anais da segunda jornada de pesquisa em psicanálise

Transcrição

anais da segunda jornada de pesquisa em psicanálise
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
ANAIS DA SEGUNDA JORNADA DE PESQUISA
EM PSICANÁLISE E FENOMENOLOGIA
Pesquisa Qualitativa na Saúde Mental:
perspectivas psicanalíticas e fenomenológicas
ISSN 2175-0696
ORGANIZAÇÃO
Profa. Livre Docente Tânia Maria José Aiello Vaisberg
Profa. Dra.Vera Engler Cury
Evento financiado pela CAPES
(Auxílio PAEP N° 0509/08-6)
e pela FAPESP (Processo N°08-56197-9)
2008
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
SEGUNDA JORNADA DE PESQUISA EM
PSICANÁLISE E FENOMENOLOGIA
Pesquisa Qualitativa na Saúde Mental:
perspectivas psicanalíticas e fenomenológicas
ORGANIZAÇÃO
Profa. Livre Docente Tânia Maria José Aiello Vaisberg
Profa. Dra.Vera Engler Cury
COMISSÃO ORGANIZADORA
Ms Cristiane Helena Dias Simões
Ms Fabiana Follador e Ambrosio
Ms Kátia Panfiete Zia
Ms Miriam Tachibana
COMISSÃO CIENTÍFICA
Profa. Livre Docente Tania Maria José Aiello Vaisberg
Profa. Pós-Doutora Maria Alves de Toledo Bruns
Profa. Dra. Maria Christina Lousada Machado
Profa. Dra. Tania Mara Marques Granato
Profa. Dra. Vera Engler Cury
2008
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Confêrencias e Palestras
A pesquisa psico-sócio-histórica e a narrativa transferencial: as loucura
contemporâneas
Daniel Beaune .............…………..........................……………………..…………......…..07
Diferenças entre a noção de inconsciente em Freud e em Winnicott
Leopoldo Fulgencio .................................................................................11
Pesquisa psicológica e fenomenologia
Mauro Amatuzzi .....................................................................................35
Comment penser et transmettre la clinique de la schizophrénie en
psychologie clinique: l'intérêt des récits intertransférentiels
Rosa Caron ...........................................................................................42
.
Clínica da língua: tradução e transferência narrativa
Thamy Ayouch …….........................................……………….........................…61
Phénoménologie de l’affectivité et
métapsychologie de l’affect :
Considérations sur un parcours de recherche
Thamy Ayouch e Tania Maria José Aiello Vaisberg …………………………………....……..73
Trabalhos Completos Apresentados como Pôster
A maternagem em uma família homoafetiva feminina
Ana Laura Moraes Martinez e Valéria Barbieri .............................................81
Autonomia, subimissão e gestualidade espontânea: considerações sobre
um caso clínico
Antonina de Souza Lopes Muniz-Pimenta, Cristiane Helena Dias Simões e Tânia
Maria José Aiello-Vaisberg .......................................................................88
O sentido do ser voluntário: uma pesquisa fenomenologica
Bruna Fenocchi Guedes e Mauro Amatuzzi .................................................94
A saúde mental do adolescente: relato clínico de avaliação por meio do
desenho- estória
Carolina Grespan Pereira Souza e Maíra Bonafé Sei ...................................102
Limites de um modelo psicopatológico pulsional: em direção a outra
melodia Clarissa Medeiros e Tânia Aiello-Vaisberg .........................................109
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A importância da entrevista final em atendimento grupal de jovens em
processo de escolha profissional
Christiane I. Couve de Murville Camps e Tânia M. J. Aiello Vaisberg ..............117
O imaginário de alunos de pós-graduação stricto sensu sobre a docência
e ensino superios – projeto de pesquisa
Elisa Corbett e Tania Maria José Aiello Vaisberg .........................................124
Envelhecer no início do século XXI: posição subjetiva e convívio com
tecnologias contemporâneas na comunicação
Helena Maria Rizzon Mariani ..................................................................133
O desvelar da afetividade e sexualidade de mulheres submetidas à
cirurgia bariátrica
Érica Helena Martins de Godoy e Maria Alves de Toledo Bruns .....................140
A pesquisa qualitativa e o método psicanalítico
Érico Bruno Viana Campos .....................................................................150
Oficina de Pintura: Um Estudo Fenomenológico sobre uma prática
psicológica Giuliana Gnatos Lima Bilbao e Vera Engler Cury ......................158
O método do estudo de caso em uma investigação clínica psicanalítica
Fernanda Kimie Tavares Mishima e Valeria Barbieri ...................................161
O psiquismo em Freud e Heidegger: irritabilidade (Reizbarkeit) e
abertura (Erschlossenheit)
João Paulo F. Barreta e Zeljgo Loparick ...................................................170
Pesquisa heurística e as ciências socioambientais. Uma proposta de
discussão
Josemar de Campos Maciel ....................................................................178
Ensaio sobre a construção: da fenomenologia à construção social
Juares Soares Costa e Vera Engler Cury ...................................................192
Trajetória de vida e construção da identidade do nissei na sociedade
brasileira Liliane Pusas Santos e Roberto Yutaka Sagawa ..........................201
A pesquisa fundamental em psicanálise: um modelo para o tratamento
da esquizofrenia
Luciane Loss Jardim .............................................................................205
Mulheres e religião em conflito: estudo das condições da mulher
trabalhadora, seus conflitos e sua religiosidade
Magali Scopel de Araújo, Calvino Camargo e Luciane dos Santos Iriyoda ......216
Que Amores São Esses?
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Maria Alves de Toledo Bruns ..................................................................221
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Oficina de mosaico de papel: pesquisa sobre a potencialidade mutativa
de um enquadre diferenciado para atendimento de pacientes com
seqüelas neurológicas graves
Maria Cecília Martins Ribeiro Corrêa e Tânia Maria José Aiello Vaisberg .........227
Pesquisa fenomenológica e intervenção: possibilidades
Mauro Amatuzzi, Karine Cambuy, Thais de Assis Antunes e Pedro Vitor Barnabé
Milanesi ..............................................................................................238
Psicodinamismos da mãe de crianças com tendência anti-social – um
estudo de caso
Nerielen Martins Neto Fracalozz e Valéria Barbieri.......................................245
Inconsciente e singularidade: diretrizes iniciais de pesquisa de formação
de grupos de conversação no instituto de psiquiatria da universidade
federal do rio de janeiro
Nelisa Guimarães .................................................................................255
Família monoparental: um estudo psicanalítico do imaginário coletivo de
universitários
Paulo César Ribeiro Martins, Andrei Ferrari Faria e William Divaldo Mortele ....259
“Será que ele é?” O imaginário sobre a homossexualidade
Paulo César Ribeiro Martins e Tania Maria José Aiello Vaisberg ....................264
A perspectiva terapêutica da arte no campo da saúde mental- relato de
experiência
Raquel Rossi Tavella e Mariana Wisnivesky ...............................................270
Transtorno bipolar e a experiência de perda: contato com uma paciente
num ambulatório psiquiátrico – relato de experiência
Samira Kalil Waldemarim, Marcelo Roberto de Brito Nardozzi, Maíra Fernanda
Marcatti e Marly Aparecida Fernandes .....................................................274
O sintoma psicossomático: uma proposta traumática para sua etiologia
Sebastião Abrão Salim ..........................................................................287
Mudança em coaching de executivos
Sueli Aparecida Milaré e Elisa Medici Pizão Yoshida ....................................299
A criança em sofrimento: o imaginário de pais sobre a criança com
problemas
Sueli Regina Gallo-Belluzzo, Elisa Corbett e Tânia Maria José AielloVaisberg..............................................................................................309
O Imaginário de mulheres sobre o câncer de mama
Sueli Regina Gallo Belluzzo,Thais Helena Andrade Machado Couto e Tânia Maria J.
Aiello-Vaisberg .................................................................................316
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Rabiscando o imaginario sobre o cuidado materno : o uso de narrativas
interativas na pesquisa psicanaliticas
Tania Mara Marques Granato e Tânia Maria José Aiello-Vaisberg ..................323
“O mundo marcado”: o imaginário coletivo de jovens sobre a
adolescência contemporânea
Tania Maria José Aiello Vaisberg, Miriam Tachibana, Mariana Leme da Silva
Pontes e Aline Vilarinho Montezi ............................................................329
Desastre na vida sexual: o imaginário coletivo de adolescentes sobre a
gravidez na adolescência
Tania Maria José Aiello Vaisberg, Miriam Tachibana, Mariana Leme da Silva
Pontes e Tomíris Forner Barcelos ............................................................335
A metáfora da doença: um diálogo entre a criação artística e as
dimensões do adoecer humano
Tiago Sanches Nogueira ........................................................................341
O psicodiagnóstico interventivo psicanalítico na transformação do
ambiente adverso em suficientemente bom: um estudo de caso
Valeria Barbieri ....................................................................................349
“Eu quero um filho, eu não quero um problema”: sofirmento e
possibilidades de (re)criação de sentido em crianças adotivas
Yara Ishara .........................................................................................359
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A pesquisa psico-sócio-histórica e a narrativa
transferencial: as loucuras contemporâneas
Daniel Beaune
Université de Lille 3
O contexto no qual se desenvolvem, atualmente, as pesquisas acadêmicas, pode
ser suficientemente apresentado, se pudermos destacar suas características
principais: predomínio de uma perspectiva cognitivista totalitária, transmissão do
saber de modo coercitivo e exigências de produtivistas.
A psicologia cognitiva, que se apóia sobre o poder dos psicólogos acadêmicos,
que são pouco numerosos, desconsidera a perspectiva dos psicólogos clínicos,
estes sim bastante numerosos, bem como a dos artistas e dos leigos, sobre a
psique humana. Apropriando-se da pesquisa, como se fosse seu monopólio, os
universitários cognitivistas impedem a publicação de trabalhos que utilizam
metodologias não positivistas. De modo pouco sutil, as portas dos laboratórios
são fechadas para todos aqueles que não aderem à sua visão epistemológica.
No que tange à organização dos cursos, o ponto de vista dos cognitivistas é
imposto aos estudantes de modo francamente coercitivo. O recrutamento dos
pesquisadores, o financiamento das pesquisas, o controle dos meios de edição, a
repressão, a censura, o controle, tudo fica sob o poder daqueles que aderem à
visão epistemológica predominante. Fica, assim, seriamente comprometida toda
possibilidade de livre pensamento.
Deste modo, para tornar-se pesquisador acadêmico faz-se necessário submeterse ao dogma anglo-saxão, escrever artigos em inglês e deixar de escrever livros.
Michel Foucault, que foi o primeiro professor de psicologia de nossa universidade
não seria, nos dias de hoje, recrutado.
As subvenções do estado à pesquisa, na França, vem minguando
progressivamente. Devem, assim, os pesquisadores dirigir-se aos industriais que
decidirão, eles sim, sobre quais serão os projetos merecedores de financiamento.
Em Lille, quem decide sobre o financiamento da pesquisa científica, na área da
Psicologia, em última analise, é um produtor de ervilhas. Foucault mostrou bem
que, no que concerne à produção do saber, o que há de importante, na política,
é a justificativa do poder.
Diante deste quadro geral, faz sentido, a meu ver, pensar, com Feyerabend, no
anti-método. Face à onda cognitiva convém opor a criatividade, o livre
pensamento individual, o pluralismo ideológico, a recusa aos dogmatismos
impostos por metodologias rigorosas, a recusa à homogeneidade dos saberes e
dos métodos prêt-à-porter. Pensamos que uma atitude critica implica em assumir
a possibilidade de que diferentes posicionamentos possam ser sustentados diante
de um mesmo assunto, bem como em defender que nem objetivos, nem
métodos de pesquisa devem ser institucionalmente impostos.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Desde nossa perspectiva, a questão do laço, do vínculo, é central. Em nosso
laboratório, as pesquisas abordam o vínculo, a intersubjetividade. A idéia é a de
que somos ontologicamente ligados e de que o intra-psíquico é inseparável do
intersubjetivo. Tanto a fenomenologia como as neurociências, com a idéia de
neurônios-espelhos, mostram que não se pode conceber o intra-psíquico sem
passar pela intersubjetividade. Em 1994, Giacomo Rizzolatti descobriu o
mecanismo pelo qual nosso cérebro simula interiormente o mundo exterior para
representá-lo. Enquanto media a atividade do córtex pré-motor de macacos,
constatou que os neurônios se ativavam do mesmo modo quando o animal fazia
um certo movimento ou olhava outro comportando-se do mesmo modo. Situados
na área denominada F5, que controla os movimentos corporais, estes neurôniosespelhos existem apenas nos seres humanos e nos primatas superiores,
permitindo que as ações sejam reproduzidas mentalmente, permitindo a imitação
do outro, a percepção de seus estados mentais, ou seja, a comunicação.
Este mecanismo reflexivo está, provavelmente, na origem da linguagem. Por
outro lado, há certa chance de que estes neurônios de empatia apresentem
defeitos nos autistas. De todo modo, parece importante afirmar que o “entre” é o
“fundo comum” da vida. Dizia Buber que no começo está a relação. A origem de
tudo está no “entre” que liga uma pessoa à outra, ao seu ambiente e à ela
mesma. Segundo esta concepção da vida, o ser humano é antes um “ser-comos-outros”. Separar-se do mundo e unificar-se permanentemente com o mundo
constituem um interjogo permanente e impossível de ser superado, que se
elabora sobre o “entre” ou ainda sobre o “ fundo comum” da vida.
間 人間
, o “entre”, é primordial e originário.
De acordo com Kimura Bim, o “aida”,
Para os japoneses, o indivíduo não seria visto como mônada isolada que
instauraria, no après coup, uma relação com os outros. Ao contrário, consideram
que o “aida” interpessoal é primário e que apenas em seguida pode se atualizar
sob a forma do si-mesmo e dos outros. Assim, o si-mesmo, como tal,
compreende o “aida” como um de seus momentos constitutivos. Haveria, pois,
algo na terra, que seria designado como “ fundo da vida” e nós só viveríamos,
desde esta perspectiva, pela manutenção de uma relação com este fundo no
sentir e no agir.
Pode ser interessante lembrar que Kimura Bin é, também, maestro. Na
orquestra, cada músico pode ter, num dado momento, a impressão de que a
música emana inteiramente de seu próprio instrumento, enquanto, em outros
momentos, viria dos demais intérpretes. Na verdade, a música circularia em um
espaço intersubjetivo virtual, a “aida”. O instrumentista apreende este “aida”
como interior à sua própria subjetividade, mas encontra-o, ao mesmo tempo, no
exterior, com os demais participantes da orquestra. Dito de outro modo, o sujeito
só pode encontrar intersubjetivamente o mundo da música na medida em que
está ligado ao fundo vital comum a todos. Esta atividade é determinada neste
“espaço virtual” intersubjetivo. É por este motivo que em nossas pesquisas
abordamos simultaneamente vertentes societárias e transferenciais.
Para bem conduzir tais projetos, utilizamos a fenomenologia e sua abordagem
sem “ a priori”, o modelo freudiano e a análise do político, como modos de
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
compreensão da intersubjetividade. O período histórico, o contexto social, com
seus ideais, suas exigências, suas interdições, seus valores, desenham o quadro
no interior do qual os desejos, os fantasmas, os projetos de cada um,
atravessando o sujeito, são levados a se desdobrar. Consideramos, assim, que
não faz sentido remeter todas as dificuldades psicológicas às relações familiares
primárias, porque os pacientes deliram a partir da dimensão do político. Todo
delírio é histórico-mundial.
O método dialético progressivo-regressivo foi criado por Marx e desenvolvido por
Lefebvre e Sartre. Apresentando-se segundo modos transversal e vertical,
consiste em partir da análise do vivido imediato e singular de um sujeito para
remontar na direção de conjuntos humanos que o organizam. É progressivo no
sentido de que se propõe tornar inteligível o interjogo destas mesmas estruturas
na História, como critica da razão dialética. Este método, tal como adaptamos,
opera em um vai e vem entre as determinações particulares e gerais. Assim,
podemos compreender melhor a época a partir da compreensão aprofundada do
vivido pelo sujeito, ao mesmo tempo em que podemos chegar a uma melhor
visão da subjetividade a partir do entendimento mais aprofundado das condições
históricas, sociais, políticas e culturais.
O estudo das “loucuras contemporâneas” é um exemplo de pesquisa que
realizamos em nosso laboratório. Estas não se reduzem aos chamados estados
limites, mas partem da consideração de uma dimensão social histórica que está
habitualmente ausente nas definições correntes destes quadros. Nós
reagrupamos sob este termo uma multiplicidade de formas tais como: as
patologias aditivas, as pseudo-neuroses, os transtornos ansiosos generalizados,
os estados de pânico, as fobias sociais, os distúrbios alimentares e outros. Os
afetos centrais, nestes casos, são sempre o tédio e a angústia. No fundamento
destas diferentes formas de loucuras contemporâneas situa-se, a nosso ver, uma
etiologia que não é estritamente intra-psíquica, nem mesmo intra-familiar, mas
antes de mais nada social e histórica.
Nossa pesquisa se efetua em três tempos: o tempo da narrativa transferencial, o
tempo analítico—regressivo e o tempo histórico-genético.
O tempo da narrativa transferencial se articula ao redor de questões tais como
“como você vê o mundo?” O tempo analítico-regressivo corresponde a uma
análise da realidade, a um esforço para datar exatamente o aparecimento destas
patologias. O tempo histórico- genético consiste no esforço para reencontrar o
presente, mais elucidado, compreendido, explicado. A consideração do contexto
de crise permite o retorno à situação individual dos pacientes.
O tempo da narrativa transferencial articula-se, em nossa pesquisa atual, ao
redor de uma entrevista não-diretiva de cerca de quarenta e cinco minutos com
cada participante. A instrução é a seguinte: “ Fale-me do modo como você vê o
mundo, ou a sociedade, nos dias de hoje, deixando suas associações fluírem
livremente.” O pesquisador não utiliza nenhum material particular, não grava
nem toma notas.
11
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A elaboração da narrativa escrita é elaborada pelo pesquisador cerca de dez
minutos após o encontro, enquanto o pesquisador associa livremente a partir das
lembranças que guarda acerca do encontro vivido. Uma semana após cada
entrevista,o pesquisador apresenta a narrativa de seus encontros a uma terceira
pessoa, o que permite a emergência de novos significados e a atribuição de
novos sentidos ao discurso do sujeito.
Chegamos a resultados interessantes examinando as narrativas, na medida em
que revelam um vivido de insegurança nas pessoas diagnosticadas como
estados-limites. Defrontamo-nos com variadas manifestações de insegurança,
que incluem mal-estar na vida familiar, angustias ligadas ao abandono ou
ameaça de abandono, maus tratos, instabilidades relacionais, instabilidades de
humor, ansiedades hipocondríacas, temor de perda do emprego e muitos outros.
O tempo analítico-regressivo evidenciou, no entorno do nascimento desta clinica,
a vigência de uma regressão sócio-política. Foi em plena crise social, após o
craque de vinte e nove, em plena ascensão do nazismo, que os analistas
começaram a encontrar um certo numero de pacientes diferentes dos demais, os
quais foram batizados por Stein, em 1938, como borderlines. Trata-se, portanto,
da clínica da insegurança. O tempo histórico-genético corresponde ao retorno em
direção ao presente mais elucidado, mais compreendido, mais explicado. Um laço
entre os estados limites e a vivência de insegurança parece, então, desenhar-se,
como vivência de insegurança relacionada a um contexto de crise social.
A sintomatologia, que caracteriza estes estados limites, exprimiria a extrema
variedade das defesas do ser humano face às exigências da sociedade. As
loucuras contemporâneas são características das sociedade de consumo, nas
quais fica muito evidente a busca de prazeres momentâneos e descartáveis,
como a sexualidade, a toxicomania, os jogos de azar, com a finalidade de
apaziguar a vivência de insegurança que as habitam, nunca apenas com o intuito
de diversão. Entretanto, tão-logo esta insegurança é aliviada pelo gozo, pela
sensação, pelo torpor ou pela embriaguez, a insatisfação renasce provocando a
repetição das condutas impulsivas.
As loucuras contemporâneas são um produto da insegurança gerada pelo neoiberalismo, resultando da injunção da sociedade que quer fugir do mal de viver
em busca da felicidade e do consumo crescente. Como conclusão, afirmamos que
se faz necessário reencontrar Foucault, por meio do desenvolvimento de uma
psicologia política e cidadã que permita considerar a loucura como um fenômeno
de civilização tão variável como qualquer outro fenômeno cultural, de modo que
o olhar que lhe lançamos é, sem dúvida, dependente da própria cultura na qual
está inscrita. Não é aconselhável que se perca de vista tal perspectiva, ao mesmo
tempo em que se faz fundamental pensar a psique como o produto da relação
com o outro, ou seja, como drama humano, na precisa acepção politzeriana do
termo.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Diferenças entre a noção de inconsciente
em Freud e em Winnicott1
Leopoldo Fulgencio
PUC-Campinas
Resumo: Neste artigo pretendo analisar algumas das principais mudanças
realizadas por Winnicott na compreensão da noção freudiana de inconsciente.
Mostrarei, inicialmente, analisando a obra de Freud, os diversos sentidos dados
ao termo inconsciente (o descritivo, o dinâmico e o sistêmico ou
metapsicológico), lembrando que a novidade da concepção freudiana de
inconsciente consiste justamente, para o próprio Freud, no sentido
metapsicológico dado ao termo, considerado, assim, como um sistema ou
instância de um aparelho psíquico, movido por forças e energias. Explicitarei,
então, que este inconsciente diz respeito ao que Freud encontrou no tratamento
de pacientes neuróticos, para os quais o recalque é o mecanismo de defesa por
excelência, sendo, por assim dizer, o protótipo deste inconsciente. Em seguida,
mostrarei que, para Winnicott, a noção freudiana de inconsciente diz respeito ao
inconsciente reprimido, e que, no caso de pacientes psicóticos, a cisão ocupa o
lugar do inconsciente reprimido. Isto leva Winnicott a considerar que há um outro
tipo de inconsciente denominável de primário, o qual teria uma natureza
diferente do inconsciente reprimido, dado não ser referido propriamente a
representações cognitivas nem a representações de estados mentais. Comentarei
ainda, ao final, que os diversos sentidos que Winnicott dá ao termo inconsciente
não correspondem ao uso do termo no seu sentido “sistêmico” ou
“metapsicológico”, reiterando, assim, afirmação de que Winnicott abandonou a
teorização de tipo metapsicológica na psicanálise, redescrevendo seus elementos
conceituais fundamentais.
Palavras-chave:
desenvolvimento
Freud,
Winnicott,
inconsciente,
metapsicologia,
1. Introdução
O primeiro fundamento da psicanálise, seu ponto de partida para compreensão
da vida psíquica, é dado pelo reconhecimento da existência de processos
psíquicos inconscientes (Freud, 1923a, p. 196), ainda que estes não sejam dados
à observação, tal como nos é dado o acesso ao corpo e às atividades da
consciência (Freud, 1940a [1985], p. 3). Freud chega a considerá-lo como o fator
que tornaria possível fazer a conexão entre estas duas extremidades conhecíveis,
1
Este artigo corresponde a um dos resultados de minha pesquisa de Jovem Pesquisador,
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCCampinas, apoiada
pela FAPESP (processo n. 06/51082-3). A perspectiva de análise aqui apresentada se
insere na perspectiva de interpretação da obra de Winnicott fundada pelos trabalhos de
Zeljko Loparic e Elsa Oliveira Dias (cf. no site do Centro Winnicott de São Paulo –
www.centrowinnicott.com.br.com.br –, outras informações e resultados de pesquisas
nesta mesma direção).
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
numa carta a Groddeck, de 19/junho/1917: “O inconsciente é certamente o
verdadeiro intermediário entre o somático e o psíquico, talvez ele seja o missing
link (elo faltante) tanto procurado” (Freud, 1960a, p. 345). A afirmação do
inconsciente como algo distinto da consciência e do corpo, define a psicanálise,
não a partir de uma hipótese filosófica, mas referida ao reconhecido de um fato
que torna possível levar a psicanálise ao rol das ciências da natureza. Diz Freud:
A diferenciação do psiquismo em consciente e inconsciente é a pressuposição
fundamental da psicanálise; apenas ela fornece a possibilidade de compreender
os processos patológicos de vida da alma, tão freqüentes quanto importantes, e
de os integrar à ciência. Ainda uma vez mais e dito de outra maneira: a
psicanálise não pode situar a essência do psiquismo na consciência; deve
forçosamente olhar a consciência como uma qualidade do psíquico, que pode
tanto se acrescentar a outras qualidades como também estar ausente. (Freud,
1923b, p. 258)
Este princípio é uma das condições para a compreensão do ponto de vista
psicanalítico, ele corresponde, talvez, àquilo que dá à psicanálise a sua
identidade como psicologia científica, caracterizando-a como a psicologia do
inconsciente (Freud, 1933a, p. 242, lição 35). Freud chega mesmo a considerar
que nessa concepção reside o primeiro xibolete da psicanálise (Freud, 1923b, p.
258), ou seja, a marca radical que estabelece os que podem partilhar de seu
ponto de vista daqueles que devem ser considerados partidários de outro mundo
teórico.
Em 1913, Freud ressalta a importância e o interesse que sua psicologia do
inconsciente pode e deve ter para as outras disciplinas do conhecimento, tais
como a filosofia, a história, a antropologia, a educação etc. (cf. Freud, 1913j).
Ele chega mesmo a afirmar, apoiado no reconhecimento desta hipótese central,
que a psicanálise talvez seja reconhecida importante para além de suas
qualidades terapêuticas: “O futuro provavelmente julgará que a importância da
psicanálise como ciência do inconsciente ultrapassa de longe sua importância
terapêutica” (Freud, 1926f, p. 291).
Desde a fundação da psicanálise esta distinção entre processos psíquicos
conscientes e inconscientes tem sido considerada como um ponto de flexão não
só na construção de uma psicologia científica, mas também na elaboração das
chamadas ciências humanas, em geral, e na filosofia em particular. Mais ainda,
no próprio desenvolvimento da psicanálise, vários psicanalistas reformularam a
concepção de inconsciente proposta por Freud.
Dentre a diversidade das propostas pós-freudianas, a apresentada por Donald
Winnicott representa um caso especial, principalmente em função de sua
oposição à teorização de tipo metapsicológico ou especulativa. Por um lado, este
reconhece que Freud deu um grande passo em direção à verdade científica
quando propôs a idéia de um Inconsciente Dinâmico (Winnicott 1962e, p. 360);
mas, por outro, ele não só abandonou a concepção de um inconsciente como um
sistema psíquico, uma ficção teórica, como também considerou que a proposta
14
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
de Freud era insuficiente para compreender o que ocorria com pacientes
psicóticos.
Loparic já comentou que Winnicott, ao lado do reconhecimento dos processos
psíquicos inconscientes tal como Freud os descreveu, deve-se considerar um
outro tipo de inconsciente, como “algo não-mental e mesmo não-psíquico”
((Loparic, 2006, p. 41). Tal referência a um outro tipo de inconsciente, abordado
por Winnicott, também estaria em consonância com a crítica de Heidegger à
psicanálise de Freud (cf. Loparic, 2001, seções 8 e 9).
Neste artigo, procuro focar a análise deste tipo de inconsciente, tal como
Winnicott referiu-se a ele, diferenciando-o do de Freud, aprofundando este tipo
de análise. Tratarei, pois, de explicitar o ponto de vista de Freud e o de
Winnicott, seguindo o texto destes autores, para expor as continuidades e
rupturas entre eles no desenvolvimento da teoria e do método psicanalítico.
2. O inconsciente para Freud
Na apresentação da posição freudiana explicitarei os seguintes pontos: os
diversos sentidos que Freud dá ao termo inconsciente (descritivo, dinâmico e
sistêmico); os conteúdos que Freud supõe
comporem o inconsciente; a
referência às neuroses, como fundamento empírico para a compreensão dos
processos psíquicos inconscientes; e, por fim, alguns comentários sobre os
aspectos filosóficos deste inconsciente, assim concebido por Freud.
2.1 O inconsciente descritivo, o dinâmico e o sistêmico ou metapsicológico para
Freud
Em primeiro lugar é preciso marcar que Freud reclama para si a caracterização
de um sentido específico para ao termo inconsciente, diferenciando-o dos
sentidos que este tem para outros ramos do conhecimento. Logo no início de seu
artigo “Note sur l´inconscient em psychanalyse”, ele afirma: “Eu gostaria de
expor em poucas palavras, e tão completamente quanto possível, o que o termo
‘inconsciente’ veio a significar em psicanálise, e somente em psicanálise” (Freud,
1912g, p. 173). Sua preocupação, nos principais textos nos quais trata deste
tema (especialmente em Freud, 1900a, Cap. IV; 1912g, 1915e) é a de
compreender os processos psíquicos inconscientes como algo que difere
claramente do que ocorre na consciência – inclusive mostrando a inadequação de
pensar estes processos psíquicos como análogos aos da consciência, seja criando
uma segunda consciência, ou ainda, propondo um “subconsciente” –, bem como
distinguindo-os dos processos fisiológicos. A noção de inconsciente, para Freud,
ao menos depois do abandono do “Projeto de uma psicologia científica” de 1897,
tem uma realidade psíquica própria e é pensada estritamente no âmbito da
psicologia.
O conceito de inconsciente esperou já longo tempo sua admissão nas portas da
psicologia. A filosofia e a literatura freqüentemente jogaram com ele, mas a
ciência não sabia como dele se servir. A psicanálise apoderou-se desse conceito,
15
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
o levou a sério, deu-lhe um conteúdo novo. Suas pesquisas alcançaram um
conhecimento de características até então insuspeitadas para o psiquismo
inconsciente, descobrindo algumas leis que o governam. Mas tudo isso não
significa, de forma alguma, que a qualidade do ser-consciente tenha perdido sua
importância para nós. Ela permanece a única luz que ilumina nosso caminho nas
trevas da vida psíquica. Dada a natureza particular de nosso conhecimento,
nosso trabalho científico em psicologia consistirá em traduzir os processos
inconscientes em processos conscientes e, assim, preencher as lacunas na
percepção consciente. (Freud, 1900a, p. 295, os itálicos são meus)
Em primeiro lugar trata-se de reiterar a distinção entre o consciente e o
inconsciente, para depois, especificar qual o sentido específico, na sua psicologia,
Freud dá ao inconsciente. Pode-se reconhecer, na verdade, três sentidos para o
termo inconsciente na obra de Freud: o descritivo, o dinâmico e o sistêmico.
Em primeiro lugar, trata-se de considerar que existem elementos psíquicos não
dados à consciência, mas que existem enquanto tais, não sendo também
redutíveis ao corpo. Estes elementos são, para ele, representações de conteúdos
cognitivos ou representações de estados mentais, ou ainda, noutros termos mais
comumente utilizados, representações carregadas de afeto e afetos como
representantes de estados mentais. Isto configuraria um sentido descritivo ao
termo inconsciente.
Em segundo, para Freud estes elementos psíquicos agem entre si, tanto no
presente quanto na consideração de uma história de vida. A consideração dos
fenômenos relacionados à sugestão hipnótica (especialmente Bernheim), bem
como da explicação do sintoma na histeria como sendo gerado por
representações inconscientes (como demonstraram Charcot e reafirmou Janet),
são uma prova, para Freud e antes de Freud, da existência de processos
psíquicos inconscientes agindo na determinação de comportamentos tanto
normais como patológicos. Freud também se apóia no exemplo evidente dos atos
falhos, para apresentar esta evidência de que há um inconsciente dinâmico,
como fator determinante da vida psíquica. Configurando, assim um segundo
sentido dado ao termo inconsciente.
Mas isto não era certamente uma novidade na história das idéias. O que Freud
apresenta verdadeiramente de novo, nesta sua primeira teoria sobre o
psiquismo, corresponde ao terceiro sentido dado ao termo inconsciente. Neste
caso Freud considerará que o inconsciente deve ser concebido como uma parte
(instância ou sistema) de um aparelho psíquico, um aparelho impulsionado por
supostas forças e energias psíquicas, as pulsões de auto-conservação em conflito
como as pulsões sexuais e a libido. Tanto a suposição de forças e energias
quanto a de um aparelho e suas instâncias, corresponde à utilização de
construções auxiliares de natureza especulativa, conceitos que não têm referente
intuitivo na realidade factual ou fenomênica.2 Trata-se, para Freud, da
2 Estas ficções teóricas correspondem à superestrutura especulativa da psicanálise, que
Freud também denomina, mais especificamente, de sua metapsicologia (cf. Fulgencio,
2003).
16
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
introdução de conceitos cuja validade é apenas heurística e jamais factual. A um
inconsciente assim concebido ele chama de inconsciente sistêmico ou o
inconsciente no seu sentido propriamente metapsicológico (cf. Freud, 1912g).
O que autorizaria Freud a fazer a hipótese de um inconsciente metapsicológico,
cujo sentido redescreve seus aspectos descritivos e dinâmicos encontrados
noutras perspectivas, dando a elas seu sentido psicanalítico? Certamente não há
prova empírica do inconsciente metapsicológico, mas tão somente a consideração
de que desta maneira temos um ganho de entendimento e de poder clínico. Por
um lado, trata-se de salientar que o psiquismo não pode ser reduzido à
consciência e que somente a suposição dos processos psíquicos inconscientes
pode completar as lacunas (séries causais) que permanecem quando tentamos
explicar como ocorrem e são gerados os atos-falhos, os sonhos e os sintomas.
Diz Freud: “Um ganho de sentido e de coerência é um motivo perfeitamente
justificável para ir além dos limites da experiência direta” (Freud, 1915e, pp.
205-206). Não se trata apenas de ter uma teoria coerente que explica um
fenômeno, mas sim que desta teoria também resulta ações clínicas efetivas:
Quando, ademais, disso resultar que a suposição da existência de um
inconsciente nos possibilita a construção de uma norma bem-sucedida, através
da qual podemos exercer uma influência efetiva sobre o curso dos processos
conscientes, esse sucesso nos terá fornecido uma prova indiscutível da existência
daquilo que havíamos suposto. (Freud, 1915e, pp. 205-206)
Este ponto de vista heurístico justifica, para Freud, sua maneira de conceber o
inconsciente; mais ainda, é ela que permite a Freud se diferenciar tanto da
concepção que alguns filósofos deram ao termo inconsciente, quanto da
concepção de Lipps (cuja dívida Freud reconhece tanto em 1900 como em 1939)
sobre o inconsciente.3 Na Interpretação dos sonhos, querendo marcar a
especificidade de sua concepção, Freud diz: “Não é sem intenção que digo ‘no
nosso inconsciente’, pois o que chamamos assim não coincide com o Ics dos
filósofos, nem por outro lado com o inconsciente em Lipps” (Freud 1900a, OCF.P,
v. 4, p. 669). Cabe, pois, esclarecer que diferenças são estas diferenças.
Diversos psicanalistas reconhecem que é nesta concepção metapsicológica do
inconsciente que repousa a fundação freudiana da psicanálise. Por exemplo, diz
Assoun:
Esta tese-mãe da psicanálise permite fundar a pretensão científica da psicanálise
num plano psicológico. Rompendo com a idéia de um inconsciente empírico ou de
um Inconsciente-príncipe, ele abra a via para a exploração metapsicológica: a
“pedra basilar” está na tese “sistêmica” – que vai se exprimir pela dimensão
tópica – e permite reinterrogar a dimensão dinâmica (conflito psíquico) e a
dimensão econômica (quantidades e intensidades). (Assoun 1997, p. 90)
3
Para uma análise mais detalhada da importância de Lips para Freud, veja Loparic
(2001c), bem como o texto de Lipps (2001 [1897]) citado no Interpretação dos sonhos
(Freud, 1900a, pp. 668-670).
17
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A consideração de um inconsciente metapsicológico, seja tal como Freud o
propôs, seja noutras perspectivas psicanalíticas pós-Freud (tal como em Lacan e
Bion), tem sido uma das características marcantes de um dos horizontes de
desenvolvimento da psicanálise. Não obstante, há aqueles que criticam a
teorização de tipo metapsicológica, considerando-a inadequada para a
compreensão da natureza humana. Certamente, tanto numa como noutra
perspectiva, a concepção de inconsciente, tal como Freud a propôs, foi alterada.
Na sua segunda teoria, elaborada após 19204, Freud proporá outra figuração
para o aparelho psíquico com novas instâncias (Id, Ego, superego) e um novo
par de pulsões (pulsões de vida versus pulsão de morte). Neste segundo quadro
teórico o termo inconsciente, no seu sentido estrito, passa a ser usado para
qualificar os conteúdos ou partes destas instâncias. Haveria no Ego e no
Superego não só conteúdos inconscientes, como também a própria instância (ou
parte delas, com seus elementos, orgânica e dinamicamente ordenados), seriam
e funcionariam de forma inconsciente. No caso do Id, Freud o considerará como
sendo aquilo que nos é desconhecido e inconsciente (Freud, 1923b, p. 258),
como a parte “obscura, inacessível de nossa personalidade” (Freud, 1933a, p.
156, Lição 31).
Pode-se dizer, em termos específicos, que Freud referiu-se ao termo Id tanto em
seu sentido metapsicológico (como uma instância de um aparelho psíquico) como
em seu sentido descritivo ou dinâmico (referindo-se aos seus conteúdos e ao
funcionamento individual ou associado destes).
Ainda que existam diferenças significativas entre a noção de inconsciente da
primeira tópica e a de Id na segunda, pode-se afirmar, como fazem Laplanche e
Pontalis, que “o lugar ocupado pelo Id na segunda tópica é o sistema
inconsciente (Ics) da primeira” (1967, p. 56).5 Estas diferenças, no entanto, não
modificam, grosso modo, o sentido mais geral da noção de inconsciente
concebida por Freud como o primeiro xibolete da psicanálise (Freud, 1923b, p.
258). Por um lado, o inconsciente continua sendo reafirmado no seu sentido
metapsicológico (seja na primeira tópica, com o inconsciente como instância de
um aparelho, seja na segunda, com o Id como instância), por outro faz com que,
no que se refere ao sentido descritivo e dinâmico do inconsciente na psicanálise,
seja necessário considerar que ao lado dos conteúdos recalcados também sejam
considerados outros conteúdos deste inconsciente.
4 A primeira figuração do aparelho foi realizada, grosso modo, em função da
operacionalidade destas construções auxiliares para compreensão das neuroses de
transferência. A segunda tópica, ou segunda figuração sistemática, também foi proposta
em função da sua operacionalidade explicativa, incluindo fenômenos clínicos (sadismo,
masoquismo, hipocondria, neuroses de guerra, compulsão à repetição etc.) para os quais
a primeira tópica mostrava-se inadequada. Cf. uma análise dos motivos desta mudança
em Fulgencio (2008b, pp. 319-323).
5 Laplanche e Pontalis discorrem sobre estas diferenças, mostrando que nem tudo que
está no Id corresponde ao recalcado, que há outra teoria das pulsões em jogo, outra
teoria do Eu (mudando a relação deste com as outras instâncias e com a biologia) etc. Cf.
Laplanche & Pontalis (1994 [1967], pp. 56-58).
