositivos de supervisáo clínico-institucional,
para que possa ser incentivada a realizagáo de agoes no territorio de origem e, se necessário,
acesso a urna atengao de maior complexidade num municipio-polo próximo. Sem espagos de
gestao participativa e compartilhada, aberta para as problematizagóes advindas dos espagos
instituintes da micropolítica do cotidiano do trabalho, que comporta, inclusive, os
profissionais organizarem o seu processo produtivo a partir das necessidades da populagáo e
do servigo, fica difícil avangar a política de saúde mental em municipios periféricos.
Os acontecimentos que marcaram o processo reformista piauiense demonstraram que é
preciso desinstitucionalizar espagos "privatizantes" de gestao e seus modos de proceder em
proveito do interesse de alguns poucos. Portanto, abre-se neste campo, um entendimento de
que a gestao se reinventa no espago público a partir da negociagáo, afirmando a diferenga, o
tateio, a experimentagáo, e nao o experimento de modelos prontos e concéntricos de relagóes
de poder.
Nesse aspecto, precisamos pactuar agóes a partir de "um espago institucionalizado de
avaliagáo e reavaliagáo" permanente sobre os efeitos e resultados alcangados (Dias e outros,
2010a, p. 85). Talvez assim, a nogáo de rede possa ser garantida, focando nao apenas nos seus
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nos e centros, mas acompanhando, monitorando e regulando seus fluxos para garantir a
gestao do cuidado em saúde mental. Daí a necessidade deste espago, que no primeiro
momento reclamamos institucionalizado, inclusive para legitimar e garantir que as mesas de
pactuagoes sejam efetivadas; mas, por outro lado, que também permita confrontar-se com o
instituinte, produzindo novas institucionalizagoes para avangarmos bem mais nesse
processo, com a abertura de novos servigos e dispositivos, a partir do que a realidade de cada
localidade do país, periférica ou nao, ou de pequeño, medio ou grande porte, sinaliza.
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Nota sobre os Autores
Joáo Paulo Macedo - Doutor em Psicología pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte e docente do Depto. de Psicología da Universidade Federal do Piauí. Enderego: UFPI Parnaíba, Depto. de Psicología. Av. Sao Sebastiáo, 2819. Sao Benedito. CEP 64202-020.
Parnaíba, PI, Brasil. E-mail: [email protected]
Magda Dimenstein - Doutora em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatría da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professora Titular do Programa de Pós-Graduagáo
em Psicología da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Enderego: UFRN - CCHLA,
Depto. de Psicología, Campus Universitario, Lagoa Nova. CEP 59078-970. Natal/RN, Brasil.
Email: [email protected]
Data de recebimento: 11/12/2011
Data de aceite: 24/05/2012
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Familia, capital humano e pobreza: entre estrategias de sobrevivencia e
projetos de vida
Family, human capital and poverty: between strategies of survival and life projects
Giancarlo Petrini
Pontificio Instituto Joao Paulo II para Estudos sobre Matrimonio e Familia
Miria Alves Ramos de Alcántara
Lucia Vaz de Campos Moreira
Universidade Católica do Salvador
Lílian Perdigao Caixéta Reis
Universidade Federal da Bahia
Ricardo Sampaio da Silva Fonseca
Pontificio Instituto Joao Paulo II para Estudos sobre Matrimonio e Familia
Marcelo Couto Dias
Universidade Católica do Salvador
Brasil
Resumo
Com o objetivo de analisar as circunstancias ñas quais as pessoas que vivem em situacáo
de pobreza enfrentam tal condicao, investigou-se a tensao entre projetos de vida elaborados
a fim de melhorar as condicóes de saúde, educacáo, moradia e trabalho, e estrategias de
sobrevivencia. As correntes mais influentes no estudo da pobreza tendem a conceituá-la
com base nos insumos necessários para a aquisicao das mercadorias básicas para a
sobrevivencia que qualificam a condicao de pobreza relativa, relacionando-a ao padrao
de vida geral predominante. Outras abordagens de caráter antropológico focalizam as
relacoes interpessoais e os modos de vida dos pobres, deixando em segundo plano os
determinantes económicos. O estudo focalizou as esferas de intermediacao entre as
iniciativas macroeconómicas e as decisóes individuáis, procurando identificar os fatores
que facilitavam tal encontró. Foram entrevistados 67 participantes de projetos sociais e
instituicóes educacionais de duas áreas pauperizadas da ddade do Salvador, através de
um questionário elaborado especialmente para identificar os processos individuáis e
coletivos almejados. Os resultados acerca das transformacóes da intimidade, da
constituicáo da familia e daquelas que decorrem de acóes planejadas por organizacóes
nao governamentais e programas estatais ñas áreas da habitacao, educacao e saúde sao
integrados ao debate acerca do capital humano, capital social, inclusáo social, projetos de
vida e estrategias de sobrevivencia.
Palavras-chave: Familia; pobreza; projeto de vida; capital humano
Abstract
With the objective of analysing the circumstances in which the persons who live in
situation of poverty face such condition, we invesn'gated the tensión between life projects
prepared in order to improve the conditions of health, education, dwelling, and work,
and strategies of survival. The most influential currents in the study of poverty have a
tendency to conceptualize it on the basis of the inputs necessary for the acquisition of
basic goods for survival that qualify the condition of relative poverty, relating it to the
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general predominant standard of living. Other approaches of anthropological character
focus on the interpersonal relations and on the ways of life of the poor persons, leaving
the economical determinants in the background . The study focused on the spheres of
intermediation between the macroeconomical initiatives and the individual decisions,
trying to identify the factors that were facilitating such meeting. Sixty seven participants
were interviewed from social projects and education institutions of two poor áreas of the
city of Salvador, Bahía, Brazil, through a questionnaire prepared specially to identify the
individual and collective processes focused. The results about the transformations of the
intimacy, of the constitution of the family, and the ones that result from actions planned
by non-governmental organizations and state-owned programs in the áreas of dwelling,
education, and health are integrated to the discussion about the human capital, social
equity, social inclusión, life projects, and strategies of survival.
Keywords: Family; poverty; life project; social inclusión
Introdujo
O presente artigo apresenta urna síntese dos resultados da pesquisa "Combate a
pobreza e as desigualdades sociais: rotas da inclusao", desenvolvida pelo grupo de pesquisa
"Familia em Mudanga" do Programa de Pós-Graduagáo em Familia na Sociedade
Contemporánea, da Universidade Católica do Salvador (UCSal), e financiada pela Fundagao
de Amparo a Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).
Este estudo teve por objetivo verificar em que circunstancias as pessoas que vivem em
situagao de pobreza, especialmente as mais jovens, podem ultrapassar tais condigoes.
Interessou investigar nao apenas o incremento da renda mensal da familia, mas a tensáo
entre a elaboragao de projetos de vida que visem melhorar as condigoes de saúde, de educagao,
de moradia e de trabalho para alguns membros da familia, e de estrategias de sobrevivencia.
Estas consisten! em movimentos individuáis em vista de satisfazer necessidades do momento
e, por vezes, envolvem comportamentos de alto risco, que inviabilizam ou dificultam a
construgao de um horizonte de crescimento nos campos educacional, da formagao
profissional e de integragao social.
Mais específicamente, entendeu-se por projeto de vida urna perspectiva de futuro que
contempla a possibilidade de crescimento formativo e de acesso a um patamar de insergao na
sociedade superior ao atual, conscientemente assumido e sistemáticamente percebido. Um
projeto de vida tem mais probabilidade de ser formulado por urna pessoa nos casos em que a
familia e/ou outras realidades gregarias dao suporte, estimulam, acolhem e valorizam a
pessoa. Define-se por estrategias de sobrevivencia o desenvolvimento de atividades marcadas
pelo caráter ocasional ou circunstancial pelas quais as pessoas se voltam para alcangar o
mínimo indispensável a sobrevivencia, assim como o envolvimento em atividades que
reduzem as oportunidades de crescimento e até mesmo de sobrevivencia. Interessou
investigar porque pessoas em condigao semelhante de pobreza podem orientar-se para
elaborar projetos de vida ou estrategias de sobrevivencia.
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Tomou-se a familia como um dos atores privilegiados para a inclusao social e foi
investigada a importancia das redes locáis de solidariedade e das políticas sociais. Nesse
sentido, analisou-se o significado das relagoes familiares e do tecido de relagoes que as
pessoas, em condigao de pobreza, podem integrar em fungao do vínculo com associagoes nao
governamentais ñas áreas de Novos Alagados (no Suburbio Ferroviario) e do Nordeste de
Amaralina da cidade de Salvador que, direta ou indiretamente, favoregam a articulagao de
projetos de vida.
Partiu-se do pressuposto de que a participagao de associagoes, do bairro ou de origem
externa, poderia convergir para a concretizagao de projetos de promogao humana, realizando
uma mediagao entre a populagao, as familias e o contexto sociocultural, em vista de uma
integragao social mais satisfatória.
É difícil pensar uma agao eficaz sobre as condigoes de pobreza sem que o Estado adote
uma política económica adequada com políticas públicas e mecanismos de redistribuigao de
renda que favorega, no Brasil, o investimento produtivo e, através de diversos incentivos,
promova a criagao de novas vagas de trabalho. Ao mesmo tempo, é necessário que os pobres
se envolvam de fato com os dinamismos positivos da economía, para serem integrados ao
mercado de trabalho e se beneficiem das circunstancias favoráveis. Para que o encontró entre
os dinamismos macroeconómicos e as decisóes pessoais acontega, podem ser decisivos o
ambiente da familia e a participagao de associagoes que acompanhem e estimulem as pessoas
que vivem em condigao de pobreza a disporem da qualificagáo adequada e da motivagáo
para a insergáo. Políticas públicas nacionais ou regionais podem reforgar a iniciativa das
familias e das associagoes para estarem ativamente presentes nesse processo. O presente
estudo focalizou as esferas de intermediagáo entre as iniciativas macroeconómicas e as
decisóes individuáis, procurando identificar os fatores que facilitavam tal encontró.
Uma das correntes mais importantes de estudo da área tende a conceituar pobreza com
base nos insumos necessários para a aquisigáo das mercadorias básicas para a sobrevivencia
e que qualificam a condigao de pobreza relativa, relacionando-a ao padráo de vida geral
predominante (Rocha, 2003; Souza, 2004; Monteiro, 2003). Por outro lado, outros estudos
sobre pobreza, de caráter antropológico, focalizam as relagoes interpessoais e os modos de
vida dos pobres, deixando em segundo plano os determinantes económicos (Sarti, 2005;
Carvalho, 2005; Fonseca, 2005).
Ao analisar teóricamente a pobreza moderna verificou-se como muito pertinentes os
estudos de Sen (1999; 2000; 2001) que consideram que o bem-estar geral é fungao do bemestar individual agregado. O autor coloca a pessoa no centro da análise e menciona como
relevantes os aspectos da liberdade e da heterogeneidade. Pobreza é vista como privagáo de
capacidades básicas e deve ser olhada a partir da heterogeneidade das pessoas.
A pobreza em geral é uma condigao que afeta a familia, pois a pessoa pobre encontra
essa condigao, via de regra, neste contexto. Assim, a familia pode constituir o primeiro lugar
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para encontrar alternativas que permitam superar a pobreza e favorecer a inclusao social,
mas em outros casos pode ser o lugar em que a pobreza se reproduz.
A escola é o grande instrumento para o incremento do capital humano. Entretanto, as
escolas públicas nos ambientes estudados nao cumprem essa tarefa. Por isso adquirem
particular importancia os centros educativos organizados por ONGs e creches que as
c omplementam.
As categorias de análise construidas para serem aplicadas na investigagao empírica
foram: capital humano, capital social, bens relacionáis, inclusao social, projeto de vida e
estrategia de sobrevivencia, observados, como dito anteriormente, em contextos familiares de
baixa renda - regiao suburbana de Salvador e Nordeste de Amaralina.
Capital Humano é um conceito já presente na obra de Adam Smith (1948, p. 93) e em
Alfred Marshall (1953, 57-8). Mas as teorias sobre o capital humano se desenvolveram no
século XX, através da contribuigao de economistas como Theodore W. Schultz (1961, 1971),
Gary S. Becker (1962, 1964,1975) e Jacob Mincer (1993). Nos últimos anos, o tema do capital
humano é particularmente vivo na Uniao Européia1. Capital humano refere-se aos recursos
das pessoas disponíveis num determinado ambiente numa perspectiva de longa duragao.
(Vittadini, 2004).
O capital humano é constituido pelo conjunto de conhecimentos e pelas competencias
que a pessoa vai adquirindo ao longo de sua vida, quer na convivencia familiar, quer na
educagao formal, quer por outros meios, que favorecem sua insergao qualificada no mercado
de trabalho.
Grande parte dos estudos foi dedicada as relagoes entre educagao e capital humano,
procurando compreender como se gera capital humano através do sistema de instrugao
(Gori, 2004). O capital humano é o motor do desenvolvimento, nao somente no sentido do
incremento da produtividade, mas como fator de integragao e de superagao das
desigualdades económicas e sociais (Lovaglio, 2004).
No presente estudo, o "capital humano" é o conjunto de conhecimentos e de
competencias, adquiridos ao longo da vida, na educagao formal e em outros ambientes que
permitem superar adversidades (resiliéncia) e circunstancias que estao na origem de
estrategias de sobrevivencia (auto-abandono, alcoolismo, delinqüéncia e outras formas de
renuncia a perseguir um ideal de vida positivo para si e para a familia, um ideal capaz de
proporcionar integragao social) para assumir a elaboragao de um projeto de vida.
Mas é necessário investigar as relagoes familiares assim como a participagao em
grupos mais ou menos organizados (canto, danga, pesca, etc.); as relagoes com colegas da
mesma idade e com adultos, na tentativa de identificar fatores que jogam a favor das
estrategias de sobrevivencia e fatores a favor do projeto de vida.
1
Além de organismos da UUEE e dos Governos membros, cabe recordar Vittadini e outros (2003).
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Capital social implica no conjunto de recursos que um individuo pode obter a partir de
sua posigáo em urna rede de relagoes sociais estáveis. A maior parte dos estudiosos concorda
que o capital social coincide com relagoes ñas quais as pessoas mostram e praticam a
confianga recíproca e seguem normas de cooperagáo, solidariedade, reciprocidade, o que
facilita a agao cooperativa de individuos, familias, grupos sociais e organizagoes em geral
(Coleman, 1990; Bourdieu & Wacquant, 1992; Fukuyama, 1995).
O capital social é constituido pelo conjunto de recursos disponíveis na comunidade.
Tais recursos podem ser identificados como bens de servigos, que suprem necessidades
básicas das familias, no ámbito da saúde, educagáo, saneamento, transporte, dentre outros:
postos de saúde, escolas, comercios; linhas de ónibus, rede de esgotamento e saneamento
básico, energía elétrica.
Associagoes de bairros, igrejas, instituigoes filantrópicas e públicas estendem o capital
social, compondo as redes de apoio, intermediando as relagoes da familia junto a sociedade
como um todo, e em especial ao poder público.
Também integram o capital social, recursos ligados ao lazer, como parques, clubes, ou
espagos em que sao permitidas as familias desenvolver atividades ao ar livre, esportivas ou
de descanso.
Bens relacionáis sao os bens derivados dos lagos de parentesco, de vizinhanga e comum
origem em alguma cidade do interior, e sustentados por vínculos afetivos, de solidariedade e
de gratidáo, que reforgam o apoio mutuo diante de situagoes adversas (Donati, 1998; 2008;
Sarti, 2005; Carvalho, 2005; Fonseca, 2005).
Em qualquer contexto social, a familia pode oferecer um conjunto de facilidades ou um
patrimonio que depende dos vínculos que se estabelecem entre os seus membros. Isso
acontece por causa da natureza específica de suas relagoes, que em si sao bens relacionáis,
tais como a paternidade, a maternidade, a filiagáo, a fraternidade, que váo além do afeto, do
apoio mutuo e da protegáo e constituem bens que somente a familia pode proporcionar.
Pierpaolo Donati (2008) identifica como bens relacionáis os que derivam dos lagos de
parentesco, amizade, e vizinhanga, sustentados por vínculos afetivos e de solidariedade que
reforgam o apoio mutuo diante de situagoes adversas, além de outras relagoes solidarias com
vizinhos, compadres e conterráneos.
A nogáo de bens relacionáis nasce do fato de existir um patrimonio ñas relagoes que
nao pode ser oferecido pelo mercado e de que há necessidades que nao podem encontrar
resposta fora das relagoes familiares. "Os individuos que vivem em sociedade necessitam
consumir, além de bens e mercadorias, servigos que nao podem ser obtidos pela via do
mercado", ou porque vivem em condigoes de pobreza, ou porque necessitam de bens que o
mercado nao é capaz de produzir e de oferecer (Carvalho, 2003). Nesse sentido, avalia-se o
significado das relagoes familiares e da teia de relagoes que os pobres podem integrar gragas
a presenga de associagoes e de programas governamentais na regiáo, que direta ou
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indiretamente favoregam a articulagao de projetos de vida. A participagao de associagoes, do
bairro ou de origem externa, pode convergir para a concretizagao de projetos de promogao
humana, realizando urna mediagao entre os jovens, as familias e o contexto socio cultural, em
vista de urna integragao social mais satisfatória.
Inclusao social nao se limita apenas a renda, mas implica as dimensoes de insergao no
mercado de trabalho e também na integragao social. Analisa-se a inclusao social nao apenas
pelo incremento dos rendimentos mensais das familias pobres, mas pela integragao numa
rede de relagoes significativas no quotidiano. A inclusao social é entendida como um
dinamismo que integra dois eixos analíticos fundamentáis: a) a insergao da pessoa ao
mercado de trabalho para desempenhar urna fungao para a qual adquiriu os requisitos
mínimos de habilidades através da formagao educativa; e b) integragao do sujeito numa rede
de relagoes nao definidas pela fungao (que envolve urna parcialidade da existencia pessoal),
mas caracterizada pelo reconhecimento da pessoa na sua totalidade. Assim o sujeito passa a
ser relevante para outro, em urna integragao de caráter marcadamente subjetivo (Sen, 2002;
Castells, 1989).
Projeto de vida é um conceito inspirado na discussao dos estudos longitudinais da
psicología do desenvolvimento acerca do alcance ao longo da cadeia geracional de processos
vivenciados individual e coletivamente. Isso comporta a crescente consciéncia de que as
agoes do presente reverberam sobre o outro e sobre a historia futura. Ao lidar com a historia
e a cultura dos antepassados, a pessoa pode reconhecer o valor da confianga e da espera,
assumindo a responsabilidade pelo cuidado com o outro, buscando a satisfagao do seu desejo
considerando diversos aspectos da existencia, inclusive a perspectiva de futuro (Scabini &
Rossi, 2012). Portanto, projeto de vida refere-se a atitude de contemplar a possibilidade de
crescimento formativo e de acesso a um patamar de insergao na sociedade superior ao atual,
conscientemente assumido e sistemáticamente percebido. Segundo Nascimento (2006), o
projeto de vida
tem o sentido de aspiracoes, desejos de realizacoes, que se projetam para o
futuro como urna visao antedpatória de acontecimentos, cuja base reside em
urna realidade construida na interseeao das relaeoes que o sujeito estabelece
com o mundo. É, portanto, constituido por um conjunto de aspectos que
estruturam o campo psicossocial (p. 4).
O conceito de Estrategia de sobrevivencia surgiu durante a década de 1970 nos estudos
sobre familias de imigrantes para sintetizar o processo cotidiano de construgao das condigoes
de reprodugao social através dos cuidados e da socializagao. Para realizar a reprodugao
social, a unidade doméstica empreendia um conjunto de agoes denominadas sintéticamente
estrategias de sobrevivencia pelas quais seus membros envolviam-se na cooperagao
económica bem como no consumo coletivo de bens materiais e simbólicos (Romanelli &
Bezerra, 1999). Esse termo foi posto em questao pelos estudos sociológicos e etnográficos que
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apontam a suprafuncionalidade da familia, ou seja, suas relagoes nao visam meramente
sustentar seus membros e reproduzir as condigóes de sociabüidade, mas consistem em um
fato social total (Donati, 2008). No presente estudo, o termo foi retomado com outro sentido
para referir-se ao desenvolvimento de atividades ocasionáis pelas quais as pessoas se voltam
para alcangar o mínimo indispensável a sobrevivencia, atendo-se apenas a necessidade
momentánea sem intengao de projetar-se no futuro.
Em síntese, o estudo teve por objetivo compreender e analisar iniciativas de combate a
pobreza com vistas a inclusao social na regiao urbana de Salvador utilizando categorias que
possibilitem a investigagao do predominio de estrategias de sobrevivencia ou de projetos de vida
presentes em familias de baixa renda. Estas iniciativas envolveram tres atores: as familias
pauperizadas, as associagóes e, indiretamente, o Estado, através de subsidios aos programas
sociais.
Ao investigar as condigoes que favorecem o desenvolvimento de iniciativas de combate
a pobreza de todos os sujeitos envolvidos, esperava-se encontrar como resultado que o
processo de combate a pobreza inicia-se quando a pessoa formula um projeto de vida e se
aplica em realizá-lo, objetivando melhorar a moradia, a educagao, a saúde, e o trabalho
próprios ou de algum membro da familia. Pressupunha-se que a iniciativa de formular um
projeto de vida tinha mais probabilidade de existir com constancia nos casos em que a
familia dava suporte, estimulava, acolhia e valorizava a pessoa. De maneira semelhante,
supunha-se que as associagoes locáis ou de origem externa a comunidade, proporcionavam
meios de formagao, suporte técnico e psicológico, possibilitando e revisando o projeto de
vida em execugao. Supunha-se que tal processo nao independia do habitus individual e
coletivo (Bourdieu, 2003) nem do capital simbólico e social que o individuo agregava em seus
encontros e novas experiencias.
Metodología
A presente pesquisa caracterizou-se por ser de caráter descritivo-exploratório e utilizou
estrategias combinadas de abordagens qualitativa e quantitativa. Tal escolha se justifica pelo
interesse em obter, com o estudo, um perfil da populagao participante de projetos sociais de
Novos Alagados e do Nordeste de Amaralina, identificando principáis tendencias relativas
as estrategias de sobrevivencia ou projeto de vida presentes em adolescentes, jovens e maes
com filhos pequeños inseridos em instituigao de educagao infantil. Foi elaborado um
conjunto de categorias de análise utilizado na investigagao empírica e na interpretagao da
realidade de pessoas em condigao de pobreza.
1. Local e populagao-alvo
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As comunidades de Novos Alagados possuem urna historia recente repleta de lutas
pelo direito a habitagáo e a infra-estrutura. O evento que marca o crescimento da regiáo do
Suburbio é a inauguragáo da Avenida Suburbana em 1970, época em que muitas familias
oriundas do Recóncavo vieram residir na capital para buscar trabalho em fábricas de tecido e
chocolate, ou no Polo Petroquímico, instalando-se as margens da avenida. Entre os anos
setenta e meados de oitenta as familias dali mantinham ainda urna característica mais
provinciana e coletiva, pois eram constituidas principalmente por colonos que trabalhavam
ñas fazendas da regiáo e por familias de operarios. As primeiras comunidades formaram-se
por pessoas que eram conterráneas, vindas de um mesmo lugar, ou por parentes convidados
a residir próximos uns dos outros.
Antes dos anos setenta, estudos indicam que outro fator de agrupamento das familias
era a questáo religiosa, tanto para familias católicas quanto para os descendentes de negros
que se aproximaram por etnias, e pela participagáo em terreiros de Candomblé (FerreiraSantos, 2005; Lima, 2003; Mattoso, 1988).
Finalmente, nos anos 90, vém familias que foram despojadas dos "Alagados", área de
casas de palafitas que ficava na regiáo do bairro do Uruguai (Ferreira-Santos, 2005). O nome
"Novos Alagados" tem sua origem daí, pois as mesmas familias só fizeram transferir suas
palafitas para nova área. No entanto, as familias que invadiram aquela regiáo ocuparam de
maneira desordenada exatamente os espagos utilizados por moradores nativos para o lazer e
as práticas religiosas.
A ocupagáo irregular da área tornou-se, portante, um dos principáis problemas do
Suburbio. Forte mobilizagáo das associagóes de moradores, em parceria com liderangas
religiosas e organizagóes nao governamentais culminou com a implantagáo de intervengóes
do governo, realizadas através do Programa Ribeira Azul, desenvolvido em parceria com
organismos internacionais na década de noventa.
Os dados empíricos foram obtidos em instituigóes educacionais de duas áreas
pauperizadas de Salvador. Urna délas é o Suburbio Ferroviario de Salvador, onde se sitúa a
área do Programa Ribeira Azul, a qual compreende um conjunto de bairros somando 4 Km2
e abrigando cerca de 40.000 familias - aproximadamente 150.000 habitantes - representando
6% da populagáo atual do municipio de Salvador.
A segunda área de estudo é o bairro do Nordeste de Amaralina - que vem
apresentando o maior índice de mortalidade por causas externas, em Salvador, nos últimos
anos. Localizado próximo dos bairros mais valorizados da cidade, este bairro possui cerca de
9 Km2, com urna populagáo de 250.000 habitantes. Ao longo da década de 1980, o territorio
antes ocupado por reserva de mata atlántica e por areais passou a ser invadido por familias
oriundas do interior da Bahia, em busca de melhores condigóes de vida na capital. Tais
familias tinham no trabalho e ñas tradigóes culturáis e religiosas o centro de sua existencia,
envolvendo as geragóes mais novas em atividades baseadas em disciplina e valores.
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Engajadas em movimentos de luta pelos direitos e pela cidadania, as familias estao em
constante intercambio com instancias do poder público para que oferegam servigos de
saneamento básico, escolas, transporte e postos de saúde. Os contextos de pesquisa foram
selecionados por serem adversos expondo criangas, adolescentes e familias a situagoes de
risco, por outro lado, contém associagoes locáis e intervengoes de órgaos públicos.
