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Cem Anos do Concurso de Canberra O presente artigo pretende apontar as correntes do pensamento urbanístico atuantes no início do século XX utilizando como microcosmo de análise o concurso para construção da cidade de Canberra realizado no período de 30 de abril de 1911 a 23 de maio de 1912. Esse evento que movimentou profissionais de 15 países é um marco no amadurecimento da reflexão, intervenção e práticas concernentes à cidade. Seu contexto reúne disputas peculiares de um campo em formação como o debate sobre o profissional e o tipo de formação para seu exercício e, em se tratando de obras públicas, dos vínculos destes com os governos, em qualquer uma de suas esferas. A ascensão nacionalista é inerente à conjuntura e as disputas políticas uma conseqüência natural frente ao vulto de tais empreitadas. Partindo das seis propostas vencedoras do concurso, levando em consideração os relatórios de maioria e minoria emitidos pela comissão julgadora, pretendemos examinar divergências e afinidades das idéias urbanísticas fora de seu locus de produção. De 1911a 2010 Ao entramos na segunda década do século XXI nos aproximamos dos cem anos do concurso que elegeu o plano do arquiteto Walter Burley Griffin para a cidade de Canberra, oficialmente anunciado em maio de 1912. A importância dessa competição estende-se para além da fronteiras australianas como um marco fundacional do urbanismo1 como campo de conhecimento e atuação profissional. Trata-se de um momento de reflexão sobre as possibilidades formais para os assentamentos urbanos frente às promessas do século XX. O urbanismo que se consolidou no início do século passado vislumbra uma complexidade que conjuga técnica, teoria, experimentação, mítica e utopia ao mesmo tempo em que se organizou em relação estreita com as formulações sociológicas fundadas também no ímpeto científico do século XIX. Assim, a indagação filosófica “Qual a cidade ideal?” transforma-se frente à firmação de um corpo de conhecimento abalizado pela produção de tratados, relatórios experimentais e práticas extensamente discutidas por arquitetos, engenheiros, sanitaristas, topógrafos e paisagistas tanto em congressos e conferências como numa já significativa circulação de periódicos técnicos. Logo, o campo do planejamento urbano mostra-se maduro para articular teorias e avaliar os resultados materiais de suas intervenções. Neste sentido, a expansão das cidades nas antigas colônias britânicas fornece um manancial produtivo para a análise das correntes que permearam a formação do pensamento urbano no século XX. O afastamento da efervescência que marcou a produção dos discursos permite que 1 A designação do termo urbanismo é creditada a Ildefonso Cerdá. O engenheiro espanhol que nunca reclamou essa “paternidade” construiu sua teoria sobre uma base filológica e utilizou a análise etimológica para melhor penetrar nos termos que tradicionalmente eram empregados para designar o que era urbano e posteriormente para justificar a introdução de “una palabra nueva” que evidenciaria o caráter científico das intervenções planejadas nas cidades. Ver CHOAY, F. (1970, p.25-27). correntes complementares e opostas coexistam sem as contradições ou impedimentos dos contextos de origem. Esta foi a conjuntura da concorrência para o redesenho do centro monumental da capital americana. Expressão máxima do movimento City Beautiful, o plano de Washington e sua massa de edifícios criaram em larga escala uma unidade urbana fruto da utilização do instrumento projetual como ferramenta apta a produzir significados cívicos e identitários (MANIERI-ELIA, 1975). Dez anos depois e de forma potencializada o concurso para o plano da capital australiana engendrou um movimento excepcional de profissionais e uma profusa produção de propostas que, para além da construção da cidade, assinala a energia de um momento fundamental de maturação das ações sobre o tecido urbano. Canberra e a realização de concursos como expediente de um campo em formação A independência das colônias britânicas na Austrália foi um marco na fundamentação dos processos democráticos aplicados à gestão de um território. A partir de 1880, o ímpeto nacionalista alcançou o continente