18
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
2.2 Os conteúdos do inconsciente para Freud
Na Interpretação dos sonhos Freud refere-se aos elementos psíquicos
inconscientes como sendo representações, pensamentos, fantasias e desejos. No
“Le moi et le ça”, de 1923, ele diz que foi pela compreensão dos sintomas, dos
sonhos e dos atos falhos6 que ele sentiu-se obrigado a reconhecer a existência de
processos psíquicos inconscientes:
Descobrimos — isto é, fomos obrigados a presumir — que existem idéias ou
processos mentais muito poderosos (e aqui um fator quantitativo ou econômico
entra em questão pela primeira vez) que podem produzir na vida mental todos os
efeitos que as idéias comuns produzem (inclusive certos efeitos que podem, por
sua vez, tornar-se conscientes como idéias), embora eles próprios não se tornem
conscientes. (Freud, 1923b, pp. 258-260, os itálicos são meus)
Duas considerações são aqui fundamentais. Primeiro a que se refere ao conteúdo
do inconsciente como sendo, em última instância, as representações (cognitivas
e de estados psíquicos) carregadas de afeto. Segundo, o reconhecimento do
mecanismo do recalque como sendo a referência para pensar a gênese do
inconsciente enquanto um conjunto de representações recalcadas (ainda que
Freud reconheça que o recalcado não corresponda à totalidade do inconsciente) e
como um sistema que reúne estes elementos inconscientes com uma dinâmica
específica de funcionamento (à qual ele denominou de processo primário).
No primeiro caso, cabe ainda esclarecer a distinção entre representações (de
coisa e por meio da palavra) e afetos, bem como o que é que Freud quer dizer
quando se refere às pulsões, como sendo o conteúdo do inconsciente. Ao referirse às representações propriamente inconscientes, Freud afirma: “A
representação inconsciente é somente a representação de coisa” (Freud, 1915e,
p. 300). Ele considera que a representação por meio da palavra exige já um tipo
de elaboração que articula à representação de coisa algo relacionado aos
conceitos (dado que palavras são, propriamente dizendo, conceitos), afirmando
que a articulação entre representação de coisa e representação por meio da
palavra, corresponde a uma característica do sistema préconsciente-consciente.
Por outro lado, o afeto propriamente dito não é pensado em seus aspectos de
excitação fisiológica, mas sim nos seus aspectos psicológicos, ou seja, o afeto é
um elemento psíquico e, neste sentido é também um tipo de representação mais
primária do que está ocorrendo.
Como afirma Laplanche e Pontalis, o afeto “é a expressão qualitativa da
quantidade de energia pulsional e de suas variações” (Laplanche & Pontalis, 1994
[1967], p. 12), correspondendo, pois, a um aspecto das pulsões. As pulsões, por
sua vez, ou melhor, os representantes das pulsões, também são, para Freud,
aquilo que compõe o inconsciente: “O núcleo do Ics é composto de
6
Freud diz (1916-17) que a ordem da exposição (atos-falhos, sonhos, sintomas)
corresponde à ordem inversa das suas descobertas clínicas, mas que ele faz tal inversão
por motivos pedagógicos.
19
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
representantes de pulsões que procuram descarregar seu investimento, logo, de
moções de desejo” (Freud, 1915e, p. 225).
É comum fazer a distinção entre afeto e representação no quadro da teoria
psicanalítica freudiana. Caberia, aqui, distinguir entre uma noção descritiva do
afeto e outra metapsicológica: a descritiva diz respeito ao fato ou elemento
psíquico diretamente ligado ou associado a um sentimento ou afecção corporal (a
uma excitação) ou, noutros termos, a qualidade psíquica de uma excitação ou
sentimento; e a metapsicológica, também associada ao termo “quantum de
afeto”, que diz respeito à consideração de uma “energia” associada aos
sentimentos e/ou afecções, que pode ser deslocada, aumentada, diminuída ou
descarregada, o que caracterizaria a definição do “afeto”, formulada por
Laplanche e Pontalis, como sendo “a expressão quantitativa da quantidade de
energia pulsional e suas variações” (p. 12). Por outro lado, o termo
“representação”, refere-se, mais diretamente a um fato ou elemento
propriamente psíquico, e não apenas uma qualidade ou um investimento
energético. O que importa a Freud, tanto na consideração do afeto como da
representação7, são os elementos psíquicos que os caracterizam.
Cabe, ainda, retomar o comentário de Freud sobre a maneira como ele concebe
as pulsões como sendo conteúdos do inconsciente, para explicitar que, para ele,
o conteúdo do inconsciente é sempre uma representação. Diz Freud:
Considero que a oposição entre consciente e inconsciente não se aplica às
pulsões. Uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da consciência, só o pode a
representação que a representa. Mas, mesmo no inconsciente, uma pulsão só
pode ser representada por uma representação. Se a pulsão não se prendeu a
uma representação ou não se manifestou como um estado afetivo, nada
poderemos conhecer sobre ela. Não obstante, quando falamos de uma moção
pulsional inconsciente ou de uma moção pulsional recalcada, trata-se de uma
inofensiva negligência de expressão. Nós não podemos entender por isso nada
além do que uma moção pulsional cujo representante de representação é
inconsciente, pois nada mais entra em consideração. (Freud, 1915e, p. 216)
7
Freud, ainda, diferencia entre representação de coisa (Sachvorstellung ou
dingvorstellung) e representação-por-meio-de-palavra (Wortvorstellung). Aqui um
esclarecimento de Kant pode ajudar a compreender a distinção entre estes termos: “O
termo genérico é a representação em geral (repraesentatio). Subordinado a este, situa-se
a representação com consciência (perceptio). Uma percepção que se refere simplesmente
ao sujeito, como modificação do seu estado, é sensação (sensatio); uma percepção
objetiva é conhecimento (cognitio). O conhecimento, por sua vez, é intuição ou conceito
(intuitus vel conceptus). A primeira refere-se imediatamente ao objeto e é singular, o
segundo refere-se mediatamente, por meio de um sinal que pode ser comum a várias
coisas. O conceito é empírico ou puro e ao conceito puro, na medida em que tem origem
no simples entendimento (não numa imagem pura da sensibilidade), chama-se noção
(notio). Um conceito extraído de noções e que transcende a possibilidade da experiência
é a idéia ou conceito da razão. Quem uma vez se habitue a esta distinção achará
insuportável ouvir chamar idéia à representação da cor vermelha, que nem sequer se
deverá chamar noção (conceito do entendimento)” (Kant, 1997 [1787], p. B 377).
20
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
No seu sentido descritivo, o conteúdo do inconsciente são as representações
cognitivas e as representações de estados psíquicos, ambas carregadas de afeto,
mas no seu sentido metapsicológico, o inconsciente deve ser considerado como
impulsionado pelas energias (investimentos) e forças (pulsões) que estão
investidas nestas representações.
Basta aqui, retomar um resumo, feito por Freud, para caracterizar as
características e dinâmicas dos processos inconscientes: a isenção de contradição
mútua, o processo primário (mobilidade dos investimentos), a intemporalidade e
a substituição da realidade externa pela psíquica — tais são as características
que podemos esperar encontrar nos processos pertencentes ao sistema Ics.
(Freud, 1915e, p. 225)
Ao pensarmos na segunda tópica freudiana, considerando as três instâncias
psíquicas (Id, Ego, super-Ego), cabe também perguntar qual o conteúdo
inconsciente destas instâncias. No caso do Ego e do Supergo, seus conteúdos
inconscientes podem ser considerados como sendo representações ou conjunto
de representações que foram recalcadas e funcionam fortemente unidas,
reivindicando um mesmo objetivo ou satisfação. No entanto, no caso do Id,
Freud faz algumas distinções que diferenciam seus conteúdos das representações
presentes no Ego e no Superego.
Por um lado ele afirma que “o recalcado se mescla e se funde com o Id” (1923b,
p. 37), mas isto não significa que tudo no Id corresponde ao que foi recalcado,
pois haveria nele uma parte que não foi propriamente recalcada, sendo a parte
recalcada do Id “na verdade, apenas uma parte dele” (Freud, 1923b, p. 37).
Freud considerará que no Id está presente, como seu fundamento, tudo aquilo
que “a biologia e os destino da espécie humana produziram e nos legaram”
(Freud, 1923b, p. 280), referindo-se a estes conteúdos, pois, como sendo uma
expressão direta das pulsões que impulsionam a vida psíquica. Mas as pulsões,
mesmo no inconsciente, só podem ser encontradas na forma de representações
(cf. Freud, 1915e, p. 216).
Freud considerar que o conhecimento desta parte do Id, no entanto, advém de
uma projeção daquilo que a psicanálise aprendeu com o estudo das formações de
sintomas neuróticos (idem), e cujo saber, neste sentido, é “essencialmente
negativo disto [do que se conhece pelas neuroses], não se deixando descrever a
não ser como oposto ao Eu [Ego]” (Freud, 1933a, p. 156, Lição 31). Ou seja,
para concluir, os conteúdos descritivos e dinâmicos do Id são, pois,
representações, pensadas de forma análoga às representações recalcadas
observadas no tratamento das neuroses de transferência.
2.3 O inconsciente pensado a partir das neuroses
Ao final do seu texto “O inconsciente”, de 1915, Freud reitera o fato de que tudo
o que ele identificou como sendo o inconsciente deriva de sua clínica com
pacientes neuróticos: “Eis aí, tudo o que pudemos agrupar nas discussões
precedentes, tudo que podemos dizer sobre o Ics., tanto quanto nos
contentemos de extrair no que conhecemos da vida do sonho e das neuroses de
21
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
transferência” (Freud, 1915e, p. 234). O que justifica e dá valor às afirmações de
Freud sobre o inconsciente, é, pois, o reconhecimento do campo empírico sobre o
qual ele trabalhou: o campo das neuroses de transferência.
Freud considera que o mecanismo básico de defesa contra as angústias, presente
e constituinte da própria neurose, é o mecanismo da repressão ou recalque. Isto
faz com que Freud considere que a noção de recalque (ou repressão) está na
base do seu conceito de inconsciente: “Nosso conceito de inconsciente, nós o
obtemos, pois, a partir da teoria recalcamento” (Freud, 1923b, pp. 259-260).
Ainda que Freud diga que aquilo que é recalcado seja apenas uma parte do
inconsciente (Freud, 1915e, p. 205), ele tem no mecanismo do recalque um
modelo de referência para pensar o que é o inconsciente. Diz Fred: “o recalcado
é para nós o protótipo do inconsciente” (Freud, 1923b, pp. 259-260).
Freud está ciente que o recalque propriamente dito, exige que já esteja dada a
distinção entre a consciência e o inconsciente:
Fomos forçados a concluir, pela experiência clínica no contato com as neuroses
de transferência, que a repressão [Verdrängung] não é um mecanismo de defesa
presente desde o início, que ele só pode aparecer depois que seja instaurada
uma diferenciação marcada entre atividade da alma consciente e atividade da
alma inconsciente, e que sua essência consiste na separação e manutenção à
distância em relação ao consciente. (Freud, 1915d, p. 190)
Essa repressão [Verdrängung] não é, pois, fundante dessas instâncias
(inconsciente e consciente). É preciso especular a existência de uma operação
anterior, que realizaria, então, essa fundação, denominada “repressão originária”
(Freud, 1915d, p. 191).
Não está aqui em questão os detalhes e a explicação de como funciona e quais
são os conteúdos reprimidos nesse processo – tanto na sua primeira fase
(repressão [Verdrängung] originária) quanto na sua segunda fase (a repressão
propriamente dita) –, mas sim ressaltar que se trata de uma hipótese lógica,
necessária para o bom funcionamento das explicações dinâmicas pretendidas.
Freud sabe claramente das dificuldades que apresenta um conceito desse tipo
[Verdrängung], que nada tem de empírico, ainda que os dados empíricos (vindos
dos tratamentos psíquicos) não estejam em desacordo com ele, pelo contrário,
corroboram sua aplicação: “A possibilidade de uma repressão [Verdrängung] não
é, teoricamente, fácil de deduzir” (Freud, 1915d, p. 189).
A análise dos mecanismos que constituem o inconsciente ou que mantêm ou
permitem que uma representação permaneça inconsciente ou torne-se, parcial
ou totalmente, consciente – o recalque, a censura, os mecanismos de
deslocamento e condensação, a repressão ou supressão, princípio do prazer,
procura de descarga das excitações – certamente esclarecia mais ainda a
concepção freudiana do inconsciente, mas não mudaria o rumo nem
acrescentaria algum ponto novo na argumentação necessária a este artigo, uma
vez que se trata de reafirmar tanto a constituição, conteúdo do inconsciente,
22
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
como os aspectos metapsicológicos apresentados por Freud para a sua
compreensão.
Para que o recalcamento possa ocorrer é necessário que já exista um lugar para
onde as representações, então recalcadas, possam ser enviadas, o que faz Freud
supor que antes do recalcamento propriamente dito, agora denominado
secundário, exista um recalcamento primário.8 O agente do recalcamento
secundário é certamente o Eu, mas para o recalcamento primário isto não é
ainda possível. Freud supõe, então, um mecanismo de contra-investimento que
levaria à constituição de um recalque originário, resolvendo apenas em termos
lógicos ou teóricos o problema, mas deixando insatisfatória a compreensão
descritiva desta dinâmica.
Ao desenvolver a segunda tópica, este mesmo problema se apresenta, quando
Freud tenta explicar como nasce o Eu, levando-a a considerar que o Eu nasce por
diferenciação do Isso. Sem conseguir uma explicação muito clara sobre como se
dá tal diferenciação, restringindo-se a fazer algumas metáforas (por exemplo,
considerando a constituição do eu como se fosse um processo de cicatrização de
uma ferida no isso, em contato com o mundo externo), Freud reafirma o
processo de recalcamento como sendo um elemento central para a constituição
deste inconsciente.
É importante lembrar que, para Freud, nem tudo aquilo que é inconsciente é
fruto do recalque, ainda que todo recalcado seja inconsciente (Freud, 1923b, pp.
262-263). Ao analisar, por exemplo, as resistências na análise ele dirá que há
uma parte do Eu que resiste inconscientemente e este inconsciente, mesmo não
sendo recalcado, funciona como o recalcado. É neste sentido que o recalcado
permanece, para Freud, em todos os casos, como sendo o protótipo do
inconsciente. Certamente, este inconsciente não-recalcado, apontado por Freud,
permaneceu como um aspecto pouco desenvolvido da teoria psicanalítica pósFreud.
Há, na terminologia utilizada na segunda tópica, uma oscilação do sentido dado
aos termos Id, Ego e Super-Ego, ora referindo-se a eles no seu sentido descritivo
e dinâmico, ora no seu sentido metapsicológico; daí, na utilização acima eu ter
preferido usar os termos Eu, Isso e Super-Eu para referir-me aos aspectos
descritivos e dinâmicos destes processos psíquicos e reservar os termos ID, Ego
8
Diz Freud: “Necessitamos, por conseguinte, de outro processo que, no primeiro caso,
mantenha o recalcamento e, no segundo, assegure o seu estabelecimento e
continuidade. Esse outro processo só pode ser encontrado mediante a suposição de um
contra-investimento, por meio da qual o sistema Pcs. se protege da pressão que sofre por
parte da representação inconsciente. Veremos, por meio de exemplos clínicos, como tal
contra-investimento, atuando no sistema Pcs., se manifesta. É ele que representa um
dispêndio durável de um recalcamento originário, mas que garante também a sua
permanência. O contra-investimento é o mecanismo exclusivo do recalcamento
originário; quando do recalcamento propriamente dito (pós-recalque), a ele se acrescenta
ao retirada de investimento pcs. É bem possível que seja precisamente o investimento
retirado da representação, que seja utilizado pelo contra-investimento” (Freud, 1915e, p.
220).
23
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
e Super-Ego para o sentido metapsicológico, que os toma como instância de um
aparelho psíquico.
No tratamento de pacientes neuróticos Freud considera ter construído um
método de tratamento eficaz, cujo objetivo, grosso modo, consiste em trazer
para o consciente aquilo que foi recalcado, não só a representação recalcada,
mas o investimento a ela associado. Diz Freud:
Como chegar ao conhecimento do inconsciente? Certamente, só o conhecemos
como algo consciente, depois que ele sofreu transformação ou tradução para
algo consciente. A cada dia, o trabalho psicanalítico nos mostra que esse tipo de
tradução é possível. A fim de que isso aconteça, a pessoa sob análise deve
superar certas resistências — resistências como aquelas que, anteriormente,
transformaram o material em questão em algo recalcando-o, afastando-o do
consciente. (Freud, 1915e, p. 205)
Freud reconhece no recalque o processo central que gera, ao mesmo tempo, o
conteúdo inconsciente e o fundamento tanto dos sintomas quanto da vida
psíquica não-patológica.
Freud percebe, no entanto, que talvez seja no estudo das psicoses que alguns
pontos obscuros de sua concepção sobre o inconsciente poderiam ser resolvidos:
Por certo não é muito e em alguns pontos dá a impressão de obscuridade e
confusão, e sobretudo lamenta-se que não seja possível colocar o Ics num
contexto já conhecido ou de o inserir numa série. Só a análise de uma das
afecções que denominamos de psiconeurose narcisista promete proporcionar-nos
concepções através das quais o enigmático Ics ficará mais ao nosso alcance,
tornando-se, por assim dizer, tangível. (Freud, 1915e, p. 234)
A máxima freudiana, para o tratamento dos neuróticos, que visa trazer o
inconsciente para a consciência, é redutível à fórmula “recordar, repetir,
elaborar”, considerando, então, que sãos as representações reprimidas (e seus
investimentos correlatos) que devem ser reinvestidas (elaboradas) dando um
novo destino para o conflito entre as representações (fundamento da vida
psíquica). Dizendo em termos mais propriamente metapsicológicos: o passado
vivido traumaticamente, ou seja, investido de uma carga energética que não
encontrou meios adequados pra descarregar-se, precisa ser retomado para que s
investimentos possam ser rearranjados, distribuídos entre outras séries de
representações.
3. A reformulação da concepção de inconsciente feita por Winnicott
Winnicott considera que a noção de inconsciente dinâmico proposta por Freud é
uma das grandes contribuições da psicanálise para a construção de uma ciência
dedicada ao estudo objetivo da natureza humana. No entanto, Winnicott não só
fará uma redescrição desta descoberta freudiana, como também afirmará que
esta não cobre a totalidade do que podemos chamar de inconsciente.
24
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Para explicitar as propostas de Winnicott me proponho, agora, a mostrar que ele:
1. caracterizou a descoberta de Freud como sendo a de um inconsciente
reprimido, pensado a partir do tratamento de pacientes neuróticos; 2. descobriu
que nas personalidades cindidas não havia um lugar para este inconsciente
reprimido, obrigando-o a supor um outro tipo de inconsciente; 3. considerou que
este tipo de inconsciente também está presente no processo de amadurecimento
saudável, quando ainda não há uma identidade unitária constituída; 4. mantevese restrito, em sua teorização, aos sentidos descritivos e dinâmicos do
inconsciente, abandonando as teorizaçãoes metapsicológicas.
3.1 O inconsciente reprimido para Winnicott
Ao caracterizar o que é a neurose, Winnicott diz:
Neurose é o termo empregado para descrever a doença das pessoas que ficam
doentes no estágio do complexo de Édipo, no estágio de experimentar
relacionamentos entre três pessoas totais. Os conflitos originados desses
relacionamentos levam a medidas defensivas que, se se tornam organizadas em
um estado relativamente rígido, se qualificam para o rótulo de neurose. Estas
defesas já foram enumeradas e claramente enunciadas. Obviamente, o modo
como se erigem e se tornam fixas depende em certa extensão, talvez em grande
extensão, da história do indivíduo anterior à sua chegada ao estágio das relações
triangulares entre pessoas completas. (Winnicott, 1963c, p. 197)
Os conflitos vividos pelo neurótico dizem respeito à sua vida instintiva, tendo
origem num momento em que esta pode ser dita a vida de um andarilho envolto
com as questões identificatórias, relacionais e interpessoais, num contexto
familiar (cf. Winnicott, 1958m [1956], p. 37). Ao referir-se ao que é que vive o
neurótico, Winnicott afirma tratar-se de: “Conflitos inconscientes de amor e ódio,
de tendências homossexuais e heterossexuais, e assim por diante, levam à
organização de padrões de defesa, e são estes padrões de defesa que constituem
a neurose organizada” (1958m [1956], p. 38).
Ao falar das defesas, Winnicott está se referindo, principalmente, à repressão:
a defesa principal [na neurose] é a repressão. Esta é a razão pela qual a
psicanálise, em sua forma clássica, é um tratamento que lida com pacientes que
têm o ego sadio até o ponto em que lidam com a ambivalência por meio da
repressão e sem um rompimento da estrutura do ego, e o trabalho principal da
análise do paciente com sintomas psiconeuróticos consiste em trazer à
consciência o inconsciente reprimido. Isto é feito mediante a interpretação, dia a
dia, do relacionamento do paciente com o analista, à medida que este
relacionamento gradativamente evolui, e, ao evoluir revela o padrão da própria
25
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
história do paciente no nível do complexo edipiano e na idade de 2-3-4 anos.
(Winnicott, 1989vl, pp. 56-57)
Para que este mecanismo possa existir e agir é necessário que a criança tenha
amadurecido a ponto de ter um eu enquanto uma identidade unitária, sentindose como uma pessoa inteira que se relaciona com os outros como pessoas
inteiras. Só tendo um Eu assim constituído é possível haver um agente para este
tipo de ação psíquica. Diz Winnicott:
na psiconeurose, o paciente existe como pessoa, é uma pessoa total, que
reconhece objetos como totais; acha-se bem-alojado em seu próprio corpo e a
capacidade de relacionamentos objetais está bem-estabelecida. Desde este ponto
de vista, o paciente encontra-se em dificuldades, e estas surgem dos conflitos
que resultam da experiência de relacionamentos objetais. Naturalmente, os
conflitos mais graves aparecem em conexão com a vida instintual, isto é, as
variadas excitações com acompanhamentos corporais que têm como fonte a
capacidade que o corpo possui de ficar excitado – de modo geral e localizado.
(Winnicott, 1989vl, p. 53)
O paciente neurótico padece, pois, de uma série de conflitos que fazem parte de
seu mundo interno, conflitos que estão associados tanto a seus instintos
(integrados, então, na sua unidade conquistada, e vividos como algo que advêm
deles mesmos) como a seus desejos e fantasias a estes ligados, conflitos que,
grosso modo, não estão acessíveis à sua consciência, tal como ocorre na
histérica que sofre de reminiscências. Winnicott reitera esta concepção bem
freudiana, caracterizando, então, o inconsciente do neurótico como sendo um
inconsciente reprimido: “Para mim, a pista para o conflito subjacente à doença
que denominamos de psiconeurose reside dentro do indivíduo. O analista do
paciente psiconeurótico acha-se envolvido, como é bem-sabido, na análise do
inconsciente reprimido do indivíduo” (Winnicott, 1968c [1967], p. 152).
Nos neuróticos, diz Winnicott, há “uma forma particular de inconsciente e ele
[Freud] o chamou de inconsciente reprimido” (2945h, p. 35), o inconsciente que
depende, então, da existência de uma pessoa que amadureceu a ponto de ser
uma pessoa inteira nos relacionamentos interpessoias, enfim, um neurótico
envolto com a administração da sua instintualidade nos seus relacionamentos.
Diz Winnicott:
Neurose envolve a repressão e o inconsciente reprimido, que é um aspecto
especial do inconsciente. Conquanto o inconsciente seja em geral depositário das
áreas mais ricas do self da pessoa, o inconsciente reprimido é o cofre em que se
guarda (a grande custo, em termos de economia mental) o que é intolerável e
está além da capacidade do indivíduo de absorver como parte do seu eu e de sua
experiência pessoal. O inconsciente propriamente dito pode ser alcançado em
sonhos e contribui fundamentalmente para todas as experiências mais
significativas do ser humano; em contrapartida, o inconsciente reprimido não
está liberado para seu uso e a aparece somente como uma ameaça ou fonte de
reações formativas (por exemplo, sentimentalismo indicando ódio reprimido).
Tudo isso é material da psicologia dinâmica. A repressão faz parte da neurose,
26
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
assim como o splitting da personalidade faz parte da psicose. (Winnicott, 1963c,
p. 197)
Reconhecido que o inconsciente reprimido diz respeito aos neuróticos, àqueles
que tiveram as condições de amadurecimento para chega a uma unidade
unitária, cabe, então, perguntar: o que ocorre, em termos da constituição ou
dinâmica dos processos psíquicos inconscientes, nos casos em que esta unidade
não foi alcançada, seja nos casos de patologia seja nos casos, na saúde, em que
tal maturidade está em vias de ser alcançada?
3.2 Para além do inconsciente reprimido
Ao comentar uma classificação nosográfica muito geral, Winnicott dirá que a
alternativa principal à neurose é a psicose (cf. Winnicott, 1989vl, p. 53).
Certamente, entre os neuróticos e os psicóticos, há um conjunto de outras
possibilidades intermediárias, dentre as quais ele colocará todos os tipos de
depressão, além de incluir uma série de sintomas tais como os relativos aos
transtornos psico-somáticos e a atitude anti-social que poderão, inclusive, estar
presente nos dois extremos (cf. Winnicott, 1955d [1954], pp. 375-376). Não é a
classificação psicopatológica que está aqui em foco, mas a distinção entre a
compreensão dos processos psíquicos inconscientes em cada um destes
extremos.
A diferença fundamental entre neuróticos e psicóticos é a questão da pessoa ter
chegado num estágio de amadurecimento no qual se sente e se relaciona com os
outros como uma pessoa inteira. Há um EU que pode, inclusive, defender-se de
suas angústia utilizando a repressão como mecanismo de defesa das angústias aí
presentes, dando origem ao inconsciente reprimido. Diz Winnicott, a respeito dos
neuróticos:
Em comparação na psiconeurose, o paciente existe como uma pessoa, é uma
pessoa total, que reconhece objetos como totais; acha-se bem-alojado em seu
próprio corpo e a capacidade de relacionamentos objetais está bem-estabelecida.
Desde este ponto de vista, o paciente encontra-se em dificuldades, e estas
surgem dos conflitos que resultam da experiência dos relacionamentos objetais.
(Winnicott, 1989vl, p. 53)
No entanto, há de se considerar duas situações: numa, caso patológico, a
situação daquelas pessoas “cujos estágios mais iniciais de desenvolvimento são
incompletos e esta qualidade domina o quadro clínico” (Winnicott, 1989vl, p. 53);
noutra, caso da saúde, o processo de amadurecimento ainda não chegou ao
estágio em que há uma pessoa inteira, com um mundo interno e um externo
bem diferenciados, que se relaciona com os outros também tomados e
reconhecidos como pessoas inteiras. Focando minha atenção no primeiro tipo de
caso, diz Winnicott sobre os psicóticos:
Digamos que, na psicose, há um transtorno que envolve a estrutura da
personalidade. Pode-se mostrar que o paciente não se acha desintegrado, ou
irreal, ou fora de contato com seu próprio corpo ou com aquilo que nós, como
27
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
observadores, chamamos de realidade externa. Os problemas do psicótico são
desta ordem. (Winnicott, 1989vl, p. 53)
Pacientes psicóticos são pessoas não integradas, a cisão é a característica
dominante. Neste caso não é possível considerar um inconsciente reprimido, pois
este exige condições que ainda não foram alcançadas. Winnicott afirma:
“Não é possível a uma personalidade cindida ter um inconsciente, por não haver
lugar para ele ficar” (1964h, p. 370). O tratamento destes pacientes, cuja
personalidade está cindida, não corresponde a trazer um inconsciente reprimido
à tona, mas a outro tipo de trabalho que diz respeito à tarefa de lidar com a cisão
do paciente, em busca de dar as condições ambientais que lhe possibilitem
amadurecer (integrar-se) em direção a constituição desta unidade chamada EU.
Diz Winnicott:
Em contraste, onde jaz a esquizofrenia, o analista ou quem quer que esteja
tratando o paciente ou administrando o caso, encontra-se envolvido na
elucidação de uma cisão na pessoa do paciente, o extremo de uma dissociação. A
cisão toma o lugar do inconsciente reprimido do psiconeurótico. (Winnicott,
1968c [1967], p. 152)
No seu artigo “Medo do colapso”, de 1974, Winnicott afirma que alguns pacientes
temem viver um tipo de loucura que na verdade já ocorreu, um colapso já vivido,
mas que não pode ser experimentado. Diz Winnicott:
Segundo minha experiência, existem momentos em que se precisa dizer a um
paciente que o colapso, do qual o medo destrói-lhe a vida, já aconteceu. Trata-se
de um fato que se carrega consigo, escondido no inconsciente. Este último aqui,
não é exatamente o inconsciente reprimido da psiconeurose, nem, tampouco, o
inconsciente da formulação freudiana da parte da psique que se acha muito
próxima do funcionamento neurofisiológico. tampouco se trata do inconsciente de
Jung, que eu diria ser todas aquelas coisas que se passam em cavernas
subterrâneas, ou (em outras palavras) a mitologia do mundo, nas quais há um
conluio entre o indivíduo e as realidades psíquicas internas maternas. Neste
contexto especial, o inconsciente quer dizer que a integração do ego não é capaz
de abranger algo. O ego é imaturo demais para reunir todos os fenômenos
dentro da área da onipotência pessoal. (Winnicott, 1974, p. 73)
O que fica “guardado” neste inconsciente não é, pois, nenhum conteúdo, mas
algo que ainda não foi experienciado, algo que fica, por assim dizer à espera de
melhores condições ambientais e pessoais para ser, então, experienciado. Para
fornecer um conteúdo mais intuitivo a tal fato, Winnicott o compara, fazendo
uma analogia, com o que ocorre com o bulbo e a flor à qual dará origem:
Tentando encontrar uma analogia, vi um bulbo de jacinto a ser plantado em uma
tigela. Pensei: há um odor maravilhoso trancado naquele bulbo, embora
soubesse, naturalmente, não existir um lugar no bulbo em que o odor se ache
trancado. A dissecação do bulbo não proporcionaria a quem a fizesse, a
experiência de uma fragrância de jacinto, se o lugar apropriado estivesse por ser
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
alcançado. Apesar disso, existe no bulbo um potencial que acabará se tornando
um perfume característico, quando a flor se abrir. Isto não passa de uma
analogia, mas poderia transmitir um retrato do que estou tentando enunciar. Faz
parte importante de minha tese que a loucura ou o colapso de defesas originais,
se viesse a ser experienciado, seria indescritivelmente doloroso. (Winnicott,
1989vl, pp. 99-100)
O que ele está querendo dizer exatamente, quando diz que algo foi vivido mas
não foi experienciado? Como isto é possível, que tipo de dinâmica está presente
e que tipo de vivência é esta? Ele está se referindo a acontecimentos que tiveram
lugar nas fases iniciais do processo de amadurecimento, quando estes pacientes
não tinham chegado ainda num estado de integração que as possibilitava viver
tais acontecimentos como uma pessoa inteira, ou seja, este tipo de trauma teria
ocorrido quando não havia, ainda, uma pessoa capaz de experimentar tal falha
ambiental. Diz Winnicott, esclarecendo este tipo de situação:
No caso mais simples possível, houve, portanto, uma
a ameaça de loucura foi experienciada, mas a
impensável. Sua intensidade acha-se mais além da
organizam-se imediatamente, de maneira que a
experienciada. Por outro lado, contudo, ela foi
(Winnicott, 1989vh, p. 99)
fração de segundo em que
ansiedade neste nível é
descrição e novas defesas
loucura de fato, não foi
potencialmente um fato.
Nas fases iniciais do amadurecimento, para Winnicott, não há um self que tenha
existência independente do ambiente, e nestes casos em que o ambiente se
mostra não-confiável ou mesmo invasivo, que possa apreender as falhas
ambientais. Nestes momentos mais primitivos, marcados pela imaturidade do
bebê, suas necessidades (tanto instintuais quanto relacionais) o impulsionam
para procurar algo em algum lugar, sem que ele tenha, neste momento, um
sentimento ou integração do self. Simplesmente não há, ainda, uma pessoa que
possa experimentar tal situação. Não obstante, o trauma é vivido: um fato
ocorreu e, de alguma forma ficou registrado. Este fato é dito algo impensável
porque não só não há ainda um eu que possa propriamente pensar, mas também
porque ocorre um tipo de aniquilamento do próprio ser da criança ou do bebê;
daí a denominação destes fatos como gerando “agonias impensáveis”. Ao
procurar caracterizar o que seriam estas agonias impensáveis, Winnicott diz:
O mais próximo que dele podemos chegar é tomar o que se acha disponível na
ansiedade psicótica, tais como: desintegração; sentimento de irrealidade; falta
de relacionamento; despersonalização ou falta de coesão psicossomática;
funcionamento intelectual ex-cindido; queda eterna; terapia eletroconvulsiva
(ECT), com pânico como sentimento generalizado, o que conter qualquer um dos
acima mencionados. (Winnicott, 1989vh, p. 99)
Mesmo não havendo ali uma identidade unitária, este fato ocorre e é vivido pela
pessoa que ainda não é uma unidade. Algo foi vivido, guardado na memória,
certamente não propriamente como um conteúdo reprimido nem como algo que
possa ser, no sentido estrito do termo, lembrado, mas permanecerá como algo
29
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
que faz parte da psique daquela pessoa. Winnicott diz que algo foi vivido, mas
não foi experienciado:
Apesar disso, podemos observar, que sempre que chegamos clinicamente a
qualquer uma dessas coisas, sabemos que existe alguma organização do ego
capaz de sofrer, o que significa prosseguir sofrendo de maneira a ficar ciente do
sofrimento. Tem-se de tomar o cerne da loucura como sendo algo muito pior, por
causa do fato de que ele não pode ser experienciado pelo indivíduo, que, por
definição, não possui a organização de ego para sustentá-lo e, dessa maneira,
experiênciá-lo. (Winnicott, 1989vl, p. 100)
Muitos dos pacientes que viveram este tipo de “agonia impensável” e que não
puderam, pois, experimentar o que foi vivido, têm uma sensação de vazio.
Winnicott chega a referir-se a este fato como sendo a vivência de uma “morte
fenomenal”. Diz Winnicott:
Em alguns pacientes, o vazio precisa ser experienciado, e este vazio pertence ao
passado, ao tempo que precedeu o grau de maturidade que tornaria possível ao
vazio ser experienciado.
Para entender isto, é necessário pensar não em traumas, mas em nada
acontecendo quando algo poderia proveitosamente ter acontecido.
É mais fácil para um paciente lembrar um trauma do que nada acontecendo
quando poderia ter acontecido. Na ocasião, ele não sabia o que poderia ter
acontecido e, assim, não poderia experienciar nada, exceto notar que algo
poderia ter acontecido. (Winnicott, 1974, p. 75)
Nestes casos temos, pois, que considerar que estamos ante a um inconsciente
que não pode ser o inconsciente reprimido, um inconsciente que não é composto
por conteúdos mentais reprimidos. Talvez seja o caso de supor, como já sugeriu
Loparic, um inconsciente que diz respeito ao algo que não-aconteceu, mas
deveria ter acontecido, um inconsciente não-acontecido (1999, p. 367ss). Dias
(2003), ao abordar o tema da criatividade originária, acaba referindo-se, en
passant, a este inconsciente não-acontecido como relacionado a um tipo de
inconsciente originário, diferente do inconsciente reprimido descoberto por
Freud:
Se o bebê fizer o gesto [que tende à comunicação e ao encontro] e a mãe estiver
ausente, distraída ou concentrada em si mesma, o gesto ficará parado no vazio,
à espera de algo que não vem. [Nota da autora: Isto configura o trauma do nãoacontecido, que será guardado, não no inconsciente reprimido – o que já suporia
um alto grau de amadurecimento, com uma realidade psíquica interna constituída
–, mas no “inconsciente não acontecido” que é a forma negativa do inconsciente
originário. (Dias, 2003, p. 172)
Muitos outros adjetivos poderiam qualificar este tipo de inconsciente, ou tipos de
acontecimentos que mereceriam ser considerados em relação à noção de
inconsciente, seja referindo-se, de uma maneira mais ampla, a um inconsciente
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
primário, seja especialmente ligando-o a acontecimentos patológicos,
considerando, então, um inconsciente impensável ou das agonias impensáveis,
inconsciente congelado, ou ainda, outros modos específicos, tais como já
comentou Loparic (inconsciente dissociado, não-acontecido, ou ainda,
desacontecido, acontecido e não sustentado no tempo, perdido logo em seguida)
etc. O que importa, neste ponto, não é o conjunto de adjetivos possíveis, mas o
fato de que este inconsciente não corresponde ao inconsciente reprimido tal
como Freud o formulou.
Mas estes casos acima comentados dizem respeito ao que ocorre em situações
patológicas. Caberia perguntar que tipo de inconsciente fica presente no caso da
saúde, no caso em que não há ainda maturidade para que o mecanismo de
repressão possa ocorrer, mas há uma série de vivências que, na maturidade
posterior, não estão presentes na consciência e nem por isso podem ser dita
reprimidas. Tomem, por exemplo, o que ocorre com o destino do objeto
transicional: ele não será reprimido, mas esquecido no fundo do armário, vai
para o limbo (cf. Winnicott, 1989i [1959]).
Da mesma maneira que o objeto transicional, muitos outros acontecimentos
farão parte da psique pessoa, serão o alicerce sobre o qual sua neurose poderá
ser edificada e, mesmo assim, não são propriamente conteúdos nem vivências
reprimidas, nem mesmo retidas em função da angústia, mas um inconsciente da
saúde, um inconsciente cujos conteúdos não correspondem a representações
reprimidas e, neste sentido, nem sempre possível de ser formulado pelo discurso
ou pela palavra, um inconsciente mais propriamente indizível e não
representável, mas real e sempre presente em todos os modos de ser, infantis
ou adultos.
Winnicott parece fazer uma associação entre este inconsciente que ele reconhece
como referido a uma fase em que o recalque ainda não é um mecanismo de
defesa disponível – uma fase caracterizada pela unidade bebê-ambiente na qual
a realidade é caracterizável como uma realidade subjetiva (nem interna, nem
externa e, ainda, nem mesmo transicional) –, e o inconsciente ao qual Freud se
refere como não acessível à consciência:
Nas fases iniciais do desenvolvimento do ser humano, a comunicação silenciosa
se relaciona com o aspecto subjetivo dos objetos. Isso se liga, penso eu, ao
conceito de realidade psíquica de Freud e do inconsciente que não pode nunca se
tornar consciente. (Winnicott, 1965j [1963], p. 168)
Um ponto a ser destacado é que, para Freud, o inconsciente é pensado a partir
do modelo do recalque, e até mesmo este inconsciente que não é propriamente
recalcado (ao qual ele se refere no O Ego e o Id), funciona segundo os mesmos
moldes do inconsciente recalcado. Noutra perspectiva, em Winnicott, este
inconsciente que nunca pode se tornar consciente (Winnicott, 1965j [1963], p.
168) não é análogo ao inconsciente recalcado, mas trata-se de outro tipo de
inconsciente que não pode ser redutível a um conjunto representações, um
inconsciente que é gerado num momento em que o bebê é imaturo para ter
representações mentais.
31
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Winnicott não chega a dedicar um texto para analisar este outro sentido do
termo inconsciente, diferenciado do inconsciente reprimido. Talvez possamos,
coerentemente, denominar este inconsciente como um inconsciente primário –
como ele mesmo o denomina quando comenta o tema da inveja inata criticando
Melanie Klein (cf. Winnicott, 1989xf, p. 343).
Ao referir-se aos estágios pré-primitivos, ou seja, àquilo que ocorre no primeiro
início, Winnicott se pergunta sobre a própria origem do ser humano:
“Qual é o estado do indivíduo quando o ser emerge do interior do não-ser? Onde
fica a base da natureza humana em termos do desenvolvimento individual? Qual
o estado fundamental ao qual todo ser humano, não importa a idade ou
experiências pessoais, teria que retornar se desejasse começar tudo de novo?”
(Winnicott, 1988, p. 153).
Esta linguagem, incomum no cenário psicanalítico clássico, mostra também que
Winnicott está se referindo a fenômenos que não tinham antes sido abordados.
