anais da segunda jornada de pesquisa em psicanálise
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anais da segunda jornada de pesquisa em psicanálise
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA ANAIS DA SEGUNDA JORNADA DE PESQUISA EM PSICANÁLISE E FENOMENOLOGIA Pesquisa Qualitativa na Saúde Mental: perspectivas psicanalíticas e fenomenológicas ISSN 2175-0696 ORGANIZAÇÃO Profa. Livre Docente Tânia Maria José Aiello Vaisberg Profa. Dra.Vera Engler Cury Evento financiado pela CAPES (Auxílio PAEP N° 0509/08-6) e pela FAPESP (Processo N°08-56197-9) 2008 2 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SEGUNDA JORNADA DE PESQUISA EM PSICANÁLISE E FENOMENOLOGIA Pesquisa Qualitativa na Saúde Mental: perspectivas psicanalíticas e fenomenológicas ORGANIZAÇÃO Profa. Livre Docente Tânia Maria José Aiello Vaisberg Profa. Dra.Vera Engler Cury COMISSÃO ORGANIZADORA Ms Cristiane Helena Dias Simões Ms Fabiana Follador e Ambrosio Ms Kátia Panfiete Zia Ms Miriam Tachibana COMISSÃO CIENTÍFICA Profa. Livre Docente Tania Maria José Aiello Vaisberg Profa. Pós-Doutora Maria Alves de Toledo Bruns Profa. Dra. Maria Christina Lousada Machado Profa. Dra. Tania Mara Marques Granato Profa. Dra. Vera Engler Cury 2008 3 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Confêrencias e Palestras A pesquisa psico-sócio-histórica e a narrativa transferencial: as loucura contemporâneas Daniel Beaune .............…………..........................……………………..…………......…..07 Diferenças entre a noção de inconsciente em Freud e em Winnicott Leopoldo Fulgencio .................................................................................11 Pesquisa psicológica e fenomenologia Mauro Amatuzzi .....................................................................................35 Comment penser et transmettre la clinique de la schizophrénie en psychologie clinique: l'intérêt des récits intertransférentiels Rosa Caron ...........................................................................................42 . Clínica da língua: tradução e transferência narrativa Thamy Ayouch …….........................................……………….........................…61 Phénoménologie de l’affectivité et métapsychologie de l’affect : Considérations sur un parcours de recherche Thamy Ayouch e Tania Maria José Aiello Vaisberg …………………………………....……..73 Trabalhos Completos Apresentados como Pôster A maternagem em uma família homoafetiva feminina Ana Laura Moraes Martinez e Valéria Barbieri .............................................81 Autonomia, subimissão e gestualidade espontânea: considerações sobre um caso clínico Antonina de Souza Lopes Muniz-Pimenta, Cristiane Helena Dias Simões e Tânia Maria José Aiello-Vaisberg .......................................................................88 O sentido do ser voluntário: uma pesquisa fenomenologica Bruna Fenocchi Guedes e Mauro Amatuzzi .................................................94 A saúde mental do adolescente: relato clínico de avaliação por meio do desenho- estória Carolina Grespan Pereira Souza e Maíra Bonafé Sei ...................................102 Limites de um modelo psicopatológico pulsional: em direção a outra melodia Clarissa Medeiros e Tânia Aiello-Vaisberg .........................................109 4 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A importância da entrevista final em atendimento grupal de jovens em processo de escolha profissional Christiane I. Couve de Murville Camps e Tânia M. J. Aiello Vaisberg ..............117 O imaginário de alunos de pós-graduação stricto sensu sobre a docência e ensino superios – projeto de pesquisa Elisa Corbett e Tania Maria José Aiello Vaisberg .........................................124 Envelhecer no início do século XXI: posição subjetiva e convívio com tecnologias contemporâneas na comunicação Helena Maria Rizzon Mariani ..................................................................133 O desvelar da afetividade e sexualidade de mulheres submetidas à cirurgia bariátrica Érica Helena Martins de Godoy e Maria Alves de Toledo Bruns .....................140 A pesquisa qualitativa e o método psicanalítico Érico Bruno Viana Campos .....................................................................150 Oficina de Pintura: Um Estudo Fenomenológico sobre uma prática psicológica Giuliana Gnatos Lima Bilbao e Vera Engler Cury ......................158 O método do estudo de caso em uma investigação clínica psicanalítica Fernanda Kimie Tavares Mishima e Valeria Barbieri ...................................161 O psiquismo em Freud e Heidegger: irritabilidade (Reizbarkeit) e abertura (Erschlossenheit) João Paulo F. Barreta e Zeljgo Loparick ...................................................170 Pesquisa heurística e as ciências socioambientais. Uma proposta de discussão Josemar de Campos Maciel ....................................................................178 Ensaio sobre a construção: da fenomenologia à construção social Juares Soares Costa e Vera Engler Cury ...................................................192 Trajetória de vida e construção da identidade do nissei na sociedade brasileira Liliane Pusas Santos e Roberto Yutaka Sagawa ..........................201 A pesquisa fundamental em psicanálise: um modelo para o tratamento da esquizofrenia Luciane Loss Jardim .............................................................................205 Mulheres e religião em conflito: estudo das condições da mulher trabalhadora, seus conflitos e sua religiosidade Magali Scopel de Araújo, Calvino Camargo e Luciane dos Santos Iriyoda ......216 Que Amores São Esses? 5 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Maria Alves de Toledo Bruns ..................................................................221 6 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Oficina de mosaico de papel: pesquisa sobre a potencialidade mutativa de um enquadre diferenciado para atendimento de pacientes com seqüelas neurológicas graves Maria Cecília Martins Ribeiro Corrêa e Tânia Maria José Aiello Vaisberg .........227 Pesquisa fenomenológica e intervenção: possibilidades Mauro Amatuzzi, Karine Cambuy, Thais de Assis Antunes e Pedro Vitor Barnabé Milanesi ..............................................................................................238 Psicodinamismos da mãe de crianças com tendência anti-social – um estudo de caso Nerielen Martins Neto Fracalozz e Valéria Barbieri.......................................245 Inconsciente e singularidade: diretrizes iniciais de pesquisa de formação de grupos de conversação no instituto de psiquiatria da universidade federal do rio de janeiro Nelisa Guimarães .................................................................................255 Família monoparental: um estudo psicanalítico do imaginário coletivo de universitários Paulo César Ribeiro Martins, Andrei Ferrari Faria e William Divaldo Mortele ....259 “Será que ele é?” O imaginário sobre a homossexualidade Paulo César Ribeiro Martins e Tania Maria José Aiello Vaisberg ....................264 A perspectiva terapêutica da arte no campo da saúde mental- relato de experiência Raquel Rossi Tavella e Mariana Wisnivesky ...............................................270 Transtorno bipolar e a experiência de perda: contato com uma paciente num ambulatório psiquiátrico – relato de experiência Samira Kalil Waldemarim, Marcelo Roberto de Brito Nardozzi, Maíra Fernanda Marcatti e Marly Aparecida Fernandes .....................................................274 O sintoma psicossomático: uma proposta traumática para sua etiologia Sebastião Abrão Salim ..........................................................................287 Mudança em coaching de executivos Sueli Aparecida Milaré e Elisa Medici Pizão Yoshida ....................................299 A criança em sofrimento: o imaginário de pais sobre a criança com problemas Sueli Regina Gallo-Belluzzo, Elisa Corbett e Tânia Maria José AielloVaisberg..............................................................................................309 O Imaginário de mulheres sobre o câncer de mama Sueli Regina Gallo Belluzzo,Thais Helena Andrade Machado Couto e Tânia Maria J. Aiello-Vaisberg .................................................................................316 7 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Rabiscando o imaginario sobre o cuidado materno : o uso de narrativas interativas na pesquisa psicanaliticas Tania Mara Marques Granato e Tânia Maria José Aiello-Vaisberg ..................323 “O mundo marcado”: o imaginário coletivo de jovens sobre a adolescência contemporânea Tania Maria José Aiello Vaisberg, Miriam Tachibana, Mariana Leme da Silva Pontes e Aline Vilarinho Montezi ............................................................329 Desastre na vida sexual: o imaginário coletivo de adolescentes sobre a gravidez na adolescência Tania Maria José Aiello Vaisberg, Miriam Tachibana, Mariana Leme da Silva Pontes e Tomíris Forner Barcelos ............................................................335 A metáfora da doença: um diálogo entre a criação artística e as dimensões do adoecer humano Tiago Sanches Nogueira ........................................................................341 O psicodiagnóstico interventivo psicanalítico na transformação do ambiente adverso em suficientemente bom: um estudo de caso Valeria Barbieri ....................................................................................349 “Eu quero um filho, eu não quero um problema”: sofirmento e possibilidades de (re)criação de sentido em crianças adotivas Yara Ishara .........................................................................................359 8 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A pesquisa psico-sócio-histórica e a narrativa transferencial: as loucuras contemporâneas Daniel Beaune Université de Lille 3 O contexto no qual se desenvolvem, atualmente, as pesquisas acadêmicas, pode ser suficientemente apresentado, se pudermos destacar suas características principais: predomínio de uma perspectiva cognitivista totalitária, transmissão do saber de modo coercitivo e exigências de produtivistas. A psicologia cognitiva, que se apóia sobre o poder dos psicólogos acadêmicos, que são pouco numerosos, desconsidera a perspectiva dos psicólogos clínicos, estes sim bastante numerosos, bem como a dos artistas e dos leigos, sobre a psique humana. Apropriando-se da pesquisa, como se fosse seu monopólio, os universitários cognitivistas impedem a publicação de trabalhos que utilizam metodologias não positivistas. De modo pouco sutil, as portas dos laboratórios são fechadas para todos aqueles que não aderem à sua visão epistemológica. No que tange à organização dos cursos, o ponto de vista dos cognitivistas é imposto aos estudantes de modo francamente coercitivo. O recrutamento dos pesquisadores, o financiamento das pesquisas, o controle dos meios de edição, a repressão, a censura, o controle, tudo fica sob o poder daqueles que aderem à visão epistemológica predominante. Fica, assim, seriamente comprometida toda possibilidade de livre pensamento. Deste modo, para tornar-se pesquisador acadêmico faz-se necessário submeterse ao dogma anglo-saxão, escrever artigos em inglês e deixar de escrever livros. Michel Foucault, que foi o primeiro professor de psicologia de nossa universidade não seria, nos dias de hoje, recrutado. As subvenções do estado à pesquisa, na França, vem minguando progressivamente. Devem, assim, os pesquisadores dirigir-se aos industriais que decidirão, eles sim, sobre quais serão os projetos merecedores de financiamento. Em Lille, quem decide sobre o financiamento da pesquisa científica, na área da Psicologia, em última analise, é um produtor de ervilhas. Foucault mostrou bem que, no que concerne à produção do saber, o que há de importante, na política, é a justificativa do poder. Diante deste quadro geral, faz sentido, a meu ver, pensar, com Feyerabend, no anti-método. Face à onda cognitiva convém opor a criatividade, o livre pensamento individual, o pluralismo ideológico, a recusa aos dogmatismos impostos por metodologias rigorosas, a recusa à homogeneidade dos saberes e dos métodos prêt-à-porter. Pensamos que uma atitude critica implica em assumir a possibilidade de que diferentes posicionamentos possam ser sustentados diante de um mesmo assunto, bem como em defender que nem objetivos, nem métodos de pesquisa devem ser institucionalmente impostos. 9 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Desde nossa perspectiva, a questão do laço, do vínculo, é central. Em nosso laboratório, as pesquisas abordam o vínculo, a intersubjetividade. A idéia é a de que somos ontologicamente ligados e de que o intra-psíquico é inseparável do intersubjetivo. Tanto a fenomenologia como as neurociências, com a idéia de neurônios-espelhos, mostram que não se pode conceber o intra-psíquico sem passar pela intersubjetividade. Em 1994, Giacomo Rizzolatti descobriu o mecanismo pelo qual nosso cérebro simula interiormente o mundo exterior para representá-lo. Enquanto media a atividade do córtex pré-motor de macacos, constatou que os neurônios se ativavam do mesmo modo quando o animal fazia um certo movimento ou olhava outro comportando-se do mesmo modo. Situados na área denominada F5, que controla os movimentos corporais, estes neurôniosespelhos existem apenas nos seres humanos e nos primatas superiores, permitindo que as ações sejam reproduzidas mentalmente, permitindo a imitação do outro, a percepção de seus estados mentais, ou seja, a comunicação. Este mecanismo reflexivo está, provavelmente, na origem da linguagem. Por outro lado, há certa chance de que estes neurônios de empatia apresentem defeitos nos autistas. De todo modo, parece importante afirmar que o “entre” é o “fundo comum” da vida. Dizia Buber que no começo está a relação. A origem de tudo está no “entre” que liga uma pessoa à outra, ao seu ambiente e à ela mesma. Segundo esta concepção da vida, o ser humano é antes um “ser-comos-outros”. Separar-se do mundo e unificar-se permanentemente com o mundo constituem um interjogo permanente e impossível de ser superado, que se elabora sobre o “entre” ou ainda sobre o “ fundo comum” da vida. 間 人間 , o “entre”, é primordial e originário. De acordo com Kimura Bim, o “aida”, Para os japoneses, o indivíduo não seria visto como mônada isolada que instauraria, no après coup, uma relação com os outros. Ao contrário, consideram que o “aida” interpessoal é primário e que apenas em seguida pode se atualizar sob a forma do si-mesmo e dos outros. Assim, o si-mesmo, como tal, compreende o “aida” como um de seus momentos constitutivos. Haveria, pois, algo na terra, que seria designado como “ fundo da vida” e nós só viveríamos, desde esta perspectiva, pela manutenção de uma relação com este fundo no sentir e no agir. Pode ser interessante lembrar que Kimura Bin é, também, maestro. Na orquestra, cada músico pode ter, num dado momento, a impressão de que a música emana inteiramente de seu próprio instrumento, enquanto, em outros momentos, viria dos demais intérpretes. Na verdade, a música circularia em um espaço intersubjetivo virtual, a “aida”. O instrumentista apreende este “aida” como interior à sua própria subjetividade, mas encontra-o, ao mesmo tempo, no exterior, com os demais participantes da orquestra. Dito de outro modo, o sujeito só pode encontrar intersubjetivamente o mundo da música na medida em que está ligado ao fundo vital comum a todos. Esta atividade é determinada neste “espaço virtual” intersubjetivo. É por este motivo que em nossas pesquisas abordamos simultaneamente vertentes societárias e transferenciais. Para bem conduzir tais projetos, utilizamos a fenomenologia e sua abordagem sem “ a priori”, o modelo freudiano e a análise do político, como modos de 10 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA compreensão da intersubjetividade. O período histórico, o contexto social, com seus ideais, suas exigências, suas interdições, seus valores, desenham o quadro no interior do qual os desejos, os fantasmas, os projetos de cada um, atravessando o sujeito, são levados a se desdobrar. Consideramos, assim, que não faz sentido remeter todas as dificuldades psicológicas às relações familiares primárias, porque os pacientes deliram a partir da dimensão do político. Todo delírio é histórico-mundial. O método dialético progressivo-regressivo foi criado por Marx e desenvolvido por Lefebvre e Sartre. Apresentando-se segundo modos transversal e vertical, consiste em partir da análise do vivido imediato e singular de um sujeito para remontar na direção de conjuntos humanos que o organizam. É progressivo no sentido de que se propõe tornar inteligível o interjogo destas mesmas estruturas na História, como critica da razão dialética. Este método, tal como adaptamos, opera em um vai e vem entre as determinações particulares e gerais. Assim, podemos compreender melhor a época a partir da compreensão aprofundada do vivido pelo sujeito, ao mesmo tempo em que podemos chegar a uma melhor visão da subjetividade a partir do entendimento mais aprofundado das condições históricas, sociais, políticas e culturais. O estudo das “loucuras contemporâneas” é um exemplo de pesquisa que realizamos em nosso laboratório. Estas não se reduzem aos chamados estados limites, mas partem da consideração de uma dimensão social histórica que está habitualmente ausente nas definições correntes destes quadros. Nós reagrupamos sob este termo uma multiplicidade de formas tais como: as patologias aditivas, as pseudo-neuroses, os transtornos ansiosos generalizados, os estados de pânico, as fobias sociais, os distúrbios alimentares e outros. Os afetos centrais, nestes casos, são sempre o tédio e a angústia. No fundamento destas diferentes formas de loucuras contemporâneas situa-se, a nosso ver, uma etiologia que não é estritamente intra-psíquica, nem mesmo intra-familiar, mas antes de mais nada social e histórica. Nossa pesquisa se efetua em três tempos: o tempo da narrativa transferencial, o tempo analítico—regressivo e o tempo histórico-genético. O tempo da narrativa transferencial se articula ao redor de questões tais como “como você vê o mundo?” O tempo analítico-regressivo corresponde a uma análise da realidade, a um esforço para datar exatamente o aparecimento destas patologias. O tempo histórico- genético consiste no esforço para reencontrar o presente, mais elucidado, compreendido, explicado. A consideração do contexto de crise permite o retorno à situação individual dos pacientes. O tempo da narrativa transferencial articula-se, em nossa pesquisa atual, ao redor de uma entrevista não-diretiva de cerca de quarenta e cinco minutos com cada participante. A instrução é a seguinte: “ Fale-me do modo como você vê o mundo, ou a sociedade, nos dias de hoje, deixando suas associações fluírem livremente.” O pesquisador não utiliza nenhum material particular, não grava nem toma notas. 11 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A elaboração da narrativa escrita é elaborada pelo pesquisador cerca de dez minutos após o encontro, enquanto o pesquisador associa livremente a partir das lembranças que guarda acerca do encontro vivido. Uma semana após cada entrevista,o pesquisador apresenta a narrativa de seus encontros a uma terceira pessoa, o que permite a emergência de novos significados e a atribuição de novos sentidos ao discurso do sujeito. Chegamos a resultados interessantes examinando as narrativas, na medida em que revelam um vivido de insegurança nas pessoas diagnosticadas como estados-limites. Defrontamo-nos com variadas manifestações de insegurança, que incluem mal-estar na vida familiar, angustias ligadas ao abandono ou ameaça de abandono, maus tratos, instabilidades relacionais, instabilidades de humor, ansiedades hipocondríacas, temor de perda do emprego e muitos outros. O tempo analítico-regressivo evidenciou, no entorno do nascimento desta clinica, a vigência de uma regressão sócio-política. Foi em plena crise social, após o craque de vinte e nove, em plena ascensão do nazismo, que os analistas começaram a encontrar um certo numero de pacientes diferentes dos demais, os quais foram batizados por Stein, em 1938, como borderlines. Trata-se, portanto, da clínica da insegurança. O tempo histórico-genético corresponde ao retorno em direção ao presente mais elucidado, mais compreendido, mais explicado. Um laço entre os estados limites e a vivência de insegurança parece, então, desenhar-se, como vivência de insegurança relacionada a um contexto de crise social. A sintomatologia, que caracteriza estes estados limites, exprimiria a extrema variedade das defesas do ser humano face às exigências da sociedade. As loucuras contemporâneas são características das sociedade de consumo, nas quais fica muito evidente a busca de prazeres momentâneos e descartáveis, como a sexualidade, a toxicomania, os jogos de azar, com a finalidade de apaziguar a vivência de insegurança que as habitam, nunca apenas com o intuito de diversão. Entretanto, tão-logo esta insegurança é aliviada pelo gozo, pela sensação, pelo torpor ou pela embriaguez, a insatisfação renasce provocando a repetição das condutas impulsivas. As loucuras contemporâneas são um produto da insegurança gerada pelo neoiberalismo, resultando da injunção da sociedade que quer fugir do mal de viver em busca da felicidade e do consumo crescente. Como conclusão, afirmamos que se faz necessário reencontrar Foucault, por meio do desenvolvimento de uma psicologia política e cidadã que permita considerar a loucura como um fenômeno de civilização tão variável como qualquer outro fenômeno cultural, de modo que o olhar que lhe lançamos é, sem dúvida, dependente da própria cultura na qual está inscrita. Não é aconselhável que se perca de vista tal perspectiva, ao mesmo tempo em que se faz fundamental pensar a psique como o produto da relação com o outro, ou seja, como drama humano, na precisa acepção politzeriana do termo. 12 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Diferenças entre a noção de inconsciente em Freud e em Winnicott1 Leopoldo Fulgencio PUC-Campinas Resumo: Neste artigo pretendo analisar algumas das principais mudanças realizadas por Winnicott na compreensão da noção freudiana de inconsciente. Mostrarei, inicialmente, analisando a obra de Freud, os diversos sentidos dados ao termo inconsciente (o descritivo, o dinâmico e o sistêmico ou metapsicológico), lembrando que a novidade da concepção freudiana de inconsciente consiste justamente, para o próprio Freud, no sentido metapsicológico dado ao termo, considerado, assim, como um sistema ou instância de um aparelho psíquico, movido por forças e energias. Explicitarei, então, que este inconsciente diz respeito ao que Freud encontrou no tratamento de pacientes neuróticos, para os quais o recalque é o mecanismo de defesa por excelência, sendo, por assim dizer, o protótipo deste inconsciente. Em seguida, mostrarei que, para Winnicott, a noção freudiana de inconsciente diz respeito ao inconsciente reprimido, e que, no caso de pacientes psicóticos, a cisão ocupa o lugar do inconsciente reprimido. Isto leva Winnicott a considerar que há um outro tipo de inconsciente denominável de primário, o qual teria uma natureza diferente do inconsciente reprimido, dado não ser referido propriamente a representações cognitivas nem a representações de estados mentais. Comentarei ainda, ao final, que os diversos sentidos que Winnicott dá ao termo inconsciente não correspondem ao uso do termo no seu sentido “sistêmico” ou “metapsicológico”, reiterando, assim, afirmação de que Winnicott abandonou a teorização de tipo metapsicológica na psicanálise, redescrevendo seus elementos conceituais fundamentais. Palavras-chave: desenvolvimento Freud, Winnicott, inconsciente, metapsicologia, 1. Introdução O primeiro fundamento da psicanálise, seu ponto de partida para compreensão da vida psíquica, é dado pelo reconhecimento da existência de processos psíquicos inconscientes (Freud, 1923a, p. 196), ainda que estes não sejam dados à observação, tal como nos é dado o acesso ao corpo e às atividades da consciência (Freud, 1940a [1985], p. 3). Freud chega a considerá-lo como o fator que tornaria possível fazer a conexão entre estas duas extremidades conhecíveis, 1 Este artigo corresponde a um dos resultados de minha pesquisa de Jovem Pesquisador, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCCampinas, apoiada pela FAPESP (processo n. 06/51082-3). A perspectiva de análise aqui apresentada se insere na perspectiva de interpretação da obra de Winnicott fundada pelos trabalhos de Zeljko Loparic e Elsa Oliveira Dias (cf. no site do Centro Winnicott de São Paulo – www.centrowinnicott.com.br.com.br –, outras informações e resultados de pesquisas nesta mesma direção). 13 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA numa carta a Groddeck, de 19/junho/1917: “O inconsciente é certamente o verdadeiro intermediário entre o somático e o psíquico, talvez ele seja o missing link (elo faltante) tanto procurado” (Freud, 1960a, p. 345). A afirmação do inconsciente como algo distinto da consciência e do corpo, define a psicanálise, não a partir de uma hipótese filosófica, mas referida ao reconhecido de um fato que torna possível levar a psicanálise ao rol das ciências da natureza. Diz Freud: A diferenciação do psiquismo em consciente e inconsciente é a pressuposição fundamental da psicanálise; apenas ela fornece a possibilidade de compreender os processos patológicos de vida da alma, tão freqüentes quanto importantes, e de os integrar à ciência. Ainda uma vez mais e dito de outra maneira: a psicanálise não pode situar a essência do psiquismo na consciência; deve forçosamente olhar a consciência como uma qualidade do psíquico, que pode tanto se acrescentar a outras qualidades como também estar ausente. (Freud, 1923b, p. 258) Este princípio é uma das condições para a compreensão do ponto de vista psicanalítico, ele corresponde, talvez, àquilo que dá à psicanálise a sua identidade como psicologia científica, caracterizando-a como a psicologia do inconsciente (Freud, 1933a, p. 242, lição 35). Freud chega mesmo a considerar que nessa concepção reside o primeiro xibolete da psicanálise (Freud, 1923b, p. 258), ou seja, a marca radical que estabelece os que podem partilhar de seu ponto de vista daqueles que devem ser considerados partidários de outro mundo teórico. Em 1913, Freud ressalta a importância e o interesse que sua psicologia do inconsciente pode e deve ter para as outras disciplinas do conhecimento, tais como a filosofia, a história, a antropologia, a educação etc. (cf. Freud, 1913j). Ele chega mesmo a afirmar, apoiado no reconhecimento desta hipótese central, que a psicanálise talvez seja reconhecida importante para além de suas qualidades terapêuticas: “O futuro provavelmente julgará que a importância da psicanálise como ciência do inconsciente ultrapassa de longe sua importância terapêutica” (Freud, 1926f, p. 291). Desde a fundação da psicanálise esta distinção entre processos psíquicos conscientes e inconscientes tem sido considerada como um ponto de flexão não só na construção de uma psicologia científica, mas também na elaboração das chamadas ciências humanas, em geral, e na filosofia em particular. Mais ainda, no próprio desenvolvimento da psicanálise, vários psicanalistas reformularam a concepção de inconsciente proposta por Freud. Dentre a diversidade das propostas pós-freudianas, a apresentada por Donald Winnicott representa um caso especial, principalmente em função de sua oposição à teorização de tipo metapsicológico ou especulativa. Por um lado, este reconhece que Freud deu um grande passo em direção à verdade científica quando propôs a idéia de um Inconsciente Dinâmico (Winnicott 1962e, p. 360); mas, por outro, ele não só abandonou a concepção de um inconsciente como um sistema psíquico, uma ficção teórica, como também considerou que a proposta 14 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA de Freud era insuficiente para compreender o que ocorria com pacientes psicóticos. Loparic já comentou que Winnicott, ao lado do reconhecimento dos processos psíquicos inconscientes tal como Freud os descreveu, deve-se considerar um outro tipo de inconsciente, como “algo não-mental e mesmo não-psíquico” ((Loparic, 2006, p. 41). Tal referência a um outro tipo de inconsciente, abordado por Winnicott, também estaria em consonância com a crítica de Heidegger à psicanálise de Freud (cf. Loparic, 2001, seções 8 e 9). Neste artigo, procuro focar a análise deste tipo de inconsciente, tal como Winnicott referiu-se a ele, diferenciando-o do de Freud, aprofundando este tipo de análise. Tratarei, pois, de explicitar o ponto de vista de Freud e o de Winnicott, seguindo o texto destes autores, para expor as continuidades e rupturas entre eles no desenvolvimento da teoria e do método psicanalítico. 2. O inconsciente para Freud Na apresentação da posição freudiana explicitarei os seguintes pontos: os diversos sentidos que Freud dá ao termo inconsciente (descritivo, dinâmico e sistêmico); os conteúdos que Freud supõe comporem o inconsciente; a referência às neuroses, como fundamento empírico para a compreensão dos processos psíquicos inconscientes; e, por fim, alguns comentários sobre os aspectos filosóficos deste inconsciente, assim concebido por Freud. 2.1 O inconsciente descritivo, o dinâmico e o sistêmico ou metapsicológico para Freud Em primeiro lugar é preciso marcar que Freud reclama para si a caracterização de um sentido específico para ao termo inconsciente, diferenciando-o dos sentidos que este tem para outros ramos do conhecimento. Logo no início de seu artigo “Note sur l´inconscient em psychanalyse”, ele afirma: “Eu gostaria de expor em poucas palavras, e tão completamente quanto possível, o que o termo ‘inconsciente’ veio a significar em psicanálise, e somente em psicanálise” (Freud, 1912g, p. 173). Sua preocupação, nos principais textos nos quais trata deste tema (especialmente em Freud, 1900a, Cap. IV; 1912g, 1915e) é a de compreender os processos psíquicos inconscientes como algo que difere claramente do que ocorre na consciência – inclusive mostrando a inadequação de pensar estes processos psíquicos como análogos aos da consciência, seja criando uma segunda consciência, ou ainda, propondo um “subconsciente” –, bem como distinguindo-os dos processos fisiológicos. A noção de inconsciente, para Freud, ao menos depois do abandono do “Projeto de uma psicologia científica” de 1897, tem uma realidade psíquica própria e é pensada estritamente no âmbito da psicologia. O conceito de inconsciente esperou já longo tempo sua admissão nas portas da psicologia. A filosofia e a literatura freqüentemente jogaram com ele, mas a ciência não sabia como dele se servir. A psicanálise apoderou-se desse conceito, 15 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA o levou a sério, deu-lhe um conteúdo novo. Suas pesquisas alcançaram um conhecimento de características até então insuspeitadas para o psiquismo inconsciente, descobrindo algumas leis que o governam. Mas tudo isso não significa, de forma alguma, que a qualidade do ser-consciente tenha perdido sua importância para nós. Ela permanece a única luz que ilumina nosso caminho nas trevas da vida psíquica. Dada a natureza particular de nosso conhecimento, nosso trabalho científico em psicologia consistirá em traduzir os processos inconscientes em processos conscientes e, assim, preencher as lacunas na percepção consciente. (Freud, 1900a, p. 295, os itálicos são meus) Em primeiro lugar trata-se de reiterar a distinção entre o consciente e o inconsciente, para depois, especificar qual o sentido específico, na sua psicologia, Freud dá ao inconsciente. Pode-se reconhecer, na verdade, três sentidos para o termo inconsciente na obra de Freud: o descritivo, o dinâmico e o sistêmico. Em primeiro lugar, trata-se de considerar que existem elementos psíquicos não dados à consciência, mas que existem enquanto tais, não sendo também redutíveis ao corpo. Estes elementos são, para ele, representações de conteúdos cognitivos ou representações de estados mentais, ou ainda, noutros termos mais comumente utilizados, representações carregadas de afeto e afetos como representantes de estados mentais. Isto configuraria um sentido descritivo ao termo inconsciente. Em segundo, para Freud estes elementos psíquicos agem entre si, tanto no presente quanto na consideração de uma história de vida. A consideração dos fenômenos relacionados à sugestão hipnótica (especialmente Bernheim), bem como da explicação do sintoma na histeria como sendo gerado por representações inconscientes (como demonstraram Charcot e reafirmou Janet), são uma prova, para Freud e antes de Freud, da existência de processos psíquicos inconscientes agindo na determinação de comportamentos tanto normais como patológicos. Freud também se apóia no exemplo evidente dos atos falhos, para apresentar esta evidência de que há um inconsciente dinâmico, como fator determinante da vida psíquica. Configurando, assim um segundo sentido dado ao termo inconsciente. Mas isto não era certamente uma novidade na história das idéias. O que Freud apresenta verdadeiramente de novo, nesta sua primeira teoria sobre o psiquismo, corresponde ao terceiro sentido dado ao termo inconsciente. Neste caso Freud considerará que o inconsciente deve ser concebido como uma parte (instância ou sistema) de um aparelho psíquico, um aparelho impulsionado por supostas forças e energias psíquicas, as pulsões de auto-conservação em conflito como as pulsões sexuais e a libido. Tanto a suposição de forças e energias quanto a de um aparelho e suas instâncias, corresponde à utilização de construções auxiliares de natureza especulativa, conceitos que não têm referente intuitivo na realidade factual ou fenomênica.2 Trata-se, para Freud, da 2 Estas ficções teóricas correspondem à superestrutura especulativa da psicanálise, que Freud também denomina, mais especificamente, de sua metapsicologia (cf. Fulgencio, 2003). 16 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA introdução de conceitos cuja validade é apenas heurística e jamais factual. A um inconsciente assim concebido ele chama de inconsciente sistêmico ou o inconsciente no seu sentido propriamente metapsicológico (cf. Freud, 1912g). O que autorizaria Freud a fazer a hipótese de um inconsciente metapsicológico, cujo sentido redescreve seus aspectos descritivos e dinâmicos encontrados noutras perspectivas, dando a elas seu sentido psicanalítico? Certamente não há prova empírica do inconsciente metapsicológico, mas tão somente a consideração de que desta maneira temos um ganho de entendimento e de poder clínico. Por um lado, trata-se de salientar que o psiquismo não pode ser reduzido à consciência e que somente a suposição dos processos psíquicos inconscientes pode completar as lacunas (séries causais) que permanecem quando tentamos explicar como ocorrem e são gerados os atos-falhos, os sonhos e os sintomas. Diz Freud: “Um ganho de sentido e de coerência é um motivo perfeitamente justificável para ir além dos limites da experiência direta” (Freud, 1915e, pp. 205-206). Não se trata apenas de ter uma teoria coerente que explica um fenômeno, mas sim que desta teoria também resulta ações clínicas efetivas: Quando, ademais, disso resultar que a suposição da existência de um inconsciente nos possibilita a construção de uma norma bem-sucedida, através da qual podemos exercer uma influência efetiva sobre o curso dos processos conscientes, esse sucesso nos terá fornecido uma prova indiscutível da existência daquilo que havíamos suposto. (Freud, 1915e, pp. 205-206) Este ponto de vista heurístico justifica, para Freud, sua maneira de conceber o inconsciente; mais ainda, é ela que permite a Freud se diferenciar tanto da concepção que alguns filósofos deram ao termo inconsciente, quanto da concepção de Lipps (cuja dívida Freud reconhece tanto em 1900 como em 1939) sobre o inconsciente.3 Na Interpretação dos sonhos, querendo marcar a especificidade de sua concepção, Freud diz: “Não é sem intenção que digo ‘no nosso inconsciente’, pois o que chamamos assim não coincide com o Ics dos filósofos, nem por outro lado com o inconsciente em Lipps” (Freud 1900a, OCF.P, v. 4, p. 669). Cabe, pois, esclarecer que diferenças são estas diferenças. Diversos psicanalistas reconhecem que é nesta concepção metapsicológica do inconsciente que repousa a fundação freudiana da psicanálise. Por exemplo, diz Assoun: Esta tese-mãe da psicanálise permite fundar a pretensão científica da psicanálise num plano psicológico. Rompendo com a idéia de um inconsciente empírico ou de um Inconsciente-príncipe, ele abra a via para a exploração metapsicológica: a “pedra basilar” está na tese “sistêmica” – que vai se exprimir pela dimensão tópica – e permite reinterrogar a dimensão dinâmica (conflito psíquico) e a dimensão econômica (quantidades e intensidades). (Assoun 1997, p. 90) 3 Para uma análise mais detalhada da importância de Lips para Freud, veja Loparic (2001c), bem como o texto de Lipps (2001 [1897]) citado no Interpretação dos sonhos (Freud, 1900a, pp. 668-670). 17 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A consideração de um inconsciente metapsicológico, seja tal como Freud o propôs, seja noutras perspectivas psicanalíticas pós-Freud (tal como em Lacan e Bion), tem sido uma das características marcantes de um dos horizontes de desenvolvimento da psicanálise. Não obstante, há aqueles que criticam a teorização de tipo metapsicológica, considerando-a inadequada para a compreensão da natureza humana. Certamente, tanto numa como noutra perspectiva, a concepção de inconsciente, tal como Freud a propôs, foi alterada. Na sua segunda teoria, elaborada após 19204, Freud proporá outra figuração para o aparelho psíquico com novas instâncias (Id, Ego, superego) e um novo par de pulsões (pulsões de vida versus pulsão de morte). Neste segundo quadro teórico o termo inconsciente, no seu sentido estrito, passa a ser usado para qualificar os conteúdos ou partes destas instâncias. Haveria no Ego e no Superego não só conteúdos inconscientes, como também a própria instância (ou parte delas, com seus elementos, orgânica e dinamicamente ordenados), seriam e funcionariam de forma inconsciente. No caso do Id, Freud o considerará como sendo aquilo que nos é desconhecido e inconsciente (Freud, 1923b, p. 258), como a parte “obscura, inacessível de nossa personalidade” (Freud, 1933a, p. 156, Lição 31). Pode-se dizer, em termos específicos, que Freud referiu-se ao termo Id tanto em seu sentido metapsicológico (como uma instância de um aparelho psíquico) como em seu sentido descritivo ou dinâmico (referindo-se aos seus conteúdos e ao funcionamento individual ou associado destes). Ainda que existam diferenças significativas entre a noção de inconsciente da primeira tópica e a de Id na segunda, pode-se afirmar, como fazem Laplanche e Pontalis, que “o lugar ocupado pelo Id na segunda tópica é o sistema inconsciente (Ics) da primeira” (1967, p. 56).5 Estas diferenças, no entanto, não modificam, grosso modo, o sentido mais geral da noção de inconsciente concebida por Freud como o primeiro xibolete da psicanálise (Freud, 1923b, p. 258). Por um lado, o inconsciente continua sendo reafirmado no seu sentido metapsicológico (seja na primeira tópica, com o inconsciente como instância de um aparelho, seja na segunda, com o Id como instância), por outro faz com que, no que se refere ao sentido descritivo e dinâmico do inconsciente na psicanálise, seja necessário considerar que ao lado dos conteúdos recalcados também sejam considerados outros conteúdos deste inconsciente. 4 A primeira figuração do aparelho foi realizada, grosso modo, em função da operacionalidade destas construções auxiliares para compreensão das neuroses de transferência. A segunda tópica, ou segunda figuração sistemática, também foi proposta em função da sua operacionalidade explicativa, incluindo fenômenos clínicos (sadismo, masoquismo, hipocondria, neuroses de guerra, compulsão à repetição etc.) para os quais a primeira tópica mostrava-se inadequada. Cf. uma análise dos motivos desta mudança em Fulgencio (2008b, pp. 319-323). 5 Laplanche e Pontalis discorrem sobre estas diferenças, mostrando que nem tudo que está no Id corresponde ao recalcado, que há outra teoria das pulsões em jogo, outra teoria do Eu (mudando a relação deste com as outras instâncias e com a biologia) etc. Cf. Laplanche & Pontalis (1994 [1967], pp. 56-58). 18 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA 2.2 Os conteúdos do inconsciente para Freud Na Interpretação dos sonhos Freud refere-se aos elementos psíquicos inconscientes como sendo representações, pensamentos, fantasias e desejos. No “Le moi et le ça”, de 1923, ele diz que foi pela compreensão dos sintomas, dos sonhos e dos atos falhos6 que ele sentiu-se obrigado a reconhecer a existência de processos psíquicos inconscientes: Descobrimos — isto é, fomos obrigados a presumir — que existem idéias ou processos mentais muito poderosos (e aqui um fator quantitativo ou econômico entra em questão pela primeira vez) que podem produzir na vida mental todos os efeitos que as idéias comuns produzem (inclusive certos efeitos que podem, por sua vez, tornar-se conscientes como idéias), embora eles próprios não se tornem conscientes. (Freud, 1923b, pp. 258-260, os itálicos são meus) Duas considerações são aqui fundamentais. Primeiro a que se refere ao conteúdo do inconsciente como sendo, em última instância, as representações (cognitivas e de estados psíquicos) carregadas de afeto. Segundo, o reconhecimento do mecanismo do recalque como sendo a referência para pensar a gênese do inconsciente enquanto um conjunto de representações recalcadas (ainda que Freud reconheça que o recalcado não corresponda à totalidade do inconsciente) e como um sistema que reúne estes elementos inconscientes com uma dinâmica específica de funcionamento (à qual ele denominou de processo primário). No primeiro caso, cabe ainda esclarecer a distinção entre representações (de coisa e por meio da palavra) e afetos, bem como o que é que Freud quer dizer quando se refere às pulsões, como sendo o conteúdo do inconsciente. Ao referirse às representações propriamente inconscientes, Freud afirma: “A representação inconsciente é somente a representação de coisa” (Freud, 1915e, p. 300). Ele considera que a representação por meio da palavra exige já um tipo de elaboração que articula à representação de coisa algo relacionado aos conceitos (dado que palavras são, propriamente dizendo, conceitos), afirmando que a articulação entre representação de coisa e representação por meio da palavra, corresponde a uma característica do sistema préconsciente-consciente. Por outro lado, o afeto propriamente dito não é pensado em seus aspectos de excitação fisiológica, mas sim nos seus aspectos psicológicos, ou seja, o afeto é um elemento psíquico e, neste sentido é também um tipo de representação mais primária do que está ocorrendo. Como afirma Laplanche e Pontalis, o afeto “é a expressão qualitativa da quantidade de energia pulsional e de suas variações” (Laplanche & Pontalis, 1994 [1967], p. 12), correspondendo, pois, a um aspecto das pulsões. As pulsões, por sua vez, ou melhor, os representantes das pulsões, também são, para Freud, aquilo que compõe o inconsciente: “O núcleo do Ics é composto de 6 Freud diz (1916-17) que a ordem da exposição (atos-falhos, sonhos, sintomas) corresponde à ordem inversa das suas descobertas clínicas, mas que ele faz tal inversão por motivos pedagógicos. 19 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA representantes de pulsões que procuram descarregar seu investimento, logo, de moções de desejo” (Freud, 1915e, p. 225). É comum fazer a distinção entre afeto e representação no quadro da teoria psicanalítica freudiana. Caberia, aqui, distinguir entre uma noção descritiva do afeto e outra metapsicológica: a descritiva diz respeito ao fato ou elemento psíquico diretamente ligado ou associado a um sentimento ou afecção corporal (a uma excitação) ou, noutros termos, a qualidade psíquica de uma excitação ou sentimento; e a metapsicológica, também associada ao termo “quantum de afeto”, que diz respeito à consideração de uma “energia” associada aos sentimentos e/ou afecções, que pode ser deslocada, aumentada, diminuída ou descarregada, o que caracterizaria a definição do “afeto”, formulada por Laplanche e Pontalis, como sendo “a expressão quantitativa da quantidade de energia pulsional e suas variações” (p. 12). Por outro lado, o termo “representação”, refere-se, mais diretamente a um fato ou elemento propriamente psíquico, e não apenas uma qualidade ou um investimento energético. O que importa a Freud, tanto na consideração do afeto como da representação7, são os elementos psíquicos que os caracterizam. Cabe, ainda, retomar o comentário de Freud sobre a maneira como ele concebe as pulsões como sendo conteúdos do inconsciente, para explicitar que, para ele, o conteúdo do inconsciente é sempre uma representação. Diz Freud: Considero que a oposição entre consciente e inconsciente não se aplica às pulsões. Uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da consciência, só o pode a representação que a representa. Mas, mesmo no inconsciente, uma pulsão só pode ser representada por uma representação. Se a pulsão não se prendeu a uma representação ou não se manifestou como um estado afetivo, nada poderemos conhecer sobre ela. Não obstante, quando falamos de uma moção pulsional inconsciente ou de uma moção pulsional recalcada, trata-se de uma inofensiva negligência de expressão. Nós não podemos entender por isso nada além do que uma moção pulsional cujo representante de representação é inconsciente, pois nada mais entra em consideração. (Freud, 1915e, p. 216) 7 Freud, ainda, diferencia entre representação de coisa (Sachvorstellung ou dingvorstellung) e representação-por-meio-de-palavra (Wortvorstellung). Aqui um esclarecimento de Kant pode ajudar a compreender a distinção entre estes termos: “O termo genérico é a representação em geral (repraesentatio). Subordinado a este, situa-se a representação com consciência (perceptio). Uma percepção que se refere simplesmente ao sujeito, como modificação do seu estado, é sensação (sensatio); uma percepção objetiva é conhecimento (cognitio). O conhecimento, por sua vez, é intuição ou conceito (intuitus vel conceptus). A primeira refere-se imediatamente ao objeto e é singular, o segundo refere-se mediatamente, por meio de um sinal que pode ser comum a várias coisas. O conceito é empírico ou puro e ao conceito puro, na medida em que tem origem no simples entendimento (não numa imagem pura da sensibilidade), chama-se noção (notio). Um conceito extraído de noções e que transcende a possibilidade da experiência é a idéia ou conceito da razão. Quem uma vez se habitue a esta distinção achará insuportável ouvir chamar idéia à representação da cor vermelha, que nem sequer se deverá chamar noção (conceito do entendimento)” (Kant, 1997 [1787], p. B 377). 20 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA No seu sentido descritivo, o conteúdo do inconsciente são as representações cognitivas e as representações de estados psíquicos, ambas carregadas de afeto, mas no seu sentido metapsicológico, o inconsciente deve ser considerado como impulsionado pelas energias (investimentos) e forças (pulsões) que estão investidas nestas representações. Basta aqui, retomar um resumo, feito por Freud, para caracterizar as características e dinâmicas dos processos inconscientes: a isenção de contradição mútua, o processo primário (mobilidade dos investimentos), a intemporalidade e a substituição da realidade externa pela psíquica — tais são as características que podemos esperar encontrar nos processos pertencentes ao sistema Ics. (Freud, 1915e, p. 225) Ao pensarmos na segunda tópica freudiana, considerando as três instâncias psíquicas (Id, Ego, super-Ego), cabe também perguntar qual o conteúdo inconsciente destas instâncias. No caso do Ego e do Supergo, seus conteúdos inconscientes podem ser considerados como sendo representações ou conjunto de representações que foram recalcadas e funcionam fortemente unidas, reivindicando um mesmo objetivo ou satisfação. No entanto, no caso do Id, Freud faz algumas distinções que diferenciam seus conteúdos das representações presentes no Ego e no Superego. Por um lado ele afirma que “o recalcado se mescla e se funde com o Id” (1923b, p. 37), mas isto não significa que tudo no Id corresponde ao que foi recalcado, pois haveria nele uma parte que não foi propriamente recalcada, sendo a parte recalcada do Id “na verdade, apenas uma parte dele” (Freud, 1923b, p. 37). Freud considerará que no Id está presente, como seu fundamento, tudo aquilo que “a biologia e os destino da espécie humana produziram e nos legaram” (Freud, 1923b, p. 280), referindo-se a estes conteúdos, pois, como sendo uma expressão direta das pulsões que impulsionam a vida psíquica. Mas as pulsões, mesmo no inconsciente, só podem ser encontradas na forma de representações (cf. Freud, 1915e, p. 216). Freud considerar que o conhecimento desta parte do Id, no entanto, advém de uma projeção daquilo que a psicanálise aprendeu com o estudo das formações de sintomas neuróticos (idem), e cujo saber, neste sentido, é “essencialmente negativo disto [do que se conhece pelas neuroses], não se deixando descrever a não ser como oposto ao Eu [Ego]” (Freud, 1933a, p. 156, Lição 31). Ou seja, para concluir, os conteúdos descritivos e dinâmicos do Id são, pois, representações, pensadas de forma análoga às representações recalcadas observadas no tratamento das neuroses de transferência. 2.3 O inconsciente pensado a partir das neuroses Ao final do seu texto “O inconsciente”, de 1915, Freud reitera o fato de que tudo o que ele identificou como sendo o inconsciente deriva de sua clínica com pacientes neuróticos: “Eis aí, tudo o que pudemos agrupar nas discussões precedentes, tudo que podemos dizer sobre o Ics., tanto quanto nos contentemos de extrair no que conhecemos da vida do sonho e das neuroses de 21 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA transferência” (Freud, 1915e, p. 234). O que justifica e dá valor às afirmações de Freud sobre o inconsciente, é, pois, o reconhecimento do campo empírico sobre o qual ele trabalhou: o campo das neuroses de transferência. Freud considera que o mecanismo básico de defesa contra as angústias, presente e constituinte da própria neurose, é o mecanismo da repressão ou recalque. Isto faz com que Freud considere que a noção de recalque (ou repressão) está na base do seu conceito de inconsciente: “Nosso conceito de inconsciente, nós o obtemos, pois, a partir da teoria recalcamento” (Freud, 1923b, pp. 259-260). Ainda que Freud diga que aquilo que é recalcado seja apenas uma parte do inconsciente (Freud, 1915e, p. 205), ele tem no mecanismo do recalque um modelo de referência para pensar o que é o inconsciente. Diz Fred: “o recalcado é para nós o protótipo do inconsciente” (Freud, 1923b, pp. 259-260). Freud está ciente que o recalque propriamente dito, exige que já esteja dada a distinção entre a consciência e o inconsciente: Fomos forçados a concluir, pela experiência clínica no contato com as neuroses de transferência, que a repressão [Verdrängung] não é um mecanismo de defesa presente desde o início, que ele só pode aparecer depois que seja instaurada uma diferenciação marcada entre atividade da alma consciente e atividade da alma inconsciente, e que sua essência consiste na separação e manutenção à distância em relação ao consciente. (Freud, 1915d, p. 190) Essa repressão [Verdrängung] não é, pois, fundante dessas instâncias (inconsciente e consciente). É preciso especular a existência de uma operação anterior, que realizaria, então, essa fundação, denominada “repressão originária” (Freud, 1915d, p. 191). Não está aqui em questão os detalhes e a explicação de como funciona e quais são os conteúdos reprimidos nesse processo – tanto na sua primeira fase (repressão [Verdrängung] originária) quanto na sua segunda fase (a repressão propriamente dita) –, mas sim ressaltar que se trata de uma hipótese lógica, necessária para o bom funcionamento das explicações dinâmicas pretendidas. Freud sabe claramente das dificuldades que apresenta um conceito desse tipo [Verdrängung], que nada tem de empírico, ainda que os dados empíricos (vindos dos tratamentos psíquicos) não estejam em desacordo com ele, pelo contrário, corroboram sua aplicação: “A possibilidade de uma repressão [Verdrängung] não é, teoricamente, fácil de deduzir” (Freud, 1915d, p. 189). A análise dos mecanismos que constituem o inconsciente ou que mantêm ou permitem que uma representação permaneça inconsciente ou torne-se, parcial ou totalmente, consciente – o recalque, a censura, os mecanismos de deslocamento e condensação, a repressão ou supressão, princípio do prazer, procura de descarga das excitações – certamente esclarecia mais ainda a concepção freudiana do inconsciente, mas não mudaria o rumo nem acrescentaria algum ponto novo na argumentação necessária a este artigo, uma vez que se trata de reafirmar tanto a constituição, conteúdo do inconsciente, 22 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA como os aspectos metapsicológicos apresentados por Freud para a sua compreensão. Para que o recalcamento possa ocorrer é necessário que já exista um lugar para onde as representações, então recalcadas, possam ser enviadas, o que faz Freud supor que antes do recalcamento propriamente dito, agora denominado secundário, exista um recalcamento primário.8 O agente do recalcamento secundário é certamente o Eu, mas para o recalcamento primário isto não é ainda possível. Freud supõe, então, um mecanismo de contra-investimento que levaria à constituição de um recalque originário, resolvendo apenas em termos lógicos ou teóricos o problema, mas deixando insatisfatória a compreensão descritiva desta dinâmica. Ao desenvolver a segunda tópica, este mesmo problema se apresenta, quando Freud tenta explicar como nasce o Eu, levando-a a considerar que o Eu nasce por diferenciação do Isso. Sem conseguir uma explicação muito clara sobre como se dá tal diferenciação, restringindo-se a fazer algumas metáforas (por exemplo, considerando a constituição do eu como se fosse um processo de cicatrização de uma ferida no isso, em contato com o mundo externo), Freud reafirma o processo de recalcamento como sendo um elemento central para a constituição deste inconsciente. É importante lembrar que, para Freud, nem tudo aquilo que é inconsciente é fruto do recalque, ainda que todo recalcado seja inconsciente (Freud, 1923b, pp. 262-263). Ao analisar, por exemplo, as resistências na análise ele dirá que há uma parte do Eu que resiste inconscientemente e este inconsciente, mesmo não sendo recalcado, funciona como o recalcado. É neste sentido que o recalcado permanece, para Freud, em todos os casos, como sendo o protótipo do inconsciente. Certamente, este inconsciente não-recalcado, apontado por Freud, permaneceu como um aspecto pouco desenvolvido da teoria psicanalítica pósFreud. Há, na terminologia utilizada na segunda tópica, uma oscilação do sentido dado aos termos Id, Ego e Super-Ego, ora referindo-se a eles no seu sentido descritivo e dinâmico, ora no seu sentido metapsicológico; daí, na utilização acima eu ter preferido usar os termos Eu, Isso e Super-Eu para referir-me aos aspectos descritivos e dinâmicos destes processos psíquicos e reservar os termos ID, Ego 8 Diz Freud: “Necessitamos, por conseguinte, de outro processo que, no primeiro caso, mantenha o recalcamento e, no segundo, assegure o seu estabelecimento e continuidade. Esse outro processo só pode ser encontrado mediante a suposição de um contra-investimento, por meio da qual o sistema Pcs. se protege da pressão que sofre por parte da representação inconsciente. Veremos, por meio de exemplos clínicos, como tal contra-investimento, atuando no sistema Pcs., se manifesta. É ele que representa um dispêndio durável de um recalcamento originário, mas que garante também a sua permanência. O contra-investimento é o mecanismo exclusivo do recalcamento originário; quando do recalcamento propriamente dito (pós-recalque), a ele se acrescenta ao retirada de investimento pcs. É bem possível que seja precisamente o investimento retirado da representação, que seja utilizado pelo contra-investimento” (Freud, 1915e, p. 220). 23 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA e Super-Ego para o sentido metapsicológico, que os toma como instância de um aparelho psíquico. No tratamento de pacientes neuróticos Freud considera ter construído um método de tratamento eficaz, cujo objetivo, grosso modo, consiste em trazer para o consciente aquilo que foi recalcado, não só a representação recalcada, mas o investimento a ela associado. Diz Freud: Como chegar ao conhecimento do inconsciente? Certamente, só o conhecemos como algo consciente, depois que ele sofreu transformação ou tradução para algo consciente. A cada dia, o trabalho psicanalítico nos mostra que esse tipo de tradução é possível. A fim de que isso aconteça, a pessoa sob análise deve superar certas resistências — resistências como aquelas que, anteriormente, transformaram o material em questão em algo recalcando-o, afastando-o do consciente. (Freud, 1915e, p. 205) Freud reconhece no recalque o processo central que gera, ao mesmo tempo, o conteúdo inconsciente e o fundamento tanto dos sintomas quanto da vida psíquica não-patológica. Freud percebe, no entanto, que talvez seja no estudo das psicoses que alguns pontos obscuros de sua concepção sobre o inconsciente poderiam ser resolvidos: Por certo não é muito e em alguns pontos dá a impressão de obscuridade e confusão, e sobretudo lamenta-se que não seja possível colocar o Ics num contexto já conhecido ou de o inserir numa série. Só a análise de uma das afecções que denominamos de psiconeurose narcisista promete proporcionar-nos concepções através das quais o enigmático Ics ficará mais ao nosso alcance, tornando-se, por assim dizer, tangível. (Freud, 1915e, p. 234) A máxima freudiana, para o tratamento dos neuróticos, que visa trazer o inconsciente para a consciência, é redutível à fórmula “recordar, repetir, elaborar”, considerando, então, que sãos as representações reprimidas (e seus investimentos correlatos) que devem ser reinvestidas (elaboradas) dando um novo destino para o conflito entre as representações (fundamento da vida psíquica). Dizendo em termos mais propriamente metapsicológicos: o passado vivido traumaticamente, ou seja, investido de uma carga energética que não encontrou meios adequados pra descarregar-se, precisa ser retomado para que s investimentos possam ser rearranjados, distribuídos entre outras séries de representações. 3. A reformulação da concepção de inconsciente feita por Winnicott Winnicott considera que a noção de inconsciente dinâmico proposta por Freud é uma das grandes contribuições da psicanálise para a construção de uma ciência dedicada ao estudo objetivo da natureza humana. No entanto, Winnicott não só fará uma redescrição desta descoberta freudiana, como também afirmará que esta não cobre a totalidade do que podemos chamar de inconsciente. 24 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Para explicitar as propostas de Winnicott me proponho, agora, a mostrar que ele: 1. caracterizou a descoberta de Freud como sendo a de um inconsciente reprimido, pensado a partir do tratamento de pacientes neuróticos; 2. descobriu que nas personalidades cindidas não havia um lugar para este inconsciente reprimido, obrigando-o a supor um outro tipo de inconsciente; 3. considerou que este tipo de inconsciente também está presente no processo de amadurecimento saudável, quando ainda não há uma identidade unitária constituída; 4. mantevese restrito, em sua teorização, aos sentidos descritivos e dinâmicos do inconsciente, abandonando as teorizaçãoes metapsicológicas. 3.1 O inconsciente reprimido para Winnicott Ao caracterizar o que é a neurose, Winnicott diz: Neurose é o termo empregado para descrever a doença das pessoas que ficam doentes no estágio do complexo de Édipo, no estágio de experimentar relacionamentos entre três pessoas totais. Os conflitos originados desses relacionamentos levam a medidas defensivas que, se se tornam organizadas em um estado relativamente rígido, se qualificam para o rótulo de neurose. Estas defesas já foram enumeradas e claramente enunciadas. Obviamente, o modo como se erigem e se tornam fixas depende em certa extensão, talvez em grande extensão, da história do indivíduo anterior à sua chegada ao estágio das relações triangulares entre pessoas completas. (Winnicott, 1963c, p. 197) Os conflitos vividos pelo neurótico dizem respeito à sua vida instintiva, tendo origem num momento em que esta pode ser dita a vida de um andarilho envolto com as questões identificatórias, relacionais e interpessoais, num contexto familiar (cf. Winnicott, 1958m [1956], p. 37). Ao referir-se ao que é que vive o neurótico, Winnicott afirma tratar-se de: “Conflitos inconscientes de amor e ódio, de tendências homossexuais e heterossexuais, e assim por diante, levam à organização de padrões de defesa, e são estes padrões de defesa que constituem a neurose organizada” (1958m [1956], p. 38). Ao falar das defesas, Winnicott está se referindo, principalmente, à repressão: a defesa principal [na neurose] é a repressão. Esta é a razão pela qual a psicanálise, em sua forma clássica, é um tratamento que lida com pacientes que têm o ego sadio até o ponto em que lidam com a ambivalência por meio da repressão e sem um rompimento da estrutura do ego, e o trabalho principal da análise do paciente com sintomas psiconeuróticos consiste em trazer à consciência o inconsciente reprimido. Isto é feito mediante a interpretação, dia a dia, do relacionamento do paciente com o analista, à medida que este relacionamento gradativamente evolui, e, ao evoluir revela o padrão da própria 25 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA história do paciente no nível do complexo edipiano e na idade de 2-3-4 anos. (Winnicott, 1989vl, pp. 56-57) Para que este mecanismo possa existir e agir é necessário que a criança tenha amadurecido a ponto de ter um eu enquanto uma identidade unitária, sentindose como uma pessoa inteira que se relaciona com os outros como pessoas inteiras. Só tendo um Eu assim constituído é possível haver um agente para este tipo de ação psíquica. Diz Winnicott: na psiconeurose, o paciente existe como pessoa, é uma pessoa total, que reconhece objetos como totais; acha-se bem-alojado em seu próprio corpo e a capacidade de relacionamentos objetais está bem-estabelecida. Desde este ponto de vista, o paciente encontra-se em dificuldades, e estas surgem dos conflitos que resultam da experiência de relacionamentos objetais. Naturalmente, os conflitos mais graves aparecem em conexão com a vida instintual, isto é, as variadas excitações com acompanhamentos corporais que têm como fonte a capacidade que o corpo possui de ficar excitado – de modo geral e localizado. (Winnicott, 1989vl, p. 53) O paciente neurótico padece, pois, de uma série de conflitos que fazem parte de seu mundo interno, conflitos que estão associados tanto a seus instintos (integrados, então, na sua unidade conquistada, e vividos como algo que advêm deles mesmos) como a seus desejos e fantasias a estes ligados, conflitos que, grosso modo, não estão acessíveis à sua consciência, tal como ocorre na histérica que sofre de reminiscências. Winnicott reitera esta concepção bem freudiana, caracterizando, então, o inconsciente do neurótico como sendo um inconsciente reprimido: “Para mim, a pista para o conflito subjacente à doença que denominamos de psiconeurose reside dentro do indivíduo. O analista do paciente psiconeurótico acha-se envolvido, como é bem-sabido, na análise do inconsciente reprimido do indivíduo” (Winnicott, 1968c [1967], p. 152). Nos neuróticos, diz Winnicott, há “uma forma particular de inconsciente e ele [Freud] o chamou de inconsciente reprimido” (2945h, p. 35), o inconsciente que depende, então, da existência de uma pessoa que amadureceu a ponto de ser uma pessoa inteira nos relacionamentos interpessoias, enfim, um neurótico envolto com a administração da sua instintualidade nos seus relacionamentos. Diz Winnicott: Neurose envolve a repressão e o inconsciente reprimido, que é um aspecto especial do inconsciente. Conquanto o inconsciente seja em geral depositário das áreas mais ricas do self da pessoa, o inconsciente reprimido é o cofre em que se guarda (a grande custo, em termos de economia mental) o que é intolerável e está além da capacidade do indivíduo de absorver como parte do seu eu e de sua experiência pessoal. O inconsciente propriamente dito pode ser alcançado em sonhos e contribui fundamentalmente para todas as experiências mais significativas do ser humano; em contrapartida, o inconsciente reprimido não está liberado para seu uso e a aparece somente como uma ameaça ou fonte de reações formativas (por exemplo, sentimentalismo indicando ódio reprimido). Tudo isso é material da psicologia dinâmica. A repressão faz parte da neurose, 26 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA assim como o splitting da personalidade faz parte da psicose. (Winnicott, 1963c, p. 197) Reconhecido que o inconsciente reprimido diz respeito aos neuróticos, àqueles que tiveram as condições de amadurecimento para chega a uma unidade unitária, cabe, então, perguntar: o que ocorre, em termos da constituição ou dinâmica dos processos psíquicos inconscientes, nos casos em que esta unidade não foi alcançada, seja nos casos de patologia seja nos casos, na saúde, em que tal maturidade está em vias de ser alcançada? 3.2 Para além do inconsciente reprimido Ao comentar uma classificação nosográfica muito geral, Winnicott dirá que a alternativa principal à neurose é a psicose (cf. Winnicott, 1989vl, p. 53). Certamente, entre os neuróticos e os psicóticos, há um conjunto de outras possibilidades intermediárias, dentre as quais ele colocará todos os tipos de depressão, além de incluir uma série de sintomas tais como os relativos aos transtornos psico-somáticos e a atitude anti-social que poderão, inclusive, estar presente nos dois extremos (cf. Winnicott, 1955d [1954], pp. 375-376). Não é a classificação psicopatológica que está aqui em foco, mas a distinção entre a compreensão dos processos psíquicos inconscientes em cada um destes extremos. A diferença fundamental entre neuróticos e psicóticos é a questão da pessoa ter chegado num estágio de amadurecimento no qual se sente e se relaciona com os outros como uma pessoa inteira. Há um EU que pode, inclusive, defender-se de suas angústia utilizando a repressão como mecanismo de defesa das angústias aí presentes, dando origem ao inconsciente reprimido. Diz Winnicott, a respeito dos neuróticos: Em comparação na psiconeurose, o paciente existe como uma pessoa, é uma pessoa total, que reconhece objetos como totais; acha-se bem-alojado em seu próprio corpo e a capacidade de relacionamentos objetais está bem-estabelecida. Desde este ponto de vista, o paciente encontra-se em dificuldades, e estas surgem dos conflitos que resultam da experiência dos relacionamentos objetais. (Winnicott, 1989vl, p. 53) No entanto, há de se considerar duas situações: numa, caso patológico, a situação daquelas pessoas “cujos estágios mais iniciais de desenvolvimento são incompletos e esta qualidade domina o quadro clínico” (Winnicott, 1989vl, p. 53); noutra, caso da saúde, o processo de amadurecimento ainda não chegou ao estágio em que há uma pessoa inteira, com um mundo interno e um externo bem diferenciados, que se relaciona com os outros também tomados e reconhecidos como pessoas inteiras. Focando minha atenção no primeiro tipo de caso, diz Winnicott sobre os psicóticos: Digamos que, na psicose, há um transtorno que envolve a estrutura da personalidade. Pode-se mostrar que o paciente não se acha desintegrado, ou irreal, ou fora de contato com seu próprio corpo ou com aquilo que nós, como 27 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA observadores, chamamos de realidade externa. Os problemas do psicótico são desta ordem. (Winnicott, 1989vl, p. 53) Pacientes psicóticos são pessoas não integradas, a cisão é a característica dominante. Neste caso não é possível considerar um inconsciente reprimido, pois este exige condições que ainda não foram alcançadas. Winnicott afirma: “Não é possível a uma personalidade cindida ter um inconsciente, por não haver lugar para ele ficar” (1964h, p. 370). O tratamento destes pacientes, cuja personalidade está cindida, não corresponde a trazer um inconsciente reprimido à tona, mas a outro tipo de trabalho que diz respeito à tarefa de lidar com a cisão do paciente, em busca de dar as condições ambientais que lhe possibilitem amadurecer (integrar-se) em direção a constituição desta unidade chamada EU. Diz Winnicott: Em contraste, onde jaz a esquizofrenia, o analista ou quem quer que esteja tratando o paciente ou administrando o caso, encontra-se envolvido na elucidação de uma cisão na pessoa do paciente, o extremo de uma dissociação. A cisão toma o lugar do inconsciente reprimido do psiconeurótico. (Winnicott, 1968c [1967], p. 152) No seu artigo “Medo do colapso”, de 1974, Winnicott afirma que alguns pacientes temem viver um tipo de loucura que na verdade já ocorreu, um colapso já vivido, mas que não pode ser experimentado. Diz Winnicott: Segundo minha experiência, existem momentos em que se precisa dizer a um paciente que o colapso, do qual o medo destrói-lhe a vida, já aconteceu. Trata-se de um fato que se carrega consigo, escondido no inconsciente. Este último aqui, não é exatamente o inconsciente reprimido da psiconeurose, nem, tampouco, o inconsciente da formulação freudiana da parte da psique que se acha muito próxima do funcionamento neurofisiológico. tampouco se trata do inconsciente de Jung, que eu diria ser todas aquelas coisas que se passam em cavernas subterrâneas, ou (em outras palavras) a mitologia do mundo, nas quais há um conluio entre o indivíduo e as realidades psíquicas internas maternas. Neste contexto especial, o inconsciente quer dizer que a integração do ego não é capaz de abranger algo. O ego é imaturo demais para reunir todos os fenômenos dentro da área da onipotência pessoal. (Winnicott, 1974, p. 73) O que fica “guardado” neste inconsciente não é, pois, nenhum conteúdo, mas algo que ainda não foi experienciado, algo que fica, por assim dizer à espera de melhores condições ambientais e pessoais para ser, então, experienciado. Para fornecer um conteúdo mais intuitivo a tal fato, Winnicott o compara, fazendo uma analogia, com o que ocorre com o bulbo e a flor à qual dará origem: Tentando encontrar uma analogia, vi um bulbo de jacinto a ser plantado em uma tigela. Pensei: há um odor maravilhoso trancado naquele bulbo, embora soubesse, naturalmente, não existir um lugar no bulbo em que o odor se ache trancado. A dissecação do bulbo não proporcionaria a quem a fizesse, a experiência de uma fragrância de jacinto, se o lugar apropriado estivesse por ser 28 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA alcançado. Apesar disso, existe no bulbo um potencial que acabará se tornando um perfume característico, quando a flor se abrir. Isto não passa de uma analogia, mas poderia transmitir um retrato do que estou tentando enunciar. Faz parte importante de minha tese que a loucura ou o colapso de defesas originais, se viesse a ser experienciado, seria indescritivelmente doloroso. (Winnicott, 1989vl, pp. 99-100) O que ele está querendo dizer exatamente, quando diz que algo foi vivido mas não foi experienciado? Como isto é possível, que tipo de dinâmica está presente e que tipo de vivência é esta? Ele está se referindo a acontecimentos que tiveram lugar nas fases iniciais do processo de amadurecimento, quando estes pacientes não tinham chegado ainda num estado de integração que as possibilitava viver tais acontecimentos como uma pessoa inteira, ou seja, este tipo de trauma teria ocorrido quando não havia, ainda, uma pessoa capaz de experimentar tal falha ambiental. Diz Winnicott, esclarecendo este tipo de situação: No caso mais simples possível, houve, portanto, uma a ameaça de loucura foi experienciada, mas a impensável. Sua intensidade acha-se mais além da organizam-se imediatamente, de maneira que a experienciada. Por outro lado, contudo, ela foi (Winnicott, 1989vh, p. 99) fração de segundo em que ansiedade neste nível é descrição e novas defesas loucura de fato, não foi potencialmente um fato. Nas fases iniciais do amadurecimento, para Winnicott, não há um self que tenha existência independente do ambiente, e nestes casos em que o ambiente se mostra não-confiável ou mesmo invasivo, que possa apreender as falhas ambientais. Nestes momentos mais primitivos, marcados pela imaturidade do bebê, suas necessidades (tanto instintuais quanto relacionais) o impulsionam para procurar algo em algum lugar, sem que ele tenha, neste momento, um sentimento ou integração do self. Simplesmente não há, ainda, uma pessoa que possa experimentar tal situação. Não obstante, o trauma é vivido: um fato ocorreu e, de alguma forma ficou registrado. Este fato é dito algo impensável porque não só não há ainda um eu que possa propriamente pensar, mas também porque ocorre um tipo de aniquilamento do próprio ser da criança ou do bebê; daí a denominação destes fatos como gerando “agonias impensáveis”. Ao procurar caracterizar o que seriam estas agonias impensáveis, Winnicott diz: O mais próximo que dele podemos chegar é tomar o que se acha disponível na ansiedade psicótica, tais como: desintegração; sentimento de irrealidade; falta de relacionamento; despersonalização ou falta de coesão psicossomática; funcionamento intelectual ex-cindido; queda eterna; terapia eletroconvulsiva (ECT), com pânico como sentimento generalizado, o que conter qualquer um dos acima mencionados. (Winnicott, 1989vh, p. 99) Mesmo não havendo ali uma identidade unitária, este fato ocorre e é vivido pela pessoa que ainda não é uma unidade. Algo foi vivido, guardado na memória, certamente não propriamente como um conteúdo reprimido nem como algo que possa ser, no sentido estrito do termo, lembrado, mas permanecerá como algo 29 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA que faz parte da psique daquela pessoa. Winnicott diz que algo foi vivido, mas não foi experienciado: Apesar disso, podemos observar, que sempre que chegamos clinicamente a qualquer uma dessas coisas, sabemos que existe alguma organização do ego capaz de sofrer, o que significa prosseguir sofrendo de maneira a ficar ciente do sofrimento. Tem-se de tomar o cerne da loucura como sendo algo muito pior, por causa do fato de que ele não pode ser experienciado pelo indivíduo, que, por definição, não possui a organização de ego para sustentá-lo e, dessa maneira, experiênciá-lo. (Winnicott, 1989vl, p. 100) Muitos dos pacientes que viveram este tipo de “agonia impensável” e que não puderam, pois, experimentar o que foi vivido, têm uma sensação de vazio. Winnicott chega a referir-se a este fato como sendo a vivência de uma “morte fenomenal”. Diz Winnicott: Em alguns pacientes, o vazio precisa ser experienciado, e este vazio pertence ao passado, ao tempo que precedeu o grau de maturidade que tornaria possível ao vazio ser experienciado. Para entender isto, é necessário pensar não em traumas, mas em nada acontecendo quando algo poderia proveitosamente ter acontecido. É mais fácil para um paciente lembrar um trauma do que nada acontecendo quando poderia ter acontecido. Na ocasião, ele não sabia o que poderia ter acontecido e, assim, não poderia experienciar nada, exceto notar que algo poderia ter acontecido. (Winnicott, 1974, p. 75) Nestes casos temos, pois, que considerar que estamos ante a um inconsciente que não pode ser o inconsciente reprimido, um inconsciente que não é composto por conteúdos mentais reprimidos. Talvez seja o caso de supor, como já sugeriu Loparic, um inconsciente que diz respeito ao algo que não-aconteceu, mas deveria ter acontecido, um inconsciente não-acontecido (1999, p. 367ss). Dias (2003), ao abordar o tema da criatividade originária, acaba referindo-se, en passant, a este inconsciente não-acontecido como relacionado a um tipo de inconsciente originário, diferente do inconsciente reprimido descoberto por Freud: Se o bebê fizer o gesto [que tende à comunicação e ao encontro] e a mãe estiver ausente, distraída ou concentrada em si mesma, o gesto ficará parado no vazio, à espera de algo que não vem. [Nota da autora: Isto configura o trauma do nãoacontecido, que será guardado, não no inconsciente reprimido – o que já suporia um alto grau de amadurecimento, com uma realidade psíquica interna constituída –, mas no “inconsciente não acontecido” que é a forma negativa do inconsciente originário. (Dias, 2003, p. 172) Muitos outros adjetivos poderiam qualificar este tipo de inconsciente, ou tipos de acontecimentos que mereceriam ser considerados em relação à noção de inconsciente, seja referindo-se, de uma maneira mais ampla, a um inconsciente 30 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA primário, seja especialmente ligando-o a acontecimentos patológicos, considerando, então, um inconsciente impensável ou das agonias impensáveis, inconsciente congelado, ou ainda, outros modos específicos, tais como já comentou Loparic (inconsciente dissociado, não-acontecido, ou ainda, desacontecido, acontecido e não sustentado no tempo, perdido logo em seguida) etc. O que importa, neste ponto, não é o conjunto de adjetivos possíveis, mas o fato de que este inconsciente não corresponde ao inconsciente reprimido tal como Freud o formulou. Mas estes casos acima comentados dizem respeito ao que ocorre em situações patológicas. Caberia perguntar que tipo de inconsciente fica presente no caso da saúde, no caso em que não há ainda maturidade para que o mecanismo de repressão possa ocorrer, mas há uma série de vivências que, na maturidade posterior, não estão presentes na consciência e nem por isso podem ser dita reprimidas. Tomem, por exemplo, o que ocorre com o destino do objeto transicional: ele não será reprimido, mas esquecido no fundo do armário, vai para o limbo (cf. Winnicott, 1989i [1959]). Da mesma maneira que o objeto transicional, muitos outros acontecimentos farão parte da psique pessoa, serão o alicerce sobre o qual sua neurose poderá ser edificada e, mesmo assim, não são propriamente conteúdos nem vivências reprimidas, nem mesmo retidas em função da angústia, mas um inconsciente da saúde, um inconsciente cujos conteúdos não correspondem a representações reprimidas e, neste sentido, nem sempre possível de ser formulado pelo discurso ou pela palavra, um inconsciente mais propriamente indizível e não representável, mas real e sempre presente em todos os modos de ser, infantis ou adultos. Winnicott parece fazer uma associação entre este inconsciente que ele reconhece como referido a uma fase em que o recalque ainda não é um mecanismo de defesa disponível – uma fase caracterizada pela unidade bebê-ambiente na qual a realidade é caracterizável como uma realidade subjetiva (nem interna, nem externa e, ainda, nem mesmo transicional) –, e o inconsciente ao qual Freud se refere como não acessível à consciência: Nas fases iniciais do desenvolvimento do ser humano, a comunicação silenciosa se relaciona com o aspecto subjetivo dos objetos. Isso se liga, penso eu, ao conceito de realidade psíquica de Freud e do inconsciente que não pode nunca se tornar consciente. (Winnicott, 1965j [1963], p. 168) Um ponto a ser destacado é que, para Freud, o inconsciente é pensado a partir do modelo do recalque, e até mesmo este inconsciente que não é propriamente recalcado (ao qual ele se refere no O Ego e o Id), funciona segundo os mesmos moldes do inconsciente recalcado. Noutra perspectiva, em Winnicott, este inconsciente que nunca pode se tornar consciente (Winnicott, 1965j [1963], p. 168) não é análogo ao inconsciente recalcado, mas trata-se de outro tipo de inconsciente que não pode ser redutível a um conjunto representações, um inconsciente que é gerado num momento em que o bebê é imaturo para ter representações mentais. 31 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Winnicott não chega a dedicar um texto para analisar este outro sentido do termo inconsciente, diferenciado do inconsciente reprimido. Talvez possamos, coerentemente, denominar este inconsciente como um inconsciente primário – como ele mesmo o denomina quando comenta o tema da inveja inata criticando Melanie Klein (cf. Winnicott, 1989xf, p. 343). Ao referir-se aos estágios pré-primitivos, ou seja, àquilo que ocorre no primeiro início, Winnicott se pergunta sobre a própria origem do ser humano: “Qual é o estado do indivíduo quando o ser emerge do interior do não-ser? Onde fica a base da natureza humana em termos do desenvolvimento individual? Qual o estado fundamental ao qual todo ser humano, não importa a idade ou experiências pessoais, teria que retornar se desejasse começar tudo de novo?” (Winnicott, 1988, p. 153). Esta linguagem, incomum no cenário psicanalítico clássico, mostra também que Winnicott está se referindo a fenômenos que não tinham antes sido abordados. No que se refere ao tema que estamos abordando, o inconsciente, este momento, bem como este “não-ser de onde emerge o ser”, para posterior constituição de um indivíduo psicológico, é também algo que permanece jamais acessível à consciência, algo que não diz respeito a conteúdos mentais ou representacionais reprimidos, mas a outro tipo de inconsciente a ser considerado. 3.3 De que é composto o inconsciente primário No inconsciente reprimido, vimos que este é composto por representações e afetos. Cabe, então, a pergunta sobre os “conteúdos” deste inconsciente primário, se é que seria correto falar em conteúdos neste caso. Ao retomar quais seriam as tarefas que caracterizam o amadurecimento, temos: a temporalização, a espacialização, o alojamento da psique no corpo, o desenvolvimento da capacidade de ter fé, o primeiro reconhecimento da dependência, a criação-encontro dos objetos e fenômenos transicionais, a constituição de um modo de relação com o mundo marcado pela distinção EuNãoEu, etc. Todas estas aquisições ou conquistas não podem ser consideradas como representações, nem como afetos, elas são, mais propriamente, modos de ser, modos de estar no mundo. Ao referir-se a este inconsciente comentado por Winnicott, Loparic diz: A esse conceito de inconsciente Winnicott acrescentará vários outros, em particular, o de inconsciente dissociado e o de inconsciente não-acontecido. Nos dois casos, o que é chamado de inconsciente é algo não-psíquico no sentido de Freud: a dissociação é um assunto de integração pessoal ou psicossomática, não de aceitabilidade pela consciência nem mesmo de verbalizabilidade; e o nãoacontecido é uma questão de amadurecimento, não de recordação (mentalização) ou elaboração simbólica. (Loparic, 2004, passagem de texto não publicado, autorizado pelo autor) Na continuidade do processo de amadurecimento teremos uma série de conquistas ou aquisições que também são relacionadas às capacidades mentais e 32 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA representacionais, mas dizem respeito a conquistas destes modos de ser no mundo. Loparic, neste mesmo texto não publicado, enfoca a antureza deste tipo de aquisição, referindo-se à fase do concernimento: Uma ilustração desse ponto é dada pela observação de Winnicott de que a produção, na fase do concernimento, de uma ordem ou padrão a partir do caos do mundo interno se deve a um “trabalho que não é mental nem intelectual, mas uma tarefa da psique”, intimamente relacionado “à tarefa da digestão, que também se realiza a margem do entendimento intelectual, o qual pode ocorrer ou não” (Winnicott, 1988, p. 97). (Loparic, 2004, passagem de texto não publicado, autorizado pelo autor). Winnicott, ao referir-se á sua concepção de saúde, enfoca algumas características – tais como sentir-se real, sentir que a vida vale a pena de ser vivida – que se mesclam a características relativas ás capacidades representacionais, em especial quando se refere ao sentimento de responsabilidade com as próprias ações. Diz Winnicott: O essencial é que o homem ou a mulher se sintam vivendo sua própria vida, responsabilizando-se por suas ações ou inações, sentindo-se capazes de atribuírem a si o mérito de um sucesso ou a responsabilidade de um fracasso. Pode-se dizer, em suma, que o indivíduo saiu da dependência para entrar na independência ou autonomia. (Winnicott, 1971f [1967], p. 30) 3.4 Abandono da teorização metapsicológica sobre o inconsciente9 A contribuição de Winnicott não significa apenas a soma de outros tipos de inconscientes ao inconsciente reprimido descoberto por Freud, mas também que o inconsciente reprimido deve ser considerado em associação e determinado por este inconsciente primário. É sobre este solo do inconsciente primário que o neurótico pode viver suas relações e seus conflitos, tanto na sua vida ordinária quanto na sua análise. Ao considerar um inconsciente primário, Winnicott também foi levado a reformular o sentido dado ao inconsciente reprimido. Ele fez isto de duas maneiras: 1. reconhecendo, descritivamente, processos psíquicos que distam da própria atividade de representação, bem como são díspares do que ocorre quando a repressão, como mecanismo de defesa, pode estar em jogo; 2. apresentando uma teorização sobre os processos psíquicos inconscientes, tanto no que se refere ao inconsciente reprimido quanto ao inconsciente primário, considerando apenas os sentidos descritivos e dinâmicos destes termos, e não seu sentido “sistêmico” ou metapsicológico, abandonando, pois, a metapsicologia. 9 Para uma análise da natureza e função da metapsicoloiga em Freud, ver Fulgencio (2003, 2005, 2008b); para uma análise do abandono da teorização metapsicológica em Winnicott, ver tb. Fulgencio (2006, 2007, 2008a). 33 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Nenhuma das referências de Winnicott ao inconsciente se refere dizem respeito a instâncias psíquicas, a figurações de partes de um aparelho. Não são ficções teóricas como as que encontramos em Freud para caracterizar o parelho psíquico e seus sistemas. Tanto a noção de inconsciente reprimido como a de um inconsciente primário e mesmo, no caso da patologia, um inconsciente nãoacontecido, são conceitos, para Winnicott, que não se referem a especulações, mas a modos de funcionamento pessoais reconhecíveis objetivamente na experiência existencial. A noção de um inconsciente sistêmico, tal como Freud propusera, não tem, para Winnicott, nenhuma importância, ele simplesmente não a considera. Trata-se sempre, para ele, de um inconsciente dinâmico, referido a conteúdos e vivências da história pessoal e relacional de um ser humano, seja nos casos em que há representações reprimidas seja nos casos em que este inconsciente é composto de elementos não propriamente representáveis, mas que compõem as bases tanto da saúde quanto de uma existência patológica. Trata-se, pois, de abandonar o inconsciente metapsicológico de Freud a favor de concepções mais factuais para a teorização e formulação teórica do que é o inconsciente ou os processos inconscientes. Neste sentido há, aqui, uma ruptura com Freud e com todas as propostas posteriores, pós-Freudianas, que reiteram ou reformulam a concepção metapsicológica do inconsciente. Para Winnicott, nem o inconsciente da primeira tópica, nem o Id da segunda10, são instâncias psíquicas. Por um lado, ele parece estar aproximando esta sua noção de um inconsciente primário com aquilo que Freud teria considerado (descritiva e dinamicamente) como um inconsciente que jamais poderia tornar-se consciente: “Nas fases iniciais do desenvolvimento do ser humano, a comunicação silenciosa se relaciona com o aspecto subjetivo dos objetos. Isso se liga, penso eu, ao conceito de realidade psíquica de Freud e do inconsciente que não pode nunca se tornar consciente” (Winnicott, 1965j [1963], p. 168). Mas por outro, este inconsciente primário é claramente anterior a qualquer tipo de recalque, um inconsciente que não pode ter conteúdos mentais, um inconsciente não-representacional que não é propriamente composto pelo representante das pulsões.11 Talvez seja a isto que Winnicott se refere quando afirma: “Como já disse, em um estágio mais precoce estar vivo é a comunicação inicial do lactente com a figura materna, e é tão inconsciente quanto possa ser” (Winnicott, 1965j [1963], p. 174). 10 A análise da redescrição feita por Winnicott dos termos Id, Ego e super-ego é tema de outro artigo que estou preparando. 11 Em Winnicott as pressões instintuais, no início, não são propriamente dizendo representadas, mas elaboradas imaginativamente, recebendo um sentido, um sentido que, no início, depende do ambiente para existir. É a sustentação ambiental e o amadurecimento (com a conquista e constituição da possibilidade de realizar processos mentais) que tornaram possível uma representação das pressões instintuais em termos de conteúdos mentais. Cf. Winnicott (1988, p. 40), e o artigo, com uma análise mais detalhada da elaboração imaginativa em Winnicott em Loparic(2000). 34 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Este tipo de análise me parece tanto confirmar a tese de que Winnicott redescreveu a noção de inconsciente quanto explicitar a necessidade conceitual de detalhar com mais precisão que tipo de inconsciente é este, como ele está presente e associado ao inconsciente reprimido e, mais importante, como ele é considerado e operacionalizado no método de tratamento psicanalítico. Referências Dias, E. O. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago Editora. Freud, S. (1900a). L'intrepretation des rêves. In OCF.P (Vol. 4 ). Freud, S. (1912g). 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In Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994 [1955], W19. Winnicott, D. W. (1989vl). Psiconeurose na infância. In Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994 [1961], W19. Winnicott, D. W. (1989xf). Primórdios de uma formulação de uma apreciação e crítica do enunciado kleiniano da inveja. In Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994 [1962], W19. 36 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA PESQUISA PSICOLÓGICA E FENOMENOLOGIA Mauro Amatuzzi PUC-Campinas Resumo Esse texto propõe um percurso reflexivo para clarear os conceitos de pesquisa qualitativa e pesquisa fenomenológica em relação à psicologia. Mostra inicialmente como a pesquisa qualitativa em psicologia nasce do esforço de dizer o humano que permaneceria não dito numa pesquisa que se desenvolvesse exclusivamente como ciência natural. Mas esse esforço pode tomar duas direções. Uma, que ocorre numa relação de exterioridade entre sujeito e objeto, ainda como nas ciências naturais, e outra, que é a propriamente fenomenológica, que ocorre na relação de implicação entre sujeito e objeto. O texto procura caracterizar essa diferença e tirar as conclusões para uma psicologia de inspiração fenomenológica. Palavras-chave: pesquisa fenomenológica, psicologia, fenomenologia. Psychological research and Phenomenology. Abstract This paper proposes a reflective way to lighten the concepts of qualitative research and phenomenological research in its relationship to psychology. The text shows initially how a qualitative research in psychology raises from the aim of saying what is the very human, which would remain unsaid in exclusively natural science search. But that effort may take two directions. One, which occurs in a relationship of externality between subject and object, even as the natural science, and another, the proper phenomenological, which occurs in a enveloping relationship between subject and object. It attempts to clarify the gap between these two directions and, finally, to draw conclusions for a inspirational phenomenological psychology. Key words: phenomenological search, Psychology, Phenomenology. O avanço que as ciências da natureza tiveram com o uso estendido dos métodos matemáticos foi enorme e trouxe para o campo científico uma segurança que não dependia de opiniões ou de elaborações teóricas. Com toda certeza isso esteve na origem da alforria das ciências em relação à filosofia, sendo que esta, por sua vez, passou a ser vista com extrema desconfiança pelos pesquisadores. Ciência passou a ser sinônimo de medida: há poucos anos eu ouvi essa frase numa reunião da Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Psicologia (ANPEPP). E ela significa que as ciências humanas devem se contentar em ser apenas uma parte das ciências naturais, sem nenhuma especificidade quanto ao método. Mas alguns objetaram que por esse caminho perdemos o que há de propriamente humano. Entendo que uma das importantes contribuições de Husserl foi justamente a de recuperar essa humanidade, o que somente um olhar que transcendesse a medida numérica poderia fazer (Husserl, 2004 e 2008). 37 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA No campo da psicologia o esforço de dizer o humano, delimitando o que depois poderá até ser objeto de medidas complexas (se ainda for necessário), constitui algo que se aproxima do projeto de Husserl de uma psicologia fenomenológica (Husserl, 1951), e isso não deixa de ter relações com o que hoje chamamos de pesquisa qualitativa. Esta se desdobra, com efeito, em duas direções: dizer o que de antemão sabemos, ou seja, dizer o que está presente em nossa experiência pré-reflexiva, e, em outra direção, dizer o que podemos ver em observações sistemáticas. A primeira dessas direções recupera o mundo vivido (sem o qual nossas afirmações científicas cairiam no vazio), e a segunda, procura exercer um método rigoroso (mas não necessariamente matemático) em nossos contatos com os fenômenos situados que queremos estudar. Quero comentar um pouco mais essa diferença. Na primeira dessas duas direções a ênfase está no dizer. Algo já está presente, mas não está dito. O fato de dizer isso não é apenas uma necessidade de comunicação social, como se a fala tivesse apenas essa função. Na verdade dizemos para tornar isso, que já está presente, disponível. Disponível para nós mesmos. Dizemos para nos apropriamos do que sentimos. Mas isso significa que o ato de dizer acrescenta algo (Amatuzzi, 1989), e algo essencial, em termos de vida ou de consciência: o estar disponível. Quem tem experiência clínica sabe que muitas vezes o esforço principal do terapeuta consiste em ajudar o paciente (ou o cliente, como preferia Rogers) a dizer, e a dizer significativamente, de modo que ele possa então se dar conta e transformar o fluxo dos sentidos e, portanto, de seus atos. É por falta de dizer que congelamos aquele fluxo (e ficamos estagnados no não dito). Em psicologia comunitária constatamos a toda hora a importância do simples compartilhar experiências. Nesses casos o psicólogo tem simplesmente a função de catalisador do grupo: alguém na presença de quem o dizer pode acontecer e produzir seus frutos. Nossa sociedade padece da carência desses espaços sociais do dizer. E por isso toda sua riqueza experiencial fica enterrada. O que é então que o dizer acrescenta? Acrescenta algo no plano do fazer sentido e no plano da mobilização. Por isso, tudo fica diferente depois do dizer. É claro que o dizer pressupõe o escutar. Não chego a dizer plenamente algo, por mais que tenha dito as palavras certas, se não for plenamente escutado. É como se as coisas não saíssem de mim, apesar de eu as ter falado: é preciso que sejam recebidas por alguém. É por isso que o simples escutar com atenção, e de modo que o falante se sinta escutado, é muitas vezes o que basta terapeuticamente. Mas estou dizendo isso para mostrar a articulação que existe entre o apropriar-se dos sentidos vividos (tornando-os disponíveis), que é proporcionado pelo dizer, e a comunidade. Em outras palavras: o dizer solitário, como quem escreve em seu diário íntimo, por exemplo, só tem força na medida em que o sujeito falante (ou o sujeito que escreve) está ainda sob o influxo de uma vida social expressiva. Se todo dizer da pessoa fosse solitário, ele perderia sua força transformadora e deixaria de fazer um sentido mobilizador. O viver solitário é importante, mas ele se alimenta do viver comunitário. Isso equivale a dizer que meus sentidos mais pessoais nunca são somente meus. De alguma forma eles acompanham meu 38 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA viver social, seja porque, por falta de expressão, eles fiquem enterrados, seja porque, pela expressão adequada, eles fiquem compartilhados. Ora, acontece que o esforço de dizer o que já está presente no mundo vivido é o que constitui a meu ver o caminho fenomenológico da pesquisa. E isso é importante no campo da psicologia também. Aqui se configura um primeiro sentido de psicologia fenomenológica: trata-se de buscar as falas que são capazes de dizer plenamente para o momento a experiência vivida; e de buscálas quer seja na experiência comum da humanidade tal como qualquer um pode fazer, mas por uma reflexão transcendental, quer seja em experiências concretas situadas no espaço e no tempo, experiências de outras pessoas que, no entanto, posso compreender naquilo que elas têm de humanidade. Não se trata de buscar falas já prontas, mas, no silêncio do puro vivido, a expressão nova (Merleau-Ponty, 1967; Amatuzzi, 2008). Quando busco na experiência comum estarei colocando as bases sobre as quais poderei construir uma Psicologia que sabe do que está afirmando as coisas que afirma (MerleauPonty, 1973). É a fenomenologia estabelecendo os fundamentos de uma Psicologia consciente. Quando busco em determinadas experiências situadas (Bicudo & Espósito, 1994) (situadas no espaço e no tempo, e, portanto, experiências singulares de determinadas pessoas ou de grupos de pessoas), estarei construindo uma fenomenologia (“eidética”) para setores específicos da experiência humana. É assim que nasce, por exemplo, uma psicopatologia fenomenológica. A psicologia fenomenológica é, em suma, um esforço de dizer a experiência vivida naqueles temas ou assuntos que dizem respeito à psicologia ou ao psíquico. Antes de nos voltarmos para a segunda direção para a qual se desdobra a pesquisa qualitativa, é importante lembrar que pesquisa qualitativa não é a mesma coisa que análise qualitativa de dados. O contexto dessa última é ainda uma pesquisa quantitativa (que transcorre no pressuposto de que ciência é igual a medida) e por alguma deficiência nas medidas, recorre-se ao “qualitativo”, quase como uma espécie de mal menor. A pesquisa qualitativa tem um projeto diferente desde seu começo. A pesquisa qualitativa não visa examinar a extensão de um fenômeno, mas sua natureza; não visa verificar hipóteses previamente formuladas, mas construir uma compreensão e, portanto, uma teoria. Constitui-se como um esforço sistemático de descrever as qualidades características de alguma coisa ou acontecimento considerado em sua realidade objetiva, e articular essas qualidades num todo coerente e consistente, que faça sentido. Duas características, portanto. Descrever qualidades (e não medir quantidades), e fazer isso a partir de uma relação de exterioridade entre sujeito e objeto (como se essas qualidades estivessem lá diante de mim, sendo eu um observador neutro que nada tem a ver com elas). Observo. Observo e descrevo. Isso é assim e assim. E faço isso para compreender objetivamente. Não me relaciono com aquilo que observo, mesmo que às vezes, mas como um recurso meramente estratégico, tenha que fazer uma observação participante, como quem está envolvido, mas na realidade sem estar. 39 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Esse tipo de pesquisa se aproxima da que anteriormente consideramos, e que corresponde à pesquisa fenomenológica, mas, por outro aspecto, dela se distancia radicalmente. Quero comentar isso também numa tentativa de clarear conceitos. A pesquisa qualitativa, enquanto cumpre essas duas características descritas aqui acima, aproxima-se da pesquisa fenomenológica em psicologia na medida em que descreve para compreender. Mas distancia-se dela na medida em que essa descrição se dá numa relação de exterioridade entre sujeito e objeto. Que a pesquisa fenomenológica seja qualitativa, porque descritiva, isso é fácil de entender. Mais difícil é entender a diferença entre uma relação de exterioridade entre sujeito e objeto (que é própria da ciência natural) e a relação de implicação entre sujeito e objeto (que é própria da pesquisa fenomenológica). Na relação de exterioridade considero que o mundo está lá diante de mim, independentemente de mim e eu o posso olhar e analisar objetivamente, sem que implique em qualquer relação comigo mesmo. Ocorre aqui uma abstração dos significados que carrego comigo e que também constituem meu olhar sobre o objeto, uma desconsideração das intenções que me guiam no meu viver e na minha investigação. Nesta maneira de olhar, o que se passa com o objeto não tem nada a ver com o que se passa comigo. Se eu tenho algum problema, esse problema não tem nenhuma relação com esse meu ato de investigar o objeto. Nessa postura não faz nenhum sentido pensar que o problema que investigo no objeto, lá fora, tem a ver com meu próprio problema, aqui dentro. Pois bem, a postura fenomenológica é totalmente diferente disso. Nela, o sujeito está implicado em seu estudo do objeto; os problemas do mundo, ou do outro (no caso da psicologia clínica, por exemplo), são também problemas daquele que está pesquisando. Não que isso seja assim por uma identificação empírica (por uma semelhança casual de problemas), mas porque a outra pessoa e o pesquisador partilham da mesma condição existencial. Por mais diferentes que sejam os problemas ou as situações problemáticas, num certo nível de profundidade eles são idênticos porque são questões humanas e isso inclui o pesquisador, como me inclui a mim e inclui a você. Como um psicótico vai resolver sua vida me interessa profundamente porque ele está vivenciando algo que é uma possibilidade real para mim mesmo e para qualquer ser humano. O problema dele diante da vida, é, no fundo, o mesmo problema meu diante da vida. Pode isso ser estendido para questões referentes ao mundo físico, por exemplo? Penso que sim. Eu sou parte de um mundo, e, portanto, cada aspecto do mundo me interessa. De que “eu” estou falando? Não de um eu entidade à parte, mas de um eu movimento, que se movimenta em conjunto com o mundo, como se fosse um só movimento complexo. Existe uma solidariedade de destino no universo, digamos assim. Ninguém é um problema à parte, ou nada é um problema à parte. Isso fica muito claro, por exemplo, no caso do dizer, como analisamos acima: não consigo me dizer sozinho, na solidão absoluta e continuada. Só consigo me 40 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA dizer quando sou escutado. Existe uma interpenetração constante entre o que é próprio e singular, e o que é coletivo, social; e um âmbito não absorve ou elimina o outro. A postura fenomenológica é a que sabe isso, leva isso em conta nas análises que pretende. Concretamente podemos dizer que só entendemos uma indagação (e levamos adiante nossa investigação) quando ela nos toca, quando ela nos envolve. Minha compreensão de outra pessoa é a compreensão do ser interpelado por ela (a isso Buber chamava de “tomar conhecimento íntimo” Buber, 1982). E então será compreensão dela e de mim mesmo a um só tempo. Minha compreensão do mundo é a compreensão do ser questionado pelo mundo e, portanto, será uma compreensão de mim mesmo também. Instalar-se nesse ponto de vista é ter dado um enorme salto: da atitude natural à atitude fenomenológica. São duas maneiras completamente diferentes de olhar o mundo. A postura fenomenológica consiste em considerar que na existência humana estão incluídos os significados. A postura de exterioridade, que é a da ciência natural convencional clássica, sob a luz da postura fenomenológica, se mostra como possível, certamente, mas totalmente artificial e limitada. A tentativa que estou empreendendo aqui neste momento é a de fazer uma introdução à radical implicação que existe entre sujeito e objeto na perspectiva da pesquisa fenomenológica. Aqui, olhar o objeto de estudo é de alguma forma um olhar-se a si mesmo. Isso se traduz, por exemplo, na diferença que existe entre questionário e entrevista reflexiva. A aplicação de um questionário pode ser mecânica e impessoal (e, aliás, quanto mais mecânica e impessoal for, melhor será); enquanto que a entrevista reflexiva é uma conversação participativa que evolui na direção de se descobrir novas zonas de sentido. Traduz-se também na diferença que existe entre relatório técnico, de um lado, e narrativa, ou texto sentido (segundo Cavalcante, 2001 e 2008), de outro. Um relatório nada mais é do que uma lista objetiva e impessoal de eventos passados ou de informações coletadas, enquanto que o texto sentido (ou narrativa) corresponde à uma construção pessoal de significados em relação aos acontecimentos, no ato de os relatar, o que também ocorre no contexto de uma comunicação situada no tempo e no espaço. Traduz-se também na radical diferença entre uma análise que separa e isola variáveis, e uma análise que mantém as partes no todo de onde lhes vêm o sentido, sendo que esse todo inclui a própria relação do pesquisador com ele. Traduz-se ainda na maneira de escolher o problema da pesquisa: ele não é buscado nos vazios do saber acadêmico (tais como negativamente constam dos boletins científicos), mas nas necessidades de saber que são sentidas pelo pesquisador enquanto membro de uma comunidade com a qual ele se identifica em seu caminhar histórico. O resultado de uma pesquisa fenomenológica não é apenas uma informação nova tornada disponível, mas é essencialmente uma mobilização para a ação. Nesse ponto a linguagem husserliana se torna passível de mal-entendidos. Quando Husserl fala de redução, trata-se de redução ao fenômeno tal como ele se dá a nós, e não de algum tipo de “diminuição” da totalidade do fenômeno. Quando ele fala da necessidade de uma reflexão sobre o próprio ato intencional para se sair da atitude natural objetificante (atitude epistemológica da ciência natural) e se 41 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA chegar à atitude fenomenológica, ele está falando da implicação do sujeito que conhece em seu próprio ato de conhecer. Foi essa implicação que o levou a conceituar o mundo da vida (ou, para nós psicólogos, o mundo da experiência vivida), nosso estar-no-mundo básico. Por isso é que um esclarecimento, que parta de um questionamento significativo e que se enraíze na experiência vivida, só pode ser transformador das pessoas envolvidas. Estaria eu falando de um subjetivismo desenfreado onde não haveria mais objetividade nenhuma? Não é bem assim. Existe uma objetividade fenomenológica. Não posso dizer qualquer coisa em uma pesquisa desse tipo. Assim como na visão da ciência natural a objetividade é empírica (é válido o que corresponde aos fatos verificados empiricamente), na visão fenomenológica existe a objetividade dos significados: serão válidos os que forem construídos a partir da experiência vivida mobilizada (e não estagnada). Na prática, cabe ao pesquisador construir um consenso em torno do fenômeno, baseando-se no diálogo focado na experiência vivida de todos os envolvidos (e ele pode fazer isso mesmo sem conversar com absolutamente todos, mas conversando com alguns de modo a evocar o sentir do grupo). - Em suma, a implicação suposta pela fenomenologia não elimina o mundo, mas mostra como ele está em relação íntima com o sujeito; e que este é o único caminho para chegarmos a uma verdade mais completa. Retomemos nosso percurso. Procuramos inicialmente discernir um âmbito de pesquisa paralelo àquele do qual os cientistas se aproximam com métodos matemáticos. A linguagem aí empregada parece melhor dizer o humano do que a linguagem da medida e dos números. Nesse âmbito falamos em geral da pesquisa qualitativa, para logo a desdobrarmos numa pesquisa qualitativa que ainda pressupõe a epistemologia das ciências naturais e numa outra, a fenomenológica, que pressupõe um outro tipo de olhar. Finalmente esse outro tipo de olhar foi caracterizado pela relação nele vivida: a relação de implicação. A conseqüência que tiramos disso foi que uma pesquisa fenomenológica relevante será necessariamente mobilizadora das pessoas envolvidas, pois reconhece sua essencial passagem pela subjetividade. Referências Amatuzzi, M. (2008). Por uma psicologia humana. 2ª.ed. Campinas (SP): Alínea. Amatuzzi, M. (1989). O resgate da fala autêntica: filosofia da psicoterapia e da educação. Campinas (SP): Papirus. Bicudo, M.A.V. & Espósito, V.H.C. (1994). Pesquisa qualitativa em educação. Piracicaba: Unimep. Buber, M. (1982). Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva. Cavalcante, F.S. Jr. & Sousa, A.F. de (orgs) funcionamento pleno. Campinas (SP): Alínea. (2008). Humanismo de Cavalcante, F.S. Jr. (2001). Por uma escola do sujeito. Fortaleza: edições Demócrito Rocha. 42 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Husserl, E. (2008). A crise da humanidade européia e a filosofia. Introd. e trad. Urbano Zilles. 3ª.ed. Porto Alegre: EDIPUCRS. Husserl, E. (2004). La crise des sciences européennes et la phénomenologie transcendentale. Trad. e Prefácio Gerard Granel. Paris: Gallimard. Husserl, E. (1951). Phenomenology. In Encyclopaedia Britannica: a new survey of universal (Vol.17, pp. 699-702). Chicago: Encyclopedia Britannica. Merleau-Ponty, M. (1973). Ciências do homem e fenomenologia. São Paulo: Saraiva. Merleau-Ponty, M. (1967). Phénomenologie de la perception. Paris: Gallimard. 43 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Comment penser et transmettre la clinique de la schizophrénie en psychologie clinique: l'intérêt des récits intertransférentiels Rosa Caron Université de Lille 3 Depuis quelques années déjà, s'amorce en France un véritable changement dans la prise en charge des patients présentant de graves troubles psychiques: les hôpitaux psychiatriques se sont progressivement vidés de tous leurs malades, après une politique de désenfermement, conséquence de la création des secteurs de psychiatrie vers les années 1970, né à contre courant d’une politique asilaire qui prônait l’exclusion de ceux qui se trouvaient en dehors des normes psychiques. La politique de santé mentale qui en a résulté a été en un temps, mais en un temps seulement, le moteur d’un mouvement nouveau qui oeuvrait pour la liberté, pour la différence et pour une écoute de la folie au sein des cités. Véritable lieu de compétences plurielles, lieu d’échanges et de croisements de points de vue, l’équipe pluridisciplinaire s'installant au coeur de la cité a trouvé sa véritable légitimité à partir d’une réflexion autour d’une prise en charge adaptée à chaque malade, à chaque fois réinterrogée et réajustée de façon plus spécifique et plus singulière. Reflet de cette politique, la psychiatrie a pris un autre visage, plus humain, plus proche de l'unité psychique, et plus attentive aux aléas de la psyché. Les psychiatres de secteur, sortant des murs asilaires qui les enfermaient aussi ont ainsi exercé leur art en articulant une lecture sémiologique des troubles – permettant de proposer un traitement chimiothérapique parfois incontournable- à une lecture plus psychodynamique des situations psychopathologiques, lecture qui permet de poser la question du sens, de la fonction des troubles conçus dans l’histoire individuelle du sujet aux prises avec son contexte familial et social. Cette double lecture a impulsé au niveau des équipes une réflexion clinique, voie vers laquelle les psychologues cliniciens, formés en vue d'une activité auprès de la maladie mentale, se sont tout naturellement inscrits. Progressivement cette équipe a quitté sa domiciliation , elle a basculé vers les hôpitaux généraux; cette domiciliation n'est pas qu'administrative puisque l'hôpital général, fief de la médecine, lieu d'accueil pour la psychiatrie et la santé mentale est devenue également un lieu de diktat, de règles et d'organisation de tous les soins. Corollaire de ces changements qui ne sont pas qu'administratifs, la mission du secteur psychiatrique, est devenue sous le couvert de l'efficacité et de l'aseptie de tous les soins, plus ambitieuse : étendre son champ d’activité du trouble mental aux douleurs somatiques en passant par les difficultés liés aux problèmes sociaux, sans forcément les articuler mais en écoutant le symptôme pris au pied de la lettre et détaché des liens très enchevêtrés qu'il entretient avec le contexte socio-culturel et cette autre scène qui est celle de l'inconscient. les demandes épousent le contexte dans lequel elles s'adressent: elles deviennent de plus en 44 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA plus variées, de plus en plus morcelées, de plus en plus croissantes et de plus en plus urgentes. La nécessité de ne plus considérer le trouble dans sa seule dimension psychique mais de le croiser avec ses composantes biologiques et sociales, oblige à développer le travail en réseau à partir des urgences, à inventer de nouvelles modalités de suivis et à créer de nouvelles structures, pour répondre à la diversité des pathologies rencontrées. Les hôpitaux de jour, pour ne citer qu’un exemple, véritables relais pour soulager les familles ont d’abord balbutié pour se multiplier très rapidement, appelant à leur tour la création de structures qui viendraient en amont ou en aval des prises en charge qu’ils proposent et qui s'avèrent inefficaces. Si ces objectifs nous paraissent louables en théorie, ils souffrent toutefois d’une mise en application qui vient contredire l’esprit même de ces injonctions. En effet, alors que le DSM répertorie les troubles pour faire éclater l'unité psychique, la cité met en acte ce morcellement en multipliant les lieux, devenus lieux d'enfermement de ce que le DSM a cloisonné et rigidifié: de l'hôpital psychiatrique vers les urgences puis vers les cliniques qui n'ont de psychothérapiques que le nom, du domicile vers l'institution gériatrique voire vers les prisons, les lieux d'enfermement, conçus non pour le malade mais en fonction des troubles, des symptômes présentés, ou en fonction de ce que la société ne veut plus avoir à supporter, se sont progressivement déplacés, disséminés ici ou là au sein des cités pour être mieux cachés. Face aux contraintes infligés par ces objectifs, la politique de secteur est obligée de modifier son discours et certaines injonctions se trouvent au cœur d’une étrange paradoxalité que nous mettrons à la question : Quel est ce discours: 1. Il faut rompre avec l’institutionnalisation et assurer la continuité des soins: Le phénomène de désinstitutionnalisation n’a pas opéré: si les hôpitaux psychiatriques ne résonnent plus de la parole du fou, son cri, devenu étouffé, se fait l'écho d'une société qui ne veut plus souffrir. L'hôpital psychiatrique a vidé de ses lieux la folie pour la disperser autrement. La politique du cloisonnement, du quadrillage par catégories d’âge ou par troubles pathologiques, est bel et bien marche. Le morcellement du sujet, identifié au DSM4 se trouve dramatiquement confirmé. Sous le couvert d'aider les plus vulnérables, de soigner les troubles les plus gênants, le pouvoir de l'homme sur l'homme, déjà souligné par Foucault en son temps, n'a jamais été aussi prégnant. Jamais en effet, les protocoles pour assujettir l'être humain en mal d'exister n'a été aussi accru; jamais les projets de créations d’institutions n’ont été plus nombreux, guidés par le souci de la normativité. Les lieux de rassemblement des personnes âgées en sont un triste exemple et qui devienne une métaphore contraignante de ce qui représente la mort et que personne ne veut plus affronter, La création de lieux de vie, de lieux d’hébergement, de structures alternatives font de plus toujours courir le risque de faire éclater la continuité des soins 2. autre discours: Il faut spécialiser les compétences pour individualiser les soins et favoriser une prise en charge globale, cette fameuse globalité dont Lacan n’a 45 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA cessé d’énoncer l’illusion. Dans cette perspective, la demande croissante de formations hautement spécialisées, assurées à un bon nombre de soignants des équipes pluridisciplinaire a modifié l’architecture même des équipes : l’écart entre les différents acteurs de la santé publique se réduit, créant des glissements de rôles et de compétences qui va à l’encontre d’une pluralité de points de vue et de leurs respects mutuels .Les équipes pluridisciplinaires deviennent de plus en plus des équipes dans lesquelles les places sont interchangeables. 3. Pour répondre aux injonctions ministérielles actuelles, il faut appliquer le programme de médicalisation des systèmes d’information (PMSI) pour donner une cartographie la plus complète possible des troubles et une identité psychopathologique objective à chaque patient, patient qui devient selon les lieux, un usager ou un client occultant ainsi la capacité subjective de souffrir mais le mettant en position de consommer: consommer du soin, consommer de la relation, consommer ce qu'il a de plus précieux à savoir sa propre liberté. Sous le couvert d’ une protocolisation des soins et d’une énumération des troubles, la parole du patient est simplifiée et la singularité est gommée, les seules voies d’écoute possibles étant dictées par les PMSI : à partir du discours de celui qui demande de l’aide et grâce à une écriture mathématique, on assiste à une lecture codifiée et objectivée des symptômes et des troubles psychopathologiques, à un quadrillage des facteurs situationnels, à la description d’un monde qui devient factuel. Les tenants de la preuve et de l’objectivité peuvent se réjouir : le langage, clivé, en perd sa valeur de révélation pour devenir pur instrument de mesure diagnostique et nourrir une illusion d’efficacité 4. Le Dispositif ministériel invite à répondre à toute demande de soins et une disponibilité 24/sur 24 dans chaque secteur, est souhaitée. Dans cette injonction et pour « éviter l’attente », les consultations de première intention, autrement appelées les entretiens d’évaluation de la demande, se développent de plus en plus : un membre de l’équipe, recueille un discours et le véhicule au sein de réunion de synthèse pour en assurer en « toute confidentialité » le meilleur usage. Prise au pied de la lettre dans toute son immédiateté, détournée de sa trajectoire et de son adresse, cette parole est parfois réduite à porter une demande traduite en terme de « demande de soulagement immédiat », appelant une démarche médicale, diagnostique et évaluative. Le besoin de nosographie inscrit toutes les demandes dans une tradition purement psychiatrique que l'on croyait avoir perdu avec l'arrivée du DSM 5. La prise en compte de la souffrance psychologique doit être favorisée et le nouveau projet de santé mentale prévoit un déploiement des psychologues dans tous les secteurs d’activité pour participer à une politique de prévention. On leur demande de pré-venir et d'intervenir au risque d'occulter l'écoute de la souffrance et l'effet de l'après coup. L'arrivée des psychologues, dans tous les secteurs de la vie sociale et médicale posent également un certain nombre de questions. Sous le couvert de la prévention, sous le couvert de l’aseptie psychique, comment l’être humain, dépouillé de ses expressions émotionnelles, pourra-t-il exploiter ses propres capacités à éprouver les difficultés ? 