isolado entre os Oceanos Índico e Pacífico, e disseminou sentimentos identitários sob influência dos movimentos de independência dos Estados Unidos e do Canadá. Em 1 de janeiro de 1901 as seis colônias juntaram-se em uma federação chamada Commonwealth of Australia, este foi o desfecho de mais de uma década de convenções, negociações e acordos. A proposta de federalização ambicionada por mais 50 anos tinha como argumentos a necessidade de um sistema de defesa unificado e o ímpeto protecionista de restringir a imigração chinesa. Acreditava-se, também, que a federação seria um instrumento para alcançar a administração democrática do território, para tanto a Convenção de 1895 determinou sua aprovação por meio de um referendo. A Constituição que começou a ser redigida nas convenções da década de 1890 estabeleceu um sistema parlamentar bicameral formado pelo Senado e pela Casa dos Representantes. Interessa-nos aqui ressaltar seu artigo 125 que determinou que a sede do governo fosse estabelecida em uma nova cidade a ser construída entre Sydney e Melbourne, dentro no território de New South Wales (NSW) a uma distância mínima de 100 milhas de sua capital2. Em 1900, antes da oficialização da federação, o governador de NSW iniciou o trabalho de prospecção de possíveis sítios para a construção da capital, o técnico indicado para a tarefa foi Alexander Oliver, que recebeu propostas de 45 localidades, visitou pessoalmente mais da metade e ao seu relatório minucioso adicionou diagramas e possíveis delimitações dos territórios. Em dezembro de 1908 a proposta de Yass-Canberra, centrada no vale do Rio Molonglo, triunfa com a aprovação do Seat of Government Act. Em face ao impasse de como tratar a construção da cidade, opta-se pela realização de um concurso, idéia ventilada desde a formação do Commonwealth. Ainda em 1901, George Sydney Jones, líder do movimento para o planejamento urbano na Austrália, defendeu a possibilidade de 2 Pesquisa elaborada em Reps (1997; 2002) e AN IDEAL... (1995). uma competição. Alguns anos depois, John Sulman, o arquiteto mais influente da Austrália, aderiu à mesma posição. Sulman sabia que muitas cidades européias usaram concursos para selecionar planos de expansão. Tratava-se de um artifício comum em países escandinavos e germânicos, utilizados também em outras regiões da Europa continental. Na Inglaterra, depois da aprovação do primeiro código de projeto urbano, em 1909, competições também passaram a ser usadas para selecionar desenhos para áreas suburbanas. O objetivo não era tanto escolher um projeto vencedor, mas encontrar um profissional capaz de liderar o processo de revisão projetual e administrar a construção do plano proposto (REPS, 1997, p.57). Neste sentido, a realização de concursos é um elemento importante do contexto de formação do pensamento urbanístico. No Congresso Internacional de Arquitetos, organizado pelo Royal Institute of British Architects (RIBA) em 1906, as questões que perpassavam a construção de obras públicas é levantada por ninguém menos que o arquiteto vienense, Otto Wagner, numa palestra intitulada “A execução de obras arquitetônicas municipais e governamentais por funcionários públicos”. A apresentação suscitou calorosas discussões que ao final foi resumida numa moção votada por todos os participantes: Figura 1 “Que no futuro, no interesse do corpo administrativo e do público, e no mais elevado interesse da arquitetura, que os orgãos públicos, seja do Governo, da província ou da municipalidade confiem trabalhos de arquitetura significativos somente a arquitetos qualificados por meio de competições e afins” (WAGNER, 1906, p.125). Ao final, um dos mais atuantes debatedores da mencionada discussão o americano G. O. Totten forneceu um documento aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos, em 20 de fevereiro de 1893 (modificado em 24 de fevereiro 1903), que concedia poderes ao Secretário do Tesouro para viabilizar por meio de competições, arquitetos e projetos para a construção de prédios públicos. O documento também publicado pelo RIBA continha em 27 artigos indicações detalhadas para a criação, organização e execução de concursos públicos (WAGNER, 1906, p.109-128). Chamamos à atenção para tal episódio porque