As instituigoes recebem subsidios governamentais e apresentam um trabalho que busca
um atendimento de qualidade as criangas, adolescentes ou jovens e respectivas familias,
havendo um interesse constante de integragao com a comunidade local.
Os participantes estavam inseridos em atividades desenvolvidas por tais organizagoes
sociais. Mais especificamente, compuseram o estudo: a) 13 jovens participantes de um curso
de formagao profissional (Novos Alagados); b) 20 adolescentes inseridos em um reforgo
escolar (Novos Alagados); c) 11 jovens maes atendidas por uma associagao que se dedica a
acompanhá-las na condigao de maternidade (Nordeste de Amaralina); d) 23 maes de criangas
que frequentam uma instituigao de educagao infantil (Novos Alagados). Para cada contexto
estudado foram abordados ainda os coordenadores que atuam nos projetos sociais.
2. Instrumentos e técnicas de coleta de dados
A partir das leituras feitas foram elaborados roteiros de entrevistas que envolvem os
seguintes temas: familia, bairro, habilidades sociais, técnicas e profissionais, historia de vida
(infancia, adolescencia, estudo e trabalho), relacionamentos e perspectivas para o futuro. Os
participantes foram contatados nos projetos sociais e educacionais e convidados para
entrevista.
3. Procedimentos
Os passos da pesquisa envolveram uma revisao da literatura sobre pobreza moderna e
familia. A partir destes estudos e das contribuigoes dos profissionais, foram elaboradas
categorías que permitiram avaliar uma maior presenga de projetos de vida nos participantes ou
o predominio de estrategias de sobrevivencia. Com tais categorías em maos, os pesquisadores
construíram roteiros de pesquisa para investigar as relagoes familiares, a participagao em
grupos formáis e informáis, e ñas instituigoes educativas das quais eventualmente
participam (de educagao infantil, de reforgo escolar, de atendimento a jovens gestantes ou de
educagao profissional). Tais roteiros foram testados com entrevistas piloto e sofreram
adaptagoes necessárias. O projeto de pesquisa e respectivos roteiros foram submetidos e
aprovados por comité de ética em pesquisa.
Para a escolha dos participantes foram obtidas as listas de matriculados ñas
instituigoes. A partir délas foram sorteados 20% deles para participar do estudo. Na
instituigao de educagao infantil, as maes é que foram participantes. Após isto, os sorteados
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foram convidados a participar do estudo, assinando termo de consentimento livre e
esclarecido. No caso dos participantes com idade inferior a 18 anos, seus responsáveis
assinaram tal termo. Em seguida, foram agendadas e realizadas as entrevistas semiestruturadas, que foram gravadas e em seguida transcritas. As entrevistas individuáis foram
realizadas ñas próprias instituigoes e tiveram a duragao de aproximadamente urna hora. Os
coordenadores dos projetos autorizaram a participagao das instituigoes e também foram
entrevistados.
4. Análise de dados
As gravagoes das entrevistas foram analisadas a fim de identificar pontos de contraste e
de convergencia entre os discursos dos participantes, baseando-se nos pares conceituais
capital social, capital humano, bens relacionáis, projeto de vida e estrategias de sobrevivencia, na
exploragao de dimensoes da experiencia cotidiana dos participantes e de seu relacionamento
com os projetos sociais.
Resultados e discussao
A partir dos dados obtidos, verificou-se que o perfil das familias dos participantes é
marcado pela presenga de múltiplos arranjos familiares. Ao se perguntar quem mora na casa,
a diversidade de respostas foi ampia, indo desde a familia nuclear, a monoparental, além de
outras variagoes.
O casamento formal aparece de forma muito reduzida. A maternidade ocorre na faixa
de 20 a 29 anos, e há a diminuigao da taxa de natalidade. A recorréncia da gravidez entre
jovens com baixa escolaridade, sem insergao no mercado de trabalho bem como a ausencia
na familia da figura do pai chamaram a atengao dos pesquisadores.
Para discutir os dados obtidos foram retomadas as categorías de análise apresentadas
anteriormente: capital humano, capital social, bens relacionáis, inclusao social, projeto de
vida e estrategia de sobrevivencia.
1. Capital humano
Capital humano constitui-se como o conjunto de conhecimentos e competencias que a
pessoa vai adquirindo ao longo de sua vida, seja na convivencia familiar, educagao formal ou
outros meios, que favorecem sua insergao qualificada no mercado de trabalho (Vittadini,
2004). Sobre isto foram observados alguns aspectos interessantes nos participantes do
presente estudo.
A escolaridade vem aumentando ñas novas geragoes. Ela vem sendo valorizada e
almejada pela populagao pesquisada, inclusive algumas maes da creche ainda estudam e
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humano e pobreza: entre estrategias de sobrevivencia e projetos de vida. Memorándum, 22,165-186. Recuperado
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varias pretendem voltar a escola. Além disso, desejam que os filhos estudem. A grande
maioria dos participantes afirma dominar a leitura, a escrita e cálculos matemáticos
elementares.
Moreira (1999), que estudou máes de baixa renda em Novos Alagados, identificou a
valorizagao da escolaridade, porém verificou que nem sempre sao dados passos para atingir
tal meta. Em outro trabalho, ao entrevistar pais de carnada media em dois contextos
brasileiros, Moreira (2005) verificou que eles parecem saber e poder investir mais na
formagáo pessoal e profissional dos filhos. Neste sentido, a autora afirma que as máes de
baixa renda valorizam a educagáo, mas tém dificuldades em estabelecer os passos
necessários para atingir suas metas educacionais.
As habilidades presentes nos participantes, além de estarem sofrendo influencia da
carnada sócio-económica, refletem a cultura e as origens históricas brasileiras e baianas. A
relevancia da cultura para o desenvolvimento humano é amplamente estudada por
Bronfenbrenner (2004). Diante disso, as habilidades esportivas que mais apareceram foram o
futebol, esporte valorizado em todo o País, e a capoeira herdada da cultura afro-brasileira.
Como habilidades sociais, fazer amigos, ajudar e respeitar as pessoas sao os elementos
que mais se destacam. Das habilidades artísticas, o pintar e o cantar sao mais comuns,
refletindo a musicalidade baiana.
As habilidades profissionais predominantes ñas máes de creche sao as relacionadas a
trabalhos domésticos e também a de vendedora. Moreira (1999) reflete sobre este aspecto da
mulher de baixa renda que, mesmo trabalhando, permanece no ámbito doméstico exercendo
atividades como as de passar, lavar, limpar e cozinhar, além de cuidar de criangas (baba).
Os participantes mais jovens incrementam seus conhecimentos com a área de
informática, táo solicitada no mercado de trabalho atual. Com tais conhecimentos oferecidos
no bairro, podem ser ampliadas as possibilidades de emprego para as novas geragoes. Por
exemplo, a habilidade do trabalho de pedreiro, no caso dos jovens de curso
profissionalizante, permite que alguns concluam o curso com vínculos empregaticios através
do Programa Jovem Aprendiz.
As máes citam as habilidades cotidianas e as profissionais como as mais úteis para a
própria vida, os adolescentes do reforgo escolar, e os jovens do curso profissionalizante,
apontam as sociais. Já entre as jovens máes, as habilidades artísticas sao consideradas mais
úteis, seguidas pelas profissionais. Isto pode refletir a etapa de desenvolvimento em que cada
um se encontra (Bee, 1997). Para as máes pode pesar mais os elementos que favoregam a
sobrevivencia, o sustento familiar, e para os mais jovens tem maior relevancia a insergáo
social, a ampliagáo dos contatos com pessoas além do ámbito doméstico.
2. Capital social
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Na categoria de capital social há um destaque a ser feito na Regiao de Novos Alagados.
Houve um grande investimento nesta área realizado pelo Governo do Estado, o Banco
Mundial e a Associagáo Voluntarios para o Servigo Internacional (AVSI). Tal investimento
consistiu em construgáo de casas, saneamento básico e estruturagáo da rede elétrica. A coleta
de dados revelou que a quase totalidade dos participantes mora em casa própria construida
com blocos em térra firme. Alguns aspiram melhorar a casa, o que era previsto na construgáo
original, "embriáo" que poderia ser expandido. Entre as jovens máes pertencentes a
comunidade do Areal, no Rio Vermelho, foram encontradas residencias habitadas por
familias numerosas e algumas délas em situagao muito precaria, construidas com madeira e
papeláo.
No bairro de Novos Alagados, projetos na área educacional como reforgo escolar,
creches e centros profissionalizantes tém sido viabilizados através das iniciativas de
associagoes comunitarias, instituigoes religiosas e de organizagoes nao governamentais.
Porém, a regiao ainda carece de um maior investimento em escolas. Na comunidade do
Areal, encontram-se evidencias de investimento ñas áreas educacional, social e saúde, mas de
urna menor freqüéncia de profissionais residentes em outros bairros da cidade em virtude
das restrigoes impostas pela violencia.
Entre os recursos de Novos Alagados, os mais conhecidos e bem avaliados sao as
instituigoes educacionais (creche e reforgo escolar), recursos básicos como energía elétrica e
saneamento básico. As linhas de ónibus, postos de saúde e comercios sao bem conhecidos,
mas nao táo bem avaliados. Na comunidade do Areal, as entrevistadas consideram de
melhor qualidade as creches, escolas, o fornecimento de energia elétrica, programa consorcio
juventude e projetos sociais dedicados ao reforgo escolar e profissionalizagáo.
O Programa Bolsa-Familia é um recurso governamental que atinge boa parte dos
participantes. Levando em consideragáo a renda-familiar muito baixa, tal apoio complementa
os rendimentos, embora nao resolva a questáo básica do subemprego ou mesmo do
desemprego táo presente na populagáo local.
Em ambos os bairros, recursos relacionados ao lazer como pragas e parques sao
escassos e sem infra-estrutura adequada, sendo necessários investimentos nesta área. Diante
das dificuldades de mobilidade para outras regioes da cidade, devido a questoes financeiras
e de distancia, as atividades de lazer mais comuns sao assistir televisáo e ouvir música, além
de conversar com vizinhos.
Há ainda a presenga de grupos organizados como a Igreja, grupos de capoeira e de
danga. Eles favorecem o incremento de capital humano e de bens relacionáis.
3. Bens relacionáis
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A Regiao de Novos Alagados assim como as comunidades informáis que fazem parte
da Chapada do Rio Vermelho foram ocupadas, em grande parte, por invasoes, reflexo de um
fluxo de familias que vieram, em sua maioria, do interior do Estado que nao oferecia
condigóes para sua populagao permanecer lá. Portanto, as geragóes das maes e dos filhos,
aqui estudadas, já nasceram em Salvador, mas tém suas raízes no interior do Estado.
A familia aparece como um bem relacional importante e lugar em que se aprende
valores que favorecem as relagoes humanas. É avaliada como tendo predominio de aspectos
positivos. Diante de comportamentos considerados adequados, pode haver elogios ou
indiferenga, mas há punigao física para os comportamentos inadequados.
Para Donati (2008) a familia pode oferecer alguns bens que dependem dos vínculos que
se estabelecem entre os seus membros por causa da natureza específica de suas relagoes - os
bens relacionáis, a paternidade, a maternidade, a filiagao, que vao além do afeto, do apoio
mutuo e da protegao e constituem bens que somente a familia pode proporcionar.
Completando tal idéia, Souza (2000) afirma que alguns bens próprios da familia nao estao
disponíveis no mercado.
As maes dos participantes aparecem como figuras fundamentáis que determinam o
momento inicial da vida dos entrevistados e a base deles. Sao a principal referencia deles.
Nos casos em que esta presenga era fragilizada ou ausente e nao havia alguém que a
substituísse (avós, tias, madrinhas), as conseqüéncias da miseria e abandono se agravavam.
O pai é muito mais ausente, e por vezes desconhecido. Aparece pouco na fala dos
participantes. Em determinados casos é até idealizado. Este parece ser um fator que deve ser
mais amplamente estudado.
Nesta mesma linha, Moreira (2005) observa em seu estudo que genitores do sexo
masculino de baixa renda, em varios momentos, mostram-se distantes ou até mesmo
desconhecidos dos próprios filhos, ao passo que, na carnada media, a presenga dos pais e
maes junto aos filhos é muito valorizada.
Madrinhas e parentes (especialmente tios e avós) sao pessoas que também estao
presentes na fala dos participantes como pessoas que fornecem apoio ou mesmo, no caso dos
jovens dos cursos profissionalizantes, incentivam o estudo. Avós e tios sao apontados como
pessoas queridas e que lhes querem bem também, havendo destaque disto na fala dos
adolescentes do Centro Educativo. As madrinhas, conforme relatos informáis, nao
necessariamente sao as que batizaram os participantes, mas sim pessoas escolhidas para dar
um apoio a determinada pessoa.
Já os filhos, presentes básicamente ñas maes de creche e ñas jovens maes sao, para as
primeiras, um foco de atengao, sentido da vida. Porém, para as jovens maes, nao sao
identificados como as pessoas que mais gostam e nem as pessoas que percebem que mais
gostam délas. A maternidade precoce pode, de algum modo, enfraquecer estes lagos afetivos
e possivelmente também os vínculos. O vínculo máe-filho, denominado apego por Bowlby
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(1969/2002), é urna adaptagao fundamental da especie humana, urna necessidade tao básica
quanto a satisfagáo da fome ou da sede. As avós por vezes acabam assumindo grande parte
do cuidado dessas criangas, fato que pode ser observado na literatura (Britto-da-Motta, 2007).
Também é comum a convivencia com vizinhos e amigos, havendo predominio de um
bom relacionamento com eles. Para a populagáo estudada, cujas casas sao pequeñas, a
permanencia na rúa, na frente das residencias é comum. Existe também urna solidariedade
entre os vizinhos e, por vezes, intrigas. O limite entre o público e o privado parece ser menor
do que o existente ñas carnadas mais abastadas. Apesar disto, em decorréncia de certa
intensificagáo da violencia, tal realidade vem se modificando e é possível encontrar grades
ñas casas e a rúa é vista como perigosa.
Os profissionais das instituigoes estudadas (creche, centro educativo, curso
profissionalizante e instituigao que atende adolescentes grávidas) também desempenham sua
relevancia enquanto um bem relaciona! Um exemplo a ser destacado é o das máes de creche
que tiveram urna grande solidáo na infancia por ficarem sos em casa. Já os próprios filhos
permanecem na creche, podendo se relacionar nao apenas com os profissionais que lá atuam,
mas também com outras criangas que freqüentam a instituigao.
Ainda é evidente que, ao abordarem as habilidades, a escola também é
significativamente apontada como o local onde aprenderam varias délas. Portanto, os
relacionamentos em tal local favorecem a promogáo do desenvolvimento humano.
4. Inclusao social
No aspecto da necessidade de inclusao social, fica evidente a presenga do subemprego
e dos baixíssimos salarios, evidenciados no fato de a renda familiar mais encontrada ser a de
até um salario-mínimo.
Para os participantes mais jovens, as habilidades que tém sido mais úteis para a vida
sao as sociais, já para as máes de creche (inseridas ñas necessidades do sustento familiar), as
habilidades profissionais e cotidianas sao mais relevantes. Estas últimas avaliam a
experiencia com relagáo ao trabalho como positiva, inclusive as relagoes com os colegas.
Porém, almejam estudar mais para ter um emprego melhor (lembrando aqui os baixos
salarios existentes).
A grande maioria dos jovens ainda está estudando ou, ao menos, fazendo o curso
profissionalizante, geralmente nao exercendo atividade profissional. O projeto social oferece
atividades de formagáo profissional onde as jovens aprendem a confeccionar biquinis e
bijouterias. Durante o curso, elas sao convidadas a participar da venda da sua produgáo
através do engajamento em urna cooperativa que recebe pedidos de parceiros para a
comercializagáo das pegas produzidas. A atividade, ainda que represente urna baixa
remuneragáo, é urna importante fonte de renda já que, em sua maioria, as participantes
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possuem baixo nivel de escolaridade e vivem em familias com renda de até meio salario
mínimo.
Nesse sentido, o projeto de promogao do desenvolvimento humano e social de
adolescentes e jovens gestantes e maes atua de modo a favorecer a insergao social, pois situase em urna comunidade com índices elevados de violencia e de indicadores sociais que
situam sua populagao abaixo da linha da pobreza.
Os participantes sentem-se valorizados pelas pessoas da familia, pelos amigos e pelas
pessoas do local de estudo e do trabalho. Um diferencial foi com relagao as pessoas do bairro
que, no olhar dos grupos estudados, valorizam mais os jovens dos cursos profissionalizantes.
Quanto ao conhecimento mais ampio da cidade, foi encontrado que os jovens limitamse muito a convivencia apenas no bairro em que moram, enquanto as maes de creche
circulam mais pela cidade, muito em decorréncia do mundo do trabalho. Neste sentido, o
trabalho incrementa a renda familiar, mas também possibilita um maior conhecimento e
entrosamento com o contexto social mais ampio. Além disso, sao as mulheres adultas que se
langam ñas instituigoes de saúde, de educagao e também em outras que possibilitam um
incremento de bens para os filhos e para a familia. Sendo ela a pessoa que geralmente faz a
mediagao entre a familia e a sociedade.
A outra dimensao constitutiva da inclusao social é a integragao da pessoa numa rede
de relagoes de amizade e de estima recíproca e de familiaridade com o contexto urbano.
Aqui volta-se a atengao a integragao do sujeito numa rede de relagoes nao definidas pela
fungao, que envolve sempre urna parcialidade da existencia pessoal, mas caracterizada pelo
reconhecimento da pessoa na sua totalidade. Assim, o sujeito passa a ser relevante para o
outro, em urna integragao de caráter marcadamente subjetivo (Sen, 2001; Castells, 1989).
5. Projeto de vida x estrategia de sobrevivencia
Nesta pesquisa o projeto de vida foi identificado como um dos aspectos que favorecem
o processo de enfrentamento da pobreza. Participantes de um projeto social do Nordeste de
Amaralina, destinado a apoiar adolescentes e jovens maes, revelam o desejo de ter um futuro
melhor, como afirma urna das entrevistadas: "Pensó em terminar minha casa própria, ter um bom
emprego, fazer minha Faculdade em Direito e dar urna vida melhor para meufilho".
A atitude de planejar metas e empenhar-se em alcangá-las mostra-se como positiva e
norteadora do movimento pessoal, mas também familiar e grupal, que tem como intengao
sair da condigao atual, ou criar possibilidades para mudangas no futuro.
Nos relatos dos participantes os aspectos que mais se destacaram quanto a consecugao
de um projeto de vida foram aqueles relacionados a metas de insergao social, voltadas para
investimentos no estudo e trabalho; mas também projetos conjuntos, oriundos de agoes
voltadas para o cuidado com a saúde, o bem estar comum e a melhoria das condigoes de
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vida. É exatamente o aspecto macroestrutural que dificulta a confianga no futuro, como
exemplifica a participante de um projeto social no Nordeste de Amaralina ao ser questionada
a respeito de como pensa que será a vida da sua comunidade no futuro próximo:
Será pior. Pois agora que "reuniu a paz" (menciona um acordó entre os traficantes
para que nao haja conflitos entre eles) nao há mais "reixa" (palavra que na
linguagem local significa conflito, desavenga, briga) eu acho que vai piorar. Muita
gente morrendo ñas maos dos "homens". O caso agora sao os homens, os policiais,
que chegam atirando, xingando mae de familia e etc.
O projeto de vida requer necessariamente a atuagáo dos poderes públicos no sentido de
exercer através da seguranga pública as condigoes para concretizar o investimento no estudo
e no trabalho, como tem sido apontado por varios autores como recursos escolhidos pelas
familias pobres como meio de ascensao social. Esforgos individuáis nao sao necessariamente
suficientes para garantir condigoes melhores do que as vividas pelas geragoes anteriores,
principalmente devido aos conflitos, a inseguranga, a baixa qualidade do ensino público e a
inadequagao deste em relagao as novas exigencias do mercado (Cordeiro & Costa, 2006;
Pochmann, 2004; Silva & Borges, 2007a).
Pochmann (2004) adverte que:
a mobilidade social, que consistiu mima especie de charme histórico do
capitalismo no Brasil, tornou-se elemento central da complexa unidade
familiar. Na maior parte das vezes, os jovens nao conseguem obter
condicoes de vida e trabalho superiores as de seus pais, mesmo possuindo
níveis de escolaridade e formacao profissional superiores. Quando muito,
registra-se imobilidade social, mas a regressao intergeradonal no trabalho
está se tornando comum, sobretudo no rendimento (p. 223).
Ainda assim, nesta pesquisa foi possível observar que, na realidade de Novos
Alagados, o investimento no estudo tem sido privilegiado pelas associagoes comunitarias,
com aprovagao das familias que incentivam seus filhos a se engajarem nestas iniciativas,
buscando melhores condigoes de vida para todos. Observa-se este movimento na decisao das
maes de colocarem seus filhos na creche, e na importancia que denotam a esta decisao; na
grande procura pelo reforgo escolar ou pelos cursos profissionalizantes.
Outro aspecto interessante tem sido a iniciativa das próprias maes de retomarem seus
próprios sonhos, pelo viés da educagao.
No grupo de jovens maes do Vale das Pedrinhas o abandono escolar coaduna com a
vida na delinqüéncia, e com a permanencia em urna condigao de estrategia de sobrevivencia.
Mas, mesmo neste grupo, a decisao de participar do projeto de jovens maes indica urna
iniciativa mais positiva entre tantas outras utilizadas por elas anteriormente, como o tráfico e
a prostituigáo.
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Já os jovens participantes de curso profissionalizante mostram-se mais seguros quanto
a perspectivas futuras. De fato, o tipo de escolha feita por estes jovens sugere possibilidades
mais objetivas, pelo menos no seu momento atual e em relagáo a outras opgoes dentro da
comunidade (inclusive o envolvimento com o tráfico, opgáo feita pelos irmáos de alguns
deles), de concretizagáo do desejo de encontrar um emprego. Isto porque o curso no qual
estao inseridos foi incluido no Programa Jovem Aprendiz, o que tem permitido que os jovens
já saiam do mesmo empregados; e também pelo crescimento do mercado de construgao civil
em Salvador, com aumento da demanda de máo de obra.
Em estudo que trata das mudangas na regulagáo do trabalho juvenil no Brasil, Silva e
Borges (2007b) sugerem que o ensino formal, e programas que envolvem contratagáo de
estagiários, tem sido pouco eficientes no sentido de favorecer a inclusáo no mercado de
trabalho. Resultados deste estudo também indicam que o 'Programa do Jovem Aprendiz",
desenvolvido através da parceria entre governo (Federal e Estadual) e instituigoes
profissionalizantes, tem sido mais efetivo como meio de insergáo profissional, pois neste os
jovens já saem dos cursos com contratos de trabalho.
Sendo assim, a tendencia de aliar o projeto de vida a educagáo e insergáo no trabalho
pode ser ainda considerada como alternativa positiva para jovens de comunidades carentes.
Só que, as insergoes escolar e profissional, nao sao os únicos elementos que contribuem
para a construgao de um projeto de vida, pois conforme apresentado anteriormente, sao
varias as dimensoes da vida que podem ser exploradas e que concorrem para que a pessoa se
sinta realizada.
Daí a importancia de se considerar os bens relacionáis, como cruciais para concretizagáo
do projeto de vida do sujeito, ou seja, aqueles acessíveis através dos lagos de parentesco,
amizade, e vizinhanga, sustentados por vínculos afetivos e de solidariedade que reforgam o
apoio mutuo diante de situagoes adversas.
Observou-se que, no enfrentamento de situagoes mais significativas ou decisivas para
suas vidas, os participantes da pesquisa referiram que recorrem inicialmente ás pessoas com
as quais se sentem vinculados, por correspondencia de interesses, por afinidade ou maior
aproximagáo dentro de seu contexto de vida. Assim, a capacidade de manter o
relacionamento com os membros da familia, ou de estabelecer vínculos fora do ambiente
familiar aparece também como recurso utilizado por estes.
Griffa (2001) aponta que a iniciativa de procurar outras pessoas e ampliar lagos de
amizade é um movimento saudável, como dado do desenvolvimento psíquico do individuo,
e importante para seu processo de crescimento, em diregáo á maior autonomía e
independencia, e que isto nao implica necessariamente em ruptura com a familia.
Nesta perspectiva, os grupos existentes na comunidade, desde amigos da vizinhanga,
até instituigoes educativas, esportivas, religiosas, culturáis e artísticas apresentados pelos
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participantes também compoem os bens relacionáis aos quais tém acesso no meio no qual
estao inseridos.
Junken (2005) constatou em sua pesquisa que a escola tem papel fundamental para a
construgao do projeto de vida, mais do que pela formagao, mas por ser um espago em que se
estabelecem relagoes que favorecem a reflexao sobre o projeto de vida. Segundo esta autora,
muitos jovens encontram em professores e colegas modelos de referencia, principalmente
acerca de opgoes profissionais, diferentes daqueles oferecidos por seus pais.
Nos relatos das pessoas entrevistadas para esta pesquisa, observou-se que os projetos
desenvolvidos ñas comunidades parecem ter papel importantíssimo como local de acesso a
informagoes sobre novas opgoes de caminho, para ampliar o horizonte cultural das pessoas
que destes participam. Mas professores, educadores e colegas assumem papel relevante
como incentivadores, sendo pessoas com as quais os participantes confrontam suas decisoes
e através das quais buscam apoio para a realizagao de suas metas.
Entende-se, portanto, que os bens relacionáis sao recursos que favorecem a inclusao
social, e aumentam o leque de possibilidades para realizagao de projeto de vida pessoais.
Considerares fináis
Retomando o objetivo inicial do presente trabalho - compreender e analisar iniciativas
de combate a pobreza com vistas a inclusao social na regiao urbana de Salvador, e utilizando
categorias que possibilitem a investigagao do predominio de estrategias de sobrevivencia ou de
projetos de vida presentes em familias de baixa renda - pode-se concluir ter havido um avango
significativo nesta diregao, sem, entretanto, ter-se esgotado tal propósito.