46 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Dans ce contexte, les orientations qui sont prises risquent même d'être contreproductives et la question de la clinique se pose au-delà des questions qu'on ne cessent de répéter et qui pourrait être: Comment approcher la complexité du fonctionnement humain dans une telle politique de déshumanisation? Comment entendre la parole du fou pour comprendre son inscription dans le monde? Comment comprendre le rapport qu'il entretient, à partir de cette inscription, avec les autres? De façon plus générale, dans ce chaos où l'être humain devient un individu mis au centre de la scène pour mieux maintenir dans l'ombre sa part la plus inaccessible, Comment aider celui qui souffre à éprouver sa propre subjectivité ? Que devient notre engagement clinique auprès du sujet atteint de maladie psychique? Comment maintenir une éthique du sujet et la rencontre avec un sujet qui bien souvent ne sait pas de quoi il souffre? Comment maintenir l' ecoute de sa parole, non pour l'évaluer mais pour la révéler? La démarche de recherche en psychologie clinique rencontre les mêmes points de butée, la recherche en psychologie clinique se meurt car la psychologie fuit aujourd'hui l'identité des sciences humaines. En France, les critiques qui concernent la recherche en psychologie clinique font toujours l'objet des mêmes discours contre lesquels les arguments restent fébriles: sa non reproductivité; mais au delà de la non reproductivité, il s'agit davantage d'un manque de rigueur dans la méthode , ce qui rend la transmission difficile et le repérage des éléments cliniques très difficile. Et en dça de toutes ces questions, les questions les plus fondamentales pourraient être : où est la clinique, qu'est ce que la clinique? comment penser la clinique ? Et nous pouvons convoquer ici Lacan qui demandait dans l'ouverture de la section clinique, séminaiire qui s'intitule Ornicar? « qu'est ce que la clinique psychanalytique?, ce n'est pas compliqué; elle a une base. C'est ce qu'on dit dans une psychanalyse....la clinique c'est le réel en tant qu'il est impossible à supporter.... » La nécessité de constituer une véritable clinique psychanalytique et d'en exposer la spécificité nous paraît donc l'enjeu le plus important aujourd'hui. Nous pensons que, comme les travaux de Tania Vaisberg le montrent et comme ceux que nous déveleppons avec Daniel Beaune et Thamy Ayouch, le support de cette clinique et le repérage des éléments cliniques sont ceux qui fondent le dispositif des récits ransférentiels, méthode à partir de laquelle des réponses à ces questions peuvent être ébauchées . Malgré un contexte socio-culturel qui met à l'écart le discours de l'inconscient, malgré des injonctions qui visent la réduction aveugle du symptôme, l’engagement du psychologue clinicien, et du chercheur est également éthique: il est du côté du sujet. Cet enjeu fera sans doute le lit de notre capacité à résister, résister à la généralisation, résister à l’exclusion et à l’enfermement, résister à la mort du sujet. La méthode des récits transférentiels nous paraît un des moyens de résister, de résister à la généralisation, de résister à l'exclusion, de résister à l'enfermement du trouble, du symptôme pour tenter de saisir le sens qu'il préfigure et sa fonction dans l'économie psychique du sujet. 47 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Je prendrai une situation de récit intertransférentiel autour d'un patient schizophrène. La recherche est menée par une étudiante en doctorat qui s'interesse au vécu que peut avoir un patient atteint de schizophrénie, et à son rapport au monde. Elle a rencontré dans le cadre d'une recherche un homme de 51 ans. Elle a beaucoup travaillé sur l'alinéation schizophrénique comme forme de vie, ou plutôt comme « perte de contact vital avec la réalité »selon l'expression de Minkowski (1927). Jusqu’à présent, les écrits concernant des cas cliniques atteints de schizophrénie, tels que le cas Suzanne Urban (Binswanger, 1958), le cas du président Schreber (1911) décrit par Freud, le cas Aimée de Lacan(1939) font apparaitre des modes d’être-au-monde ou de causalité dans le délire schizophrénique que les auteurs ont appréhendés à partir de la parole de ces patiients qui dans le transfert, déployaient leur façon d'être en lien et d'être là. Ici, le malade, Pierre, ne présente aucun état délirant, cette nature paucisymptomatique nous rappelle d'ailleurs celui d’Anne, jeune hébéphrène, présentée par Blankenburg dans « la perte de l’évidence naturelle » (1971). Cet écrit est, depuis sa parution en langue française en 1991, devenu pratiquement introuvable. Cadre de sa démarche Un espace libre de parole de 45 minutes pendant 9 mois à raison d'une fois par mois a été proposé à cet homme que nous appellerons Pierre et qui se dit « schizophrène », hospitalisé à plusieurs reprises à l'hôpital psychiatrique depuis l'âge de 22 ans qui vit seul, dans un logement thérapeutique et actuellement suivi en CMP. Une consigne simple est posée: « pouvez vous nous parler de la façon dont vous vivez vos difficultés » Au préalable, le consentement écrit du patient est obtenu. Les entretiens sont entièrement enregistrés et retranscrit à mi-chemin de la recherche, c'est à dire au moment de l'étape d'élaboration des faits cliniques. La lecture de ces retranscriptions ne vient que dans l'après coup pour réorganiser les éléments cliniques et la compréhension de l'ananlyse qui en a été faite. L'espace proposé facilite chez Pierre la liberté d'organiser spontanément son mode d'expression relationnelle. Chaque entretien donne lieu à une séance où la jeune psychologue adresse à un tiers, en associant librement, le récit de ce patient. Les associations peuvent également être théoriques. La psychologue adresse donc ce qu'elle a saisi du discours de ce patient à un tiers qui a alors l'attitude questionnante qu'elle a elle-même eue avec le patient. C'est lors de ce récit, que le jeune chercheur fait appel, dans un mouvement réflexif, dans une sorte de boucle en retour qui donne sens, à ses premières perceptions. Ses capacités émotionnelles mais également le sens de l'observation lui permet d'être particulièrement sensible à ce qui se noue dans les séances. Le récit de la psychologue prend forme au fur et à mesure de l'élaboration qui en émane. Les séances ont pris ainsi sens dans un après coup, dans un différé temporel, à partir d'une boucle rétroactive dessiné par le récit de la psychologue-chercheur. Une fois ces séances élaborées, les entretiens sont retranscrits et lus au regard de cette élaboration. 48 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Les résultats: je reprendrai en grande partie l'article qui a été co-écrit comme résultat de cette démarche, autour du vécu de ce schizophrène, en insitant sur quelques points,et en reprenant le discours du patient. La parole qui émerge lors des entretiens, , se dépliant au fil de la pensée laisse apparaître un mode d'expression verbale qui porte en filigrane le niveau d'évolution affective. Chaque entretien se dessine dans une organisation particulière, témoin de la manière dont le patient habite l’espace et le temps. La façon dont il s'adresse au psychologue, dont la parole ce déploie pour se faire le support de la demande qui lui est faite montre la structure d'une pensée chaotique soumise aux aléas des processus primaires, mais n'en crée pas moins une véritable expérience subjective chez le psychologue-chercheur, qui par son écoute questionnante, s'est trouvé interpellé, dans une position nettement intersubjective. Ce qui est apparu très progressivement est la partition, une ancienne partition, rejouée mais pourtant réactualisée, pour la mettre en acte dans le lieu même de la parole et du transfert. Nous verrons que la capacité de Pierre à intellectualiser sa maladie va d'abord fasciner la jeune psychologue, qui sera ainsi, dans cette fascination mise à distance, neutralisée. La capacité de ce patient à « analyser » comme elle dira, cequ'il vit le situera même comme co-chercheur, dans une relation diadique tout à fait extraordinaire et prototypique de la relation fusionnelle du psychotique à sa mère .Recréant dans le transfert la relation à la mère, Pierre met en demeure la pschologue de l'aider à comprendre ce qui se rejoue dans chaque relation dans laquelle il se trouve prisonnier, condamné à mort et qui le contraint à répéter inlassablement la même mélodie. Brève présentation Pierre, âgé de 56 ans, vit en appartement indépendant depuis 2000. Sa première hospitalisation a lieu alors qu'il a 22 ans. Le débit de parole, dont elle perçoit d'emblée la particularité, dans l'identique de sa survenue, génère la perception d’une incohérence verbale qu'elle dit aussi ressentir avec acuité. L' Etre du patient, qui n'est pas un Etant, c'est à dire que ce qui fait le soubassement de ces interrogations ne l'ouvrent pas sur les autres, son rapport aux autres et au monde dont le langage se fait ici l'écriture sont d'emblée esquissés, appuyés par l'être -là du psychologue chercheur qui s'interrogera sur le sens de son Etre avec le patient dans l'après-coup. En effet, le récit qu'elle fait dans un premier temps se moule dans cette incohérence et la description qu'elle donne de ce patient est cahotique, parfois contradictoire. La particularité de la position de cette psychologue chercheur, est qu'elle s'interroge, se questionne sur les dires du patient mais également sur l'effet du dire de ce patient sur elle, introduisant un écart qui rend possible l'élaboration qui en suivra et qui modifie la restitution même de son récit. Elle se dit d'abord frappée par les associations de ce patient, dont elle dira qu'il élabore beaucoup, qu'il a une conscience de ses troubles, qu'il en parle avec une 49 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA capacité introspective remarquable. Mais cette capacité à associer lui apparaît ensuite comme prototypique du saut perpétuel que fait la pensée de ce patient, capacité à donner l'impression d'associer mais ces laisons psychiques ne sont pas élaborerassocier qui n'a pas d'effet dans un premier temps sur lui dans le dire qu'il produit. Son discours qui apparaît diffus, éparpillé, se propageant dans de multiples directions de sens, est émietté, éparpillé, riche quoique décousu et témoigne des perturbations des flux de sa pensée rappelant la notion de piétinement. La jeune psychologue perçoit la redondance de certains pans de cette histoire, à la fois dans leur contenu mais également dans leur forme, d'une séance à l'autre, comme répétés, dupliqués à l'identique, véritables stéréotypies témoignent d'un défaut d'inscription, d'un défaut d'impression dans la psyché d'éléments qui ne tiennent pas. Tels ces « déments » à la mémoire ajourée, qui se perdent en radotage lorsque la temporalité achoppe. Leurs mouvements, leur pensée, leurs comportements s'inscrivent alors dans une répétition sans création apparente, à l'identique. Premier contact Lors de la première rencontre, Pierre est arrivé dans le couloir, avec une démarche maladroite, intimidée, tête baissée, qu'il tournait en quarts de tour de la gauche vers la droite avec l’expression d’un enfant qui appréhende un premier rendez- vous inconnu, avec une gaucherie empruntée et qui arrive dans un lieu qu'il doit seulement découvrir et explorer alors que Pierre est déjà venu à de multiples eprises au CMP. La question du rapport au monde se pose dès l’instant de la rencontre. Pierre s’inscrit corporellement dans toute une attitude, un comportement et interpelle la jeune psychologue par sa façon si singulière de se mouvoir, de se tenir dans l'espace ambiant. Au moment de rentrer dans la salle d’entretien, composée d’un canapé et d’un fauteuil en cuir noir disposés face à face, Pierre fait timidement signe de la main et s’assoit après y avoir été invité. Physiquement, il occupe une infime partie de la pièce, s’assoit dans un coin du canapé, les jambes croisées. Il regarde ailleurs et semble attendre impatiemment le droit à la parole tout en laissant croire que c’est à l’autre de mener l’entretien. Lorsque la parole lui est accordée, Pierre s’exprime d’emblée sur un mode très fluide. Pierre semble très calme mais tout son corps donne à la psychologue l'impression d'une lutte qui n'a de cesse de l'envahir tout entier. Elle perçoit l'angoisse sous jacente qui se donne à voir dans les attitudes empruntées et adaptées, contrôlées qui l'habitent tout entier mais dans une extraordinaire paradoxalité comme si Pierre était observateur-acteur d'un monde qu'il appréhende en toute extériorité. Etrange contact que la doctorante décrit avec ce patient qui paraît inhibé, vulnérable et qui semble attendre patiemment d’être invité à parler. Les premiers mots toutefois donne le ton, envahissent l'espace, envahissent l'autre, touche l'autre sans paraître pourtant le toucher lui émotionnellement. Et si la densité du propos est perçu par la psychologue-chercheur c'est davantage dans leur élaboration intellectuelle, voire abstraite que dans leur capacité à rendre compte d'un vécu. Il faudra d'ailleurs que ce vécu soit retranscrit, élaboré pour qu'il en devienne alors partagé. Elle relève d'ailleurs la grande capacité de Pierre à parler 50 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA de lui, à évoquer ses angoisses, ses préoccupations, à manier avec une aisance remarquable, ce qu'elle appelle dans un premier temps l'introspection réflexive. Pourtant, cette introspection paradoxalement ne semble pas provenir de l'intérieur, d'éprouvés qui seraient ainsi liés par le langage, mais de l'extérieur. Parlant de lui comme il pourrait parler de quelqu’un qu’il a longuement observé, Pierre fera état avec un grand détachement des affects qui l’ont habité à certains moments de sa vie. Ce détachement donne à Pierre l'impression d'une grande capacité d'analyse dans l'intellectualisation qui en découle. Le discours de Pierre quelque peu étrange par endroits, évoque de façon plus générale la façon dont les mots sont utilisés par le schizophrène non pas dans le sens du langage le plus commun mais dans un usage strictement personnel où le sens du mot se fixe, dans la synchronie pour un temps où la langue évolue peu (Michaud, 2004). « Vous savez, parfois, j’entends les mots, mais y a plus aucune consistance, je n’arrive pas au signifiant des mots. C’est comme si on me parlait dans une langue étrangère» dira-t-il lors d'une séance. Pierre emmène peu à peu la psychologue sur le chemin de son histoire, celle qui le met en conflit avec le monde, sans que pour autant ce conflit ne soit élaboré pour être ensuite dépassé. Il relate de façon répétés les efforts faits pour s'adapter aux autres qui sont toujours à refaire en fonction de ce qui se présente à lui et qui paraissent donc être des colmatages qui ne tiennent pas. Ton monocorde parfois, son discours se déploie avec une affectivité qui semble dépourvue de tonalité. La psychologue se dit fascinée par ce qu'elle ressent comme une « perte de l'évidence » Elle décrit comment chaque acte, chaque situation sont posés comme tourments pour sa pensée, et sont alors attrapés, découpés, analysés, dans un véritable processus qui pourrait être de l'ordre de la création, de l'ordre du maintien au monde, création qui est pourtant toujours à refaire. Si lors des premières rencontres, Pierre donne l'impression d'une conscience aïgue du monde qui l'environne, très vite la doctorante comprend, grâce au dispositif mis en place qu'il s'agit d'une appréhension partielle, clivée, de la réalité, appréhension qui se fige jusqu'à la paralyser. Il en sera ainsi de sa relation aux autres, de ses émotions, des souvenirs, du rapport à son propre récit. Contenu, comme neutralisé en permanence, Pierre, dans cette fascination qu'il exercera sur elle, la captivant, la tient également à distance, tout en la neutralisant. Nous sommes ici au coeur même du processus transférentiel qui anime presque tous les entretiens entre ce patient et cette jeune psychologue. Voyons quelques exemples de ce qui a constitué ce qui sera élaboré par la psychologue-chercheur. , La relation à la mère Dès les premiers entretiens, Pierre évoque le lien la mère, première figure qui marque la perception qu'il a du regard d'autrui. 51 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA « J’ai eu une enfance formidable mais ils (parents) étaient trop bons avec moi, je ne l’ai pas mérité. Mon enfance a été des plus heureuses, on a tout fait pour me préserver, je n’ai vécu aucun deuil, j’ai baigné dans l’insouciance » Il décrit une mère « trop bonne » qui vient buter sur sa capacité à frustrer l'enfant. La doctorante, mise dans cette position de « toute bonne » associe alors sur ce que Winnicott a décrit et renvoie le vécu qu'il a de sa mère, dessaisie de la préoccupation maternelle si bien décrite par Winnicott, à son impossibilité à la vivre comme pouvant entendre puis s'adapter aux besoins qu'il exprime à son endroit. Mère idéale ne pouvant accepter de présenter une constance affective suffisante pour maintenir une juste adéquation entre elle et son bébé, jamais facile à atteindre, et jamais donnée d'emblée, la mère est vécue comme incapable d'ouvrir un écart, celui de la différenciation, passage obligé vers une possible séparation, une possible altérité. La doctorante traduit alors le défaut de situations de deuil comme l'impossible éprouvé de deuil chez ce patient, le deuil, du latin dolore, douleur, expérience même de la séparation, qui n'a pas été effective et opérante. Le défaut d'inscription dans la psyché du processus même liée à la séparation, qui ouvre la voie à la temporalité et à l'individuation inaugure l'altération de la relation objectale. Maintenu comme objet de satisfaction de la mère, Pierre est réduit au statut d'infans, dans lequel il croit être tout pour la mère. « A mes 12 ans, c’est encore ma mère qui me lavait. Je ne me rendais pas compte que ce n’était pas normal. Ma mère était très possessive, elle m’a toujours considéré comme un petit enfant » Le maintien de la relation symbiotique entre la mère et l'enfant et l'impossibilité de s'en dégager et d'accéder au sentiment d'individuation, ne courcircuitent -ils pas toute séparation? ne seraient-il pas responsables de la psychose, comme le soulignait Malher? (Malher, 1968) Et c'est ce statut, présnetifié dans le discours de la mère, qui lui donne illusoirement le pouvoir sur sa mère, le pouvoir de la faire exister, le pouvoir de la maintenir en vie. « Avant je partais à l’école en vélo et je me souviens d’une fois où ma mère m’a dit « fais attention à la route, parce que tu sais bien que je n’ai que toi ». Y avait que moi qui existais pour elle » Comme la doctorante, chercheur, dans cette situation, obligée de s'en remettre à Pierre pour mener sa recherche, la Mère est décrite par Pierre comme incapable de vivre sans lui, toute tentative d'éloignement, toute expérience d'autonomie est marquée du sceau de l'impossible et présentée sous l'égide d'une menace de mort qui plane sur l'objet. Le prix à payer pour maintenir ce pouvoir de toute puissance sur la mère, le pouvoir de la faire vivre, pour continuer à satisfaire le moi-objet, devenu objet indispensable, devenu un moi-roi, est celui de la liberté, du renoncement à devenir sujet « exister pour elle ou n'être rien » Mais dans ce renoncement, si la libido ne peut pas emprunter le chemin de l'amour, amour pour l'autre, amour de l'autre, alors la violence peut émerger sans retenue, violence que les propos véhiculent et que la psycologue reçoit de plein fouet comme si « cela s'adresse à elle dira-t-elle » « Je n’aimais pas ma mère. Mais ça ne me faisait pas souffrir. Le fait d’être aimé, ça me satisfait ...d'ailleurs je n'aime personne » Mère objet qui n'existe que pour combler l'enfant, que pour l'investir dans un renforcement narcissique, non-soi pourtant emprisonnant sur 52 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA lequel est projeté le potentiel violent inhérent à tout être humain. La doctorante va d'ailleurs associer cette attitude à ce que Bergeret a nommé la violence fondamentale qui est à distinguer de l'agressivité (Bergeret, 1984). Bergeret la situe du côté de la vie, de la force vitale, de l'élan de survie, dépourvue de toute connotation agressive, destructrice ou érotique que l'on peut retrouver dans l'agressivité. L'émergence de cette violence, qu'il définit comme purement narcissique est bien en deçà de la reconnaissance de l'objet car l'altérité n'a pas pu encore être éprouvée mais permet paradoxalement à l'enfant de se dégager d'un non soi qui s'est pourtant profilé. Ce potentiel semble ainsi constituer pour Pierre, dans l'absence de souffrance qui l'accompagne, une protection que la psychologue perçoit donc comme telle. En effet, sur le chemin de la séparation, la mort de l'objet qui ne peut vivre séparé, pointe à l'horizon; l'objet de satisfaction narcissique qui prend le moi en otage, dans un double lien, un double discours (si tu pars, tu peux mourir et me faire mourir) peut faire le lit de la schizophrénie et le risque d'éclatement du moi est alors à craindre. Mais pour que la psychose se déclenche, il faut que le nom du Père, soit verworfen, forclos, c'est à dire à jamais venu à la place de l'Autre. (Lacan, 1966). Voyons comment il évoque la place du père « Ma mère m’aimait plus que mon père, enfin son mari. Mon père n’a jamais eu sa place de mari ni de père. Quand je suis enfin parti de chez moi, pour vivre en appartement thérapeutique ça lui a fait de la peine, puis trois mois après, elle est morte. Elle est morte parce qu’elle ne me possédait plus. Toute sa vie, son affection a été focalisée sur moi » Le père reconnu dans le lien de filiation et le lien qui l'unit à la mère est non investi par la mère ce qui ouvre alors à la jouissance, rendue possible dans la fusion, qui empêche l'existence de l'Autre. Confronté à ce blanc inexpliqué de l'énigme du couple parental, Pierre aurait-il été destiné, comme Aulagnier le souligne à travers sa pratique auprès de psychotiques, à ne pas naître psychiquement? (Aulagnier, 1975) Cette mort, prise au pied de la lettre comme la traduction d'une impossible séparation, ne montre -t-elle pas à Pierre qu'indispensable à la survie maternelle, il n'a vécu que pour elle? Dans ce tout pour la mère, il peut n'être rien pour luimême, assujetti à la relation duelle par une mère incapable d’attribuer une fonction de loi à la parole du père. La menace de mort qui plane sur la mère si son enfant s'éloigne est ici prise au pied de la lettre, sans possibilité d'ouvrir un espace métaphorique. Le père n'est ici pas éprouvé comme tiers. C'est alors Lacan qui est convoqué par la psychologue-chercheur, Lacan qui a tenté d'articuler cette question sous le concept de Nom du père, qui entraîne une séparation radicale entre la mère et l'enfant qui voudraient tous deux satisfaire le désir de l'autre (Lacan, 1966). Confronté à une situation existentielle où il est mis en demeure de se situer en son nom propre, le sujet peut vaciller et perdre alors son sentiment d'exister. 53 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Cette inexistence, cette incapacité à ex -istere devient aiguë dans le contact avec l'autre et empêche l'enfant de se confronter au système social que forment les autres. Le rapport à soi Et c'est spontanément qu'il déplie ce qui fera le lit de tout son discours, à savoir sa relation aux autres et par voie de corollaire le rapport qu'il entretient avec luimême. Apparaissant comme une toile de fond tapissant son monde intérieur, la question du narcissisme est d’emblée posée par la jeune psychologue qui se sent exclue du champ de l'investissement de ce patient mais qui pourtant perçoit sa présence auprès de lui comme « indispensable ». Concept difficile à problématiser, la question du narcissisme va l'interroger; elle insiste sur le fait que la schizophrénie, dans les conceptions initiales de Freud, a été décrite comme une « névrose narcissique » où tout se concentre sur des rêveries intérieures, des processus mentaux, des images, des souvenirs, des rêves qui ne laissent plus aucune place à l’amour, à l’affection, à l’intérêt pour le monde extérieur. Et dans le lien qu'il entretient avec la psychologue, tout en la maintenant à distance, il maintient dans une position où elle se dit « scotchée », l'écoutant avec une attention toujours plus soutenue malgré la redondance des propos. « Vers 15 ans - (silence) - j’ai découvert ma sexualité mais sans partage. Je n’avais aucune attirance physique ou sexuelle. Mais pourtant j’avais envie de plaire aux filles. Je crois qu’inconsciemment c’était juste pour être aimé. Une fille qui m’aurait apporté de la sympathie, qu’elle me parle, qu’elle me sourit, ça m’aurait apporté de la satisfaction personnelle. » Être aimé de l’autre pour venir encore renforcer et toujours l’amour pour soi. Narcisse était- il plus centré sur son image que Pierre ? « Vers 18- 20 ans, je me sentais coupable, je ne comprenais pas pourquoi mes camarades ne parlaient pas de masturbation, de jouissance avec son propre sexe… Moi je vivais cela et j’avais l’impression d’être unique à faire cela. C’était un aspect détestable de moi-même. A un certain moment, je ressentais vraiment une énorme culpabilité. Mais le plaisir que je ressentais m’apportait une compensation. C’est un plaisir tellement intense, c’est pour cela que je recommençais (...). J’avais l’impression que les gens ne pouvaient me comprendre parce que c’était propre à moi. » Poour sortir de cette capatation dans laquelle elle se dira enfermée, la jeune psychologue a besoin de passer par la théorie sur laquelle elle associe très facilement, comme si la théorie reste un tiers entre ce patient et elle, tiers que je représente aussi, de par ma position d'enseignante à qui elle vient, comme Pierre, faire l'analyse de la situation. « Ma vie sexuelle n’est pas normale du tout. Je n’ai jamais fait l’amour, je n’ai jamais eu d’attirance sexuelle. Ce n’est pas normal.(…)! C’est presque 54 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA incroyable, je m’en suis aperçu y a pas si longtemps que ça. Ce n’est pas tabou, je vais vous le dire : je n’aime personne…je n’ai jamais aimé personne. » Propos sentencieux qui, dans sa bouche ne semblent révéler « aucun état d’âme » et qui sonnent pourtant chez la jeune psychologue, qui se disait séduite par lui, comme une provocation. A quelle place est-elle mise alors, si ce n'est à celle de la mère? « Je ne sais pas si je vous en avais parlé…je me suis rendu compte l’année dernière…et je suis tombé de haut ! je n’aime personne, je n’ai jamais eu d’amour pour personne, ni de haine d’ailleurs. C’est comme s’il manquait une corde au violon, on ne peut plus y jouer. Je n’ai pas d’amour dans le cœur »... « je sais, c'est curieux que je m'en sois rendu compte (que j'aimais personne). Et c'est depuis ce moment là que j'ai l'esprit confus et désorganisé »... »vous, ça se voit que vous aimez les gens » Il évoque alors une relation terminée depuis 3 ans, avec une femme, que la doctorante pour les besoins de l'anonymat prénomme Paule et ce qu'il a partagé avec elle. (la jeune doctorante s'appelle Pauline). D'ailleurs, c'est lors de cet entretien qu'il cherche à savoir avec insistance auprès de la jeune psychologue si c'est la maladie qui est responsable de son état, maladie vécu comme élément extérieur dont il aurait à subir les outrages. « Dans « entretien » il y a « entre », et ça signifie plus qu’un dialogue. C’est de plus en plus rare que les gens écoutent. Et ce n’est pas par hasard que vous faites ce métier, vous tentez d’apporter quelque chose aux gens.....Ma pensée est désorganisée, j’ai une altération du psychisme, ça me fait mal. » Et derrière cette souffrance que la jeune psychologue entend de façon criante, presqu'insupportable dira-t-elle, c’est toujours et encore l’amour de soi qui revient en filigrane. Le contrôle de la pensée ou comment freiner l'angoisse sous jacente « Quand je vais trop loin dans mes pensées, tout à coup, la pensée s’arrête parce que j’ai peur d’aller trop loin. C’est une limite floue que je ressens physiquement. C’est comme si ça ne peut pas passer au niveau du cerveau, c’est très subjectif, complètement opposé à tout ce qui est matériel ou physiologique. A cette atteinte de la limite, je me sens tout d’un coup mal à l’aise parce que je sais que je cesse de me contrôler....... J’ai toujours cette peur de dépasser les limites, d’aller tellement loin dans mes pensées, que je passe la barrière, que je n’arrive plus à me contrôler, que je sombre dans la folie ».....« je suis hyperémotif »........ « si l’émotion est trop intense pour moi, ça devient un choc, comme si ça allait me conduire à la mort, ça me fait souffrir. » Les éléments transférentiels font éprouver à la jeune psychologue cette angoisse dont il lui parle, cette expérience étrange des limites poroses entre l'intérieur et l'extérieur où le moi, devenant tout à coup fragile peut se perdre. Cette peur qu'il évoque ne semble pourtant pas troubler son corps qui reste inerte, presque sans vie, donnant à ses contours une rigidité apparente, prête à s'effondrer au 55 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA moindre contact, à la moindre émotion qui pourrait le remuer et le bouleverser jusqu'à le faire mourir. Comme si le trouble émergeant chez celle à qui il s'adresse suffisait pour qu'il en fasse l'économie. Et face à cette possible mise à mort, face à cette menace qui est vécue dans le réel de son éprouvé, alors une opération défensive doit être mise en place. « J’aurais même peur d’être moi-même. Mais tout est imbriqué, je ne sais pas si mon jugement est erroné ou vrai, en partie, tellement j’ai douté de moi-même dans ma vie que je n’arrive pas à m’accepter. Je suis en plein doute. Mais j’en reviens toujours à me poser la question de mon rôle…(…) Si je ne m’étais pas contrôlé quand on m’a interné pour folie, j’ai l’impression que je ne serais plus là, soit j’aurais sombré dans un délire, soit j’aurais cessé de survivre. Si je ne me contrôle pas, je peux partir dans un état d’être moi-même, avec ma propre personnalité… c’est quand je suis en pleine démence finalement que je suis moimême. » La notion de contrôle semble omniprésente, contrôle sur le monde, sur lui-même et sur les autres qu'il maintient à distance de façon systématique. Le contrôle est posé ici comme une digue pour lutter contre le délire, contre la pensée qui s'égare, contre le débordement qui jaillit jusque dans le réel, menaçant l'effondrement du moi ou son morcellement. Se laisser aller à penser, c’est aussi se risquer à la désintégration psychique, au désordre, hors du sillon, autrement dit, au délire, « à la folie ». Et c’est dans cet espace que se loge le moi, en risque d'effondrement, révélant par-là un moi non encore constitué, non encore consolidé, inconsistant et fragile. Faut-il que le monde des pensées soit vécu comme menaçant pour qu'une telle digue soit érigée? Faut-il aussi que l'intégration psychique des expériences vécues ne soit pas harmonieuse pour qu'une telle organisation psychique soit à ce point rigidifiée sans pour autant en être suffisante pour qu'elle soit toujours à refaire assurant ainsi le maintien du Moi? C'est vers Anzieu, que la jeune doctorante se tourne alors pour comprendre comment ce rôle est à référer au moi peau, Véritable Peau sociale qui lui permettrait de restaurer ses limites dedans-dehors mises en déroute par un mal d'exister. (Anzieu, 1985). Ainsi sa manière d’habiter le monde qu’il nomme le « rôle » revient à poser la question d’un Moi affaibli par les multiples facettes qui le recouvrent en gardant en même temps un espace secret lui permettant de réinvestir des pensées qui soient siennes (Aulagnier, 1991). Oscillant sans cesse entre le normal et l’anormal, entre la réalité et son vécu, entre la raison et la folie, Pierre apparaît être un sujet-objet, tout à la fois regardant et regardé comme dans le tableau de Vélasquez. « Peut-on choisir à quoi on pense ? Est-ce une création, un contrôle de nousmême ? » Telle est l'interrogation qui parfois ponctue son propos. La pensée est perçue comme objet que l'on pourrait modeler, sculpter à sa guise. En cela le processus qui opère pourrait être de l'ordre d'une création, tentative toujours répétée pour 56 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA s'inscrire dans le monde. Pierre questionne mais cependant ne semble pas attendre de réponse, de participation active à ses interrogations de notre part. Minkowski (1927) parlait à ce propos d’autonomie morbide. Pierre, en ne sollicitant aucune réponse de la part de la jeune psychologue à qui pourtant il adresse ses propos, se retranche dans un recul par rapport à la réalité. Cette attitude réflexive va surprendre la psychologue surprend à plus d'un titre et dans le déploiement transférentiel la mettra profondément mal à l'aise. Tel un spectateur qui regarde de façon passive une scène dans laquelle un monologue se poursuit, elle repérera lors de la relecture des entretiens, l'étrange rupture avec la réalité que Pierre met en acte. Ce sentiment d’étrangeté dont Pierre parle, jaillit dans le transfert qui fait éprouver à la jeune doctorante l'inquiétude du doute qui l'envahit. Mais plus que ses propos, c'est davantage l'absence d'adresse qui les caractérisent qui peut troubler celui qui en reçoit ainsi le contenu. « Pierre me regarde mais ne semble pas me voir et ne cherche pas dans mon regard une quelconque approbation, une quelconque réponse à ses questions. Je me sens alors dans un premier temps comme une vitre sans teint. Je le regarde, il me regarde mais ne me voit pas le regarder ». Comme un miroir qui fait défaut, le visage qu'elle tourne vers lui ne semble pas renvoyer l' image qui nous émeut tant lorsque nous nous tournons vers l'Autre, parce que nous y voyons, à travers celui qui nous regarde, ce qu'il réfléchit de nous comme Lacan a pu le souligner (Lacan, 1966). Elle décrira Le regard de Pierre qui reste fixé sur elle lorsque son regard croise le sien non pour interroger sa pensée mais pour s'y plonger, pour s'y fondre et s'y confondre dans un mouvement fusionnel qui la met mal à l'aise. Il est probablement banal de dire que l'enfant n'a pas, lors des tous premiers mois de la vie, une image unifiée de son corps, mais l'identification a son image se reflétant dans le miroir que lui présente le regard de l'autre est structurante dans la mesure où elle constitue un rempart nécessaire pour le protéger de ce qu'il peut éprouver comme un morcellement. Cette capacité à se percevoir dans le regard de l'autre en l'interrogeant ferait-elle ici défaut chez Pierre? « Je ne m’accepte pas… (…). Comme si je n’étais pas l’original ; je suis comme une copie des autres. Je suis faux. Attention, ce n’est pas de l’hypocrisie, c’est autre chose, c’est dans mon fort intérieur, je n’ai pas de personnalité. » Le problème dans la psychose est dans la fébrilité du « je », toujours en proie au doute, à l'inconsistance, toujours prêt à s'effacer. Quand le signifiant paternel manque, le passage par des identifications purement conformistes à des personnages quelconques est de l'ordre de la survie. « J’ai l’impression d’être resté un enfant, et de n ‘avoir jamais atteint le stade de l’adulte. Je me suis rendu compte que… tout le monde, à partir d’un certain moment fait un pas décisif vers l’âge adulte, moi j’ai eu cette occasion mais je ne l’ai pas fait. je n’ai tout simplement pas eu le courage de le faire......Je me sens écartelé d’un côté « enfant », et d’un côté « adulte », ça cohabite en moi, dans mon corps, tout se retourne, et c’est pour cela que je n’ai pas pu accéder à la formation de ma personnalité. Il y a une coexistence de choses antagonistes en moi. Pour avoir une personnalité, il faut avoir souffert dans la vie. » 57 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Le rapport aux autres dévoile, dans son altération, un vécu oscillant entre être/être soi/être l'autre, subir-un-rôle et choisir- un-rôle (Tatossian, 1979). Comment se vivre soi parmi les autres lorsque le sentiment d'exister n'a pas opéré? Comment se vivre dans une continuité d'être lorsque l'être vacille, lorsque le maintien de l'identité devient si fébrile? « J’ai l’impression d’avoir passé une partie de ma vie avec certaines émotions, un certain caractère, puis petit à petit, je me suis éloigné de ce que j’étais avant mes 15- 20 ans. J’ai changé d’identité, j’ai eu du mal à accepter ma sexualité, ce que je suis. C’est sûr qu’on évolue de l’enfance à l’âge adulte, mais moi c’est autre chose. (…)Je n’ai pas de personnalité, je n’arrive pas à être moi-même, j’ai toujours un certain recul, un contrôle de moi-même quand j’interagis avec les autres. Je me contrôle beaucoup, je m’oublie moi-même parfois. ».......... »Je me suis construit un idéal et je cherche à l’atteindre. Mais attention, « idéal » en tant que « souhait » avec moi-même comme acteur. » Etranges propos encore et toujours qui signent l'échec de la métaphore paternelle. Etre soi, unifié et toujours le même, c'est pouvoir renoncer au statut d'enfant pour accéder à celui d'adulte. Or, devenir adulte, c'est se situer dans un rapport hiérarchique, différencié. Pierre évoque à chaque fois des moments clefs de sa trajectoire qui sont des passages entre deux mondes, deux univers, qui appellent chez l'être humain des renoncements. Ainsi le statut d'enfant de la latence, se séparant de ses objets d'amour pour investir ses pairs, puis celui de l'adolescent, se séparant de ses pairs pour devenir adulte et enfin le statut d'instituteur réactivent à chaque fois une posture impossible à assumer, celle d'un rapport à l'autre, toujours plus différencié, toujours plus hiérarchisé qui implique la saisie d'une limite entre moi et l'autre, d'une frontière qui institue le rapport entre le je et le tu, qui ne peut advenir que si le tiers a pu introduire cet écart, propre à la triangulation qui introduit à l'ordre de la différence et de la socialisation, Et si l'agressivité, versant libidinal de la pulsion émerge, amorçant une liaison des pulsions, c'est dans l'imaginaire qu'elle peut se déployer comme si la confrontation avec la réalité, avec l'objet, ne pouvait pas opérer « J’étais agressif seulement par les pensées, je rêvais que j’étais méchant, je les frappais tous, y avait quelque chose qui ressortait de moi-même mais dans mes pensées, la nuit, dans mes rêves… Je n’avais pas de personnalité véritable. Il n’y avait que la nuit, dans mes pensées, où j’étais moi-même. » De la même manière les femmes qu'il a pu investir l'objet maternel dans un amour-fusion. restent une réplique de « Une fois, je n’arrivais plus à dormir, j’ai repensé à Paule (une femme qu'il a rencontrée après la mort de sa mère, dont il s'est épris et à qui il a légué ses biens) et j’ai pensé que je l’aimais, j’étais possessif avec elle, enfin j’aurais voulu la posséder. Un peu comme ma mère me possédait autrefois. La possessivité de ma mère a influencé ma plus petite enfance. Je voulais que Paule m’appartienne...........Je me rendais compte que je ne pouvais pas la posséder, 58 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA être toujours avec elle…c’était comme si des parties de moi-même se détachaient. Je n’arrive pas à expliquer. A cette période, la première pensée que j’avais le matin c’était pour Paule, la journée, je pensais à elle, idem quand je me couchais…Mais (…) ce n’était pas de l’amour. Y avait pas de composante sexuelle. J’étais égoïste, ce n’était qu’une histoire de possession. Quand j’allais la voir, c’était le paradis, ce sont les plus beaux moments de ma vie. Le matin, je n’attendais qu’une chose : que mon téléphone sonne pour qu’elle m’invite boire un café, et elle le faisait tous les matins. C’était mon seul but. Quand j’entendais sa voix, je savais que j’allais la voir. J’étais heureux, mais ce n’était pas pour avoir fait une belle chose ou quoi…ce n’était pas de l’amour » D'une séparation impossible à la rupture C'est lors de l'avant dernière séance qu'après avoir reparlé à nouveau du sentiment de ne pas être comme les autres, il évoque le décès brutal de sa mère et celui de son père. Quelque chose d'étrange se produit alors. Pierre qui ne cesse de parler comme pour remplir au mieux l'espace, semble tout à coup absent comme soustrait à l'environnement. Revenant tout à coup comme de nulle part, il interroge de plus belle. « Est-ce que la pensée qu’on a, nous vient naturellement ou on la contrôle inconsciemment ? » « Peut-on choisir à quoi on pense ? Est-ce une création, un contrôle de nous-même ? ». Essayant de comprendre cette demande qui n'attendait pas plus de réponse, la jeune psychologue dira qu'elle est entrée à ce moment là dans une relation vraie, authentifiée par la suite de ses propos: « Avant de vous voir, j’ai envie de vous dire certaines choses parce que je ne peux pas en parler à personne d’autre. Vous dégagez une certaine neutralité, je n’ai pas de honte de parler de choses taboues. Ça me fait plaisir de venir vous voir, et quand je rentre chez moi, j’ai l’impression de ne plus contrôler ma pensée et c’est préjudiciable, je suis dans un manque de contrôle, je laisse tomber mes défenses. Mes pensées s’inscrivent dans un déroulement qui ne s’arrêtent pas directement quand je sors du CMP. Des fois j’utilise des mots spontanément, et quand j’y réfléchis, je ne connais même plus le sens du mot… » Ce n'est que bien plus tard qu'elle comprend le sens de cette phrase, bien après la 8e séance qu'elle n'imaginais pourtant pas être la dernière. Il arrive ce jour là avec son agenda qu'il offre à sa vue. A la date du jour, était inscrit : RDV avec Pauline; ne pas trop parler. « la dernière fois vous m'avez ouvert des vannes, ma pensée ne cessait pas de se dérouler ». Il explique l'effort, fait, dans l'aprèscoup pour « regagner la ligne droite ». L'espace libre, favorisant l'association libre, sans « contrôle », était-il trop régressif pour lui au point d'ébranler les digues de défense qu'il avait si soigneusement construites? Lors de cette séance il évoque une autre femme « Avec Claudie, j’ai ce désir de possession. La possession, je ne peux pas la contrôler, je ne peux pas la changer non plus, je me sens coupable de vouloir posséder. Vais- je avoir le courage de la regarder dans ses yeux la prochaine fois étant donné ma culpabilité ? » 59 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Objet interchangeable qui prend parfois le visage de la mère ou de Paule, confondant les prénoms « elle (Paule? Claudie?) a une voix très douce et quand je l’entendais ça me faisait quelque chose, c’était des moments très doux pour moi comme ceux avec ma mère. Parfois, j’étais irrespectueux, dur avec ma mère…J’aimais entendre la douceur de sa voix…Tout ce que je n’ai pas fait pour ma mère, je l’ai fait pour cette dame. » « Posséder , c’est comme si c’était la seule chose à moi ; elle m’appartient. Comme si j’agissais dans le but de l’avoir pour moi tout seul. C'est quand je suis chez moi, seul, que je ressens le plus ce désir de la posséder. Je voudrais qu’elle n’appartienne à personne d’autre que moi, qu’elle ne voit que moi. Je voudrais être le seul à qui elle donne de l’affection, de l’estime… Ma mère avait ce désir de possession sur moi mais elle, il y avait de l’amour aussi. » Pouvoir jouir de l'autre d'en disposer, de s'en servir, n'est ce pas se situer au lieu de l'Autre et se confondre avec lui jusqu'à en être victime au prix même de sa propre vie? « si je ne parviens pas à la possession, j’aurais un manque d’affection. Je ne sais pas si j’aurais des motivations pour vivre » Le signifiant de son prénom, Pauline, apparaît alors dans toute la prégnance du transfert lors d'une relecture de l'article Pierre ne viendra pas à la séance suivante. La psychologue du service, l'ayant croisé quelques mois plus tard, me dira qu'il va bien, qu'il ne souhaite plus « se confier ». Conclusion: Le récit intertransférentiel permet un travail de tisserand, permet que les associations d'idées, , épars, désorganisés, saississant les éléments de la réalité brute, éléments béta de Bion, soient liés, tissés pour les transformer en éléments alpha de pensée. Cette liaison permet de construire une trame suffisamment solide sur laquelle il n'y aura ni trop, ni trop peu de réalité. Si les éléments de la réalité réussisient à être intégrés psychiquement par le psychologue alors il pourra se prêter comme appareil à pensée pour le patient et lui éviter un risque de désorganisation du finctionnemment psychique qui est toujours à craindre, et le patient pourra lui aussi les intérioriser. Il s'agit donc de lier les affects pour les soumettre au travail de pensée, et éviter les écarges brutales dans les actes, ne serait ce que langagier. Ce patient, souffrant de psychose, au-delà de son expérience subjective qui nous permet d'entrevoir la façon d'être au monde d'un « schizophrène », interroge de façon prégnante le sens de nos interventions et le sens même de la démarche de la recherche en clinique. Grâce à la méthode des récits transférentiels, les questions qui émergent autour de Pierre, pris dans les mailles de notre propre désir de psychologue-chercheur rencontrant chez ce patient le besoin d'être l'objet de ce désir, sont de toute évidence celles que tout psychologue clinicien est amené à se poser, que le cadre soit celui d’une recherche ou celui d'un espace thérapeutique. C'est probablement là que vient se loger la psychanalyse dans ce lieu qui se construit 60 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA par et dans la rencontre et dans l'effet produit par le transfert et la mise en récit de ce transfert. Mais cette méthode opére parce qu'elle introduit une autre dimension, un autre espace dans lequel on peut observer trois registres: la position subjective du patient, qui participe à une recherche et qui et qui en tant que tel modifie le contenu de son discours dont il rend compte à travers ses associations libres. Ce registre, je l'appelle le réel de la clinique en tant qu'il est impossible à dire (Lacan). Le deuxième registre est celui qu'introduit le récit du psychologue chercheur qui s'interroge face à ce qu'elle a retenu de ce récit, je réfère ce registre à celui de l'imaginaire puisque le psychologue chercheur rend compte d'une situation intersubjective , d'une rencontre entre deux subjectivités. Le troisième registre est celui qu'introduit l'écoute de l'analyste qui interrogeant le récit du récit du patient, et les mouvements contre-transférentiels du chercheur mais également les siens propres, va amener le chercheur sur autre scène. Ce glissement permet la traduction du récit premier et donne lieu à la construction d'un nouveau récit, un paratexte. J'appelle ce registre qui fait passer l'agir de la relation au langage, le registre symbolique. C'est l'analyste qui ouvre la voie vers ce registre dans la démarche de la recherche clinique. Ainsi, chaque entretien du psychologue chercheur avec l'analyste chercheur donne lieu à un paratexte, celui où sont notés les commentaires, les associations du psychologue-chercheur formulée à l'endroit de l'analyste Il y a un élément qui permet le nouage entre ces trois registres: c'est l'outil que constituent les entretiens entièrement enregistrés. Une fois tous les entretiens achevés, et tous les paratextes obtenus, les entretiens du patients sont retranscrits et font l'objet d'une nouvelle lecture pour comprendre comment le récit du récit s'est construit et le sens que l'on peut donner à ce mouvement, non pour le modifier mais pour tenter d'historiciser le récit ainsi obtenu en le référant au contexte même de la situation clinique. L'article qui a émergé de ces transferts, est ainsi tissé à partir de ce tiers qui devient co-auteur, co-auteur de la transmission qui peut en être faite. Cette méthode des récits transférentiels en devient ainsi la clef de voûte de la transmission. Cette méthode qui associe nécessairement recherche et lien thérapeutique ne serait-ce que par le statut même de clinicien que le psychologue peut avoir, permet que ce qui se passe dans le réel de la situation ne soit pas pris uniquement dans les mailles de l'imaginaire, c'est à dire dans une relation qui reste spéculaire, fut-elle intersubjective mais que cette relation, s'ouvrant à partir des éléments contre-transférentiels, et adressée à un Autre, puisse s'élargir au registre symbolique. Maintenir le symbolique pour que wo es war, ich will verden, un je qui reste parlant et désirant, pour que le ça se plie au loi du langage tel est l'enjeu de la clinique. Bibliographie 61 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Anzieu (Didier).- Le moi-peau, Paris, Dunod, 1985. Apollon (Willy).- Enjeux éthiques de la mort volontaire, Cahiers de recherche éthique, 11, 1985, p.165-185. Aulagnier (Piera).- La violence de l'interprétation, PUF,1975. Aulagnier (Piera).-Un interprète en quête de sens. Paris, Payot,1991 Bergeret (Jean).- La violence fondamentale, Paris, Masson, 1984. Binswanger (Ludwig).- Le Cas Suzanne Urban ; Etude sur la schizophrénie, Paris, Desclée De Brouwer, 1958 Blankenburg (Wolfgang).- La perte de l’évidence naturelle, Paris, P.U.F.1971. Ferenczi (Sandor).- Thalassa, psychanalyse des origines de la vie sexuelle, 1924, Paris, Petite bibliothèque Payot, 2002. Freud, (Sigmund).- Trois essais sur la théorie de la sexualité, 1905, Gallimard, 1962. Freud (Sigmund).- Remarques psychanalytiques sur l’autobiographie d’un cas de paranoïa, dans Freud (S.), Cinq psychanalyses, 1911, Paris, PUF 1977, p.263324 Freud (Sigmund).- Pour introduire le narcissisme, dans Freud (S.), La vie sexuelle, 1914, Paris, PUF, 1969 p.81-93. Lacan, (Jacques).- D’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose, dans Lacan (J.) Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p. 531 à 580. Lacan (Jacques).- De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité suivi de Premiers écrits sur la paranoïa, Paris, Le Seuil, 1932. Mahler (Margareth), Pine, (Fred), Bergman (Anni).- La naissance psychologique de l'êre humain; tra française, Paris, Payot, 1980, Malher (Margareth).- Psychose infantile, Paris; Payot, 1968Michaud (Ginette).Essais sur la schizophrénie et le traitement des psychoses, Érès, 2004. Minkowski (Eugène).- La schizophrénie, Paris, Desclée de Bouwer, 1927, Payot, 1997. Tatossian ( Arthur).- La Phénoménologie des Psychoses, Paris, Masson, 1979; 1954-55 - Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse (S.II) 62 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Clínica da língua : tradução e transferência narrativa Thamy Ayouch Université de Lille 3 “Porquê você esta traduzindo mais uma vez?” Muitas vezes, o meu primeiro psicanalista me fazia esta pergunta, apontando o meu desejo de clarificação e circulação entre línguas quando traduzia em francês um “ me saca de quicio” (me põe fora de mi) ou um “( ”ت ي د اfiquei sozinho como um montinho de tristeza), frases que tinha pronunciado na sessão. Pelo menos, estas palavras estrangeiras o tinham despertado! Por que e como eu traduzia? Associando? Em quê idioma se fazia a concatenação das minhas associações? E por que passava de uma língua a uma outra? Essas perguntas nunca foram resolvidas com o meu psicanalista unilíngüe. Eu as trouxe comigo para a minha clínica com pacientes multilíngües ou poliglotas. No Centre Minkowska, acolhendo migrantes em muitos idiomas, na associação CAPSY, basicamente com estudantes, e na minha prática privada, tive oportunidade de trabalhar com pacientes hispanófonos, italianófonos, lusófonos, anglófonos e arabófonos. Questionava-me sobre os mecanismos conscientes e inconscientes, que se ativavam na passagem da língua nativa à língua adotada na terra de acolhimento, e sobre os mecanismos simétricos, que podem acontecer quando a cessão se passa na língua nativa. Perguntava-me sobre esta tradução interlingüística e a conversão sintomática : a tradução lingüística imposta ao estrangeiro se acompanha de uma tradução dos processos inconscientes, substituindo sintomas a elementos inconscientes ? Reciprocamente, a destradução efetuada pelo terapeuta, recebendo o paciente na língua nativa, é comparável à tradução-interpretação da psicanálise? Mais globalmente, qual é a função e ou sentido do multilinguismo e do poliglotismo na psique do analisante, e nas interações com o analista? Existiriam aqui vias de associação específicas? Como se articulam as associações dos dois, tanto durante a sessão clínica, como também na hora de transcrevê-la, depois? Para os multilíngües, o mundo esta construído sobre a associação de palavras plurais às coisas, e duma pluralidade de redes de representações de palavra ligadas a uma única rede de representações de coisa. Os poliglotas, aliás, acrescentam a este patrimônio lingüístico uma nova rede: integraram simultaneamente mais de uma rede. Vou evocar aqui alguns exemplos clínicos que me permitiram refletir sobre estas questões da função da tradução lingüística e psíquica na sessão analítica, na transferência, e em sua transcrição posterior, nachträglich. 63 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O afastamento da língua materna No que se refere aos pacientes que falam uma nova língua, do país de acolhimento, parecia-me importante levar conta o que podemos compreender como “exílio numa nova língua”. Achava que ao ser precipitado num contexto onde deve falar a língua do outro, o sujeito migrante se encontrava num dramático “entre-duas-línguas”, perto da materialidade da palavra, longe do sentido, e assombrado perante a falta de motivação tanto pela língua de acolhimento como pela língua de origem. Pensava que perante este outro, que parecia especialmente tagarela e se obstinava em utilizar fonemas inúteis, perante essa massa sonora talhada do seu significado, o estrangeiro vivenciaria uma extrema solidão, um grande abandono. Lembrava Jacques Hassoun, dizendo que “o exílio começa quando a língua ou o dialeto falados pelos antepassados são esquecidos, murmurados na vergonha o no gozo”12. Portanto, numa onipotente fantasia de reparação, imaginava que só uma terapia no idioma nativo poderia permitir uma restauração narcisística por esses deportados da língua. Pois esse não era o caso nas minhas primeiras experiências com pacientes estrangeiros! Mesmo se há um exílio entre duas línguas, uma barreira adicional na realidade psíquica, a nova língua é com freqüência investida de uma maneira que apazigua a realidade psíquica e afasta um sexual-infantil que seria temível se aparecesse na língua materna. O exílio na língua é próprio a qualquer criança que aprende a falar: está construindo, na sua própria língua, representações de palavra sobre representações de coisa, mas aquelas, conscientes, nunca cobrem totalmente essas, inconscientes. Na sua própria língua, a criança é estrangeira. A língua, composta de representações de palavras, permite enevoar, velar as representações de coisa, assim evitando um contato direito demais, alucinatório, com as coisas. A intrusão duma outra língua torna arbitrária esta dissimulação e fragiliza a possibilidade da língua nativa de velar as coisas, que então surgem na selvageria da sua estrangeiridade, Unheimlich, desconhecidas/reconhecidas, como num pesadelo. O inconsciente é a língua estrangeira de todos, mas o estrangeiro, ao ser confrontado a uma nova língua, vive de novo esta estrangeiridade. Contudo, a nova língua, pode também permitir um novo velamento das coisas, como na experiência da criação poética, quando o poeta desmonta a relaçao rígida entre significado e significante e instila à língua uma nova vida. Assim, tive a possibilidade de ter uma clínica da "revitalização" da língua nativa pela língua estrangeira, onde pacientes recorriam à língua estrangeira para se reconstruírem psiquicamente. Para o multilíngüe ou o poliglota, as novas línguas permitem evitar a invasão de um conjunto da língua materna fortemente investido. A nova língua favorece assim uma reparação de representações sexuais-infantis. A terapia aspira estabelecer um vai-e-vem entre língua a materna e a nova língua, para permitir um acesso mais apaziguado a essas vivencias da sexualidade infantil. 12 Jacques HASSOUN, L’Exil de la langue, Point hors ligne, Paris, 1993, p 65. 64 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA É o que apareceu com muitos pacientes, como o senhor Malek. Malek é um marroquino de 22 anos, que tinha chegado em França 5 anos antes eu recebê-lo. A sua mãe tinha ficado no Marrocos e o seu pai se movia entre os dois paises. Tinha sido escolarizado numa fundação que acolhia jovens em dificuldades, ensinando-lhes uma formação profissional. Ele não apresentava sinais de ruptura de contato com a realidade nem de dissociação. Porém, estava vestido de modo esquisito, caracterizada por uma superposição de roupas, manifestava dificuldades em compreender e tinha usava uma linguagem analógica paradoxal, sorrindo ao falar de problemas ou permanecendo totalmente impassível diante de chistes ou encorajamentos. Além disso, não manifestava nenhuma fluidez nas suas associações, mantendo-se muitas vezes calado. Apresentava, também, muitos mecanismos defensivos de tipo obsessivo, como o isolamento, o isolamento afetivo, a formação reativa, a denegação e até algumas recusas. A primeira entrevista foi tensa e vaga. Tive a impressão de haver uma língua comum entre nós, destinada porém a evitar qualquer comunicação. As suas primeiras palavras foram sobre o tempo, e por meio delas se retirava por trás de uma fórmula bem mesurada e geral: "É melhor que não esteja quente demais nem frio demais". Seguia expressando-se por fórmulas similares, muito educadas e vagas. Quando lhe disse que a entrevista podia acontecer em árabe se ele quisesse, recusou educadamente. Tendo sido encaminhado para o Centro pelo psiquiatra, aparentemente não elaborara nenhuma demanda psíquica. A seu ver, o seu único problema que enfrentava dizia respeito a dificuldades com seus papéis, o que não lhe permitia encontrar um estágio para sua formação profissional. Entretanto, até mesmo este problema era diluído numa fórmula ontológica geral: "Não se pode não ter problemas. Todos temos problemas e ninguém é perfeito. Só Deus é perfeito". Sob o francês bem dominado, brotava a generalidade de fórmulas religiosas marroquinas e o tabu cultural, que consistia em talhar qualquer argumento com o risco de sacrilégio - quem poderia se assimilar a Deus se expressava, numa mistura de fantasia e proibição. Quando perguntei sobre as suas relações familiares, os seus irmãos e a sua mãe, respondeu que sentia pouca falta dela, negando que entre ambos houvesse qualquer forma de relação específica: "Uma mãe tem que amar igualmente todos seus os filhos". Disse que não tinha nenhuma lembrança da sua infância. Não tinha falta do país onde viveu apenas durante quatro anos, e concluiu com uma nova frase desubjetivada. "Não posso preferir o Marrocos à França, uma vez que uma é diferente do outro". As sessões posteriores foram mais brandas, mas seguiu usando o francês, a meu ver para estabelecer uma distância entre nós e se proteger de representações pessoais demais que o árabe podia despertar. Quando recorria às vezes a essa língua, era para se defender de acusações que outros poderiam ter feito para ele : “Eu não era ( ”ﺷmimado demais). “Não se deve ser ( “ أegoísta), negando assim qualquer singularização ou subjetivação. A minha hipótese era que a resistência dele a falar árabe operava como uma denegação da sexualidade infantil, enquanto a nova língua funcionava como um mecanismo de defesa, reforçando o recalcamento. Evidentemente, não ia forçá- 65 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA lo falar árabe: a escolha da língua é sempre feita pelo paciente. Todavia, o meu trabalho consistia em tentar favorecer uma circulação entre as duas línguas, escutando, sob o francês, uma estrutura associativa em árabe. O trabalho terapêutico aspirava revalorizar a língua materna como bom objeto, reativar certos aspetos dela, despojando-os, entretanto, da carga afetiva ameaçante. Tratava-se de lhe assegurar que sua língua era sua, que os oceanos se podiam atravessar de um lado ou do outro. Achava que a idéia obsedante do problema com os papéis, além da dimensão concreta verdadeiramente prejudicial, era ambivalente. Enquanto ele não tivesse os documentos em ordem, não podia viajar para o Marrocos, o que lhe fornecia o gozo de escapar ao desejo da mãe e à culpabilidade por abandoná-la. Uma viajem nas associações aconteceu na sessão seguinte, na qual contou como os seus camaradas às vezes o chamado de gafanhoto. Sem transição, evocou imediatamente depois a cantina da escola e as comidas salgadas demais. Escutando-o, deixei-me levar por associações, talvez ecoando as dele, e lembrei umas rimas infantis que poderia traduzir assim: “Gafanhotinho salgado, por onde você passou, quê comeu e quê bebeu Ó mestre Bouzekri, Com pressa cozinhe o meu pão…” Seguindo as minhas associações, pensei a um jogo de infância, quando o meu pai nomeava cada um dos meus ditos e lhes assinava uma função (o primeiro vai ao mercado, ou outro cozinha o seu pão, etc.). Também pensei a outro jogo, no qual meu pai percorria o meu braço, dos dedos ao pescoço, para me fazer cócegas, dizendo palavras ainda enigmáticas para mim com as quais descrevia o movimento de um rato comendo um ovo e uma azeitona. Numa concatenação interlingüística , lembrei rimas infantis francesas sobre um rato verde que se tornava em caracol. Perguntei então ao Malek se conhecia rimas francesas e lhe contei a do rato verde. Esteve entretido, apontando o ilogismo deste rato virando caracol. Respondi que na visão humana poderia haver poucas diferenças entre estes animais pequenos, ratos, caracóis ou insetos. “Como os gafanhotos?” perguntou. E começou a evocar as rimas infantis marroquinas do gafanhoto com pão. Fiquei assombrado pelo mimetismo das nossas associações. Assim, nesta regressão lingüística das rimas, onde as palavras árabes, embora perto do sexual-infantil, não eram temíveis, ele se autorizou a me falar do contexto onde a mãe lhe cantava as rimas e seguiu associando. Expressava-se em francês, mas pontuava o discurso por algumas palavras árabes - ( اايas crianças), ( اﺑزo pão), ( ﺑpara que dormisse). Nas sessões posteriores, Malek se permitiu recorrer a mais palavras em árabe. Evocou a última ligação telefônica à mãe, a emoção dela. Os mecanismos de 66 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA defesa pareciam menos rígidos, as representações eram menos isoladas, as associações mais fáceis. Que aconteceu aqui? Sob as suas palavras francesas, tinha surgido uma rede de associações em árabe que escutei e dupliquei com as minhas próprias associações. As representações de palavra, traduzidas, sem que ele soubesse, na transição em francês do gafanhoto ao sal, foram afastadas das experiências de satisfação infantil. Por uma nova tradução, através das minhas associações e dumas rimas francesas, pudemos fazer surgir novas representações de coisa dele, mais apaziguadas. A reparação da língua materna Pude atender similarmente uma criança no seu trabalho de reparação através da língua estrangeira. Adriana tinha cinco anos e estava na França há oito meses, onde tinha chegado com a mãe como refugiada política. Nas confrontações violentíssimas da UNITA e do MPLA, milicianos invadiram a sua casa, e, diante dela, mataram o pai, violaram a mãe e estrangularam os dois irmãos gêmeos bebês. Adriana se salvou porque a mãe disse “ Não é minha filha, é a filha dos vizinhos”. Num mimetismo total, do mutismo à roupa e ao penteado, mãe e filha manifestavam o mesmo traumatismo silencioso. Progressivamente, orientei o trabalho das sessões sobre a identificação dos membros do corpo, a través do desenho, da pintura e de jogos com a água. Os primeiros desenhos não eram coloridos e os personagens não tinham pescoço. Foi através do francês, progressiva e rapidamente aprendido na escola, que Adriana pôde sair do seu mutismo, de uma forma bilíngüe. Começou a comentar os seus desenhos usando o francês e logo articulando a cada palavra francesa uma portuguesa. Numa paisagem de “maisons-casas” apareciam “papillonsborboletas” e “rivières-rios” onde navegavam “bâteau-barcos” dirigidos por “frères-irmãos”. Pouco a pouco, Adriana aplicou esta dupla linguagem ao seu corpo, composto de “cou-pescoço”, “bras-braços”, “cheveux-cabelos”. Por uma associação interlingüística , à medida em que investia o corpo (le corps) apareciam nos desenhos as cores - cor e corps sendo homônimos. Através desta identificação dupla, do francês ao português e no outro sentido, a língua de acolhimento veio repetir, confortar, sustentar e reparar a língua materna traumatizada. A criança pôde evocar Angola só passando do português ao francês. A identificação com a mãe tornou-se então menos patológica. A criança começou a se diferenciar na roupa e no penteado, à medida em que manifestava maior fluidez psíquica. Não ser, como disse a mãe, a filha da sua mãe, para poder sobreviver exigia uma identificação massiva para não se derrubar. A falta de filiação apresentava a alternativa de ser abandonada pela mãe ou de morrer. Com o apoio do francês, Adriana pôde dizer “maman” para melhor dizer “mãe”. Mas o que é a língua materna? No uso comum, a primeira língua falada por uma criança é associada a uma dimensão materna em muitas línguas (Muttersprache, 67 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA mother-tongue, lengua materna, madre lingua, םא תפס, $ت ا%). Porém, segundo a definição de muitos dicionários, não existe relação necessária entre esta primeira língua e a mãe e a chamada língua materna é também aquela falada por pessoas que aparecem e desaparecem do cenário psíquico da criança pronunciando as suas primeiras palavras. A língua materna é aquela veiculada pela mãe que permite à criança de se separar dela e articular uma demanda sem temer ser engolida por "sim" massivo que antecipa os seus desejos ou por um "não" que os anula. Para não ser mortífera, esta língua tem que marcar uma distancia, conjugar o familiar e ou estrangeiro. A língua materna é aquela que confronta ao desejo da mãe e torna o sujeito louco se é animada pelo mito de unicidade. O uso de uma nova língua na sessão clínica permite, muitas vezes, descerrar algumas coisas que se fecharam na língua materna, assimilando língua e imago ameaçadora da mãe. Poliglotas e palimpsestos A clínica da língua me confrontou também com outros destinos lingüísticos, um dos quais é, para poliglotas e multilíngües, a constante presença de outras línguas sob a língua falada, perceptíveis através de uma rede de associações. Quando um sujeito multilíngüe ou poliglota se expressa numa língua, os outros idiomas estão em sofrimento sob ela, no duplo sentido de espera e dor. Para muitos pacientes estrangeiros, o francês ressoa sob a sua língua nativa, modificando-a, provocando “galicismos”. Uma paciente peruana por exemplo podia dizer palavras como : “parlar” (hablar), “responder al teléfono” (“contestar al teléfono”), disputirse (discutir), ou “sufrenza” (sufrimiento), ou até, com uma conversão histérica : “quiero exprimir mi dolor” (para “quiero expresar mi dolor”). Atendi uma paciente anglófona que revelava uma dupla língua de forma mais inconsciente, através das suas associações. Jean era uma romancista australiana de trinta e nove anos, instalada em Paris havia dois anos, depois de ter vivido quinze anos em Girona, na Catalunha. Filha de uma ucraniana e um alemão, não falava russo mas compreendia alemão, considerando a sua instalação na Europa como uma volta à origem. Todavia, escolheu reescrever o romance familiar em línguas estrangeiras, ao se instalar em Espanha e posteriormente na França. Jean compreendia francês também, mas preferia não fala-lo e se expressar em inglês. Veio consultar-me pelos seus ataques de pânico e por problemas de conjugais. Tinha dificuldades em compreender o François, com quem namorava há nove meses, e se perguntava se não haveria entre ambos uma divergência de códigos culturais. Na primeira sessão tratou imediatamente do assunto da língua. Ela me disse “You really sound british, don’t you?” (você fala com um sotaque Inglês), e me explicou que foi escolarizada numa instituição privada em Melbourne, onde o acento inglês é um signo de boa educação. A sua observação me fez sorrir e estabeleceu direitamente um contexto multilíngüe entre nós. Minhas associações me recordaram um dia em Barcelona, quando, em companhia de um amigo 68 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA inglês, falamos com uma turista inglesa. Essa nos perguntou se éramos ingleses, ele disse sim e eu não. A turista me respondeu “Yes indeed, I’m afraid you don’t look English” (temo que você não pareça inglês). Repliquei, quase sem refletir “Well I’m afraid you do” (temo que você sim, pareça inglesa). Ao me recordar esta lembrança de Barcelona, Jean diretamente instalou entre nós um contexto de espanhol e catalão Considerando a angústia dos ataques de pânico como afeto desconectado da sua representação, que requeria ser qualificado, perguntei à Jean quando aconteciam os ataques. Respondeu que identificava claramente as situações, pois os ataques de pânico sucediam quando atravessava uma ponte, quando alguém ameaçava ir embora subitamente ou quando lembrava as brigas entre seus pais. Todavia, na Espanha, novas situações tinham surgido : padeceu de um ataque de pânico visitando o Barrio Chino de Barcelona. Um ano depois, teve uma angústia semelhante ao chegar a Sabadell, uma cidade perto de Barcelona. Além disso, também sentiu pânico quando estava atravessando um campo, e, inexplicavelmente, quando o filho de uma amiga dela jogava com um barbante. Em Paris, evitando os pontes, tinha sentido um ataque de pânico só uma vez, ao brigar com o seu namorado. Ela não compreendia porque tinha pânico em contextos tão diversos. Na sessão, falava só em inglês, sempre tecendo comentários sobre a precisão dessa língua quando tinha que expressar os seus sentimentos ou os problemas que teve ao se instalar em países estrangeiros, nos quais se falavam outros idiomas. Também referia o quanto apreciava certas palavras, ou, ao contrário, a sua aversão por outras. Por exemplo, detestava as palavras que acabavam com o fonemas [dl], como “saddle”, “griddle”, “noodle”, “cradle”. Numa sessão ulterior, contou-me sobre um ataque de pânico que teve quando brigou com o seu namorado, que lhe tinha dito “I don’t like playing second fiddle” (não gosto dos papéis secundários). Quando lhe perguntei quem disse essa frase antes, respondeu-me que se tratava de uma frase que sua mãe usava quando brigava com o seu pai. Repetiu a frase, então, imitando um sotaque russo. Depois desta sessão, tentei fazer uma resenha do que tínhamos visto em três encontros, transcrevendo momentos das sessões, sem tentar de lembrar a ordem exata mas seguindo as minhas associações livres. Escrevi alguns elementos que me tinha contado Jean, e também palavras, "saddle", griddle", "noodle", "cradle", "fiddle". Parecia muito provável que o som [dl] fosse ligado a "second fiddle". Ressoava na minha cabeça a frase da mãe, que Jean tinha pronunciado com sotaque russo. Também escreví a anedota com a inglesa em Barcelona, e por ter morado lá, e lembrado dos meus amigos catalães, seguí escrevendo em catalão. Transcrevi os momentos de pânico, ponts (pontes), abandó (abandono), discussió (briga), Sabadell, bordell (o Barrio Chino tendo sido o bairro da prostituição), pradell (campo) e cordell (barbante). A rede de associações parecia irradiar desde o significante "fiddle", ligado aos outros pelo fonema final [dl], que se pronunciava em catalão quase como um [dl] russo. Quando este significante estava conscientemente identificado, o afeto sentido era aversão - Jean odiava as palavras acabando com [dl]. Quando, porém, este 69 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA fonema só sustentava, quase inconscientemente, outras palavras, a partir de uma outra língua, o afeto se desfazia da sua representação, ficava livre, desqualificado e se transformava em angústia profunda. Jean às vezes pensava em catalão. Freud dá um exemplo deste tipo de rede associativa, onde uma língua infiltra as representações duma outra, no texto sobre o Fetichismo. O “Glanz auf der Nase”, brilho sobre o nariz, do que falava o paciente, se revelou ser um “Glance”, olhar. Outras redes de associações surgiram nas sessões ulteriores. Jean se pôs a falar de pontes –para elaborar a angústia dos ataques de pânico. Seguiu associando : “Bridge – bridge the gap – gap” (ponte – reunir, agrupar – vazio). As brigas entre os pais dela eram o que impedia “bridge the gap” entre eles. Mas tinha um “gap”, um grande vazio que provocava os ataques de pânico. Em Catalunha, Jean tinha lembrado um cenário de briga entre os seus pais, onde o pai tinha tentado matar a mãe. Jean contou o cenário com muitos detalhes, dizendo que era uma criança olhando esta briga e não podendo fazer nada, comentando até as cores da roupa que seus pais usavam nesta ocasião. Esta abundância de detalhes me fez pensar numa recordação encobridora. Ao transcrever a sessão, depois, dei-me conta de que, mais uma vez, as suas associações podiam ter sido inter-lingüísticas. O significante horrível, sem figuração possível, do vazio, "gap", tinha infiltrado a lembrança, para tentar figurar o que não tinha nenhuma representação. Mas era em catalão. Jean colocava este cenário à idade de oito anos, vuit em catalão, que se pronuncia da mesma forma que buit, o vazio. Este processo de uma segunda língua sob a língua principal é notavelmente descrito por Nicolas Abraham e Maria Torok no Verbier de l’homme aux loups (o lexico do homem dos lobos).Para compreender este paciente multilíngüe, era preciso buscar em inglês e russo o sentido do que ele dizia em alemão.] Para concluir a evocação desta paciente, acrescento que ela também gostava jogar com versões diferentes do seu nome. "Jean" não existia como nome nem na Espanha nem na França - os franceses liam "Jean", o que aumentava a confusão sobre a sua identidade sexual. Portanto, fazia-se chamar Joana pelos catalães, Juana pelos hispanófonos e Jeanne pelos franceses. Como Fernando Pessoa com os seus heterônimos, Jean publicava sob vários nomes produções diferentes: romances, novelas, poesia e crítica literária. Compreendi que Jean aceitava ser ao mesmo tempo Jeanne, Joana e Juana quando me disse que acabava de finalizar a sua tese sobre literatura, incluindo no manuscrito uma parte de ficção. Tradução lingüística e tradução psíquica Tentemos agora analisar, neste tipo de associações multilíngües, a função da tradução interlínguística e da tradução psíquica. A noção da tradução é central na teoria freudiana: é presente em dois termos, Übertragung e Übersetzung. Dois processos globais recíprocos são descritos de forma recorrente como traduções. Pelo primeiro, a fonte é o inconsciente e o resultado os efeitos do inconsciente: sonhos, lapsos, atos falhos ou sintomas. Esta tradução-codificação liga os restos 70 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA mnêmicos, as representações de coisa e as representações de palavra. Ela procede no sentido inverso ao recalcamento. No outro sentido, da consciência ao inconsciente, pela tradução-interpretação, durante a cessão, os efeitos do inconsciente são a fonte e os pensamentos inconscientes são a meta. Esta tradução vai do manifesto ao latente. Trata-se aqui de tradução por estes pacientes multilíngües ou poliglotas? Podemse comparar por um lado a tradução entre línguas, e, por outro, a tradução dos processos do inconsciente evocada por Freud ? Então estes processos seriam lingüísticos. É verdadeiramente o caso? Como comenta o Walter Benjamin, o tradutor pode achar-se num momento de suspensão interlinguística, e transitar por um estado fora da língua. Similarmente, o analisante se coloca as vêzes num limbo intersemiótico, separando a interpretação da linguagem do sonho o do sintoma. Contudo, se o tradutor, ou o locutor estrangeiro, passa por este estado de Unheimlichkeit, onde os significantes da língua de origem e da outra língua parecem pouco naturais, é porque o fenômeno de tradução inter-linguística convoca processos do inconsciente. Não são as traduções entre sistemas psíquicos que manifestam caracteres da tradução linguística, mas, ao contrario, é essa que procede do inconsciente. Há, efetivamente, uma semelhança entre os processos do inconsciente e as deformações efetuadas sobre um texto pela tradução. As figuras de racionalização, passagem da polissemia à monossemia, enriquecimento, empobrecimento quantitativos, homogeneização, destruição das locuções são operação que acontecem na passagem de uma língua à outra, e também na passagem dos processos primários aos secundários, na tradução-codificação. No outro sentido, as operações de alongamento ou empobrecimento qualitativo, de destruição dos ritmos, parecem corresponder a processos da traduçãointerpretação, que desdobram as condensações do sonho, cancelam a sua iconicidade e o seu ritmo pela elaboração lingüística. Todavia, na tradução psíquica, não há nem língua original nem língua final. Os sistemas psíquicos não são línguas, mas antes lugares de inscrição. Não existe uma língua dos processos secundários que seja independente desses processos : representações de palavra, imagens de sonho, traços mnêmicos superiores; em contraste com o espanhol, por exemplo, que não se reduz à tradução das Mémoire d’Hadrien de Marguerite Yourcenar por Julio Cortazar, ou a tradução do Livro do desassossego de Pessoa por Angel Crespo. Simetricamente, não existe uma língua-fonte dos processos primários, senão na fantasia de uma língua originária, materna, irremediavelmente perdida, e esses processos são accessíveis só em sua tradução psíquica. Por conseguinte, na tradução-codificação, como na tradução-interpretação, não existe uma línguafonte, que seja independente da língua-meta, nem há uma língua-meta que seja independente da língua-fonte. Em outros termos, não existe uma dualidade ontológica e temporal entre os dois níveis: os processos secundários existem só graças à tradução de processos primários, e no outro sentido, os pensamentos 71 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA latentes aos que chega a interpretação existem só através desta interpretação. A conseqüência disso me parece importante aqui : quando a representação de palavra, virada inconsciente, é tratada pela psique como uma representação de coisa, como vimos nas associações interlingüísticas, não se trata mais de palavra, mas de um material novo criado pela plasticidade dos processos primários. Portanto, se a confrontação dos migrantes a uma língua estrangeira atua na formação ou na resolução dos sintomas, não é como língua, mas como novas entidades, novos significantes tomados em redes inconscientes, iguais a qualquer outra especificidade do país de acolhimento que vira significante – a expressão de um rosto, um incidente administrativo, uma nova costume culinária, etc. Entretanto, esta clínica com poliglotas e multilínguës tem que ver com a tradução no outro sentido de Uberträgung : a transferência. A tradução transferencial A transferência poderia entender-se como uma tradução interlingüística , segundo o modo como Walter Benjamin define a tradução. Na sua visão histórica, inspirada do messianismo, Benjamin considera que as línguas podem se alargarem mutuamente, domiciliando-se uma na outra. A mais específica tarefa humana, a do tradutor, que poderíamos comparar à transferência, seria a de de reunir os fragmentos dispersos da língua ante-babélica que ecoam em todas as línguas. O tradutor recorda e repara simbolicamente a catástrofe de uma originalidade despedaçada, mas nunca a restitui. Similarmente, o mecanismo de transferência entre dois poliglotas atualiza imaginariamente este agrupamento de uma dispersão, sem nunca efetuá-lo simbolicamente. Lembremos que não há unidade e completude atualizada, senão como mito. A questão do vínculo entre transferência e tradução é em verdade a questão do linguístico e do pré-linguístico, da continuidade entre corpo e linguagem, mundo fenomenológico e simbolização. Mas esta questão é muito vasta, e não vou tentar de aborda-la aqui. Talvez baste assinalar que o mundo não precede a língua, mas é sempre entendido a partir do horizonte da língua ( o que provoca grandes tormentos pelos tradutores!). Por exemplo, quando o francês ou o português dizem “Atravessaram o rio nadando”, expressando o espaço pelo verbo principal e a natureza do movimento pelo gerúndio, o inglês inverte, e fala “They swam accross the river”, verbalizando a natureza do movimento e informando sobre o espaço por uma preposição. Similarmente, em françês “je suis en retard”, temporal, corresponde ao inglês “I’m behind”, espacial, ao espanhol “voy atrasado”, movel, ao catalão “vaig de cul”, imaginario, ou ao marroquino ى ' اﺣ, passivo (o tempo me abandonou). Conceber a transferência como tradução é então considerar que a tradução é sempre “entre” : nem unicamente na fonte, nem unicamente na meta. Apreciada como espaço do “entre”, a transferência procede de uma abordagem da intersubjetividade. Não se trata aqui só da alteridade. Em muitas línguas, o outro é somente uma figura definida a partir do sujeito : outro, otro, altre, altro, other, ander vêm de alter, o segundo termo de “unus alterque”. Similarmente, 72 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA άλλος é concebido em função de όµο, e ﯧﺭ+ é uma modificação do sujeito, אחך quer dizer o que segue e שניé o segundo. Ao contrario, uma filosofia da intersubjetividade implicaria uma abordagem onde ou sujeito ou a consciência não são primeiros, mas resultam de uma relação, precedendo e determinando a subjetividade. O espaço transferêncial seria então um espaço entre: entre-dois, entre-línguas. A transferência, literalmente e etimologicamente transporte, torna-se assim em metáfora (transporte em grego). Na cura, a corporeidade do analista e a do analisante estão transportadas numa pluralidade de línguas e a metáfora da transferência faz comunicar a palavra e o gesto. É precisamente esta multiplicidade material da palavra, do gesto, do pensamento, que não são só lingüísticos, que se transcrevem em pluralidade de associações inter-lingüísticas, durante a sessão, e depois, durante a escritura narrativa da cessão. Para transcrever essa multiplicidade material, às vezes línguas plurais tornam-se necessárias. Mais concretamente, é preciso que o analista de um paciente poliglota ou multilíngüe seja ele também poliglota ou multilíngüe? É certo que uma ou mais línguas comuns ao analista e o analisante permitem às vezes, ao primeiro, encontrar os percursos do pensamento e as conexões significantes do segundo, como vimos. Más isso não basta. Além disso, estas línguas comuns podem introduzir o analista na posição imaginária de onipotência e onisciência: assim não se daria conta do limite necessário na ilusão de compreender, para poder escutar o analisante. Isso poderia mesmo dar lugar à fantasia ante-babélica de uma língua originária, de uma comunicação total, unitária. Igualmente, pelo analisante, uma segunda língua em comum com o analista poderia dar origem a uma atitude de sedução, a fantasias de conivência e de pertença à mesma comunidade. O analista deve ficar atento para que esta conivência não seja forte demais e introduza uma ilusão de simetria e reciprocidade, reduzindo o analista à posição imaginária de um semelhante. O poliglotismo tem limites : o uso pelo paciente de uma outra língua pode manifestar uma certa recusa de se comunicar e corresponder, no que diz respeito ao analista, a uma demonstração de onipotência. Outrossim, não se deve confundir a divisão subjetiva do paciente com a dicotomia imaginária de não saber se pertence mais a uma cultura ou à outra. Portanto, o poliglotismo pode ajudar no trabalho terapêutico só no sentido de que esta língua ante-babélica da transferência nunca seja atualizada, mas possa ressoar como um original perdido para sempre, um mito heurístico de espaço entre, impossível de realizar, mas incoativo, sempre em transformação. Única ou plural, uma língua abunda em numerosas vias associativas. Portanto, da poliglossia, é a polifonia que se revela útil para o analista, favorecendo uma escuta de numerosos discursos, vias associativas, experiências. O significante na psicanálise não é apenas um significante lingüístico. Ainda que a área do psicanalista seja estruturada pelos efeitos da linguagem, não é estruturada só por eles: os efeitos do corpo e os da lei apontam a heterogeneidade da 73 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA pessoalidade psíquica. O discurso do inconsciente é polifônico e poligráfico, não se reduzindo à linguagem. O trabalho analítico tenta restituir ao discurso o seu polilogismo funcional, a sua plurivocidade dialógica. Com respeito a este discurso polilógico, não existe uma especificidade dos pacientes poliglotas ou multilíngües, exceto porque neles a organização multilingüística, o funcionamento polilógico, destaca-se com mais claridade. Neste sentido, o trabalho com poliglotas e multilíngües pode favorecer a pluridimensionalidade da escuta analítica. Neste mesmo sentido, a transcrição da sessão posteriormente, a narração transferencial, ao se fazer em muitas línguas, tenta recapturar esta dimensão poligráfica. Concluamos assim que a mobilidade psíquica e a criatividade da linguagem provêm só de uma mistura, uma constante contaminação entre línguas, como aquela mescla presente na poesia do trovadores da Idade Média, que circulavam entre varias culturas. Trovador vem do árabe اﺭ1ﺭ2, literalmente “a alegria do giro e do estribilho que gira na música”. Os trovadores foram filhos do 1ﺭ2, a música e a poesia refinada. Suas mães eram criadas estrangeiras, escravas que compartilhavam o leito dos generais árabes, rainhas do 1ﺭ2. Estas belas estrangeiras tinham filhos meio-árabes e meio-mundo, aos quais falavam com língua estrangeira, erros e poesia. Em árabe, a mesma palavra ﻟﺣنdesigna a incorreção gramatical e a melodia. E estas melodias erradas giravam nas cortes e nos salões dos estetas. Girar. اﺭ. اﺭ1ﺭ2, trovador. Cabe desejar aqui pela escuta analítica que seja musical! 74 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Phénoménologie de l’affectivité et métapsychologie de l’affect : Considérations sur un parcours de recherche Thamy Ayouch Université de Lille 3 Ce travail de recherche doctorale vient retracer un parcours à la fois subjectif et académique, où l’intersection de deux disciplines reprend la croisée de question personnelles et théoriques. Une posture subjective, dans laquelle, sur les plans culturel, linguistique, géographique, le truchement, le passage ou le gué l’ont toujours, chez moi, emporté sur l’identité fixe exclusive, a trouvé un écho théorique dans ce dialogue entre disciplines. Issu d’un cursus philosophique et linguistique, j’ai pour ainsi dire rencontré la psychanalyse d’abord de manière théorique, dans le cadre d’un travail de recherche sur la phénoménologie psychiatrique. La découverte, antérieure, chez Merleau-Ponty, d’une pensée vivante et d’un style philosophique dont la précision le dispute à l’élégance, a captivé l’étudiant de philosophie que j’étais. Amené à travailler par la suite sur l’intersubjectivité dans son œuvre, j’ai trouvé dans ce thème une voie d’accès à cet autre de la phénoménologie qu’est la psychanalyse. L’initiation de cette recherche doctorale a alors coïncidé avec une formation universitaire nouvelle, en psychologie clinique, et ce travail s’est vu modifié, enrichi, complexifié, au gré d’une expérience psychanalytique personnelle. Comme guide constant de cette recherche a prévalu la continuelle interrogation de Merleau-Ponty sur ses propres concepts, l’auto-questionnement incessant d’une pensée qui, à défaut d’une expérience clinique psychopathologique, présente une irréductible incarnation et une obligeance tout exacte devant la concrétude de la corporalité, d’autrui, du temps ou de la perception. Cette recherche a débuté par une question principale, transformée au gré de la réflexion : parle-t-on de la même chose, en psychanalyse et en phénoménologie, lorsqu’il est question d’inconscient ? Si la phénoménologie de Merleau-Ponty ne manque pas d’aborder bien des thèmes psychanalytiques, explicitement exposés ou plus implicitement convoqués par ses propres analyses, qu’en est-il, dans cette phénoménologie, de l’objet central de la recherche psychanalytique, de la thèse freudienne fondamentale posant un inconscient, coupé de la conscience, et à laquelle il n’advient que par ses effets ? Adressée à la fois à la psychanalyse et à la phénoménologie, la question de l’inconscient soulève celle de son mode d’attestation, d’apparition, de figurabilité. Interroger l’attestation de l’inconscient, dans la vie de la conscience ou dans la théorie, ne relève toutefois pas ici d’une démarche de vérification ou de recherche de preuve – le propos n’a été en aucun cas de tenter d’invalider des thèses de la psychanalyse ou d’en présenter une reconstruction spéculative rationnelle, dans un cartésianisme simplifié reposant les pierres de Dieu, d’autrui, du monde et du corps sur le socle du doute hyperbolique. Aborder l’inconscient depuis le cogito, et plus globalement, depuis la conscience serait commettre un 75 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA contresens majeur que les psychanalystes n’ont de cesse de reprocher aux philosophes. C’est précisément la gageure principale à laquelle s’est heurté ce travail : comment faire dialoguer deux disciplines dont les positions, les visées, les méthodologies, les voies d’approche et l’expérience concernant l’inconscient et la conscience semblent radicalement opposées ? La confrontation entre conscience et inconscient décide de la divergence classique dans les procédures de savoir de la phénoménologie et de la psychanalyse : à la description phénoménologique, soucieuse de s’atteler à ce qui apparaît directement, on oppose habituellement la construction psychanalytique, érigeant des interprétations, des hypothèses ou des théorisations dont l’essentiel échappe à toute manifestation directe. Pour le phénoménologue, la construction, tributaire de l’inattestable, reste métaphysique : elle l’entraîne hors de son domaine. Pour le psychanalyste, la description ne se confine parfois qu’à l’« illusion d’optique » : lorsqu’elle ne procède pas d’une « captation imaginaire », elle se cantonne sinon à la conscience du moins au préconscient. L’exclusion resterait alors mutuelle, sauf à reporter la question sur le plan épistémologique, à interroger l’inconscient à la fois comme contenu théorique de ces deux disciplines et comme moteur de leur théorisation. La réflexion nous a donc conduit à interroger la fonction de la théorisation et sa valeur pour chacune de ces disciplines. Il s’agissait d’analyser la fonction de la production d’une théorie dans la construction épistémologique de chaque discipline mais aussi sa valeur interne et interdisciplinaire : sa portée, son ambition ontologique ou seulement modélisatoire, son aspiration à l’universalité, sa temporalisation – en un mot, sa détermination affective. Le concept premier d’inconscient a donc cédé le pas, nous allons le montrer plus précisément, à celui, plus circonscrit, d’affectivité et à son pendant psychanalytique d’affect, dans le souci de mener toujours conjointement la réflexion sur le contenu doctrinal – l’affect en métapsychologie, l’affectivité en phénoménologie, - mais aussi sur le plan métathéorique, épistémologique : l’affectivité dans la théorie. C’est cette réflexion conjointe sur les plans thématique et épistémologique que nous avons cherché à retrouver dans l’œuvre de Maurice Merleau-Ponty, et c’est l’entrelacs de ces deux plans que nous avons cru lire dans un de ses derniers textes : la « Préface » à l’ouvrage d’Angelo Hesnard L’œuvre et l’esprit de Freud. De manière synthétique, nuancée, et inspirée, Merleau-Ponty effectue une véritable Aufhebung de ses positions quant à la psychanalyse, dans le double sens d’un dépassement de ses critiques les moins avisées, et d’une conservation de ses percées les plus hardies, pour proposer d’orienter la recherche vers la convergence de ces disciplines. « Une philosophie peut-être plus mûre, écrit Merleau-Ponty, et aussi la croissance de la recherche freudienne nous feraient aujourd’hui exprimer autrement les rapports de la phénoménologie et de la psychanalyse, (…) et nous rendrait, pour finir, moins indulgent pour nos premiers essais que le docteur Hesnard veut bien l’être ». De ces « premiers essais » à une phénoménologie qui « descend dans son propre sous-sol » et se retrouve « plus que jamais en convergence avec la 76 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA recherche freudienne », s’étend la pensée merleau-pontyenne, depuis la Structure du comportement jusqu’au Visible et l’invisible, dans une évolution dont nous avons souhaité mesurer l’ouverture à la psychanalyse. Nonobstant toutes les réserves premières, le concept d’inconscient n’est pas soudain reconnu par Merleau-Ponty après avoir été nié, et nous avons fait le pari, dans cette analyse, d’un cheminement continu, sans rupture ni tournant, dans la pensée merleau-pontyenne à l’endroit de l’inconscient. Une double conséquence s’en est suivie dans notre lecture : nous avons choisi de voir, dans une œuvre en devenir, les développements ultérieurs déjà en gésine dans les premiers textes ; mais aussi de concevoir qu’une pensée explicite charrie, plus qu’un impensé, d’implicites prolongements, que nous avons reliés à l’affectivité. Nous avons donc, dans un premier temps, cherché à étudier les positions explicites du philosophe à l’endroit de l’inconscient, à travers trois motifs principaux : la relecture des critiques du naturalisme et de la mauvaise foi habituellement adressées par la philosophie à la psychanalyse freudienne ; la figure de la dialectique comme clé de lecture de la psychanalyse et de ses rapports avec la phénoménologie ; enfin, le motif de l’indivision institué par Merleau-Ponty entre dedans et dehors, autrui et soi, et en ultime instance entre conscience et inconscient. C’est ce dernier motif qui vaut au philosophe la critique de nombre de psychanalystes, et révèle l’appréhension de l’inconscient toujours depuis une posture phénoménologique distincte de toute définition psychanalytique, bien qu’elle n’accorde pas le primat à la conscience. L’un des résultats de la première partie de cette recherche est alors cette désolidarisation entre le décentrement de la conscience d’une part et la thématique psychanalytique de l’inconscient d’autre part. La phénoménologie merleaupontyenne, dans son investigation du corps, révèle en effet la secondarité constante de la conscience, son enracinement dans un infra-conscient charnel, impersonnel, non thématisé, mais qui n’est pas l’inconscient de la psychanalyse. Celui-ci se distingue de l’inconscient des philosophes, affirme Freud dans L’Interprétation des rêves, il ne peut être appréhendé seulement à partir de la perception, rappellent les psychanalystes lisant l’œuvre de Merleau-Ponty. La continuité entre inconscient et conscience propre aux conceptions de MerleauPonty, fait alors l’objet des critiques conjointes de plusieurs psychanalystes. L’indivision du sentir dans laquelle, à tort, Merleau-Ponty souhaite inscrire l’inconscient psychanalytique s’accompagne d’une séparation, chez le philosophe, entre clinique et théorie psychanalytique, là où les deux doivent rester indissociables dans la perspective freudienne. Sous la catégorie trop générale du sens, affirme J.-B. Pontalis, Merleau-Ponty amalgame relation expressive - où la signification est immanente à l’objet – et relation linguistique – reposant sur la différence entre signifiants – dans une confusion réelle, bien que délibérée, entre les notions de structure et de signification. Au « privilège du visible » chez Merleau-Ponty, J.-B. Pontalis oppose une perte de vue, renvoyant à la perte originaire de l’objet seule garante d’une constitution de la réalité, comme Freud le souligne dans La Négation. Soulignant que l’inconscient ne peut être appréhendé à partir du sens, mais du 77 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA désir, André Green soutient que le passage des processus primaires, négligés par Merleau-Ponty, aux processus secondaires ne s’effectue que sur fond d’une perte d’objet, fondatrice du désir, et que Merleau-Ponty ne thématise pas. Plus sévère est encore la critique de Lacan, qui dénonce lui aussi l’absence de dimension symbolique propre chez Merleau-Ponty : la structure de la réalité n’est pas conçue comme articulation de signifiants. La phénoménologie se cantonnerait alors au seul plan de l’Imaginaire, présupposant dans le corps un lieu de l’unité. Mais la phénoménologie merleau-pontyenne raterait également, selon Castoriadis, l’imagination radicale fondamentale, en accordant un privilège à la perception, et oublierait la primauté de l’institution social-historique reprenant cette imagination radicale. Il n’y aurait donc pas, s’accordent à souligner les psychanalystes, d’univers symbolique distinct chez Merleau-Ponty. Le sujet pré-réflexif, impersonnel que Merleau-Ponty met en exergue ne correspond en rien au sujet barré, coupé, de l’inconscient. Dans un entrecroisement de malentendus, aux contresens que Merleau-Ponty peut effectuer sur certains éléments freudiens correspondraient probablement une lecture parfois hâtives de son œuvre. La phénoménologie pourrait répondre ici que la perte originaire d’objet placée au cœur du psychisme, telle qu’elle est présentée dans La Négation, relève d’une ontologie classique faisant procéder l’Etre d’un Néant premier, et que Merleau-Ponty s’attache à réfuter. A la lumière de sa pensée apparaîtraient en outre les a priori ontologiques dont procèdent chez Lacan le modèle structuraliste d’une primauté du langage, ou, chez Castoriadis, la conception monadologique d’une imagination radicale première, effaçant la distinction nécessaire entre perception et imagination. Nous nous sommes alors proposé de reprendre à nouveaux frais cette analyse des rapports entre phénoménologie merleau-pontyenne et psychanalyse freudienne. Si, comme le souligne Merleau-Ponty dans la préface de 1960 que nous évoquions, « c’est par ce qu’elle sous-entend ou dévoile à sa limite (…) que la phénoménologie est en consonance avec la psychanalyse », il s’est alors agi de pousser la réflexion vers les confins de ces disciplines, de faire porter la comparaison sur une zone limitrophe, une lisière épistémologique entre psychanalyse et phénoménologie où le métissage l’emporte sur la délimitation franche. Cherchant à retracer la « traversée » de la phénoménologie qu’effectue Merleau-Ponty à travers le concept non nommé de l’affectivité, nous avons soutenu que son rapprochement de Freud était à la mesure de son éloignement apparent de Husserl. [Nous avons toutefois préféré garder des réserves à ce sujet : la lecture merleau-pontyenne de Husserl reste précise et s’affine au fil des œuvres, mais elle ne prend pas en compte les nombreux inédits du philosophe allemand, inaccessibles à l’époque, et dont l’ampleur rend très complexe la question d’une fidélité ou d’un contresens de Merleau-Ponty à l’endroit de Husserl. ] 78 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA La question des rapports entre phénoménologie merleau-pontyenne et psychanalyse freudienne s’est alors centrée, plus que sur le concept d’inconscient, sur celui d’affectivité, pour les raisons suivantes. D’abord eu égard à la notion freudienne d’affect : la continuité entre conscience et inconscient reprochée à Merleau-Ponty s’est avérée ici moins problématique. Reprenant la dualité freudienne de l’affect et de la représentation, nous avons soutenu que si la barre entre systèmes conscient et inconscient est tranchée pour les représentations, elle reste poreuse pour les affects, à la fois conscients et inconscients. Un travail parallèle sur la phénoménologie et sur la psychanalyse, s’est alors imposé dans notre seconde partie. - D’une part, nous avons tenté de montrer comment la phénoménologie merleau-pontyenne, dans son lien intrinsèque à la psychologie, son accentuation de la Gestalt, sa prise en compte d’un point de vue de l’enfant, et sa relecture des concept husserliens de réduction et de constitution, réinscrit l’éidétique dans le monde vécu, brouille la distinction entre perception et imagination, définit un symbolisme primaire, un rapport à autrui et des modalités du sentir proprement affectifs… En éclairant la dimension affective de la corporalité, en reprenant les catégories d’institution et de sédimentation, en soulignant l’inscription affective du monde et en développant une quasi-intentionnalité désirante, elle s’institue véritablement en phénoménologie de l’affectivité. - Parallèlement, nous avons tenté de mettre en exergue l’ubiquité de cette notion d’affectivité dans l’œuvre de Freud, et sa reprise problématique par la catégorie d’affect. Loin de se réduire à la seule libido, la perte de sens propre à l’affect conscient, convoque, dans son extension inconsciente, la dualité des pulsions de conservation et des pulsions sexuelles, mais aussi celle des pulsions de vie et des pulsions de mort. En outre, la stratification mise en exergue au fondement de l’affect, succession d’identification primaire, puis secondaire, introduit dans la sédimentation de l’affectivité une source non pulsionnelle, et ajoute au jeu des pulsions une dialectique entre les instances psychiques. Un certain nombre de difficultés ont alors surgi dans la définition freudienne de l’affect, laissant apparaître de nouvelles oppositions entre la phénoménologie de l’affectivité et la métapsychologie freudienne de l’affect, sous la forme principale d’un divorce épistémologique. La définition quantitative de l’affect est en effet représentative de la tentative freudienne de réduire l’aspect qualitatif des phénomènes psychiques pour désolidariser le psychisme de la conscience, mais aussi pour conférer à la psychanalyse l’objectivité scientifique de la physique ou de la biologie. Elle révèle ainsi le primat d’une attitude naturaliste, là où celle-ci, pour la phénoménologie, n’est qu’abstraction seconde, artéfact procédant d’un premier rapport au monde de la vie. La question s’avère toutefois plus complexe : dans la théorie freudienne, l’économique demeure, comme le soulignait Paul Ricoeur, indissociable de l’herméneutique, la force reste conjointe du sens, dans une épistémologie hybride. La quantité définissant l’affect vient alors pointer une complexité que la qualité seule n’épuise pas : elle est l’indexe d’une énigme, celle de la figurabilité de l’inconscient, de la traduction du plaisir, de la transition du somatique au psychique. En ce sens, les apories que présente la catégorie d’affect ne procèdent pas uniquement d’une critique externe de la psychanalyse, 79 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA mais de contradictions internes propres à la théorisation freudienne. En effet, la quantitativité seule ne permet pas de rendre compte de la qualitativité différentielle des strates que nous voyons au fondement de l’affect. Si, dans l’inconscient ou dans le Ça, ne prévaut, entre les pulsions, qu’une différence de degré et non pas de nature, comment maintenir la qualité psychique de l’inconscient, là où la quantité le cantonnerait aux seuls processus somatiques ? Comment alors penser le passage du soma à la psychè, de la force au sens, du quantum au plaisir, sans se contenter de surimposer aux attestations qualitatives, cliniques, des effets de l’inconscient, une substruction physiciste seulement parallèle ? Comment penser un inconscient non représentatif mais qui reste qualitatif ? Dans notre troisième partie, nous avons alors tenté de répondre à certaines de ces apories par une extension de la phénoménologie de l’affectivité. En retour, il convenait de proposer un remaniement des difficultés rencontrées par la phénoménologie dans la notion d’affectivité. Corollaire d’une passivité qui ne peut être totale, l’affectivité soulève la question d’un passage de cette passivité à une activité de la conscience. Ecart par rapport à soi par delà l’immanentisation d’une subjectivité solipsiste, l’affectivité nous est apparue comme fondamentalement intersubjective. La question qui se posait alors consistait à chercher une modélisation permettant de penser la désubjectivation du passage de l’affect à la passion, sans toutefois réduire l’affectivité à la généralité de la tonalité affective – modèle heideggerien, - ou à l’anonymat de la seule pulsion – modèle freudien. C’est alors le statut même de la subjectivité psychique qui nous semblait ici en jeu : la phénoménologie de l’affectivité mise en exergue chez Merleau-Ponty nous a paru à même de le garantir. Au cœur de cette relecture de la métapsychologie de l’affect par la phénoménologie de l’affectivité, nous avons placé la catégorie centrale de phantasia, thématisée par Marc Richir après Husserl. Acte psychique brouillant la différence entre perception et imagination, protéiforme, intermittente, discontinue, non-positionnelle et non-intentionnelle, la phantasia n’est attestable que par son institution dans l’imagination. Dérobement constant à soi, l’affectivité de l’affect conscient s’accompagne souvent d’une perte en significativité liée à une originaire transposition de phantasiai en imaginations. La position affective consciente de la perception est en réalité doublée d’une position affective sinon inconsciente « non vécue », séparée, du moins préconsciente, affleurant juste en dessous. Nous avons alors relu la quantitativité problématique de l’affect inconscient comme quête en figuration propre à toute formation psychique. Le processus de figurabilité de l’affect vient rendre compte de la continuité affectale entre conscient et inconscient. Brouillant la différence entre affects et représentations, il place le motif de la Darstellung, présentation, plus que celui de Vorstellung, représentation, au fondement de l’expression psychique. Cette accentuation de la figurabilité psychique s’est appuyée sur une lecture croisée des motifs de la corporalité, de la perception, de la temporalité psychique et de l’intersubjectivité tels que les présentent la perspective de Merleau-Ponty et celle de Freud ou de Winnicott. Si le corps propre phénoménologique est d’abord corps fantasmatique pour la psychanalyse, seule une généalogie hybride, 80 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA fantasmatico-perceptive du dedans conjoint du dehors, du sujet conjoint de l’objet, contenue dans le modèle merleau-pontyen de la chair, permet de contourner le modèle métaphysique d’une perte d’objet première appréhendant l’Etre à partir d’un Néant originaire. La catégorie de la phantasia vient alors lier la perception, chez Merleau-Ponty, à l’hallucination, dans une grande similitude avec les développements récents de la psychanalyse sur la figurabilité psychique. Dans l’impersonnalité qui la festonne, la perception s’ouvre à une régrédience, permettant d’y inscrire un mouvement affectal vers la figurabilité. En résulte un nécessaire entrecroisement entre pulsionnel et perceptif, dedans et dehors, sujet et autrui, au fondement duquel nous avons placé le mythe heuristique d’une origine du psychisme humain dans un espace intersubjectif, transitionnel, levant les apories freudiennes du narcissisme primaire. De ce modèle plaçant l’intersubjectivité au cœur de la figurabilité affectale, résulte une conception double du transfert. Lieu d’attestation de phénomènes archaïques autrement inaccessibles à la phénoménologie, le transfert articule une même quête en figurabilité de l’affect, et implique par leur affectivité tout autant l’analyste que l’analysant, sur le double plan de la cure et de sa théorisation. Les conséquences de cette éthique analytique permettent alors d’éviter le réductionnisme propre à certaines « techniques thérapeutiques » se prévalant d’une neutralité toute-puissante du thérapeute, attelé à vaincre la résistance du seul patient par des techniques éducatives, ou à redresser ses schémas de pensée défaillants… Qu’est alors cet « inconscient » que nous présentons entre guillemets chez Merleau-Ponty ? Ce n’est ni un ensemble de pulsions, ni le lieu de représentations refoulées, ni une conscience seconde au fait de la vérité. S’il n’a pas de régime propre qui le distingue de celui de la perception, à laquelle il est mêlé comme la généralité de mon corps à ma conscience, il procède de cette intentionnalité affective en perte de sens, il présente la simultanéité de la présence et de l’absence, la charnière entre le soi et le monde, la membrure d’intersubjectivité au fondement d’un processus de figuration affectale. Ce n’est donc pas l’inconscient psychanalytique que la phénoménologie de Merleau-Ponty appréhende à partir de la perception, mais, de manière plus circonscrite, la quête en figurabilité de l’affect. En ce sens c’est la thématisation de cette quête en figurabilité que nous avons proposée comme lieu de ce dialogue entre phénoménologie merleau-pontyenne et psychanalyse freudienne, confluent dont le partage des eaux reste emmêlé, au risque d’être trouble. Nous commencions par indiquer l’entrelacs entre questions théoriques et questions subjectives dont provient ce travail. L’entrecroisement d’une posture subjective et d’une procédure de théorisation, que nous avons tenté de retrouver dans la dimension affective de la théorie à la fois en phénoménologie et en psychanalyse, nous ne pouvons manquer de l’appliquer à ce travail, pour en indiquer les limites. Limites de fond, lorsque la construction vient remplacer la description, ou lorsque la perspective d’une discipline vient parfois forcer le sens de l’autre, dans des simplifications contestables. Limites de forme également, là où le style propre à une subjectivité vient accuser des maladresses de syntaxe, des facilités de structure ou des erreurs de frappe, que l’urgence de l’écriture 81 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA seule ne saurait justifier, et dont je vous prie de bien vouloir m’excuser. Devant les limites de fond, à charge à cette théorisation d’éviter le dogmatisme de la doctrine, en se proposant comme ouverture propédeutique à une réflexion susceptible d’être constamment remise sur le métier. Les conclusions ici atteintes se présentent comme autant de résultats ponctuels, ouverts à la révision qu’apporterait une nouvelle réflexion, mais aussi une pratique analytique réinscrivant cette construction théorique dans l’affectivité du transfert, la rectifiant constamment, et la gardant ainsi de toute rigidification. 82 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A maternagem em uma família homoafetiva feminina Ana Laura Moraes Martinez 13 Profa. Dra. Valéria Barbieri 14 Universidade de São Paulo D. W. Winnicott (1948) expandiu o campo da Psicanálise quando apontou que um bebê não existe sem sua mãe ou cuidador, chamando a atenção para a extrema dependência do bebê em relação ao ambiente e para a importância de um ambiente suficientemente bom no desenvolvimento do self. Na sua definição da função materna, o autor destaca suas funções de continência, holding e capacidade de manter a ilusão e a onipotência infantil. Estas características, muito mais do que atreladas ao sexo biológico do cuidador, parecem estar ligadas às funções mentais e a uma condição psíquica capaz de suportar, durante algum tempo, a regressão materna primária. Diante disso, o presente trabalho tem como objetivo narrar o estudo de caso feito com uma família homoafetiva feminina, composta de duas mulheres, sendo uma mãe biológica de um menino de sete anos e sua companheira. Para a coleta dos dados foram realizadas: uma entrevista individual semi-estruturada com cada uma das mulheres. Na análise, utilizou-se o referencial da psicanálise winnicottiana. Como resultado, foi possível constatar que a função materna foi desempenhada não pela mãe biológica do menino, mas sim, pela sua companheira, uma vez que a mãe deste não teve condições de suportar a regressão, mantendo-se bastante racional e distante afetivamente do filho, tanto durante a gravidez como após o nascimento deste. Palavras-chave: Psicanálise; Homossexualidade Função Materna; Desenvolvimento Infantil; D. W. Winnicott (1948) expanded the field of the Psychoanalysis when he pointed out that a baby could not exist without his/her mother, calling attention for the extreme dependence of the baby regarding the environment, and the importance of a good-enough mother his/her self development. In his definition of mothering, Winnicott stress its functions of holding and capability of keeping baby’s and omnipotence. These characteristics depends upon parent’s mental capability of supporting the motherly primary regression, rather than his/her biological sex. Considering this, the present aims to present a case study of a homosexual family, composed of a biological mother of a seven-year-old boy and her companion. It was performed an individual semi-structured interview with each one of the women. The theoretical foundation for data interpretation 13 Doutoranda em Psicologia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), Psicóloga Clínica de Orientação Psicanalítica, Docente no Curso de Psicopedagogia Clínica e Institucional do Centro Universitário Barão de Mauá. 14 Docente do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP). Atua na área de Avaliação Psicológica, com ênfase no Psicodiagnóstico Inteventivo de Orientação Psicanalítica. 83 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA consisted of winnicottian psycho-analysis. The interviews showed thar motherly function was performed not by the biological mother of the boy, but by her companion, because the former couldn’t stand the regression, remaining quite rational and emotionally distant from her son, both during pregnancy and after his birth. Key-words: Psychoanalysis; Homosexuality. Motherly Function; Child Development, Introdução As inúmeras configurações familiares presentes na atualidade, tais como as famílias recompostas ou reconstituídas, famílias monoparentais materna ou paterna, ou ainda, as famílias homoafetivas masculinas e femininas têm se apresentado na realidade e merecem ser investigadas e discutidas. Se por um lado, esta diversidade abre espaço para que se possa romper com o modelo predominante da família nuclear, formada por pai, mãe e filhos, por outro é possível se afirmar que a Psicologia e, acima de tudo, a Psicanálise, ainda não possuem modelos teóricos consistentes para abarcar toda esta diversidade. Isso se dá em grande parte porque o escopo teórico da Psicanálise foi constituído e pautado num modelo de família tradicional, a partir do qual fazia sentido, por exemplo, discutir a questão do Complexo de Édipo e da triangulação afetiva. Entretanto, partindo de uma Psicanálise mais contemporânea, encontramos D. W. Winnicott, discussões psicanalíticas, a importância real desenvolvimento infantil, além da importância de nos primeiros meses de vida. tradicional para uma mais que conseguiu incluir, nas do ambiente externo no uma figura cuidadora estável Em sua teoria do desenvolvimento emocional ele afirma que o bebê se encontra, no início da vida, em um estado de não-integração. Diante de sua fragilidade física e mental, o bebê necessita, para sobreviver, de uma mãe que permaneça existindo no tempo e favoreça sua integração. Expressa esta idéia na célebre frase: “Não existe um bebê sem uma mãe” (Winnicott, 1945). Utilizando a metáfora de Diniz e Rocha (2006), o bebê precisa ver-se refletido neste momento na mãe espelho-mágico. É só neste contexto afetivo intenso que poderá ocorrer o que Winnicott chama de momento de ilusão, essencial para o desenvolvimento do self e para o seu posterior ingresso no universo da cultura e da simbolização. Esta ilusão ocorreria da seguinte maneira. O bebê faminto e inundado por toda espécie de impulsos instintivos vem ao seio pronto para alucinar alguma coisa que possa ser atacada, no auge de sua fome. Neste exato momento surge o seio real, podendo o bebê sentir que este seio era exatamente o que ele havia alucinado. Isso significa que ele pôde utilizar um objeto da realidade (seio ou substituto) como matéria-prima acreditando ter criado esta série de coisas, obviamente enriquecidas pelas próprias características reais do objeto (cheiro, calor, etc.). Neste instante, é crucial que a mãe possa permanecer inteira e constante, deixando o bebê dominar e que não haja nenhuma mudança drástica 84 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA neste processo de amamentação para que o bebê possa começar a sentir que não destruiu o seio devido à sua avidez (Winnicott, 1945). Nesta etapa de dependência absoluta do bebê em relação à mãe, todas as falhas ambientais (da mãe) não são sentidas como vindas de fora, mas como ameaças diretas à sua existência pessoal, geradas pela onipotência típica desta fase (Winnicott, 1956). Por isso é extremamente importante que nesta fase a mãe possa vivenciar o que ele chama de Preocupação Materna Primária, que seria uma sensibilidade exacerbada, vivida pela mulher durante e, principalmente, no final da gravidez. Winnicott compara esta regressão natural da mãe a um quadro esquizóide (assim o seria se a mulher não estivesse grávida) que a torna absolutamente devotada e envolta com as questões do bebê. Afirma ainda que nem todas as mulheres são capazes de vivenciar a regressão (ou ainda, o são com um filho e não com outro), e deixar de lado, mesmo que provisoriamente, todas as outras exigências da vida. Isso consistiria numa “fuga para a sanidade”, que se refletiria no desenvolvimento emocional da criança. As falhas maternas provocariam reações à intrusão ambiental, interrompendo o continuar a ser do bebê. O excesso destas reações não provocaria frustração, mas uma ameaça de aniquilação (Winnicott, 1956). Caso o bebê consiga continuar a ser, sem um excesso de intrusões ambientais, torna-se enriquecido pelas experiências com a mãe e ruma para uma maior integração, atingindo o momento da dependência relativa. Neste momento está pronto para começar a conceber a mãe como um ser inteiro e separado dele. Inicia-se, então, o processo de desilusão, inaugurado pelo desmame. A base fundamental para que este processo ocorra sem grandes complicações diz respeito à vivência de um bom período de ilusão. Isso significa dizer que, se o mundo foi ao encontro da criança, agora esta pode ir ao encontro do mundo (Winnicott, 1982). Para Winnicott, a existência de alguém que possa exercer a função materna (não necessariamente a mãe biológica) no início da vida do bebê é fundamental para que ocorra um desenvolvimento saudável. A pessoa que irá assumir esta função deve ser capaz de: (1) existir e continuar existindo (cheira, respira, pulsa) mesmo após os ataques do bebê; (2) amar de um modo físico, proporcionando calor, contato corporal, movimento e quietude ao bebê; (3) auxiliar o bebê na transição entre o estado tranqüilo e o de excitação, evitando surgir de repente com o alimento; (4) permitir que o bebê domine, estando disposta e de prontidão para atendê-lo; (5) introduzir, aos poucos, o mundo externo, particularmente na figura do pai; (6) proteger o bebê de sustos, tentando manter o clima físico e emocional simples para que o bebê compreenda e rico o bastante para atender suas necessidades; (7) fornecer continuidade ao seu bebê; (8) não apressar seu desenvolvimento, acreditando que ele é um ser humano por direito próprio; (9) tolerar sua falta de integração e seu tênue sentimento de viverdentro-do-corpo (Winnicott, 1948). Dentre todas as funções maternas, Winnicott parece privilegiar, sobretudo, a vivacidade da mãe e sua capacidade de existir por ela própria, chamando a atenção para as mães que se sentem absolutamente responsáveis pela vitalidade 85 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA de seus filhos. Aponta que isso pode ser prejudicial para o desenvolvimento, uma vez que a criança não pode contar com uma mãe que suporte que o bebê brinque sozinho na companhia dela. Esta vivência de estar só na presença do outro é, segundo ele, a base para uma segura capacidade para a solidão essencial (Winnicott, 1958). O aparecimento da figura paterna (não necessariamente o pai) na vida do bebê depende sobremaneira do modo como a mãe faz, aos poucos, esta apresentação. Por isso, é indispensável que haja um pai forte, amado e respeitado pela mãe. A pessoa que irá desempenhar a função paterna deve ser capaz de: (1) auxiliar a mãe a sentir-se bem e feliz, sendo um suporte para ela; (2) manter uma relação sexual estável e saudável com a mãe; (3) dar apoio moral à mãe, sendo uma autoridade que sustenta a lei e a ordem; (4) estar e continuar vivo durante os primeiros anos da criança; (5) servir de um modelo de identificação por causa da sua vitalidade e força. É importante destacar que estas funções não precisam ser desempenhadas, necessariamente, pela mulher (no caso da função materna) e pelo homem (no caso da função paterna). Ao contrário, elas parecem estar mais relacionadas à condição interna de cada genitor na assunção de sua função do que ao sexo biológico de cada um (Winnicott, 1948). Diante desta conceituação, o presente trabalho buscou investigar o estabelecimento das funções materna e paterna em uma família homoafetiva feminina. Dados dos participantes Participou desta pesquisa o casal Márcia e Raquel15, respectivamente com 42 e 54 anos. Ambas estavam em condição de união instável há vinte anos, sendo que uma delas (Márcia) tinha um filho biológico de uma relação heterossexual que manteve durante uma das separações do casal. O menino Diogo tem sete anos e não conhece o pai biológico. Além disso, a mãe biológica nunca conversou com ele sobre sua relação homossexual com Raquel. Residem nos fundos da casa da irmã de Raquel que, segundo ela, também não sabe da união das duas. Ambas trabalham na área da saúde. Márcia mantém relações heterossexuais esporadicamente. Já Raquel afirma ter certeza de sua homossexualidade e do carinho que sente por Márcia. Assim, quando Márcia sai é sempre Raquel quem fica com Diogo, leva-o às consultas médicas, à escola e ao futebol. Durante a gestação e nascimento de Diogo, Raquel sempre acompanhou Márcia às consultas médicas e ultrassons. Logo após o nascimento de Diogo, ambas voltaram a morar juntas (estavam separadas antes disso) e Raquel assumiu grande parte dos cuidados da criança, tal como trocar fraldas, acordar de madrugada, etc. Já Márcia afirma que antes da gravidez era muito largada e que nunca tinha tido vontade de ser mãe. Depois da gravidez ficou mais responsável e madura. Márcia conta ainda que sente que é muito rígida e dura com Diogo e que não entende porque se comporta desse jeito, já que com outras pessoas não é desse jeito. Afirma ainda que sente que ele tem medo dela. Já com Raquel, 15 Todos os nomes dos participantes citados neste trabalho são fictícios. 