serão as bases estabelecidas para o concurso de Canberra, e seu respectivo regulamento, as circunstâncias determinantes para o resultado final da competição. Também queremos frisar que o debate sobre o privilégio de projetar e construir obras públicas aparece juntamente com a fundamentação da urbanística, exigindo desde então um posicionamento dos institutos de representação profissional. Uma competição marcada por disputas políticas O artifício dos concursos, veementemente defendido pela maioria dos arquitetos em exercício, abriu o campo de obras públicas para profissionais privados, ditos experientes e freqüentemente de grande renome. Contudo, não amenizou as discussões políticas inerentes a tais competições e não raras vezes contribuiu para acirrar o debate entre os diversos profissionais – engenheiros, arquitetos, agrimensores – que almejavam assumir o domínio sobre o campo emergente do planejamento urbano. Este foi o caso da disputa pelo projeto de Canberra. Seu principal ator foi o então ministro de Home Affairs, King O’Malley, um americano de passado problemático que emigrou para Austrália em 1888. A relação tempestuosa entre O’Malley e os Institutos de Arquitetura da Austrália começou em 1910 quando a comissão por ele escolhida, formada por Charles Robert Scrivener, David Miller, Percy Thomas Owen, todos funcionários públicos, não abriu espaço para representantes destes institutos no processo decisório que estabeleceria as condições e o regulamento da competição. A controvérsia girava em torno da forma de premiação, passava pela composição da comissão julgadora e pelos procedimentos para a avaliação das propostas. O valor dos prêmios oferecidos, £1750, £750 e £500 para o primeiro, segundo e terceiro colocados respectivamente, foram considerados baixos e havia dúvidas se atrairiam profissionais de calibre para a empreitada. Todavia, o esforço maior dos institutos centrava-se em mudar a cláusula que dava a O’Malley a palavra final na proclamação do vencedor (REPS, 1997, p.61-76). A repercussão internacional, veiculada por jornais, periódicos e confirmada pelas entidades de classe foi tamanha que motivou os arquitetos australianos a sugerir que o júri fosse formado por uma tríade de arquitetos sendo um britânico, um americano e um australiano. Porém, a menor resistência às regras do concurso por parte das entidades que representavam os engenheiros, conseqüentemente promovia sua aproximação com o ministro O’Malley. Entre as rusgas trocadas via imprensa, a posição oficial do governo sobre a formação do júri soou quase como uma provocação: “A atual situação é esta: os arquitetos, que desempenham um papel menor no campo de planejamento urbano, demandam trazer um arquiteto da Grã-Bretanha e outro da América para formar a comissão julgadora dos projetos”. O’Malley prossegue: “Contudo, nós propomos organizar uma comissão formada por um arquiteto australiano, um engenheiro australiano e um agrimensor australiano – todos, membros de institutos australianos”. A situação deteriorou-se definitivamente com a publicação do regulamento sem a devida anuência das entidades de classe envolvidas, fato que levou o Institute of Architects of New South Wales (IANSW) e o Royal Victorian Institute of Architects (RVIA) a notificarem seus membros a não tomarem parte da competição. O veto é ratificado também pelo RIBA que em apoio às entidades australianas estabelece sanções aos membros que enviassem inscrições ao concurso. Todo esse contexto intrincado tem como reflexo a não participação de profissionais de renome como os britânicos, P. Abercrombie, T. Adams e R. Unwin e dos americanos, J. Nolen e F. Olmsted Jr., entre outros (REPS, 1997, p.76-85). O resultado esperado pelo afastamento das entidades era o cancelamento do concurso mediante a ausência de propostas, seja pela escassez, ou seja, pela qualidade dos projetos apresentados. Todavia, o número de inscrições foi absolutamente surpreendente, 137 projetos enviados por autores de 15 países. O júri anunciado por O’Malley em fevereiro de 1912 era formado John Kirkpatrick, um arquiteto que anteriormente prestara serviços ao governo e estava afastado das entidades que articularam o boicote à competição, James Alexander Smith, engenheiro