Ao investigar as condigoes que favorecem o desenvolvimento de iniciativas de combate
a pobreza de todos os participantes envolvidos, confirma-se o que se esperava encontrar
como resultado. O processo de combate a pobreza inicia-se quando a pessoa formula um
projeto de vida e se aplica em realizá-lo, objetivando melhorar a moradia, a educagao, a
saúde, e o trabalho próprios ou de algum membro da familia. A iniciativa de formular um
projeto de vida teve mais probabilidade de existir com constancia nos casos em que a familia
(principalmente a mae) dá suporte, estimula, acolhe e valoriza a pessoa. De maneira
semelhante, as associagoes locáis ou de origem externa a comunidade, governamentais e nao
governamentais, sao fundamentáis para a formagao, o suporte técnico e psicológico,
possibilitando e revisando o projeto de vida em execugao. Trata-se de entidades que reúnem
equipes multiprofissionais articuladas em um projeto educativo claramente voltado para o
fomento da relagao entre a pessoa e o outro no horizonte da temporalidade ampia.
Avaliando as estrategias metodológicas utilizadas no estudo, identifica-se que elas
permitiram que fosse entrevistado um número considerável de participantes,
proporcionando urna visao ampia de pessoas em condigao de pobreza. Finalmente, diante da
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realidade constatada no presente estudo, identificou-se a necessidade de pesquisas futuras
que aprofundem o estudo qualitativo do tema. Além disso, parece bastante relevante
investigar também a figura paterna. Outro aspecto interessante seria fazer um estudo sobre a
educagao, a importancia das políticas de combate a pobreza, e políticas familiares.
Referencias
Becker, G. S. (1962). Investment in human capital: a theretical analysis. The Journal ofPolitical
Economy, 70(5), 9-49.
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Nota sobre os autores
Giancarlo Petrini é doutor em Ciencias Sociais (PUC-SP) e diretor do Pontificio Instituto
Joao Paulo II para Estudos sobre Matrimonio e Familia. E-mail: [email protected]
Miña Alves Ramos de Alcántara é doutora em Saúde Coletiva (UFBa) e professora do
Programa de Pós-Graduagáo em Familia na Sociedade Contemporánea da UCSal. E-mail:
[email protected]
Lucia Vaz de Campos Moreira é doutora em Psicología (USP) e professora do Programa
de Pós-Graduagao em Familia na Sociedade Contemporánea da Universidade Católica do
Salvador. E-mail: [email protected]
Lílian Perdigao Caixeta Reis é doutora em Psicología (UFBa). E-mail:
[email protected]
Ricardo Sampaio da Silva Fonseca é mestre em Economía (UFBa). Email:
[email protected]
Marcelo Couto Dias é mestrando do Programa de Pós-Graduagao em Familia na
Sociedade Contemporánea da Universidade Católica do Salvador, [email protected]
Data de recebimento: 31/10/2011
Data de aceite: 18/05/2012
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estudo ator-rede para o brinquedo artesanal: heranca que se traduz em Minas. Memorándum, 22, 187-210.
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Um estudo ator-rede para o brinquedo artesanal: heranga que se traduz
em Minas
An actor-net study of the artisan toy: heritage that is translated in Minas
María de Fátima Aranha de Queiroz e Meló
Roselne Santarosa de Souza
Yone Andrade Paiva Rogério
Ana Luiza Brandao Leal
Fernanda Rodrigues Ferreira
Liliam Medeiros da Silva
Elaine Almeida de Andrade
Universidade Federal de Sao Joao del-Rei
Brasil
Resumo
Este artigo apresenta urna revisao crítica de literatura que teve como objetivo
contextualizar, em urna regiao de Minas Gerais, a pesquisa sobre os brinquedos e jogos
tradidonais que, passando de grupo em grupo, foram assumindo versoes particulares na
producao artesanal. Tendo como suporte teórico-metodológico a Teoría Ator-Rede,
defendemos a realizacao desta investigacao no campo da Psicologia Social num
movimento de mapear, registrar e preservar objetos que, em sua mistura de
materialidade e socialidade, fazem parte da memoria e da identidade dos grupos de
brincantes. Nesta primeira etapa do projeto, para seguir o tracado deixado por estes
artefatos, foi realizado este estudo no sentido de fundamentar a nossa entrada no campo
para a verificacao das práticas artesanais vigentes na regiao.
Palavras-chave: Brinquedos e jogos; memoria coletiva; psicologia social
Abstract
This article presents a critical review of literature that aims at contextualizing, in a región
of Minas Gerais, the research about toys and traditional games that, passing from group
to group, have been assuming particular versions in the artisan production. Having the
Actor-Net Theory as a theoretical-methodological support, we defend the
accomplishment of this investigation in the field of Social Psychology in a movement of
mapping, registering, and preserving objects that, in their mixture of materiality and
sociality, are part of the memory and identity of the playful groups. In this first stage of
the project, taking into consideration that we intend to follow the traces left by these
devices, this study was conducted in order to fundament our entrance in the field for the
verification of the effective artisan practice in the región.
Keywords: Toys and games; collective memory; social psychology
1. Introdujo: um estudo de Psicologia Social para os brinquedos artesanais
Este estudo foi gerado a partir da necessidade de sistematizar as discussoes realizadas
pelo grupo da Brinquedoteca da UFSJ num movimento retrospectivo que buscou mapear o
tragado de objetos tradicionais cujas tradugoes aínda podem ser encontradas em brinquedos
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fabricados nesta regiao de Minas Gerais. Entendemos que a pesquisa em torno dos
brinquedos artesanais que ganharam relevancia psicológica através da historia e se
constituíram como indicios das sociotécnicas1 dos tempos e lugares em que sao encontradas
tem como objetivos: defender a possibilidade de ter os objetos inseridos no campo de estudos
da Psicología Social; trazer as criangas que freqüentam a Brinquedoteca a possibilidade de
conhecer e atualizar, em suas práticas lúdicas, aquelas que fazem parte da memoria de seus
grupos de pertenga, de seus fazeres e interagoes plasmados em materiais; verificar se - e em
quais versoes - estes brinquedos sobrevivem nos grupos de brincantes e entre aqueles que os
produzem artesanalmente; registrar e preservar a memoria de objetos lúdicos que podem
estar fadados a extingao.
Apesar de toda a mobilizagao contemporánea em torno das novas tecnologías,
constatamos que há práticas lúdicas extremamente antigás e tradicionais que se mantém,
deixando potentes alguns brinquedos na condigao de mensageiros de uma memoria coletiva
e catalisadores de agoes, fazendo com que, em torno deles, acontegam interagoes resultantes
de nossa condigao sociotécnica. Para Latour (2001), há uma simetria a ser explorada entre
sujeitos e objetos: os humanos criam objetos interferindo diretamente sobre eles, mas estes
objetos também interferem ñas formas de viver, de ser e estar no mundo dos homens. Nossas
vidas nao transcorrem isoladamente da agáo que os objetos exercem sobre nos, ocorrendo de
constituirmos certas díades em que humanos e nao humanos2 tornam-se entidades híbridas.
A escolha do brinquedo artesanal funciona aqui como uma das portas de acesso para
uma Psicología Social expandida em suas fronteiras e em seus campos de atuagáo para além
das interagoes entre individuos. As técnicas, ou sociotécnicas, como nos aponta Latour
(2001), sao mediadores, ao mesmo tempo meios e fins, "artefatos que penetram no fluxo de
nossas relagoes e que recrutamos incessantemente" (p. 227). Segundo o autor, os objetos tém
uma importancia decisiva na vida dos humanos, "refazendo as relagoes sociais por
intermedio de novas e inesperadas fontes de agáo" (idem). Haveria uma troca de
propriedades entre humanos e nao humanos: "do que se aprendeu de náo-humanos e se
transferiu para a esfera social e do que se ensaiou na esfera social e se re-exportou para os
nao humanos" (p. 243). Segundo Moraes (2003), uma Psicología Social baseada ñas idéias de
Latour teria sua tradugao no acompanhamento de como se fabricariam homens e objetos em
constante processo de transformagáo mutua.
1
O adjetivo sociotécnico aparece para representar um híbrido da relagao entre humanos e nao humanos,
reintegrado polos que comumente aparecem como opostos. Para Latour (2001), toda a interagao humana é
sociotécnica, pois, ñas nossas interagoes, nao nos defrontamos somente com objetos, nem estamos limitados
apenas a vínculos sociais.
2
Nao humanos aqui nao significa o contrario de humanos, mas os elementos de materialidade que
arregimentamos nos coletivos para construir objetos e cenários que concorrem para a construgao de nossa
humanidade. A mésela de elementos humanos e nao humanos compoem o que Latour (2001) chama de híbridos.
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Em lugar de vínculos entre homens, trata-se de seguir os vínculos entre
humanos e nao humanos e, mais do que isso, trata-se de perguntar pelos
efeitos que tais vínculos produzem. (...) Entao uma Psicología Social nao é
aquela que lida com o homem em sociedade, mas aquela que acompanha,
segué o processo de fabricacao do homem e dos objetos (p. 4).
Da mesma forma, Spink (2003) realga a importancia do estudo dos objetos por
considerar que o social nao é dependente, nem independente das materias, mas produz
redes de materiais heterogéneos e é produzido simultáneamente por elas. Na defesa desta
idéia, podemos citar Law e Mol (1995):
Talvez materialidade e socialidade se produzam juntas (...) Talvez, entao,
quando nos olhamos para o social nos também estejamos olhando para a
producao de materialidade. E quando nos olhamos para os materiais nos
estejamos testemunhando a producao do social (p. 274).
Estudando os brinquedos artesanais, abrimos a possibilidade de reunir historias muito
variadas que envolvem usos e costumes de grupos sociais diversos, pois os objetos refletem,
localmente, hábitos e costumes dos povos, ao mesmo tempo em que apontam para as
técnicas e para um imaginario circulantes como fabricagoes de uma época, principalmente
em termos de como as criangas se apropriam de sua cultura, seja traduzindo aquilo que lhes
é oferecido pelos adultos, seja reinventando a cultura em que estao imersas.
Citando Brougére (2004):
Para compreender um brinquedo, é preciso saber de onde ele vem (o sistema
de producao e difusao no qual se inscreve), o significado que carrega e que
faz dele a expressao de uma cultura da qual o seu criador nem sempre tem
consciéncia, na medida em que se inscrevem na evidencia, na obviedade que
concerne a crianca, a brincadeira... (p. 15).
Os objetos guardam uma historia que inclui a necessidade de seu aparecimento,
envolvendo uma rede variada de eventos e materiais que se interpenetram e se miscigenam,
produzindo uma historia que se inscreve em seus produtos. Podemos utilizar esta matriz
para o entendimento do homem na sua relagao com as tecnologías, nao acontecendo
diferentemente com os brinquedos enquanto produtos destas interagoes. Antes fabricados
artesanalmente a partir dos restos de material utilizado ñas oficinas dos artesaos,
beneficiaram-se pelas engrenagens movidas a corda. Sendo depois animados por pilhas e
baterias, hoje chegam aos modos de brincar virtualizados pelas tecnologías digitais.
Atualmente lhes damos tanta importancia, a ponto de termos espagos destinados a produzilos, comercializá-los, abrigá-los e estudá-los.
Enveredando pela historia das técnicas como parte do tecido social que lhes
possibilitou a emergencia, temos condigoes, a partir dos objetos, sejam eles mais simples ou
mais elaborados, de reconstituir a historia da civilizagao pelos vestigios que nos oferecem.
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Simondon, em seu livro Du mode d'existence des objets techniques, escrito em 1958, nos diz que,
pelo exame dos objetos (sua forma, seus materiais, a técnica utilizada em sua confecgáo), é
possível falar do estado das técnicas de um tempo. De fato, objetos artísticos ou lúdicos brinquedos e jogos - nos mostram vestigios ou sao indicadores das inovagóes sociotécnicas
de um tempo. Jacomy (1996) nos traz o exemplo do realejo (brinquedo musical) como um dos
primeiros instrumentos dotados de manivela, antes mesmo de sua utilizagáo em outras
máquinas. Ou das teclas, hoje usadas nos computadores, que já tinham aparecido antes, no
piano e ñas máquinas de escrever. Mumford, em Technics and Civilization, de 1934, faz urna
observagáo semelhante quanto ao papel desempenhado por brinquedos e outros
instrumentos no estímulo a importantes invengóes, dando, como exemplos, as bonecas que
se mexiam sozinhas, os relógios dotados de figuras animadas, a lanterna mágica que deu
ensejo ao cinema e todos os objetos que, contendo, a principio, o desejo de satisfazer um certo
espirito lúdico, posteriormente instigaram a imaginagao mecánica dos inventores de técnicas
que estáo por ai, nos objetos que povoam o nosso dia-a-dia (Queiroz & Meló, 2007).
2. A Teoría Ator-Rede como suporte teórico-metodológico
Para o trabalho de mapeamento dos brinquedos artesanais, utilizamos a Teoria AtorRede, também conhecida como Sociología da Tradugáo, pois esta se preocupa em investigar
como alguns tipos de interagao conseguem se estabilizar e se reproduzir mais do que outros
e como os elementos de urna rede váo se mesclando, se modificando, se complexificando,
fazendo novas conexoes e produzindo algumas estabilizagoes provisorias. Como qualquer
outro fenómeno tomado para estudo, o brinquedo artesanal, sob a ótica da Teoria Ator-Rede,
emerge de urna rede de elementos heterogéneos que, em conexáo, váo produzir méselas
muito particulares entre o engenho humano e a materialidade com a qual os humanos
estabelecem parcerias. Brinquedos e jogos sao frutos de urna longa historia em que as
tecnologías vigentes em cada época váo lhes conferindo um contorno específico.
A Teoria Ator-Rede nasceu no interior de um campo chamado Estudos da Ciencia e
Tecnologia e vem sendo trabalhada, desde os anos 80, para atender ao Principio de Simetría3
instaurado pela Antropología das Ciencias, postulado por Latour e Callón, que propóe a
introdugáo dos objetos no campo de investigagáo das ciencias humanas. Para esta
abordagem, o objeto é inseparável de tecido social do qual faz parte, ñas suas etapas de
produgáo, apropriagáo e difusáo (Dosse, 2003), sendo a sua historia reveladora de toda urna
rede de agóes desencadeadas em/por varios tipos de atores que nao só os humanos.
Relacionar dados sobre um objeto que protagoniza as interagóes junto com os humanos pode
3
O Principio de Simetria Generalizada propoe manter, sob o mesmo arcabougo de análise, elementos humanos e
nao humanos, natureza e cultura, crenga ingenua e ciencia, aquele que estuda e aquele que é estudado; teoria e
prática, coisa e representagao, interioridade e exterioridade, ciencias da natureza e ciencias humanas, entre outras,
evitando falsas dicotomías e visoes compartimentalizadas da realidade (Dosse, 2003).
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Meló, M. F. A. Q., Souza, R. S., Rogério, Y. A. P., Leal, A. L. B., Ferreira, F. R, Suva, L. M. & Andrade, E. A. (2012). Um
estudo ator-rede para o brinquedo artesanal: heranca que se traduz em Minas. Memorándum, 22, 187-210.
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nos informar sobre a influencia exercida ñas redes as quais pertence ou pertenceu, antes de
tornar-se invisível pelo hábito ou pela obsolescencia. Para a Teoria Ator-Rede, os objetos
introduzem diferengas ñas situagóes, acrescentando durabilidade as competencias sociais,
levando em conta que o desenvolvimento de qualquer agao se faz num ziguezague de
humanos e nao humanos.
Segundo Queiroz e Meló (2007), os brinquedos artesanais, herdeiros das versoes
tradicionais podem ser estudados como emergentes dos movimentos de tradugáo em que as
similaridades e diferengas vao se desdobrando em fungao das conexoes feitas com novos
elementos. Podemos constatar, ao redor do mundo, as inúmeras tradugoes por que passam
brinquedos tradicionais4, havendo um padrao que se mantém minimamente estável (a forma
com que se apresenta, assim como as regras básicas de sua utilizagáo), permitindo-nos
reconhecer o objeto, assim como há mudangas que vao ocorrendo nos ambientes onde vai
sendo encontrado, ao assumir novas feigoes (materiais e estilos utilizados para sua confecgáo,
variagoes em torno das formas de brincar) de acordó com a cultura, com os grupos de
brincantes, com a geografía e as condigoes materiais do lugar. Ao passar de máo em máo, o
brinquedo/jogo é traduzido e passa a ter urna autoria coletiva, indo de um enunciado local a
outro de implicagoes gerais e vice-versa.
Seguindo a lógica das tradugoes, Latour (2001) insere os objetos na condigáo de
híbridos sociotécnicos, urna vez que emergem da tessitura complexa entre sociedades e suas
tecnologías, polos que, segundo este autor, nao podem ser estudados separadamente, nem de
modo antagónico. Cada objeto pode ser tomado dentro do que Latour (1999) chama de serie
paradigmática5, assim como podemos imaginá-lo, em urna serie sintagmática6. O martelo,
objeto freqüentemente evocado neste tipo de ilustragáo, resulta de urna interagao partilhada
com nao-humanos que, para tanto, foram extraídos, recombinados e socializados para
perenizar urna agao no tempo e no espago. Numa longa serie paradigmática através da
historia, o martelo sofrerá todos os tipos de transformagóes que vao dar ensejo a emergencia
de possíveis substitutos em sua incrível variedade de formas, todos descendentes do martelo
primitivo. Na serie sintagmática, o mesmo objeto pode ser visto sob outro ángulo, na
interagao atual que se dá com seu usuario, impondo modulagáo nos gestos e na forga
impressa ñas agóes para seu manuseio.
4
Como o bilboqué, o diaboló, o piao, a pipa, a peteca, o mané gostoso, a cama de gato, os presepios, entre outros.
Entendemos que a palavra paradigmática é usada, neste caso, para qualificar um eixo de análise no qual as
formas de um prototipo servem de modelo para os demais objetos de um mesmo grupo, ao longo do tempo.
(Dicionário da Enciclopedia Mirador, Houaiss, 1976, p. 1277).
6
Entendemos como sintagmático o eixo no qual podemos perceber, no presente, como se dá a utilizagáo de um
determinado objeto com todos os desdobramentos que podem emergir numa interagao sociotécnica (adaptagao
feita a partir do Dicionário da Enciclopedia Mirador, Houaiss, 1976).
5
Memorándum 22, abr/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
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Meló, M. F. A. Q., Souza, R. S., Rogério, Y. A. P., Leal, A. L. B., Ferreira, F. R, Suva, L. M. & Andrade, E. A. (2012). Um
estudo ator-rede para o brinquedo artesanal: heranca que se traduz em Minas. Memorándum, 22, 187-210.
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Latour (2000) fala desses objetos bañáis em nosso cotidiano como "caixas-pretas"7 cuja
fungáo é obvia e nao desperta nenhum tipo de dificuldade ou estranhamento. Menciona um
abridor de latas comum sendo utilizado pela primeira vez por uma crianga,
impondo/sugerindo todas as estrategias necessárias para dominar a técnica nele embutida
ao longo de uma serie que pode ser tomada, a título da nossa reflexáo, nos dois eixos
mencionados ácima: paradigmático porque congela, pereniza todo o esforgo contido neste
objeto, desde a primeira vez em que se tornou imperativo o simples ato de abrir uma lata,
fato que nos remete: a necessidade de usar latas, ao aparecimento da tecnología para
conservar e armazenar alimentos, ao tipo de material adequado para a embalagem e para o
transporte, aos múltiplos designs que foram assumindo lata e abridor, a construgao dos
hábitos alimentares humanos, numa cadeia que chega até a situagao atual, dentro de uma
condigao de estabilizagao provisoria de toda a rede; e sintagmático, porque impoe uma forma
específica de manejo para obter o efeito desejado: a forga, a inclinagao da mao, o ponto de
apoio na lata, o ritmo e a diregao dos movimentos. Esse exercício pode ser desenvolvido para
qualquer objeto que nos rodeia, constituindo-se em uma chave para a análise de nossa
própria humanidade: haverá uma historia para contar que será a nossa própria historia; a
concretude do objeto em questáo será a de um híbrido que terá, na sua fabricagáo, as
propriedades de nao humanos emaranhadas com as nossas propriedades, pois será materia
extraída, recombinada e socializada; sua presenga, obscurecida pela sua obviedade, carregará
uma agáo delegada por nos no tempo e no espago, podendo significar um convite, uma
permissáo, uma interdigáo, possibilidades diversas desenvolvidas a partir de materiais muito
heterogéneos cujo resultado em nada se parece conosco, nem com a materia bruta de que sao
feitos8. Da mesma forma, os brinquedos, como qualquer objeto, se oferecem para estudo
como um produto das nossas relagoes sociotécnicas (Queiroz & Meló, 2007).
3. Metodología
Este artigo refere-se a uma parte mais geral e introdutória em que seguimos as redes do
brinquedo artesanal buscando fundamentar a pesquisa com a revisao de literatura pertinente
e com a nossa entrada no campo para a verificagáo das práticas artesanais vigentes na regiáo.
Ao longo de nossas buscas, verificamos que o estudo dos brinquedos, salvo excegoes9, nao
costuma aparecer em produgoes académicas nacionais, sendo mais comum encontrar
7
Caixas pretas, segundo Latour, sao "fatos inegáveis", "máquinas altamente sofisticadas", "teorías eficazes",
"provas irrefutáveis", enfim, tudo aquilo que é dado como certo, pronto, usado por todos -"ponto de passagem
obrigatória"-, cuja forga e solidez apontam para uma grande quantidade de associagoes que mantém coesa uma
multidao de aliados, com a expectativa de operar bons efeitos (Latour, 2000, p. 230).
8
Veja-se o exemplo de uma cerca para conter os rebanhos.
9
Entre elas, podemos verificar os brinquedos atrelados aos modos de brincar nos volumes 1 e 2 de Carvalho, A.
M. A. e outros, Brincadora e Cultura: viajando pelo Brasil que brinca, Sao Paulo: Casa do Psicólogo em que os autores
mapeiam recursos lúdicos verificados em diversas regioes do país .
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informagoes a seu respeito em sites que reúnem dados advindos de fontes estrangeiras. O
grupo de bolsistas e estagiárias do projeto esteve implicado, portante, com a discussao de
material encontrado em livros nacionais e estrangeiros, assim como na internet,
principalmente em sites de museus europeus que nos trouxeram informagoes sobre a historia
dos brinquedos tradicionais escolhidos para estudo. O grupo se reunia semanalmente para
colocar a prova as construgoes realizadas a partir deste material e para tragar estrategias de
busca. Como forma de abordar o campo, algumas visitas também foram feitas as oficinas de
artesaos, assim como a museus (Museu do brinquedo e Museu de Artes e Oficios em Belo
Horizonte e Museu Regional de Sao Joao Del-Rei). Desdobrando-se em outras agoes do
projeto cujos resultados nao serao o nosso foco deste artigo, cada membro da equipe
dedicou-se ao estudo relativo a um brinquedo ou jogo artesanal, tragando, para cada um
deles: 1. as suas origens: onde, quando e como surgiu, como entrou em nossa cultura; a que
outras áreas do conhecimento o objeto pode estar ligado (Historia das religioes? Historia dos
esportes? Folclore? Atividades da vida cotidiana? Técnicas? Descobertas científicas? Como
aparece em outros lugares?); 2. seu deslocamento na passagem de grupo para grupo; 3.
denominagoes que recebe através da análise etimológica dos termos típicos nos diversos
lugares: a que historias remetem? Como os nomes podem encerrar a historia dos usos e
significados dos objetos para os grupos humanos que deles fazem uso; 4. tradugoes possíveis
(formas, materiais utilizados na sua confecgáo), além da descrigáo do seu processo de
confecgáo através das narrativas dos artesaos e das versoes contemporáneas; 5. maneiras de
apropriagáo do jogo pelos grupos culturáis, atividades eliciadas com seus combinados de
regras, incluindo os relatos das geragoes; aprendizagens realizadas através dos jogos (a que
se prestam no imaginario dos seus usuarios, como entram em suas historias, que estrategias
propiciam).
O material coletado teve como produto final um Catálogo10 de Brinquedos e Jogos
Artesanais que foi introduzido por esta discussao inicial permeando o conjunto dos
brinquedos artesanais pesquisados e sua relagáo com o artesanato local, seguindo-se de
capítulos onde cada brinquedo ou jogo protagonizava o estudo.
4. Revisao de Literatura
4.1. Brinquedos: objetos que carregam historias
Os brinquedos sao objetos que, desde a mais remota antiguidade, despertam o
interesse de criangas e também de adultos, visto que, para as criangas, sao instrumentos que
10
O Catálogo de brinquedos e jogos artesanais resultou de projetos desenvolvidos na Brinquedoteca da UFSJ com
apoio do CNPq, no ano de 2007, e Fapemig, nos anos de 2009 e 2010. Neste momento o material passa por revisao
para possível publicagao.
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instigam a imaginagao e fazem com que estas se insiram num mundo mágico de fantasia e
faz de conta (Benjamín, 1984; Vygotsky, 1930/1984). Já para alguns adultos, os brinquedos
constituem urna forma de gerar recursos financeiros e também, para muitos artesáos, sao
parte de urna paixáo pessoal que busca resgatar objetos que fizeram parte de sua infancia e
foram se perdendo a partir do processo de industrializagáo.
Os brinquedos sao táo comuns no nosso dia-a-dia que muitas vezes nao paramos para
pensar a respeito de perguntas simples que envolvem esses objetos, tais como: o que vem a
ser um brinquedo? Qual a sua origem? Como se inseriu num sistema de produgáo e trocas?
Sao questoes importantes que, em muitos momentos, passam despercebidas.