86 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Diogo se sente confortável e amparado, sendo que tudo que precisa vai pedir a ela. Em relação à união do casal, ambas afirmam que depois que Diogo nasceu, se aproximaram afetivamente, porém se distanciaram sexualmente. Embora a casa tenha dois quartos, Diogo dorme com Márcia na cama e Raquel dorme no chão, ao lado da cama de casal. Afirmam que nunca conseguem manter uma relação sexual tranqüila e que sempre ficam pensando nele, mesmo quando estão no motel. Relataram ainda que evitam trazer amigos homossexuais para casa, pois, no geral eles são muito promíscuos e isso pode ser uma má influência para Diogo (sic). Em relação à revelação de suas homossexualidades para suas famílias, ambas apontam que nenhuma das duas famílias sabe, embora devam desconfiar. Metodologia de coleta e de análise Na coleta dos dados, foi realizada uma entrevista semi-estruturada com cada membro do casal separado, enfocando os seguintes temas: 1) Aspectos da dinâmica do casal (como se conheceram, como é a relação, aceitação da família em relação à homossexualidade); 2) A gravidez (como ocorreu, reações da mãe e da parceira, contato com pai biológico, questionamentos da criança); 3) Cuidados em relação à criança (divisão de tarefas, negociações e conflitos, dificuldades encontradas, impactos na vida conjugal); 4) Significados de maternidade, paternidade e família (como cada um se vê como cuidador, como vê a companheira, o que é ser uma família). A entrevista foi gravada em fitacassete, mediante autorização das participantes e transcrita na íntegra. Na análise, foi utilizado o referencial teórico winnicottiano, particularmente, no que se refere às suas conceituações sobre maternagem e paternagem. Resultados e discussão Diante dos dados coletados, foi possível observar que Márcia (mãe biológica de Diogo) teve muita dificuldade em viver a regressão materna primária, condição sine qua non para o desenvolvimento saudável do self infantil. Apresentando um funcionamento psíquico bastante rígido, fazendo largo uso de racionalizações e negações, pode-se afirmar que a possibilidade de regressão tenha sido bastante assustadora para ela. Tendo vivido em um ambiente familiar também bastante comprometido, Márcia descreve o cuidado infantil que recebera da seguinte forma: A imagem que eu tenho da minha mãe era de uma mãe sargentona. Não lembro dela pegando a gente no colo ou algo parecido. Tivemos uma boa educação, sólida, mas sem muito afeto. O meu pai bebia muito, tinha mulherada na rua e só voltava pra casa de vem em quando. Não lembro da figura dele e nem acredito na figura paterna. Acho que mãe é o negócio mais importante, mas eu não sei o que pensar da minha. 87 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Ao longo de toda a sua entrevista, permeada por muito silêncio e angustia, Márcia se assusta com a possibilidade de estar se abrindo e diz: Nossa, eu to falando bastante. E olha que nem bebi, hein?. Sua dificuldade em brincar e funcionar num nível mais primitivo surge, particularmente, nos momentos em que Diogo solicita sua participação em sua vida infantil. Esta dificuldade relacionada à brincadeira aparece no seguinte trecho, quando descreve Diogo brincando na piscina: Outro dia estava muito calor, aí eu cheguei do trabalho e disse: vou encher a piscina pro Diogo. Aí limpei toda a casa, porque sou neurótica com limpeza, viu?. Limpei tudo, lavei a piscina e tal. Aí ele chegou da escola e entrou na piscina. Ficava me chamando o tempo todo pra ir nadar com ele. Aí eu já fui perdendo a paciência e gritei com ele: Mas, Diogo de Deus, eu sou uma só!. Não tá vendo que eu to cozinhando? É isso que ele faz que me irrita profundamente. Fica toda hora gritando o meu nome sem parar. Não tenho paciência com isso. Ao perceber sua dificuldade de aproximação afetiva em relação ao Diogo, Márcia sente-se culpada, além de ficar enciumada da relação que sua companheira Raquel consegue estabelecer com o menino: Aqui é assim, viu?. Tudo o que ele quer vai direto chamar pela Raquel. É tia Raquel pra lá e pra cá. Nem vem falar comigo, vai direto com ela. Se fica doente, não quer que eu leve no hospital. É ela quem leva. Eu acho que ele ficaria bem sem mim, mas não sem ela. Eu sei que ás vezes pego pesado. O meu apelido aqui é sargentão. Mas eu não sei porque sou assim só com ele. Tenho medo que ele fique revoltado comigo. Falando de sua experiência com a maternidade, Márcia diz que antes era muito largada e sem compromisso com a vida e que sua vida mudou muito após a chegada de Diogo. Quando questionada sobre o pai de Diogo e seu contato com ele, a única coisa que relatou é que não gostaria de tocar neste assunto. Neste momento, o clima da entrevista ficou bastante tenso e ela muito silenciosa. Diz ainda que deseja muito adotar sozinha uma outra criança quando estiver com a vida financeira mais estabilizada Já Raquel apresenta-se mais continente e afetiva, tanto com Márcia quanto com Diogo. Vale ressaltar que no dia da entrevista Diogo estava um pouco febril e ficava solicitando a todo o momento a atenção de Raquel que, ao final do dia, o levou ao médico. É ela também que vai às reuniões do colégio com ele, embora trabalhe mais em número de horas diárias que Márcia. Tendo um posicionamento mais claro e realista da situação conflitiva vivida pela companheira, Raquel diz não concordar com o fato de Márcia esconder o pai biológico de Diogo. Neste sentido, ela diz: Eu acho que toda criança tem que ter direito de conhecer o seu pai. Eu não concordo com o que Márcia faz de esconder o pai de Diogo. Mas, eu não posso interferir nisso porque é uma coisa que ela tem que resolver. Eu converso muito com ela sobre isso, mas parece que ela tem um bloqueio dentro dela. Eu sinto 88 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA que ela vive em busca de se encontrar. Parece que tem um vazio estranho dentro de si que acaba se refletindo na relação dela com o Diogo. Eu falo pra ela: precisa melhorar isso porque o menino acaba ficando com medo de você desse jeito. Digo sempre pra ela: Vocês tem que sair juntos, viajar juntos, sair sozinhos pra passear. Falo isso pra ver se ela consegue conquistar de novo a confiança dele. É interessante situar que Raquel se descreve como uma pessoa que nunca pensou ou teve vontade de ser mãe e que não leva jeito com crianças. Apesar disso, parece conseguir estabelecer com maior facilidade um contato afetivo com Diogo, realizando ela própria a função de maternagem, conforme Winnicott (1956). Desta forma, neste caso pôde-se observar que, embora Márcia tenha vivido todo o processo biológico e físico da gravidez, quem exerceu a função materna, na maior parte do tempo, foi sua companheira. Este dado é importante, pois, recoloca a questão da equivalência entre a gravidez e a disposição para a maternagem. Abre, assim, caminho para se pensar em formas diversas e saudáveis de maternagem não exercidas, necessariamente, pela mãe biológica. Referências Bibliográficas DINIZ, G. C. V. & ROCHA, Z. As metamorfoses do espelho no rosto materno na constituição do self da criança. In: Revista Mal-estar e subjetividade, Vol. VI (1), 2006. WINNICOTT, D. W. (1948). Pediatria e Psiquiatria. In.: WINNICOTT, D. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, p. 233-253, 2000. ________________ (1956). A Preocupação Materna Primária. In.: WINNICOTT, D. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, p. 399405, 2000. _______________ (1958). Psicanálise do sentimento de culpa. In.: WINNICOTT, D. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, p.19-30, 1983. WINNICOTT, D. W. A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: Editora LTC, 1982. 89 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Autonomia, submissão e gestualidade espontânea: Considerações sobre um caso clínico. Antonina de Souza Lopes Muniz-Pimenta16 Cristiane Helena Dias Simões17 Tânia Maria José Aiello-Vaisberg18 Pontifícia Universidade Católica de Campinas Resumo O presente trabalho tem como objetivo refletir teórica e clinicamente sobre fenômenos clínicos que suscitam dúvidas quanto à possibilidade de representarem movimentos criativos e espontâneos ou, pelo contrário, corresponderem a formas veladas de submissão. Articula-se metodologicamente ao redor do estudo do caso de uma paciente, que realizou diversas mudanças concretas de vida, no sentido da aquisição de uma maior autonomia, em registros comportamental e social, a partir do estabelecimento de uma relação bastante engajada com um trabalho de psicoterapia psicanalítica, conduzido a partir de uma perspectiva winnicottiana. O acontecer clínico é minuciosamente examinado, no sentido da transferência e contratransferência. Palavras-chave Falso self – gesto espontâneo – D.W.Winnicott, psicanálise Autonomy, submission and spontaneous gesture: Theoretical and clinical reflections from a clinical case. Abstract The present paper aims to reflect theoretically and clinically about clinical phenomena that raise doubts about the possibility of representing creative and spontaneous movements or ,conversely, they are a veiled form of submission. It is methodologically articulated (based) around the study of a patient's case, who has done several changes of pratical life, towards the acquisition of a bigger autonomy in social and behavioral records from the establishment of a relationship quite engaged with a work of psychoanalytic 16 Psicóloga. Mestranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, com bolsa Capes 2. Especialista em Psicanálise pelo Centro de Psicanálise de Campinas. 17 Psicóloga. Doutoranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, com bolsa Capes 1. Mestre pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. 18 Professora Livre Docente do IPUSP- Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Orientadora Permanente do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Orientadora Colaboradora do programa de Pós- Graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo, Coordenadora da "Ser e Fazer": Oficinas Psicoterapêuticas de Criação do IPUSP e Presidente do NEWNúcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo. 90 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA psychotherapy, conducted from a perspecitve winnicottiana. The clinical case is throughly examined in the sense of transference and countertransference. KEYWORDS False Self - spontaneous gesture – D.W.winnicott - psychoanalysis Ainda que muitos não os considerem estritamente psicanalíticos, os conceitos de falso e verdadeiro self ocuparam importante lugar nas formulações teóricas winnicottianas. A partir de sua prática clínica, Winnicott chegou a utilizá-los quando percebeu que pode ser mais produtivo reconhecer a não-existência do paciente do que trabalhar longamente com suas estratégias defensivas, o que só fortaleceria o falso self, sem favorecer a integração pessoal. Conceituou, assim, o verdadeiro self como posição existencial a partir da qual surge o gesto espontâneo, por meio do qual pode a pessoa sentir-se viva e real, enquanto o falso self corresponderia à submissão, ao sentimento de inutilidade, à futilidade e, finalmente, à impossibilidade do viver autêntico (Winnicott, 1960). À luz de tais conceitos, o presente trabalho tem como objetivo refletir teórica e clinicamente sobre fenômenos clínicos que suscitam dúvidas quanto à possibilidade de representarem movimentos criativos e espontâneos, ou pelo contrário, corresponderem a formas veladas de submissão. O fio condutor dessa discriminação é o exame da contratransferência. Os conceitos de submissão e gestualidade espontânea na obra de Winnicott Winnicott (1960) descreve que é necessário compreender que o self verdadeiro começa a ter vida quando o bebê conta com cuidados de uma mãe suficientemente boa, que lhe viabiliza experiências de onipotência por meio das quais o ser pode emergir a partir do não-ser. Tem aí início um laborioso processo por meio do qual a externalidade do mundo fará sentido para o indivíduo e, aos poucos, poderá se relacionar com aquela. Entretanto, nem sempre o cuidador maternal concreto é capaz de favorecer a ocorrência de experiências de onipotência. Nesses casos, o movimento do bebê é substituído pela conduta da mãe, ocorrendo, então, a submissão daquele. Esse tipo de interação inaugura, na perspectiva do lactente, formas inautênticas de viver, conhecidas como falso self. Desse modo, ele sobrevive de modo submisso, mas não encontra espaço para ser pleno e real. Notamos, portanto, que a teoria winnicottiana sobre o desenvolvimento emocional visa a dar conta da origem de duas posições existenciais fundamentais a partir das quais podem ser compreendidas as diferentes configurações clínicas: o viver inautêntico, submisso e heterônomo e a possibilidade de se sentir vivo, real e capaz de gestualidade espontânea e transformadora de si e do mundo. A nosso ver, tais conceitos possuem grande importância como norteadores da prática psicanalítica, à medida em que instigam a buscar diferenciar, de modo refinado, o quanto as mudanças correspondem a autênticos momentos mutativos ou, ao contrário, a manifestações mais ou menos inteligentes em registro ainda 91 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA falso, defensivo e dissociado. Há que reconhecer que, em terapia, sempre corremos o risco, explicitamente apontado algumas vezes ao longo da obra winnicottiana, de operar uma análise, mais ou menos prolongada, do falso self, que pode propiciar alterações aparentes, sem jamais atingir repercussões verdadeiramente existenciais. O acontecer clínico19 Uma jovem senhora chamada Maria das Dores20 procurou análise seguindo a sugestão do marido, em relação ao qual mantinha um vínculo de grande dependência. Já nos primeiros contatos, demonstrou o desespero em que se encontrava, no contexto de crise conjugal importante, temendo fortemente a ocorrência de uma separação. Valorizava muito o casamento, já que por meio dele conseguira livrar-se da convivência com pais extremamente autoritários, considerando mesmo que renascera, aos dezoito anos, ao casar-se. Após dois meses de tratamento, o marido saiu de casa, deixando-a emocionalmente paralisada, chocada e desvitalizada. Teve então início, na psicoterapia, um processo de tentativa de adaptação à nova situação. Até então, todas as decisões importantes eram tomadas pelo marido, que assumia de modo desenvolto uma posição de liderança do casal, permitindo que se ocupasse, de modo mais ou menos autônomo, apenas das tarefas domésticas. Acostumada a tudo fazer em companhia do esposo, passou a enfrentar a possibilidade de realizar sozinha algumas atividades cotidianas fora do lar, como pagar contas ou ir à missa. É importante salientar que, durante o primeiro ano de análise, chorava profundamente durante as sessões. Permanecia em casa a maior parte do dia, saindo apenas para ir ao banco, ao trabalho e à missa. Todas as outras atividades, como ir ao baile, nadar, dirigir e namorar, emergiram no decorrer dos outros anos. Algumas sessões foram dedicadas à reorganização prática de sua vida. Abertura de conta bancária, procedimentos a adotar para pagamentos, administrar o dinheiro e questões correlatas foram assuntos de muitos encontros com a terapeuta. Todos esses aspectos foram discutidos e trabalhados com a intenção de prover o holding necessário para que pudesse assumir uma posição existencial mais ativa. Entretanto, o cumprimento das tarefas, mesmo gerando resultados práticos satisfatórios, não causava bem-estar, pois era vivido de forma ambivalente, na qual se mesclavam alívio e dor emocional, já que, a seu ver, tudo eram exigências de que estaria poupada se estivesse casada. Repetia, em inúmeras sessões, que sua vida anterior à separação era ótima, perfeita e isenta de 19 Este caso foi atendido por Antonina de Souza Lopes Muniz Pimenta. 20 Usamos um nome fictício para proteger a identidade da paciente. Outros cuidados foram também tomados no sentido de impossibilitar sua identificação, por razões éticas. 92 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA conflitos, uma vez que entre os cônjuges teria reinado uma completa afinidade e concordância a respeito de todas as questões. É bem verdade que chegaram a ocorrer, algumas vezes, confissões sobre o fato do marido beber de modo exagerado, mas esta situação não modificava sua visão sobre o casamento e o cônjuge, que considerava “perfeitos”. Desse modo, mudanças efetivas pragmáticas, por meio das quais se transformava de esposa dependente em adulta capaz de se cuidar, eram acompanhadas por um discurso de enaltecimento constante da vida conjugal passada. As modificações no estilo de vida levaram-na a um relacionamento prazeroso com outro homem, o que muito a surpreendeu. Chegou a fazer várias viagens, visitando lugares que desejara conhecer e para os quais o marido jamais a levara. Além disso, começou a praticar esportes, fez novas amizades e começou a sair à noite para dançar, coisa que jamais cogitara fazer durante a vida conjugal. Outra grande mudança, intensamente trabalhada nas sessões, foi recomeçar a dirigir e comprar um automóvel, fato cujo significado se esclarece quando lembramos que não conduzia há vinte anos por medo. Sempre houve dúvidas sobre a eficácia do tratamento, ao qual se referia como "isto daqui", uma vez que a terapeuta não poderia devolver o casamento e a vida de outrora. Manifestou várias vezes vontade de interromper o trabalho, ouvindo, nestas ocasiões, ponderações sobre a impossibilidade de retorno ao passado, mas de mudança e construção do futuro, a partir da elaboração sobre seu próprio acontecer atual. Ouvia e então desistia de abandonar a psicoterapia, asseverando, no entanto, que sequer conseguia imaginar uma alta tranqüila e de comum acordo, uma vez que não teria experimentado, em toda a sua vida, uma verdadeira relação de troca e parceria. Ao final do quinto ano de análise, solicitou judicialmente a separação do marido, para seu próprio espanto. Logo após, conseguiu também pedir demissão do emprego que, aliás, fora-lhe arrumado pelo ex-esposo. Acreditar que ela mesma poderia escolher onde e com quem trabalhar foi fruto de um processo dolorido, intenso e também gratificante, já que significava romper mais uma vez com pessoas ligadas à época de seu casamento. Cerca de dois meses após a complementação dessas mudanças de vida, o desejo de parar a análise passou a mostrar-se de modo mais consistente. O trabalho finalizou seis meses depois. Por outro lado, parece fundamental completar este relato de acontecimentos com considerações acerca dos sentimentos e impressões vividas pela analista ao longo destes anos. No início do tratamento, a terapeuta sentia-se contratransferencialmente impactada com o que, a falta de termo mais claro, poderia ser chamado de "não-existência" da paciente, que parecia "ser", de modo exclusivo e total, nada mais do que o sofrimento derivado das mudanças do que esteve anteriormente estabelecido em sua vida. Não se tratava, exatamente, de sentimentos depressivos fundados na perda de algo afetivamente significativo, mas de outra coisa, que se ligada mais difusamente ao apego à rotina conhecida. Com o passar dos anos, parecia sempre muito 93 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA orgulhosa das conquistas experimentadas, como se as questões discutidas no espaço analítico fossem "uma lição de casa", que deveria ser executada em seguida. Assim, ainda que relatasse mudanças que, num registro social, são freqüentemente compreendidas como sinal de iniciativa e assertividade, era visível, no âmbito da transferência, que eram usadas com o objetivo afetivoemocional de submeter-se ao que fantasiava serem os desejos da analista. Assim, acabou adotando comportamentos que julgava passíveis de serem aprovados pela terapeuta ou que esta mesma apresentaria, a seu ver, em situações análogas. Entretanto, com o passar do tempo, e a efetiva realização de mudanças comportamentais bastante evidentes, paciente e terapeuta viveram uma experiência de entusiasmo compartilhado, na medida em que esta última se via cada vez mais inclinada a interpretar toda a situação como evidência de um amadurecimento emocional que estaria permitindo o abandono da submissão em favor de uma saudável afirmação de si mesma. Porém, a auto-satisfação da paciente, certo ar de alívio e o insistente desejo de finalizar a análise também repercutiram, num plano sensível, na analista, de um modo um tanto dissonante, fazendo surgir dúvidas sobre sua autenticidade, já que o que ali brotava como suposto "gesto espontâneo" se casava também, perfeitamente, com um padrão socialmente estabelecido, em certos meios culturais, acerca da mulher divorciada bem sucedida. Não ocorreu, contratransferencialmente, uma impressão de ter sido enganada pela paciente, mas sim uma percepção da possibilidade de que um falso self cuidador tratou de substituir as antigas figuras diante das quais se submetia, em busca de segurança, por outra – a analista - que, em termos concretos, preza, verdadeiramente, valores de respeito à espontaneidade e à liberdade pessoal. O verdadeiro e o falso self na clínica O relato clínico descrito merece ser discutido, por levantar importantes questionamentos sobre o que pode ocorrer durante um processo analítico, na linha da discriminação ao que corresponde à gestualidade espontânea ou à submissão ao outro. Maria das Dores comportou-se de modo mais autônomo e independente, o que incluiu, por exemplo, gerir a vida financeira e se tornar mais responsável por si mesma. Porém, muitas das conquistas concretas de vida alcançadas parecem ter sido fruto de busca por responder às supostas expectativas da terapeuta, e não a um movimento autêntico. Nesse sentido, acreditamos que, apesar da analista ter mantido uma atitude eticamente dedicada à paciente, as mudanças que emergiram não foram expressão do verdadeiro self, mas ao contrário, representaram uma submissão, mesmo movimento que fazia com seu exmarido. Entretanto, não podemos deixar de mencionar que pôde adquirir competências, que permitiram um desembaraço maior em relação a situações práticas da vida cotidiana. 94 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Trabalharemos com o conceito de “competência” (Arruda-Botelho e AielloVaisberg, 2006) como algo que se diferencia de “capacidade”. Winnicott, em diferentes momentos na sua obra, utiliza o termo “capacidade”, que conota a ocorrência de avanços importantes no processo de amadurecimento pessoal, tendo se referido à capacidade de ficar só, à capacidade de se preocupar, à capacidade de acreditar... A seu ver, quando a criança conta com cuidados parentais suficientemente bons, tem condição de desenvolver capacidades a partir do potencial herdado. De acordo com Hopkins (1997) Winnicott não escolheu o termo “capacidade” casualmente, já que apreciava estudos etimológicos, que indicam que o termo deriva do latim capere e significa segurar e conter. Relaciona-se, também, ao adjetivo capax, que significa amplo. Arruda-Botelho e Aiello- Vaisberg (2006) descrevem que a capacidade se desenvolve ao longo de uma experiência criadora e integrada, contribuindo assim para um viver saudável. Já as competências corresponderiam a habilidades técnicas, que podem ocorrer de modo dissociado, a partir da exploração do intelecto. Parece-nos correto compreender que a paciente desenvolveu várias competências como habilidades dissociadas e, assim, ligadas ao falso self, e não capacidades autênticas. A nosso ver, os conceitos de competência e capacidade podem nortear proveitosamente exames da prática psicanalítica, na medida em que favorecem a manutenção de uma clara visão acerca do que se passa em registro comportamental, de forma eventualmente dissociada, e o que ocorre no registro existencial. Não se trata, contudo, de estabelecer uma rígida separação entre tais domínios, como se nunca se relacionassem, pois é possível que a partir de mudanças comportamentais, compreendidas como competências, venham a surgir novas oportunidades concretas de vida que favoreçam transformações genuínas. Afinal, mesmo manifestações do tipo falso self, que compreendemos, à luz dos ensinamentos de Bleger (1963), como a melhor conduta possível, fazem parte dos esforços inconscientes, mas eventualmente bastante efetivos, de retomar o potencial criativo e espontâneo e, dessa forma, dar um sentido único e verdadeiro à existência. Referências Bibliográficas Arruda- Botelho, A. ; Vaisberg, T. M. J. A. Desenvolvimento da capacidade de escrever: da competência dissociada à gestualidade espontânea e criativa. In: XI Colóquio Winnicott - Criatividade e Experiência Cultural, 2006, São Paulo. Programa e Caderno de Resumos do XI Colóquio Winnicott - Criatividade e Experiência Cultural. São Paulo : Ed. Leopoldo Fulgêncio, 2006. p. 15-16. Bleger , J. (1963) Psicologia da Conduta. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. Hopkins, B. Winnicott e a capacidade de acreditar. In: Livro Anual de Psicanálise, Tomo XIII, IJPA, 1997, Editora Escuta, São Paulo, p.111-122. 95 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Winnicott, D.W. (1960) Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self. In: Winnicott, D. W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre, Artes médicas, 1983. p.128-139. 96 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O sentido do ser voluntário: uma pesquisa fenomenológica Bruna Fenocchi Guedes Mauro Amatuzzi PUC-Campinas Resumo No Brasil, existem iniciativas sociais e de voluntariado desde o século XVI, porém essas atividades tornaram-se mais efetivas e significativas a partir do século XX e ganharam força atualmente. A escolha de 2001 como Ano Internacional do Voluntariado é um indicativo da crescente disposição da população e das instituições face às mais variadas formas de solidariedade e participação social. Além disso, incentivou o aumento das iniciativas solidárias e contribuiu para elevar, enfatizar e constituir o voluntariado como tema emergente dando a sensação de “estar na moda”. A forma como o voluntariado é desenvolvido e suas conseqüências dependem, em grande parte, das crenças que o embasam; caridade, filantropia e solidariedade são algumas delas. Preocupada com o “modismo” e com a efetiva transformação social, a autora desta pesquisa, questiona quais seriam as motivações que levam as pessoas a se tornarem voluntários e formula seu objetivo por um caminho fenomenológico: compreender os sentidos que a prática do voluntariado tem para as pessoas que se dedicam a ele. Assim, a partir de elaboração teórica, breve revisão histórica e, principalmente, de relatos de experiências vividas por voluntários, a pesquisa pretende compreender melhor o voluntariado contemporâneo e promover discussões necessárias e pertinentes ao tema. A pesquisadora imagina que estarão entre as conclusões desta pesquisa a de que o voluntário contemporâneo tem consciência de seu papel fundamental na sociedade e sabe que não está apenas fazendo o bem e sim facilitando mudanças sociais efetivas e duradouras. Palavras-chave: pesquisa fenomenológica; voluntariado The sense of being voluntary: a phenomenological study Abstract In Brazil, there are social and voluntary initiatives since the sixteenth century, but these activities have become more effective and meaningful from the twentieth century and have gained strength in present day. Choosing 2001 as the International Year of Volunteers is an indication of the growing concern of the population and institutions in the face of all forms of solidarity and participation in activities which support society. Moreover, it encouraged the growth of solidarity and contributed toward strengthening and emphasizing voluntary work as an emerging theme giving the impression that it is "trendy and fashionable." The way in which volunteer work is developed and its consequences depend largely on the beliefs on which it is based; charity, philanthropy and solidarity are some of them. Concerned with the emerging "fashion" trend and with the effective social transformation, the author of this study, questions what motivates people to become volunteers and formulates its goal in a phenomenological way: 97 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA understanding the reasons behind those who practice volunteer work. Thus, through the elaboration of the theory, a brief historical review and most importantly, reports of experiences by volunteers, the research aims to better understand the contemporary volunteer work and promote the necessary and relevant discussions to the subject. The researcher believes that one of the conclusions this study will show will be that the contemporary volunteer is in fact aware of his/her fundamental role in society and knows that by volunteering he/she is not only doing good but also facilitating effective and lasting change in society. Key-words: phenomenological research; voluntary Este trabalho apresenta a pesquisa de doutorado que está sendo desenvolvida por Campos (2006-2010), sob orientação de Amatuzzi, no Programa de Pós Graduação em Psicologia do Centro de Ciências da Vida, da PUC-Campinas, e pretende compreender os sentidos que a prática do voluntariado tem para as pessoas que se dedicam a ele. Neste trabalho é apresentado o voluntariado e sua relação com o tempo e com crenças e motivações e a pesquisa propriamente dita. Voluntariado: hoje, ontem, amanhã Conceituar definitivamente voluntário e/ou voluntariado é bastante complexo e difícil; no entanto, pode-se afirmar que se trata de atividade desenvolvida espontaneamente, ou a pedido, sem remuneração, na qual está presente a proposta de comprometimento social, os sentimentos de solidariedade, bondade e afeto, o desejo de transformação e o exercício da cidadania. (Garay e Mazzilli, 2003; Silva, 2006). No Brasil, existem iniciativas sociais e de voluntariado desde o século XVI, porém essas atividades tornaram-se mais efetivas e significativas a partir do século XX e ganharam força no atual século; afinal o voluntariado é um produto histórico que se desenvolve ao longo do tempo e está em permanente evolução (Dal Rio, 2004). A escolha de 2001 como Ano Internacional do Voluntariado é um indicativo da crescente disposição da população e das instituições às mais variadas formas de solidariedade e participação social. Além disso, o Ano Internacional do Voluntariado incentivou o aumento das iniciativas solidárias e contribuiu para elevar, enfatizar e constituir o voluntariado como tema emergente e fashion, dando ao voluntário a sensação de “estar na moda” (Lopes, 2006; Ribas, s.d.; Silva, 2006; Sung, 2003; Teodósio, 2004; Vilela, 2003). A mídia que, mais do que qualquer outro instrumento, tem cooperado para a criação de uma cultura de participação social e engajamento voluntário, apoiada por anúncios publicitários com frases de efeito, utiliza argumentos como cidadania, sentimentos humanitários, filantropia e caridade, constrói e reforça na população a vontade de contribuir socialmente. Além disso, utiliza apelos do gênero nacionalista, sentimentalista e de cidadania, repassando à sociedade civil 98 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA brasileira a responsabilidade por solucionar os problemas sociais existentes. No entanto, por sua velocidade, grande penetração e abrangência, a mídia pode ser responsável pela disseminação da idéia e pela produção de discursos da sociedade em relação à “voluntario-mania”, ou seja, a um voluntariado pouco sincero, movido mais pelo modismo ou por segundas intenções (Sung, 2003). Propostas atuais de engajamento, também são importantes, afinal incentivam o voluntário a ser agente e promotor de suas próprias ações; ciente de si, de seus talentos e do contexto em que está inserida, a pessoa age natural e espontaneamente em busca de soluções e parceiros que possam colaborar. Afinal, se o voluntariado for pensado de forma ampla, notar-se-á que as possibilidades de ação dependem da criatividade dos voluntários e das necessidades e potencialidades da comunidade (Ayres e Morais, 2005; Portal do Voluntário, s.d.). Iniciativas de “estágio social” e voluntariado empresarial são evidências do crescimento das práticas voluntárias e, também, incentivadoras delas, afinal muitas pessoas têm vontade de se engajar em projetos sociais e não o fazem por “não saber onde ou como começar” e propostas como estas, com estrutura e apoio organizacional viabilizam a realização do projeto pessoal em prol da comunidade (Guedes, 2004). Weffort, em texto de 1998, afirma que a sociedade brasileira encontra-se atualmente num período de ampliação e valorização do espaço da sociedade civil e das organizações sociais que, segundo Roca em texto de 1994, são os novos agentes de mudanças (Selli & Garrafa, 2005). Além disso, o número de associações voluntárias presentes em determinada sociedade indica o grau de organização e de atividade de sua sociedade civil; as associações voluntárias, com diferentes objetivos e graus de formalização, representam um contraponto à automatização dos indivíduos e à desintegração social nas sociedades modernas. As associações voluntárias constituem formas de as pessoas se mobilizarem em torno de objetivos comuns e cooperarem entre si; no Brasil, estas associações proliferaram e tem conquistado muita visibilidade nos últimos anos (Andrade e Vaitsman, 2002). Diversas semelhanças e diferenças podem ser notadas entre as práticas pregressas e as atuais; desde lá a sociedade civil coopera no auxílio aos mais necessitados e em muitas situações apenas mantêm o status quo, já que a proposta é de ajuda emergencial e não a longo prazo ou educativa. Segundo Silva (2006ª) na maioria das vezes, o trabalho voluntário não tem como objetivo a superação das condições socioeconômicas precárias dos indivíduos, e sim apenas a atenção emergencial, não havendo, o fomento à organização de cooperativas ou associações que possibilitem a qualificação mínima das pessoas, ou a formação de grupos de debates que busquem soluções para a comunidade. Pode-se afirmar, então, que não há incentivo ao desenvolvimento de autonomia. Existem, sim, ações voluntárias que proporcionam inovações, flexibilidade e variedade nos trabalhos junto a comunidades carentes, no entanto, tais ações apresentam caráter instável e incompleto, na maioria das vezes, não garantem 99 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA direitos sociais e, algumas vezes, são excludentes e opressoras, visto que estabelecem critérios para a sua concretização, tais como normas e limites estabelecidos pelos voluntários aos que receberão a ação (Silva, 2006ª). O trabalho voluntário deve ser sistematizado, socialmente organizado e seguir parâmetros críticos de ação, mesmo correndo o risco de ser definido como mero mantenedor do status quo (Dal Rio, 2004). Para que o trabalho voluntário instigue a autonomia e promova, efetivamente, a transformação social é necessário que esteja atento às causas estruturais e conjunturais dos problemas, ou seja, conheça a realidade concreta e a história da comunidade atendida. Fica claro, então, que o voluntariado pode configurar-se tanto como mera alienação e pragmatismo quanto como um movimento de consciência crítica em direção ao fortalecimento da cidadania (Dal Rio, 2004). Voluntariado: crenças e motivações A forma como o voluntariado será desenvolvido e suas conseqüências dependem, em grande parte, da crença que o embasa; caridade, filantropia e solidariedade são algumas maneiras de entender e promover o bem-estar social. Aqueles que se tornam voluntários tem muitas razões para fazê-lo, afinal “cada voluntário, influenciado por princípios, valores ou experiências de vida, distintos de outros indivíduos, elabora um conceito diferente de voluntariado, válido, que influenciara o objetivo e a forma de sua atuação” (Silva, 2006, p.52). Segundo Selli e Garrafa (2005), as razões fundamentais que determinam as motivações para a atividade voluntária são de três tipos, a saber: motivações pessoais relacionadas à vida do voluntário, motivações decorrentes da crença professada, e motivações despertadas pelo sentimento de solidariedade. Motivações pessoais são aquelas razões apresentadas como justificativas para o exercício da atividade voluntária e têm como centro de interesse a busca da realização pessoal do executor da ação; estas pessoas são voluntárias para “dar sentido a própria vida”, “ocupar seu tempo”, “ter a possibilidade de comunicarse”, “superar o vazio da existência”, “sentir-se melhor como pessoa”. Segundo Roca em texto de 1994, as motivações pessoais para o voluntariado têm como base os dilemas relativos à existência e mobilizam as pessoas em busca da realização pessoal; o voluntário busca respostas para suas próprias inquietações, e busca curar suas dores existências pela relação empática com sofrimento alheio. Pessoas que são voluntárias por causa de motivações relacionadas à crença professada afirmam que o fazem em busca da perfeição por meio da caridade, do amor ao próximo e da compaixão de boas obras. Já aqueles que têm como motivação a solidariedade, são voluntários para ajudar as pessoas, torná-las mais autônomas, contribuir com a justiça social, reduzir as diferenças sociais e cumprir com sua parte como membro da sociedade, são os que praticam o voluntariado orgânico; a base prática da atividade voluntária solidária é o reconhecimento do outro como sendo um ser humano igual a cada um de nós e, como tal, digno. 100 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Silva (2006) afirma existirem atualmente cinco motivações possíveis para o voluntariado, são elas: preocupação com a coletividade; motivação externa a vontade própria, sem vínculos com credos ou valores voluntários; motivação interna às necessidades individuais; motivação religiosa e motivação baseada na vivência de cidadania. Além de a ação voluntária estar ligada a solidariedade, benevolência, afeto, compreensão e responsabilidades para com os outros, é também possibilidade de autotransformação e de transformações sociais; ser voluntário é uma forma de treinamento e desenvolvimento, que oportuniza o exercício da liderança e do senso de responsabilidade, o que é possível a partir da espontaneidade que esse tipo de ação envolve. A prática do voluntariado possibilita o desenvolvimento de maior facilidade e desenvoltura na resolução de dificuldades no dia a dia, inclusive com soluções mais criativas, maior iniciativa, busca de maior proximidade nas relações interpessoais, aceitando melhor as contribuições vindas de outras pessoas, assim como a disseminação, nos ambientes em que convivem, de valores e da cultura da responsabilidade social (Garay & Mazzilli, 2003). Voluntariado: a pesquisa Baseada nas premissas apresentadas, a autora desta pesquisa, questiona se realmente seriam estas as motivações que levam as pessoas a se tornarem voluntários, ou melhor, se seriam apenas estas as razões ou se existem outras e quais seriam. Além disso, tem dúvidas a respeito do voluntariado ser realmente capaz de promover autonomia, crescimento e desenvolvimento das pessoas envolvidas em suas práticas, tanto aos que as desenvolvem quanto aos que são favorecidos. Outra questão que permeia o voluntariado é o quanto as ações promovidas pela sociedade civil estão desresponsabilizando o poder público e o Estado de suas obrigações com a população. Estes questionamentos e outros tantos são a base desta pesquisa que pretende, compreender os sentidos que a prática do voluntariado tem para as pessoas que se dedicam a ele. Por se tratar de uma pesquisa fenomenológica, parte-se do pressuposto que esses sentidos não se reduzem ao que é imediatamente expresso nos discursos dos voluntários; que outros sentidos podem ser encontrados se a essas pessoas for facultada a possibilidade de se aprofundarem em suas vivências no contexto de uma entrevista facilitadora, não diretiva e reflexiva. A partir da explicitação desses sentidos pretende-se discutir o significado do voluntariado no contexto social contemporâneo em confronto com a literatura atual sobre o tema. Para tanto pretendemos conhecer a vivência que os voluntários têm dessa experiência (buscando por um caminho fenomenológico, ir além das primeiras declarações fornecidas); refletir sobre as diversas possibilidades de atuação voluntária e discutir o significado do voluntariado no contexto social contemporâneo. Os colaboradores, desta pesquisa, serão pessoas que praticam o voluntariado a pelo menos dois anos, e que tenham facilidade em articular verbalmente suas 101 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA idéias, clareza para refletir acerca de suas experiências e disponibilidade para dialogar sobre seus significados. Serão entrevistados tantos voluntários quantos forem necessários para se ter uma diversidade de relatos de experiências que permita o acesso a características vivenciais que possibilitem a apreensão da experiência comum de voluntariado. Na pesquisa fenomenológica o que se busca é o relato que traz a tona, torna presente, a experiência vivida; assim, cabe ao pesquisador, durante a entrevista, permanecer ativo, presente como um interlocutor que encoraja e ampara e também conduz a pessoa de volta para sua experiência concreta quando ela foge para a opinião ou teoria (Amatuzzi, 2003). A entrevista por pretender captar a experiência vivida, deve clarear para o colaborador os significados mais originais de sua experiência, não por imposição de estruturas de pensamento, e sim pelo retorno à vivência propriamente dita (Amatuzzi, 1998). Nesta pesquisa serão realizados até 3 (três) encontros de diálogo reflexivo com cada um dos colaboradores, com o intuito de tornar presente de forma mais completa a experiência de voluntariado vivida por eles, e que serão iniciadas pela seguinte questão desencadeadora: “Estou realizando uma pesquisa que pretende conhecer experiências de trabalho voluntário e refletir sobre elas. Para tanto, peço que me conte sua experiência como voluntário.” As entrevistas serão realizadas pessoalmente pela pesquisadora, individualmente, e terão a duração que pareça ser necessária e proveitosa, possibilitando que a reflexividade seja efetiva, que os colaboradores aproveitem o momento de reflexão a respeito de sua prática de voluntariado; e que seja possível o pensar junto da pesquisadora com cada um dos colaboradores. As entrevistas serão reflexivas e, provavelmente, mobilizadoras o que permitirá um progressivo acesso à experiência vivida na prática do voluntariado além do que for inicialmente verbalizado; a análise começará no próprio encontro entre pesquisadora e colaborador que, na relação estabelecida, pensam juntos e “dizem” o vivido. Assim, a análise das entrevistas, propriamente, será o momento de organizar da melhor forma possível o que foi dito, e será feita baseada na análise fenomenológica, que Amatuzzi (2003) sistematizou em quatro momentos, a saber: 1º momento – trata-se de dizer, de forma organizada e clara, o que já foi dito no fluxo desordenado do encontro para chegar à síntese particular de cada depoimento. Esta síntese pode ser apresentada ao colaborador para pedir sua confirmação e saber até que ponto ele se reconhece no que o pesquisador diz dele; 2º momento – é a sistematização das sínteses dos diversos depoimentos, buscando elementos invariantes e variantes, para se chegar a uma síntese única. Há, neste momento, um trabalho de abstração (separação) e construção conceitual, que termina na formulação de uma estrutura geral do vivido; 102 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA 3º momento – é o que se convencionou chamar de discussão de resultados, isto é, neste momento, coloca-se todo o material em diálogo com outros teóricos ou pesquisadores e se produz uma discussão que tende a clarear ainda mais a pesquisa e, também, o que dizem os muitos teóricos; 4º momento – é a própria comunicação da pesquisa; que produz novos diálogos entre pesquisador e seus interlocutores e que, segundo o autor, possibilita que a pesquisa seja reinterpretada a cada comunicação. Na pesquisa aqui apresentada, a organização do que for dito pelos colaboradores será feita em forma de narrativas; a pesquisadora elaborará as narrativas a partir da transcrição e dos diários de campo de cada entrevista. Logo após, serão evidenciados, de forma sistemática, os elementos comuns e divergentes das diferentes narrativas e será feita uma síntese que possibilitará o acesso à estrutura geral do fenômeno pesquisado, neste caso o voluntariado contemporâneo. A seguir, este material será colocado em diálogo com outros pesquisadores e teóricos, isto é, a síntese das narrativas será repensada a partir de proposições teóricas já existentes o que possibilitará reflexão, compreensões mais amplas e uma formulação teórica, viabilizando assim a conclusão desta pesquisa, a respeito do voluntariado. A pesquisadora imagina que entre as conclusões, desta pesquisa, estarão as seguintes formulações: grande parte das pessoas dedica-se a práticas voluntárias em busca de desenvolvimento e crescimento pessoal, e não preocupadas apenas com o bem-estar social; as frustrações que o voluntariado provoca podem ser maiores que as satisfações geradas em sua prática; para muitos voluntários abandonar as práticas assistencialistas e dedicar-se a efetiva promoção de cidadania é um enorme desafio; é comum as pessoas se dedicarem ao voluntariado sem terem consciência de quais as suas reais motivações para esta atividade; e por fim, o voluntário contemporâneo tem consciência de seu papel fundamental na sociedade e sabe que não está apenas fazendo o bem individual e sim facilitando mudanças sociais efetivas e duradouras. Referências bibliográficas AMATUZZI M. M. (1998) Experiência religiosa: busca de uma definição. Estudos de Psicologia, v. 15, n. 01, p. 49-65. AMATUZZI, M. M. 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IntegrAção, maio, ano VI, n. 26, www.integração.fgvsp.br. 104 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A saúde mental do adolescente: relato clínico de avaliação por meio do Desenho-Estória Carolina Grespan Pereira Souza21 Maíra Bonafé Sei22 Resumo Tem-se uma pesquisa qualitativa em psicologia clínica que objetiva refletir sobre a aplicação do Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E) como instrumento auxiliar para a investigação da personalidade e para estabelecimento de vínculo terapêutico com um adolescente. Considera-se o D-E como uma interessante ferramenta para acesso aos conteúdos internos, mas pouco citada em âmbito acadêmico na atualidade, aspecto que justifica sua reapresentação por meio desta exposição teórico-clínica. Aplicou-se o D-E em um adolescente e, por meio deste procedimento, foi possível acessar importantes angústias do paciente, além de facilitar o contato deste com a terapeuta no início da psicoterapia. Acredita-se que o D-E se mostra como uma relevante estratégia de contato e de investigação da personalidade no campo da psicologia clinica. Abstract It is a qualitative research in clinical psychology that aims to reflect on the application of the procedure of Drawings and Stories (D-E) as an instrument to personality investigation and to establish a therapeutic relationship with a teenager. The D-E is considered as an interesting tool to access internal contents, but there are few articles about it nowadays, fact that justifies its presentation through this theoretical and clinical exposure. The D-E was proposed to a teenager and through this procedure it was possible to access important patient's distress, in addition, it facilitated the contact between patient and therapist at the start of psychotherapy. It is believed that the DE is an important strategy to establish interpersonal contact and to the personality investigation in the field of clinical psychology. Adolescência, psicoterapia e o Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E) A adolescência é uma fase de intensas mudanças físicas e psíquicas, com a pessoa tendo que elaborar lutos diversos como pelo corpo, identidade e pais infantis (Aberastury e Knobel, 1981). Com isso, disfunções emocionais diversas podem aparecer, tornando interessante a psicoterapia como ferramenta para auxiliar o adolescente neste momento de transição. De acordo com Levisky (2006), a psicoterapia na adolescência deve se dar “por meio de uma relação continente, acolhedora, não invasiva e interessada na 21 Psicóloga, Especializanda em Psicoterapias da Infâncias pela FCM-UNICAMP. E-mail: [email protected] 22 Psicóloga, Especializanda em Psicoterapias da Infâncias pela FCM-UNICAMP, Mestre e Doutoranda em Psicologia Clínica pelo IP-USP. E-mail: [email protected] 105 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA pessoa do adolescente, cria-se um vínculo que abre espaço para o lúdico, para o imaginário, facilitando o acesso ao mundo afetivo” (Levisky, 2006, p. 174). Para a construção do espaço lúdico, acredita-se ser pertinente a inclusão de outras linguagens no contexto psicoterapêutico para a comunicação do adolescente, tal como o grafismo. Este pode colaborar para a vinculação e expressão, já que há um elemento entre terapeuta e paciente, que possibilita a diminuição de angústias e facilita o contato. Pensa-se que é pertinente a proposta de utilização do Procedimento de Desenhos-Estórias como elementos para aproximação entre a dupla no início da psicoterapia. Acredita-se, também, na contribuição desta técnica para o psicodiagnóstico, processo importante no trabalho com adolescentes, por situar o profissional se as queixas trazidas relacionam-se às crises esperadas nesta fase ou se configuram-se com algo patológico e que implica num outro olhar por parte do psicólogo. Quanto ao diagnóstico psicológico em geral, entende-se este como uma tarefa complexa que inclui a observação desde a história do desenvolvimento infantil físico e emocional, bem como a vida relacional e afetiva do adolescente, até as vicissitudes que ocorrem na dinâmica familiar. Neste sentido, Levisky (2006, p. 161) afirma que “a elaboração diagnóstica implica em reunir um conjunto de elementos que nos permita avaliar a natureza do processo em questão em seus múltiplos aspectos”. Diversos são os instrumentos que podem ser utilizados para o psicodiagnóstico e dentre estes ressalta-se o valor das técnicas projetivas, que permitem uma expressão mais livre de conteúdos inconscientes. Dentre as técnicas projetivas tem-se as técnicas gráficas, como o HTP, e as técnicas de apercepção temática, como o CAT e TAT. Já o Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E) é uma técnica que mescla o desenho livre com o ato de contar histórias, em cinco unidades de produção, e que se configura como uma estratégia auxiliar ao diagnóstico psicológico. Não é considerado como um teste psicológico padronizado como os demais, por não haver um estímulo estruturado previamente e por meio do qual todos os sujeitos são testados (Trinca, 1987). O D-E pode ser entendido como um procedimento intermediário entre entrevistas não-estruturadas e os testes projetivos gráficos e utilizado como forma auxiliar para a ampliação da compreensão da personalidade, em avaliações individuais, conjugais, familiares. Contudo, além desta finalidade, outros autores descrevem o uso deste recurso para facilitar o estabelecimento de um vínculo entre terapeuta e paciente (Fávero, Souza e Caldana, 2005), ideal para utilização no início da psicoterapia. Quanto aos sentidos das cinco unidades de produção, compostas pelo desenho livre, história, inquérito e título, Gonçalves (1997) aponta sentidos para cada um delas, sinalizando que a primeira unidade pode ser considerada com uma autoapresentação da pessoa e carrega uma característica mais “pedagógica”, com reprodução de desenhos anteriormente aprendidos, regido por maior censura. A segunda unidade seria um “encaminhamento para o conflito”, quando defesas 106 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA são quebradas e tem-se uma representação mais genuína e própria da pessoa. A terceira unidade seria o “desenho do conflito”, momento em que os conflitos inconscientes mais significativos são apresentados. Por fim, a quarta e quinta unidade seria a representação das “possibilidades de resoluções dos conflitos”, seja por meio da apresentação de soluções reais ou idealizadas para os conflitos, aspecto que aponta para possíveis prognósticos no caso da psicoterapia. O D-E foi proposto por Walter Trinca, em 1972, e após sua apresentação, observou-se um movimento de intensas pesquisas com este procedimento nas décadas de 1980 e 1990 (A. Trinca, 1997). Outros procedimentos foram desenvolvidos inspirados neste primeiro, com o procedimento de desenhos de família com estórias e o desenho-estória com tema (Trinca e Tardivo, 2000). Contudo, percebe-se uma diminuição das pesquisas e das referências no âmbito acadêmico sobre a aplicação específica do D-E, apesar de suas qualidades, fato que motivou a escrita deste trabalho, como forma de ilustrar a pertinência de seu uso, tanto como estratégia auxiliar de compreensão da personalidade como para a aproximação e formação de vínculo com o paciente. A história de João e suas “estórias”: reflexões a partir do D-E A partir dessas considerações teóricas descritas, opta-se por apresentar dados referentes ao psicodiagnóstico de um adolescente, no qual foi utilizado o procedimento de Desenho-Estória (Trinca, 1997). Tem-se um estudo teóricoclínico e, quanto ao campo da pesquisa qualitativa em psicologia clínica, pautada no referencial psicanalítico, uma apresentação de situações clínicas são pertinentes. Entende-se que a cada atendimento tem-se uma renovação da psicanálise, visto que o psiquismo dos indivíduos organiza-se de maneira única, e compartilhar estas experiências e reflexões colabora para maior riqueza dos modelos e ampliação dos conhecimentos psicanalíticos (Safra, 1993). Passa-se a apresentar um breve relato da história de João, um adolescente de 13 anos, que cursa a 6ª série do ensino fundamental. Apesar da pouca idade, já tem grande estatura, ultrapassando a média dos adultos, alcançando mais de 1,90m e pesando mais de 100kg. A queixa principal na entrevista inicial com sua mãe é que ele está muito agressivo e tem andado com “más companhias”, com envolvimento em pichações na escola e no bairro, além de ter sido pego em pequenos furtos. Está muito rebelde, com constantes brigas, sem parecer respeitar os demais. Apresenta-se “fechado”, algo que dificulta as relações na família. Freqüentemente grita, quebra as coisas, dá socos quando está nervoso e recentemente tem brigado e agredido fisicamente seu pai, gerando uma distância entre ambos, que quase não se falam. É o irmão mais velho de três filhos e tem um irmão de 5 e uma irmã de 3 anos. Quando está em casa, fica sozinho no quarto ou no computador e diz que sua mãe só dá atenção para os irmãos menores, sem sentir que lhe dão atenção. É difícil vê-lo sorrindo, é muito quieto e pouco obedece às regras estabelecidas na 107 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA casa. Depois ter sido flagrado pichando a escola, sua mãe comprou folhas sulfite e ele as utiliza, desenhando em casa. Quanto ao contato direto com João, destinou-se os dois primeiros dias para a aplicação do D-E. No primeiro dia, ele fez a primeira unidade de produção, com resistência para iniciar o desenho. João: “Mas desenhar o quê? Meus desenhos são feios...” Comenta que vai tentar desenhar um carro. Faz o desenho em 10 minutos. A terapeuta pergunta se ele já terminou e ele diz que sim. Fica olhando para o desenho. Conta a seguinte história: “É um carro normal... torto... é o desenho de um carro... eu que inventei... ele tá parado, não nem ninguém dentro, não tá em nenhum lugar... (silêncio) Mais nada.” A terapeuta questiona sobre o objeto na parte de traz do carro e ele responde que “É o escapamento... mas o carro não tá ligado... tá parado... como vai sair fumaça?! Sou burro mesmo... esse aqui é um risco, só um detalhe... e aqui é o ‘negócio’ que fica atrás, não sei como chama. A roda tem calotas e é um carro todo quadrado...” Nesse momento resolve pintar o carro. Escolhe a cor vermelho-claro e pinta o teto do carro e as laterais das janelas. Colore a ‘base’ de preto, com cuidado, respeitando seus traços. Desenha uma estrela com vermelho-escuro na parte de trás. Faz o chão com a cor cinza e pinta e verbaliza que “Agora melhorou o desenho... agora tá no chão...” Faz um sol na parte da frente do carro, pinta o céu de azul e preenche toda a folha. De acordo com ele, “Agora está em algum lugar, na rua, de dia, bem quente... Tá andando pela rua, passeando...” e dá o título de “O carro”. Neste primeiro encontro ele inicia a segunda unidade de produção, antes dizendo “Qualquer coisa de novo? Não sei desenhar coisas bonitas... só coisas feias...”. Começa lentamente pela base, pinta o chão com lápis grafite. Quando começa o desenho, força o lápis contra a folha. Deixa a mão na frente, de modo que a terapeuta não consegue ver o que ele está fazendo. Movimenta bastante a folha, virando-a para todos os lados. O tempo da primeira sessão termina e fica combinado que ele poderá terminar esse desenho na próxima. Chegou com 20 minutos de atraso no segundo encontro e quando se senta, os materiais já estão sobre a mesa, inclusive o segundo desenho, ainda não terminado. Ele começa colorindo o que já tinha feito e permanece em silêncio durante quase todo o tempo juntos com a terapeuta. Preenche quase todos os espaços, contorna com lápis de cor preto os objetos. Faz o sol e pouco depois começa a pintar o céu, mas deixa um lado da folha em branco. Relata a seguinte história: “É um prédio numa fazenda... tem um monte de gente no prédio... Daí depois do lado tem um negócio de corrida de carro e 108 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA depois... tá sol... não vai chover... o prédio não tá pronto ainda... tá em construção... Tá quase terminando. Falta o telhado para terminar”. Ao ser indagado sobre o objeto laranja e roxo ao lado do prédio, diz que “É um desenho ‘besta’ que eu inventei... não tinha nada para fazer em casa, daí saiu esse negócio. É tipo um peão... eu vi na revista... Mas não é assim... esse saiu torto... (faz um outro desenho parecido, na parte em branco da folha)... Esse também não saiu certo...”. Quando é questionado sobre outros pensamentos que tem a respeito do desenho, cometa que não pensa em nada. Entretanto, logo em seguida, diz que o prédio tem dois andares e que a porta não é uma porta comum, é tipo porta “abre e fecha”. O prédio tem uma antena e uma árvore ao lado (desenha a árvore no momento que a menciona). Então, resolve que, ao invés de uma árvore, há uma plantação de laranja (e desenha mais duas árvores). O tempo termina e ele diz que não falta mais nada em seu desenho, dando o título de “O prédio no sítio”. De forma geral, pode-se fazer diversas reflexões, pautadas numa compreensão teórica psicanalítica, a partir do material clínico obtido nos dois encontros relatados. Observa-se um adolescente com baixa auto-estima, retraído e tímido e a própria percepção de João acerca de seus desenhos denotam uma autodepreciação, quando comenta não saber desenhar e que seus desenhos são “feios e tortos”. Seu primeiro desenho é um carro, sozinho. Talvez seja essa forma como ele se sente no momento da aplicação deste procedimento. De acordo com a história relatada pela sua mãe, João tem dois irmãos mais novos, cuja diferença de idade é de 8 anos. Demonstra que está isolado, com dificuldades para se adaptar, não só à nova estrutura familiar, mas também na escola com seus colegas e professores. O carro, inicialmente “sem chão” é grande, mas vazio; não tem ninguém, está parado, em nenhum lugar. De alguma maneira, busca expressar seus anseios de liberdade por meio do carro, e esse mesmo objeto pode estar relacionado a características de agressividade, impacto e velocidade, características tão almejadas na adolescência. Quando resolve “dar cor” ao desenho, o carro começa a “andar”, o que denota algum movimento, ele começa a passear a partir da relação que começa a estabelecer com a terapeuta, que o observa com interesse e fornece uma espécie de sustentação e ele consegue terminar e melhorar seu desenho. A segunda produção de João é um prédio no sítio, com um objeto não identificado ao lado. Além disso, é possível ter a impressão que o desenho está inacabado, já que deixa uma parte em branco no lado direito da folha. À primeira vista, pode-se entender o prédio no sítio como uma inadequação, torto, ruim, e não-acabado, assim como ele se coloca nas duas sessões de aplicação do procedimento. O prédio é cinza e tem-se a impressão de algo triste e malassombrado. 109 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O objeto não identificado e colorido com cores vivas ao lado do prédio pode ser relacionado com alguém que vem para resgatar, e também é possível pensar na terapeuta, que ele ainda não conhece, mas que está próxima a ele. As portas desse prédio “abrem e fecham”, indicando a existência de uma possibilidade de contato externo-interno e, uma vez que as portas não possuem travas, é possível refletir sobre a busca de uma almejada liberdade. Algo que chama atenção em ambos os desenhos. é a não representação de figuras humanas. Sua primeira criação é um objeto mecânico e frio. Além disso, pode-se questionar as razões para utilizar todo seu tempo com apenas dois desenhos. Tendo em vista os sentidos atribuídos a cada unidade de produção do D-E (Gonçalves, 1997), pode-se inferir que ele não consegue entrar em contato com seus conflitos. Ele mesmo afirma que o prédio não está acabado, ainda falta o telhado, falta estruturação psíquica, e, com isso, demonstra que ainda não tem uma estruturação egóica muito forte. Em síntese, pode-se dizer que João é, a despeito de seu porte físico, um garoto ainda com uma estrutura psíquica frágil, mas com um corpo forte, uma incoerência também percebida em seu segundo desenho. Considerações Finais A aplicação do D-E pode ser considerada como facilitando o acesso a conteúdos inconscientes, sentimentos e fantasias de João, nem sempre expostas por meio da linguagem verbal, num setting individual. O recurso do desenho, intermediando a relação entre terapeuta e paciente, colaborou para o contato inicial de ambos, além de preencher os momentos de silêncio com esta atividade, diminuindo a angústia deste primeiro contato. Ao discorrer sobre a adolescência, Levisky (2006) sinaliza que “é fundamental que o adolescente tenha condições para o aumento da percepção de si mesmo, dos fatores geradores de angústia, subsidiados que são pelas fantasias primitivas e atuais que invadem sua mente” (p. 167). Entende-se que o D-E colabora justamente para esta percepção tanto por parte do terapeuta, que pode sinalizála posteriormente ao paciente, como para, no caso ilustrado, para o próprio João. Na situação clínica ilustrada, tinha um adolescente quieto e esta outra linguagem foi efetivamente interessante para a comunicação e vínculo com a terapeuta, em um momento de maior angústia como o início da psicoterapia. Acredita-se que por meio do D-E tem-se um aspecto mais lúdico, não apenas com o desenho, mas com a criação de histórias para os mesmos e que pôde apontar para importantes aspectos da dinâmica psíquica de João. Assim, pensa-se que, apesar de ser uma ferramenta para o contexto clínico pouco citada na atualidade, o D-E ainda se mostra como uma relevante estratégia de contato e de investigação da personalidade no campo da psicologia clinica. Referências Bibliográficas 110 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Aberastury, A. e Knobel, M. (1981) Adolescência normal. Porto Alegre: Artes Médicas. Fávero, M. A. B., Souza, A. B. T. e Caldana, R. H. L. (2005) Construindo a identidade do psicoterapeuta: uma experiência de atendimento psicanalítico em abrigo. Em: Santos, M. A., Simon, C. P. e Melo-Silva, L. L. Formação em psicologia: processos clínicos. São Paulo: Vetor. Gonçalves, L. A. (1997) Outra alternativa de utilização. Em: Trinca, W. (org.) (1997). Formas de investigação clínica em Psicologia: procedimentos de desenhos-estórias: procedimentos de desenhos de família com estórias. São Paulo: Vetor. Levisky, D. L. (2006). A questão diagnóstica no trabalho com adolescentes. Em: D. L. 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Porto Alegre: Artmed. 111 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Limites de um modelo psicopatológico pulsional: em direção a outra melodia Clarissa Medeiros23 Tânia Aiello-Vaisberg24 Observamos em nossa clínica atual sofrimentos que dificilmente poderiam ser compreendidos a partir de um modelo psicopatológico pulsional composto pelas categorias denominadas neurose, psicose e casos limítrofes. Tal abordagem, presente de maneira majoritária no campo psicanalítico, tem se mostrado insuficiente para dar conta de experiências clínicas nas quais somos chamados a acompanhar pessoas impossibilitadas de se sentirem vivas, reais e capazes de gestualidade espontânea. A partir de um leitura fenomenologicamente tonalizada da obra de Winnicott, assim como de experiências clínicas próprias, percebemos a necessidade de trabalhar psicanaliticamente a partir de outro modelo psicopatológico que denominamos relacional (Greemberg e Mitchell,1994) em coerência com um fazer clínico baseado no cuidado com a continuidade de ser do paciente. Neste modelo, percebemos haver um único adoecimento humano compreendido como dissociação, podendo apresentar-se através de diferentes espectros do não se sentir vivo e real. Como qualquer produção humana de conhecimento, as abordagens psicopatológicas encontram-se inseridas em contextos políticos, históricos e culturais que indicam um posicionamento diante do humano e do adoecimento. Por trás de toda teoria e prática, encontramos pressupostos antropológicos mais ou menos explícitos fundamentais para a compreensão e o uso de um procedimento ou de um saber. Todas as teorias se assentam sobre pressupostos éticos e antropológicos, relacionados com os contextos, as condições concretas em que o conhecimento é gerado. A criação de categorias nosológicas para os transtornos mentais se encontra hoje determinada pela prática psiquiátrica medicamentosa, fundamentada numa visão organicista do adoecimento. Faz parte da prática médica a seleção de drogas dentre um amplo leque de opções a fim de intervir na sintomatologia apresentada pelo paciente, sendo que a escolha do medicamento é pautada impreterivelmente pelo diagnóstico realizado na entrevista psiquiátrica. Nesta perspectiva, cada classe de medicamentos seria adequada para categorias psicopatológicas específicas, de modo que o diagnóstico diferencial se torna condição essencial para um tratamento dito correto e eficaz. Este modelo psicopatológico traz uma antropologia biologizante e reificadora do homem como máquina ou, mais sofisticadamente, aparelho mental. Não podemos nos furtar a esclarecer que esta antropologia implícita a algumas teorias psicopatológicas se 23 Mestre em psicologia clínica pelo IPUSP e doutoranda pelo mesmo instituto. 24 Profa. Livre Docente do IPUSP e da PUCCAMP. 112 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA encontra presente também em modelos metapsicológicos, redutores da dramática humana a esquemas pulsionais afastados de pessoalidades concretas e próximos de máquinas hidráulicas. Politzer (1928) chamava a atenção para este desvio da psicanálise que retirava seu valor e suas possibilidades de transformação da vida humana, tornando-a uma teoria aos moldes positivistas, ao contrário daquela que seria, a seu ver, a vocação original da disciplina. Sobre esta crítica à metapsicologia psicanalítica, afirma Aiello-Vaisberg (2003) que Esta tem sido a opção de uma certa psicologia e mesmo de uma certa psicanálise metapsicológica que tornam o psíquico extenso no espaço, atribuindo-lhe funcionalidade análoga à de um aparato físico. Claro que se podem facilmente invocar justificativas que nos lembrem que o aparelho psíquico é metafórico. Entretanto, parece-nos fundamental lembrar que outras metáforas são possíveis e que nenhuma delas deixa de produzir efeitos... (p.122) Não podemos tomar qualquer comparação metafórica de modo ingênuo, uma vez que estas são veículos privilegiados da antropologia implícita às teorias, revelando crenças mais ou menos coerentes com o conteúdo do conhecimento apresentado. Ilustrar uma pessoa como um aparelho hidráulico dominado por forças quantitativas de energia cuja movimentação tem como resultado a conduta é muito diferente de apresentá-la usando como metáfora uma flor, para a qual são necessários cuidados a fim de desabrochar em todo seu potencial.25 Dentro da proposta de apresentação de um modelo psicopatológico não pulsional, ou seja, que se afasta radicalmente de formulações matapsicológicas para apoiar-se em um modelo psicanalítico relacional, destacamos o uso do trabalho de Greenberg e Mitchell (1994). No livro citado, encontramos a diferenciação rigorosa de variadas abordagens psicanalíticas a partir de dois grandes modelos de pensamento, concebidos como pulsional e relacional: Os modelos pulsional e relacional apontam para questões diferentes como determinantes das dificuldades psicopatológicas na vida. (...) A maneira com a qual um observador psicanalítico vê um paciente, a maneira como descreve as lutas do paciente, os tipos de categorias diagnósticas nas quais o coloca – todas dependem, em si, das suposições teóricas anteriores do observador quanto aos constituintes básicos da experiência humana, isto é, seu compromisso com um modelo teórico. (p.287) A proposta de um olhar psicopatológico não pulsional busca posicioná-lo num campo relacional ou vincular em que o adoecimento acontece na intersubjetividade e não em um suposto aparelho psíquico individual que se encontraria em desequilíbrio devido a forças motivadoras conflitantes em seu interior. 25 O leitor encontrará esta metáfora nos trabalhos de mestrado e doutorado de Tânia Granato (2004), analogia que apresenta uma antrolopologia baseada no homem criativo, coerente com a psicanálise winnicottiana. 113 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Para melhor compreendermos o que está sendo tomado por modelo psicopatológico pulsional, propomos um breve passeio pelas idéias de Freud. No início de seus escritos, Freud (1896;1923;1924) propunha etiologia semelhante para as neuroses e psicoses, entendida como a frustração de desejos infantis. A posterior criação do conceito de libido torna a mesma o principal articulador de seu modelo psicopatológico pulsional, o que implica na compreensão do adoecimento como desequilíbrio de forças internas de natureza sexual e agressiva do indivíduo que lutam pelo controle mental. Estas forças seriam organizadas a partir de elementos repressores e elementos reprimidos, constituindo-se nisto a base de funcionamento do psiquismo. Neste modelo, o adoecimento é circunscrito à dinâmica interna individual, sendo o homem concebido como mônada, isto é, suas condutas se dão a partir de um suposto aparelho psíquico endógeno. Neste sentido, como apontam Greemberg e Mitchell (1994), o objetivo humano seria a eliminação de tensão biológica. Retomando as primeiras considerações no campo psicanalítico sobre neuroses e psicoses, Freud (1924) se opõe a abordagens psicopatológicas centradas na sintomatologia manifesta ao afirmar que encontramos perda de contato com a realidade tanto na clínica da neurose quanto na da psicose. O afastamento da experiência e da comunicação num campo da realidade compartilhada com outros deixa de ser privilégio dos pacientes ditos psicóticos para ser admitido também naqueles supostamente neuróticos, que ao apresentarem um olhar tão carregado de subjetividade chegam ao ponto de beirar a incoerência a partir do ponto de vista de seus pares. Notamos que uma das maiores contribuições freudianas para este trabalho se encontra na relativização da apresentação sintomatológica ou comportamental como indicativa de uma estrutura mais permanente, o que será amplamente explorado por outros psicanalistas como Bleger (1983/1989) e Bergeret (1974/1991) posteriormente. Grosso modo, nem todo paciente que delira é psicótico e nem todo psicótico delira. A introdução da idéia de um “ponto de vista” traz a alma do método psicanalítico em seu pressuposto básico segundo o qual todo e qualquer acontecer humano é dotado de sentido. Psicóticos ou neuróticos, os indivíduos apresentam experiências orientadas por sentidos pessoais que podem ou não ser compartilhados com outros, mas o fato de não serem compreendidos por se afastarem da realidade compartilhada não admite ser colocada em dúvida a legitimidade das experiências. Em trabalho posterior, Freud (1931) relaciona o que chama de tipos libidinais com diferentes possibilidades de adoecimento, deixando claro porém que estes tipos seriam estilos pessoais passíveis de se manifestar de maneira saudável. Ao lançar a hipótese da existência de três tipos libidinais, aos quais corresponderiam diferentes categorias psicopatológicas em caso de adoecimento, é interessante notar que Freud rapidamente passa a defender a idéia de tipos mistos. Tal movimento pode ser compreendido como fruto do olhar lapidado através de uma clínica viva, a qual não nos permite confundir teorias e pessoas, isto é, tomar uma categorização psicopatológica no lugar da dramática concreta como se um mapa pudesse substituir o caminho, repleto de curvas, paisagens, aromas. 114 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Quando Freud fala de tipos mistos, coloca o questionamento de um suposto purismo na estruturação de personalidade de alguém que, teoricamente, funcionaria de acordo com um determinado desenvolvimento libidinal, mas, na prática, apresenta condutas variadas e bem mais complexas, muitas vezes condizentes com diferentes categorias da organização diagnóstica. Os tipos mistos de Freud retratam a afirmação do poeta romano Terêncio quando argumentava que nada do humano nos seria estranho, ou seja, qualquer pessoa sente ressonâncias daquilo que faz parte da condição humana, seja o amor, a violência ou a loucura. A teoria do desenvolvimento da libido foi utilizada por Freud para a idealização dos tipos libidinais e seria também usada por seus contemporâneos. Abraham (1924/1973) elaborou uma abordagem psicopatológica bastante difundida clinicamente e até hoje ensinada em cursos de psicanálise, fundamentada numa economia pulsional que relaciona fases inerentes e esperadas do desenvolvimento humano a tendências psicopatológicas. Abraham foi um dos responsáveis pela organização didática da teoria do desenvolvimento da libido, relacionando através de fases o tipo de personalidade e a categoria psicopatológica a ela correspondente em caso de fixação da libido, como por exemplo a fase oral aos tipos esquizóides, fase anal sádica às neuroses obsessivas... Neste modelo, a saúde mental é vista como condição substancialmente individual, dependente da quantidade de energia e seu trânsito num suposto aparelho psíquico. A partir de um modelo psicopatológico também pulsional, Bergeret (1974/1991) efetua contribuições fundamentais para a psicopatologia psicanalítica ao investigar as personalidades normais e patológicas. Chama a atenção para uma confusão ingênua entre sintomatologia manifesta e estrutura de personalidade, definida como uma organização estável e contínua a partir de uma angústia. As chamadas angústias de base a partir das quais se organizariam as personalidades e suas maneiras de se vincular são a fragmentação, para as estruturas psicóticas, a interdição, para as estruturas neuróticas e a perda do objeto anaclítico, para as organizações borderline. Não é novidade para psicanalistas atuantes que o procedimento caricatural de classificar automaticamente um paciente que apresenta manifestação delirante como psicótico, assim como indivíduos aparentemente seguros no contato com uma realidade compartilhada são caracterizados como neuróticos, não se sustenta na clínica. Podemos encontrar sofrimentos muito graves e primitivos em pessoas aparentemente coladas a uma adaptação à realidade, enquanto episódios de manifestação delirante podem mostrar-se pontuais e circunscritos a uma situação extrema presente de terror ou falta de sustentação ambiental. Notamos também importante argumentação no sentido de desvincular claramente a noção de estrutura de personalidade e uma suposta normalidade. Para Bergeret, a normalidade ou saúde se define como estabilidade da estruturação, seja ela neurótica ou psicótica. Os termos “compensada” e “descompensada” para adjetivar as estruturações são significativos no rompimento conceitual e ideológico que vê na pessoa supostamente psicótica 115 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA sempre um doente mental, enquanto o indivíduo supostamente neurótico seria um modelo mais próximo da saúde em termos de maturidade. Embora fale sobre os padrões de relação objetal e a representação social do sofrimento humano, observamos em Bergeret a presença firme da teoria libidinal e pulsional para a compreensão do adoecimento. Isto acarreta uma visão que privilegia o campo individual concebido como separado e independente do meio e dos outros, isto é, a geração do sofrimento é enfatizada como fenômeno intrinsecamente individual em decorrência de conflitos entre forças de um suposto aparelho psíquico. No que tange as explicações acerca das estruturas neuróticas e psicóticas, Bergeret recorre freqüentemente a raciocínios econômicos, discorrendo sobre tais categorias a partir de conceitos como processos primário e secundário, fixação libidinal e investimento pulsional, apoiando-se numa metapsicologia reificadora. Ao mesmo tempo, é possível observar novidades em seu modelo psicopatológico em relação ao que vimos na teoria freudiana. A análise das organizações anaclíticas e sua contextualização numa dramática clínica exige o lidar com outros fundamentos que não pertencem ao modelo pulsional, mas aproximam-se fortemente de concepções psicopatológicas relacionais: Embora se utilize do jargão metapsicológico para explicar as organizações limítrofes ou anaclíticas, procurando situá-las em termos econômicos, já apresenta elementos novos ao considerar a importância da realidade exterior e do que chama posições dos objetos, entendidos então como relações da pessoa com outros que possam ser mais ou menos fundamentais e influentes na dinâmica do funcionamento psíquico, não mais limitado a conflitos e descargas pulsionais. Em busca de uma outra melodia, partimos rumo à formulação de um modelo psicopatológico relacional, inspirado na concepção winnicottiana de saúde. AielloVaisberg (2006) chama a atenção para a existência de duas abordagens psicopatológicas presentes na obra winnicottiana, denominando-as psicopatologia explícita e implícita. Em seu pensamento explícito, Winnicott (1945;1963) é fiel a uma divisão tripartite do sofrimento humano entre neurose, psicose e casos borderline, sendo que estes últimos abrangeriam fenômenos depressivos, a tendência anti-social e as construções falso self. As neuroses são compreendidas como conflitos de natureza individual e pulsional, ocorrendo quando um suficiente grau de integração do self já pode ser alcançado, atingindo-se então uma condição chamada de pessoa total. Para as outras duas categorias, estaríamos num campo de pessoas que ainda não alcançaram integração suficiente para viver relações triangulares e conflitos ditos edipianos. Para os neuróticos, Winnicott (1963) recomenda que o psicanalista siga a técnica clássica descrita por Freud, enquanto para os outros casos, afirma que o mais adequado seria fazer “uma outra coisa” (Winnicott, 1962), desenvolvida ao longo de toda sua obra como manejo de setting. 116 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Ironicamente, encontramos nestes trabalhos comentários mais sutis quanto à suposta inexistência de neuróticos na Inglaterra e a impossibilidade de se encontrarem “casos bons” para a psicanálise, assim como sobre a provável existência de núcleos psicóticos em pacientes neuróticos. Winnicott abre caminho, desta forma, para o aparecimento dos indícios de uma psicopatologia implícita não desenvolvida em que o sofrimento único é o de não se sentir vivo e real. Winnicott tem na psicose a matriz clínica de seu pensamento, ou seja, construiu sua complexa teoria do desenvolvimento emocional humano baseado na atenção às experiências e relações primitivas do bebê como cerne da integração ou ausência desta no self. Dá especial valor ao desenvolvimento emocional primitivo, argumentando estarem aí localizadas as raízes da saúde ou doença mental. Sob este prisma, apresenta uma concepção original de saúde, não descartando do indivíduo dito saudável o acesso a experiências aparentemente loucas. Para Winnicott, o bebê não é psicótico ao nascer, mas ainda não desenvolveu um sentido de si mesmo a partir do próprio ponto de vista, o que o torna indiferenciado e não integrado, mas não psicótico. A psicose na teoria winnicottiana é compreendida como formação defensiva diante de agonias primitivas e, portanto, como adoecimento. No entanto, o contato com experiências iniciais primitivas do self, com as fantasias onipotentes não é necessariamente disruptivo e faz parte do desenvolvimento humano natural, portanto, da condição humana. A loucura, para Winnicott, não é sinônimo de psicose. Ela abrange esta possibilidade humana como colapso e queda nas agonias impensáveis, mas abarca também as experiências onipotentes primitivas que são as bases de um viver criativo. Concebe-se que o contato com aspectos primitivos do self faz parte da experiência humana e, mais além, o contato com agonias primitivas que estão na base das defesas psicóticas é condição para a superação deste posicionamento existencial. Nesta perspectiva, poder experimentar o que um dia foi agônico ou enlouquecedor numa relação sustentadora é um passo em direção à saúde mental, ainda que o fenômeno pareça paradoxal e estranho à primeira vista, exigindo “enlouquecer” para curar-se. Para Winnicott (1990), a saúde mental contém a possibilidade de contato com experiências primitivas da ordem da não integração e movimento integrativo, compreendendo a integração como direção desejável para um viver criativo e ancorado no chamado verdadeiro self. Winnicott foi sensível aos fenômenos de despersonalização e desrealização que se encontram presentes quando estamos diante de alguém que não se sente inteiro em um corpo próprio, não consegue experimentar as próprias ações e o mundo ao seu redor como detentores de sentido, tem uma sensação contínua ou episódica de futilidade no viver. Afirmou a importância de um movimento de integração do self em direção a uma autonomia, o que pode ser compreendido como um percurso mais árduo para uns, menos difícil para outros, mas que cada pessoa deve viver a fim de tornar-se si mesma. Neste sentido, podemos compreender que apropriar-se do chamado verdadeiro self é um movimento 117 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA inesgotável que, na ausência de sustentação ambiental, torna-se interrompido. O sofrimento básico, a partir deste olhar, diz respeito a afastar-se da integração, o que geraria falhas na constituição do self, assim como a sensação de não ser vivo e real. Compreendemos, desta maneira, que o modelo psicopatológico relacional é mais coerente e sintônico com uma clínica baseada na sustentação ou no cuidado com a continuidade de ser. Este olhar para o sofrimento coloca as possibilidades de adoecimento e também de saúde nos vínculos e na história de sustentação vivida pelo pacientes, admitindo maior flexibilidade de pensamento e confiança no potencial criativo do homem. Referências bibliográficas AIELLO-VAISBERG, T. M. J. (2003). Ser e Fazer: Interpretação e intervenção na clínica winnicottiana. In: ______. 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Aiello Vaisberg Na “Ser e Fazer”: Oficinas Psicoterapeuticas de Criação da Universidade de São Paulo, temos proposto um enquadre clínico grupal diferenciado direcionado a jovens em processo de escolha profissional, usando o teatro da espontaneidade em uma perspectiva winnicottiana. Seguindo o paradigma do jogo do rabisco de Winnicott (1971) e levando em conta a concepção de psicoterapia como superposição de áreas de brincar, apresentamos uma mala com vestimentas e acessórios variados convidando os jovens a brincar de dramatizar. Em uma intervenção pautada no holding, a mala como materialidade mediadora da comunicação emocional favorece a criação de um rabisco coletivo em forma de peça teatral. Os jovens, coletivamente, expressam os seus rabiscos e transicionalmente aproximam-se da dramática existencial inerente à escolha profissional. Por meio desse brincar de dramatizar, oferecemos ao jovens oportunidade de viver momentos de criação e encontro diante do material apresentado resgatando ou desenvolvendo a capacidade criativa de cada um, favorecendo a experiência de continuidade de ser e a aproximação de um viver mais harmonioso e criativo que permita que a escolha da profissão aconteça como gesto espontâneo. Após os encontros grupais em que brincamos de dramatizar criando e encontrando diversas peças teatrais, costumamos marcar um encontro com cada jovem individualmente. Essas conversas tendem a acontecer de modo muito descontraído. Depois de um convívio grupal intenso, durante o qual todos, inclusive a terapeuta, brincam muito, cria-se uma certa intimidade, uma proximidade, própria daqueles que têm uma história em comum, que já viveram momentos marcantes juntos, momentos de emoção, suspense, divertimento... Há uma abertura para o outro e facilmente se estabelece um ambiente de encontro, de comunicação. Os jovens tendem, em geral, a sentir-se cada vez mais à vontade para trazer o que sentem, pensam e com o que se preocupam. Tanto mostram-se mais abertos, na relação com a terapeuta, durante o acontecer clinico propriamente dito, como tendem a manter contatos posteriores, através da troca de emails, cujo conteúdo indica com clareza que uma relação de confiança foi estabelecida. Ao longo dos encontros com os jovens, é comum emergirem questões pessoais, às vezes relacionadas à família ou a outras dificuldades pessoais mais específicas. No entanto, o enquadre se configura a partir da demanda específica, relativa à busca de ajuda para definição profissional. Seria, portanto, inoportuna a abordagem de outras questões pessoais que eventualmente os jovens não estejam dispostos a tratar. Por outro lado, como se trata de uma oficina Ser e Fazer, o trabalho não se centra na enunciação de sentenças interpretativas, nem nas sessões grupais nem nas entrevistas individuais finais, pois entendemos, a 120 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA partir de uma perspectiva winnicottiana, que a potencialidade mutativa desta prática se encontra na experiência emocional vivida numa relação de confiança e não na obtenção de maior autoconhecimento produzido a partir de interpretações (Newman,1995). No entanto, naturalmente, acontece de os jovens acabarem tocando em assuntos mais pessoais e delicados, que surgiram nas dramatizações, ou que perceberam durante as brincadeiras. Como exemplo, podemos citar o caso de uma moça, que durante as dramatizações deixava transparecer certa dificuldade em lidar com autoridade. Estava sempre brigando por espaço no grupo, chegando a ser autoritária e muito competitiva em diversas situações. Essa jovem também se mostrou muito boa observadora e sensível diante de qualquer coisa que lhe dissessem, deixando claro que a terapeuta teria que ser muito cuidadosa para que não se sentisse, em hipótese alguma, criticada ou ameaçada. Qualquer alusão a alguma dificuldade poderia ser sentida como uma crítica, podendo levá-la a adotar uma estratégia defensiva, que dificultaria a conversa, fechando a possibilidade de comunicação. Embora sempre falando de seus pais com admiração e respeito, essa moça contou do quanto se irrita com a mãe, que sempre se imporia em tudo, nas relações com os amigos, no modo de se portar, como falar, na escola... Contou que, muitas vezes, sente-se tão sufocada que quer sair correndo, sentindo-se impulsionada a se movimentar, não agüentando ficar parada ou permanecer em local fechado. A conversa foi longa e aos poucos foi ficando mais tranqüila, sentindo-se à vontade para compartilhar as suas experiências, em um clima de confiança, no qual não se sentia mais ameaçada ou controlada e sim em condições de ser ouvida. Depois desses encontros grupais em que brincam por meio da dramatização de diversas situações do universo do trabalho e da vida de modo geral, os jovens aproximam-se de si identificando aquilo que os encanta e que o s atrai. A maioria dos jovens chega a essa última conversa individual com a terapeuta com idéias bem claras acerca do que os agrada ou não e das possibilidades de carreira a seguir. Tendem a mostrar, nesta ocasião, uma certa independência para buscar e investigar o que existe como cursos e profissões, deixando transparecer não apenas uma apropriação pessoal de seus sentimentos e interesses, no que diz respeito às possibilidades de carreiras, mas de suas vidas de modo geral, mostrando iniciativa, movimento e empolgação para ir atrás do que os encanta. Chama a atenção que os jovens chegam a essas impressões de um modo que não é intelectual, mas que remete a uma vivência muito intensa, em que os dramas encenados no grupo ganham principal importância, favorecendo um movimento de integração pessoal no qual afeto, compreensão e iniciativa se articulam de modo indissociável. Atento ao espírito lúdico presente nas artes, Huizinga (2001) reconhece o caráter sagrado dessas atividades que são capazes de proporcionar experiências que transcendem as limitações do intelecto. Por meio da poesia, da música, do teatro, da dança, da linguagem, etc., as pessoas podem viver experiências que as aproximam do que é belo, abandonando razão e lógica e abrindo espaço para novas idéias, inspirações, para a inovação, a 121 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA audácia, o improviso. Esse caráter arrebatador e transcendente, que uma experiência estética pode oferecer e cujo alcance não podemos circunscrever racionalmente, transparece nas palavras de Huizinga (2001, p.177) acerca das formas musicais, como sendo “determinadas por valores que transcendem as idéias lógicas, que transcendem até nossas idéias sobre o visível e o tangível”. Pensamos que o atendimento psicológico de jovens em processo de escolha profissional, no enquadre das Oficinas Psicoterapeuticas de Criação Ser e Fazer, favorece experiências semelhantes, nas quais os adolescentes, através do brincar proposto nos grupos, têm a oportunidade de ultrapassar os limites do meramente racional, alcançando esse estado de abertura a novas formas, possibilidades, sentimentos e impressões. Esses encontros brincantes parecem se constituir, a nosso ver, como hiatos no tempo e no espaço, durante os quais somos transportados para esse mundo mágico transicional das dramatizações que valoriza o viver e o sentir (Aiello-Vaisberg,2004). Por alguns momentos, deixamos em suspensão a correria do dia-a-dia, as exigências sociais e pessoais, o ambiente marcado por rupturas e desafios e nos entregamos a um brincar que tem hora para acabar. A certeza de começo, meio e fim para o brincar, que acontece no grupo, permite arriscar e experimentar situações e personagens diferentes com tranqüilidade26. Os jovens brincam de ser terroristas, empresários, assassinos, negociantes, milionários, mendigos, artistas, etc. e criam cenas, que mesmo remetendo ao mundo contemporâneo em que vivemos, aparentemente, acontecem em uma outra dimensão. Observamos que brincam com o que conscientemente consideram como opção profissional a seguir e também com o que nem imaginam, ou nem sabem ao certo se gostariam de fazer no futuro, resgatando um brincar mais antigo, mais infantil, que talvez esteja na raiz da escolha profissional. Em oficinas de velas artesanais, em ambiente hospitalar, com pacientes soropositivos para HIV-1, Mencarelli (2003) observou que seus atendimentos constituíam-se como momentos de repouso diante do sofrimento vivido, da dureza do tratamento a ser seguido, da situação que cada participante dos grupos enfrentava no cotidiano. Lembrando Herrmann (1983), que entende a interpretação como qualquer movimento do analista que favoreça uma ruptura de campo e não como sentença interpretativa, Mencarelli (2003) observa que em seus grupos o que acontecia era uma ruptura do campo da agonia27, permitindo, por algum momento, deixar em suspensão angústias e sofrimentos vividos. 26 Seguindo precisas indicações de Winnicott (1942) , entre nós Safra (1999) aponta que a noção de começo, meio e fim é fundamental para que o fenômeno transicional aconteça e para que se possa usufruir o brincar no tempo do faz-de-conta. 27 Para Winnicott (1945) o campo da agonia diz respeito a uma experiência de quebra de continuidade de ser, capaz de ocasionar uma organização falso self ou estar na origem do surto psicótico. Entendemos que a todo instante existem vários campos e não apenas um, visto que o que acontece ultrapassa nossa capacidade de consciência. Assim sendo, adotamos na Ser e Fazer o conceito de campo como inconsciente relativo circulando, acontecendo no momento. (Aiello-Vaisberg, 1999). 122 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Embora o contexto vivido pelos jovens em processo de escolha profissional seja muito diferente, pensamos que nossos encontros também se constituem como momentos de ruptura de um campo onde rondam sentimentos de indefinição, desconforto, incerteza, ansiedade, ligados à questão da escolha profissional, bem como à vida agitada, que cobra resultados, chegando a ameaçar a integridade das pessoas, podendo lançá-las em atividades que não necessariamente fazem sentido. A ruptura deste campo, na situação brincante, instaura um campo de descanso e suspensão, no qual se torna possível afastar-se, mesmo que momentaneamente, de um registro intelectualizado e desse ambiente acelerado, repleto de estímulos que, embora eventualmente instigante e interessante, pode chegar a ameaçar o sentimento de continuidade, de presença e autenticidade no viver. Esses encontros brincantes com a mala, em ambiente confiável, de descanso e suspensão, sustentado pela psicanalista presente, remetem a experiências muito vivas e intensas, que acenam para estados de ser mais livres e espontâneos, favorecendo, desse modo, um viver mais próximo de si e uma apropriação de si que não advém de um entendimento intelectualizado dos interesses e do estilo pessoal. Os jovens costumam chegar ao último encontro declarando terem se dado conta, durante o brincar, que tal ou tal atividade os atrai ou não, que se deram conta de que o que de fato querem é tal carreira e não outra. Os achados dessa pesquisa parecem sugerir que esses sentimentos dos jovens não decorrem de uma articulação intelectualizada de possibilidades de carreiras a seguir ou de resultados observados em inventários de interesses e questionários. Embora a articulação entre representações acerca de si e informações sobre possibilidades de profissões também aconteça, fazem parte de uma experiência mais ampla vivida no grupo, que transcende o registro fundamentalmente intelectual, representacional. Lembrando que a conduta28 é unitária, e que naturalmente se faz acompanhar pela reflexão e pela articulação simbólica, reconhecemos que o valor do trabalho realizado está em promover mudanças existenciais que ultrapassam uma dimensão meramente psíquicorepresentacional (Aiello-Vaisberg, 2004): Não se trata, portanto, de resgatar ou promover autoconhecimento, mas de promover uma experiência emocional significativa, situada no âmbito de um sentir, que é fundamentalmente um sentir-se vivo, real e atuante diante da alteridade do mundo. A articulação simbólica ocorrerá naturalmente, porque é própria da natureza humana. (Aiello-Vaisberg, 2004, p.97) Segundo essa perspectiva, a prática psicológica que aqui apresentamos privilegia o sentir e a ocorrência de uma experiência emocional significativa, que favorece a integração pessoal, posição pessoal na qual é possível sentir-se vivo, real e capaz de movimento e de ação no mundo. Evitamos desse modo um trabalho baseado no registro intelectual, por entender como pouco singificativas as 28 A conduta como conceito de gestualidade, não diz respeito a um movimento qualquer, mas se dá em um campo intersubjetivo, diante de um outro e em um contexto amplo influenciado por fatores sociais, políticos, econômicos, culturais. (Bleger, 1963/1989). 123 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA decisões baseadas em processos exclusivamente racionais e intelectuais. Nesses casos, a escolha pode não corresponder ao que de fato o jovem busca para si, dando-se de modo dissociado, desvinculado do sentir. Pensamos ser importante esclarecer que não buscamos proporcionar um leque amplo de situações e dramatizações para que possam experimentar diversas possibilidades de atuação profissional. Na verdade, cada grupo traz as personagens que fazem sentido para aqueles participantes em particular, de modo que as dramatizações emergem a partir do próprio acontecer clínico. Acontece eventualmente de um jovem dizer, no último encontro, que resolveu seguir uma profissão que nem foi representada ou que teve pouco destaque nas dramatizações do grupo. O contrário também ocorre, como, por exemplo, quando um jovem brincou muito de ser jornalista para, ao término dos encontros grupais, anunciar que não queria ser jornalista, que escrever artigos diariamente seria, a seu ver, um sofrimento. Outros dramatizam diversas personagens relacionadas aos seus interesses como, por exemplo, uma moça que foi artista plástica, professora de artes, dona de museu e que no final dos encontros reconheceu sua paixão pelas artes e disse que gostaria muito de seguir uma carreira que estivesse intimamente ligada às artes de um modo geral. Aconteceu, também, de algum jovem precisar de mais tempo para que uma escolha seja possível. Nesses casos, abrimos a possibilidade de realização de sessões individuais, findo o processo grupal, tendo em vista acompanhá-lo até que se sinta suficientemente pronto para fazer a sua escolha como gesto espontâneo. Embora este trabalho tenha focalizado o processo de escolha profissional de jovens de classe média, o modelo de atendimento proposto rompe com o estereótipo da orientação profissional voltada para quem ingressa em um curso superior (Lehman, Uvaldo e Silva, 2006), podendo ser empregado em outros ambientes e com grupos diferentes, adaptando-se a freqüência e a duração das sessões de acordo com a situação. A mala com suas vestimentas e acessórios de característica amorfa se presta à criação de personagens muito variados, atendendo a diferentes populações e garantindo mobilidade em um universo de possibilidades que não se restringe às carreiras oferecidas na universidade. Não se trata, necessariamente, de dramatizar todas as possibilidades de profissões, mas de brincar livremente com temas relacionados a trabalho e profissões, permitindo ao jovem recuperar algo que já é dele, que já o atravessa enquanto potencialidade que existe como possibilidade de acontecer no mundo. Nesse sentido, talvez possamos pensar a questão vocacional como abertura pessoal, sensibilidade e interesse por aspectos do mundo, que chamam a atenção e que remetem ao self. Estamos diante do paradoxo de recuperar o que já estava lá e que aparece para a pessoa em um determinado momento, em um contexto histórico, cultural e político. Esse modo de pensar a escolha da profissão como algo que recuperamos, e que aparece diante nós em um tempo e um espaço contextualizado, afasta-se da idéia de verificação da presença de 124 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA características pessoais que habilitariam mais facilmente o indivíduo a seguir uma ou outra profissão. A escolha, a nosso ver, vincula-se a uma experiência no mundo que permite que o jovem reconheça o ato de escolher como gesto espontâneo, como algo que já faz parte dele. Acreditamos que essa aproximação pessoal do que já é seu, do que agrada e faz sentido, contribui para o sentimento de se constituir como singularidade no tempo, para o sentimento de ser. Como observa Winnicott (1970/1999), para uma pessoa poder ser criativa, capaz de gestos espontâneos, ela antes “tem que existir, desenvolver um sentimento de existência, não na forma de uma percepção consciente, mas como uma posição básica a partir da qual operar” (Winnicott, 1970/1999,p.23). Esse sentimento de ser, que antecede o fazer, oferece as bases para que o jovem possa se sentir em movimento, capaz de ação no mundo, resgatando ou desenvolvendo o viver livre e espontâneo do self verdadeiro. A partir do momento em que alcança uma posição existencial a partir da qual se sente estimulado e capaz de fazer o seu gesto espontâneo, naturalmente, o jovem irá buscar as informações de que necessita para seguir o seu caminho, apropriandose de sua vida. Fica claro que não se trata de uma proposta de cunho pedagógico com ênfase na transmissão de mais conhecimento para jovens que já vivem em um ambiente marcado pela abundância de dados disponíveis e que, às vezes, até podem sentir-se entediados em ter que se sujeitar a mais informações e tarefas que não necessariamente lhes fazem sentido. Nos encontros brincantes com a mala, o encantamento e a empolgação dos jovens durante as dramatizações é visível. Seus olhos brilham diante das falas divertidas que surgem no grupo, das cenas inesperadas, das personagens criadas. Paira um clima de alegria e de satisfação, que ao nosso ver indicam momentos de encontro verdadeiro, pois, quando não há contato de verdade as pessoas se sentem frustradas em suas aspirações, expectativas e busca de sentido. Os jovens parecem contentes de usufruir um espaço confiável onde podem brincar livremente enquanto conversam sobre a vida e onde se sentem compreendidos. Consideramos valiosa essa possibilidade de trabalho no contexto da escolha da profissão usando a mala como procedimento dialógico transicional, pois parece fazer sentido para os jovens, atendendo às suas necessidades expressivas, indo ao encontro de suas expectativas e de seus sonhos, resgatando um brincar talvez perdido, deixado de lado, ou quem sabe nem mesmo bem desenvolvido. Em um tempo em que tudo já aparece pronto e padronizado, restringindo o espaço ocupado pelo mundo fantástico das histórias infantis, dos sonhos, da imaginação, esses grupos convidam os jovens a se lançarem no universo mágico do faz-de-conta, retomando, em ambiente protegido e sustentado, a experiência ilusória onipotente e resgatando o espírito lúdico que, segundo Huizinga (2001), vem se perdendo no mundo contemporâneo e que, segundo acreditamos, ajuda a alcançar estados mais sensíveis e próximos de si. 125 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Referências AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Ser e Fazer: Enquadres diferenciados na clínica winnicottiana. São Paulo: Idéias e Letras, 2004. 286 p. AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Os Enquadres Clínicos Diferenciados e a Personalização/Realização Transicional. In T.M.J.Aiello –Vaisberg e F.F. Ambrosio Cadernos Ser e Fazer: O Brincar São Paulo: Universidade de Sao Paulo, Idéias e Letras, 2004. 122 p. ______. 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Partimos, para tanto, da compreensão de que estas pessoas optaram por um percurso voltado à formação de docentes pesquisadores, cuja atuação em universidades se caracteriza pela não dissociação entre ensino e produção de conhecimento.Do ponto de vista metodológico, este estudo implica na realização de uma entrevista coletiva articulada ao redor do Procedimento de DesenhosEstórias com Tema, desenvolvido para pesquisa de representações sociais e imaginários coletivos. As produções serão consideradas à luz do método psicanalítico, tal como é operado na detecção de campos psicológicos nãoconscientes. Os resultados desta investigação serão disponibilizados a todos os orientadores e alunos do Programa, em forma de artigo científico, possibilitando sua utilização em atividades nos diversos Grupos de Pesquisa. PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise, pós-graduação, formação de docentes Abstract: This article proposes an investigation of the collective imaginary from students entering a stricto sensu post-graduation program about Higher Education’s Professor, with the intention of producing information that will shed some light on the professional choice of a research/teaching position in Higher Education and that will guide activities which could contribute for these students’ professional formation. For such, we start with the comprehension that these people have chosen a path guided towards a researcher’s formation, whose activities in universities can’t be separated from teaching practices and professors who are better qualified for acting on Higher Teaching Institutions.From a methodological point of view, this study implies a collective 29 Psicóloga, especialista em Sexualidade Humana, mestranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, bolsista CNPq. 30 Orientadora do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Professora Livre Docente aposentada do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Coordenadora da “Ser e Fazer”: Oficinas Psicoterapêuticas de Criação do IPUSP e Presidente do NEW- Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo. 127 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA interview centered on Themed Drawing Histories, developed for social representation and collective imaginary research. The productions will be analyzed under the psychoanalytic view, as it is used on the detection of nonconscious psychological fields.Results of this investigation will be available to all professors and students of the Program, in the form a scientific article, enabling it’s use in several of the Research Group’s activities. Key-Words: Psychoanalysis, strictu sensu post-graduation, higher education’s professor INTRODUÇÃO É notório o acelerado crescimento da pós-graduação brasileira nos últimos anos. Tal processo tem sido garantido pela mobilização permanente da comunidade acadêmica nacional, bem como pelo planejamento governamental que incorpora um processo de avaliação institucional adequado e financiamento por parte do poder público. Se por um lado as universidades públicas ainda são responsáveis por 82% dos cursos de mestrado e 90% dos cursos de doutorado, as universidades privadas têm apresentado um crescimento expressivo na pós-graduação stricto sensu (Coodernação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, 2004). Tal crescimento tem sido apoiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), através de bolsas de mestrado e doutorado, bem como verbas direcionadas ao desenvolvimento dos programas de pós-graduação. Na área da Psicologia, pesquisas a respeito do perfil do psicólogo brasileiro encomendadas e divulgadas pelo Conselho Federal de Psicologia (WHO Instituto de Pesquisa de Opinião e Mercado, 2001; Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística, 2004) permitem entrever acentuado aumento na procura por cursos de mestrado por parte destes profissionais, bem queda na busca pelo doutorado. Em 2001, 5,2% dos entrevistados responderam estar fazendo ou já ter feito mestrado na área, e 3,4% informaram o mesmo a respeito do doutorado. No ano de 2004, nova pesquisa aponta que 7% dos entrevistados são mestres ou mestrandos em Psicologia e apenas 2% optaram por prosseguir seus estudos através do doutorado nesta área do conhecimento. O crescente número de profissionais que informa dedicar-se à docência e pesquisa em Psicologia, 2,8% em 2001 e 5% no ano de 2004, aliado aos dados acima, sugere a importância de estudos científicos que problematizem a formação do docente de Ensino Superior nesta área. Propomos, aqui, a realização de uma investigação sobre a escolha da pósgraduação stricto sensu como percurso de formação profissional a partir da perspectiva da Psicanálise, método de pesquisa e atenção psicológica que acreditamos trazer uma ótica diferenciada para este tipo de reflexão. Definimos o método psicanalítico como aquele sustentado pelo pressuposto, já presente no pensamento freudiano, de que toda conduta humana tem sentido e faz parte das 128 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA possibilidades humanas. Trata-se, portanto, de um método rigorosamente ético e inclusivo, para o qual acreditamos que a teoria winnicottiana do sofrimento humano traz contribuições fundamentais e inovadoras. Winnicott (1945/2000) compreende o homem como ser que vem ao mundo com um potencial inato para o desenvolvimento e a saúde, tendo como fator necessário e suficiente para alcançá-los um ambiente inter-humano facilitador. Descreve, portanto, um desenvolvimento emocional que se desenrola na relação com outras pessoas, desde os princípios da constituição de um self. Tal concepção aproxima-se das idéias de Bleger (1963/1984), quando este afirma que o homem só chega a ser humano pela incorporação e organização de experiências com os demais indivíduos que o cercam. Nosso trabalho se desenvolve numa interlocução bastante próxima com estes dois autores. Trata-se de uma investigação sobre o imaginário coletivo, e devemos ainda ao leitor um esclarecimento sobre este conceito, a fim de permitir um melhor entendimento sobre o que pretendemos fazer. Compreendemos os imaginários coletivos como manifestações simbólicas de subjetividades grupais. Assim, partindo do pensamento blegeriano, poderíamos defini-los como um grupo particular de condutas que ocorre na área mental31 e no âmbito sociodinâmico32. Enquanto condutas, tais manifestações configuram-se como objeto de estudo de todas as ciências humanas, cada qual trabalhando a partir de sua perspectiva particular de análise destes fenômenos. Uma destas seria a psicanalítica, à qual nos alinhamos, que admite a presença de aspectos inconscientes nas condutas humanas que influenciam nossas práticas. Compreendemos, portanto, que o imaginário, como um ambiente humano, no qual se mesclam dimensões históricas, sociais, culturais, psíquicas e emocionais, é, ele próprio, produto da conduta humana. Tal ambiente, que é o contexto em que emergem, por sua vez, novas práticas, sentimentos, idéias, obras e instituições, organiza-se a partir de um substrato afetivo emocional não consciente, denominado campo ou inconsciente relativo. Deste modo, consideramos que abordar psicanaliticamente imaginários coletivos implica tanto na identificação de produções imaginativas como na captação do inconsciente relativo a partir do qual emergem. 31 Adotando a perspectiva de Pichon-Rivière, Bleger (1963/1984) divide as condutas em três tipos, correspondendo aos fenômenos mentais, corporais e de atuação no mundo. 32 Bleger (1963/1984) aponta que toda conduta humana dá-se num determinado contexto. A fim de permitir a consideração deste contexto na investigação e compreensão das condutas, propõe delimitações metodológicas, dentre as quais a amplitude em que se considera o fenômeno humano focalizado: pode-se estudar o indivíduo de forma isolada, conjuntos de indivíduos ou mesmo normas e pautas consideradas como instituições sociais. 129 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA JUSTIFICATIVA A partir de um levantamento bibliográfico33, notamos que poucos estudos científicos abordam o tema da pós-graduação. Dentre estes, mais numerosos são os que discutem a avaliação de programas e cursos, seja apenas enfocando um caso particular (Balzan et al, 1999; Carvalho, 1999 e 2001; Rocha, 2006), seja tratando do processo de avaliação de forma mais abrangente (Fonseca, 2001; Alencar, 2002; Kerr-Pontes et al, 2005; Steiner, 2005; Stein, Falcke e Predebon, 2005; Kac et al, 2006; Hortale e Koifman, 2007). O desenvolvimento histórico da pós-graduação no Brasil também figura no campo de preocupações de vários pesquisadores, servindo em geral como apoio para uma discussão a respeito das características atuais dos programas de diferentes áreas (Santos, 2003; Lüdke, 2005; Horta e Moraes, 2005; Ferraro, 2005; Kuenzer e Moraes, 2005; Oliveira e Alves, 2006; Almeida e Borges, 2007). Tais dados permitem entrever, entre os pesquisadores que se dedicam ao tema Pós-Graduação, uma grande preocupação com seu aspecto institucional, não havendo espaço para refletir sobre a opção por um curso stricto sensu como escolha de uma carreira específica. Realizamos, ainda, uma revisão da literatura científica nacional sobre a escolha profissional34, a partir da qual verificamos que grande parte dos estudos que se referem a este tema objetivam investigar as variáveis envolvidas no processo de escolha profissional de maneira geral (Alchieri e Charczuk, 2002; Alencar, Feldhusen e French, 2004; Lara, Araújo, Lindner e Santos, 2005; Faria e Guzzo, 2007; Gonçalves e Coimbra 2007), bem como aquelas envolvidas na escolha por uma profissão específica (Kemmer e Silva, 2007; Magalhães, Straliotto, Keller e Gomes, 2001; Millan, Azevedo, Rossi e Millan, 2005; Oguisso, Lira, Vieira, Pereira, Mesquita e Silva, 2006; Silva, Koch e Sousa, 2007; Takahashi, 2001; Spíndola, Martins e Francisco, 2008). Merece destaque a constatação de que quase a totalidade dos artigos encontrados sobre as variáveis envolvidas na escolha de uma carreira específica focaliza profissões pertencentes à área da saúde, tais como enfermagem, medicina, odontologia e psicologia. No que se refere à formação de professores dedicados ao Ensino Superior, foram encontrados apenas dois artigos, o que equivale a menos de 2% do total de artigos acessado. Em um deles, Madeira e Lima (2007) discorrem sobre os saberes docentes que alicerçam as práticas pedagógicas do professor de profissão. O outro trabalho encontrado reflete sobre o stress causado pelo aumento da competição entre os pesquisadores e a redução progressiva do 33 Foram pesquisados estudos científicos publicados entre os anos 1999 e 2008, disponíveis na Biblioteca Virtual em Saúde – Psicologia, e passíveis de serem acessados através da palavras-chave “pós-graduação”. 34 Foram pesquisados estudos científicos publicados entre os anos 2000 e 2008, disponíveis na Biblioteca Virtual em Saúde – Psicologia, e passíveis de serem acessados através da palavras-chave “escolha profissional”. 130 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA financiamento público para pesquisas científicas, apontando que tal cenário pode desestimular a escolha por esta carreira (De Meis, Velloso, Lannes, Carmo e De Meis, 2003). Nota-se, portanto, que na literatura científica publicada na área da escolha profissional, a carreira de pesquisador e docente de Ensino Superior tende a ser reduzida às possibilidades do mercado de trabalho e às práticas pedagógicas que envolve. Parece não haver espaço, quer entre aqueles que estudam a pósgraduação stricto sensu, quer entre os que se interessam pela escolha profissional, para considerar a pesquisa e a docência em Ensino Superior como profissão, ou seja, mais do que uma das possibilidades de atuação no mercado de trabalho, uma escolha pessoal. O presente trabalho propõe uma investigação do imaginário coletivo de alunos ingressantes num curso de pós-graduação stricto sensu sobre o docente de Ensino Superior, com a intenção de produzir conhecimentos que iluminem a escolha profissional pela carreira de pesquisador/docente de Ensino Superior, e que orientem atividades voltadas ao enriquecimento da formação oferecida aos discentes. Partimos, para tanto, da compreensão de que estas pessoas optaram por um percurso voltado à formação de pesquisadores, cuja atuação em universidades é indissociável da prática do ensino, e docentes melhor capacitados para a atuação em instituições de Ensino Superior. OBJETIVO O objetivo do trabalho apresentado neste projeto é investigar psicanaliticamente o imaginário coletivo de alunos ingressantes num curso de pós-graduação stricto sensu sobre a docência em Ensino Superior, com a intenção de produzir conhecimentos que iluminem a escolha profissional pela carreira de pesquisador/docente de Ensino Superior, e orientem atividades que contribuam para a formação profissional destes alunos. MÉTODO Os alunos aprovados no processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Psicologia serão convidados a participar voluntariamente desta investigação e esclarecidos de que a recusa não lhes implicará qualquer prejuízo, e que nas produções não será identificado de forma alguma o seu autor. A captação do imaginário coletivo se fará mediante o uso, em uma entrevista coletiva, do Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema, desenvolvido por Aiello-Vaisberg (1999) para pesquisa de representações sociais e imaginários coletivos, a partir de procedimento originalmente idealizado por Trinca (1976) para uso psicodiagnóstico. A utilização do Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema consiste na solicitação ao participante de que desenhe, numa folha de papel sulfite que lhe foi entregue pela pesquisadora, uma pessoa que vivencia determinada situação e, em seguida, que invente e escreva, no verso desta mesma folha, uma história 131 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA sobre aquilo que desenhou. Nesta investigação, solicitaremos, aos alunos, o desenho de um docente de Ensino Superior. Consideramos que a elaboração do acontecer clínico, no âmbito da pesquisa, se faz necessariamente pela via da interlocução. Assim, a partir das entrevistas, serão elaboradas narrativas psicanalíticas, objetivando compartilhar com os demais pesquisadores do Grupo de Pesquisa a experiência dos encontros. A narrativa estimula uma interpretação livre da história narrada, favorecendo a troca de experiências clínicas e a interlocução, sendo um lugar privilegiado para a produção de conhecimento nas ciências humanas (Aiello-Vaisberg, Machado e Ambrosio, 2003). Juntamente com os desenhos e estórias, tais narrativas formarão o conjunto do material sobre o qual trabalharemos, e que será analisado de acordo com o método psicanalítico, tal como é operado na detecção de campos psicológicos não conscientes (Herrmann, 2001). Os resultados desta investigação serão disponibilizados a todos os orientadores e alunos do Programa, em forma de artigo científico, possibilitando sua utilização em atividades nos diversos Grupos de Pesquisa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Aiello-Vaisberg, T. M. J. (1999). 