mecânico e presidente da Victoria Institute of Engineers e John Montgomery Coane, engenheiro civil e agrimensor membro do Victoria Institute of Surveyors. Este último recebeu do ministro a indicação para presidir os trabalhos que foram iniciados em 4 de março de 1912 (REPS, 1997, p.87-92). Os critérios de avaliação utilizados pelos jurados foram: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. Atender aos regulamentos do concurso; Apresentar soluções de drenagem pluvial, abastecimento e saneamento; Prever área suficiente para parques e jardins para criação de águas ornamentais; Proteger área residencial do tráfego pesado e afastá-la da área industrial; Conferir grandiosidade; Adaptar a proposta à topografia; Conferir à proposta a dignidade e os signos inerentes a uma capital nacional. O processo de seleção realizado em etapas escolheu 46 propostas que foram fotografadas e levadas ao terreno da capital para uma avaliação detalhada. De volta a Melbourne, 11 projetos foram selecionados e posteriormente reduzidos para o número de 8, contudo ao final de março e com a lista já enxuta o júri não conseguiu alcançar unanimidade para anunciar a proposta vencedora. Frente ao desacordo, os jurados optaram por enviar relatórios denominados de maioria, assinado por Kirkpatrick e Smith, e de minoria, avalizado por Coane. Em 4 de maio de 1912 os relatórios foram entregues a O’Malley ratificando assim o racha da comissão julgadora. Segundo Kirkpatrick e Smith, a maioria, os vencedores deveriam ser: o americano Walter Griffin em primeiro lugar, em segundo o finlandês Eliel Saarinen e em terceiro o francês Agache. Sob a avaliação de Coane, presidente da mesa, porém minoria, os vencedores seriam; o primeiro prêmio para a equipe do australiano Walter Scott Griffiths, o segundo para o americano Arthur Coleman Comey e o terceiro para a equipe liderada pelo sueco Nils Otto Gellerstedt (AN IDEAL..., 1995). Em 23 de maio de 1912 O’Malley chamou uma conferência de imprensa no Departamento de Home Affairs e ratificou a decisão da maioria dos jurados ao anunciar o primeiro prêmio para o arquiteto de Chicago. Entretanto, o caráter controvertido do ministro volta novamente à cena dos acontecimentos, depois de uma primeira declaração que expressava satisfação e compromisso com a decisão da maioria dos jurados, apenas dois dias depois, muda de idéia e declara a confecção de um novo plano que aproveitaria as melhores propostas de cada participante. Segundo palavras do próprio O’Malley, um parque poderia ser tirado de um, um bulevar de outro e ainda uma praça de um terceiro, criando o que os profissionais especializados e a imprensa qualificavam como uma verdadeira colcha de retalhos (AN IDEAL..., 1995). Figura 2 Conferência de imprensa que anunciou os vencedores do concurso de Canberra. Em pé: Bros. Sampson (Argus), B. Cook (Herald), Sir Keith Murdoch (Age), Whyte (S.M.H.). Sentados: Bros. J.M. Coane, J.A. Smith, J. Kirkpatrick, Clark, W. Bingle, P. Owen, Oldham, Doig, D.J. Peters, Hon. King O'Malley NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA3 The birth of a continent's capitol, 1912. Referência: nla.pic-an24381787 Disponível em: http://nla.gov.au/apps/cdview?pi=nla.pic-an24381787. Acesso em: 06/03/2010. A responsabilidade pela elaboração do que ficou conhecido como Board Plan foi conferida a uma comissão formada pelos leais e já citados funcionários de O’Malley – Miller, Owen e Scrivener –, além de George J. Oakeshott, John Smith Murdoch e Thomas Hill. A apresentação do trabalho em 25 de novembro de 1912 trouxe ainda mais controvérsia para a questão já que muito pouco lembrava os planos vencedores (SONNE, 2003, p.150). A tempestade de protestos perdurou até a transição do governo para o Partido Liberal sob a liderança de Joseph Cook e seu ministro de Home Affairs, William H. Kelly. Em outubro de 1913, Kelly rejeitou o plano aprovado por seu predecessor e chamou Griffin para chefiar a construção da Capital, todavia os antigos membros da comissão de O’Malley mantiveram-se em seus cargos. O resultado foi uma série de dificuldades, boicotes e interferências enfrentados pelo arquiteto americano durante todo o processo de elaboração de seu projeto executivo. Após várias modificações o