Nos dicionários etimológicos da língua portuguesa a que tivemos acesso, verificamos
que a palavra brinquedo vinha de brinco que, além do sentido usual de pingente para as
orelhas, também significava distragáo infantil, gracejo, brinco de criangas. Para a palavra
brincar, da qual brinquedo e brinco sao rizotónicos, apontam-se como origens próximas ou
remotas algumas hipóteses: anglosaxónica, de springan, no sentido de pular e de bli(n)kan, no
sentido de gracejar, sendo ambas formas convergentes; latina, através das formas vinclu,
vincru, vrinco, das quais brinco seria urna corruptela. A palavra brinco que deu origem a
brincar e brinquedo é de utilizagáo mais antiga na historia (século XVI), com a aparigáo da
palavra brinquedo datada de 1844 (século XIX). Igualmente do latim jocari, vem a palavra
jouer, brincar, interpretar (jogo de faz-de-conta), em francés, que dá origem a jouet,
brinquedo. Para toy, no inglés, a análise etimológica aponta a palavra como derivada de
tracíer, do francés, fazendo a indicagáo de que o significado possa estar ligado a rastro, trilha,
provavelmente aludindo a algo que leva a, que deixa tragos, que segué ou imita. A análise
etimológica da palavra brinquedo nos mostra que nao podemos pensar este objeto
independentemente da agáo de brincar e sem verificar a sua trajetória histórica (Queiroz &
Meló, 2007).
Há lendas e suposigóes de que a existencia de objetos semelhantes aos brinquedos que
hoje conhecemos teria ocorrido em tempos diferentes e em varias civilizagoes. Nao se sabe ao
certo se estes objetos teriam sua origem em determinado lugar, espalhando-se através dos
movimentos humanos realizados sobre a geografía do planeta, ou se estes objetos nasceriam
impares em cada regiáo, mas, ao mesmo tempo, síncrones com todos aqueles inventados em
outros lugares e em outros tempos, como resposta as necessidades de ordem prática
vivenciadas pelos humanos. Assim, um objeto com determinadas propriedades e destinado a
certos usos poderia ser encontrado em versóes mais ou menos semelhantes, mas guardando
algumas diferengas em fungáo das particularidades do tempo e espago em que é construido,
assim como dos usos que lhes sao atribuidos.
Referindo-se ao brinquedo, Kishimoto (1993) apresenta hipóteses para o fato de
determinados objetos aparecerem em diversos povos distantes geográficamente. Urna délas
prevé a transmissáo de aprendizagens de um grupo a outro pelo contato através das rotas
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dos viajantes ou comerciantes, a partir de um movimento de disseminagao de práticas. A
outra hipótese fala da criagao independente e simultánea por diversos povos que nao
tiveram contato entre si, argumento que está de acordó com a idéia de Leroi-Gourham
(1943/1984a, 1945/1984b) sobre a criagáo das técnicas como um movimento para fazer face
as exigencias da vida cotidiana com todos os desafios que a mais simples das atividades nos
impoe. Estas hipóteses nos parecem ótimos exemplos de como atuam as redes e de como a
Teoria Ator-Rede - TAR pode nos ajudar na compreensáo destes fenómenos (Queiroz &
Meló, 2007).
Segundo Vygotsky (1930/1984), os brinquedos sao concebidos como artefatos
produzidos por humanos mediados pelos contextos em que estáo imersos e que, ao longo da
historia, surgem como uma copia de objetos da realidade que se oferecem as criangas como
suportes de suas brincadeiras, ou construidos por elas próprias a partir de modelos e
materiais disponíveis no ambiente, feitos em tamanho menor e compatível com as dimensoes
dos "pequeños adultos", tal como antes eram vistas as criangas. Prestam-se ao entendimento
e elaboragáo da realidade em que vivem as criangas dentro de seu grupo social.
Benjamín (1984), ao referir-se a historia cultural do brinquedo, ressalta que estes objetos
nasceram ñas oficinas de artesáos, sendo produtos secundarios das industrias
manufatureiras: animáis de madeira surgidos das sobras do trabalho do marceneiro,
soldados de chumbo como aproveitamento dos restos do trabalho do caldeireiro, as bonecas
de cera como subproduto das fábricas de velas e assim por diante. Para este autor, os
brinquedos sao um mudo diálogo simbólico entre a crianga e seu povo, mesmo quando nao
imitam os instrumentos dos adultos. Primitivamente, ressalta o autor, os brinquedos teriam
sido objetos de culto que, mais tarde, gragas a imaginagao das criangas, transformaram-se em
objetos lúdicos. O chocalho, por exemplo, serviu como instrumento de defesa contra os
maus espirites e nao é por acaso que costuma ser dado ao recém nascido, oferecendo-lhe
protegáo na sua condigáo de indefeso. Igualmente, o arco, a bola, a roda e o papagaio teriam
tido uma fungao nos rituais e atividades do mundo adulto para depois se transformarem em
brinquedos.
Aries (1981) expressa a dificuldade de fazer a distingáo entre brinquedos e outros
objetos produzidos em miniatura, constatando que nao eram as criangas as únicas a se
servirem das réplicas. Miniaturas de objetos também eram utilizadas por adultos em cultos
domésticos ou funerarios, ou até mesmo como instrumentos do bruxo ou feiticeiro, como no
caso da boneca. Diz o autor que o gosto de representar, de forma reduzida, coisas e pessoas
do cotidiano, resultou numa arte e num artesanato popular para satisfazer adultos e distrair
criangas, dando como exemplo os presepios e outras representagoes das cenas marcantes do
imaginario popular. O gosto pelos bibelós, objetos em miniatura tomados como interessantes
indistintamente por criangas ou adultos, consagrou uma tendencia cuja industria foi
nomeada bimbeloterie. Segundo Aries (1981), o bibeló, que se tornou, com o tempo,
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monopolio de criangas, era, no século XIX, objeto de salao e de vitrines: moveizinhos, louga
minúscula e toda a sorte de redugóes de objetos do cotidiano que jamáis tinham sido
destinados as brincadeiras de criangas passaram ao dominio da infancia. Outros objetos
destinados a distragao dos adultos, em seu tempo de ocio, como os fantoches, teatros de
marionetes e bilboqués tiveram seu período de florescimento e moda no século XVIII e XIX,
até serem deixados e apropriados como brinquedos para as criangas. As bonecas também
passaram pelo mesmo processo no deslocamento de seu público: do século XVI ao inicio do
século XIX, serviram como manequins de moda as mulheres elegantes, antes de entrarem
para o universo infantil. A sua passagem a condigao de objeto lúdico foi se dando, segundo o
autor, a partir 1600, consumando-se a "especializagao infantil do brinquedo" (p. 49), devido a
importancia atribuida a infancia, revelada pela iconografía e pelos trajes desde o fim da
Idade Media.
Brougére (2002) define brinquedo como um objeto passível de ser utilizado como
suporte de urna brincadeira, podendo ser, num primeiro caso, um objeto manufaturado, um
objeto fabricado pela própria crianga que lhe atribui significado lúdico enquanto dura a
atividade de brincar. Num segundo caso, seria um objeto industrial ou artesanal oferecido
pelos adultos a crianga que assume a condigao de consumidora. Brougére (2004) declara sua
dedicagao ao estudo do brinquedo desde a década de 70 e vé, neste objeto, urna fonte
inesgotável de pesquisa acerca dos modos como cada cultura incorpora e reflete, através de
artefatos lúdicos, as suas formas de relagao, numa tessitura complexa de fungoes que
abarcam possibilidades de agao, mecanismos e movimentos, assim como os significados
atribuidos a essas agoes. Para ele, tanto na brincadeira como no brinquedo, "há urna faceta de
atividade e urna faceta de expressao simbólica", podendo aparecer o brinquedo como
"desencadeador tanto ao nivel do agir como ao nivel do sonhar" (p. 69). Para Benjamim
(citado por Rabinovich, 2003), "enquanto o brinquedo representa a proposta do adulto, o
brincar expressa a resposta da crianga que, deste modo, manifesta a sua autonomía
escolhendo com e o que brincar" (p. 11)
4.2. Brinquedos em diferentes versoes: tradicional, popular, artesanal, industrializado,
ecológico.
Buscando definir nosso objeto de estudo, urna das primeiras tarefas que emergiram no
grupo de pesquisa foi a necessidade de estabelecer alguma delimitagao sobre o que seria um
brinquedo artesanal. Autores como Brougére (2002), Amado (2007) e Manson (2002), ao
buscarem urna distingao entre os varios tipos brinquedos segundo as técnicas que regem a
sua fabricagao, propoem a classificagao destes artefatos com as denominagoes de
"brinquedos industrializados", "brinquedos artesanais", "brinquedos populares",
"brinquedos ecológicos".
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Os brinquedos industrializados sao produzidos em larga escala e em serie. Segundo
Mefano (2005), a produgáo de brinquedos se iniciou como um subproduto de atividades
regidas por corporagoes de outros oficios, envolvendo, portante, outros campos da atividade
humana. Em Heskett (citado por Mefano, 2005), encontramos a historia da produgao de
brinquedos relacionada ao fluxo de inovagoes das tecnologías e dos materiais. Segundo este
autor, foi na Alemanha o nascedouro das primeiras industrias exclusivamente voltadas para
a produgao de brinquedos na Europa. Eram pequeñas fábricas originadas de oficinas
domésticas que se transformaram em negocios de familia, chegando a exportar pegas para
outros países.
Apesar de todo o crescimento e sofisticagao verificados na industrializagao de
brinquedos, Mefano (2005) considera que o brinquedo industrializado nao chega a substituir
as antigás técnicas de fabricagao do brinquedo artesanal, apontando dois fatores para a
manutengao deste último. O primeiro se assenta numa fala de Synésio Batista, entao
presidente da Associagao de Fabricantes de brinquedos (ABRINQ), proferida na abertura da
Feira Internacional de Brinquedos, em 2002, trazendo o dado de que a maior parte das
criangas brasileiras nao teria, nessa época, poder aquisitivo para comprar brinquedos
industrializados. Encontrados em feiras livres, mercados e mercearias, os brinquedos
artesanais eram os objetos lúdicos consumidos pela grande parte da populagao infantil sem
recursos, em muitas cidades do interior brasileiro, uma vez que a produgao artesanal,
incluindo a de brinquedos, é um dos meios de subsistencia da populagao. Com o incremento
do poder aquisitivo da populagao brasileira nestes últimos 8 anos, esta situagao pode ter
sofrido algumas mudangas no sentido de uma maior sofisticagao da produgao e distribuigao
do artesanato, sem, no entanto, excluir o brinquedo artesanal de seu nicho de consumo. Um
segundo fator é a convivencia, lado a lado, das versoes industrializadas com as versoes
artesanais de brinquedos, havendo, em alguns casos, segundo a autora, uma troca de
influencias entre ambas as partes: brinquedos industrializados sao copiados em materiais
acessíveis pelo trabalho artesao e brinquedos tradicionais confeccionados artesanalmente sao
cooptados pela industria de brinquedos em materiais como o plástico, a borracha e outros
polímeros.
Amado (2007) faz uma distingáo entre brinquedos artesanais e brinquedos populares.
Para o autor, os brinquedos artesanais sao aqueles produzidos por artesáos a partir de
materias-primas fácilmente encontradas no ambiente, geralmente vendidos em feiras e
romarias, servindo como tente de expressáo cultural de cada regiáo. Já os brinquedos
populares, sao confeccionados pelas máos da própria crianga ou pelos adultos que as cercam,
marcando uma diferenga de base em relagao as produgoes de profissionais especializados. Os
objetos desenvolvidos pelas criangas ou seus familiares exercem grande influencia no mundo
infantil, uma vez que a crianga está criando ou mesmo transformando aquele brinquedo em
algo de sua autoría. Além disso, é possível, através do contato com os mais velhos, o acesso a
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urna cultura vivida por eles, o que estabelece um maior contato sócio-afetivo e a tradugao de
elementos culturáis para o universo da crianga. Segundo Brougére (2002), existe urna
diferenga importante em relagáo a esses tipos de brinquedos, pois os brinquedos artesanais e
os industrializados sao "produzidos para as criangas e nao pelas criangas" (p. 63).
Tentar separar, em categorizagoes estáticas, o brinquedo tradicional de sua versao
popular ou entre este e o brinquedo artesanal mostrou-se tarefa ardua urna vez que, a todo
instante, nos deparamos com situagoes intermediarias de um continuo, caracterizando um
processo sempre móvel regido por variáveis muito heterogéneas. Urna pipa (papagaio de
papel, como também é conhecida), por exemplo, poderia estar alocada numa tripla
classificagao, enquanto um brinquedo tradicional, popular e artesanal: tradicional pela sua
antiguidade e maneira informal da transmissao de suas regras; popular, pois atinge
segmentos variados e se propaga, em algumas épocas do ano, a semelhanga de urna
"epidemia" por varias faixas etárias e classes sociais, sendo de baixíssimo custo e acessível,
tanto pelos materiais como pela técnica de confecgao, sempre repassada com sucesso de
geragao para geragao. Como classificar as versoes industriáis de brinquedos tradicionais
como, por exemplo, o beyblade11 ou o levitron12 que traduz contemporáneamente o piao de
madeira torneada? O que dizer também das fábricas de brinquedos artesanais que, pela
quantidade de pegas produzidas, caracterizariam muito mais um industrianato13 do que um
artesanato? Na classificagao de brinquedo popular, chegamos a encontrar os brinquedos
made in China com a argumentagáo de que estes seriam populares devido ao seu baixo custo.
Segundo Mefano (2005), a produgáo em larga escala de brinquedos com máo de obra
chinesa produziu, ao mesmo tempo, um fenómeno de barateamento e pasteurizagáo destes
objetos. Se, por um lado, o brinquedo industrializado se tornou acessível e se popularizou
pelo baixo custo de produgáo, por outro lado, percebemos que os brinquedos vendidos ñas
casas de "R$l,99" sao de qualidade duvidosa por nao seguirem as normas de seguranga
prescritas pelos órgáos de controle, além de copiarem grosseiramente e disseminarem de
forma massificada os elementos que representam. Na ausencia de marcas culturáis próprias,
os objetos perdem a identidade de origem e assumem urna versáo global única e
empobrecida. Brougére (2004) já chamava a atengáo para o fato de que os mesmos
brinquedos podem ser observados no universo lúdico das criangas de todo o mundo, seja na
Europa, na Asia, e ñas Américas, a partir de urna "lógica da globalizagáo de intercambios"
(p. 7), embora nem todos esses objetos tenham repercussáo idéntica em todos os lugares, urna
11
Beyblade é urna versao contemporánea do piao cuja produgáo foi iniciada pela Takara em 1997, sendo seguida,
em 2002, pela Hasbro que produziu prototipos baseados na serie correspondente de televisao. O brinquedo foi
muito popular entre os meninos, por se prestar a muitas formas de jogar e estar articulado a serie televisiva.
12
Produto industrializado que consiste em um piao adicionado por urna placa de acrílico e de urna base contendo
íons. O piao gira sobre a base acrílica e, quando esta é retirada, o piao passa a flutuar. Tem sido utilizado para o
ensino da física.
13
Oliveira (1986) define industrianato do brinquedo como urna producao manufaturada que se caracteriza pela
uniformidade de cores e modelos que se repetem para atender as demandas de um mercado.
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vez que cada objeto vai ser apropriado diferentemente, segundo as particularidades de cada
cultura. Este autor destaca que um estudo do brinquedo e dos seus usos deve estar enraizado
a um contexto cultural específico, segundo os costumes locáis que sao reveladores das
formas como sao travadas as relagóes nao só entre adultos e criangas, mas das criangas entre
elas, devolvendo ao mundo adulto como o entendem e como o elaboram através de seus
brinquedos e brincadeiras.
Segundo Law (1997), o que está em jogo, nestes processos em que os objetos ou
tecnologías vao se modificando, é o que ele chama de tradugao. Através deste conceito,
podemos perceber que fatos e artefatos, ao passarem de mao em mao, vao assumindo
características outras além daquelas que marcam a sua identidade original. Se adotarmos
urna lógica em redes (Serres, 1999), veremos o quanto a perspectiva linear limita a
compreensao dos fenómenos. A lógica das redes é urna lógica das tradugóes, pois se opera
em cadeias ñas quais varios tipos de materiais heterogéneos e dispares vao se conectando
para produzir méselas inéditas, num movimento incessante e inesperado que inclui
simétricamente o engenho humano e a durabilidade da materia. O conceito de tradugao nos
oferece um eixo de análise para o entendimento dos fenómenos estudados pelas humanas
ciencias14, assumindo urna posigáo de centralidade dentro da abordagem teórica da T.A.R.,
pois conjuga dois movimentos: o de associagáo (pelas conexóes estabelecidas) e o da agáo
(através das cadeias que vao produzindo a diferenga). Sendo dinámicos e por estarem
sempre em movimento, os fenómenos nao cabem em categorías estanques. Ao invés de
classificá-los em escaninhos, julgamos mais adequado pensar nestes objetos emergindo de
redes que combinam elementos heterogéneos. Um brinquedo tradicional, pela sua
sobrevivencia e antiguidade, pode ser apropriado de diversas maneiras, seja numa confecgáo
tosca entre criangas, seja em trocas intergeracionais. O mesmo objeto pode assumir contornos
artesanais, sendo ainda passível de urna fabricagáo numa escala mais ampia, incorporado
pela industria com a utilizagáo de materiais que nao eram cogitados em sua versáo original.
Diante do dinamismo deste fluxo, cientes de que as classificagóes sao provisorias,
tomamos o brinquedo artesanal como aquele que é confeccionado por artesáos, a partir de
materiais próprios de urna regiáo, especialmente com alguns tipos de madeira, fibra, paño,
barro ou ferro, nutrindo-se primordialmente das raízes culturáis de um determinado grupo.
Através da heranga dos varios deslocamentos ocorridos pelo globo, esses brinquedos trariam
elementos de outros povos, atualizados ñas formas que lhes foram atribuidas por um grupo
em particular num movimento de tradugao: elementos de outras culturas se encontram
mesclados ñas formas regionais de elaborar o objeto, fazendo durar o esforgo e a intengáo
investidos na fabricagáo do primeiro exemplar. Pelas tradugóes operadas, percebemos a
14
Segundo Latour, Schwartz e Charvolin, (1998), com inspiracao no próprio Serres de quem Latour foi
discípulo, nao é lícita a divisao entre as ciencias ditas da natureza, tomadas como exatas, e aquelas dedicadas ás
humanidades, tidas como ciencias moles, urna vez que a elas se atribuí o estudo do erro, do que nao é exato. A
ciencia, qualquer que seja, é urna fabricacao humana e, portante, é urna humana ciencia.
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Meló, M. F. A. Q., Souza, R. S., Rogério, Y. A. P., Leal, A. L. B., Ferreira, F. R, Suva, L. M. & Andrade, E. A. (2012). Um
estudo ator-rede para o brinquedo artesanal: heranca que se traduz em Minas. Memorándum, 22, 187-210.
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dinámica do universal e do particular se atualizando, nao como urna oposigao, mas como um
movimento já conhecido em outros tempos e lugares que assume o contorno de um contexto
específico, ao mesmo tempo conectando-se com versoes encontradas em diferentes locáis do
globo. Nessa mesma linha de pensamento, Carvalho e Pontes (2003) defendem a dinámica
entre universalidade e diversidade com relagáo ao brincar e ao brinquedo, apontando-a
como urna aparente contradigáo. Tradigóes transmitidas de grupo em grupo, de geragáo em
geragáo, se repetem e, ao mesmo tempo, se modificam em fungáo das especificidades
regionais e se recriam a partir da inventividade dos brincantes.
O artesanato sempre esteve a mercé das possibilidades contextuáis para prover as
oficinas com matéria-prima adequada a confecgáo de objetos, fossem estes brinquedos,
movéis ou utensilios. Com a escassez da madeira ñas ultimas décadas, tem-se observado que
os brinquedos ecológicamente corretos vém sendo fabricados com MDF15, material que é
apontado, entre outros, como substituto da madeira. O adjetivo ecológico relativo ao
brinquedo é de utilizagao mais recente e marca urna época em que se impoe, aos humanos, a
necessidade de preservar recursos que tendem a rarear e a se extinguir, sob pena de
destruirmos as fontes de provisáo do planeta.
As criangas desde sempre estiveram atentas aos recursos naturais que as circundam
para transformá-los em objetos de brincar. Especialmente ñas zonas rurais, entre criangas que
nao tém acesso fácil a produtos industrializados, ou mesmo entre aquelas que encontram
diversáo ao transformar o que se apresenta disponível a vista, ao tato e ao desejo, percebe-se
a utilizagao de recursos que a natureza oferece. Benjamín (1984) já chamava a atengáo para as
múltiplas possibilidades que a imaginagáo infantil encontra nos restos dos afazeres do
mundo adulto. Onde só conseguimos ver sobras imprestáveis, diz o autor, as criangas
conseguem vislumbrar um mundo de formas, texturas e cores que váo sugerindo novas e
surpreendentes composigoes com as quais se deleitam nos seus jogos simbólicos. Pedagos de
madeira viram carrinhos; galhos viram estilingues, arcos, flechas, ñas brincadeiras de indio e
cow-boy; comida de boneca pode ser feita de folhas e flores caídas do jardim. Esse tipo de
suporte para as atividades lúdicas infantis é chamado de brinquedo ecológico por Manson
(2002).
Muitas criangas indígenas, entre outras que habitam próximas as regióes onde a
vegetagáo predomina, ainda utilizam elementos da natureza como suporte de seus próprios
brinquedos. A utilizagao de sementes, barro, galhos, pedras e varios outros materiais faz com
que as próprias criangas criem e construam seu brincar de forma bastante particular. É o caso
de muitos adultos ao relatarem a confecgáo de animáis utilizando legumes ou sabugos de
milho, quando eram criangas. Altman (2007) fala dos objetos com os quais os indios
brasileiros brincavam, feitos pelas próprias criangas ou pelos adultos, reproduzindo animáis
e homens de urna forma simples. Na confecgáo, era utilizado todo tipo de material
15
Sigla para Médium Density Fiberboards.
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encontrado na natureza, ficando a cargo da criatividade de cada autor selecionar, dentre
tantos materiais, aqueles que iriam ornamentar bonecas e animáis de barro ou os que iriam
servir para enfeitar as armas e utensilios infantis.
A confecgao dos brinquedos permitía urna maior interagao em varios níveis: entre o
adulto e a crianga, entre criangas e entre a crianga e seu objeto de brincar. A fabricagao do
brinquedo como a ponte que liga o adulto a crianga foi destacada por Benjamim (1984), pois,
quando realizada conjuntamente e destinada ao comercio, esta atividade tinha o efeito de
reforgar as trocas entre crianga e adulto. Sendo o processo de produgao passado de pai para
filho, o oficio de artesao ficava como heranga que unia estas duas geragoes. Históricamente,
verificamos em autores como Aries (1981), Benjamín (1984), Priore (2007) e Manson (2002),
que a presenga da crianga no cotidiano dos adultos, ñas atividades domésticas de
sobrevivencia ou ñas atividades que ofereciam provento as familias, era mais urna forma de
introduzir os mais jovens nos seus grupos de pertenga. Prestando-se a urna apresentagao das
regras da cultura, essas atividades eram, ao mesmo tempo, ocasioes para a crianga elaborar
essa imersao no mundo adulto, valendo-se das estrategias de tradugao dessas experiencias
para o universo infantil através dos brinquedos e brincadeiras. Figuras humanas, animáis,
utensilios e outros objetos miniaturizados sempre chamaram a atengao das criangas como
objetos de brincar. Em desenhos, pinturas e, mais recentemente, fotos (apreciadas em visita
ao Museu de Artes e Oficios, em Belo Horizonte, MG), foi-nos possível observar a presenga
da crianga e do jovem acompanhando o adulto nos fazeres de seu grupo.
4.3. Historia dos nossos brinquedos: heranga que se traduz em Minas
Os brinquedos estao para além de apenas promover a uniao, integragao e divertimento,
pois se tornaram um elemento importante na fabricagao e no comercio dos séculos passados.
A produgao e comercializagao de brinquedos constituem processos que foram se
intensificando ao longo dos séculos até chegar ao patamar conhecido contemporáneamente.
Varios conflitos de interesses em torno do monopolio da fabricagao dos brinquedos
aconteceram na Europa, no final dos séculos XVI e XVII. Manson (2002) descreve a maneira
pela qual o brinquedo foi conquistando espago no comercio europeu e como se deu o
processo de regulamentagao da profissao de artesao. Nao foi sem disputas que os fabricantes
de brinquedos constituíram um oficio independentemente dos fabricantes de bibelós, dos
espelheiros, dos douradores de couros, dos torneiros e dos ourives. Entre os artífices do
século XVII, cada corporagao reivindicava para si o monopolio dessa fabricagao cuja
regulamentagao tinha que ser paga por urna taxa fiscal. Na Franga do século XVII, os
brinquedos feitos de ouro, estanho, marfim, vidro e espelhos tinham destaque entre os
membros da corte e eram tidos como brinquedos de luxo. Esses brinquedos artesanais feitos
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com pedras preciosas e materiais caros eram obras de arte destinadas as criangas da
aristocracia francesa, tinham alto custo, representando verdadeiros troféus.