No que se refere ao tema que estamos abordando, o inconsciente, este
momento, bem como este “não-ser de onde emerge o ser”, para posterior
constituição de um indivíduo psicológico, é também algo que permanece jamais
acessível à consciência, algo que não diz respeito a conteúdos mentais ou
representacionais reprimidos, mas a outro tipo de inconsciente a ser considerado.
3.3 De que é composto o inconsciente primário
No inconsciente reprimido, vimos que este é composto por representações e
afetos. Cabe, então, a pergunta sobre os “conteúdos” deste inconsciente
primário, se é que seria correto falar em conteúdos neste caso.
Ao retomar quais seriam as tarefas que caracterizam o amadurecimento, temos:
a temporalização, a espacialização, o alojamento da psique no corpo, o
desenvolvimento da capacidade de ter fé, o primeiro reconhecimento da
dependência, a criação-encontro dos objetos e fenômenos transicionais, a
constituição de um modo de relação com o mundo marcado pela distinção EuNãoEu, etc. Todas estas aquisições ou conquistas não podem ser consideradas
como representações, nem como afetos, elas são, mais propriamente, modos de
ser, modos de estar no mundo. Ao referir-se a este inconsciente comentado por
Winnicott, Loparic diz:
A esse conceito de inconsciente Winnicott acrescentará vários outros, em
particular, o de inconsciente dissociado e o de inconsciente não-acontecido. Nos
dois casos, o que é chamado de inconsciente é algo não-psíquico no sentido de
Freud: a dissociação é um assunto de integração pessoal ou psicossomática, não
de aceitabilidade pela consciência nem mesmo de verbalizabilidade; e o nãoacontecido é uma questão de amadurecimento, não de recordação
(mentalização) ou elaboração simbólica. (Loparic, 2004, passagem de texto não
publicado, autorizado pelo autor)
Na continuidade do processo de amadurecimento teremos uma série de
conquistas ou aquisições que também são relacionadas às capacidades mentais e
32
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
representacionais, mas dizem respeito a conquistas destes modos de ser no
mundo. Loparic, neste mesmo texto não publicado, enfoca a antureza deste tipo
de aquisição, referindo-se à fase do concernimento:
Uma ilustração desse ponto é dada pela observação de Winnicott de que a
produção, na fase do concernimento, de uma ordem ou padrão a partir do caos
do mundo interno se deve a um “trabalho que não é mental nem intelectual, mas
uma tarefa da psique”, intimamente relacionado “à tarefa da digestão, que
também se realiza a margem do entendimento intelectual, o qual pode ocorrer
ou não” (Winnicott, 1988, p. 97). (Loparic, 2004, passagem de texto não
publicado, autorizado pelo autor).
Winnicott, ao referir-se á sua concepção de saúde, enfoca algumas
características – tais como sentir-se real, sentir que a vida vale a pena de ser
vivida – que se mesclam a características relativas ás capacidades
representacionais, em especial quando se refere ao sentimento de
responsabilidade com as próprias ações. Diz Winnicott:
O essencial é que o homem ou a mulher se sintam vivendo sua própria vida,
responsabilizando-se por suas ações ou inações, sentindo-se capazes de
atribuírem a si o mérito de um sucesso ou a responsabilidade de um fracasso.
Pode-se dizer, em suma, que o indivíduo saiu da dependência para entrar na
independência ou autonomia. (Winnicott, 1971f [1967], p. 30)
3.4 Abandono da teorização metapsicológica sobre o inconsciente9
A contribuição de Winnicott não significa apenas a soma de outros tipos de
inconscientes ao inconsciente reprimido descoberto por Freud, mas também que
o inconsciente reprimido deve ser considerado em associação e determinado por
este inconsciente primário. É sobre este solo do inconsciente primário que o
neurótico pode viver suas relações e seus conflitos, tanto na sua vida ordinária
quanto na sua análise. Ao considerar um inconsciente primário, Winnicott
também foi levado a reformular o sentido dado ao inconsciente reprimido. Ele fez
isto de duas maneiras: 1. reconhecendo, descritivamente, processos psíquicos
que distam da própria atividade de representação, bem como são díspares do
que ocorre quando a repressão, como mecanismo de defesa, pode estar em
jogo; 2. apresentando uma teorização sobre os processos psíquicos
inconscientes, tanto no que se refere ao inconsciente reprimido quanto ao
inconsciente primário, considerando apenas os sentidos descritivos e dinâmicos
destes termos, e não seu sentido “sistêmico” ou metapsicológico, abandonando,
pois, a metapsicologia.
9 Para uma análise da natureza e função da metapsicoloiga em Freud, ver Fulgencio
(2003, 2005, 2008b); para uma análise do abandono da teorização metapsicológica em
Winnicott, ver tb. Fulgencio (2006, 2007, 2008a).
33
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Nenhuma das referências de Winnicott ao inconsciente se refere dizem respeito a
instâncias psíquicas, a figurações de partes de um aparelho. Não são ficções
teóricas como as que encontramos em Freud para caracterizar o parelho psíquico
e seus sistemas. Tanto a noção de inconsciente reprimido como a de um
inconsciente primário e mesmo, no caso da patologia, um inconsciente nãoacontecido, são conceitos, para Winnicott, que não se referem a especulações,
mas a modos de funcionamento pessoais reconhecíveis objetivamente na
experiência existencial. A noção de um inconsciente sistêmico, tal como Freud
propusera, não tem, para Winnicott, nenhuma importância, ele simplesmente
não a considera. Trata-se sempre, para ele, de um inconsciente dinâmico,
referido a conteúdos e vivências da história pessoal e relacional de um ser
humano, seja nos casos em que há representações reprimidas seja nos casos em
que este inconsciente é composto de elementos não propriamente
representáveis, mas que compõem as bases tanto da saúde quanto de uma
existência patológica.
Trata-se, pois, de abandonar o inconsciente metapsicológico de Freud a favor de
concepções mais factuais para a teorização e formulação teórica do que é o
inconsciente ou os processos inconscientes. Neste sentido há, aqui, uma ruptura
com Freud e com todas as propostas posteriores, pós-Freudianas, que reiteram
ou reformulam a concepção metapsicológica do inconsciente.
Para Winnicott, nem o inconsciente da primeira tópica, nem o Id da segunda10,
são instâncias psíquicas. Por um lado, ele parece estar aproximando esta sua
noção de um inconsciente primário com aquilo que Freud teria considerado
(descritiva e dinamicamente) como um inconsciente que jamais poderia tornar-se
consciente: “Nas fases iniciais do desenvolvimento do ser humano, a
comunicação silenciosa se relaciona com o aspecto subjetivo dos objetos. Isso se
liga, penso eu, ao conceito de realidade psíquica de Freud e do inconsciente que
não pode nunca se tornar consciente” (Winnicott, 1965j [1963], p. 168). Mas por
outro, este inconsciente primário é claramente anterior a qualquer tipo de
recalque, um inconsciente que não pode ter conteúdos mentais, um inconsciente
não-representacional que não é propriamente composto pelo representante das
pulsões.11 Talvez seja a isto que Winnicott se refere quando afirma: “Como já
disse, em um estágio mais precoce estar vivo é a comunicação inicial do lactente
com a figura materna, e é tão inconsciente quanto possa ser” (Winnicott, 1965j
[1963], p. 174).
10 A análise da redescrição feita por Winnicott dos termos Id, Ego e super-ego é tema de
outro artigo que estou preparando.
11 Em Winnicott as pressões instintuais, no início, não são propriamente dizendo
representadas, mas elaboradas imaginativamente, recebendo um sentido, um sentido
que, no início, depende do ambiente para existir. É a sustentação ambiental e o
amadurecimento (com a conquista e constituição da possibilidade de realizar processos
mentais) que tornaram possível uma representação das pressões instintuais em termos
de conteúdos mentais. Cf. Winnicott (1988, p. 40), e o artigo, com uma análise mais
detalhada da elaboração imaginativa em Winnicott em Loparic(2000).
34
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Este tipo de análise me parece tanto confirmar a tese de que Winnicott
redescreveu a noção de inconsciente quanto explicitar a necessidade conceitual
de detalhar com mais precisão que tipo de inconsciente é este, como ele está
presente e associado ao inconsciente reprimido e, mais importante, como ele é
considerado e operacionalizado no método de tratamento psicanalítico.
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36
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
PESQUISA PSICOLÓGICA E FENOMENOLOGIA
Mauro Amatuzzi
PUC-Campinas
Resumo Esse texto propõe um percurso reflexivo para clarear os conceitos de
pesquisa qualitativa e pesquisa fenomenológica em relação à psicologia. Mostra
inicialmente como a pesquisa qualitativa em psicologia nasce do esforço de dizer
o humano que permaneceria não dito numa pesquisa que se desenvolvesse
exclusivamente como ciência natural. Mas esse esforço pode tomar duas
direções. Uma, que ocorre numa relação de exterioridade entre sujeito e objeto,
ainda como nas ciências naturais, e outra, que é a propriamente fenomenológica,
que ocorre na relação de implicação entre sujeito e objeto. O texto procura
caracterizar essa diferença e tirar as conclusões para uma psicologia de
inspiração fenomenológica.
Palavras-chave: pesquisa fenomenológica, psicologia, fenomenologia.
Psychological research and Phenomenology.
Abstract This paper proposes a reflective way to lighten the concepts of
qualitative research and phenomenological research in its relationship to
psychology. The text shows initially how a qualitative research in psychology
raises from the aim of saying what is the very human, which would remain
unsaid in exclusively natural science search. But that effort may take two
directions. One, which occurs in a relationship of externality between subject and
object, even as the natural science, and another, the proper phenomenological,
which occurs in a enveloping relationship between subject and object. It attempts
to clarify the gap between these two directions and, finally, to draw conclusions
for a inspirational phenomenological psychology.
Key words: phenomenological search, Psychology, Phenomenology.
O avanço que as ciências da natureza tiveram com o uso estendido dos métodos
matemáticos foi enorme e trouxe para o campo científico uma segurança que não
dependia de opiniões ou de elaborações teóricas. Com toda certeza isso esteve
na origem da alforria das ciências em relação à filosofia, sendo que esta, por sua
vez, passou a ser vista com extrema desconfiança pelos pesquisadores. Ciência
passou a ser sinônimo de medida: há poucos anos eu ouvi essa frase numa
reunião da Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Psicologia
(ANPEPP). E ela significa que as ciências humanas devem se contentar em ser
apenas uma parte das ciências naturais, sem nenhuma especificidade quanto ao
método. Mas alguns objetaram que por esse caminho perdemos o que há de
propriamente humano. Entendo que uma das importantes contribuições de
Husserl foi justamente a de recuperar essa humanidade, o que somente um olhar
que transcendesse a medida numérica poderia fazer (Husserl, 2004 e 2008).
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
No campo da psicologia o esforço de dizer o humano, delimitando o que depois
poderá até ser objeto de medidas complexas (se ainda for necessário), constitui
algo que se aproxima do projeto de Husserl de uma psicologia fenomenológica
(Husserl, 1951), e isso não deixa de ter relações com o que hoje chamamos de
pesquisa qualitativa. Esta se desdobra, com efeito, em duas direções: dizer o que
de antemão sabemos, ou seja, dizer o que está presente em nossa experiência
pré-reflexiva, e, em outra direção, dizer o que podemos ver em observações
sistemáticas. A primeira dessas direções recupera o mundo vivido (sem o qual
nossas afirmações científicas cairiam no vazio), e a segunda, procura exercer um
método rigoroso (mas não necessariamente matemático) em nossos contatos
com os fenômenos situados que queremos estudar.
Quero comentar um pouco mais essa diferença. Na primeira dessas duas
direções a ênfase está no dizer. Algo já está presente, mas não está dito. O fato
de dizer isso não é apenas uma necessidade de comunicação social, como se a
fala tivesse apenas essa função. Na verdade dizemos para tornar isso, que já
está presente, disponível. Disponível para nós mesmos. Dizemos para nos
apropriamos do que sentimos. Mas isso significa que o ato de dizer acrescenta
algo (Amatuzzi, 1989), e algo essencial, em termos de vida ou de consciência: o
estar disponível. Quem tem experiência clínica sabe que muitas vezes o esforço
principal do terapeuta consiste em ajudar o paciente (ou o cliente, como preferia
Rogers) a dizer, e a dizer significativamente, de modo que ele possa então se dar
conta e transformar o fluxo dos sentidos e, portanto, de seus atos.
É por falta de dizer que congelamos aquele fluxo (e ficamos estagnados no não
dito). Em psicologia comunitária constatamos a toda hora a importância do
simples compartilhar experiências. Nesses casos o psicólogo tem simplesmente a
função de catalisador do grupo: alguém na presença de quem o dizer pode
acontecer e produzir seus frutos. Nossa sociedade padece da carência desses
espaços sociais do dizer. E por isso toda sua riqueza experiencial fica enterrada.
O que é então que o dizer acrescenta? Acrescenta algo no plano do fazer sentido
e no plano da mobilização. Por isso, tudo fica diferente depois do dizer.
É claro que o dizer pressupõe o escutar. Não chego a dizer plenamente algo, por
mais que tenha dito as palavras certas, se não for plenamente escutado. É como
se as coisas não saíssem de mim, apesar de eu as ter falado: é preciso que
sejam recebidas por alguém. É por isso que o simples escutar com atenção, e de
modo que o falante se sinta escutado, é muitas vezes o que basta
terapeuticamente. Mas estou dizendo isso para mostrar a articulação que existe
entre o apropriar-se dos sentidos vividos (tornando-os disponíveis), que é
proporcionado pelo dizer, e a comunidade. Em outras palavras: o dizer solitário,
como quem escreve em seu diário íntimo, por exemplo, só tem força na medida
em que o sujeito falante (ou o sujeito que escreve) está ainda sob o influxo de
uma vida social expressiva.
Se todo dizer da pessoa fosse solitário, ele perderia sua força transformadora e
deixaria de fazer um sentido mobilizador. O viver solitário é importante, mas ele
se alimenta do viver comunitário. Isso equivale a dizer que meus sentidos mais
pessoais nunca são somente meus. De alguma forma eles acompanham meu
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
viver social, seja porque, por falta de expressão, eles fiquem enterrados, seja
porque, pela expressão adequada, eles fiquem compartilhados.
Ora, acontece que o esforço de dizer o que já está presente no mundo vivido é o
que constitui a meu ver o caminho fenomenológico da pesquisa. E isso é
importante no campo da psicologia também. Aqui se configura um primeiro
sentido de psicologia fenomenológica: trata-se de buscar as falas que são
capazes de dizer plenamente para o momento a experiência vivida; e de buscálas quer seja na experiência comum da humanidade tal como qualquer um pode
fazer, mas por uma reflexão transcendental, quer seja em experiências concretas
situadas no espaço e no tempo, experiências de outras pessoas que, no entanto,
posso compreender naquilo que elas têm de humanidade.
Não se trata de buscar falas já prontas, mas, no silêncio do puro vivido, a
expressão nova (Merleau-Ponty, 1967; Amatuzzi, 2008). Quando busco na
experiência comum estarei colocando as bases sobre as quais poderei construir
uma Psicologia que sabe do que está afirmando as coisas que afirma (MerleauPonty, 1973). É a fenomenologia estabelecendo os fundamentos de uma
Psicologia consciente. Quando busco em determinadas experiências situadas
(Bicudo & Espósito, 1994) (situadas no espaço e no tempo, e, portanto,
experiências singulares de determinadas pessoas ou de grupos de pessoas),
estarei construindo uma fenomenologia (“eidética”) para setores específicos da
experiência humana. É assim que nasce, por exemplo, uma psicopatologia
fenomenológica. A psicologia fenomenológica é, em suma, um esforço de dizer a
experiência vivida naqueles temas ou assuntos que dizem respeito à psicologia
ou ao psíquico.
Antes de nos voltarmos para a segunda direção para a qual se desdobra a
pesquisa qualitativa, é importante lembrar que pesquisa qualitativa não é a
mesma coisa que análise qualitativa de dados. O contexto dessa última é ainda
uma pesquisa quantitativa (que transcorre no pressuposto de que ciência é igual
a medida) e por alguma deficiência nas medidas, recorre-se ao “qualitativo”,
quase como uma espécie de mal menor. A pesquisa qualitativa tem um projeto
diferente desde seu começo.
A pesquisa qualitativa não visa examinar a extensão de um fenômeno, mas sua
natureza; não visa verificar hipóteses previamente formuladas, mas construir
uma compreensão e, portanto, uma teoria. Constitui-se como um esforço
sistemático de descrever as qualidades características de alguma coisa ou
acontecimento considerado em sua realidade objetiva, e articular essas
qualidades num todo coerente e consistente, que faça sentido. Duas
características, portanto. Descrever qualidades (e não medir quantidades), e
fazer isso a partir de uma relação de exterioridade entre sujeito e objeto (como
se essas qualidades estivessem lá diante de mim, sendo eu um observador
neutro que nada tem a ver com elas). Observo. Observo e descrevo. Isso é
assim e assim. E faço isso para compreender objetivamente. Não me relaciono
com aquilo que observo, mesmo que às vezes, mas como um recurso
meramente estratégico, tenha que fazer uma observação participante, como
quem está envolvido, mas na realidade sem estar.
39
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Esse tipo de pesquisa se aproxima da que anteriormente consideramos, e que
corresponde à pesquisa fenomenológica, mas, por outro aspecto, dela se
distancia radicalmente. Quero comentar isso também numa tentativa de clarear
conceitos.
A pesquisa qualitativa, enquanto cumpre essas duas características descritas aqui
acima, aproxima-se da pesquisa fenomenológica em psicologia na medida em
que descreve para compreender. Mas distancia-se dela na medida em que essa
descrição se dá numa relação de exterioridade entre sujeito e objeto. Que a
pesquisa fenomenológica seja qualitativa, porque descritiva, isso é fácil de
entender. Mais difícil é entender a diferença entre uma relação de exterioridade
entre sujeito e objeto (que é própria da ciência natural) e a relação de implicação
entre sujeito e objeto (que é própria da pesquisa fenomenológica).
Na relação de exterioridade considero que o mundo está lá diante de mim,
independentemente de mim e eu o posso olhar e analisar objetivamente, sem
que implique em qualquer relação comigo mesmo. Ocorre aqui uma abstração
dos significados que carrego comigo e que também constituem meu olhar sobre
o objeto, uma desconsideração das intenções que me guiam no meu viver e na
minha investigação. Nesta maneira de olhar, o que se passa com o objeto não
tem nada a ver com o que se passa comigo. Se eu tenho algum problema, esse
problema não tem nenhuma relação com esse meu ato de investigar o objeto.
Nessa postura não faz nenhum sentido pensar que o problema que investigo no
objeto, lá fora, tem a ver com meu próprio problema, aqui dentro. Pois bem, a
postura fenomenológica é totalmente diferente disso.
Nela, o sujeito está implicado em seu estudo do objeto; os problemas do mundo,
ou do outro (no caso da psicologia clínica, por exemplo), são também problemas
daquele que está pesquisando. Não que isso seja assim por uma identificação
empírica (por uma semelhança casual de problemas), mas porque a outra pessoa
e o pesquisador partilham da mesma condição existencial. Por mais diferentes
que sejam os problemas ou as situações problemáticas, num certo nível de
profundidade eles são idênticos porque são questões humanas e isso inclui o
pesquisador, como me inclui a mim e inclui a você. Como um psicótico vai
resolver sua vida me interessa profundamente porque ele está vivenciando algo
que é uma possibilidade real para mim mesmo e para qualquer ser humano. O
problema dele diante da vida, é, no fundo, o mesmo problema meu diante da
vida.
Pode isso ser estendido para questões referentes ao mundo físico, por exemplo?
Penso que sim. Eu sou parte de um mundo, e, portanto, cada aspecto do mundo
me interessa. De que “eu” estou falando? Não de um eu entidade à parte, mas
de um eu movimento, que se movimenta em conjunto com o mundo, como se
fosse um só movimento complexo. Existe uma solidariedade de destino no
universo, digamos assim. Ninguém é um problema à parte, ou nada é um
problema à parte.
Isso fica muito claro, por exemplo, no caso do dizer, como analisamos acima:
não consigo me dizer sozinho, na solidão absoluta e continuada. Só consigo me
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
dizer quando sou escutado. Existe uma interpenetração constante entre o que é
próprio e singular, e o que é coletivo, social; e um âmbito não absorve ou elimina
o outro. A postura fenomenológica é a que sabe isso, leva isso em conta nas
análises que pretende. Concretamente podemos dizer que só entendemos uma
indagação (e levamos adiante nossa investigação) quando ela nos toca, quando
ela nos envolve. Minha compreensão de outra pessoa é a compreensão do ser
interpelado por ela (a isso Buber chamava de “tomar conhecimento íntimo” Buber, 1982). E então será compreensão dela e de mim mesmo a um só tempo.
Minha compreensão do mundo é a compreensão do ser questionado pelo mundo
e, portanto, será uma compreensão de mim mesmo também. Instalar-se nesse
ponto de vista é ter dado um enorme salto: da atitude natural à atitude
fenomenológica. São duas maneiras completamente diferentes de olhar o
mundo. A postura fenomenológica consiste em considerar que na existência
humana estão incluídos os significados. A postura de exterioridade, que é a da
ciência natural convencional clássica, sob a luz da postura fenomenológica, se
mostra como possível, certamente, mas totalmente artificial e limitada.
A tentativa que estou empreendendo aqui neste momento é a de fazer uma
introdução à radical implicação que existe entre sujeito e objeto na perspectiva
da pesquisa fenomenológica. Aqui, olhar o objeto de estudo é de alguma forma
um olhar-se a si mesmo. Isso se traduz, por exemplo, na diferença que existe
entre questionário e entrevista reflexiva. A aplicação de um questionário pode ser
mecânica e impessoal (e, aliás, quanto mais mecânica e impessoal for, melhor
será); enquanto que a entrevista reflexiva é uma conversação participativa que
evolui na direção de se descobrir novas zonas de sentido. Traduz-se também na
diferença que existe entre relatório técnico, de um lado, e narrativa, ou texto
sentido (segundo Cavalcante, 2001 e 2008), de outro.
Um relatório nada mais é do que uma lista objetiva e impessoal de eventos
passados ou de informações coletadas, enquanto que o texto sentido (ou
narrativa) corresponde à uma construção pessoal de significados em relação aos
acontecimentos, no ato de os relatar, o que também ocorre no contexto de uma
comunicação situada no tempo e no espaço. Traduz-se também na radical
diferença entre uma análise que separa e isola variáveis, e uma análise que
mantém as partes no todo de onde lhes vêm o sentido, sendo que esse todo
inclui a própria relação do pesquisador com ele. Traduz-se ainda na maneira de
escolher o problema da pesquisa: ele não é buscado nos vazios do saber
acadêmico (tais como negativamente constam dos boletins científicos), mas nas
necessidades de saber que são sentidas pelo pesquisador enquanto membro de
uma comunidade com a qual ele se identifica em seu caminhar histórico.
O resultado de uma pesquisa fenomenológica não é apenas uma informação nova
tornada disponível, mas é essencialmente uma mobilização para a ação. Nesse
ponto a linguagem husserliana se torna passível de mal-entendidos. Quando
Husserl fala de redução, trata-se de redução ao fenômeno tal como ele se dá a
nós, e não de algum tipo de “diminuição” da totalidade do fenômeno. Quando ele
fala da necessidade de uma reflexão sobre o próprio ato intencional para se sair
da atitude natural objetificante (atitude epistemológica da ciência natural) e se
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
chegar à atitude fenomenológica, ele está falando da implicação do sujeito que
conhece em seu próprio ato de conhecer. Foi essa implicação que o levou a
conceituar o mundo da vida (ou, para nós psicólogos, o mundo da experiência
vivida), nosso estar-no-mundo básico. Por isso é que um esclarecimento, que
parta de um questionamento significativo e que se enraíze na experiência vivida,
só pode ser transformador das pessoas envolvidas.
Estaria eu falando de um subjetivismo desenfreado onde não haveria mais
objetividade nenhuma? Não é bem assim. Existe uma objetividade
fenomenológica. Não posso dizer qualquer coisa em uma pesquisa desse tipo.
Assim como na visão da ciência natural a objetividade é empírica (é válido o que
corresponde aos fatos verificados empiricamente), na visão fenomenológica
existe a objetividade dos significados: serão válidos os que forem construídos a
partir da experiência vivida mobilizada (e não estagnada). Na prática, cabe ao
pesquisador construir um consenso em torno do fenômeno, baseando-se no
diálogo focado na experiência vivida de todos os envolvidos (e ele pode fazer isso
mesmo sem conversar com absolutamente todos, mas conversando com alguns
de modo a evocar o sentir do grupo). - Em suma, a implicação suposta pela
fenomenologia não elimina o mundo, mas mostra como ele está em relação
íntima com o sujeito; e que este é o único caminho para chegarmos a uma
verdade mais completa.
Retomemos nosso percurso. Procuramos inicialmente discernir um âmbito de
pesquisa paralelo àquele do qual os cientistas se aproximam com métodos
matemáticos. A linguagem aí empregada parece melhor dizer o humano do que a
linguagem da medida e dos números. Nesse âmbito falamos em geral da
pesquisa qualitativa, para logo a desdobrarmos numa pesquisa qualitativa que
ainda pressupõe a epistemologia das ciências naturais e numa outra, a
fenomenológica, que pressupõe um outro tipo de olhar. Finalmente esse outro
tipo de olhar foi caracterizado pela relação nele vivida: a relação de implicação. A
conseqüência que tiramos disso foi que uma pesquisa fenomenológica relevante
será necessariamente mobilizadora das pessoas envolvidas, pois reconhece sua
essencial passagem pela subjetividade.
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42
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
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43
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Comment penser et transmettre la clinique de la
schizophrénie en psychologie clinique: l'intérêt des récits
intertransférentiels
Rosa Caron
Université de Lille 3
Depuis quelques années déjà, s'amorce en France un véritable changement dans
la prise en charge des patients présentant de graves troubles psychiques: les
hôpitaux psychiatriques se sont progressivement vidés de tous leurs malades,
après une politique de désenfermement, conséquence de la création des secteurs
de psychiatrie vers les années 1970, né à contre courant d’une politique asilaire
qui prônait l’exclusion de ceux qui se trouvaient en dehors des normes
psychiques. La politique de santé mentale qui en a résulté a été en un temps,
mais en un temps seulement, le moteur d’un mouvement nouveau qui oeuvrait
pour la liberté, pour la différence et pour une écoute de la folie au sein des cités.
Véritable lieu de compétences plurielles, lieu d’échanges et de croisements de
points de vue, l’équipe pluridisciplinaire s'installant au coeur de la cité a trouvé sa
véritable légitimité à partir d’une réflexion autour d’une prise en charge adaptée
à chaque malade, à chaque fois réinterrogée et réajustée de façon plus
spécifique et plus singulière.
Reflet de cette politique, la psychiatrie a pris un autre visage, plus humain, plus
proche de l'unité psychique, et plus attentive aux aléas de la psyché. Les
psychiatres de secteur, sortant des murs asilaires qui les enfermaient aussi ont
ainsi exercé leur art en articulant une lecture sémiologique des troubles –
permettant de proposer un traitement chimiothérapique parfois incontournable- à
une lecture plus psychodynamique des situations psychopathologiques, lecture
qui permet de poser la question du sens, de la fonction des troubles conçus dans
l’histoire individuelle du sujet aux prises avec son contexte familial et social.
Cette double lecture a impulsé au niveau des équipes une réflexion clinique, voie
vers laquelle les psychologues cliniciens, formés en vue d'une activité auprès de
la maladie mentale, se sont tout naturellement inscrits. Progressivement cette
équipe a quitté sa domiciliation , elle a basculé vers les hôpitaux généraux; cette
domiciliation n'est pas qu'administrative puisque l'hôpital général, fief de la
médecine, lieu d'accueil pour la psychiatrie et la santé mentale est devenue
également un lieu de diktat, de règles et d'organisation de tous les soins.
Corollaire de ces changements qui ne sont pas qu'administratifs, la mission du
secteur psychiatrique, est devenue sous le couvert de l'efficacité et de l'aseptie
de tous les soins, plus ambitieuse : étendre son champ d’activité du trouble
mental aux douleurs somatiques en passant par les difficultés liés aux problèmes
sociaux, sans forcément les articuler mais en écoutant le symptôme pris au pied
de la lettre et détaché des liens très enchevêtrés qu'il entretient avec le contexte
socio-culturel et cette autre scène qui est celle de l'inconscient. les demandes
épousent le contexte dans lequel elles s'adressent: elles deviennent de plus en
44
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
plus variées, de plus en plus morcelées, de plus en plus croissantes et de plus en
plus urgentes. La nécessité de ne plus considérer le trouble dans sa seule
dimension psychique mais de le croiser avec ses composantes biologiques et
sociales, oblige à développer le travail en réseau à partir des urgences, à
inventer de nouvelles modalités de suivis et à créer de nouvelles structures, pour
répondre à la diversité des pathologies rencontrées. Les hôpitaux de jour, pour
ne citer qu’un exemple, véritables relais pour soulager les familles ont d’abord
balbutié pour se multiplier très rapidement, appelant à leur tour la création de
structures qui viendraient en amont ou en aval des prises en charge qu’ils
proposent et qui s'avèrent inefficaces.
Si ces objectifs nous paraissent louables en théorie, ils souffrent toutefois d’une
mise en application qui vient contredire l’esprit même de ces injonctions. En
effet, alors que le DSM répertorie les troubles pour faire éclater l'unité psychique,
la cité met en acte ce morcellement en multipliant les lieux, devenus lieux
d'enfermement de ce que le DSM a cloisonné et rigidifié:
de l'hôpital
psychiatrique vers
les urgences puis vers les cliniques qui n'ont de
psychothérapiques que le nom, du domicile vers l'institution gériatrique voire
vers les prisons, les lieux d'enfermement, conçus non pour le malade mais en
fonction des troubles, des symptômes présentés, ou en fonction de ce que la
société ne veut plus avoir à supporter, se sont progressivement déplacés,
disséminés ici ou là au sein des cités pour être mieux cachés.
Face aux
contraintes infligés par ces objectifs,
la politique de secteur est obligée de
modifier son discours et certaines injonctions se trouvent au cœur d’une étrange
paradoxalité que nous mettrons à la question :
Quel est ce discours:
1. Il faut rompre avec l’institutionnalisation et assurer la continuité des soins: Le
phénomène de désinstitutionnalisation n’a pas opéré: si les hôpitaux
psychiatriques ne résonnent plus de la parole du fou, son cri, devenu étouffé, se
fait l'écho d'une société qui ne veut plus souffrir. L'hôpital psychiatrique a vidé de
ses lieux la folie pour la disperser autrement. La politique du cloisonnement, du
quadrillage par catégories d’âge ou par troubles pathologiques, est bel et bien
marche. Le morcellement du sujet, identifié au DSM4 se trouve dramatiquement
confirmé. Sous le couvert d'aider les plus vulnérables, de soigner les troubles les
plus gênants, le pouvoir de l'homme sur l'homme, déjà souligné par Foucault en
son temps, n'a jamais été aussi prégnant. Jamais en effet, les protocoles pour
assujettir l'être humain en mal d'exister n'a été aussi accru; jamais les projets de
créations d’institutions n’ont été plus nombreux, guidés par le souci de la
normativité. Les lieux de rassemblement des personnes âgées en sont un triste
exemple et qui devienne une métaphore contraignante de ce qui représente la
mort et que personne ne veut plus affronter,
La création de lieux de vie, de lieux d’hébergement, de structures alternatives
font de plus toujours courir le risque de faire éclater la continuité des soins
2. autre discours: Il faut spécialiser les compétences pour individualiser les soins
et favoriser une prise en charge globale, cette fameuse globalité dont Lacan n’a
45
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
cessé d’énoncer l’illusion. Dans cette perspective, la demande croissante de
formations hautement spécialisées, assurées à un bon nombre de soignants des
équipes pluridisciplinaire a modifié l’architecture même des équipes : l’écart entre
les différents acteurs de la santé publique se réduit, créant des glissements de
rôles et de compétences qui va à l’encontre d’une pluralité de points de vue et de
leurs respects mutuels .Les équipes pluridisciplinaires deviennent de plus en plus
des équipes dans lesquelles les places sont interchangeables.
3. Pour répondre aux injonctions ministérielles actuelles, il faut appliquer le
programme de médicalisation des systèmes d’information (PMSI) pour donner
une cartographie la plus complète possible des troubles et une identité
psychopathologique objective à chaque patient, patient qui devient selon les
lieux, un usager ou un client occultant ainsi la capacité subjective de souffrir mais
le mettant en position de consommer: consommer du soin, consommer de la
relation, consommer ce qu'il a de plus précieux à savoir sa propre liberté. Sous
le couvert d’ une protocolisation des soins et d’une énumération des troubles, la
parole du patient est simplifiée et la singularité est gommée, les seules voies
d’écoute possibles étant dictées par les PMSI : à partir du discours de celui qui
demande de l’aide et grâce à une écriture mathématique, on assiste à une
lecture
codifiée et objectivée des symptômes et des troubles
psychopathologiques, à un quadrillage des facteurs situationnels, à la description
d’un monde qui devient factuel. Les tenants de la preuve et de l’objectivité
peuvent se réjouir : le langage, clivé, en perd sa valeur de révélation pour
devenir
pur instrument de mesure diagnostique et nourrir une illusion
d’efficacité
4. Le Dispositif ministériel invite à répondre à toute demande de soins et une
disponibilité
24/sur 24 dans chaque secteur, est souhaitée.
Dans cette
injonction et pour « éviter l’attente », les consultations de première intention,
autrement appelées les entretiens d’évaluation de la demande, se développent
de plus en plus : un membre de l’équipe, recueille un discours et le véhicule au
sein de réunion de synthèse pour en assurer en « toute confidentialité » le
meilleur usage.
Prise au pied de la lettre dans toute son immédiateté,
détournée de sa trajectoire et de son adresse, cette parole est parfois réduite à
porter une demande traduite en terme de
« demande de soulagement
immédiat », appelant une démarche médicale, diagnostique et évaluative. Le
besoin de nosographie inscrit toutes les demandes dans une tradition purement
psychiatrique que l'on croyait avoir perdu avec l'arrivée du DSM
5. La prise en compte de la souffrance psychologique doit être favorisée et le
nouveau projet de santé mentale prévoit un déploiement des psychologues dans
tous les secteurs d’activité pour participer à une politique de prévention. On leur
demande de pré-venir et d'intervenir au risque d'occulter l'écoute de la
souffrance et l'effet de l'après coup. L'arrivée des psychologues, dans tous les
secteurs de la vie sociale et médicale posent également un certain nombre de
questions. Sous le couvert de la prévention, sous le couvert de l’aseptie
psychique, comment l’être humain, dépouillé de ses expressions émotionnelles,
pourra-t-il exploiter ses propres capacités à éprouver les difficultés ?
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Dans ce contexte, les orientations qui sont prises risquent même d'être contreproductives et la question de la clinique se pose au-delà des questions qu'on ne
cessent de répéter et qui pourrait être: Comment approcher la complexité du
fonctionnement humain dans une telle politique de déshumanisation? Comment
entendre la parole du fou pour comprendre son inscription dans le monde?
Comment comprendre le rapport qu'il entretient, à partir de cette inscription,
avec les autres? De façon plus générale, dans ce chaos où l'être humain devient
un individu mis au centre de la scène pour mieux maintenir dans l'ombre sa part
la plus inaccessible, Comment aider celui qui souffre à éprouver sa propre
subjectivité ? Que devient notre engagement clinique auprès du sujet atteint de
maladie psychique? Comment maintenir une éthique du sujet et la rencontre
avec un sujet qui bien souvent ne sait pas de quoi il souffre? Comment
maintenir l' ecoute de sa parole, non pour l'évaluer mais pour la révéler?
La démarche de recherche en psychologie clinique rencontre les mêmes points de
butée, la recherche en psychologie clinique se meurt car la psychologie fuit
aujourd'hui l'identité des sciences humaines.
En France, les critiques qui
concernent la recherche en psychologie clinique font toujours l'objet des mêmes
discours contre lesquels les arguments restent fébriles: sa non reproductivité;
mais au delà de la non reproductivité, il s'agit davantage d'un manque de rigueur
dans la méthode , ce qui rend la transmission difficile et le repérage des éléments
cliniques très difficile.
Et en dça de toutes ces questions, les questions les plus fondamentales
pourraient être : où est la clinique, qu'est ce que la clinique? comment penser la
clinique ?
Et nous pouvons convoquer ici Lacan qui demandait dans l'ouverture de la
section clinique, séminaiire qui s'intitule Ornicar? « qu'est ce que la clinique
psychanalytique?, ce n'est pas compliqué; elle a une base. C'est ce qu'on dit
dans une psychanalyse....la clinique c'est le réel en tant qu'il est impossible à
supporter.... »
La nécessité de constituer une véritable clinique psychanalytique et d'en exposer
la spécificité nous paraît donc l'enjeu le plus important aujourd'hui. Nous
pensons que, comme les travaux de Tania Vaisberg le montrent et comme ceux
que nous déveleppons avec Daniel Beaune et Thamy Ayouch, le support de cette
clinique et le repérage des éléments cliniques sont ceux qui fondent le dispositif
des récits ransférentiels, méthode à partir de laquelle des réponses à ces
questions peuvent être ébauchées . Malgré un contexte socio-culturel qui met à
l'écart le discours de l'inconscient, malgré des injonctions qui visent la réduction
aveugle du symptôme, l’engagement du psychologue clinicien, et du chercheur
est également éthique: il est du côté du sujet. Cet enjeu fera sans doute le lit
de notre capacité à résister, résister à la généralisation, résister à l’exclusion et
à l’enfermement, résister à la mort du sujet.
La méthode des récits
transférentiels nous paraît un des moyens de résister, de résister à la
généralisation, de résister à l'exclusion, de résister à l'enfermement du trouble,
du symptôme pour tenter de saisir le sens qu'il préfigure et sa fonction dans
l'économie psychique du sujet.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Je prendrai une situation de récit intertransférentiel autour d'un patient
schizophrène. La recherche est menée par une étudiante en doctorat qui
s'interesse au vécu que peut avoir un patient atteint de schizophrénie, et à son
rapport au monde. Elle a rencontré dans le cadre d'une recherche un homme de
51 ans. Elle a beaucoup travaillé sur l'alinéation schizophrénique comme forme
de vie, ou plutôt comme « perte de contact vital avec la réalité »selon
l'expression de Minkowski (1927). Jusqu’à présent, les écrits concernant des cas
cliniques atteints de schizophrénie, tels que le cas Suzanne Urban (Binswanger,
1958), le cas du président Schreber (1911) décrit par Freud, le cas Aimée de
Lacan(1939) font apparaitre des modes d’être-au-monde ou de causalité dans le
délire schizophrénique que les auteurs ont appréhendés à partir de la parole de
ces patiients qui dans le transfert, déployaient leur façon d'être en lien et d'être
là. Ici, le malade, Pierre, ne présente aucun état délirant, cette nature paucisymptomatique nous rappelle d'ailleurs celui d’Anne, jeune hébéphrène,
présentée par Blankenburg dans « la perte de l’évidence naturelle » (1971). Cet
écrit est, depuis sa parution en langue française en 1991, devenu pratiquement
introuvable.
Cadre de sa démarche
Un espace libre de parole de 45 minutes pendant 9 mois à raison d'une fois par
mois a été proposé à cet homme que nous appellerons Pierre et qui se dit
« schizophrène », hospitalisé à plusieurs reprises à l'hôpital psychiatrique depuis
l'âge de 22 ans qui vit seul, dans un logement thérapeutique et actuellement
suivi en CMP. Une consigne simple est posée: « pouvez vous nous parler de la
façon dont vous vivez vos difficultés »
Au préalable, le consentement écrit du patient est obtenu. Les entretiens sont
entièrement enregistrés et retranscrit à mi-chemin de la recherche, c'est à dire
au moment de l'étape d'élaboration des faits cliniques. La lecture de ces
retranscriptions ne vient que dans l'après coup pour réorganiser les éléments
cliniques et la compréhension de l'ananlyse qui en a été faite. L'espace proposé
facilite chez Pierre la liberté d'organiser spontanément son mode d'expression
relationnelle.