plano definitivo foi aprovado em julho de 1918, contudo Griffin retirou-se dos trabalhos em dezembro de 1920 quando seu cargo foi rebaixado de diretor executivo para a condição de consultor. O plano executado baseia-se em grande parte no trabalho de Griffin, porém o desenvolvimento da cidade principalmente no que tange a estação ferroviária como primeiro centro comercial e de circulação foi implementado a partir de idéias contrárias defendidas pelos funcionários do governo (SONNE, 2003, p.151). Canberra no contexto de difusão das idéias urbanísticas Para além das contendas da política, a realização de um concurso da estatura de Canberra naturalmente significou um campo de disputa entre as grandes escolas de planejamento urbano que buscavam reconhecimento e afirmação. De certa forma, tratava-se também da concorrência entre idéias que emergiram e amadureceram em solo europeu e da rápida expansão do pensamento americano sobre as ações sobre o tecido urbano. 3 As fotografias e mapas disponibilizados online pela National Library of Australia estão livres de direitos autorais, contudo sua publicação somente é permitida mediante a citação do nome do objeto, coleção (se houver) e referência de consulta. O pensamento europeu: Howard, Sitte, Unwin e a Beaux Art O ideário cidade-jardim foi quase unanimidade entre as propostas apresentadas para o concurso. A rápida aceitação do livro To-morrow parece inspirar um conjunto de proposições que desde 1901 pleiteavam uma organização urbana radial. Talvez outro elemento de identificação a elevar o brio nacional tenha sido a cidade de Adelaide, capital do estado de South Australia, citada por Howard (2002, p.187) “como uma alternativa brilhante mas desapercebida”. Figura 3 Diagrama que ilustra a organização espacial de uma cidade-jardim (HOWARD,2002, p.114). Figura 4 Proposta de C. St. John David publicada em 2 de fevereiro de 1901 (REPS,1997, p.15). Figura 5 Diagrama para Canberra elaborado por Alexander Oliver em 1901 (REPS,1997, p.14). Figura 6 Esquema de John Sulman para Canberra publicado no Royal Institute of British Architects Journal em 28 de agosto de 1909 (REPS, 1997, p.13). Interessa-nos em especial mencionar a organização de setores de uso residencial de algumas propostas para o concurso de Canberra, para tanto, a figura de Raymond Unwin é fundamental. O urbanista que materializou os esquemas howardianos advoga, na comunicação, The planning of residential districts of towns, a necessidade urgente da associação entre ordem e beleza. Essa tarefa seria eminentemente de responsabilidade do arquiteto, já que nenhum outro profissional teria a capacidade de combinar habilidade técnica e treinamento artístico para lançar planos urbanos orientados para objetivos práticos e simultaneamente manter em mente o quadro do resultado final do trabalho. Unwin (1906, p.417-425) lança mão de alguns princípios inspirados no trabalho de Camillo Sitte4, contudo, avisadamente adaptados à cidade moderna, entre estes a necessidade de definição de limites das áreas de expansão, tais limitações poderiam ser ruas especialmente trabalhadas para esta finalidade, bulevares, arvoredos ou parques. Figura 7 “Garden City Tenants. Cottages on the Bird Hill Estate”. Letchworth. Desenho apresentado por Unwin (1906, p.424) para demonstrar as vantagens da utilização de elemento limitadores no planejamento de áreas em expansão. Nesta palestra proferida em 1906 Unwin aproxima-se dos princípios sittianos e concomitantemente impõe limites que abrem espaço para traçados ortogonais: Em todo planejamento urbano é importante entender a diferença entre beleza do projeto e beleza natural. Sem abraçar a empreitada difícil de definir beleza, é de consenso que ambos os tipos de beleza nascem em grande parte da ordem, adaptação ao local, propósito e obediência à lei [...]