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Essa questão foi recortada da pesquisa: Espaço de Memórias – imagens, palavras e sentimentos: corpo/sexualidade e a posição subjetiva ao envelhecer no início do século XXI, caracterizada como sendo um estudo qualitativo. O delineamento dessa pesquisa foi o de um estudo de corte transversal. Os 30 participantes foram selecionados por intencionalidade, atendendo aos seguintes critérios: idosos com mais de 60 anos de idade, docentes e/ou alunos numa universidade da Região Nordeste do Estado do Rio Grande do Sul. A técnica utilizada foi entrevista semidirigida, atendendo aos objetivos da pesquisa: identificar a atual posição subjetiva ao envelhecer, considerando-se o convívio social e o rápido desenvolvimento da informática e das comunicações, para propor ações e intervenções que promovam o sujeito criativo e responsável pela sua saúde ao envelhecer. Os resultados parciais apontam para duas posições subjetivas do idoso: (a) a lamentação e o mal-estar gerado pelo convívio com a tecnologia digital; (b) a autonomia e o compromisso com esse processo inovador de comunicação. Palavras-chave: subjetiva. Envelhecer. Tecnologia digital. Comunicação. Posição Aging at the beginning of 21th Century: subjective position and the conviviality with the contemporaneous technologies in the communication ABSTRACT: The technological innovations have been allowed to enlarge and to differentiate the communications that are more and more sophisticated, so they bring inquietude and social and cultural changes. It is questioned: how it is to age at the beginning of 21th century, considering the conviviality with the advance of the technology in the communications? This question was cut out of the research: “Space of Memories – images, words and feelings: body/sexuality and the subjective position in aging at the beginning of 21th century”, it is characterized for being a qualitative study. The delineation of this research was its transversal cut study. The participants (30) had been selected by intentionality, in view of criteria: the aged with more 60 years old, professors and/or students in an university of the Northeast Region of the Rio Grande do Sul. The semidirected interview was an used technique in view of objectives of the research: to identity the present subjective position in aging, regarding 136 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA oneself as the social conviviality with the fast development of the informatics and the communications to propose actions and interventions that promote the creative and responsible subject for its health in aging. The findings are being treated and they are interpreted from the communication and psychoanalysis’ theoretical contributions. The partial results point two subjective positions of aged: (a) lamentation and unrest generated by conviviality with the digital technology; (b) autonomy and engagement with the innovative process of communication. Key words: Aging. Digital technology. Communication. Subjective position. As pessoas que envelhecem, atualmente, representam um número cada vez mais significativo e têm despertado a atenção do universo das ciências. No Brasil, o crescimento da população idosa, a partir da década de 90 e, no mundo há bem mais tempo, é definido como uma conseqüência do avanço das ciências e das tecnologias. Mas, se, por um lado, esse contexto favorece a longevidade, percebe-se o desprezo ao idoso, muitas vezes relegado ao ostracismo. Simone de Beauvoir (1970) fala que há uma conspiração silenciosa contra a velhice. Ao estudar o processo de envelhecimento, é necessário considerar que ele ocorre num ambiente envolvendo outras pessoas, [...] razão pela qual interdependência e solidariedade entre gerações (uma via de mão-dupla, com indivíduos jovens e velhos, onde se dá e se recebe) são princípios relevantes para o envelhecimento ativo. A criança de ontem é o adulto de hoje e o avô ou avó de amanhã. A qualidade de vida [...] depende não só dos riscos e oportunidades que experimentarem durante a vida, mas também da maneira como as gerações posteriores irão oferecer ajuda e apoio mútuos, quando necessário. (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2005, p. 13b). Hoje, a expectativa de longevidade e a promessa de beleza e juventude, divulgadas pelas mídias, têm estimulado a busca cada vez maior dos serviços de saúde pelos idosos. Nas consultas, falam de suas dores, de seus sofrimentos, de suas ansiedades, de seu desamparo e de suas inseguranças, ao terem que assumir um novo corpo marcado pelo tempo, pelas transformações orgânicas e pelas mudanças na posição social, decorrentes dessa etapa da vida. Isso se contrapõe à imagem corporal valorizada pela sociedade atual. Aparece aqui um paradoxo, uma vez que a sociedade ensina e impõe o dogma de que a vida compreende diversas fases: nascimento, infância, juventude, adultez e velhice e, também, prega que a fase de construção de projetos e investimentos para o futuro perdura desde o nascimento até a velhice. Portanto, impõe-se a necessidade de compreender a situação do envelhecer no mundo contemporâneo, sabendo-se que a vida se desenvolve do nascimento à morte. Nesse sentido, a figura do velho, nas sociedades mais primitivas e tradicionais, representava a sabedoria, a paciência, e transmitia os valores da ancestralidade: era ele quem detinha a memória coletiva; quem, através da evocação e da transmissão oral, construía uma narrativa com a qual se incorporava (fazia-se 137 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA corpo) cada indivíduo na história do grupo, outorgando-lhe uma filiação bem mais abrangente do que conhecemos, atualmente, quase restrita ao campo familiar. (GOLDFARB, 1998, p. 25). Ainda: o velho “era um elemento na vida do jovem que colaborava para sua ancoragem no registro do simbólico, e este era o lugar simbólico para a velhice”. (GOLDFARB, 1998, p. 25). Porém, a partir do século XVIII, com a Revolução Industrial, a humanidade passou a vivenciar sucessivas transformações e a conviver com o avanço acelerado das tecnologias, que repercutem no âmbito social, com mudança de valores, e os valores tradicionais foram se perdendo, diz a autora, em favor de uma sociedade individualista. Assim, o envelhecer, neste início de século, chama a atenção tanto para o aumento significativo da população idosa quanto para os fenômenos cujas disposições psicológicas, associadas às inúmeras perdas nesse período, influenciam na determinação de desadaptações sociais e no agravamento de doenças orgânicas. E, como já afirmava Sócrates, o corpo não pode ser curado sem curar-se a alma, lembra Perestello (1974), acrescentando que a razão de alguns médicos desconhecerem a cura de muitas enfermidades é porque não olham o paciente no seu todo. Grifa-se que foi Hipócrates quem lançou os fundamentos da medicina moderna, articulando a visão humanista ao rigor científico. Deu a devida importância à observação clínica, às entrevistas de anamnese, à investigação etiológica e prognóstica da história singular do doente, para obter a compreensão da doença. Para ele o homem era considerado uma unidade organizada, sendo o corpo sua dimensão funcional, a alma, sua dimensão reguladora, e a doença, o efeito da desorganização dessa unidade. A cura só seria possível quando se considerassem não apenas os sintomas, mas também a natureza do doente. (VOLICH, 2000). Diante desse contexto, é pertinente também destacar que o homem é, por natureza, um ser simbólico, ser de linguagem e comunicação (SANTAELLA, 2001) e, na comunicação, as linguagens se cruzam, as palavras ressoam e se estabelecem laços sociais – intermediando o social e o individual. (LACAN, 1992). Nesse viés, a comunicação social, neste início de século, com suas inovadoras linguagens, criadas pelo avanço das ciências e da tecnologia, têm ocasionado rupturas no conhecimento estabelecido, gerando desconforto e sofrimento ao sujeito. Esse se intensifica na medida em que estamos, atualmente, inseridos em uma civilização caracterizada pela crescente inserção de avançados recursos da tecnologia, no convívio diário, e pelas conseqüentes formas de comunicação de domínio dos jovens, que causam desconforto, inquietações e mal-estar aos mais velhos. Essas questões são do interesse de várias áreas do conhecimento científico, e se impõem como um desafio à medida que estão interligadas ao conceito transdisciplinar de sujeito, presente em todos os campos do conhecimento humano, que está alicerçado na cultura (crenças, tradições e mitos) e nas linguagens. E as linguagens, nascentes do ciberespaço, são de domínio dos 138 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA jovens, muitas vezes, incompreensível pelos adultos e idosos que ainda não se enlaçaram a esse desconhecido universo. Isso tem gerado um mal-estar, que, neste trabalho, se situa como ocasionado pela virada de posição social; o jovem criou um laço social e passou a ocupar a posição subjetiva de domínio da “coisa” ao se deixar cativar pelo mundo do ciberespaço. Essa paixão do jovem pelo ciberespaço provoca efeitos ameaçadores aos adultos e idosos pelo fato de esses sentirem que estão perdendo a identidade de poder/saber, para ocupar a posição subjetiva de não saber,35 precisando aprender com os jovens nascidos na era digital. Isso está ocasionando uma ruptura dos padrões socioculturais, desencadeando outras investigações. E, desta vez, ao destacar a necessidade de investigar o discurso de idosos que convivem com as interações sociais virtuais, possibilitadas pela informática, procurou-se escutar, ler e decifrar falas de professores e alunos que, ao envelhecer, neste início de século, transitam no contexto universitário. O projeto de pesquisa de natureza qualitativa envolveu uma amostra constituída de 30 participantes (professores e alunos), residentes no Estado do Rio Grande do Sul, com idade acima de 60 anos. Na entrevista realizada, objetivou-se escutar e fazer uma leitura psicanalítica das percepções de f(atos) dos participantes sobre seu convívio com avanço da tecnologia nas comunicações. Em vista disso, o objetivo foi identificar as implicações subjetivas nas interações sociais (posição subjetiva), e propor ações e intervenções de responsabilidade coletiva em busca da promoção da saúde do idoso. Os participantes foram convidados, intencionalmente, a participar da pesquisa, cujo projeto: Espaço de Memórias – imagens, palavras e sentimentos: corpo/sexualidade e a posição subjetiva ao envelhecer no início do século XXI,36 foi previamente avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Caxias do Sul, tendo sido aprovado. Todos os participantes se dispuseram a falar (e muito falaram), e das falas foram recortados alguns fragmentos, que identificam a posição subjetiva contemporânea ao envelhecer diante das inovadoras formas de comunicação. “Mas o que se faz do dito resta aberto. Pois pode-se fazer dele uma porção de coisas.” (LACAN, 1985, p. 26). Ao analisar as falas, encontrou-se concordância quanto ao acesso ao conhecimento universal, por meio do computador, que está cada vez mais próximo e disponível, vindo ao encontro do interesse pessoal dos participantes, como disse um deles: Eu sempre gosto de trabalhar na internet, [...] procurar as cidades na internet [...] aqui tu viaja o mundo inteiro sem sair de casa. Não é uma boa? (P 12) 35 O saber se diferencia do conhecimento informativo. As informações armazenadas pelo homem podem permanecer como uma representação exterior à experiência. O saber está implicado com o aprimoramento de uma práxis. 36 Coordenação do projeto de pesquisa: Profa. Dra. Helena Maria Rizzon Mariani (Professora no curso de Psicologia da Universidade de Caxias do Sul – RS); Pesquisadorcolaborador: Prof. Dr. Dino Roberto Soares De Lorenzi (Professor no curso de Medicina da Universidade de Caxias do Sul – RS); Esp. Liliane Giordano (Fotógrafa); Bolsista: Elenice Cazanatto – BIC/UCS (Acadêmica do curso de Psicologia). 139 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Por outro lado, os participantes acrescentaram que está se tornando difícil percorrer esse vasto universo de informações devido à sua amplitude disponível no ciberespaço. Segundo outro participante: Ninguém consegue acompanhar totalmente o desenvolvimento da tecnologia hoje, porque no momento em que tu aprendes a trabalhar com um avanço tecnológico nesse último século [...], vem outro, imediatamente, melhor e superior. [...] O avanço foi violento, [...], principalmente nos últimos 20 anos. [...] Na hora que tu recebe um computador, ele já está obsoleto, já tem um melhor no mercado, e aí? Como é que a gente faz? Eu muitas vezes me pergunto. (P 2) A realidade sociocultural do adulto e do idoso de hoje é diferente daquela de 20 anos atrás, e ele se defronta com o novo e o estranho nas comunicações. É, como diz uma participante: Foi uma mudança muito brusca [...] do tempo da minha mãe para o meu [...] com 60 anos, aprendendo informática, porque há necessidade, senão a gente não consegue fazer mais nada. Até mesmo pra gente se comunicar com os filhos, com os netos, é necessário que haja assim, eu não digo que a gente consiga acompanhar eles, mas que esteja ao alcance, porque, o que é que a gente vai fazer nesse mundo aí, isolada de tudo, e sem o computador tu não consegues, tu ficas meio alheia ao que está se passando, ao que acontece. (P 18) Observaram-se, também, percepções referidas a: diferenças e semelhanças ocorridas da infância à velhice Uma velha, no tempo da minha avó, era fácil, porque o que ela tinha que saber fazer era um pouquinho de tricô, contar umas histórias pros netos... Hoje não, as minhas netas não querem tricô [...]. Histórias ainda elas gostam, elas não querem o tipo de atrativo que existia uma vez. Hoje eu tenho que ser mais ativa, porque, se eu parar, as minhas netas não vão conversar comigo. (P 1) efeitos ocorridos nas interações sociais e manifestados como mal-estar O jovem chega dominando o computador e, ás vezes, nós da terceira idade não dominamos tanto. Saber que nesse sentido o jovem tem uma vantagem sobre nós. (P 20) Tudo isso favorece muito a vida, mas a gente não tem mais, como jovem, aquela agilidade de ir mexendo e descobrindo e fazendo, inventando possibilidades. (P 24) formas de lidar com o mal-estar provocado pelas inovadoras comunicações Eu percebo como um avanço muito grande e me sinto, assim, desconfortável dentro disso. [...] Acho que não evoluí, não me dediquei, não tirei o tempo de 140 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA aprender, de assimilar essa tecnologia, e me sinto assim que isso faz falta... (P 21) Foi um elemento facilitador que obrigou o professor a se manter mais do que muito atualizado. Isso aí sim obrigou o professor a não mais repetir as coisas como às vezes é de praxe. (P 25) As investigações, até o momento, têm permitido identificar, nos idosos participantes deste estudo, um sujeito, que sente e percebe seu envelhecimento, assumindo perante a vida posições subjetivas distintas ao lidar com o mal-estar gerado no convívio com a tecnologia digital, ou seja, com as novas formas de comunicação. Essas posições se manifestam como: lamentação – posição em que o sujeito corre o risco de ficar sempre no mesmo lugar e estagnar Os jovens já nasceram nessa era da informática, que pra eles assim, eles já nascem com o computador dentro de casa, pra eles é tudo muito fácil, pra nós, tu fazer uma programação, até de uma televisão, quando começou a vir essa televisão digital e tudo mais, já era difícil, porque a gente não conviveu muito, foi uma coisa que apareceu de repente, então pra eles, eles acham que tudo é muito fácil. (P 18) compromisso com o processo inovador de comunicação, posição que, por sua natureza, remete sempre a outras metáforas, porque o desejo sempre faz referência a um mais além O ser humano, ele tem que ir à busca do conhecimento, e o conhecimento está ali, basta a gente estender a mão e trazê-lo para cada um de nós. [...] A informática é uma janela para o mundo, e eu tenho também o computador na minha casa já há muitos anos, então a maioria das noites eu procuro entrar na internet, porque é uma janela, é muito bom, me sinto bem, é uma coisa que me faz bem. (P 12) A posição subjetiva se refere a um discurso, “a uma utilização da linguagem como liame” (LACAN, 1985, p. 43) – um fenômeno não somente de palavras, indicando, neste estudo, o laço social emergindo e observado por meio de f(atos) indicando: (a) atração e fascínio pela imagem idealizada, que conduz à alienação; (b) autonomia que mobiliza o sujeito a seguir a caminhada, transpondo obstáculos em busca de algo mais e se responsabilizando pelos resultados alcançados, indicadores que se opõem à posição subjetiva de alienação. E, ao concluir, ressoam outras palavras e abrem-se brechas ao ver e ao investigar, pois a inovação tecnológica contemporânea criou “inevitavelmente novo ambiente que age incessantemente sobre o sensorium”, como dizia McLuhan (1969, p. 136), provocando uma revolução nos sentidos e ocasionando certo mal-estar social. Nesse processo, muitas vezes, ocorre um trabalho de autodestruição, similar ao do organismo de uma larva e, ao mesmo tempo, 141 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA refere Morin (2002, p. 8), acontece “um trabalho de autocriação, de onde emerge um novo ser, outro, e, entretanto, com a mesma identidade. Ao final da metamorfose aparece a borboleta, de início paralisada, entorpecida... até que, subitamente, ela estende as asas e alça vôo”, abandonando a posição de larva para explorar um outro universo. Referências bibliográficas BEAUVOIR, Simone de. A Velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. DOMINGUES, Diana. A criação da vida artificial, pesquisas científicas e artificiais e a arte do pós-humano. In: DOMINGUES, Diana; VENTURELLI, Suzete. Criação e poéticas digitais. Caxias do Sul: Educs, 2005. p. 45-60. FREUD, Sigmund. Os instintos e suas vicissitudes. [1915]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. 1. ______. 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O emagrecimento provocado por este procedimento gera uma modificação na imagem corporal e em diversos fatores da vida do indivíduo, dentre os quais destacamos os fatores sexuais. Objetivando compreender que sentido e significado a mulher obesa atribui à sua vida afetivo-sexual no decorrer de sua existência, em especial com a nova imagem corporal proporcionada no período pós-operatório, decorrente da perda de peso, decidimos realizar uma pesquisa utilizando a metodologia qualitativa fenomenológica. Como estratégia de coleta de dados, utilizamos a entrevista fenomenológica compreensiva com dez mulheres adultas submetidas à cirurgia bariátrica há pelo menos seis meses, para que pudesse ser constatada uma perda de peso significativa. Os depoimentos foram submetidos ao referencial teórico da Psicanálise. Com o auxílio da leitura psicanalítica foi possível compreendermos que o procedimento cirúrgico tem se mostrado eficiente em transformar o corpo externamente e proporcionar maior Qualidade de Vida. No entanto, a realização da cirurgia ocasiona a remoção do excesso de peso corporal e não a re-elaboração psíquica, a erogeneização do corpo, fazendo com que ocorram problemas na veiculação erótica desse novo corpo e com que a busca pelo preenchimento do objeto faltante continue. Abstract: Obesity has reached epidemic proportion and become a Public Health concern. It’s most severe state, Type III, which is defined by a BMI of 30 kg/m2 or higher, may require surgical intervention known as bariatric surgery. Weight loss resulting from such procedure generates change in an individual’s body image as well as in various other factors of that individual’s life, among which we highlight the sexual factors. Aiming at investigating the sense and the meaning obese women attribute to their sexual-affective life in their lifetime, and especially to their new body following the surgery, when they experience weight loss, we have decided to carry out research using the phenomenological qualitative research method. As a strategy for data collection, we used phenomenological interviews with ten adult women who had been submitted to the bariatric surgery at least six months before, as a means to ensure there had been significant weight loss. The interviews were analyzed from the Psychoanalyses perspective, which helped us to understand the outcomes of such surgical intervention. It has proved to be efficient in transforming the body and providing the individual with better life quality. ¹ Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP- USP ² Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP- USP 144 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA However, the surgery removes body fat, but does not bring about the reelaboration of one’s psychic structure, the erogenity of the body; consequently causing issues regarding the erotic functioning of the new body to arise and the search for the lacking object to continue. 1. Introdução A obesidade se tornou um problema de saúde pública e tem atingido proporções epidêmicas. Juntamente com o sobrepeso, essa epidemia mundial alcança aproximadamente 1,7 bilhão de pessoas. Sua expressão mais severa, a obesidade grau III, que pressupõe um Índice de Massa Corpórea (IMC) acima de 40 kg/m², tem como indicação de tratamento mais eficaz a cirurgia bariátrica. O emagrecimento provocado por este procedimento gera uma modificação na imagem corporal e em diversos fatores da vida do indivíduo, dentre os quais destacamos os fatores sexuais. Para a psicanálise a sexualidade é entendida como o conjunto de atividades sem a ligação com os órgãos genitais, e portanto, uma sexualidade como erogeneização, sendo que esta ocorre no desenvolvimento psicossexual do indivíduo, com a ligação do psique e do soma e a formação das representações mentais do corpo e das zonas erógenas. De acordo com McDougall (1996) a obesidade também pode ser entendida como manifestação sintomática que utiliza o corpo como linguagem para expressar um sofrimento psíquico. Esta mesma autora refere que para os somatizadores, considerados desafetados e deserogeneizados, as doenças psicossomáticas podem representar uma luta pela sobrevivência psíquica e uma tentativa de reintegração do psique-soma. Dessa forma, podemos pensar que quando o sintoma desaparece, que no caso do obeso grau III pode ocorrer com a realização da cirurgia bariátrica, a verdadeira razão do sofrimento psíquico e o vazio interior podem ser desvendados de uma maneira dolorosa. Assim, temos como objetivo desta pesquisa compreender que sentido e significado a mulher obesa atribui à sua vida afetivo-sexual no decorrer de sua existência, em especial com a nova imagem corporal proporcionada pela perda de peso após a cirurgia bariátrica. 2. Metodologia Utilizamos a metodologia de pesquisa qualitativa fenomenológica, centrada na redução fenomenológica, o que nos permite o retorno ao mundo da experiência vivida pelas colaboradoras, e o referencial teórico psicanalítico como forma de realizar uma análise compreensiva-interpretativa dos depoimentos das colaboradoras. Como estratégia de coleta de dados utilizamos a entrevista fenomenológica compreensiva com uma questão norteadora: “Fale a respeito de sua vida, como 145 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA foi sua infância, sua adolescência, sua vida adulta, relacionando com aspectos da obesidade e de sua vida afetivo-sexual”. Realizamos as entrevistas com dez mulheres adultas submetidas à cirurgia bariátrica, há pelo menos seis meses, para que fosse constatada uma perda de peso significativa. Tivemos acesso a estas colaboradoras por meio da equipe de uma clínica especializada em cirurgia bariátrica, por contatos mediados por uma integrante do Grupo de Pesquisa SexualidadeVida (USP/CNPq) e por outras entrevistadas. 2.1. Momentos de análise dos depoimentos Leitura e releitura das entrevistas com a finalidade de apreender o sentido geral do fenômeno indagado; Discriminação das unidades de significado e identificação das categorias divergentes e convergentes; Expressão do insight contido nas unidades de significado; Síntese e integração dos insights para se obter uma descrição consistente da estrutura do fenômeno e compreender a vivência afetivo-sexual de mulheres submetidas à cirurgia da obesidade. 3. Resultados e Discussão O método fenomenológico denota grande importância ao tratamento dos dados referentes às condições da vida cotidiana procurando esclarecer o mundo do diaa-dia. Além disso, ele analisa os dados da realidade exaltando a intersubjetividade como núcleo orientador da ação. Cada colaboradora atribuiu significado particular às suas vivências, uma vez que são elaboradas conforme a história de vida de cada uma delas. Dessa forma, elaboramos cinco categorias de análise, com suas respectivas subcategorias. A maioria dos relatos referiu-se às problemáticas vividas nos horizontes da infância, seja perdas reais ou simbólicas de pessoas queridas sentidas intensamente até como abandono, ou então doenças físicas graves, o que afetou a expressão psíquica neurótica na fase adulta possibilitando a formação de sintomas pela via biológica. Destacamos as colaboradoras 1, 3 e 8 que referiram ao processo de construção do corpo obeso nesta época. “...eu era muito magrinha...e faziam promessa...um monte de coisa pra eu engordar....aí meu irmão nasceu e ele comia muito bem e eu queria comer muito bem igual ele pra ficar bem em casa....porque eu sou de família italiana e lá comer muito é lindo...” Colaboradora 1, 33 anos, casada, espírita cardecista, nutricionista, classe social B2. 146 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA “...eu sempre fui obesa...fui bebê obesa éh::..então...mas eu nunca sofri muito por conta disso não...eu: era bebê obesa...depois eu fui menina gordinha...” Colaboradora 8, 56 anos, casada, budista, técnica em nutrição, classe social B1. A colaboradora 1 que diverge das outras duas ao afirmar com clareza o porque começou comer em excesso e o quanto isso era bem visto pelas pessoas que a cercavam, parece ter sentido a chegada do irmão como um abandono por parte da figura materna que precisava ser reconquistada também por meio do alimento. Freud (1931, 1933) nos ajuda a pensar que o nascimento de um irmão pode contribuir para o desligamento da menina de sua mãe na fase pré-edipiana, o que lhe ajudará na escolha da feminilidade ou não. As colaboradoras 3 e 8 revelaram o preconceito sofrido perante a sociedade. Benedetti (2003) nos diz que a imagem corporal, ou melhor, o que sentimos e pensamos a respeito do nosso corpo é influenciado pelas relações sociais, e pode repercutir no desenvolvimento de uma auto-imagem negativa quando as pessoas sofrem com consequentes avaliações sociais negativas desde a infância. As colaboradoras 3 e 9 que sofreram abuso sexual na infância e divergem da outras colaboradoras neste sentido, convergem entre si e com a literatura sobre o assunto no sentido de que tiveram sua sexualidade iniciada de forma precoce, banalizaram a mesma e partiram para a aversão e ou indiferença à sexualidade genital, além do desgosto pela feminilidade. “...eu sempre fui uma criança problemática...eu tive uns probleminhas assim de...de ter sofrido...um...eh::...(...)...foi uma coisa assim que...éh::...que mexeu com a sexualidade e eu era criança...né...na infância foi...ah::..foi com meu padrasto...(...)...isso...alterou tudo o curso natural...(...)...porque depois quando fui entendendo o que era sexo...(...)...então eu não conseguia deixar que ninguém me tocasse...” Colaboradora 3, 49 anos, solteira, católica, engenheira, clase social B2. “...eu tive esse período dos sete anos...que a minha mãe faleceu...(...)...meu padrinho pegou eu pra morar com ele...(...)...só que nesse período ele mexeu comigo...me levou debaixo de um pé de manga...tirou minha roupa né?...e queria ter relação comigo...eu não sabia...daí eu chamei minha madrinha...eu falei pra minha madrinha...e minha madrinha pôs ele na cadeia...” Colaboradora 9, 33 anos, casada, evangélica, faxineira, classe social C. Nasio (2007) comenta que a simples fantasia infantil de sedução pode ocasionar a histeria na mulher adulta com o pensamento de que todos os homens são iguais e, portanto, uma rebelião contra qualquer homem de quem ela poderia depender e depois ser abandonada. Assim, podemos compreender a opinião negativa a respeito da masculinidade transferida para outros homens, os não abusadores, a partir da vivência de uma situação real de sedução. 147 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Na temporalidade da adolescência, as colaboradoras 2 e 4 iniciaram o processo de construção do corpo obeso devido a questões referentes ao tornarse mulher, ao surgimento da menstruação e à preparação para a feminilidade definitiva. “...aí com quatorze anos...na minha primeira menstruação...eu comecei engordar...(...)...eu tive meu primeiro namorado com quatorze anos...” Colaboradora 2, 31 anos, divorciada, umbandista, arquiteta, classe social A1. “...aí teve período também da gente namorar né...ela...teve umas...assim...umas vezes que minha mãe impediu...de namorar né...e aquilo já fazia mal pra mim...porque:...eu sou uma pessoa que não pode me contrariar...e aí que eu vou e faço...” Colaboradora 4, 46 anos, casada, evangélica, comerciante, classe social B2. Segundo Levisky (1995) é normal engordar no período da adolescência devido às mudanças hormonais ocorridas no corpo da menina, o que ocasiona também a mudança na imagem corporal. Também podemos refletir embasados pelo pensamento de McDougall (1996) que essa solução adictiva pode ter-lhes trazido paz psíquica por confirmar que seus corpos estavam vivos e eram indivíduos completos que não corriam riscos de perder suas identidade individual. Ainda na temporalidade da adolescência, a grande maioria de nossas colaboradoras (1, 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10) revelou suas vivências afetivo-sexuais, comentaram sobre os namoros e a primeira relação sexual. As colaboradoras 5, 6, 8, 9 e 10 referiram sobre a gravidez neste período. “...meu primeiro namorado eu devia ter uns...eu devia ter já uns 15 anos...tinha uns quinze anos...que naquela época lá as meninas começavam a namorar muito cedo né?...e quinze anos pra eles já era até tarde...” Colaboradora 7, 55 anos, casada, evangélica, do lar, classe social B1. “...doze anos engravidei...(...)...era muito criança...não sabia da onde aquela criança vinha...eu não fiz pré-natal...(...)...foi a primeira vez que eu tive uma relação querendo...porque eu já tinha tido uma relação sem querer antes né?...no anterior...daí eu pensava que era sempre ruim né? daí foi quando eu tive querendo eu engravidei né?...” Colaboradora 9 Para Freud (1933) a menina precisa buscar em suas relações o sentido do que é ser uma mulher. A menina ao voltar-se para o pai inicia-se o Complexo de Édipo e pode então promover uma escolha de objeto amoroso segundo o tipo paterno. De acordo com Nasio (2007) ao superar o Édipo, a menina, agora mulher, reconhecerá o Falo no pênis ereto do homem amado e especialmente no amor que este homem lhe dirige. 148 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Em relação à temporalidade da vida adulta, as colaboradoras 5, 6, 7, 9 e 10 vivenciaram conflitos ocorridos neste período que contribuíram para o processo de construção do corpo obeso. A principal questão relatada foi a obesidade surgida após as gestações. Apenas as colaboradoras 5 e 9 relataram além das gestações a questão da traição sofrida no casamento. “...mas engordar eu comecei engordar mesmo depois na gravidez da minha filha...porque::...o meu tipo de sangue não combina com o do meu marido...e eu não sabia...eu vim a saber na gravidez dela que o nosso sangue não combinava...então eu tive uma gravidez de risco...” Colaboradora 5, 53 anos, casada, católica, manicure, classe social B2. “...obesa eu passei a ser depois que eu tive o meu primeiro filho...aí que eu comecei a exagerar demais né?...ai comecei...mas até aí não...até eu sempre só mais gorda um pouquinho...” Colaboradora 7 Outro aspecto destacado na vivência adulta com o corpo obeso que convergiu nos discursos de grande parte das colaboradoras (1, 2, 4, 6, 7, 9 e 10), foi a questão do estigma da obesidade. Estas colaboradoras revelaram o preconceito sobre o corpo obeso em relação à moda, além do preconceito vivenciado em situações quotidianas como andar de ônibus, ir à lugares públicos como supermercado, restaurante, entre outros. “...porque quando eu era gorda eu me sentia mal sempre...eu não podia sair porque não tinha roupa...éh::...uma roupa de moda nunca podia usar...então éh::..você não se enquadrava na sociedade...se ia no cinema...não cabia na cadeira...você vai comer num restaurante e todo mundo fica olhando..então quer dizer...eu me sentia mal...o tempo todo...eu perdi o emprego porque eu era gorda...” Colaboradora 1 “...gordo não é gente...ninguém que é gordo pode ser feliz...como é que gordo pode ser feliz desse jeito...não existe cara...entendeu?...você vai comprar roupa...a pessoa olha pra você e fala...ah:: mas é pra você?...e você fala...não...é pro meu dedo só...o resto não vai vestir...entendeu?” Colaboradora 2 Lipovetsky (1989) compreende a moda como dispositivo social que pode afetar esferas muito diversas da vida coletiva. De acordo com o autor, a moda também propicia aos seres a observação e apreciação de suas aparências, favorece o olhar crítico dos outros, a observação da elegância alheia, e pode se tornar um aparelho gerador de juízo estético e social. 149 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Sobre os relacionamentos afetivo-sexuais antes da intervenção cirúrgica relatados por todas as colaboradoras percebemos uma clara divergência de sentidos e significados. As colaboradoras 4, 7, 8 e 10 que possuem um corpo erogeneizado devido sua estruturação familiar que permitiu a formação de uma identidade integrada do eu, ou então às simbolizações que permitiram resignificar e ou compensar vivências, revelaram que seus companheiros não se importavam com a questão do excesso de peso. Apesar disso, elas sentiam vergonha de seus corpo e as relações sexuais ficavam dificultadas pelas proporções físicas que causavam fadiga e na maioria das vezes falta de prazer. “...me sentia muito deprimida assim...quando eu era obesa...na hora de...ter relação...porque:...eu não tinha posição...sinceramente é muito difícil...ser obesa...é não ter posição pra sexo...é muito difícil...você cansa muito...fadiga...e posição não tinha...” Colaboradora 4 “...ele nunca...nunca me desprezou por causa da obesidade...e eu era magra quando a gente se conheceu...eu sei que ele não gostava de mulher gorda né?...mas ele nunca me desprezou...(...)...na época que eu tava mais obesa até hoje...ele lixa o meu pé...passa creme em mim...eu tomo banho...ele passa creme no corpo...adoro ficar cheirosa...” Colaboradora 10, 50 anos, casada, evangélica, comerciante, classe social B2. As colaboradoras (1, 2, 3, 5, 6 e 9) também comentaram sobre a vergonha que sentiam de seus corpos, o que inibia o ato sexual, mas referiram uma imagem ruim de seus companheiros, diferente da imagem de cúmplice apresentada pelas outras colaboradoras. Elas fizeram referência a maridos que traíam ou não se importavam com seus desejos sexuais, somente querendo se satisfazer. “...me casei com dezenove anos vivendo um conto de fadas...aí se passaram sete anos...eu fui traída...tive uma traição aí eu entrei...eu saí de órbita e disparei a engordar...” Colaboradora 1 “bem antes da cirurgia nós teve uma relação um pouquinho saudável...quando as crianças eram pequena assim sabe?...depois dos sete anos...que o X fez sete anos...daí já foi mais complicado...teve o acidente dele...depois eu engordei muito...eu ficava com vergonha...essas coisas da cama quebrar...” Colaboradora 9 No que se refere à vivência após a cirurgia bariátrica, as colaboradoras 1, 3, 5, 6 e 9, que se fixaram no corpo não simbólico não parecem ter obtido melhora nos relacionamentos afetivo-sexuais com seus parceiros, ou estão desiludidas porque acharam que magras se sentiriam mais desejadas e seus relacionamentos seriam mais interessantes. 150 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA “...eu achei que eu fosse ficar magra...eu achei que eu fosse ficar arrasante...gostosa...e eu não sinto nada disso...é uma coisa que até me surpreende...” Colaboradora 3 A colaboradora 2 diverge das outras colaboradoras por estar em busca do corpo erógeno, está se permitindo refletir sobre sua sexualidade para não utilizá-la como fazia com o alimento. Além disso, está redescobrindo um corpo capaz de veiculação na sociedade e de despertar desejo no outro fazendo com que os relacionamentos afetivo-sexuais melhorem. “...porque eu tô num momento que eu tô frágil...tô carente...(...)...a minha carência hoje...não é uma carência vazia...não é aquela carência devoradora porque:...eu posso fazer tão mal pra mim...quanto a outra pessoa...então existe um processo de auto-destruição...e eu sai deste processo de autodestruição...então muitas coisas às vezes eu paro e penso...” Colaboradora 2 As colaboradoras 4, 7, 8 e 10 que já possuíam um corpo erogeneizado antes da cirurgia referiram melhora nos relacionamentos afetivo-sexuais. Para elas a melhora é associada à diminuição da forma física contribuindo para um melhor desempenho no ato sexual com menor fadiga e mais criatividade. “...eu acho que mudou porque eu me sinto melhor hoje...(...)...então eu falo assim que da minha parte houve uma grande mudança porque:...já não sinto sabe aquelas coisa de antigamente...aquelas canseira...aquelas coisas...assim então da minha parte mudou sim...pra melhor...” Colaboradora 7 “...mas a vida melhorou muito...porque...talvez porque...até assim...os espaços são melhores ocupado né?...(...)...porque eu acho que assim...que até pra abraçar né?...você vai abraçar gordo fica desse tamanho não consegue...não alcança...não vê...não tem charme...” Colaboradora 8 Sobre os horizontes dos projetos de vida, as expectativas, desejos e motivações após o emagrecimento e a reinserção do corpo na sociedade, notamos uma convergência entre as colaboradoras 1, 4, 6 e 10 no que se refere ao desejo de continuar o tratamento para a obesidade através de intervenções cirúrgicas, da cirurgia plástica, apesar do medo de algumas. “...eu vou fazer pelo plano…(...)...eu até ia tentar agora...mas como eu estou com a resistência muito baixa...(...)...mas a ânsia de viver e ver as coisas é tão 151 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA grande...que não dá tempo de me cuidar...é como se eu fosse perder...parar e perder um tempo sabe...” Colaboradora 6, 50 anos, viúva, budista, artesã, classe social B2. “...a cirurgia...quantas eu precisar fazer pro meu bem...eu faço...eu quero é ter condições...(...)...o que eu penso mais de tudo isso é a saúde...sabe...lógico...agora vem a estética...agora eu me preocupo...mas antes eu não me preocupava...agora sim...agora eu to pensando na estética também né?...” Colaboradora 10 As colaboradoras 2 e 9 que se referiram aos projetos de vida futura divergem desse pensamento ao expressarem seu desejo de um cuidado interno. “...eu vou procurar um psicólogo pra conversar mais vezes assim...sobre esse negócio da ansiedade que eu sinto sabe?...minha vontade de comer...que eu sei que eu operei o estômago...a cabeça não...e as vontade fica tudo na cabeça né?...” Colaboradora 9 Segundo Costa (2005) elas estão saindo da ética da visibilidade e da imagem a todo custo, desenvolvendo um pensamento mais neurótico e se importando com o mundo interno para se reconhecerem como ser dotado de sentido e proporcionar uma melhora de dentro para fora. 4. Conclusão O procedimento cirúrgico tem se mostrado eficiente em transformar o corpo externamente e proporcionar maior Qualidade de Vida. Portanto, entendemos que a realização da cirurgia ocasiona a remoção do excesso de peso corporal e não a elaboração psíquica, a erogeneização do corpo, ocasionando problemas na veiculação erótica desse novo corpo, e permitindo a continuação da busca pelo preenchimento do objeto faltante. Referências bibliográficas BENEDETTI, C. De obeso a magro - a trajetória psicológica. São Paulo: Vetor, 2003. COSTA, J. F. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. FREUD, S. (1931). Sexualidade Feminina. In: Obras Completas. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Vol.XXI. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974. 152 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA ______ (1933). Conferência XXXIII: Feminilidade. In: Obras Completas. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Vol.XXII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. LEVISKY, D. L. Adolescência: reflexões psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. LIPOVETSKY, G. O império do efêmero: a moda e seus destinos nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. MCDOUGALL, J. Teatros do corpo: o psicossoma em psicanálise. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. NASIO, J. D. Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. 153 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A pesquisa qualitativa e o método psicanalítico Érico Bruno Viana Campos37 Resumo Este trabalho visa delinear a problemática metodológica inerente ao campo psicanalítico e apresentar algumas orientações que norteiem a elaboração de pesquisas nessa abordagem, bem como discutir a aproximação das pesquisas do campo psicanalítico com o que se convencionou chamar de metodologia de pesquisa qualitativa em ciências humanas e da saúde. Propõe-se que a distinção fundamental no que concerne à metodologia de pesquisa em psicanálise está na aplicação ou não do método psicanalítico como modo principal de investigação. Assim, teríamos, por um lado, a pesquisa psicanalítica ou em psicanálise. Neste primeiro grupo, teríamos tanto os estudos de casos clínicos no enquadre padrão – a chamada psicanálise em intensão – quanto os estudos de aplicação do método a contextos grupais, institucionais e sociais, bem como à cultura em geral – a psicanálise em extensão ou aplicada. Nessa categoria podemos encontrar uma série de propostas de práticas e pesquisas interventivas no campo da saúde mental e geral. No segundo grupo, teríamos a pesquisa que não utiliza o método psicanalítico como referencial essencial, constituindo o que pode ser denominado de pesquisas sobre a psicanálise. Diz respeito à investigação da história das idéias psicanalíticas, tanto no grupo exclusivamente teóricoconceitual quanto no epistemológico. Nesse último campo também podemos incluir os delineamentos de pesquisas empíricas que utilizam as categorias teórico-conceituais da psicanálise como referência para análise qualitativa de dados. Conclui-se que há uma ampla gama de possibilidades de articulação do saber e do método psicanalíticos com as exigências de uma metodologia de pesquisa qualitativa em ciências humanas e da saúde. Abstract This presentation aims to discuss the methodological problems that are found on the psychoanalytical field of knowledge and to present some directions for the research development on this area, as well as to discuss the relation between psychoanalytical researches and qualitative research designs on social and health sciences. It proposes that the basic difference on psychoanalytical research methodology is upon the using or not of the psychoanalytical method as the major instrument of investigation. Therefore, there is, at one hand, the psychoanalytical research or research on psychoanalysis. In this group, there are both the clinical studies on standard settings – the so called intentional psychoanalysis – as well as the studies were the method is applied to groups, 37 Psicólogo, mestre e doutorando em psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP, em São Paulo (SP). Membro associado da Associação Livre – Instituto de Cultura e Psicanálise, em Piracicaba (SP). Professor do curso de psicologia da UNIARARAS, em Araras (SP). Contato: [email protected] 154 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA institutions or to society and culture in general – the so called applied or extensional psychoanalysis. On this category we can find a series of practices and interventional researches into general and mental health fields. On the other hand, at a second group, there is the research that doesn’t use the psychoanalytical method as major instrument, what is called research about psychoanalysis. It is about the history of psychoanalytical concepts and theories, both on theoretical and epistemological levels. On this last group we can also include the empirical research designs that use psychoanalytical concepts and theories as a reference for the qualitative data analysis. It is concluded that there is a large array of relations of the psychoanalytical knowledge and method to the methodology of qualitative research on human and health sciences. Introdução Tradicionalmente, a pesquisa e o saber psicanalíticos desenvolveram-se à margem das instituições acadêmicas e universitárias. As razões para essa distância são muitas, desde divergências epistemológicas e metodológicas com relação ao saber psicanalítico e o saber científico tradicional, até as circunstâncias históricas que fizeram com que a Psicanálise se desenvolvesse dentro de um campo institucional próprio – o das sociedades e associações de psicanálise – sem preocupações de se legitimar como uma prática profissional específica. Assim, a Psicanálise continuou sendo uma formação em nível de pósgraduação, remetida durante um certo tempo ao campo psiquiátrico e psicoterápico, com um campo institucional próprio de produção e circulação de saber. Essa dimensão mais “clínica” da Psicanálise fez com que, inicialmente, ela se desenvolvesse distanciada de algumas querelas acadêmicas como, por exemplo, a discussão sobre os métodos das pesquisas sociais e em ciências humanas e, mais recentemente, o campo das chamadas pesquisas qualitativas em saúde. Embora desde as origens a Psicanálise tenha se proposto como uma teoria sobre o homem e sua cultura e não somente uma psicoterapia, somente mais recentemente – a partir dos anos 60 e 70 do século XX – essa tradição mais crítica da Psicanálise tem sido resgatada. Além disso, o próprio campo de atuação da Psicanálise se diversificou muito, passando a englobar não só diversos níveis de intervenção na saúde geral – como ambulatórios, serviços públicos e hospitais – mas também práticas de caráter social e institucional. Esse movimento por si só aumentou a interlocução da psicanálise com saberes afins nas áreas das ciências humanas e da saúde. Além disso, o desenvolvimento de modelos interdisciplinares de atuação nas práticas de saúde e a entrada massiva do saber psicanalítico no campo universitário contribuíram sobremaneira para a criação de um contexto favorável de interlocução e, concomitantemente, uma demanda pela fundamentação metodológica das pesquisas que utilizam a Psicanálise como referencial teórico e metodológico. Esse movimento tem produzido uma série de frutos na Europa e, principalmente, na França, de onde uma série de propostas pioneiras alcançaram o meio acadêmico e profissional brasileiro a partir do final dos anos 80 e ao longo dos 155 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA anos 90 do século XX. Hoje em dia, a legitimidade da Psicanálise como prática de produção de saber no campos das ciências humanas e da saúde está bem estabelecido no Brasil. Da mesma forma, consolidou-se uma certa tradição na fundamentação metodológica dessas práticas, gerando uma ampliação e diversificação das pesquisas psicanalíticas no âmbito da realidade social e cultural brasileira. Contudo, embora no campo próprio da Psicanálise e da universidade muito dessa discussão já esteja consolidada, ainda há um certo desconhecimento desses desenvolvimentos em outros campos de saber, além da presença insuficiente dessa fundamentação nos profissionais do chamado campo “psi”. Essa carência é particularmente notável na formação universitária do profissional de Psicologia no Brasil, já que essa interlocução entre os métodos da pesquisa social e em saúde com a Psicanálise ainda é uma tarefa em andamento. Este trabalho visa delinear a problemática metodológica inerente ao campo da Psicanálise e relacioná-lo ao chamado campo da metodologia de pesquisa qualitativa em ciências sociais e da saúde. Seu objetivo é apresentar referências que norteiem a elaboração de delineamentos de pesquisa nessa interface. O Método Psicanalítico Desde Freud, entendemos que a psicanálise é constituída fundamentalmente por um método que é simultaneamente terapêutico e investigativo e por uma teoria derivada da aplicação desse método. Esse método é essencialmente clínico e definido pela chamada regra fundamental da associação livre. Apesar de todas as particularidades do enquadre analítico padrão, é na singularidade da escuta analítica que se fundamenta toda a especificidade do método psicanalítico. Assim, a emergência do objeto da psicanálise, o inconsciente, é função da constituição de uma escuta específica. Por muito tempo, tendeu-se a tomar a escuta psicanalítica como uma condição do enquadre clínico. Embora a própria obra de Freud ateste o contrário, a chamada psicanálise aplicada precisou do reforço de uma série de desenvolvimentos teóricos e práticos para ganhar um estatuto de legitimidade para a psicanálise e, principalmente, para a comunidade científica em geral. Embora tenha uma longa tradição, o método psicanalítico e sua aplicação estiveram restritos ao campo da psicanálise e de suas intervenções na área da saúde mental. Sua origem eminentemente clínica e seu contexto institucional próprio marcou um desenvolvimento em paralelo com a discussão metodológica nas ciências humanas e da saúde. Assim, embora possamos entender que os trabalhos psicanalíticos relacionem-se a uma metodologia qualitativa da pesquisa empírica, essa vinculação é extremamente recente. A Metodologia Qualitativa de Pesquisa A denominação de uma metodologia “qualitativa” de pesquisa é fruto de um desenvolvimento específico no campo das ciências humanas e sociais que, a partir de um movimento de crítica aos modelos positivistas tradicionais que partiam de um modelo baseado nas ciências naturais. Essa crítica inicialmente foi 156 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA embasada nos estudos da fenomenologia, da teoria crítica da sociedade e do construtivismo social, criando um novo paradigma de pesquisa nas ciências sociais. Esse movimento se deu entre os anos 60 e 70 do século XX e logo foi endossado por uma série de desenvolvimentos próprios no campo da psicologia e da sociologia, como a teoria das representações sociais (SPINK, 1995), a análise de discurso (MOSCOVICI, 2003), a metodologia da pesquisa-ação (THIOLLENT, 2000), a pesquisa interventiva (BRANDÃO, 1999) e assim por diante. O fato é que, atualmente, temos um campo bastante diversificado de proposições metodológicas e mesmo de teorias próprias na área da sociologia e da psicologia social sob esse paradigma multifacetado. Costumo chamar essa tradição da pesquisa qualitativa de eixo sócio-histórico, no qual se alinha boa parte da produção nos campos social, pedagógico e da saúde. Essa tradição também é a mais reconhecida e abordada no campo acadêmico, mesmo na psicologia (PEREIRA, 1999; MINAYO, 2000; MINAYO et al, 2003). Uma outra tradição de pesquisa não-quantitativa desenvolveu-se inicialmente no campo das teorias e práticas psicológicas e psiquiátricas. Evidentemente esse foi o caso da tradição psicanalítica, mas, também, da tradição fenomenológica e existencialista que se desenvolveu na psicopatologia e na psicologia, sendo incorporada posteriormente pelo que se costumou chamar, a partir do contexto norte-americano, de psicologia humanista ou de terceira força do campo da psicologia.38 Costumo nomear esse segundo eixo de clínico, dada a ênfase no estudo do sofrimento mental. Pois é nesse eixo clínico que se desenvolveu a discussão metodológica em psicanálise e a partir do qual a pesquisa psicanalítica vem encontrar o campo das chamadas pesquisas qualitativas. Esse encontro, no entanto, tem se dado pouco até o momento. É mais comum vê-los correr em separado.39 Assim, a questão da pesquisa qualitativa em psicanálise tem sido tradicionalmente abordada a partir do próprio campo da Psicanálise, como veremos a seguir. Delineamentos de Pesquisa em Psicanálise A definição de uma metodologia de pesquisa psicanalítica passa, necessariamente, pela discussão da especificidade de seu saber e de seu método para, em seguida, apresentar os diferentes delineamentos de pesquisa possíveis. A produção de conhecimento em psicanálise pressupõe sua operacionalização no âmbito de um setting transferencial, onde o inconsciente pode emergir. Dessa forma, a verdadeira pesquisa em psicanálise seria aquela que emerge da clínica psicanalítica. 38 Os limites desta apresentação não me permitem enveredar pela rica tradição da metodologia de extração fenomenológico-existencial nem considerar as frutíferas relações entre esse campo e o da metodologia psicanalítica. 39 Uma rara e valiosa exceção está no trabalho de Turato (2003). 157 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Essa posição “clássica” é a defendida, em sua versão mais ortodoxa, por Freud nas suas propostas de ensino de psicanálise na universidade, em que esse deveria ser concebido com o intuito de divulgação das proposições psicanalíticas e de forma dogmático-crítica (MEZAN, 1998b). É encontrada também em autores que são taxativos em afirmar que a pesquisa acadêmica em psicanálise não pode consistir em uma pesquisa empírica, sendo necessariamente de caráter teórico (GARCIA-ROZA, 1994). O fundamento de tal argumento está no pressuposto de que a verdadeira pesquisa em psicanálise seria aquela que ocorre no âmbito da escuta psicanalítica em contexto clínico. Posições menos restritivas, contudo, preocupam-se em marcar que apesar da pesquisa especificamente analítica ser necessariamente do tipo clínico (MEZAN, 1994), isso não quer dizer que outras formas de aplicação do método psicanalítico estejam vedadas. Isso implica que a distinção fundamental no que concerne à metodologia de pesquisa em psicanálise está na aplicação ou não do método psicanalítico como modo principal de investigação. Assim, teríamos, por um lado, a pesquisa psicanalítica ou em psicanálise. Neste primeiro grupo, teríamos tanto os estudos de casos clínicos (SAFRA, 1993) quanto os estudos da aplicação do método a outros contextos, como a sociedade e a cultura (ROSA, 2004). Essa distinção, por sua vez, ganha respaldo a partir das contribuições da psicanálise contemporânea de extração lacaniana, que distingue entre a chamada psicanálise em intensão, baseada na aplicação do método em seu contexto clínico e a doutrina dela derivada, da psicanálise em extensão, que diz respeito à escuta psicanalítica em contextos grupais, institucionais e sociais, articulando a prática do campo psicanalítico com ciências afins (PLON, 1999).40 O mérito desse avanço está na inflexão que o movimento lacaniano trouxe para a psicanálise, com sua ênfase não só na compreensão lingüística das produções do inconsciente, como também em na compreensão do Outro como o campo da linguagem e da cultura. Da mesma forma, outros autores do campo mais tradicional da psicanálise têm produzido uma série de contribuições no sentido da expansão da aplicação do método psicanalítico. É o caso, no Brasil, do trabalho de HERRMANN (2001)41, que retoma a problematização do método psicanalítico a partir das idéias de princípio do absurdo e de ruptura de campo para pensar uma escuta psicanalítica além da clínica padrão, pois tomará o inconsciente como uma produção contextual de sentido, evidenciado pelo ato interpretativo. Assim, é nesse plano que podemos demarcar uma pesquisa psicanalítica de caráter aplicado, ou psicanálise aplicada, que diz respeito à articulação do saber psicanalítico com a cultura em geral (MEZAN, 1994). 40 Outro autor de extração francesa que se preocupa com a demarcação de um campo de aplicação da psicanálise é Laplanche (1992), que prefere o termo psicanálise extramuros. 41 Ver também Herrmann e Lowenkron (2004). 158 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Evidentemente, essa idéia de uma “aplicação” da teoria psicanalítica, não deve ser entendida nos mesmos moldes da distinção entre pesquisa básica e pesquisa aplicada em ciências naturais, já que a teorização em psicanálise emerge do seu próprio método e nele se efetiva. Por outro lado, teríamos a pesquisa que não utiliza o método psicanalítico como referencial essencial, o que constitui um segundo grupo de delineamento que pode ser denominado de pesquisas sobre a psicanálise (GARCIA-ROZA, 1994). É nessa proposta que se inserem as pesquisas propriamente acadêmicas. Dizem respeito à investigação ao campo das idéias psicanalíticas em sua articulação com o saber em geral, quer seja no plano exclusivamente teórico-conceitual – as articulações e desenvolvimentos conceituais de uma teoria psicanalítica – ou no plano epistemológico – um recorte transversal de determinado campo de problematização (MEZAN, 1994). Por fim, é dentro desse âmbito que podemos incluir os delineamentos de pesquisas empíricas que utilizem as categorias conceituais da psicanálise como referência para a chamada metodologia qualitativa de pesquisa. É o caso, por exemplo, de delineamentos de estudos de caso ou intervenções grupais que partem de um relato de observação participante e o interpreta com auxílio do referencial psicanalítico. Esse tipo de delineamento é muito comum em alguns relatórios de estágio ou trabalhos de conclusão de curso em nível de graduação em psicologia e é um exemplo de aproximação entre a tradição metodológica da psicanálise e o modelo mais padrão de pesquisa qualitativa. Conclusão Em síntese, apesar dos diversos níveis e modos de delineamento da pesquisa psicanalítica, até pouco tempo persistia uma diferença significativa entre a Psicanálise em sua forma clínica “pura” e outros arranjos de aplicação de conceitos, idéias e métodos psicanalíticos, considerados “menores”. Essa breve revisão de literatura, contudo, mostra que há uma ampla gama de possibilidades de articulação do saber e do método psicanalíticos com as exigências de uma metodologia de pesquisa qualitativa em ciências humanas e da saúde. Referências Bibliográficas ALBERTI, S.; ELIA, L. (org.) Clínica e pesquisa em psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000. BRANDÃO, Carlos Rodrigues (org.) Pesquisa participante. 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Foram realizados catorze encontros de oficina, com duração de duas horas, em uma sala do serviço de psicologia. A pesquisadora conduziu os encontros como facilitadora, usando as atitudes preconizadas por Rogers(1961/1999) de empatia, aceitação positiva incondicional e congruência. Após cada encontro, a pesquisadora elaborou narrativas sobre a experiência vivida, baseando-se tanto na concepção de narração de Benjamin(1936/1994) como na concepção de consciência de Husserl(1935/1996), buscando capturar o movimento da consciência na criação de significados que configuram a experiência. A partir das narrativas construídas pela pesquisadora, buscou-se explicitar os elementos vividos,, entendendo que os significados que emergiram formaram-se na teia intersubjetiva dos encontros. Através da experiência vivida na Oficina de Pintura e partindo do princípio de que o homem é dotado de autonomia e possui dentro de si recursos para a autocompreensão e mudança, verificamos que as participantes da Oficina de Pintura caminharam no sentido da integração psicológica,,compartilhando suas experiências, num clima acolhedor e de apoio mútuo. Assim, numa perspectiva de enquadres diferenciados de atenção psicológica, a Oficina de Pintura leva a refletir sobre os benefícios e a viabilidade de implementar novos modelos de intervenção clínica em instituições de saúde pública que privilegiem a autonomia e o crescimento psicológico dos clientes. . Palavras-chave: atenção psicológica clínica fenomenológica; narrativa; oficina de pintura. em instituições; pesquisa Abstract his intervention research aimed to comprehend the experience of a Painting Workshop, which is a psychological approach implemented in PUC – Campinas Psychology Clinic during three months in the year of 2007. The theoretical referential is Edmund Husserl’s Phenomenology, and the Humanistexistential Psychology. In a room of the Psychology Clinic fourteen workshop meetings were organized, with duration of two hours each. They were conducted by the researcher as a facilitator adopting Roger’s proposition of three attitudes: empathy, unconditional positive regard and congruency. After each workshop, the researcher elaborated narratives about the recently experienced meeting, using Benjamin’s definition of narrative (1936/1994), and Husserl’s definition of consciousness (1935/1996) as a base. It was the intention of the researcher to capture the movement of consciousness in the meaning creation that configure 162 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA the experience. Based on the elaborated narratives, the intention was to expose the elements experienced by the researcher, who understands that the emerging meanings were configured in the inter-subjective net of the meetings. Through the experience of the Painting Workshop and based on the principle that the human being has whether autonomy and the resources for self-comprehension and change, it was verified that participants of the Painting Workshop directed themselves to psychological integration by sharing their experiences in a kind and supportive environment. According to the perspective of setting differentiated psychological attention, the Painting Workshop makes us think carefully about the benefits and viability of the implementation of new models of clinical intervention in public health institutions that are able to pririze clients’ autonomy and psychological growth. Key words: clinical psychological attention in institutions; phenomenological research; narrative; painting workshop . Esta pesquisa pretendeu compreender, a partir de um enfoque fenomenológico, a experiência vivida em uma Oficina de Pintura implementada em um serviço de Psicologia. Considerando a necessidade da implementação de novas práticas institucionais em saúde mental que possam contemplar as necessidades dos indivíduos para além dos modelos tradicionais de intervenção psicológica que buscam a cura ou a correção, a Oficina de Pintura, tema deste trabalho, realizou-se numa perspectiva existencial-humanista, de inspiração fenomenológica, como parte dos serviços de atenção à saúde mental oferecidos pelo Serviço de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Foram realizados 13 encontros no ano de 2007 e elaboradas narrativas sobre os mesmos posteriormente, buscando apreender a experiência vivida. A pesquisa-intervenção norteou-se pelos princípios básicos da Abordagem Centrada na Pessoa, focalizando atitudes facilitadoras da pesquisadora como empatia , aceitação incondicional e congruência tais como sugeridas por Rogers(1961/1999), seguindo também a postura de suspensão de conceitos e julgamentos proposta por Husserl(1935/1996) como método de redução fenomenológica para abordar o fenômeno estudado. Baseadas no resgate da experiência proposto por Benjamin(1936/1994) e na ênfase à subjetividade proposta por Husserl(1935/1996), as narrativas foram a estratégia metodológica capaz de apreender o vivido que se desdobra ao longo do tempo, tomando por base o movimento de intencionalidade da consciência. Tais narrativas, por sua vez, sofreram uma transmutação ao longo do tempo, pois novos elementos lhes foram acrescentados pela pesquisadora, que esteve lendo e relendo as narrativas e alterando-as. A modalidade de Oficina de Pintura foi sendo construída no tempo e durante os encontros, não existindo a priori uma forma de implementá-la. Ela foi-se 163 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA constituindo a partir da maneira própria de se apropriar do espaço pelas participantes. Cada participante (5 no total) apropriou-se dos encontros de oficina de forma peculiar, contando suas histórias, pedindo e dando opiniões diversas sobre os vários assuntos conversados enquanto se pintava. Problemas familiares, discriminação racial, doenças, depressão, casamentos, separações, filhos, pânico, dificuldades de colocar limites foram alguns temas abordados. Um vínculo entre as participantes formou-se, algumas delas se telefonavam e se encontravam fora da oficina. Diziam que esperavam o dia dos encontros ansiosamente pois ali poderiam pintar e conversar com liberdade e sem receios. Partindo de uma perspectiva existencial-humanista, os encontros de oficina possibilitaram que as pessoas tivessem liberdade de expressão, fossem aceitas em seus parâmetros e compartilhassem suas experiências. Houve, em certos momentos, a alteração das percepções sobre os fatos, compreendendo-os de outras maneiras, escolhendo novas atitudes, contribuindo para um processo de auto-percepção e auto-desenvolvimento, tendo por base a autonomia pessoal. Referências Bibliográficas BENJAMIN,W. (1994) (edição original 1936) Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense. HUSSERL, E.(1996) (edição original 1935). A crise da humanidade européia e a filosofia. (Introd e trad. Urbano Zilles). Porto Alegre: Edipucrs. ROGERS,C.R.(1999) (edição original 1961). Tornar-se Pessoa. São Paulo: Martins Fontes. 164 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O método do estudo de caso em uma investigação clínica psicanalítica Fernanda Kimie Tavares Mishima Valéria Barbieri Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP) Resumo O estudo de caso como estratégia metodológica em pesquisa qualitativa recebe muitas críticas, apesar de comumente usado. Isso acontece pela dificuldade de generalização dos dados e pela importância dada à formação do pesquisador. O presente trabalho tem por objetivo apresentar as características e concepções atuais da perspectiva qualitativa, dando exemplo de uma pesquisa científica que usou o método do estudo de caso dentro da abordagem psicanalítica. O estudo de caso é de uma criança obesa, de 9 anos, e de seus pais, que passaram por avaliação psicológica com aplicação de entrevista e técnicas projetivas. Após análise dinâmica dos dados, concluiu-se que os três, pai, mãe e criança apresentam um funcionamento psicodinâmico semelhante, com sinais de insegurança, busca de apoio e dificuldade em se expressar de maneira pessoal e criativa. Isso se deve à vivência de uma experiência com pouco acolhimento e um ambiente que não foi suficientemente bom, que foi capaz de prover as necessidades concretas em detrimento das afetivas. O estudo de caso na perspectiva clínica psicanalítica de investigação mostrou-se comprovadamente significativo para conhecimento das características psicodinâmicas familiares e investigação da existência de uma ligação entre o relacionamento afetivo de crianças com seus pais e mães e com a obesidade infantil, destacando a influência familiar na determinação da patologia infantil. ABSTRACT The methodology study of case as strategy in qualitative research receives much critical, although is generally used. It happens because of the difficulty of generalization of the data and of the importance given to the formation of the researcher. The present research has for objective to present the characteristics and current conceptions of the qualitative perspective, giving example of a scientific research that uses the methodology study of case with psychoanalytical orientation. The case study is about an 9 year old obese child and its parents, who had being trough psychological evaluation with application of interview and projectives techniques. After dynamic analysis of the data, it was concluded that the father, mother and child had a similar psychodynamic functioning, with indication of unreliability, search of support and difficulty in expression personal and creative way. This is related to an experience with insufficient holding and an environment that was not enough good, that was capable to provide the concrete necessities in detriment with the affective ones. The study of case in the 165 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA psychoanalysis clinical perspective resulted in a significant data for the knowledge about psychodynamic family characteristics and in the importance of the clinical investigation about the children emotional aspects related to parents, detaching the familiar influence in the determination of the childhood pathology. INTRODUÇÃO Apesar de ser amplamente utilizado na investigação científica qualitativa, o estudo de caso é muito criticado, particularmente devido à dificuldade de generalização dos dados. Assim, o presente trabalho objetiva apresentar as características e concepções atuais dessa metodologia, dando exemplos de uma pesquisa científica que usou o método do estudo de caso. A perspectiva qualitativa foi amplamente estudada por diversos autores, que mostraram diferentes maneiras de cuidado com os dados e informações de pesquisas, ora dando destaque a determinados procedimentos, ora a técnicas e passos para a coleta e tratamento dos dados. Um deles, Valles (1997), fez uma transposição entre as perspectivas quantitativas e qualitativas, identificando seus estilos e características principais. Outros afirmam que a pesquisa qualitativa destaca a descrição, indução, teoria fundamentada e estudo das percepções pessoais (BOGDAN; BIKLEN, 1997). A pesquisa qualitativa diferencia-se da quantitativa pela complexidade e extensão da coleta de dados, tornando necessário apontar para os possíveis procedimentos na análise dos mesmos. Destaca-se que, diferentemente das investigações estatísticas, os procedimentos e técnicas de análise na abordagem qualitativa não são padronizados. Contudo, mesmo sendo uma atividade pessoal, a análise de dados não deve ser vista como um procedimento místico, com processos interpretativos e criativos de difícil explicitação (VALLES, 1997). Nos estudos qualitativos, Taylor e Bogdan (1998) destacam a riqueza dos dados descritivos e o fato de que na interpretação não há linhas que definem a quantidade de dados necessários que possam apoiar uma conclusão ou interpretação. Assim, há dificuldade em definir o número de casos de um estudo. As melhores apreensões surgem de uma quantidade pequena de dados, nos quais o investigador irá demonstrar suas conclusões e interpretações sem apresentar uma prova definitiva. Valles (1997) cita como principais estratégias metodológicas: experimentos, enquete, análise de informação de arquivo, estudos de caso, estudos de campo e etnografia. Denzin e Lincoln (1994) apresentam outros: estudos de caso, etnografia – observação participante, fenomenologia – etnometodologia, grounded theory, método biográfico, método histórico, ação investigativa e aplicada, e investigação clínica. Concomitante a essas diferentes estratégias, este estudo focará o método do estudo de caso, desenvolvido no contexto da investigação clínica. 166 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O Método Clínico e o Estudo de Caso O termo ‘método clínico’ tem sua origem ligada à Psicanálise e representava um tipo de ‘investigação dos processos anímicos’, diverso do método experimental. Para compreendê-lo, é preciso considerar as implicações políticas, históricas e metodológicas de determinada situação (AGUIAR, 2001). Mezan (1999) pondera que toda investigação psicanalítica é do tipo qualitativo, pois aprofunda casos específicos. Assim, cada caso tem grande valor, pois oferece exclusividade e aspectos compartilhados com outros casos do mesmo tipo. O método clínico pressupõe que as respostas do participante não são produzidas por mero acaso, mas são determinadas pelas condições psicológicas. A pessoa é livre para se manifestar e se revelar, pontos facilitadores para o surgimento de conteúdos psíquicos inconscientes, reflexo da organização de sua personalidade. Assim, torna-se aceitável o estudo aprofundado de um único caso para conhecer dados importantes e significativos da conduta humana (AMIRALIAN, 1997). Em relação às considerações éticas no trabalho de estudo de caso, é importante destacar que, apesar do interesse público, nada justifica a invasão da privacidade dos outros (STAKE, 2000). É preciso respeitar a exposição pessoal por meio de um código de ética rigoroso, exigindo um acordo prévio entre pesquisador e pesquisado. É de extrema importância que os pesquisadores trabalhem com muita cautela para minimizar os riscos, seguindo regras para proteção dos sujeitos humanos e elaborando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Assim, a estratégia metodológica do estudo de caso de abordagem psicanalítica é fundamental na perspectiva clínica de investigação. Para exemplificar, o presente trabalho apresenta um estudo de caso de uma criança obesa e seus pais, que passaram por avaliação psicológica com entrevista e técnicas projetivas: o teste do Desenho da Figura Humana (DFH) e o Teste de Apercepção Temática (TAT; CAT-A). O construto a ser investigado foi o da existência de uma relação entre o relacionamento afetivo de crianças com seus pais e mães e com a obesidade infantil, destacando a influência familiar na determinação da patologia infantil. Deve-se destacar que o método clínico psicanalítico usado também tem seus limites, pois o estudo de caso não é um reflexo fiel de um fato concreto, mas uma reformulação da história de acordo com a visão do pesquisador. Estudo de caso Antônio tem 09 anos, cursa a 3a. série do Ensino Fundamental, é obeso. A queixa principal era o excesso de peso e a dificuldade em perdê-lo, não permanecendo muito tempo em tratamento com nutricionista. Tem um irmão de 12 anos. Seu pai tem 36 anos e sua mãe tem 46, ambos trabalham fora de casa, ela é escriturária e ele técnico em Contabilidade. 167 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Na entrevista com os pais, Fernando e Sueli, a mãe afirma que, após o nascimento do filho, sentiu-se mais “aliviada”, pois teve depressão pós-parto na primeira gestação. Não amamentou a criança porque não teve leite e diz que “a criança foi amamentada pelo pai” com a mamadeira. Nesta fase, Antônio já demonstrava ser “meio bravinho”, o que acontece até hoje quando quer algo. Era uma criança que chorava pouco, só quando sentia fome. A mãe diz que a babá dava-lhe a comida “tudo de uma vez”, fazendo com que ele ficasse guloso, um dos motivos atribuídos ao início da obesidade da criança, por volta de quatro anos de idade. A criança prefere atividades de lazer que precisem de pouco esforço físico (vídeo game e alguns brinquedos). Evita fazer Educação Física na escola, pediu para que a mãe arrumasse um atestado médico, pois nunca era chamado para fazer parte dos times. O ingresso da criança na escola ocorreu na idade de três anos. Nessa fase, parece ter havido um “trauma”, pois quando os pais o levavam para a escola, ele ficava com o corpo duro, parado na frente do portão da escola, não queria entrar, só chorava. Eles não entenderam o motivo, nem a professora soube dar explicações. Para solucionar o problema, os pais o mudaram de escola. Nos primeiros dias, a mãe mentia que o esperava na cozinha durante a aula. Isso aconteceu até ele se acostumar com a nova escola. Atualmente, não há problemas em permanecer na escola, nem de relacionamento com a professora. Ao falar do temperamento da criança, o pai diz que “ele é meio explosivo, tem dia que é água, tem dia que é vinho”. Quanto à saúde da família, os pais discordam acerca da personalidade deles mesmos: enquanto a mãe afirma que ambos são difíceis de lidar (“até para casar”), o pai fala que ele é fácil, é só não tirá-lo do sério. No relacionamento com os filhos, o pai se mostra mais acessível e presente, fato confirmado pela mãe, que complementa que ela ‘poda’ mais, e que as decisões devem ser conjuntas. Quanto à relação com o irmão de 12 anos, os pais afirmam que eles se dão bem, que Antônio só é um pouco ciumento, mas tem admiração pelo irmão, principalmente porque o irmão é inteligente. Os pais ressaltam que a criança não costuma mais ter festa de aniversário como antes, eles preferem levá-lo ao shopping para comprar algum presente. Ao final da entrevista foi possível notar que Sueli parece exercer seu papel materno não apenas com o filho, mas com o marido também, demonstrando autoridade. Ela também é aparentemente ambivalente quanto ao desempenho de seu papel; mesmo exercendo autoridade na casa, tem insegurança, receio de ser julgada pelos seus atos. Essas atitudes fazem com que Fernando não tenha um espaço seu para expressar opiniões, sendo aparentemente passivo e controlado. Parece haver afetividade no relacionamento de Fernando com o filho, porém com raros momentos de demonstração, como na comemoração do aniversário da 168 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA criança, no qual foi mais fácil dar um presente caro (algo concreto), que fazer uma festinha. É possível pensar que o suporte material está mais presente que o suporte afetivo. Essa deficiência afetiva também pode ser demonstrada no momento da amamentação, quando a mãe afirma que não tinha leite para dar a Antônio. Quanto a Antônio, foi possível pensar em seu lugar dentro dessa família, já que parece não ter um espaço próprio e um lugar seu. Isso se deve principalmente ao fato de que os pais comparam muito os filhos, valorizando o mais velho por causa da sua inteligência, e deixando para Antônio um lugar secundário, o que dá a impressão de que ele não tem nenhuma habilidade e nenhuma característica que mereça receber valor especial. Somado a esse fato, há carência de apoio e cuidado para que Antônio tenha sua independência, o que pode aumentar seu sentimento de solidão dentro da própria família. Sessão com a criança Antônio estava muito tímido, mantinha sempre a cabeça baixa, pareceu distraído em alguns momentos, como se não estivesse ali presente, realizando atos de forma automática. Houve sinais de fragilidade, dificuldade na integração dos afetos, subestima do corpo e valorização do controle racional, com indícios de um controle pulsional bastante rigoroso. Denotou ambivalência quanto ao impulso para autonomia, além de dificuldades no contato e adaptação. Foi possível observar a presença marcante do tema da voracidade que não é controlada, ocasionada pela falta de cuidado dos pais. Uma forma de aplacar a voracidade seria contar com a presença do outro, mas muitas vezes esse outro não está por perto para apoiar, para cuidar, fazendo com que a ameaça permaneça. O contato com o outro é permeado por pouco afeto. As pessoas que estão à sua volta não são percebidas como acolhedoras; a figura materna foi vista como controladora, que não permite a expressão das pulsões do filho, devido ao receio das mesmas. Logo, resta à criança reprimir essas pulsões. Para frear os impulsos instintivos do filho, os pais exercem um controle baseado na autoridade e não no afeto. Eles são vistos como aqueles que não suprem a dependência da criança, não promovem a sua independência e o castigam caso ele se mostre autônomo. Com isso, aparece o sentimento de abandono, de medo, de solidão. Como não pode contar com os pais para auxiliar a integração, resta-lhe se apegar a algo concreto, à realidade. Além disso, os pais transmitem uma mensagem ambígua, já que desejam que ele seja independente, mas o punem se isso acontece. Concomitante ao tema da voracidade, apareceu o roubo e a perda, que também são causadores de conflitos. Uma das maneiras de abrandar a angústia advinda desses conflitos é através do apego à racionalidade, o distanciamento entre representação e afeto. Ele demonstrou imaginação, porém destituída de criatividade, de espontaneidade, dando sinais de que não houve integração com 169 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA os impulsos primitivos, impondo diretamente a realidade através dos fatos concretos, sem espaço para a transicionalidade. O privilégio do racional em detrimento do afetivo pode ser um aspecto que faz com que a criança não consiga integrar a realidade interna e a externa, impossibilitando a expressão da criatividade. Antônio parece não se sentir aceito pelos pais por aquilo que ele é realmente, tendo que seguir um modelo ideal para se sentir amado e parte da família. O ambiente familiar parece não permitir a expressão do self verdadeiro da criança, fazendo com que ele permaneça oculto, aspecto básico para o surgimento da defesa de falso self. Parece haver um desenvolvimento precário da capacidade simbólica, o que faz com que ele precise recorrer ao concretismo. O uso que faz de algo concreto acaba por se mostrar permeado de voracidade, o que gera culpa por essa expressão voraz dos impulsos instintivos. Sessão com a mãe Os relacionamentos permanecem no plano superficial, não demonstra muita afetividade (evita o plano afetivo), volta-se para o intelectual e busca a perfeição. Essa dinâmica afetiva permite supor que a mãe não recebeu afeto suficiente, como se não tivesse se apropriado dele. Aparece o conflito quanto ao exercício da sexualidade, o que a impede de se apropriar do sentimento de independência, já que não passou pela experiência de dependência, de entrega ao outro e vivência do conflito edípico. A ansiedade gerada pelo conflito sexual é deslocada para o âmbito da racionalidade, para o intelecto. Para agradar o outro é preciso ser inteligente e esforçado, ser perfeito, o que não inclui o aspecto sexual, assim, o narcisismo também se desloca do plano da sexualidade para o do pensamento. Essa sexualidade até se expressa, mas é reprimida logo que constatada, há o deslocamento da angústia do conflito sexual. O relacionamento homem mulher acaba se tornando semelhante ao de cuidador e cuidado (uma relação mais paternal, para ser aceita sem angústia), apesar da figura masculina não conseguir cumprir o papel de cuidador. Neste ponto, há subestimação da figura, como se não adiantasse depender dela, pois ela é insuficiente e pouco capaz de suprir suas necessidades. Sua dificuldade de elaboração edípica (plano sexual) parece prejudicar sua função materna, pois não há doação ao outro, não há vivência afetiva junto com o outro, o que acaba refletindo na dificuldade de estabelecer um vínculo de afeto com o filho. Ela foge da afeição e se refugia no racional, nas oportunidades concretas e materiais e não no afeto recebido. Essa dinâmica se repete na relação com o filho: ela tenta oferecer o que há de melhor materialmente, minimizando o afeto (há somente o suprimento material e racional). Se com isso o outro não se desenvolver, o problema é projetado nele, que deve “se virar” sozinho para arrumar outra solução. Assim, deve ser afetivamente independente sem ter tido sua dependência suprida. 170 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Apesar de tentar fazer o melhor, ser a melhor e perfeita (mesmo que seja só no âmbito da racionalidade), esse recurso nem sempre se mostra suficiente. O ser perfeito não garante o afeto do outro e a recompensa externa, não impede que as coisas continuem acontecendo, que os conflitos terminem. Com isso, há indícios de que a mãe não consegue integrar a realidade interna e a externa, acabando por viver uma realidade sobreposta, não integrada à sua personalidade, o que prejudica a expressão do seu estilo pessoal de ser. Isso acontece porque não há integração dos pensamentos com o afeto, que pode ter sido causado pela insuficiência afetiva que a mãe recebeu. O afeto teria lhe proporcionado a dependência para ter a capacidade de ser autônomo (semelhante ao que ela proporciona ao filho). Ela parece não ter tido a oportunidade de ser amada pelo que é, como acontece com o filho, que acaba por se comparar com o irmão mais velho. Há sinais de esperança, ou seja, a possibilidade de que pode resolver os conflitos, de que ela tem recursos, mas está funcionamento com uma repressão excessiva, o que prejudica a expressão de sua capacidade criadora. Sessão com o pai Fernando mostrou sinais de sentimento de solidão, a busca de se identificar com a figura paterna. Essa carência quanto à figura paterna indica que o ambiente não supriu a dependência dele, para que se tornasse independente. Assim, ele recorre à fantasia de realização do desejo, não teve algo real, efetivo, então fantasia que teve algo muito melhor, fruto de seu esforço (é o ideal de perfeição para substituir a deficiência de afeto). A demonstração de que não conseguiu o afeto dos pais, mas obteve algo melhor, pode ser percebido como formação reativa. Neste ponto, pode-se notar o caráter compensatório (ser menos e fazer mais). O conflito permanece, e, como forma de abrandar a angústia gerada por ele, busca a elaboração do afeto pelo racional, uma elaboração realizada de maneira metódica, organizada. Aparece a dificuldade em alcançar a independência, em se desprender da figura materna, agravada pela falta do pai. Para ele conseguir se vincular a outra pessoa, a mãe tem que desaparecer (morrer), mesmo assim, a figura substituta ainda permanece presa à original. Dessa forma, os relacionamentos não são permeados pelo afeto, mas pela idealização, ele precisa escolher entre a realização ou a afiliação emocional; ter um implica em não ter o outro, denotando falta de integração somada ao raciocínio concreto. Essa falta de integração também acarreta a dificuldade em resolver o conflito sexual, fazendo com que ele reprima seus impulsos sexuais e os desloque para outros objetos. Caso haja satisfação sexual, esta deve ser punida. 171 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Considerações Finais: Psicodinamismos familiares A dinâmica do pai, da mãe e da criança deste caso, parece ser semelhante em alguns aspectos, especialmente no que se refere à carência de uma figura capaz de suprir a dependência e, conseqüentemente, proporcione a capacidade de ser independente, de ter um estilo pessoal de ser. A angústia gerada pela deficiência afetiva faz com que eles recorram ao uso da racionalidade, da valorização do intelectual, em detrimento dos afetos. Essa defesa mostra-se rígida nos três, além do uso do deslocamento do afeto. Pensando nesta característica, pode-se dizer que há a presença de um falso self, que esconde o self verdadeiro e se expressa com falta de espontaneidade, e gera um sentimento de futilidade e inutilidade. A falta de integração entre afeto e razão traz prejuízos à capacidade de expressão da criatividade, da espontaneidade. O valor dado ao intelectual faz com que a criança se defenda através de um falso self, pois a expressão de seu self verdadeiro foi contida, já que o ambiente não foi capaz de suprir suas necessidades afetivas e apoiar sua expressão. Os pais da criança apresentaram conflito em relação à sua sexualidade, devido à identificação pouco sólida com as figuras materna e paterna, baseada no relacionamento com os pais na infância, que permitiu a introjeção de figuras afetivamente pobres. Essa introjeção comprometeu a relação atual deles com o filho, denotando sinais de que eles se identificaram com os próprios pais, repetindo a mesma dinâmica (o suprem materialmente, no plano concreto, e deixam de lado o aspecto afetivo). Da mesma forma, os pais parecem ‘ensinar’ para a criança que uma forma de abrandar a carência afetiva é através da ingestão de comida, buscando algo concreto como solução para a ansiedade gerada pela falta do afeto. Isso acontece porque os pais não podem ensinar a elaboração do afeto, já que esta também está comprometida neles. Finalmente, o estudo de caso inserido na perspectiva clínica psicanalítica de investigação mostrou-se comprovadamente significativo, atingindo seu propósito inicial. Foi possível conhecer as características psicodinâmicas dessa família do estudo e investigar a possível ligação entre o relacionamento afetivo de crianças obesas e o relacionamento afetivo de seus pais, oferecendo fortes indícios de que há uma estreita relação entre a dinâmica familiar na determinação da patologia infantil. Referências bibliográficas AGUIAR, F. Método clínico: método clínico? Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 14, n. 3, p. 609-616. 2001. 172 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA AMIRALIAN, M. L. T. M. Pesquisas com o método clínico. In: TRINCA, W. (Org.). Formas de investigação clínica em psicologia. São Paulo: Vetor, 1997. p. 157-178. BOGDAN, R.; BIKLEN, S. 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Sintesis Sociologia, 1997. 430p. 173 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O Psiquismo em Freud e Heidegger: Irritabilidade (Reizbarkeit) e Abertura (Erschlossenheit)42 João Paulo F. Barreta e Zeljgo Loparick Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Resumo: De acordo com a fenomenologia as ciências pressupõem uma ontologia (regional e formal). A psicanálise, da mesma forma, ao falar de uma certa região de entes, o psiquismo, pressupõe uma compreensão do ser deste ente prévia. Por outro lado, esta compreensão prévia pode ou não ser derivada “das coisas mesmas”, o que abre a possibilidade de um erro fundamental, que incide não sobre as descobertas factuais de uma dada ciência, mas sobre o quadro ontológico no interior do qual aquelas são elaboradas. Este é o caso da psicanálise freudiana segundo Heidegger. O objetivo deste trabalho é mostrar que Freud parte de uma compreensão equivocada (naturalizada e objetificada) do psiquismo como substância irritável [reizbar] capaz de transformar estímulos e que a alternativa fenomenologicamente válida seria conceber o “psiquismo” à luz do conceito heideggeriano de abertura fundamental [Erschlossenheit]. Abstract: According to phenomenology the different sciences presuppose a (regional and formal) ontology. Psychoanalysis, in the same way, dealing with a certain region of being, the psychological, presupposes a previous understanding of the Being [Sein] of that being [Seiende]. On the other hand, this previous understanding can be or cannot be taken from the “things themselves”, what opens the possibility of a fundamental error, which is not related to the factual discovers of a certain science, but to the ontological background from which these (factual discovers) are elaborated. This is the case of the Freudian psychoanalysis, according to Heidegger. The aim of this work is to show that Freud makes a (naturalistic and objectifying) misunderstanding of the psychic as an irritable [reizbar] substance capable of transforming stimulus and that the alternative, phenomenological valid one would be to conceive it in terms of the heideggeriana concept of fundamental openness [Erschlossenheit]. Introdução Freud foi um dos pensadores que procurou desenvolver uma psicologia concebida como ciência natural e aplicada (clínica) e Heidegger o filósofo que repôs a Seinsfrage43 e criticou a onipresença da atitude teórica e de suas conseqüências na cultura ocidental (justamente o esquecimento dessa questão). Acidentalmente Heidegger veio a se deter sobre a psicanálise nos chamados Seminários de Zollikon, e a refletir sobre seus fundamentos ontológicos. O resultado dessa 42 Este trabalho é uma versão modificada de uma parte de meu trabalho de doutorado (2007) sob orientação do Prof. Zeljko Loparic na PUC-SP. 43 Cf. Heidegger 1927, p. 1 174 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA reflexão é uma crítica, que pode ser formulada da seguinte maneira: a psicanálise freudiana “objetifica” o homem44. O que permitiu essa reflexão do filósofo sobre a psicanálise foi, guardadas as inúmeras diferenças, um tema comum: ambos formularam teses sobre aquilo que pode ser genericamente chamado de psique – termo suficientemente vago para englobar tanto o “aparelho psíquico” freudiano quanto o Dasein heideggeriano. As divergências mencionadas se deveram a inúmeros fatores, sendo dois os principais: Freud foi um cientista e um clínico, ao passo que Heidegger, um filósofo; o primeiro se vinculava a uma tradição moderna (empirista) e naturalista (fisiologicista), ao passo que o segundo às tradições fenomenológica (Husserl) e hermenêutica (Dilthey) que, passando por Brentano e Trendelenburg, tinham suas origens últimas em Aristóteles45. Isto indica que, não obstante possuírem um tema comum, existiam enormes diferenças entre esses autores, quer quanto ao método, ao objetivo, aos pressupostos, às tarefas, aos problemas etc. A conseqüência central desse pertencimento a diferentes tradições é que Freud pretendeu desenvolver uma psicologia genética, explicativa, da psique (a partir de sua experiência clínica com os pacientes neuróticos), ao passo que Heidegger pretendeu desenvolver uma fenomenologia hermenêutica da existência (a analítica do Dasein). As críticas de Heidegger a Freud são do tipo ontológico. Isto significa que o filósofo irá questionar o modo como a teoria psicanalítica freudiana compreende o sentido do ser do ente estudado. Ou seja, a divergência em torno da qual giram as criticas de Heidegger a Freud são relativas às perguntas: o que é o psiquismo e qual é o seu modo de ser? Ou mais especificamente, são relativas às respostas, mais ou menos implícitas, que Freud deu a essas questões centrais. Mas isto não implica que as descobertas factuais da clínica psicanalítica sejam falsas e que a ontologia heideggeriana teria outras teses factuais para substituir às de Freud. Antes, o sentido geral da crítica, é de identificar o quadro ontológico em que as descobertas factuais de Freud estão inseridas em sua teorização. O objetivo deste trabalho é explicitar o pressuposto ontológico da psicanálise freudiana (seu ser e seu modo de ser), o que não foi feito, nem pelo próprio Heidegger, nem, até onde sei, por outros pesquisadores desta área da filosofia da psicanálise46; e expor qual seria o ponto de partida fenomenologicamente legítimo (do ponto de vista heideggeriano) para a reconstrução da psicanálise freudiana. O Pressuposto ontológico de Freud 44 Cf. Heidegger 1987, p. 197. 45 Cf. Heidegger 1925, § 4. 46 Um trabalho que aponta para essa mesma direção foi apresentado por Escoubas (1992). 175 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Por pressuposto ontológico da psicanálise freudiana deve-se entender a concepção do ser do ente psiquismo pressuposta por Freud. Para identificá-lo apresentaremos rapidamente a teoria freudiana inicial das neuroses do período dos anos 1890 e em seguida alguns elementos da concepção freudiana de aparelho psíquico. A teoria freudiana das neuroses em suas formulações iniciais do período anterior a 1900 pode ser apresentada do seguinte modo: o sintoma neurótico é o resultado de um processo psíquico que pode ser descrito como se dando em algumas etapas: 1) Instalação de uma representação mental traumática (pela percepção de uma cena traumática ou pela imaginação de uma fantasia). Traumática significa aqui “carregada” ou “ocupada” [Besetzt] com uma grande soma de excitação (afetos ou desejo). 2) Frente à impossibilidade de descarga desta soma de excitação e frente à exigência de sua descarga (pelo princípio de prazer) o resultado é a repressão desta representação mental traumática. 3) Com a repressão da representação mental traumática, o afeto/desejo, que não pode ser reprimido, é deslocado (através dos vínculos associativos) para outra representação mental (obsessão e fobia) ou para uma parte do corpo (histeria). Esta última etapa coincidiria com o surgimento do sintoma neurótico. Desta teoria aqui esboçada em suas linhas fundamentais destacam-se os seguintes pontos como essenciais para a reflexão filosófica: a) Trata-se de uma teoria que explica os sintomas neuróticos encontrando suas causas; b) A explicação apresentada pressupõe três elementos chaves, além do próprio conceito de causalidade: representação mental; afeto como quantidade de excitação e princípio de prazer. Além desses conceitos chaves, apresenta também certos processos “psíquicos”: a associação entre representações, o deslocamento de afeto por elas, e o esquecimento (repressão) de representações. c) Por representações mentais Freud entende “imagens mentais” oriundas da percepção. E por percepção Freud entende a incidência de estímulos físicos (Reizen) no sistema perceptivo. d) Por afetos Freud entende uma quantidade de excitação capaz de “ocupar” representações mentais e se deslocar de uma para outra como se fosse uma carga elétrica. Afeto, portanto, é o mesmo que quantidade de excitação de uma certa representação mental. e) Por Princípio de Prazer deve-se entender a tendência inata para a descarga desta excitação. 176 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA É somente este princípio que permite a Freud explicar porque uma representação mental carregada, ocupada, investida com uma grande quantidade de excitação é traumática. Ou seja, o acúmulo de excitação “dentro” do psiquismo só pode ser traumático porque ele tende a descarregar toda e qualquer excitação. Não me estenderei aqui sobre a concepção de Freud a respeito da associação mental de representações (em particular sobre o importante conceito de representação-meta), nem sobre a sua concepção de memória ou de repressão. Todos esses são temas clássicos e não são decisivos para a minha argumentação. De acordo com Freud o aparelho psíquico é um aparelho complexo. Possui mais de um sistema. Suas partes componentes são: sistema perceptivo, mnemônico e motor. E possui ainda uma direção: do primeiro para o último. Por sistema perceptivo Freud entende aquele sistema que torna o aparelho capaz de receber estímulos vindo do exterior do aparelho (do mundo externo ou do próprio corpo); estímulos estes que serão arquivados no sistema mnemônico. Este último sistema é um caminho intermediário entre o sistema perceptivo e o sistema motor; isto é, trata-se de um sistema que permite dar diferentes destinos para as excitações que adentram o aparelho. Finalmente, o sistema motor é o sistema responsável pela descarga da excitação. Nesta descrição do aparelho psíquico evidencia-se, novamente, a tese freudiana de que o aparelho psíquico tende á descarga de excitações, uma vez que, nas palavras de Freud, ele, o aparelho psíquico, deve ser concebido como possuindo uma direção específica: da excitação do sistema perceptivo para a descarga no sistema motor47. Do que foi apresentado pode-se depreender o seguinte fato decisivo para este trabalho: o aparelho psíquico é uma coisa que se relaciona com outras coisas no mundo externo ao psiquismo (seja o mundo ou o próprio corpo). Esta relação é do tipo de causa e efeito. Ele se relaciona por duas vias: pelo sistema perceptivo e pelo sistema motor. No primeiro caso ele recebe estímulos no segundo ele descarrega excitações. As excitações são o resultado da incidência de estímulos no aparelho psíquico. Portanto, aquilo com que o aparelho psíquico lida são estímulos (Reizen). Lida no sentido de recebê-los e descarregá-los. Agora, a pergunta fundamental é: que tipo de coisa recebe e descarrega estímulos? Freud é o primeiro a pensar uma coisa que apenas recebe e descarrega estímulos? Não. Ele apenas transportou uma tal concepção para o psiquismo.48Concepção esta que surgiu no contexto da disputa entre vitalistas e mecanicistas em biologia. Ou seja, no contexto de 47 De onde a necessidade de se explicar a origem dos sonhos através do conceito de regressão (tópica). 48 Também neste ponto ele não inovou. Antes dele, Broussais já havia proposto a concepção do psiquismo como uma substância irritável. Veja-se quanto a isso Canguilhem 1966/2007, pp. 23-4. 177 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA uma disputa entre duas maneiras distintas de se conceber o que é o ser vivo, objeto da biologia. De um lado, os mecanicistas defendiam a tese de que os seres vivos devem ser compreendidos como uma substância natural qualquer, de outro, os vitalistas, que defendiam que os seres vivos devem ser concebidos como substâncias irritáveis. Um dos últimos e mais importantes defensores dessa concepção na Alemanha foi Johannes Müller, professor dos mais importantes autores que influenciaram diretamente Freud. Irritável [reizbar] é aquele organismo (ser vivo) que é afetado por estímulos [Reiz] e não apenas por causas mecânicas, e que reage a eles, não no sentido da reação mecânica de um corpo atingido por outro (determinada pela relação direta entre ação e reação e entre causa e efeito), mas com uma reação desproporcional como se visasse a “se livrar” do estímulo, primordialmente pela fuga ou pela descarga (secundariamente por uma ação específica). Ambas as reações (fuga e descarga) sendo concebidas como movimentos reflexos. Este movimento permite constatar a irritabilidade e é esta (a irritabilidade) que o torna possível. Em seu Projeto para uma Psicologia científica Freud diz: O movimento reflexo torna-se compreensível agora como uma forma estabelecida de efetuar essa descarga: a origem da ação fornece o motivo para o movimento reflexo. Se retrocedermos ainda mais, poderemos, em primeira instância, vincular o sistema nervoso, como herdeiro da irritabilidade [Reizbarkeit] geral do protoplasma, com a superfície externa irritável [reizbar]. (Freud 1895, p. 348) É certo que Freud apresenta esta característica em seu Projeto para uma Psicologia Científica (1895), quando procura desenvolver uma teoria materialista do psiquismo49, apoiada nas descobertas recentes da neurobiologia sobre o neurônio. Deste modo, poder-se-ia argumentar que o que se caracteriza pela irritabilidade [Reizbarkeit] não é o aparelho psíquico, ou seja, o psiquismo psicologicamente pensado, mas o sistema nervoso, ou seja, o psiquismo materialmente concebido. Contudo, na medida em que o esquema permanece o mesmo, pode-se dizer que não há nenhuma alteração essencial na concepção de 190050. De acordo com esta concepção, portanto, o aparelho psíquico teria como traço distintivo o mesmo dos organismos vivos (desde os mais simples, os protoplasmas). Contudo, o aparelho psíquico freudiano não é apenas capaz de reflexo puro e simples, direto, como um tecido estimulado por uma corrente elétrica. Isto é, além do processo mental primário há o secundário, segundo o qual o psiquismo humano não apenas recebe e descarrega excitações, mas as transforma, substitui, modifica (por deslocamento de excitação e associação de representações) a ação motora. Esta última característica é fundamental para a construção de um modelo do psiquismo capaz de explicar os fenômenos neuróticos, uma vez que estes foram explicados por Freud como sendo 49 Cf. 1895, p. 347/ 387. 50 Ademais, pode-se dizer que Freud volta a falar da irritabilidade dos organismos da qual se originaria o aparelho psíquico em seu texto de 1920. 178 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA justamente o resultado de uma descarga de excitação deslocada (e disfarçada) de seu alvo original. Deste modo o aparelho psíquico tem como sua natureza a irritabilidade, comum a todos os organismos vivos, mas também a capacidade de transformar energias/excitações como os aparelhos. A primeira está figurada no modelo freudiano nos sistemas perceptivo e motor, ao passo que a segunda no sistema mnemônico. E na medida em que este último é derivado do primeiro, o aparelho psíquico nada mais faz do que encontrar vias mais adequadas ou “elevadas” para a satisfação, nunca, contudo, mudando a natureza (irritável) do próprio psiquismo51. Este último ponto permitirá mostrar, posteriormente, que a elaboração de um aparelho psíquico transformador de energias, só é necessária a partir da concepção de que o psiquismo é irritável/excitável, passível apenas de receber estímulos quantitativamente determinados e talvez mesmo mensuráveis. Ou seja, uma concepção estreita, naturalista, de experiência como recepção de estímulos leva necessariamente, se se quer explicar a realidade, à suposição de um aparelho que posteriormente os sintetiza, associa, desloca etc. Uma alternativa, como veremos, seria sofisticar a concepção de experiência, substituindo a idéia fundamental de irritabilidade por uma outra (fenomenológica), o que irá nos permitir dispensar a hipótese de um aparelho psíquico, e com ela as tantas outras suposições que tiveram de ser aceitas por Freud. A existência na filosofia heideggeriana como abertura fundamental [Erschlossenheit] Como vimos em linhas gerais, Freud pressupunha que ter experiência de algo significa fundamentalmente ser estimulado, ou dito de outro modo, a experiência é concebida à luz do conceito de estímulo. Heidegger estava cônscio dessa concepção de experiência em Freud. Quanto a isto, veja-se, por exemplo, a seguinte citação dos Seminários de Zollikon, certamente endereçadas, como de resto todo o seminário, a Freud. Pode-se apenas perguntar se elas [as pessoas], quando vêem a lousa, têm e percebem uma representação “mental” [mentale Vorstellung]. Quando se traz a teoria da excitação sensorial [Sinnesreizen], deve-se perguntar, quando surge a lousa como a lousa, que está aí, na qual eu escrevo ? A teoria do surgimento de uma “representação” a partir de uma estimulação sensorial é uma pura mistificação, isto é, fala-se de coisas, que não são comprovadas, que são puras invenções, construções a partir de uma posição calculadora, teórico-causal, explicativa em contraposição ao ente. Trata-se de uma inversão do mundo. Quando se começa a explicar a percepção da lousa a partir de estímulos que 51 Este último ponto também é explicitamente defendido por Freud em um texto posterior. Cf. Freud 1900, p. 629. 179 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA incidem sobre os sentidos, já se viu a lousa previamente. (Heidegger 1987, pp. 206-7). Ou seja, a psicologia utilizada por Freud para construir sua teoria psicanalítica do aparelho psíquico parte de uma concepção de experiência que pressupõe um sujeito isolado do mundo, um mundo igualmente isolado do sujeito, mas que afeta aquele como aos demais entes intramundanos, de maneira causal. Um sujeito isolado que não se relaciona diretamente com os entes intramundanos, apenas através de representações mentais, que surgem, elas mesmas, como efeito da ação causal do mundo sobre mim. E que pretende explicar a origem dos “dados da consciência” a partir de eventos fisiológicos. Nessa concepção de experiência não se concebe o elemento decisivo da experiência humana segundo Heidegger: a transcendência. Este elemento deve ser descrito em sua estrutura a priori e no seu modo de ser. Essa a grande contribuição de Heidegger para as ciências humanas na primeira parte de sua obra (antes da virada). Para Heidegger, por outro lado, a experiência deve ser concebida não em termos da experiência teórica perceptiva, mas em termos da apreensão (Vernehmen) de algo como algo. Sobre este ponto Heidegger é explicito em inúmeras passagens de sua obra, quer em Ser e tempo (1927), quer nos Conceitos Fundamentais da Metafísica (1929-30), quer nos Seminários de Zollikon. Neste último pode-se ler: Vê-se sempre algo como algo. Naturalmente pode-se com isso ver algo como algo desconhecido, estranho, não-confiável, etc., mas também aí portanto como algo. (Heidegger 1987, p. 220-1) A apreensão de algo como algo é também chamada por Heidegger de Sagen (dizer)52. Ou seja, a experiência fundamental não é uma percepção sensível, mas o dizer, ou melhor, uma experiência significativa. A condição de possibilidade de uma tal experiência é a transcendência, isto é, o ser-no-mundo. Por mundo deve-se entender não o conjunto de entes intramundanos, mas a significância [Bedeutsamkeit], a partir da qual eu encontro algo como algo. Os momentos fundamentais da abertura que é o ser-no-mundo são o compreender [Verstehen], o encontrar-se [Befindlichkeit] e o discurso [Rede], que são as condições de possibilidade da experiência significativa (de algo como algo). Este é apenas o ponto de partida da analítica da existência, mas basta para algumas considerações finais. Considerações finais A conclusão destas breves indicações é que a revisão da psicanálise a partir da analítica da existência de Heidegger (1927) deve ser conduzida a partir de uma revisão do conceito de experiência pressuposto por Freud à luz da tradição 52 Cf. Heidegger 1987, p. 19. 180 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA moderna (empirista) e naturalista (fisiológica) e sua substituição pela concepção de experiência como “Estado de Abertura”. Uma tal revisão deve levar ao abandono da suposição de que o psiquismo é uma substância fechada em si, uma espécie de caixa e que o tema, o objeto a ser investigado, tratado e sobre o qual deve-se teorizar em psicanálise são os eventos mentais, intra-psíquicos (inconscientes). Se o ser humano é uma transcendência, não está “dentro” de si, mas fora, habita um “mundo” compartilhado e dotado de sentido, mas também compartilhado por outros, co-habitado. Referências: ANDERSSON, Ola 2000. Freud precursor de Freud. São Paulo, Casa do Psicólogo. CANGUILHEM, G. (2007). Le normal et le pathologique (10ª Ed.). Paris: Puf. Trabalho original publicado em 1966. ESCOUBAS, Eliane 1992. “Analytique du Dsein et Psychanalyse”. In: La Notion d’analyse. Actes du Colloque franco-péruvien 1991. Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, pp.282-294, 1992. FREUD, Sigmund. Quelques Considérations pour une Étude Comparative des Paralysies Motrices Organique et Histériques. 1893a. GW I. ______. Über den psychischen Mechanismus hysterischer Phänomene (Vortrag). 1893b. GW Nachtragsband. ______ . Die Abwehr-Neuropsychosen. 1894a. GW I. ______. Über die Berechtigung von der Neurasthenie einen bestimmten Symptomenkomplex als “Angstneurose” abzutrennen. 1894b. GW I ______ . Studien über Hysterie. 1895a. GW I. ______. Entwurf einer Psychologie. 1895b. GW Nachtragsband. ______. Über die Berechtigung von der Neurasthenie einen bestimmten Symptomenkomplex als „Angstneurose“ abzutrennen. 1895c. GW I.. ______. Die Traumdeutung. 1900. GW II/III. ______. Jenseits des Lustprinzips. 1920. GW XIII. HEIDEGGER, Martin 1994 [1925]. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs. Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, GA 20. _____ 1949 [1927a]. Sein und Zeit. Tübingen, Max Niemeyer. _____ 1983 [1929/1930]. Die Grundbegriffe der Metaphysik: Welt, Endlichkeit, Einsamkeit. Frankfurt am Main, Klostermann. _____ 1987. Zollikoner Seminare. Frankfurt am Main, Klostermann, 2ª Edição, 1994. 181 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Pesquisa heurística e as ciências socioambientais. Uma proposta de discussão. Josemar de Campos Maciel Resumo: No texto que segue é apresentada e discutida uma definição de pesquisa heurística, e discutida a possibilidade de sua aplicação no campo das ciências sociais. A pesquisa heurística, como proposta a partir da década de 1990 por Moustakas e Douglass, entende o processo de investigação científica como sendo substancialmente um processo internalizado, o qual, por ter essa característica, ao invés de resultados objetivamente relevantes, geraria conhecimentos subjetivamente significativos para a sociedade. Além da sua aplicação na área da pesquisa clínica, existe um esforço sendo empreendido para aplicar o método no processo de investigação socioambiental, o que tem gerado alguns resultados acerca da pesquisa sobre o sentimento comunitário de pertença que podem ser postos em discussão. Assim, pode-se entrever um novo desenho do processo de coleta de dados e de uma nova maneira de se ver o processo de pesquisa, como amadurecimento de questões no pesquisador. Palavras-chave: socioambientais. Pesquisa fenomenológica. Dimensão Heurística. Ciências Heuristic research and the socio-environmental sciences. A discussion. In the following text one presents and discusses a definition of heuristic research, as well as the possibility of its deployment inn the field of the social sciences. The heuristic research, as initially proposed in the nineties by Moustakas and Douglass, understantd the process of scientific investigation as being substantially an internalised process which, by its very characteristic, instead of objectivelly relevant results, can generate subjectivelly significant knowledge to society in general. Besides its well known application in the field of clinical research, there is an effort being held to apply the method to the process of socio-environmental research, generating some provisional results that touch the feeling of belonging to groups. These results shall be discussed, providing some elements to propose a design of the process of data gathering, as well as some perspectives about the research process, considered from the standpoint of the growth of the questions inside the researcher. Keywords: Phenomenological environmental sciences. research. Heuristic dimensions. Socio- ... ciência é disciplina. Não podemos fazer o que queremos, mas devemos fazer o que os fatos pedem. [ ... ] O maior mestre é aquele que se comporta como o maior servo. Repetidas vezes sentimos, no progresso dos conhecimentos, até que ponto somos suscetíveis de tropeçar, como é escasso nosso poder de fazer conhecimentos e como devemos dar a nossos pensamentos tempo para que cresçam e amadureçam. Portanto, a busca de conhecimentos, em 182 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA vez de tornar-nos orgulhosos e cheios de jactância, deve fazer-nos modestos e humildes (KOFFKA, 1975, pág. 21). Introdução No tempo das revoluções nos processos de manipulação de dados o pesquisador em geral – e eu em particular – tem(os) às vezes a impressão de atravessarmos quarenta anos em quatro. Na verdade, o texto que o corajoso leitor vai empreender comigo (pois é uma viagem) tem essa característica. Em 2004, sob a orientação da Prof.a Dr.a Vera Engler Cury, defendi uma tese de doutorado cuja valência apenas agora começo a entender. E não porque tenha escrito grande coisa, mas porque estou começando a entender mais claramente que na pesquisa científica os dados fornecidos por sujeitos possuem, em si mesmos, uma configuração própria e um sentido de totalidade que não podem ser desprezados, se o pesquisador quiser trabalhar cientificamente. Assim, a seguir apresento brevemente o método heurístico, na proposta de Clark Moustakas, e a partir da leitura dele que pude fazer, em 2004. Quando o presente trabalho parecer carente de documentação, o benévolo leitor remeta-se a esse trabalho. Em seguida, mas simultaneamente, tento propor a importância da aplicação das suas intuições fundamentais a um outro campo de pesquisa, o dos estudos sobre o Desenvolvimento Local. O que pretendo expressar nas páginas que seguem pode ser resumido em três proposições: 1ª. Existe um fator heurístico no trabalho científico, que não se restringe a um método ou escola particular, e que coloca o pesquisador diante da necessidade de trabalhar consigo como verdadeiro ambiente de elaboração de significados, para poder se qualificar como tal (como pesquisador); 2ª. O campo de pesquisa do assim chamado Desenvolvimento Local, pela sua história e pelas suas peculiaridades e exigências concretas, configura-se como um dos possíveis (e fecundos) campos de prova da dimensão heurística do trabalho científico; 3ª. Ainda há perspectivas a serem seguidas no sentido de individuar aplicações do método heurístico mas, no atual estado de coisas, ele tem mostrado fecundidade como processo de treinamento da escuta de cientistas sociais que trabalham com a obrigação de posicionar-se em defesa ou em favor do desenvolvimento, empoderamento ou desabrochamento de comunidades em situações de urgência de mudança. Estas três teses são uma tentativa de documentar um trabalho em curso de elaboração. Mas espero ser capaz de torná-las mais claras no texto a seguir. Obviamente, o texto está dividido em três itens, cada um dos quais correspondendo à ampliação e discussão de uma delas. Apresentação do método heurístico e uma proposta 183 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA 1a. tese: Existe um fator heurístico no trabalho científico, que não se restringe a um método ou escola particular, e que coloca o pesquisador diante da necessidade de trabalhar consigo como verdadeiro ambiente de elaboração de significados, para poder se qualificar como tal (pesquisador) a) Definição e fases O método heurístico, conforme apresentado nos principais escritos de Clark Edward Moustakas (Cf. MACIEL, 2004), é um complexo sistema de pesqusia na área da psicologia, mas que pode se estender para outras áreas das ciências humanas. Trata-se, em poucas palavras, de um sistema aberto, baseado na consonância entre a experiência subjetiva de quem pesquisa e os desdobramentos de um problema de pesquisa ao redor dessa persona. Em um comentário inicial, podemos evocar três palavras: rigor, não neutralidade; docilidade aos dados e, finalmente, expressividade polissêmica. Rigor, não neutralidade É pressuposto fundamental para o método heurístico a idéia de que o pesquisador não pode ser imparcial, sob pena de não conseguir ver o que há a ser visto. Trata-se de um processo que implica uma ressonância entre experiências humanas, a fim de produzir atos de resgate do sentido dessas experiências. Simplesmente não se lida com um tertium sobre-humano, um critério definitivo de julgamento e de qualificação – seja ele matemático, físico ou químico, a partir do qual o pesquisador esteja em condições de ajuizar a respeito do que acontece no mundo plural e impressionista dos fatos. Daí que para uma ciência de significados e de vetores de comunicação, não se considera como válida a perspectiva da neutralidade. O que não significa, em nenhum momento, que não possa haver pontos de encontro, de diálogo e mesmo de fecunda e importante colaboração e respeito entre as duas perspectivas. Isto nem sempre é claro para quem pesquisa no contexto da clínica entendido como uma relação entre duas pessoas. Mas em momento algum se pode perder de vista o contraponto de um sistema de trabalho tão radical na escuta de dados pessoais, que é a existência de um sistema de vida humana, que em larga escala se pode beneficiar, em muito, do entrecruzamento de olhares que se torna possível se e quando os pesquisadores se interessam pela colaboração entre si. Docilidade aos dados É componente fundamental de todo o trabalho de pesquisa, a partir do método heurístico, que os dados falam por si mesmos, e que não são necessárias mais manipulações do que aquelas impostas pela própria coisa. Entre o engajamento inicial do pesquisador com o problema e a finalização do trabalho, existe um momento criptográfico, que Moustakas (1990) denomina iluminação, em que afirma literalmente que a luz acerca do sentido dos dados emerge por si, ou seja, como se a pesquisa científica tivesse por condição fundamental uma espécie de 184 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA disciplina da escuta, que envolve um forte respeito às dinâmicas internas do que se quer estudar. Isso tem um motivo especial para se propor potencialmente um diálogo entre o estudo de vivências pessoais e o de vivências comunitárias – mesmo propondo o trabalho de pesquisa psicológico em relação macrodisciplinar com outras áreas de pesquisa do fenômeno humano. Se se tratasse de pesquisa com dados inanimados, puramente de espécie pré antrópica, se é que isso existe, poder-seia esperar que os dados ficassem abandonados a si mesmos, sem acabar de juntar as suas forças e os seus diversos horizontes, em uma espécie de síntese na mente de quem pesquisa. Mas aqui se trata da experiência humana, pesquisada a partir da ressonância, da escuta e da disciplinada responsorialidade constitutiva de outra experiência humana. Nesse sentido, o dinamismo do dado é propriamente heurístico no sentido mais próximo das matemáticas, ou seja, uma forma de inquietação geradora de novos conhecimentos. Na proposição de Puchkin (1969, pág. 8), “ ... o processo psíquico que, ao auxiliar sua solução, elabora uma nova estratégia que se mostra como algo inédito, é designado como pensamento criador ou, para usarmos terminologia que nos vem de Arquimedes, Atividade heurística. [ ... ] Pode ser designada pelo nome de Heurística a ciência que estuda as constantes do pensamento criador. Seus objetivos não se reduzem apenas às pesquisas das constantes do pensamento criador, mas compreendem também a elaboração de métodos e modos de direção dos processos heurísticos”. Puchkin, no seu clássico texto, olha para o trabalho da criatividade humana como sendo inserido no contexto das atividades de expansão dos domínios da ciência e da tecnologia (cf. PUCHKIN, 1969, P. 176 - 181); no entanto, não se trata apenas de utilizar o potencial criativo dos seres humanos para o desenvolvimento do conhecimento sobre ele próprio e sobre a natureza. Aponta-se aqui para uma revisão da idéia mesma de ciência, que passa a ser vista como um diálogo em grande escala, entre várias dimensões da atividade humana. É interessante notar, por exemplo, que Moustakas jamais distingue a atividade científica como trabalho ou como ócio, mas cria como que uma zona metafórica em que afirma repetidas vezes que se trata, por exemplo, de uma dança com os dados, com o real, com o outro, à moda da linguagem bachelardiana. Ou no estilo do trabalho tradicional de Winnicott, com a sua psicanálise materna e infantil, no melhor dos sentidos – facilitadora de um crescimento simbólico, a partir de um contexto facilitador. Não há tempo nem espaço num trabalho como este, mas é importante a metáfora da maternagem winnicottiana para se entender o processo de amadurecimento de conhecimentos no interior de um pesquisador. Fica anotado para outras ocasiões. Expressividade polissêmica 185 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Enfim, para apresentar brevemente a pesquisa heurística, em sua diferença, cumpre ressaltar que ela nasce, no modelo, visando um benefício social. Para Moustakas, desde a primeira apresentação de seu trabalho, talvez por motivo de seu background envolver o trabalho de ludoterapia, é resultado fundamental de todo trabalho de pesquisa heurística uma forma qualquer de expressão. Sobretudo se ela for artística. Em síntese, pode-se apresentar o trabalho com o método como tendo as seguintes etapas, cada uma com um significado específico, mas desabrochando em uma lógica muito clara, que pede um momento de expressão: Engajamento inicial – em que o pesquisador descobre um foco de interesse. No início da pesquisa heurística o pesquisador introduz em sua vida, como num relacionamento pessoal, aquilo que deseja estudar. Imersão – em que o pesquisador direciona todos os aspectos possíveis da sua existência a relações diretas ou indiretas com aquele fenômeno que pretende entender. Este momento evoca fortemente o estilo de pesquisa etnográfica, de sabor antropológico, pois trata-se, nos termos de Moustakas, de “conviver com os dados” (MOUSTAKAS, 1990, p. 28). Incubação – Passado o momento inicial de apaixonamento com o tema pesquisado, o pesquisador convive com ele até à saturação. Neste ponto, saturado de seus dados, deve deixar que eles fecundem a sua mente, que os problemas se arranjem por si mesmos. Iluminação – Os dados se encontram a si mesmos e surgem, espontaneamente, em um arranjo lógico, na mente do pesquisador. Ele deve, enquanto isso não acontece, manter uma postura básica de acolhida dos insights, mas não deve forçar uma conclusão, enquanto ela não acontece. Outra correspondência, a este ponto, é com os estudos incipientes sobre o fenômeno da serendipidade (serendipity), em vários campos. Explicação – Uma vez encontrada uma solução ao problema proposto, o pesquisador expressa por escrito as linhas dessa solução, tentando utilizar referências que tenham sido lidas em fases anteriores com o objetivo de esclarecer as questões, mas a partir do delineamento provido pelos dados da pesquisa. Síntese criativa – A última fase do trabalho heurístico, no contexto inicial de Moustakas, significa basicamente a tradução do trabalho e de seus frutos através de uma espécie de Sirtaki acadêmico. O Sirtaki é uma das muitas danças de família comuns na Grécia tradicional, na qual todos os presentes se abraçam e dançam ao som de músicas simples, embelezadas por solos virtuosísticos de Bouzouki, o bandolim grego, e outros instrumentos. Da mesma forma que essa dança simbólica (é nesse momento que ocorre a conhecida quebra dos pratos) resume e ressignifica o todo da festa, o momento da síntese criativa num trabalho acadêmico é um momento que deve espelhar a comunhão, a solução trazida pelo conhecimento novo, em suma, um momento em que a ciência resvala para o campo da celebração sem, no entanto, romper a tensão. 