Chaque entretien donne lieu à une séance où la jeune psychologue adresse à un
tiers, en associant librement, le récit de ce patient. Les associations peuvent
également être théoriques. La psychologue adresse donc ce qu'elle a saisi du
discours de ce patient à un tiers qui a alors l'attitude questionnante qu'elle a
elle-même eue avec le patient. C'est lors de ce récit, que le jeune chercheur fait
appel, dans un mouvement réflexif, dans une sorte de boucle en retour qui
donne sens, à ses premières perceptions. Ses capacités émotionnelles mais
également le sens de l'observation lui permet d'être particulièrement sensible à
ce qui se noue dans les séances. Le récit de la psychologue prend forme au fur
et à mesure de l'élaboration qui en émane. Les séances ont pris ainsi sens dans
un après coup, dans un différé temporel, à partir d'une boucle rétroactive dessiné
par le récit de la psychologue-chercheur. Une fois ces séances élaborées, les
entretiens sont retranscrits et lus au regard de cette élaboration.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Les résultats:
je reprendrai en grande partie l'article qui a été co-écrit comme résultat de cette
démarche, autour du vécu de ce schizophrène, en insitant sur quelques points,et
en reprenant le discours du patient.
La parole qui émerge lors des entretiens, , se dépliant au fil de la pensée laisse
apparaître un mode d'expression verbale qui porte en filigrane le niveau
d'évolution affective.
Chaque entretien se dessine dans une organisation particulière, témoin de la
manière dont le patient habite l’espace et le temps. La façon dont il s'adresse au
psychologue, dont la parole ce déploie pour se faire le support de la demande qui
lui est faite montre la structure d'une pensée chaotique soumise aux aléas des
processus primaires, mais n'en crée pas moins
une véritable expérience
subjective chez le psychologue-chercheur, qui par son écoute questionnante,
s'est trouvé interpellé, dans une position nettement intersubjective. Ce qui est
apparu très progressivement est la partition, une ancienne partition, rejouée
mais pourtant réactualisée, pour la mettre en acte dans le lieu même de la parole
et du transfert. Nous verrons que la capacité de Pierre à intellectualiser sa
maladie va d'abord fasciner la jeune psychologue, qui sera ainsi, dans cette
fascination mise à distance, neutralisée. La capacité de ce patient à « analyser »
comme elle dira, cequ'il vit le situera même comme co-chercheur, dans une
relation diadique tout à fait extraordinaire et prototypique de la relation
fusionnelle du psychotique à sa mère .Recréant dans le transfert la relation à la
mère, Pierre met en demeure la pschologue de l'aider à comprendre ce qui se
rejoue dans chaque relation dans laquelle il se trouve prisonnier, condamné à
mort et qui le contraint à répéter inlassablement la même mélodie.
Brève présentation
Pierre, âgé de 56 ans, vit en appartement indépendant depuis 2000. Sa première
hospitalisation a lieu alors qu'il a 22 ans. Le débit de parole, dont elle perçoit
d'emblée la particularité, dans l'identique de sa survenue, génère la perception
d’une incohérence verbale qu'elle dit aussi ressentir avec acuité. L' Etre du
patient, qui n'est pas un Etant, c'est à dire que ce qui fait le soubassement de
ces interrogations ne l'ouvrent pas sur les autres, son rapport aux autres et au
monde dont le langage se fait ici l'écriture sont d'emblée esquissés, appuyés par
l'être -là du psychologue chercheur qui s'interrogera sur le sens de son Etre avec
le patient dans l'après-coup. En effet, le récit qu'elle fait dans un premier temps
se moule dans cette incohérence et la description qu'elle donne de ce patient est
cahotique,
parfois contradictoire. La particularité de la position de cette
psychologue chercheur, est qu'elle s'interroge, se questionne sur les dires du
patient mais également sur l'effet du dire de ce patient sur elle, introduisant un
écart qui rend possible l'élaboration qui en suivra et qui modifie la restitution
même de son récit.
Elle se dit d'abord frappée par les associations de ce patient, dont elle dira qu'il
élabore beaucoup, qu'il a une conscience de ses troubles, qu'il en parle avec une
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
capacité introspective remarquable. Mais cette capacité à associer lui apparaît
ensuite comme prototypique du saut perpétuel que fait la pensée de ce patient,
capacité à donner l'impression d'associer mais ces laisons psychiques ne sont pas
élaborerassocier qui n'a pas d'effet dans un premier temps sur lui dans le dire
qu'il produit. Son discours qui apparaît diffus, éparpillé, se propageant dans de
multiples directions de sens, est émietté, éparpillé, riche quoique décousu et
témoigne des perturbations des flux de sa pensée rappelant la notion de
piétinement. La jeune psychologue perçoit la redondance de certains pans de
cette histoire, à la fois dans leur contenu mais également dans leur forme, d'une
séance à l'autre, comme répétés, dupliqués à l'identique, véritables stéréotypies
témoignent d'un défaut d'inscription, d'un défaut d'impression dans la psyché
d'éléments qui ne tiennent pas. Tels ces « déments » à la mémoire ajourée, qui
se perdent en radotage lorsque la temporalité achoppe. Leurs mouvements, leur
pensée, leurs comportements s'inscrivent alors dans une répétition sans création
apparente, à l'identique.
Premier contact
Lors de la première rencontre, Pierre est arrivé dans le couloir, avec une
démarche maladroite, intimidée, tête baissée, qu'il tournait en quarts de tour de
la gauche vers la droite avec l’expression d’un enfant qui appréhende un premier
rendez- vous inconnu, avec une gaucherie empruntée et qui arrive dans un lieu
qu'il doit seulement découvrir et explorer alors que Pierre est déjà venu à de
multiples eprises au CMP. La question du rapport au monde se pose dès l’instant
de la rencontre. Pierre s’inscrit corporellement dans toute une attitude, un
comportement et interpelle la jeune psychologue par sa façon si singulière de se
mouvoir, de se tenir dans l'espace ambiant. Au moment de rentrer dans la salle
d’entretien, composée d’un canapé et d’un fauteuil en cuir noir disposés face à
face, Pierre fait timidement signe de la main et s’assoit après y avoir été invité.
Physiquement, il occupe une infime partie de la pièce, s’assoit dans un coin du
canapé, les jambes croisées. Il regarde ailleurs et semble attendre
impatiemment le droit à la parole tout en laissant croire que c’est à l’autre de
mener l’entretien. Lorsque la parole lui est accordée, Pierre s’exprime d’emblée
sur un mode très fluide. Pierre semble très calme mais tout son corps donne à la
psychologue l'impression d'une lutte qui n'a de cesse de l'envahir tout entier. Elle
perçoit l'angoisse sous jacente qui se donne à voir dans les attitudes
empruntées et adaptées, contrôlées qui l'habitent tout entier mais dans une
extraordinaire paradoxalité comme si Pierre était observateur-acteur d'un monde
qu'il appréhende en toute extériorité.
Etrange contact que la doctorante décrit avec ce patient qui paraît inhibé,
vulnérable et qui semble attendre patiemment d’être invité à parler. Les premiers
mots toutefois donne le ton, envahissent l'espace, envahissent l'autre, touche
l'autre sans paraître pourtant le toucher lui émotionnellement. Et si la densité du
propos est perçu par la psychologue-chercheur c'est davantage dans leur
élaboration intellectuelle, voire abstraite que dans leur capacité à rendre compte
d'un vécu. Il faudra d'ailleurs que ce vécu soit retranscrit, élaboré pour qu'il en
devienne alors partagé. Elle relève d'ailleurs la grande capacité de Pierre à parler
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
de lui, à évoquer ses angoisses, ses préoccupations, à manier avec une aisance
remarquable, ce qu'elle appelle dans un premier temps l'introspection réflexive.
Pourtant, cette introspection paradoxalement ne semble pas provenir de
l'intérieur, d'éprouvés qui seraient ainsi liés par le langage, mais de l'extérieur.
Parlant de lui comme il pourrait parler de quelqu’un qu’il a longuement observé,
Pierre fera état avec un grand détachement des affects qui l’ont habité à certains
moments de sa vie. Ce détachement donne à Pierre l'impression d'une grande
capacité d'analyse dans l'intellectualisation qui en découle. Le discours de Pierre
quelque peu étrange par endroits, évoque de façon plus générale la façon dont
les mots sont utilisés par le schizophrène non pas dans le sens du langage le plus
commun mais dans un usage strictement personnel où le sens du mot se fixe,
dans la synchronie pour un temps où la langue évolue peu (Michaud, 2004).
« Vous savez, parfois, j’entends les mots, mais y a plus aucune consistance, je
n’arrive pas au signifiant des mots. C’est comme si on me parlait dans une
langue étrangère» dira-t-il lors d'une séance.
Pierre emmène peu à peu la psychologue sur le chemin de son histoire, celle qui
le met en conflit avec le monde, sans que pour autant ce conflit ne soit élaboré
pour être ensuite dépassé. Il relate de façon répétés les efforts faits pour
s'adapter aux autres qui sont toujours à refaire en fonction de ce qui se présente
à lui et qui paraissent donc être des colmatages qui ne tiennent pas. Ton
monocorde parfois, son discours se déploie avec une affectivité qui semble
dépourvue de tonalité. La psychologue se dit fascinée par ce qu'elle ressent
comme une « perte de l'évidence » Elle décrit comment chaque acte, chaque
situation sont posés comme tourments pour sa pensée, et sont alors attrapés,
découpés, analysés, dans un véritable processus qui pourrait être de l'ordre de la
création, de l'ordre du maintien au monde, création qui est pourtant toujours à
refaire.
Si lors des premières rencontres, Pierre donne l'impression d'une conscience
aïgue du monde qui l'environne, très vite la doctorante comprend, grâce au
dispositif mis en place qu'il s'agit d'une appréhension partielle, clivée, de la
réalité, appréhension qui se fige jusqu'à la paralyser. Il en sera ainsi de sa
relation aux autres, de ses émotions, des souvenirs, du rapport à son propre
récit. Contenu, comme neutralisé en permanence, Pierre, dans cette fascination
qu'il exercera sur elle, la captivant, la tient également à distance, tout en la
neutralisant. Nous sommes ici au coeur même du processus transférentiel qui
anime presque tous les entretiens entre ce patient et cette jeune psychologue.
Voyons quelques exemples de ce qui a constitué ce qui sera élaboré par la
psychologue-chercheur. ,
La relation à la mère
Dès les premiers entretiens, Pierre évoque le lien la mère, première figure qui
marque la perception qu'il a du regard d'autrui.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
« J’ai eu une enfance formidable mais ils (parents) étaient trop bons avec moi, je
ne l’ai pas mérité. Mon enfance a été des plus heureuses, on a tout fait pour me
préserver, je n’ai vécu aucun deuil, j’ai baigné dans l’insouciance »
Il décrit une mère « trop bonne » qui vient buter sur sa capacité à frustrer
l'enfant. La doctorante, mise dans cette position de « toute bonne » associe alors
sur ce que Winnicott a décrit et renvoie le vécu qu'il a de sa mère, dessaisie de
la préoccupation maternelle si bien décrite par Winnicott, à son impossibilité à la
vivre comme pouvant entendre puis s'adapter aux besoins qu'il exprime à son
endroit. Mère idéale ne pouvant accepter de présenter une constance affective
suffisante pour maintenir une juste adéquation entre elle et son bébé, jamais
facile à atteindre, et jamais donnée d'emblée, la mère est vécue comme
incapable d'ouvrir un écart, celui de la différenciation, passage obligé vers une
possible séparation, une possible altérité. La doctorante traduit alors le défaut de
situations de deuil comme l'impossible éprouvé de deuil chez ce patient, le deuil,
du latin dolore, douleur, expérience même de la séparation, qui n'a pas été
effective et opérante. Le défaut d'inscription dans la psyché du processus même
liée à la séparation, qui ouvre la voie à la temporalité et à l'individuation inaugure
l'altération de la relation objectale. Maintenu comme objet de satisfaction de la
mère, Pierre est réduit au statut d'infans, dans lequel il croit être tout pour la
mère. « A mes 12 ans, c’est encore ma mère qui me lavait. Je ne me rendais
pas compte que ce n’était pas normal. Ma mère était très possessive, elle m’a
toujours considéré comme un petit enfant » Le maintien de la relation
symbiotique entre la mère et l'enfant et l'impossibilité de s'en dégager et
d'accéder au sentiment d'individuation, ne courcircuitent -ils pas toute
séparation? ne seraient-il pas responsables de la psychose, comme le soulignait
Malher? (Malher, 1968) Et c'est ce statut, présnetifié dans le discours de la mère,
qui lui donne illusoirement le pouvoir sur sa mère, le pouvoir de la faire exister,
le pouvoir de la maintenir en vie.
« Avant je partais à l’école en vélo et je me souviens d’une fois où ma mère m’a
dit « fais attention à la route, parce que tu sais bien que je n’ai que toi ». Y avait
que moi qui existais pour elle »
Comme la doctorante, chercheur, dans cette situation, obligée de s'en remettre à
Pierre pour mener sa recherche, la Mère est décrite par Pierre comme incapable
de vivre sans lui, toute tentative d'éloignement, toute expérience d'autonomie
est marquée du sceau de l'impossible et présentée sous l'égide d'une menace de
mort qui plane sur l'objet. Le prix à payer pour maintenir ce pouvoir de toute
puissance sur la mère, le pouvoir de la faire vivre, pour continuer à satisfaire le
moi-objet, devenu objet indispensable, devenu un moi-roi, est celui de la liberté,
du renoncement à devenir sujet « exister pour elle ou n'être rien » Mais dans ce
renoncement, si la libido ne peut pas emprunter le chemin de l'amour, amour
pour l'autre, amour de l'autre, alors la violence peut émerger sans retenue,
violence que les propos véhiculent et que la psycologue reçoit de plein fouet
comme si « cela s'adresse à elle dira-t-elle »
« Je n’aimais pas ma mère. Mais
ça ne me faisait pas souffrir. Le fait d’être aimé, ça me satisfait ...d'ailleurs je
n'aime personne » Mère objet qui n'existe que pour combler l'enfant, que pour
l'investir dans un renforcement narcissique, non-soi pourtant emprisonnant sur
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
lequel est projeté le potentiel violent inhérent à tout être humain. La doctorante
va d'ailleurs associer cette attitude à ce que Bergeret a nommé la violence
fondamentale qui est à distinguer de l'agressivité (Bergeret, 1984). Bergeret la
situe du côté de la vie, de la force vitale, de l'élan de survie, dépourvue de toute
connotation agressive, destructrice ou érotique que l'on peut retrouver dans
l'agressivité. L'émergence de cette violence, qu'il définit comme purement
narcissique est bien en deçà de la reconnaissance de l'objet car l'altérité n'a pas
pu encore être éprouvée mais permet paradoxalement à l'enfant de se dégager
d'un non soi qui s'est pourtant profilé. Ce potentiel semble ainsi constituer pour
Pierre, dans l'absence de souffrance qui l'accompagne, une protection que la
psychologue perçoit donc comme telle.
En effet, sur le chemin de la séparation, la mort de l'objet qui ne peut vivre
séparé, pointe à l'horizon; l'objet de satisfaction narcissique qui prend le moi en
otage, dans un double lien, un double discours (si tu pars, tu peux mourir et me
faire mourir) peut faire le lit de la schizophrénie et le risque d'éclatement du moi
est alors à craindre.
Mais pour que la psychose se déclenche, il faut que le nom du Père, soit
verworfen, forclos, c'est à dire à jamais venu à la place de l'Autre. (Lacan, 1966).
Voyons comment il évoque la place du père
« Ma mère m’aimait plus que mon père, enfin son mari. Mon père n’a jamais eu
sa place de mari ni de père. Quand je suis enfin parti de chez moi, pour vivre en
appartement thérapeutique ça lui a fait de la peine, puis trois mois après, elle est
morte. Elle est morte parce qu’elle ne me possédait plus. Toute sa vie, son
affection a été focalisée sur moi »
Le père reconnu dans le lien de filiation et le lien qui l'unit à la mère est non
investi par la mère ce qui ouvre alors à la jouissance, rendue possible dans la
fusion, qui empêche l'existence de l'Autre. Confronté à ce blanc inexpliqué de
l'énigme du couple parental, Pierre aurait-il été destiné, comme Aulagnier le
souligne à travers sa pratique auprès de psychotiques, à ne pas naître
psychiquement? (Aulagnier, 1975)
Cette mort, prise au pied de la lettre comme la traduction d'une impossible
séparation, ne montre -t-elle pas à Pierre qu'indispensable à la survie maternelle,
il n'a vécu que pour elle? Dans ce tout pour la mère, il peut n'être rien pour luimême, assujetti à la relation duelle par une mère incapable d’attribuer une
fonction de loi à la parole du père. La menace de mort qui plane sur la mère si
son enfant s'éloigne est ici prise au pied de la lettre, sans possibilité d'ouvrir un
espace métaphorique. Le père n'est ici pas éprouvé comme tiers. C'est alors
Lacan qui est convoqué par la psychologue-chercheur, Lacan qui a tenté
d'articuler cette question sous le concept de Nom du père, qui entraîne une
séparation radicale entre la mère et l'enfant qui voudraient tous deux satisfaire le
désir de l'autre (Lacan, 1966).
Confronté à une situation existentielle où il est mis en demeure de se situer en
son nom propre, le sujet peut vaciller et perdre alors son sentiment d'exister.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Cette inexistence, cette incapacité à ex -istere devient aiguë dans le contact avec
l'autre et empêche l'enfant de se confronter au système social que forment les
autres.
Le rapport à soi
Et c'est spontanément qu'il déplie ce qui fera le lit de tout son discours, à savoir
sa relation aux autres et par voie de corollaire le rapport qu'il entretient avec luimême. Apparaissant comme une toile de fond tapissant son monde intérieur, la
question du narcissisme est d’emblée posée par la jeune psychologue qui se sent
exclue du champ de l'investissement de ce patient mais qui pourtant perçoit sa
présence auprès de lui comme « indispensable ».
Concept difficile à problématiser, la question du narcissisme va l'interroger; elle
insiste sur le fait que la schizophrénie, dans les conceptions initiales de Freud, a
été décrite comme une « névrose narcissique » où tout se concentre sur des
rêveries intérieures, des processus mentaux, des images, des souvenirs, des
rêves qui ne laissent plus aucune place à l’amour, à l’affection, à l’intérêt pour le
monde extérieur. Et dans le lien qu'il entretient avec la psychologue, tout en la
maintenant à distance, il maintient dans une position où elle se dit « scotchée »,
l'écoutant avec une attention toujours plus soutenue malgré la redondance des
propos.
« Vers 15 ans - (silence) - j’ai découvert ma sexualité mais sans partage. Je
n’avais aucune attirance physique ou sexuelle. Mais pourtant j’avais envie de
plaire aux filles. Je crois qu’inconsciemment c’était juste pour être aimé. Une fille
qui m’aurait apporté de la sympathie, qu’elle me parle, qu’elle me sourit, ça
m’aurait apporté de la satisfaction personnelle. »
Être aimé de l’autre pour venir encore renforcer et toujours l’amour pour soi.
Narcisse était- il plus centré sur son image que Pierre ?
« Vers 18- 20 ans, je me sentais coupable, je ne comprenais pas pourquoi mes
camarades ne parlaient pas de masturbation, de jouissance avec son propre
sexe… Moi je vivais cela et j’avais l’impression d’être unique à faire cela. C’était
un aspect détestable de moi-même. A un certain moment, je ressentais vraiment
une énorme culpabilité. Mais le plaisir que je ressentais m’apportait une
compensation. C’est un plaisir tellement intense, c’est pour cela que je
recommençais (...). J’avais l’impression que les gens ne pouvaient me
comprendre parce que c’était propre à moi. »
Poour sortir de cette capatation dans laquelle elle se dira enfermée, la jeune
psychologue a besoin de passer par la théorie sur laquelle elle associe très
facilement, comme si la théorie reste un tiers entre ce patient et elle, tiers que je
représente aussi, de par ma position d'enseignante à qui elle vient, comme
Pierre, faire l'analyse de la situation.
« Ma vie sexuelle n’est pas normale du tout. Je n’ai jamais fait l’amour, je n’ai
jamais eu d’attirance sexuelle. Ce n’est pas normal.(…)! C’est presque
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
incroyable, je m’en suis aperçu y a pas si longtemps que ça. Ce n’est pas tabou,
je vais vous le dire : je n’aime personne…je n’ai jamais aimé personne. »
Propos sentencieux qui, dans sa bouche ne semblent révéler « aucun état
d’âme » et qui sonnent pourtant chez la jeune psychologue, qui se disait séduite
par lui, comme une provocation. A quelle place est-elle mise alors, si ce n'est à
celle de la mère?
« Je ne sais pas si je vous en avais parlé…je me suis rendu compte l’année
dernière…et je suis tombé de haut ! je n’aime personne, je n’ai jamais eu
d’amour pour personne, ni de haine d’ailleurs. C’est comme s’il manquait une
corde au violon, on ne peut plus y jouer. Je n’ai pas d’amour dans le
cœur »... « je sais, c'est curieux que je m'en sois rendu compte (que j'aimais
personne). Et c'est depuis ce moment là que j'ai l'esprit confus et
désorganisé »... »vous, ça se voit que vous aimez les gens »
Il évoque alors une relation terminée depuis 3 ans, avec une femme, que la
doctorante pour les besoins de l'anonymat prénomme Paule et ce qu'il a partagé
avec elle. (la jeune doctorante s'appelle Pauline). D'ailleurs, c'est lors de cet
entretien qu'il cherche à savoir avec insistance auprès de la jeune psychologue
si c'est la maladie qui est responsable de son état, maladie vécu comme élément
extérieur dont il aurait à subir les outrages.
« Dans « entretien » il y a « entre », et ça signifie plus qu’un dialogue. C’est de
plus en plus rare que les gens écoutent. Et ce n’est pas par hasard que vous
faites ce métier, vous tentez d’apporter quelque chose aux gens.....Ma pensée
est désorganisée, j’ai une altération du psychisme, ça me fait mal. » Et derrière
cette souffrance que la jeune psychologue entend
de façon criante,
presqu'insupportable dira-t-elle, c’est toujours et encore l’amour de soi qui
revient en filigrane.
Le contrôle de la pensée ou comment freiner l'angoisse sous jacente
« Quand je vais trop loin dans mes pensées, tout à coup, la pensée s’arrête
parce que j’ai peur d’aller trop loin. C’est une limite floue que je ressens
physiquement. C’est comme si ça ne peut pas passer au niveau du cerveau, c’est
très subjectif, complètement opposé à tout ce qui est matériel ou physiologique.
A cette atteinte de la limite, je me sens tout d’un coup mal à l’aise parce que je
sais que je cesse de me contrôler.......
J’ai toujours cette peur de dépasser les
limites, d’aller tellement loin dans mes pensées, que je passe la barrière, que je
n’arrive plus à me contrôler, que je sombre dans la folie ».....« je suis hyperémotif »........ « si l’émotion est trop intense pour moi, ça devient un choc,
comme si ça allait me conduire à la mort, ça me fait souffrir. »
Les éléments transférentiels font éprouver à la jeune psychologue cette angoisse
dont il lui parle, cette expérience étrange des limites poroses entre l'intérieur et
l'extérieur où le moi, devenant tout à coup fragile peut se perdre. Cette peur qu'il
évoque ne semble pourtant pas troubler son corps qui reste inerte, presque sans
vie, donnant à ses contours une rigidité apparente, prête à s'effondrer au
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
moindre contact, à la moindre émotion qui pourrait le remuer et le bouleverser
jusqu'à le faire mourir. Comme si le trouble émergeant chez celle à qui il
s'adresse suffisait pour qu'il en fasse l'économie. Et face à cette possible mise à
mort, face à cette menace qui est vécue dans le réel de son éprouvé, alors une
opération défensive doit être mise en place.
« J’aurais même peur d’être moi-même. Mais tout est imbriqué, je ne sais pas si
mon jugement est erroné ou vrai, en partie, tellement j’ai douté de moi-même
dans ma vie que je n’arrive pas à m’accepter. Je suis en plein doute. Mais j’en
reviens toujours à me poser la question de mon rôle…(…) Si je ne m’étais pas
contrôlé quand on m’a interné pour folie, j’ai l’impression que je ne serais plus
là, soit j’aurais sombré dans un délire, soit j’aurais cessé de survivre. Si je ne me
contrôle pas, je peux partir dans un état d’être moi-même, avec ma propre
personnalité… c’est quand je suis en pleine démence finalement que je suis moimême. »
La notion de contrôle semble omniprésente, contrôle sur le monde, sur lui-même
et sur les autres qu'il maintient à distance de façon systématique.
Le contrôle est posé ici comme une digue pour lutter contre le délire, contre la
pensée qui s'égare, contre le débordement qui jaillit jusque dans le réel,
menaçant l'effondrement du moi ou son morcellement. Se laisser aller à penser,
c’est aussi se risquer à la désintégration psychique, au désordre, hors du sillon,
autrement dit, au délire, « à la folie ». Et c’est dans cet espace que se loge le
moi, en risque d'effondrement, révélant par-là un moi non encore constitué, non
encore consolidé, inconsistant et fragile. Faut-il que le monde des pensées soit
vécu comme menaçant pour qu'une telle digue soit érigée? Faut-il aussi que
l'intégration psychique des expériences vécues ne soit pas harmonieuse pour
qu'une telle organisation psychique soit à ce point rigidifiée sans pour autant en
être suffisante pour qu'elle soit toujours à refaire assurant ainsi le maintien du
Moi?
C'est vers Anzieu, que la jeune doctorante se tourne alors pour comprendre
comment ce rôle est à référer au moi peau, Véritable Peau sociale qui lui
permettrait de restaurer ses limites dedans-dehors mises en déroute par un mal
d'exister. (Anzieu, 1985). Ainsi sa manière d’habiter le monde qu’il nomme le
« rôle » revient à poser la question d’un Moi affaibli par les multiples facettes qui
le recouvrent en gardant en même temps un espace secret lui permettant de
réinvestir des pensées qui soient siennes (Aulagnier, 1991). Oscillant sans cesse
entre le normal et l’anormal, entre la réalité et son vécu, entre la raison et la
folie, Pierre apparaît être un sujet-objet, tout à la fois regardant et regardé
comme dans le tableau de Vélasquez.
« Peut-on choisir à quoi on pense ? Est-ce une création, un contrôle de nousmême ? »
Telle est l'interrogation qui parfois ponctue son propos. La pensée est perçue
comme objet que l'on pourrait modeler, sculpter à sa guise. En cela le processus
qui opère pourrait être de l'ordre d'une création, tentative toujours répétée pour
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
s'inscrire dans le monde. Pierre questionne mais cependant ne semble pas
attendre de réponse, de participation active à ses interrogations de notre part.
Minkowski (1927) parlait à ce propos d’autonomie morbide. Pierre, en ne
sollicitant aucune réponse de la part de la jeune psychologue à qui pourtant il
adresse ses propos, se retranche dans un recul par rapport à la réalité. Cette
attitude réflexive va surprendre la psychologue surprend à plus d'un titre et dans
le déploiement transférentiel la mettra profondément mal à l'aise. Tel un
spectateur qui regarde de façon passive une scène dans laquelle un monologue
se poursuit, elle repérera lors de la relecture des entretiens, l'étrange rupture
avec la réalité que Pierre met en acte.
Ce sentiment d’étrangeté dont Pierre parle, jaillit dans le transfert qui fait
éprouver à la jeune doctorante l'inquiétude du doute qui l'envahit. Mais plus que
ses propos, c'est davantage l'absence d'adresse qui les caractérisent qui peut
troubler celui qui en reçoit ainsi le contenu. « Pierre me regarde mais ne semble
pas me voir et ne cherche pas dans mon regard une quelconque approbation,
une quelconque réponse à ses questions. Je me sens alors dans un premier
temps comme une vitre sans teint. Je le regarde, il me regarde mais ne me voit
pas le regarder ». Comme un miroir qui fait défaut, le visage qu'elle tourne vers
lui ne semble pas renvoyer l' image qui nous émeut tant lorsque nous nous
tournons vers l'Autre, parce que nous y voyons, à travers celui qui nous regarde,
ce qu'il réfléchit de nous comme Lacan a pu le souligner (Lacan, 1966). Elle
décrira Le regard de Pierre qui reste fixé sur elle lorsque son regard croise le sien
non pour interroger sa pensée mais pour s'y plonger, pour s'y fondre et s'y
confondre dans un mouvement fusionnel qui la met mal à l'aise. Il est
probablement banal de dire que l'enfant n'a pas, lors des tous premiers mois de
la vie, une image unifiée de son corps, mais l'identification a son image se
reflétant dans le miroir que lui présente le regard de l'autre est structurante dans
la mesure où elle constitue un rempart nécessaire pour le protéger de ce qu'il
peut éprouver comme un morcellement. Cette capacité à se percevoir dans le
regard de l'autre en l'interrogeant ferait-elle ici défaut chez Pierre?
« Je ne m’accepte pas… (…). Comme si je n’étais pas l’original ; je suis comme
une copie des autres. Je suis faux. Attention, ce n’est pas de l’hypocrisie, c’est
autre chose, c’est dans mon fort intérieur, je n’ai pas de personnalité. »
Le problème dans la psychose est dans la fébrilité du « je », toujours en proie au
doute, à l'inconsistance, toujours prêt à s'effacer. Quand le signifiant paternel
manque, le passage par des identifications purement conformistes à des
personnages quelconques est de l'ordre de la survie.
« J’ai l’impression d’être resté un enfant, et de n ‘avoir jamais atteint le stade de
l’adulte. Je me suis rendu compte que… tout le monde, à partir d’un certain
moment fait un pas décisif vers l’âge adulte, moi j’ai eu cette occasion mais je ne
l’ai pas fait. je n’ai tout simplement pas eu le courage de le faire......Je me sens
écartelé d’un côté « enfant », et d’un côté « adulte », ça cohabite en moi, dans
mon corps, tout se retourne, et c’est pour cela que je n’ai pas pu accéder à la
formation de ma personnalité. Il y a une coexistence de choses antagonistes en
moi. Pour avoir une personnalité, il faut avoir souffert dans la vie. »
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Le rapport aux autres dévoile, dans son altération, un vécu oscillant entre
être/être soi/être l'autre, subir-un-rôle et choisir- un-rôle (Tatossian, 1979).
Comment se vivre soi parmi les autres lorsque le sentiment d'exister n'a pas
opéré? Comment se vivre dans une continuité d'être lorsque l'être vacille, lorsque
le maintien de l'identité devient si fébrile?
« J’ai l’impression d’avoir passé une partie de ma vie avec certaines émotions, un
certain caractère, puis petit à petit, je me suis éloigné de ce que j’étais avant
mes 15- 20 ans. J’ai changé d’identité, j’ai eu du mal à accepter ma sexualité, ce
que je suis. C’est sûr qu’on évolue de l’enfance à l’âge adulte, mais moi c’est
autre chose. (…)Je n’ai pas de personnalité, je n’arrive pas à être moi-même, j’ai
toujours un certain recul, un contrôle de moi-même quand j’interagis avec les
autres. Je me contrôle beaucoup, je m’oublie moi-même parfois. ».......... »Je
me suis construit un idéal et je cherche à l’atteindre. Mais attention, « idéal » en
tant que « souhait » avec moi-même comme acteur. »
Etranges propos encore et toujours qui signent l'échec de la métaphore
paternelle. Etre soi, unifié et toujours le même, c'est pouvoir renoncer au statut
d'enfant pour accéder à celui d'adulte. Or, devenir adulte, c'est se situer dans un
rapport hiérarchique, différencié. Pierre évoque à chaque fois des moments clefs
de sa trajectoire qui sont des passages entre deux mondes, deux univers, qui
appellent chez l'être humain des renoncements. Ainsi le statut d'enfant de la
latence, se séparant de ses objets d'amour pour investir ses pairs, puis celui de
l'adolescent, se séparant de ses pairs pour devenir adulte et enfin le statut
d'instituteur réactivent à chaque fois une posture impossible à assumer, celle
d'un rapport à l'autre, toujours plus différencié, toujours plus hiérarchisé qui
implique la saisie d'une limite entre moi et l'autre, d'une frontière qui institue le
rapport entre le je et le tu, qui ne peut advenir que si le tiers a pu introduire cet
écart, propre à la triangulation qui introduit à l'ordre de la différence et de la
socialisation,
Et si l'agressivité, versant libidinal de la pulsion émerge, amorçant une liaison des
pulsions, c'est dans l'imaginaire qu'elle peut se déployer comme si la
confrontation avec la réalité, avec l'objet, ne pouvait pas opérer
« J’étais agressif seulement par les pensées, je rêvais que j’étais méchant, je les
frappais tous, y avait quelque chose qui ressortait de moi-même mais dans mes
pensées, la nuit, dans mes rêves… Je n’avais pas de personnalité véritable. Il n’y
avait que la nuit, dans mes pensées, où j’étais moi-même. »
De la même manière les femmes qu'il a pu investir
l'objet maternel dans un amour-fusion.
restent une réplique de
« Une fois, je n’arrivais plus à dormir, j’ai repensé à Paule (une femme qu'il a
rencontrée après la mort de sa mère, dont il s'est épris et à qui il a légué ses
biens) et j’ai pensé que je l’aimais, j’étais possessif avec elle, enfin j’aurais voulu
la posséder. Un peu comme ma mère me possédait autrefois. La possessivité de
ma mère a influencé ma plus petite enfance. Je voulais que Paule
m’appartienne...........Je me rendais compte que je ne pouvais pas la posséder,
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
être toujours avec elle…c’était comme si des parties de moi-même se
détachaient. Je n’arrive pas à expliquer. A cette période, la première pensée que
j’avais le matin c’était pour Paule, la journée, je pensais à elle, idem quand je me
couchais…Mais (…) ce n’était pas de l’amour. Y avait pas de composante
sexuelle. J’étais égoïste, ce n’était qu’une histoire de possession. Quand j’allais la
voir, c’était le paradis, ce sont les plus beaux moments de ma vie. Le matin, je
n’attendais qu’une chose : que mon téléphone sonne pour qu’elle m’invite boire
un café, et elle le faisait tous les matins. C’était mon seul but. Quand j’entendais
sa voix, je savais que j’allais la voir. J’étais heureux, mais ce n’était pas pour
avoir fait une belle chose ou quoi…ce n’était pas de l’amour »
D'une séparation impossible à la rupture
C'est lors de l'avant dernière séance qu'après avoir reparlé à nouveau du
sentiment de ne pas être comme les autres, il évoque le décès brutal de sa mère
et celui de son père. Quelque chose d'étrange se produit alors. Pierre qui ne
cesse de parler comme pour remplir au mieux l'espace, semble tout à coup
absent comme soustrait à l'environnement. Revenant tout à coup comme de
nulle part, il interroge de plus belle.
« Est-ce que la pensée qu’on a, nous vient naturellement ou on la contrôle
inconsciemment ? » « Peut-on choisir à quoi on pense ? Est-ce une création, un
contrôle de nous-même ? ».
Essayant de comprendre cette demande qui n'attendait pas plus de réponse, la
jeune psychologue dira qu'elle est entrée à ce moment là dans une relation vraie,
authentifiée par la suite de ses propos: « Avant de vous voir, j’ai envie de vous
dire certaines choses parce que je ne peux pas en parler à personne d’autre.
Vous dégagez une certaine neutralité, je n’ai pas de honte de parler de choses
taboues. Ça me fait plaisir de venir vous voir, et quand je rentre chez moi, j’ai
l’impression de ne plus contrôler ma pensée et c’est préjudiciable, je suis dans
un manque de contrôle, je laisse tomber mes défenses. Mes pensées s’inscrivent
dans un déroulement qui ne s’arrêtent pas directement quand je sors du CMP.
Des fois j’utilise des mots spontanément, et quand j’y réfléchis, je ne connais
même plus le sens du mot… »
Ce n'est que bien plus tard qu'elle comprend le sens de cette phrase, bien après
la 8e séance qu'elle n'imaginais pourtant pas être la dernière. Il arrive ce jour là
avec son agenda qu'il offre à sa vue. A la date du jour, était inscrit : RDV avec
Pauline; ne pas trop parler. « la dernière fois vous m'avez ouvert des vannes,
ma pensée ne cessait pas de se dérouler ». Il explique l'effort, fait, dans l'aprèscoup pour « regagner la ligne droite ». L'espace libre, favorisant l'association
libre, sans « contrôle », était-il trop régressif pour lui au point d'ébranler les
digues de défense qu'il avait si soigneusement construites?
Lors de cette séance il évoque une autre femme « Avec Claudie, j’ai ce désir de
possession. La possession, je ne peux pas la contrôler, je ne peux pas la changer
non plus, je me sens coupable de vouloir posséder. Vais- je avoir le courage de
la regarder dans ses yeux la prochaine fois étant donné ma culpabilité ? »
59
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Objet interchangeable qui prend parfois le visage de la mère ou de Paule,
confondant les prénoms « elle (Paule? Claudie?) a une voix très douce et quand
je l’entendais ça me faisait quelque chose, c’était des moments très doux pour
moi comme ceux avec ma mère. Parfois, j’étais irrespectueux, dur avec ma
mère…J’aimais entendre la douceur de sa voix…Tout ce que je n’ai pas fait pour
ma mère, je l’ai fait pour cette dame. »
« Posséder , c’est comme si c’était la seule chose à moi ; elle m’appartient.
Comme si j’agissais dans le but de l’avoir pour moi tout seul. C'est quand je suis
chez moi, seul, que je ressens le plus ce désir de la posséder. Je voudrais qu’elle
n’appartienne à personne d’autre que moi, qu’elle ne voit que moi. Je voudrais
être le seul à qui elle donne de l’affection, de l’estime… Ma mère avait ce désir de
possession sur moi mais elle, il y avait de l’amour aussi. »
Pouvoir jouir de l'autre d'en disposer, de s'en servir, n'est ce pas se situer au lieu
de l'Autre et se confondre avec lui jusqu'à en être victime au prix même de sa
propre vie?
« si je ne parviens pas à la possession, j’aurais un manque
d’affection. Je ne sais pas si j’aurais des motivations pour vivre »
Le signifiant de son prénom, Pauline, apparaît alors dans toute la prégnance du
transfert lors d'une relecture de l'article Pierre ne viendra pas à la séance
suivante. La psychologue du service, l'ayant croisé quelques mois plus tard, me
dira qu'il va bien, qu'il ne souhaite plus « se confier ».
Conclusion:
Le récit intertransférentiel permet un travail de tisserand, permet que les
associations d'idées, , épars, désorganisés, saississant les éléments de la réalité
brute, éléments béta de Bion, soient liés, tissés pour les transformer en
éléments alpha de pensée. Cette liaison permet de construire une trame
suffisamment solide sur laquelle il n'y aura ni trop, ni trop peu de réalité. Si les
éléments de la réalité réussisient à être intégrés psychiquement
par le
psychologue alors il pourra se prêter comme appareil à pensée pour le patient et
lui éviter un risque de désorganisation du finctionnemment psychique qui est
toujours à craindre, et le patient pourra lui aussi les intérioriser.
Il s'agit donc de lier les affects pour les soumettre au travail de pensée, et éviter
les écarges brutales dans les actes, ne serait ce que langagier.