. A forma de uma árvore é resultado de um equilíbrio de forças fluídas; são forças que são o que são – a forma de uma árvore não poderia ser outra coisa – inconscientemente reconhecemos isto. O mesmo aplica-se para a curva de um rio ou ao pico de montanha. Este tipo de beleza existe para nossa reverência, para o nosso cuidado e desta podemos buscar inspiração, contudo, não podemos projetá-la, muito mais simples e menos complexas são as poucas leis que obedecemos no traçado [...] Se não podemos criar beleza natural, podemos ao menos ser cuidadosos em não destruí-la, e melhor, incorporá-la de todas as formas possíveis ao nosso projeto. Devemos abertamente aceitar qualquer oportunidade de traçar a beleza de linhas curvas; mas igualmente não devemos envergonhar-nos de aceitar a linha reta da régua e do quadrado quando nenhuma outra razão válida sugerir o contrário (UNWIN, 1906, p.425, tradução nossa). Entre os participantes classificados pela comissão julgadora, as propostas que declararam sua filiação ao pensamento sittiano foram, obviamente, as de ascendência germânica/escandinava, representadas pelo engenheiro sueco Gellerstedt e pelo arquiteto norueguês Saarinen. Imaginamos inclusive que Gellerstedt, que participou do citado congresso, tenha assistido à rodada de conferências, Subject VII – Planning o Streets and Open Spaces, que além de Unwin reuniu comunicações de J. Stübben, Charles Buls e Augustin Rey. Sua proposta foi a única a apresentar referências bibliográficas que esclarecem as correntes de planejamento a influenciar seu trabalho. Assim, além dos já famosos To-morrow, Town Planning in Practice e Der 4 Arquiteto austríaco que polemizou o projeto de regularização de Viena elaborado por Otto Wagner no período de 1892/1893. Um crítico vigoroso da intervenção urbana pautada por instrumentos puramente técnicos em detrimento da arte e conseqüentemente do desprezo ao valor cultural dos assentamentos vagarosamente construídos pela equação uso/tempo. Ver A construção das cidades segundo seus princípios artísticos, Sitte (1992). Stadtenbau..., encontramos também, publicações das associações francesa e inglesa em prol das cidades-jardim, Inigo Triggs, o próprio Stübben entre outros autores germânicos (REPS, 2002). Figura 8 Detalhe da proposta de Gellerstedt que mostra a organização viária dos private allotments sugeridos para região sudoeste da cidade. NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA. Federal Capital Design Competition premiated designs. Cartographic material. Referência: MAP G8984.C3S1 FCDC 1913 litho. Disponível em: http://nla.gov.au/nla.map-gmod63 Acesso: 20/01/2010. Figura 9 Perspectivas apresentadas por Gellersted. O engenheiro indica a necessidade de alternancia entre espaços abertos e fechados. Na praça da estação à direita, assim como nos edifícios do parlamento, ele sugere a utilização de arcadas que também serviriam como terraços no primeiro piso destas construções (REPS, 1997, p.189). Figura 10 Pespectiva do parlamento elaborada por Saarinen. Conforme os preceitos sittianos, a praça circular seria contida por uma massa edificada. NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA. Eliel Saarinen's perspective view of Parliament House. Part of: Eric Milton Nicholls collection. Referência: nla.pic-vn3603884-s34 Disponível em: http://nla.gov.au/nla.pic-vn3603884s34. Acesso: 20/01/2010. Fechando o quadro das correntes européias temos Hubert Donat Alfred Agache como representante da vertente clássica do urbanismo na competição de 1912. O arquiteto, que em 1905 titulou-se pela Ecole des Beaux-Arts de Paris, enfatizou a simetria no sistema viário central marcado por um eixo monumental de características barrocas. Dentre as propostas escolhidas pela comissão julgadora foi a única a destinar um artigo de seu memorial para os aspectos monumentais. Agache apresenta seu projeto pelos olhos de um expectador situado ao lado do monumento comemorativo no centro do setor político: “olhando a cidade nas direções oeste-norteleste sua visão abraçaria um panorama que vale a pena ser descrito”. A sua esquerda estaria a silhueta do Parlamento e desviando o olhar para a direita os edifícios administrativos dispostos em forma circular, ainda mais à direita estaria o centro de esportes e a estação aerostática que abrigaria aviões, balões e dirigíveis. A crítica australiana não acolheu seu projeto como funcional, contudo foi unânime em concordar que as 18 pranchas apresentadas eram esplêndidas (REPS, 1997, 110-113). Figura 11 Detalhe da proposta de Agache. NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA. The Federal Capital of Australia, enumeration of public