186 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA b) Limites Devereux (1967, xiii), anota que demorou para escrever sobre a relação de transferência do trabalho científico porque ele mesmo não estava muito preparado para seus próprios insights. Nem eu, em 2004, tinha condições de perceber a gama imensa de literatura que deveria ter coberto para ter condições de falar que um método podia ser revolucionário como desconstrutor de uma forma de racionalidade científica. Também não sabia da importância da relação entre Michael Polanyi (químico e filósofo) e Karl Polanyi (economista e filósofo), nem muito menos da idéia de alguns teóricos da administração de aplicar o pensamento de Michael às teorias emergentes (na década de 1990) sobre a economia do conhecimento. Quando tomei conhecimento do trabalho de Nonaka e Takeuchi (1995), comecei a perceber como havia, naqueles alfarrábios que o químico cristão rabiscara na década de 1960, um potencial revolucionário que podia ter sido ou estar sendo ou correr o risco de ser desvirtuado. Os dois administradores japoneses acabaram coisificando a noção de “tácito”, como se se tratasse de um tipo de conhecimento – ou seja, quando se afirma, hoje em dia, que existe um conhecimento tácito e outro conhecimento codificado (como em ALBAGLI e LASTRES, 1999), o que se está fazendo é confundir conhecimento com informação. Nos textos de Michael Polanyi ele fala, sempre, com clareza e constância, de uma dimensão tácita do conhecimento. Isso chega a ser título de um dos seus livros (1967). Mas então... apontando o dedo para os japoneses percebi que eu também estava com esse pecado na consciência. A grande questão, levantada por Polanyi, mas que não lhe pertence, é a do amadurecimento dos dados na consciência histórica de quem pesquisa, ou seja, a questão de se lidar sempre com uma sobra cultural para que dimensões possíveis, virtualidades, devidas à fecundidade natural da relação entre os dados e a mente humana criativa, possam emergir. O método heurístico não pertence à psicologia humanista. E nem mesmo à psicologia. Pode-se falar em método heurístico e em Clark Moustakas, é verdade, e pode-se atribuir ao movimento da psicologia humanista a paternidade dessa idéia. Mas pagando-se o preço de ter que provocar aqui uma discussão entre escolas, que em última análise pode perder de vista o bem social que estas idéias podem trazer. Porque entrementes, se em 1962 e 1967, por exemplo, Polanyi, uma das mais importantes leituras de Moustakas, escrevia sobre a dimensão tácita do conhecimento, esclarecendo que mesmo a ciência mais pretensamente precisa necessita de mediações, Georges Devereux (1967) escrevia um clássico que iria ser reivindicado por pensadores de extração psicanalítica, discutindo a dificuldade de estudiosos das ciências do comportamento de lidar com sentimentos e emoções. Sob a rubrica da transferência, na verdade, a psicanálise já vinha, desde Ferenczy, frequentemente elogiado por Freud, trabalhando a mesma questão. É claro que não se trata de afirmar hegelianamente que aqui se tem um sistema acontecendo debaixo dos meus olhos aterrados. Mas de constatar o que pode ser 187 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA um avanço, no sentido de entender o significado da idéia original – a de buscar o sentido para a pesquisa psicológica daquela “invenção” de Moustakas. Na verdade, o que ele individua, como bom grego, improvisando a sua dança, é também uma dimensão da experiência humana em geral, que pode ser mais útil se estudada, entendida e assimilada ao longo da formação de qualquer pesquisador, da área das investigações (ciências?) socioambientais. A idéia é que, ao que parece, o pesquisador ganha muito, qualifica-se mais enquanto estudioso quanto presta – aprende a prestar atenção – a si e a processos humanos que têm relação com seus próprios interesses, angústias, sentimentos e emoções. Isto não pertence a uma escola psicológica, psiquiátrica, filosófica, de pensamento genérico, que seja. Pertence ao patrimônio comum da comunidade de pesquisadores que está interessada na própria sobrevivência com um mínimo de qualidade humana. O Desenvolvimento Local, uma área difícil de se pesquisar mas emergente com grandes possibilidades e por que 2a. tese: O campo de pesquisa do assim chamado Desenvolvimento Local, pela sua história e pelas suas peculiaridades e exigências concretas, configura-se como um possível (e fecundo) campo de prova da dimensão heurística do trabalho científico. c) Introduzindo o desenvolvimento Local para quem não é “da área” Fui arremessado no campo da pesquisa em Desenvolvimento Local a partir de 2006 e, a partir daí, tenho tomado contato com uma área tão fascinante quanto desafiadora de estudos, que envolve um amplo diálogo entre tudo o que se pode estudar, atualmente, a resposta a problemas concretíssimos e urgentes, e a necessidade de se repropor a questão ético-política na relação entre a academia e a sociedade. Ou seja, uma área fascinante, meio ideal para a fermentação de um trabalho heurístico puro-sangue, sem nem mesmo perceber. De que se trata? Qualquer estudioso de economia conhece as teorias do desenvolvimento econômico. Qualquer acadêmico de graduação em ciências sociais sabe o que é a sociologia do desenvolvimento. Mas nem todos percebem duas grandes questões. Primeira delas: A origem da questão do desenvolvimento no Ocidente em larga escala se deve à falência de modelos monetaristas e de políticas colonialistas. Ao longo da história do ocidente cristão, pós-cristão, democrático, tecnológico e cientificista, aconteceu uma sobrecarga em vários sistemas socias de larga escala, a partir da descoberta liberal do dinheiro. A lógica simples do final do século XIX, que gerou as grandes linhas de produção, era mais ou menos expressa nas afirmações seguintes: Dinheiro produz possivelmente enriquecimento; enriquecimento produz segurança. Com isso, a narrativa estava posta para se calcular a prosperidade de um país a partir daquilo que seus cidadãos produzem em dinheiro soante (PIB), ou consomem, sem comprometer a receita do país (endividamento). 188 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O que aconteceu historicamente foi, primeiro, a polarização do mundo em dois grandes blocos. De um lado, o urso; do outro, a águia, disputavam a hegemonia e o controle da riqueza produzida no planeta. O urso adoeceu e morreu de causas não muito desconhecidas. Com isso, pensou-se, por volta de 1989, que a águia fosse resolver os problemas do planeta, mas começaram a acentuar-se desigualdades, exclusões, e o reino da águia foi abalado em 2000, quando profetas esfarrapados explodiram duas pequenas torres. Até aqui todo mundo conhece a história (de dentro da toca da águia uma excelente referência para entender estas narrativas, para quem precisar, são os escritos políticos de Noam CHOMSKI). Mas isso tem deflagrado, aos poucos, a segunda grande questão: O impacto da pergunta pelo desenvolvimento se dá, não apenas em larga escala, mas em todas as escalas, e em todos os sentidos. Ou seja, em tempos nos quais havia maior abundância de recursos, o desenvolvimento podia ser procurado ao redor de uma narrativa que adiava para longos períodos de outros tempos problemas que vieram se acentuando: quem é realmente europeu, se a Europa anda sendo visitada cada vez mais por multidões de cidadãos de ex-colônias que, de tão pobres, não conseguem mais sustentá-los? O que é o trabalho, uma vez que a técnica anda tão aperfeiçoada que campos inteiros de produção podem se mudar de um país para outro em questão de dias? O que é o dinheiro, depois que o mercado americano mostrou para todos o que significam títulos podres comercializados com a anuência dos poderes que regem – a águia? Em outras palavras, um pouco mais sérias, a pesquisa na área do Desenvolvimento Local se pergunta pela importância, relevância, ou pela entrada em campo do local, no seio ou no horizonte de grandes macropolíticas de desenvolvimento, pensadas em escala muito ampla, como por exemplo, por um BID, PNUD, ONU, UNICEF, e assim por diante. E o pesquisador na área do Desenvolvimento Local investiga sobretudo como fazer para que quem foi excluído da possibilidade de ter acesso a bens e serviços básicos que tornam a vida humana minimamente confortável, possam ter accesso a eles do ponto de vista estrutural, institucional – e sobretudo (aqui entrando a grande questão que me ocupa neste texto) comunitário (BOUTROS-GALI, 1995). d) O problema da pesquisa na área do Desenvolvimento Local – e por que ela pode impactar tanto a pesquisa em geral Em outras palavras, o que foi dito até agora é que os pesquisadores do Desenvolvimento Local procuram entender lógicas alternativas possíveis, para dinamizar políticas e práticas de desenvolvimento, beneficiando populações que andam excluídas do processo. Os estudos cobrem o campo das ciências sociais, enquanto procuram entender dinâmicas comunitárias e mesmo mais amplas, coletivas, macrossociais; e das ciências ambientais, pois tentam trabalhar a partir das perspectivas da preservação para o desenvolvimento não torrar todos os recursos, e da sustentabilidade, para que o desenvolvimento em geral seja autoreprodutivo. 189 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA É claro que a este momento o leitor vai estar se perguntando como é que se define “Desenvolvimento” neste misterioso campo de pesquisas, afinal de contas. Aqui há uma boa discussão, e eu apenas remeto a ela. Mas definamos, provisoriamente, desenvolvimento como sendo o desabrochamento sustentado e a exploração racional dos recursos internos a uma região, território ou comunidade (definição minha, a partir da literatura comum entre os especialistas da América Latina, como por exemplo, já citados, BOISIER, 2005 e também ELIZALDE, 2000). E aqui nasce o problema no qual a pesquisa heurística tem muito a dizer. Muito se tem estudado acerca da segunda parte desta minha pobre definição. Isto é, muito se tem estudado acerca do que signifique racional, sustentável, do que signifique comunidade, e perspectivas de inserção no mercado. Mas há um ponto cego que anda sendo individuado por alguns especialistas neste campo. Ele responde justamente pela primeira parte da definição acima oferecida. Como acontece o desabrochamento de uma série de recursos de uma comunidade, se ela está em uma das situações abaixo: Primeiro: Se se trata de uma comunidade que não tem mais uma língua, uma cultura ou uma série de outros elementos de referência, e que por isso deverá assimilar padrões estranhos ao seu próprio sistema de ver e de pensar; Segundo: Se é uma comunidade que simplesmente resiste, sem ter mais tanta consciência das próprias forças em sentido humano – ou seja, uma comunidade sem grande sentido gregário, desconfiada de lideranças, amedrontada com a polícia, ressabiada com a política institucional; Terceiro: Se é simplesmente uma comunidade desunida, como tantas, cheia de pequenas divisões internas, espelhando a grande sociedade. O que tem acontecido e que mostra um problema de grandes proporções, é a falta de sustentabilidade comunitária que capacite grandes grupos humanos a se tornarem auto-suficientes no sentido de produzirem as suas próprias referências e condições de vida, a partir de uma série de projetos de fomento e de apoio, tornando-se autônomos em seu modo de pensar e agir, e independentes em seus sistemas de subsistência ou em suas pequenas redes de economia. Em termos simples: existem recursos, e existem grandes idéias de implementação de ações para a aplicação de recursos, para o desenvolvimento e melhorias de vida de comunidades e cidades Brasil afora. Mas faltam critérios, estudos e elementos que ajudem a pensar a relação entre esses recursos e a sua sustentabilidade. O enraizamento dos recursos, a conversão de recursos exógenos em matrizes geradoras internas, ainda está longe de ter uma resposta fácil para os estudos na área do Desenvolvimento Local. Ainda, resumindo mais: o lugar e os estilos do local, ainda precisam ficar mais claros, e precisam transformar-se em políticas e práticas de fomento, ou continuaremos perdendo muitos recursos materiais e 190 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA grandes potenciais humanos em políticas assistencialistas que apenas postergam a falência de uma região atrás da outra. É neste sentido que aparece como sendo muito fecundo o desenvolvimento e a aplicação do método heurístico, não mais como apenas um método de pesquisa psicológica, mas como uma dimensão de um outro tipo de pesquisa de larga escala, não mais solitária, mas comunitária, visando também a experiências comunitárias, e não mais apenas pessoais. Ou seja, O que era método se torna dimensão; O que era pessoal (Subjetivo), torna-se intersubjetivo de fato; O que era experiência individual e mediação interpessoal torna-se experiência individual mas mediação coletiva. Como isso tudo se aplica, e como se desenvolve? O tempo ainda poderá dizer com mais clareza. Mas a seguir tentarei avançar algumas linhas explorando possíveis perspectivas. A idéia central é a de mostrar que, na verdade, a pesquisa na área do desenvolvimento inclusivo envolve um aprendizado na negociação com realidades humanas intangíveis e inefáveis, ou seja, das quais não se pode dispor, nem no sentido moral (iussivo), nem no sentido econômico. O que equivale a dizer que outras pessoas não podem ser estudadas apenas como potencial de obediência (disciplinas sociais) ou de mão de obra (capital social). Perspectivas possíveis e ilustrações 3a. tese: Ainda há perspectivas a serem seguidas no sentido de individuar aplicações do método heurístico mas, no atual estado de coisas, ele tem mostrado fecundidade como processo de treinamento da escuta de cientistas sociais que trabalham com a obrigação de posicionar-se em defesa ou em favor do desenvolvimento, empoderamento ou desabrochamento de comunidades em necessidade. Nos limites de um breve ensaio que é quase um memorial, ao sabor de uma iluminação típica dos (felizmente poucos) pensadores praticantes do método heurístico, sou capaz apenas de acenar para algumas perspectivas do uso de seus insights no campo das pesquisas sobre Desenvolvimento Local (nos confins das ciências socioambientais) para, conclusivamente, resumir o trabalho em suas palavras e sentidos mais importantes. Psicologia ambiental... heurística A generosidade de um estudante que concluía seu curso se psicologia conduziume à minha primeira aplicação do método, e de forma audaciosa, num curso de graduação. O campo escolhido foi o da psicologia ambiental, mas estudando a percepção do ambiente sob o recorte específico de representações, gestos e 191 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA iniciativas de sensibilidade. Disso saiu o título do trabalho: “o ambiente que sou eu”, significando a proposição segundo a qual é impossível estudar-se adequadamente o ambiente, impactos e questões de degradação ambiental, bem como da sustentabilidade, sem uma passagem pessoal em algum momento, por parte do pesquisador (CHAPARRO, 2007). Ou seja, se o ambiente não é sentido em primeira pessoa, o resultado de uma pesquisa sobre o ambiente que deseja gerar mudanças de atitude pode ficar um pouco mais pobre. No caso dessa pesquisa, ffoi utilizada abundantemente a criatividade do estudante, que criou uma instalação, utilizou-se de fotografias de uma lixeira e de um gato atropelado para estudar, um pouco de forma antropológico-inserciva, alguns recortes da experiência da invisibilidade da questão ambiental. Um primeiro comentário que é preciso fazer, a este ponto, é que a sensibilidade artística é um elemento profundamente facilitador de todo o processo de elaboração da enorme gama de dados que aparecem, na medida em que o proceso de imersão no problema vai acontecendo. O estudante possuía um amplo domínio de técnicas expressivas, do desenho à dança, e ainda se deleitava com leituras literárias, passando a sentir a necessidade de escrever contos para expressar de forma ainda mais plástica a sua indignação com a indiferença que ia notando nas pessoas em geral à questão ambiental. Neste sentido, ainda, um elemento da expressão artística, mencionado na gênese do método heurístico, parece começar a fazer um pouco mais de sentido. A expressão artística de um conteúdo que pertence, de primeiro direito, ao campo da ciência, no caso à ciência em uma forma descritiva e empírica, recria uma zona de polissemia e, de certa forma, repropõe aos consumidores da arte – ou do produto artístico resultante de um trabalho de pesquisa – a questão que já se encontra pelo menos refletida no trabalho mais sistemático. Com isso, o diálogo entre a academia e a sociedade nasce já dentro do trabalho de investigação científica. De fato, além da apresentação da monografia e da sua breve pulverização em eventos, ela transformou-se em algumas instalações, gerando curiosidade, críticas e redimensionamentos do trabalho, quase que imediatamente. Assim, parece que a elaboração Interna do pesquisador, no interior de um projeto de pesquisa, conduz a um repensamento do papel de quem investiga como estando já dentro da realidade social e em círculo com ela, rejeitando modelos prontos, e forçando a um movimento produtivo que é extremamente fecundo. Um laboratório de imaginação qualitativa Uma segunda iniciativa, que se encontra ainda em processo de gestação, no seio do campo de estudos acima relatado, é a tentativa de estender o uso da linguagem artística para o campo da elaboração interna do pesquisador. Ao mesmo tempo em que foi notado que o trabalho interno, sugerido pela pesquisa heurística, era muito rico, foi também percebido que o caso em questão era muito raro de se repetir, ou seja, alguém provido de grande talento no sentido da facilitação da própria expressividade. Daí que surge a iniciativa de se trabalhar com um laboratório de crítica de material artístico, no qual se fomenta a experiência da imaginação. 192 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Na literatura acerca da pesquisa qualitativa vários autores enfatizam uma função desse(s) modelo(s) de investigação, como sendo o de aprofundar significados, ou descrever criteriosamente a natureza de uma experiência humana (MINAYO, 1996). Esse tipo de pesquisa é extremamente importante na área das pesquisas sobre o Desenvolvimento local, pois responde a conteúdos que dão conta de processos profundos de enraizamento da cultura, no interior de comunidades carentes, tradicionais, abaladas, cultural ou etnicamente diferenciadas. Mas por outro lado, o estudante médio que se apresenta para dedicar-se a pesquisar essa delicada área de mediação entre o social e a exclusão, muitas vezes não possui treinamento acerca do material imaginativo básico que gerou a pesquisa qualitativa, historicamente. Uma ilustração pode servir aqui. Pense-se à situação de um professor que vai ministrar uma aula de ética a respeito de um conteúdo como, por exemplo, o das paixões, da problemática da vontade e de seus rigores, e dá como exemplo uma história sobre o traje preto do homem-aranha, o filme recente com o material da ficção dos estúdios Marvel. Acontece que o grupo de pessoas é uma classe de estudantes de referenciais muito diferentes (trabalhadores em um matadouro), e o exemplo não é compreendido. A aula fracassa, por falta justamente de correspondência de categorias de imaginação. Daí que uma experiência possível, que vem sendo praticada com certa periodicidade há um semestre e começa a trazer seus primeiros frutos, é um laboratório em que, posicionado como espectador de filmes brasileiros mais ou menos famosos, de grandes bilheterias, ou seja, sem muita dificuldade para o consumo e para o envolvimento estético, o estudante é desafiado a imaginar uma leitura. Existe um sentimento lúdico comum, o de assistir a bons filmes, mas também a prática de expressar-se acerca do que está sendo visto e da sua conexão com teorias e opiniões que os outros estudantes vão evocando, ao longo do debate, que dura mais ou menos uma hora e meia, a cada reunião. É importante ressaltar que o relato acima não tem o objetivo de canonizar uma forma de preparar o estudante em geral para o trabalho com o método heurístico. Pode até funcionar dessa maneira. Mas em primeiro lugar o ganho de pessoas não adestradas em crítica cinematográfica por participar de longas sessões de discussão acerca da relação entre filmes, teorias e perspectivas de visão dos mesmos filmes, é recuperar a credibilidade de estratégias que contemplam o uso da imaginação no seio de uma comunidade acadêmica fortemente marcada pela busca de intervenções pontuais e precisas, para o bem de grupos necesitados, carentes e urgentes. Alguns corolários Em uma palavra, neste breve trabalho apresentei em suas grandes linhas o método heurístico, tentando argumentar que, no trabalho das ciências sociais, sobretudo no campo das pesquisas sobre desenvolvimento local, ele pode vir a se tornar um fecundo instrumental para treinar o olhar do pesquisador, facilitando a observação de experiências pessoais e de sua conjunção com as 193 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA grandes questões que afetam esse campo de pesquisas, como seja, o da mudança comunitária e o enraizamento de práticas. Assim, a partir da perspectiva aberta a partir dos estudos que possuem uma dimensão heurística, podemos afirmar que há pelo menos quatro pontos, nos quais convém investir alguma energia: A criatividade – que é o motor básico do processo de descoberta. Se a ciência é baseada na composição de novos conhecimentos, em um modelo de ciência que visa ao relacionamento direto com pessoas e com suas vivências, estes se devem necessariamente ancorar no processo mental da criação, que é o mesmo na arte, na ciência e na religião, com diferenças de disciplina e de objetos. A elaboração pessoal – que é o motor das condições de possibilidade do processo de descoberta. Um insight não pode ser apressado. Nisto todas as abordagens da clínica psíquica concordam, cada uma à sua maneira. Um insight forçado permanece exógeno à pessoa que busca ajuda terapêutica e, assim sendo, não tem força para se transformar em prática, para enraizar-se em hábitos, em mores. A imaginação qualitativa – que responde, metodologicamente, pela qualidade fundamental que é necessária ao pesquisador que trabalha pelo menos com o conteúdo da experiência heurística. Para pensar em novos conhecimentos é necessário criar. Mas antes de criar é importante brincar com os significados, negociar um espaço lúdico na imaginação no qual as palavras, os significados, os horizontes dos problemas e seus referentes possam dançar livremente, mesmo que por poucos momentos. 194 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Referências ALBAGLI, S. e LASTRES, H (1999) (Org.s) Informação e globalização na era do conhecimento. Rio de Janeiro: Campus. BOISIER, S. (2005) Hay espacio para el desarrollo local em la globalizacion? Em Revista de la CEPAL, 86, Agosto de 2005, Pág.s 47 a 62. BOUTROS-GALI, B. (1995) An Agenda for Development (Relatório do Secretário Geral A/49/665, 11 Nov. 1994), New York: ONU. CHAPARRO, Y. L. (2007) O ambiente que sou eu. Um ensaio heurístico em psicologia ambiental. Trabalho de Conclusão de Curso de Psicologia. Campo Grande, MS: Universidade Católica Dom Bosco DEVEREUX, G. (1967) From anxiety to method in the behavioral sciences. Paris: Mouton & Co e École Pratique des Hautes Études. ELIZALDE, A. 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Tradução brasileira NONAKA, Ikujiro e TAKEUCHI, Hirotaka (1997) Criação de conhecimento na empresa. Como as empresas japonesas geram a dinâmica da inovação. Rio de Janeiro: Campus. POLANYI, M. (1962) Personal knowledge. Towards a post-critical philosophy. Chicago: University of Chicago Press. POLANYI, M. (1967) The Tacit Dimension. New York: Anchor Books. 195 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Ensaio sobre a construção: da fenomenologia a construção social Juares Soares Costa(1) Vera Engler Cury(2) Resumo Neste Ensaio buscamos uma reflexão sobre o processo de mudança epistemológica fundamental para vários campos das Ciências humanas, entre estes a Psicologia: o mundo e seus significados entendidos como uma construção! Ao apresentarmos o campo da Terapia Sistêmica de Família e Casal, procuramos explicitar suas bases epistemológicas, e também perguntamos por influencias vindas da Fenomenologia. Apresentamos um resumo das teorias Construtivistas e Construcionistas Sociais, que influenciaram de modo significativo esta prática terapêutica. E também apontamos aproximações entre estas teorias e a Fenomenologia de Husserl. Palavras-chave: psicologia; terapia; família; fenomenologia; construtivismo; construcionismo-social. Abstract In this Essay, we reflect about a basic process of epistemological change: the world understood as a construction. This change is specially fundamental for the Human Sciences, that includes the Psycology . We try to clear the epistemological basis of the Sistemic Family Therapy, and ask about influences coming from the Phenomenology. We present a summary about the Constructivism and the Social Construcionism, that represented a great influence for this therapeutic practice. And look for relations between these theories and Husserl’s ideas. Key-words: psychology; therapy; family; phenomenology; constructivism; social-constructionism. 1. Doutorando do Programa de Pós Graduação em Psicologia, PUC - Campinas, bolsista CAPES, médico psiquiatra, terapeuta de família. [email protected] 2. Docente do Programa de Pós Graduação em Psicologia,PUC-Campinas, psicóloga clínica, psicoterapeuta. [email protected] 196 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Introdução A Terapia de Família é uma prática que vem sendo desenvolvida por profissionais de diferentes formações teóricas, desde a primeira metade do século XX. Moreno, o criador do Psicodrama já atendia famílias por volta da década de 30. Nos anos 50 especialmente nos Estados Unidos, encontramos vários exemplos de aplicação da teoria psicanalítica na busca de compreensão dos vínculos familiares. Salvador Minuchin, um dos pioneiros da Terapia Sistêmica de Família, começou trabalhando com crianças órfãs, em Israel, logo após a fundação do estado judeu, em 1948. Posteriormente estudou Psicanálise nos Estados Unidos, e começou a trabalhar com jovens delinqüentes oriundos da comunidade portoriquenha. Não demorou muito para incluir a família em seus atendimentos (Minuchin, 1995).Mas quase todos estes trabalhos pioneiros sentiam falta de uma linguagem adequada, que pudesse dar conta das relações interpessoais e da comunicação. Em suma, do modo de funcionamento dos grupos humanos, entre eles a família . A partir das demandas sociais crescentes após o final da Segunda Guerra Mundial, houve, nos Estados Unidos, uma grande inversão de recursos em pesquisas sobre a comunicação, na busca de compreensão dos mecanismos reguladores dos grupos. A Cibernética surgiu neste contexto. Foi criada no final dos anos 40, e definida como a ciência do controle e da comunicação nos seres vivos e nas máquinas. Contribuiu para a Terapia de Família, especialmente com os conceitos de feed - back , homeostase e auto-regulação. Juntamente com a Teoria Geral dos Sistemas de Von Bertallanfy, tornou-se um referencial teórico básico para este novo campo . Mas foi um antropólogo e biólogo, chamado Gregory Bateson , quem semeou as bases do que mais tarde seria conhecido como Terapia Sistêmica de Família e Casal . Em 1952 , Bateson e equipe iniciaram um projeto de pesquisa sobre a comunicação entre seres vivos, trabalhando inicialmente com animais. Mais tarde passaram a estudar a comunicação entre pacientes esquizofrênicos e suas equipes terapêuticas; e entre os pacientes e seus familiares . Esta pesquisa acabou resultando em uma Teoria , a primeira teoria sobre a gênese da esquizofrenia que não era genética ou intrapsíquica . Trata - se da Teoria do Duplo–Vínculo, que relaciona as doenças mentais com um padrão familiar de comunicação repetitivo, que contém ordens contraditórias, em diferentes níveis lógicos, e que junto com a dificuldade que o paciente tem para abandonar o campo relacional com a família, seria uma das causas dos sintomas psicóticos. A partir destes estudos pioneiros, que utilizavam a metáfora da máquina autoreguladora , as noções de feed- back e de controle, e as teorias sobre a comunicação humana, começaram a surgir as primeiras escolas de Terapia Familiar de base interacional. Estes trabalhos pioneiros, do final da década de 50, anos 60 e início da década de 70, tinham em comum , além das raízes teóricas , a posição do terapeuta. Este era visto como um observador externo ao sistema , com a tarefa principal de detectar padrões disfuncionais na família, e de prescrever mudanças nas sequencias interacionais e / ou nos padrões hierárquicos e de organização das famílias(Wittezaele e Garcia,1994). 197 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Os conceitos-chave para as terapias deste período foram : o questionamento dos modelos causais lineares e deterministas; a família vista como se fosse sistema cibernético, onde o sintoma faria parte dos mecanismos de equilíbrio (homeostase ) e a transferência da patologia do indivíduo para a família . Ao mesmo tempo em que abriu novas possibilidades de atuação terapêutica, a Terapia de Família dos anos 60 e 70 trouxe questionamentos e insatisfações . Até onde um terapeuta tem direito de intervir em um sistema familiar, trazendo um enfoque pré- estabelecido, a partir de seus conceitos (ou pré-conceitos), sobre como deveria ser uma família? O que é uma família normal? Estes questionamentos vieram a reboque da crise do Pensamento Moderno. De forma simplificada podemos descreve-lo como uma forma de ver o mundo que se apóia no tripé da Objetividade, da Simplicidade e da Estabilidade e também na crença no poder ilimitado da ciência e da tecnologia para a redenção de nosso mundo. As guerras, a pobreza , a ameaça de destruição do planeta em uma hecatombe atômica , o desequilíbrio ecológico, tudo isto colocou em cheque a certeza modernista. Para muitos, estas idéias e temas são agrupados sob a égide do Pós-Modernismo. A Terapia Sistêmica de Família mudou, junto com o mundo que já não é mais o mesmo. As idéias pós-modernas, com aportes filosóficos abordando as questões da linguagem, as teorias sobre a construção conjunta de significado, as contribuições da nova física e os novos conhecimentos sobre o funcionamento do cérebro e da mente, formaram um pano de fundo para o surgimento de novas escolas de Terapia Família. Sem abandonar completamente os pressupostos anteriores, estas novas escolas passaram a explorar as narrativas dos diversos membros de uma família, em busca de novas descrições para os problemas familiares, e de mais recursos para o funcionamento da família, sempre se perguntando sobre o que seria adequado em cada contexto sócio-cultural . O Terapeuta deixa de ser um observador externo, um expert em detectar problemas, para se transformar em um articulador , um mediador de conversações , preocupado em conhecer como esta família se organiza e opera, e nos significados compartilhados por seus membros. Estes são os pressupostos fundamentais para a prática clínica com famílias e casais, a partir dos anos 80-90: A conversação como resumo central da terapia; a família vista como um sistema social flexível, composto por pessoas que compartilham significados; a terapia entendida como a construção de um contexto para recriação colaborativa de significados, que permitam à família mudar as versões de história de vidas saturadas de problemas e déficits; geração e recuperação de narrativas alternativas, que possam ser vivenciadas como libertadoras e transformadoras. E o terapeuta e o cliente como co-autores de um trabalho, sem a ilusão de uma única verdade conhecida apenas pelo terapeuta. 198 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Temos aqui uma grande uma mudança. De uma visão de um trabalho com famílias baseado na metáfora dos Sistemas Cibernéticos, definidos por papéis e estruturas pré-estabelecidos, para um trabalho baseado em um conceito mais amplo de Sistemas contextuais e produtos de uma comunicação social. Estes sistemas seriam formados por indivíduos vivendo em uma relação mediada através da linguagem, em um processo colaborativo, produzindo e compartilhando significados. O Sistema terapêutico a ser atendido não se resume apenas aos membros de uma família, definidos por laços de parentesco. Surge a noção do Sistema definido a partir dos significados compartilhados pelas pessoas, ou seja, a partir do que é considerado problema por um determinado grupo, independentemente de laços de sangue. Não mais se busca um problema em um Sistema (comunicação, interação, estruturas, etc...), mas um Sistema que é formado a partir do problema compartilhado pelas pessoas. Estas mudanças foram conseqüência das influencias das teorias pós-modernas. Grandesso (2000,pg 56, e 101) nos diz que “o pensamento da pós-modernidade, associado a uma prática clínica sistêmica, manifesta-se...em torno dos enfoques conhecidos como construtivismo e construcionismo social...Posso dizer que, em linhas bem gerais, a oposição dá-se entre uma visão de construção do conhecimento centrada no indivíduo, no caso do construtivismo, e uma centrada na construção social, no caso do construcionismo.” Neste breve histórico, fazemos uma viagem “a jato“ por mais de 50 anos de trabalho terapêutico, apresentando novas teorias e as práticas surgidas como conseqüência. Mas de onde vieram estas teorias. Quais são suas bases epistemológicas? II- Reflexões sobre as bases epistemológicas da Terapia Sistêmica de Família. Quando retornamos ao estudo da Fenomenologia, depois de ter contato com as idéias do Construtivismo e do Construcionismo Social, tivemos a sensação de encontrar alguns parentes, ou pelo menos velhos amigos de família, que por algum motivo (talvez brigas, rompimentos, dissidências, como acontece em tantas famílias) ficaram de fora das histórias contadas por nossos pais/professores. Alguns conceitos pareciam-nos familiares, outros eram estranhos, talvez de outras famílias. Enfim, ficou uma questão: “Existe uma relação entre Fenomenologia e Construtivismo e Construcionismo Social? Pertencem à mesma linhagem familiar? Houve uma separação conflituosa em algum passado obscuro? Como o conhecimento Fenomenológico influenciou o terapeuta de Família contemporâneo? E foi com a Curiosidade, definida por Gianfranco Chechin como “uma posição terapêutica que dá oportunidade para a construção de novas formas de ação e interpretação”(in Schnitman,1999,pg220), e também com sua irreverência, que buscamos uma aproximação entre estes dois campos: Fenomenologia e Construcionismo Social. Spink(2004,pg23), afirma que: 199 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA “A perspectiva construcionista é resultante de três movimentos: na Filosofia, como uma reação ao representacionismo; na Sociologia do Conhecimento, como uma desconstrução da retórica da verdade, e na Política, como uma busca do empowerment de grupos socialmente marginalizados...iremos focalizar o construcionismo a partir da Psicologia Social e da Sociologia do Conhecimento, apoiando-nos, para isso, em quatro autores: Peter Berger e Thomas Luckmann, Keneth Gergen e Tomás Ibanez. Esses autores utilizam... a expressão construção social para falar da ação, e construcionismo para referir-se a abordagem teórica. Há autores que empregam o termo construtivismo, como por exemplo aqueles vinculados às correntes teóricas da terapia familiar sistêmica, herdeiros de Gregory Bateson e Paul Watzlawick...O termo construtivismo....dá margem à adesão, (ainda que não intencional) a uma perspectiva individualista...” A mesma autora cita o clássico de Peter Berger e Thomas Luckmann, “A Construção Social da Realidade”, como um marco para o Construcionismo Social, listando entre seus “ancestrais” nomes como Karl Marx, Nietzche e Willheim Dilthey. E enfatiza a importância de Max Scheler, filósofo alemão que nos anos 20 criou o termo sociologia do conhecimento. Lembra que Berger e Luckmann partem do princípio de que a realidade é socialmente construída, e analisam em sua obra como se dá esta construção.Não é nosso objetivo um aprofundamento das idéias destes autores, mas deixamos uma questão: “ Como foi que Berger e Luckmann chegaram a um questionamento do conhecimento como representação? Que caminhos percorreram? Em uma busca em textos de outros autores, como Gergen(McNamee e Gergen,1998), Watzlavick(1995)) e Glaserfeld(in Packman,1996), nomes reconhecidos no campo do Construtivismo/Construcionismo Social, não encontramos nenhuma referencia a Fenomenologia. Quando estudamos a história da Terapia de Família, pode ficar uma falsa impressão de que, “quase magicamente”, os profissionais tenham saído de um modelo baseado na objetividade e simplicidade, para um modelo que leva em conta a Intersubjetividade e a complexidade do ser humano. Na mesma obra citada, Marilene Grandesso nos diz que “depois de Kant, os cientistas, colocando-se como “descobridores”, buscaram desvendar os mistérios da natureza, postulando que o saber somente é digno de confiança se proporciona um conhecimento tal qual é. Esse panorama começou a mudar com os filósofos da não-representação – Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger - que se colocaram contra o discurso epistemológico da modernidade...”(Grandesso,2000, pg 50-51). Existe uma lacuna nesta breve apresentação da mudança paradigmática, que atingiu não apenas a Terapia de Família, mas todo o campo de produção de conhecimento. Schopenhauer viveu de 1788 a 1860. Nietzsche de 1844 a 1900 e Heidegger de 1889 a 1976. Um nome fundamental está faltando: Edmund Husserl, de quem Heidegger foi discípulo, e que viveu de 1859 a 1938. III-Fenomenologia e Construção do Conhecimento 200 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O pensamento de Husserl representa um profundo e efetivo questionamento em relação ao paradigma cartesiano, que se viu reforçado no pensamento positivista. Nesta forma de pensar, o único conhecimento válido era o conhecimento factual, científico, em que se poderia estabelecer uma relação causal entre os elementos, sempre se apoiando em um tripé de princípios: Estabilidade, Objetividade e Simplicidade. Husserl descobre que a filosofia está mais preocupada em fazer perguntas do que em dar respostas. Por exemplo: “O que é conhecimento, em que conhecimento se pode confiar”? Fazendo um trajeto parecido com o de Descartes, usando o método da dúvida, Husserl chega a conclusão de que não há Consciência sem o objeto da Consciência, criando o conceito básico da Fenomenologia: a Intencionalidade. Intencionalidade não significa intenção, é apenas um conceito filosófico que expressa a impossibilidade de dissociação entre a consciência e o objeto da consciência. Aqui começou a ser quebrado o Paradigma Científico Cartesiano. O objeto enquanto objeto, perde a qualidade de coisa em si. Ele só tem estas qualidades por que alguém vê. As coisas são objeto para uma consciência e a qualidade que havia no conhecimento científico não pode ser mais garantida como estável e universal, pois sempre há uma subjetividade em jogo. A questão positivista, de que conhecer o mundo é conhecer suas leis, cai por terra, pois o conhecimento depende do sujeito que observa. O próprio mundo passa ser uma constituição do ser humano. O homem cria o mundo e a razão perde seu lugar central. Ainda segundo Husserl, existe uma Qualidade Essencial nos vários objetos, embora outras qualidades factuais sejam diferentes. Isto permite que se estude alguma coisa. Estudar seria descobrir a Essência do objeto. No Paradigma Religioso, o plano da Essência antecede a Existência. No Paradigma Científico Positivista, também existem leis que antecedem a Existência. No novo Paradigma a Essência surge na própria Existência do objeto, não é anterior, ela surge junto com a Existência. Para Husserl, conhecer é conhecer a Essência, e ele desenvolveu um método para seu conhecimento. Partindo do conhecimento intuitivo, propõe o que chamou de Redução Fenomenológica, que tem os seguintes passos: Desfazer-me das características factuais e desfazer-me do conhecimento prévio. Se eu quero conhecer a essência de um objeto, preciso sair da crença em um mundo natural, colocando-me em um ponto de vista reflexivo (filosófico) e me perguntando sobre os aspectos essenciais do objeto. Nunca se chega à Essência total, este é um método de meditação infinita, que nunca alcança a essência. O que garante que chegamos a algum lugar? O caráter de Imediatez. Quando me aproximo da Essência do fenômeno que experimento em um dado instante, não posso duvidar. O objeto terá um significado para mim, e também para outras pessoas. O que valida o conhecimento é o Consenso. No Consenso todos concordamos sobre o significado de algo, mas nada garante que tenhamos a mesma experiência. . 201 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O Paradigma Científico exige uma divisão entre sujeito e objeto para que seja possível uma observação neutra. A Fenomenologia, através do conceito de Intencionalidade, diz que sujeito e objeto são indivisíveis. Surge um novo modo de fazer Ciência e de produzir Conhecimento, que inclui a experiência do sujeito que conhece. Em um primeiro momento da Fenomenologia, Husserl chega a uma posição quase positivista, fica em busca de uma Essência total, quase como se fosse a Lei. E talvez este seja o motivo pelo qual Husserl nem sempre seja lembrado como um dos pensadores fundamentais para a mudança paradigmática que nos levou à idéia da Construção do Conhecimento. Para muitos, Husserl parece ter ficado impregnado de um “ranço” positivista, essencialista, metafísico. Mais do que um rompimento, as idéias de Heidegger podem ser vistas como uma radicalização do pensamento husserliano. O conceito de intencionalidade(não há sujeito sem consciência) se radicaliza no conceito Heideggeriano de Ser No Mundo: Não há Ser sem Ser no Mundo.”( Roberto Novaes de Sá, comunicação oral, 2008). O conceito de Essência (que era considerada como anterior a Existência) evoluiu para uma Essência constituída na Existência. Na existência de um ser, ou sujeito. Uma pessoa que vem ao mundo pertencendo a uma cultura, a um contexto, trazendo uma bagagem biológica, cultural, social. Conhecer passa a ser trazer à luz o significado atribuído ao fenômeno experimentado. E um significado que depende do contexto, da relação do sujeito com seu contexto e do contexto com o sujeito. As idéias de Husserl influenciaram muitos pensadores: Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty são alguns dos nomes mais conhecidos no campo filosófico. Na Psiquiatria temos Jaspers como exemplo. E um nome menos conhecido, na Sociologia: Alfred Schutz, que exerceu uma grande influencia sobre Berger e Luckman, autores fundamentais para o campo do Construcionismo Social. No prefácio do livro “ A construção Social da Realidade”, publicado juntamente com Peter L. Berger em 1962, Luckman escreveu: “ Em várias partes deste tratado ficará clara a dívida que temos com o falecido Alfred Schutz. Gostaríamos aqui de reconhecer a influencia do ensino e das obras de Schutz em nosso pensamento. (Berger, Luckmann, 1973). Na Introdução de “Fenomenologia e Relações Sociais(Schutz,1979), Helmut R. Wagner escreveu: “Schutz nasceu em Viena em 1899 e morreu em Nova York em 1959...Durante seus anos de estudo, veio a interessar-se profundamente pelo trabalho de Max Webber e de Edmund Husserl...conheceu pessoalmente Husserl, visitando-o freqüentemente...Este o convidou para seu assistente na Universidade de Friburgo, oferta que declinou...devido a outras obrigações..Em 1938 com a ameaça de ocupação da Áustria por Hitler, Schutz emigrou para Paris. Um ano depois chegou aos Estados Unidos, onde entrou para a New School for Social Research”.Juntamente com Thomas Luckman , Schutz publicou” As Estruturas do Mundo da Vida”(1973). 202 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Não pretendemos neste espaço reduzido analisar as teorias de Schutz, mas apenas ressaltar que a Fenomenologia de Husserl está presente como um dos fundamentos de sua obra, juntamente com as idéias de Max Weber. Esta não foi a única estrada percorrida pelas idéias de Husserl até a Terapia de Família, mas com certeza, é um percurso pouco conhecido, e que chama a atenção pela clareza dos sinais e mapas indicativos. IV- CONCLUSÃO Muitas foram as mudanças que marcaram o que tem sido chamado de virada pós-moderna, ao longo do século XX, e entre estas temos a questão da Construção do Conhecimento. E esta é uma questão que vem sendo discutida há muito tempo: “O que quer que entendamos sob “conhecimento”, não pode mais ser a imagem ou representação de um universo independente daquele vivido... Protágoras, quinhentos anos antes da era cristã, já dizia que o homem é a medida de todas as coisas, e (determina) o que elas são e como elas são. Sócrates, contudo, no diálogo de Platão, Teeteto, defende a idéia de que a percepção pressupõe algo perceptível.” (Watwlawick, P.,1995). São muitas as teorias a respeito da Construção do Significado, algumas com maior ênfase no sujeito cognoscente, e outras com ênfase no papel do intercâmbio social e da linguagem, e não podemos cair na falácia de querer reduzi-las a uma só, ou de buscar supremacia de uma sobre outras. Existem quase sempre pressupostos básicos diferentes, que precisam ser compreendidos e levados em consideração. Mesmo quando as teorias são antagônicas, podem ter algo a nos ensinar, e quem sabe, revelar aspectos complementares. Seguindo esta linha de raciocínio, podemos afirmar que a Fenomenologia de Husserl pode e deve ser somada às teorias contemporâneas sobre a construção do conhecimento, enriquecendo e ampliando a compreensão da mudança epistemológica que vem influenciando nossas práticas terapêuticas. Muitas vezes temos a impressão, ao estudar diferentes escolas de filosóficas, e também escolas terapêuticas, que o desenvolvimento das idéias é apresentado como se este ocorresse fora de um contexto e de um processo. Algo parecido com determinadas narrativas históricas, em que as mudanças não são processuais e coletivas, mas fruto de “atos heróicos” de pessoas especiais, iluminadas, que de repente fundam ou “proclamam” a independência de um país. Se aceitarmos as teorias sobre a Construção do Conhecimento, e pretendermos ter em relação a estas um mínimo de coerência, devemos encará-las também como uma Construção, e não como se fossem um espelho da natureza. E toda Construção de Conhecimento se dá dentro de um processo, que inclui pessoas em relação, entre elas, e com o meio que as cerca. E toda Construção também é local, provisória, válida enquanto houver consenso a seu respeito. Erguida “ tijolo por tijolo” em um desenho com uma lógica da qual podemos tentar nos aproximar, quem sabe em uma atitude que Husserl poderia chamar de redução fenomenológica. 203 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Referências bibliográficas ALES BELLO, Angela. Humanas.Bauru,SP:EDUSC,2004. Fenomenologia e Ciências BERGER, Peter L. A Construção Social da Realidade. Petrópolis: Vozes, 1976. CHECHIN, Gianfranco. In Novos Paradigmas, Cultura e Subjetividade, (Schnitman D., org). Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. GLASERFELD, E.v. In Construciones de la Experiencia Humana. (Pakman M., org) Barcelona: Editorial Gedisa, 1966. GRANDESSO, Marilene. Sobre a Reconstrução do Significado: uma análise epistemológica e hermenêutica da prática clínica. São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2000. HUSSERL, Edmund. INVESTIGAÇÕES LÓGICAS. São Paulo: Círculo do Livro, 1996. MCNAMEE, Sheila e GERGEN Kenneth J. A Terapia como construção social. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1998 MINUCHIN, Salvador. A Cura da Família, 1995. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, SÁ, Roberto Novaes , Comunicação oral, durante VIII Simpósio Nacional de Práticas Psicológicas em Instituições, São Paulo, 17 de outubro de 2008. SCHUTZ A. Fenomenologia e Relações Sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. SPINK, Mary Jane. Práticas Discursivas e Produção de Sentido no Cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo; Cortez,2004. WATZLAWICK, Paul. O olhar do Observador. Campinas: Editorial Psy II, 1995. WITTZAELE, Jean Jacques e GARCIA, Teresa. La Escuela de Palo Alto: Historia y evolucion de las ideas esenciales. Barcelona: Editorial Herder, 1994. 204 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Trajetória de vida e construção da identidade do nissei na sociedade brasileira Trajectory of life and building identity’s nissei in Brasilian society Liliane Pusas Santos Roberto Yutaka Sagawa Unesp Bolsa: FAPESP Resumo Este projeto de pesquisa busca ser uma contribuição científica e social sobre a relação dos descendentes de japoneses (os nisseis) com a sociedade brasileira, destacando a ligação entre a antiga colônia japonesa e seu contexto brasileiro, assim como as questões de construção de identidade dos nisseis nesse contexto. Algumas das grandes questões tratadas nessa pesquisa remetem à mudança de vida da zona rural para a urbana mediante a necessidade de os filhos nisseis terem acesso à educação que lhes permitisse chegar à universidade. O casamento inter-étnico também merece destaque, já que os pais imigrantes japoneses preferiam manter o sistema de miai (casamento arranjado por um intermediário) e jamais aceitavam o casamento com estrangeiro, no caso, os brasileiros. Outra questão diz respeito às repercussões da Segunda Guerra Mundial, sobretudo, após seu término, quando explodiram duas tendências: kachigumi e makegumi, favorecendo o surgimento de uma associação político-ideológica extremista e terrorista denominada ShindoRenmei, a qual pertenciam os kachigumi. O público-alvo da pesquisa são os nisseis que atualmente residem na cidade de Ourinhos, com idade acima de 60 anos, pois contêm, na sua história de vida, os reflexos e as marcas da história brasileira nos períodos das décadas de 30 e 50. Abstract This research project aims to be a scientific and social contribution on the relationship of the descendants of Japanese (the nisseis) with Brazilian society, emphasizing the connection between the former Japanese colony and its Brazilian context, as well as the issues of building identity of nisseis in that context. Some of the major issues addressed in this study refer to the change of life in a rural area to urban by the need for the children nisseis have access to education allowing them to reach the university. The inter-ethnic marriage is also highlighted, as the Japanese immigrant parents preferred to keep the system miai (marriage arranged by an intermediary) and will never accept the marriage with foreigners, in case the Brazilians. Another question concerns the impact of the Second World War, especially after its completion, exploded when two trends: kachigumi and makegumi, favoring the emergence of an association political-ideological extremist and terrorist-called Shindo-Renmei, which belonged to kachigumi. The target audience of research are the nisseis that are currently residing in the town of Ourinhos, aged above 60 years, as contained in its history 205 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA of life, the reflexes and the marks of Brazilian history during periods of decades 30 and 50. Introdução A grande maioria das pesquisas se preocupou com as questões de integração dos imigrantes japoneses no Brasil, no entanto, não foi construída uma história no Brasil em que o nissei seja o protagonista. No entanto, tais questões parecem estar sendo superadas, não sendo mais o alvo de publicações ou pesquisas. Dessa forma, acreditamos que, por meio da história individual e do modo de construção da identidade dos nisseis, é possível vir a formular os conflitos, obstáculos, aproximações e distanciamentos entre os descendentes de japoneses e o contexto brasileiro, revelando questões de preconceito e discriminação pelas duas partes. Por meio de um estudo sobre a trajetória de vida dos nisseis, podemos os processos fundamentais por que passaram: mudança do rural para o urbano, a ascensão social econômica, a educação, a Segunda Guerra Mundial e suas repercussões, as religiões tradicionais (budismo e xintô), a idolatria ao Imperador, a queda das escolas de língua japonesa (nihongo-gako), assim como as associações culturais e esportivas (kai-kan). Objetivos O objetivo central dessa pesquisa é, portanto, possibilitar um entrelaçamento entre história de vida do nissei, formação de identidade e história da sociedade brasileira, de forma a aliar o quantitativo ao qualitativo, a partir do recorte longitudinal (baseado nas ciências humanas) e do transversal (estabelecido na psicologia, mais particularmente na psicanálise), onde o psíquico e o social/cultural possam ser entrecruzados. Metodologia A metodologia se dá através da pesquisa de campo por meio de questionário fechado, entrevista semi-estruturada e observação participante. A pesquisa é aplicada aos nisseis que atualmente residem na cidade de Ourinhos, que já não tem mais o antigo contingente de famílias de origem japonesa como ocorreu nos anos 50 e 60, mas ainda assim continuam tendo um número significativo e expressivo de descendentes japoneses. No total, são 80 questionários e 30 entrevistas. Primeiramente, será aplicado um questionário ao sujeito, em que ele poderá ser convidado para realizar uma entrevista de forma mais aprofundada. Resultados e Conclusão Constatou-se que a maioria dos sujeitos da pesquisa chegou a, pelo menos, iniciar sua vida escolar, completando ou não o Primeiro Grau. Nas entrevistas, foi 206 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA relatada a dificuldade em continuar os estudos depois da 4ª série do Primeiro Grau, em que ou eles tinham que trabalhar para ajudar os pais ou mudar para cidade, pois no sítio não havia 2º Grau. Comparou-se a quantidade de filhos que seus pais tiveram com a quantidade de filhos que eles (os nisseis) têm. Observou-se que 81% dos isseis tiveram de 5 a 10 filhos, em contrapartida, 89% dos nisseis entrevistados tiveram de 1 a 5 filhos, evidenciando uma diminuição pela metade na quantidade de filhos em relação a geração de seus pais. Vale ressaltar que nenhum dos pais dos entrevistados tiveram apenas 1 filho. A maioria dos entrevistados (70%) relatou ter feito escola japonesa (nihongogakko). Porém disseram que, por falta de prática, já esqueceram muito do que aprenderam, inclusive no que diz respeito à escrita. Esse dado é evidenciado pelos 63% dos sujeitos que disseram não dominar a língua japonesa, aprendida principalmente dentro de casa com seus pais ou avós, usando-a apenas para conversas informais com amigos, e pelos 9% que relataram saber escrever muito bem o japonês. Ainda quanto a esse aspecto, comentou-se amplamente sobre o fato de as escolas japonesas terem sido fechadas na época da Segunda Guerra Mundial, onde muitos tiveram que parar de estudar. A quantia de 76% dos nisseis disseram se considerarem brasileiros, principalmente por terem nascido no Brasil, sendo 5% o número representativo dos que se consideram japoneses e 19% dos que se consideraram tanto brasileiros como japoneses, relatando que suas raízes vieram do Japão, mas que preferem os hábitos e a liberdade brasileira. Quanto a religião Xintoísta, apenas 3 dos nisseis entrevistados disseram conhecer algo sobre o Xintô, sendo 63% o número daqueles que desconhecem essa religião, e 34% dos que pelo menos já ouviram falar de Xintoísmo. Grande parte dos sujeitos (84%) disse não ter o retrato do casal imperial em sua casa, porém argumentavam que seus pais tiveram e que tudo foi pego por conta da Segunda Guerra Mundial. No que diz respeito à religião, apenas 31% disseram pertencer a religião Católica, sendo, muitos deles, não praticantes. Outros 31% disseram se considerar tanto católicos quando budistas, freqüentando principalmente o oterá. Dentre os entrevistados, 10% disseram pertencer, concomitantemente, às religiões do Budismo, Seicho-no-ie e Catolicismo. A maioria dos sujeitos relatou ter sido batizada na Igreja Católica. A identidade se constrói dentro de uma cultura, não sendo determinada pela consciência, mas resultante de um processo de formação psíquica em suas internalizações das imagos primárias (FREUD, 1976). Portanto, o japonês descendente não tem onde buscar esses valores se não no passado, nos pais, e na cultura. 207 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A construção da identidade nipo-brasileira é uma questão que recebeu alguns avanços e retrocessos da geração nissei, na medida em que esses se apropriam ou não desta construção identitária. Nos casos mais extremos, eles desprezam ou ignoram a importância de se posicionar em relação a essa identidade, como se fosse possível ser um brasileiro qualquer, sem qualquer diferença de sua origem japonesa. Apesar de haver um discurso predominante de democracia étnica no Brasil, ainda falta vencer muitos obstáculos impostos pelo não-dito da maioria contra os demais, que se tornam discriminados e objetos de preconceitos. Dessa forma, o que nos interessa com o decorrer da pesquisa é buscar as contradições e tentar descobrir o grau de consciência que o nissei tem a respeito desse conflito identitário. Referências Bibliográficas FREUD, S. Psicologia de Massa e Análise do Eu. Obras Psicológicas Completas. Vol. XVIII. Buenos Aires: Amorrortu, tradução de José Luis Etcheverry, 1976. MORAIS, F. Corações Sujos. A História da Shindo-Renmei. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SBCJ. Uma epopéia moderna. 80 anos da imigração japonesa no Brasil. São Paulo: Hucitec, Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa, 1992. YAMASHIRO, J. A trajetória de duas vidas. Uma história de imigração e integração. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão, Centro de Estudos Nipobrasileiros, 1996. Butusgan, S. Os nisseis e sua busca de integração na sociedade brasileira. Presidente Prudente, 1973. Okubaro, Jorge J. O súdito. Banzai, Massateru! São Paulo, Terceiro Nome, 2006. Saito, H.; Maeyama, T. Assimilação e integração dos japoneses no Brasil. Petrópolis, Vozes, São Paulo, Editora da USP, 1973. Woortmann, E. F. Japoneses no Brasil/brasileiros no Japão: tradição e modernidade. Brasília, 1995. Disponível na internet. Acesso em fev. 2007. 208 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A pesquisa fundamental em psicanálise: um modelo para o tratamento da esquizofrenia Luciane Loss Jardim53 UNICAMP Resumo O presente trabalho se propõe a apresentar o modelo metodológico de pesquisa do projeto intitulado “O imaginário na esquizofrenia: sobre o fenômeno do transitivismo”. Trata-se de um trabalho de pesquisa em psicanálise que está sendo realizado no âmbito do Ambulatório de Psicologia Médica e Psiquiatria do Hospital de Clínicas da UNICAMP com pacientes com o diagnóstico de esquizofrenia. A pesquisa fundamental em psicanálise, metodologia proposta neste trabalho, está baseada na indissociabilidade entre procedimento de investigação, dispositivo e método de pesquisa, o que exige o estudo dos processos inconscientes. Nesta perspectiva, investigamos a partir deste projeto de pesquisa as vicissitudes do imaginário na esquizofrenia, a partir do fenômeno do transitivismo que ocorre na transferência na situação analítica de tratamento. Palavras Chaves: Psicanalise, pesquisa, tratamento, esquizofrenia. Abstract This study aims to present the model of methodological research project entitled: The imagery in schizophrenia: on the phenomenon of transitivism. This is a work of research in psychoanalysis that is being conducted within the Clinic of Medical Psychology and Psychiatry at the Hospital de Clinicas from UNICAMP with patients diagnosed with schizophrenia. The fundamental research in psychoanalysis, proposed methodology in this work, is based on the inseparable from the investigation procedure, device and method of research, which requires the study of unconscious processes. From this perspective, we investigated from this research project the variation of imagery in schizophrenia, from the transitivism phenomenon that occurs in the situation in the transfer of analytical treatment. Key words: Psychoanalysis, research, treatment, schizophrenia. Introdução Existem dois modelos de pesquisa em psicanálise sendo propostos pela comunidade psicanalítica e acadêmica que são independentes entre eles. O primeiro está baseado exclusivamente em critérios psicanalíticos, tal como a indissociabilidade entre procedimento de investigação, dispositivo e método de pesquisa, o que exige o estudo dos processos inconscientes. O segundo modelo de pesquisa, é a pesquisa feita por psicanalistas utilizando outros métodos que não os próprios da psicanálise e tendo a ambição de satisfazer critérios científicos 53 Doutora em Psicologia Clínica PUC/SP, Pós-Doutoranda e Pesquisadora Colaboradora no Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da UNICAMP e Professora do Curso de Psicologia da PUC-CAMPINAS. 209 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA exteriores com o objetivo de manter um intercâmbio de idéias e provas com outras disciplinas sobre a eficácia terapêutica da psicanálise. Nesta perspectiva destacam-se as idéias de Fonagy que presidiu a Comissão Permanente de Pesquisa (Stading Research Committee) da IPA (International Psycoanalitical Association) que defende uma sistematização dos “nossos conhecimentos de base de tal modo que uma integração com as novas ciências da mente venha a ser uma possibilidade, mas também para comunicar com os outros cientistas acerca das nossas descobertas e mostrar que o nosso tratamento é eficaz”.54 Não é do escopo deste trabalho realizar um debate entre esses dois modelos de pesquisas propostos. Todavia, estabelecer o contexto no qual se inscreve a pesquisa que realizo, a saber, no modelo que alguns autores, como Botella & Botella chamam de “pesquisa fundamental em psicanálise” 55, ou seja, que se dedica a aprofundar os conhecimentos relativos aos fundamentos da psicanálise. O projeto de pesquisa intitulado “O imaginário na esquizofrenia: sobre o fenômeno do transitivismo” consiste em proposta de pós-doutorado que está sendo realizado no âmbito do Ambulatório de Psicologia Médica e Psiquiatria do Hospital de Clínicas da UNICAMP. Este projeto tem como objetivos investigar a partir da psicanálise, baseado nas teorias de Sigmund Freud e Jacques Lacan, as vicissitudes do imaginário na esquizofrenia. Nesta perspectiva, a partir do fenômeno do transitivismo que ocorre na transferência na situação analítica de tratamento, pretende-se contribuir teoricamente na explicação sobre a formação corporal e a psicopatologia da esquizofrenia, e desta forma identificar intervenções terapêuticas que possibilitem uma restituição imaginária para o paciente esquizofrênico. Esta pesquisa está sendo realizada com pacientes que são encaminhados para o Serviço de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da Unicamp. Os pacientes que estão sendo encaminhados à pesquisadora, pelos psiquiatras, possuem uma hipótese diagnóstica psiquiátrica de Esquizofrenia segundo critérios do DSM IV-TR. A partir destes encaminhamentos estão sendo realizadas entrevistas preliminares para verificar a hipótese diagnóstica de psicose segundo critérios de diagnósticos orientados pela psicanálise. Aqueles pacientes que não cumprem estes critérios são encaminhados para outros profissionais que compõem o Serviço de Psicanálise do Ambulatório de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da UNICAMP. Após as entrevistas iniciais preliminares, o paciente psicótico é convidado a participar da pesquisa, formalizando seu assentimento pela assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (o qual, segundo o caso, poderá ser assinado por um responsável). Somente participarão do estudo aqueles que concordarem em assinar o termo de consentimento livre e esclarecido (em anexo). 54 Fonagy, Peter. Apanhar urtigas e mancheias, ou porque a pesquisa psicanalitica e tao irritante. In: Green A.(org.) Psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 335. 55 Botella,C.&Botella,S. A pesquisa em psicanalise. In: Green A. (org.) Psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 438. 210 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Após as entrevistas preliminares, o tratamento psicanalítico propriamente dito é iniciado com os pacientes. A previsão inicial é de que esse tratamento possa ocorrer durante os dois anos de duração desta pesquisa. No que concerne à apresentação dos resultados desta pesquisa, serão selecionados alguns “casos clínicos” que venham ao encontro das questões que foram levantadas pelo projeto. A Pesquisa Fundamental em Psicanálise A psicanálise, desde seu nascimento e durante seu desenvolvimento, sempre esteve sustentada por uma estrutura tríplice, a saber, a clínica, a pesquisa e a teoria. A partir dessa posição, a psicanálise é um método de investigação dos processos psíquicos inconscientes que se mostram inaccessíveis de outra maneira, é também um método terapêutico baseado na própria investigação destes processos e com os resultados obtidos a partir desta investigação, formula um corpo de conhecimento teórico sobre o funcionamento psíquico humano56. A pesquisa psicanalítica possui, portanto, esse dispositivo epistêmico, no qual a clínica, a pesquisa e a teoria são impossíveis de serem pensados separadamente. Esse dispositivo está calcado em paradigmas radicalmente opostos ao método experimental, ela difere epistemologicamente das ciências ditas naturais. O modelo de pesquisa em psicanálise a partir de seus fundamentos é o modelo de investigação postulado por Freud, no qual o tratamento e a pesquisa em psicanálise andam juntos, um é conseqüência do outro. Desta forma, considerase que a própria psicanálise é um procedimento de investigação, que tem como objeto de estudo os processos psíquicos inconscientes originados na sessão analítica. O modelo proposto por Freud guia a prática e esta permite re-construir o modelo, que por sua vez, estão vinculados a alguns conceitos considerados básicos na teoria psicanalítica. Freud57 definiu os pilares da teoria analítica, a saber, o inconsciente, a doutrina da resistência e do recalque, a sexualidade infantil e o complexo de Édipo. Estes são os fundamentos básicos da psicanálise e aqueles que não tem condições de subscrevê-los não estão incluídos no meio dos psicanalistas. A pesquisa em psicanálise se constrói a partir de “casos clínicos” e segue o modelo proposto por Freud na situação analítica de tratamento. A pesquisa em psicanálise inicia nas sessões de análise marcadas pelos dispositivos psicanalíticos que a sustentam e segue na pós-sessão, na esteira de uma elaboração do analista que pode vir a germinar um novo conhecimento sobre a teoria e ou a técnica psicanalítica. Segundo Safra58 “a psicanálise é um campo que investiga o particular para 56 Freud, Sigmund (1923 [1922]). Dois Verbetes de Enciclopédia. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. 57 Idem, ibiden. 58 Safra, Gilberto. O uso do material clinico na pesquisa psicanalítica. In: Silva, Maria Emila Lino (coord.) Investigação e Psicanálise. Campinas: Papirus, 1993, p.129. 211 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA tentar compor modelos abrangentes do psiquismo humano. (...) Ao iniciarmos uma investigação a partir de um material clinico, realizamos um recorte, que é delimitado pelo aspecto ou fenômeno que estamos interessados em pesquisar, e também pelas concepções teóricas que utilizamos em nosso trabalho”. No que concerne à metodologia da pesquisa em psicanálise, retomamos as funções das entrevistas preliminares e a conformação destas com a estrutura do tratamento propriamente dito a fim de esclarecer nossos procedimentos junto aos pacientes. O “ensaio preliminar” como nomeou Freud59 é ele próprio o início de uma análise e deve conformar-se às suas regras. A tarefa do analista é apenas de relançar o discurso do paciente, entretanto existem algumas razões para fazer estas entrevistas preliminares antes de empreender o tratamento com o paciente. Estas possuem três funções: estabelecimento do diagnóstico estrutural, a transformação do sintoma do paciente em sintoma analítico, ou seja, a função sintomal e a instituição da transferência, a ligação do paciente ao seu tratamento e à pessoa do analista. Segundo Quinet60, as entrevistas preliminares são divididas em dois tempos: um tempo de compreender e um de concluir, no qual o analista toma a decisão de aceitar ou não um paciente em análise. O fato de receber o paciente nas salas de atendimento do ambulatório não significa que este paciente tenha sido aceito para a pesquisa/psicanálise. Para se desencadear a análise a escolha deve advir de ambos os lados, do paciente e do analista. A função sintomal (sinto-mal) é a transformação do sintoma do qual o sujeito se queixa em sintoma analítico, é uma das funções das entrevistas preliminares. Essa função sintomal é responsável pela transformação da queixa numa demanda endereçada ao analista, condição em que o sintoma passe do estatuto de resposta ao estatuto de questão para o sujeito. O estabelecimento da transferência, outra função das entrevistas preliminares, é condição necessária para que uma psicanálise seja possível. Ela consiste na atualização da realidade do inconsciente, no duplo sentido do termo atualização: por em ato e presentificar, isto é, realizar no aqui e agora. Não é o analista que motiva ou condiciona a transferência, pois ela é função do paciente. Segundo Lacan61, os fenômenos da transferência fundamentam-se na função do sujeito suposto saber que consiste na suposição ou conjectura de que há um saber desconhecido que pode ser sabido. O que é essencial nesta noção é a suposição 59 Freud, Sigmund. (1913) Novas observações sobre a técnica da psicanálise: o início do tratamento. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. 60 Quinet, Antonio. As 4+1 Condições da Análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. 61 Lacan, Jacques. (1963-964) O Seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 212 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA de um saber que pode vir a ser sabido e que alguém pode franquear ao sujeito o acesso a esse saber. Portanto, o método de investigação na psicanálise se conforma ao tratamento proposto por esta, através de seus próprios pressupostos. A transferência é condição si ne qua non para que um tratamento psicanalítico ocorra e a conseqüente pesquisa sobre os processos inconscientes. A formalização da pesquisa psicanalítica surge no a posteriori do tratamento psicanalítico como uma construção do analista/pesquisador. Este trabalho se concretiza a través da escrita que o psicanalista produz de textos a parti de seu trabalho da escuta do inconsciente. Entretanto, essa formalização implica grandes dificuldades, pois implica fazer uso da teoria para dar conta do ato analítico sem cair no equívoco de usar o caso clínico para ratificar a teoria. A construção do “caso clínico” deve estar sustentada na prática clínica, entretanto o recorte clínico serve como alicerce para o avanço da teorização ou a própria reformulação desta. A teoria e a técnica oriundas da pesquisa psicanalítica, por sua vez, vai retro-alimentar a própria clínica. No que se refere ao projeto de pesquisa em questão, a metodologia psicanalítica se da a partir do estudo de caso de alguns pacientes e nesta abordagem pretende pensar em modelos abrangentes para o tratamento e a compreensão da esquizofrenia. Buscando identificar e elaborar dispositivos psicanalíticos de intervenção no tratamento das psicoses levando em conta aspectos fundamentais da constituição do sujeito esquizofrênico. A partir do estudo sobre o transitivismo na situação psicanalítica de tratamento procura-se investigar as vicissitudes do imaginário na esquizofrenia. Nesta perspectiva, buscam-se novas contribuições teóricas sobre formação do eu corporal e suas relações com a psicopatologia da esquizofrenia. Pretende-se identificar intervenções psicanalíticas que possibilitem para o sujeito uma restituição da sua função imaginária amarrada ao simbólico e ao real. Um projeto de pesquisa no âmbito universitário e dentro de uma de suas modalidades, a saber, a graduação e a pós-graduação geralmente têm um prazo pré-fixado para sua realização. A presente pesquisa se enquadra em um projeto de pesquisa de pós-doutorado e está planejada para ocorrer por dois anos. Um tratamento psicanalítico, normalmente, não tem um tempo prévio definido. Neste caso, o tratamento psicanalítico dos pacientes que se submeterão à pesquisa é pré-estabelecido e tem a duração de dois anos. Quanto à durabilidade do tratamento psicanalítico proposto por esta pesquisa cabem algumas considerações. O início de uma psicanálise ocorre pela associação livre do paciente, esta é a regra fundamental da psicanálise. Do lado do analista, não há regras, mas ética regida pelo preceito da atenção flutuante e do desejo do analista. Para o final de uma análise e conseqüentemente um fim para o vínculo transferencial estabelecido entre paciente e analista consideramos a seguinte proposição: o tempo da sessão deve incluir em si mesmo e a cada sessão a finitude da análise. Assim, cada sessão da análise contém o final da análise. O conceito de final de 213 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA análise proposto por Lacan62 está vinculada a própria duração da sessão, é uma função da análise na medida que ela é terminável. O final da análise deve estar inscrito em cada sessão e isso desde o seu início. Neste sentido, com a proposição antecipada de que o tratamento/pesquisa dos pacientes terminará em dois anos introduzimos a função da pressa análoga à introduzida por Lacan63 na própria sessão de análise, que tem por objetivo precipitar no sujeito o momento de concluir, para que o sujeito se declare. A presa é amiga da conclusão. Nessa perspectiva, o final desta pesquisa/tratamento está colocado desde seu início, e a cada sessão concluímos o tratamento. A tensão temporal presente na situação precipita o sujeito na conclusão e esta condição poderá em muitos casos favorecer o processo analítico, em outros acarretar alguma dificuldade no momento do término do processo e a desvinculação do paciente com a pessoa do analista e com o tratamento. Cada caso será tratado particularmente, portanto não temos nenhum procedimento padrão para dar conta do encerramento do tratamento/pesquisa realizado com os pacientes. Será dado um encaminhamento a cada caso dentro das condições éticas que regem o trabalho psicanalítico a partir das condições institucionais existentes. Portanto, os pacientes poderão ser encaminhados para outros colegas para dar “continuidade” ao tratamento. O fim do tratamento com a pesquisadora terá lugar no próprio percurso do tratamento, à medida que este surgir como questão para o paciente e será antecipado pela pesquisadora à medida que o tempo de conclusão da pesquisa de pós-doutorado chegar. Portanto, o corte do laço transferencial e costura com outros laços sociais possíveis para o paciente serão trabalhados no percurso e no final da pesquisa. Um Modelo para o Tratamento da Esquizofrenia Parafraseando Lacan64, um século de freudismo aplicado à psicose deixa seu problema ainda por repensar. A clínica das psicoses segue interrogando os diversos campos do conhecimento que se ocupam de seu tratamento. E se admitimos a existência de formações do inconsciente na produção fenomenológica dos sujeitos esquizofrênicos, a psicanálise tem a contribuir. A esquizofrenia nasceu no entrecruzamento da psiquiatria com a psicanálise. A partir da fenomenologia da esquizofrenia descrita por Bleuler, e seguindo a orientação teórica de Freud e de Lacan sobre as psicoses, depreende-se o quadro psicopatológico do o qual nos ocupamos nesta pesquisa. Em 1911, Bleuler estabelece as bases para o conceito nososológico e nosográfico do quadro que é conhecido hoje como esquizofrenia, no texto intitulado Dementia praecoux ou o 62 Lacan, Jacques (1945) O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 63 Idem, ibidem. 64 Lacan, Jacques. (1957-1958). O Seminário, livro 5. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. 214 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA grupo das esquizofrenias65. No mesmo ano, Freud publica seu famoso estudo sobre o presidente Schereber: Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia (Dementia paranoides)66. Nesse trabalho, Freud esclarece sobre os mecanismos psíquicos inconscientes presentes na psicose e delimita seu campo em relação ao da neurose. Freud empregou com mais freqüência o termo psicose, sem distinção do tipo clínico nos seus trabalhos, entretanto utiliza explicitamente o termo esquizofrenia no seu artigo sobre O Inconsciente (1915)67 e postula uma diferenciação entre os diferentes tipos de psicoses a partir de sua teoria da libido. Atualmente, os manuais psiquiátricos de diagnóstico como o DSM-IV e o CID-10 são voltados para uma descrição objetiva e sistemática dos sinais e sintomas partilhada pela maioria da comunidade psiquiátrica mundial. Os grandes quadros clínicos da psiquiatria são considerados como “transtornos”, termo escolhido explicitamente para manter o caráter de indefinição a priori das questões etiológicas referentes a esses diagnósticos. Já a psicanálise refere-se ao diagnóstico na perspectiva da organização da personalidade e na estrutura da subjetividade, tal como esta se apresenta em seu dispositivo próprio de avaliação: a situação analítica. Se a sintomatologia observada na clínica vem mudando de acordo com o discurso dominante na civilização, as estruturas clínicas permanecem relativamente estáveis e se conformam essencialmente em neurose, perversão e psicose. Para a psicanálise, o diagnóstico é estrutural, ou seja, é buscado no registro simbólico, aonde são articuladas as questões fundamentais do sujeito. Estas concernem à forma como cada um se depara com o sexo, o desejo, a lei, a angústia e a morte. Trata-se da posição do sujeito diante do complexo de Édipo, em relação à castração. Dessa forma, é importante que o analista/pesquisador saiba detectar a estrutura clínica do sujeito nas entrevistas preliminares, uma vez que a condução da análise do sujeito psicótico não poderá ter como referência o Nome-do-Pai. O diagnóstico diferencial estrutural pode ser feito por meio das três maneiras de passagem pelo Édipo, a saber, o recalque (Verdrängung) no neurótico, conservando o elemento inconciliável no inconsciente; o desmentido (Verleugnung) no perverso, que desmente a castração, conservando-a imaginariamente pela via do fetiche e a foraclusão (Verwerfung) no psicótico, que não conserva traço ou vestígio algum da castração, excluindo-a do âmbito do simbólico. No neurótico, o que institui a transferência é a suposição de um saber a um terceiro, que sabe o que lhe faz sofrer, que sabe o que lhe falta. No psicótico, também há um sujeito do saber que ele indaga, porém este saber não é suposto 65 Garrabé, J. Histoire de la schizophénie. Paris: Seghers, 1992. 66 Freud, Sigmund. (1911) Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementian Paranoides). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.Imago: Rio de Janeiro:1969. 67 Freud, Sigmind. (1915) O Inconsciente. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.Imago: Rio de Janeiro:1969. 215 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA a um terceiro, a um outro, ele é encarnado e presentificado. O laço social estabelecido a partir desta modalidade de transferência é o que, diferentemente à transferência neurótica, imporá o diagnóstico de psicose no diagnóstico estrutural. Nesta, o saber e o sujeito que dele se deduz não faltam na psicose, pelo contrário, nela a suposição se torna certeza. A certeza psicótica se traduz pelo não questionamento do psicótico de seus delírios, não há dúvida quanto a sua existência. Os sintomas para o psicótico adquirem um estatuto de certeza em decorrência da relação que este sujeito estabelece com a realidade68. Os delírios se apresentam como uma maneira de se sustentar no mundo, de semanter estável. A realidade do sujeito psicótico está na dependência da sua relação com o significante, sendo inicialmente sustentada por um tipo de suporte denominado bengala imaginária. Este suporte se apresentara ao sujeito, no registro imaginário, exatamente onde falta à significação. Durante o surto, a ausência deste apoio imaginário, leva o indivíduo a viver uma catástrofe subjetiva, uma experiência de despedaçamento, sendo possível uma reorganização da sua realidade, somente a partir da construção de uma idéia delirante (Quinet, 2000). No concerne a sua sintomatologia corporal, para o psicótico, a imagem do corpo próprio é sentida como se fosse um fantasma que o habita, pois percebe sensações de que lhe são alheias, como se estas fossem de um outro corpo. Neste sentido podemos situar o caso de uma paciente esquizofrênica que dizia que seu corpo era “tomado pelas doutoras para curar os pacientes”. Esta paciente incorporava os sintomas de outras internas com as quais convivia em uma instituição, e passou a formular esse delírio após alguns meses do início do tratamento psicanalítico. O eu da paciente (con)fundia-se, em alguns momentos com sua analista e em outras situações assumia todo o colorido formal de outras pacientes da instituição. A paciente chamava sua analista de “doutora”, assim como se referia a si mesma como “doutora”, chamando de “suas pacientes” as suas colegas de internação. Em certa ocasião, a paciente esquizofrênica sentiu todas as dores de parto de uma outra paciente que estava grávida e parturiente. Trata-se da captura imaginária pela imagem do outro, de uma impossibilidade de separação entre o eu e o outro na constituição imaginária do sujeito. É nesse sentido que utilizamos, a noção de transitivismo: “ausência entre o interior e o exterior, de onde vem a confusão dos vetores centrípeto e centrífugo da experiência vivida” 69. Na psicose, a constituição do eu permanece no seguinte enunciado: “o outro sou eu”, é o que Lacan70 vai chamar de transitivismo imaginário, próprio também da criança que bateu no seu semelhante e diz, sem mentir: “ele me bateu”. Pois, para ela é exatamente a mesma coisa. Portanto, o imaginário na psicose não funciona como o imaginário na neurose; para o psicótico não somos semelhantes. Na neurose é necessária uma segunda operação, de separação, 68 Lacan, Jacques. (1955-1956) O Seminário, livro 3. As Psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1988. 69 JALLEY, E. Freud, Wallon, Lacan: l’enfant au miroir. Paris: Epela, 1998, p. 45. 70 Lacan, Jacques. Op. cit. 216 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA que permite a volta para que se formule a consigna: “o outro não sou eu”. O registro do imaginário no sujeito psicótico opera em um primeiro tempo no que concerne à constituição do eu e à imagem que o sujeito tem de si mesmo. Lacan71, no texto Homenaje a Marguerite Duras, del rapto de Lol V. Stein, caracteriza a relação imaginária na psicose, descrevendo uma identificação aderida ao outro, uma captura pela imagem do outro sem exclusão recíproca, o que é próprio da clínica com pacientes esquizofrênicos. Na novela de Duras72, a primeira cena transcorre em um salão de baile e tem como personagens principais, uma jovem chamada Lol; seu namorado, Michael; a amiga de Lol, Tatiana e uma intrigante mulher, Anne-Marie Stretter. Nessa cena, Michael convida a intrigante mulher para dançar e Lol permanece toda noite olhando a dança de seu noivo com essa mulher, deslumbrada e sem mostrar nenhum sinal de sofrimento. No final do baile, quando o casal sai do salão, Lol os segue com seu olhar e, quando estes desaparecem, cai desvanecida no solo. Imediatamente entra em um mutismo, permanecendo trancada por algumas semanas em seu quarto sem encontrar nenhuma palavra para dar conta do vazio que experimenta. Quando o casal desaparece, irrompe o desvanecimento subjetivo de Lol, momento típico do desencadeamento de uma crise psicótica. Isto ocorre porque falta uma referência simbólica que separe Lol da imagem do outro, para que seu corpo não caia por seu peso. Somente isso permitiria que a inexplicável mulher que seu namorado tinha nos braços fosse, para ela, outra mulher. No momento da cena, Lol e Anne-Marie formam apenas uma mulher, um só corpo abraçado pelo amor Michael. Lol está presa em um transitivismo, tempo de inclusão da protagonista na condição de ser humano, mediante uma identificação maciça à imagem de outro. A posição do sujeito na estrutura imaginária, ou seja, enquanto eu ideal, só é concebível se sustentada por uma referência que se encontra além do imaginário, no nível simbólico. Nas palavras de Lacan “ele parte do referencial imaginário – que é, de certo modo, instintivamente pré-formado na relação dele mesmo com seu próprio corpo -, para enveredar por uma série de identificações significantes cuja direção é definida como oposta ao imaginário [...]”.73. Esta nova formação concerne ao ideal do eu e se faz através da intervenção da função paterna. A crise psicótica, geralmente, irrompe quando o sujeito recebe uma injunção, um chamado peremptório, ao significante do Nome-do-Pai, o qual, na estrutura psicótica, está foracluído. Na posição subjetiva da psicose, o apelo ao Nome-doPai encontra, “não a ausência do pai real, pois essa ausência é mais do que 71 Lacan, Jacques. Homenaje a Marguerite Duras, del rapto de Lol V. Stein. In: Intervenciones y Textos 2. Buenos Aires: Manantial, 1988. 72 Duras, Margueritte. O Deslumbramento (La ravissement de Lol V. Stein). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 73 Lacan, Jacques (1957-1958). Op.cit., p.235. 217 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA compatível com a presença do significante, mas a carência do próprio significante” 74. Na crise psicótica, portanto, trata-se da foraclusão do saber paterno sobre a operação de separação, da Verwerfung do significante do Nomedo-Pai. Nas palavras de Lacan, “a Verwerfung será tida por nós, portanto, como a foraclusão do significante. No ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica” 75. Portanto, aquilo que foi rejeitado no simbólico, a saber, o significante paterno, reaparece no real, de forma alucinatória, por exemplo, em algumas psicoses. Na alienação imaginária na psicose, particularmente, na esquizofrenia, encontramos o sujeito capturado a este fenômeno fundamental do transitivismo, no qual o eu é o outro como nos revela a personagem Lol V. Stein de Marguerite Duras. O transitivismo é um fenômeno que surge em certos momentos do desenvolvimento psíquico, após o estádio do espelho76, caracterizado por este momento de báscula em que as ações da criança e do seu semelhante se equivalem. A imagem da forma do outro é assumida pelo sujeito, é no movimento de báscula com o outro que o sujeito se apreende como corpo. Nessa mesma perspectiva, o que está no sujeito como desejo originário, não constituído e confuso, é invertido no outro e no qual ele aprenderá a reconhecê-lo. Nas palavras de Lacan “o sujeito está mais próximo da forma do outro do que do surgimento de sua própria tendência. Ele é originariamente coleção incoerente de desejos – aí está o verdadeiro sentido da expressão corpo despedaçado – e a primeira síntese do ego é essencialmente alter ego, ela é alienada”.77 Por conseguinte, o fenômeno do transitivismo encontra-se instalado na relação transferencial entre paciente e analista e o laço imaginário entre estes não está regulado pelo fantasma. Desta forma, se coloca alguma questão norteadora desta pesquisa: Como produzir uma palavra que possa ser incorporada e que possa constituir um eu que não é um outro? Como articular o simbólico ao real na cena analítica para o paciente psicótico que introduza uma separação entre o eu e o outro? Como amarrar o simbólico ao real no imaginário da cena analítica? Desta forma, busca-se, através deste estudo, investigar as vicissitudes da função imaginária do sujeito esquizofrênico na situação psicanalítica de tratamento. Para tanto, pretende-se descrever de que forma ocorre o fenômeno psicopatológico do transitivismo, tal como este se apresenta na transferência. Por extensão, esperase que tal estudo permita uma elucidação da direção do tratamento no sentido da restituição do eu e da imagem corporal do paciente esquizofrênico. 74 Lacan, Jacques. (1957-1958) Op. cit., p.563. 75 Idem, p.564. 76 Idem, ibidem. 77 Lacan, Jacques. (1955-1956). Op. cit. 218 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Referências Bibliográficas Botella, C. & Botella, S. A pesquisa em psicanalise. In: Green A. (org.) Psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2003. Duras, Marguerite. O Deslumbramento (La ravissement de Lol V. Stein). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. Freud, Sigmund. (1911) Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementian Paranoides). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago: Rio de Janeiro:1969. _______________.(1913) Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise I). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. _______________.(1915). O inconsciente In: Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. _______________. (1923 [1922]). Dois Verbetes de Enciclopédia. In:Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Fonagy, Peter. Apanhar urtigas e mancheias, ou porque a pesquisa psicanalitica e tao irritante. In: Green A.(org.) Psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 335. Garrabé, J. Histoire de la schizophénie. Paris: Seghers, 1992. JALLEY, E. Freud, Wallon, Lacan: l’enfant au miroir. Paris: Epela, 1998 Lacan, Jacques. (1945) O tempo lógico e asserção da certeza antecipada In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. ____________.(1955-1956). Seminário, livro 3 As Psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. _______________.(1957-1958). O Seminário, Livro 5, As formações do inconsciente. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999. ______________. (1963-964) O Seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. _______________. Homenaje a Marguerite Duras, del rapto de Lol V. Stein. In: Intervenciones y Textos 2. Buenos Aires: Manantial, 1988. Quinet, Antonio. As 4+1 Condições da Análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. Safra, Gilberto. O uso do material clinico na pesquisa psicanalítica. In: Silva, Maria Emila Lino (coord.) Investigação e Psicanálise. Campinas: Papirus, 1993. . 219 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Mulheres e religião em conflito: estudo das condições da mulher trabalhadora, seus conflitos e sua religiosidade Magali Scopel de Araujo Calvino Camargo Luciane dos Santos Iriyoda Centro Universitário de Maringá – CESUMAR Resumo: Atualmente a mulher passa a representar, cada vez mais, uma importante fonte de sustento econômico da família. Entretanto, não existe uma divisão igualitária dos deveres domésticos, o que inclui o cuidado com os filhos. A igreja é uma das principais mantenedoras desses valores. Sendo assim, este trabalho buscou levantar dados relativos às relações de poder no contexto familiar e os conflitos relacionados aos papéis de mulher religiosa em relação ao trabalho, família, cuidados com os filhos e responsabilidades domésticas, visando a cooperação para um redirecionamento do discurso religioso atual. A pesquisa foi realizada com 10 mulheres, pertencentes a diferentes igrejas evangélicas há mais de 02 anos, residentes na cidade de Maringá, Estado do Paraná, profissionais ativas em diversas áreas, com pelo menos 01 filho. A coleta de dados foi efetuada através de entrevista semi-estruturada, utilizando-se gravador de voz. Numa análise qualitativa, os resultados mostram que de um universo de dez mulheres, seis dessas gostariam de ser donas de casa. Duas situações de conflito se apresentaram, em que a primeira refere-se a necessidade financeira, que leva a mulher para o trabalho, sendo que a sua convicção religiosa lhe diz que o seu papel deve ser desempenhado na esfera doméstica. Já a segunda surge nas mulheres que não abrem mão da realização pessoal com o trabalho, mas sofrem com as exigências da família. Uma terceira situação foi observada onde não há conflito, neste caso, para apenas 01 mulher. Palavras-chave: Mulher; Religiosidade; Trabalho; Questões de gênero. Introdução Nos dias atuais, além do tempo dispensado ao trabalho doméstico e ao trabalho remunerado, a mulher se vê obrigada a cumprir um outro turno nas escolas e universidades, buscando qualificações profissionais, para conseguir superar a competição no mercado de trabalho. Entretanto, constatam-se, através de pesquisas, que não existe uma divisão igualitária dos deveres domésticos, incluindo os cuidados com os filhos. (BIASOLI-ALVES, 2000; FLECK, WAGNER, 2003; KUBLIKOWSKI, MACEDO, 2001). Em virtude disso, mães que não têm tempo para acompanhar seus filhos no cumprimento de seus deveres, estão apresentando irritação e impaciência, pois querem que eles cumpram com suas tarefas sem incomodá-las (BIASOLI-ALVES, 2000). Quando eles adoecem, essa situação contribui para aumentar o sentimento de culpa pela sua ausência (BIASOLI-ALVES, 2000; FLECK, WAGNER 2003). 220 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O avanço tecnológico também contribui para a criação de novas necessidades. Para satisfazer o ideal consumista, é absolutamente necessário que a mulher coopere financeiramente com a família (LIPOVETSKY, 2000). Mesmo com essa cooperação, para muitas famílias, a renda mensal ainda é insuficiente. Sendo assim, a dificuldade financeira têm sido apresentada como causa de estresse e conflito conjugal. Nas casas de menor poder aquisitivo, geralmente, existe um baixo nível de coesão entre casais, atribuído, também, ao fato da mãe passar muito tempo fora de casa e, quando está presente, volta mais sua atenção aos filhos do que ao esposo (FLECK, WAGNER, 2003). Em alguns seguimentos profissionais, as condições dadas a mulher têm contribuído para o agravamento dos conflitos que ela tem vivido. Pesquisa realizada com analistas de sistemas constatou que os homens predominam nos cargos de chefia, e na análise de saúde dos trabalhadores, as mulheres sofrem maiores incômodos causados pela postura desconfortável, maior exposição ao computador, maior freqüência de sintomas visuais, musculares e relacionados a estresse, maior insatisfação com o trabalho, maior fadiga física e mental (ROCHA, DEBERT-RIBEIRO, 2001). Os resultados mostram que as mulheres têm ocupado os cargos menos significativos e os homens ocupam os principais. Essas, mesmo protegidas por acordos registrados e por negociações não sindicais, recebem reajustes menores do que os homens. Observam-se casais que trabalham em parcerias, onde os homens admitem o trabalho das esposas, entretanto, elas não têm acesso aos lucros (VIEIRA, 2005). No México, por exemplo, as mulheres têm mais dificuldade de conseguir trabalho, principalmente as casadas com filhos pequenos (CRUZ, NORIEGA, GARDUNO, 2003). Com relação aos meios de comunicação, esses trabalham a imagem da mulher ideal como a mulher do lar. Isso contribui para aumentar a sensação de culpa que a mulher tem pelo fato de ter que se ausentar dos filhos e esposo. (POSSATTI, DIAS, 2002). A igreja é uma das principais mantenedoras desses valores, além de, em seus discursos, enfatizar acerca das restrições e temores, ligados ao pecado da desobediência (BIASOLI-ALVES, 2000). Diante desta realidade, levanta-se como hipótese que, na sociedade atual, inclusive religiosa, prevalece o discurso masculino, que contribui para a dominação do homem sobre a mulher, intensificando situações de sofrimento psico-social e por isso pode transformarse em empecilho para o desenvolvimento e emancipação da mulher. O objetivo deste trabalho é estudar as relações de poder no contexto familiar influenciado por valores e ideais religiosos evangélicos e os conflitos relacionados aos papéis de mulher em relação ao trabalho, família, cuidados com os filhos e responsabilidades domésticas. Desta forma, cooperando para um redirecionamento do discurso religioso e possíveis contribuições para uma reflexão sobre as práticas pastorais na atualidade, bem como a avaliação da necessidade de desenvolvimento de programas específicos de atenção pastoral às mulheres, abordando os seus conflitos sociais e religiosos no cotidiano do trabalho e da família. 221 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Material e métodos Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que investiga valores, crenças, atitudes, opiniões, relação de poder no contexto familiar e os conflitos relacionados aos papéis da mulher religiosa em relação ao trabalho, família, cuidados com os filhos e responsabilidades domésticas. Também discute fenômenos e processos subjetivos específicos de um grupo composto de 10 (dez) mulheres, pertencentes a diferentes igrejas evangélicas há mais de 02 (dois) anos; residentes na cidade de Maringá, Estado do Paraná; profissionais ativas em diversas áreas; com pelo menos 01 (um) filho. Suas idades variam de 38 a 46 anos, sendo que 01 (uma) possui o ensino fundamental incompleto, 03 (três) o nível médio, 01 (uma) curso superior incompleto, (04) quatro Lato sensu e 01 (uma) Stricto sensu. A coleta de dados foi efetuada individualmente em suas residências e locais de trabalho, através de entrevista semi-estruturada, utilizando-se gravador de voz, com o objetivo de colher dados relativos às relações de poder no contexto familiar e os conflitos relacionados aos papéis de mulher religiosa em relação ao trabalho, família, cuidados com os filhos e responsabilidades domésticas. O levantamento de dados foi executado mediante parecer favorável do Comitê Permanente de Ética em Pesquisa do CESUMAR (COPec), sob o número 308/2006. Resultados e discussão A análise qualitativa dos dados, permitiu a categorização dos sujeitos em 03 (três) grupos distintos: GRUPO A – SUBMISSÃO INCONDICIONAL. Mulheres que acreditam na submissão incondicional ao esposo. Neste grupo encontram-se 03 (três) mulheres, que afirmam que o homem deve ser o “o sacerdote do lar” e a mulher “a ajudadora”, declaram que o esposo tem que ser aquele que ensina, sendo o exemplo dentro de casa, o sacerdote do lar em tudo. Seu comportamento, em termos de trabalho, surge na opção em trabalhar exclusivamente nas atividades do lar, enfatizando que seu papel é daquela que faz o pão e a ceara. Em relação ao discurso religioso, para este grupo, o homem deve ser “o cabeça” da mulher porque, segundo elas, o homem é mais capaz psicologicamente. Como essas mulheres estão trabalhando por necessidade econômica; possivelmente o conflito esteja no fato de que trabalhar fora de casa está em desacordo com suas convicções religiosas e com o seu papel de esposa e mãe. As mulheres desse grupo concordam com o discurso religioso de suas igrejas. GRUPO B – SUBMISSÃO CONDICIONAL. Mulheres que acreditam na submissão condicional ao esposo. Neste grupo encontram-se 3 (três) mulheres, que acreditam que o homem deve ser “o líder espiritual” e a mulher “a ajudadora”. Em termos de trabalho, duas optam por ficar em casa e uma por trabalhar fora, esta última, desde que seja por realização pessoal. Com relação ao discurso religioso, seu entendimento é de que a mulher seja submissa ao esposo, desde que amada e respeitada. O poder do homem parece predominar em termos religiosos (líder espiritual), contudo, no que se refere ao cotidiano familiar e 222 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA conjugal, a mulher tem o direito de ser amada e respeitada. Quanto às questões relacionadas à escolha profissional da mulher, ela deve ter autonomia para decidir. Os conflitos surgem em duas, possivelmente pelas cobranças da família sobre os afazeres domésticos e uma do filho em relação a sua ausência. Duas mulheres desse grupo concordam com o discurso religioso de suas igrejas e outra não. GRUPO C – NÃO A SUBMISSÃO E SIM A IGUALDADE. Mulheres que acreditam que homens e mulheres são iguais e por isso não deve haver submissão. Neste grupo encontram-se 04 (quatro) mulheres. Para elas homem e mulher dividem papéis com igualdade de direitos e responsabilidades. Com relação ao trabalho fora de casa, no geral, a mulher não abre mão, com exceção de uma, que ficaria em casa exclusivamente para resgatar o relacionamento com o filho. No que se refere ao discurso religioso, entendem que a mulher é tão capaz quanto o homem, desta forma, não há porquê existir submissão. O conflito parece estar nas cobranças de esposo e filhos com relação ao tempo dispensado a eles, com exceção de uma que não apresenta conflito. Nesse grupo apenas uma mulher não concorda com o discurso religioso de sua igreja. Dentro de um universo de 10 (dez) mulheres religiosas e trabalhadoras pesquisadas, 06 (seis) delas gostariam de ser donas de casa, isto é, ficar em casa cuidando dos filhos e dos afazeres domésticos. Dessas 06 (seis), 04 (quatro) trabalham exclusivamente por necessidade de sobrevivência, pois acreditam que a família não pode ser sustentada sem sua contribuição, 01 acredita que a família poderia ser sustentada precariamente e 01 acha que essa pode ser sustentada sem sua ajuda porque os filhos começaram a trabalhar, o que ocorreu recentemente. Numa análise dos sujeitos, surgem dois tipos de situações de conflito: o primeiro seria o conflito pessoal, que está relacionado à necessidade financeira da família, a qual leva a mulher para o trabalho, sendo que a sua convicção religiosa lhe diz que o seu papel deve ser desempenhado dentro da esfera doméstica. O segundo conflito surge nas mulheres que não abrem mão da realização pessoal com o trabalho, mas sofrem com as exigências da família em relação aos afazeres domésticos e a ausência do lar. Uma terceira situação foi observada onde não há conflito, neste caso, para apenas uma mulher, as realizações familiar e religiosa não são opostas à realização profissional. CONCLUSÃO Chegamos a conclusão que dentro de um universo restrito de dez mulheres, seis gostariam de ser donas de casa, sendo que dentre essas , quatro delas trabalham exclusivamente por necessidade financeira, o que demonstra uma situação de conflito intenso. Constata-se também que oito mulheres concordam com o discurso religioso de duas igrejas. Isso demonstra que a Igreja é uma instituição que exerce grande influência sobre a mulher, no que se refere à visão que ela tem de si mesma em relação ao seu papel familiar. Para a maioria das 223 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA mulheres entrevistadas o papel da maternidade se sobrepõe ao papel profissional. Sugerimos, então, que nossa pesquisa possa suscitar outras a respeito do tema em questão. Uma sugestão para esta continuidade seria um estudo com mulheres religiosas que não trabalham fora, isso contribuiria para uma melhor compreensão do contexto em que vivem. Referências: BIASOLI-ALVES, Zélia Maria Mendes. Continuidades e rupturas no papel da mulher brasileira no século XX. Psic.: Teor. e Pesq., set./dez. 2000, vol.16, no.3, p.233-239. CRUZ, Adriana Cecilia, NORIEGA, Mariano e GARDUNO, María de los Ángeles. Wage labor, housewifery, and health: qualitative and quantitative differences between men and women. Cad. Saúde Pública, jul./ago. 2003, vol.19, no.4, p.1129-1138. FLECK, Ana Cláudia e WAGNER, Adriana. A mulher como a principal provedora do sustento econômico familiar. Psicol. estud., 2003, vol.8, no.spe, p.31-38. KUBLIKOWSKI, Ida e MACEDO, Rosa Maria S. de. Trabalho, família e a mulher na meia idade: velhos dilemas em novos contextos. Psicol. rev; nov.2001, 12 (2): pg. 99-107. LIPOVETSKY, Gilles. A Terceira Mulher: permanência e revolução do feminino. Tradução: Maria Lucia Machado. S. Paulo: Companhia das Letras, 2000 POSSATTI, Izabel Cristina e DIAS, Mardônio Rique. Multiplicidade de papéis da mulher e seus efeitos para o bem-estar psicológico. Psicol. Reflex. Crit., 2002, vol.15, no.2, p.293-301. ROCHA, Lys Esther e DEBERT-RIBEIRO, Myriam. Trabalho, saúde e gênero: estudo comparativo sobre analistas de sistemas. Rev. Saúde Pública, dez. 2001, vol.35, no.6, p.539-547. VIEIRA, Josênia Antunes. A identidade da mulher na modernidade. DELTA, 2005, vol.21, no.spe, p.207-238. 224 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA QUE AMORES SÃO ESSES? Maria Alves de Toledo Bruns78 Universidade de São Paulo “Amar é também idealizar o eleito” Juan-David Nasio Resumo: Parto da premissa de que a ruptura na relação amorosa acentua a carência que impulsiona a pessoa a buscar satisfação. Segundo Nasio (1997), carência é um pólo organizador do desejo, só há desejo onde há falta. Compreender que é o amado que, paradoxalmente, assegura a indispensável insatisfação, para continuar a desejá-lo é um árduo aprendizado. Para algumas pessoas, a perda do objeto amado é tão intensa que elas não conseguem abrir espaço para novos amores. Outras abrem espaço, casam, têm filhos, mas o eleito amado do passado continua vivo ao longo de toda sua existência. Outras, por não suportarem a perda do(a) amado(a) se alucinam e matam literalmente o(a) amado(a). Que amores são esses? Com que trama é tecida esse tipo de laço amoroso? Participaram dessa pesquisa 15 homens e 15 mulheres com idade entre 30 e 70 anos, grau de escolaridade médio e superior e de todas as classes sociais. Seus depoimentos foram submetidos aos passos do método fenomenológico e interpretados pela perspectiva psicanalista de Nasio (1997), entre outros. Os depoimentos desvelam a intensidade do prazer erótico. Eles mantêm acesa a presença imaginária do ser amado, seja religando o passado ao presente e ao futuro, seja como um espelho interior a refletir a própria imagem. A dor desencadeada pela perda da pessoa amada se expressa por sinais corporais: o corpo fala, e fala da experiência da angústia, da solidão e da desmotivação, por não conseguir atribuir sentido e significado à própria existência, diante da ausência do ser amado. Palavras-chave: Fenomenologia, Psicanálise, Separação. Abstract What kind of love is this? I derive from the premise that the rupture in a love relationship accentuates the feeling of neediness, which motivates one to seek for satisfaction. According to Nasio (1997), neediness is what desire originates from; desire can only be found where there is neediness. The challenge lies in understanding that it is the beloved one who, paradoxically, guarantees the indispensable dissatisfaction, so one is able to continue to long for him/her. For some, the loss of the beloved object is so intense they cannot manage to open up the door to new love experiences. Others can manage to do that and get married, have children, but the beloved one from the past remains 78 Líder do grupo de Pesquisa Sexualidade vida-USP/CNPq; [email protected] / www.sexualidadevida.com.br 225 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA alive throughout their life. Others, yet, unable to overcome the loss of the beloved object lose their mind and literally kill their beloved one. What kind of love is this? What kind of fiber is this love bond woven with? Fifteen men and 15 women between 30 and 70 years old, of high school and college education, and of various social classes participated in this study. Their testimony was submitted to the phenomenological method and interpreted through the psychoanalytic perspective of Nasio (1997), among others. Their testimonies reveal the intensity of the erotic pleasure. They maintain the light of the imaginary presence of the beloved one. The pain triggered by the loss of the beloved one is expressed through the body: the body talks, and talks of experiencing anguish, loneliness, and demotivation for not being able to make any sense or meaning out of its own existence, without the beloved one. Key words: Phenomenoly, Psychoanalysis, Separation. Para a mitologia grega, Eros é o deus do amor, da vida e do movimento, para os poetas é a magia da vida materializada. Magia que pode nos colocar diante de situações dolorosas, especialmente quanto à chegada, permanência e partida de Eros. Isto porque ele chega quando não esperamos e parte quando ainda clamamos por sua permanência. Outras vezes, parte deixando a impressão de que se foi tarde. Nesse descompasso entre sua chegada e sua partida, os sonhos e as fantasias de amor eterno são solapados pelos ventos da impotência, que nos desestabilizam e nos arremessam de encontro à crua realidade – a evidência de que “a estabilidade e a segurança tão apregoadas e almejadas pela fidelidade habitam tão somente o mundo do faz-de-conta, ou seja, os reinos encantados – onde vivem os príncipes e as princesas” (Bruns, 2001). É esse descompasso que se constata, de modo geral, nos relacionamentos, quando um dos parceiros se encontra pronto para partir e o outro não percebe as evidências, os sinais que indicam sua partida. E, quando os percebe, ainda assim, precisa de tempo para processar a perda do(a) amado(a). É que o seu tempo de partida ainda está para chegar (Bruns, 2001). Nesse desencontro, a realidade da experiência amorosa registra momentos de desencantos e sofrimento. Afinal, a ruptura na relação amorosa acentua a carência – o vazio ontológico –, que impulsiona a pessoa a buscar satisfação. Carência, vista pela perspectiva de Nasio (1997), é um pólo organizador do desejo, só há desejo onde há falta. Compreender que é o amado que, paradoxalmente, assegura a indispensável insatisfação, para continuar a desejá-lo é um árduo aprendizado. As lembranças ultrapassam as fronteiras do tempo cronológico e tornam-se propriedades do sujeito. O inconsciente é atemporal e a experiência amorosa, certamente, foi vivida, em ritmo vibrante, prazeroso e intenso. A intimidade erótica nesse tipo de experiência é imantada por um colorido extraordinário, matizado pelas excitações, registradas, internalizadas e guardadas na memória inconsciente. 226 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A dor da perda do amado é explicitada por Nasio (1997) como sendo uma fratura da fantasia que mantém acesa a ligação amorosa, ou seja, a dor psíquica provém da hipertrofia da imagem do eleito. Nesta pesquisa, busco compreender: Que amores são esses que nem o tempo, com sua incontestável força, e nem outros amores conseguem ressignificar e/ou desimantar? Que amores são esses que permanecem, assim como uma “impressão digital”, invisíveis a olho nu, contudo, marcas límpidas, gravadas em nossas memórias? Como e por que isso ocorre? Com que trama é tecida esse tipo de laço amoroso? O que faz esse amor ser tão especial? Para algumas pessoas, a perda do objeto amado é tão intensa que elas não conseguem abrir espaço para novos amores. Outras abrem espaço, casam, têm filhos, mas o eleito amado do passado continua, tal como um vulcão, a jorrar suas lavras incessantemente ao longo de toda sua existência. Outras, ainda, por não suportarem a perda do(a) amado(a) se alucinam e matam literalmente o(a) amado(a). Como nos dizeres de Nasio (1997): “O que dói não é perder o ser amado, mas continuar a amá-lo mais do que nunca, mesmo sabendo-o irremediavelmente perdido”. Diante dessa realidade, entrei em contato com pessoas conhecidas e as convidei para participar dessa pesquisa, que tem como objetivo entender a experiência/processo desse tipo de relação amorosa para, assim, poder compreender os significados e os sentidos que elas atribuem a tal experiência. Para iniciar o diálogo entre a pesquisadora e o(a) colaborador(a) utilizei a seguinte pergunta: Na sua historia de vida, você teve uma experiência amorosa que continua ressoando no presente? Descreva como foi e como tem sido conviver com essa experiência amorosa no decorrer de sua vida. Para minha surpresa, esse tema foi passando de boca em boca e, nesse momento, conto com mais de 30 histórias de amor vividas por homens e mulheres de todas as idades, classes sociais, religiões, partidos políticos, raças e orientações sexuais. Mesmo em tempos de amores líquidos, efêmeros, esses amores continuam “sólidos” no decorrer de toda uma existência. Que amores são esses? Apresento nesse momento análise parcial dos relatos, que foram submetidos aos passos do método fenomenológico e interpretados pela perspectiva psicanalista de Caruso (1981), Barthes (1991), Nasio(1997), entre outros que focam seus olhares nesse fenômeno. Seguem fragmentos de discursos reveladores da singularidade e da significância atribuídas à experiência amorosa, vivida por homens e mulheres. “Nosso relacionamento terminou há cinco anos. Sofri muito mesmo. Fiquei doente. Terminou? Não sei... até hoje ele está presente. Sabe! Vivemos intensamente, foi forte demais. Às vezes sinto o cheiro de seu perfume e faz 5 anos que não o vejo.” Colaboradora 1, 30 anos, profissional da saúde, casada, uma filha. 