Ce patient, souffrant de psychose, au-delà de son expérience subjective qui
nous permet d'entrevoir la façon d'être au monde d'un « schizophrène »,
interroge de façon prégnante le sens de nos interventions et le sens même de la
démarche de la recherche en clinique.
Grâce à la méthode des récits transférentiels, les questions qui émergent autour
de Pierre, pris dans les mailles de notre propre désir de psychologue-chercheur
rencontrant chez ce patient le besoin d'être l'objet de ce désir, sont de toute
évidence celles que tout psychologue clinicien est amené à se poser, que le cadre
soit celui d’une recherche ou celui d'un espace thérapeutique. C'est
probablement là que vient se loger la psychanalyse dans ce lieu qui se construit
60
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
par et dans la rencontre et dans l'effet produit par le transfert et la mise en récit
de ce transfert.
Mais cette méthode opére parce qu'elle introduit une autre dimension, un autre
espace dans lequel on peut observer trois registres: la position subjective du
patient, qui participe à une recherche et qui et qui en tant que tel modifie le
contenu de son discours dont il rend compte à travers ses associations libres. Ce
registre, je l'appelle le réel de la clinique en tant qu'il est impossible à dire
(Lacan).
Le deuxième registre est celui qu'introduit le récit du psychologue chercheur qui
s'interroge face à ce qu'elle a retenu de ce récit, je réfère ce registre à celui de
l'imaginaire puisque le psychologue chercheur rend compte d'une situation
intersubjective , d'une rencontre entre deux subjectivités.
Le troisième registre est celui qu'introduit l'écoute de l'analyste qui interrogeant
le récit du récit du patient, et les mouvements contre-transférentiels du
chercheur mais également les siens propres, va amener le chercheur sur autre
scène. Ce glissement permet la traduction du récit premier et donne lieu à la
construction d'un nouveau récit, un paratexte. J'appelle ce registre qui fait passer
l'agir de la relation au langage, le registre symbolique. C'est l'analyste qui ouvre
la voie vers ce registre dans la démarche de la recherche clinique. Ainsi, chaque
entretien du psychologue chercheur avec l'analyste chercheur donne lieu à un
paratexte, celui où sont notés les commentaires, les associations du
psychologue-chercheur formulée à l'endroit de l'analyste
Il y a un élément qui permet le nouage entre ces trois registres: c'est l'outil que
constituent les entretiens entièrement enregistrés. Une fois tous les entretiens
achevés, et tous les paratextes obtenus, les entretiens du patients sont
retranscrits et font l'objet d'une nouvelle lecture pour comprendre comment le
récit du récit s'est construit et le sens que l'on peut donner à ce mouvement, non
pour le modifier mais pour tenter d'historiciser le récit ainsi obtenu en le référant
au contexte même de la situation clinique. L'article qui a émergé de ces
transferts, est ainsi tissé à partir de ce tiers qui devient co-auteur, co-auteur de
la transmission qui peut en être faite. Cette méthode des récits transférentiels en
devient ainsi la clef de voûte de la transmission.
Cette méthode qui associe nécessairement recherche et lien thérapeutique ne
serait-ce que par le statut même de clinicien que le psychologue peut avoir,
permet que ce qui se passe dans le réel de la situation ne soit pas pris
uniquement dans les mailles de l'imaginaire, c'est à dire dans une relation qui
reste spéculaire, fut-elle intersubjective mais que cette relation, s'ouvrant à
partir des éléments contre-transférentiels, et adressée à un Autre, puisse
s'élargir au registre symbolique. Maintenir le symbolique pour que wo es war, ich
will verden, un je qui reste parlant et désirant, pour que le ça se plie au loi du
langage tel est l'enjeu de la clinique.
Bibliographie
61
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Anzieu (Didier).- Le moi-peau, Paris, Dunod, 1985.
Apollon (Willy).- Enjeux éthiques de la mort volontaire, Cahiers de recherche
éthique, 11, 1985, p.165-185.
Aulagnier (Piera).- La violence de l'interprétation, PUF,1975.
Aulagnier (Piera).-Un interprète en quête de sens. Paris, Payot,1991
Bergeret (Jean).- La violence fondamentale, Paris, Masson, 1984.
Binswanger (Ludwig).- Le Cas Suzanne Urban ; Etude sur la schizophrénie, Paris,
Desclée De Brouwer, 1958
Blankenburg (Wolfgang).- La perte de l’évidence naturelle, Paris, P.U.F.1971.
Ferenczi (Sandor).- Thalassa, psychanalyse des origines de la vie sexuelle,
1924, Paris, Petite bibliothèque Payot, 2002.
Freud, (Sigmund).- Trois essais sur la théorie de la sexualité, 1905, Gallimard,
1962.
Freud (Sigmund).- Remarques psychanalytiques sur l’autobiographie d’un cas de
paranoïa, dans Freud (S.), Cinq psychanalyses, 1911, Paris, PUF 1977, p.263324
Freud (Sigmund).- Pour introduire le narcissisme, dans Freud (S.), La vie
sexuelle, 1914, Paris, PUF, 1969 p.81-93.
Lacan, (Jacques).- D’une question préliminaire à tout traitement possible de la
psychose, dans Lacan (J.) Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p. 531 à 580.
Lacan (Jacques).- De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la
personnalité suivi de Premiers écrits sur la paranoïa, Paris, Le Seuil, 1932.
Mahler (Margareth), Pine, (Fred), Bergman (Anni).- La naissance psychologique
de l'êre humain; tra française, Paris, Payot, 1980,
Malher (Margareth).- Psychose infantile, Paris; Payot, 1968Michaud (Ginette).Essais sur la schizophrénie et le traitement des psychoses, Érès, 2004.
Minkowski (Eugène).- La schizophrénie, Paris, Desclée de Bouwer, 1927, Payot,
1997.
Tatossian ( Arthur).- La Phénoménologie des Psychoses, Paris, Masson, 1979;
1954-55 - Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la
psychanalyse (S.II)
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Clínica da língua : tradução
e transferência narrativa
Thamy Ayouch
Université de Lille 3
“Porquê você esta traduzindo mais uma vez?” Muitas vezes, o meu primeiro
psicanalista me fazia esta pergunta, apontando o meu desejo de clarificação e
circulação entre línguas quando traduzia em francês um “ me saca de quicio” (me
põe fora de mi) ou um “‫( ”ت ي د ا‬fiquei sozinho como um montinho de
tristeza), frases que tinha pronunciado na sessão. Pelo menos, estas palavras
estrangeiras o tinham despertado! Por que e como eu traduzia? Associando? Em
quê idioma se fazia a concatenação das minhas associações? E por que passava
de uma língua a uma outra? Essas perguntas nunca foram resolvidas com o meu
psicanalista unilíngüe.
Eu as trouxe comigo para a minha clínica com pacientes multilíngües ou
poliglotas. No Centre Minkowska, acolhendo migrantes em muitos idiomas, na
associação CAPSY, basicamente com estudantes, e na minha prática privada, tive
oportunidade de trabalhar com pacientes hispanófonos, italianófonos, lusófonos,
anglófonos e arabófonos.
Questionava-me sobre os mecanismos conscientes e inconscientes, que se
ativavam na passagem da língua nativa à língua adotada na terra de
acolhimento, e sobre os mecanismos simétricos, que podem acontecer quando a
cessão se passa na língua nativa. Perguntava-me sobre esta tradução
interlingüística e a conversão sintomática : a tradução lingüística imposta ao
estrangeiro se acompanha de uma tradução dos processos inconscientes,
substituindo sintomas a elementos inconscientes ? Reciprocamente, a destradução efetuada pelo terapeuta, recebendo o paciente na língua nativa, é
comparável à tradução-interpretação da psicanálise?
Mais globalmente, qual é a função e ou sentido do multilinguismo e do
poliglotismo na psique do analisante, e nas interações com o analista? Existiriam
aqui vias de associação específicas? Como se articulam as associações dos dois,
tanto durante a sessão clínica, como também na hora de transcrevê-la, depois?
Para os multilíngües, o mundo esta construído sobre a associação de palavras
plurais às coisas, e duma pluralidade de redes de representações de palavra
ligadas a uma única rede de representações de coisa. Os poliglotas, aliás,
acrescentam a este patrimônio lingüístico uma nova rede: integraram
simultaneamente mais de uma rede.
Vou evocar aqui alguns exemplos clínicos que me permitiram refletir sobre estas
questões da função da tradução lingüística e psíquica na sessão analítica, na
transferência, e em sua transcrição posterior, nachträglich.
63
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O afastamento da língua materna
No que se refere aos pacientes que falam uma nova língua, do país de
acolhimento, parecia-me importante levar conta o que podemos compreender
como “exílio numa nova língua”. Achava que ao ser precipitado num contexto
onde deve falar a língua do outro, o sujeito migrante se encontrava num
dramático “entre-duas-línguas”, perto da materialidade da palavra, longe do
sentido, e assombrado perante a falta de motivação tanto pela língua de
acolhimento como pela língua de origem. Pensava que perante este outro, que
parecia especialmente tagarela e se obstinava em utilizar fonemas inúteis,
perante essa massa sonora talhada do seu significado, o estrangeiro vivenciaria
uma extrema solidão, um grande abandono.
Lembrava Jacques Hassoun, dizendo que “o exílio começa quando a língua ou o
dialeto falados pelos antepassados são esquecidos, murmurados na vergonha o
no gozo”12. Portanto, numa onipotente fantasia de reparação, imaginava que só
uma terapia no idioma nativo poderia permitir uma restauração narcisística por
esses deportados da língua. Pois esse não era o caso nas minhas primeiras
experiências com pacientes estrangeiros! Mesmo se há um exílio entre duas
línguas, uma barreira adicional na realidade psíquica, a nova língua é com
freqüência investida de uma maneira que apazigua a realidade psíquica e afasta
um sexual-infantil que seria temível se aparecesse na língua materna.
O exílio na língua é próprio a qualquer criança que aprende a falar: está
construindo, na sua própria língua, representações de palavra sobre
representações de coisa, mas aquelas, conscientes, nunca cobrem totalmente
essas, inconscientes. Na sua própria língua, a criança é estrangeira. A língua,
composta de representações de palavras, permite enevoar, velar as
representações de coisa, assim evitando um contato direito demais, alucinatório,
com as coisas. A intrusão duma outra língua torna arbitrária esta dissimulação e
fragiliza a possibilidade da língua nativa de velar as coisas, que então surgem na
selvageria da sua estrangeiridade, Unheimlich, desconhecidas/reconhecidas,
como num pesadelo. O inconsciente é a língua estrangeira de todos, mas o
estrangeiro, ao ser confrontado a uma nova língua, vive de novo esta
estrangeiridade. Contudo, a nova língua, pode também permitir um novo
velamento das coisas, como na experiência da criação poética, quando o poeta
desmonta a relaçao rígida entre significado e significante e instila à língua uma
nova vida.
Assim, tive a possibilidade de ter uma clínica da "revitalização" da língua nativa
pela língua estrangeira, onde pacientes recorriam à língua estrangeira para se
reconstruírem psiquicamente. Para o multilíngüe ou o poliglota, as novas línguas
permitem evitar a invasão de um conjunto da língua materna fortemente
investido. A nova língua favorece assim uma reparação de representações
sexuais-infantis. A terapia aspira estabelecer um vai-e-vem entre língua a
materna e a nova língua, para permitir um acesso mais apaziguado a essas
vivencias da sexualidade infantil.
12 Jacques HASSOUN, L’Exil de la langue, Point hors ligne, Paris, 1993, p 65.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
É o que apareceu com muitos pacientes, como o senhor Malek. Malek é um
marroquino de 22 anos, que tinha chegado em França 5 anos antes eu recebê-lo.
A sua mãe tinha ficado no Marrocos e o seu pai se movia entre os dois paises.
Tinha sido escolarizado numa fundação que acolhia jovens em dificuldades,
ensinando-lhes uma formação profissional. Ele não apresentava sinais de ruptura
de contato com a realidade nem de dissociação. Porém, estava vestido de modo
esquisito, caracterizada por uma superposição de roupas, manifestava
dificuldades em compreender e tinha usava uma linguagem analógica paradoxal,
sorrindo ao falar de problemas ou permanecendo totalmente impassível diante de
chistes ou encorajamentos. Além disso, não manifestava nenhuma fluidez nas
suas associações, mantendo-se muitas vezes calado. Apresentava, também,
muitos mecanismos defensivos de tipo obsessivo, como o isolamento, o
isolamento afetivo, a formação reativa, a denegação e até algumas recusas.
A primeira entrevista foi tensa e vaga. Tive a impressão de haver uma língua
comum entre nós, destinada porém a evitar qualquer comunicação. As suas
primeiras palavras foram sobre o tempo, e por meio delas se retirava por trás de
uma fórmula bem mesurada e geral: "É melhor que não esteja quente demais
nem frio demais". Seguia expressando-se por fórmulas similares, muito educadas
e vagas. Quando lhe disse que a entrevista podia acontecer em árabe se ele
quisesse, recusou educadamente. Tendo sido encaminhado para o Centro pelo
psiquiatra, aparentemente não elaborara nenhuma demanda psíquica. A seu ver,
o seu único problema que enfrentava dizia respeito a dificuldades com seus
papéis, o que não lhe permitia encontrar um estágio para sua formação
profissional. Entretanto, até mesmo este problema era diluído numa fórmula
ontológica geral: "Não se pode não ter problemas. Todos temos problemas e
ninguém é perfeito. Só Deus é perfeito". Sob o francês bem dominado, brotava a
generalidade de fórmulas religiosas marroquinas e o tabu cultural, que consistia
em talhar qualquer argumento com o risco de sacrilégio - quem poderia se
assimilar a Deus se expressava, numa mistura de fantasia e proibição.
Quando perguntei sobre as suas relações familiares, os seus irmãos e a sua mãe,
respondeu que sentia pouca falta dela, negando que entre ambos houvesse
qualquer forma de relação específica: "Uma mãe tem que amar igualmente todos
seus os filhos". Disse que não tinha nenhuma lembrança da sua infância. Não
tinha falta do país onde viveu apenas durante quatro anos, e concluiu com uma
nova frase desubjetivada. "Não posso preferir o Marrocos à França, uma vez que
uma é diferente do outro".
As sessões posteriores foram mais brandas, mas seguiu usando o francês, a meu
ver para estabelecer uma distância entre nós e se proteger de representações
pessoais demais que o árabe podia despertar. Quando recorria às vezes a essa
língua, era para se defender de acusações que outros poderiam ter feito para ele
: “Eu não era ‫( ”ﺷ‬mimado demais). “Não se deve ser ‫( “ أ‬egoísta), negando
assim qualquer singularização ou subjetivação.
A minha hipótese era que a resistência dele a falar árabe operava como uma
denegação da sexualidade infantil, enquanto a nova língua funcionava como um
mecanismo de defesa, reforçando o recalcamento. Evidentemente, não ia forçá-
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
lo falar árabe: a escolha da língua é sempre feita pelo paciente. Todavia, o meu
trabalho consistia em tentar favorecer uma circulação entre as duas línguas,
escutando, sob o francês, uma estrutura associativa em árabe. O trabalho
terapêutico aspirava revalorizar a língua materna como bom objeto, reativar
certos aspetos dela, despojando-os, entretanto, da carga afetiva ameaçante.
Tratava-se de lhe assegurar que sua língua era sua, que os oceanos se podiam
atravessar de um lado ou do outro. Achava que a idéia obsedante do problema
com os papéis, além da dimensão concreta verdadeiramente prejudicial, era
ambivalente. Enquanto ele não tivesse os documentos em ordem, não podia
viajar para o Marrocos, o que lhe fornecia o gozo de escapar ao desejo da mãe e
à culpabilidade por abandoná-la.
Uma viajem nas associações aconteceu na sessão seguinte, na qual contou como
os seus camaradas às vezes o chamado de gafanhoto. Sem transição, evocou
imediatamente depois a cantina da escola e as comidas salgadas demais.
Escutando-o, deixei-me levar por associações, talvez ecoando as dele, e lembrei
umas rimas infantis que poderia traduzir assim:
“Gafanhotinho salgado,
por onde você passou,
quê comeu e quê bebeu
Ó mestre Bouzekri,
Com pressa cozinhe o meu pão…”
Seguindo as minhas associações, pensei a um jogo de infância, quando o meu
pai nomeava cada um dos meus ditos e lhes assinava uma função (o primeiro vai
ao mercado, ou outro cozinha o seu pão, etc.). Também pensei a outro jogo, no
qual meu pai percorria o meu braço, dos dedos ao pescoço, para me fazer
cócegas, dizendo palavras ainda enigmáticas para mim com as quais descrevia o
movimento de um rato comendo um ovo e uma azeitona. Numa concatenação
interlingüística , lembrei rimas infantis francesas sobre um rato verde que se
tornava em caracol. Perguntei então ao Malek se conhecia rimas francesas e lhe
contei a do rato verde. Esteve entretido, apontando o ilogismo deste rato virando
caracol. Respondi que na visão humana poderia haver poucas diferenças entre
estes animais pequenos, ratos, caracóis ou insetos. “Como os gafanhotos?”
perguntou. E começou a evocar as rimas infantis marroquinas do gafanhoto com
pão. Fiquei assombrado pelo mimetismo das nossas associações.
Assim, nesta regressão lingüística das rimas, onde as palavras árabes, embora
perto do sexual-infantil, não eram temíveis, ele se autorizou a me falar do
contexto onde a mãe lhe cantava as rimas e seguiu associando. Expressava-se
em francês, mas pontuava o discurso por algumas palavras árabes - ‫( ااي‬as
crianças), ‫( اﺑز‬o pão), ‫( ﺑ‬para que dormisse).
Nas sessões posteriores, Malek se permitiu recorrer a mais palavras em árabe.
Evocou a última ligação telefônica à mãe, a emoção dela. Os mecanismos de
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
defesa pareciam menos rígidos, as representações eram menos isoladas, as
associações mais fáceis.
Que aconteceu aqui? Sob as suas palavras francesas, tinha surgido uma rede de
associações em árabe que escutei e dupliquei com as minhas próprias
associações. As representações de palavra, traduzidas, sem que ele soubesse, na
transição em francês do gafanhoto ao sal, foram afastadas das experiências de
satisfação infantil. Por uma nova tradução, através das minhas associações e
dumas rimas francesas, pudemos fazer surgir novas representações de coisa
dele, mais apaziguadas.
A reparação da língua materna
Pude atender similarmente uma criança no seu trabalho de reparação através da
língua estrangeira. Adriana tinha cinco anos e estava na França há oito meses,
onde tinha chegado com a mãe como refugiada política. Nas confrontações
violentíssimas da UNITA e do MPLA, milicianos invadiram a sua casa, e, diante
dela, mataram o pai, violaram a mãe e estrangularam os dois irmãos gêmeos
bebês. Adriana se salvou porque a mãe disse “ Não é minha filha, é a filha dos
vizinhos”. Num mimetismo total, do mutismo à roupa e ao penteado, mãe e filha
manifestavam o mesmo traumatismo silencioso.
Progressivamente, orientei o trabalho das sessões sobre a identificação dos
membros do corpo, a través do desenho, da pintura e de jogos com a água. Os
primeiros desenhos não eram coloridos e os personagens não tinham pescoço.
Foi através do francês, progressiva e rapidamente aprendido na escola, que
Adriana pôde sair do seu mutismo, de uma forma bilíngüe. Começou a comentar
os seus desenhos usando o francês e logo articulando a cada palavra francesa
uma portuguesa. Numa paisagem de “maisons-casas” apareciam “papillonsborboletas” e “rivières-rios” onde navegavam “bâteau-barcos” dirigidos por
“frères-irmãos”. Pouco a pouco, Adriana aplicou esta dupla linguagem ao seu
corpo, composto de “cou-pescoço”, “bras-braços”, “cheveux-cabelos”. Por uma
associação interlingüística , à medida em que investia o corpo (le corps)
apareciam nos desenhos as cores - cor e corps sendo homônimos.
Através desta identificação dupla, do francês ao português e no outro sentido, a
língua de acolhimento veio repetir, confortar, sustentar e reparar a língua
materna traumatizada. A criança pôde evocar Angola só passando do português
ao francês. A identificação com a mãe tornou-se então menos patológica. A
criança começou a se diferenciar na roupa e no penteado, à medida em que
manifestava maior fluidez psíquica. Não ser, como disse a mãe, a filha da sua
mãe, para poder sobreviver exigia uma identificação massiva para não se
derrubar. A falta de filiação apresentava a alternativa de ser abandonada pela
mãe ou de morrer. Com o apoio do francês, Adriana pôde dizer “maman” para
melhor dizer “mãe”.
Mas o que é a língua materna? No uso comum, a primeira língua falada por uma
criança é associada a uma dimensão materna em muitas línguas (Muttersprache,
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
mother-tongue, lengua materna, madre lingua, ‫םא‬
‫תפס‬, $‫ت ا‬%). Porém,
segundo a definição de muitos dicionários, não existe relação necessária entre
esta primeira língua e a mãe e a chamada língua materna é também aquela
falada por pessoas que aparecem e desaparecem do cenário psíquico da criança
pronunciando as suas primeiras palavras. A língua materna é aquela veiculada
pela mãe que permite à criança de se separar dela e articular uma demanda sem
temer ser engolida por "sim" massivo que antecipa os seus desejos ou por um
"não" que os anula. Para não ser mortífera, esta língua tem que marcar uma
distancia, conjugar o familiar e ou estrangeiro.
A língua materna é aquela que confronta ao desejo da mãe e torna o sujeito
louco se é animada pelo mito de unicidade. O uso de uma nova língua na sessão
clínica permite, muitas vezes, descerrar algumas coisas que se fecharam na
língua materna, assimilando língua e imago ameaçadora da mãe.
Poliglotas e palimpsestos
A clínica da língua me confrontou também com outros destinos lingüísticos, um
dos quais é, para poliglotas e multilíngües, a constante presença de outras
línguas sob a língua falada, perceptíveis através de uma rede de associações.
Quando um sujeito multilíngüe ou poliglota se expressa numa língua, os outros
idiomas estão em sofrimento sob ela, no duplo sentido de espera e dor.
Para muitos pacientes estrangeiros, o francês ressoa sob a sua língua nativa,
modificando-a, provocando “galicismos”. Uma paciente peruana por exemplo
podia dizer palavras como : “parlar” (hablar), “responder al teléfono” (“contestar
al teléfono”), disputirse (discutir), ou “sufrenza” (sufrimiento), ou até, com uma
conversão histérica : “quiero exprimir mi dolor” (para “quiero expresar mi
dolor”).
Atendi uma paciente anglófona que revelava uma dupla língua de forma mais
inconsciente, através das suas associações. Jean era uma romancista australiana
de trinta e nove anos, instalada em Paris havia dois anos, depois de ter vivido
quinze anos em Girona, na Catalunha. Filha de uma ucraniana e um alemão, não
falava russo mas compreendia alemão, considerando a sua instalação na Europa
como uma volta à origem. Todavia, escolheu reescrever o romance familiar em
línguas estrangeiras, ao se instalar em Espanha e posteriormente na França.
Jean compreendia francês também, mas preferia não fala-lo e se expressar em
inglês. Veio consultar-me pelos seus ataques de pânico e por problemas de
conjugais. Tinha dificuldades em compreender o François, com quem namorava
há nove meses, e se perguntava se não haveria entre ambos uma divergência de
códigos culturais.
Na primeira sessão tratou imediatamente do assunto da língua. Ela me disse
“You really sound british, don’t you?” (você fala com um sotaque Inglês), e me
explicou que foi escolarizada numa instituição privada em Melbourne, onde o
acento inglês é um signo de boa educação. A sua observação me fez sorrir e
estabeleceu direitamente um contexto multilíngüe entre nós. Minhas associações
me recordaram um dia em Barcelona, quando, em companhia de um amigo
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
inglês, falamos com uma turista inglesa. Essa nos perguntou se éramos ingleses,
ele disse sim e eu não. A turista me respondeu “Yes indeed, I’m afraid you don’t
look English” (temo que você não pareça inglês). Repliquei, quase sem refletir
“Well I’m afraid you do” (temo que você sim, pareça inglesa). Ao me recordar
esta lembrança de Barcelona, Jean diretamente instalou entre nós um contexto
de espanhol e catalão
Considerando a angústia dos ataques de pânico como afeto desconectado da sua
representação, que requeria ser qualificado, perguntei à Jean quando aconteciam
os ataques. Respondeu que identificava claramente as situações, pois os ataques
de pânico sucediam quando atravessava uma ponte, quando alguém ameaçava
ir embora subitamente ou quando lembrava as brigas entre seus pais. Todavia,
na Espanha, novas situações tinham surgido : padeceu de um ataque de pânico
visitando o Barrio Chino de Barcelona. Um ano depois, teve uma angústia
semelhante ao chegar a Sabadell, uma cidade perto de Barcelona. Além disso,
também sentiu pânico quando estava atravessando um campo, e,
inexplicavelmente, quando o filho de uma amiga dela jogava com um barbante.
Em Paris, evitando os pontes, tinha sentido um ataque de pânico só uma vez, ao
brigar com o seu namorado. Ela não compreendia porque tinha pânico em
contextos tão diversos.
Na sessão, falava só em inglês, sempre tecendo comentários sobre a precisão
dessa língua quando tinha que expressar os seus sentimentos ou os problemas
que teve ao se instalar em países estrangeiros, nos quais se falavam outros
idiomas. Também referia o quanto apreciava certas palavras, ou, ao contrário, a
sua aversão por outras. Por exemplo, detestava as palavras que acabavam com
o fonemas [dl], como “saddle”, “griddle”, “noodle”, “cradle”.
Numa sessão ulterior, contou-me sobre um ataque de pânico que teve quando
brigou com o seu namorado, que lhe tinha dito “I don’t like playing second fiddle”
(não gosto dos papéis secundários). Quando lhe perguntei quem disse essa frase
antes, respondeu-me que se tratava de uma frase que sua mãe usava quando
brigava com o seu pai. Repetiu a frase, então, imitando um sotaque russo.
Depois desta sessão, tentei fazer uma resenha do que tínhamos visto em três
encontros, transcrevendo momentos das sessões, sem tentar de lembrar a
ordem exata mas seguindo as minhas associações livres. Escrevi alguns
elementos que me tinha contado Jean, e também palavras, "saddle", griddle",
"noodle", "cradle", "fiddle". Parecia muito provável que o som [dl] fosse ligado a
"second fiddle". Ressoava na minha cabeça a frase da mãe, que Jean tinha
pronunciado com sotaque russo. Também escreví a anedota com a inglesa em
Barcelona, e por ter morado lá, e lembrado dos meus amigos catalães, seguí
escrevendo em catalão. Transcrevi os momentos de pânico, ponts (pontes),
abandó (abandono), discussió (briga), Sabadell, bordell (o Barrio Chino tendo
sido o bairro da prostituição), pradell (campo) e cordell (barbante). A rede de
associações parecia irradiar desde o significante "fiddle", ligado aos outros pelo
fonema final [dl], que se pronunciava em catalão quase como um [dl] russo.
Quando este significante estava conscientemente identificado, o afeto sentido era
aversão - Jean odiava as palavras acabando com [dl]. Quando, porém, este
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
fonema só sustentava, quase inconscientemente, outras palavras, a partir de
uma outra língua, o afeto se desfazia da sua representação, ficava livre,
desqualificado e se transformava em angústia profunda. Jean às vezes pensava
em catalão.
Freud dá um exemplo deste tipo de rede associativa, onde uma língua infiltra as
representações duma outra, no texto sobre o Fetichismo. O “Glanz auf der Nase”,
brilho sobre o nariz, do que falava o paciente, se revelou ser um “Glance”, olhar.
Outras redes de associações surgiram nas sessões ulteriores. Jean se pôs a falar
de pontes –para elaborar a angústia dos ataques de pânico. Seguiu associando :
“Bridge – bridge the gap – gap” (ponte – reunir, agrupar – vazio). As brigas
entre os pais dela eram o que impedia “bridge the gap” entre eles. Mas tinha um
“gap”, um grande vazio que provocava os ataques de pânico. Em Catalunha,
Jean tinha lembrado um cenário de briga entre os seus pais, onde o pai tinha
tentado matar a mãe. Jean contou o cenário com muitos detalhes, dizendo que
era uma criança olhando esta briga e não podendo fazer nada, comentando até
as cores da roupa que seus pais usavam nesta ocasião. Esta abundância de
detalhes me fez pensar numa recordação encobridora. Ao transcrever a sessão,
depois, dei-me conta de que, mais uma vez, as suas associações podiam ter sido
inter-lingüísticas. O significante horrível, sem figuração possível, do vazio, "gap",
tinha infiltrado a lembrança, para tentar figurar o que não tinha nenhuma
representação. Mas era em catalão. Jean colocava este cenário à idade de oito
anos, vuit em catalão, que se pronuncia da mesma forma que buit, o vazio.
Este processo de uma segunda língua sob a língua principal é notavelmente
descrito por Nicolas Abraham e Maria Torok no Verbier de l’homme aux loups (o
lexico do homem dos lobos).Para compreender este paciente multilíngüe, era
preciso buscar em inglês e russo o sentido do que ele dizia em alemão.]
Para concluir a evocação desta paciente, acrescento que ela também gostava
jogar com versões diferentes do seu nome. "Jean" não existia como nome nem
na Espanha nem na França - os franceses liam "Jean", o que aumentava a
confusão sobre a sua identidade sexual. Portanto, fazia-se chamar Joana pelos
catalães, Juana pelos hispanófonos e Jeanne pelos franceses. Como Fernando
Pessoa com os seus heterônimos, Jean publicava sob vários nomes produções
diferentes: romances, novelas, poesia e crítica literária. Compreendi que Jean
aceitava ser ao mesmo tempo Jeanne, Joana e Juana quando me disse que
acabava de finalizar a sua tese sobre literatura, incluindo no manuscrito uma
parte de ficção.
Tradução lingüística e tradução psíquica
Tentemos agora analisar, neste tipo de associações multilíngües, a função da
tradução interlínguística e da tradução psíquica. A noção da tradução é central na
teoria freudiana: é presente em dois termos, Übertragung e Übersetzung. Dois
processos globais recíprocos são descritos de forma recorrente como traduções.
Pelo primeiro, a fonte é o inconsciente e o resultado os efeitos do inconsciente:
sonhos, lapsos, atos falhos ou sintomas. Esta tradução-codificação liga os restos
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
mnêmicos, as representações de coisa e as representações de palavra. Ela
procede no sentido inverso ao recalcamento. No outro sentido, da consciência ao
inconsciente, pela tradução-interpretação, durante a cessão, os efeitos do
inconsciente são a fonte e os pensamentos inconscientes são a meta. Esta
tradução vai do manifesto ao latente.
Trata-se aqui de tradução por estes pacientes multilíngües ou poliglotas? Podemse comparar por um lado a tradução entre línguas, e, por outro, a tradução dos
processos do inconsciente evocada por Freud ? Então estes processos seriam
lingüísticos. É verdadeiramente o caso?
Como comenta o Walter Benjamin, o tradutor pode achar-se num momento de
suspensão interlinguística, e transitar por um estado fora da língua.
Similarmente, o analisante se coloca as vêzes num limbo intersemiótico,
separando a interpretação da linguagem do sonho o do sintoma. Contudo, se o
tradutor, ou o locutor estrangeiro, passa por este estado de Unheimlichkeit, onde
os significantes da língua de origem e da outra língua parecem pouco naturais, é
porque o fenômeno de tradução inter-linguística convoca processos do
inconsciente. Não são as traduções entre sistemas psíquicos que manifestam
caracteres da tradução linguística, mas, ao contrario, é essa que procede do
inconsciente.
Há, efetivamente, uma semelhança entre os processos do inconsciente e as
deformações efetuadas sobre um texto pela tradução. As figuras de
racionalização, passagem da polissemia à monossemia, enriquecimento,
empobrecimento quantitativos, homogeneização, destruição das locuções são
operação que acontecem na passagem de uma língua à outra, e também na
passagem dos processos primários aos secundários, na tradução-codificação. No
outro sentido, as operações de alongamento ou empobrecimento qualitativo, de
destruição dos ritmos, parecem corresponder a processos da traduçãointerpretação, que desdobram as condensações do sonho, cancelam a sua
iconicidade e o seu ritmo pela elaboração lingüística.
Todavia, na tradução psíquica, não há nem língua original nem língua final. Os
sistemas psíquicos não são línguas, mas antes lugares de inscrição. Não existe
uma língua dos processos secundários que seja independente desses processos :
representações de palavra, imagens de sonho, traços mnêmicos superiores; em
contraste com o espanhol, por exemplo, que não se reduz à tradução das
Mémoire d’Hadrien de Marguerite Yourcenar por Julio Cortazar, ou a tradução do
Livro do desassossego de Pessoa por Angel Crespo.
Simetricamente, não existe uma língua-fonte dos processos primários, senão na
fantasia de uma língua originária, materna, irremediavelmente perdida, e esses
processos são accessíveis só em sua tradução psíquica. Por conseguinte, na
tradução-codificação, como na tradução-interpretação, não existe uma línguafonte, que seja independente da língua-meta, nem há uma língua-meta que seja
independente da língua-fonte. Em outros termos, não existe uma dualidade
ontológica e temporal entre os dois níveis: os processos secundários existem só
graças à tradução de processos primários, e no outro sentido, os pensamentos
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
latentes aos que chega a interpretação existem só através desta interpretação.
A conseqüência disso me parece importante aqui : quando a representação de
palavra, virada inconsciente, é tratada pela psique como uma representação de
coisa, como vimos nas associações interlingüísticas, não se trata mais de palavra,
mas de um material novo criado pela plasticidade dos processos primários.
Portanto, se a confrontação dos migrantes a uma língua estrangeira atua na
formação ou na resolução dos sintomas, não é como língua, mas como novas
entidades, novos significantes tomados em redes inconscientes, iguais a qualquer
outra especificidade do país de acolhimento que vira significante – a expressão
de um rosto, um incidente administrativo, uma nova costume culinária, etc.
Entretanto, esta clínica com poliglotas e multilínguës tem que ver com a tradução
no outro sentido de Uberträgung : a transferência.
A tradução transferencial
A transferência poderia entender-se como uma tradução interlingüística ,
segundo o modo como Walter Benjamin define a tradução. Na sua visão
histórica, inspirada do messianismo, Benjamin considera que as línguas podem
se alargarem mutuamente, domiciliando-se uma na outra. A mais específica
tarefa humana, a do tradutor, que poderíamos comparar à transferência, seria a
de de reunir os fragmentos dispersos da língua ante-babélica que ecoam em
todas as línguas. O tradutor recorda e repara simbolicamente a catástrofe de
uma originalidade despedaçada, mas nunca a restitui. Similarmente, o
mecanismo de transferência entre dois poliglotas atualiza imaginariamente este
agrupamento de uma dispersão, sem nunca efetuá-lo simbolicamente.
Lembremos que não há unidade e completude atualizada, senão como mito.
A questão do vínculo entre transferência e tradução é em verdade a questão do
linguístico e do pré-linguístico, da continuidade entre corpo e linguagem, mundo
fenomenológico e simbolização. Mas esta questão é muito vasta, e não vou
tentar de aborda-la aqui. Talvez baste assinalar que o mundo não precede a
língua, mas é sempre entendido a partir do horizonte da língua ( o que provoca
grandes tormentos pelos tradutores!). Por exemplo, quando o francês ou o
português dizem “Atravessaram o rio nadando”, expressando o espaço pelo
verbo principal e a natureza do movimento pelo gerúndio, o inglês inverte, e fala
“They swam accross the river”, verbalizando a natureza do movimento e
informando sobre o espaço por uma preposição. Similarmente, em françês “je
suis en retard”, temporal, corresponde ao inglês “I’m behind”, espacial, ao
espanhol “voy atrasado”, movel, ao catalão “vaig de cul”, imaginario, ou ao
marroquino ‫ى '
اﺣ‬, passivo (o tempo me abandonou).
Conceber a transferência como tradução é então considerar que a tradução é
sempre “entre” :
nem unicamente na fonte, nem unicamente na meta.
Apreciada como espaço do “entre”, a transferência procede de uma abordagem
da intersubjetividade. Não se trata aqui só da alteridade. Em muitas línguas, o
outro é somente uma figura definida a partir do sujeito : outro, otro, altre, altro,
other, ander vêm de alter, o segundo termo de “unus alterque”. Similarmente,
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
άλλος é concebido em função de όµο, e ‫ﯧﺭ‬+ é uma modificação do sujeito, ‫אחך‬
quer dizer o que segue e ‫ שני‬é o segundo. Ao contrario, uma filosofia da
intersubjetividade implicaria uma abordagem onde ou sujeito ou a consciência
não são primeiros, mas resultam de uma relação, precedendo e determinando a
subjetividade. O espaço transferêncial seria então um espaço entre: entre-dois,
entre-línguas.
A transferência, literalmente e etimologicamente transporte, torna-se assim em
metáfora (transporte em grego). Na cura, a corporeidade do analista e a do
analisante estão transportadas numa pluralidade de línguas e a metáfora da
transferência faz comunicar a palavra e o gesto. É precisamente esta
multiplicidade material da palavra, do gesto, do pensamento, que não são só
lingüísticos, que se transcrevem em pluralidade de associações inter-lingüísticas,
durante a sessão, e depois, durante a escritura narrativa da cessão. Para
transcrever essa multiplicidade material, às vezes línguas plurais tornam-se
necessárias.
Mais concretamente, é preciso que o analista de um paciente poliglota ou
multilíngüe seja ele também poliglota ou multilíngüe? É certo que uma ou mais
línguas comuns ao analista e o analisante permitem às vezes, ao primeiro,
encontrar os percursos do pensamento e as conexões significantes do segundo,
como vimos. Más isso não basta. Além disso, estas línguas comuns podem
introduzir o analista na posição imaginária de onipotência e onisciência: assim
não se daria conta do limite necessário na ilusão de compreender, para poder
escutar o analisante. Isso poderia mesmo dar lugar à fantasia ante-babélica de
uma língua originária, de uma comunicação total, unitária.
Igualmente, pelo analisante, uma segunda língua em comum com o analista
poderia dar origem a uma atitude de sedução, a fantasias de conivência e de
pertença à mesma comunidade. O analista deve ficar atento para que esta
conivência não seja forte demais e introduza uma ilusão de simetria e
reciprocidade, reduzindo o analista à posição imaginária de um semelhante. O
poliglotismo tem limites : o uso pelo paciente de uma outra língua pode
manifestar uma certa recusa de se comunicar e corresponder, no que diz
respeito ao analista, a uma demonstração de onipotência. Outrossim, não se
deve confundir a divisão subjetiva do paciente com a dicotomia imaginária de
não saber se pertence mais a uma cultura ou à outra.
Portanto, o poliglotismo pode ajudar no trabalho terapêutico só no sentido de
que esta língua ante-babélica da transferência nunca seja atualizada, mas possa
ressoar como um original perdido para sempre, um mito heurístico de espaço
entre, impossível de realizar, mas incoativo, sempre em transformação.
Única ou plural, uma língua abunda em numerosas vias associativas. Portanto,
da poliglossia, é a polifonia que se revela útil para o analista, favorecendo uma
escuta de numerosos discursos, vias associativas, experiências. O significante na
psicanálise não é apenas um significante lingüístico. Ainda que a área do
psicanalista seja estruturada pelos efeitos da linguagem, não é estruturada só
por eles: os efeitos do corpo e os da lei apontam a heterogeneidade da
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
pessoalidade psíquica. O discurso do inconsciente é polifônico e poligráfico, não
se reduzindo à linguagem.