Surpreende-nos verificar que a historia da fabricagáo dos brinquedos na Europa
levantada por Manson (2002) envolveu tantas contendas. Estas ocorreram tanto no ámbito da
fabricagao como no ámbito do comercio. Os fabricantes de figurinhas comegaram a
especializar-se na fabricagao de bonecas e de ménages16 parecidos com os que a corporagáo
dos fabricantes de bibelós e brinquedos fazia, dando inicio a urna disputa pelo monopolio da
fabricagao do brinquedo. Com relagáo ao comercio, este mesmo autor nos traz informagoes
de que os brinquedos produzidos pelos artesáos tornavam-se um monopolio dos mercadores
que disputavam o mercado com os vendedores ambulantes por ocasiáo das feiras. Os
brinquedos populares chegavam as cidades européias através dos vendedores ambulantes
que passavam de feira em feira, vendendo suas mercadorias. Os retroseiros, tal como eram
chamados os vendedores ambulantes, vendiam brinquedos, mas nao lhes era permitido
fabricá-los. Na comercializagáo de brinquedos, estes mercadores conseguiram colocar-se em
vantagem sobre cada fabricante isolado, por reunirem, em suas tendas, urna variedade de
brinquedos oriundos das oficinas de varios artesáos. Os registros iconográficos dos primeiros
brinquedos comercializados pelos retroseiros, como os ilustrados na gravura O retroseiro
pilhado por macacos de Pieter Aertsen (citado por Manson, 2002), mostram os brinquedos em
meio a utensilios e objetos destinados ao uso das comunidades. Esses brinquedos eram
miniaturizagoes, com ou sem adaptagoes, dos objetos utilizados pelos adultos, como por
exemplo, o cávalo de pau, o tambor, a corneta, a flauta, pequeñas espadas, bolas. As feiras
eram grandes ocasioes anuais para a venda dos brinquedos que chegavam ás provincias
através de expedigoes. No mesmo período (entre os séculos XVI e XVII), em Paris, pela sua
originalidade e elaboragáo cuidadosa, os produtos vendidos produziam admiragáo nos seus
freqüentadores. Na Alemanha, posteriormente, as feiras passaram a vender nao só objetos
reservados á élite, mas também pequeños objetos em madeira. Na Holanda, algumas
gravuras ilustram tendas para o comercio de brinquedos no século XVI. Os brinquedos
fabricados com materiais caros passaram a ser reproduzidos em madeira, papel e paño,
deixando-os acessíveis ás classes populares (Manson, 2002).
A crescente e longa disputa pelo mercado e pela fabricagao dos brinquedos nos dá urna
idéia da importancia que esses artigos assumiram nessa época, fazendo-nos levantar os
elementos que estimularam a sua rede de fabricagao e comercio. É interessante entender nao
só como aconteceram as transformagoes ñas legislagoes das corporagoes, os tratados de
monopolio, mas principalmente o que motivou todos esses embates entre oficios, assim como
as características desses movimentos que nos influenciam até hoje. O comercio de brinquedos
16
Segundo Manson (2002), os ménages eram colegoes de miniaturas feitas de estanho e outros materiais que eram
ofertados como presentes ás criangas. Compunham estes ménages pegas que reproduziam, em pequeña escala,
utensilios, pequeños animáis e figuras humanas.
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artesanais era grande, concorrido e importante para a economía, foi permeado pelas
influencias produzidas pela revolugáo industrial, logo se rendendo a mecanizagáo e ao
capitalismo. Os brinquedos industriáis com suas características de baixo custo e rápida
fabricagáo conquistaram rápidamente um mercado ainda maior, revelando técnicas e
materiais antes inéditos (Manson, 2002).
Contemporáneamente, a industria de brinquedos cresce a cada dia, inovando e
complexificando ao máximo a produgáo destes objetos. Toda a tecnología investida nos
brinquedos atrai e conquista as criangas do século XXI, tornando-os muito rápidamente
candidatos a obsolescencia, sempre superados pela versao mais recente e mais sofisticada
langada no mercado. Podemos observar, entretanto, que os brinquedos dotados de maior
investimento tecnológico nao necessariamente determinam o desaparecimento dos
brinquedos mais antigos. Ao contrario, ambos passam a coexistir, contribuindo cada um ao
seu modo para compor espagos lúdicos que sao diferenciados, porém nao excludentes.
Ademáis, cada um deles (brinquedo contemporáneo e brinquedo tradicional) possui tal
especificidade que eles nao chegam a concorrer entre si. Poderíamos talvez falar de nichos
em que um ou outro atinge uma preferencia mais arraigada, principalmente se levarmos em
conta as condigoes socioeconómicas que permitem a sua aquisigáo. No prefacio do livro de
Amado (2007), Estrela chama a atengáo para a importancia de resgatar o processo de
fabricagao manual do brinquedo, em Portugal, uma vez que a crianga se interessa e valoriza
mais o objeto se participa da sua fabricagao. Sob a mesma lógica, Benjamín (1984) defende a
construgáo do brinquedo de forma transparente pela e/ou para a crianga, permitindo-lhe ter,
mais que sua posse, a sua autoría.
No Brasil, o fenómeno de apropriagáo do brinquedo segué os mesmos moldes de sua
difusáo pelas varias partes do mundo. Segundo Bittencourt (citado por Kishimoto, 1993), o
folclore portugués tem sua origem fundada ñas milenares tradigóes européias, de forma que,
mesmo nao sendo portuguesas, aquelas que nos chegaram eram portadoras da marca
lusitana. Kishimoto (1993) atribui a veiculagáo dos jogos tradicionais a tradigáo milenar da
transmissáo oral no folclore. Por esta modalidade informal de transmissáo, as culturas
indígenas foram acrescentadas e traduzidas pela cultura portuguesa e africana,
respectivamente cultura dos donos origináis da térra, a dos invasores e a dos explorados
como máo de obra escrava. Maneiras de fazer e usar foram intercambiadas, produzindo
versóes que levavam em conta as especificidades de grupos e recursos de cada lugar. A pipa,
por exemplo, cujo nascedouro nos remete a China, traduz-se com a vela em paño, na versao
portuguesa, e em folha de palmeiras ñas versóes utilizadas pelos escravos africanos para
sinalizar perigo diante da aproximagáo de capitáes do mato aos quilombos (Voce, 2002). A
peteca, que em tupi significa bater, confeccionada com uma trouxinha de folha cheia de
pedras amarrada a uma espiga de milho, era um brinquedo dos indios que foi passando de
geragao em geragao, transformando-se num esporte cujas regras foram criadas em 1932, com
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reconhecimento do Conselho Nacional de Desportos em 1985 (Atzingen, 2001). O ioió, que
tem, tal como outros brinquedos, urna origem desconhecida, foi usado na pré-história como
instrumento de caga para a captura de pequeños animáis. Foi confeccionado em diversas
versoes utilizando materiais como pedra, barro, madeira e, mais recentemente, em plástico
com um design e modos de apropriagao que variaram bastante ao longo do tempo. Outros
brinquedos passaram igualmente por processos de tradugao: pelo encontró das culturas,
propriedades foram trocadas, acrescentando aos objetos características que estes nao
possuíam em suas versoes origináis. As bonecas africanas eram de paño ou de barro,
enquanto que as européias apareciam predominantemente em porcelana entre as familias
abastadas. Apresentadas aos nossos nativos, as bonecas de porcelana nao eram vistas como
brinquedos, mas idolatradas como divindades (Alves, 2003). Para alguns grupos, as
representagoes dos seres vivos em figuras de humanos e animáis eram feitas de barro, de
palha e outras fibras disponíveis no ambiente. A imitagáo de animáis com comportamentos
místicos, por adultos e criangas, e a imitagáo dos afazeres dos adultos, pelas criangas, se
traduzem ñas diversas pegas que ainda hoje sao fabricadas artesanalmente pelas
comunidades indígenas (arcos, flechas, abanos, petecas e utensilios variados feitos de barro, a
partir de sementes, frutos rígidos e ocos, penas, cipos). Freyre (1963, citado por Mefano, 2005)
ressalta que as origens do Jogo do Bicho, muito popular em nosso país, seriam um residuo do
animismo e do totemismo encontrados na cultura indígena. O fato corrente é que, ñas tribos
indígenas brasileiras, se verifica urna tradigao de usar brinquedos e jogos em seu cotidiano,
podendo muitas destas expressoes lúdicas ter sido incorporadas pelo europeu e pelo africano
de maneira recíproca.
Em Minas, especialmente ñas cidades voltadas para o turismo onde ainda podemos
verificar a existencia das feiras de artesanato, algumas versoes dos brinquedos tradicionais
podem ser encontradas, mas observa-se que a sua produgao, nos últimos anos, tem sofrido
um expressivo declínio em prol da confecgao de outros objetos artesanais mais demandados
pelo público consumidor.
Os brinquedos artesanais se encontram ligados ao desenvolvimento de alguns oficios,
herdando deles urna contribuigao expressiva no processo de sua fabricagao. Particularmente
nesta regiao de Minas, pelo que verificamos na historia de varios artesaos, o fabrico de
brinquedos precedeu muitas vezes a aprendizagem para a confecgao de obras sacras. Nao é
raro encontrar artesaos que, apropriando-se do oficio de transformar a madeira, tiveram as
primeiras experiencias através da aprendizagem realizada com pessoas próximas ou da
familia, produzindo suas primeiras obras para suprir a escassez de recursos destinados a
compra de brinquedos industrializados.
A historia dos oficios no Brasil data da época da colonizagao portuguesa. Segundo
Boschi (1988), a disseminagao das Escolas de Artes e Oficios, nos primeiros séculos de
colonizagao foi tarefa dos Jesuítas. Mas, ñas Minas Gerais, a política da Metrópole
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Portuguesa proibiu a fixagao destes clérigos na capitanía, fato que contribuiu para o
desenvolvimento artístico-cultural de leigos, oportunizando a transmissao desses saberes
através da relagáo aprendiz/oficial em que o ensino se fazia de modo menos rigoroso e
sistemático, muitas vezes realizado no interior das casas coloniais. Devido as oportunidades
geradas pela mineragáo, a partir do século XVIII, muitos profissionais liberáis foram atraídos
para as Minas Gerais, especialmente artistas, artífices e artesaos que se voltaram, em grande
parte, para as artes religiosas, mercado este impulsionado pelas irmandades, confrarias e
ordens terceiras17. Mesmo com a queda da produgáo aurífera, o ritmo da produgáo artística
se manteve com um investimento significativo de recursos, gerando um movimento
constante de refinamente por parte dos artistas na sociedade colonial mineira.
Casos emblemáticos desta regiáo, no século XVIII, foram o de Manuel da Costa Ataíde,
que veio a ser nomeado professor das "Artes de Architectura e Pintura", em Mariana, e
Manuel Francisco Lisboa que, já exercendo o oficio regular de carpinteiro, foi designado
"Mestre de Obras Reais". Filho deste último, desponta no cenário o talento de Antonio
Francisco Lisboa, o Aleijadinho, considerado genio de admirável habilidade artística para a
execugáo de imagens sacras (Villalta & Lage, 2007).
As sobras oriundas dos diversos oficios configuraran! também, nesta regiáo, a
oportunidade para confeccionar brinquedos. Pioes e bilboqués sao confeccionados com pegas
restantes dos tornos; bonecas sao feitas de sobras de paño dos alfaiates e costureiras,
adornadas por las fitas, botoes e outros aviamentos; carrinhos de boi, animáis e outras
figuras sao hábilmente entalhados a partir de pegas de madeira insuficientes para obras
maiores.
A circulagáo destes objetos também se deu de forma peculiar, seguindo o tragado que
as mercadorias faziam pela regiáo. Á semelhanga dos retroseiros na Europa do século XVII,
apontados por Manson (2002), em Minas encontramos a figura dos tropeiros18. Através deles,
se empreendiam varios tipos de trocas entre grupos e regioes dentro de Minas e entre regioes
que hoje fazem parte de outros estados. Nos lombos de burros, eles transportavam
alimentos, objetos e outros materiais que circulavam juntamente com as tropas que
conduziam o gado. Era comum que, no exercício da confecgáo de brinquedos, estes fossem
trocados como mimos entre os grupos para satisfazer as criangas e agradar os adultos. A
figura do viajante surge como versáo mais contemporánea destas figuras cuja fungáo é fazer a
circulagáo de mercadorias e abastecer o comercio local. Um caminhaozinho feito em madeira
ou lata, urna bonequinha de paño, assim como utensilios domésticos feitos em miniatura
17
As ordens terceiras sao um tipo de confraria, ou seja, urna associagao de leigos que se reúnem em torno da
devogao de um santo. Distinguem-se das irmandades por estarem associadas as ordens religiosas da Idade Media
(http: / / pt. wikipedia. org/ wiki/ Ordem_terceira).
18
A palavra "tropeiro" deriva de tropa, numa referencia ao conjunto de homens que transportavam gado e
mercadoria no Brasil colonia. O termo tem sido usado para designar principalmente o transporte de gado da
regiáo do Rio Grande do Sul até os mercados de Minas Gerais (www.historianet.com.br).
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podem ser vistos no Museu de Artes e Oficios, em Belo Horizonte, ilustrando estes
deslocamentos e os significados impressos nos objetos que contam historias de relagoes entre
o homem e seus oficios.
5. Considerares Fináis
No catálogo de brinquedos gerado a partir desta pesquisa, foram investigados
brinquedos ñas versoes artesanais encontradas em Minas Gerais: a pipa e as controversias
sobre sua extingao; o ioió e as curiosidades em torno da utüizagáo e dos modos e destrezas
envolvidos no seu manejo; o piao e sua manutengáo ñas práticas lúdicas contemporáneas
através de novas versoes industrializadas; o bilboqué que, utilizado como passatempo pela
realeza européia nos séculos XVII e XVII, nos dá mostras de declínio na versáo em madeira
maciga; os brinquedos de transporte, especialmente o carrinho de boi, por sua presenga
marcante na ruralidade mineira, arregimentando festivais bastante concorridos; jogos como o
xadrez e as bolinhas de gude, o primeiro na versáo em pedra sabáo muito encontrada no
artesanato da regiáo e o segundo como um jogo sazonal ainda capaz de aglutinar muitos
jogadores nos espagos de rúa; o tangran como um quebra-cabega milenar que é fabricado
artesanalmente com diversos tipos de materiais; a peteca como um artefato esportivo de
origem indígena-brasileira e hoje reconhecida mundialmente enquanto modalidade
esportiva; e a boneca, conhecida por sua ancestralidade e fabricada em suas múltiplas
versoes artesanais destinadas tanto ás práticas lúdicas de criangas como a objeto decorativo
para adultos. Para cada brinquedo ou jogo, foram mapeadas suas prováveis e incertas
origens, seu tragado na historia, suas denominagoes, as tradugoes que foi sofrendo a partir
dos materiais empregados para sua confecgáo e os usos que lhe foram atribuidos pelos
grupos observados na regiáo. Verificamos que alguns destes artefatos estáo em franca
extingao, nao mais sendo reconhecidos pelas novas geragoes como objetos lúdicos, urna vez
que estáo sustentados por redes que foram enfraquecidas ao longo do tempo (materiais,
técnicas de fabricagáo e práticas que se tornaram custosos para os fabricantes e brincantes).
Outros, entretanto, mantém-se potentes pela sua capacidade de aglutinar pessoas em torno
deles, em brincadeiras informáis ou em campeonatos, pela capacidade de assumirem versoes
inéditas e inventivas a partir da conexáo com novos elementos, tornando fortalecidas as suas
redes de sustentagáo. Os objetos, segundo a T.A.R. sao analisados pela quantidade de
conexoes que os sustentam ñas redes: podem ser mais fortes e estáveis em sua existencia,
porque possuem maior capilaridade, sendo chamados por Latour (2004) de cabeludos,
enquanto que carecas sao aqueles fracamente vascularizados, com poucas conexoes, podendo
estar sujeitos ao desaparecimento. Assim alguns dos brinquedos e jogos pesquisados se
revelaram objetos cabeludos, altamente conectados, ricos em associagoes que lhe permitiram
assumir sempre novas tradugoes em cada cultura e em cada área em que verificamos os seus
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efeitos, enquanto outros nao tiveram o mesmo destino. Nos dois casos, num estudo de
Psicología Social em que homens e suas produgoes se constroem mutuamente, cabe-nos
resgatá-los como contadores das historias que foram portando e como documentos que
encerram um patrimonio lúdico a ser preservado.
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Nota sobre as autoras
Maria de Fátima Aranha de Queiroz e Meló é Professora do Mestrado em Psicologia da
UFSJ, membro do Laboratorio de Pesquisa e Intervengao Psicossocial (LAPIP), coordenadora
da Brinquedoteca da UFSJ e coordenadora/orientadora do projeto. E-mail:
[email protected]
Roselne Santarosa de Souza foi Bolsista de Iniciagao Científica pelo Programa
Institucional de Bolsas de Iniciagao Científica UFSJ/Fapemig no período de margo de 2008 a
fevereiro de 2009. Titulou-se em 2012 pelo mestrado em Psicologia da UFSJ. E-mail:
[email protected]
Yone Maria Andrade Paiva Rogério é Pedagoga, Funcionaría Técnica Administrativa da
Brinquedoteca da UFSJ, atualmente aluna do mestrado em Psicologia da UFSJ. E-mail:
y one@uf sj .edu.br
Ana Luiza Brandao Leal foi Bolsista de Iniciagao Científica pelo Programa Institucional
de Bolsas de Iniciagao Científica UFSJ /CNPq no período de agosto de 2008 a julho de 2009,
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Meló, M. F. A. Q., Souza, R. S., Rogério, Y. A. P., Leal, A. L. B., Ferreira, F. R, Suva, L. M. & Andrade, E. A. (2012). Um
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atualmente
aluna
do
mestrado
em
Psicología
da
UFSJ.
E-mail:
analuiza_brandao@yahoo. com.br
Fernanda Rodrigues Ferreira foi Bolsista de Iniciagao Científica pelo Programa
Institucional de Bolsas de Iniciagao Científica UFSJ/ Fapemig no período de margo de 2009 e
fevereiro de 2010. E-mail: [email protected]
Liliam Medeiros da Silva foi Bolsista de Iniciagao Científica por projeto financiado pela
Fapemig no período de margo de 2009 e fevereiro de 2010, atualmente aluna do mestrado em
Psicología da UFSJ. E-mail: [email protected]
Elaine Maria Almeida de Andrade foi Bolsista de Iniciagao Científica por projeto
financiado pela Fapemig no período de margo de 2010 e fevereiro de 2011 e orientanda do
Programa Institucional de Iniciagao Científica da UFSJ de margo de 2011 a fevereiro de 2012 .
E-mail: [email protected].
Data de recebimento: 05/07/2011
Data de aceite: 11/05/2012
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Práticas parentais: um estudo sobre escolhas educativas
Parental practices: a study about child rearing choices
Fernanda Santini Franco
Heloisa Szymanski
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
Resumo
A pesquisa aqui relatada teve como objetivo realizar um estudo de escolhas educativas,
de forma a descrever as dificuldades narradas por maes e pais para educar, bem como as
alternativas encontradas por eles para lidar com esses desafios. Trata-se de urna pesquisa
qualitativa, de base fenomenológica, de cunho interventivo, que teve como procedimento
a realizacao de quatro encontros reflexivos, dois com maes e dois com homens pais. Os
relatos dos 58 participantes sobre suas práticas educativas foram gravados, transcritos e
analisados segundo perspectiva hermenéutica de análise do sentido. Foi possível concluir
que escolhas educativas parentais que, num primeiro olhar, poderiam parecer falta de
cuidado ou interesse, estao enraizadas em diversos aspectos, como dificuldades sodais e
cultura familiar. Compreendé-los favorece a desconstrucáo de pré-conceitos e o
estabelecimento de acoes interventivas que considerem desafios que os pais efetivamente
enfrentam.
Palavras-chave: familia; fenomenología; práticas de criacáo infantil
Abstract
The aim of this research was to study child rearing choices, in order to describe
difficulties reported by mothers and fathers to raise children as well as the alternatives
found by them to deal with these challenges. It is a qualitative, interventive,
phenomenological research, that contemplated four reflective meetings , two with
mothers and two with fathers. The reports of the 58 participants about their child rearing
practices were recorded, transcribed and analyzed by the hermeneutic perspective. It was
concluded that parental child rearing choices that, at first glance, might seem as lack of
care or interest, are in fact rooted in different aspects, such as social problems and
familiar culture. Understanding them helps the deconstruction of prejudices and the
establishment of interventive actions to consider the challenges that parents actually
ha ve.
Keywords: family; phenomenology; childrearing practices
Introdujo
Embora exista urna associagáo, instaurada históricamente, entre educagáo e escola, o
fenómeno da educagao é mais ampio, dado que se desenvolve a partir da relagáo com os
outros e, portante, é extensivo a todas as nuances da existencia (Critelli, 1996). Nesse sentido,
colaborando com o desenvolvimento do processo educativo está a familia. Maes e pais,
independentemente de qualquer formagáo, educam transmitindo valores, hábitos e
conhecimentos.
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O modo como cada familia educa seus filhos tem referencia em suas crengas,
perspectivas futuras e na maneira como compreendem o mundo e suas vivencias. Mesmo
que os conhecimentos familiares nao sejam sistematizados formalmente, sao o resultado de
experiencias avaliadas históricamente no cotidiano da familia (Szymanski, 2000). Pais
encontram desafios na criagáo de seus filhos e buscam alternativas para enfrentá-los,
constituindo saberes e modos de lidar com questoes cotidianas. No entanto, como esse saber
familiar pode nao fazer parte de uma construgáo formal explícita, nem sempre é possível ter
acesso imediato ao que contribuiu com a escolha de uma determinada prática educativa
familiar. Isso pode dificultar a compreensao das escolhas parentais em relagao a educagao de
seus filhos e muitas vezes gerar interpretagoes simplistas ou preconceituosas. Tomemos
como exemplo pais que aplicam medidas autoritarias e sao considerados descomprometidos
com uma educagao de qualidade. O trabalho de Cecconello, Antoni e Koller (2003)
demonstra que a utilizagao de medidas restritivas, embora extremamente autoritarias, pode
ser compreendida por alguns pais como uma demonstragao de afeto e cuidado, com o
sentido de estimular a autonomia responsável.
Outro aspecto que dificulta a compreensao de práticas educativas parentais é a
existencia de estigmas sociais referentes a determinadas populagoes. É o que ilustra a
pesquisa de Matos e Madeira (2000) que, ao investigaren! entre maes adolescentes o que é
cuidar de um filho, constataram que elas sabem atender a diversos tipos de necessidades biológicas, psíquicas ou sociais - da crianga. Concluíram que nem sempre é verdadeira a
afirmagao de profissionais de saúde, educagao e mídia segundo a qual maes adolescentes
tém impedimentos ou nao sabem como cuidar dos filhos. Souza e Boemer (2003) também
abordaram a questao da expectativa social em relagao aos papéis masculino e feminino
quando investigaram o cuidado de filhos com deficiencias mentáis. Perceberam que os pais
homens, embora participassem do cuidado dos filhos, demonstraram concepgoes de que a
responsabilidade do cuidado caberia a mae, associando a fungao de cuidar a questao da
feminilidade. Lahire (2004), por sua vez, abordou a expectativa negativa que a escola tem em
relagao ao envolvimento parental na vida escolar dos filhos, descrevendo o que chamou de
"mito da omissao parental". Como em alguns casos as políticas disciplinares de alguns pais
nao sao eficazes para um melhor aproveitamento no cotidiano da escola, ocorre a impressao
de que existe um desinteresse por parte dos pais em auxiliar na vida escolar dos filhos.
Entretanto, segundo Lahire, o que existe em muitos casos é um descompasso da cultura
familiar em relagao as expectativas sociais, o que gera uma aparéncia de indiferenga.
Tendo em vista que diferentes fatores podem dificultar o entendimento, especialmente
por parte da escola, acerca do modo como os pais educam, esta pesquisa tem o intuito de
contribuir com a desconstrugao de preconceitos sobre o (nao) envolvimento da familia na
educagao dos filhos. Partindo de um projeto mais ampio já realizado em uma comunidade de
baixa renda de Sao Paulo, o estudo que será relatado teve como objetivo descrever as
dificuldades narradas por maes e pais para educar, bem como as alternativas encontradas
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por eles para lidar com esses desafios. Através dessa descrigao, esperava-se também
compreender algumas das propostas e/ou crengas que orientavam as escolhas parentais na
educagáo de seus filhos.
Quando conseguimos compreender o que direciona urna escolha educativa, torna-se
possível um olhar voltado para o sentido que embasa as agóes daqueles que educam,
viabilizando a realizagao de intervengoes que vao além do ámbito teórico e consideram maes
e pais em suas condigoes de existencia. Sentido é entendido aqui como aquilo que nos permite
dar conta de ser numa certa diregáo, é urna destinagáo, um rumo, isto é, deve ser entendido
"(...) nao como um sinónimo de significado, mas como urna diregáo, norte, como destinagáo.
Este sentido é a base das escolhas que fazemos para ser" (Critelli, 1996, p. 98). A perspectiva
que nos auxiliou nesta busca pelo sentido da escolha educativa e que se constitui como o
referencial deste trabalho foi a da fenomenología existencia! Apresentaremos muito
brevemente, a seguir, alguns aspectos dessa linha de pensamento que nos auxiliaram na
compreensao do fenómeno da educagao parental como inserida em urna teia de relagóes
significativas entre pais, filhos e seu mundo social e cultural.
A abordagem fenomenológico-existencial tem como um de seus principáis
representantes Martin Heidegger cuja visao de homem e de mundo orientou nossa
compreensao. Para ele, a relagao entre o homem e o mundo constitui-se condigao
fundamental, indissociável e privilegiada para a emergencia do sentido. Para Heidegger
(1927/2006), a existencia se dá no mundo; o ser-no-mundo refere-se a urna unidade,
impossível de ser dissolvida e que nao significa "dentro de", nem urna mera justaposigáo
entre os homens e o mundo. Este vai além do espago físico e concreto e "(...) nao significa o
universo físico dos astrónomos, mas o conjunto de condigoes geográficas, históricas, sociais e
económicas, em que cada pessoa está imersa" (Chauí, 1979, p. VIII). Como fenómeno que é, o
mundo se mostra como "estrutura de sentido e contexto de significagáo (...)" (Novaes de Sá,
2006, p. 326). Cada homem habita o mundo a partir de urna trama de significagáo que se
apresenta para ele e, mais que isso, habita um modo de se habitar o mundo, no qual
"simultáneo á significagáo de tudo o que há, constitui-se e desenvolve-se o sentido de ser"
(Critelli, 1996, p. 120).
