Imagens Venezianas
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Imagens Venezianas
Imagens Venezianas org. Maria do Céu Diel imagens venezianas org. maria do céu diel 1ª Edição São Paulo 2013 Copyright © 2012 Todos os direitos reservados Ficha Catalográfica Elaborada pelo Bibliotecário Carlos Eduardo Gianetti – CRB8/8604 L648 Linha : escritos sobre a imagem / Maria do Céu Diel, organizadora. - Campinas, SP : Império do Livro, 2012. 360p. ISBN: 978-85-64741-06-5 1. Arte e História 2. Memória - Arte 3. Arte – Estudo e ensino I. Diel, Maria do Céu (1962-) II. Título. CDD 701 Índice para Catálogo Sistemático 1. 2. 3. Arte e História Memória - Arte Arte – Estudo e ensino ISBN 978-85-64741-06-5 imagem da capa Intermundo, de Maria do Céu Diel, 2012 imagem da página de rosto Sonho de Joaquim, Cappella degli Scrovegni, Gioto Direitos reservados a Império do Livro Rua Padre Antônio Joaquim, 102 Bosque 13026-060 - Campinas - SP - Brasil Tel. (19) 2511 0544 www.imperiodolivro.com.br 701 701 707 maria do céu diel Madona e Miguel Anunciação Madona dell’Orto vivendo tão próxima do oceano. Dela, numa linha diagonal, vejo o cemitério de Veneza, protegido pelos ciprestes finos e escuros. Seu nome vem do arcanjo das mãos ocupadas, Miguel, o dono da balança e da espada. Às portas do Paraíso, e de costas para este, contempla as almas estupefatas. São duas margens que se somam a tantas outras quando vejo o Juízo de Tintoretto. No altar da igreja, estão as virtudes cardinais: Temperança, Justiça, Fortaleza e a Prudência. Das quatro mulheres, a única que olha para o Juízo Final é a Fortaleza, cujos braços cruzados repousam sobre a coluna quebrada por Sansão no templo filisteu. Seu rosto inexpressivo está voltado para baixo, onde está pintada uma alma de uma mulher jovem que ascende ao Paraíso. A alma não levita, é ajudada por um anjo de asas escuras, que a carrega em suas costas, é o que se vê na pintura. Ascendendo, encontra-se com a Fortaleza, galgando a moldura. Esta vê o Juízo, mas não age, visto que seus braços apóiam seu corpo que inclina-se pesadamente na coluna. Seus olhos escuros também dissolvem-se na terra que se abre. Dali, surgem os decompostos que se refazem em vários tempos da pintura. Relâmpagos de luz fazem surgir aqui e ali braços ou cabeças de órbitas vazias, esqueletos que se reconhecem mesmo sem a carne que os recobria. Este é um parto às avessas, a terra devolve o que ainda não foi, estando mesmo assim consumado e exaurido. Os corpos mortos desprendem energia ao esgueirar-se, engalfinhados em raízes e pedras tumulares. Do alto, a Temperança, ladeada pelos vasos de água quente e fria, encara o Cristo Juiz. Seu corpo translúcido no alto da pintura carrega o lírio e a espada, apresentados aos justos e aos pecadores. Logo abaixo, o Inferno mostra-se, cratera vermelha. Demônios avançam e arrastam as almas recém despertadas. O Juízo vem em forma de tempestade, de avalanche, de água suja e represada, os corpos são fiapos de luz dissolvendo-se num mar de terebentina. O mundo submergido pela água é a imagem da criação/destruição: ao existir, duplica o reflexo da cidade, mantendo-a viva por obra de fé enquanto a corrói inexoravelmente. Ali perto, ao largo da parede, também o mar mantém esta pintura em movimento. Morrer Veneza é morrer o mundo todo, assim diz este Juízo. Movimentos, convulões e tensões dobram de intensidade: passam para fora da tela e a cena se desdobra, dividindo-se descontroladamente. O ar respirável e fresco acima da linha do mar não é o mesmo que emana da cloaca e das tumbas. A água é como ar, o horror está em cada partícula de tinta. Ar e solo são revirados. A cidade submerge, seus sinais desaparecem. Com ela, outras seguirão. A cidade volatiza-se e é subtraída de suas almas. A Fortaleza reservou para si a lembrança das obras dos homens. A coluna é a prova do trabalho, da ciência e da arte. Ao cessar o estrondo do Juízo, a placidez do espelho nada refletirá. Ela será a guardiã do resíduo de uma civilização de construtores. Neste ponto a tela se rompe: nuvens escuríssimas desabam e tingem a cena como a tintura do veludo. Almas separadas por seus destinos, julgadas assim que renascidas. Na pintura, nossos olhos descrevem círculos que se completam fora da tela. A terra obscurece a pintura, convulsionada, como fez a mão do pintor, amolecendo a tela dócil com o pincel, como uma pele que se estica e se repuxa, indo e vindo entre dois lugares, duas luzes, dois oceanos... *** Na Scuola Grande di San Rocco está a Anunciação de Tintoretto. O anjo anuncia à Maria que esta será mãe de Deus. O braço direito aponta para o Espírito Santo e seus olhos caem sobre a mulher. Paralisa seu vôo alucinado, encadeado de querubins, para falar. Adentra pela porta/cenário aberta na parede da pintura, um meio-arco destroçado. Suas roupas aderem ao corpo e pode-se ver o ar que se move. Maria interrompe a leitura e encontra os olhos do anjo: seus pés separados denunciam o forro do vestido. Na parte sombria do quarto, a cama com dossel vermelho. Pela porta vêse fora da casa, onde entre lenha empilhada e seu marido é pintado como um homem de passagem. Os querubins anelam-se em curvas e arabescos, brincam livres. Os cabelos do anjo, os querubins, os rodopios: as roupas dobram-se em panos de vertigem. Maria com as mãos e o rosto incandescentes, o anjo assim a vê. As palavras dele são como mãos que