O trabalho analítico tenta restituir ao discurso o seu polilogismo funcional, a sua
plurivocidade dialógica. Com respeito a este discurso polilógico, não existe uma
especificidade dos pacientes poliglotas ou multilíngües, exceto porque neles a
organização multilingüística, o funcionamento polilógico, destaca-se com mais
claridade. Neste sentido, o trabalho com poliglotas e multilíngües pode favorecer
a pluridimensionalidade da escuta analítica. Neste mesmo sentido, a transcrição
da sessão posteriormente, a narração transferencial, ao se fazer em muitas
línguas, tenta recapturar esta dimensão poligráfica.
Concluamos assim que a mobilidade psíquica e a criatividade da linguagem
provêm só de uma mistura, uma constante contaminação entre línguas, como
aquela mescla presente na poesia do trovadores da Idade Média, que circulavam
entre varias culturas. Trovador vem do árabe ‫ اﺭ‬1‫ﺭ‬2, literalmente “a alegria do
giro e do estribilho que gira na música”. Os trovadores foram filhos do 1‫ﺭ‬2, a
música e a poesia refinada. Suas mães eram criadas estrangeiras, escravas que
compartilhavam o leito dos generais árabes, rainhas do 1‫ﺭ‬2. Estas belas
estrangeiras tinham filhos meio-árabes e meio-mundo, aos quais falavam com
língua estrangeira, erros e poesia. Em árabe, a mesma palavra ‫ ﻟﺣن‬designa a
incorreção gramatical e a melodia. E estas melodias erradas giravam nas cortes e
nos salões dos estetas. Girar. ‫اﺭ‬. ‫ اﺭ‬1‫ﺭ‬2, trovador.
Cabe desejar aqui pela escuta analítica que seja musical!
74
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Phénoménologie de l’affectivité et métapsychologie de
l’affect : Considérations sur un parcours de recherche
Thamy Ayouch
Université de Lille 3
Ce travail de recherche doctorale vient retracer un parcours à la fois subjectif et
académique, où l’intersection de deux disciplines reprend la croisée de question
personnelles et théoriques. Une posture subjective, dans laquelle, sur les plans
culturel, linguistique, géographique, le truchement, le passage ou le gué l’ont
toujours, chez moi, emporté sur l’identité fixe exclusive, a trouvé un écho
théorique dans ce dialogue entre disciplines.
Issu d’un cursus philosophique et linguistique, j’ai pour ainsi dire rencontré la
psychanalyse d’abord de manière théorique, dans le cadre d’un travail de
recherche sur la phénoménologie psychiatrique. La découverte, antérieure, chez
Merleau-Ponty, d’une pensée vivante et d’un style philosophique dont la précision
le dispute à l’élégance, a captivé l’étudiant de philosophie que j’étais. Amené à
travailler par la suite sur l’intersubjectivité dans son œuvre, j’ai trouvé dans ce
thème une voie d’accès à cet autre de la phénoménologie qu’est la psychanalyse.
L’initiation de cette recherche doctorale a alors coïncidé avec une formation
universitaire nouvelle, en psychologie clinique, et ce travail s’est vu modifié,
enrichi, complexifié, au gré d’une expérience psychanalytique personnelle.
Comme guide constant de cette recherche a prévalu la continuelle interrogation
de Merleau-Ponty sur ses propres concepts, l’auto-questionnement incessant
d’une pensée qui, à défaut d’une expérience clinique psychopathologique,
présente une irréductible incarnation et une obligeance tout exacte devant la
concrétude de la corporalité, d’autrui, du temps ou de la perception.
Cette recherche a débuté par une question principale, transformée au gré de la
réflexion : parle-t-on de la même chose, en psychanalyse et en phénoménologie,
lorsqu’il est question d’inconscient ? Si la phénoménologie de Merleau-Ponty ne
manque pas d’aborder bien des thèmes psychanalytiques, explicitement exposés
ou plus implicitement convoqués par ses propres analyses, qu’en est-il, dans
cette phénoménologie, de l’objet central de la recherche psychanalytique, de la
thèse freudienne fondamentale posant un inconscient, coupé de la conscience, et
à laquelle il n’advient que par ses effets ?
Adressée à la fois à la psychanalyse et à la phénoménologie, la question de
l’inconscient soulève celle de son mode d’attestation, d’apparition, de figurabilité.
Interroger l’attestation de l’inconscient, dans la vie de la conscience ou dans la
théorie, ne relève toutefois pas ici d’une démarche de vérification ou de
recherche de preuve – le propos n’a été en aucun cas de tenter d’invalider des
thèses de la psychanalyse ou d’en présenter une reconstruction spéculative
rationnelle, dans un cartésianisme simplifié reposant les pierres de Dieu, d’autrui,
du monde et du corps sur le socle du doute hyperbolique. Aborder l’inconscient
depuis le cogito, et plus globalement, depuis la conscience serait commettre un
75
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
contresens majeur que les psychanalystes n’ont de cesse de reprocher aux
philosophes. C’est précisément la gageure principale à laquelle s’est heurté ce
travail : comment faire dialoguer deux disciplines dont les positions, les visées,
les méthodologies, les voies d’approche et l’expérience concernant l’inconscient
et la conscience semblent radicalement opposées ?
La confrontation entre conscience et
inconscient décide de la divergence
classique dans les procédures de savoir de la phénoménologie et de la
psychanalyse : à la description phénoménologique, soucieuse de s’atteler à ce
qui apparaît directement, on oppose habituellement la construction
psychanalytique, érigeant des interprétations, des hypothèses ou des
théorisations dont l’essentiel échappe à toute manifestation directe. Pour le
phénoménologue,
la
construction,
tributaire
de
l’inattestable,
reste
métaphysique : elle l’entraîne hors de son domaine. Pour le psychanalyste, la
description ne se confine parfois qu’à l’« illusion d’optique » : lorsqu’elle ne
procède pas d’une « captation imaginaire », elle se cantonne sinon à la
conscience du moins au préconscient.
L’exclusion resterait alors mutuelle, sauf à reporter la question sur le plan
épistémologique, à interroger l’inconscient à la fois comme contenu théorique de
ces deux disciplines et comme moteur de leur théorisation. La réflexion nous a
donc conduit à interroger la fonction de la théorisation et sa valeur pour chacune
de ces disciplines. Il s’agissait d’analyser la fonction de la production d’une
théorie dans la construction épistémologique de chaque discipline mais aussi sa
valeur interne et interdisciplinaire : sa portée, son ambition ontologique ou
seulement modélisatoire, son aspiration à l’universalité, sa temporalisation – en
un mot, sa détermination affective. Le concept premier d’inconscient a donc cédé
le pas, nous allons le montrer plus précisément, à celui, plus circonscrit,
d’affectivité et à son pendant psychanalytique d’affect, dans le souci de mener
toujours conjointement la réflexion sur le contenu doctrinal – l’affect en
métapsychologie, l’affectivité en phénoménologie, - mais aussi sur le plan métathéorique, épistémologique : l’affectivité dans la théorie.
C’est cette réflexion conjointe sur les plans thématique et épistémologique que
nous avons cherché à retrouver dans l’œuvre de Maurice Merleau-Ponty, et c’est
l’entrelacs de ces deux plans que nous avons cru lire dans un de ses derniers
textes : la « Préface » à l’ouvrage d’Angelo Hesnard L’œuvre et l’esprit de Freud.
De manière synthétique, nuancée, et inspirée, Merleau-Ponty effectue une
véritable Aufhebung de ses positions quant à la psychanalyse, dans le double
sens d’un dépassement de ses critiques les moins avisées, et d’une conservation
de ses percées les plus hardies, pour proposer d’orienter la recherche vers la
convergence de ces disciplines. « Une philosophie peut-être plus mûre, écrit
Merleau-Ponty, et aussi la croissance de la recherche freudienne nous feraient
aujourd’hui exprimer autrement les rapports de la phénoménologie et de la
psychanalyse, (…) et nous rendrait, pour finir, moins indulgent pour nos premiers
essais que le docteur Hesnard veut bien l’être ».
De ces « premiers essais » à une phénoménologie qui « descend dans son
propre sous-sol » et se retrouve « plus que jamais en convergence avec la
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
recherche freudienne », s’étend la pensée merleau-pontyenne, depuis la
Structure du comportement jusqu’au Visible et l’invisible, dans une évolution
dont nous avons souhaité mesurer l’ouverture à la psychanalyse. Nonobstant
toutes les réserves premières, le concept d’inconscient n’est pas soudain reconnu
par Merleau-Ponty après avoir été nié, et nous avons fait le pari, dans cette
analyse, d’un cheminement continu, sans rupture ni tournant, dans la pensée
merleau-pontyenne à l’endroit de l’inconscient. Une double conséquence s’en est
suivie dans notre lecture : nous avons choisi de voir, dans une œuvre en devenir,
les développements ultérieurs déjà en gésine dans les premiers textes ; mais
aussi de concevoir qu’une pensée explicite charrie, plus qu’un impensé,
d’implicites prolongements, que nous avons reliés à l’affectivité.
Nous avons donc, dans un premier temps, cherché à étudier les positions
explicites du philosophe à l’endroit de l’inconscient, à travers trois motifs
principaux : la relecture des critiques du naturalisme et de la mauvaise foi
habituellement adressées par la philosophie à la psychanalyse freudienne ; la
figure de la dialectique comme clé de lecture de la psychanalyse et de ses
rapports avec la phénoménologie ; enfin, le motif de l’indivision institué par
Merleau-Ponty entre dedans et dehors, autrui et soi, et en ultime instance entre
conscience et inconscient. C’est ce dernier motif qui vaut au philosophe la
critique de nombre de psychanalystes, et révèle l’appréhension de l’inconscient
toujours depuis une posture phénoménologique distincte de toute définition
psychanalytique, bien qu’elle n’accorde pas le primat à la conscience. L’un des
résultats de la première partie de cette recherche est alors cette désolidarisation
entre le décentrement de la conscience d’une part et la thématique
psychanalytique de l’inconscient d’autre part. La phénoménologie merleaupontyenne, dans son investigation du corps, révèle en effet la secondarité
constante de la conscience, son enracinement dans un infra-conscient charnel,
impersonnel, non thématisé, mais qui n’est pas l’inconscient de la psychanalyse.
Celui-ci se distingue de l’inconscient des philosophes, affirme Freud dans
L’Interprétation des rêves, il ne peut être appréhendé seulement à partir de la
perception, rappellent les psychanalystes lisant l’œuvre de Merleau-Ponty.
La continuité entre inconscient et conscience propre aux conceptions de MerleauPonty, fait alors l’objet des critiques conjointes de plusieurs psychanalystes.
L’indivision du sentir dans laquelle, à tort, Merleau-Ponty souhaite inscrire
l’inconscient psychanalytique s’accompagne d’une séparation, chez le philosophe,
entre clinique et théorie psychanalytique, là où les deux doivent rester
indissociables dans la perspective freudienne.
Sous la catégorie trop générale du sens, affirme J.-B. Pontalis, Merleau-Ponty
amalgame relation expressive - où la signification est immanente à l’objet – et
relation linguistique – reposant sur la différence entre signifiants – dans une
confusion réelle, bien que délibérée, entre les notions de structure et de
signification. Au « privilège du visible » chez Merleau-Ponty, J.-B. Pontalis oppose
une perte de vue, renvoyant à la perte originaire de l’objet seule garante d’une
constitution de la réalité, comme Freud le souligne dans La Négation.
Soulignant que l’inconscient ne peut être appréhendé à partir du sens, mais du
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
désir, André Green soutient que le passage des processus primaires, négligés par
Merleau-Ponty, aux processus secondaires ne s’effectue que sur fond d’une
perte d’objet, fondatrice du désir, et que Merleau-Ponty ne thématise pas.
Plus sévère est encore la critique de Lacan, qui dénonce lui aussi l’absence de
dimension symbolique propre chez Merleau-Ponty : la structure de la réalité
n’est pas conçue comme articulation de signifiants. La phénoménologie se
cantonnerait alors au seul plan de l’Imaginaire, présupposant dans le corps un
lieu de l’unité.
Mais la phénoménologie merleau-pontyenne raterait également, selon
Castoriadis, l’imagination radicale fondamentale, en accordant un privilège à la
perception, et oublierait la primauté de l’institution social-historique reprenant
cette imagination radicale.
Il n’y aurait donc pas, s’accordent à souligner les psychanalystes, d’univers
symbolique distinct chez Merleau-Ponty. Le sujet pré-réflexif, impersonnel que
Merleau-Ponty met en exergue ne correspond en rien au sujet barré, coupé, de
l’inconscient.
Dans un entrecroisement de malentendus, aux contresens que Merleau-Ponty
peut effectuer sur certains éléments freudiens correspondraient probablement
une lecture parfois hâtives de son œuvre. La phénoménologie pourrait répondre
ici que la perte originaire d’objet placée au cœur du psychisme, telle qu’elle est
présentée dans La Négation, relève d’une ontologie classique faisant procéder
l’Etre d’un Néant premier, et que Merleau-Ponty s’attache à réfuter. A la lumière
de sa pensée apparaîtraient en outre les a priori ontologiques dont procèdent
chez Lacan le modèle structuraliste d’une primauté du langage, ou, chez
Castoriadis, la conception monadologique d’une imagination radicale première,
effaçant la distinction nécessaire entre perception et imagination.
Nous nous sommes alors proposé de reprendre à nouveaux frais cette analyse
des rapports entre phénoménologie merleau-pontyenne et psychanalyse
freudienne. Si, comme le souligne Merleau-Ponty dans la préface de 1960 que
nous évoquions, « c’est par ce qu’elle sous-entend ou dévoile à sa limite (…) que
la phénoménologie est en consonance avec la psychanalyse », il s’est alors agi de
pousser la réflexion vers les confins de ces disciplines, de faire porter la
comparaison sur une zone limitrophe, une lisière épistémologique entre
psychanalyse et phénoménologie où le métissage l’emporte sur la délimitation
franche. Cherchant à retracer la « traversée » de la phénoménologie qu’effectue
Merleau-Ponty à travers le concept non nommé de l’affectivité, nous avons
soutenu que son rapprochement de Freud était à la mesure de son éloignement
apparent de Husserl. [Nous avons toutefois préféré garder des réserves à ce
sujet : la lecture merleau-pontyenne de Husserl reste précise et s’affine au fil des
œuvres, mais elle ne prend pas en compte les nombreux inédits du philosophe
allemand, inaccessibles à l’époque, et dont l’ampleur rend très complexe la
question d’une fidélité ou d’un contresens de Merleau-Ponty à l’endroit de
Husserl. ]
78
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
La question des rapports entre phénoménologie merleau-pontyenne et
psychanalyse freudienne s’est alors centrée, plus que sur le concept
d’inconscient, sur celui d’affectivité, pour les raisons suivantes. D’abord eu égard
à la notion freudienne d’affect : la continuité entre conscience et inconscient
reprochée à Merleau-Ponty s’est avérée ici moins problématique. Reprenant la
dualité freudienne de l’affect et de la représentation, nous avons soutenu que si
la barre entre systèmes conscient et inconscient est tranchée pour les
représentations, elle reste poreuse pour les affects, à la fois conscients et
inconscients. Un travail parallèle sur la phénoménologie et sur la psychanalyse,
s’est alors imposé dans notre seconde partie.
- D’une part, nous avons tenté de montrer comment la phénoménologie
merleau-pontyenne, dans son lien intrinsèque à la psychologie, son accentuation
de la Gestalt, sa prise en compte d’un point de vue de l’enfant, et sa relecture
des concept husserliens de réduction et de constitution, réinscrit l’éidétique dans
le monde vécu, brouille la distinction entre perception et imagination, définit un
symbolisme primaire, un rapport à autrui et des modalités du sentir proprement
affectifs… En éclairant la dimension affective de la corporalité, en reprenant les
catégories d’institution et de sédimentation, en soulignant l’inscription affective
du monde et en développant une quasi-intentionnalité désirante, elle s’institue
véritablement en phénoménologie de l’affectivité.
- Parallèlement, nous avons tenté de mettre en exergue l’ubiquité de cette notion
d’affectivité dans l’œuvre de Freud, et sa reprise problématique par la catégorie
d’affect. Loin de se réduire à la seule libido, la perte de sens propre à l’affect
conscient, convoque, dans son extension inconsciente, la dualité des pulsions de
conservation et des pulsions sexuelles, mais aussi celle des pulsions de vie et des
pulsions de mort. En outre, la stratification mise en exergue au fondement de
l’affect, succession d’identification primaire, puis secondaire, introduit dans la
sédimentation de l’affectivité une source non pulsionnelle, et ajoute au jeu des
pulsions une dialectique entre les instances psychiques.
Un certain nombre de difficultés ont alors surgi dans la définition freudienne de
l’affect, laissant apparaître de nouvelles oppositions entre la phénoménologie de
l’affectivité et la métapsychologie freudienne de l’affect, sous la forme principale
d’un divorce épistémologique. La définition quantitative de l’affect est en effet
représentative de la tentative freudienne de réduire l’aspect qualitatif des
phénomènes psychiques pour désolidariser le psychisme de la conscience, mais
aussi pour conférer à la psychanalyse l’objectivité scientifique de la physique ou
de la biologie. Elle révèle ainsi le primat d’une attitude naturaliste, là où celle-ci,
pour la phénoménologie, n’est qu’abstraction seconde, artéfact procédant d’un
premier rapport au monde de la vie. La question s’avère toutefois plus complexe
: dans la théorie freudienne, l’économique demeure, comme le soulignait Paul
Ricoeur, indissociable de l’herméneutique, la force reste conjointe du sens, dans
une épistémologie hybride. La quantité définissant l’affect vient alors pointer une
complexité que la qualité seule n’épuise pas : elle est l’indexe d’une énigme, celle
de la figurabilité de l’inconscient, de la traduction du plaisir, de la transition du
somatique au psychique. En ce sens, les apories que présente la catégorie
d’affect ne procèdent pas uniquement d’une critique externe de la psychanalyse,
79
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
mais de contradictions internes propres à la théorisation freudienne. En effet, la
quantitativité seule ne permet pas de rendre compte de la qualitativité
différentielle des strates que nous voyons au fondement de l’affect. Si, dans
l’inconscient ou dans le Ça, ne prévaut, entre les pulsions, qu’une différence de
degré et non pas de nature, comment maintenir la qualité psychique de
l’inconscient, là où la quantité le cantonnerait aux seuls processus somatiques ?
Comment alors penser le passage du soma à la psychè, de la force au sens, du
quantum au plaisir, sans se contenter de surimposer aux attestations
qualitatives, cliniques, des effets de l’inconscient, une substruction physiciste
seulement parallèle ? Comment penser un inconscient non représentatif mais qui
reste qualitatif ?
Dans notre troisième partie, nous avons alors tenté de répondre à certaines de
ces apories par une extension de la phénoménologie de l’affectivité. En retour, il
convenait de proposer un remaniement des difficultés rencontrées par la
phénoménologie dans la notion d’affectivité. Corollaire d’une passivité qui ne peut
être totale, l’affectivité soulève la question d’un passage de cette passivité à une
activité de la conscience. Ecart par rapport à soi par delà l’immanentisation d’une
subjectivité solipsiste, l’affectivité nous est apparue comme fondamentalement
intersubjective. La question qui se posait alors consistait à chercher une
modélisation permettant de penser la désubjectivation du passage de l’affect à la
passion, sans toutefois réduire l’affectivité à la généralité de la tonalité affective –
modèle heideggerien, - ou à l’anonymat de la seule pulsion – modèle freudien.
C’est alors le statut même de la subjectivité psychique qui nous semblait ici en
jeu : la phénoménologie de l’affectivité mise en exergue chez Merleau-Ponty
nous a paru à même de le garantir.
Au cœur de cette relecture de la métapsychologie de l’affect par la
phénoménologie de l’affectivité, nous avons placé la catégorie centrale de
phantasia, thématisée par Marc Richir après Husserl. Acte psychique brouillant la
différence entre perception et imagination, protéiforme, intermittente,
discontinue, non-positionnelle et non-intentionnelle, la phantasia n’est attestable
que par son institution dans l’imagination. Dérobement constant à soi, l’affectivité
de l’affect conscient s’accompagne souvent d’une perte en significativité liée à
une originaire transposition de phantasiai en imaginations. La position affective
consciente de la perception est en réalité doublée d’une position affective sinon
inconsciente « non vécue », séparée, du moins préconsciente, affleurant juste en
dessous. Nous avons alors relu la quantitativité problématique de l’affect
inconscient comme quête en figuration propre à toute formation psychique. Le
processus de figurabilité de l’affect vient rendre compte de la continuité affectale
entre conscient et inconscient. Brouillant la différence entre affects et
représentations, il place le motif de la Darstellung, présentation, plus que celui de
Vorstellung, représentation, au fondement de l’expression psychique.
Cette accentuation de la figurabilité psychique s’est appuyée sur une lecture
croisée des motifs de la corporalité, de la perception, de la temporalité psychique
et de l’intersubjectivité tels que les présentent la perspective de Merleau-Ponty et
celle de Freud ou de Winnicott. Si le corps propre phénoménologique est d’abord
corps fantasmatique pour la psychanalyse, seule une généalogie hybride,
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
fantasmatico-perceptive du dedans conjoint du dehors, du sujet conjoint de
l’objet, contenue dans le modèle merleau-pontyen de la chair, permet de
contourner le modèle métaphysique d’une perte d’objet première appréhendant
l’Etre à partir d’un Néant originaire. La catégorie de la phantasia vient alors lier la
perception, chez Merleau-Ponty, à l’hallucination, dans une grande similitude
avec les développements récents de la psychanalyse sur la figurabilité psychique.
Dans l’impersonnalité qui la festonne, la perception s’ouvre à une régrédience,
permettant d’y inscrire un mouvement affectal vers la figurabilité. En résulte un
nécessaire entrecroisement entre pulsionnel et perceptif, dedans et dehors, sujet
et autrui, au fondement duquel nous avons placé le mythe heuristique d’une
origine du psychisme humain dans un espace intersubjectif, transitionnel, levant
les apories freudiennes du narcissisme primaire.
De ce modèle plaçant l’intersubjectivité au cœur de la figurabilité affectale,
résulte une conception double du transfert. Lieu d’attestation de phénomènes
archaïques autrement inaccessibles à la phénoménologie, le transfert articule une
même quête en figurabilité de l’affect, et implique par leur affectivité tout autant
l’analyste que l’analysant, sur le double plan de la cure et de sa théorisation. Les
conséquences de cette éthique analytique permettent alors d’éviter le
réductionnisme propre à certaines « techniques thérapeutiques » se prévalant
d’une neutralité toute-puissante du thérapeute, attelé à vaincre la résistance du
seul patient par des techniques éducatives, ou à redresser ses schémas de
pensée défaillants…
Qu’est alors cet « inconscient » que nous présentons entre guillemets chez
Merleau-Ponty ? Ce n’est ni un ensemble de pulsions, ni le lieu de
représentations refoulées, ni une conscience seconde au fait de la vérité. S’il n’a
pas de régime propre qui le distingue de celui de la perception, à laquelle il est
mêlé comme la généralité de mon corps à ma conscience, il procède de cette
intentionnalité affective en perte de sens, il présente la simultanéité de la
présence et de l’absence, la charnière entre le soi et le monde, la membrure
d’intersubjectivité au fondement d’un processus de figuration affectale. Ce n’est
donc pas l’inconscient psychanalytique que la phénoménologie de Merleau-Ponty
appréhende à partir de la perception, mais, de manière plus circonscrite, la quête
en figurabilité de l’affect. En ce sens c’est la thématisation de cette quête en
figurabilité que nous avons proposée comme lieu de ce dialogue entre
phénoménologie merleau-pontyenne et psychanalyse freudienne, confluent dont
le partage des eaux reste emmêlé, au risque d’être trouble.
Nous commencions par indiquer l’entrelacs entre questions théoriques et
questions subjectives dont provient ce travail. L’entrecroisement d’une posture
subjective et d’une procédure de théorisation, que nous avons tenté de retrouver
dans la dimension affective de la théorie à la fois en phénoménologie et en
psychanalyse, nous ne pouvons manquer de l’appliquer à ce travail, pour en
indiquer les limites. Limites de fond, lorsque la construction vient remplacer la
description, ou lorsque la perspective d’une discipline vient parfois forcer le sens
de l’autre, dans des simplifications contestables. Limites de forme également, là
où le style propre à une subjectivité vient accuser des maladresses de syntaxe,
des facilités de structure ou des erreurs de frappe, que l’urgence de l’écriture
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
seule ne saurait justifier, et dont je vous prie de bien vouloir m’excuser. Devant
les limites de fond, à charge à cette théorisation d’éviter le dogmatisme de la
doctrine, en se proposant comme ouverture propédeutique à une réflexion
susceptible d’être constamment remise sur le métier.
Les conclusions ici
atteintes se présentent comme autant de résultats ponctuels, ouverts à la
révision qu’apporterait une nouvelle réflexion, mais aussi une pratique analytique
réinscrivant cette construction théorique dans l’affectivité du transfert, la
rectifiant constamment, et la gardant ainsi de toute rigidification.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A maternagem em uma família homoafetiva feminina
Ana Laura Moraes Martinez 13
Profa. Dra. Valéria Barbieri 14
Universidade de São Paulo
D. W. Winnicott (1948) expandiu o campo da Psicanálise quando apontou que um
bebê não existe sem sua mãe ou cuidador, chamando a atenção para a extrema
dependência do bebê em relação ao ambiente e para a importância de um
ambiente suficientemente bom no desenvolvimento do self. Na sua definição da
função materna, o autor destaca suas funções de continência, holding e
capacidade de manter a ilusão e a onipotência infantil. Estas características,
muito mais do que atreladas ao sexo biológico do cuidador, parecem estar
ligadas às funções mentais e a uma condição psíquica capaz de suportar, durante
algum tempo, a regressão materna primária. Diante disso, o presente trabalho
tem como objetivo narrar o estudo de caso feito com uma família homoafetiva
feminina, composta de duas mulheres, sendo uma mãe biológica de um menino
de sete anos e sua companheira. Para a coleta dos dados foram realizadas: uma
entrevista individual semi-estruturada com cada uma das mulheres. Na análise,
utilizou-se o referencial da psicanálise winnicottiana. Como resultado, foi possível
constatar que a função materna foi desempenhada não pela mãe biológica do
menino, mas sim, pela sua companheira, uma vez que a mãe deste não teve
condições de suportar a regressão, mantendo-se bastante racional e distante
afetivamente do filho, tanto durante a gravidez como após o nascimento deste.
Palavras-chave: Psicanálise;
Homossexualidade
Função
Materna;
Desenvolvimento
Infantil;
D. W. Winnicott (1948) expanded the field of the Psychoanalysis when he pointed
out that a baby could not exist without his/her mother, calling attention for the
extreme dependence of the baby regarding the environment, and the importance
of a good-enough mother his/her self development.
In his definition of
mothering, Winnicott stress its functions of holding and capability of keeping
baby’s and omnipotence. These characteristics depends upon parent’s mental
capability of supporting the motherly primary regression, rather than his/her
biological sex. Considering this, the present aims to present a case study of a
homosexual family, composed of a biological mother of a seven-year-old boy and
her companion. It was performed an individual semi-structured interview with
each one of the women. The theoretical foundation for data interpretation
13 Doutoranda em Psicologia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto
(FFCLRP-USP), Psicóloga Clínica de Orientação Psicanalítica, Docente no Curso de Psicopedagogia
Clínica e Institucional do Centro Universitário Barão de Mauá.
14 Docente do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras
de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP). Atua na área de Avaliação Psicológica, com ênfase no
Psicodiagnóstico Inteventivo de Orientação Psicanalítica.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
consisted of winnicottian psycho-analysis. The interviews showed thar motherly
function was performed not by the biological mother of the boy, but by her
companion, because the former couldn’t stand the regression, remaining quite
rational and emotionally distant from her son, both during pregnancy and after
his birth.
Key-words:
Psychoanalysis;
Homosexuality.
Motherly
Function;
Child
Development,
Introdução
As inúmeras configurações familiares presentes na atualidade, tais como as
famílias recompostas ou reconstituídas, famílias monoparentais materna ou
paterna, ou ainda, as famílias homoafetivas masculinas e femininas têm se
apresentado na realidade e merecem ser investigadas e discutidas. Se por um
lado, esta diversidade abre espaço para que se possa romper com o modelo
predominante da família nuclear, formada por pai, mãe e filhos, por outro é
possível se afirmar que a Psicologia e, acima de tudo, a Psicanálise, ainda não
possuem modelos teóricos consistentes para abarcar toda esta diversidade. Isso
se dá em grande parte porque o escopo teórico da Psicanálise foi constituído e
pautado num modelo de família tradicional, a partir do qual fazia sentido, por
exemplo, discutir a questão do Complexo de Édipo e da triangulação afetiva.
Entretanto, partindo de uma Psicanálise mais
contemporânea, encontramos D. W. Winnicott,
discussões psicanalíticas, a importância real
desenvolvimento infantil, além da importância de
nos primeiros meses de vida.
tradicional para uma mais
que conseguiu incluir, nas
do ambiente externo no
uma figura cuidadora estável
Em sua teoria do desenvolvimento emocional ele afirma que o bebê se encontra,
no início da vida, em um estado de não-integração. Diante de sua fragilidade
física e mental, o bebê necessita, para sobreviver, de uma mãe que permaneça
existindo no tempo e favoreça sua integração. Expressa esta idéia na célebre
frase: “Não existe um bebê sem uma mãe” (Winnicott, 1945). Utilizando a
metáfora de Diniz e Rocha (2006), o bebê precisa ver-se refletido neste
momento na mãe espelho-mágico. É só neste contexto afetivo intenso que
poderá ocorrer o que Winnicott chama de momento de ilusão, essencial para o
desenvolvimento do self e para o seu posterior ingresso no universo da cultura e
da simbolização.
Esta ilusão ocorreria da seguinte maneira. O bebê faminto e inundado por toda
espécie de impulsos instintivos vem ao seio pronto para alucinar alguma coisa
que possa ser atacada, no auge de sua fome. Neste exato momento surge o seio
real, podendo o bebê sentir que este seio era exatamente o que ele havia
alucinado. Isso significa que ele pôde utilizar um objeto da realidade (seio ou
substituto) como matéria-prima acreditando ter criado esta série de coisas,
obviamente enriquecidas pelas próprias características reais do objeto (cheiro,
calor, etc.). Neste instante, é crucial que a mãe possa permanecer inteira e
constante, deixando o bebê dominar e que não haja nenhuma mudança drástica
84
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
neste processo de amamentação para que o bebê possa começar a sentir que
não destruiu o seio devido à sua avidez (Winnicott, 1945).
Nesta etapa de dependência absoluta do bebê em relação à mãe, todas as falhas
ambientais (da mãe) não são sentidas como vindas de fora, mas como ameaças
diretas à sua existência pessoal, geradas pela onipotência típica desta fase
(Winnicott, 1956). Por isso é extremamente importante que nesta fase a mãe
possa vivenciar o que ele chama de Preocupação Materna Primária, que seria
uma sensibilidade exacerbada, vivida pela mulher durante e, principalmente, no
final da gravidez. Winnicott compara esta regressão natural da mãe a um quadro
esquizóide (assim o seria se a mulher não estivesse grávida) que a torna
absolutamente devotada e envolta com as questões do bebê. Afirma ainda que
nem todas as mulheres são capazes de vivenciar a regressão (ou ainda, o são
com um filho e não com outro), e deixar de lado, mesmo que provisoriamente,
todas as outras exigências da vida. Isso consistiria numa “fuga para a sanidade”,
que se refletiria no desenvolvimento emocional da criança. As falhas maternas
provocariam reações à intrusão ambiental, interrompendo o continuar a ser do
bebê. O excesso destas reações não provocaria frustração, mas uma ameaça de
aniquilação (Winnicott, 1956).
Caso o bebê consiga continuar a ser, sem um excesso de intrusões ambientais,
torna-se enriquecido pelas experiências com a mãe e ruma para uma maior
integração, atingindo o momento da dependência relativa. Neste momento está
pronto para começar a conceber a mãe como um ser inteiro e separado dele.
Inicia-se, então, o processo de desilusão, inaugurado pelo desmame. A base
fundamental para que este processo ocorra sem grandes complicações diz
respeito à vivência de um bom período de ilusão. Isso significa dizer que, se o
mundo foi ao encontro da criança, agora esta pode ir ao encontro do mundo
(Winnicott, 1982).
Para Winnicott, a existência de alguém que possa exercer a função materna (não
necessariamente a mãe biológica) no início da vida do bebê é fundamental para
que ocorra um desenvolvimento saudável. A pessoa que irá assumir esta função
deve ser capaz de: (1) existir e continuar existindo (cheira, respira, pulsa)
mesmo após os ataques do bebê; (2) amar de um modo físico, proporcionando
calor, contato corporal, movimento e quietude ao bebê; (3) auxiliar o bebê na
transição entre o estado tranqüilo e o de excitação, evitando surgir de repente
com o alimento; (4) permitir que o bebê domine, estando disposta e de
prontidão para atendê-lo; (5) introduzir, aos poucos, o mundo externo,
particularmente na figura do pai; (6) proteger o bebê de sustos, tentando manter
o clima físico e emocional simples para que o bebê compreenda e rico o bastante
para atender suas necessidades; (7) fornecer continuidade ao seu bebê; (8) não
apressar seu desenvolvimento, acreditando que ele é um ser humano por direito
próprio; (9) tolerar sua falta de integração e seu tênue sentimento de viverdentro-do-corpo (Winnicott, 1948).
Dentre todas as funções maternas, Winnicott parece privilegiar, sobretudo, a
vivacidade da mãe e sua capacidade de existir por ela própria, chamando a
atenção para as mães que se sentem absolutamente responsáveis pela vitalidade
85
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
de seus filhos. Aponta que isso pode ser prejudicial para o desenvolvimento, uma
vez que a criança não pode contar com uma mãe que suporte que o bebê
brinque sozinho na companhia dela. Esta vivência de estar só na presença do
outro é, segundo ele, a base para uma segura capacidade para a solidão
essencial (Winnicott, 1958).
O aparecimento da figura paterna (não necessariamente o pai) na vida do bebê
depende sobremaneira do modo como a mãe faz, aos poucos, esta apresentação.
Por isso, é indispensável que haja um pai forte, amado e respeitado pela mãe. A
pessoa que irá desempenhar a função paterna deve ser capaz de: (1) auxiliar a
mãe a sentir-se bem e feliz, sendo um suporte para ela; (2) manter uma relação
sexual estável e saudável com a mãe; (3) dar apoio moral à mãe, sendo uma
autoridade que sustenta a lei e a ordem; (4) estar e continuar vivo durante os
primeiros anos da criança; (5) servir de um modelo de identificação por causa da
sua vitalidade e força. É importante destacar que estas funções não precisam ser
desempenhadas, necessariamente, pela mulher (no caso da função materna) e
pelo homem (no caso da função paterna). Ao contrário, elas parecem estar mais
relacionadas à condição interna de cada genitor na assunção de sua função do
que ao sexo biológico de cada um (Winnicott, 1948).
Diante desta conceituação, o presente trabalho buscou investigar o
estabelecimento das funções materna e paterna em uma família homoafetiva
feminina.
Dados dos participantes
Participou desta pesquisa o casal Márcia e Raquel15, respectivamente com 42 e
54 anos. Ambas estavam em condição de união instável há vinte anos, sendo
que uma delas (Márcia) tinha um filho biológico de uma relação heterossexual
que manteve durante uma das separações do casal. O menino Diogo tem sete
anos e não conhece o pai biológico. Além disso, a mãe biológica nunca conversou
com ele sobre sua relação homossexual com Raquel. Residem nos fundos da casa
da irmã de Raquel que, segundo ela, também não sabe da união das duas.
Ambas trabalham na área da saúde. Márcia mantém relações heterossexuais
esporadicamente. Já Raquel afirma ter certeza de sua homossexualidade e do
carinho que sente por Márcia. Assim, quando Márcia sai é sempre Raquel quem
fica com Diogo, leva-o às consultas médicas, à escola e ao futebol.
Durante a gestação e nascimento de Diogo, Raquel sempre acompanhou Márcia
às consultas médicas e ultrassons. Logo após o nascimento de Diogo, ambas
voltaram a morar juntas (estavam separadas antes disso) e Raquel assumiu
grande parte dos cuidados da criança, tal como trocar fraldas, acordar de
madrugada, etc. Já Márcia afirma que antes da gravidez era muito largada e que
nunca tinha tido vontade de ser mãe. Depois da gravidez ficou mais responsável
e madura. Márcia conta ainda que sente que é muito rígida e dura com Diogo e
que não entende porque se comporta desse jeito, já que com outras pessoas não
é desse jeito. Afirma ainda que sente que ele tem medo dela. Já com Raquel,
15 Todos os nomes dos participantes citados neste trabalho são fictícios.
86
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Diogo se sente confortável e amparado, sendo que tudo que precisa vai pedir a
ela.
Em relação à união do casal, ambas afirmam que depois que Diogo nasceu, se
aproximaram afetivamente, porém se distanciaram sexualmente. Embora a casa
tenha dois quartos, Diogo dorme com Márcia na cama e Raquel dorme no chão,
ao lado da cama de casal. Afirmam que nunca conseguem manter uma relação
sexual tranqüila e que sempre ficam pensando nele, mesmo quando estão no
motel. Relataram ainda que evitam trazer amigos homossexuais para casa, pois,
no geral eles são muito promíscuos e isso pode ser uma má influência para
Diogo (sic). Em relação à revelação de suas homossexualidades para suas
famílias, ambas apontam que nenhuma das duas famílias sabe, embora devam
desconfiar.
Metodologia de coleta e de análise
Na coleta dos dados, foi realizada uma entrevista semi-estruturada com cada
membro do casal separado, enfocando os seguintes temas: 1) Aspectos da
dinâmica do casal (como se conheceram, como é a relação, aceitação da família
em relação à homossexualidade); 2) A gravidez (como ocorreu, reações da mãe
e da parceira, contato com pai biológico, questionamentos da criança); 3)
Cuidados em relação à criança (divisão de tarefas, negociações e conflitos,
dificuldades encontradas, impactos na vida conjugal); 4) Significados de
maternidade, paternidade e família (como cada um se vê como cuidador, como
vê a companheira, o que é ser uma família). A entrevista foi gravada em fitacassete, mediante autorização das participantes e transcrita na íntegra.
Na análise, foi utilizado o referencial teórico winnicottiano, particularmente, no
que se refere às suas conceituações sobre maternagem e paternagem.
Resultados e discussão
Diante dos dados coletados, foi possível observar que Márcia (mãe biológica de
Diogo) teve muita dificuldade em viver a regressão materna primária, condição
sine qua non para o desenvolvimento saudável do self infantil. Apresentando um
funcionamento psíquico bastante rígido, fazendo largo uso de racionalizações e
negações, pode-se afirmar que a possibilidade de regressão tenha sido bastante
assustadora para ela. Tendo vivido em um ambiente familiar também bastante
comprometido, Márcia descreve o cuidado infantil que recebera da seguinte
forma:
A imagem que eu tenho da minha mãe era de uma mãe sargentona. Não lembro
dela pegando a gente no colo ou algo parecido. Tivemos uma boa educação,
sólida, mas sem muito afeto. O meu pai bebia muito, tinha mulherada na rua e
só voltava pra casa de vem em quando. Não lembro da figura dele e nem
acredito na figura paterna. Acho que mãe é o negócio mais importante, mas eu
não sei o que pensar da minha.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Ao longo de toda a sua entrevista, permeada por muito silêncio e angustia,
Márcia se assusta com a possibilidade de estar se abrindo e diz: Nossa, eu to
falando bastante. E olha que nem bebi, hein?. Sua dificuldade em brincar e
funcionar num nível mais primitivo surge, particularmente, nos momentos em
que Diogo solicita sua participação em sua vida infantil. Esta dificuldade
relacionada à brincadeira aparece no seguinte trecho, quando descreve Diogo
brincando na piscina:
Outro dia estava muito calor, aí eu cheguei do trabalho e disse: vou encher a
piscina pro Diogo. Aí limpei toda a casa, porque sou neurótica com limpeza, viu?.