buildings. Cartographic material. Referência: MAP G8984.C3S1 FCDC no. 4 1912 Disponível em: http://nla.gov.au/apps/cdview?pi=nla.mapgmod67-e. Acesso em: 08/03/2010. O City Beautiful e a contrapartida americana Seguindo a linha de adaptação à topografia do sítio, Arthur C. Comey, arquiteto formado em Havard sob a influência Frederick L. Olmested Jr., antecipa parcialmente o conceito de unidade de vizinhança que se tornará prática importante no planejamento urbano americano após a publicação de Clarence Perry em 1923. Neste sentido, os setores residenciais bem delimitados possuem uma estrutura de benfeitorias como escola, parque e lazer (REPS, 1997, p.160-161). Contudo, a contrapartida americana frente às fundamentadas correntes urbanísticas apresentadas pelos europeus vem do vencedor Walter B. Griffin que assina sua proposta em parceria com sua esposa Marion Mahony Griffin, uma das primeiras mulheres a titular-se arquiteta pelo MIT em 1894. O projeto dos Griffins apesar de filiar-se ao City Beautiful, inovou ao apresentar uma estrutura marcada pela articulação de um sistema multinuclear dominado por eixos organizadores que resultam em um processo de re-ordenamento da retícula. O casal mantém uma estrutura central direcional, formalmente unívoca, porém assume um caráter pouco burnhamiano5 ao superar as velhas idéias sobre a primazia dos estilos clássicos. Trata-se de uma opção geométrica que permite grande variedade de tipologias em planta – octógonos, hexágonos, triângulos – que parecem livres, e simultaneamente, são rigorosamente controlados. 5 Menção a Daniel Burnham defensor do City Beautiful, foi diretor de trabalhos na Exposição de Chicago em 1893 e projetou vários edifícios significativos do movimento, entre esses, o Flatiron em Nova York e a Union Station na reformulação urbana de Washington em 1901. Os eixos que se entrecruzam perpendicularmente têm um papel territorial concreto que os nomeia, o Eixo da Terra que tem início no Mount Ainslie e transpassa a cidade de nordeste a sudoeste e o Eixo da Água, que em perpendicular começa na elevação Black Mountain e segue paralelo ao Rio Molonglo no sentido noroeste-sudeste. O primeiro é a bissetriz do triângulo eqüilátero destinado ao agrupamento governamental que tem em seu vértice o capitólio. O segundo não é um eixo compositivo, e sim o limite sobre a água de toda a zona destinada aos edifícios administrativos. associados aos Entretanto, elementos estes naturais eixos tão visíveis no projeto são quase imperceptíveis na cidade, de certa forma quebrando a estrutura hierárquica tão característica do City Beautiful. (MANIERI-ELIA, 2003, p.129-130). Figura 12 Terra e Água, eixos estruturantes projetados por Griffin. NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA. Canberra. Cartographic material. Referência: MAP G8984.C3S1 Gri 1916-1924 Disponível em: http://nla.gov.au/nla.map-gmod41 Acesso: 20/01/2010. Figura 13 Articulação viária dos centros propostos por Griffin. Mapa elaborado em 1927 a partir do projeto entregue por Griffin em 1918. NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA. Canberra. Cartographic material. Referência: MAP G8984.C3E635 1927 Disponível em: http://nla.gov.au/apps/cdview?pi=nla.mapgmod22-s1-v Acesso: 20/01/2010. O ideal cívico que o movimento City Beautiful articulou no projeto de Washington são inteligentemente retrabalhados por Griffin como a busca pela forma espacial adequada para uma sociedade democrática que poderia ser obtida na disposição simbólica dos edifícios e no próprio desenho da cidade. Enquanto os edifícios do Parlamento, do Legislativo e do Judiciário foram organizados de maneira a permitir uma leitura seqüencial dos três poderes que constituem um estado democrático, a própria implantação do projeto remetia à Agora como ideal grego de ordem pública. Griffin adotou a metáfora teatral utilizada no edital da competição, contudo adicionou a esta uma nova interpretação: as encostas seriam o auditório e a arena a bacia do rio. As elevações ao sul seriam o palco terraçado que proporcionariam a situação monumental para as estruturas de governo definidas com precisão, marcando a paisagem em fileiras até o ponto mais alto do monte que abrigaria o Capitólio, as elevações