227 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A separação dói! Sempre? Muito? É suportável? Por que o desejo por tanto tempo? “Antes dela, eu tive outros amores... e tenho até hoje, mas não consigo esquecê-la, esse é o meu segredo, às vezes, quando ouço uma música, ou simplesmente um andar ou um gesto de outra mulher, esses desencadeiam lembranças e saudades de um tempo que em fui muito feliz. Separamos e eu sofri muito. Ela também. Foi muito difícil assumir outro relacionamento. Mas... eu não tive coragem para assumir uma mulher independente. Ela era independente demais e eu tive medo, nessa época eu tinha 25 anos. Fui influenciado pela minha mãe que dizia: “Essa moça é livre demais, ela não será uma boa esposa”. Segui esse conselho e voltei com a noiva, me casei, tenho filhos e segui o curso da vida. Hoje estou velho e avalio o quanto construí uma vida sem tesão e sem amor.” Colaborador 2, 55 anos, profissional liberal, casado, três filhos. “Tivemos um relacionamento há mais de 20 anos. Hoje, sou casada, realizada profissionalmente, mas ela continua, como uma sombra, a seguir meus passos. Às vezes, sinto seu perfume, seu jeito de amar.” Colaboradora 3, 49 anos, empresária, casada, três filhos. “Após prestarmos o vestibular, tivemos que seguir nossas escolhas profissionais e ela foi estudar a mais de 3 mil km da minha universidade. Fui visitá-la muitas vezes, mais fui definhando... sentia tanta falta dela que fiquei doente por sua ausência... Éramos um inteiro, estudávamos juntos, passeávamos e fazíamos planos para continuarmos nossa vida. Lembro-me que sofremos muito, muito mesmo, na despedida. Casei com outra mulher, tive filhos, me separei e continuo amando-a. Sabe... que há uns 10 anos atrás eu não resisti, utilizei todos os meios e consegui entrar em contato com ela. Telefonei, e ao ouvir sua voz, não acreditava que era verdade. Pensei: estou vivendo um sonho! Marcamos um encontro e passamos um final de semana juntos. Foi como se o tempo não tivesse passado. Revivemos tudo e retomamos o curso do tempo, com suas ciladas. Ela é uma famosa profissional, casou, é mãe. Pensamos em retomarmos a nossa história, mas na nossa história tem muitas outras histórias – filhos, esposa, marido, trabalho, trabalho. Mexer nisso tudo? Como mudar tudo??? Chegamos à conclusão que seria impossível. Passados mais 3 anos ela me ligou propondo um novo encontro... Mas os compromissos profissionais naquele dia impediram-me de ir ao seu encontro. Sofri muito, mas como sair de uma hora para outra? Meu trabalho exige planejamento para poder ausentar-me. Depois dessa tentativa mantemos o silêncio. Sei que sou para ela o que ela é para mim. [Mais um silêncio interrompe o diálogo interno e, com os olhos marejados de lágrima, pede para eu lhe responder] Porque esse amor se mantém no decorrer de todo esse tempo? Porque esse amor se mantém? Por que o esquecimento não consegue se instalar e apagá-lo de minha memória? Que amor é esse???!!” Colaborador 4, 53 anos, empresário, separado,2 filhos. As lembranças ultrapassam as fronteiras do tempo cronológico. A plasticidade do inconsciente explicita o sabor único do desejo. Assim, a significância da relação 228 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA amorosa continua sendo como uma “impressão digital”, invisível a olho nu, todavia, límpida, gravada em suas memórias. Como nos dizeres de Barthes (1981), “Encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões posso desejar centenas; mas dessas centenas amo apenas um. O outro pelo qual estou apaixonado me designa a especialidade de meu desejo”. Na fala do Colaborador 1: “(...) eu não consigo esquecê-la”, na da Colaboradora 2: “(...)Terminou? Eu não sei”, bem como na da Colaboradora 3: “Ela continua, como sombra, a seguir os meus passos”, e, ainda, na do Colaborador 4: “Porque esse amor se mantém no decorrer de todo esse tempo? Porque esse amor se mantém? Por que o esquecimento não consegue se instalar e apagá-lo de minha memória? Que amor é esse???!!” fica evidente a perplexidade diante do enigma da escolha do desejo de reter um ÚNICO, ESPECÍFICO. Ao re-visitarem as experiências que tiveram, seus compassos demarcados por uma afinação e satisfação intensa, ao perceberem que o eleito amado não está mais presente para re-alimentar o ritmo do próprio desejo, eles sofrem por não compreenderem o caráter indomável e paradoxal de Eros em não oferecer certezas e tampouco garantia da duração desse estado de êxtase. A intensidade do prazer erótico, a cumplicidade e intimidade, mantêm acesa a presença imaginária do ser amado, seja religando o passado ao presente e ao futuro, seja como um espelho interior a refletir nossa própria imagem. A dor desencadeada pela perda da pessoa amada se expressa também por sinais corporais: o corpo fala, e fala da experiência da angústia, da solidão e da desmotivação, por não conseguir atribuir sentido e significado à própria existência, diante da ausência do ser amado. Segundo Igor Caruso (1981), a separação amorosa é uma das experiências mais dolorosas vividas pelo ser humano, sendo pior do que a própria morte física. Há na separação dos amantes uma sentença de morte recíproca, isto é, o outro morre, em vida, dentro de mim enquanto eu morro na consciência do ser amado. É o sentimento de que, apesar de me encontrar viva em meu corpo, sou um cadáver para o eleito amado. Na visão desse autor, a separação é vivenciada de modo equivalente ao processo abortivo, é arrancar a vida que floresce dentro do ser. Para Nasio (1997), “A pessoa amada é para o eu tão essencial quanto uma perna ou um braço. Seu desaparecimento é tão revoltante que o eu ressuscita o amado sob a forma de um fantasma. Desse modo, o amado continuará tal qual um fantasma, a habitar o eu”. Nesse trajeto, Eros realiza sua hermenêutica ao circunscrever nossa carência irredutível. Carência que não só aspira ao desejo, como o organiza e orienta-nos para a vivência do prazer absoluto, materializada nos momentos de sintonia erótica. Audacioso, desafia as interdições, ora se alimenta de fantasias cujas realização só a tão sonhada completude pode possibilitar, ora mergulha na dor 229 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA da separação e indaga, como o Colaborador 4, “Por que o esquecimento não consegue se instalar e apagá-la de minha memória? Que amor é esse???!!”. Referências bibliográficas BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. BRUNS, Maria Alves de Toledo. O amor rompendo preconceitos. São Paulo: Ômega, 2001. __________. A (In) fidelidade: os desencantos do encantamento. São Paulo: Ômega, 2001. CARUSO, Igor. A Separação dos amantes: Uma fenomenologia da morte. São Paulo: Cortez, 1982. NASIO, Juan-David. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 230 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Oficina de mosaico de papel: pesquisa sobre a potencialidade mutativa de um enquadre diferenciado para atendimento de pacientes com seqüelas neurológicas graves Maria Cecília Martins Ribeiro Corrêa Tânia Maria José Aiello Vaisberg Resumo: O presente trabalho se insere num conjunto de pesquisas cujo objetivo é propor e avaliar a eficácia mutativa de enquadres clínicos diferenciados, de modo que os benefícios do saber psicanalítico possam ser estendidos para grupos que, geralmente, deles são excluídos. Aborda como fenômeno uma experiência que foi concebida para atender, em contexto institucional, pacientes adultos com deficiências físicas predominantemente adquiridas, que vivem em situação de vulnerabilidade social e emocional. Esse atendimento configura-se como uma oficina inspirada no estilo clínico Ser e Fazer, modalidade de trabalho winnicottiano desenvolvido na Pontifícia Universidade Católica de Campinas e na Universidade de São Paulo. Os procedimentos de pesquisa consistiram no registro da experiência por meio de narrativas psicanalíticas e no seu exame à luz do uso do método psicanalítico. A investigação permitiu perceber que os sofrimentos dessas pessoas emergem a partir de dois campos psicológicos diferenciados entre si, mas intimamente conectados - “interrupção trágica do viver” e “corporeidade estrangeira”. Habitando tais campos, esses pacientes encontram-se, muitas vezes, numa condição de vivência de radical exclusão da comunidade humana. Constatamos que esse atendimento se configurou como um encontro inter humano, no qual experiências criativas, que possibilitaram a produção de novos sentidos e de novas maneiras de viver, foram concretamente vividas. Foi possível favorecer a realização de ações transformadoras sobre o mundo, o que, em seu conjunto, gerou um efeito de restauração de dignidade no convívio social, configurando-se então como um campo de “sociabilidade com dignidade”. Como conclusão, é possível afirmar que, ainda que os campos inicialmente encontrados continuem operantes, importante transformação clínica pôde ser alcançada. Palavras-chave: enquadres clínicos diferenciados, oficina psicoterapêutica de criação, deficiências físicas, D.W.Winnicott, Psicanálise. Abstract - The present work is part of a group of studies aimed to evaluate the changing potential of a differentiated clinical approach that extend benefits from psychoanalytical knowledge to groups of people commonly excluded from it. Our work uses a phenomenological approach of an experience that was idealized to assist, in an institutional context, adult patients with predominantly acquired physical disabilities that are socially and emotionally vulnerable. This model of assistance consists in a workshop inspired on the Being and Doing clinical style, a modality of Winnicott’s work developed in two Brazilian Universities: Pontifícia Universidade Católica and Universidade de São Paulo. Research procedures 231 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA involved registering the experience through psychoanalytical narratives that could be evaluated in light of psychoanalytical methods. This investigation results suggest that these people’s suffering emerges from two differentiated psychological dimensions intimately connected – the “tragic interruption of living” and the “living in a foreigner body”. By maintaining themselves in these dimensions, patients frequently found themselves in a situation of radical exclusion from the human community. In our work, the proposed model of assistance represented an inter-human encounter in a context from which creative experiences that resulted in new meanings and new ways of living could be concretely experienced. It was possible to facilitate the occurrence of world transforming actions that all together generated a restoration effect on dignity and social interaction that created an environment of “social interaction with dignity”. In conclusion, it is possible to affirm that despite the two continuously operant psychological dimensions, important clinical transformation could be reached. Key-words: differentiated clinical approaches, psychotherapeutic workshops, physical disabilities, D.W. Winnicott, psychoanalysis. creation Com o objetivo de atender a grupos sociais excluídos dos benefícios oriundos do saber psicanalítico, desenvolvemos um conjunto de pesquisas que propõe e avalia a eficácia mutativa de enquadres clínicos diferenciados, na Universidade de São Paulo e, mais recentemente, na PUC-Campinas. Trata-se de um grupo de pesquisadores que busca enquadres psicoterapêuticos diferenciados inspirados na psicanálise winnicottiana. Neste artigo apresentamos uma experiência clínica que se configura como uma oficina inspirada no estilo clínico Ser e Fazer. Essa experiência, ainda em curso, teve início em agosto de 2005, quando uma instituição nos contatou solicitando entretenimento para um grupo de pacientes adultos com deficiência física predominantemente adquirida e que vivem em situação de exclusão e vulnerabilidade social. Na atualidade, nós, profissionais da saúde mental, somos chamados a responder, em nossa prática clínica cotidiana, a demandas complexas, diversificadas e muitas vezes inéditas. Essa situação pede abertura e disponibilidade para “desenvolver enquadres clínicos diferenciados capazes de atender ao sofrimento humano de modo integrado a sua vida, solidário, ético, respeitoso e inclusivo” (Aiello-Vaisberg, 2004). Em nossa primeira entrevista com os responsáveis da instituição, observamos que o pedido de entretenimento para os pacientes respondia a uma necessidade de vê-los ocupados durante todo o dia. Ainda que pareça uma demanda plausível, trata-se de uma visão que desconsidera necessidades humanas fundamentais, o que não nos parece aceitável, nem do ponto de vista da clínica nem eticamente. Contudo, encontramos espaço institucional para iniciar encontros com os pacientes de acordo com nossos próprios termos, propondo a realização do atendimento a partir do enquadre clínico diferenciado que tem sido utilizado em situações 232 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA clínicas igualmente desafiadoras. Alguns exemplos são o cuidado ofertado a pacientes soropositivos para HIV (Mencarelli, 2003) e a pacientes vítimas de doença neurológica fatal e progressiva (Vitali, 2004). Essa modalidade clínica pressupõe o homem como um ser criativo, criador de sentidos, concebe saúde como possibilidade de realização do potencial individual e coletivo e define-se como um encontro interhumano que tem como modelo o brincar. Caracteriza-se por se articular ao redor de um material mediador, por ocorrer preferencialmente em grupo e por adotar o holding como intervenção fundamental. Importante destacar que, nesse enquadre, o holding sempre se relaciona à busca pela autenticidade pessoal do cuidador e à manutenção de uma situação que favoreça a continuidade de ser, a superação de dissociações e a esperança de o paciente sentir-se vivo e real; isto é, ir “sendo-se” na continuidade do tempo e no espaço compartilhado com o outro na sua comunidade. Nas oficinas de estilo clínico Ser e Fazer, um material mediador é então escolhido e apresentado pelo terapeuta ao grupo, em um ambiente propício ao desenvolvimento da capacidade de brincar, com o objetivo de diminuir o sofrimento e favorecer a integração, expressão e realização dos vários potenciais dos pacientes. Trata-se de uma prática que adota como paradigma o Jogo de Rabisco (Winnicott,1971), usado no contexto de um enquadre particular, denominado consultas terapêuticas. Esse jogo se configura como um mediador da relação entre paciente e terapeuta, cujas características essenciais seriam sua natureza formless e a presença integrada do terapeuta suficientemente amadurecido para “ser e fazer” como pessoa total. No enquadre clínico aqui em foco, a materialidade mediadora foi papel colorido, apresentado juntamente com um convite para o grupo criar e compor coletivamente uma paisagem, que teve como suporte uma folha de papel craft de 1,20m X 0,90m com uma linha traçada em seu sentido longitudinal, denominada linha do horizonte. Desde sua concepção, essa intervenção aconteceu em grupo, sendo este, na experiência aqui relatada, aberto e formado no máximo por dez pacientes de ambos os sexos e na faixa etária compreendida entre 40 e 70 anos. Todos os pacientes apresentam deficiências físicas, em sua maioria adquiridas e decorrentes de diferentes etiologias, como acidente vascular cerebral, aneurismas ou acidentes domésticos. Os encontros ocorrem uma vez por semana, com três horas de duração. Nessa oficina, o mosaico de papel é criado e confeccionado coletivamente, com todos os pacientes acomodados ao redor de uma mesa que tem o papel craft no centro. Cada um contribui para construção do mosaico de acordo com sua possibilidade e disponibilidade. Assim, existem alguns pacientes que podem cortar e colar papéis, outros podem apenas cortar e há também aqueles que podem apenas narrar o que está sendo construído pelo grupo. A Pesquisa 233 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A pesquisa, que tem como objetivo o estudo da eficácia clínica de uma experiência que teve lugar no contexto de um enquadre diferenciado, acima descrito, faz uso de dois tipos de procedimentos investigativos: narrativas psicanalíticas79, mediante as quais realizamos um registro do acontecer clínico, que permite sua comunicação a outros pesquisadores, e abordagem psicanalítica da narrativa, tal como é formulada pela Teoria dos Campos (Herrmann,1979; Aiello-Vaisberg,1999). Assim, realizadas as sessões, a terapeuta80 elaborou uma narrativa do acontecer clínico, a partir da observância do método psicanalítico. Assim, associou livremente às lembranças do encontro, cultivando a atenção flutuante segundo um estilo fenomenológico que busca o desapego de teorias, conhecimentos e crenças prévias, para alcançar uma abertura máxima à emergência do novo, do desconhecido. Posteriormente, a narrativa foi psicanaliticamente lida e relida, pela terapeuta e pela co-autora, no intuito de “deixar surgir”, “tomar em consideração” e “completar o desenho” (Herrmann, 1979), tendo em vista captar o substrato afetivo-emocional a partir do qual emergiram as diversas manifestações e comunicações emocionais dos pacientes. Psicanaliticamente, pudemos apreender sofrimentos do grupo como emergentes a partir de dois campos psicológicos distintos, porém relacionados: o campo da “interrupção trágica do viver” e o campo da “corporeidade estrangeira”. O uso de materialidades exige a presença do corpo; desse modo, podemos supor que o enquadre aqui proposto favorece o aparecimento do campo “corporeidade estrangeira”. Durante a construção do mosaico, surgem queixas dos pacientes relativas às suas deficiências e às consequentes dificuldades sentidas diante do fazer. Observamos, então, que essas queixas sempre se referem a um outro corpo, por exemplo: “a mão boba”, “a perna boba”, “o olho bobo”. O desconforto de viver em um corpo que não responde às suas necessidades e desejos é também assinalado pelos pacientes literalmente: - você não sabe o que é acordar em um corpo que não te obedece e que não reconhece como seu. Diante desse sofrimento por habitar um corpo deficiente, a experiência de corporeidade fica então referida a dois corpos: um saudável, vivido com nostalgia, e outro deficiente, vivido como estrangeiro. A vivência de acordar e sentir-se habitando um corpo que não reconhece como seu rompe a experiência de continuidade da vida; Em diferentes momentos, deparamos também com sofrimentos que decorrem do fato dos acidentes e doenças, geradores das seqüelas, serem vividos como desprovidos de sentido, como absurdos. As perdas, os projetos de vida interrompidos, as convivências sociais dificultadas, os hábitos cotidianos e de lazer impedidos, acabam por configurar o campo da “interrupção trágica do 79 A narrativa psicanalítica elaborada para este estudo encontra-se na íntegra no final deste artigo, após a bibliografia. 80 Os atendimentos foram realizados por Maria Cecília Martins Ribeiro Corrêa 234 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA viver”. Além disso, a situação de vulnerabilidade social em que esses pacientes vivem incrementa esse sofrimento, pois dificulta a possibilidade de confiança no mundo humano e não humano. Com a experiência de continuidade favorecida pela constância dos encontros clínicos, o grupo pode confiar e compartilhar seu universo particular: escaras, amputações, infecções, hospitalizações, cadeira de rodas, bengalas, adaptações, discriminação, exclusão social e medos. Universo dramático, difícil de dizer para o outro, apesar da necessidade de compartilhamento. Considerações Finais Diante da dimensão das carências desse grupo, alguns podem imaginar que qualquer iniciativa, que pudesse representar alguma atenção interhumana, poderia ser considerada clinicamente eficaz. Entretanto, no percurso da experiência aqui em foco, pudemos observar a retomada do desenvolvimento pessoal dos pacientes através de gestos que favorecem o convívio social, facilitam a higiene, promovem a melhora do estado clínico, diversificam as maneiras de participar da oficina de mosaico e abrem a possibilidade de participação na vida comunitária como agentes transformadores da realidade. Concluindo, todas essas mudanças, que nos parecem significativas, geraram restabelecimento de dignidade no convívio social, configurando então uma “sociabilidade com dignidade”, mesmo com os campos “interrupção trágica do viver” e “corporeidade estfc rangeira” permanecendo operantes. Referências bibliográficas Aiello-VAisberg T. M. J.; Ambrosio F.F.; Machado M. C. L. A alma, o olho e a mão: estratégias metodológicas de pesquisa na psicologia clínica social winnicottiana. In: AIELLO-VAISBERG T. M. J.; AMBROSIO F. F. (0rg.). Cadernos Ser e Fazer: Trajetos do sofrimento: rupturas e (re) criações de sentido. São Paulo: IPUSP, 2003. P. 55-59. Aiello-Vaisberg, T. M. J. Efeitos clínicos da arteterapia winnicottiana. In: AIELLOVAISBERG T. M. J.; AMBROSIO F. F. (Org.). Cadernos Ser e Fazer: Imaginários coletivos como mundos transicionais. São Paulo: IPUSP, 2006. P. 21-31. Aiello-Vaisberg, T. M. J.; Machado M. C. L. Pesquisa psicanalítica de imaginários coletivos à luz da teoria dos campos. In Josette Monzani e Luiz R. Monzani Olhar:Fabio Herrmann- Uma Viagem Psicanalítica. Sao Paulo, Ed Pedro e João Editores/UFSCAR, 311-324, 2008. Aiello-Vaisberg, T. M. J.; Mencarelli, V. L.; Vitali, L. M. Um devir interrompido: reflexão ética sobre o atendimento psicológico de pacientes orgânicos graves. In: AIELLO-VAISBERG T.M.J.; AMBROSIO F. F. (0rg.). Cadernos Ser e Fazer: Reflexões éticas na clínica contemporânea. São Paulo: IPUSP, 2003. P. 55-59. Aiello-Vaisberg, T. M. J.; Vitali, L. M. Clínica e responsabilidade: reflexões éticas sobre um enquadre psicoterapêutico para pacientes com esclerose 235 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA lateral amiotrófica. In: AIELLO- VAISBERG T.M.J.; AMBROSIO F. F. (0rg.). Cadernos Ser e Fazer: Reflexões éticas na clínica contemporânea. São Paulo: IPUSP, 2003. P. 55-59. Aiello-Vaisberg, T. M. J. Ser e fazer: enquadres diferenciados na clínica winnicottiana. Aparecida: Idéias e Letras, 2004. 286p. Barus-Michel, Jacqueline Sofrimento, trajetos, recursos. Dimensões psicossociais do sofrimento humano. In: AIELLO-VAISBERG T. M. J.; AMBROSIO F. F. (0rg.). Cadernos Ser e Fazer: Trajetos do sofrimento: rupturas e (re) criações de sentido. São Paulo: IPUSP, 2003. P. 55-59. Bleger,J. (1963) Psicologia da conduta. Porto Alegre: Artes Médicas,1984. Herrmann, F. (1979) Andaimes do real: o método psicanalítico. São Paulo: Brasiliense, 1991. Mencarelli, V. L. Em defesa de uma Clínica Psicanalítica Não Convencional: Oficinas de Velas Ornamentais com Pacientes Soropositivos. 2003. 101 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) - Universidade de São Paulo. Safra G. Clínica winnicottianna: Princípios da consulta terapêutica. Estudos pósgraduados em psicologia clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo: 2002 mimeo. p. 2-10. Safra G. (2004) O sofrimento humano e as fraturas éticas. In __. A póna clínica contemporânea. Aparecida: Idéias e Letras, 2004. p. 143. ética 127- Safra G. Psicanálise do self e sofrimento humano. In: AIELLO- VAISBERG T. M. J.; AMBROSIO F. F. (0rg.). Cadernos Ser e Fazer: Trajetos do sofrimento: rupturas e (re) criações de sentido. São Paulo: IPUSP, 2003. P. 55-59. Vitali, L. M. Flor-Rabisco: Narrativa Psicanalítica de uma Experiência Surpreendente. 2004. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Universidade de São Paulo. Winnicott D.W. (1971b) Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. de Janeiro: Imago, 1984. 427p. Winnicott D.W. (1971a) O brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: 1975. 203p. Rio Imago, Winnicott D.W. (1996) O conceito de indivíduo saudável. In: __.Tudo Começa em casa. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1996. p. 17 – 30. Winnicott D.W. (1962) Os objetivos do Tratamento Psicanalítico. In: __. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. p. 152-155. Winnicott D.W. (1996) Vivendo de modo criativo. In: __.Tudo Começa casa. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1996. p. 31- 42. Narrativa do acontecer clinico investigado em 236 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Apresentaremos a seguir uma narrativa, intitulada “Um Lugar: O Campo”, na qual o acontecer clínico é registrado como experiência vivida pela terapeuta, abrangendo o período durante o qual o primeiro painel foi confeccionado pelo grupo. Cheguei à instituição acompanhada da fé, de concepções, de conceitos, préconceitos, convicções, papéis coloridos e cola. Fui recebida e surpreendida por um grupo vivo, muito barulhento e sedento de atenção. As limitações físicas dos pacientes que a princípio, na minha imaginação, me pareciam obstáculos logo se transformaram - tinha diante de mim seres humanos vivos, que queriam conversar, contar sua história de vida seu passado, seu presente e seu futuro; queriam atenção, necessitavam de tempo e disponibilidade afetiva. Nesse encontro, dentro de mim, proponho-me a viver com esse grupo uma experiência no tempo que ele demandasse. Iniciamos nosso encontro conversando sobre nossas origens: nosso nome, onde nascemos, como éramos chamados, como vivíamos, do que brincávamos, o que cantávamos, “causos” que ouvíamos e tudo mais que viesse à tona. Em meio a um turbilhão de falas e memórias, abriu-se no grupo a possibilidade de apresentação e compartilhamento dos seus diferentes universos e também dos seus pontos em comum, sendo a vivência da roça, do campo, partilhada pela maioria. A partir desse lugar, dessa marca em comum, definimos o tema da paisagem a ser coletivamente construída em mosaico de papel, “O Campo”. Desconfiados porém entusiasmados, após esclarecimento sobre o que é um mosaico de papel e como seriam nossos encontros, o grupo iniciou seu trabalho: picar papéis e colá-los no suporte, um papel craft grande, que ocupava praticamente toda a mesa, com uma linha desenhada a qual denominamos linha do horizonte. Durante a construção do céu e do chão, o fundo da nossa paisagem, um grupo esperançoso e muito hesitante emerge e surpreendido pela experiência brincante e viva, arrisca-se e faz, possibilitando-me vislumbrar seu potencial através da dimensão lúdica alcançada. O céu e o chão da nossa paisagem vão aparecendo e junto com eles a confiança na terapeuta e as dificuldades para fazer. Impôs-se, em nossa experiência, a doença, o limite, o corpo impedido e estranho, a vida tragicamente interrompida. Porém, a plasticidade característica do mosaico de papel permite adequar os fazeres com as disponibilidades, possibilidades e limites do grupo, favorecendo as relações, criando um clima de cumplicidade e coesão entre os participantes e garantindo a continuidade da oficina. Paralelamente, nesse momento, surgiu uma questão: quais serão as figuras que irão compor esse fundo? Quem habitará essa paisagem? Assim, cada paciente escolheu um animal para colocar no painel que usarei, nessa narrativa, para representar e apresentar as pessoas do grupo: O Cavalo – o paciente viajante. Acordou, escorregou, bateu a cabeça e mudou radicalmente sua vida, afirma que adquiriu uma escara que jamais irá fechar. 237 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Não pode mais rasgar, colar e nem se locomover. Imagina e fala com e pelo grupo, tem um melhor nível sócio cultural, escreve no computador, enriquece o grupo com suas colocações. “Topa” escrever uma narrativa sobre nossos encontros, vamos ver... O Pavão – a paciente vaidosa. Sempre muito arrumada, com unhas feitas, brinco e colar, fala sem parar, não se locomove e refere-se à sua mão comprometida como mão “boba”. Aceita minha ajuda para colar os papéis e acolhe, durante nossos encontros, minhas interferências em seu monólogo, abre sua fala para um diálogo: olha para o grupo, escuta. O Passarinho – a paciente delicada. Fala muito pouco, não tem autonomia para se locomover. Mostra lindos olhos azuis e um sorriso tímido que me encantam. Tem uma fala mansa, baixinha, difícil de entender mas, silenciosa e tímida, rasga e cola o papel no suporte com autonomia – marca sua presença naquele espaço à sua maneira: silenciosa, delicada e livre. A Arara – a paciente barulhenta. Caminha com bengala, lamenta a mudança brusca de bairro a partir da fratura na bacia. Lembra-se e fala de sua história, conta “causos” e canta:...”Saudades palavra triste...”. Fala de seu passado: boa filha dedicada, agora solteira e solitária. Revela-se brincalhona, participativa, acolhe as idéias do grupo, rasga e cola os papéis com autonomia. Surpreende-se e encanta-se com a paisagem colorida que vai sendo construída. Em alguns momentos ranzinza e brava, não suporta o grupo, afasta-se temporariamente. A Onça Pintada – o paciente hábil. De nome difícil de lembrar, locomove-se com bengala e também tem mão “boba e desobediente”. Alegre, pedreiro com muito orgulho, habilidoso e caprichoso “assentador” de papéis. Vejo-o assentando tijolos enquanto cola papéis. O Elefante – a paciente densa. Curiosa, desconfiada, subjetivamente pesada, tem autonomia, mas sem andar. Por necessidade e empatia – creio eu – topou de imediato a experiência, ajuda-me muito com sua atitude colaborativa, com suas conversas. Mineira, olha-me pelo canto dos olhos, a sensação que tenho é de que ela vê tudo; companheira. A Arara também – a paciente viva. Não pode tocar em nada, tudo dói. Conta para o grupo sua história de amor e movimento – esposa de um caminhoneiro vivia, com ele, pelas estradas da vida. Participa dos encontros quando quer. Surpreendente, denuncia: “- um dia acordei assim! Num corpo que não é o meu!”. Hostilizada pelo grupo é presença viva e espontânea – sofre. E eu, sou passarinho também. Vamos, com essa composição, fazendo nosso percurso construindo um lugar, o campo. Concomitantemente ao fazer, as fragilidades para o acontecimento dos nossos encontros aparecem: falta privacidade na sala de atendimento, o tempo de duração de nossos encontros é pequeno, o motorista que transporta os 238 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA pacientes não foi trabalhar – não houve atendimento, fez frio - nenhum paciente foi à instituição, a terapeuta ficou doente – faltou. Esses acontecimentos levaram nossas conversas, enquanto fazíamos o mosaico, para o tipo de vínculo existente entre eu e a instituição, entre os pacientes e a instituição e entre eu e o grupo. Olhando para essas questões objetivas, vislumbrei as experiências subjetivas. Falar de vínculos é falar sobre confiança, dependência, medos, precariedades dessa vida. Entendi que a questão nesse momento era: a senhora nos agüenta? A instituição agüenta? Nós agüentamos? Iremos até o fim? Daremos continuidade? Seremos interrompidos? Retomo nosso contrato e garanto: estaremos juntos o tempo necessário para concluirmos esse painel com o mosaico de papel. Concluímos o fundo. Estamos agora no exato momento de por vida no lugar, de colar as figuras no fundo, de colar árvores e bichos na paisagem do campo. Iniciamos pelas árvores. Olhamos nosso trabalho de perto, contemplamos de longe, conversamos sobre nossas árvores preferidas, observamos atentamente um quadro do Monet da parede da nossa sala, falamos sobre a paisagem do campo que estamos construindo e escolhemos o lugar das árvores: as grandes nas pontas e as pequenas no centro. Meus sentimentos eram de tensão. Atravessávamos um momento de risco? A arara – a paciente barulhenta, não quer mais participar. Serão ressonâncias da lucidez a respeito da precariedade da vida? Será o momento – colar figuras, a vida, no fundo? Será um mal estar geral da convivência em grupo? Não sei. Sentia-me inteiramente comprometida com nossa experiência e juntos experimentávamos a visita da dúvida, do não saber, do medo, da ansiedade e da angústia. Identifico nesse momento o sofrimento relativo à experiência de interrupção trágica do viver. Silenciosamente, fazemos e colamos algumas árvores, mas elas não sobreviveram, isto é: não satisfizeram o grupo e foram retiradas do mosaico no encontro seguinte Questiono (comigo mesma), se fazer e colar as árvores naquele momento não estava a serviço de “remendar”, reagir, ao sofrimento que vivíamos. Isto é, uma paralisia, com ansiedades e angústia geradas pela sensação de estar imerso nas dúvidas quanto à qualidade de nossos vínculos, à possibilidade de confiar ou não, ao medo do risco da interrupção dessa experiência. Nessa condição, como colar a figura? Como dar vida ao painel? Como aparecer no grupo? Como prosseguir? A minha abertura e disponibilidade verdadeira de estar junto com esse grupo somada à continuidade dos nossos encontros possibilitou atravessarmos essa situação e o universo de vivências particulares, inerentes a experiências desse grupo, passou a ser compartilhado durante nossos encontros: as dificuldades com as escaras e o paciente que necessitou amputar suas pernas porque não cuidou delas. As infecções urinárias recorrentes e a paciente que foi hospitalizada. O impedimento de sair do quarto da sua casa por não haver 239 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA qualquer tipo de adaptação que favoreça sua mobilidade. A dificuldade de enxergar, de ir ao oculista. A raiva e a dor de, um dia, ter sua vida tragicamente interrompida e repentinamente acordar com um corpo que não reconhece como seu e que não responde à sua vontade – acordar sem entrever a liberdade. Dessa vez, compartilhando as sofridas experiências humanas, encontramos uma solução para tronco, folhas e flores da nossa paisagem que agradou a todos. As árvores sobreviveram e nós também! Continuamos nosso mosaico acompanhado de explicitações do universo de vivências desse grupo: a discriminação e exclusão social, a submissão e invasão pelo outro, a falta de sentido para a fatalidade, o potencial morto, a solidão. Nesse momento aparece no grupo a valorização do nosso processo, aparece a satisfação e o entusiasmo com a paisagem que vem sendo construída e o pedido de fazer o mosaico nos dias que não estou na instituição. Acolho o pedido, deixo os materiais com a enfermagem. Estamos chegando ao fim: as árvores na paisagem estão praticamente prontas, resta colar os animais escolhidos. A arara, a paciente barulhenta, visita o grupo, admira-se e surpreende-se com a paisagem, retorna entusiasmada aos encontros. O grupo, paradoxalmente, parece não finalizar, surgem sempre novas idéias. Pergunto-me: estamos adiando o fim? Será um novo projeto? Ou estamos nos aprontando para o fim? Colamos os animais, cada paciente escolhe o seu lugar. Reflito como foi importante enriquecermos nossa paisagem com animais, seres de movimento que inspiram liberdade, e como foi rico imaginar o que tinham para contar do lugar a partir do qual podiam olhar e interagir com a paisagem criada. Estamos todos satisfeitos com o percurso. Junto com o grupo, olhando o mosaico de longe, lembro-me de um quadro chamado “Roda” do artista Milton Dacosta. Quieta, em nosso penúltimo encontro, levo um xerox dessa imagem com a esperança secreta do grupo expressar o desejo de incluir pessoas no mosaico. O Cavalo, o paciente viajante brinca, com seu olhar e imaginação, de encontrar pessoinhas e outras figuras nos pedacinhos de papel que compõe nossa paisagem e acaba por lamentar a ausência de pessoas e expressa o desejo de incluí-las no mosaico. Nesse momento mostro para o grupo a figura que trouxe. Todos gostam, brincam, lembram de suas cirandas. A imagem é recortada e colada, acrescentamos mais dois meninos e assim todos do grupo estão lá humanizados – a vida, a brincadeira instala-se em nosso encontro. Último encontro, celebramos o fim. O lanche dos pacientes é servido em nossa sala. O Cavalo, o paciente viajante, lê sua “narrativa-relatório” sobre nosso percurso. Eu entrego para cada paciente um cartão postal com a imagem do nosso mosaico, o título da nossa obra é colocado – Um lugar, o Campo. 240 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Chegamos ao fim: - “Fazer um fim é fazer um começo”, como disse Elliot, o poeta. As idéias que me animam agora são aberturas para novos projetos com esse grupo. Mosaico de papel intitulado “Um Lugar: O Campo” 241 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Pesquisa fenomenológica e intervenção: possibilidades Mauro Amatuzzi Karine Cambuy Thais de Assis Antunes Pedro Vitor Barnabé Milanesi Pontifícia Universidade Católica de Campinas Resumo: O texto apresenta e analisa algumas pesquisas de feitio fenomenológico em andamento no grupo de pesquisa “Processos Psicológicos: abordagens qualitativas” (PUC-Campinas) com a finalidade de estabelecer graus possíveis de intervenção que possam ser exemplificados por elas, e, paralelamente, levantar aspectos metodológicos relacionados com esses graus. Entende-se por pesquisa fenomenológica aquela que lida com a experiência subjetiva e os significados vividos, e faz isso no interior de uma relação de implicação entre o pesquisador e o pesquisado e não numa relação de exterioridade. O vivido só é acessível, ou só fica disponível, quando mobilizado. Por isso a pesquisa de tipo fenomenológico tende a ser mobilizadora, o que equivale a dizer que ela será sempre, em algum grau, interventiva. Além disso, tal pesquisa pressupõe: 1) o compromisso ético de contribuir de alguma forma para que os envolvidos possam obter algum benefício direto da pesquisa; 2) o caráter construtivo-interativo de seu delineamento, 3) e a não separação entre teoria e prática. Todas as pesquisas aqui consideradas trabalham com uma proposta interventiva: estudar o fenômeno atuando sobre ele juntamente com pessoas envolvidas. O grau mínimo de intervenção seria o existente nas pesquisas baseadas na coleta de depoimentos. Um grau maior acontece quando o pesquisador dialoga com o participante ajudando-o ativamente a acessar o vivido. Quando o pesquisador participa, ele também, do mesmo grupo de pessoas, então pode haver uma mobilização do grupo como um todo: terceiro grau. E finalmente, quando a pesquisa se constitui como o olhar reflexivo de uma prática que mobiliza significados, teríamos o grau maior de intervenção. Palavras-chave: qualitativa. Pesquisa-intervenção, pesquisa fenomenológica, pesquisa Phenomenological research and interventional proposal: some possibilities Abstract: This paper presents and analyses some searches of phenomenological character been processed by the group named "Psychological Processes: qualitative approaches" (PUC – Campinas) in order to establish possible degrees of intervention that can be exemplified by them, and in parallel, raise methodological issues related to these degrees. It is assumed as phenomenological research the one that deals with the subjective experience and the meanings experienced inside a relationship of involvement among researcher 242 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA and researched and not in a relationship of exteriority. The experienced is only accessible, or is only available when mobilized. So the phenomenological research tends to be stimulating, which means that it will always have in some degree, an interventionist role. This intervention research must include some aspects: 1) the ethic commitment of contributing in some way so that all participating people can get some direct benefit from the research, 2) its constructive-interactive character, 3) and no separation between theory and practice. All the researches here considerated works as an interventional proposal: to study the phenomenon acting over it together with people involved. The minimum degree of intervention would be found in searches based on personal testimonies. A greater degree happens when the researcher dialogues with the participating actively helping him to access the living. A third grade can be considered when the researcher belongs, he too, to the same group or community; then there may be a mobilization of the group as a whole. And finally, when the search is the critical reflective thinking of the interventional proposal, we would have the greatest degree of intervention. Key-words: Interventional research, phenomenological research, qualitative research. Esta comunicação examina algumas pesquisas de feitio fenomenológico em andamento no grupo de pesquisa “Processos Psicológicos: abordagens qualitativas”, do Centro de Ciências da Vida da PUC-Campinas, com a finalidade de estabelecer graus possíveis de intervenção que possam ser exemplificados por elas, e paralelamente levantar aspectos metodológicos relacionados com esses graus. Estamos entendendo a pesquisa fenomenológica como aquela que lida com a experiência subjetiva e seus significados vividos, no contexto de uma relação de implicação entre o pesquisador e o pesquisado (ou entre sujeito e objeto) e não numa relação de exterioridade (como se sujeito e objeto fossem totalmente independentes um do outro). Isso já aponta para uma característica metodológica: uma entrevista tipo questionário não é um instrumento tão adequado para se chegar ao vivido quanto a entrevista reflexiva que acontece no interior de uma interlocução aberta. O vivido só é acessível, ou só fica disponível, quando mobilizado. Por isso a pesquisa de tipo fenomenológico tende a ser mobilizadora, o que equivale a dizer que ela será sempre, em algum grau, interventiva. Quais graus? Essa questão tem ocupado os membros do grupo em suas reuniões. O tipo de pesquisa que nos tem interessado, como participantes do grupo, é aquele que 1) inclui o compromisso ético de contribuir de alguma forma para que os envolvidos possam obter algum benefício direto da pesquisa; 2) tem um caráter construtivo-interativo, isto é, cujos resultados sejam de alguma forma construídos conjuntamente com os sujeitos participantes; e 3) evita a separação entre teoria e prática, ou seja, o próprio ato de pesquisar possa ser um ato de prática profissional. 243 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Alguns temas presentes no grupo atualmente são: experiências de psicólogos clínicos com projetos comunitários, grupos de crescimento ou de reflexão (com hipertensos, seminaristas, pessoas que buscam definir opções de vida profissional), liberdade de professores e o trabalho voluntário. Muitas destas pesquisas têm trabalhado dentro de uma proposta interventiva: estudar o fenômeno atuando sobre ele juntamente com pessoas envolvidas. Outras, embora não sigam por esse caminho, buscam diálogos mobilizadores que possam proporcionar crescimento pessoal aos sujeitos participantes. Idéias de Paulo Freire (1999 e 2007) sobre modos alternativos de pesquisa tiveram uma importância grande para a reflexão do grupo. Ele propõe a pesquisa como forma de intervir no contexto da educação popular. O aspecto descritivo do processo investigativo, nesse contexto, se integra em algo maior: um projeto que visa a emancipação e o desenvolvimento. Ele expõe essas idéias ao falar sobre a perspectiva libertadora. Ressalta a entrada do pesquisador no campo (um bairro ou uma cidade), as visitas, os diálogos de onde nascem os temas geradores e a devolução à população, sob forma de desafio, dessa percepção dos temas. O pesquisador assume a posição de um facilitador de grupo de modo a promover um aprofundamento do conhecimento de si e da realidade circundante, superando os conhecimentos anteriores que, a essa luz, podem se mostrar como ingênuos. Dentro dessa proposta, pesquisar e educar acabam se identificando em um permanente e dinâmico movimento. Amatuzzi (2008) segue os caminhos apontados por Freire quando fala de uma psicologia popular entendida como pesquisa-intervenção. A psicologia popular seria aquela explicitada na convivência e construída num contexto de ação conjunta com as pessoas do povo. Segundo o autor esta psicologia será popular quando: 1) considerar as pessoas comuns, em sua condição comum; 2) quando for elaborada buscando a emancipação ou crescimento; 3) quando for elaborada junto com as pessoas, de forma participativa. Ele afirma também que o psicólogo tem uma contribuição importante nos grupos comunitários ao facilitar a comunicação entre as pessoas, não só como profissional, mas como cidadão comum. Segundo o autor, trabalhar com processos humanos de forma integrada é tomar a iniciativa de começar a viver segundo outro paradigma. Amatuzzi (2001) enfatiza a comunicação como forma de produção de sentidos que faz a pessoa avançar em novos processos de subjetivação. Afirma ainda que a possibilidade do pesquisador atuar como facilitador do acesso ao vivido é de fundamental importância numa pesquisa fenomenológica; muitas vezes os participantes, em uma entrevista, dizem sua experiência pela primeira vez, pois nunca tiveram a oportunidade de dizê-la. Portanto, é na relação pessoal, quando surge a oportunidade de dizer e ser compreendido, que o vivido é acessado; a vivência é, assim, surpreendida e simbolizada pela pessoa na sua relação com o pesquisador. Trata-se, pois de uma pesquisa mobilizadora. Segundo o autor, o vivido mobilizado é a mola propulsora do desenvolvimento individual e coletivo. Além do caráter propriamente interventivo da pesquisa como uma ação concreta do pesquisador junto a uma determinada população, temos que considerar o 244 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA caráter interativo na produção do conhecimento. Maraschin (2004) afirma que como pesquisadores do campo das ciências humanas, indagamos sobre os modos de viver, existir, sentir e pensar, próprios de nossas ou de outras comunidades de sujeitos. O próprio fato de perguntar produz, ao mesmo tempo, tanto no pesquisador quanto nos participantes, possibilidades de auto-produção, de autoria. Nossos “objetos de pesquisa” também são pesquisadores ativos, pois, enquanto participam dessas redes de conversação e reflexão, produzem novos sentidos, os quais, por sua vez, podem ser transformados a partir de novas conexões, novos encontros (Maraschin, 2004). González Rey (2005) destaca o caráter interativo do processo de produção do conhecimento, enfatizando as relações pesquisador-pesquisado. Segundo o autor, é importante outorgar valor aos diálogos envolvidos na produção do conhecimento, nos quais os sujeitos se envolvem emocionalmente e comprometem sua reflexão em um processo em que se produzem informações de grande significado para a pesquisa. O autor também enfatiza a importância da comunicação como uma via através da qual os participantes de uma pesquisa possam se converter em sujeitos, envolvendo-se no problema pesquisado a partir de seus interesses, desejos e contradições. Para ilustrar algumas destes aspectos já levantados, podemos partir de algumas pesquisas em andamento: Referente à questão do caráter mobilizador da pesquisa fenomenológica, partindo de entrevistas individuais e o caráter construtivo-interativo, podemos citar a pesquisa de mestrado realizada por MiIanesi (2007-2009) intitulada: “Os sentidos da liberdade segundo professores da Educação Básica”; cujo objetivo é compreender os sentidos da liberdade segundo a experiência desses educadores. Para tanto, o pesquisador realizou entrevistas reflexivas com cada professor, buscando, ouvir e refletir sobre a experiência cotidiana focando a temática da liberdade no contexto da educação, cabendo ao pesquisador atuar como um interlocutor e facilitador da reflexão a partir do vivido do entrevistado. Após cada uma das entrevistas foram elaboradas narrativas expressivas do encontro entre pesquisador e professor preservando seus dinamismos e levando em conta a presença de ambos. Os resultados encontrados até então indicam que a liberdade vivenciada pelos professores consiste na possibilidade de uma prática educativa que faça sentido e que seja baseada em questões e problemas percebidos como reais tanto pelo educador como pelo educando, quer sejam em âmbitos institucionais (incluindo políticas de ensino), quer sejam na relação professor-aluno. O caráter construtivo-interativo da pesquisa aparece, por exemplo, na entrevista com Ricardo, um professor da educação infantil. Se observarmos o fluxo do discurso, notaremos que ele inicia a entrevista com uma fala sintética “Sinto que temos e não temos liberdade, entende?”, porém justifica a afirmação com palavras abstratas, gesticula enquanto tenta explicar. Com o decorrer da entrevista reflexiva, fala sobre a falta de liberdade e sobre as pressões que as 245 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA políticas de ensino exercem sobre os professores. Mais adiante, reflete que apesar dessas pressões ele ainda consegue praticar uma educação que faça sentido, tanto pessoal, como para o contexto. Por fim faz considerações sobre a surpresa que teve ao dar liberdade a seus alunos e o quão satisfeito ficou com os resultados. Ao final da entrevista, nas considerações finais (versão de sentido), este professor relatou estar novamente motivado, com forças renovadas, considerando que a liberdade é um objetivo nobre e vale lutar por ela, a pesar das pressões. Para exemplificar o aspecto da pesquisa intervenção que diz respeito à questão da inseparabilidade e da retroalimentação constante que acontece entre pesquisa e intervenção, podemos citar a pesquisa de doutorado em andamento de Cambuy (2006-2010), intitulada ““Experiências comunitárias em Saúde Mental: Repensando a clínica psicológica no SUS”, cujo objetivo é compreender como vivências comunitárias de psicólogos clínicos podem contribuir para a ampliação do conceito de clínica psicológica em Saúde Pública. A questão de pesquisa surgiu da própria prática da pesquisadora que também é psicóloga de uma Unidade Básica de Saúde e de suas observações quanto à importância de atentar para novos paradigmas e técnicas em psicologia que atendam as reais necessidades terapêuticas dos usuários que procuram as instituições públicas de saúde, visto que, os sofrimentos ultrapassam os limites da clínica tradicional e do modelo individualista dentro do qual muitos psicólogos foram formados para atuar. O projeto de pesquisa se encontra na fase da coleta de dados. Têm sido realizadas entrevistas individuais com psicólogos clínicos contratados para trabalhar na Rede Pública de Saúde em Campinas e que estão envolvidos com projetos ligados à Centros de Convivência ou Oficinas de Geração de Renda. A pesquisadora também tem utilizado registros de acontecimentos significativos do próprio espaço comunitário onde ela atua como profissional, de reuniões que freqüenta para discutir questões acerca de tais projetos no Município de Campinas, e de visitas feitas aos projetos comunitários nos quais os psicólogos estão inseridos. Percebe-se até o momento a potencialidade das práticas comunitárias na vida das pessoas, potencialidade esta que transcende os objetivos da clínica psicológica tradicional. Pode-se afirmar que o processo de pesquisar tem interferido diretamente na prática profissional da pesquisadora que tem procurado formas cada vez mais criativas de desenvolver sua clínica na comunidade. Além disso, pode-se dizer que as questões de pesquisa estão a todo o momento permeando também a prática dos participantes e da pesquisadora. As entrevistas representam uma parte de um processo de reflexão que já se iniciou mesmo antes da proposta deste estudo, porém sem uma sistematização teórica. Acredita-se desta forma, que a pesquisa pode contribuir para a construção de um referencial teórico que permita avançar um modelo de atuação 246 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA mais ampliado em saúde pública e comprometido com as questões sociais e que possibilite o crescimento humano a partir da inserção comunitária. Um outro exemplo da inseparabilidade e da retroalimentação constante entre pesquisa e intervenção é a pesquisa de doutorado, em andamento, de Campos (2006-2010), intitulada: “O ser voluntário”, que visa compreender os sentidos que a prática do voluntariado tem para as pessoas que se dedicam a ela, a pelo menos dois anos. Parte-se do pressuposto que esses sentidos não se reduzem ao que é imediatamente expresso nos discursos dos voluntários. Outros sentidos podem ser encontrados se a tais pessoas for facultada a possibilidade de se aprofundarem em suas vivências no contexto de uma entrevista facilitadora, não diretiva e reflexiva. Tal entrevista é um encontro interpessoal, uma situação de interação humana, que inclui a intencionalidade dos protagonistas e se constitui num momento de organização de idéias, de construção de conhecimento e de ressignificação de vivências. A partir da explicitação dos sentidos da prática pretende-se discutir o significado do voluntariado no contexto social contemporâneo em confronto com a literatura atual sobre o tema. Para tanto pretende-se conhecer a vivência que os voluntários têm dessa experiência (buscando por um caminho fenomenológico, ir além das primeiras declarações fornecidas); refletir sobre as diversas possibilidades de atuação voluntária e discutir o significado do voluntariado no contexto social contemporâneo. Considerando o aspecto propriamente interventivo como ação concreta junto a um grupo, podemos citar a pesquisa de doutorado desenvolvida por Baungart (2006-2010) cujo título é: “Grupo de Crescimento psicológico na formação sacerdotal: pertinência e possibilidades”, que tem como objetivo descrever e compreender o processo de desenvolvimento psicológico e formativo de préseminaristas católicos com a prática do grupo de crescimento. Para tanto, são realizados quinzenalmente encontros com pré-seminaristas católicos a fim de promover reflexões acerca das experiências de vida cotidiana do grupo. A pesquisadora atua como facilitadora dos encontros e procura, junto com os participantes, construir novos significados a cada reflexão trazida pelo grupo. Isso para que, através da descrição e re-significação das experiências relatadas se possa elaborar, junto com os participantes, uma pesquisa que faça sentido para a população estudada. Os resultados parciais dessa pesquisa mostram que a realização (intervenção) de um grupo de crescimento com pré-seminaristas contribui de maneira significativa para o crescimento pessoal e, conseqüentemente, para o desenvolvimento psicológico desta população. Isso porque durante a realização dos encontros, os participantes experimentam falar sobre suas vivências, seus sentimentos, suas incertezas e ansiedades frente ao desafio que pretendem enfrentar ao ingressar para o seminário. Ao compartilhar tais sentimentos com o grupo e a pesquisadora, o participante tem a oportunidade de refletir sobre aquilo que esta falando. Além disso, a ação conjunta do grupo tende a proporcionar um acolhimento que por si só gera no participante uma força interior capaz de 247 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA promover mudanças de comportamento e algumas vezes até de sentimentos que resultam no crescimento pessoal. Esses projetos de pesquisa demonstram a existência de quatro possíveis graus de intervenção para a pesquisa fenomenológica. O grau mínimo seria o que existe numa pesquisa baseada em depoimentos colhidos de experiências vividas, no modelo clássico de pesquisa fenomenológica de Amedeo Giorgi (1985). Uma vez solicitado o pedido do pesquisador e tendo ele sido entendido, o participante expõe seu depoimento quase sem diálogo. A intervenção que pode existir aqui decorre simplesmente do fato de o participante ter tido a oportunidade de vasculhar sua memória e narrar uma experiência. Acima desse grau podemos ver uma intervenção maior quando a “coleta de dados” não é feita simplesmente na forma de um depoimento, mas sim de uma entrevista reflexiva. O pesquisador dialoga com o participante, ajudando-o a chegar na experiência que pode interessar e, mais do que isso, podendo até trazer questões para serem elaboradas nesse diálogo. É claro que a mobilização aqui pode ser maior, como se verifica na pesquisa de Milanesi. A mobilização que situamos após esta depende de o pesquisador ser um participante da mesma situação, e estar envolvido pessoalmente também com o problema a ser pesquisado. Resulta do diálogo uma abertura de perspectivas e sentidos que podem interferir na prática tanto do participante como do próprio pesquisador: há uma mobilização do meio em que eles se encontram pelo surgimento de novos sentidos. É o caso da pesquisa de Cambuy e Campos. E finalmente o grau maior de intervenção ocorre quando a pesquisa se constitui como a dimensão reflexiva crítica de uma atuação concreta, que é o caso exemplicado pela pesquisa de Baungart. E aqui poderíamos ainda subdividir: num nível teríamos uma mobilização, digamos, individual provocada pelos novos sentidos pessoais vividos no grupo, e, em um nível mais abrangente, uma mobilização decorrente da integração de sentidos provenientes de uma conscientização maior de outros âmbitos de sentido (sociais, culturais, ecológicos, religiosos por exemplo). Referências bibliográficas Amatuzzi, M. M. (2001). Pesquisa fenomenológica em Psicologia. In: Bruns, M. A. T. & Holanda, A. F. (Org.). Psicologia e Pesquisa Fenomenológica - Reflexões e Perspectivas. 1ª ed. Ômega: São Paulo, p. 15-22. Amatuzzi, M. M. (2008). Por uma psicologia humana. 2ª ed. Alínea: Campinas – SP. Freire, P. (2007). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. 36ª edição. Paz e Terra: Rio de Janeiro. Freire, P. (1999). Criando métodos de pesquisa alternativas; In: Brandão, C. R. (Org.) Repensando a pesquisa participante. Brasiliense: São Paulo. 248 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Giorgi, A. (Org.) (1985). Phenomenology and psychological research. Duquesne Univ. Press: Pittsburgh. González Rey, F.L. (2005) Pesquisa qualitativa e Subjetividade: Os processos de Construção da informação. São Paulo: Pioneira Thomson Learning. Maraschin, C. (2004) Pesquisar e Intervir. Psicologia & Sociedade; 16 (1): 98107. Recuperado em 22/08/07: http:// www.scielo.br 249 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Psicodinamismos da mãe de crianças com tendência anti-social – Um Estudo de Caso Nerielen Martins Neto Fracalozz Valéria Barbieri Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo Resumo: O comportamento anti-social é tema de preocupação universal em função das graves conseqüências individuais e sociais que acarreta. A literatura aponta para um importante vínculo entre a qualidade do relacionamento dos pais com os filhos e o desenvolvimento e manutenção da tendência anti-social na criança. Nesse sentido, a contribuição teórica da Psicanálise, em especial de Winnicott, Freud e Klein aponta para a influência das características dos objetos materno e paterno dos pais na qualidade do cuidado dispensado ao filho. Neste contexto, este trabalho objetivou investigar as percepções inconscientes da estrutura e dinâmica familiar e a qualidade dos objetos internos de uma mãe de uma criança com tendência anti-social. Foi realizada um entrevista e o DF-E com uma mulher de 35 anos, proveniente de uma família intacta, de nível sócioeconômico médio-alto, mãe de uma criança com tendência anti-social, verificada através do questionário SDQ. Os dados colhidos, analisados segundo o referencial psicanalítico, indicaram que a participante possui um controle pulsional rígido e que tem dificuldades em lidar com a própria agressividade, voltando-a contra si mesma. Há uma doação excessiva ao filho, frustrando-o pouco, além de uma relação de controle. Os principais mecanismos de defesa utilizados por ela foram negação e racionalização e a angústia presente é de perda do objeto. A análise dos dados permitiu associar a relação de controle com o filho e a qualidade dos objetos internos da mãe ao comportamento anti-social do filho, sustentando as hipóteses propostas na literatura. Summary: Antisocial behavior is subject of universal concern in function of the serious individual and social consequences that it causes. Literature points to an important bond between the quality of the relationship of the parents with the children and the development and maintenance of the antisocial tendency in the child. In this direction, the theoretical contribution of the Psychoanalysis, in special of Winnicott, Freud and Klein points to the influence of the parents’ characteristics of objects maternal and paternal in the quality of the dispensed care to the son. So, this work objectified to investigate the unconscious perceptions of the structure and familiar dynamics and the quality of internal objects of a mother of a child with antisocial tendency. An interview and the DF-E were done with a woman of 35 years, proceeding from an intact family, of upper middle-high-economic level, mother of a child with antisocial tendency, verified through questionnaire SDQ. The data had indicated that the participant possesss a rigid pulsional control and that has difficulties in dealing with the proper aggressiveness, coming back it against herself. She has an extreme donation to the son, not frustrating him the sufficient, beyond a relation of control. The main 250 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA mechanisms of defense used by her had been negation and rationalization and the present anguish is of the object’s loss. The analysis of the data allowed to associate the relation of control with the son and the mother’s quality of internal objects to the son’s antisocial behavior, supporting the hypotheses in literature. Introdução: A literatura científica, em especial estudos relacionados à Psicologia e Psicanálise, tem apontado para a importância do relacionamento familiar na produção e/ou manutenção da tendência anti-social infantil. Teorias propostas por autores como Freud, Klein e Winnicott auxiliam na compreensão desta relação, ressaltando a importância das figuras parentais e do ambiente para o seguimento da tendência anti-social e do comportamento agressivo. O comportamento agressivo está ligado ao comportamento anti-social que, de acordo com Black (2001), indica uma rebelião contra a sociedade, uma negação das obrigações que ligam os indivíduos uns aos outros. Bordin e Offord (2000) relacionam o comportamento anti-social a fatores constitucionais e ambientais, entre eles ser do sexo masculino, receber cuidados maternos e paternos inadequados, viver em meio à discórdia conjugal. Tal comportamento está relacionado a transtornos psiquiátricos como o Transtorno de Conduta, o Transtorno Desafiador Opositivo e o Transtorno de Personalidade Anti-Social. Estudos de abordagem psicanalítica contribuem para a compreensão da etiologia, manutenção e prognóstico dos Transtornos de Conduta, Desafiador Opositivo e Anti-Social, relacionando-os com aspectos intrapsíquicos e etapas do desenvolvimento infantil. Nesses termos, conceitos como Complexo de Édipo, do superego, identificações e outros, desempenham papel de suma importância para a melhor compreensão de tais transtornos. Para Freud (1928/1974), a psicodinâmica do criminoso remete ao complexo de Édipo, especificamente ao processo de formação do superego no menino, tal como vivido por uma personalidade com forte disposição bissexual. Se nessa ocasião do desenvolvimento o pai for duro e cruel na realidade, o superego tornar-se-á sádico ao herdar esses atributos paternos, e o ego irá se converter em masoquista, desenvolvendo uma forte necessidade de punição. Nesse caso, um castigo infligido por um agente externo ou pelo superego pode satisfazer a necessidade masoquista do ego. Apesar de algumas divergências, em termos gerais, Klein (1927/1981) reforça os pressupostos freudianos sobre o comportamento criminoso. Ela também associa o desenvolvimento das condutas criminais ao Complexo de Édipo. Portanto, quando a criança pratica o delito, está tentando escapar da situação edípica, pois, por mais severo que possa ser o castigo real, ele é confortador se comparado aos ataques assassinos dos pais fantasiados pela criança. 251 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Diferentemente de Freud e Klein, Donald Winnicott não relaciona a tendência anti-social ao funcionamento do superego. Para ele, “existe uma relação direta entre tendência anti-social e deprivação” (WINNICOTT, 1956/1993, p. 503), deprivação no sentido da perda de algo bom, que foi retirado num momento específico do desenvolvimento, em que a criança já é capaz de perceber que a falha ocorrida foi ambiental. Para o bom desenvolvimento do bebê é necessário uma relação saudável com as figuras parentais. Apesar de alguns desacordos, os autores psicanalíticos enfatizam a influência dos cuidados maternos, assim como do grau de integração da personalidade parental no desenvolvimento saudável ou patológico dos filhos. Objetivos: Em vista da influência que tem o procedimento dos pais, principalmente da mãe, no desenvolvimento saudável ou não dos filhos, e uma vez que os cuidados proporcionados a eles dependem das condições psicológicas dos pais, da maneira como eles se percebem em seu papel na família e em suas relações familiares, o presente estudo visa investigar as percepções inconscientes da estrutura e dinâmica familiar e a qualidade dos objetos internos de uma mãe de uma criança com tendência anti-social. Método: Participante: Aline81 tem 35 anos e mora com marido e filhos. É de nível sócio-econômico médio-alto, e fez curso técnico. Possui dois filhos, um de 5 anos, (Cauã*) e outro de 8 anos, Guilherme*, que foi diagnosticado pelo questionário SDQ como apresentando tendência anti-social. Materiais: Além do Termo de Consentimento Livre Esclarecido, foi empregado o SDQ Strenghs and Difficulties Questionnaire, (Cury e Golfeto, 2003), um instrumento diagnóstico para a investigação da saúde mental de crianças e adolescentes, para avaliação do menino. Quanto aos instrumentos utilizados na avaliação da mãe, constaram uma entrevista psicológica desenvolvida pelas pesquisadoras que serviu para identificar a concepção da participante acerca da dinâmica e estrutura familiar e objetos internos; e também o Procedimento de Desenhos de Família com Estórias (DF-E), criado por Walter Trinca em 1978, visando apreender aspectos e conteúdos de natureza consciente ou inconsciente a respeito da dinâmica familiar. Análise de dados: 81 Nomes fictícios 252 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Os resultados foram avaliados com base no referencial psicanalítico. Inicialmente foi feita uma análise individual da entrevista, abordando o relato manifesto da participante, e análise de conteúdo temática das interpretações, incluindo o seu conteúdo latente, conforme modelo proposto por Figueiredo (1998). Os resultados do DF-E também foram submetidos à análise com base no referencial psicanalítico, referente ao seu conteúdo latente, e categorizados conforme um roteiro proposto pelas pesquisadoras. Estudo de caso: Resumo da entrevista A primeira gravidez de Aline foi inesperada, e foi tranqüila até os sete meses, época em que ocorreram alguns problemas com o marido, o que tornou a gravidez um pouco mais agitada. Hoje se vê como uma mãe mais tranqüila quando se compara ao seu marido, que considera autoritário, mas acaba se sentindo às vezes uma mãe irresponsável. Aline considera-se uma mãe ideal, mas diz que poderia ser mais paciente. Quanto ao marido, considera-o um excelente pai, que se preocupa e é carinhoso. Para ela, ele seria o pai ideal, contanto que fosse menos enérgico e exigente com os filhos. A participante vê o filho mais velho, Guilherme, como muito agitado, consumista, desligado, porém muito carinhoso. O que mais a preocupa com relação ao filho é seu comportamento “explosivo”, expresso principalmente quando ele é contrariado. Um acontecimento marcante para ela foi quando Guilherme chorou e se sentiu culpado por ter deixado um pintinho perto de sua cachorra que o matou. Aline ficou surpresa com essa reação do filho, porque anteriormente o considerava insensível. Sobre os relacionamentos dele na escola, ela relatou que ele tem vários amigos, e se faz algo que incomoda um deles, ainda sobram outros; então ele parece não se importar e nem tenta resolver a situação, e isso a deixa preocupada. Sobre a obediência do filho a ordens, ela disse que ele obedece mais ao pai. Geralmente ele a obedece também, mas depois de certa insistência. Caso ele não obedeça, ela o coloca de castigo, retirando algo que ele gosta, como o futebol. Aline avaliou sua relação com o filho como boa, mas gostaria que ele lhe contasse mais sobre sua vida. Já no relacionamento com o pai, ela diz que Guilherme costuma reclamar do comportamento exigente do pai, mas que os dois brincam juntos com freqüência. Ela gostaria que o filho fosse mais carinhoso com o pai. A concepção de família de Aline é estar todo mundo junto, ter saúde e querer que os demais membros estejam bem. Essa seria considerada uma família ideal. Análise da entrevista: A análise individual e a análise de conteúdo temática da entrevista expressam 253 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA que Aline é extremamente rígida consigo mesma e pouco autônoma. Pareceu estar ligada a valores morais e exigir que o filho seja da mesma maneira. Por exemplo, a forma mais “seca” de demonstrar afeto dela com o filho, e do filho com os outros, está aquém do que ela julga que seria o correto. Seguindo esta linha de raciocínio, ela considera que o marido está certo ao ser exigente, e se considera irresponsável, demonstrando uma certa culpa por não atingir o que considera ideal. Assim, acaba exercendo grande pressão sobre si mesma, buscando o que é socialmente aceito em detrimento do que ela realmente é. Ainda relacionado à sua exigência, Aline parece sentir que para ser uma boa mãe é importante satisfazer todos os desejos de seu filho, mas se ressente quando percebe que o retorno não é tão sólido como esperava. Numa doação excessiva, a participante frustra pouco o filho. Quando tenta dar tudo, a criança não consegue discriminar o que realmente deseja e acaba não se envolvendo com o que lhe é oferecido, por conseguir tudo tão facilmente. Além disso, permanece numa relação de controle sobre o filho. Ela acredita que sendo um exemplo perfeito, o filho poderá seguí-lo, mas para isso precisa ser monitorado, faltando aí abertura e flexibilidade para seu pleno desenvolvimento. Guilherme parece se esforçar para manter sua autonomia e separação da mãe. Aline atribui as dificuldades do filho a uma semelhança com ela mesma, a questões específicas a um desenvolvimento normal e a uma acomodação do filho. A agressividade do filho parece ser assustadora para ela, talvez por não dar conta de entrar em contato com a própria agressividade. Nesse momento ela precisaria repudiar o objeto para se afastar e se diferenciar dele. A figura de autoridade da casa é o pai, que, em sua percepção, impõe limites de forma rígida e autoritária. Ela, no entanto, parece possuir dificuldade em impor limites ao filho, que a obedece, mas com dificuldade. Os principais mecanismos de defesa utilizados são a negação, por exemplo quando ela não aceita que os irmãos não se gostem o quanto ela acredita que deveriam, e a racionalização, expressa quando explica suas dificuldades como mãe por ter tido filho quando era mais velha, quando, na verdade, ela ainda era jovem, com 28 anos. Suas principais frustrações estão relacionadas à própria mãe, que ela relatou ter sido sempre muito desligada, e em relação à falta de diálogo com o filho. DF-E: Serão expostos os desenhos da participante e recortes das estórias criadas a partir deles. As falas entre parênteses são da entrevistadora. Primeiro desenho: desenhe uma família qualquer 254 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Comentário: Qualquer? Como assim? Pode ser a minha? Nossa, sou péssima pra desenhar. Meu Deus. Minha família. Seria meu marido, eu, Guilherme e o Cauã. Gente, sou péssima pra isso. [...] Estória: Aqui então tá o Guilherme ensinando o Cauã a soltar pipa. E, eu de repente servindo um lanchinho pra eles lá na rua. [...] E meu marido ajudando eles. Porque é muito legal ver meu marido soltar pipa com eles. Que quando eu era criança meu pai que vinha soltar pipa comigo. [...] Acho que é isso. (Como estão?) Tá todo mundo se divertindo, eu um pouquinho só estressada, preocupada com a rua. Eu fico o tempo todo assim pra ver se não está vindo carro. Mas curtindo o momento também. Título: um fim de tarde feliz Segundo desenho: desenhe uma família que você gostaria de ter. Estória: [...] o Guilherme quando ficou sabendo que ia ter um irmãozinho, ele não gostou muito da idéia. Quando o Cauã nasceu eu sentia que ele mudou, no começo ele ficou muito revoltado. Começou a fazer xixi na cama de novo, aquela coisa que volta né. Porque assim, eu tinha vontade de ter 3 filhos. Mas a situação financeira não dá muito. [...] Então assim, por enquanto não dá. A minha vontade é que tipo assim, a gente conseguisse chegar nessa fase de falar podemos ter mais um filho, e os dois, o Guilherme e o Cauã aceitar muito bem. Porque eu sofri muito com essa rejeição do Guilherme, no começo né. Da rejeição do Guilherme com o Cauã. [...] Então não dá (para ter mais um filho), mas eu acho que ia ser uma família super alegre. 3 meninos eu tinha vontade de 255 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA ter. Se viesse menina ia ser legal também. Mas eu ia gostar muito se viesse um menino. Título: a família dos sonhos. Terceiro desenho: desenhe uma família em que alguém não está bem. É alguém família? da Eu. Porque eu acho que eu sou mais forte pra agüentar eu estar doente, eu estar com algum problema, do que os meninos, do que o meu marido. [...] eu percebo que eu sou mais fraca. Se for comigo eu sou mais forte assim. [...] então a gente acaba ficando forte mesmo. Você tem que ficar sempre com a cabeça erguida. [...] Então não venham me falar ‘ah, o Cauã não ta normal. Ai o Guilherme esse negocinho na perna dele’. Não suporto. Sabe assim, eu brigo, chego a brigar. [...] Tipo assim, parece, é como se eu, eu to vendo que alguma coisa não ta normal, mas que eu não aceitasse. Eu não aceito que isso não esteja normal. [...] Então eu acho que eu sou muito fraca pra suportar os problemas dos outros. [...] se eu não me sentir bem por algum motivo assim, eu fico mais calada. [...] Eu fico mais quietinha, gosto de ficar na retaguarda. [...] Título: o aguardo do amanhã. O amanhã vai tudo melhorar. Hoje eu não to bem, mas amanhã vai ta tudo ótimo. No aguardo do amanhã melhor. Quarto desenho: desenhe a sua família. 256 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Estória: ... ah, uma família bem feliz. [...] olha, agora eu vejo uma família bem equilibrada, ta tudo bem, [...] eu vejo assim, que eu chego em casa ta tudo tranqüilo, eu me preocupo muito com a saúde. [...] Então ta tudo bem com a saúde, pra mim ta ótimo. [...] Mas assim, hoje, hoje minha família ta equilibrada. Título: Uma família saudável e feliz. Análise do DF-E O primeiro desenho aparece com braços e pernas muito finos, frágeis, simbolizando uma falha de sustentação e da capacidade de agir no mundo. A falta do uso da cor indica uma dificuldade de integração do afeto. Apresenta no início do teste certa dificuldade para regredir, expressada por sua fala hesitante antes de começar a desenhar. Não faz diferença no desenho entre criança e adultos, mas os papéis familiares estão bem demarcados e estereotipados. A mãe como provedora, porém com algumas dificuldades, expressadas pela linha que a corta (desenho de uma bandeja), e o pai junto aos filhos como modelo de identificação. Na estória é expressa a angústia de que algo ruim aconteça com os filhos se saírem do controle dela. Mostra-se capaz de aceitar a autonomia dos filhos, mas com reservas. No segundo desenho as pernas dos personagens estão ainda mais finas, e estão longe da linha desenhada como solo, indicando piora na capacidade de sustentação, o que indicaria uma família um pouco mais dependente. O pescoço fino e comprido indica controle restrito, inibidor das pulsões. Além disso, o tronco separado da parte inferior do corpo indica repressão das pulsões sexuais. Na estória ela parece perceber o ciúme entre os irmãos, situação típica da circunstância do nascimento de um novo irmão, como uma rejeição. Parece pensar que uma família ideal não tem conflito, nem rejeições, e que aquilo que fugir dessa concepção ameaça a integridade do grupo. Isso demonstra uma dificuldade em integrar suas pulsões agressivas. No terceiro desenho a angústia parece aumentar. A debilidade física aumentada, não há diferenciação sexual entre as crianças, e a autonomia simbolizada pelos membros aparece mais abalada, principalmente na figura feminina, com pernas unidimensionais e separadas do tronco. Essa figura quase não tem pescoço, indicando dificuldade na transposição das pulsões. Na estória, doença é vista como ferida narcísica e o apontamento de que a família não está bem é visto como algo agressivo. Ademais, perceber-se frágil e precisar da ajuda do outro também causa tal ferida. Dessa maneira, ela parece tentar proteger os outros de sua agressividade voltando-a contra si própria e 257 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA preservando assim o objeto. A principal angústia presente é a de perda do objeto. No último desenho a autonomia de todos os personagens parece comprometida. Apenas a figura paterna parece manter maior contato com a realidade, por possuir as pernas em contato com a linha do solo. Ao dar importante valor à saúde da família, a participante reforça a angústia de perda do objeto. Diante de sua insegurança, qualquer doença fica aumentada e passa a ameaçar a segurança e integridade da família. Parece haver um receio de que a perda do objeto possa comprometer a união e felicidade da família. Discussão: A análise do caso sustenta as hipóteses propostas na literatura sobre a etiologia do comportamento anti-social como procedente das características psicodinâmicas dos pais. O comportamento exigente do pai pode estar agindo como a figura paterna cruel e sádica que promove o desenvolvimento de um superego sádico e um ego masoquista na criança. Da mesma forma, a mãe oferece uma educação inconsistente quando é permissiva demais com o filho, mas ao mesmo tempo exigente. Outra ambivalência presente é sua forma mais “seca” de demonstrar afeto, mas, em contrapartida, gostaria que o filho fosse mais próximo e que houvesse mais diálogo. De acordo com a literatura, há uma relação entre as características dos objetos internos dos pais e a qualidade do relacionamento deles com os filhos. Nesse sentido, podemos relacionar parte dessas falhas de Aline no cuidado dispensado ao filho à qualidade do cuidado parental que Aline recebeu, a partir de seu relato sobre ter uma mãe omissa e distante. Além disso, o comportamento anti-social do filho pode estar se revelando numa tentativa de afastar-se da mãe em busca de autonomia. Seria uma forma para fugir dessa relação de controle e monitoramento excessivo com a mãe, que teme que a perda do objeto possa dissolver a família. Referências bibliográficas: BLACK, D. W. Bad boys, bad men. Rev. Bras. Psiquiatr., São Paulo, v. 23, n. 4, 2001. BORDIN, I. AS; OFFORD, D. R. Transtorno da conduta e comportamento antisocial. Rev. Bras. Psiquiatr., São Paulo, 2000. CURY,C.R.;GOLFETO,J.H. Strengths and difficulties questionnaire (SDQ): a study of school children in Ribeirão Preto. São Paulo. Revista Brasileira de Psiquiatria. v.25, n. 3, 2003. FIGUEIREDO, M. A. C. Escalas afetivo-cognitivas de atitude. Construção, validação e interpretação de resultados. In: ROMANELLI G & BIASOLI-ALVES Z. Diálogos metodológicos sobre prática de pesquisa, Editora Legis Summa, Ribeirão Preto, p. 51-70, 1998. 258 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA FREUD, S. (1928) Dostoieviski e o Parricídio. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Imago Editora. v. XXI, p. 179 a 198, 1974. GOODMAN, R. The Strengths and Difficulties Questionnaire: A research note. Journal of Child Psychology, Psychiatry, and Allied Disciplines, 38 (5), 581-586, 1997 KLEIN, M. (1927) Tendências criminais em crianças normais. In: Contribuições à psicanálise. Trad Maillet, M. São Paulo, Mestre Jou, 1981, p.233-252. WINNICOTT, D.W. (1956) A tendência anti-social. In: Textos selecionados: da Pediatria à Psicanálise. Trad. Russo, J. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1993, p. 499-511. 259 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Inconsciente e singularidade: diretrizes iniciais de pesquisa de formação de gupos de conversação no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro Nelisa Guimarães Resumo: Após pesquisa sobre saídas de pacientes de longa permanência em internação psiquiátrica (FAPERJ - IPUB/UFRJ), inicia-se pesquisa com grupos de conversação de pacientes internados, com base conceitual psicanalítica e com inclusão da equipe clínica multidisciplinar em sua realização. Os conceitos que fundamentam o início da pesquisa são expostos para discussão, assim como o ponto de partida metológico para o funcionamento dos grupos e para sua continuação com registros dos efeitos produzidos. Abstract: After a research about patients leaving psychiatric hospital from long term internation (FAPERJ - IPUB/UFRJ), a new work begins with conversation groups for patients still in the hospital. This work is based on psychoanalytic concepts. The groups include professional technicians from the clinic multidisciplinary team. The fundamental concepts that started the new research are exposed for discussion, and also the methods for conversation groups functioning and their continuous maintenance with notes from the effects observed. Apresentação do ponto de partida da pesquisa: O ponto de partida conceitual é o enfoque da psicanálise na perspectiva atual do pensamento da diferença1 - situando-a no campo da imanência, das intensidades, da diferença pura e da potência de singularização. As posições singulares que oferecem resistência ao Outro social haviam sido destacadas por Freud em seu conceito de mal-estar, que define a experiência humana entre o laço comum – altruísta – e o prazer ou o gozo próprio do supereu no sentimento de culpa – egoísta – que pode favorecer oudesfavorecer a inclusão neste laço comum2. A prática da psicanálise depende sempre de uma ética em que o desejo do psicanalista não é um desejo puro – é um desejo de obter a diferença absoluta, como afirmou Lacan3 ao definir a relação singular entre uma posição de se assujeitar e um significante primordial. As formas de subjetivação, no modo psicanalítico de apreensão, se dispersam num devir singular, na plena contingência, na dimensão de resistir e arriscar o impossível contra posturas padronizadas ou coercitivas – como indica o autor citado anteriormente C. A. Peixoto Jr. e também o autor S. Zizek4. No IPUB/UFRJ, encontramos mais diretamente a padronização das classificações diagnósticas internacionais e a primazia do uso de medicamentos na clínica 260 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA psiquiátrica. Ainda existem pacientes internados no hospital que ali permanecem por meses ou anos, devido à falta de alternativa de moradia assistida ou de cuidados domiciliares. Alguns pacientes elegem significantes primordiais como "presos" no hospital, ou "cobaias" das alterações medicamentosas, das pesquisas ou da ECT, para definir sua singular condição. Das 5 equipes clínicas, coordenadas por psiquiatras, apenas 1 tem funcionamento regular multidisciplinar: com residentes, especializandos, além do staff composto por psiquiatra, psicólogo, assistente social e enfermeiro. As posições de todos os profissionais é bastante diversificada, o empenho clínico é exposto e avaliado nas Sessões Clínicas semanais. Das 4 equipes que não contam com todas as presenças profissionais regularmente, pertenço atualmente a 2 – para realizar a pesquisa e promover a direção multidisciplinar na conversação em grupo com pacientes internados, seguindo o foco de elaboração dos seus respectivos projetos terapêuticos. A realização permanente dos 2 grupos tem um ponto de partida psicanalítico, e é acompanhada por pesquisa na área de Avaliação de Serviços coordenada pela dra. Maria Tavares (atual coordenadora da Psiquiatria no CCS/UFRJ). O ponto de partida psicanalítico considera os conceitos de inconsciente e singularidade na promoção do laço multidisciplinar, que deve envolver o projeto terapêutico de cada paciente e as decisões possíveis para desenvolvê-lo efetivamente, e deve auxiliar na promoção do laço social que envolve pacientes, familiares, profissionais, e seus relacionamentos. Se as posições subjetivas são singulares, o encaminhamento e o atendimento de dificuldades também seguem a mesma direção singular. Os grupos estão sempre abertos para a participação dos profissionais e dos alunos de cada equipe clínica, e para os pacientes (mesmo quando saem de internação) e respectivos familiares. Funcionam semanalmente no horário de plantão da respectiva equipe clínica. Momento inicial da pesquisa: pontos de discussão 1. A posição a --> S barrado do discurso psicanalítico: Este matema lacaniano serve de orientação para o pesquisador nos primeiros tempos de implantação dos grupos de conversação e indica algumas direções: não recuar diante da psicose e das incompatibilidades com o laço social; não recuar diante da segregação entre profissionais especialistas dentro da instituição, nem diante da exclusão promovida eventualmente por ignorâncias ou mestrias especializadas; na atuação constante do pesquisador nas equipes clínicas e nos grupos de conversação, seguir trajetos que partem de uma causa real fora dos padrões e padronizações, fora dos saberes, na direção do não-saber e das 261 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA singularidades assumidas por cada profissional e cada paciente (S barrado), na aproximação de uma mestria inconsciente que quase sempre conduz a trajetos solitários não reconhecidos. Obs. Não se trata de elucidar ou interpretar a mestria inconsciente, mas de seguí-la e respeitá-la para aproveitar sua orientação. O método da conversação: O dispositivo da fala aqui não se confunde com um grupo terapêutico, uma terapia institucional ou uma oficina da palavra: a conversação põe em curso a dimensão subjetiva, a emergência do sujeito em sua fala, num espaço em que o inconsciente se torna audível pelo encontro com uma escuta e um destinatário muito particulares; o grupo de conversação é o destinatário que toma alguns ditos ou algumas palavras como "senha", mot de passe, abertura de sentidos próprios da língua de cada um5 (cada paciente e cada profissional) para entrar na perspectiva de saída de internação; a repetição, o defeito de falar demasiado de si, a desatenção, a tendência à contradição, à discussão, à pilhéria...tudo isso pode, paradoxalmente, converter-se em trunfos, refletir-se em jogo, produzir um ritmo, ser a marca de uma singularidade que rechaça o tédio e, em vez de extinguir o espírito da conversação, perpetuar-lhe a febre, o encanto6. Para o biólogo H. Maturana da Universidade do Chile, uma ontologia da realidade se constitui com a posição de observação das interações: o sistema vivo humano, com um sistema nervoso fechado em rede, é autopoiético. Ou seja, suas interações coordenam ações e emoções como na linguagem das conversações que promovem, segundo ele, contínua mudança estrutural do sistema – a esse fluir entrelaçado de linguajar e emocionar eu chamo conversar, e chamo conversação o fluir, no conversar, em uma rede particular de linguajar e emocionar7. Então, podemos dizer que a conversação provoca singularidades e coloca em processo mudanças estruturais biológicas da realidade de cada um ? Podemos, a seguir, comentar a diferença de andamento dos 2 grupos e algumas situações específicas de pacientes e profissionais – comentários a serem expostos em comunicação oral. Outubro 2008 [email protected] 21/ 22759619 e 99781425 1Peixoto Jr, C.A. Singularidade e subjetivação. Rio de Janeiro: 7 Letras / Ed. PUC-Rio, 2008, p.13-14. 262 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA 2Freud, S. "O Mal-estar na Civilização" (1930) em Edição Standard das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p.165. 3Lacan, J. O Seminário – livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar ed., 1979, p.260. 4Zizek, S.; Daly, G. Arriscar o impossível – conversas com Zizek. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.28-29. 5Chottin-Burger, A. ."Le mot de passe – d'une langue à l'autre", CIEN, Bordeaux, 2007. 6Morellet, A. . Sobre a Conversação, Prefácio de Ch. Thomas, p. XXVII. São Paulo: Martins Fontes, 2002, com texto de J. Swift. 7Maturana, H. A Ontologia da Realidade. Belo Horizonte: ed. UFMG, 1997, p.167 e p.279, citação p. 172. 263 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Família monoparental: um estudo psicanalítico do imaginário coletivo de universitários Paulo César Ribeiro Martins Andrei Ferrari Faria William Divaldo Mortele Universidade de Passo Fundo Resumo: Este estudo objetivou investigar o imaginário coletivo de universitários sobre famílias monoparentais, bem como elucidar os campos psicológicos não conscientes. O método psicanalítico foi operado através da Teoria dos Campos, em próxima interlocução proposta pelo psicanalista José Bleger. O Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema foi utilizado na abordagem coletiva de uma classe de estudantes de Direito. Foram encontrados dois campos psicológicosvivenciais, que denominamos “família happy day”, e “a dor de uma saudade”. Palavras-chaves: Procedimento de Desenhos-Estorias com Tema, imaginário coletivo, família monoparental, psicanálise, direito. Abstract: The objective of this research is to investigate the collective imaginary of students about aloneparent families, as well as to elucidate the non conscious psychological field. Therefore, the psychoanalytic method was operated through the Fields Theory, having as groundwork the psychoanalytic theory of José Bleger. The Procedure of Thematic Drawing-and-Telling Stories was used in a collective approach in a classroom of Law students. They were found two fields psychological-living: "family happy day" and “the pain of a longing". Keyword: procedure of drawing-stories with a theme, collective imaginary of students, aloneparent families, psychoanalysis, law. De acordo com Correia (2008), A família monoparental é constituída por um só cônjuge e seus filhos, os quais podem ter diversas idades. Nesse sentido, a família, após a Constituição de 1988 (2003), é considerada uma entidade reconhecida e protegida pelo Estado que pode ser composta por apenas por uma pessoa adulta responsável pelos cuidados e formação de outra pessoa (Winnicott, 1983; 1996). Já nos anos de 1970, havia grande incidência desse modelo de familiar. Nessa época, predominava o modelo familiar tradicional, conseqüentemente, outros modelos não eram reconhecidos como família. Na atualidade, mesmo com a proteção do Estado e o aumento dessas famílias que hoje representam segundo Correia (2008), vinte e seis por cento dos tipos de configurações familiares, ainda é evidenciado através dos meios de comunicação que o modelo tradicional é o modelo mais almejado. Neste contexto, coube investigar o que as pessoas imaginam acerca dessa família, já que o imaginário coletivo determina condutas 264 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA (Bleger, 1989) e pode influenciar na qualidade de vida no que diz respeito à dignidade da pessoa humana preconizada pela Constituição de 1988. A Constituição Federal brasileira reconheceu não existir mais a necessidade da existência de um casal com seus filhos para a configuração de uma família. Posteriormente, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (2008), reafirmou integrar as relações monoparentais quando em seu artigo 42, expressou a possibilidade de adoção independente de estado civil, havendo uma verdadeira subtração do antigo pressuposto do casamento e da exigência de um casal – homem e mulher – para uma possível adoção e construção de uma família. A formação da família monoparental tem se dado por diversos fatores. Este fenômeno parece ter começado a se evidenciar após as grandes guerras, em função de muitas mulheres ficarem viúvas e se verem obrigadas a cuidar de seus filhos sozinhas. Outro fator preponderante começou a surgir a partir dos anos de 1950, com estudos de Kinsey sobre comportamento sexual (Martins, 2007), os quais influenciaram profundamente os valores culturais dos Estados Unidos durante os anos sessenta, repercutindo no advento da revolução sexual, resultando numa maior autonomia feminina em todos os sentidos, tendo como conseqüência o fato de que, a partir dos anos 70, essa configuração familiar triplicou. No Brasil, as famílias monoparentais chefiadas por mulheres vem aumentando como demonstra os dados fornecidos pelo IBGE (Correia, 2008), onde em 1970, 82,3% das famílias monoparentais eram chefiadas por mulheres e 17,7% por homens, já em 2003 a proporção é de 95,2% de mulheres e 4,6% de homens. Com isso observa-se que há um crescente número de famílias monoparentais, nos últimos anos, presididas por mulheres. Lôbo (2008) aponta como causa disso a maior facilidade para os homens do que para as mulheres em reconstituírem novas uniões estáveis, conseqüentemente formando novas famílias segundo o modelo tradicional (pai, mãe e filho). Outro fator da monoparentalidade é a questão de os homens, segundo dados do IBGE (Correia, 2008), estarem morrendo mais cedo do que as mulheres, conseqüentemente elas ficam viúvas, muitas tendendo a cuidar de sua prole sozinhas. Como descrevemos, são várias as situações que levam à formação de uma família monoparental, na qual ocorre à ausência de um casal: por livre vontade, viuvez, situações relacionadas à separação ou casos de adotante solteiro. Cabenos como pesquisadores buscar contribuições de ciências instrumentais ao Direito como a Psicanálise, para fornecer uma melhor compreensão do fenômeno da família monoparental no que diz respeito ao imaginário coletivo. De acordo com Aiello-Vaisberg (1999), o imaginário coletivo pode ser considerado, à luz das propostas blegerianas, como conjunto de manifestações simbólicas de subjetividades grupais, vale dizer, como condutas de âmbito sóciodinâmico que se expressam na mente, que vem à luz como acontecimento dotado de múltiplos sentidos emocionais (Bleger, 1989). Nesse contexto, a pesquisa sobre o imaginário coletivo comporta tanto sua identificação como a 265 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA elucidação de seu substrato lógico-emocional não consciente, o que configura a adoção de uma perspectiva psicodinâmica. Esta concepção coincide com o enquadramento dramático, que propõe estudar os fenômenos humanos em termos de experiência subjetiva enquanto acontecimento dotado de sentido, numa perspectiva psicológica. Nessa linha, o método psicanalítico foi operado através da Teoria dos Campos, que busca o inconsciente relativo, a partir do qual está lógico-emocionalmente estruturada a conduta emergente (Herrmann, 2001). Metodologia Realizamos uma entrevista coletiva com trinta estudantes de uma classe da faculdade de Direito. Durante a entrevista, o Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema foi utilizado como recurso mediador visando facilitar o estabelecimento de uma comunicação significativa, focalizada sobre a questão da família monoparental. O Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema foi desenvolvido por AielloVaisberg a partir de procedimento diagnóstico criado, na Universidade de São Paulo, por Walter Trinca (2006). O qual consiste na solicitação de um desenho especificado em termos temáticos, bem como de uma estória sobre a figura produzida (Aiello-Vaisberg, 1999). No presente caso, solicitamos o desenho, na presença do pesquisador, de uma família monoparental. Em seguida, pedimos aos alunos que virassem a página e, no verso, usando a imaginação e criatividade, inventem uma estória sobre o desenho. Finalizada a entrevista coletiva foi realizada a análise de todos os desenhosestórias em dois momentos. No primeiro foi feita uma análise do conteúdo manifesto nos desenhos-estórias buscando identificar as produções imaginárias. Num segundo momento os pesquisadores buscaram a elucidação do substrato lógico-emocional não consciente de acordo com o método interpretativo psicanalítico. Os pesquisadores não buscaram o significado verdadeiro de cada comunicação, até porque não existe o tal significado verdadeiro, mas se deixaram impressionar pelas associações que lhes vierem espontaneamente diante das produções dos sujeitos. Ou seja, todo o processo foi presidido pela associação livre e pela atenção equiflutuante que, segundo Aiello-Vaisberg e Machado (2007), são práticas que têm caráter fenomenológico, correspondendo à suspensão de juízos e conhecimentos prévios, bem como à abertura e acolhimento à expressão. Resultados A partir da análise e identificação das produções imaginárias, surgiram as seguintes dimensões: definição, causalidade, conseqüências e soluções. As definições apresentadas a respeito da família monoparental, consideradas por homens e mulheres, tendem a imaginar primeiramente como uma família 266 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA composta apenas por mãe e filho, seguido por pai e filho. No que se refere as causas, a maior prevalência é a separação dos pais, seguida da morte e abandono de um dos parceiros. Em relação às conseqüências obtivemos as positivas e as negativas. As positivas são as que na situação de monoparentalidade as famílias podem seguir suas vidas bem adaptadas. As negativas são que algumas crianças apresentam dificuldades de se aproximar das pessoas e de ter amigos para brincar. A discriminação sobre as famílias monoparentais também aparece como um determinante das relações sociais dessas famílias, sendo igualmente expressiva a visão de que as crianças dessas famílias ficam mais vulneráveis, apresentando incertezas quanto ao futuro e sua estabilidade. Aparecem sentimentos de solidão, tristeza, carência afetiva, frustração, revolta, necessidade de atenção por terem perdido o pai ou a mãe e dificuldade de perdoar em função de situações onde houve abandono. No imaginário dos estudantes aparece claramente o sentimento da falta do pai e de ser diferente em função da monoparentalidade. Como solução, tanto para os homens como para as mulheres, os cuidados com a família monoparental envolvem: ajuda da rede de apoio que implica em fazer amigos, ir à escola e receber cuidados dos demais familiares. A solução mágica aparece apenas em um desenho-estória de uma mulher, enquanto a solução do “recasamento” aparece em ambos os sexos. No que se refere aos campos psicológico-vivenciais sobre os quais se organizam as concepções conscientes, o diálogo de criação/descoberta dos campos não conscientes, subjacentes aos desenhos-estórias pesquisados, resultou na captação de dois campos, que denominamos “família happy day” e “a dor de uma saudade”. O primeiro refere-se ao campo constituído pela crença segundo a qual a falta de uma das figuras parentais não é impedimento para a felicidade familiar. O segundo organiza-se ao redor da crença segundo a qual os genitores são os causadores da infelicidade familiar. O campo da “família happy day” é produzido pela ação de defesas maníacas, tais como negação da falta da figura parental ausente e a idealização de uma vida perfeita sem problemas. Já o campo “a dor de uma saudade” se estrutura, evidentemente, a partir da depressão. Considerações finais A família monoparental tem aumentado muito nas últimas décadas, tanto a nível nacional como internacional. Por isso, estudar a monoparentalidade é importante para a compreensão do que as pessoas imaginam sobre esta questão, já que existe uma predominância social em ressaltar o modelo clássico triangular, ou seja, a família formada por pai, mãe e filhos, como o modelo mais adequado em detrimento dessa nova família que vem crescendo, o que é uma porta aberta para a manutenção da discriminação em relação a outros modelos familiares. 267 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Assim, conhecer os campos psicológico-vivenciais sobre os quais se organizam as concepções conscientes pode facilitar transformações no modo como os grupos sociais concebem a família monoparental, libertando-os de adesões a concepções restritivas que tendem a empobrecer o viver. Referências bibliográficas AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Encontro com a loucura: transicionalidade e ensino de psicopatologia. 1999. 197f. Tese (Livre-Docência em Psicopatologia Geral I e II) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. AIELLO-VAISBERG, T. M. J.; MACHADO, M. C. L. Narrativas: o gesto do sonhador brincante. Disponível em: <http://www.estadosgerais.org/encontro/IV/PT/trabalhos/Tania_Maria_Jose_Aiel lo_Vaisberg_e_Maria_Christina_Lousada_Machado.php>. Acesso em: 27 fev. 2007. BRASIL. Constituição federal. 7. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2003. BRASIL. Lei n. 8069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/legisla.htm>. Acesso em: 28 jul. 2008. BLEGER, J. Psicologia da conduta. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. CORREIA, I. M. Famílias monoparentais – uma família, um caso. Disponível em: <_TTP://66.102.1.104/scholar?hl=ptBR&lr=&1r=&q=cache:7p1wsnengd0j:publisaude.com/rpcgpdfs/2002/julago02/n 4v18241.pdf+fan%c3%adlia+monparental>. Acesso em: 15 mar. 2008. HERRMANN, F. A. Andaimes do real: o método da psicanálise. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. LÔBO, P. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. MARTINS, P. C. R. O amante competente e outros campos do imaginário coletivo de universitários sobre dificuldades sexuais masculinas. 2007. Tese (Doutorado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Centro de Ciências da Vida, Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas, 2007. TRINCA, W. Investigação clínica da personalidade: o desenho livre como estímulo de apercepção temática. São Paulo: EPU, 2006. WINNICOTT, D. W. O ambiente e o processo de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983. WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 268 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA “Será que ele é?” O imaginário sobre a homossexualidade Paulo César Ribeiro Martins Tânia Maria José Aiello Vaisberg Pontifícia Universidade Católica de Campinas Resumo: Este artigo apresenta resultados parciais de pesquisa realizada com objetivo de investigar psicanaliticamente as produções imaginárias de universitários sobre dificuldades sexuais masculinas, por meio do uso do Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema em aplicação coletiva em uma classe de estudantes de Direito. A análise do material se fez mediante o uso do método psicanalítico, que foi operado com o auxílio da Teoria dos Campos e do conceito de conduta de José Bleger. Foram encontrados três campos psicológicos-vivenciais, que gravitavam ao redor da supervalorização da performance sexual masculina, das dificuldades nos relacionamentos estáveis, e, finalmente, da orientação sexual. Este texto focaliza, especificamente, o campo denominado “Será que ele é”, que diz respeito a produções que inserem as dificuldades sexuais masculinas no contexto da orientação sexual. Palavras-chave: Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema, dificuldade sexual masculina, imaginário coletivo, psicanálise, homossexualidade. Will it be that he is? The imaginary of students about homosexuality Abstract: This article presents partial results of a research accomplished with objective is to investigate the collective imaginary of students about male sex problems. Therefore, the psychoanalytic method was operated through the Fields Theory, having as groundwork the psychoanalytic theory of José Bleger. The Procedure of Thematic Drawing-and-Telling Stories was used in a collective approach in a classroom of Law students. The psychoanalytic analysis indicated that the imaginary figure is organized starting from fields linked to the need of reaching a certain pattern of competent behavior, to the difficulties to get a stable relationship and sexual orientation. This text focuses, specifically, the denominated field “will it be that he is?”, which refers the male sex problems in the context of the sexual orientation. Keyword: procedure of drawing-stories with a theme, male sex problems, collective imaginary of students, psychoanalysis, homosexuality. 269 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A condição masculina, a partir do paradigma vigente na cultura ocidental, segue o modelo da família patriarcal que é permeado por expectativas sobre quais são os comportamentos próprios do homem e da mulher. Neste sentido, podemos dizer que os papéis sociais feminino e masculino são histórica e socialmente produzidos. Como indica Bleger (1963), todo conhecimento é socialmente condicionado. Deste modo, não nos surpreende constatar que a teorização dos grandes psicanalistas, de Freud a Winnicott, exibe marcas de influências sócio-históricas. Entretanto, podemos perceber que, ao longo do século XX, período durante o qual a posição da mulher mudou muito, pelo menos na sociedade ocidental, muitas mudanças ocorreram no âmbito da teorização psicanalítica, com crescente reconhecimento acerca do valor da mulher, que deixa de ser vista, a partir das contribuições da escola inglesa, tão-somente como um ser castrado. Entretanto, temos dúvidas acerca do quanto uma melhor visão da mulher chegou realmente a afetar o modo como é visto o homem, pois a impressão que temos, tanto a partir da clinica como da presente pesquisa, é que as exigências relativas à masculinidade não se modificaram substancialmente em termos do imaginário coletivo. Parece que à antiga lista de requisitos somam-se, atualmente, novas exigências, que incluem participação em mundos que anteriormente ficavam a cargo das mulheres, maior sensibilidade afetiva e dedicação sexual à parceira, como temos visto neste início do século XXI. No entanto, parece ainda estar fortemente presente a idéia de que quem não se enquadra nos padrões de condutas masculinos socialmente estabelecidos tem sua orientação sexual posta em dúvida. Dessa forma, cabe introduzir a contribuição do estudo do imaginário coletivo sobre as questões da orientação sexual, para que possamos ter uma compreensão mais completa do que envolve esta realidade. A consideração do fenômeno da orientação sexual a partir do estudo do imaginário coletivo faz sentido pleno quando defendemos uma concepção de homem como ser socialmente determinado, emergente de uma complexa rede de vínculos e relações sociais (Aiello-Vaisberg, 1999). Método De acordo com Bleger (1963), trabalho investigativo, no campo da psicologia, deve partir sempre da dramática da vida para seguir caminhos de teorização que se mantenham maximamente próximos ao plano concreto das vivências emocionais. Assim, tanto nos preocupamos com o estabelecimento de uma estratégia de pesquisa que possibilitasse o surgimento de manifestações simbólicas de subjetividades grupais, como buscamos refletir sobre o material emergente de modo a evitar explicações abstratas e distanciadas do viver. O uso psicanaliticamente orientado do Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema (Aiello-Vaisberg, 1999), considerado como mediação, permitiu que entrássemos em contato com o imaginário de adultos sobre as questões sexuais masculinas. 270 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Esta concepção coincide com o enquadramento dramático, que propõe estudar a conduta em termos de experiência subjetiva enquanto acontecimento dotado de sentido humano, numa perspectiva psicológica. Nessa linha, o método psicanalítico foi operado através da Teoria dos Campos, que busca o inconsciente relativo, a partir do qual está lógico-emocionalmente estruturada a conduta emergente (Herrmann, 1979; 1984). Para tanto, realizamos uma entrevista coletiva com cinqüenta e cinco estudantes de uma classe da faculdade de Direito. Durante a entrevista, o Procedimento Desenhos-Estórias com Tema foi utilizado como recurso mediador visando facilitar o estabelecimento de uma comunicação significativa, focalizada sobre as questões sexuais masculinas. O Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema foi desenvolvido por AielloVaisberg a partir de procedimento diagnóstico criado, na Universidade de São Paulo, por Walter Trinca (1976). Consiste na solicitação de um desenho especificado em termos temáticos, bem como de uma estória sobre a figura produzida (Aiello-Vaisberg, 1999). No presente caso, solicitamos o desenho, na presença do pesquisador, de um homem com dificuldades na vida sexual. Em seguida, pedimos aos alunos que virassem a página e, no verso, usando a imaginação e criatividade, inventassem uma estória sobre o desenho. Finalizada a entrevista coletiva, realizamos a análise de todos os desenhosestórias em dois momentos. No primeiro fizemos uma análise do conteúdo manifesto nos desenhos-estórias buscando identificar as produções imaginárias. Num segundo momento buscamos a elucidação de seu substrato lógicoemocional não consciente de acordo com o método interpretativo psicanalítico. Os pesquisadores não buscaram o significado verdadeiro (até porque não existe o tal significado verdadeiro) de cada comunicação, mas se deixaram impressionar pelas associações que lhes vieram espontaneamente diante das produções dos sujeitos. Ou seja, todo o processo foi presidido pela associação livre e pela atenção equiflutuante que, segundo Aiello-Vaisberg e Machado (2007), são práticas que têm caráter fenomenológico, correspondendo à suspensão de juízos e conhecimentos prévios, bem como à abertura e acolhimento à expressão. A partir das associações, chegamos a configuração de sentidos que se realizam como criação/encontro dos campos psicológico-vivenciais. É importante frisar que adotamos esta estratégia psicanalítica de pesquisa num movimento de afastamento epistemológico do positivismo empírico, e nos aproximamos da fenomenologia, numa decidida valorização do mundo vivido, da experiência dramática, sempre dotada de múltiplos sentidos, muitos deles desconhecidos, inconscientes (Bleger, 1963; Aiello-Vaisberg, Machado, 2007). Nossa formulação teórica é dinâmica e relacional, visando uma elaboração compreensiva e abrangente sobre os motivos humanos que presidem as condutas. Lidamos com fatos psicológicos que emergem da relação do pesquisador com o pesquisado, sendo os desenhos-estórias concebidos como apresentações de um acontecer clínico (Aiello-Vaisberg; Machado, 2007). Todo o processo investigativo partiu da idéia de que a pessoalidade dos pesquisadores 271 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA são parte constitutiva do acontecer clínico. Analogamente, a elaboração compreensiva que nos permitiu acessar campos psicológicos subjacentes às produções imaginativas, buscando sermos rigorosos e fieis, não deixou de ser autoral, correspondendo àquilo que estes pesquisadores-clínicos – como pessoas concretas e não como puros sujeitos cognoscentes – puderam captar. Será que ele é? O campo psicológico-vivencial denominado “será que ele é?” abrange manifestações imaginárias encontradas nos desenhos-estórias de homens e mulheres, que se referem à dificuldade de o homem comportar-se segundo padrões especificamente masculinos, em virtude da presença de desejos homossexuais que gerariam impotência. Neste campo são freqüentes associações relativas ao despertar da sexualidade, momento durante o qual se definiria, segundo o imaginário coletivo, a capacidade de desejar sexualmente pessoas do mesmo ou do sexo oposto. O campo “será que ele é?”, de acordo com o imaginário dos estudantes de Direito, relaciona-se a um ambiente cultural nitidamente machista e homofóbico, que abre caminho para a discriminação e o preconceito. É interessante notar, então, que a atração por outros homens é considerada perda de potência masculina, concepção que não deve se modificar diante da lembrança de que os homossexuais têm ereções e ejaculações. Então, esta estranha perda de potência sexual tem o efeito de diminuir o valor pessoal do indivíduo, que perde o respeito dos demais e vê sua dignidade afetada na medida em que “não dá conta do recado” em relação à mulher. Se, inicialmente, o “não dar conta do recado” alude à incompetência sexual, não é descabido repensar este fenômeno como evidência de dificuldades mais amplas de vinculação. Como sexo é vínculo, as dificuldades sexuais masculinas podem ser pensadas em termos de retração do vínculo, o que parece ter muito a ver com a estrutura de conduta esquizóide (Bleger, 1963), que inclui condutas de introversão. Essas condutas, de acordo com as produções imaginativas, podem começar a se manifestar ainda na infância, antes da puberdade, quando o menino pode apresentar vergonha de cenas de sexo que aparecem, por exemplo, na televisão. A dificuldade de lidar com os desejos sexuais, como referem os estudantes em suas produções imaginativas, pode iniciar na infância e seguir pela adolescência e vida adulta resultando, entre outras coisas, em uma dificuldade de se relacionar com mulheres. A situação de frieza afetiva e incômodo lembra o breve relato de um aluno, participante desta pesquisa, que trocou algumas poucas e rápidas palavras com o pesquisador, exatamente no momento em que entregava seu desenho-estória. Contou então que, quando tinha menos idade, muitos dos seus amigos tinham namoradas e ele dava graças a Deus por não ter este “tipo de incômodo”. Mais tarde começou a namorar e quando beijava sua namorada não sentia nenhuma excitação, o que só veio a ocorrer com o passar do tempo. Esse relato nos lembra Winnicott (1965a), quando refere que com as mudanças da puberdade 272 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA despertam as defesas organizadas nos primeiros anos de vida contra as ansiedades produzidas nesta fase. Ao mesmo tempo em que levanta a questão de que o amadurecer é um processo e não acontece na mesma idade nem da mesma forma para todas as pessoas, sendo que umas amadurecem antes para determinados aspectos da vida do que outras. Esta situação é bem clara no campo “será que ele é?”, no contexto do qual as produções imaginárias levantam a questão de que algumas pessoas despertam mais tardiamente para o sexo, referindo que alguns personagens desenhados entram na adolescência e demoram a vivenciar práticas autoeróticas, comuns nessa fase, e só bem mais tarde começam a estabelecer vínculos amorosos estáveis, diminuindo as condutas defensivas esquizóides na medida em que vão reconhecendo seu modo de ser no que se refere a sua orientação sexual. O relacionamento com o sexo oposto aparece, nas produções imaginativas relativas ao campo “será que ele é?”, como uma obrigatoriedade por meio da qual se pode confirmar, numa demonstração para os demais, a condição de masculinidade, mesmo que o relacionamento seja marcado pela falta de interesse e pela dificuldade de se vincular com a mulher. Essa obrigatoriedade expressada pelas figuras desenhadas pelos estudantes é decorrente, a nosso ver, do temor de exclusão social em função do preconceito. Por este motivo, relatam que os personagens desenhados se sentem cada vez menos encorajados a participar da vida social, uma vez que compete ao rapaz assumir condutas ativas não apenas em relação às meninas, mas também em outras esferas do viver. O rapaz menos “atirado” será comumente discriminado pelo grupo social. Segundo as produções imaginativas, a dificuldade de se vincular afetivamente pode ocorrer com as figuras desenhadas que possuem um excelente nível cognitivo, em função de estarem passando por um processo pelo qual estão se descobrindo como pessoas, podendo vir a manifestar a vida sexual ativa tardiamente, até mesmo após o ensino superior. Segundo Winnicott (1965b, p. 118), “para muitos, há um longo período de incerteza quanto à própria existência de um impulso sexual de fato”, sendo que adolescentes mais jovens podem não saber realmente se são hetero ou homossexuais. No caminho desta descoberta, as produções imaginárias demonstram, através das figuras desenhadas, a existência de crenças segundo as quais podem ocorrer experiências de relações heterossexuais para depois descobrirem a homossexualidade ou assumi-la de vez. O período de descoberta pode ser bastante penoso, de modo que os personagens desenhados só conseguiriam viver plenamente sua orientação sexual com ajuda psicológica. De outro modo, correriam o risco de manter a estrutura de conduta defensiva esquizóide, não conseguindo se vincular, distanciando o afeto das relações, ficando impedidos de relacionarem-se como pessoas inteiras e construírem relações estáveis. Considerações finais 273 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Finalizando, este panorama relativo a condutas não conscientes do campo “será que ele é?” demonstra claramente que a construção da identidade masculina, ou seja, o que é ser homem, segundo o imaginário coletivo dos estudantes de Direito, está intimamente relacionado com o contexto social em que o indivíduo se insere, sendo que esta descoberta se estende pela vida afora, ultrapassando o período da adolescência e início da vida adulta, sempre acompanhada pelo fantasma do preconceito. “Será que ele é?” envolve manifestações sobre as dificuldades dos homens em se comportarem como tal – o que implicaria em envolver-se sexualmente com pessoas do sexo oposto –, em função de desejos homossexuais, de acordo com o imaginário dos estudantes pesquisados. As produções deste campo envolvem o período em que começa a surgir o despertar da sexualidade no sentido da pessoa começar a ter consciência dos seus desejos por outros do mesmo sexo ou do oposto. De acordo com o imaginário dos estudantes este campo relaciona-se com um ambiente cultural machista, que impõe um modelo do que é ser homem abrindo as portas para a rejeição das pessoas que não se enquadram nos moldes socialmente pré-estabelecido. Inspirados num pensamento psicanalítico inovador, que se apóia nas contribuições de D.W.Winnicott e José Bleger, defendemos a idéia de que uma preocupação psicoprofilática em relação à vida sexual pode se realizar como prática psicológica em enquadres diferenciados junto a diferentes grupos sociais, seja em escolas, serviços de saúde e outras instituições, tendo em vista promover experiências emocionais enriquecedoras mediante o favorecimento da expressão de potencialidades para a criação/transformação da realidade. O objetivo fundamental será o de contribuir para o alcance de uma vida sexual saudável, criativa e o mais afastada possível da discriminação e do preconceito. Referências bibliográficas AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Encontro com a loucura: transicionalidade e ensino de psicopatologia. 1999. 197f. Tese (Livre-Docência em Psicopatologia Geral I e II) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. AIELLO-VAISBERG, T. M. J.; MACHADO, M. C. L. Narrativas: o gesto do sonhador brincante. Disponível em: <http://www.estadosgerais.org/encontro/IV/PT/trabalhos/Tania_Maria_Jose_Aiel lo_Vaisberg_e_Maria_Christina_Lousada_Machado.php>. Acesso em: 27 fev. 2007. BLEGER, J. (1963). Psicologia da conduta. 2. ed. Tradução Emilia de Oliveira Diehl. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. 244p. HERRMANN, F. A. O que é psicanálise. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. 118p. HERRMANN, F. A. (1979). Andaimes do real: o método da psicanálise. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. 332p. TRINCA, W. (1976). Investigação clínica da personalidade: o desenho livre como estímulo de apercepção temática. São Paulo: EPU, 2006. 154p. 274 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA WINNICOTT, D. W. (1965a). A criança e o sexo. In: WINNICOTT, D. W. A criança e o seu mundo. 6. ed. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: 1985. p.166-182. WINNICOTT, D. W. (1965b). Adolescência. In: WINNICOTT, D. W. A família e o desenvolvimento individual. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes 1993. p.115-127. 