A abertura do homem para o sentido se dá a partir de dimensóes essenciais descritas
por Heidegger como compreensao, disposigáo e linguagem. A compreensao nao é apenas o
conjunto de observagóes intelectuais e lógicas acerca da realidade. Existimos
compreendendo: "O homem se manifesta compreendendo a manifestagáo (sua e dos demais
entes) e, simultáneamente, pondo a manifestagáo e o manifestó sob sua custodia, sob sua
responsabilidade" (Critelli, 1996, p. 54), no cotidiano que engloba um tempo, um espago,
urna cultura e urna historia. A compreensao também nao é definitiva, pois tudo isso está em
constante transformagáo e o homem nao é algo estático e terminado (Novaes de Sá, 2006). O
olhar compreensivo dos homens "nao é individual, exclusivo a um individuo (...) seu olhar é
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composto por todo o referencial das relagoes significativas do mundo em que habita"
(Critelli, 1996, p. 57).
Existe um movimento no existir e a abertura compreensiva do homem é sempre
dotada de urna disposigáo afetiva, um estado de humor. Trata-se da coloragáo afetiva que faz
com que as coisas se apresentem a nos de urna maneira e nao de outra, levando o homem a
cuidar de si ou dos outros de urna forma específica. Cuidar de ser é urna tarefa que faz parte
do humano e é visível em expressoes que utilizamos como "preciso ir cuidar da minha vida"
ou "se nao sou eu a cuidar da minha vida, quem é que cuida?". Heidegger (1981) descreve
esse cuidado consigo mesmo ou com os outros como solicitude. A solicitude é permeada pela
disposigao e compreensao do mundo, levando o homem a possibilidade de, em diferentes
momentos, experienciá-la de diversas maneiras: sendo zeloso, tendo respeito, paciencia,
esperanga, ou mesmo com displicencia, indiferenga ou intolerancia. Nao há nesta ideia um
caráter moral e sim a nogao de que somos solicitados a cuidar da existencia de varios modos.
Para o autor, existem dois extremos na vivencia da solicitude. Um deles se refere a um
cuidado que 'coloca o outro no coló', que mima, manipula e nao permite que o outro assuma
seu próprio caminho. Outro, se refere a um cuidado que auxilia a crescer, amadurecer e
encontrar-se consigo mesmo (Heidegger, 1981).
A possibilidade de compreender, que é constitutiva dos homens, sempre "trabalhada
por urna disposigao, se pronuncia como discurso (...) e das significagoes brotam palavras e a
linguagem (...) é o pronunciamento do discurso" (Heidegger, 1927/2006, p. 219). É nessa
totalidade que existe o homem: no mundo, com os outros, compreendendo, numa dada
disposigao afetiva, na linguagem e cuidando de ser.
Além das contribuigoes da fenomenología de Heidegger, outro autor considerado
importante para a discussao deste estudo é Paulo Freiré. Isso porque a possibilidade de
compreender a educagao como um processo que estimula o desenvolvimento da autonomía e
consciéncia crítica é explorada por ele quando aborda a questao do diálogo. Para Freiré
(1970), a educagao é algo que deve propiciar o desenvolvimento de um pensar auténtico,
aquele que vai além da mera repetigao de um conhecimento ou de urna norma, algo que só é
possível através do diálogo. No diálogo, os homens se educam em comunháo e nao há um
que sabe e outro que nao sabe, mas sim urna condigáo de horizontalidade em que ambos
crescem durante um processo educativo (Freiré, 1970). Assim, para que esteja presente, é
imprescindível que o diálogo se fundamente no reconhecimento da igualdade de valor entre
aqueles que se relacionam. Com isso, é possível encaminhar-se para urna prática educativa
em que se ensaia o assumir-se enquanto sujeito autónomo, responsável, livre, ético e criador,
tornando viável que a solicitude possa ser vivida de forma dialógica.
As ideias de Heidegger e Freiré seráo eixos interpretativos no desenvolvimento desta
investigagáo.
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Método
Esta pesquisa utüizou-se dos fundamentos metodológicos da fenomenologia. Nessa
visáo, compreende-se que investigar é colocar em andamento uma interrogagáo, é perguntar
o que é e como é alguma coisa (o ser de algo) (Critelli, 1996). Nessa busca, deve-se respeitar o
principio básico de "ir as coisas mesmas" e considerar que a compreensáo se dá quando
tomamos como referencia aquilo que se mostra e para quem se mostra. O olhar de quem
interroga é considerado como fator determinante para o desenvolvimento metodológico da
investigagáo. O rigor desse método se apresenta exatamente a partir do cuidado que é
necessário para ir em busca do interrogado, exigindo atengáo constante do pesquisador que
deve analisar os passos de sua trajetória conseguindo clareza dos fundamentos de seu modo
de investigar e da visáo que embasa sua pesquisa (Bicudo, 2005). Centrando-se na relagáo
sujeito-objeto-mundo e propondo uma aproximagáo dos fenómenos, o método
fenomenológico permite desvelar os significados das experiencias vividas (Bruns, 2005).
Na busca rigorosa de aproximagáo com o objeto de investigagáo, podemos
compreender o fenómeno que nos aparece, da maneira como se apresenta seu desvelar.
Nesta investigagáo, o fenómeno tematizado - as escolhas educativas - apresentou-se em
narrativas que foram elaboradas a partir das transcrigóes da fala de pais e máes. Segundo
Ricoeur (1976/2009), quando alguém relata uma experiencia para um outro, a experiencia em
si permanece privada, mas o significado, o sentido da experiencia, é capaz de tornar-se
público. Para Benjamin (1994), a narrativa é importante exatamente porque privilegia a troca
de experiencias. É ela que permite que o que foi vivido seja comunicável e assim, através da
narrativa, temos acesso á vivencia por meio da linguagem.
Quando narramos algo, além de compartilhar uma experiencia, também podemos
compreendé-la de outro modo a partir da fala de um outro ou do próprio processo de narrar.
Isso se intensifica ainda mais na proposta em que as narrativas foram coletadas: a da
realizagáo de encontros reflexivos.
Encontros reflexivos
Os Encontros Reflexivos sao um desdobramento da proposta de Entrevista Reflexiva
desenvolvida por Szymanski (2002) e destinam-se a oferecer um espago de atengáo
psicoeducativa no qual há uma valorizagáo do diálogo como modo de reflexáo. O diálogo
privilegiado nesse tipo de grupo é aquele que parte de uma demanda levantada pelos
próprios participantes, que sao constantemente solicitados a explicitar seus interesses. A
partir das solicitagóes, cabe aos pesquisadores organizar o modo como a questáo será
abordada, pensando em estrategias para favorecer o diálogo e a reflexáo. Isso significa que os
temas trabalhados nos encontros nunca surgem ao acaso, por um desejo dos pesquisadores,
uma vez que faz parte da proposta trabalhar com uma questáo que seja relevante para a
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populagao participante. No caso da pesquisa aqui apresentada, os encontros reflexivos sao
realizados em uma comunidade de baixa renda, como parte de um projeto mais ampio de
pesquisa-intervengáo. Neste caso, os temas sao coletados de duas maneiras: ou por
representantes da comunidade que se organizam para saber sobre o que os pais desejam
conversar, por meio de questionários e conversas com pais e maes de uma CEI; ou por meio
do próprio encontró reflexivo, uma vez que é reservado, ao final de cada grupo, um tempo
para que sejam explicitados os temas de interesse, que ficam como escolha para o encontró
seguinte.
Com a definigáo do tema, inicia-se cada encontró com sua retomada, perguntando aos
participantes sobre as questoes escolhidas anteriormente para reflexao. Essa prática permite
que o grupo - que pode ser diferente a cada encontró, embora seus membros pertengam ao
mesmo universo: pais de criangas da creche e adolescentes do CCA (Centro da Crianga e
Adolescente) - retome o tema solicitado, apropriando-se dele, a seu modo, naquele
momento. Como pertencem ao mesmo mundo, os temas escolhidos no encontró anterior
sempre dizem respeito as experiencias comuns vividas por aquela populagao. É permitido
aos participantes direcionar seus questionamentos para caminhos nao previstos e o
pesquisador deve estar preparado para adaptar seu planejamento para aquilo que acontece
no momento da intervengao. O planejamento inclui a elaboragao de uma atividade
preparatoria referente ao tema escolhido, sempre na forma de jogos coletivos, role playing,
confecgao de objetos. Com isso pretende-se possibilitar, logo de inicio, uma experiencia
envolvendo corpo, interagoes e atividades expressivas, relativas a questao que será tema de
reflexao no momento seguinte do encontró. Esse momento tem por objetivo preparar o grupo
para refletir sobre suas experiencias relativas a educagao dos filhos e procura criar uma
atmosfera que facilite a narrativa dessas situagoes. Realiza-se, em seguida, uma atividade de
discussao em pequeños grupos em torno de uma questao desencadeadora relativa ao tópico
demandado. Cada pequeño grupo tem acompanhamento de um membro da equipe de
pesquisa e um de seus participantes é escolhido como relator no grupo total. Assim como na
entrevista reflexiva, há aqui a preocupagao de oferecer devolutivas ao longo de todo
processo, isto é, dar a conhecer como está sendo compreendido o discurso dos participantes.
Todo encontró se encerra com o relato de cada subgrupo, a elaboragao de uma síntese, uma
avaliagáo e a solicitagáo de um tema para o próximo encontró. Pode ocorrer uma mudanga
de tema entre um encontró e outro, que nos é informada antes do planejamento do encontró.
Mesmo com o planejamento, as interagoes singulares váo sendo objeto de reflexao ao
longo do processo, permitindo a construgáo de um saber coletivo sobre o tema discutido.
Considera-se a síntese como a devolutiva final, que representa a construgáo coletiva da
resposta á questao trazida como tema para o encontró. O fato de os encontros se
caracterizarem como intervengóes pontuais, com comego, meio e fim bem definidos, permite
o envolvimento de pessoas diferentes em cada grupo. Assim, as participagóes nos encontros
reflexivos, que sempre sao voluntarias, podem se repetir ou nao.
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Procedimentos de coleta dos dados
Foram realizados quatro encontros reflexivos, em fináis de semana, com duragao de
cerca de urna hora e meia, nos quais, após urna atividade preparatoria, foram discutidos os
temas propostos pelos próprios participantes. Dois dos encontros foram realizados com pais
homens e dois com maes. A divisao em grupos exclusivamente de homens e mulheres se deu
por urna necessidade percebida na comunidade, de urna escuta dirigida especificamente a
populagao do sexo masculino. Essa percepgao só foi possível porque a comunidade em
questao já participa de pesquisas-intervengao desde 1993 e, ao longo dos anos, foi
explicitando urna demanda por um espago onde também a voz masculina pudesse ser
ouvida em questoes relativas a educagao dos filhos. Note-se que os grupos de homens pais
sao coordenados pelos membros masculinos do grupo de pesquisa e que, desde que a
divisao foi instituida, os homens tém tido maior participagao.
Os temas propostos e discutidos pelos homens pais foram: 'Como dizer nao para os
filhos', e 'Como explicar aos filhos o porqué dos pais homens precisarem ir trabalhar'. Os
temas propostos e discutidos pelas maes foram 'Como combater o consumismo' e 'Como
abordar o tema da sexualidade com os filhos'. Todos os temas surgiram de encontros
reflexivos anteriores, nos quais os participantes disseram o que gostariam que fosse
abordado em outro momento. Com a autorizagao de todos, a narrativa dos pais e das maes
foram gravadas e posteriormente transcritas. Participaram dos encontros 58 pais e maes de
criangas que frequentam urna creche comunitaria localizada na periferia de Sao Paulo.
Procedimentos de análise dos dados
Primeiramente, os quatro encontros reflexivos foram transcritos integralmente. Em
seguida, elaborou-se um texto síntese para cada encontró, baseado na fala dos participantes,
procurando-se excluir vicios de linguagem, repetigoes e cortes, e trazer organizagao ao
conjunto das narrativas. Esses textos foram lidos diversas vezes com o objetivo de permitir
urna aproximagao das falas e dos sentidos das práticas educativas narradas. Consideramos
aqui, a partir do pensamento de Ricoeur (1976/2009), que a escrita permite a fixagao do
discurso para além da sua instancia temporal e presente e é através dele que podemos
acessar o significado da experiencia referida na fala.
Resultados e análise
O quadro a seguir ilustra a distribuigao dos participantes nos grupos.
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Quadro 1: Participantes, temas e atividades de aquecimento
Encontr os
Número de
participantes
Máes
20
2
8
PAIS
23
4
7
MÁES
Arividade de aquecimento
País
1
w
Tema do encontró
Solicitacáo
de
que
os
país
Como dizer nao aos relembrassem situacoes de infancia em
quereceberam um 'nao'. Discussao das
filhos
lembrancas em grupo.
Como explicar para Discussao em duplas sobre como
os filhos a
explicam para os filhos a necessidade
necessidade de
de trabalhar e posterior apresentacao do
trabalhar
relato do parceiro ao grupo.
Apresentacao e discussao de perguntas
Como abordar o
sobre sexualidade feitas pelo grupo
tema da
anterior e que geraram o interés se para
sexualidade com os que se fizesse este grupo para a
filhos
discussao deste tema.
Apresentacao de recortes de objetos e
Como combater o
questionamento de quais comprariam
consumismo
para os seus filhos.
Os resultados da análise foram compreendidos considerando-se o objetivo inicial de
descrever as escolhas educativas parentais e aquilo que as embasam. Primeiramente serao
expostas as consideragoes sobre os dois encontros com os pais homens e, depois, dos dois
encontros com as maes.
No encontró 1 com os homens, em que foi abordado o tema 'Como dizer nao aos
filhos', os pais relataram que perceber o sofrimento do filho diante de um 'nao' faz com que
essa situagao seja aínda mais difícil para eles. Essa dificuldade, comum a todos os
participantes, se refere especialmente a utilizagao do 'nao' para expressar a impossibilidade
de oferecer bens materiais aos filhos. Apenas um pai relacionou o 'nao' a um papel
educativo, importante para alertar para situagoes de violencia, uso de drogas ou
relacionamentos com más companhias. Neste caso, considerou que a omissao pode ser mais
perigosa do que a restrigao. Alguns pais disseram que percebem que o 'nao' também pode
ser utilizado sem que haja necessidade, apenas como forma de exercer autoridade.
Exemplificaram com situagoes em que agridem ou castigam indevidamente as criangas. Um
dos participantes contou, por exemplo, a seguinte situagao:
EM saía para ir pra igreja com meu filho e ele comecava a cochilar, dormir dentro do
bnibus. E aquilo, sem eu perceber, eu brigava com ele. Ele dizia que tova com muito
sonó, que nao conseguía aguentar. O ignorante entao fui eu, como é que a enanca
nao vai dormir se tem muito sonó?
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No encontró 2, com o tema 'Como explicar para os filhos a necessidade de trabalhar',
os pais relataram que sentem dificuldade em explicar que precisam trabalhar, pois muitas
vezes isso implica recusar o pedido dos filhos para que permanegam mais tempo com eles ou
para que participem de eventos familiares e sociais. Um dos participantes disse: "quinta-feira
mesmo minha filha falou contigo: pai, vai ter urna festinha amanha na escola... vai lál Eu quero que
vocé val Eu disse: nao dá, o pai tem que trabalhar e ela falou: fala com alguém pra deixar vocé ir...".
Diante de situagoes como essa, acabam negociando com as criangas, através de agrados e
promessas, para que elas aceitem sua ausencia. Um dos pais exemplificou: "Nao, entáo eu te
dou urna bala e um pirulito. Daí comega com a bala e depois vira: eu te dou a bala, o pirulito, o
chocolate, a pipoca, o refrigerante...". Também abordaram a questao de que se sentem mais
confortáveis em sair para trabalhar quando sabem que os filhos terao suas necessidades
atendidas por outro cuidador. Além disso, disseram que a falta de tempo com os filhos faz
com que reflitam sobre como deve ser aproveitado o momento que conseguem estar com
eles. Lembraram muito de suas próprias vivencias com seus pais e de situagoes de convivio
diario com as criangas, concluindo que os filhos lhes ensinam a ser pais.
No encontró 3 com as máes, na discussáo do tema sobre consumismo, as participantes
relataram que o fato de trabalharem em período integral contribui para a ocorréncia de
concessoes materiais para compensar essa ausencia materna. Afirmaram ter dificuldade em
dizer nao nos momentos em que estáo com as criangas, já que o tempo é escasso. Esta prática
resulta numa satisfagáo para as máes ao presenciar a alegría dos filhos com um bem material,
mas, ao mesmo tempo, segundo elas, fomenta o consumismo. Urna das máes disse: "Eu sei
que é errado ficar dando tudo para a crianga, mas quando diego em casa e dou um presentinho pra ele,
elefica táo feliz que nao tem como nao dar outro no dia seguinte.".
No encontró 4 com as máes cujo tema foi a sexualidade, identificou-se que o modo
intimidador e repressor utilizado por muitas familias impossibilita a criagáo de um canal de
comunicagáo livre dentro de casa. As máes reconheceram a influencia dos meios de
comunicagáo, que vinculam informagoes sobre sexualidade e estimulam a curiosidade de
seus filhos. Relataram que, mesmo com essa exposigáo na mídia e com as informagoes que
recebem na escola, elas tem dificuldade em abordar o assunto e mostraram-se preocupadas
com a falta de um diálogo em familia, o que dá margens para que os filhos aprendam sobre
esse tema com terceiros. Urna das máes falou: "Outro dia vi minha filha conversando com as
amigas sobre um rapaz, era urna conversa apimentada, sabe? Ai fiquei querendo perguntar pra ela,
mas moni de vergonha e desistí. Acho que as amigas vao acabar aconselhando, nél".
Discussáo
A própria escolha do que seria discutido pelos participantes caracterizou-se como algo
que já faz parte da experiencia de ser pai ou máe naquela comunidade, permitindo urna
aproximagáo maior de seus cotidianos.
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Nos grupos com os homens os dois temas puderam ser interligados, pois explicar para
os filhos a necessidade de trabalhar foi entendido como dizer um "nao" para a solicitagao de
ficar em casa com a familia. Assim, em relagao aos encontros de pais homens, tanto na
discussao do tema 'Como dizer nao aos filhos' quanto na discussao do tema 'Como explicar
para os filhos a necessidade de trabalhar', foi possível perceber que os pais sentem
dificuldade de lidar com situagoes em que sao obrigados a entrar em contato com algumas
impossibilidades concretas, como as suas ausencias em fungao do trabalho ou a restrigao
financeira para comprar algum bem material.
Isso pode ser ilustrado em uma das falas: "... por exemplo, o amigo dele tem como, tem um
certo objeto que vocé nao possa dar. Ai vocé se machuca porque vocé nao pode dar, entendeu? Tem
esses tipos de nao.". Essa negagao traz sofrimento ao pai na medida em que dar ao filho um
bem material é poder ser provedor e demonstrar seu afeto. Como muitos dos pais
participantes associaram o 'nao' muito mais as impossibilidades, envolvidos na dimensao da
agao que nao poderiam realizar, isso dificultou que pudessem reconhecer o 'nao' como um
elemento importante de uma prática dialógica, que possibilita a educagao e parámetros que
norteiem as agoes das criangas. O 'nao', quando contextualizado e coerente com a situagáo,
pode se caracterizar como uma palavra auténtica que, como afirma Freiré (1970), é aquela
compromissada com o mundo e que é dita sem perder esse mundo de vista.
Além dessa associagáo do 'nao' com uma incapacidade de prover materialmente, ele
também foi associado a um autoritarismo: "Precisa só um 'nao', só. Se ele nao gostou nao vai
teimar, porque ai ele já sabe como o pai é.". Neste caso, quando o 'nao' é exercido como uma
mera imposigao de poder, deixa-se de ter uma relagao dialógica, pois se perde a condigao de
horizontalidade entre os protagonistas da relagao (Freiré, 1970).
O fato de apenas um pai ter associado o 'nao' a uma condigao educativa foi importante
no desdobramento do encontró reflexivo, pois possibilitou a abertura para uma uma
concepgáo diferente da da maioria. Esse pai disse:
...o que significava o nao: nao usar drogas, nao se envolver com violencia, nao andar
com más companhias... tá, nao se envolver com esses tipos de pessoas erradas. Esse
foi o nao mais importante que eu tive até hoje, dos meus irmaos e dos meus pais.
Essa fala diferenciada teve importancia, pois entendemos que, na proposta dos
encontros reflexivos, as intervengoes, quer dos pesquisadores, quer dos membros do grupo,
constituem-se como a base para que possamos construir novas reflexoes e permitir a
construgáo de novas escolhas. Isso porque consideramos aqui, a partir do pensamento
heideggeriano, que a agáo do homem está relacionada ao modo como pode compreender o
mundo e dar sentido as suas agoes.
Os homens pais também narraram que percebem que tanto suas experiencias
anteriores com seus próprios pais, quanto suas experiencias atuais com seus próprios filhos,
servem como base para que possam pensar sobre essa temática. Isso ilustra a concepgáo da
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fenomenología de que somos seres em relagao, situados no mundo, sendo que nossas
relagoes cotidianas e nossa historia de vida fundamentam o modo como nos relacionamos e
percebemos nossas interagoes sociais. Além disso, fica explícito também o poder da
transmissao intergeracional na medida em que o que ocorreu ñas geragoes anteriores
influencia no que irá ocorrer nesta.
Pode-se concluir, entáo, que a análise dos grupos de pais permite a compreensao de
que dizer 'nao' é um desafio para os pais porque pode ter, para eles, muito mais o sentido de
impossibüidade, incapacidade e excesso de autoridade do que o de educar. Diante desse
desafio, as alternativas encontradas pelos homens sao, principalmente, deixar de falar 'nao'
ou tentar compensá-lo com bens materiais. Percebem que esse modo de lidar com essa
questao se refere a condigoes de vida e as experiencias anteriores com seus próprios pais. De
um modo geral, entretanto, as agoes dos pais tiveram um sentido de buscar o afeto dos filhos,
mas também de garantir sua autoridade, na defesa de valores que lhes eram caros.
Nos encontros com as maes, na discussao sobre consumismo, percebemos que, de
forma semelhante ao que foi narrado pelos pais, as participantes também sentem que fazem
concessoes de ordem material como urna forma de compensarem suas ausencias: "Vocé
trabalha o día inteiro, chega em casa e nao quer ficar falando nao pros filhos, vocé vai e compra
mesmo.".
Essa dificuldade em lidar com urna jornada de trabalho integral e o papel de mae é
algo que nos remete a historia da mulher e o acumulo de fungoes ao longo dos anos. O
contexto cultural, conforme aponta Szymanski (2006), faz parte do modo como se é cuidador,
incorporando normas, expectativas e valores. Um primeiro olhar poderia nos dar a
impressao de que essas maes se livram de sua fungao educativa, substituindo seu papel por
bens materiais. No entanto, se explicitou que é exatamente por que sao comprometidas com
seu papel e reconhecem a importancia do seu vínculo com os filhos que sentem sua ausencia
e buscam oferecer elementos compensatorios. No próprio objeto comprado, muitas vezes,
percebe-se esse comprometimento com a educagao. É o que diz urna mae ao falar sobre por
que compra urna boneca negra para a filha: "Nao é pela boniteza, porque eu nao adío bonita, mas
é para nao ter preconceito. Só tem boneca branca!".
O ato de comprar aparece também como um dos recursos encontrados, tanto pelos pais
quanto pelas maes, para poder demonstrar o desejo de poder estar mais presente na vida dos
filhos. A ausencia imposta pelas necessidades do cotidiano é vivida pelas maes como algo
sofrido: "É mais doloroso para os pais do que profilho.".
Ñas reflexoes sobre a sexualidade, um dos elementos que mais se destacou foi o fato de
que ficou explícita a influencia da cultura e da historia, na medida em que foi narrado que o
modo intimidador e repressor das familias de origem das maes inviabiliza a criagao de um
espago de diálogo sobre o assunto. Isso pode ser ilustrado na fala: "Morro de vergonha e sei que
está errado, mas quando minha filha achou camisinha ñas minhas coisas e perguntou o que era eu
mandei calar a boca, fui grossa efiquei com raiva e irritada.".
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Nesse aspecto, refletem a característica humana de estarem inseridas em urna realidade
que é marcada por crengas e acontecimentos do passado que influenciam ñas suas
compreensoes de mundo tanto quanto os estados de ánimo, a disposigáo que leva o humano
experienciar o mundo de urna determinada maneira (Critelli, 1996).
Urna das máes afirmou: "Esse tabú vem da época dos meus pais, a gente nunca conversava
sobre ísso e eu também nunca perguntei. Hoje em día eles vem essas coisas pelo menos na televisao".
Diante da dificuldade em lidar com o assunto, a televisao e outros meios de comunicagáo
apareceram como possibilidades de preencher um vazio que as próprias maes nao sabem
preencher. Assim, ao mesmo tempo em que a televisao aparece como um recurso para obter
informagoes sobre sexualidade, provoca urna condigao em que as maes ficam sujeitas áquilo
que os filhos escutam e aprendem fora do ambiente familiar.
Pode-se concluir, entáo, que a análise dos grupos de maes permite a compreensao de
que lidar com o consumismo é um desafio porque o ato de comprar está muito associado a
urna forma de compensar ausencias e demonstrar afeto. Já falar sobre sexualidade é difícil
porque as máes carregam um modo repressor de lidar com essa temática. Diante dessas
dificuldades, consomem mais bens materiais e permitem que meios de comunicagao
auxiliem seus filhos a aprender sobre sexualidade. De um modo geral, o sentido das agoes
das máes aproximou-se daquele dos pais, a saber, dar e receber afeto dos filhos. No tema da
sexualidade, a esquiva predominou, urna vez que os tabus que permeiam seus saberes sobre
sexualidade foram impeditivos para urna abordagem mais livre e dialógica da questáo.