do Mugga Mugga, Red Hill e Blue Mountains fechariam a perspectiva transformada em contexto cênico. Diferentemente de outros projetos, o pico do distrito de governo não seria ocupado pelo parlamento, e sim pelo capitólio com funções que privilegiavam o abrigo de arquivos e a celebração da identidade australiana. Esse edifício puramente simbólico não foi listado como necessário, mas Griffin alcançou dois objetivos usandoo como conceito: foi capaz de ressaltar as funções de governo de forma didática ao mesmo tempo em que ofereceu um elemento festivo para os cidadãos e representantes públicos. A idéia de cidade democrática explorada por Griffin não deixa de ser utópica, contudo cabe ressaltar seu mérito ao superar o caráter eminentemente técnico utilizado na avaliação dos projetos. Neste caso, a utopia superou a técnica e se materializou no racha da comissão julgadora do concurso. Figura 14 Vista do Monte Ainslie. Desenho de Marion Mahony Griffin NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA. Commonwealth of Australia Federal Capital Competition: view from summit of Mount Ainslie. Picture. Part of Eric Milton Nicholls collection Referência: nla.pic-vn4189326 Disponível em: nla.gov.au/apps/cdview?pi=nla.pic-vn4189326&referercode=cat. Acesso: 08/03/2010. Considerações finais: visões de uma cidade moderna Fechando nossas concisas observações sobre o concurso de 1912 queremos salientar um elemento comum que atravessa o conjunto de propostas ao mesmo tempo em que confere sua coesão ao contexto. Falamos de sincronicidade. Enquanto o pensamento urbanístico perguntavase como seria a cidade do século XX, as propostas de Canberra estampavam em largas pranchas universos de interpretações e possibilidades. Para além de seu valor para história nacional australiana, o conjunto documental produzido por esse evento, hoje em grande parte sob custódia do National Archives of Australia e National Library of Australia6, testemunha a diversidade, as 6 Coleções parcialmente disponíveis nos seguintes endereços http://www.naa.gov.au/ e http://www.nla.gov.au/. maneiras de apreensão e as reflexões que atuaram na configuração do campo das teorias e das práticas sobre o tecido urbano. Antecipam uma modernidade atenta à cidade, sua forma, sua circulação, sua salubridade e especialmente à beleza de seu conjunto. Antecipações que para o bem e para mal acabam por concretizar-se no decorrer do século. Figura 15 Perspectiva apresentada pelo grupo australiano liderado por Walter Scott Griffiths (REPS, 1997, p.121). Nela podemos ler a interpretação de modernidade como sobreposição de tempos para tanto os autores aproximam o aço da ponte suspensa à encorpada estrutura da ponte em arcos. A interpretação é correta, porém é duvidosa sua utilização num conjunto levantado ex-nihilo. Figura 16 Perspectiva apresentada por Agache (REPS, 1997, p.111). A visão do francês contemporâneo ao vôo de Santos Dumont enxerga a modernidade na técnica das máquinas que voavam. Para tanto, sua Canberra previa uma Estação Aerostática centralmente localizada num momento em que os vôos comerciais eram uma possibilidade distante. Referências AN IDEAL city? The competition to design Canberra. National Archives of Australia; National Capital Authority; National Library of Australia. Australia, 1995. Disponível em: http://www.idealcity.org.au/index.html. Acesso em 10/01/2010. CHOAY, F. The Modern City: planning in the 19th century. London: Studio Vista, 1970. HOWARD, E. Cidades-jardins de amanhã. São Paulo: Hucitec, 2002. MANIERI-ELIA, M. Por una ciudad “imperial”. In: DAL CO, F. et alli. La ciudad americana: de la guerra civil al New Deal. Barcelona: Gustavo Gilli, 1975. NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA.Consulta de arquivos disponibilizados online. Documentos, mapas e fotos disponíveis em: http://www.nla.gov.au/. REPS, J. Canberra 1912. Carlton South: Melbourne University Press, 1997. REPS, J. Urban Planning, 1794-1918: An International Anthology of Articles, Conference Papers, and Reports. 2002. Disponível em: http://www.library.cornell.edu/Reps/DOCS/homepage.htm. Acesso em 10/01/2010. SITTE, C. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. 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