Limpei tudo, lavei a piscina e tal. Aí ele chegou da escola e entrou na piscina.
Ficava me chamando o tempo todo pra ir nadar com ele. Aí eu já fui perdendo a
paciência e gritei com ele: Mas, Diogo de Deus, eu sou uma só!. Não tá vendo
que eu to cozinhando? É isso que ele faz que me irrita profundamente. Fica toda
hora gritando o meu nome sem parar. Não tenho paciência com isso.
Ao perceber sua dificuldade de aproximação afetiva em relação ao Diogo, Márcia
sente-se culpada, além de ficar enciumada da relação que sua companheira
Raquel consegue estabelecer com o menino:
Aqui é assim, viu?. Tudo o que ele quer vai direto chamar pela Raquel. É tia
Raquel pra lá e pra cá. Nem vem falar comigo, vai direto com ela. Se fica doente,
não quer que eu leve no hospital. É ela quem leva. Eu acho que ele ficaria bem
sem mim, mas não sem ela. Eu sei que ás vezes pego pesado. O meu apelido
aqui é sargentão. Mas eu não sei porque sou assim só com ele. Tenho medo que
ele fique revoltado comigo.
Falando de sua experiência com a maternidade, Márcia diz que antes era muito
largada e sem compromisso com a vida e que sua vida mudou muito após a
chegada de Diogo. Quando questionada sobre o pai de Diogo e seu contato com
ele, a única coisa que relatou é que não gostaria de tocar neste assunto. Neste
momento, o clima da entrevista ficou bastante tenso e ela muito silenciosa. Diz
ainda que deseja muito adotar sozinha uma outra criança quando estiver com a
vida financeira mais estabilizada
Já Raquel apresenta-se mais continente e afetiva, tanto com Márcia quanto com
Diogo. Vale ressaltar que no dia da entrevista Diogo estava um pouco febril e
ficava solicitando a todo o momento a atenção de Raquel que, ao final do dia, o
levou ao médico. É ela também que vai às reuniões do colégio com ele, embora
trabalhe mais em número de horas diárias que Márcia.
Tendo um posicionamento mais claro e realista da situação conflitiva vivida pela
companheira, Raquel diz não concordar com o fato de Márcia esconder o pai
biológico de Diogo. Neste sentido, ela diz:
Eu acho que toda criança tem que ter direito de conhecer o seu pai. Eu não
concordo com o que Márcia faz de esconder o pai de Diogo. Mas, eu não posso
interferir nisso porque é uma coisa que ela tem que resolver. Eu converso muito
com ela sobre isso, mas parece que ela tem um bloqueio dentro dela. Eu sinto
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
que ela vive em busca de se encontrar. Parece que tem um vazio estranho
dentro de si que acaba se refletindo na relação dela com o Diogo. Eu falo pra ela:
precisa melhorar isso porque o menino acaba ficando com medo de você desse
jeito. Digo sempre pra ela: Vocês tem que sair juntos, viajar juntos, sair
sozinhos pra passear. Falo isso pra ver se ela consegue conquistar de novo a
confiança dele.
É interessante situar que Raquel se descreve como uma pessoa que nunca
pensou ou teve vontade de ser mãe e que não leva jeito com crianças. Apesar
disso, parece conseguir estabelecer com maior facilidade um contato afetivo com
Diogo, realizando ela própria a função de maternagem, conforme Winnicott
(1956).
Desta forma, neste caso pôde-se observar que, embora Márcia tenha vivido todo
o processo biológico e físico da gravidez, quem exerceu a função materna, na
maior parte do tempo, foi sua companheira. Este dado é importante, pois,
recoloca a questão da equivalência entre a gravidez e a disposição para a
maternagem. Abre, assim, caminho para se pensar em formas diversas e
saudáveis de maternagem não exercidas, necessariamente, pela mãe biológica.
Referências Bibliográficas
DINIZ, G. C. V. & ROCHA, Z. As metamorfoses do espelho no rosto materno na
constituição do self da criança. In: Revista Mal-estar e subjetividade, Vol. VI (1),
2006.
WINNICOTT, D. W. (1948). Pediatria e Psiquiatria. In.: WINNICOTT, D. Da
pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, p. 233-253,
2000.
________________ (1956). A Preocupação Materna Primária. In.: WINNICOTT,
D. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, p. 399405, 2000.
_______________ (1958). Psicanálise do sentimento de culpa. In.: WINNICOTT,
D. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, p.19-30,
1983.
WINNICOTT, D. W. A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: Editora LTC, 1982.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Autonomia, submissão e gestualidade espontânea:
Considerações sobre um caso clínico.
Antonina de Souza Lopes Muniz-Pimenta16
Cristiane Helena Dias Simões17
Tânia Maria José Aiello-Vaisberg18
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Resumo O presente trabalho tem como objetivo refletir teórica e clinicamente
sobre fenômenos clínicos que suscitam dúvidas quanto à possibilidade de
representarem movimentos criativos e espontâneos ou, pelo contrário,
corresponderem a formas veladas de submissão. Articula-se metodologicamente
ao redor do estudo do caso de uma paciente, que realizou diversas mudanças
concretas de vida, no sentido da aquisição de uma maior autonomia, em
registros comportamental e social, a partir do estabelecimento de uma relação
bastante engajada com um trabalho de psicoterapia psicanalítica, conduzido a
partir de uma perspectiva winnicottiana. O acontecer clínico é minuciosamente
examinado, no sentido da transferência e contratransferência.
Palavras-chave Falso self – gesto espontâneo – D.W.Winnicott, psicanálise
Autonomy, submission and spontaneous gesture:
Theoretical and clinical reflections from a clinical case.
Abstract The present paper aims to reflect theoretically and clinically about
clinical phenomena that raise doubts about the possibility of representing
creative and spontaneous movements or ,conversely, they are a veiled form of
submission. It is methodologically articulated (based) around the study of a
patient's case, who has done several changes of pratical life, towards the
acquisition of a bigger autonomy in social and behavioral records from the
establishment of a relationship quite engaged with a work of psychoanalytic
16 Psicóloga. Mestranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas,
com bolsa Capes 2. Especialista em Psicanálise pelo Centro de Psicanálise de Campinas.
17 Psicóloga. Doutoranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas, com bolsa Capes 1. Mestre pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.
18 Professora Livre Docente do IPUSP- Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo, Orientadora Permanente do Programa de Pós Graduação em Psicologia da
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Orientadora Colaboradora do programa de
Pós- Graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo, Coordenadora da
"Ser e Fazer": Oficinas Psicoterapêuticas de Criação do IPUSP e Presidente do NEWNúcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
psychotherapy, conducted from a perspecitve winnicottiana. The clinical case is
throughly examined in the sense of transference and countertransference.
KEYWORDS False Self - spontaneous gesture – D.W.winnicott - psychoanalysis
Ainda que muitos não os considerem estritamente psicanalíticos, os conceitos de
falso e verdadeiro self ocuparam importante lugar nas formulações teóricas
winnicottianas. A partir de sua prática clínica, Winnicott chegou a utilizá-los
quando percebeu que pode ser mais produtivo reconhecer a não-existência do
paciente do que trabalhar longamente com suas estratégias defensivas, o que só
fortaleceria o falso self, sem favorecer a integração pessoal. Conceituou, assim, o
verdadeiro self como posição existencial a partir da qual surge o gesto
espontâneo, por meio do qual pode a pessoa sentir-se viva e real, enquanto o
falso self corresponderia à submissão, ao sentimento de inutilidade, à futilidade
e, finalmente, à impossibilidade do viver autêntico (Winnicott, 1960).
À luz de tais conceitos, o presente trabalho tem como objetivo refletir teórica e
clinicamente sobre fenômenos clínicos que suscitam dúvidas quanto à
possibilidade de representarem movimentos criativos e espontâneos, ou pelo
contrário, corresponderem a formas veladas de submissão. O fio condutor dessa
discriminação é o exame da contratransferência.
Os conceitos de submissão e
gestualidade espontânea na obra de Winnicott
Winnicott (1960) descreve que é necessário compreender que o self verdadeiro
começa a ter vida quando o bebê conta com cuidados de uma mãe
suficientemente boa, que lhe viabiliza experiências de onipotência por meio das
quais o ser pode emergir a partir do não-ser. Tem aí início um laborioso processo
por meio do qual a externalidade do mundo fará sentido para o indivíduo e, aos
poucos, poderá se relacionar com aquela.
Entretanto, nem sempre o cuidador maternal concreto é capaz de favorecer a
ocorrência de experiências de onipotência. Nesses casos, o movimento do bebê é
substituído pela conduta da mãe, ocorrendo, então, a submissão daquele. Esse
tipo de interação inaugura, na perspectiva do lactente, formas inautênticas de
viver, conhecidas como falso self. Desse modo, ele sobrevive de modo submisso,
mas não encontra espaço para ser pleno e real. Notamos, portanto, que a teoria
winnicottiana sobre o desenvolvimento emocional visa a dar conta da origem de
duas posições existenciais fundamentais a partir das quais podem ser
compreendidas as diferentes configurações clínicas: o viver inautêntico, submisso
e heterônomo e a possibilidade de se sentir vivo, real e capaz de gestualidade
espontânea e transformadora de si e do mundo.
A nosso ver, tais conceitos possuem grande importância como norteadores da
prática psicanalítica, à medida em que instigam a buscar diferenciar, de modo
refinado, o quanto as mudanças correspondem a autênticos momentos mutativos
ou, ao contrário, a manifestações mais ou menos inteligentes em registro ainda
91
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
falso, defensivo e dissociado. Há que reconhecer que, em terapia, sempre
corremos o risco, explicitamente apontado algumas vezes ao longo da obra
winnicottiana, de operar uma análise, mais ou menos prolongada, do falso self,
que pode propiciar alterações aparentes, sem jamais atingir repercussões
verdadeiramente existenciais.
O acontecer clínico19
Uma jovem senhora chamada Maria das Dores20 procurou análise seguindo a
sugestão do marido, em relação ao qual mantinha um vínculo de grande
dependência. Já nos primeiros contatos, demonstrou o desespero em que se
encontrava, no contexto de crise conjugal importante, temendo fortemente a
ocorrência de uma separação. Valorizava muito o casamento, já que por meio
dele conseguira livrar-se da convivência com pais extremamente autoritários,
considerando mesmo que renascera, aos dezoito anos, ao casar-se.
Após dois meses de tratamento, o marido saiu de casa, deixando-a
emocionalmente paralisada, chocada e desvitalizada. Teve então início, na
psicoterapia, um processo de tentativa de adaptação à nova situação. Até então,
todas as decisões importantes eram tomadas pelo marido, que assumia de modo
desenvolto uma posição de liderança do casal, permitindo que se ocupasse, de
modo mais ou menos autônomo, apenas das tarefas domésticas. Acostumada a
tudo fazer em companhia do esposo, passou a enfrentar a possibilidade de
realizar sozinha algumas atividades cotidianas fora do lar, como pagar contas ou
ir à missa.
É importante salientar que, durante o primeiro ano de análise, chorava
profundamente durante as sessões. Permanecia em casa a maior parte do dia,
saindo apenas para ir ao banco, ao trabalho e à missa. Todas as outras
atividades, como ir ao baile, nadar, dirigir e namorar, emergiram no decorrer dos
outros anos.
Algumas sessões foram dedicadas à reorganização prática de sua vida. Abertura
de conta bancária, procedimentos a adotar para pagamentos, administrar o
dinheiro e questões correlatas foram assuntos de muitos encontros com a
terapeuta. Todos esses aspectos foram discutidos e trabalhados com a intenção
de prover o holding necessário para que pudesse assumir uma posição
existencial mais ativa.
Entretanto, o cumprimento das tarefas, mesmo gerando resultados práticos
satisfatórios, não causava bem-estar, pois era vivido de forma ambivalente, na
qual se mesclavam alívio e dor emocional, já que, a seu ver, tudo eram
exigências de que estaria poupada se estivesse casada. Repetia, em inúmeras
sessões, que sua vida anterior à separação era ótima, perfeita e isenta de
19 Este caso foi atendido por Antonina de Souza Lopes Muniz Pimenta.
20 Usamos um nome fictício para proteger a identidade da paciente. Outros cuidados
foram também tomados no sentido de impossibilitar sua identificação, por razões éticas.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
conflitos, uma vez que entre os cônjuges teria reinado uma completa afinidade e
concordância a respeito de todas as questões. É bem verdade que chegaram a
ocorrer, algumas vezes, confissões sobre o fato do marido beber de modo
exagerado, mas esta situação não modificava sua visão sobre o casamento e o
cônjuge, que considerava “perfeitos”.
Desse modo, mudanças efetivas
pragmáticas, por meio das quais se transformava de esposa dependente em
adulta capaz de se cuidar, eram acompanhadas por um discurso de
enaltecimento constante da vida conjugal passada.
As modificações no estilo de vida levaram-na a um relacionamento prazeroso
com outro homem, o que muito a surpreendeu. Chegou a fazer várias viagens,
visitando lugares que desejara conhecer e para os quais o marido jamais a
levara. Além disso, começou a praticar esportes, fez novas amizades e começou
a sair à noite para dançar, coisa que jamais cogitara fazer durante a vida
conjugal. Outra grande mudança, intensamente trabalhada nas sessões, foi
recomeçar a dirigir e comprar um automóvel, fato cujo significado se esclarece
quando lembramos que não conduzia há vinte anos por medo.
Sempre houve dúvidas sobre a eficácia do tratamento, ao qual se referia como
"isto daqui", uma vez que a terapeuta não poderia devolver o casamento e a vida
de outrora. Manifestou várias vezes vontade de interromper o trabalho, ouvindo,
nestas ocasiões, ponderações sobre a impossibilidade de retorno ao passado,
mas de mudança e construção do futuro, a partir da elaboração sobre seu
próprio acontecer atual. Ouvia e então desistia de abandonar a psicoterapia,
asseverando, no entanto, que sequer conseguia imaginar uma alta tranqüila e de
comum acordo, uma vez que não teria experimentado, em toda a sua vida, uma
verdadeira relação de troca e parceria.
Ao final do quinto ano de análise, solicitou judicialmente a separação do marido,
para seu próprio espanto. Logo após, conseguiu também pedir demissão do
emprego que, aliás, fora-lhe arrumado pelo ex-esposo. Acreditar que ela mesma
poderia escolher onde e com quem trabalhar foi fruto de um processo dolorido,
intenso e também gratificante, já que significava romper mais uma vez com
pessoas ligadas à época de seu casamento.
Cerca de dois meses após a complementação dessas mudanças de vida, o desejo
de parar a análise passou a mostrar-se de modo mais consistente. O trabalho
finalizou seis meses depois.
Por outro lado, parece fundamental completar este relato de acontecimentos com
considerações acerca dos sentimentos e impressões vividas pela analista ao
longo destes anos. No início do tratamento, a terapeuta sentia-se
contratransferencialmente impactada com o que, a falta de termo mais claro,
poderia ser chamado de "não-existência" da paciente, que parecia "ser", de
modo exclusivo e total, nada mais do que o sofrimento derivado das mudanças
do que esteve anteriormente estabelecido em sua vida. Não se tratava,
exatamente, de sentimentos depressivos fundados na perda de algo
afetivamente significativo, mas de outra coisa, que se ligada mais difusamente ao
apego à rotina conhecida. Com o passar dos anos, parecia sempre muito
93
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
orgulhosa das conquistas experimentadas, como se as questões discutidas no
espaço analítico fossem "uma lição de casa", que deveria ser executada em
seguida. Assim, ainda que relatasse mudanças que, num registro social, são
freqüentemente compreendidas como sinal de iniciativa e assertividade, era
visível, no âmbito da transferência, que eram usadas com o objetivo afetivoemocional de submeter-se ao que fantasiava serem os desejos da analista.
Assim, acabou adotando comportamentos que julgava passíveis de serem
aprovados pela terapeuta ou que esta mesma apresentaria, a seu ver, em
situações análogas.
Entretanto, com o passar do tempo, e a efetiva realização de mudanças
comportamentais bastante evidentes, paciente e terapeuta viveram uma
experiência de entusiasmo compartilhado, na medida em que esta última se via
cada vez mais inclinada a interpretar toda a situação como evidência de um
amadurecimento emocional que estaria permitindo o abandono da submissão em
favor de uma saudável afirmação de si mesma. Porém, a auto-satisfação da
paciente, certo ar de alívio e o insistente desejo de finalizar a análise também
repercutiram, num plano sensível, na analista, de um modo um tanto dissonante,
fazendo surgir dúvidas sobre sua autenticidade, já que o que ali brotava como
suposto "gesto espontâneo" se casava também, perfeitamente, com um padrão
socialmente estabelecido, em certos meios culturais, acerca da mulher divorciada
bem sucedida. Não ocorreu, contratransferencialmente, uma impressão de ter
sido enganada pela paciente, mas sim uma percepção da possibilidade de que
um falso self cuidador tratou de substituir as antigas figuras diante das quais se
submetia, em busca de segurança, por outra – a analista - que, em termos
concretos, preza, verdadeiramente, valores de respeito à espontaneidade e à
liberdade pessoal.
O verdadeiro e o falso self na clínica
O relato clínico descrito merece ser discutido, por levantar importantes
questionamentos sobre o que pode ocorrer durante um processo analítico, na
linha da discriminação ao que corresponde à gestualidade espontânea ou à
submissão ao outro.
Maria das Dores comportou-se de modo mais autônomo e independente, o que
incluiu, por exemplo, gerir a vida financeira e se tornar mais responsável por si
mesma. Porém, muitas das conquistas concretas de vida alcançadas parecem ter
sido fruto de busca por responder às supostas expectativas da terapeuta, e não a
um movimento autêntico. Nesse sentido, acreditamos que, apesar da analista ter
mantido uma atitude eticamente dedicada à paciente, as mudanças que
emergiram não foram expressão do verdadeiro self, mas ao contrário,
representaram uma submissão, mesmo movimento que fazia com seu exmarido. Entretanto, não podemos deixar de mencionar que pôde adquirir
competências, que permitiram um desembaraço maior em relação a situações
práticas da vida cotidiana.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Trabalharemos com o conceito de “competência” (Arruda-Botelho e AielloVaisberg, 2006) como algo que se diferencia de “capacidade”. Winnicott, em
diferentes momentos na sua obra, utiliza o termo “capacidade”, que conota a
ocorrência de avanços importantes no processo de amadurecimento pessoal,
tendo se referido à capacidade de ficar só, à capacidade de se preocupar, à
capacidade de acreditar... A seu ver, quando a criança conta com cuidados
parentais suficientemente bons, tem condição de desenvolver capacidades a
partir do potencial herdado. De acordo com Hopkins (1997) Winnicott não
escolheu o termo “capacidade” casualmente, já que apreciava estudos
etimológicos, que indicam que o termo deriva do latim capere e significa segurar
e conter. Relaciona-se, também, ao adjetivo capax, que significa amplo.
Arruda-Botelho e Aiello- Vaisberg (2006) descrevem que a capacidade se
desenvolve ao longo de uma experiência criadora e integrada, contribuindo assim
para um viver saudável. Já as competências corresponderiam a habilidades
técnicas, que podem ocorrer de modo dissociado, a partir da exploração do
intelecto.
Parece-nos correto compreender que a paciente desenvolveu várias
competências como habilidades dissociadas e, assim, ligadas ao falso self, e não
capacidades autênticas.
A nosso ver, os conceitos de competência e capacidade podem nortear
proveitosamente exames da prática psicanalítica, na medida em que favorecem a
manutenção de uma clara visão acerca do que se passa em registro
comportamental, de forma eventualmente dissociada, e o que ocorre no registro
existencial. Não se trata, contudo, de estabelecer uma rígida separação entre tais
domínios, como se nunca se relacionassem, pois é possível que a partir de
mudanças comportamentais, compreendidas como competências, venham a
surgir novas oportunidades concretas de vida que favoreçam transformações
genuínas. Afinal, mesmo manifestações do tipo falso self, que compreendemos, à
luz dos ensinamentos de Bleger (1963), como a melhor conduta possível, fazem
parte dos esforços inconscientes, mas eventualmente bastante efetivos, de
retomar o potencial criativo e espontâneo e, dessa forma, dar um sentido único e
verdadeiro à existência.
Referências Bibliográficas
Arruda- Botelho, A. ; Vaisberg, T. M. J. A. Desenvolvimento da capacidade de
escrever: da competência dissociada à gestualidade espontânea e criativa. In: XI
Colóquio Winnicott - Criatividade e Experiência Cultural, 2006, São Paulo.
Programa e Caderno de Resumos do XI Colóquio Winnicott - Criatividade
e Experiência Cultural. São Paulo : Ed. Leopoldo Fulgêncio, 2006. p. 15-16.
Bleger , J. (1963) Psicologia da Conduta. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
Hopkins, B. Winnicott e a capacidade de acreditar. In: Livro Anual de
Psicanálise, Tomo XIII, IJPA, 1997, Editora Escuta, São Paulo, p.111-122.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Winnicott, D.W. (1960) Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self.
In: Winnicott, D. W. O ambiente e os processos de maturação: estudos
sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre, Artes médicas,
1983. p.128-139.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O sentido do ser voluntário: uma pesquisa
fenomenológica
Bruna Fenocchi Guedes
Mauro Amatuzzi
PUC-Campinas
Resumo No Brasil, existem iniciativas sociais e de voluntariado desde o século
XVI, porém essas atividades tornaram-se mais efetivas e significativas a partir do
século XX e ganharam força atualmente. A escolha de 2001 como Ano
Internacional do Voluntariado é um indicativo da crescente disposição da
população e das instituições face às mais variadas formas de solidariedade e
participação social. Além disso, incentivou o aumento das iniciativas solidárias e
contribuiu para elevar, enfatizar e constituir o voluntariado como tema
emergente dando a sensação de “estar na moda”. A forma como o voluntariado é
desenvolvido e suas conseqüências dependem, em grande parte, das crenças
que o embasam; caridade, filantropia e solidariedade são algumas delas.
Preocupada com o “modismo” e com a efetiva transformação social, a autora
desta pesquisa, questiona quais seriam as motivações que levam as pessoas a se
tornarem voluntários e formula seu objetivo por um caminho fenomenológico:
compreender os sentidos que a prática do voluntariado tem para as pessoas que
se dedicam a ele. Assim, a partir de elaboração teórica, breve revisão histórica e,
principalmente, de relatos de experiências vividas por voluntários, a pesquisa
pretende compreender melhor o voluntariado contemporâneo e promover
discussões necessárias e pertinentes ao tema. A pesquisadora imagina que
estarão entre as conclusões desta pesquisa a de que o voluntário contemporâneo
tem consciência de seu papel fundamental na sociedade e sabe que não está
apenas fazendo o bem e sim facilitando mudanças sociais efetivas e duradouras.
Palavras-chave: pesquisa fenomenológica; voluntariado
The sense of being voluntary: a phenomenological study
Abstract
In Brazil, there are social and voluntary initiatives since the sixteenth century,
but these activities have become more effective and meaningful from the
twentieth century and have gained strength in present day. Choosing 2001 as
the International Year of Volunteers is an indication of the growing concern of the
population and institutions in the face of all forms of solidarity and participation in
activities which support society. Moreover, it encouraged the growth of solidarity
and contributed toward strengthening and emphasizing voluntary work as an
emerging theme giving the impression that it is "trendy and fashionable." The
way in which volunteer work is developed and its consequences depend largely
on the beliefs on which it is based; charity, philanthropy and solidarity are some
of them. Concerned with the emerging "fashion" trend and with the effective
social transformation, the author of this study, questions what motivates people
to become volunteers and formulates its goal in a phenomenological way:
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
understanding the reasons behind those who practice volunteer work. Thus,
through the elaboration of the theory, a brief historical review and most
importantly, reports of experiences by volunteers, the research aims to better
understand the contemporary volunteer work and promote the necessary and
relevant discussions to the subject. The researcher believes that one of the
conclusions this study will show will be that the contemporary volunteer is in fact
aware of his/her fundamental role in society and knows that by volunteering
he/she is not only doing good but also facilitating effective and lasting change in
society.
Key-words: phenomenological research; voluntary
Este trabalho apresenta a pesquisa de doutorado que está sendo desenvolvida
por Campos (2006-2010), sob orientação de Amatuzzi, no Programa de Pós
Graduação em Psicologia do Centro de Ciências da Vida, da PUC-Campinas, e
pretende compreender os sentidos que a prática do voluntariado tem para as
pessoas que se dedicam a ele. Neste trabalho é apresentado o voluntariado e sua
relação com o tempo e com crenças e motivações e a pesquisa propriamente
dita.
Voluntariado: hoje, ontem, amanhã
Conceituar definitivamente voluntário e/ou voluntariado é bastante complexo e
difícil; no entanto, pode-se afirmar que se trata de atividade desenvolvida
espontaneamente, ou a pedido, sem remuneração, na qual está presente a
proposta de comprometimento social, os sentimentos de solidariedade, bondade
e afeto, o desejo de transformação e o exercício da cidadania. (Garay e Mazzilli,
2003; Silva, 2006).
No Brasil, existem iniciativas sociais e de voluntariado desde o século XVI, porém
essas atividades tornaram-se mais efetivas e significativas a partir do século XX e
ganharam força no atual século; afinal o voluntariado é um produto histórico que
se desenvolve ao longo do tempo e está em permanente evolução (Dal Rio,
2004).
A escolha de 2001 como Ano Internacional do Voluntariado é um indicativo da
crescente disposição da população e das instituições às mais variadas formas de
solidariedade e participação social. Além disso, o Ano Internacional do
Voluntariado incentivou o aumento das iniciativas solidárias e contribuiu para
elevar, enfatizar e constituir o voluntariado como tema emergente e fashion,
dando ao voluntário a sensação de “estar na moda” (Lopes, 2006; Ribas, s.d.;
Silva, 2006; Sung, 2003; Teodósio, 2004; Vilela, 2003).
A mídia que, mais do que qualquer outro instrumento, tem cooperado para a
criação de uma cultura de participação social e engajamento voluntário, apoiada
por anúncios publicitários com frases de efeito, utiliza argumentos como
cidadania, sentimentos humanitários, filantropia e caridade, constrói e reforça na
população a vontade de contribuir socialmente. Além disso, utiliza apelos do
gênero nacionalista, sentimentalista e de cidadania, repassando à sociedade civil
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
brasileira a responsabilidade por solucionar os problemas sociais existentes. No
entanto, por sua velocidade, grande penetração e abrangência, a mídia pode ser
responsável pela disseminação da idéia e pela produção de discursos da
sociedade em relação à “voluntario-mania”, ou seja, a um voluntariado pouco
sincero, movido mais pelo modismo ou por segundas intenções (Sung, 2003).
Propostas atuais de engajamento, também são importantes, afinal incentivam o
voluntário a ser agente e promotor de suas próprias ações; ciente de si, de seus
talentos e do contexto em que está inserida, a pessoa age natural e
espontaneamente em busca de soluções e parceiros que possam colaborar.
Afinal, se o voluntariado for pensado de forma ampla, notar-se-á que as
possibilidades de ação dependem da criatividade dos voluntários e das
necessidades e potencialidades da comunidade (Ayres e Morais, 2005; Portal do
Voluntário, s.d.).
Iniciativas de “estágio social” e voluntariado empresarial são evidências do
crescimento das práticas voluntárias e, também, incentivadoras delas, afinal
muitas pessoas têm vontade de se engajar em projetos sociais e não o fazem por
“não saber onde ou como começar” e propostas como estas, com estrutura e
apoio organizacional viabilizam a realização do projeto pessoal em prol da
comunidade (Guedes, 2004).
Weffort, em texto de 1998, afirma que a sociedade brasileira encontra-se
atualmente num período de ampliação e valorização do espaço da sociedade civil
e das organizações sociais que, segundo Roca em texto de 1994, são os novos
agentes de mudanças (Selli & Garrafa, 2005). Além disso, o número de
associações voluntárias presentes em determinada sociedade indica o grau de
organização e de atividade de sua sociedade civil; as associações voluntárias,
com diferentes objetivos e graus de formalização, representam um contraponto à
automatização dos indivíduos e à desintegração social nas sociedades modernas.
As associações voluntárias constituem formas de as pessoas se mobilizarem em
torno de objetivos comuns e cooperarem entre si; no Brasil, estas associações
proliferaram e tem conquistado muita visibilidade nos últimos anos (Andrade e
Vaitsman, 2002).
Diversas semelhanças e diferenças podem ser notadas entre as práticas
pregressas e as atuais; desde lá a sociedade civil coopera no auxílio aos mais
necessitados e em muitas situações apenas mantêm o status quo, já que a
proposta é de ajuda emergencial e não a longo prazo ou educativa. Segundo
Silva (2006ª) na maioria das vezes, o trabalho voluntário não tem como objetivo
a superação das condições socioeconômicas precárias dos indivíduos, e sim
apenas a atenção emergencial, não havendo, o fomento à organização de
cooperativas ou associações que possibilitem a qualificação mínima das pessoas,
ou a formação de grupos de debates que busquem soluções para a comunidade.
Pode-se afirmar, então, que não há incentivo ao desenvolvimento de autonomia.
Existem, sim, ações voluntárias que proporcionam inovações, flexibilidade e
variedade nos trabalhos junto a comunidades carentes, no entanto, tais ações
apresentam caráter instável e incompleto, na maioria das vezes, não garantem
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
direitos sociais e, algumas vezes, são excludentes e opressoras, visto que
estabelecem critérios para a sua concretização, tais como normas e limites
estabelecidos pelos voluntários aos que receberão a ação (Silva, 2006ª). O
trabalho voluntário deve ser sistematizado, socialmente organizado e seguir
parâmetros críticos de ação, mesmo correndo o risco de ser definido como mero
mantenedor do status quo (Dal Rio, 2004).
Para que o trabalho voluntário instigue a autonomia e promova, efetivamente, a
transformação social é necessário que esteja atento às causas estruturais e
conjunturais dos problemas, ou seja, conheça a realidade concreta e a história da
comunidade atendida. Fica claro, então, que o voluntariado pode configurar-se
tanto como mera alienação e pragmatismo quanto como um movimento de
consciência crítica em direção ao fortalecimento da cidadania (Dal Rio, 2004).
Voluntariado: crenças e motivações
A forma como o voluntariado será desenvolvido e suas conseqüências dependem,
em grande parte, da crença que o embasa; caridade, filantropia e solidariedade
são algumas maneiras de entender e promover o bem-estar social.
Aqueles que se tornam voluntários tem muitas razões para fazê-lo, afinal “cada
voluntário, influenciado por princípios, valores ou experiências de vida, distintos
de outros indivíduos, elabora um conceito diferente de voluntariado, válido, que
influenciara o objetivo e a forma de sua atuação” (Silva, 2006, p.52).
Segundo Selli e Garrafa (2005), as razões fundamentais que determinam as
motivações para a atividade voluntária são de três tipos, a saber: motivações
pessoais relacionadas à vida do voluntário, motivações decorrentes da crença
professada, e motivações despertadas pelo sentimento de solidariedade.
Motivações pessoais são aquelas razões apresentadas como justificativas para o
exercício da atividade voluntária e têm como centro de interesse a busca da
realização pessoal do executor da ação; estas pessoas são voluntárias para “dar
sentido a própria vida”, “ocupar seu tempo”, “ter a possibilidade de comunicarse”, “superar o vazio da existência”, “sentir-se melhor como pessoa”. Segundo
Roca em texto de 1994, as motivações pessoais para o voluntariado têm como
base os dilemas relativos à existência e mobilizam as pessoas em busca da
realização pessoal; o voluntário busca respostas para suas próprias inquietações,
e busca curar suas dores existências pela relação empática com sofrimento
alheio.
Pessoas que são voluntárias por causa de motivações relacionadas à crença
professada afirmam que o fazem em busca da perfeição por meio da caridade, do
amor ao próximo e da compaixão de boas obras. Já aqueles que têm como
motivação a solidariedade, são voluntários para ajudar as pessoas, torná-las
mais autônomas, contribuir com a justiça social, reduzir as diferenças sociais e
cumprir com sua parte como membro da sociedade, são os que praticam o
voluntariado orgânico; a base prática da atividade voluntária solidária é o
reconhecimento do outro como sendo um ser humano igual a cada um de nós e,
como tal, digno.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Silva (2006) afirma existirem atualmente cinco motivações possíveis para o
voluntariado, são elas: preocupação com a coletividade; motivação externa a
vontade própria, sem vínculos com credos ou valores voluntários; motivação
interna às necessidades individuais; motivação religiosa e motivação baseada na
vivência de cidadania.
Além de a ação voluntária estar ligada a solidariedade, benevolência, afeto,
compreensão e responsabilidades para com os outros, é também possibilidade de
autotransformação e de transformações sociais; ser voluntário é uma forma de
treinamento e desenvolvimento, que oportuniza o exercício da liderança e do
senso de responsabilidade, o que é possível a partir da espontaneidade que esse
tipo de ação envolve. A prática do voluntariado possibilita o desenvolvimento de
maior facilidade e desenvoltura na resolução de dificuldades no dia a dia,
inclusive com soluções mais criativas, maior iniciativa, busca de maior
proximidade nas relações interpessoais, aceitando melhor as contribuições vindas
de outras pessoas, assim como a disseminação, nos ambientes em que
convivem, de valores e da cultura da responsabilidade social (Garay & Mazzilli,
2003).
Voluntariado: a pesquisa
Baseada nas premissas apresentadas, a autora desta pesquisa, questiona se
realmente seriam estas as motivações que levam as pessoas a se tornarem
voluntários, ou melhor, se seriam apenas estas as razões ou se existem outras e
quais seriam. Além disso, tem dúvidas a respeito do voluntariado ser realmente
capaz de promover autonomia, crescimento e desenvolvimento das pessoas
envolvidas em suas práticas, tanto aos que as desenvolvem quanto aos que são
favorecidos. Outra questão que permeia o voluntariado é o quanto as ações
promovidas pela sociedade civil estão desresponsabilizando o poder público e o
Estado de suas obrigações com a população. Estes questionamentos e outros
tantos são a base desta pesquisa que pretende, compreender os sentidos que a
prática do voluntariado tem para as pessoas que se dedicam a ele.
Por se tratar de uma pesquisa fenomenológica, parte-se do pressuposto que
esses sentidos não se reduzem ao que é imediatamente expresso nos discursos
dos voluntários; que outros sentidos podem ser encontrados se a essas pessoas
for facultada a possibilidade de se aprofundarem em suas vivências no contexto
de uma entrevista facilitadora, não diretiva e reflexiva. A partir da explicitação
desses sentidos pretende-se discutir o significado do voluntariado no contexto
social contemporâneo em confronto com a literatura atual sobre o tema.
Para tanto pretendemos conhecer a vivência que os voluntários têm dessa
experiência (buscando por um caminho fenomenológico, ir além das primeiras
declarações fornecidas); refletir sobre as diversas possibilidades de atuação
voluntária e discutir o significado do voluntariado no contexto social
contemporâneo.
Os colaboradores, desta pesquisa, serão pessoas que praticam o voluntariado a
pelo menos dois anos, e que tenham facilidade em articular verbalmente suas
101
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
idéias, clareza para refletir acerca de suas experiências e disponibilidade para
dialogar sobre seus significados. Serão entrevistados tantos voluntários quantos
forem necessários para se ter uma diversidade de relatos de experiências que
permita o acesso a características vivenciais que possibilitem a apreensão da
experiência comum de voluntariado.
Na pesquisa fenomenológica o que se busca é o relato que traz a tona, torna
presente, a experiência vivida; assim, cabe ao pesquisador, durante a entrevista,
permanecer ativo, presente como um interlocutor que encoraja e ampara e
também conduz a pessoa de volta para sua experiência concreta quando ela foge
para a opinião ou teoria (Amatuzzi, 2003). A entrevista por pretender captar a
experiência vivida, deve clarear para o colaborador os significados mais originais
de sua experiência, não por imposição de estruturas de pensamento, e sim pelo
retorno à vivência propriamente dita (Amatuzzi, 1998).
Nesta pesquisa serão realizados até 3 (três) encontros de diálogo reflexivo com
cada um dos colaboradores, com o intuito de tornar presente de forma mais
completa a experiência de voluntariado vivida por eles, e que serão iniciadas pela
seguinte questão desencadeadora:
“Estou realizando uma pesquisa que pretende conhecer experiências de trabalho
voluntário e refletir sobre elas. Para tanto, peço que me conte sua experiência
como voluntário.”
As
entrevistas
serão
realizadas
pessoalmente
pela
pesquisadora,
individualmente, e terão a duração que pareça ser necessária e proveitosa,
possibilitando que a reflexividade seja efetiva, que os colaboradores aproveitem
o momento de reflexão a respeito de sua prática de voluntariado; e que seja
possível o pensar junto da pesquisadora com cada um dos colaboradores.
As entrevistas serão reflexivas e, provavelmente, mobilizadoras o que permitirá
um progressivo acesso à experiência vivida na prática do voluntariado além do
que for inicialmente verbalizado; a análise começará no próprio encontro entre
pesquisadora e colaborador que, na relação estabelecida, pensam juntos e
“dizem” o vivido. Assim, a análise das entrevistas, propriamente, será o
momento de organizar da melhor forma possível o que foi dito, e será feita
baseada na análise fenomenológica, que Amatuzzi (2003) sistematizou em
quatro momentos, a saber:
1º momento – trata-se de dizer, de forma organizada e clara, o que já foi dito no
fluxo desordenado do encontro para chegar à síntese particular de cada
depoimento. Esta síntese pode ser apresentada ao colaborador para pedir sua
confirmação e saber até que ponto ele se reconhece no que o pesquisador diz
dele;
2º momento – é a sistematização das sínteses dos diversos depoimentos,
buscando elementos invariantes e variantes, para se chegar a uma síntese única.
Há, neste momento, um trabalho de abstração (separação) e construção
conceitual, que termina na formulação de uma estrutura geral do vivido;
102
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
3º momento – é o que se convencionou chamar de discussão de resultados, isto
é, neste momento, coloca-se todo o material em diálogo com outros teóricos ou
pesquisadores e se produz uma discussão que tende a clarear ainda mais a
pesquisa e, também, o que dizem os muitos teóricos;
4º momento – é a própria comunicação da pesquisa; que produz novos diálogos
entre pesquisador e seus interlocutores e que, segundo o autor, possibilita que a
pesquisa seja reinterpretada a cada comunicação.
Na pesquisa aqui apresentada, a organização do que for dito pelos colaboradores
será feita em forma de narrativas; a pesquisadora elaborará as narrativas a
partir da transcrição e dos diários de campo de cada entrevista.
Logo após, serão evidenciados, de forma sistemática, os elementos comuns e
divergentes das diferentes narrativas e será feita uma síntese que possibilitará o
acesso à estrutura geral do fenômeno pesquisado, neste caso o voluntariado
contemporâneo.
A seguir, este material será colocado em diálogo com outros pesquisadores e
teóricos, isto é, a síntese das narrativas será repensada a partir de proposições
teóricas já existentes o que possibilitará reflexão, compreensões mais amplas e
uma formulação teórica, viabilizando assim a conclusão desta pesquisa, a
respeito do voluntariado.