275 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A perspectiva terapêutica da arte no campo da saúde mental - Relato de experiência Raquel Rossi Tavella82 Mariana Wisnivesky 83 Resumo: Este estudo busca analisar as contribuições terapêuticas da oficina de arte oferecida a usuários de um Centro de Apoio Psicossocial (CAPS), pertencente ao Serviço de Saúde Candido Ferreira (SSCF). As atividades desta oficina foram acompanhadas, ao longo do ano, pela estagiária autora desta pesquisa, como parte das atividades do Estágio em Saúde Mental, realizado por alunos concluintes do curso de Psicologia através de um convênio entre a PUCCampinas e o SSCF. A proposta da oficina é utilizar atividades artísticas como estratégias de inclusão social e intervenção cultural, como alternativa às vivencias que os usuários trazem diante do estereótipo da incapacidade, exclusão e doença. Da oficina fazem parte: uma terapeuta ocupacional, uma enfermeira, uma estagiária de psicologia e, aproximadamente, oito usuários. Este é, portanto, o contexto geral a partir do qual vem sendo possível observar e analisar contribuições significativas ao tratamento em saúde mental. Apesar de as atividades ainda estarem em andamento, já é possível identificar o processo dinâmico da arte funcionando como fio condutor capaz de construir uma relação terapêutica promotora da melhoria da qualidade de vida, abrindo as portas para a perspectiva da saúde e da criatividade no campo do tratamento ao sofrimento psíquico. A obra criativa não apenas alarga o universo externo, mas também enriquece e expande o mundo interno. Para Freud, a arte estaria na metade do caminho entre a realidade e a imaginação, comparou o fazer do artista ao brincar das crianças e nos adiantou: ambos, em seu fazer, estão criando e, desta forma, estão sendo. Abstract The aim of this study is to analyze the therapeutic contributions of art workshop activities to patients of a Psychosocial Support Center (CAPS), a branch of the Health Service Center Candido Ferreira (SSCF). The activities of this art workshop have been surveyed all over this year by the author of this research as part of the university training period carried out by students of Psychology Course through a partnership between PUC-Campinas and the SSCF. The aim of the art workshop is to use art activities as strategies of social inclusion and cultural involvement as an alternative to the patients’ experiences regarding stereotypes such as incapacity, exclusion and disease. The participants of this art workshop include an occupational therapeutic, a nurse, a psychologist trainee and eight patients. This is, therefore, the general context in which it has been possible to observe and analyze considerable contributions to mental health treatment. Although the activities are still in progress, it is already possible to 82 Estagiária do SSCF e aluna do curso de Psicologia da PUC-Campinas 83 Professora e Supervisora de Estágio em Saúde Mental da PUC-Campinas 276 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA identify the dynamic process of art acting as an important tool that enables a therapeutic support to life quality improvements, allowing new perspectives to health and creativity concerning the treatment of psychic suffering. Creative art not only widens the outward universe, but also enriches and enlarges the internal world. Freud’s writings support that art is half way between reality and imagination. He compared the work of an artist to children at play: in their affair, both are creating, and, thus, both are being. A perspectiva terapêutica da arte no campo da Saúde Mental. O presente estudo busca analisar as contribuições terapêuticas da oficina de arte oferecida a usuários de um Centro de Apoio Psicossocial (CAPS), pertencente ao Serviço de Saúde Candido Ferreira (SSCF). As atividades desta oficina foram acompanhadas, ao longo do ano, pela estagiária autora desta pesquisa, como parte das atividades do Estágio em Saúde Mental, realizado por alunos concluintes do curso de Psicologia através de um convênio entre a Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCC) e o SSCF. Ao longo do século XVII, com o surgimento dos hospitais gerais, a loucura foi considerada pela sociedade como sinônimo de pobreza, de incompetência e de incoerência. Em diversos lugares foram construídos espaços de confinamento e junto com as prisões, nasceram os hospitais gerais, também conhecidos como “A Grande Internação”, com o intuito de absorver os insanos e dementes. Dessa forma, o louco foi destinado às casas de internação, ou seja, a um espaço institucional da exclusão (Focault, 1972). No século XVIII Pinel e seus contemporâneos possibilitaram o nascimento de uma nova psiquiatria, que desacorrentava os loucos e que propunha uma espécie de asilo para o tratamento dos mesmos. Nesses asilos o doente era vigiado, contradito nos seus delírios, submetido a ordens, o que limitava assim sua liberdade. O trabalho, nessas instituições, era utilizado como uma estratégia para prevenir o comportamento não desejado e os pensamentos mórbidos (Focault, 1972). Os primeiros hospitais psiquiátricos foram fundados por Pinel, que utilizou o princípio do isolamento para os chamados alienados, o qual foi considerado o primeiro modelo de terapêutica, entendido como estratégia fundamental para que “o alienado” pudesse receber um tratamento adequado. Dessa forma, podese observar que o princípio do isolamento estava associado à produção do conhecimento no campo do “alienismo”, sendo agora transformado em instituição médica, o hospital se tornava uma espécie de laboratório, onde as pessoas eram observadas e também estudadas (Amarante, 2007). Porém, as duas Guerras Mundiais fizeram com que a sociedade refletisse sobre a natureza humana, pensando tanto sobre a crueldade quanto sobre a solidariedade existentes entre os homens, ou seja, estavam sendo criadas condições históricas para o período das transformações psiquiátricas. Esse contexto permitiu que a sociedade dirigisse seu olhar para os hospícios percebendo a semelhança dessa instituição com os campos de concentração. 277 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Deste modo se originaram as primeiras experiências de reforma psiquiátrica como aponta Amarante (2007) Houve muitas experiências de reformas em vários países. Algumas foram consideradas mais marcantes por sua inovação e impacto a ponto de serem reconhecidas ainda hoje e influenciarem experiências contemporâneas. Porém no Brasil, no final da década de 1970, a reforma psiquiátrica surge do movimento popular que se opõe a limitação das liberdades democráticas na ditadura, denunciando os maus-tratos de pessoas em sofrimento psíquico, consideradas “tratadas” em hospitais psiquiátricos (Amarante, 2007). De acordo com Lima (2007), no século XX as atividades artísticas participaram de um processo de transformação das instituições psiquiátricas em que a loucura passou por um questionamento e também pela redefinição do seu lugar. A partir da reforma psiquiátrica brasileira, a arte foi um dos caminhos que contribuiu para a prática de desinstitucionalização. Essa nova configuração da saúde mental voltou-se par a promoção e valorização do indivíduo, uma vez que abriu as portas para a perspectiva da criação e também da produção artística. Atualmente, as oficinas de arte proporcionam a inserção social nos hospitais psiquiátricos num espaço que possibilita tanto a convivência como a criação, afinal além do tratamento clínico, o paciente psiquiátrico carece da necessidade de criar e também de relacionar-se (Mendonça, 2005). Dessa forma, a arte terapia é considerada um processo terapêutico que utiliza diversos recursos expressivos para ajudar os pacientes a entrarem em contato com os seus conteúdos inconscientes. Permitindo assim, o acesso com níveis mais profundos de funcionamento psíquico, a arte terapia, procura promover o desenvolvimento da personalidade como um todo. Conforme apontado por Ormezzano (2005), o processo terapêutico do ateliê de artes parte do pressuposto de que, através das atividades artísticas, o paciente psiquiátrico consegue expressar as manifestações do inconsciente. Nesse contexto a estagiária e autora desta pesquisa acompanhou as oficinas de Arte que utilizavam atividades artísticas como estratégias de inclusão social e de intervenção cultural, proporcionando experiências diferentes daquelas que a comunidade está habituada a presenciar no que diz respeito ao estereótipo de incapacidade e impotência dos pacientes psiquiátricos. Através deste estudo foi possível fazer um recorte do material analisado, obtido por meio de observações dos comportamentos e das falas transcritas dos usuários nas oficinas de Arte. No âmbito desse espaço, foi possível participar, no período de um ano, dessas oficinas com duração de uma hora e meia. O grupo foi composto por uma terapeuta ocupacional, uma enfermeira, uma estagiária de psicologia e por aproximadamente oito usuários do CAPS, sendo estes de ambos os sexos e que estavam inseridos no programa de atendimento do CAPS Toninho situado na cidade de Campinas. 278 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Nessas oficinas não era exigida a produção de obras de arte, que são valorizadas socialmente, mas sim, um possível caminho para a expressão do sofrimento psíquico. Dessa forma, não houve determinação das atividades e nem obrigatoriedade, ou seja, ela partiu da escolha de cada usuário. Apesar de as atividades ainda estarem em andamento, já é possível identificar o processo dinâmico da arte funcionando como fio condutor capaz de construir uma relação terapêutica promotora da melhoria da qualidade de vida, abrindo as portas para a perspectiva da saúde e da criatividade no campo do tratamento ao sofrimento psíquico. A obra criativa não apenas alarga o universo externo, mas também enriquece e expande o mundo interno. Para Freud, a arte estaria na metade do caminho entre a realidade e a imaginação, comparou o fazer do artista ao brincar das crianças e nos adiantou: ambos, em seu fazer, estão criando e, desta forma, estão sendo. Assim as atividades artísticas realizadas neste contexto destacam o processo construtivo e a criação do novo, através da reinvenção do homem e do mundo, de maneira concreta, à medida que produz objetos, ações, experiências, acontecimentos e imaginação. Desta forma, essas atividades simbolizam o enriquecimento de competências e habilidades individuais e acesso à cultura (Mendonça, 2005). Referências bibliográficas: Mendonça, T. C. P. As Oficinas na Saúde Mental: relato de uma experiência na internação. Psicologia: Ciência e Profissão. Vol. 25, n. 4. Dez. 2005. Brasília. Focault, M. (1972). A História da Loucura. São Paulo: Editora perspectiva. Lima, E. M. F. A. (2007). Arte, clínica e loucura: um território em mutação. Disponível em www.scielo.org Ormezzano, G. & Arruda, L. Z. (2005). Intervenção arteterapêutica com uma paciente oncológica idosa. Revista Brasileira de Ciências do Envelhecimento Humano. Passo Fundo (p. 16-27) Jul./Dez. Amarante, P. (2007). Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 279 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Transtorno Bipolar e a experiência de perda: contato com uma paciente num ambulatório psiquiátrico Relato de experiência Samira Kalil Waldemarim Marcelo Roberto de Brito Nardozzi Maíra Fernanda Marcatti Marly Aparecida Fernandes Uma alegria tumultuosa anuncia uma felicidade medíocre e breve. Plutarco O humor é a forma mais sã de lucidez Jacques Brel Resumo: Este artigo tem o objetivo de discutir a compreensão psicológica do Transtorno Bipolar. A partir de uma prática de Psicopatologia em um ambulatório de Psiquiatria de um hospital universitário, os autores utilizaram o referencial teórico psicanalítico e avaliaram a experiência de perda como um dos fatores desencadeadores da crise no referido transtorno, através da análise da história de vida de uma paciente deste contexto. Palavras-Chave: Transtorno Bipolar; Perda; Psicanálise. Abstract: This article has the purpose of discuss the psychological understanding of the Bipolar Disorder. From a practice of Psychopathology at a Psychiatric ambulatory of an academic hospital, the authors have used the theoretical psychoanalysis and have evaluated the experience of loss as one of the triggering factors from crisis of the mentioned disorder, through the analysis of the life history of a pacient from this context. Key-Words: Bipolar Disorder; Loss; Psychoanalysis. Este artigo foi realizado com base nas experiências práticas realizadas em um ambulatório de psiquiatria de um hospital geral e universitário do município de Campinas, estado de São Paulo. O Transtorno Bipolar foi a psicopatologia mais freqüentemente observada neste contexto, principalmente entre mulheres. Visitamos o ambulatório em trio, uma vez a cada quinze dias, durante o período de dois meses (segundo semestre do ano de 2007), para observar e ter contato com os pacientes internados, em cumprimento à atividade pedagógica proposta pela disciplina Psicopatologia II do curso de Psicologia da PUC-Campinas. As experiências foram compartilhadas em sala de aula durante as aulas de laboratório. 280 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Inicialmente, resolvemos estudar o Transtorno Bipolar devido à grande incidência de pacientes com este diagnóstico. O interesse por enfocar a perda como um agente causador, surgiu a partir do momento em que entramos em contato com a história de vida de uma paciente que nos chamou mais a atenção dentre os demais, em decorrência de sua grande comunicabilidade e por sua incessante busca de contato interpessoal. Primeiramente faremos uma introdução teórica do Transtorno Bipolar, levantando um breve histórico desta psicopatologia, conceituando-a e caracterizando a sua sintomatologia típica. A partir destas explanações, visamos relacionar a perda como potencial agente causador deste transtorno (dentro da abordagem psicanalítica), através do estudo da história de vida da paciente supra citada. Relacionaremos também os fenômenos psicopatológicos (sinais e sintomas) apresentados por ela com a sintomatologia clínica da doença, dados estes coletados a partir da leitura de seu prontuário e do contato direto com a paciente. O Transtorno Bipolar se enquadra dentro de um grupo de transtornos denominado como transtornos do humor. De acordo com o CID-10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados Com a Saúde, décima revisão, 1993), os transtornos do humor são aqueles nos quais a perturbação fundamental é uma alteração do humor ou do afeto, no sentido de uma depressão (com ou sem ansiedade associada) ou de uma elação. Goodwin e Hirschfeld (1992) assinalam que os transtornos do humor englobam um amplo espectro de condições, variando de reações à perda e outras experiências de vida negativas, até doenças severas, recorrentes e incapacitantes. Atualmente, o Transtorno Bipolar ora é denominado desta maneira, ora denominado como Transtorno Afetivo Bipolar, ou ainda, como Transtorno do Humor Bipolar. Para Kaplan et al. (1997), o uso do termo transtorno afetivo é inadequado já que a patologia crítica nesta doença é do humor (o estado emocional interno mais constante de uma pessoa) e não do afeto (a expressão externa do conteúdo emocional atual). O próprio DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) alterou suas denominações para este grupo de transtornos ao longo de suas edições. O DSM-IV (quarta edição) chama de transtornos do humor o que o DSM-III (terceira edição) chamava de transtornos afetivos. Dessa forma, pode-se notar que muitas vezes as palavras humor e afeto são usadas como sinônimos. Para facilitar, chamaremos esta psicopatologia neste artigo como tão somente Transtorno Bipolar. Vale lembrar que o Transtorno Bipolar já foi chamado de Psicose ManíacoDepressiva. Tal denominação surgiu a partir do trabalho nosológico de Emil Kraepelin. Em 1899, ele agrupou todas as psicoses descritas anteriormente em uma entidade fundamental: doença maníaco-depressivo, que ele considerava uma afecção endógena e constitucional (Alcantara, et al., 2003). Uma das psicoses maníaco-depressivas descritas por Kraepelin continha a maioria dos critérios usados atualmente para o estabelecimento do diagnóstico de Transtorno Bipolar tipo I (Kaplan et al., 1997). 281 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Moreno & Moreno (2007) trazem alguns dados acerca deste transtorno. Segundo eles, os custos da doença Bipolar, considerando apenas a forma mais grave que acomete 1% da população geral, foram calculados entre 12 mil e 18 mil dólares ao ano por paciente. As estimativas alarmantes levaram a OMS a incluir esta psicopatologia como sexta maior causa de incapacitação. A sua prevalência mais que quintuplicou e seu início tem se apresentado cada vez mais precoce. Em análise detalhada da amostra brasileira, a prevalência observada do espectro bipolar foi de 8,3%. A Suíça e os Estados Unidos, por exemplo, apresentam respectivamente taxas de 10,9 e 1,6%. De acordo com a CID-10 (1993), o Transtorno Bipolar se caracteriza por dois ou mais episódios nos quais o humor e a atividade do sujeito estão perturbados. Ele consiste na alternância entre episódios de mania ou hipomania (elevação do humor e aumento da energia e da atividade) e episódios de depressão (rebaixamento do humor e redução da energia e da atividade). Esta recorrência de episódios de mania e depressão acarreta em um enorme impacto na qualidade de vida dos indivíduos acometidos, o que faz do Transtorno Bipolar uma doença grave. O suicídio é uma das mais drásticas conseqüências desta doença (Gomes et al., 2007). Aproximadamente 15% de indivíduos seriamente deprimidos podem eventualmente cometer suicídio (Goodwin & Hirschfeld, 1992). A mania (ou episódio maníaco) é caracterizada por um humor persistentemente elevado, eufórico, expansível ou irritável, com presença típica de risos, trocadilhos e gesticulações. Os sintomas observados são: 1. Auto-estima inflada ou grandiosidade; 2. Necessidade diminuída por sono; 3. Paciente mais falante que o habitual ou pressão para continuar falando (os pacientes tagarelam desenfreadamente); 4. Aceleração dos processos cognitivos com pensamentos velozes, fuga de idéias ou experiência subjetiva de que os pensamentos estão correndo; 5. Distração; 6. Aumento na atividade dirigida ao objetivo (socialmente, no trabalho, na escola ou sexualmente); 7. Agitação psicomotora (superabundância de energia e atividade; inquietude geral); 8. Envolvimento excessivo com atividades agradáveis com um alto potencial para conseqüências dolorosas; 9. Conduta impulsiva (pacientes tipicamente intrometidos, desinibidos e impulsivos) 10. Pode-se encontrar também a presença de aspectos psicóticos durante um episódio de mania como, por exemplo, delírios e alucinações (DSMIV-TR, 2002; Kaplan et al., 1997; Kaplan & Sadock, 1999; Goodwin & Hirschfeld, 1992). O indivíduo em episódio maníaco (especialmente aquele com características psicóticas) pode mostrar-se hostil, fisicamente ameaçador, agressivo e suicida (DSM-IV-TR, 2002). A irritabilidade é bastante comum. Estes pacientes podem ter baixa tolerância à frustração, acarretando sentimentos de raiva e hostilidade. Com freqüência, um paciente pode exibir uma mudança de um humor predominantemente eufórico, no início da doença, para irritabilidade posteriormente. Kaplan et al. (1997) indicam que aproximadamente 75% dos maníacos são agressivos ou ameaçadores. 282 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Segundo Kaplan & Sadock (1999), o apetite sexual em pacientes maníacos está tipicamente aumentado e pode levar à indiscrição sexual. Mulheres casadas com vidas sexuais anteriores sem máculas podem ligar-se a homens de nível social inferior. Os homens em geral freqüentam bares, abusam do álcool e contratam prostitutas. Segundo o DSM-IV-TR (2002), alguns descrevem um sentido muito mais aguçado de olfato, audição ou visão. Goodwin & Hirschfeld (1992) assinalam que a necessidade por menos sono faz com que pacientes maníacos possam não dormir durante dias. O fato de às vezes encontrarem-se maciçamente psicóticos e desorganizados exige com freqüência a contenção física e o uso de tranqüilizantes musculares (Kaplan et al., 1997). A hipomania é reconhecida pelo DSM-IV como um episódio com variantes não psicóticas e não desorganizadas. O paciente tem uma experiência agradável e tende a não estar ciente de sua condição ou até mesmo negá-la. Ela se caracteriza por um período em que há uma leve elevação do humor, pensamento aguçado e positivo e maior nível de energia e de atividade. Entretanto, não são encontrados os comprometimentos do episódio maníaco (como alucinações e delírios, por exemplo). A distrabilidade é incomum neste episódio e há uma relativa preservação do insight (Kaplan et al., 1999). A depressão (ou episódio depressivo maior) é caracterizada por um humor deprimido ou perda de interesse ou de prazer por quase todas as atividades. Este humor deprimido refere-se a uma excitação afetiva negativa, variadamente descrita como depressiva, angustiada, lamentosa e irritável. Os sintomas observados são: 1. Relato subjetivo de tristeza ou vazio; 2. Interesse ou prazer acentuadamente diminuídos por todas ou quase todas as atividades; 3. Perda ou ganho significativo de peso quando não está realizando dieta ou diminuição ou aumento de apetite; 4. Insônia ou Hipersonia; 5. Agitação ou retardo psicomotor; 6. Fadiga ou perda de energia; 7. Sensação de inutilidade ou culpa excessiva ou inapropriada (que pode ser delirante); 8. Capacidade diminuída para pensar ou concentrar-se ou indecisão; 9. Pensamentos recorrentes sobre morte (não apenas o medo de morrer), ideação suicida recorrente sem um plano específico, ou uma tentativa de suicídio ou um plano especifico para cometê-lo; 10. Retraimento social (DSM-IV-TR, 2002; Kaplan et al., 1997; Kaplan & Sadock, 1999; Goodwin & Hirschfeld, 1992). Segundo Goodwin & Hirschfeld (1992), um paciente com humor deprimido apresenta processos cognitivos diminuídos e o conteúdo cognitivo reflete a baixa auto-estima do sujeito. Pessoas deprimidas geralmente se descrevem como insignificantes e são freqüentemente pessimistas, sempre esperando o pior. O retraimento social pode ser tão intenso que os pacientes podem nem sequer levantar-se da cama. Eles freqüentemente parecem estar em câmera lenta, falando e movendo-se vagarosamente. Contudo, Kaplan et al. (1997) afirmam que a agitação psicomotora também pode estar presente, especialmente nos idosos. Nos depressivos, a libido é afetada podendo estar completamente ausente. A incapacidade de sentir prazer é tão grande que nada parece agradável (Goodwin & Hirschfeld, 1992). Para Kaplan et al. (1997), a apresentação clássica de um 283 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA paciente deprimido envolve uma postura curvada, ausência de movimentos espontâneos e um olhar abatido e perdido. Os deprimidos também podem manifestar sintomas psicóticos. Os pacientes bipolares apresentam delírios e alucinações congruentes com o humor: os delírios de um deprimido incluem culpa, pecado, inutilidade, pobreza, fracasso, perseguição e doenças somáticas terminais. Em pacientes maníacos os sintomas psicóticos envolvem grande riqueza, habilidades ou poder. No entanto, delírios e alucinações bizarras não congruentes com o humor também são vistos na mania. A presença destes sintomas é vista em 75% dos maníacos (Kaplan et al., 1997). Dentre os fatores associados à depressão na vida adulta, são encontrados a exposição a estressores na infância (como a morte dos pais ou do cuidador), as privações materna ou paterna por abandono, as separações ou divórcio, entre outros (Eizirik et al., 2002). Podemos evidenciar que vários deles se referem direta ou indiretamente a situações de perda. O episódio misto se caracteriza por um período de tempo (no mínimo uma semana) durante o qual o indivíduo experimenta uma rápida alternância de humor (tristeza, irritabilidade, euforia), acompanhada dos sintomas de um episódio maníaco e de um episódio depressivo maior quase todos os dias. A sintomatologia freqüentemente encontrada é: 1. Agitação; 2. Insônia; 3. Desregulação do apetite; 4. Características psicóticas; 5. Pensamentos suicidas. Esta condição pode ser decorrente dos efeitos diretos de medicamentos antidepressivos (DSM-IV-TR, 2002). Existe muita polêmica acerca da categorização dos estados mistos. As idéias variam desde critérios rígidos (como no CID-10 e DSM-IV, que requerem a presença coexistente de critérios de episódios maníaco e depressivo), até propostas mais abrangentes. Diversos autores propõem vários e diferentes tipos. Esta questão é muito importante, já que dependendo da classificação, entre 20 e 74% dos pacientes com doenças afetivas apresentaram em algum período um episódio misto. Não existe consenso entre os pesquisadores. Kraepelin propôs seis tipos de estados mistos, resultantes da interação entre funções como humor, atividade e pensamento. Para exemplificar, um dos tipos propostos por ele denominado como mania inibida, apresenta humor e pensamento maníacos enquanto a atividade é deprimida. Ou seja, o estado emocional é eufórico, seus processos cognitivos são acelerados, porém, a agitação e a inquietude não são vistas (Alcantara et al., 2003). Segundo o DSM-IV-TR (2002), o Transtorno Bipolar é dividido em alguns tipos. O Transtorno Bipolar I é caracterizado pela ocorrência de um ou mais episódios clínicos maníacos ou mistos geralmente acompanhados de episódios depressivos maiores. Trata-se de um transtorno recorrente e mais de 90% dos indivíduos que tem um único episódio maníaco terão futuros episódios. Os portadores deste tipo têm aproximadamente quatro episódios durante dez anos. Entretanto, de 5 a 15% dos sujeitos acometidos apresentam múltiplos episódios de humor (quatro 284 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA ou mais) durante um ano e são denominados cicladores rápidos. Para estes pacientes o prognóstico é pior. O Transtorno Bipolar II é caracterizado pela ocorrência de um ou mais episódios depressivos maiores acompanhados por pelo menos um episódio hipomaníaco. Os episódios hipomaníacos freqüentemente precedem ou seguem os episódios depressivos maiores em um padrão característico para cada determinada pessoa (DSM-IV-TR, 2002). Homens e mulheres apresentam prevalências semelhantes (no que se refere à epidemiologia) quanto ao Transtorno Bipolar tipo I. As diferenças encontram-se no curso da patologia, visto que as mulheres têm maior chance de desenvolver a ciclagem rápida, bem como a mania mista e episódios depressivos mais longos e freqüentes. Elas apresentam uma diátese (disposição do organismo para ser atacado freqüentemente por certa classe de doenças) em relação à sintomatologia depressiva, o que explicaria o fato de as mulheres representarem o dobro dos casos no transtorno unipolar (depressão maior) e no Bipolar tipo II. Há uma prevalência do estado eufórico entre os homens, no entanto, a cronificação da mania é mais significativa entre mulheres (Borja, et al., 2005; Dias et al., 2006). A depressão costuma ser o episódio de humor inicial mais freqüente entre as mulheres diagnosticadas com Transtorno Bipolar. Elas tendem a passar um terço das suas vidas neste episódio. A depressão é mais longa e resistente em comparação com a dos homens, fato que pode dificultar o tratamento. Pouco se sabe sobre o porquê da maior manifestação depressiva entre as mulheres e as hipóteses variam desde explicações das diferenças culturais e psicológicas entre homens e mulheres, até as relativas diferenças hormonais (Dias et al., 2006). O Transtorno Bipolar foi estudado pela Psicanálise, entretanto não se utilizava este termo. Freud chamava de melancolia o que hoje é entendido como depressão. A mania, segundo Freud (apud Mauer, 1997), é um estado sintomaticamente oposto à melancolia e surge como uma resposta ao estado melancólico. Para ele, “a peculiaridade mais singular da melancolia é sua tendência a transformar-se em mania”. Freud atribuiu as neuroses dos adultos a traumas infantis, sendo que os danos decorrentes do trauma variavam de acordo com a vulnerabilidade de cada indivíduo. A depressão ou melancolia é um dos fatores concorrentes à perda de um ente querido ou representante do mesmo (Eizirik et al., 2002). Inicialmente, ele entendia a melancolia não como um distúrbio ou transtorno de humor, mas sim como um luto pela perda da libido. Posteriormente, abandonou esta explicação puramente mecanicista. A melancolia seria então decorrente de uma situação de luto em que parte da perda é inconsciente, ou seja, o sujeito sabe quem perdeu, mas não o que se perdeu com ele. (Mauer, 1997; Rodrigues, 2000; Ferrari, 2005). Freud define o luto como uma reação normal, até mesmo esperada, que se produz pela perda de um ser amado ou de um valor equivalente: a pátria, o 285 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA ideal, a liberdade, etc. O rompimento de uma relação significativa, como por exemplo, o divórcio, mudanças forçadas, a morte, a aposentadoria, produzem impacto sobre a família e o indivíduo, sendo algumas vezes a longo prazo. O luto pode ser desencadeado por uma perda objetiva ou por uma decepção. As causas desencadeantes do luto podem ser variadas e múltiplas, mas todas elas terão como base comum a valorização que o sujeito, consciente ou inconscientemente, atribui à perda (Mauer, 1997; Parkes, 1998). O luto pode ser normal ou patológico. No luto normal ocorre a aceitação da perda do objeto (Mauer, 1997). Isto se dá pelo desligamento das pulsões libidinais investidas no objeto perdido. Esta elaboração se faz paulatinamente e ao final deste processo, há a possibilidade de deslocamento da libido para um novo objeto. Tanto no luto patológico como na melancolia, não se aceita a perda do objeto, ou seja, a libido não se desloca a um novo objeto, mas se retrai narcisicamente sobre o eu, que passa a se identificar com o objeto perdido. Como parte da perda é inconsciente, o melancólico não consegue entender de todo o que é que o absorve tanto (Mauer, 1997; Rodrigues, 2000). Freud afirma que o luto e a melancolia se caracterizam por um “estado de ânimo profundamente doloroso, uma cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar e a inibição de todas as funções”. A isto se acrescenta, na melancolia, uma diminuição do amor próprio, que se traduz em reprovações e acusações que o paciente faz a si próprio, e que pode incluir uma espera delirante de castigo. Assim, as mesmas circunstâncias que desencadeiam o luto, podem fazer surgir em pessoas com predisposição a isso, uma melancolia (Mauer, 1997). O ego do melancólico é empobrecido e sua auto-estima é baixa. O indivíduo se descreve como indigno, incapaz e moralmente condenável. Ele se reprova, se insulta, se humilha e comunica a todo mundo seus defeitos. A identificação do ego com o objeto perdido é a causa destes comportamentos. O melancólico maltrata seu ego como se estivesse maltratando o objeto. A sombra do objeto (como disse Freud) caiu sobre o ego (ibid). Ao emergir de uma crise depressiva o paciente sente-se alegre, reconciliado com a vida, capaz de estabelecer novas relações com objetos (internos e externos) e ao vencer a crise, o ego aparece como renascido, como tendo recusado seguir o destino do objeto perdido. Isto ocorre em situação de luto normal, no luto patológico e na depressão franca em que o ego sai da crise e recupera suas funções de síntese e de adaptação ao real (Uchôa, 1979). Se após a depressão há um quadro de mania, todos os aspectos fenomenológicos dinâmicos são intensificados: alegria, excitação psicomotora, aceleração do curso do pensamento, sentimento de onipotência, etc., passam a dominar a área consciente. Ocorre uma instabilidade na relação com objetos e ela torna-se dispersiva, instável e superficial e o maníaco passa a viver num mundo narcísico, ilusório e que nega as experiências de sofrimento, opressão, tristeza, culpa e remorso. 286 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Os estudos psicanalíticos de Freud e Abraham revelam semelhanças nas constelações conflituosas na melancolia e na mania, variando os mecanismos de defesa que o ego utiliza no curso de um ou outro. Na mania ocorre uma abolição do super-ego ou sua fusão com o ego, desaparecendo as diferenciações no aparelho psíquico. É possível que essa perda de diferenciação represente um mecanismo geral dos organismos vivos que não suportariam o esforço constante de adaptação ativa às condições do meio. E a nivelação maníaca traduziria a necessidade de fuga das restrições e coerções impostas pela cultura (ibid). Recapitulando, de acordo com a Psicanálise Freudiana, o Transtorno Bipolar (tal como é entendido hoje) se origina a partir de uma situação de perda. Disto ocorre um processo de luto patológico (o não desligamento das pulsões libidinais investidas no objeto perdido). Por vezes, o luto patológico acaba por levar o indivíduo a um estado de melancolia (depresão). Surge então a mania como uma tentativa de o ego dominar os sentimentos ocasionados pela perda do objeto, como se tivesse se emancipado do objeto que o faz sofrer. A mania se origina como uma resposta equívoca do ego de melhora. O ego de um maníaco se orgulha por ter encontrado uma maneira de acabar com o estado melancólico. Esta melhora é ilusória (a libido continua ligada ao objeto perdido) e disto decorre a volta ao estado melancólico. Eis então as oscilações de humor que caracterizam a bipolaridade. Em nossa experiência prática, tivemos contato com vários pacientes. Uma delas nos chamou mais atenção. Ela foi internada no dia de nossa segunda visita. É através desta paciente que visamos compreender a experiência de perda como um dos fatores desencadeantes do Transtorno Bipolar. Usaremos o nome fictício Rosa com o intuito de preservar a sua identidade. Rosa tem outros quatro registros de internações no ambulatório visitado, sendo este último a quinta entrada. Rosa tem quarenta anos, reside no município de Campinas-SP, é dona de casa, é proveniente de um nível sócio-econômico baixo, não chegou a completar a primeira série do ensino fundamental e sua primeira entrada no hospital foi em junho de 1998. A família conta que cerca de dois anos após rompimento de noivado, Rosa começou a apresentar diversos sintomas e mudanças de comportamento que culminaram na primeira internação. O término do noivado de Rosa foi um assunto recorrente nas entrevistas com os familiares. Eles revelam que após o ocorrido, ela passou a isolar-se mais que o de costume, culpabilizando-se pelo insucesso da relação. Sua irmã diz que Rosa é ainda virgem e que na época do fim da relação expressava culpa e arrependimento por não conseguir manter relações sexuais com o noivo. Não existem antecedentes psiquiátricos na família, e segundo a irmã, o quadro de Rosa se iniciou após separação do noivo. Antes disso, não havia históricos de doença mental. Os familiares apontam que antes do ocorrido, Rosa era uma pessoa normal, trabalhava como faxineira e era inteligente. 287 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Além das cinco hospitalizações no ambulatório em questão, Rosa foi internada em um serviço de saúde mental municipal onde foram levantadas as hipóteses diagnósticas de retardo mental leve e de transtorno delirante orgânico (tipo esquizofrênico). Já no ambulatório visitado, além destes possíveis diagnósticos, as hipóteses levantadas ao longo de nove anos foram: esquizofrenia (aguda e paranóide), transtorno depressivo grave com sintomas psicóticos e transtorno dissociativo. Apenas na última entrada (outubro de 2007) foi levantada a hipótese de Transtorno Bipolar. Consideramos o Transtorno Bipolar como sendo o diagnóstico mais adequado para Rosa levando em conta que a paciente apresenta claramente episódios de humor ora maníacos e ora depressivos. Como já visto, os transtornos de humor podem apresentar diversas causas, sendo reação à perda uma das mais freqüentes. Este fato é outro preponderante para confirmação da bipolaridade em Rosa, já que a paciente sofreu uma perda significativa em sua vida. A perda pode ser real (objetiva) ou por uma decepção. Esta última seria o caso de uma noiva abandonada: aqui o objeto não morreu, mas perdeu-se como objeto erótico (Mauer, 1997). Desta forma, justifica-se o estudo desta paciente para cumprir com o objetivo deste artigo. Nas internações, de acordo com os dados do prontuário, Rosa mostrou inquietude, ansiedade, desorientação do tempo e do espaço, agressividade, irritabilidade, agitação psicomotora, hipervigilância, baixo nível de atenção, alta atividade verbal (com discurso muitas vezes desconexo), aceleração do pensamento e pensamento confuso. A paciente apresenta grande prejuízo cognitivo, com empobrecimento intelectual e perda das capacidades laborativa e de abstração. Ao longo de todas as internações, os familiares de Rosa relataram grande grau de agressividade e vários comportamentos inadequados. Segundo eles, Rosa passou a trocar o dia pela noite, perambulando pelas ruas sem horário para voltar, deixou de se alimentar, falava sozinha (solilóquios) e blasfemava (xingava as demais pessoas na rua). Os sintomas e comportamentos acima apresentados são tipicamente de um estado de humor maníaco. A confusão no pensamento, desorientação do tempo e do espaço e todo o prejuízo cognitivo, com empobrecimento intelectual e perda das capacidades laborativa e de abstração podem ser decorrentes da aceleração dos processos cognitivos, uma das características do humor eufórico. A agitação da paciente é bastante significativa, o que poderia levar aos comportamentos inadequados. Segundo Mauer (1997), o maníaco empreende uma série de atividades geralmente autodestrutivas. Vimos nos arquivos também que por vezes, os familiares contaram que Rosa evitava contato social, manifestava comprometimento de sua higiene (em sua segunda entrada no ambulatório, chegou inclusive com roupas sujas), dizia conversar com a mãe falecida, freqüentemente tendia ao choro e apresentou perda de peso. Estes aspectos são característicos e freqüentemente vistos em 288 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA pacientes depressivos. Desta forma, infere-se a alternância de estados de humor em Rosa. Nestes nove anos de histórico psiquiátrico a paciente apresentou por várias vezes piora do quadro clínico, com reagudização dos sintomas e má administração da medicação. O quadro de Rosa se agravou após o falecimento da mãe em 2000 (os familiares afirmam que ela era muito ligada à mãe). O agravamento do quadro de Rosa após a morte da mãe indica uma dificuldade da paciente em lidar com situações de perda e luto. A experiência com Rosa foi extremamente rica para todos os autores deste ensaio. Ela ficou internada por 28 dias, período este compreendido entre nossa segunda e quarta visitas. Assim, todo o desenrolar de sua última internação foi de certa forma acompanhado por nós. Percebemos a manifestação de diversos sintomas. O contato direto com a paciente nos fez concluir que esta estivesse no presente momento em um estado eufórico de humor. Por outro lado, no primeiro dia que a vimos, Rosa estava medicada e pouco responsiva. Apenas nas posteriores visitas que pudemos conversar mais com ela. Rosa se encontrava bastante agitada (andando de um lado para outro, gesticulando bastante); quando conversávamos, era difícil a compreensão devido à velocidade de sua fala e ao seu discurso por vezes incoerente. Ela se mostrava extremamente alegre, com risos sem causas aparentes que os justificassem. Rosa apresentou também sintomas psicóticos como alucinações e delírios. As alucinações eram em sua maioria auditivas. A paciente dizia que ouvia vozes que prenunciavam eventos ruins (relatou ouvir os vizinhos dizendo que matariam a sua família, ou seja, situações que de certa forma se referem a uma circunstância de perda). Rosa também ouvia vozes de seu ex-namorado e de um suposto esposo. Ela também tinha alucinações visuais, pois enxergava vultos. Os delírios presentes se referiam muitas vezes à existência de um namorado. Em casa, Rosa não deixava a família dormir gritando e chamando por este parceiro. Certa ocasião, quando internada, disse que seu nome era Gina, que nascera em Portugal e que entrara no corpo de Rosa (para Gina, Rosa era uma cigana). Outro exemplo de delírio ocorreu na última internação: a paciente dizia estar grávida e sentia até tontura pelo seu estado, bem como movimentos no abdome. Delírios persecutórios também foram presentes. Muitas vezes a paciente demonstrava estar alucinando, na medida em que durante as conversas, Rosa parecia dirigir a fala a uma pessoa ao seu lado, a quem agredia através de xingamentos. Todos estes comportamentos eram emitidos de forma rápida e repentina. Além desta possível alucinação, podemos elucidar a agressividade e irritabilidade de Rosa, características bastante comuns em pacientes bipolares, já que cerca de 75% dos maníacos são agressivos e ou ameaçadores (Kaplan et al., 1997). 289 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Em uma das conversas que tivemos com a paciente, Rosa relatou que era noiva de “Zé do Caixão”. Perguntamos se ela se referia ao ator e cineasta brasileiro de filmes de terror caracterizado por possuir unhas grandes. Rosa respondeu positivamente. Contudo, disse que ele havia cortado as unhas e que agora se apresentava mais bonito e melhor arrumado por causa da relação que mantinha com ela. Como já dito, a presença de aspectos psicóticos é encontrada em bipolares. O conteúdo dos delírios e alucinações são congruentes com o estado de humor (deprimidos apresentam delírios que envolvem culpa e inutilidade, por exemplo). Rosa delirou ser Gina (mulher portuguesa que entrara no corpo da paciente). Esta alteração do pensamento mostra-se um tanto quanto peculiar (sinalizando um alto grau delirante). Todavia, delírios e alucinações bizarras não congruentes com o humor também são vistos na mania (Kaplan, et al., 1997). A partir dos dados até aqui expostos concluímos que bipolares cuja etiologia da doença é decorrente de uma reação à perda, os sintomas psicóticos por eles apresentados tendem a ser relacionados com esta situação. Os delírios e alucinações propendem a negar a perda (criando circunstâncias em que o objeto perdido é de alguma forma recuperado) ou a colocar o medo de perder como aspecto central do conteúdo psicótico. Podemos ilustrar isto a partir do momento em que Rosa diz ouvir vozes de seu ex-noivo e quando pensa estar se relacionando com outras pessoas (seja seu antigo parceiro ou ainda outrem, o que denota a necessidade de esta paciente ser um objeto amado e assim, anular a perda). Rosa se culpabiliza pelo fim de seu relacionamento. Ela acredita que o fato de não manter relações sexuais com seu parceiro foi a causa da separação. Isto explica o delírio de Rosa quando pensa estar grávida. A gravidez simboliza a concretude do ato sexual, o que evitaria a perda. Dentre as alucinações auditivas, Rosa afirmou que ouvia seus vizinhos dizerem que matariam sua família. Ela também manifestou medo por pensar na possibilidade de matar a própria família. Ela nos relatou isso no dia que obteve alta. Estas situações se referem a uma circunstância de perda. Aqui o conteúdo psicótico gira em torno do medo de perder. Seu ego, uma vez fragilizado, amplia a experiência de perda para várias esferas, e desta forma, cria a ansiedade de perder outros objetos importantes. O medo que Rosa expressa de matar a família também pode ser interpretado como decorrente do estado melancólico, que segundo Freud (apud Mauer, 1997), cria no paciente uma diminuição do amor próprio que implica em reprovações e acusações que o indivíduo faz a si mesmo, e que pode incluir uma espera delirante de castigo, ou seja, Rosa estaria colocando-a como agente causador de outras perdas significativas em uma tentativa do ego de se acusar e de se condenar (já que o objeto perdido está identificado com o ego, agredir o ego é uma forma de agredir o objeto e negar assim, a importância dada a ele). O fato de Rosa sentir-se acusada e culpada pelo desejo de matar os familiares funciona como uma forma eficaz de agressão ao seu ego. 290 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Para Freud, a relação inicial do bebê com sua mãe é o protótipo de todas as relações posteriores, formando o ego, o qual é construído ao longo do desenvolvimento (Eizirik et al., 2002). Como vimos anteriormente, as mesmas circunstâncias que desencadeiam o luto, podem fazer surgir em pessoas com predisposição a isso, uma melancolia (Mauer, 1997). Desta forma, a predisposição à melancolia pode ter sido originada na relação inicial entre mãe e bebê. Sendo assim, é questionado o porquê algumas pessoas reagem de forma tão intensa a uma situação de perda e outras não. Podemos inferir que Rosa desenvolveu um quadro de Transtorno Bipolar por conta do seu protótipo de relação, que não contribui para a elaboração de perdas. Enfim, o caso de Rosa serviu para ilustrar a reação à perda como um dos fatores desencadeantes do Transtorno Bipolar. O rompimento do noivado foi a perda mais significativa na vida da paciente que competiu para o surgimento desta psicopatologia. A separação levou a um estado de luto, que por sua vez, gerou a melancolia (depressão). A mania é vista como uma resposta a este estado que promove uma falsa sensação de melhora para o ego. Como a melhora é ilusória, a volta ao estado depressivo é esperada. Assim, inicia-se um quadro de bipolaridade. A incapacidade de lidar com perdas fez com que o transtorno de Rosa se agravasse com a morte de sua mãe. E através do contato com ela, percebemos o quanto é importante ter um olhar psicológico para compreender a etiologia dos transtornos mentais. Referências bibliográficas Alcantara, I.; Schmitt, R.; Schwarzthaupt, A. W.; Chachamovic, E.; Sulzbach, M. F. V.; Padilha, R. T. L.; Candiago, R. H. & Lucas, R. M. (2003). Avanços no diagnóstico do transtorno do humor bipolar. Revista de psiquiatria do Rio Grande do Sul, 25(1), 22-32. Borja, A.; Guerra, G. & Calil, M. H. (2005). O transtorno bipolar na mulher. Revista brasileira de psiquiatria, 32(1), 110-116. CID-10 (1993). Classificação de transtornos mentais e de comportamento da classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados com a Saúde-10 (trad. por Dorgival Caetano). Porto Alegre: Artmed. Dias, R. 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Transtorno Bipolar e a experiência de perda: contato com uma paciente num ambulatório psiquiátrico. Curso de Psicologia, Centro de Ciências da Vida, Pontifícia Universidade Católica de Campinas – SP. 292 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O sintoma psicossomático: uma proposta traumática para sua etiologia Sebastião Abrão Salim Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro Núcleo Psicanalítico de Belo Horizonte Associação Brasileira de Psiquiatira O sintoma psicossomático (SP) permanece sem explicação etiológica, embora haja incontável número de pesquisas procedentes das diversas áreas do conhecimento biológico e psicológico. Há apenas uma convergência: ele é mediado pelo Sistema Nervoso Autônomo com seus ramos Simpático e Parassimpático. Devido a este fato, os órgãos alvos são aqueles de musculatura lisa. Sobre a etiologia existem inúmeras divergências e radicalismos, havendo teorias puramente biológicas e outras psicogênicas, sem diálogos de seus defensores. A Psicanálise arvorou-se em explicá-lo, considerando-o resultado de conflitos inconscientes que se expressam pelo corpo na impossibilidade de uma expressão verbal. No início havia o absurdo de explicar um estado febril como resultado de um desejo sexual reprimido. Na esteira da correção deste extremismo, Ferenczi (1926) cunhou a expressão “organo-neurose” para diferenciar as entidades psicossomáticas da neurose histérica. A partir de Franz Alexander (1962) e da escola americana de Medicina Psicossomática esse referencial foi modificando. Para ele o SP “seria uma resposta fisiológica ao estado de tensão emocional crônica, mantida por processos inconscientes presididos pelo sistema nervoso autônomo; não eram representantes simbólicos de conteúdo inconsciente sexual reprimido”. Como ilustração: a úlcera duodenal era resultante da antítese entre as tendências para a regressão e a necessidade de superá-la. As vias parassimpáticas eram relacionadas com a dependência e as vias simpáticas com as tendências de luta e competição. Seus estudos levaram-no a concluir que os transtornos psicofisiológicos constituíam respostas-padrão a determinadas situações de conflito dentro do sujeito. Daí desenvolveu a “teoria da especificidade dos conflitos”. Nessa mesma linha, Dunbar (1947) sustentou antes a hipótese de que “cada doença teria um perfil psicológico próprio determinado por experiências infantis traumáticas”. Descreveu a “personalidade traumatofílica, isto é, seu portador repete em suas vidas situações traumáticas acontecidas sem consciência desse fato”. Como será salientada adiante, essa relação com o trauma tem a ver com minha proposta teórica apresentada neste trabalho. Infelizmente os analistas a partir da metade do século XX, foram desvinculando a Psicanálise da Biologia, segundo Kandel (2003) em troca da valorização das 293 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA teorias das relações objetais e da intersubjetividade. O próprio Freud fez o mesmo, quando no início de seus estudos, abandonou seu Projeto para uma Psicologia Cientifica (1895), e depois seu trabalho Além do principio do prazer (1920), ambos tentativas de encontrar as bases biológicas para os processos mentais. Abandonou-os, mas não deixou de vaticinar até o fim de sua obra que no futuro estas bases haveriam de ser encontradas. Com exceção de Winnicott (1978), talvez pela sua proximidade com a Pediatria, e de Tustin (1990) com seus estudos sobre a experiência física sensória, os psicanalistas têm recaído no entendimento do SP como ‘uma linguagem corporal’ para expressar conflitos reprimidos, isto é, um auxiliar para a expressão verbal limitada nesses pacientes. Desconhecem, assim, que o universo psicossomático é um universo sem palavras e sem símbolos. Entre os psicanalistas atuais, McDougall (1989), embora de acordo com essa conceituação biológica, se mostra indefinida, por vezes interpretando o SP como “regressão a um erotismo infantil inicial”. Citam-se, ainda, Pierre Marty e M de M’Uzan (1994) com o conceito de “pensamento operatório”. O autor concorda com McDougall que o paciente psicossomático padece de uma angústia de morte ou de loucura. Assim se expressa a autora: “Os fenômenos psicossomáticos escondem, paradoxalmente, uma luta pela vida, e especialmente pela sobrevivência psíquica do ser”. É fato corrente de fácil constatação que mesmo os citados psicanalistas reincidem na interpretação do sintoma psicossomático conforme a teoria inicial de Freud sobre o inconsciente e considero esse fato do conhecimento incompleto dos elementos que interferem na etiologia do SP. Continuamos com referências questionadas pela neurociência cognitiva. A teoria freudiana ainda continua sendo o porto mais firme. Na outra ponta estão os especialistas da área biológica que insistem em teorias genéticas, hormonais e enzimáticas para explicar o SP. O autor deste trabalho declara que não possui o conhecimento dessas áreas para afirmar ou refutar essas teorias, mas entende que seus adeptos se mostram parciais na medida em que excluem a relação do paciente com sua doença e com seu meio ambiente, por vezes tão importante quanto o próprio sintoma em si, como acontece na Enurese Noturna ou na Anorexia Nervosa. Desse modo, ainda que sua etiologia fosse genética, seu portador requer cuidados que só a Psicanálise por meio da Psicoterapia Psicanalítica pode oferecer. O autor contesta os recentes métodos de Psicoterapia como a Psicoterapia Cognitiva galgada na Neurociência porque não consideram a insuficiência do paciente e nem tratam as questões da relação dele com a doença e com seu meio ambiente. O autor tem como objetivo neste trabalho advogar a hipótese segundo a qual a etiologia do SP tem relação com a angústia de morte que se segue a um trauma físico ou psíquico e as defesas intuitivas do organismo para fazer frente às mesmas. Utiliza para comprovar essa formulação seus conhecimentos de 294 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Psicanálise e estudos sobre o trauma de acordo com o DSM-IV (1994), o retraimento autista, a percepção sensória, a memória implícita e o estresse. A teoria do trauma segundo o DSM-IV Freud (1920) conceituou o trauma como um evento que incide sobre um ego psíquico com capacidade cognitiva, portanto neurologicamente desenvolvido, com tal intensidade que o impede de elaborar a situação, invocando o mecanismo da repressão. A partir daí propôs suas teorias sobre a psicopatologia, diferenciando as neuroses de transferência (histeria, fobia e obsessão) das neuroses atuais resultantes de traumas físicos, como as neuroses de guerra. Diante dessas confessou sua insuficiência teórica para entendê-las e resolveu não prosseguir nesse estudo devido à enorme tarefa que tinha pela frente para cientificar suas descobertas e ampliá-las e à falta de pesquisas biológicas sobre as mesmas na época. Os psicanalistas que o seguiram também não o fizeram e com poucas exceções se voltaram para o estudo das relações objetais. A psicopatologia psicanalítica continuou sendo entendida como resultante da repressão de um conflito psíquico que se expressa pelos sonhos, atos falhos, sintomas neuróticos e sintomas psicossomáticos. Aproximadamente há dez anos, o autor desse trabalho vem modificando seu referencial teórico e clínico, utilizando a contribuição da Psiquiatria sobre o trauma que considera de fundamental importância para a Psicanálise. Trata-se do enfoque biológico do trauma definido pelo DSM-IV (1994) “como um acontecimento que determina em sua vítima ou testemunha uma noção concreta de morte”. Dessa forma o autor passou a entender a psicopatologia das neuroses atuais conseqüentes à angústia de morte física e psíquica (loucura) e reservou para ansiedade de castração, relacionada à sexualidade e ao Complexo de Édipo, o elemento central na etiologia das neuroses de transferência. As neuroses atuais recebem na Psiquiatria atual o nome de Transtorno de Estresse Pós-traumático. Essa angústia de morte, a exemplo da angústia de castração, tem desdobramentos orgânicos e psíquicos importantes, que vão desde a imobilidade até a hiperatividade física e psíquica, que o autor já descreveu em outro trabalho (Salim, 2002). Prosseguindo nesses estudos, o autor encontrou em outros dois autores, Levine (1962) e Harlow (1958), ambos psicólogos experimentais, os elementos biológicos importantes que fundamentam as intuições de Tustin (1990), Winnicott (1978) e Ogden (1996) sobre a existência de uma matriz psíquica primária, que data da fecundação até dez dias após o nascimento. As experiências de Harlow e Levine com macacos e ratos recém-nascidos demonstram que há diferença de comportamento desses animais quando separados das matrizes logo após o nascimento, ou se separados depois de dez dias do nascimento. 295 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA No primeiro caso, quando ambos são colocados em contato com as matrizes após seis meses de separação, mostram-se estranhos, procuram o isolamento e estão desvitalizados. Esse estado é irreversível e pode ser observado, tempos depois, com os dois tipos de animais. O mesmo não ocorre com o segundo grupo. Logo se socializam e recuperam sua vitalidade. Essas experiências mostram os resultados do trauma precoce e a existência de duas matrizes psíquicas, diferenciação importante para a psicopatologia. Pode-se afirmar que há uma matriz autista presidida pelo ego biológico, e outra quando o recém nascido adquire um ego psíquico com capacidade para distinguir o eu e o não eu, o sujeito e o objeto, devido à maturação do Sistema Nervoso Central. Cada matriz origina um tipo de sintomatologia diferente depois de um trauma que afeta o sentimento de “continuar sendo” do feto. A recomposição desse sentimento seria dada pela percepção de uma sensação sensória, fato que acontece de modo marcante desde a vida fetal, como comprova a ultrasonografia fetal quando demonstra o feto coçando as orelhas ou os órgãos genitais. Embora Winnicott (1988) não estendesse seus estudos ao período fetal do desenvolvimento psíquico, deixou claro sua importância nos seus trabalhos. Afirmou que “A base da psique é o soma, e, em termos de evolução, o soma foi o primeiro a chegar. A psique começa como uma elaboração imaginativa das funções somáticas... A elaboração imaginativa da função deve ser considerada existente em todos os níveis de proximidade do funcionamento físico propriamente dito... refere-se à fantasia quase-física, àquela que está menos ao alcance da consciência”. Tustin (1990) com seus estudos sobre o autismo psicogênico e o que chamou de “barreiras autistas em pacientes psiconeuróticos” aproximou-se desta abordagem do psiquismo fetal. Embora não a explicitasse ou a sistematizasse, explicitou a importância da geração auto-sensória pelo feto, como discriminei em outro artigo (Salim, 2006). Posteriormente Ogden (1989b) desenvolveu o conceito de uma posição autistacontígua, anterior à posição esquizoparanóide, deixando implícita sua continuidade desde a vida fetal. Segundo ele, a matriz psíquica desta posição gera a psicopatologia psicótica, como ilustrou com casos clínicos. Para o autor estas contribuições e outras da Neurobiologia validam a possibilidade da percepção sensória constituir nossa primeira representação psíquica com registro pela incipiente memória implícita fetal. A percepção sensória não é uma presença inerte e responde pela noção subjetiva do existir do feto e do recém-nascido, de “quem sou” e “onde estou”. Aqui é importante introduzir outro desenvolvimento importante no referencial teórico do autor. Trata-se dos seus estudos sobre a memória implícita com sede na amídala cerebral. Sua função básica é a regulamentação dos elementos e dos procedimentos responsáveis pela preservação da sobrevivência. Daí ser designada também como memória de procedimento ou de longo prazo. Ela 296 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA funciona independentemente freudiano. da consciência, a exemplo do inconsciente Talvez essa memória tenha relação com o conceito de Freud (1926) de “ego corporal”, conceito que ele não desenvolveu e apenas mencionou que: “O ego é antes de tudo corporal”. Em nota de roda pé, acrescentada em 1927, continua ele: “Isto é, o ego em última análise deriva das sensações corporais, principalmente das que se originam da superfície do corpo (a pele - meu)”. Poder-se-ia dizer que o ego neste período inicial é um ego biológico formado pelo registro contínuo das percepções sensórias pela memória implícita, cujo rudimento existe desde a fecundação. Para detalhar e ilustrar clinicamente a importância da percepção sensória e da memória implícita na etiologia do SP, o autor vale-se do sintoma da enurese, da sudorese e da salivação intensa. A enurese noturna é freqüente na clínica e objeto de extensa pesquisa na pediatria, na psiquiatria e na psicanálise. É uma manifestação psicossomática de etiologia desconhecida e de tratamento não específico. Traz para a criança e para aqueles que a cuidam incômodos e embaraços que, invariavelmente, conduzem a dificuldades no relacionamento familiar e social, muitas vezes, sob forma de traumas físicos e psíquicos, com seqüelas irreversíveis na vida adulta. Seu portador fica indelevelmente marcado por traumas. Costuma ser interpretado psicanaliticamente, como representante simbólico de uma excitação erótica reprimida ou de ódio reprimido voltado para a mãe ou substituto, impedido de ser verbalizado. A sudorese intensa também é ligada a um elemento líquido, no caso, o suor. Normalmente é atribuída à ansiedade edípica (ansiedade de castração). Acontece em situações diversas como viagens de avião, entrevista para admissão em emprego, ou a exposição em público. A salivação, embora menos freqüente, costuma passar despercebida, embora muito incômoda para seu portador, podendo produzir alterações na dentição e na mucosa bucal. O autor propõe a hipótese de que esses sintomas são organizações do ego corporal, portanto de natureza biológica intuitiva e reflexa, tendo como centro a auto-geração de percepções sensórias, utilizando para tanto a urina e o suor sobre a pele e a salivação sobre a mucosa bucal. Esses sintomas assemelham-se aos eczemas que obrigam seus portadores a se coçarem continuamente. São percepções que conferem ao agente a noção de estar existindo, de coesão física e psíquica, que pode ser testada por todos nós, quando prensamos uma caneta nas mãos ou nos dentes. O autor intui que no início, logo após a fecundação, as percepções sensórias do feto são aquelas ligadas aos processos vitais de anabolismo e catabolismo celular, assim como aos batimentos cardíacos, os movimentos intestinais e as 297 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA funções respiratórias da mãe, que têm o mesmo ritmo e intensidade. Mais tarde, com a maturação biológica do feto, este se torna capaz de auto-gerar percepções sensórias com o auxílio de elementos corporais seus com as superfícies sensórias do próprio corpo. Tustin (1990) descreveu a importância dessas percepções produzidas pelo bebê ou pelo recém-nascido, utilizando-se de elementos macios e duros do seu próprio corpo sobre suas superfícies sensórias, principalmente a pele. Entre os primeiros estão a saliva, a urina, os vômitos, as fezes liquefeitas, o muco das vias aéreas e depois o suor e a lágrima, que denominou de “formas autistas”. Entre os segundos estão as fezes, a língua, os dedos, as mãos, os pés e os punhos, que denominou de “objetos autistas”. A ultra-sonografia fetal mostra de forma bastante evidente o feto com as mãos, os dedos, e a língua na boca, assim como movimentos de tocar com as mãos e os dedos seu órgão genital, os lóbulos das orelhas e outras partes do corpo. Se estivermos atentos, podemos observar que são movimentos executados com o mesmo ritmo e intensidade. Têm a mesma regularidade dos movimentos autonômicos vitais do feto e da mãe. Essas ações reflexas de auto-geração de percepções sensórias persistem na vida pós-natal até a senilidade. Aparecem sob a forma de morder ou tocar os lábios e a boca com a língua, dedos, e outros objetos duros ou macios. Também o salivar, o roer as unhas, o apertar objetos duros com a mão, o balanceio cadenciado do corpo e das pernas. Na vida adulta, os representantes são os toques repetidos das contas de um terço com os dedos, os banhos demorados, o enrolar os cabelos da cabeça com os dedos, e outros tantos. É costume universal do povo islâmico o uso do masbarah, um cordão de contas de material duro, ajeitadas de forma semelhante às contas de um terço dos católicos. Seus usuários ficam tocando as contas com as pontas dos dedos da mão para se serenarem por longo tempo no dia. Esses arranjos acompanham o indivíduo pela vida toda e foram denominados de “barreiras autistas” por Tustin. Irão constituir a personalidade autista, se sua presença é muito evidente. Esses objetos e formas autistas são anteriores aos “objetos transicionais” de Winnicott (1975). Segundo ele: “É sabido que os bebês, assim que nascem, tendem a usar o punho, os dedos, e os polegares em estimulação da zona erógena oral, para satisfação dessa zona, e em tranqüila união. É igualmente sabido que, após alguns meses, bebês de ambos os sexos passam a gostar de brincar com bonecas e que a maioria das mães permite aos seus bebês algum objeto especial, esperando que eles se tornem, por assim dizer, apegados a tais objetos”. Embora possa existir esse componente sexual, Winnicott não relacionou estas experiências com a percepção sensória em busca de apaziguamento para uma angústia de morte. Manteve-se preso a teoria freudiana da pulsão libidinosa. Tustin também não se desvencilhou por completo dessa teoria clássica da satisfação das zonas eróticas, mas considerou essas ações como movimentos em busca de coesão e tranqüilidade ao seu portador. 298 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Freud (1920) relacionou esse estado ao “principio de constância” e apontou para uma psicopatologia anterior à da repressão sexual, ligada à morte, mas não deu prosseguimento ao estudo. A retirada autista O termo autista tem a ver com o primeiro estado biológico do ser emergente. Este é organizado sob a égide da homeostase com todas as condições ótimas para a continuidade dos processos de maturação biológica e sua manutenção. Nesse estado, há uma absorção e consumo de oxigênio pela célula em quantidade mínima, suficiente para fornecer a energia necessária aos processos vitais, como mostram experiências recentes de Eric et all (2005). Denominaramnas de “suspensão animada” devido ao estado próximo da inércia vegetativa. Essas experiências têm demonstrado que, através de isquemia produzida, podese prolongar a vida de órgãos para transplante por técnicas que reduzem o consumo de oxigênio pelo órgão a ser transplantado. É proposto neste trabalho que qualquer trauma com noção da descontinuidade do existir promove, mesmo no período fetal, de forma instintiva, um retorno do seu portador ao estado homeostático anterior para prolongar a vida. O autor denomina esse retorno de “retirada autista” e o considera elemento importante na etiologia do SP. Assemelha-se ao que Freud descreveu como regressão, usando a metáfora do exército que deixava para trás pontos de apoio aos quais poderia recorrer em caso de necessidade: um recurso para sobreviver retornando à lugares seguros. O trauma fetal pode ser resultante do traumatismo de parto, de estados tóxicos e infecciosos durante a gravidez, de malformação congênita e de qualquer fator que coloca a sobrevivência do feto ou recém-nascido em risco. Para proteger-se, como dito, ocorre um retraimento autista sem conseqüências patológicas, se transitório, como acontece no trabalho de parto normal ou uma situação existencial passageira. É regido pelo sistema nervoso parassimpático. Além da retirada autista, que gera um estado de suspensão da vida com sintomas de imobilismo, sonolência, perda de apetite e libido, pode ocorrer uma outra resposta caracterizada pela hiperatividade. Nesta, as funções vitais são ordenadas pelo sistema nervoso simpático. Se prolongada, dá início a um processo de desgaste, que Selye (1936) denominou de estresse. Desencadeia a denominada “Síndrome de adaptação geral”, que envolve a hipófise, o hipotálamo, o sistema nervoso simpático e parassimpático e a as glândulas supra-renais. Termina com uma alteração morfológica irreversível do órgão e um estado de insuficiência orgânica e psíquica, como se observa no paciente psicossomático. Geralmente está insuficiente para a vida familiar, social, sexual e profissional, mas tenta continuar ativo, fato que leva ao desgaste, ao estresse. Tanto a hipo como a hiperatividade, dependem da avaliação intuitiva do nosso cérebro reptilíneo da gravidade, da intensidade, da iminência do perigo, e das 299 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA experiências traumáticas anteriores para optar pelos movimentos de imobilismo, de luta, ou de fuga. O corpo chega antes da cognição. Caso Clínico L estava com trinta e quatro anos, quando iniciou a Psicoterapia Psicanalítica com o autor com duas sessões semanais. Queixava-se de bruxismo acentuado, eczema grave, constipação intestinal acentuada, incapacidade para o trabalho e desinteresse pela vida. Desde a adolescência apresentava ocasionalmente esses sintomas, que agravaram aos vinte e sete anos, após a morte do tio com quem trabalhava. Informa que o pai faleceu quando nova, e a mãe foi obrigada a trabalhar. Passou a cuidar em casa dos irmãos menores. Na juventude, teve dificuldades escolares de relacionamento com colegas pelo seu temperamento de pessoa isolada e calada. Apresentou amenorréia prolongada. Aos dezoito anos, começou a trabalhar na empresa do tio, que lhe demonstrou afeto e confiança. Dedicou-se ao trabalho e foi assumindo sua direção. Conseguiu formar um pequeno patrimônio. Casou-se com vinte e dois anos, mas separou um ano depois, pela intolerância ao modo extrovertido do marido, que colidia com alguns rituais comedidos de alimentação e de diversão, e com seu apego à família e ao trabalho. Aos vinte e sete anos seu tio morre e a família deste a impede de continuar na empresa. O bruxismo surgiu assim que deixou a empresa do tio e obrigou-a a longo tratamento odontológico para não perder os dentes. Fez ainda vários tratamentos médicos durante os anos seguintes, sem melhoras. Aos trinta e quatro anos foi convidada pelos familiares que a afastaram da empresa para retomar sua direção. Sentiu-se física e psiquicamente insuficiente. Dedicou-se a fazer trabalhos artesanais de bordado, que exercia com habilidade e lhe rendia algum dinheiro. Nessa época procurou tratamento com o autor. Após dois anos de tratamento apresentou melhoras apreciáveis. Entendeu a importância da reincidência traumática das perdas do pai e do tio para o agravamento de seus sintomas, e que os sintomas (bruxismo, eczemas, constipação intestinal) eram resultado da sua necessidade de se produzir percepções sensórias para se sentir com vida. Estava se refazendo com o auxílio da manutenção regular do setting, através dos horários regulares, pelo tratamento afetivo constante do autor por meio do olhar, da fala, e da compreensão empática. Também estava sendo útil o trabalho interpretativo da sua relação com a insuficiência para o viver. Subestimava-se e era subestimada pelos outros, fato que a mantinha em constante baixa estima. Continua em tratamento. Conclusão 300 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Os longos anos de pesquisa do autor associados com o emprego desse referencial na sua prática clínica levam-no a considerar pertinente continuar esses estudos. Pelo exposto, a etiologia do SP estaria relacionada à reincidência traumática em paciente portador de personalidade autista. O corpo se converte pela presença da homeostase na “mãe suficientemente boa”, com semelhança ao conceito desenvolvido por Winnicott. Um setting terapêutico adequado, fornecido principalmente pela constância da confiança no psicoterapeuta, mantém semelhanças com a homeostase e o paciente poderá retomar seus processos de maturação. O mecanismo de cura é lento e passa pela afetividade, segundo Almeida (2005). O trabalho interpretativo fica destinado aos elementos da transferência-contratransferência e da relação do paciente com sua doença (elementos esses relacionados à matriz psíquica esquizoparanóide, depressiva e edipiana.) Pode-se fazer a conjetura de que a questão da “fragilidade dos órgãos” remontaria ao momento do trauma com a embriogênese de determinados aparelhos orgânicos. Esse trauma seria registrado pela memória implícita, e evocado posteriormente diante de novo trauma, recaindo o peso biológico sobre o órgão afetado anteriormente. Há necessidade de mais estudos conduzidos de forma articulada entre psicanalistas, psiquiatras e neurocientistas. Resumo A etiologia do sintoma psicossomático continua indefinida apesar de inúmeros estudos das ciências afins. O autor apresenta a hipótese de que o mesmo está relacionado a um ou mais traumas fetais ou peri-natais associados com apego aos objetos autistas e formas autistas descritos por Tustin para se auto-apaziguar e uma recorrência traumática na vida posterior. Esse apego responde pela base constitucional da predisposição autista necessária para o desenvolvimento de determinado sintoma psicossomático. Os traumas devem ser de intensidade tal que promovam na vítima uma sensação intuitiva de morte. Como defesa biológica reflexa para essa angústia resultante, a vítima faz uma retirada autista, isto é, tenta retornar aos primeiros períodos do desenvolvimento do feto, em busca do estado de homeostase reinante, onde pode haver possibilidade de sobrevivência pelo consumo diminuído de oxigênio para o exercício das funções vitais. Assemelha-se ao conceito de regressão de Freud. O corpo se tornaria "uma mãe suficientemente boa", como descrita por Winnicott. O sintoma psicossomático seria uma instintiva organização biológica formada por objetos e formas autistas para atenuar a angústia de morte, sob a regência do ego corporal e não um representante simbólico de conflitos sexuais ou 301 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA destrutivos reprimidos que não podem ser expressos verbalmente. O autor ilustra com casos clínicos. Essa hipótese etiológica tem por base os estudos do autor sobre a posição autista-contígua proposta por Ogden, o conceito de trauma segundo o DSM-IV que inclui uma noção de morte física, contribuições da Neurociência sobre a memória implícita e contribuições da Psicologia experimental. Conforme formulou MacDougall, o autor pensa que o fenômeno psicossomático esconde, paradoxalmente, uma luta pela vida e especialmente pela sobrevivência psíquica do paciente. Descritores: Sintoma Psicossomático. Objeto Autista. Forma Autista. Trauma. Memória Implícita. Percepção Sensória. Abstracts The psychosomatic symptom: a traumatic proposal to its etiology. The etiology of the psychosomatic symptom remains indefinite in spite of many studies by sciences concerned. In this paper the author presents the hypothesis that it is related with one or more fetal traumas or per-partum traumas associated with the attachment to the Tustin's autistic objects and forms to auto-appease and a traumatic recurrence in other age. This attachment makes the constitutional basis for the necessary predisposition to develop the psychosomatic symptom. The traumas must have an intensity that promotes on their victims an intuitive feeling of physical death. As a reflex biological defense to death anguish the victim makes an autistic withdrawal, i.e. try to return to the first fetal development period looking for the initial homeostatic state of being, where there is possibility to survive due to diminished oxygen waste to the exercise of the vital functions. It has a similarity with Freud concept of regression. In this state the body converts in "an enough good mother" similar to that conceived by Winnicott. The psychosomatic symptom would be an instinctive biological organization made by the autistic objects and forms to appease the death anguish, under the control of the corporal ego and not a symbolic representation of sexual and aggressive repressed conflicts that could not be verbally expressed. The author illustrate with clinical cases. This etiologic hypothesis is based in author's studies on Ogden's autisticcontiguous position, the trauma's concept as formulated by the DSM-IV that 302 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA evolves a physical death notion, Neuroscience's contributions on implicit memory and Experimental Psychology contributions. As MacDougall said, the author thinks that the psychosomatic phenomenon hides, paradoxically, a fight to live and especially to the patient psychic survival. Keywords: Psychosomatic Symptom. Autistic Object. Autistic Forms. Trauma. Implicit Memory. Sensorial Perception. Resumen El síntoma psicossomático: una proposta traumática para su etiologia La etiología del síntoma psicosomático continúa indefinida a pesar de los innumerables estudios de las ciencias afines. El autor presenta como hipótesis que el mismo está relacionado a uno o más traumas fetales o perinatales, asociados al apego a los objetos autistas y formas autistas descriptas por Tustin para autoapaciguarse, y una recurrencia traumática en la vida posterior. Este apego es el responsable de la base constitucional de la predisposición autista necesaria para que se desarrolle un determinado síntoma psicosomático. Los traumas deben tener una intensidad tal que promuevan en la víctima una sensación intuitiva de muerte. Como defensa biológica refleja ante esta angustia resultante, la víctima hace una retirada autista, o sea, intenta retornar a los primeros períodos de su desarrollo fetal, en busca del estado de homeostasis reinante, donde puede existir la posibilidad de sobrevivencia por el menor consumo de oxígeno para el ejercicio de las funciones vitales. Se asemeja al concepto de regresión de Freud. El cuerpo se volvería "una madre suficientemente buena", como la describe Winnicott. El síntoma psicosomático sería una instintiva organización biológica formada por objetos y formas autistas para atenuar la angustia de muerte, bajo la regencia del ego corporal y no un representante simbólico de conflictos sexuales o destructivos reprimidos que no pueden ser expresados verbalmente. El autor lo ilustra con casos clínicos. Esta hipótesis etiológica tiene como base los estudios del autor sobre la posición autista-contigua propuesta por Ogden, el concepto de trauma según el DSM-IV que incluye una noción de muerte física, contribuciones de la Neurociencia sobre la memoria implícita y contribuciones de la Psicología experimental. De acuerdo a lo dicho por MacDougall, el autor piensa que el fenómeno psicosomático esconde, paradójicamente, una lucha por la vida y especialmente por la sobrevivencia psíquica del paciente. Pallabras-llave Síntoma Psicosomático. Objeto Autista. Forma Autista. implícita. Percepción sensorial. Trauma. Memoria 303 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Referências bibliográficas Alexander, F. El enfoque Psicosomático En Medicina. Buenos Aires: Paidos, 1962. Andrade, V. M. (2005). Affect and the therapeutic action of Psychoanalysis. International J Psychoanalysis, v. 43, p. 306-310. Eric, B.; Mike, M.; Mark, B. R. (2005). 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Foram realizadas avaliações, no início e ao final dos processos, da eficácia adaptativa, do nível de prontidão para mudança, da tendência comportamental e do esforço realizado em direção aos feedbacks recebidos. Os resultados demonstram que o programa de coaching é eficiente, permitindo a promoção e o desenvolvimento de novas competências pessoais que possibilitam aos executivos atingir suas metas organizacionais. Observou-se que certos perfis adicionados às condições de gerenciamento, poderão gerar desempenho inadequado. Palavras-chave: mudança comportamental em organizações; instrumentos psicológicos; psicoterapia de executivos. Abstract The objective of this study was to evaluate the efficiency of an executive coaching program. The executive coaching program is based on information about the executive performance and aims to help him or her developing new competences to reach the organizational goals. Ten executives, from different companies of the metropolitan area of Campinas, constituted the sample. They were designed to the program by their companies. The executive coaching program was developed by the first author. Assessment of the adaptive efficacy, level of readiness for change, behavioral tendency and the effort to accomplish the received feedbacks was carried out at the beginning and at the end of the processes. Results suggest that the coaching program is efficient, promoting the development of new personal competences which makes possible to the executives reach organizational goals. It was observed that some profiles 84 Doutora em Psicologia, Programa de Pós Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Av, John Boyd Dunlop, s/n, Jd Ipaussurama. Campinas, SP. CEP 13060-904. E-mail [email protected] 85 Professora Doutora, Programa de Pós Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Av. John Boyd Dunlop, s/n, Jd Ipaussurama. Campinas, SP. CEP 13060-904. E-mail [email protected] 306 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA when submitted to management conditions where expectation of their behavior are not clear, can result in inappropriate performance. Keywords: organizational executive psychotherapy. behavior change; psychological instruments; Introdução As constantes demandas no mundo do trabalho exigem renovação tanto na estrutura organizacional como nas relações entre as pessoas. Tanto as mudanças exigidas para um processo de trabalho otimizado como a necessidade de um perfil mais flexível do profissional, provocam a necessidade de desenvolvimento contínuo. Outro fator novo é a crescente circulação de informação no mundo e as relações cada vez mais globalizadas indicando a necessidade de constante qualificação e aprendizagem. A aprendizagem passa a ser determinante para os resultados positivos e necessariamente estimulada por uma liderança que valorize as pessoas (Milaré & Yoshida, 2007). Para privilegiar a aprendizagem no ambiente organizacional, o mercado de trabalho tem optado em trabalhar com a metodologia de desenvolvimento, coaching. O coaching oferece a oportunidade de ajudar as pessoas a enfrentarem desafios em todos os níveis. Permite também que as pessoas aprendam enquanto estão trabalhando. Etimologicamente, coaching vem de coach, uma palavra antiga com origem em uma pequena vila húngara onde foi desenvolvida a carruagem coberta, chamada koczi. Hendrickson (1987, citado por Stern, 2004) refere sua idealização para proteger seus habitantes das intempéries regionais ao serem transportados de um lugar para outro. Mais recentemente esta palavra tem sido associada ao esporte, ou seja, o técnico que treina a equipe para que juntos atinjam suas metas em diferentes competições. Conforme com estas definições, o dicionário Oxford (2005) traz a informação de que a palavra coach é sinônima de técnico, treinador, tutor, assim como carruagem, ônibus e viagem em carro ou em carruagem. Bluckert (2006) afirma que o coaching é a facilitação da aprendizagem e desenvolvimento com a finalidade de melhorar performance e enfatizar a ação eficaz, o atingimento de metas e a satisfação pessoal. A evolução do conceito levou à utilização do coaching como forma de desenvolvimento dos executivos. Em termos de definição, pode-se entender o coaching de executivos como: O coaching de executivos é um processo individualizado de desenvolvimento de liderança que otimiza a capacidade do líder para alcançar metas organizacionais a curto e a longo prazo. É conduzido por interação um – a – um dirigido por feedbacks de múltiplas fontes e baseado em confiança e respeito mútuo. O processo pode requerer qualquer tipo de mudança: atitudes e hábitos, habilidades em desenvolvimento, preparar-se e desenvolver-se para tarefas futuras, definir e implementar liderança, metas de negócios e estratégias (Stern, 2004, p. 154). 307 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Muitos motivos justificam o interesse pela utilização desta metodologia, mas o principal é que ela contribui diretamente para a aquisição e amadurecimento de competências, adaptação aos processos de transformação organizacional com melhoria de desempenho (Milaré, 2004). Entre os temas emergentes sobre o assunto, encontram-se publicações sobre a melhor abordagem para o sucesso do coaching. Os fundamentos da abordagem cognitivo-comportamental têm se mostrado úteis na condução de processos de coaching de executivos (Milaré, 2004. Esta abordagem permite reforçar, periodicamente, os novos comportamentos aprendidos, podendo até pedir a colaboração de pares ou subordinados, caso não traga prejuízos ao cliente (Peltier, 2001). Qualquer modelo de coaching de executivos deve levar em conta que o participante deste processo é alguém com alto desempenho em sua organização e a intervenção precisa levar a efeitos significativos e duradouros de desenvolvimento. A expectativa é a de que o executivo que se submete ao coaching estará em condições de aplicar os princípios para seus subordinados diretos, assim possivelmente aumentando o desempenho de outros membros de suas unidades de trabalho (Ducharme, 2004; Peltier, 2001). Ao receber este tipo de feedback os executivos aumentam sua autoconsciência, auto-estima, evidenciando um princípio subjacente importante ao coaching, o aumento da consciência psicológica e social dos executivos, o que por sua vez poderá aumentar a moral, produtividade e lucros (Kilburg 2000; O'Neill, 2001). Também como suporte ao programa de coaching de executivos, pode-se citar a utilidade da Teoria DISC (acrônimo de Dominância, Influência, eStabilidade e Conformidade) e o emprego do instrumento PPA (Personal Profile Analysis). Neste enfoque, Marston (1928) identificou dois tipos de percepção importantes para explicar as respostas das pessoas em situações particulares: a percepção do ambiente e a percepção de si mesma. Utilizando-se destes conceitos, o psicólogo americano Thomas Hendrickson (1950, citado por Thomas International, 1996) adaptou-os para o contexto do trabalho e da administração. Sistematizou essa abordagem num procedimento intitulado, Análise do Perfil Pessoal - PPA. O estilo comportamental de cada indivíduo é a combinação dos altos e baixos dos quatro fatores comportamentais identificados pela teoria DISC. Considera-se relevante ao programa de coaching de executivos a realização do PPA. Para o exercício da atividade de liderança, o que se espera do executivo é que ele tenha bem evidenciado em seu perfil a alta influência e a alta dominância (Duarte 2006). Estas características estariam relacionadas à eficácia adaptativa demonstrada. De acordo com Yoshida (1999), a avaliação da configuração adaptativa de candidatos a psicoterapias, por meio da Escala Diagnóstica Adaptativa Operacionalizada – EDAO-R (Simon, 1995), fornece base segura dos recursos da pessoa em termos de capacidade de enfrentamento e de flexibilidade de respostas frente aos seus problemas, constituindo-se em critério prognóstico da qualidade dos resultados terapêuticos de sujeitos que concluem atendimentos. Além da avaliação da eficácia adaptativa, Yoshida & Enéas (2004) sugerem que se considere o reconhecimento da necessidade de mudança, manifesto pelo 308 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA paciente. A evolução do reconhecimento de que se tem um problema e da disposição para enfrentá-lo, pode ser identificada por meio do conceito de estágios de mudança, proposto por DiClemente e Prochaska (1982). A escala desenvolvida para avaliação destes estágios foi proposta por McConnaughy, Prochaska e Velicer (1983) - EEM - Escala de Estágios de Mudança. Cada estágio reflete o nível de consciência de um problema e o grau despendido de esforço para enfrentar este problema. Em psicoterapia pressupõe-se que o paciente esteja no estágio de contemplação para encontrar-se disposto a enfrentar seus conflitos e quanto melhor a qualidade de suas respostas adaptativas maiores serão as chances do processo psicoterápico ser bem sucedido (Yoshida & Enéas, 2004). De forma semelhante, no coaching de executivos tem sido observado que as atitudes positivas e abertura em relação ao desenvolvimento do programa fazem com que o processo seja mais fluido, passando pelos módulos de forma consistente e com evolução gradual. Da mesma forma, tem sido observado que as mudanças obtidas por alguns não possuem a mesma rapidez e consistência observadas em outros, principalmente aqueles com maiores dificuldades no setor afetivo-relacional (Milaré & Yoshida, 2007). Com base em analogias feitas entre os processos psicoterapêuticos e os de coaching de executivos, hipotetizou-se que o estágio de mudança do início do processo e o grau de eficácia adaptativa do executivo estariam associados à possibilidade de mudança num programa de coaching. Para verificação destas hipóteses, a pesquisa foi realizada através do acompanhamento de programas de coaching de executivos realizados dentro dos procedimentos propostos pela primeira autora, e composta de três etapas: formalização do contrato com a empresa-cliente, formalização do contrato com o participante e avaliação dos resultados. Sendo que a segunda etapa é subdividida em 4 módulos, que compõem a essência do programa de coaching de executivo propriamente dito (Milaré, 2003): auto-percepção (entrevistas, PPA e análise do auto-desempenho – AAD); identificação das oportunidades de melhoria; elaboração e execução do plano de ação e acompanhamento. Os formulários, instrumentos e questões são parte integrante do Manual do Programa de Coaching (Milaré, 2003), que fica em poder do participante do processo de coaching de executivos. Utilizado na prática profissional da primeira autora, o programa não contava até então com evidência científica de sua eficiência. Neste sentido, o objetivo do estudo foi o de avaliar os resultados do programa de coaching de executivos para profissionais em cargos de comando em organizações. Método Participantes / coachees A amostra foi constituída por dez executivos, sendo 5 mulheres e 5 homens. As idades variaram entre 36 e 52 anos, com média de 43 anos e a mediana 41 anos. Seis executivos com nível de comando em organizações multinacionais de grande porte e privadas; dois de empresas nacionais privadas de grande porte, 309 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA dois de empresas nacionais públicas, de pequeno porte. Nove foram indicados para programa de coaching por sua empresa e um por iniciativa própria. Seis executivos eram pós graduados (especialistas) e os demais graduados em nível superior. Foram utilizados os registros dos atendimentos do programa de coaching de executivos. Medidas de avaliação Escala Diagnóstica Adaptativa Operacionalizada-Redefinida/ EDAO-R desenvolvida por Ryad Symon (1989) para a avaliação da eficácia adaptativa. A classificação da qualidade da adaptação é feita por setores da personalidade (Afetivo- Relacional e Produtividade). Atribui-se um escore a cada setor, em função do grau em que as respostas dadas pelo sujeito, resolvem o problema, tragam satisfação e evitem conflito interno ou externo. Da somatória dos escores resultam cinco grupos possíveis (Simon, 1997): Grupo I, Adaptação Eficaz; Grupo II, Adaptação Ineficaz Leve; Grupo III, Adaptação Ineficaz Moderada; Grupo IV, Adaptação Ineficaz Severa; Grupo V, Adaptação Ineficaz Grave. Escala de Estágios de Mudanças/EEM, desenvolvida por McConnaughy, Prochaska e Velicer (1983), trata-se de uma escala que tem a finalidade de avaliar os estágios de mudança, segundo o nível de consciência manifesto pelo sujeito, em relação ao seu problema e o grau despendido de esforço para enfrentar este problema. Segundo a apresentação validada por Yoshida, Primi e Pace (2003) a escala é composta por 32 itens, subdivididos em quatro grupos de oito, destinados a avaliar cada um dos seguintes estágios de mudança: précontemplação; contemplação; ação e manutenção. As respostas são do tipo Likert de cinco pontos, onde 1 corresponde a discordo totalmente e 5 a concordo totalmente. Personal Profile Analysis - PPA Este instrumento foi desenvolvido a partir do modelo conceitual de Marston (1928), que tinha como objetivo compreender e sistematizar modelos de interação entre os indivíduos e seus ambientes. A partir das palavras escolhidas (+ e -) pelo sujeito no formulário do PPA obtém-se uma descrição acurada das características que mais se destacam em seu estilo comportamental. As quatro características analisadas são: dominância; influência; estabilidade e conformidade. Auto Análise do Desempenho - AAD Este instrumento foi desenvolvido a partir do modelo conceitual de Fournies (1978, citado por Bárbara Darraugh, 2000), que visava a compreensão e sistematização do que estaria influenciando a insatisfação quanto ao desempenho do coachee. A proposta é buscar junto ao superior imediato do coachee uma análise de seu desempenho, principalmente dos esforços realizados para atingir suas metas organizacionais. Com base nestes conceitos, a pesquisadora 310 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA desenvolveu um instrumento self report que busca identificar através da análise do próprio coachee como está seu desempenho e o quanto de feedback tem recebido de seu superior. O questionário é composto por 9 perguntas com respostas classificadas como sim ou não. Procedimento O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-Campinas, com a aprovação publicada em 08 de agosto de 2006, sob o Protocolo 392/06. Os participantes foram recrutados dentre os executivos atendidos pela primeira autora em sua prática privada. A participação na pesquisa foi voluntária e antecedida pela assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Avaliações por meio da EDAO-R e da EEM foram realizadas antes e depois dos programas de coaching de executivos, realizado segundo os quatro módulos descritos na introdução. Os processos tiveram duração máxima de 20 encontros, a mínima de 6 encontros e a duração média de 10 encontros. Com vistas à estimativa do grau de acordo entre avaliadores, a eficácia adaptativa foi avaliada segundo a EDAO-R pelas duas autoras, de forma independente. Para tanto, a segunda autora baseou-se, nas transcrições da primeira e da última reuniões com o coachee. Resultados Em relação à EDAO- R, o percentual de acordo entre os avaliadores independentes foi de 70%, considerado por Stemler (2004) como adequado para estimativa de consensos. Os resultados estão demonstrados na Tabela 1. Discussão Pode-se observar que parte das dificuldades enfrentadas pelos participantes e que teriam dado origem à indicação de um programa de coaching de executivos a eles, se deveu, de um lado, à falta de compreensão dos superiores quanto às percepções e expectativas que o coachee tinha de seu ambiente (superiores e colegas). E, por outro lado, pela falta de percepção do próprio coachee, sobre a necessidade de ampliar ou modificar suas atitudes, de forma a adequá-las às exigências deste ambiente. Considerou-se relevante ao programa de coaching de executivos, a realização do PPA. Através desta ferramenta pode-se levantar o perfil predominante do coachee e seus possíveis ajustes e desajustes à sua função. A informação sobre o estágio de mudança medida no início do programa através da EEM, também contribuiu para a elaboração de estratégias no decorrer do tempo. Percebeu-se que o estágio de mudança inicial, tem relação com a rapidez 311 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA e a eficácia com que o programa se desenvolveu. A EEM ao ser utilizada como parte do processo de coaching de executivos apresentou-se de utilidade, considerando que orientou a escolha mais adequada dos procedimentos adotados, assim como a modalidade de intervenção que sensibilizou para a mudança (Milaré & Yoshida 2007). Todos coachees indicaram, no início do programa, sua disponibilidade para mudar seu comportamento em sua Auto Análise de Desempenho (AAD). Apontaram a falta de feedback e a falta de reconhecimento por parte de seus superiores como causas dos déficits de desempenho, o que é compatível com o ponto de vista de Kampa-Kokesch e Anderson (2001). As estratégias cognitivas utilizadas para estes ganhos comportamentais foram absorvidas pelos executivos que puderam rapidamente ver o foco de trabalho através de uma diferente percepção e o benefício potencial decorrente. Para evitar o retorno ao comportamento anterior (Peltier, 2001), cada participante foi instado a traçar um plano de ação pós coaching, identificando todos aqueles que consideraram como importantes para a manutenção dos comportamentos, envolvendo as pessoas de sua relação que poderiam ajudar no estabelecimento consolidado dos novos comportamentos. Os resultados desta pesquisa corroboraram esta expectativa teórica, pois a EDAO-R permitiu a identificação de qual setor da personalidade estava mais comprometido e quais os tipos de respostas apresentam-se como mais freqüentes em processos de coaching de executivos. Percebeu-se que quanto maior o comprometimento da eficácia adaptativa, mais recursos precisarão ser disponibilizados ao coachee para que ele se desenvolva. E, decorrente disto, uma postura mais ativa por parte do coach. Como parte do programa de coaching os executivos receberam feedback do coach, assim como de seus superiores e como decorrência observaram aumento de sua autoconfiança corroborando com a teoria (O'Neill, 2001; Kilburg, 2000). Assim sendo, as respostas eficazes, relatadas tanto pelos coachees quanto por seus superiores, são principalmente aquelas relativas ao restabelecimento de relações interpessoais, melhor aceitação e respeito ao ritmo e forma de trabalho de cada um dos membros da equipe , o desenvolvimento da delegação de tarefas e conseqüente flexibilização, além da melhoria da comunicação em geral. O autocontrole, diante de situações adversas, também foi desenvolvido. A EDAO-R, quando incorporada ao programa, permitiu identificar quais são as situações que estariam gerando desprazer e conflito, medindo sua evolução tanto por meio das próprias respostas do coachee, quanto pelo depoimento das pessoas que convivem com ele. As avaliações da EDAO-R em conjunto com o PPA, mostraram-se úteis na escolha das estratégias e ferramentas utilizadas pelo coach durante os módulos do programa. Por outro lado, a EEM permitiu identificar o grau de prontidão do coachee para enfrentar novas solicitações do ambiente. Estas informações adicionadas aos feedbacks que ele já possuía (ou não), e que foram evidenciados pelos resultados da AAD, colaboraram para o sucesso do programa. 312 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Considerações Finais Apesar deste estudo ter sugerido que programas de coaching de executivos podem ser eficientes e que uma certa sistematização dos procedimentos é desejável, é preciso observar que eles não devem se tornar procedimentos rigidamente padronizados. A forma como as técnicas são introduzidas e os momentos são totalmente particulares a cada caso. Para estas discriminações faz-se necessário que o coach tenha um bom nível de preparo para o exercício desta atividade, requerendo forte base e formação humanista, ter vivência organizacional diversificada, ser um profissional sênior, e que seu histórico profissional garanta credibilidade e confiança, preferencialmente um psicólogo (Milaré, 2004). Os resultados desta pesquisa permitem, pois concluir que, da mesma forma que na psicoterapia, não se espera que o processo de mudança no coaching de executivos se dê de forma repentina, mas é função de todo um contexto que precisa ser avaliado (Yoshida & Enéas, 2004). Ademais, perfis comportamentais com o predomínio do estilo “dominância” podem ser mais predispostos a enfrentar problemas, principalmente quando combinados com condições de gerenciamento que o executivo está submetido em seu ambiente de trabalho. Nesta medida, uma avaliação que considere o perfil de personalidade do executivo, sua eficácia adaptativa, o estágio de mudança em que ele se encontra, integrada às características do ambiente organizacional, parece ser útil na abordagem preventiva dos problemas psicológicos, facilitando a opção pelo programa ou intervenção mais adequado. Acredita-se também que este estudo trouxe a possibilidade de ampliação da utilização de instrumentos psicológicos como a EDAO-R e a EEM, que tradicionalmente são empregados no campo clínico, para as organizações, sugerindo sua utilidade de aplicação a diferentes contextos. Ele também permitiu demonstrar que os fundamentos da psicologia podem ajudar a aperfeiçoar o trabalho, desde que privilegiados a ética e os princípios da dignidade humana. Poucos estudos sistematizados são encontrados na literatura científica a respeito de programas de coaching de executivos. Os resultados deste estudo contribuem parcialmente para o preenchimento desta lacuna. Este estudo contém limites, como o fato dos processos de coaching terem sido realizados pela primeira autora. Em pesquisas futuras sugere-se o estudo de processos de coaching conduzidos por outros profissionais. Ademais, amostras diversas e maiores deverão garantir maior capacidade de generalização dos resultados. E finalmente, sugere-se que novas pesquisas incluam o seguimento dos resultados por ao menos seis meses ou um ano. Referências bibliográficas Bluckert, P. (2006). The Foundations of a Psychological Aproach to a Executive Coaching. In www.pbcoaching.com, em 26/10/2008. Darraugh, B. (2000). Coaching and Feedback. American Society for Training & Development: Info-line, Issue 9006, 7 – 12. 313 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA DiClemente, C.C., & Prochaska, J.O. (1982). Self-change and Therapy Change of Smoking Behavior. Addictive Behavior, 7, 133 – 142. Duarte, M. (2006). Desenvolvimento de Potencial através do DISC. Monografia do curso de Especialização em Desenvolvimento do Potencial. Orientação de Sueli A. Milaré. Campinas: PUC Campinas. Ducharme, M. (2004). The Cognitive-Behavioral Approach to Executive Coaching.Psychology Journal: Practice and Research, 56(4), 214–224. Kampa-Kokesch, S., & Anderson, M., (2001). Executive Coaching: A Comprehensive Review of the Literature. 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SP: Alínea. Tabela 1 – Avaliação de cada participante de acordo com o Personal Profile Analysis (PPA), Auto-Análise do Desempenho (AAD) e avaliação inicial e final da Escala Diagnóstica Adaptativa Operacionalizada Redefinida (EDAO-R) e a Escala de Estágios de Mudança(EEM). Coachee PPA A Alta estabilidade e alta conformidade B C D E F G H I j AAD Desempenho insatisfatório Falta Feedback Falta reconhecimento Equipe e chefe obstáculos Alta Desempenho conformidade insatisfatório e alta Falta reconhecImento e estabilidade Feedback Equipe e chefe obstáculos Alta influência Falta reconhecimento e alta Não ser aceito pelo dominância chefe Alta Falta clareza de metas dominância e de Gestão de Pessoas alta influência Falta reconhecimento Não ser aceito pelo chefe Alta Desempenho dominância e insatisfatório alta Censura devido à conformidade ansiedade Alta Desempenho dominância e insatisfatório alta Falta reconhecimento conformidade Alta conformidade Alta dominância e alta influência Alta dominância e alta conformidade Alta Estabilidade Falta Feedback EEM Inicial Preparação Contemplaão Ação Final Ação Ação Ação EDAO-R Inic Final ial Grupo III I AR 2 3 Pr 1 2 Grupo AR Pr II 2 2 I 3 2 Grupo AR Pr III 2 1 I 3 2 Contemplação Preparação Grupo AR Pr III 1 2 I 3 2 Contemplação Preparação Grupo AR Pr IV 1 1 II 2 2 Contemplação Ação Grupo AR Pr II 2 2 I 3 2 Contemplação Ação Grupo AR Pr Grupo AR Pr Grupo AR Pr II 2 2 III 1 2 IV 1 1 I 3 2 I 3 2 II 2 2 III 2 1 III 2 1 Feedback inconsistente Contemplação Ação Falta reconhecimento Não ser aceito pelo chefe Précontemplação Contemplação Desemp. insatisfatório Falta Feedback Falta reconhecimento Não ser aceito pelo chefe Contemplação Contem- Grupo AR plação Pr 315 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA 316 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A Criança em Sofrimento: o imaginário de pais sobre a criança com problemas [86] [87] Tânia Maria José Aiello-Vaisberg [88] Pontifícia Universidade Católica de Campinas Sueli Regina Gallo-Belluzzo Elisa Corbett Resumo Este trabalho objetiva investigar o imaginário coletivo de pais, cujos filhos foram encaminhados para psicodiagnóstico, sobre “crianças com problemas”, a fim de produzir conhecimentos que contribuam para o desenvolvimento de práticas psicoterapêuticas e psicoprofiláticas diferenciadas. Para tanto, foram realizadas entrevistas articuladas ao redor do uso do Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema, utilizado como facilitador da comunicação emocional. O material resultante foi compreendido à luz do método psicanalítico, tal como é operado na detecção dos campos psicológicos vivenciais em que se organiza o inconsciente relativo. Foram encontrados dois campos nãoconscientes, denominados “A culpa é dos pais” e “O que meu filho tem não é problema”. O primeiro campo configura um mundo imaginário- transicional que deriva da crença central segundo a qual a criança com problema seria vítima da falta de atenção dos pais. O segundo campo organiza-se ao redor da crença de que as crianças só apresentariam problemas caso fossemos vítimas de doenças orgânicas. Em conjunto, os campos captados indicam que o grupo pesquisado tende a negar a possibilidade de que crianças apresentem dificuldades de ordem psicológica, num movimento de certa desvalorização de sua subjetividade afetivo-emocional. Palavras-Chave: Imaginário Coletivo – Criança-Problema – Procedimento Desenhos-Estórias com Tema – Campos Psicológicos Abstracts The aim of this paper is to investigate the collective imaginary of parents, whose children had been directed for psychodiagnosis, about “children with problems”, in order to produce knowledge that contribute for the development of differentiated psychotherapeutics and psycho-prophylactic practice. The Procedure of Thematic Story-Drawing was used and tends to a view to facilitate the emotional communication. The productions were considered in the light of the psychoanalytic method, as it operated in the detection of the 86 Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Campinas, Doutoranda em Psicologia como Profissão e Ciência pela PUC-Campinas, Professora do Curso de Psicologia da FAJ Faculdade de Jaguariúna. 87 Mestranda em Psicologia como Profissão e Ciência pela Puc-Campinas, bolsista CNPQ. 88 Orientadora do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Professora Livre Docente aposentada do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Coordenadora da “Ser e Fazer”: Oficinas Psicoterapêuticas de Criação do IPUSP e Presidente do NEW- Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo. 317 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA existential psychological fields where is organized the relative unconscious. We found two non-conscientious psychological fields: “The parents are guilty” and “My child don’t have problem”. The first psychological field takes shape an imaginary-transitional world that drifts of the belief according to which the child with problem would be victim of the lack of attention of the parents. The second psychological field gets itself organized around of the belief of that the children alone would present problems in case that they were victims of organic illnesses. In set, the caught fields indicate that the searched group tends to deny the possibility of that children presents difficulties of psychological order, in a movement of certain depreciation of its affective-emotional subjectivity. Keywords: Collective Imaginary – Problem Child – Procedure of Thematic StoryDrawing – Psychological Fields Este trabalho é resultado de um estudo sobre o imaginário de pais de crianças que são encaminhadas para diagnóstico em uma clínica-escola vinculada a uma faculdade de psicologia. No contexto deste serviço de atendimento, a clientela é encaminhada pela escola que freqüenta, implicando em que geralmente parte desta instituição, e não dos pais, a percepção de que estas crianças apresentam dificuldades passiveis de serem avaliadas por um profissional habilitado. Compreendendo que os pais desempenham um papel fundamental na atenção psicológica à criança, interessamo-nos em investigar o que estes imaginam sobre uma criança com um problema. O conceito de imaginário coletivo foi desenvolvido por Aiello-Vaisberg (1999), a partir do refinamento conceitual da teoria das representações sociais. Privilegia a experiência emocional a partir da qual emerge determinada conduta (Bleger, 1963/1984), sendo mais adequado ao objeto do presente estudo do que o termo “representação”, que remete a uma atividade cognitiva de cópia da realidade exterior. Enfatizamos, ainda, que a conduta imaginativa envolve, desde o nosso ponto de vista, uma atividade criadora do sujeito. A proposta de investigação de coletivos se sustenta na afirmação de Bleger (1963/1984) de que a conduta individual é também social, não existindo, no seu entender, o indivíduo como uma mônada isolada. Entendemos que a conduta da criança, tratada como problema, ocorre num determinado ambiente, portanto, o imaginário dos pais sobre essa criança tem importância no seu desenvolvimento. O imaginário coletivo, nessa perspectiva, pode ser entendido como um lócus transicional que fundamenta e permeia as idéias, os sentimentos e as ações de uma pessoalidade coletiva. Usamos, dessa forma, o conceito de transicionalidade de Winnicott (1967) que atribui ao lugar a que nos referimos o significado de espaço intermediário, entre o que é percebido objetivamente e concebido subjetivamente (Aiello-Vaisberg, 2004). Nesse espaço intermediário é que julgamos encontrar o real significado de pensamentos, sentimentos e ações humanos. Para realizar a pesquisa do imaginário dos pais, fizemos uso de um recurso mediador dialógico, inspirado nas consultas terapêuticas de Winnicott (1971), 318 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA nas quais lançava mão de um brincar chamado Jogo do Rabisco, através do qual ele e seu paciente faziam rabiscos até completarem – ou não - um desenho. Através do brincar, Winnicott acreditava favorecer a comunicação emocional profunda do paciente, além de facilitar que aquele momento lúdico se transformasse num encontro potencialmente mutativo, no sentido de possibilitar que o processo natural de amadurecimento pessoal, eventualmente bloqueado, voltasse a fluir. O uso desse recurso teve a finalidade não apenas favorecer a comunicação emocional dos participantes acerca do tema de pesquisa, mas, também, de facilitar a integração de determinados aspectos emocionais possivelmente dissociados. Dentre os diversos “jogos do rabisco’ possíveis, utilizamos nesta pesquisa o Procedimento Desenhos-Estórias com Tema, desenvolvido por Aiello-Vaisberg (1999) a partir do Procedimento Desenhos-Estórias de Trinca (1972). Os participantes foram convidados a realizar um desenho acerca de uma criança que tem problema e, em seguida, a inventar uma história a partir da figura desenhada. A solicitação para realizar esse procedimento foi feita a cinco mães, cujos filhos foram encaminhados a uma clínica-escola. Esse procedimento é utilizado como recurso de abordagem para temas de difícil acesso, que não estão no campo consciente e/ou suscitam emoções indesejáveis. Os desenhos-estórias foram considerados à luz da Teoria dos Campos de Herrmann (1979/1991), que, na leitura de Aiello-Vaisberg (1999), prevê uma aproximação psicanalítico-fenomenológica em relação ao acontecer clínico. Assim, fizemos uso das técnicas psicanalíticas de associação livre e de atenção equiflutuante, a fim de deixarmos que o material nos impressionasse da mesma forma que nos impressionamos com um paciente, na clínica, vale dizer, sem recorrer à literatura especializada, sem juízo de valor e sem nos atermos ao conteúdo manifesto. A partir daí, foi possível captarmos os campos psicológicos não conscientes (Bleger, 1963/1984), isto é, os determinantes lógico-emocionais relativos a uma criança que tem problema. Um indivíduo que está vivendo sua conduta está impedido de conhecer o campo que a sustenta (Herrmann, 1979/1991), desta forma o uso do Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema facilita a expressão de determinações inconscientes e da dramática do viver humano. Este campo que permeia a conduta estabelece-se como uma matriz produtora de sentido (Aiello-Vaisberg, 1999) Os Campos Psicológicos Vivenciais Foram detectados dois campos psicológicos não conscientes nas produções das participantes, que denominamos “A culpa é dos pais” e “O que meu filho não tem é problema”. O primeiro campo, “A culpa é dos pais”, configura um mundo transicional em que a criança é olhada como vítima da falta de tempo e atenção por parte dos seus cuidadores, aparecendo nos desenhos-estórias como da Figura 1. Neste contexto, comportamentos agressivos infantis são entendidos apenas como 319 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA reação à rejeição paterna. A regra lógico-emocional que rege este mundo é a de, se o comportamento da criança é resultado de sua tristeza, raiva e frustração diante da ausência dos pais, a forma correta de resolver este problema é provendo-lhe atenção – de preferência, muita atenção. Movemo-nos, portanto, num terreno no qual a culpa surgiria frequentemente como sentimento comum a pais que, envolvidos com seu trabalho e outras atividades, vêm-se mais distantes dos filhos do que acreditam que deveriam. Assim, nos momentos em que podem estar mais próximos, evitam repreendêlos, e procuram atender aos seus desejos. Deste modo, pensamos que este campo aponta para certa dificuldade dos pais em assumir a função de educadores capazes de atuar de forma continente em relação à criança sem, no entanto, deixar de estabelecer limites. Compreendemos, então, a regra lógicoemocional que rege o campo “A culpa é dos pais” pode inclusive ser vista como uma espécie deturpação do conceito de holding, central na teoria construída por este autor. Tal conceito se traduz como a possibilidade de, a partir de um estado de abertura em relação ao outro, perceber o que seria necessário a ele, e agir de forma condizente. Inicialmente, podemos refletir que faz parte do processo de amadurecimento deparar-se com as limitações que o mundo apresenta. É papel dos pais, portanto, apresentar à criança tais limitações de forma que não violem sua continuidade em ser, e não furtar-se a colocá-las em pauta. Figura 1 “Essa criança é carinhoso, meigo ao perceber que alguém o rejeita, ele quer atenção, começa a trazer flores, desenhar. Quando não retribuído ele começa a xingar e joga o pau na pessoa. Quando ele é contido ele chora muito, soluça (parece bebê) É dado atenção a ele questionando o que ele quer ser, o que quer fazer e depois de acalmar ele pede desculpas e diz que não sabe porque fica assim. Se há alguma reclamação dele, e que ele está sempre sozinho. 320 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Ele em uma qualidade, vai muito bem na escola, é inteligente, e quer sempre ser o primeiro.” Já os habitantes do segundo campo, denominado “O que meu filho não tem é problema”, consideram que “problema” é ter uma deficiência física que afete em grande medida suas possibilidades de interação social e independência futura de seus cuidadores, aparecendo em produções como a ilustrada na Figura 2 . Este revela-se um mundo dualista, em que existem apenas as pessoas que têm um “problemão” e as que não têm problema nenhum. Assim, são negadas as questões de ordem psicológica, bem como todas aquelas consideradas menos limitantes. Figura 2 “Esta é V., filha de uma prima de meu marido, ela tem 3 anos, tem uma síndrome que eu não sei o nome, ela é uma criança que não anda, não fala, ela chora como um miado de um gato. A mãe apesar de não ter aceito a doença da filha, a trata com muito amor, atenção e carinho, para uma mãe não é fácil aceitar que o seu filho tem algum problema, os pais já são mais compreensivos e para eles é mais fácil aceitar. A Vitória tem um irmão de 5 anos (o V.) que é uma criança normal. Eu falei sobre ela por ser da família e que perto dela nem meu filho e nem minha filha acredito não ter nada.” A consideração conjunta dos dois campos permite perceber que, embora estas crianças tenham sido encaminhadas para uma clínica psicológica pela escola que freqüentam, indicando que esta instituição acredita que necessitem de atenção especializada, seus parecer ter uma visão diferente. Do ponto de vista racional, podem perceber que os filhos não se comportam da forma como deveriam, e se vêem em dificuldades para lidar com a situação, possivelmente um dos motivos pelos quais procuram o serviço de atendimento e garantem as condições para que os filhos participem das sessões. No entanto, do ponto de vista da experiência emocional, parece que ainda é para eles muito complicado aproximar-se desta questão. Sentem-se culpados pelos problemas, ou negam sua importância, necessitando também de suporte, por parte da equipe de atendimento, para que possam elaborar seu próprio sofrimento em relação à situação e, conseqüentemente, oferecer aos filhos reais condições de superação de suas próprias dificuldades. 321 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Referências bibliográficas AIELLO-VAISBERG, T. M. J. (1999). Encontro com a loucura: transicionalidade e ensino de psicopatologia. Tese de Livre Docência, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. AIELLO-VAISBERG, T. M. J. (2004). Ser e Fazer: enquadres diferenciados na clínica winnicottiana. São Paulo: Idéias & Letras, 2004 BLEGER, J. (1984). Psicologia da conduta. Trad. Emilia O. Diehl. Porto Alegre, Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1963) HERRMANN, F. (1991). 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A pesquisa foi realizada através do uso do Procedimento de DesenhosEstórias com Tema, no enquadre de entrevistas individuais para abordagem de pessoalidade coletiva. A análise do material, baseada em conceitos blegerianos, revelou a existência de três campos do imaginário das mulheres investigadas, sobre a vivência de quem possui câncer de mama: “Tive câncer, e daí?”, “Tenho câncer: o que esta doença fez comigo!”, “Mulheres infelizes podem ter câncer”. O primeiro campo nega a tragicidade e o impacto da doença na vida de uma pessoa, enquanto o segundo tem caráter fatalista e traz a possibilidade implícita da morte e o terceiro, ao considerar o câncer como conseqüência da infelicidade humana, traz a marca do preconceito. Palavras-chave: Câncer de Mama – Imaginário Coletivo - Procedimento Desenhos-Estórias com Tema – Psicanálise Abstracts: This paper investigates the women’s conception about breast cancer. The research was undertaken by using the Procedure of Thematic Story-Drawing, in a framework of individual interviews for boarding collective pessoalidade. Based on Bleger’s concepts, data analysis disclosed the existence of three psychological fields of the imaginary one of the women investigated, on the experience of who possess breast cancer: “I had cancer, and from there?”, “I have cancer: what this illness made with me!”, “Unhappy women can have cancer”. The first psychological field denies the impact of the illness in the life of a person, while the second has a fatalist character and it brings the implicit possibility of the death and third, when considering the cancer as consequence of the misfortune human being, it brings the mark of the preconception. Keywords: Breast cancer – Collective imaginary - Procedure of Thematic StoryDrawing – Psychological Fields 89 Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Campinas, Doutoranda em Psicologia como Profissão e Ciência pela PUC-Campinas, Professora do Curso de Psicologia da FAJ Faculdade de Jaguariúna. 