separam dobras de pele. Ouve-se o rumor do tecido, as sandálias raspam o chão, os anjos seguem como que amalgamados, da apagada carpintaria vem um som monocórdio, as mãos de Maria estão abertas no ar. E ela vê o anjo pousado no ar e daqui de fora da pintura eu penso nos anjos que formam uma guirlanda; e o anjo, assim, parado pela força da atmosfera, mas que talvez deixasse cair o tecido em camadas amarelas e brancas e, vendo-se nu e transparente, para não ser assim ele decidiu que suas palavras seriam como vento, brisa audível, palavras e sopros que fizessem surgir sua própria ventania. *** lucia santiago olhos Veneza levou-me a caminhar por suas ruas, conduzida pelo olhar: Veneza é um corpo em movimento, sem descanso. A imobilidade seria fatal. As roupas que envolvem esse corpo o sufocariam se os movimentos estagnassem. As vestes da sedutora cidade são barrocas, ornamentadas, douradas, volumosas e transparentes. É possível vê-las assim: no chão, na linha dos olhos, por cima dos telhados e ainda por uma abertura no teto de um grande corredor num pátio central. E a vaidade está nos espelhos d’água. Seus trajes circulam, o corpo antigo e firme pelo tempo da existência. Este corpo é cortado por linhas diagonais, movimentos, para meus olhos moverem-se para baixo e para cima, para um lado e para o outro. Assim, corta-se o corpo veneziano, sempre ao se encontrar ou se perder em seus espelhos. Provocadores de sensações de infinitude: em meus olhos vivem seus artistas ,as construções repletas de alegorias que se apresentam por todos os lugares de seu corpo móvel. São seus espelhos que fixaram-se em meus olhos tornando Veneza impossível de ser esquecida e cada vez mais infinita ao ser lembrada. moema queiroz discurso amoroso Entrar em Veneza é atravessar um portal. Abster-se do tempo real para se entregar de corpo e alma a outro tempo, se tornar atemporal. Viver várias vidas em instantes, tão intensamente e impregnar-se com tal arrebatamento, que se torna impossível retornar ao mundo real, inteiro outra vez. No inicio, o olho se perde em um contentamento de luz, forma e cores magníficas, num mundo de gente de todo o mundo. Os sentidos tomados pela orgia da perfeição. No entanto, horas depois tem inicio o torpor E é nesse momento, nesse exato momento que a Sereníssima revela-se àquele que se dispuser a lhe conhecer. Então, como uma experiente amante, ela lhe toma a mão e lhe conduz por entre suas frestas, seus becos, deixa-se tocar em sua topografia reveladora. Traz à luz seu passado nas ruínas de seus rebocos, nos limos de suas paredes, na umidade de seu chão. Revela-se nos detalhes de seus telhados, nos símbolos delicadamente expostos ao longo dos percursos de suas vielas, conduzindo o caminhante a se perder em seu labirinto úmido com odor de maresia, mas com a certeza de estar protegido e amparado por uma aura santificada que permeia a cidade: sem culpas, sem remorsos são as certezas do seu sentido. No inverno, quando a cidade desperta mais tarde e a noite rompe mais cedo, quando o silêncio é mais constante, caminhar solitária por Veneza e observá-la através da neve ou em sua magnífica luz em um dia de sol, outro encanto. Ouço uma conversa constante e atemporal, como se estivesse em alguma cidade invisível, ouvindo os sons do júbilo e das suas melancolias. São vozes ocultas, sutis, ecoando dentro do corpo, e reverberando através do grande espelho que é essa cidade quando penetro nela. O espelho que se reflete em seus caminhos de água na imagem do que desejo, do que detesto, do que almejo e do que sou. Se me fosse possível, durante a escritura desta carta de amor, encostar- me-ia a uma das paredes úmidas de pedra, descascadas pelo tempo, pela luz e umidade, pelas mãos seculares que por ali deixaram seus rastros e aos poucos iria me amalgamando a ela, penetrando em suas moléculas, tornando-me parte de sua argila, de seu muco, de seu sal e sua sílica. E me deixaria por séculos misturar-me a esse corpo sábio e misterioso, buscando seus segredos indolentes, solitários e incoerentes, percorrendo por suas entranhas e seus vazios até não mais podendo de tanto e tamanha bagagem, desaguar no Adriático, purificando assim toda a minha secular humanidade. joão diel em puro silêncio em puro silêncio. maria está em profundo silêncio. a revelação se deu silenciosamente: as palavras do anjo não dobraram nem sequer o tecido pesado que maria usa como véu; sem nenhum arabesco, nem volta, quase nem se dobra. com dois dedos ela segura o véu que o movimento de sua própria mão torce; uma mão assustada que não acompanha o rosto revela o tecido vermelho de sua vida profana. ao ver o anjo, abandonou o livro posto sobre arcos, um livro de páginas pesadas e sem comentários. a voz do anjo mal levantou o véu de maria, mas movimentou as páginas aeradas do livro. o anjo está atrás de nós, também não o vemos. vemos sua luz. sua voz fez-se em luz e silêncio. e como nós não fomos escolhidos, vemos apenas o seu rastro; é um espetáculo que não veremos. mas nós espionamos, de uma janela do tamanho de um palmo aberto, a revelação que não ouvimos, e que se dá como um sussurro de luz. e todo excesso se transforma num peso que a divindade afasta com a mão. uma flor pequena seca apoiada no livro, mal iluminada, nos conta sobre o que virá; não um lírio torcido, nem um girassol, apenas uma flor do mato seca, transparente e cansada.