Considerares fináis
Primeiramente, é importante considerar que as máes e os pais que participaram dessa
pesquisa frequentaram os encontros reflexivos em caráter voluntario, explicitando nesta agáo
um comprometimento com seus papéis. Isso ficou claro em todo o discurso analisado mesmo
em situagoes em que relataram as dificuldades cotidianas para implementarem suas práticas
educativas. Quando relacionaram o ato de consumir a urna tentativa de amenizar tanto a
ausencia materna quanto a paterna, isso explicitou um compromisso dos pais com a presenga
na vida dos filhos na medida em que valorizavam o vínculo afetivo e sentiam que suas
ausencias precisariam ser compensadas. Interpretam a solicitagáo da crianga como urna
solicitagáo de afeto e, nessa situagáo, podemos dizer que esses pais vivenciaram a solicitude
buscando bens que substituíssem suas ausencias. Fica evidente, nesse contexto, que comprar
algo para os filhos é urna forma de tentar ser um bom pai ou urna boa máe e o sentido do
consumismo é mais direcionado pelo ámbito afetivo do que pelos principios educativos. Esse
é um modo de agir que aparentemente também pode ser associado ás classes medias de
nossa sociedade.
Na tentativa de suprir os desejos materiais dos filhos, encontram-se como obstáculos
algumas características dessa comunidade, como o fato de ser composta por urna populagáo
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de baixa renda. Tal condigao exige que os pais tenham longas jornadas de trabalho e, mesmo
assim, nem sempre possam prover materialmente os filhos com bens de consumo supérfluos,
frequentemente veiculados na mídia e atraentes para criangas e adolescentes. Essas
limitagoes concretas nao seriam tao prejudiciais se nao fossem urna das formas relatadas
pelos pais de poderem demonstrar afeto e reafirmar seus lugares na relagáo com seus filhos.
Outra forma de conviver com essas limitagoes seria através do diálogo. No entanto, a
sensagao de que os pais sao devedores de algo que precisam compensar parece dificultar o
estabelecimento de urna relagao dialógica. O diálogo, além de poder contribuir para urna
nova possibilidade de interagao entre pais e filhos, é importante por permitir que a solicitude
seja vivida de modo a propiciar que o outro cresga, amadurega e encontre-se consigo mesmo.
Além das limitagoes já relatadas na fala dos participantes da pesquisa, revelaram-se
também aspectos que nao sao tao imediatamente observáveis, como a cultura da
comunidade. A discussáo sobre sexualidade apontou seus valores repressores em relagao a
esse assunto, indicando como esse contexto de valores, crengas e expectativas também é algo
que interfere na disposigáo para compreender e lidar com o assunto e na construgáo de
espagos dialógicos sobre ele. Neste caso, nao discutir sexualidade com os filhos é nao poder
dialogar e, assim, dificultar inclusive que ocorram transformagoes nessa mentalidade,
mesmo que seja no sentido de ter urna apropriagáo daquilo que se tem como valor.
Entretanto, mesmo que essa falta de diálogo interfira negativamente na educagáo sexual dos
filhos, é fundamental destacar que nao representa um descaso das máes, mas sim um
indicativo dos valores desse núcleo social, que na populagáo estudada tem um sentido
repressor calcado ñas experiencias anteriores.
É exatamente no desvelamento das escolhas de agoes educativas de pais e máes que,
num primeiro olhar, poderiam parecer como falta de cuidado ou interesse que essa pesquisa
buscou contribuir. Quando nos dirigimos aos desafios e alternativas envolvidos ñas práticas
educativas parentais, encontramos também o sentido que as embasa e temos a oportunidade
de desconstruir afirmagoes preconceituosas. Todas as limitagoes concretas ou abstratas
apontadas nao sao compreendidas aqui como um impedimento para o estabelecimento de
novas relagoes ou possibilidades de realizarem suas práticas educativas. A importancia em
apontá-las e discuti-las em grupos e no meio científico está exatamente em poder percebe-las
e, através de espagos de reflexáo, tais como os encontros reflexivos, contribuir para que
ocorram transformagoes que favoregam ser máe e pai nos dias atuais, nos mais diversos
contextos. Acreditamos que na desconstrugáo de "pré-conceitos" esteja o primeiro passo para
o estabelecimento de aliangas institucionais em favor daquilo que, muitas vezes, se busca de
forma isolada em diferentes instancias da sociedade: a educagáo.
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Nota sobre as autoras
Fernanda Santini Franco - Mestre em Psicología da Educagao. Doutoranda do Programa
de Estudos Pós-Graduados em Educagao: Psicología da Educagao, da Pontificia
Universidade Católica de Sao Paulo, Brasil. Professora da Universidade Nove de Julho
(Uninove). Enderego: Rúa Purpurina, 155, cj. 115, Vila Madalena, Sao Paulo, SP, CEP: 05435000. - Brasil. Telefone: (11) 3462-2457. E-mail: [email protected]
Heloisa Szymanski - Professora doutora do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Educagao: Psicologia da Educagao, da Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo, Brasil.
Enderego: Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo, Setor de Pós-Graduagao, Programa
de Pós-Graduagao em Psicologia da Educagao. Rúa Ministro Godoi, 969 - 4o andar, Perdizes,
CEP 05015901 - Sao Paulo, SP - Brasil Telefone: (11) 36708527. E-mail:
[email protected]
Data de recebimento: 22/08/2011
Data de aceite: 01/06/2012
Memorándum 22, abr/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
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Carvalho, A. M. A. (2012). César Ades (08/01/1943 - 14/03/2012): entre teias, bichos, criancas e gente grande, a paixao
pela ciencia. Memorándum, 22, 226-241. Recuperado em
de
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http://www.fafich.ufmg.br/ memorándum/ a22/ carvalhoOl
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César Ades (08/01/1943 - 14/03/2012): entre teias, bichos, criancas e
gente grande, a paixao pela ciencia
César Ades (01/08/1943 - 03/14/2012): among webs, animáis, children, and grownups, the
passion for science
Ana María Almeida Carvalho1
Universidade de Sao Paulo
Brasil
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Foto de fundo e composieao de Davi Apenas
Lendo os depoimentos do orientador, de alunos, orientandos, colegas e amigos de
César, que me foram confiados e que constituem a maior parte deste texto1, me voltou a
lembranga o trecho final da autobiografía de Darwin, concluida em 1881, pouco antes de sua
morte, e na qual ele se descreve com palavras que podem ser (e foram) ditas sobre o nosso
pesquisador:
1
Os co-autores deste texto, que me enviaram os depoimentos inseridos aqui, sao citados brevemente nessas
insergoes, e identificados em Nota sobre os autores ao final do texto. O próprio César é co-autor, na medida em que
lembrangas e palavras suas estiveram conosco durante sua elaboragao. O prof. Walter Cunha nao pode enviar um
depoimento escrito, e me pediu que escrevesse a partir do que me relatou verbalmente. Outras citagoes foram
extraídas de textos indicados ñas referencias.
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Carvalho, A. M. A. (2012). César Ades (08/01/1943 - 14/03/2012): entre teias, bichos, criancas e gente grande, a paixao
pela ciencia. Memorándum, 22, 226-241. Recuperado em
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Portanto, meu éxito como pesquisador, qualquer que seja sua dimensao, foi
determinado, tanto quanto posso julgar, por qualidades e condicoes mentáis
complexas e diversas. Entre elas, as mais importantes foram: a paixao pela
ciencia, paciencia ilimitada para refletir longamente sobre qualquer tema,
zelo na observacao e na coleta de dados, e urna certa dose de criatividade e
de senso comum. Com faculdades tao comuns como as que possuo, é
verdaderamente
surpreendente
que
eu
tenha
influenciado
consideravelmente as crencas dos dentistas sobre alguns pontos importantes
(Darwin, 1881/1993, p. 93).
Desde meados de margo de 2012, quando sua morte foi divulgada, tanto a mídia
eletrónica quanto a impressa tém estado coalhadas de referencias, depoimentos, biografías e
outros informes sobre César. Nao se pretende aqui retomar esses conteúdos, que estao
fácilmente acessíveis e alguns dos quais sao citados neste texto. Ao invés, a partir das
palavras dos depoentes e dele próprio, fazer um pequeño retrato desse professor, colega,
amigo, pesquisador, cujo brilho se destaca no quadro científico brasileiro e internacional na
área de pesquisa que tanto contribuíu para consolidar - a Etologia, introduzida na
universidade brasileira por seu orientador de doutorado, Dr. Walter Hugo de Andrade
Cunha. É a partir de relatos do próprio César e das lembrangas de Walter que comegamos
esse retrato.
César jovem
Nascido no Cairo, César migrou para o Brasil com sua familia em 1958, motivados pelo
conflito que se desenrolava em torno do canal de Suez e pelo fato de já terem familia aqui.
Em entrevista recente a TV USP2, diz que seu interesse pelos animáis já vinha da infancia;
aos 13 ou 14 anos, ganhou um livro sobre a vida das aranhas e, a partir daí, em seus
passeios pelos jardins, "comecei a prestar atengáo... a tomar notas (...) o comportamento do
naturalista é tomar notas... fui jogando insetos (na teia) pra ver...". Nesse, como em outros
aspectos, César está em boa companhia . Darwin relata que, a época em frequentava a escola,
sua atragáo por historia natural já estava bem desenvolvida: "Tentava decifrar nomes das
plantas, e colecionava todo tipo de coisas, conchas, lacres, selos, moedas e minerais. A paixao
por colecionar que leva um homem a ser um naturalista (...) era muito forte em mim"
(Darwin, 1881/1993, p. 7). E Walter Cunha (citado em Fuchs, 1995) confessa o mesmo tipo de
fascínio:
Eu nao sei de onde vem esse meu interesse por bicho... o bicho me prende os
olhos, eu gosto de ver... Eu lembro que minha mae dizia que eu passava
horas a fio sentado na calcada olhando o chao. Acredito que foi nessa ocasiao
que comecei a prestar atencao em formiga... (p. 18).
2
http://scienceblogs.com.br/socialmente/2012/03/uma-homenagem-ao-mestre-cesar-ades/
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César conta, na mesma entrevista, que sua adaptagao ao Brasil foi suave, apesar de seu
quase total desconhecimento do país (que, em suas palavras, ainda nao tinha a projegao
internacional que tem hoje) e também do idioma: "Eu devia ser um pouco brasileiro antes...
nao vejo estranheza... logo comecei a arranhar um pouco o portugués, fui aprendendo o jeito
das pessoas... foi tranquilo." Cursou o colegial (atual ensino medio) em francés, no Liceu
Pasteur, e ingressou no curso de Psicologia da FFCL da USP em 1961. Segundo ele, hesitou
entre Biología (de que gostava muito) e Psicologia, com que tinha tido contato ao estudar
filosofía no 3o ano; e decidiu-se pela Psicologia, porque "achei que abrangia a biologia - e
acabei juntando as duas..." Walter Cunha relata que conheceu César ao voltar de um estágio
nos EUA. Foi seu professor de Psicologia Experimental em 1961, de Psicologia Comparada e
Animal em 1963 e posteriormente na primeira disciplina que ministrou na pós-graduagao.
Em seu relato (Cunha, 2012, margo), conta que, na parte prática de Psicologia Experimental,
ministrada por ele no segundo semestre, pedia aos alunos que replicassem experimentos
publicados em revistas como American Journal of Psychology e Journal of Experimental
Psychology, e a seguir desenvolvessem um experimento original ñas instalagoes dos
laboratorios de Psicologia Experimental na Alameda Glete e elaborassem um relatório em
formato de artigo, segundo as normas da APA. Estudando percepgao (que, mais tarde,
forneceria o tema de seu trabalho de conclusao de curso e de sua dissertagao de mestrado,
sob orientagao de Dora Ventura), César inventou equipamentos origináis para seus
experimentos. Pouco depois, pediu a Walter que viabilizasse a montagem de um labirinto
para ratos - possivelmente o ponto de partida de seu interesse por comportamento
exploratorio em campo aberto, ainda na Glete. Walter descreve César como um aluno
extremamente interessado e criativo, e conta que recomendou sua contratagao como instrutor
da cadeira de Psicologia Social e Experimental em 1965, quando César ainda cursava o 5o
ano. Walter relata ainda um incidente relevante: tentando interessar um outro estudante
pelo estudo de aranhas, costumava levá-lo para a Cidade Universitaria, para observar
aranhas no bosque da Química; em urna dessas excursoes, César os acompanhou e, diz
Walter: "foi ele quem se interessou, e descobriu tantas coisas, demonstrou tanta competencia,
que deixei as aranhas para ele". Foi Walter quem lhe ofereceu, em urna caixa, sua primeira
aranha Argiope argéntala - a sementé de sua tese de doutorado, tempos depois, quando César
já atuava há anos como instrutor na graduagao (aos 22 anos) e, desde 1969 (com 26 anos),
como professor de disciplinas de pós-graduagao.
No doutorado César foi inicialmente orientando de Carolina Bori, e passou para a
orientagao de Walter devido a seu interesse por comportamento animal. Segundo Walter,
César foi um orientando "que nao dava trabalho, trazia observagóes e reflexóes adequadas,
as quais eu apenas acrescentava sugestóes de clareza e de precisao" (Cunha, 2012, margo, s.
p.). Nao é essa a visao do próprio César, que comenta, em entrevista a Renato Kinuchi e
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Mauricio Ramos (Kinuchi & Ramos, 20113), que Walter escrevia comentarios extremamente
ricos, muitas vezes mais extensos do que o texto que estava comentando (o que, alias,
também foi a minha própria experiencia como aluna e orientanda de Walter...). E César
parece ter adotado o modelo, segundo o depoimento de Patricia Izar:
Do professor, na graduacao e na pos, guardo nao só as ideias que me foi
incutindo e fazendo pensar, mas o método pedagógico, formulando questoes
que conduziam a urna reflexao acurada sobre cada novo conceito, e a
preocupacao em reforcar esse exercício, devolvendo cada pequeño texto com
comentarios reforcadores e instigantes.
No longo período de convivencia entre César e Walter desenvolveu-se entre eles urna
grande amizade:
Fomos de fato muito amigos. Enquanto estive no Departamento, sempre
almocávamos juntos e eu sempre que podía o levava de carro para casa, e
nao havia problema ou assunto de pesquisa sobre que nao conversássemos.
Depois de aposentado, nao deixei de convidá-lo nunca para alguma
comemoracao familiar, e todos de minha familia - a filha, o genro, os netos,
os demais parentes - o estimavam e admiravam bastante. (...) amigo foi o
que sempre fui mais dele (Walter Cunha).
César professor e orientador
Nao é possível falar sobre César professor e orientador de forma mais expressiva do
que com as palavras de seus alunos e orientandos. Permito-me comegar por esta aluna, que
teve o privilegio de té-lo como professor no seu primeiro ano de pós-graduagao, 1969:
Foi urna verdadeira revelacáo do que pode ser um professor (...). César é um
professor que transmite paixao pelo conhecimento, provoca curiosidade e dá
um enorme espaco para os alunos (Ana Carvalho, citado em Menandro,
2010,15 de marco, s. p.4).
Quando, no inicio dos anos 70, entrei no programa de pós-graduacáo em
Psicologia Experimental, passei a ter contato com professores muito jovens e
brilhantes; entre os de Etologia, área em que me concentrei naquele período,
o mais visivelmente apaixonado era César Ades, muito entusiasmo, brilho
nos olhos, e muita disponibilidade para com os alunos. Atencioso e gentil,
me dispensou acolhimento caloroso, que me foi caro já que, egressa do
Instituto de Biociéndas, me sentía tímida e deslocada na área Psi. Sua
dedicacáo contagiante me envolveu na producáo com ele de um trabalho
sobre Argiope argentata. Conviví com César quando despontava a estrela de
referencia internacional que ele se tornou no estudo do comportamento. Sou
3
Nessa entrevista encontra-se, em palavras do próprio César, urna descrigao muito detalhada e rica de sua fase
estudantil, das influencias principáis que recebeu, sua avaliagao sobre historia e filosofia das ciencias na formagao
do pesquisador e outros aspectos de sua trajetória e de seu pensamento.
4
Esse texto, em que se baseou urna apresentagao em homenagem a César durante a I Reuniao Anual de
Neuropsicologia e Comportamento, em setembro de 2010, está sendo proposto para inclusao no livro dentistas do
Brasil, a ser publicado pela SBPC.
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para sempre grata a ele pela sólida contribuicao dada a minha formacao
científica (Leila Lapyda).
César Ades foi meu orientador. Nao foi o primeiro, nem o último. Mas foi
ele, certamente, aquele que me guiou para a área de pesquisa em que
trabalho até hoje. Me lembro que na época, recém terminada minha
graduacao, tinha duas ou tres possibilidades, igualmente atraentes, para o
que fazer a seguir na vida. Num congresso, conversei com possíveis
orientadores para um futuro mestrado. Mas quando falei com César, com
seu entusiasmo imenso e contagiante pelo Comportamento Animal, nao tive
dúvidas, meu futuro estava decidido. Só isso seria motivo para grande
divida com ele. Mas ele fez mais: continuou sendo meu gurú e grande amigo
mesmo quando troquei de orientador para o doutorado e também depois, ja
como colega etólogo (...) E foi através dele que conheci tantos e tantos
grandes amigos na minha vida, a maioria também orientandos dele. Só
posso agradecer imensamente ter encontrado o César naquele distante
quarto de século atrás (Carlos Alberts).
Na verdade nao há palavras que expressem o carinho e admiracáo que ele
atraía, pelo entusiasmo com que ministrava suas aulas, despertando sempre
o nosso interesse, pelo sorriso e pela atencáo com que nos acolhia pelos
corredores, pela douta humildade que fizeram dele um exemplo
inesquecível de pessoa e de mestre (Katharina Beraldo).
César foi meu querido mestre: orientador do primeiro estágio ao
doutorado, catorze anos definidos pela palavra generosidade. Generoso
com seu tempo, inteligencia e cultura com uma aluna de biología
ignorante, me ensinou tudo e me transformou em etóloga. Infinitamente
mais generoso no doutorado, me deixou tentar uma pesquisa muito
arriscada e me transformou em exploradora de caminhos difíceis. César
foi um ampliador do mundo (Beatriz Beisiegel, grifo da autora).
César era daqueles professores que ficam na memoria de qualquer aluno.
Depois que a gente se forma, a gente vai esquecendo dos professores, mas
ficam um ou dois dos quais a gente se lembra para sempre. Esse é o caso de
César. Recentemente contratada pelo IPUSP e ministrando disciplinas junto
com ele, eu tinha para mim que assistiria, este ano, todas as aulas que ele
fosse dar, para que me servissem de inspiracáo, para que funcionassem
como um aprendizado. Nao houve tempo. Porém, o estusiasmo que vinha
de dentro dele era contagiante e fundamentou minhas escolhas profissionais
iniciáis e isso nunca vai mudar. César, grande mestre... aprendí muito... mas
eu aínda tinha tanto o que aprender! Saudades... (Briseida D. Resende)
César foi uma das pessoas mais importantes da minha vida. Minha vida
académica comecou quando o procurei, 12 anos atrás, querendo estudar
comportamento animal, e ele me recebeu com o carinho e a gentileza que
distribuía igualmente a todas as pessoas que encontrava. De lá para cá, devo
a ele meu crescimento pessoal, minhas conquistas, e espero poder ser uma
replicadora hábil e fiel de todo o conhecimento que ele me passou e que
ultrapassa o limite profissional. Ele tinha também esse poder de entrar na
nossa vida pessoal como um pai querido que até quando se zanga mantémse leal. Espero que em cada um de nos, seus filhos académicos, seja levado
um pedacinho do nosso querido César, seja em conhecimento, em ideias, em
curiosidade, em entusiasmo, em alegría, em gritos espontáneos que saltam
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pelo corredor, em gentileza, no olhar atento e encantado a vida animal e em
todas as outras coisas maravilhosas dele das quais nao nos esqueceremos.
Obrigada, César! (Patricia Monticelli-Almada)
Conheci César Ades por indicacáo de minha mae - ele tinha sido seu
professor de Psicología quando ela estava na graduacao da USP. Nao sabia
nada de comportamento na época, mas ele me recebeu de bracos abertos em
seu laboratorio, e assim comecamos urna parceria que durou mais de 12
anos... César me fez ver a beleza do comportamento animal com sua
empolgacao, seu entusiasmo, seu jeito simples de falar e gritar pelos
corredores. Mais do que um orientador, ele foi um amigo. Hoje, ficaram
muitas lembrancas boas, muitos trabalhos por fazer (sim César, estou
tocando nossos artigos, como vocé quería!) e um pé de árvore que ele
plantou pra mim, que fica aqui na sala e que me faz lembrar dele todos os
días (Nina Furnari).
Um día César me chamou junto com um grupo de alunos de graduacao para
urna reuniao na Diretoria. Pensei: o que será que ele quer? Serviram café, eu
nao gostava, mas aceitei - e gostei, até hoje tomo. E o que ele quería? Quería
dizer que gostou dos nossos trabalhos em sua disciplina e que seria bom que
fossemos ao Congresso Norte-Nordeste. Esse foi meu primeiro café, meu
primeiro congresso, meu ingresso no mundo da pesquisa, de onde nao sai
mais. Vieram outros cafés na cantina do IP, onde ele vivía sorrindo e falando
de árvores, dos pássaros, das lindíssimas teias de aranha que estavam por
lá... Com certeza, esse homem marcou minha vida! (Gabriela Silva)
E, por fim, de um aluno que só teve contato com César durante a graduagáo, nos
primeiros anos do curso: "César Ades foi um grande cientista e um excelente sujeito, um dos
maiores professores que já tive, porque ensinava aos alunos, mais do que um conteúdo
específico, a alegría de pensar com liberdade" (Zanin, 2012, s. p.).
Esses depoimentos, tao convergentes em conteúdo e mesmo em palavras - paixao,
entusiasmo, acolhimento - sao representativos de varias geragoes de alunos/ orientandos,
desde o final da década de 60 até hoje. Essa continuidade é enfatizada por Fernando Ribeiro
(citado em Menandro, 15 de margo, 2010): "Quem o vé hoje, e encanta-se com seu
entusiasmo, conhece o mesmo César Ades de 40 anos atrás (...) César Ades é, e sempre foi,
um professor" (s. p.).
Além de paixao pela ciencia e pela área, o que César ensinava, e como ensinava, é
descrito por Patricia Izar em seu memorial de concurso em 2005:
Discutimos a evolucao de conceitos da Etologia clássica, como instinto,
padrao fixo de acao e o modelo de motivacao. Usando como base inúmeros
artigos sobre as mais diversas áreas de estudo do comportamento animal,
como comunicacáo, comportamento parental e memoria, o Prof. César foi
nos mostrando que a oposicáo "inato-adquirido" perderá o sentido. Mesmo
um padrao comportamental muito estereotipado, típico de urna especie,
pode ser modificado em funcáo de estímulos do ambiente. Por outro lado,
mesmo em condicoes ambientáis muito distintas daquelas naturais, ou com a
manipulacáo experimental dos estímulos relevantes, os animáis apresentam
padrees comportamentais típicos da especie. Aprendemos que muitos
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comportamentos típicos de urna especie sao adquiridos por mecanismos de
aprendizagem individual ou social, mas que essa aprendizagem é afetada
por predisposicoes biológicas. Nao apenas predisposicoes anátomofisiológicas, mas predisposicoes comportamentais que foram moldadas pela
selecao natural. O curso foi muito estimulante nao só pelo tema, mas pelo
entusiasmo contagiante do prof. César. Sua fascinacao pelas peculiaridades
do comportamento das mais diversas especies, como aranhas, papagaios ou
tamandúas, ficou aínda mais evidente na expedicao que fizemos ao Parque
das Ernas, em Goiás, como atividade prática da disciplina. Essa viagem foi
urna oportunidade única de ilustrar as possibilidades de compreensao da
evolucao do comportamento ao adotarmos urna abordagem comparativa,
em meio a natureza fascinante do Cerrado.
César e as criangas
Aproveito a mengao a excursao ao Parque das Ernas para esbogar urna faceta de César
que testemunhei pela primeira vez ao participar dessa excursao acompanhada por meus dois
filhos mais novos: o fascínio recíproco entre ele e as criangas. Durante anos, meus filhos volta
e meia me perguntavam: como vai aquele seu amigo que gosta de aranhas?
Rui Oliveira (colega e amigo de César do ISPA, Lisboa) relata urna observagao
semelhante ao final de seu depoimento (transcrito adiante): "A título pessoal o César tornouse também visita e hospede regular de nossa casa e foi rápidamente adotado pelas criangas,
juntamente com as quais entrava (e promovía) ñas brincadeiras mais loucas."
Isabel Pedrosa conta dois episodios de César amigo das criangas:
Aínda aluna do doutorado, fui um día ao B-105 fora do horario de aulas,
junto com meu filho de 5 anos, Marcelo; no corredor encontramos com
César, que convidou Marcelo para urna visitinha ao seu laboratorio de
aranhas. Marcelo se encantou com tudo que viu e lhe pediu urna aranha.
"Um curioso por aranhas tanto quanto eu!", parece ter pensado o professor,
e lhe ofereceu urna Argiope argentata, da qual possuía muitos exemplares.
Marcelo, entretanto, preferiu urna caranguejeira. César relutou em ofertar
seu único exemplar, tentou persuadir Marcelo, mas logo cedeu ao pedido
insistente, que sinalizava muita curiosidade sobre aquele animalzinho
cabeludo!
Anos depois, César veio ao Recife e o levamos a um passeio na ilha de
Itamaracá-PE. Estávamos acompanhados de minha filha e sua prima, ambas
de 12 anos. De volta a Recife, as duas meninas, sentadas ao lado de César,
comecaram a cantar. Pouco depois, iniciei urna conversa qualquer com César
que, rápidamente e de modo disfarcado para que as garotas nao
percebessem, me fez um sinal a fim de nao interrompermos a cantoria das
criancas. Fiquei surpresa com seu entusiasmo; parecía se deliciar com aquela
situacao! O encanto por criancas era urna das facetas de César. Observava-as
com interesse, como se aprendesse com elas.
A natureza da relagao entre César e as criangas é revelada por ele mesmo em Ades
(2009):
5
Bloco 10 - onde funcionou o PSE-IPUSP até o fnal da década de 80.