90 Mestre em Psicologia pela PUC-Campinas 91 Orientadora do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Professora Livre Docente aposentada do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Coordenadora da “Ser e Fazer”: Oficinas Psicoterapêuticas de Criação do IPUSP e Presidente do NEW- Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo. 323 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O câncer de mama como sofrimento humano Em nosso trabalho em consultório e como pesquisadoras, temos constatado que um tipo de sofrimento vivido por um grande número de mulheres é aquele decorrente da experiência de ter um câncer de mama. Visualizamos este sofrimento inserido em vários contextos, inclusive no âmbito dos preconceitos que subjazem a processos de exclusão social. A ligação entre câncer de mama e exclusão social nem sempre é estabelecida de imediato, aliás, mais comumente associada a grupos de minorias, tais como deficientes físicos e mentais, negros, soropositivos, homossexuais, etc. Encontramos no artigo de SantAnna (2000) sobre a mulher e o câncer na história, um estudo sobre os significados e interpretações acerca da doença e das situações que lhe estão associadas, mostrando a relação do câncer com o preconceito. No século XIX e primeiras décadas do século XX, o câncer era considerado contagioso e associado à falta de limpeza, à sujeira física e moral. Acreditava-se que a doença poderia ser resultado de “pecados e vícios”, em especial das práticas sexuais, sendo o sexo oral identificado como a causa principal das neoplasias nas mulheres, principalmente nas homossexuais e bissexuais. Por fim, concebia-se que a doença poderia ser contagiosa entre os amantes dos excessos do prazer. Durante os anos 30 e 40 surgem novas hipóteses sobre os fatores predisponentes ao câncer, tais como a ingestão de alimentos com produtos químicos, o hábito de fumar, o excesso de trabalho e o aumento das preocupações diárias, porém as argumentações de cunho moral continuavam em evidência. Na década de 50 os avanços nos métodos de diagnóstico e tratamento possibilitaram o aumento do número de sobreviventes e do tempo de sobrevida dos pacientes. Surgiu a necessidade de lhes proporcionar boa qualidade de vida. Algumas áreas da medicina, incorporando conhecimentos psicanalíticos, começaram a levantar a possibilidade de participação de fatores psíquicos no desenvolvimento do câncer. Os argumentos morais se atualizavam: eram os indivíduos frígidos e impotentes, pervertidos sexualmente ou doentes do sexo que se tornavam segundo diversos médicos, presas fáceis do câncer. A noção do câncer como castigo foi sendo substituída pela de que a doença expressa o caráter do paciente. A doença que era vista como uma conseqüência da conduta desregrada do indivíduo, cujos comportamentos e emoções eram desmedidos, passou a ser relacionada com a contenção do desejo ou incapacidade de expressar suas emoções. A ênfase na concepção de que determinados estados psicológicos e certas características de personalidade do doente são importantes fatores 324 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA predisponentes ao câncer pode mostrar-se tão punitiva quanto a noção da doença como castigo (Silva, 2008). Temos adotado a visão do psicanalista Bleger sobre o homem, segundo o qual, ele é um ser que nasce na cultura, pertencendo a determinada classe social, a um grupo étnico e religioso. Conseqüentemente, coexiste na cultura incorporando e organizando experiências com os demais indivíduos, sendo o conjunto das relações sociais o campo que o indivíduo se constitui em sua personalidade, “porque o meio ambiente do ser humano é um ambiente social, do qual vêm os estímulos fundamentais para a organização de suas qualidades psicológicas” (Bleger, 1963, p. 20). Neste contexto, surge a relevância dos fenômenos psíquicos porque, na medida em que os humanos são seres capazes de atividade simbólica, todas as suas condutas manifestam-se simultaneamente na área da mente, de modo consciente ou não consciente. Todas as pessoas estão em permanente interdependência com o mundo externo, de tal maneira que não há fatos isolados e a influência que se dá entre eles é uma permanente ação recíproca. (Bleger, 1963) Em conformidade com essa visão destacamos a importância da dimensão emocional na abordagem da mulher com câncer de mama. Encontramos na literatura alguns estudos que, embora não sendo de cunho psicanalítico, reconhecem a importância deste enfoque. São estudos realizados por profissionais da área de saúde, que acompanham mulheres que se encontram em tratamento do câncer (Cantinelli et al, 2006; Duarte & Andrade, 2003; Lorencetti & Simonetti, 2005; Silva, 2008). Estes autores apontam que o câncer representa uma ameaça em vários níveis: o medo da morte, da rejeição, da mutilação, dos efeitos do tratamento quimioterápico, assim como o surgimento de sintomas de estresse, ansiedade e depressão. Tais sentimentos negativos podem afetar a elaboração de atitudes que facilitariam o enfrentamento das terapêuticas, muitas vezes desconfortáveis. Isso indica a importância da participação de profissionais de saúde mental nas equipes de saúde. Entretanto, a verdade é que raramente estas pacientes contam com o atendimento de psicólogos e psiquiatras, permanecendo entregues aos cuidados do oncologista, do cirurgião e da enfermeira. Entendemos que é muito importante conhecer melhor o sofrimento da mulher vítima do câncer de mama. Este sofrimento, contudo, emerge, quando o diagnóstico acontece, num ambiente humano, que é constituído não apenas da realidade material, mas também pelo imaginário coletivo, vale dizer, por um conjunto de sentimentos, pensamentos e crenças que circulam no mundo social. A nosso ver, tanto as dimensões individuais, que se concretizam quando uma determinada mulher é efetivamente diagnosticada, como as dimensões sociais circundantes, nas quais vigoram certas concepções sobre o câncer, merecem ser rigorosamente investigadas, quando consideramos importante produzir conhecimentos que permitam melhorar o atendimento às pacientes, compreender o sofrimento emocional concomitante, auxiliar em processos de 325 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA recuperação ou contribuir no sentido da psicoprofilaxia do próprio câncer e do sofrimento emocional a ele vinculado. No momento, optamos focalizar o imaginário coletivo de mulheres sobre o câncer de mama. De acordo com a visão psicanalítica blegeriana, as queixas psicológicas são sintomas que expressam problemáticas existenciais relacionais (Bleger, 1963). O sofrimento da pessoa com câncer faz sentido levando-se em conta os contextos da vida individual e da vida coletiva da qual emerge. O imaginário coletivo deve ser compreendido como um conjunto de produções ideo-afetivas, de “sentimentos-pensamentos”, que se constituem como condutas (Bleger, 1963). É um conceito que rompe com o pressuposto segundo o qual o psiquismo acontece como interioridade individual, para entendê-lo como fenômeno que se gesta intersubjetivamente. A conduta, ao lado de outros elementos, tais como a linguagem, os utensílios e os usos e costumes, correspondem ao que se pode corretamente designar como ambiente humano ou cultural, que é o campo a partir do qual toda conduta é emergente (AielloVaisberg, 2005). O conceito de conduta, na concepção de Bleger é diferente daquele adotado pelos comportamentalistas, pois é definida como manifestações humanas dotadas de sentido emocional, que tem lugar em contextos pessoais, sociais e históricos. O conhecimento do imaginário de mulheres sobre o câncer de mama permitirá lidar melhor com o sofrimento das pessoas que recebem a notícia do diagnóstico de câncer de mama e daquelas que estão em tratamento. Tal conhecimento permite identificarmos as produções imaginativas das pessoas que fazem parte do nosso mundo social e elucidarmos o inconsciente relativo, ou seja, a sua lógica emocional inconsciente, sobre a qual se estruturam (Bleger, 1963; AielloVaisberg, 1999). A compreensão e transformação dos campos psicológicovivenciais subjacentes aos imaginários coletivos poderão possibilitar mudanças profundas e duradouras tanto nas condutas das pessoas que passam pelo sofrimento de ter um câncer, como nas pessoas com quem convivem ou que fazem parte das equipes de saúde encarregadas do seu tratamento,proporcionando o benefício da ampliação de oportunidades e possibilidades vivenciais, libertando o ser humano de adesões a concepções restritivas sobre o sofrimento dessas pessoas. (Aiello-Vaisberg, 1999, Martins, 2007) Pensamos que esta pesquisa pode colaborar com a melhoria da qualidade de vida das mulheres com câncer, ao buscarmos a compreensão emocional do ambiente humano no qual se desenrola dramaticamente o viver dessas pessoas. A Pesquisa do Imaginário Coletivo O trabalho investigativo, no campo da psicologia, deve partir da dramática da vida para seguir caminhos de teorização que se mantenham maximamente próximos ao plano concreto das vivências emocionais (Bleger, 1963). Preocupamo-nos com o estabelecimento de uma estratégia de pesquisa que 326 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA possibilitasse o surgimento de manifestações simbólicas de subjetividades grupais, e também buscamos refletir sobre o material emergente evitando explicações distanciadas do viver. Propomo-nos pesquisar o imaginário coletivo de mulheres sobre o câncer de mama por meio do Procedimento de DesenhosEstórias com Tema (Aiello-Vaisberg, 1999) a partir do Procedimento DesenhosEstórias de Trinca (1997), tendo em vista produzir conhecimentos que possam orientar o planejamento de práticas psicológicas em instituições, em registros psicoterapêuticos e psicoprofiláticos. Tal procedimento consistiu na solicitação do desenho de “uma mulher que tem câncer de mama” e da invenção de uma história sobre a figura desenhada. As entrevistas foram individuais, na residência de cada uma das participantes da pesquisa. Foram entrevistadas oito mulheres, que não tiveram câncer de mama. A presente pesquisa visa identificar os complexos ideo-afetivos constituintes do imaginário coletivo de mulheres sobre o câncer de mama, bem como captar os campos psicológico-vivenciais não-conscientes sobre os quais se sustenta. A estratégia teórico-metodológica utilizada está apoiada na afirmação de Bleger (1963/2001) de que é no contexto dos campos vivenciais que nascem os sentidos das condutas e que a tarefa do psicanalista é a da pesquisa das motivações inconscientes das condutas de indivíduos e coletivos. Utilizamos, no processo de “criação/encontro” dos múltiplos sentidos veiculados pelos desenhos-estórias, o auxílio da Teoria dos Campos (Hermann, 1979). Acessar tais campos corresponde a interpretar clinicamente, o que aqui será feito, não com objetivo terapêutico-individual, mas tendo em vista produzir conhecimento sobre o ambiente coletivo no qual as condutas individuais têm lugar. Neste contexto, torna-se interessante tomar as produções individuais como associações de um único sujeito coletivo, no caso, mulheres que não sofrem nem sofreram de câncer de mama. Os Campos Psicológicos Vivenciais Ao introduzirmos o tema “O Câncer de Mama” verificamos que as entrevistadas abordaram diversos tipos de sofrimento que podem ser vividos pela mulher acometida por esta doença. Foram identificados três campos nas produções de Desenhos-Estórias com Tema. O primeiro campo captado foi denominado “Tive câncer, e daí?”. Neste é negado o caráter trágico da experiência de se ter um câncer. Num primeiro momento pode-se pensar que isso se deve à campanha que tem sido veiculada sobre a importância do diagnóstico precoce, que possibilita um alto índice de cura, bem como a experiência social de convivência com pessoas curadas, fato extremamente raro há algumas décadas. Porém, uma reflexão mais profunda, mostra-nos o não enfrentamento da doença com todos os matizes de sofrimento que ela apresenta: as cirurgias mutiladoras, os tratamentos quimio e radioterápicos, e a possibilidade da morte. 327 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA No Campo “Tenho câncer: o que esta doença fez comigo!”, os desenhos e histórias apresentados, trazem a vivência dramática de quem é acometido pelo câncer. O medo da morte, da mutilação e do tratamento são abordados de maneira explícita. O câncer é sentido como um “divisor de águas” na existência da pessoa que tem esse diagnóstico, pois há um estilo e uma forma de viver anterior ao câncer, que se contrasta com as mudanças que se sucedem após a constatação da presença da doença. No terceiro campo, “Mulheres infelizes podem ter câncer” a doença é relacionada a um estado emocional. Verificamos que o câncer ainda tem uma conotação preconceituosa no imaginário coletivo, ou seja, o seu surgimento é relacionado à falta de amor, à raiva, à mágoa, à depressão. Ao sofrimento emocional que é vivido por aquele que tem câncer, acrescenta-se a culpa de que os estados emocionais anteriores ao aparecimento da doença, na verdade foram os seus geradores. A consideração conjunta dos três campos permite perceber o caráter fatalista dos dois primeiros, vale dizer, qualquer ser humano está sujeito a ter câncer. Já o terceiro campo relaciona o câncer a uma pré-determinação: estados emocionais negativos são fortes componentes para deflagrar a doença. Referências Bibliográficas Aiello-Vaisberg, TMJ. (2006) Abordagem psicanalítica do imaginário de adolescentes sobre álcool e drogas: subsídio para o desenvolvimento de práticas psicoprofiláticas. Projeto de Iniciação Científica do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2006. 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São Paulo, Vetor, 1997 329 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Rabiscando o imaginário sobre o cuidado materno: uso de narrativas interativas na pesquisa psicanalítica92 Tania Mara Marques Granato Tânia Maria José Aiello-Vaisberg Pontifícia Universidade Católica de Campinas Resumo: Partindo do pressuposto de que a experiência humana ganha sentido quando tecida em narrativas que a sustentam, pretendemos realizar uma pesquisa psicanalítica que faça uso de narrativas interativas, a fim de acessar os campos de sentido sobre os quais repousa o imaginário dos indivíduos sobre o cuidado materno. A primeira parte de uma narrativa é apresentada, como recurso dialógico, pelo pesquisador, que convida o participante, ou o grupo de participantes, a completar aquela história, da maneira mais livre possível. Abrese, a seguir, um espaço para interlocução, durante a qual os participantes podem ser expressar livremente sobre a experiência vivida e/ou sobre a temática do encontro. A regra fundamental da Psicanálise estará presente tanto na apresentação do procedimento quanto no tratamento dado pelo pesquisador às narrativas produzidas, priorizando-se a associação-livre e a atenção flutuante como meio de acesso aos campos inconscientes da trama criada. A partir do resgate dos campos de sentido que apresentam o contexto intersubjetivo em que a mulher se torna mãe, imaginamos poder contribuir para transformar o modo como o bebê é acolhido por todos aqueles que estão envolvidos em seu cuidado. Palavras-chave: maternidade, narrativa, imaginário, psicanálise. Squiggling the imaginary about infant care: use of interactive narratives in the psychoanalytic research Abstract: According to the premise that human experience makes sense when woven into narratives, we intend to do a psychoanalytic investigation making use of interactive narratives in order to access meaning fields upon which the individual’s imaginary about infant care rests. The first part of a narrative is presented, as a dialogical strategy, by the researcher who invites the participant, or the group of participants, to complete the story, in a free way. After that, it is proposed a moment of interlocution, when the participants can express their feelings about the experience and/or the thematic of the encounter. The fundamental rule of Psychoanalysis will be observed during the narrative procedure as well as in the subsequent narratives’ treatment, in which free association and free floating attention will be the means to access the unconscious fields of the constructed plot. Becoming aware of the meaning fields that present the intersubjective context in which a woman becomes a mother, we aim to contribute to change the way in which a baby is welcomed by all the people involved with infant care. 92 Pesquisa financidada como Pós-Doutorado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. 330 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Key words: motherhood, narrative, imaginary, psychoanalysis. Partindo do refinamento conceitual a que Fabio Herrmann (2004) se lança com vistas a situar o método psicanalítico como a verdadeira inspiração da Psicanálise, usualmente tomada como corpo teórico fundamental e dispositivo terapêutico eficaz, chegamos à antropologia que subjaz à própria empreitada psicanalítica. Seguindo uma mesma concepção de homem, Bleger (1983), AielloVaisberg & Machado (2008) e o próprio Herrmann (2007) buscam o sentido que sustenta qualquer conduta humana, por mais incompreensível que ela possa parecer e chegam ao fato psicológico que Politzer (1928) procurava, ao interrogar a Psicanálise quanto à sua condição de Psicologia concreta, encontrando-o no contexto dramático expresso nas narrativas dos pacientes a seus analistas. A produção dessas narrativas se dá em campo intersubjetivo, tecido a partir de um contexto maior (Spence, 2001; Stolorow, 1994) e orientado pelas duas regras básicas do método psicanalítico — a associação livre do paciente, cujo esforço se dá no sentido de libertar-se dos grilhões da auto-censura, e a atenção flutuante do analista que afina sua escuta, visando a apreender o inaudível, o inconsciente, o sentido. Como diz Schafer (2005), em sua formulação contemporânea do pensamento psicanalítico, a riqueza da experiência analítica não cabe nas anacrônicas dicotomias freudianas, tais como impulso/defesa, princípio do prazer/princípio de realidade, feminino/masculino, sugerindo ao analista que explore a rede de sentidos de uma determinada conduta, tanto quanto o uso que o paciente faz dela, recolocando-o como autor da própria história. A experiência humana, e não apenas a psicanalítica, organiza-se, toma forma e ganha sentido ao ser narrada. Narrativa esta que é sempre dirigida a alguém que não apenas partilhará daquela experiência, mas a legitimará como pertencente ao campo do humano, como bem cita Ricoeur (1983): “...que o tempo se torna tempo humano na medida em que é articulado num modo narrativo, e a narrativa alcança sua significação plena quando ela se torna uma condição da existência temporal” (p.105). Se o sentido se afigura como condição para que compreendamos e toleremos nossas experiências cotidianas, se a ele temos acesso através das narrativas que abrem a possibilidade para vivenciarmos uma experiência (Safra, 2006), situando-nos como herdeiros de uma cultura, de uma história ou de uma sabedoria, que são sempre talhadas pela dramática da vida (Benjamin, 1936; Aiello-Vaisberg, Machado & Ambrosio, 2003), a narrativa se configura como procedimento privilegiado para a pesquisa psicanalítica. Considerando a observância do método psicanalítico como critério de rigor na pesquisa psicanalítica, podemos supor que a utilização de narrativas como procedimento de pesquisa pode se configurar como dispositivo apropriado de acesso aos campos de sentido inconscientes que se produzem também em situações não-clínicas. O conflito, o sentido, o inconsciente e o sofrimento psíquico não são prerrogativas da clínica psicanalítica, ali estão para serem renarrados pela dupla paciente-terapeuta que busca que novos campos de sentido 331 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA se instaurem, promovendo uma maior flexibilidade do paciente. No entanto, para além da clínica, tais elementos participam de qualquer encontro humano. Tomando a maternidade como tema de pesquisa psicanalítica, por tratar-se de experiência usualmente carregada de conflitos emocionais e, portanto, geradora de sofrimento, poderíamos pensar em acessá-la a partir dos mais variados procedimentos, desde que se mantivesse o método psicanalítico. Como somos psicanalistas, é natural que dialoguemos com teorias psicanalíticas com as quais nos identificamos, em função de sua adequação aos problemas que enfrentamos no cotidiano da clínica (Aiello-Vaisberg & Granato, 2006; Granato, 2000, 2004, 2005, 2006a, 2006b; Granato & Aiello-Vaisberg, 2002a; 2002b; 2002c; 2003; 2004a; 2004b; 2005; 2008). Entretanto, em termos de procedimento ou estratégia metodológica, sentimo-nos livres para escolher o que fizer mais sentido nesse momento de nosso percurso na construção do conhecimento psicanalítico, porque esta é a opção que melhor se harmoniza com uma visão da Psicanálise como ciência que se define a partir do uso de um método, cujas virtudes heurísticas têm sido comprovadas ao longo de décadas. Mantidas a coerência teórico-metodológica e uma postura de abertura para novas perspectivas de pesquisa sobre os sentidos que tecem e sustentam o cuidado materno, optamos pelo uso de narrativas interativas (Granato, 2004) como recurso dialógico que, à semelhança do Jogo do Rabisco de Winnicott (1964), pretende facilitar o compartilhar de experiências significativas na área do brincar (Winnicott, 1971). Com isso pretendemos conhecer a produção imaginativa de pessoas e coletivos sobre a maternidade — suas crenças, seus medos, suas teorias, fantasias, sonhos — e, quiçá, promover alguma movimentação psíquica e existencial, transformando campos rígidos como o da moral e o do preconceito, ao oferecer ao pesquisado a possibilidade de escutar, refletir e narrar a própria experiência emocional. Apresentando o início de uma narrativa ficcional, que traz o drama de uma mulher em relação à maternidade, o pesquisador faz o seu primeiro rabisco. Não podemos deixar de sublinhar que tal rabisco, um pouco mais comprometedor que o winnicottiano, já carrega os campos de sentido do pesquisador que se defronta com a experiência materna, agora construída e narrada por ele, vivendo na relação com o pesquisado uma “experiência inteira” (Wilner, 1998, p. 233), isto é, aquela que integra seus aspectos objetivos e subjetivos. Em seguida, é solicitado ao participante que faça o seu rabisco, ou seja, que complete aquela história da maneira que lhe convier, enfatizando a ausência de expectativas ou critérios de acerto, deixando-o totalmente livre para imaginar como a trama se desdobra. Ao final, as histórias são guardadas e abre-se um espaço para conversar sobre o tema tratado na história, sobre o impacto do procedimento em si, questionamentos sobre o assunto ou sobre a pesquisa e o interesse do pesquisador; enfim, pretendemos oferecer um espaço de interlocução que pode ser aproveitado da maneira que for possível naquele encontro. Apesar do crescente interesse em trabalhar teórica e/ou metodologicamente com 332 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA narrativas em pesquisas qualitativas (Calvasina et al, 2007; Dutra, 2002; Meleiro & Gualda, 2004; Miller, 2000; Ribeiro & Lyra, 2008; Rocha-Coutinho, 2005; Silva & Trentini, 2002; Teixeira, 2003), observamos que após uma longa e trabalhada introdução teórico-metodológica de algumas pesquisas, o tratamento das narrativas obtidas deixa muito a desejar, se o que se pretende é afastar-se maximamente do paradigma positivista que objetifica e faz a apologia da técnica. As conclusões não deixam de ser quantitativamente inspiradas, já que excluem qualquer interlocução do pesquisador com o material obtido, cuja riqueza emocional fica desperdiçada numa análise de conteúdo que privilegia o número de vezes em que uma dada palavra faz sua aparição, sem preocupação com seu papel na trama dos sentidos. Nesse sentido, pretendemos trabalhar as narrativas de modo qualitativo e psicanalítico, fazendo uso da regra fundamental, associando livremente num primeiro momento para em seguida dirigir nossa atenção flutuante para tudo o que foi produzido, seja a narrativa do pesquisador, a narrativa produzida pelos pesquisados ou notas tomadas pelo pesquisador após o encontro investigativo. Tal esforço se dirige à captação dos campos de sentido, em seus elementos conscientes e inconscientes, onde repousa a criação imaginativa de cada um. Esta será, assim, compreendida não só como ferramenta de construção de narrativas, mas principalmente como reveladora do avesso que alimenta nossas atitudes e posturas diante do outro e da vida. Pensamos poder contribuir com tal pesquisa para uma retomada mais ativa das pessoas em relação à própria capacidade e criatividade, interrogando e transformando a maneira como o bebê é acolhido por todos aqueles que estão envolvidos em seu cuidado. Sem a preocupação de dar conta do fenômeno humano, que será sempre transbordante (Escars, 2002) a qualquer procedimento que, na tentativa de explicá-lo, acabe por reduzi-lo, pretendemos, através de narrativas interativas, trazer para reflexão condutas que, porventura, sejam motivadas por expectativas idealizadas, preconceitos ou ideologias. Referencias bibliográficas Aiello-Vaisberg, T.M.J. & Granato, T.M.M. (2006). Ser e Fazer na clínica winnicottiana da maternidade. São Paulo: Idéias e Letras. Aiello-Vaisberg & Machado, M.C.L. Pesquisa Psicanalítica de Imaginários Coletivos à luz da Teoria dos Campos. In Josette Monzani e Luiz R. Monzani Olhar : Fabio Herrmann – Uma Viagem Psicanalítica (pp. 311-324). São Paulo : Ed. Pedro e João Editores/UFSCar. Aiello-Vaisberg, T.M.J., Machado, M.C.L. & Ambrosio, F.F. (2003). A Alma, o Olho e a Mão: Estratégias Metodológicas de Pesquisa em Psicologia Clínica Social Winnicottiana. In: Aiello-Vaisberg (Org.). 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Assim, decidimos investigar o imaginário coletivo de jovens acerca da adolescência na contemporaneidade. Para tanto, contatamos cento e noventa e sete estudantes de oitava série a terceiro colegial e solicitamos que fizessem, individualmente, desenhos-estórias segundo o tema “um adolescente nos dias de hoje”. Para este estudo, selecionamos os dez desenhos-estórias em que havia menção explícita ao uso de roupas de marcas. A partir deste material, captamos um campo de sentido, que denominamos “Mundo marcado”. Compreendemos, assim, que o jovem vive num mundo em que o outro é definido, valorizado e incluído segundo a marca da roupa usada. Palavras-chaves: Adolescência; Imaginário Coletivo; Procedimento DesenhosEstórias com Tema; Consumismo Abstract: Since adolescence is marked by a lot of changings, we understand that it is needed the care of Psychological clinic around the individual who lives this phase of the human development. So we decided to investigate the collective imaginary of teenagers around the contemporary adolescence. For such we contacted a hundred and ninety and seven students from eighth grade to third college and we asked them to realize, individually, drawings-stories according the theme “a teenager from nowadays”. For this study, we selected ten drawingstories in which there was explicit mention around the use of griffe’s clothes. From this material, we caught one felt’s field, named as “Marked world”. Through this field, we understood that the teenager lives in a world where the other is defined, valorized and included according the use of griffe’s clothes. 93 Professora Livre Docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Orientadora de Mestrados e Doutorados dos Programas de Pós Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Coordenadora da Ser e Fazer: Oficinas Psicoterapêuticas de Criação e Presidente da NEW- Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo. 94 Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, com bolsa CNPq. 95 Ex-bolsista PIBIC/CNPq de iniciação científica em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 96 Bolsista FAPIC de iniciação científica em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 336 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Key-words: Adolescence; Collective Imaginary; Procedure Drawing-Stories with Theme; Consumerism A adolescência contemporânea Sabemos que a adolescência consiste numa etapa do desenvolvimento humano em que o indivíduo vivencia diversas mudanças, tanto corporais, exigindo que o jovem esteja aberto para a vivência de transformações em seu próprio corpo, quanto sociais, na medida em que consiste no período transitório entre o mundo infantil e o adulto, equivalentes, respectivamente, a posições sociais de maior dependência e de maior autonomia (Camps, 2003; Barreto, 2006). Justamente por consistir num momento marcado por diversas mudanças, entendemos a importância do olhar da Psicologia clínica sobre os jovens, atuando não apenas de maneira interventiva, mas, também, psicoprofilática. De fato, deparamo-nos com diversos estudos psicológicos, que visam, através do conhecimento científico produzido, amparar a atuação clínica junto aos adolescentes. Se, por um lado, consideramos tais estudos valiosos, na medida em que configuram uma iniciativa de compreender a condição emocional de indivíduos que estão vivenciando o complexo processo de adolescer, por outro, entendemos que tais pesquisas devam ser realizadas com cautela, sem a adoção de um discurso estereotipado segundo o qual a adolescência corresponderia, de saída, a um estado psicopatológico, que independe do ambiente vivido. Partindo da compreensão de que é bastante desejável a realização de estudos, que investiguem a condição emocional do adolescente de maneira contextualizada ao ambiente vivido, considerando suas manifestações de acordo com a realidade atual, e não como expressões meramente intrapsíquicas, idealizamos uma investigação que focaliza o modo como os próprios adolescentes consideram esta fase da vida nos dias de hoje. Dessa maneira, enquanto o projeto de pesquisa, do qual deriva esta apresentação, centrou-se na investigação psicanalítica do imaginário coletivo de adolescentes sobre os jovens dos dias de hoje, é importante esclarecer que o objetivo do presente trabalho consiste em abordar o imaginário de jovens em relação ao uso de roupas de marca. Encontrando com os adolescentes Para investigarmos como os adolescentes vêem a si mesmos na sociedade contemporânea em que vivem, fizemos uso do conceito de imaginário coletivo, desenvolvido por Aiello-Vaisberg (1999), para referir-se às produções imaginativas que o coletivo tece ao redor dos fenômenos humanos. Dessa maneira, visamos investigar o imaginário coletivo de adolescentes acerca do jovem dos dias de hoje. 337 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Assim, abordamos97 estudantes de oitava série a terceiro colegial de dez escolas públicas e particulares situadas no interior do estado de São Paulo, após termos obtido autorização institucional por parte dos diretores. Vale destacar que os encontros realizados junto aos adolescentes foram inspirados nas consultas terapêuticas de Winnicott (1970), nas quais o psicanalista fazia uso de um recurso mediador-dialógico, denominado Jogo do Rabisco (Winnicott, 1968), com o objetivo de criar um ambiente lúdico a partir do qual o paciente poderia assumir uma postura relaxada e comunicar-se de maneira significativa. Dessa maneira, inspiradas nas consultas terapêuticas de Winnicott, nos encontros com os estudantes, que ocorreram em contexto de sala de aula, fizemos uso de um recurso mediador-dialógico denominado Procedimento Desenhos-Estórias com Tema (Aiello-Vaisberg, 1999), originado do Procedimento Desenhos-Estórias de Trinca (1972). Assim, durante o encontro, as pesquisadoras convidaram os jovens a realizarem, individualmente, um desenho acerca do tema “um adolescente dos dias de hoje”, além de inventarem uma história a partir da figura desenhada. Devido ao fato de termos solicitado que os estudantes fizessem desenhosestórias acerca de um tema amplo, obtivemos cento e noventa e sete produções gráficas que tratavam de temas diversos, o que permitiu que realizássemos estudos sobre diversas temáticas (Cabreira, Pontes, Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2007a; Cabreira, Pontes, Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2007b; Cabreira, Pontes, Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2007c). Neste trabalho, optamos focalizar nos dez desenhos-estórias nos quais havia menção explícita às roupas de marca, na medida em que observamos que se tratava de uma temática importante, aos jovens, nesta sociedade tão voltada ao consumismo. Desse modo, os dez desenhos-estórias foram apresentados aos integrantes do grupo de pesquisa CNPq “Atenção psicológica clínica em instituições: prevenção e intervenção”, estratégia esta que se revelou eficaz em outras investigações que realizamos, uma vez que permite a multiplicidade de associações livres, de percepções, de impressões..., o que, no paradigma científico intersubjetivo, consiste numa oportunidade de enriquecer as reflexões clínico-teóricas acerca do material clínico. Ainda, vale destacar que, ao considerarmos os desenhos-estórias, fizemos uso do conceito de campo de sentido, desenvolvido por Aiello-Vaisberg (1999,2008) a partir do refinamento conceitual de campo de Bleger (1963) e Herrmann (2001). Dessa maneira, temos partido da compreensão de que a conduta humana é sempre emergente de um campo, constituído por regras lógico-emocionais. Assim, através do debruçar sobre o material clínico, captamos os campos de sentido, sustentadores do imaginário dos jovens acerca do processo de adolescer na contemporaneidade. 97 Estes encontros foram realizados por Mariana Leme da Silva Pontes e Jaqueline Caldamone Cabreira. 338 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Campo “Mundo marcado” O uso do método psicanalitico, tal como é operado a partir da Teoria dos Campos, permitiu a captação de um campo de sentido, que denominamos “ Mundo marcado”, o qual se configura ao redor da regra lógico-emocional segundo a qual ser jovem, nos dias de hoje, faz sentido quando o uso de roupas de marca é possível. Tal uso cumpriria a função de permitir que o jovem seja identificado e notado pelo outro, segundo linhas que variam, numa evidente conotação narcisista, entre o poder sentir-se incluído socialmente e o ser admirado como superior aos demais. Apresentamos, a seguir, à guisa de exemplos, três histórias, que permitem a apreciação de situações de busca de inclusão ou de busca de superioridade: Para ilustrar este imaginário de que o adolescente precisa voltar-se ao uso de roupas de marcas para ser identificado pelo outro, selecionamos a seguinte história: “Esse menino é um estilo surfista que anda só com a camisa aberta e bermuda NOS. Geralmente ele pega a sua prancha e vai surfar com os amigos no litoral”. “A maioria dos adolescentes só pensa em andar bem vestido, não sei porque, eu acho que é para serem bem vistos pela sociedade.” “(...) a busca por um lugar ao sol segue as grandes marcas”. Vale informar que este pequeno trecho que acaba de ser transcrito, faz parte de uma produção vinculada a um desenho em que aparecem quatro adolescentes, dos quais dois vestem roupas de marcas diversas, segurando cartazes com valores de dinheiro, enquanto os outros dois, de tamanho relativamente menor, sem usar roupas de griffe, olham fixamente para os dois primeiros. Fica, assim, evidente, uma necessidade de supremacia e prestígio às custas da humilhação do outro. Reflexões clínico-teóricas O material clínico que encontramos, a partir da análise de produções imaginativas que trazem a questão da roupa de marca no conteúdo manifesto, não nos deve fazer esquecer que este fenômeno não é encontrado apenas entre jovens. Minerbo (2000), que teve a oportunidade de elaborar reflexões clínicoteóricas, a partir do atendimento psicanalítico de uma mulher adulta que só usava roupas de griffe, demonstrou com clareza que a marca equivale a um sobrenome de valor, que conferiria maior status ao individuo, independentemente de sua idade. 339 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Desde uma perspectiva winnicottiana, segundo a qual a saúde emocional dependeria da capacidade do individuo de se sentir vivo e real, a partir de um agir no mundo fundamentalmente não submisso, o quadro aqui encontrado revela-se preocupante, na medida em que aponta com clareza o uso de uma estratégia que, pela sua superficialidade, insere-se evidentemente em um registro falso self. Não cabe, a nosso ver, interpretar este fenômeno como mera expressão da comentada necessidade do adolescentes de se aproximar do grupo de pares e de se afastar da família primária, porque não é esta a questão que está em pauta. Entendemos, assim, que o mais importante, neste contexto, seja a consideração das formas particulares pelas quais este movimento conhecido dos adolescentes vem sendo feito ultimamente, as quais se caracterizam pela superficialidade, pela banalidade, pela uniformização e, finalmente, pela submissão a padrões que, ainda que grupais, são evidentemente autoritários e externos ao self. Referências Bibliográficas: Aiello-Vaisberg, T.M.J. (1999). Encontro com a loucura: Transicionalidade e Ensino de Psicopatologia. Tese de livre-docência não publicada. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP. Aiello-Vaisberg, T.M.J. & Machado, M.C.L. (2008). Pesquisa Psicanalítica de Imaginários Coletivos à Luz da Teoria dos Campos. In Josette Monzani e Luiz R Monzani.Olhar: Fabio Herrmann – Uma Viagem Psicanalítica. Pedro e João Editores/UFSCar. São Paulo, SP. Barreto, M.A.M (2006). Do vôo preciso: considerando o imaginário coletivo de adolescentes. Tese de Doutorado. Psicologia – Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas - SP. Bleger, J. (1963). Psicologia da conduta. (E.D. O. Diehl, Trad.) Porto Alegre, RS: Artes Médicas. Cabreira, J. C., Pontes, M.L. da S. & Aiello-Vaisberg, T.M.J. (2007a). “Entre dois caminhos”: o imaginário coletivo de adolescentes sobre o uso de álcool e drogas. [Texto completo]. Anais do VII Encontro de Iniciação Científica. Campinas, SP: Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Cabreira, J. C., Pontes, M.L. da S., Tachibana, M. & Aiello-Vaisberg, T.M.J. (2007b). Ódio e discriminação contra “emos”: um estudo sobre o imaginário coletivo de adolescentes. [Texto completo]. Boletim do Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região, 10 (15), 227-242. Cabreira, J. C., Pontes, M.L. da S., Tachibana, M. & Aiello-Vaisberg, T.M.J. (2007c). Ódio e discriminação contra “emos”: um estudo sobre o imaginário coletivo de adolescentes. [Texto completo]. Boletim do Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região, 10 (15), 227-242. Camps, C.I.C. de M. (2003). A hora do beijo: teatro espontâneo com adolescentes numa perspectiva winnicottiana. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 340 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Herrmann, F. (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo. Minerbo, M. (2000). Estratégias de investigação em Psicanálise: desconstrução e reconstrução do conhecimento. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo. Trinca, W. (1972). O Desenho Livre como Estímulo de Apercepção Temática. Tese de doutorado não-publicada. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP. Winnicott, D.W. (1968). O Jogo do Rabisco. Em Winnicott, C., Sheperd, R. & Davis, M. (Orgs.). Explorações psicanalíticas D.W. Winnicott (J.O. de A. Abreu, Trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. Winnicott, D.W. (1971). A criatividade e suas origens. Em Winnicott, D.W. (1958/1993). O brincar e a realidade (J.O. de A. Abreu & V. Nobre, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. 341 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Desastre na vida sexual: o imaginário coletivo de adolescente sobre a gravidez na adolescência Tânia Maria José Aiello Vaisberg98 Miriam Tachibana99 Mariana Leme da Silva Pontes100 Tomíris Forner Barcelos101 Resumo: Afinadas à Psicanálise intersubjetiva, entendemos que os fenômenos sociais, inclusive o processo de adolescer, devem ser investigados de acordo com o contexto em que se inserem. Assim, decidimos investigar o imaginário coletivo de cento e noventa e sete jovens acerca da adolescência na contemporaneidade. Para tanto, contatamos estudantes de oitava série a terceiro colegial e solicitamos que fizessem, individualmente, desenhos-estórias segundo o tema “um adolescente nos dias de hoje”. Para este estudo, selecionamos os treze desenhos-estórias em que havia menção explícita à gravidez na adolescência. A partir deste material, captamos quatro campos de sentido: “Fatalidade”, “Morte”, “Transgressão” e “Abandono”. Assim, compreendemos que, no imaginário coletivo de jovens, a gestação seria fruto inevitável da vida sexual, com a adolescente gestante sendo vista como transgressora, abandonada e sem perspectiva de futuro. Palavras-chaves: Adolescência; Imaginário Coletivo; Procedimento DesenhosEstórias com Tema; Gravidez Abstract: According the intersubjective Psychoanalysis, social phenomenas, including the process of being teenager, should be investigated considering the context in which they happen. So we decided to investigate the collective imaginary of one hundred and ninety and seven teenagers around the contemporary adolescence. For such we contacted students from eighth grade to 98 Professora Livre Docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Orientadora de Mestrados e Doutorados dos Programas de Pós Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Coordenadora da Ser e Fazer: Oficinas Psicoterapêuticas de Criação e Presidente da NEW- Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo. 99 Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, com bolsa CNPq. 100 Ex-bolsista PIBIC/CNPq de iniciação científica em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 101 Bolsista PIBIC/ CNPq de iniciação científica em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 342 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA third college and we asked them to realize, individually, drawings-stories according the theme “a teenager from nowadays”. For this study, we selected thirteen drawing-stories in which there was explicit mention around pregnancy in adolescence. From this material, we caught four felt’s field: “Fatality”, “Death”, “Trespass” and “Abandonment”. Through those fields, we understood that the teenagers imagine that pregnancy would be as inevitable result of sexual life, and that the girl who gets pregnant is seen, in the collective imaginary of adolescents, as a delinquent and abandoned person without future perspectives in her life. Key-words: Adolescence; Collective Imaginary; Procedure Drawing-Stories with Theme; Pregnancy O adolescente dos dias de hoje Ao partirmos da compreensão de que a experiência emocional do ser humano está intrinsecamente relacionada ao ambiente (Bleger, 1963), marcado, atualmente, pela virtualidade das relações, o imediatismo e a valorização excessiva da aparência, dentre outros, entendemos que cabe questionarmos quem é o adolescente dos dias de hoje (Barreto, 2006; Camps, 2003). Assim, idealizamos a realização de uma investigação psicanalítica com o objetivo de compreender como os adolescentes contemporâneos vêem a si mesmos na sociedade em que vivem, entendendo que, a partir da realização deste trabalho, seria possível produzir um conhecimento acerca da condição emocional do jovem dos dias de hoje, que poderia auxiliá-los, de maneira interventiva e psicoprofilática, na medida em que contribuiria para a criação de ambiente não apenas não prejudica, mas que sobretudo seja favorecedor do processo de amadurecimento emocional dos adolescentes (Winnicott, 1968a). Para nos aproximarmos da vivência emocional dos jovens, fizemos uso do conceito de imaginário coletivo (Aiello-Vaisberg, 1999), que temos entendido como as manifestações simbólicas de subjetividades grupais, visando conhecimento que leve à compreensão do substrato afetivo-emocional que subjaz as ações humanas, o que temos feito no âmbito de nosso grupo de pesquisa CNPq “Atenção psicológica clínica em instituições: prevenção e intervenção”. Dessa maneira, enquanto o projeto de pesquisa, do qual deriva esta apresentação, centrou-se na investigação psicanalítica do imaginário coletivo de adolescentes sobre os jovens dos dias de hoje, é importante esclarecer que o objetivo do presente trabalho consiste em abordar o imaginário de jovens em relação à gravidez na adolescência. O caminho percorrido Ao realizarmos este estudo nos moldes epistemológicos e metodológicos estabelecidos, tornou-se necessário o uso de recursos mediadores-dialógicos que ultrapassassem a abordagem do fenômeno apenas no plano da percepção consciente ou da opinião (Aiello-Vaisberg, 1995). Pensar em recursos mediadores-dialógicos remeteu-nos ao Jogo do Rabisco de Winnicott (1968b), 343 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA uma forma de brincar, através da qual ele e seu paciente desenhavam rabiscos, de um modo maximamente flexível, tendo em vista facilitar a comunicação emocional do paciente. Assim, inspiradas no Jogo do Rabisco de Winnicott, lançamos mão do Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema (AielloVaisberg, 1999), em que o indivíduo é convidado a realizar um desenho, bem como uma história sobre aquilo que desenhou, a partir de um tema definido pelo pesquisador. Visando uma aproximação com os adolescentes dos dias de hoje, contatamos dez escolas públicas e particulares situadas no interior do estado de São Paulo, sendo que, em cada instituição, selecionamos uma sala de aula de oitava a terceiro colegial. Desse modo, as pesquisadoras102 que realizaram os encontros propriamente ditos iam às salas de aula e solicitavam aos alunos que desenhassem, individualmente, “um adolescente dos dias de hoje”, para, a seguir, inventar uma história sobre a figura desenhada. Ao final, obtivemos cento e noventa e sete desenhos-estórias, que abordavam diversos temas, o que deu margem para que realizássemos estudos focalizando temáticas diversas (Cabreira, Pontes, Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2007a; Cabreira, Pontes, Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2007b; Cabreira, Pontes, Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2007c). Neste trabalho, abordaremos um tema presente em trezes produções imaginativas gráfico-verbais, relativo à gravidez na adolescência. Consideramos importante dedicar um estudo separado a este achado, tanto em virtude do fato de surgirem de modo angustiado, que lhes conferia realce quando comparados aos demais, como também porque incide sobre fenômeno considerado importante no contexto da pesquisa epidemiológica e da saúde publica, como afirmam Belo & Silva (2004) e Persona, Shimo & Tarallo (2004). Assim, apresentamos os treze desenhos-estórias que faziam referência explícita à gravidez na adolescência, ao grupo de pesquisadores, afinadas à concepção de que, em ciências humanas, a produção de conhecimento se dá em campo intersubjetivo. Fazendo uso da associação livre e da atenção equiflutuante, deixamo-nos impressionar pelo material clínico, cultivando uma atitude psicanalítico-fenomenológica de desapego em relação às teorias, conhecimentos e crenças prévias. A partir daí, foi possível captarmos os campos de sentido (Aiello-Vaisberg, 1999), entendidos como as regras lógico-emocionais que sustentam o imaginário. Campos do imaginário Foram encontrados quatro campos de sentido como fundamento afetivoemocional a partir dos quais pôde ser compreendido o conjunto de produções encontradas: fatalidade, morte, transgressão e abandono. Como vemos, todos apresentam matizes negativas, apontando para uma visão da gestação na adolescência como essencialmente negativa e problemática. 102 As pesquisadoras que realizaram os encontros foram Jaqueline Caldamone Cabreira e Mariana Leme da Silva Pontes. 344 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Campo “Fatalidade” Pudemos captar um campo de sentido regido pela regra lógico-emocional de que a gravidez seria uma conseqüência inevitável da vida sexual, de modo que, mesmo tomando todas as devidas precauções, a relação sexual acarretaria forçosamente a gestação. Para ilustrar, elegemos a seguinte história: “Apesar de tantos recursos, de tantas assistências e de alguns cuidados, Maria acabou engravidando do seu namorado. Eles estavam juntos há apenas quatro meses. Mesmo tomando todos os cuidados, o pior aconteceu...” Campo “Morte” Este campo de sentido refere-se à crença de que a gravidez na adolescência corresponderia à morte da jovem. Assim, este campo associa-se às produções imaginativas de que a irrupção da gestação levaria a jovem ao fim de sua vida, que podemos entender, para além do sentido literal, como o “assassinato” de suas aspirações, seu cotidiano e seu percurso existencial. Esta questão fica clara através da seguinte história: “Um certo dia, uma adolescente que se dizia fel, descobre que está grávida com apenas 16 anos, e faz de sua vida um inferno, cai em depressão e ainda por cima seus pais se separam. Ela acaba se matando e acabando com duas coisas preciosas, duas vidas”. Campo “Transgressão” Este campo de sentido remete-se às produções gráficas que ora definem os adolescentes que engravidam como transgressores, ora trazem os filhos de pais jovens como futuros delinqüentes. De um jeito ou de outro, vê-se que os adolescentes encontram-se mergulhados num campo cuja regra lógico-emocional seria a de que a gravidez precoce associa-se à delinqüência. Em relação aos pais serem vistos como transgressores, este imaginário pôde ser observado através dos desenhos-estórias que retratavam a gravidez na adolescência de maneira similar às pixações de muro, ao uso de álcool e drogas... Entendemos, dessa maneira, que, no imaginário coletivo dos estudantes, a gestação precoce configuraria uma violação similar aos atos considerados legalmente transgressores. Já o imaginário de que os filhos de pais adolescentes seriam futuros transgressores pode ser exemplificado através da seguinte história: Meu nome é Amanda tenho 16 anos, moro num barraco com dois filhos e estou à espera de mais um que é de outro cara. O dos dois primeiros está preso por homicídio... Sou muito infeliz. Creio que um dos meus filhos irá para a Febem. 345 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Campo “Abandono” Esse último campo de sentido refere-se à crença de que a jovem que engravida deixa de contar com o afeito do parceiro sexual e de seus próprios pais. Assim, este campo refere-se à regra lógico-emocional de que engravidar na adolescência equivale a ser abandonada por uma das duas figuras paternas: ou a da própria adolescente ou a do bebê que estaria sendo gestado. Para ilustrar, podemos refletir a partir de uma produção gráfica, na qual são imaginados dois adolescentes que se encontram numa festa, têm relação sexual e, após estar grávida de seis meses, a jovem diz a um homem: “Espere, eu estou grávida de seis meses”, que lhe responde: “Some da minha casa!”: Neste material, além de ser imaginada uma adolescente gestante abandonada, na última cena representada, a figura do homem é ambígua, no sentido de não ser possível identificar se se trata do pai da jovem grávida ou, ainda, de seu namorado. Independentemente se se trata de um ou de outro, observamos que, de maneira geral, no imaginário coletivo dos jovens, a adolescente que engravida está fadada a ficar sozinha, cuidando de seu bebê. Reflexões clínico-teóricas A partir dos campos de sentido captados, pudemos observar que, no imaginário coletivo de jovens, a gestação precoce é carregada de imagens negativas. Podemos refletir que estas produções imaginativas relacionem-se com a percepção de que, de fato, um episódio como a gravidez pode tornar a tarefa de adolescer ainda mais complexa, na medida em que, enquanto a jovem parte em busca de reconhecimento do mundo, lançando suas ações para o espaço amplo do mundo compartilhado, a maternidade recria um mundo menor, protegido, a partir do qual um bebê pode começar a ser alguém (Granato & Aiello-Vaisberg, 2005). Desde esta perspectiva, entendemos que a imagem da morte, associada à gravidez na adolescência, como observamos no campo “Morte”, simbolizaria, para além da morte literal, o imaginário de que, ao tornar-se mãe, a jovem tem a sua fase de adolescência “assassinada”. Por outro lado, cabe indagarmos o quanto o discurso social acerca da gravidez na adolescência, principalmente aquele emitido em programas de orientação sexual, encontra-se intimamente relacionado a este imaginário de que a ocorrência de uma gestação, na juventude, equivaleria à uma vida sem grandes realizações e marcada por privações insuperáveis. Evidentemente, cabe pensar no quanto as produções imaginativas de que a gravidez seria fruto inevitável da vida sexual, tal como apontado no campo “Fatalidade”, estariam associadas às imagens sociais acerca do início do exercício da sexualidade, que, como observamos, são voltadas aos “perigos” inerentes à vida sexual, como a gestação não planejada e a contaminação de doenças sexualmente transmissíveis. Apesar de compreendermos que a veiculação destas imagens consiste numa estratégia de combate à gestações na adolescência, vemos que a jovem que acaba engravidando, seja de maneira não planejada, seja porque assim o quis, acaba sendo estigmatizada socialmente, o que, evidentemente, configura um 346 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA fenômeno de exclusão social. Assim, partindo desta compreensão, encerramos este estudo refletindo sobre a necessidade de revermos as estratégias que temos usado, em termos de educação sexual, para minimizar os casos de gravidez na adolescência, bem como a importância da Psicologia clínica voltar-se para os casais jovens que acabam engravidando, tanto no sentido de auxiliá-los neste processo complexo de adolescer e gestar, como, também, no de lhes proporcionar um ambiente em que possam confiar em sua capacidade de serem pais, a despeito do imaginário preconceituoso vigente de que serão incapazes de cuidar de seus filhos, que por sua vez se tornarão delinquentes, como vimos no campo “Transgressão”. Referências bibliográficas Aiello-Vaisberg, T.M.J. (1995). Psicodinâmica das Representações Sociais: Projeção e Transicionalidade. Psicologia USP, (2), p. 103-127. Aiello-Vaisberg, T.M.J. (1999). Encontro com a loucura: transicionalidade e ensino de psicopatologia. Tese de livre docência não-publicada, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. Barreto, M.A.M. (2006). Do vôo preciso: considerando o imaginário coletivo de adolescentes. Tese de doutorado (não publicada). Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP. Belo, M.A.V. e Silva, J.L.P. e (2004). Conhecimento, atitude e prática sobre métodos anticoncepcionais entre adolescentes gestantes. Revista de Saúde Pública, 38 (4), 479-487. Bleger, J. (1963). Psicologia da conduta (trad. Por E. de O. Diehl). Porto Alegre: Artes Médicas. Cabreira, J. C., Pontes, M.L. da S. & Aiello-Vaisberg, T.M.J. (2007a). “Entre dois caminhos”: o imaginário coletivo de adolescentes sobre o uso de álcool e drogas. [Texto completo]. Anais do VII Encontro de Iniciação Científica. Campinas, SP: Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Cabreira, J. C., Pontes, M.L. da S., Tachibana, M. & Aiello-Vaisberg, T.M.J. (2007b). “Incompreensão, vazio e oposição pueril”: o imaginário coletivo de adolescentes sobre a adolescência no mundo atual.[Texto completo]. In Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Org.). I Jornada de Pesquisa em Psicanálise e Fenomenologia (pp. 65-87). Campinas, SP: Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Cabreira, J. C., Pontes, M.L. da S., Tachibana, M. & Aiello-Vaisberg, T.M.J. (2007c). Ódio e discriminação contra “emos”: um estudo sobre o imaginário coletivo de adolescentes. [Texto completo]. Boletim do Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região, 10 (15), 227-242. Camps, C.I.C. de M. (2003). A hora do beijo: teatro espontâneo com adolescentes numa perspectiva winnicottiana. Dissertação de mestrado (não publicada). Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. 347 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Granato, T.M.M. & Aiello-Vaisberg, T.M.J. (2005). Ser e Fazer na clínica winnicottiana da maternidade. Aparecida, SP: Idéias e Letras. Persona, L., Shimo, A.K.K. e Tarallo, M.C. (2004). Perfil de adolescentes com repetição da gravidez atendidas num ambulatório de pré-natal. Revista Latinoamericana de Enfermagem, 12 (5), 745-750. Winnicott, D.W. (1968a). Conceitos contemporâneos de desenvolvimento adolescente e suas implicações para a educação superior. Em Winnicott, D.W. (1958/1993). O brincar e a realidade (J.O. de A. Abreu & V. Nobre, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Winnicott, D.W. (1968b). O jogo do rabisco. Em Winnicott, C., Shepherd, R. & Davis, M. (Orgs.), Explorações psicanalíticas D.W. Winnicott (J.O. de A. Abreu, Trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. 348 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A metáfora da doença: um diálogo entre a criação artística e as dimensões do adoecer humano Tiago Sanches Nogueira Resumo O presente estudo pretende articular os mecanismos inconscientes referentes à criação artística e o processo de adoecimento humano. Destaca-se a importância da linguagem da fantasia na expressão do sentido no sintoma e na obra de arte, dando ênfase aos processos simbólicos subjacente a ambos. Palavras-Chave: Psicanálise – arte – doença – sintoma – simbolismo – fantasia. Abstract The present study it intends to articulate the referring unconscious mechanisms to the artistic creation and the process of human illness. Importance of the language of the fantasy in the expression of the direction in the symptom and the work of art is distinguished it, giving emphasis to the symbolic processes underlying to both. Keywords: Psychoanalysis - art - illness - symptom - symbolism - fantasy. Um corpo, uma arte Sem sequer tentar, o homem parece tender à produção. A anatomia do desejo demonstra uma capacidade enigmática de transformação do que lhe é estranho, que segundo os estudos de Freud (“O Estranho”, 1919), se caracteriza justamente por algo que era familiar e se torna súbita e inexplicavelmente estrangeiro, estranho. Segundo ele, o estranho deriva seu terror não de alguma fonte externa ou desconhecida, mas, pelo contrário, de algo estranhamente familiar que supera quaisquer esforços do indivíduo para se separar dele. Algo que percorre a beleza sublime de Eros, bem como ao horror estético e emblemático de Thânatos. Em sua indescritível condição paradoxal, o homem revela ao diferentes texturas de suas experiências internas, das mais emprestando sentido a seu corpo, possibilitando um vislumbrar diferentes aspectos. Porém, há que se compreender o signo do e legitimado nas entrelinhas das produções humanas. mundo visível as diversas formas, da existência sob desejo encoberto Freud empreende uma busca incessante da significação central destas produções. Em seu texto Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1916[1915-16]) inicia sua conferência número cinco dizendo que um dia havia sido descoberto que os sintomas patológicos de determinados pacientes neuróticos tinham um sentido, fundamentando o método psicanalítico de tratamento. A partir desta descoberta altera-se completamente a noção de enfermidade e a concepção do doente. O pai da psicanálise conclui que toda a enfermidade é intencional e que para curá-los é preciso convencê-los por meio 349 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA da análise de seu próprio propósito de enfermar (Freud, 1905). Ele também refere que no decurso desse tratamento os pacientes, em vez de apresentarem seus sintomas, apresentavam sonhos, surgindo a suspeita de que também os sonhos teriam um sentido. Em sua perspectiva a experiência humana é atravessada por conjunturas de inúmeras origens e formas, cujos efeitos são constitutivos fazendo com que o fracasso do trabalho defensivo do recalque dê origem a expressões simbólicas do conflito, como os sonhos, os lapsos e os sintomas neuróticos, inclusive os que buscam expressão no corpo – veículo das mais diversas possibilidades de manifestações simbólicas humanas. Dentre elas, a arte ocupa um lugar especial, pois em geral produz o corte que vai reposicionar os sentidos e as formas instituídas. Abre, portanto, um novo lugar de olhar, sentir e de pensar. Em Escritores Criativos e Devaneios (1908[1907]), Freud descreve com maestria os processos psicológicos referentes ao ato de criação artística e evidencia que o artista ao criar, funciona como uma criança que brinca. Uma vez que este brincar é movido por uma fantasia, cujas motivações são os desejos insatisfeitos, o ato de criar consiste em uma realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória. Desta forma, uma poderosa experiência no presente desperta no artista a lembrança de uma experiência anterior (infância), da qual se origina então um desejo que encontra realização na obra criativa. Nas palavras de Freud, “a própria obra revela elementos da ocasião motivadora do presente e da lembrança antiga” (1908[1907], p.156). Arley Andriolo (2005), em seu texto O corpo do artista na experiência estética contemporânea, utiliza-se da máxima merleau-pontyana “Emprestando seu corpo ao mundo é que o pintor transforma o mundo em pintura” para designar o caráter sine qua non do corpo frente a arte e a experiência estética. Andriolo revela que toda a arte é corporal devido ao fato de que o artista encontra-se situado corporalmente no mundo. Mas será possível subvertermos este conceito aludindo a idéia de que o corpo pode se fazer arte? Tal concepção tangencia o caráter idiomático residente em algo que, para o ser humano, sempre fora incógnito e desconhecido: seu inconsciente. Segundo Ávila (1999), a hipótese do inconsciente para Freud possui vital importância, principalmente frente à sua intenção de esclarecer os atos psíquicos que permanecem ocultos, mas que podem se manifestar indiretamente como lacunas na consciência, ou como sonhos, parapraxias ou sintomas, levando-o a estruturar um quadro teórico inicialmente concebido a partir de sua primeira teoria das neuroses - idéia na qual a neurose seria provocada pelas ações sexualmente perversas do pai sobre a filha (teoria da sedução [1893]) e que posteriormente foi descartada em sua carta 69 à Fliess (1897). No entanto, a passagem da teoria da sedução para a fantasia de sedução (teoria segundo a qual os elementos relatados na construção do discurso de cada paciente não fazem parte da realidade, entretanto a maneira como são relatadas possui determinada importância para que sejam produzidos sintomas, mesmo sendo uma experiência fantasiosa) nunca foi plenamente realizada, e Freud continuou a buscar a certeza de um fato escondido a ser revelado, articulando 350 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA as intenções hermenêuticas da teoria psicanalítica, re-significando as acepções referentes à questão dos sintomas psíquicos, atribuindo-lhes determinados sentidos e possibilitando a consideração da função do psiquismo na vida humana e suas relações com o funcionamento orgânico, influenciando autores a discorrerem sobre o papel da dimensão psíquica sob as patologias. O nascimento desta forma de pensar é inaugurado a partir da obra do médico Georg Groddeck (1923) para quem as doenças orgânicas eram compreendidas e tratadas pela psicanálise pois, segundo ele, a essência do humano é psicossomática. No entanto, sua concepção de inconsciente, chamado por ele de Isso, mantinha maior proximidade com o orgânico e uma dimensão construtiva que atua em todas as dimensões do adoecer. Para ele, a busca de símbolos nas dores e nos sintomas possibilitava uma leitura de sinais criativos de uma linguagem carregada de finalidade, sentido e função expressiva. Embora tenha apresentado muitas discordâncias em relação a Freud, Groddeck marcou profundamente a teoria, principalmente no que diz respeito às relações entre o funcionamento psíquico e o orgânico. Um sofredor, um artista Aproximar e articular a idéia da doença e da criação artística compreendendo seu sentido à luz da teoria psicanalítica sempre fora alvo de minhas inquietações durante meu percurso. Em discussões com colegas e mestres sobre minha participação clínica tanto no Hospital Geral quanto em um ambulatório de infectologia, bem como aos estudos e observações com meus pares, pude observar que experiências físicas são interpretadas como relações objetais em fantasia dando-lhes significado emocional. A prática mostrou-me que um indivíduo com dor, por exemplo, pode sentir-se odiado, afetando seu funcionamento físico, uma vez que essas fantasias se aproximam muito do somático. A cegueira de um paciente103 é plenamente compreendida ao descobrir eventos fatídicos de sua vida que o levou a presenciar uma traição conjugal, fato negado por ele durante muito tempo. A regressão a uma linguagem primitiva pré-verbal, característica da conversão histérica fez com que fizesse uso de um processo visceral (orgânico) para expressar tal afeto. Um ego incapaz de tolerar tal angústia impede que seja efetuada uma simbolização eficaz, já que o simbolismo juntamente com sua função de realidade, serve para expressar, conter e canalizar a Fantasia Inconsciente. Pude perceber também que além de promover a importante capacidade de simbolizar, a chamada posição depressiva delimitada por Klein (1939), também propicia outras importantes aquisições. A dor pelo luto na posição depressiva e dos impulsos reparadores são também, segundo Hanna Segal (1964), a base 103 Paciente apresentando quadro de Diabetes Mellitus, que fora atendido por mim durante minhas visitas à clínica médica do hospital. 351 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA para a criatividade e a sublimação. Deste modo, indaga-se sobre a possível relação existente entre a formação de símbolos e da função simbólica presentes tanto no processo de criação artística quanto no processo de adoecer, onde por intermédio de alguns mecanismos, as palavras podem ser percebidas e sentidas em ambos como o mesmo que o objeto. A autora denominou esses mecanismos como equação simbólica e representação simbólica, diferenciando o uso simbólico do homem para determinadas atividades que no âmbito do psiquismo hipoteticamente se aproximam: tanto a criação artística, quanto o processo de adoecimento humano, combinam uma enorme capacidade de uso simbólico do material para exprimirem suas fantasias inconscientes com uma sisudez extremamente apurada das características reais do material que utilizam. Tomemos por um instante o conceito de equação simbólica. Nela o símbolosubstituto é sentido como sendo o objeto original diferente do que ocorre na representação simbólica em que o símbolo é disponível para sublimação. Tenho como hipótese que tais mecanismos subjazem a ambos processos: adoecer e criar. Parafraseando Ávila: “Cada doença uma obra de arte. Cada sofredor um artista. E a Psicanálise, guia-mestra da interpretação que arrebata, da interpretação que cura, transforma (Ávila, 1999)”. Linguagem e sentido Assim como Foucault (1979) referiu em uma entrevista que é pelo estudo dos mecanismos que penetram os corpos, nos gestos, nos comportamentos, que é preciso construir a arqueologia das ciências humanas, o saber psicanalítico permite a contemplação desta arqueologia, dando sentido à multiplicidade da linguagem do sintoma, em especial ao que faz marca no corpo. Jurandir Freire Costa (2001) refere que para o surgimento do sentido, a linguagem é uma condição necessária. Para ele, a “causa” destes afetos pode ser não-verbal, porém seu sentido é sempre verbal. Melanie Klein enfatizou essa importância contida nas palavras em um artigo publicado em 1927, referindo que a palavra é a ponte para a realidade que a criança evita enquanto apresenta suas fantasias somente brincando, considerando um progresso quando a criança tem de reconhecer a realidade dos objetos por meio de suas próprias palavras. Sua descrição do funcionamento da linguagem da criança permite que ela formule o que concebe como relação ente o funcionamento da fantasia e o das palavras. Em sua obra, afirma que a linguagem do inconsciente é concreta e descritiva e que a fantasia inconsciente é uma atividade primária nuclear, uma expressão original tanto de impulsos como de defesas. Jacques Lacan eleva a condição da linguagem e a coloca como forma de estruturação do inconsciente. No entanto, em se tratando de arte, para Lacan (1959-1960) ela caracteriza-se por um certo modo de organização em torno do vazio. Vazio que no centro do vaso, a partir da função artística mais antiga – a do ceramista – é exemplo do mistério da criação. A arte tem como combustível esse vazio. 352 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA É absolutamente necessário abordar a importância deste vazio, uma vez que o nada que nele é inerente, pulsa de forma incessante tal qual o papel em branco pulsa para ser escrito, a madeira pulsa para ser esculpida, o silêncio pulsa para ser tocado. A aproximação entre sintoma e criação parece se dar no instante em que essa esse nada, podendo ser traduzido como a Coisa freudiana (Das Ding) é revelada através de simbolismo, via sublimação. Nas palavras de Lacan, o objeto artístico “é instaurado numa certa relação com a Coisa que é feita simultaneamente para cingir, para presentificar e para ausentificar” (LACAN, 1959 – 1960 p.176). Desde Freud, o conceito de simbolismo é utilizado livremente para explicar as obras de arte. Entretanto, não há dúvida de que deva haver alguma diferença fundamental entre o simbolismo que dá origem a sintomas ou o que é expresso numa obra de arte, porém o próprio pai da psicanálise observa que a há algo da fantasia inconsciente que subjaz a ambos. Para mim, o jogo entre a capacidade de representar e equacionar simbolicamente um conflito, bem como a qualidade da transformação do vazio em algo sublime, é o que diferenciará os mecanismos simbólicos dos dois processos. Um escritor-cientista Buscar compreender e dialogar criação artística e as dimensões do adoecer, buscando um ponto de intersecção entre os mecanismos psíquicos responsáveis por tais produções humanas, afugenta a inexpressividade de referenciais teóricofilosóficos que se baseiam na abolição da subjetividade humana, dando continuidade ao trabalho freudiano de ampliar as considerações sobre o trabalho do artista comparando-a, tal qual ele fez em seu Estudo Autobiográfico (1925), à fabricação do sintoma neurótico como do sonho, que teriam por função o afastamento da realidade insatisfatória e a busca, concomitante, de amparo no mundo da imaginação. Neste sentido, também afugenta a deontologia gerenciada pelas próprias escolas de formação cujos membros desconhecem ou renegam que sua disciplina não cessa de operar o que Freud chamava de revolução copernicana, sendo atualizada a cada experiência. Por isso, re-inventar o pensar analítico tomando como ponto de partida a viabilidade do desejo de Freud (1919[1918]) de que a Psicanálise pudesse colaborar em outros campos da cultura, disponibiliza a inauguração de uma nova perspectiva. Sobre este aspecto epistemológico da psicanálise, Rosenfeld (1999) refere que as idéias de Merleau-Ponty vêm alimentar tais reflexões, demonstrando que por mais que ele pretendesse fazer ciência, acabou fazendo outra coisa: “Ela (teoria freudiana) estaria muito mais próxima do logos do mundo estético, que rompe dicotomias clássicas (sujeito-objeto, verdade-ficção, corpo-alma, interno-externo), do que da ciência. Os conceitos de pulsão, realidade psíquica e après-coup, por exemplo, revelam a quebra de tais dicotomias. O trabalho com o singular e com a subjetividade do investigador também distancia a psicanálise da ciência. E mais: a própria psicanálise é criada a partir da experiência estética de 353 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Freud, presente em sua escrita, em sua pesquisa e em sua prática. A experiência estética diferencia-se da atitude científica na medida em que é uma oscilação entre atitude crítica e sentimental (Figurelli), em que o homem está confundido com as coisas (Dufrenne). A escrita de Freud é vista como ato artístico, o que o transforma num escritor-cientista” (Rosenfeld, 1999). Parafraseando Lopes (2003), acredito que a genialidade de Freud estava em sua liberdade de pensar. Sua capacidade de formular, abandonar ou reformular hipóteses, ampliando os horizontes de sua teoria, instiga-nos a plagiá-lo, no que diz respeito a essa liberdade, levando-nos à reflexão da vivência prática, juntamente com os devidos estudos teóricos, possibilitando o vislumbre de novos fenômenos específicos, anunciados nas entrelinhas da enfermidade humana, distinguindo o horror frente ao sofrimento, da beleza estética da existência. Referências bibliográficas ANDRIOLO, A (2005). O corpo do Artista na experiência contemporânea. Revista IDE, nº 41, São Paulo - julho / 2005. ÁVILA, L. A (1999). O telescópio e o Caleidoscópio: o Inconsciente em Freud e Groddeck. Psicologia USP, v.10, n. 01 p.157-68. COSTA, J. F. (2001). A Questão do sentido em psicanálise. In: Bezerra Jr., Benilton e Plastino, Carlos Alberto (orgs). Corpo, afeto e linguagem: a questão do sentido em psicanálise. Rio de Janeiro: Contra-Capa, p.199- 219. FOUCAULT, M. (1979). Microfísica do poder (20a. ed.) 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Diante disso, esse trabalho visou investigar se a realização do Psicodiagnóstico Interventivo na criança e nos pais poderia transformar um ambiente inicialmente adverso em suficientemente bom, para manter os benefícios que a criança obteve desse procedimento clínico. É apresentado o caso de um menino de 8 anos de idade com tendência anti-sociale sua mãe. Os instrumentos empregados foram a entrevista inicial com os pais, o Procedimento de Desenhos-Estórias e duas entrevistas familiares, uma aplicada no início do processo e a outra no final. Os resultados revelaram que os sintomas do menino originavam-se de duas privações emocionais inter-relacionadas, uma sofrida por ele mesmo e a outra pela mãe. A entrevista familiar final mostrou, como efeito do Psicodiagnóstico Interventivo, que a mãe pode alcançar o estágio das experiências transicionais e obter maior solidez egóica. A nova condição da mãe aumentou a confiança do menino em sua capacidade para reparação e permitiu-lhe um uso mais livre das pulsões. Portanto, este estudo de caso indicou que o Psicodiagnóstico Interventivo pode ser considerado capaz de transformar a qualidade do ambiente familiar. Palavras-chave: Psicodiagnóstico interventivo; família; tendência anti-social. Abstract Therapeutic Assessment capability of changing an adverse environment into a good-enough one: a case study Therapeutic Assessment is a clinical practice characterized by combining diagnostic and intervention process at the same time. It descends from Therapeutic Consultations but, instead of the Squiggle Game, projective techniques are employed as means of communication between psychologist and patient. Similarly to winnicottian procedure, when Therapeutic Assessment is accomplished with children, benefits depend upon their family environment quality. Considering this circumstance, this work aimed to investigate if the accomplishment of Therapeutic Assessment with both child and parents could change a previously adverse environment into a good-enough one, in order to keep the benefits that child has granted from this clinical practice. It is described a case of an 8 year-old boy presenting anti-social tendency and his mother. The techniques employed in the Therapeutic Assessment were the initial interview 356 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA with parents, Draw-Stories Procedure and two family interviews, one of them conducted at the beginning of the process and the other at its ending. Results revealed that the symptoms of the boy stemmed from two interconnected emotional deprivation, one of them suffered by him, and the other by his mother. The final family interview showed, as an effect of Therapeutic Assessment, that the mother could achieve the transitional experiences stage and improve her ego strength. This new condition of the mother increased boy’s confidence in his capability of reparation and allowed him to use his pulsions in a freer way. Thus, this case study indicated that Therapeutic Assessment can be considered able to change the quality of the family environment. Key-words: Therapeutic Assessment; family; anti-social tendency. O Psicodiagnóstico Interventivo é um procedimento clínico que passou a ser mais bem organizado e debatido na literatura a partir da década de 1990. Ele consiste em efetuar intervenções como perguntas, assinalamentos, holding e interpretações durante a realização de entrevistas e aplicação de testes psicológicos, oferecendo ao paciente devoluções parciais ao longo do processo diagnóstico e não somente ao seu final. Pode ser realizado de acordo com diferentes modelos, sendo os mais conhecidos o Psicométrico (Finn & Tonsager, 1997) o Fenomenológico-Existencial (Fischer, 1979) e o Psicanalítico (Vaisberg, 2004). Um dos precursores dessa prática clínica foi Winnicott (1948/1993 e 1965/1993), que afirmava ser possível fazer um tratamento psicanalítico na primeira entrevista de avaliação, pois nela surgem elementos que levariam meses ou anos para emergir em um trabalho psicoterápico posterior, e que são produzidos pelo paciente para serem interpretados. A aproximação entre as situações de avaliação e intervenção também foi proposta por Morgan e Murray (1935) e Bellak (1974), que exploraram as possibilidade de utilização do TAT na psicoterapia, e Friedenthal (1976), que propôs o emprego interventivo do TRO. No Brasil, estudos dessa natureza foram desenvolvidos por Ancona-Lopez e cols. (1995), Barbieri (2002), Trinca (2003), Tardivo (2006), entre outros Dentre os estudos que se destinaram à população infantil, somente o nosso (Barbieri, 2002) se preocupou em realizar, juntamente com o diagnóstico/intervenção nas crianças, também uma avaliação psicológica dos pais, visando associar suas características aos resultados terapêuticos das crianças. Os dados mostraram vínculos importantes entre a integridade de determinadas funções egóicas dos pais e o prognóstico da criança, proporcionando uma visão mais compreensiva e holística referente à etiologia e tratamento da tendência anti-social infantil. Essa circunstância conduziu à proposta de um estudo visando averiguar os benefícios terapêuticos trazidos à criança e à sua família quando o Psicodiagnóstico Interventivo é aplicado a ela e seus pais. 357 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Assim, é apresentado aqui o estudo de caso de um menino de 8 anos de idade, de nível sócio-econômico baixo, a quem chamaremos de Samuel, submetido ao Psicodiagnóstico Interventivo juntamente com seus pais, por apresentar tendência anti-social (desobediência em casa e na escola, agressividade física e mentiras). Os instrumentos utilizados consistiram na entrevista com os pais, entrevista familiar e Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E). No caso desta última técnica, serão apresentados somente as estórias, inquérito e título da terceira unidade de produção (UP) da criança e das duas unidades realizadas pela mãe. História pessoal A mãe de Samuel teve três casamentos, sendo que ele é o único filho do segundo deles. A mãe separou-se do pai da criança logo após o nascimento desta, por haver descoberto um relacionamento extraconjugal dele; a separação ocasionou-lhe um período de depressão. Ela tem mais três filhos do primeiro casamento, todos já casados. Oito meses após o nascimento de Samuel, a mãe passou a viver com o atual marido, sendo que a criança tem muito pouco contato com o pai biológico. O aleitamento materno estendeu-se até os três anos de idade, quando o menino deixou o seio voluntariamente, o que foi descrito pela mãe como um momento doloroso para ela. A saúde física da criança é boa, mas houve alguns acidentes em função de seu comportamento (fratura da clavícula, afundamento dos dentes e destroncamento do dedo). Samuel brinca bastante e faz amigos com facilidade. Primeira Entrevista Familiar Diagnóstica O padrasto contou que, na semana anterior, havia sofrido um acidente de trânsito e no dia seguinte a esse, teve ameaça de infarto. A mãe comentou, ansiosa, que tudo havia ocorrido em apenas dois dias; falou também que havia recebido mais reclamações da escola sobre o filho. Samuel foi brincar com os patins de dedo. Os pais sorriram quando viram os patins e a mãe contou que o filho havia lhe pedido um skate e ela respondeu “só se for aqueles de dedo”, referindo-se aos perigos desse brinquedo. Samuel deixou os patins e pegou o revólver. A mãe contou que ele já teve esse brinquedo, mas depois o deixou com um amigo e ele acabou se perdendo, “graças a Deus” (sic). Apontei que ela associava o revolver à agressividade, e isso a preocupava muito. Samuel pegou o jogo de damas e convidou o padrasto para jogar. O jogo transcorreu sendo as regras ora respeitadas, ora não. Apontei essa instabilidade, mas eles nada disseram. Mais ao final do jogo, Samuel tentou mover uma de suas damas em direção não permitida, mas o padrasto não aceitou. O jogo terminou com a vitória do menino e eles iniciaram uma partida de dominós, 358 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA sendo que Samuel tentou trapacear por duas vezes, mas o padrasto não permitiu. Mesmo assim, o menino venceu a partida, e eu comentei que aquele jogo ele ganhara de fato, ao passo que nas damas sua vitória havia sido suspeita. Os pais sorriram ao meu comentário. A mãe contou que uma de suas filhas batia muito em seus netos e dizia que Samuel possuía uma liberdade excessiva, por isso tinha problemas. Acrescentou que não achava certo bater no filho, ao que o padrasto concordou. Comentei a associação que faziam entre impor limites e agressão e falei que essas coisas eram diferentes; assim, eles poderiam pensar em uma maneira de impor regras ao filho mais em acordo com o seu jeito de ser. Samuel foi até a lousa e fez um desenho geométrico. A mãe olhou sua produção e disse que parecia um pato, mas achou estranho o fato de o pescoço dele estar virado para trás. Foi até o filho e resolveu ensiná-lo a fazer um pato a partir do número 2. Contudo, o desenho dela ficou excessivamente estreito e ela comentou que o seu pato estava muito magro. A sessão foi encerrada. Interpretação As poucas brincadeiras conjuntas com o filho revelaram prejuízos na capacidade para a transicionalidade dos pais. A mãe demonstrou angústia sobre a integridade física do marido e do filho, revelando seu receio de que as próprias pulsões e as do menino acometam-lhes de modo incontrolavelmente destrutivo. Assim, há evidências de pouca solidez do bom objeto interno, que não inspira confiança. Os processos secundários são pouco desenvolvidos, levando-a, em alguns momentos, a simbolizações quase diretas. O padrasto permaneceu inibido e pouco ajudou a criança no processo de integração das pulsões no self, não oferecendo um modelo de superego realista em suas características protetoras e proibitivas. Tanto ele como a mãe pareceram tolerar pouco a frustração, o que os impelia a conceder uma liberdade excessiva ao filho, mas que esbarrava na angústia dos efeitos das pulsões sobre ele próprio. O comportamento anti-social de Samuel parece fundado nas dificuldades dos pais em estabelecer limites, oriundas, por parte da mãe, do próprio narcisismo, e, por parte do padrasto, no uso excessivo da repressão pulsional. Com isso, as normas eram colocadas para a criança de forma inconsistente e pouco realista, deixandoa insegura na construção do próprio superego. Procedimento de Desenhos-Estórias SAMUEL 3ª unidade de produção. 359 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Estória Era uma vez um carro que todo dia de domingo chamava um monte de gente. Aí foi um dia (...) que eles falaram que o carro ia chamar ‘nóis’. Aí eles fez um colante grandão e colaram no carro e aí todo mundo saíram (...). Aí foi um dia que o carro começou a pegar falha. Aí é... aí eles tinham que buscar gasolina e era bem longe, não tinham nenhum carro para ir buscar. Aí começou a anoitecer, aí o carro dormiu na rua. Aí ninguém pode sair para divertir. Aí o moço saiu na rua de manhã (...) tava vindo com a gasolina na mão, aí eles falam: _Você pode vender essa gasolina para mim? _ Sim (...) E aí eles passaram a noite divertindo e correndo com o carro. Aí foi um dia que eles bateram com o carro porque ‘tava’ muito bêbados. E aí não tinha carro para comprar e nunca mais saíram para a rua. Título: O carro ‘nóis’. Interpretação: A figura do carro revela o prazer na realização de uma atividade conjunta com um objeto importante. A temática gira em torno da pulsão e da culpa, mas vivida no contexto de uma dupla privação. O carro, representação da mãe, que acolhe muitos filhos e proporciona bem-estar, sofre uma privação, resultando num período de abandono, que ocasiona privação também aos filhos. A reparação da privação é feita por um agente externo, mas a recuperação é seguida pela avidez do menino (abuso da bebida), que compromete a integridade do objeto e o destrói de maneira irreparável. MÃE 1ª UP Estória Eu fiquei 13, 14 anos esperando uma casa da COHAB. No dia do sorteio, tinha não sei quantas mil pessoas e eu fui sorteada, eu consegui. Só que no dia, eu morava sozinha. A moça pediu os documentos do companheiro. Aí (...) eu já estava com o V. (...) Aí, quando a gente chegou lá para legalizar os papéis (...) a moça (...) viu que o V. tinha um terreno e cancelou. (...) Comecei a chorar lá dentro. Falei com o (vereador), para ver se podia fazer alguma coisa por mim, mas ele disse que não podia fazer nada. (...) 360 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Título: A estória do sonho de uma casa. Interpretação: A estória revela um momento na vida da paciente em que o ambiente foi ao encontro da sua criatividade, transformando o sonho em realidade (ilusão): a casa foi dada à paciente, representando a mãe que ela havia criado. Contudo, uma privação se impôs, e a perda do bom objeto promoveu um sentimento de ruptura com o ambiente. Como resultado, houve a perda de confiança na realidade, levando a um vínculo ambivalente com o meio (mãe) que promete e decepciona. 2ª UP Estória Na fazenda, sabe aquelas Coroas de Cristo? Eu vi um cordão bonito... eu fui pegar, era uma cobra. (...) Inquérito Nesse momento, a mãe contou que, em sua infância, viveu dos sete aos doze anos com outra família porque sua mãe não tinha condições financeiras para sustentá-la. Essa família tentou adotá-la e ela, com medo, pediu para sua mãe ir buscá-la de volta, caso contrário iria fugir. Título: Mais alimentos, serve? (...). Mais alimento ‘pras criança”. (Mostra-me a unha machucada). Interpretação: Há nova referência à busca de algo bonito e sublime que se demonstra enganoso, reiterando a privação oriunda da experiência real de ser afastada de sua família. Essa situação gerou insegurança e desconfiança para com a própria mãe, conduzindo à introjeção inconsistente do bom objeto e pouca solidez egóica, levando à escassa continência das pulsões e da ansiedade. Em termos da fantasia de cura, a necessidade de mais experiências de ilusão e de gratificação surge no título, uma vez que a ausência dessa condição conduz ao sofrimento (unha machucada). Em seqüência à aplicação do Procedimento de Desenhos-Estórias foram agendadas as sessões individuais de devolução dos resultados para Samuel e para a mãe. O menino compareceu, mas a mãe não. Mesmo assim, a entrevista familiar diagnóstica final revelou os efeitos que o trabalho provocou sobre ela. Entrevista Familiar Diagnóstica Final 361 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Samuel pegou o tabuleiro de damas e convidou os pais para jogar; a mãe aceitou. A partida transcorreu em clima de alegria e descontração, que permeou toda a sessão. Como a mãe se confundia um pouco nas regras do jogo, o menino a ajudou, mesmo quando isso lhe custou a perda de suas peças. Comentei que ela precisava de Samuel para lhe ensinar a brincar. Ela contou que havia ganho uma boneca de uma conhecida sua. Disse que sempre quis ter uma boneca e que agora ia brincar com ela. Estava cuidando da boneca e de sua cachorrinha. Eu lhe disse que a capacidade de brincar, que ela estava recuperando, ia ajudá-la a se manter mais próxima do filho. Com a ajuda de Samuel, a partida terminou com a vitória da mãe. Ela contou que o filho estava mais caseiro e que seu boletim estava bom, sem nenhuma nota vermelha. Samuel foi desenhar; a mãe pegou o “Pequeno Construtor” e começou a montar uma casa. Disse que teria dificuldades nessa atividade e o marido sugeriu que ela copiasse o modelo estampado na caixa. Ela deu a entender que faria isso, mas ignorou o modelo e construiu uma casa bem diferente, maior e mais rica que ele. Como ela e Samuel dividiam uma mesa pequena e ele estava pintando seu desenho, às vezes a mesa se movia; a mãe lhe disse para tomar cuidado para não desmanchar a casa. A mãe terminou de fazer a casa, desmanchou-a e começou a construir outra. Com a massa de modelar, Samuel começou a fazer uma trave de futebol e depois todo o campo. Quando ele terminou a construção, dramatizou, por duas vezes, que a bola bateu na trave e entrou no gol. Depois, pegou uma das traves e fez uma circunferência, emitindo barulho de carros. Perguntei-lhe se está fazendo uma pista de fórmula 1; ele fez uma expressão alegre e disse “Pode ser”. Juntou várias tonalidades de cores de modo a obter efeitos marmorizados. Enquanto isso a mãe terminou a segunda casa e o padrasto comentou que não estava igual ao modelo, mas ela não se importou. Comentei que ela quis fazer uma casa própria, pessoal. Nisso, Samuel, sem querer, esbarrou na casa e a desmanchou. Ele e a mãe permaneceram tranqüilos quanto a isso e ele, rindo, devolveu a ela os blocos que caíram. Ela construiu uma terceira casa. Samuel terminou de pintar a pista e fez dois postes com fios ligando um ao outro. Perguntei se sabia para que serviam aqueles fios e ele respondeu que eram de telefone. Comentei que eles serviam para a comunicação. A mãe pegou uma folha e escreveu “Samuel eu amo você”, enfeitando com lápis de cor as letras das palavras e, mostrando isso ao filho; disse que ele poderia fazer isso quando fosse escrever algo para alguém de quem gostasse muito. Contou, novamente, que tem uma cachorrinha que adora agradar e pegar no colo. Repito que brincando ela está mais próxima do filho e. encerrei a sessão. Interpretação 362 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Houve mudanças importantes com relação à primeira entrevista na psicodinâmica da mãe e do filho. Samuel permaneceu avaliando até que ponto sua expressão pulsional poderia ferir a mãe e mostrou-se capaz de ajudá-la e protegê-la. Essas observações indicaram a possibilidade de um controle melhor e mais realista das próprias pulsões, advindo de duas percepções: a de que elas são menos perigosas do que ele imaginava (a mesa balança, mas não destrói a casa-mãe) e a de que, quando causam esse tipo de estrago, o objeto não é destruído por completo e dispõe de capacidade para se recompor. Assim, houve maior possibilidade de incorporar as pulsões no self e matizá-las (mistura de cores da massa de modelar). Com isso, ocorreu uma liberação das defesas mais rígidas e aumento da capacidade simbólica (melhora na escola), que lhe permitiu maior fluidez da expressão pulsional. Já a mãe deu um passo importante no seu desenvolvimento e alcançou a área da transicionalidade. Alguma insegurança e dúvida quanto à própria integridade e capacidade de desempenhar a função materna permaneceram, mas foram logo dissipadas pela realidade. Assim, ela construiu três casas diferentes e criativas, a despeito de o marido seduzi-la com uma opção falso self. A impulsividade do filho, embora ainda a ameaçasse um pouco, foi sentida como possível de ser absorvida por ela sem sentir-se irremediavelmente destruída. Nesse sentido, a melhora de Samuel parece dever-se a uma mudança da atitude e da percepção da mãe com relação a si mesma, lançando os alicerces para a construção de um superego mais realista por parte dele. Discussão e conclusões O Psicodiagnóstico Interventivo realizado permitiu aproveitar as oportunidades de estabelecer um contato profundo com os familiares. O Procedimento de Desenhos-Estórias possibilitou a compreensão dos conflitos nodais da personalidade da mãe e da criança, não tendo se constituído como um instrumento invasivo ou desrespeitoso ao ritmo individual deles. As produções dos integrantes foram analisadas e discutidas em seu caráter mais pessoal (e não-normativo), o que lhes permitiu sentirem-se compreendidos por outra pessoa, perceberem a legitimidade de sua existência no mundo e recuperarem o sentido de continuidade com ele. Houve a chance por parte da mãe e de Samuel, de retomarem seu desenvolvimento, em função de terem sido colocados em movimento os processos inconscientes em direção à cura. Nesses termos, Winnicott (1971/1984) também sustenta que um dos efeitos da consulta terapêutica, por ocasionar uma liberação das defesas, é habilitar a criança a utilizar a ajuda disponível no ambiente. 363 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A modificação que o Psicodiagnóstico Interventivo provocou na mãe aponta para a necessidade de reconsideração da pauta utilizada para a exclusão de candidatos à Psicoterapia Breve, de presença de organização borderline de personalidade (Trad, 1993). Assim sendo, há indícios de que a efetividade e profundidade de um método terapêutico não dependeriam da sua duração. Os resultados alcançados, no caso de Samuel, subsidiam as conclusões da literatura sobre a obtenção de benefícios terapêuticos por meio do Psicodiagnóstico Interventivo, acrescentando a possibilidade de alcançá-los mesmo com pacientes mais graves e com prejuízos não negligenciáveis na capacidade simbólica. Nesses termos, esse procedimento, ao permitir a transformação de um ambiente inicialmente adverso em suficientemente bom, deixa-nos bastante otimistas quanto às chances de manutenção dos ganhos obtidos pela criança ao longo do processo. Referências bibliográficas Ancona-Lopez, M., org. Psicodiagnóstico: processo de intervenção. São Paulo, Cortez, 1995. Barbieri, V. A família e o Psicodiagnóstico como recursos terapêuticos no tratamento dos transtornos de conduta infantis. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2002. Bellak, L The use of the TAT in psychotherapy. In: The TAT, CAT and SAT in clinical use. New York, Grune & Stratton, 1974, Chap. VII, p. 143-152. Finn, S. E. & Tonsager, M. (1997). Information-gathering and therapeutic models of assessment: complementary paradigms. Psychological Assessment, 4, 374385. Fischer, C. T. (1979). Individualized assessment and phenomenological psychology. 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Rio de Janeiro, Imago, 1984. 365 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA “Eu quero um filho, eu não quero um problema”104– sofrimento e possibilidades de re(criação) de sentido em crianças adotivas Yara Ishara Vara da Infância e Juventude da Comarca de Osasco Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo Faz parte da cultura de adoção no Brasil a preferência por crianças pequenas, especialmente de zero a dois anos. Segundo dados de pesquisa realizada pelo CeCIF105 (2002) nesta faixa etária existem 36 pretendentes à adoção para cada criança. Dos dois aos cinco anos, a proporção cai consideravelmente: temos 5 pretendentes por criança. A partir dos cinco anos a relação entre pretendentes e crianças se inverte. Não temos mais pais aguardando a vinda de uma criança, mas crianças aguardando a possibilidade de serem inseridas numa família, sendo que a cada ano que passa a possibilidade de serem adotadas diminui vertiginosamente. Na faixa dos cinco aos sete anos existem 2 crianças para cada pretendente à adoção. Dos sete aos dez anos, 13 crianças por pretendente. A partir dos dez anos, 66 crianças aguardando para cada pretende - uma será inserida em família e 65 possivelmente permanecerão abrigadas até os 18 anos. É angustiante, para o profissional que trabalha na Vara da Infância e Juventude, o enfrentamento dessa realidade. Acompanhamos cotidianamente a ansiedade e sofrimento de crianças e adolescentes que, na impossibilidade de retornarem para seus familiares, permanecem abrigadas, por falta de pessoas interessadas em sua adoção. Mesmo tendo conhecimento de que são poucas as chances de serem inseridas numa nova família, muitas delas continuam expressando sua expectativa – mais propriamente, sua necessidade - de reencontrarem a experiência de se sentirem filhos, viverem e serem cuidadas dentro de uma família. Frases como: “tia, você me arruma um pai e uma mãe?” são difíceis de ser ouvidas e respondidas. Ou, o relato de uma menina, de 12 anos, órfã e “devolvida” pelos familiares ao abrigo: “tia, você sabia que eu choro todos os dias?......porque no dia das mães eu não tenho ninguém para quem entregar a minha cartinha”. Situações como estas têm nos evidenciado que a falta de um destinatário para suas experiências afetivas, a falta de alguém que acolha suas comunicações e expressões – presentes, por exemplo, na idéia da carta - parece ser tão sofrida como a falta de experiência de serem cuidadas e investidas afetivamente. No presente artigo, buscamos refletir sobre possíveis fatores associados à cultura de adoção em nosso país, que evidencia clara preferência pela adoção de 104 Frase dita por uma pretendente à adoção ao Juiz da Vara da Infância e Juventude como resposta a possibilidade de adoção de crianças acima dos cinco anos. 105 Centro de capacitação e incentivo à formação de profissionais voluntários que desenvolvem trabalho de apoio à convivência familiar. 366 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA crianças pequenas106. Levantamos a hipótese de que entre diversos aspectos, essa opção encontra-se associada à idéia, presente no imaginário coletivo, de que uma criança numa faixa etária maior (que possivelmente teria passado por um período mais longo de privações e sofrimentos) teria grande possibilidade de ser uma criança problemática - “Eu quero um filho, eu não quero um problema” foi a resposta dada por uma pretendente à adoção ao Juiz da Vara da Infância e Juventude, o qual observava a existência de crianças disponíveis para adoção, na faixa etária acima dos cinco anos. Tomando por base tal situação questionamos em que medida o uso de algumas teorias psicológicas poderia embasar ou corroborar preconceitos em relação aos adotados. Realizamos ainda algumas breves reflexões quanto às possibilidades de reconstrução e retomada em seu desenvolvimento de crianças adotadas, que passaram por sofrimentos significativos, entre eles a perda e ruptura nos vínculos afetivos que constituíram. Utilizaremos prioritariamente, como pano de fundo de reflexão, nossa experiência clínica no judiciário. Como principal referencial teórico, o pensamento de D.W.Winnicott. O contexto de atuação do judiciário Diversas são as situações de crianças e adolescentes que passam por atendimento - e por nossas vidas - na Vara da Infância e Juventude. Muitas delas vivenciam sofrimentos importantes advindos de experiências de negligência, abandono, abuso sexual, maus tratos, tendo ainda, algumas vezes, que se deparar com situações de difícil enfrentamento, como a separação ou perda das figuras que constituíam anteriormente sua principal referência afetiva. Paradoxalmente isso ocorre como forma de “proteção”. Em função da gravidade, cronicidade ou risco de morte de algumas situações, medidas como o abrigamento (que implica em separação) ou a destituição do poder familiar107 (que implica na perda e ruptura de relações) são medidas legais utilizadas, sendo previstas no Estatuto da Criança e Adolescente como “medidas de proteção”.108 Vale esclarecer que um primeiro investimento do profissional que atua na Vara sempre se dá no sentido de possibilitar a permanência da criança ou adolescente em sua família de origem. Ressaltamos, porém, que em geral, os casos envolvendo maus-tratos de crianças e adolescentes, já passaram por atendimento e intervenções de várias outras instâncias, como Conselho Tutelar, Secretarias de Saúde, Promoção Social ou CRAS (Centro de Referência de 106 Não é nossa intenção questionar o desejo ou a necessidade de pessoas que optam pela adoção de bebês ou crianças menores. 107 Destituição do poder familiar – trata-se de uma medida legal na qual o(s) genitor(es) perde todos os direitos e poderes sobre o(s) filho(s). Atualmente na Vara da Infância e Juventude de Osasco, onde atuamos, temos cerca de 117 crianças abrigadas e 66 .adolescentes. Em 60 casos, os genitores foram ou estão sendo objeto de ação de destituição do poder familiar 21 crianças e 2 adolescentes estão em processo de colocação em família adotiva. 108 Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069 de 13/07/90. 367 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Assistência Social), antes de chegarem ao âmbito do judiciário. Nesses casos, o Judiciário acaba funcionando de maneira análoga a uma “UTI”, tornando difícil, dada a gravidade dos casos, nos furtamos de realizar intervenções que, por vezes, acabam sendo invasivas. Resta muitas vezes, aos profissionais que atuam na Vara, psicólogos, juízes e assistentes sociais e promotores, optar pela intervenção e medida legal tida como “menos pior” à criança ou adolescente: “Infelizmente, algumas vezes, não posso escolher entre uma medida boa e uma ruim, mas entre uma ruim e uma pior” 109 Várias crianças e adolescentes - ainda que tenha sido necessário permanecerem abrigadas temporariamente - retornam ao convívio dos pais, familiares, ou outros guardiões. Em alguns casos, porém, constatamos a impossibilidade ou inviabilidade dos pais, ou familiares, reassumirem, de fato, os cuidados dessas crianças, sendo inúmeros e complexos os motivos pelos quais não conseguem fazê-lo.110 Em virtude da gravidade dessas situações, alguns casos têm como desfecho a perda ou destituição do poder familiar.Tal medida visa, sempre que possível à colocação da criança ou adolescente em família adotiva, a fim de evitar o prolongamento da condição de abrigamento, com os prejuízos amplamente conhecidos de um processo de institucionalização. Visa, em última instância, assegurar-lhes o direito fundamental à convivência familiar Se adotadas, estas crianças e adolescentes terão a tarefa de reconstruir suas vidas e seus vínculos numa nova família. Muitos são os estudos na literatura apontando para as repercussões prejudiciais ou traumáticas para as crianças decorrentes da separação ou ruptura nos vínculos afetivos que constituíram. Dentre a literatura especializada vale citar os estudos realizados por Bowlby (1979/1982). Em nossa atuação, sempre que possível, as relações parentais são preservadas. Porém, como exposto acima, faz parte da realidade do profissional que atua na Vara da Infância e Juventude se deparar com situações em que se faz necessária a interrupção dos mesmos. Temos observado que, para o psicólogo que trabalha no âmbito do judiciário, tem sido bastante custoso, do ponto de vista emocional, o posicionamento e a sugestão de medidas que envolvam a interrupção dos vínculos afetivos, desde separações temporárias, como no caso de abrigamentos, até perdas e rupturas desses vínculos, como no caso das destituições do poder familiar. Levantamos a hipótese de que a idéia de que estas medidas poderiam impor prejuízos traumáticos irreversíveis a essas crianças, acaba paralisando o profissional na condução e direcionamento dos casos.111 Consideramos que este receio esteja assentado, em parte, em idéias presentes em algumas teorias 109 Dr. Samuel Karasin – Juiz da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Osasco. 110 Está para além dos objetivos desse texto expor ou retomar essas questões. Ressaltamos, no entanto, a necessidade de melhor investimento, gerenciamento e funcionamento de recursos públicos e sociais que auxiliem as famílias na superação de suas dificuldades. 111 Vale notar que faz parte das atribuições do psicólogo judiciário o posicionamento sobre qual medida legal seria mais favorável à criança. 368 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA psicológicas, ou mais propriamente numa leitura determinista e fatalista destas teorias. Como ficaria o prognóstico de crianças e adolescentes que chegam a Vara com uma história marcada por significativas privações e falhas ambientais? Quais as repercussões e consequências do ponto de vista emocional da vivência e imposição de novas rupturas, como as inerentes às medidas de abrigamento e destituição? Quais as possibilidades dessas crianças e adolescentes se recuperarem dos traumas vivenciados e retomarem seu desenvolvimento emocional quando colocadas em uma nova família? Que condições favorecem ou dificultam a retomada de seu desenvolvimento? A teoria winnicottiana como sustentação possível à atuação do psicólogo no âmbito do judiciário Em nossa atuação vimos utilizando como principal referencia teórica o pensamento e trabalho de D.W.Winnicott. Consideramos que as idéias, e mais propriamente as concepções sobre o homem deste autor, têm nos fornecido importante sustentação teórica e técnica, dando suporte as nossas reflexões e intervenções. A opção pelo uso da teoria winnicottiana em nosso trabalho, no âmbito do judiciário, encontra-se em parte associada ao valor dado por Winnicott às experiências e observações diárias de atendimento112- e uma certa aversão a grandes abstrações que se distanciassem da realidade. Aversão à submissão a teorias, ainda que brilhantes, distanciadas da experiência e do viver real.113 Winnicott atuou durante anos como pediatra. Apesar de formar-se posteriormente em psicanálise (British Psychoanalytic Society) e de atuar em análises longas e individuais em clínica particular, nunca se distanciou da experiência e da enorme demanda de atendimento ambulatorial. Há dados apontando que tenha realizado cerca de 60 mil atendimentos entre bebês, crianças e familiares no Paddington Green Children’s Hospital (NEWMAN, 1995/2003:178). Masud Khan (WINNIOCTT, 1958/2000:11 a 12) descreve o autor como alguém que privilegia fatos. “Para ele os fatos eram a realidade, e as teorias – o titubear humano buscando apreender os fatos. Ele era militantemente avesso aos dogmas. Winnicott era não-conformista desde o berço; nada era estabelecido ou absoluto. Cada qual deveria buscar e definir a sua própria verdade. O que havia de estabelecido era o espectro da experiência”. 112 Winnicott atuou durante anos como pediatra. Apesar de formar-se posteriormente em psicanálise (British Psychoanalytic Society), atuando clinicamente em análises longas, nunca se distanciou da experiência e da enorme demanda de atendimento ambulatorial. Há dados apontando que tenha realizado cerca de 60 mil atendimentos entre bebês, crianças e familiares no Paddington Green Children’s Hospital. 113 VAISBERG realiza uma aproximação teórica deste autor com as idéias de POLITZER, que “ incitam o abandono das teorizações abstratas e distanciadas do viver, em prol de um retorno à vida humana tal como se dá concretamente” - cf. VAISBERG (2004) 369 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Assim como outros autores, Winnicott afirma que as bases da saúde mental se constituem nos primeiros anos de vida. Atenta ainda para os efeitos prejudiciais de experiências invasivas ao self. Boa parte do trabalho deste autor foi dedicado à compreensão e atendimento de graves patologias, particularmente os estados psicóticos, aproximando-se de sofrimentos agudos, como os que denomina “agonias impensáveis”. É interessante notar, no entanto que, mesmo estando em contato direto com graves sofrimentos e patologias, Winnicott parece manter um certo “otimismo” frente ao ser humano - uma esperança quanto a sua possibilidade de recuperar-se e recriar-se, a partir do encontro com um “ambiente favorecedor” - entendido como um encontro humano. Winnicott descreve a tendência ao desenvolvimento como sendo inata. “No universo psicológico, há uma tendência ao desenvolvimento que é inata” (WINNICOTT, 1993/2001:5). Afirma: “O potencial herdado inclui a tendência no sentido do crescimento e do desenvolvimento”. (WINNICOTT, 1983/1990:43). Concomitantemente a “aposta na importância do meio-ambiente humano como condição favorecedora do desenvolvimento emocional” (2005:118), o autor ressalta, portanto, a presença de um potencial criativo no indivíduo, uma força ou impulso para a vida. “O desenvolvimento emocional ocorre na criança se se provêem condições suficientemente boas, vindo o impulso para o desenvolvimento de dentro da própria criança” (WINNICOTT, 1983/1990:63). Neste sentido, um “ambiente suficientemente bom” seria o que oferece uma “provisão para concretizar o impulso criativo da criança” (WINNICOTT, 1983/1990:68). Ao mesmo tempo em que aponta para os prejuízos emocionais advindos de falhas ambientais, onde a criança não se viu atendida em suas necessidades, Winnicott paradoxalmente, parece assegurar ao indivíduo um espaço de transformação de sua história. Consideramos que mais do que diante de idéias estamos diante de um posicionamento ético frente ao ser humano, do qual partilhamos. Nossa opção pelo uso da teoria winnicottiana, neste sentido, é comprometida e compromissada com pontos de identificação e afinidade com as idéias desse autor, mas, sobretudo, com o que entendemos ser um posicionamento ético de Winnicott frente à vida. Apontando para conceitos como força / potencial criativo, esperança, tendência ao desenvolvimento Winnicott, no nosso entender, tira o indivíduo da condição de “condenado” a uma condição patológica decorrente de falhas ambientais, subvertendo e assegurando-lhe um espaço de co-criação de sua vida e de sua história. Vale ressaltar que tal posição guarda afinidades com a concepção freudiana das séries complementares (Freud, 1916) e com as formulações epistemológicas de Bleger.(1963- Psicologia de la Conduta). Concepções presentes no imaginário social da adoção AEILLO-VAISBERG e FERREIRA (2005) têm apontado para o risco do uso de teorias psicanalíticas ou, mais propriamente, para o uso de uma leitura superficial 370 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA e determinista destas teorias, para embasar e reforçar preconceitos em relação à criança adotada. “Se no meio psicanalítico residem determinismos sobre os adotados, é natural que a sociedade assimile tais concepções”. (AIELLOVAISBERG, FERREIRA, 2005:123). As autoras afirmam: “Quando consideramos a criança adotiva a partir de uma perspectiva que confere importância às primeiras relações com o cuidado materno, somos levados a pensar na qualidade deste primeiro vínculo, no quanto pôde ou não favorecer os processos iniciais do viver, a integração, a personalização e o estabelecimento de relações objetais (WINNICOTT, 1945/2000). Entretanto, não p odemos, a nosso ver, deixar de perceber que a idéia, segundo a qual as primeiras relações são fundamentais, no estabelecimento das bases do amadurecimento emocional, pode cair num determinismo objetivante que pode ser manipulado no sentido da culpabilização das mães e da discriminação daquelas crianças que, pouco afortunadamente, deixaram de contar com um ambiente suficientemente bom nos primórdios da vida. Assim parece-nos importante examinar este tema desde uma perspectiva clínica e ética”. (AIELLO-VAISBERG; FERREIRA, 2005:19). Tendo em vista estas considerações, as autoras ressaltam a necessidade de se levar em conta a singularidade de cada experiência, evitando generalizações e abstrações distanciadas do viver e da experiência real do indivíduo. “Não podemos esquecer que existem diversas histórias de crianças adotivas e diferentes formas de privação, abandono e separações. Toda história é singular e circunstanciada, cada criança vive a experiência de um modo pessoal. Generalizar uma condição subjetiva é abstrair o problema, formular uma teoria eventualmente distanciada do acontecer vital e não considerar que toda conduta é humana e singular. É possível citarmos Politzer (1928/1998) e Bleger (1963/1984) como aqueles que mais combateram um destino destes para psicanálise: estruturalista, determinista e distante do drama em primeira pessoa” (2005:123). O percurso da vida nos afeta. Somos tocados e transformados pelos acontecimentos, vivências e singularidade de nossa história. Tocados particularmente pelas pessoas que se constituem como referências afetivas significativas nesse percurso. Marcas existenciais são inevitáveis – trata-se de uma condição humana, presente em crianças adotadas ou não. “ (...) todos os seres humanos são afetados por seu percurso vital, pelos acontecimentos que sucessivamente constituem a linha de sua biografia”.(2005: 122). Não obstante, considerar que a criança adotada, por ter tido um início de vida difícil, estaria condenada a perpetuar seus traumas, sendo incapaz de reconstruir e encontrar/criar novos sentidos para suas vidas, é um posicionamento ético, no nosso entender, preocupante, podendo funcionar como uma segunda situação de violência às mesmas. Em seu texto “Psicanálise do self e sofrimento humano”, Safra (2003) refere-se a várias formas de sofrimento, descrevendo de forma sensível e peculiar àquele 371 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA advindo de situações de sucessivas rupturas.114 “Aqui ocorre um padecimento que nem mesmo pode ser sofrido. O indivíduo encontra em sua história rupturas que o impedem de se constituir. São rupturas que acontecem em suas necessidades mais fundamentais, tais como a necessidade do outro, de comunicação, do olhar do outro, do encontro de um lugar no mundo, da realização de uma contribuição para o mundo. Essas são necessidades humanas e, por vezes, o indivíduo não pôde encontrar a possibilidade de constituir qualquer uma delas, o que provoca uma fenda, uma fratura no sentido de si. O que para um outro ser humano é experiência de ser, para essas pessoas é verdadeiro buraco negro sem sentido. Isto origina um padecimento que pode tanto acontecer como um acontecimento psíquico ou corporal. Aqui o adoecer é um sinal da esperança da possibilidade de um encontro”. (grifos do autor – SAFRA, 2003:57). É interessante notar o destaque dado pelo autor ao conceito de esperança. Mesmo o adoecer, a patologia, é percebida como um sinal de esperança. “Quando se acompanha uma pessoa durante um longo período se tem a oportunidade de observar como o adoecimento de alguém é a cristalização de uma esperança”. (SAFRA, 2003:55). Como caminho e direção de “cura”, o autor aponta: “No segundo tipo de sofrimento ocasionado por rupturas nas necessidades de constituição, estamos frente a uma situação que não pode ser abordada pela interlocução, mas sim pela oferta do encontro que possa constituir” (SAFRA, 2005:57). Temos assistido - e sofrido - com o padecimento de várias crianças e adolescentes que não puderam, por diversas razões, permanecer em suas famílias de origem. Temos, no entanto, constatado também como o encontro com pessoas que se dispõem a investir afetivamente nessas crianças e adolescentes, mantendo-se como uma referência afetiva contínua que, no caso, é a dos pais adotivos, têm funcionado como importantes facilitadores e promotores na retomada de seu desenvolvimento. Temos visto crianças e adolescentes serem “curados” por esses encontros. Vale ressaltar que, dentro da perspectiva winnicottiana, o conceito de cura não está associado ao alcance de um estado particular de elaboração de conteúdos conflitivos, mas a possibilidade de sair de uma condição paralisante - um “por em marcha”, “em movimento”, “em transicionalidade”. Sobre a atuação que temos assistido de diversos pais adotivos, na “cura” de seus filhos, lembramos uma expressão disponível no imaginário cultural “O espírito humano é sempre assim. Por pior que tenha sido o passado ele segue adiante. O que eu fiz foi coloca-lo num trilho”115 Considerações finais Frente às situações graves de sofrimento com quem nos deparamos na Vara da 114 Não se trata de uma experiência, mas de um padrão de expeirências. 115 Frase dita por um personagem médico, de um seriado de TV americana (Everwood), quando indagado sobre sua intervenção na cura de um paciente neurológico em estado grave. 372 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Infância e Juventude, vimos contrapondo, de certa forma, o conceito de esperança presente na teoria winnicottiana. Sua aposta na capacidade humana de desenvolver-se e recuperar-se, mesmo frente a situações adversas ou traumáticas.116 Notamos que para além de uma sustentação teórica, este posicionamento ético tem nos possibilitado lidar, enfrentar e sustentar o sofrimento destas crianças, auxiliando-as a atravessarem suas dores. Entendemos que face ao histórico de sucessivas falhas ambientais dessas crianças e adolescentes parecem se configurar vários caminhos de atuação. Um deles seria o de percebê-los, prioritariamente, como vítimas passivas de graves falhas ambientais, condenados ao longo de suas vidas a perpetuar e repetir seus traumas. Outro, do qual partilhamos, é percebê-los como sujeitos, em estado de importante sofrimento, necessitando de um ambiente humano facilitador que os auxilie na possibilidade de retomada de suas vidas. Salientamos que este posicionamento não busca, de forma alguma, negar a condição de vulnerabilidade da criança e as marcas advindas de falhas ambientais, onde a criança não se viu atendida em suas necessidades, ou sofreu experiências invasivas ao self. 117 Foge, no entanto de uma conduta determinista, guardando um espaço para a capacidade da criança e de todo o indivíduo de desenvolver-se e recuperar-se de situações traumáticas e adversas, a partir de um ambiente favorecedor, tido como um encontro humano. Consideramos que ainda pouco sabemos sobre a forma como crianças e adolescentes que passaram por importantes rupturas afetivas reconstroem – ou não – suas vidas. Atentamos, no entanto, para os riscos de uma psicopatologização da criança adotiva e do uso de teorias psicológicas como forma de corroborar preconceitos. “Contribuir para pensar a criança adotiva e os pais adotantes sob a égide do patológico é, a nosso ver, algo que demanda profunda reflexão ética”. (AIELLO-VASIBERG; FERREIRA, 2005:121). Entendemos que o caminho da desmistificação de idéias e preconceitos sobre o tema da adoção passa pela realização de pesquisas, estudos e observações cuidadosas, em todos os âmbitos e particularmente no âmbito do judiciário. Resumo Partindo da cultura de adoção, em nosso país, que denota uma clara preferência pela adoção de bebês e crianças pequenas, buscamos levantar alguns aspectos associados a essa preferência, particularmente à idéia, presente no imaginário 116 Essa aposta de Winnicott no desenvolvimento parece expressa em idéias como a tendência inata ao desenvolvimento, a capacidade criativa e o conceito de verdadeiro self. Vale ressaltar que, para o autor, este último, ainda que recuado, oculto ou protegido sob a forma de um falso self, “espera” ou aguarda condições favoráveis para atualizar-se e vir a ser. “Como já indiquei, é necessário considerar a impossibilidade de uma destruição completa da capacidade de um indivíduo humano para o viver criativo, 117 Vale notar a distinção entre desejo e necessidade. Nem todos desejos devem ser realizados, porém as necessidades devem ser atendidas. 373 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA coletivo, de que uma criança adotada numa faixa etária maior seria uma “criança problema”. Tomando por base o pensamento de D.Winiccott, realizamos algumas reflexões quanto às possibilidades -ou não- de retomada em seu desenvolvimento de crianças e adolescentes que passaram por situações de importante sofrimento, entre eles, a perda ou ruptura das relações afetivas que constituíram. Atentamos ainda para os riscos de um uso superficial e determinista das teorias psicológicas para embasar e corroborar preconceitos em relação aos filhos adotivos. Abstract Taking the adoption culture in Brazil as a starting point, which culture indicates a strong preference for the adoption of young babies and children, we have attempted to discuss a few aspects associated with such preference, in particular the idea, which is present in the collective imaginary that a child adopted at an older age would become a "problematic child". Based on D. Winnicot´s teachings, we have analysed the possibility or impossibility) of children and teenagers resuming development after experiencing severe suffering, including the loss or breaking of affective relationships they had built. Also, we discuss the risks of a superficial and deterministic use of psychological theories to create and reinforce prejudice against adopted children. 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