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Usarei, para finalizar, um episodio pessoal em que a categoría de 'amigo'me
foi atribuida por uma menina entao com seis anos, Isabella, da qual era (e
sou) frequente companheiro de brincadeiras (a ponto de um dia, por
telefone, me convocar: 'César, estou com minhas duas primas aqui e
queremos brincar uma brincadeira, tem que ser de quatro, vocé nao quer
vir?'). Na escola, um dia, a atividade era falar de 'ciencia'. Quando chegou a
sua vez, Isabella relatou: 'Eu tenho um amigo que se chama César e ele
estuda os bichos'. E ficou talando de bichos. (...) Há muito que aprender a
respeito das criancas, se tivermos o gosto e a paciencia de chegar perto e de
observá-las, com um olhar minucioso que tem muito do olhar etológico, e se
prestarmos atencao a sua autonomía e crian'vidade enquanto seres culturáis.
Acho que aprendi um bocado com criancas, entre outras coisas um uso
especial da palavra amigo (p. 134).
E aínda: "Aprendi um bocado sobre como construir pipas, em longas conversas com os
meninos empinadores da praia de Ponta Negra, em Natal. Mais do que isso, acabei fazendo
amizade" (p. 133). E reconhece: " sou um desses adultos atípicos que se encantam em entrar
(e as vezes ser aceitos) no grupo infantil" (p. 128).
Por que atípico? César olha o relacionamento entre adultos e criangas, a parte as
relagoes com os pais e outras relagoes assimétricas, como "um relacionamento especial que
eu gostaria de caracterizar como tendo a ver com amizade" (p. 132). Para que essa relagáo se
constitua, "é preciso que o adulto desista um pouco, como num faz de conta, do poder que
lhe confere o papel tradicional de adulto, como quem se agacha para falar com criangas,
estabelecendo uma proximidade ao mesmo tempo física e simbólica" (p.132). O adulto que
brinca "se destaca, aos olhos das criangas, dos outros adultos distraídos ou reguladores.
Torna-se atípico" (p.132). E sugere que essa relagao atípica (o que nao significa que seja rara
ou anormal) "provavelmente tenha raízes evolutivas e constitua uma das formas básicas
pelas quais velhas e novas geragoes trocam informagoes e criam, a cada momento, uma dada
configuragao cultural" (p. 128).
César amigo das criangas e curioso (como sempre) a respeito délas nao as esqueceu em
sua obra: como lembra Menandro (2010, 15 de margo), escreveu artigos destinados a elas,
publicados em Ciencia Hoje das Criangas e como capítulos de livros, com títulos como O
namoro dos bichos, Os bichos também brincam, Bicho sabido.
Assim, César etólogo e César amigo das criangas convivem no mesmo César
apaixonado e envolvido que se revela a cada momento de sua atuagao - como aluno,
professor e, em qualquer dessas faces, pesquisador.
César pesquisador
"Minha área de pesquisa é a curiosidade." Esta frase meio brincalhona de César,
frequentemente citada em referencias a ele, nao se limita ao fato, também verdadeiro, de que
a curiosidade foi um de seus interesses de pesquisa; expressa antes, como se entende
fácilmente, sua abertura em relagao a seus objetos de estudo e seu fascínio pelo desconhecido
Memorándum 22, abr/2012
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Carvalho, A. M. A. (2012). César Ades (08/01/1943 - 14/03/2012): entre teias, bichos, criancas e gente grande, a paixao
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e pela descoberta: "O meu gosto é pelos animáis, pela vida... sempre achei fantástico o
animal saber fazer o que faz, fantásticamente apropriado", ele responde a urna pergunta
sobre a sua escolha de animáis para estudo na entrevista a TV USP citada ácima.
De fato, como aponta Menandro (2010, 15 de margo), do interesse inicial por
comportamento exploratorio em ratos, e a seguir pelo comportamento de aranhas orbitelas,
a curiosidade de César se expandiu, ao longo dos anos, para insetos, para outros aracnídeos,
outros roedores, outros mamíferos além destes, inclusive e principalmente os primatas (entre
os quais Homo sapiens sapiens) etc etc (quase 60 especies!) : qualquer bicho interessava a
César... Vera Bussab (citado em Menandro, 2010, 15 de margo) comenta: "Nao é por acaso
que o acompanham, por urna vida, cadernetas de anotagoes e máquinas fotográficas: nao
quer perder o registro de tudo aquilo que é capaz de perceber de maneira táo criativa e
generosa. Está sempre pronto, como um sabio, a aprender e a enxergar" (s. p.). 6 Também a
temática de seus estudos é extremamente diversificada: percepgáo, motivagáo e emogáo,
aprendizagem, memoria, estereotipia e plasticidade, comportamento parental, comunicagáo
animal, proto-simbolismo na comunicagáo entre caes e seres humanos... A lista é extensa e
pode ser visualizada percorrendo-se em seu currículo os títulos de suas publicagoes e de
trabalhos orientados, de iniciagoes científicas a doutorados.7 A relagao entre especie estudada
e tema focalizado nao é aleatoria: é guiada pelo conceito de 'comportamento ecológicamente
relevante', urna versáo atualizada do conceito etológico clássico de 'comportamento
específico da especie' que acentúa a énfase na fungáo adaptativa do comportamento, e que
César propoe como um diferencial da abordagem 'psicoetológica' - termo utilizado por
Walter Cunha em um artigo que nao chegou a ser publicado (Para urna Psicoetologia do
medo), e que foi retomado em Ades (1986).
Essa amplitude de interesses, associada a sua participagáo na criagáo dos encontros
anuais de Etologia (inicialmente regionais, hoje nacionais), da Sociedade Brasileira de
Etologia, da Revista de Etologia (periódico sob responsabilidade do Laboratorio de
Psicoetologia do PSE-IPUSP, criado por ele), é um dos fatores responsáveis pela expansáo e
consolidagáo da Etologia brasileira. De fato, como afirma Emma Otta8, "o desenvolvimento
da Etologia no Brasil tem a marca do prof. César" - afirmagáo com a qual outros concordam:
Nao é exagero dizer que a Etologia brasileira foi em grande parte construida
por ele. Foi no PSE que se formou a maioria dos etólogos e psicólogos
evolucionistas que atuam hoje no Brasil, que se mostrou a biólogos a
importancia de entender o comportamento dos animáis, e para psicólogos a
relevancia da teoría evolutiva para a compreensao do comportamento
humano (Mendes, 2012, s. p.).
6
A colegao de cadernos de anotagoes e de fotos decorrente das observagoes de César está sendo examinada por
sua filha Lia Ades Gabbay e por colegas do Laboratorio de Psicoetologia do PSE-IPUSP com vistas a produgao de
um livro postumo.
7
http://lattes.cnpq.br
8
Em comentario no decorrer da entrevista de César a TV USP.
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O nome de César Ades se confunde com a etologia no Brasil. Acredito que
isso ocorra nao só pelo seu pioneirismo na área, mas também pela
abrangéncia do seu trabalho, e, principamente, pela divulgacao científica que
fazia nos mais diversos meios. Sua figura sempre simpática e sorridente, seu
carisma e sua paixao pelo estudo do comportamento eram extremamente
contagiantes e por si só angariavam admiradores e também novos
pesquisadores (Briseida D. Resende)
Foram esses também os pontos de partida para o intercambio entre diversas áreas das
ciencias biológicas anteriormente em grande medida isoladas dentro da comunidade
científica - Veterinaria, Zootecnia, Ecología e preservagao de biodiversidade e outras - que
atualmente interagem em congressos, intercambios e interesses de pesquisa, tanto em nivel
nacional quanto internacional - como evidenciam as numerosas participagoes de César (com
trabalhos seus e de seus orientandos) em encontros promovidos por sociedades científicas de
sub-áreas diversas em diversos países ao redor do mundo e o intercambio estabelecido por
ele com esses grupos de pesquisa. Com a palavra, dois dos colegas/amigos que construiram
com César essas relagoes de intercambio internacional.
Conheci o César Ades em agosto de 1999, durante a Conferencia Etológica
Internacional que nesse ano se realizava em Bangalore, na India. O Brasil
apresentava a candidatura ao International Ethologists' Coundl para a
organizacáo da conferencia de 2003 e o César, juntamente com o Mateus
Párannos da Costa, procurava apoios para a proposta brasileira. Com a
alegría contagiante e o carisma do César nao foi difícil fazer passar a
proposta e quatro anos depois a Conferencia Etológica Internacional
realizava-se em Florianópolis com imenso sucesso, e revelando a
comunidade internacional o excelente trabalho que vinha sendo feito nesta
área no Brasil. E foi de fato em Florianópolis que a minha amizade com o
César se comecou a cimentar. Até ai eu o via como um colega respeitado que
trabalhava num campo do estudo do comportamento animal paralelo ao
meu, mas nessa conferencia, mais urna vez conjuntamente com o Mateus,
conversamos sobre o paradoxo da Etologia estar em grande expansáo quer
em Portugal quer no Brasil, mas as duas comunidades nao se conhecerem
bem. Ficou logo ali decidido que tínhamos que fazer algo sobre o assunto e
iniciou-se um intercambio para promover a ida de pesquisadores
portugueses aos encontros da Sodedade Brasileira de Etologia e vice-versa.
Foi também por essa altura que o César se tornou membro do Conselho de
Redacáo da revista científica Acta Etnológica, publicada pela SpringerVerlag, e que é o órgáo oficial das Sociedades Portuguesa e Espanhola de
Etologia. E foi assim que nos aproximamos e que se gerou essa amizade táo
fácil de estabelecer com o César. Em 2004, após o Encontró de Etologia em
Campo Grande viajamos os dois juntos para o pantanal e foi deslumbrante
observar o César no campo. Tinha um conhecimento imenso de historia
natural do Brasil e urna confianca natural nos bichos que deixava a flor da
pele os ñervos do guia que nos acompanhava ñas nossas caminhadas ou
passeios de barco ou a cávalo. Essa foi a primeira de muitas viagens que
realizamos juntos em Portugal e no Brasil. As visitas de César a Portugal,
quer para os encontros da Sodedade Portuguesa de Etologia quer para
ledonar no Programa de Psicobiologia do ISPA (Instituto Superior de
Psicología Aplicada), tornaram-no urna figura muito querida na comunidade
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de etólogos e psicólogos em Portugal e sobretudo entre os alunos, com os
quais conseguía estabelecer urna relaeáo de proximidade e respeito mutuo
muito especial (Rui F. Oliveira).
MERCI Cesar de nous avoir fait confiance, de nous avoir accueillis,
accompagnés, fait découvrir tant de voies d'échanges possibles entre les
étres vivants, de nous avoir éclairés, instruits sur l'intelligence anímale et les
liens indefectibles qui unissent l'homme et 1'animal. Ta disponibilité, ta
bonne humeur et ton sourire en toutes circonstances nous ont fait franchir
beaucoup d'obstacles et croire en l'avenir; tu nous a beaucoup transmis, a
nous de prolonger et poursuivre cette oeuvre scientifique et humaine
extraordinaire. Concrétisons ton souhait de reunir l'Université de Sao Paulo
et VetAgro Sup pour batir le Symposium 4 : Échanges le Vivant en Ville
(Geneviéve Bernardin).9
Além de seu papel na consolidagao da Etologia no Brasil e na projegao desta no cenário
internacional, da relevancia científica de seu trabalho em cada especie e tema específicos que
abordou, da proposigao de conceitos heurísticos como 'comportamento ecológicamente
relevante', gostaria de destacar a contribuigao de César em urna questao que me é
particularmente cara: a superagao das dicotomías genético-ambiental, inato-adquirido,
biológico-cultural. Essa superagao de certa forma já está presente em seu pensamento desde
sua escolha de curso de graduagáo, como explicitada no primeiro item deste texto: a opgao
pela Psicología porque lhe parecía que abrangia a Biología. Na entrevista a TV USP,
respondendo as tentativas persistentes do entre vistador de diferenciar genético e ambiental/
cultural, ele também é insistente:
O individuo que nasce já traz um conhecimento, nao precisa adquirir tudo ...
a aranhinha recém saída da ooteca precisa saber construir urna teia para nao
morrer de fome... urna parte da equacáo já vem dentro do organismo... mas é
claro que a aranha também aprende... o saber inato (déla) se aperfeicoa, tal
como para nos
minha perspectiva é justamente o contrario (de diferenciar
genético-ambiental), é juntar... a genética humana prepara para ser cultural...
César retoma essa questao em muitos de seus textos ao longo dos anos. Em um dos
mais recentes (Ades, 2009b), ele vai buscar em Darwin a afinidade com seu próprio
pensamento: "Darwin nao elimina do instinto a operagao de fatores de cognigao, sua
concepgao se aproxima bastante do modo atual de considerar o comportamento animal como
produto de fatores de prontidao e de plasticidade" (p. 1)
Finalizando este item, cabe apontar que, além de promover a consolidagao da Etologia
no Brasil e seu reconhecimento em nivel internacional, de aproximar da Etologia e da
9
OBRIGADA, César, por ter confiado em nos, por nos ter acolhido, acompanhado e levado a descobrir tantos
caminhos possíveis de troca entre os seres vivos, por nos ter esclarecido e ensinado sobre a inteligencia animal e
os elos indestrutíveis que unem o homem e o animal. Sua disponibilidade, seu bom bom humor e seu sorriso
sempre presentes nos ajudaram a superar muitos obstáculos e a acreditar no futuro. Vocé nos transmitiu muita
coisa, cabe a nos prolongar e dar continuidade a essa extraordinaria obra científica e humana. (Que nos)
concretizemos seu sonho de reunir a Universidade de Sao Paulo e o VetAgro Sup na realizagao do Symposium 4:
Échanges Le Vivant en Ville
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Psicología pesquisadores de diversas sub-áreas das ciencias biológicas, César, com seu
pensamento integrador, contribuíu para integrar também abordagens rivais dentro da
própria Psicología. Citando José Lino Bueno, seu primeiro orientando de doutorado (em
Menandro, 2010,15 de margo):
Sob a inspiracao do mestre Walter Hugo de Andrade Cuntía (como
destacam todos os que colaboraram com o presente texto), César participou
de um modo essencial da criacáo dessa Psicoetologia que assimilava a
perspectiva evolucionista sem perder o foco nos processos psicológicos: seu
pioneirismo, no país, de levar a observacáo do repertorio comportamental
para dentro das caixas de ratos de laboratorio trouxe importantes
consequéndas metodológicas e conceituais para o estudo da aprendizagem e
da motivacao (s. p.).
A aproximagáo entre a abordagem etológica e a psicología experimental
norteamericana, incluida nesta a psicologia comparada clássica, já é proposta por Robert
Hinde em 1970, em sua obra Animal Behaviour: A synthesis of Ethology and Comparative
Psychology. As tensoes históricas entre essas abordagens nao detiveram César que, ñas
palavras de Menandro (2010,15 de margo):
Ao longo de sua trajetória de construtor de conhedmento, nunca deixou de
reservar parte de seu tempo para produzir e publicar reflexóes e proposicóes
metodológicas, sempre em sintonía com sua conviccao de que é possível e
desejável um enfoque que integre diferentes perspectivas e mesmo
diferentes disdplinas (isso o caracterizou, inclusive, em um determinado
momento em que a psicologia brasileira vivia um confuto de abordagens de
difícil tratamento, como lembrou José Lino Bueno) (s. p.).
A vocagao integradora de César se expressa ainda em sua gestao a frente do IEA-USP.
Perguntado, durante a entrevista a TV USP, se tinha trazido para o Brasil muitos
pesquisadores internacionais de sua área de pesquisa, ele responde, com seu sorriso habitual:
"Ao contrario, eu evitei trazer pessoas da minha área. O IEA é um espago de
interdisciplinaridade, de multidisciplinaridade, de transdisciplinaridade. É um local de
encontró."
Uma outra faceta de César gestor, que também conta sobre seu estilo de se relacionar e
interagir, é lembrada por Clotilde Rossetti-Ferreira:
É difícil falar de um amigo tao querido, que reunía qualidades tao diversas.
Contó um evento que mostra sua capaddade de resolver situacóes de
confuto através de um diálogo aberto. Durante sua gestao como diretor do
IPUSP e minha partidpacao como membro da Comissao Permanente de
Avaliacao (CPA), varias vezes nos encontramos, almocamos juntos e
batemos papo. Numa dessas ocasióes, os estudantes haviam invadido o
predio da Reitoria, e quem conseguiu resolver o problema, após varias
tentativas frustradas, foi César. Ele entrou respeitosamente na assembleia
dos estudantes, sentou-se no chao com eles e, na base de um diálogo aberto e
franco, conseguiu negodar a desocupacáo pacífica. Esse era César Ades.
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Paixao, entusiasmo, criatividade, reflexao crítica, capacidade de integrar enfoques,
sintetizar oposigoes aparentes, aproximar áreas limítrofes, articular relagoes e provocar novas
questoes, urna enorme disponibilidade para interagir e compartilhar e a simplicidade e
humildade dos sabios estao por tras de César pesquisador e da obra que ele nos legou - e
que, como dizem varios de nossos depoentes, cabe a nos preservar e continuar.
César colega e amigo
Nao sao só as criangas que chamam César de amigo: quase todos os depoentes inclusive alguns que sequer foram seus alunos, só o encontravam nos corredores ou em
congressos - mencionam explícitamente essa palavra ou se referem de alguma forma a
interagao pessoal com ele, como já deve ter sido notado nos depoimentos ácima, e como é
enfatizado nos que se seguem:
... um excelente dentista, professor e palestrante. Ademáis, era também urna
pessoa que transmitía muito afeto em seus contatos pessoais e um respeito
muito grande pelo outros, de urna maneira tao simples, gostosa e sincera,
muito rara de se ver hoje em día... Sua falta é IMENSA (Mará Campos-deCarvalho, grifos da autora)
César marcou profundamente pela alegría e pelo entusiasmo que dedicava a
tudo: suas amizades, suas pesquisas, suas aulas e palestras e, para mim, em
nossas conversas 'sobre tudo'. Nao consigo avahar o quanto nos fará falta
(Silvio Morato)
"Para Ziza, com carinho elevado a Zézima potencia". Nao preciso procurar o
cartao nem o presente que o acompanhou há muitos anos; as frases de César
ficam escritas na gente. É muito difícil resumir em poucas linhas urna pessoa
que escreve isso, urna relacao que gerou essa lindeza de frase (Beatriz [Ziza]
Beisiegel).
Cibele e eu ficamos mais próximas de César na International Ethological
Conference em Florianópolis. No coffee break ele se aproximava de nos com
aquele sorriso gostoso e perguntava: 'Cade o meu lanchinho?' (só porque um
dia tínhamos levado um lanche para ele nesse intervalo). Um dia,
caminhando a beira da praia ele comecou a cantar para nos: 'Minha jangada
vai sair pro mar...' e disse: 'Voces conhecem? É Caymmi, hndo, nao? Eu
adoro!' Sempre que ouco Caymmi me lembro do prof. César, de sua
simplicidade, alegría, entusiasmo ao falar das pesquisas, das criancas, ao
ouvir os alunos... E sempre que o víamos, mesmo fora da USP, ele nos
cumprimentava como se fossemos amigos de muitos anos. E pensar que eu
(Yumi) nem aluna dele fui... Fica o sentimento: que bom que o conhecemos!
(Yumi Gosso e Cibele Biondo).
Para mim César era assim, professor, companheiro de brincadeiras,
conselheiro. Depois que me tornei sua colega, quem diria, ele procurava me
apoiar a partir de sua experiencia em cada etapa que para mim constituía
um desafio. No dia em fui eleita chefe do departamento, contei que estava
assustada e ele me tranquihzou, dizendo que também tinha se sentido assim
a cada novo cargo, mas todas as vezes percebeu que eram oportunidades de
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aprender, sobre a universidade, sobre as relacoes humanas, e que tudo daría
certo. Em muitos outros momentos recorrí a ele para ouvir urna opiniao
serena. E, claro, também tenho muito forte na lembranca o quanto riamos
juntos, de qualquer bobagem, ele se divertía com qualquer coisa, eu também,
quase tudo acabava em muita gargalhada. Tudo isso era muito especial,
fazia a gente se sentir muito bem tendo ele por perto (Patricia Izar).
O sorriso aberto e o riso contagiante de César sao marcas inesquecíveis de sua forma
de se relacionar.
César parecia considerar o "riso frouxo" um comportamento ecológicamente
relevante - mas isso, ocasionalmente, trazia problemas. Após participar de
urna banca na USP, fomos a urna cantina, acompanhados de Ibrahim, marido
de urna das integrantes da banca. César e Ibrahim riam sem parar e a todos
contagiavam apenas com sua performance hilariante de tentar contar
anedotas (alias, conhecidas e sem grande apelo humorístico...). Ainda que as
risadas fossem muito gostosas, alguns dos presentes avaliaram que a
atividade excedía o limite de decibéis aceitáveis em urna cantina (que é
sempre repleta de barulhos e gestos!) e fomos admoestados. Também runos
muito da bronca que levamos... (Paulo Menandro).
Como disse Beatriz Beisiegel, é muito difícil resumir fazendo justiga a pessoa, ao
professor e ao pesquisador César Ades e a sua contribuigao para a ciencia brasileira e
internacional. Termino com dois depoimentos particularmente tocantes, de sua filha Lia e de
sua amiga Lisa, filha de Geneviéve Bernardin, que o conheceu durante um congresso em
Lyon. Suas palavras expressam, com muito carinho, o reconhecimento de que César, por sua
obra e por sua presenga em cada um de nos, continua conosco.
Desde pequeña assistia algumas aulas do meu pai, e ficava fascinada: a
imagem dele era muito forte, intensa, daquelas pessoas cheias de
sentimento, de amor pelo que fazem. Era o mesmo amor que ficava evidente
nele quando chamava, a mim e a minha irma, para irmos correndo ao
quintal de casa testemunhar urna aranha fazendo a sua teia. Um grande
acontecimento! Mais tarde tive a honra de ser sua aluna, o amor pelo
conhecimento e pela Psicología em particular já eram, como nao podia
deixar de ser, parte inseparável de quem sou. Pensó que sou por demais
privilegiada: como filha, tive um professor de vida que ácima de tudo
ensinou-me o quanto esta é linda, que vale a pena ser sorvida em cada gota.
Apaixonado, fez de mim apaixonada. A falta que me faz é indizível, mas ao
mesmo tempo, com imensa emocao, o tenho para sempre em quem sou (Lia
Ades Gabbay)
César, ton attention, ta curiosité, ton sens de l'écoute, ton intelligence, ta
sincérité, ta simplicité, ton goüt pour la vie, ton sourire radieux et constant,
ton talent, ton travail, tant de petits et grands bonheurs que tu as su donner
sans compter aux personnes que tu as rencontrées - ils sont en nous pour
toujours, tout comme toi, bien présent comme un pilier pour nous guider
(Lisa Legeay)10
10
César, sua atengao, sua curiosidade, sua capacidade de escutar, sua inteligencia, sua sinceridade, sua
simplicidade, seu amor pela vida, seu sorriso radiante e constante, seu talento, seu trabalho, tantos pequeños e
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Referencias
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http: / / www .blo gs .estadao / luiz-zanin/ adeus- a-cesar-ades-um-gr ande-pr ofessor /
Nota sobre os autores
Identificagao dos co-autores e de sua relagao com César Ades:
Dra. Ana M. A. Carvalho - professora associada (aposentada), Departamento de
Psicologia Experimental (PSE) do IPUSP, aluna e colega de departamento.
grandes momentos de felicidade que, sem pedir nada em troca, vocé proporcionou as pessoas que conheceu
estao presentes em nos para sempre, assim como vocé estará sempre presente, como um farol a nos guiar.
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Dra. Beatriz Beisiegel - bióloga, doutora pelo PSE-IPUSP, analista ambiental no
CENAP/ICMBio (Centro Nacional de Pesquisas e Conservagao de Mamiferos Carnívoros),
orientanda.
Dra. Briseida Dogo de Resende - professora doutora, PSE-IPUSP, aluna e colega de
departamento.
Dr. Carlos C. Alberts - professor assistente, LEvEtho - Laboratorio de Evolugao e Etologia,
UNESP - campus Assis, orientando.
Dra. Cibele Blondo - professora da Universidade Federal do ABC, aluna.
Gabriela Andrade da Silva - doutoranda em Psicología Experimental, psicóloga na
Universidade Federal do ABC, aluna.
Dra. Genevléve Bernardln - Grand Lyon, VetAgro SUP, Mission Animalité Humaine,
parceira de intercambio científico.
Dr. Hllton Japyassú - professor da UFBA, orientando.
Dra. Katharlna Beraldo - professora do Centro Universitario FIEO, aluna.
Lella Lapyda - psicanalista, aluna.
Lia Ades Gabbay - mestre em Psicología do Desenvolvimento, doutoranda em
Comportamento Alimentar, psicóloga clínica. Filha e aluna.
Lisa Legeay - filha de Geneviéve Bernardin, amiga.
Dra. Mará I. Campos-de-Carvalho - professora doutora, Depto Psicología FFCLRP-USP,
colega e amiga.
Dra. María Isabel Pedrosa - professora titular, UFPE, aluna.
Dra. María Clotilde Rossettl-Ferrelra - professora titular (aposentada), FFCLRP-USP, colega
e amiga.
Dra Nina Furnarl - pesquisadora do Laboratorio de Psicoetologia, PSE-IPUSP, orientanda.
Dra Patríela Izar - professora doutora do PSE-IPUSP, aluna e colega de departamento.
Dra. Patríela Ferrelra Montlcelll-Almada - professora FFCLRP - USP, orientanda.
Dr. Paulo RM. Menandro - professor titular, UFES, orientando.
Dr. Rui F. Ollvelra - professor catedrático, ISPA - Instituto Universitario, Lisboa, parceiro
de intercambio científico.
Dr. Silvio Morato - professor associado, Depto Psicología FFCLRP-USP, colega e amigo.
Dr. Walter Hugo de Andrade Cunha - professor doutor (aposentado), PSE-IPUSP,
orientador, colega de departamento e amigo.
Dra. Yumi Gosso - pesquisadora de Razoes e Motivos Pesquisa de Mercado, ex-aluna do
PSE.
Data de recebimento: 30/04/2012
Data de aceite: 02/05/2012
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