A pesquisadora imagina que entre as conclusões, desta pesquisa, estarão as
seguintes formulações: grande parte das pessoas dedica-se a práticas
voluntárias em busca de desenvolvimento e crescimento pessoal, e não
preocupadas apenas com o bem-estar social; as frustrações que o voluntariado
provoca podem ser maiores que as satisfações geradas em sua prática; para
muitos voluntários abandonar as práticas assistencialistas e dedicar-se a efetiva
promoção de cidadania é um enorme desafio;
é comum as pessoas se
dedicarem ao voluntariado sem terem consciência de quais as suas reais
motivações para esta atividade; e por fim, o voluntário contemporâneo tem
consciência de seu papel fundamental na sociedade e sabe que não está apenas
fazendo o bem individual e sim facilitando mudanças sociais efetivas e
duradouras.
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104
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A saúde mental do adolescente: relato clínico
de avaliação por meio do Desenho-Estória
Carolina Grespan Pereira Souza21
Maíra Bonafé Sei22
Resumo Tem-se uma pesquisa qualitativa em psicologia clínica que objetiva
refletir sobre a aplicação do Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E) como
instrumento auxiliar para a investigação da personalidade e para estabelecimento
de vínculo terapêutico com um adolescente. Considera-se o D-E como uma
interessante ferramenta para acesso aos conteúdos internos, mas pouco citada
em âmbito acadêmico na atualidade, aspecto que justifica sua reapresentação
por meio desta exposição teórico-clínica. Aplicou-se o D-E em um adolescente e,
por meio deste procedimento, foi possível acessar importantes angústias do
paciente, além de facilitar o contato deste com a terapeuta no início da
psicoterapia. Acredita-se que o D-E se mostra como uma relevante estratégia de
contato e de investigação da personalidade no campo da psicologia clinica.
Abstract It is a qualitative research in clinical psychology that aims to reflect on
the application of the procedure of Drawings and Stories (D-E) as an instrument
to personality investigation and to establish a therapeutic relationship with a
teenager. The D-E is considered as an interesting tool to access internal
contents, but there are few articles about it nowadays, fact that justifies its
presentation through this theoretical and clinical exposure. The D-E was
proposed to a teenager and through this procedure it was possible to access
important patient's distress, in addition, it facilitated the contact between patient
and therapist at the start of psychotherapy. It is believed that the DE is an
important strategy to establish interpersonal contact and to the personality
investigation in the field of clinical psychology.
Adolescência, psicoterapia e o Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E)
A adolescência é uma fase de intensas mudanças físicas e psíquicas, com a
pessoa tendo que elaborar lutos diversos como pelo corpo, identidade e pais
infantis (Aberastury e Knobel, 1981). Com isso, disfunções emocionais diversas
podem aparecer, tornando interessante a psicoterapia como ferramenta para
auxiliar o adolescente neste momento de transição.
De acordo com Levisky (2006), a psicoterapia na adolescência deve se dar “por
meio de uma relação continente, acolhedora, não invasiva e interessada na
21 Psicóloga, Especializanda em Psicoterapias da Infâncias pela FCM-UNICAMP. E-mail:
[email protected]
22 Psicóloga, Especializanda em Psicoterapias da Infâncias pela FCM-UNICAMP, Mestre e
Doutoranda em Psicologia Clínica pelo IP-USP. E-mail: [email protected]
105
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
pessoa do adolescente, cria-se um vínculo que abre espaço para o lúdico, para o
imaginário, facilitando o acesso ao mundo afetivo” (Levisky, 2006, p. 174).
Para a construção do espaço lúdico, acredita-se ser pertinente a inclusão de
outras linguagens no contexto psicoterapêutico para a comunicação do
adolescente, tal como o grafismo. Este pode colaborar para a vinculação e
expressão, já que há um elemento entre terapeuta e paciente, que possibilita a
diminuição de angústias e facilita o contato.
Pensa-se que é pertinente a proposta de utilização do Procedimento de
Desenhos-Estórias como elementos para aproximação entre a dupla no início da
psicoterapia. Acredita-se, também, na contribuição desta técnica para o
psicodiagnóstico, processo importante no trabalho com adolescentes, por situar o
profissional se as queixas trazidas relacionam-se às crises esperadas nesta fase
ou se configuram-se com algo patológico e que implica num outro olhar por parte
do psicólogo.
Quanto ao diagnóstico psicológico em geral, entende-se este como uma tarefa
complexa que inclui a observação desde a história do desenvolvimento infantil
físico e emocional, bem como a vida relacional e afetiva do adolescente, até as
vicissitudes que ocorrem na dinâmica familiar. Neste sentido, Levisky (2006, p.
161) afirma que “a elaboração diagnóstica implica em reunir um conjunto de
elementos que nos permita avaliar a natureza do processo em questão em seus
múltiplos aspectos”.
Diversos são os instrumentos que podem ser utilizados para o psicodiagnóstico e
dentre estes ressalta-se o valor das técnicas projetivas, que permitem uma
expressão mais livre de conteúdos inconscientes. Dentre as técnicas projetivas
tem-se as técnicas gráficas, como o HTP, e as técnicas de apercepção temática,
como o CAT e TAT. Já o Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E) é uma técnica
que mescla o desenho livre com o ato de contar histórias, em cinco unidades de
produção, e que se configura como uma estratégia auxiliar ao diagnóstico
psicológico. Não é considerado como um teste psicológico padronizado como os
demais, por não haver um estímulo estruturado previamente e por meio do qual
todos os sujeitos são testados (Trinca, 1987).
O D-E pode ser entendido como um procedimento intermediário entre entrevistas
não-estruturadas e os testes projetivos gráficos e utilizado como forma auxiliar
para a ampliação da compreensão da personalidade, em avaliações individuais,
conjugais, familiares. Contudo, além desta finalidade, outros autores descrevem
o uso deste recurso para facilitar o estabelecimento de um vínculo entre
terapeuta e paciente (Fávero, Souza e Caldana, 2005), ideal para utilização no
início da psicoterapia.
Quanto aos sentidos das cinco unidades de produção, compostas pelo desenho
livre, história, inquérito e título, Gonçalves (1997) aponta sentidos para cada um
delas, sinalizando que a primeira unidade pode ser considerada com uma autoapresentação da pessoa e carrega uma característica mais “pedagógica”, com
reprodução de desenhos anteriormente aprendidos, regido por maior censura. A
segunda unidade seria um “encaminhamento para o conflito”, quando defesas
106
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
são quebradas e tem-se uma representação mais genuína e própria da pessoa. A
terceira unidade seria o “desenho do conflito”, momento em que os conflitos
inconscientes mais significativos são apresentados. Por fim, a quarta e quinta
unidade seria a representação das “possibilidades de resoluções dos conflitos”,
seja por meio da apresentação de soluções reais ou idealizadas para os conflitos,
aspecto que aponta para possíveis prognósticos no caso da psicoterapia.
O D-E foi proposto por Walter Trinca, em 1972, e após sua apresentação,
observou-se um movimento de intensas pesquisas com este procedimento nas
décadas de 1980 e 1990 (A. Trinca, 1997). Outros procedimentos foram
desenvolvidos inspirados neste primeiro, com o procedimento de desenhos de
família com estórias e o desenho-estória com tema (Trinca e Tardivo, 2000).
Contudo, percebe-se uma diminuição das pesquisas e das referências no âmbito
acadêmico sobre a aplicação específica do D-E, apesar de suas qualidades, fato
que motivou a escrita deste trabalho, como forma de ilustrar a pertinência de seu
uso, tanto como estratégia auxiliar de compreensão da personalidade como para
a aproximação e formação de vínculo com o paciente.
A história de João e suas “estórias”: reflexões a partir do D-E
A partir dessas considerações teóricas descritas, opta-se por apresentar dados
referentes ao psicodiagnóstico de um adolescente, no qual foi utilizado o
procedimento de Desenho-Estória (Trinca, 1997). Tem-se um estudo teóricoclínico e, quanto ao campo da pesquisa qualitativa em psicologia clínica, pautada
no referencial psicanalítico, uma apresentação de situações clínicas são
pertinentes. Entende-se que a cada atendimento tem-se uma renovação da
psicanálise, visto que o psiquismo dos indivíduos organiza-se de maneira única, e
compartilhar estas experiências e reflexões colabora para maior riqueza dos
modelos e ampliação dos conhecimentos psicanalíticos (Safra, 1993).
Passa-se a apresentar um breve relato da história de João, um adolescente de 13
anos, que cursa a 6ª série do ensino fundamental. Apesar da pouca idade, já tem
grande estatura, ultrapassando a média dos adultos, alcançando mais de 1,90m
e pesando mais de 100kg. A queixa principal na entrevista inicial com sua mãe é
que ele está muito agressivo e tem andado com “más companhias”, com
envolvimento em pichações na escola e no bairro, além de ter sido pego em
pequenos furtos.
Está muito rebelde, com constantes brigas, sem parecer respeitar os demais.
Apresenta-se “fechado”, algo que dificulta as relações na família.
Freqüentemente grita, quebra as coisas, dá socos quando está nervoso e
recentemente tem brigado e agredido fisicamente seu pai, gerando uma distância
entre ambos, que quase não se falam.
É o irmão mais velho de três filhos e tem um irmão de 5 e uma irmã de 3 anos.
Quando está em casa, fica sozinho no quarto ou no computador e diz que sua
mãe só dá atenção para os irmãos menores, sem sentir que lhe dão atenção. É
difícil vê-lo sorrindo, é muito quieto e pouco obedece às regras estabelecidas na
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
casa. Depois ter sido flagrado pichando a escola, sua mãe comprou folhas sulfite
e ele as utiliza, desenhando em casa.
Quanto ao contato direto com João, destinou-se os dois primeiros dias para a
aplicação do D-E. No primeiro dia, ele fez a primeira unidade de produção, com
resistência para iniciar o desenho.
João: “Mas desenhar o quê? Meus desenhos são feios...”
Comenta que vai tentar desenhar um carro. Faz o desenho em 10 minutos. A
terapeuta pergunta se ele já terminou e ele diz que sim. Fica olhando para o
desenho. Conta a seguinte história: “É um carro normal... torto... é o desenho de
um carro... eu que inventei... ele tá parado, não nem ninguém dentro, não tá em
nenhum lugar... (silêncio) Mais nada.”
A terapeuta questiona sobre o objeto na parte de traz do carro e ele responde
que “É o escapamento... mas o carro não tá ligado... tá parado... como vai sair
fumaça?! Sou burro mesmo... esse aqui é um risco, só um detalhe... e aqui é o
‘negócio’ que fica atrás, não sei como chama. A roda tem calotas e é um carro
todo quadrado...”
Nesse momento resolve pintar o carro. Escolhe a cor vermelho-claro e pinta o
teto do carro e as laterais das janelas. Colore a ‘base’ de preto, com cuidado,
respeitando seus traços. Desenha uma estrela com vermelho-escuro na parte de
trás. Faz o chão com a cor cinza e pinta e verbaliza que “Agora melhorou o
desenho... agora tá no chão...”
Faz um sol na parte da frente do carro, pinta o céu de azul e preenche toda a
folha. De acordo com ele, “Agora está em algum lugar, na rua, de dia, bem
quente... Tá andando pela rua, passeando...” e dá o título de “O carro”.
Neste primeiro encontro ele inicia a segunda unidade de produção, antes dizendo
“Qualquer coisa de novo? Não sei desenhar coisas bonitas... só coisas feias...”.
Começa lentamente pela base, pinta o chão com lápis grafite. Quando começa o
desenho, força o lápis contra a folha. Deixa a mão na frente, de modo que a
terapeuta não consegue ver o que ele está fazendo. Movimenta bastante a folha,
virando-a para todos os lados. O tempo da primeira sessão termina e fica
combinado que ele poderá terminar esse desenho na próxima.
Chegou com 20 minutos de atraso no segundo encontro e quando se senta, os
materiais já estão sobre a mesa, inclusive o segundo desenho, ainda não
terminado. Ele começa colorindo o que já tinha feito e permanece em silêncio
durante quase todo o tempo juntos com a terapeuta. Preenche quase todos os
espaços, contorna com lápis de cor preto os objetos. Faz o sol e pouco depois
começa a pintar o céu, mas deixa um lado da folha em branco.
Relata a seguinte história: “É um prédio numa fazenda... tem um monte de
gente no prédio... Daí depois do lado tem um negócio de corrida de carro e
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
depois... tá sol... não vai chover... o prédio não tá pronto ainda... tá em
construção... Tá quase terminando. Falta o telhado para terminar”. Ao ser
indagado sobre o objeto laranja e roxo ao lado do prédio, diz que “É um desenho
‘besta’ que eu inventei... não tinha nada para fazer em casa, daí saiu esse
negócio. É tipo um peão... eu vi na revista... Mas não é assim... esse saiu torto...
(faz um outro desenho parecido, na parte em branco da folha)... Esse também
não saiu certo...”.
Quando é questionado sobre outros pensamentos que tem a respeito do
desenho, cometa que não pensa em nada. Entretanto, logo em seguida, diz que
o prédio tem dois andares e que a porta não é uma porta comum, é tipo porta
“abre e fecha”. O prédio tem uma antena e uma árvore ao lado (desenha a
árvore no momento que a menciona). Então, resolve que, ao invés de uma
árvore, há uma plantação de laranja (e desenha mais duas árvores). O tempo
termina e ele diz que não falta mais nada em seu desenho, dando o título de “O
prédio no sítio”.
De forma geral, pode-se fazer diversas reflexões, pautadas numa compreensão
teórica psicanalítica, a partir do material clínico obtido nos dois encontros
relatados. Observa-se um adolescente com baixa auto-estima, retraído e tímido e
a própria percepção de João acerca de seus desenhos denotam uma autodepreciação, quando comenta não saber desenhar e que seus desenhos são
“feios e tortos”.
Seu primeiro desenho é um carro, sozinho. Talvez seja essa forma como ele se
sente no momento da aplicação deste procedimento. De acordo com a história
relatada pela sua mãe, João tem dois irmãos mais novos, cuja diferença de idade
é de 8 anos. Demonstra que está isolado, com dificuldades para se adaptar, não
só à nova estrutura familiar, mas também na escola com seus colegas e
professores.
O carro, inicialmente “sem chão” é grande, mas vazio; não tem ninguém, está
parado, em nenhum lugar. De alguma maneira, busca expressar seus anseios de
liberdade por meio do carro, e esse mesmo objeto pode estar relacionado a
características de agressividade, impacto e velocidade, características tão
almejadas na adolescência.
Quando resolve “dar cor” ao desenho, o carro começa a “andar”, o que denota
algum movimento, ele começa a passear a partir da relação que começa a
estabelecer com a terapeuta, que o observa com interesse e fornece uma
espécie de sustentação e ele consegue terminar e melhorar seu desenho.
A segunda produção de João é um prédio no sítio, com um objeto não
identificado ao lado. Além disso, é possível ter a impressão que o desenho está
inacabado, já que deixa uma parte em branco no lado direito da folha. À primeira
vista, pode-se entender o prédio no sítio como uma inadequação, torto, ruim, e
não-acabado, assim como ele se coloca nas duas sessões de aplicação do
procedimento. O prédio é cinza e tem-se a impressão de algo triste e malassombrado.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O objeto não identificado e colorido com cores vivas ao lado do prédio pode ser
relacionado com alguém que vem para resgatar, e também é possível pensar na
terapeuta, que ele ainda não conhece, mas que está próxima a ele. As portas
desse prédio “abrem e fecham”, indicando a existência de uma possibilidade de
contato externo-interno e, uma vez que as portas não possuem travas, é
possível refletir sobre a busca de uma almejada liberdade.
Algo que chama atenção em ambos os desenhos. é a não representação de
figuras humanas. Sua primeira criação é um objeto mecânico e frio. Além disso,
pode-se questionar as razões para utilizar todo seu tempo com apenas dois
desenhos. Tendo em vista os sentidos atribuídos a cada unidade de produção do
D-E (Gonçalves, 1997), pode-se inferir que ele não consegue entrar em contato
com seus conflitos. Ele mesmo afirma que o prédio não está acabado, ainda falta
o telhado, falta estruturação psíquica, e, com isso, demonstra que ainda não tem
uma estruturação egóica muito forte.
Em síntese, pode-se dizer que João é, a despeito de seu porte físico, um garoto
ainda com uma estrutura psíquica frágil, mas com um corpo forte, uma
incoerência também percebida em seu segundo desenho.
Considerações Finais
A aplicação do D-E pode ser considerada como facilitando o acesso a conteúdos
inconscientes, sentimentos e fantasias de João, nem sempre expostas por meio
da linguagem verbal, num setting individual. O recurso do desenho,
intermediando a relação entre terapeuta e paciente, colaborou para o contato
inicial de ambos, além de preencher os momentos de silêncio com esta atividade,
diminuindo a angústia deste primeiro contato.
Ao discorrer sobre a adolescência, Levisky (2006) sinaliza que “é fundamental
que o adolescente tenha condições para o aumento da percepção de si mesmo,
dos fatores geradores de angústia, subsidiados que são pelas fantasias primitivas
e atuais que invadem sua mente” (p. 167). Entende-se que o D-E colabora
justamente para esta percepção tanto por parte do terapeuta, que pode sinalizála posteriormente ao paciente, como para, no caso ilustrado, para o próprio João.
Na situação clínica ilustrada, tinha um adolescente quieto e esta outra linguagem
foi efetivamente interessante para a comunicação e vínculo com a terapeuta, em
um momento de maior angústia como o início da psicoterapia. Acredita-se que
por meio do D-E tem-se um aspecto mais lúdico, não apenas com o desenho,
mas com a criação de histórias para os mesmos e que pôde apontar para
importantes aspectos da dinâmica psíquica de João. Assim, pensa-se que, apesar
de ser uma ferramenta para o contexto clínico pouco citada na atualidade, o D-E
ainda se mostra como uma relevante estratégia de contato e de investigação da
personalidade no campo da psicologia clinica.
Referências Bibliográficas
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Aberastury, A. e Knobel, M. (1981) Adolescência normal. Porto Alegre: Artes
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Limites de um modelo psicopatológico pulsional:
em direção a outra melodia
Clarissa Medeiros23
Tânia Aiello-Vaisberg24
Observamos em nossa clínica atual sofrimentos que dificilmente poderiam ser
compreendidos a partir de um modelo psicopatológico pulsional composto pelas
categorias denominadas neurose, psicose e casos limítrofes. Tal abordagem,
presente de maneira majoritária no campo psicanalítico, tem se mostrado
insuficiente para dar conta de experiências clínicas nas quais somos chamados a
acompanhar pessoas impossibilitadas de se sentirem vivas, reais e capazes de
gestualidade espontânea.
A partir de um leitura fenomenologicamente tonalizada da obra de Winnicott,
assim como de experiências clínicas próprias, percebemos a necessidade de
trabalhar psicanaliticamente a partir de outro modelo psicopatológico que
denominamos relacional (Greemberg e Mitchell,1994) em coerência com um
fazer clínico baseado no cuidado com a continuidade de ser do paciente. Neste
modelo, percebemos haver um único adoecimento humano compreendido como
dissociação, podendo apresentar-se através de diferentes espectros do não se
sentir vivo e real.
Como qualquer produção humana de conhecimento, as abordagens
psicopatológicas encontram-se inseridas em contextos políticos, históricos e
culturais que indicam um posicionamento diante do humano e do adoecimento.
Por trás de toda teoria e prática, encontramos pressupostos antropológicos mais
ou menos explícitos fundamentais para a compreensão e o uso de um
procedimento ou de um saber. Todas as teorias se assentam sobre pressupostos
éticos e antropológicos, relacionados com os contextos, as condições concretas
em que o conhecimento é gerado.
A criação de categorias nosológicas para os transtornos mentais se encontra hoje
determinada pela prática psiquiátrica medicamentosa, fundamentada numa visão
organicista do adoecimento. Faz parte da prática médica a seleção de drogas
dentre um amplo leque de opções a fim de intervir na sintomatologia
apresentada pelo paciente, sendo que a escolha do medicamento é pautada
impreterivelmente pelo diagnóstico realizado na entrevista psiquiátrica. Nesta
perspectiva, cada classe de medicamentos seria adequada para categorias
psicopatológicas específicas, de modo que o diagnóstico diferencial se torna
condição essencial para um tratamento dito correto e eficaz. Este modelo
psicopatológico traz uma antropologia biologizante e reificadora do homem como
máquina ou, mais sofisticadamente, aparelho mental. Não podemos nos furtar a
esclarecer que esta antropologia implícita a algumas teorias psicopatológicas se
23 Mestre em psicologia clínica pelo IPUSP e doutoranda pelo mesmo instituto.
24 Profa. Livre Docente do IPUSP e da PUCCAMP.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
encontra presente também em modelos metapsicológicos, redutores da
dramática humana a esquemas pulsionais afastados de pessoalidades concretas
e próximos de máquinas hidráulicas. Politzer (1928) chamava a atenção para
este desvio da psicanálise que retirava seu valor e suas possibilidades de
transformação da vida humana, tornando-a uma teoria aos moldes positivistas,
ao contrário daquela que seria, a seu ver, a vocação original da disciplina. Sobre
esta crítica à metapsicologia psicanalítica, afirma Aiello-Vaisberg (2003) que
Esta tem sido a opção de uma certa psicologia e mesmo de uma certa psicanálise
metapsicológica que tornam o psíquico extenso no espaço, atribuindo-lhe
funcionalidade análoga à de um aparato físico. Claro que se podem facilmente
invocar justificativas que nos lembrem que o aparelho psíquico é metafórico.
Entretanto, parece-nos fundamental lembrar que outras metáforas são possíveis
e que nenhuma delas deixa de produzir efeitos... (p.122)
Não podemos tomar qualquer comparação metafórica de modo ingênuo, uma vez
que estas são veículos privilegiados da antropologia implícita às teorias,
revelando crenças mais ou menos coerentes com o conteúdo do conhecimento
apresentado. Ilustrar uma pessoa como um aparelho hidráulico dominado por
forças quantitativas de energia cuja movimentação tem como resultado a
conduta é muito diferente de apresentá-la usando como metáfora uma flor, para
a qual são necessários cuidados a fim de desabrochar em todo seu potencial.25
Dentro da proposta de apresentação de um modelo psicopatológico não
pulsional, ou seja, que se afasta radicalmente de formulações matapsicológicas
para apoiar-se em um modelo psicanalítico relacional, destacamos o uso do
trabalho de Greenberg e Mitchell (1994). No livro citado, encontramos a
diferenciação rigorosa de variadas abordagens psicanalíticas a partir de dois
grandes modelos de pensamento, concebidos como pulsional e relacional:
Os modelos pulsional e relacional apontam para questões diferentes como
determinantes das dificuldades psicopatológicas na vida. (...) A maneira com a
qual um observador psicanalítico vê um paciente, a maneira como descreve as
lutas do paciente, os tipos de categorias diagnósticas nas quais o coloca – todas
dependem, em si, das suposições teóricas anteriores do observador quanto aos
constituintes básicos da experiência humana, isto é, seu compromisso com um
modelo teórico. (p.287)
A proposta de um olhar psicopatológico não pulsional busca posicioná-lo num
campo relacional ou vincular em que o adoecimento acontece na
intersubjetividade e não em um suposto aparelho psíquico individual que se
encontraria em desequilíbrio devido a forças motivadoras conflitantes em seu
interior.
25 O leitor encontrará esta metáfora nos trabalhos de mestrado e doutorado de Tânia
Granato (2004), analogia que apresenta uma antrolopologia baseada no homem criativo,
coerente com a psicanálise winnicottiana.
113
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Para melhor compreendermos o que está sendo tomado por modelo
psicopatológico pulsional, propomos um breve passeio pelas idéias de Freud. No
início de seus escritos, Freud (1896;1923;1924) propunha etiologia semelhante
para as neuroses e psicoses, entendida como a frustração de desejos infantis. A
posterior criação do conceito de libido torna a mesma o principal articulador de
seu modelo psicopatológico pulsional, o que implica na compreensão do
adoecimento como desequilíbrio de forças internas de natureza sexual e
agressiva do indivíduo que lutam pelo controle mental. Estas forças seriam
organizadas a partir de elementos repressores e elementos reprimidos,
constituindo-se nisto a base de funcionamento do psiquismo. Neste modelo, o
adoecimento é circunscrito à dinâmica interna individual, sendo o homem
concebido como mônada, isto é, suas condutas se dão a partir de um suposto
aparelho psíquico endógeno. Neste sentido, como apontam Greemberg e Mitchell
(1994), o objetivo humano seria a eliminação de tensão biológica.
Retomando as primeiras considerações no campo psicanalítico sobre neuroses e
psicoses, Freud (1924) se opõe a abordagens psicopatológicas centradas na
sintomatologia manifesta ao afirmar que encontramos perda de contato com a
realidade tanto na clínica da neurose quanto na da psicose. O afastamento da
experiência e da comunicação num campo da realidade compartilhada com
outros deixa de ser privilégio dos pacientes ditos psicóticos para ser admitido
também naqueles supostamente neuróticos, que ao apresentarem um olhar tão
carregado de subjetividade chegam ao ponto de beirar a incoerência a partir do
ponto de vista de seus pares.
Notamos que uma das maiores contribuições freudianas para este trabalho se
encontra na relativização da apresentação sintomatológica ou comportamental
como indicativa de uma estrutura mais permanente, o que será amplamente
explorado por outros psicanalistas como Bleger (1983/1989) e Bergeret
(1974/1991) posteriormente. Grosso modo, nem todo paciente que delira é
psicótico e nem todo psicótico delira. A introdução da idéia de um “ponto de
vista” traz a alma do método psicanalítico em seu pressuposto básico segundo o
qual todo e qualquer acontecer humano é dotado de sentido. Psicóticos ou
neuróticos, os indivíduos apresentam experiências orientadas por sentidos
pessoais que podem ou não ser compartilhados com outros, mas o fato de não
serem compreendidos por se afastarem da realidade compartilhada não admite
ser colocada em dúvida a legitimidade das experiências.
Em trabalho posterior, Freud (1931) relaciona o que chama de tipos libidinais
com diferentes possibilidades de adoecimento, deixando claro porém que estes
tipos seriam estilos pessoais passíveis de se manifestar de maneira saudável. Ao
lançar a hipótese da existência de três tipos libidinais, aos quais corresponderiam
diferentes categorias psicopatológicas em caso de adoecimento, é interessante
notar que Freud rapidamente passa a defender a idéia de tipos mistos. Tal
movimento pode ser compreendido como fruto do olhar lapidado através de uma
clínica viva, a qual não nos permite confundir teorias e pessoas, isto é, tomar
uma categorização psicopatológica no lugar da dramática concreta como se um
mapa pudesse substituir o caminho, repleto de curvas, paisagens, aromas.
114
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Quando Freud fala de tipos mistos, coloca o questionamento de um suposto
purismo na estruturação de personalidade de alguém que, teoricamente,
funcionaria de acordo com um determinado desenvolvimento libidinal, mas, na
prática, apresenta condutas variadas e bem mais complexas, muitas vezes
condizentes com diferentes categorias da organização diagnóstica. Os tipos
mistos de Freud retratam a afirmação do poeta romano Terêncio quando
argumentava que nada do humano nos seria estranho, ou seja, qualquer pessoa
sente ressonâncias daquilo que faz parte da condição humana, seja o amor, a
violência ou a loucura.
A teoria do desenvolvimento da libido foi utilizada por Freud para a idealização
dos tipos libidinais e seria também usada por seus contemporâneos. Abraham
(1924/1973) elaborou uma abordagem psicopatológica bastante difundida
clinicamente e até hoje ensinada em cursos de psicanálise, fundamentada numa
economia pulsional que relaciona fases inerentes e esperadas do
desenvolvimento humano a tendências psicopatológicas. Abraham foi um dos
responsáveis pela organização didática da teoria do desenvolvimento da libido,
relacionando através de fases o tipo de personalidade e a categoria
psicopatológica a ela correspondente em caso de fixação da libido, como por
exemplo a fase oral aos tipos esquizóides, fase anal sádica às neuroses
obsessivas... Neste modelo, a saúde mental é vista como condição
substancialmente individual, dependente da quantidade de energia e seu trânsito
num suposto aparelho psíquico.
A partir de um modelo psicopatológico também pulsional, Bergeret (1974/1991)
efetua contribuições fundamentais para a psicopatologia psicanalítica ao
investigar as personalidades normais e patológicas. Chama a atenção para uma
confusão ingênua entre sintomatologia manifesta e estrutura de personalidade,
definida como uma organização estável e contínua a partir de uma angústia. As
chamadas angústias de base a partir das quais se organizariam as
personalidades e suas maneiras de se vincular são a fragmentação, para as
estruturas psicóticas, a interdição, para as estruturas neuróticas e a perda do
objeto anaclítico, para as organizações borderline.
Não é novidade para psicanalistas atuantes que o procedimento caricatural de
classificar automaticamente um paciente que apresenta manifestação delirante
como psicótico, assim como indivíduos aparentemente seguros no contato com
uma realidade compartilhada são caracterizados como neuróticos, não se
sustenta na clínica. Podemos encontrar sofrimentos muito graves e primitivos em
pessoas aparentemente coladas a uma adaptação à realidade, enquanto
episódios de manifestação delirante podem mostrar-se pontuais e circunscritos a
uma situação extrema presente de terror ou falta de sustentação ambiental.
Notamos também importante argumentação no sentido de desvincular
claramente a noção de estrutura de personalidade e uma suposta normalidade.
Para Bergeret, a normalidade ou saúde se define como estabilidade da
estruturação, seja ela neurótica ou psicótica. Os termos “compensada” e
“descompensada” para adjetivar as estruturações são significativos no
rompimento conceitual e ideológico que vê na pessoa supostamente psicótica
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
sempre um doente mental, enquanto o indivíduo supostamente neurótico seria
um modelo mais próximo da saúde em termos de maturidade.
Embora fale sobre os padrões de relação objetal e a representação social do
sofrimento humano, observamos em Bergeret a presença firme da teoria libidinal
e pulsional para a compreensão do adoecimento. Isto acarreta uma visão que
privilegia o campo individual concebido como separado e independente do meio e
dos outros, isto é, a geração do sofrimento é enfatizada como fenômeno
intrinsecamente individual em decorrência de conflitos entre forças de um
suposto aparelho psíquico. No que tange as explicações acerca das estruturas
neuróticas e psicóticas, Bergeret recorre freqüentemente a raciocínios
econômicos, discorrendo sobre tais categorias a partir de conceitos como
processos primário e secundário, fixação libidinal e investimento pulsional,
apoiando-se numa metapsicologia reificadora. Ao mesmo tempo, é possível
observar novidades em seu modelo psicopatológico em relação ao que vimos na
teoria freudiana. A análise das organizações anaclíticas e sua contextualização
numa dramática clínica exige o lidar com outros fundamentos que não pertencem
ao modelo pulsional, mas aproximam-se fortemente de concepções
psicopatológicas relacionais:
Embora se utilize do jargão metapsicológico para explicar as organizações
limítrofes ou anaclíticas, procurando situá-las em termos econômicos, já
apresenta elementos novos ao considerar a importância da realidade exterior e
do que chama posições dos objetos, entendidos então como relações da pessoa
com outros que possam ser mais ou menos fundamentais e influentes na
dinâmica do funcionamento psíquico, não mais limitado a conflitos e descargas
pulsionais.
Em busca de uma outra melodia, partimos rumo à formulação de um modelo
psicopatológico relacional, inspirado na concepção winnicottiana de saúde. AielloVaisberg (2006) chama a atenção para a existência de duas abordagens
psicopatológicas presentes na obra winnicottiana, denominando-as psicopatologia
explícita e implícita.
Em seu pensamento explícito, Winnicott (1945;1963) é fiel a uma divisão
tripartite do sofrimento humano entre neurose, psicose e casos borderline, sendo
que estes últimos abrangeriam fenômenos depressivos, a tendência anti-social e
as construções falso self. As neuroses são compreendidas como conflitos de
natureza individual e pulsional, ocorrendo quando um suficiente grau de
integração do self já pode ser alcançado, atingindo-se então uma condição
chamada de pessoa total. Para as outras duas categorias, estaríamos num campo
de pessoas que ainda não alcançaram integração suficiente para viver relações
triangulares e conflitos ditos edipianos. Para os neuróticos, Winnicott (1963)
recomenda que o psicanalista siga a técnica clássica descrita por Freud, enquanto
para os outros casos, afirma que o mais adequado seria fazer “uma outra coisa”
(Winnicott, 1962), desenvolvida ao longo de toda sua obra como manejo de
setting.
116
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Ironicamente, encontramos nestes trabalhos comentários mais sutis quanto à
suposta inexistência de neuróticos na Inglaterra e a impossibilidade de se
encontrarem “casos bons” para a psicanálise, assim como sobre a provável
existência de núcleos psicóticos em pacientes neuróticos. Winnicott abre
caminho, desta forma, para o aparecimento dos indícios de uma psicopatologia
implícita não desenvolvida em que o sofrimento único é o de não se sentir vivo e
real.
Winnicott tem na psicose a matriz clínica de seu pensamento, ou seja, construiu
sua complexa teoria do desenvolvimento emocional humano baseado na atenção
às experiências e relações primitivas do bebê como cerne da integração ou
ausência desta no self. Dá especial valor ao desenvolvimento emocional
primitivo, argumentando estarem aí localizadas as raízes da saúde ou doença
mental.
Sob este prisma, apresenta uma concepção original de saúde, não descartando
do indivíduo dito saudável o acesso a experiências aparentemente loucas. Para
Winnicott, o bebê não é psicótico ao nascer, mas ainda não desenvolveu um
sentido de si mesmo a partir do próprio ponto de vista, o que o torna
indiferenciado e não integrado, mas não psicótico. A psicose na teoria
winnicottiana é compreendida como formação defensiva diante de agonias
primitivas e, portanto, como adoecimento. No entanto, o contato com
experiências iniciais primitivas do self, com as fantasias onipotentes não é
necessariamente disruptivo e faz parte do desenvolvimento humano natural,
portanto, da condição humana. A loucura, para Winnicott, não é sinônimo de
psicose. Ela abrange esta possibilidade humana como colapso e queda nas
agonias impensáveis, mas abarca também as experiências onipotentes primitivas
que são as bases de um viver criativo.
Concebe-se que o contato com aspectos primitivos do self faz parte da
experiência humana e, mais além, o contato com agonias primitivas que estão na
base das defesas psicóticas é condição para a superação deste posicionamento
existencial. Nesta perspectiva, poder experimentar o que um dia foi agônico ou
enlouquecedor numa relação sustentadora é um passo em direção à saúde
mental, ainda que o fenômeno pareça paradoxal e estranho à primeira vista,
exigindo “enlouquecer” para curar-se. Para Winnicott (1990), a saúde mental
contém a possibilidade de contato com experiências primitivas da ordem da não
integração e movimento integrativo, compreendendo a integração como direção
desejável para um viver criativo e ancorado no chamado verdadeiro self.
Winnicott foi sensível aos fenômenos de despersonalização e desrealização que
se encontram presentes quando estamos diante de alguém que não se sente
inteiro em um corpo próprio, não consegue experimentar as próprias ações e o
mundo ao seu redor como detentores de sentido, tem uma sensação contínua ou
episódica de futilidade no viver. Afirmou a importância de um movimento de
integração do self em direção a uma autonomia, o que pode ser compreendido
como um percurso mais árduo para uns, menos difícil para outros, mas que cada
pessoa deve viver a fim de tornar-se si mesma. Neste sentido, podemos
compreender que apropriar-se do chamado verdadeiro self é um movimento
117
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
inesgotável que, na ausência de sustentação ambiental, torna-se interrompido. O
sofrimento básico, a partir deste olhar, diz respeito a afastar-se da integração, o
que geraria falhas na constituição do self, assim como a sensação de não ser
vivo e real.
Compreendemos, desta maneira, que o modelo psicopatológico relacional é mais
coerente e sintônico com uma clínica baseada na sustentação ou no cuidado com
a continuidade de ser. Este olhar para o sofrimento coloca as possibilidades de
adoecimento e também de saúde nos vínculos e na história de sustentação vivida
pelo pacientes, admitindo maior flexibilidade de pensamento e confiança no
potencial criativo do homem.
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119
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A importância da entrevista final em atendimento grupal
de jovens em processo de escolha profissional
Christiane I. Couve de Murville Camps;
Tânia M. J. Aiello Vaisberg
Na “Ser e Fazer”: Oficinas Psicoterapeuticas de Criação da Universidade de São
Paulo, temos proposto um enquadre clínico grupal diferenciado direcionado a
jovens em processo de escolha profissional, usando o teatro da espontaneidade
em uma perspectiva winnicottiana. Seguindo o paradigma do jogo do rabisco de
Winnicott (1971) e levando em conta a concepção de psicoterapia como
superposição de áreas de brincar, apresentamos uma mala com vestimentas e
acessórios variados convidando os jovens a brincar de dramatizar. Em uma
intervenção pautada no holding, a mala como materialidade mediadora da
comunicação emocional favorece a criação de um rabisco coletivo em forma de
peça teatral. Os jovens, coletivamente, expressam os seus rabiscos e
transicionalmente aproximam-se da dramática existencial inerente à escolha
profissional. Por meio desse brincar de dramatizar, oferecemos ao jovens
oportunidade de viver momentos de criação e encontro diante do material
apresentado resgatando ou desenvolvendo a capacidade criativa de cada um,
favorecendo a experiência de continuidade de ser e a aproximação de um viver
mais harmonioso e criativo que permita que a escolha da profissão aconteça
como gesto espontâneo.
Após os encontros grupais em que brincamos de dramatizar criando e
encontrando diversas peças teatrais, costumamos marcar um encontro com cada
jovem individualmente. Essas conversas tendem a acontecer de modo muito
descontraído. Depois de um convívio grupal intenso, durante o qual todos,
inclusive a terapeuta, brincam muito, cria-se uma certa intimidade, uma
proximidade, própria daqueles que têm uma história em comum, que já viveram
momentos marcantes juntos, momentos de emoção, suspense, divertimento...
Há uma abertura para o outro e facilmente se estabelece um ambiente de
encontro, de comunicação. Os jovens tendem, em geral, a sentir-se cada vez
mais à vontade para trazer o que sentem, pensam e com o que se preocupam.
Tanto mostram-se mais abertos, na relação com a terapeuta, durante o
acontecer clinico propriamente dito, como tendem a manter contatos posteriores,
através da troca de emails, cujo conteúdo indica com clareza que uma relação de
confiança foi estabelecida.
Ao longo dos encontros com os jovens, é comum emergirem questões pessoais,
às vezes relacionadas à família ou a outras dificuldades pessoais mais
específicas. No entanto, o enquadre se configura a partir da demanda específica,
relativa à busca de ajuda para definição profissional. Seria, portanto, inoportuna
a abordagem de outras questões pessoais que eventualmente os jovens não
estejam dispostos a tratar. Por outro lado, como se trata de uma oficina Ser e
Fazer, o trabalho não se centra na enunciação de sentenças interpretativas, nem
nas sessões grupais nem nas entrevistas individuais finais, pois entendemos, a
120
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
partir de uma perspectiva winnicottiana, que a potencialidade mutativa desta
prática se encontra na experiência emocional vivida numa relação de confiança e
não na obtenção de maior autoconhecimento produzido a partir de interpretações
(Newman,1995).
No entanto, naturalmente, acontece de os jovens acabarem tocando em
assuntos mais pessoais e delicados, que surgiram nas dramatizações, ou que
perceberam durante as brincadeiras. Como exemplo, podemos citar o caso de
uma moça, que durante as dramatizações deixava transparecer certa dificuldade
em lidar com autoridade. Estava sempre brigando por espaço no grupo,
chegando a ser autoritária e muito competitiva em diversas situações. Essa
jovem também se mostrou muito boa observadora e sensível diante de qualquer
coisa que lhe dissessem, deixando claro que a terapeuta teria que ser muito
cuidadosa para que não se sentisse, em hipótese alguma, criticada ou ameaçada.
Qualquer alusão a alguma dificuldade poderia ser sentida como uma crítica,
podendo levá-la a adotar uma estratégia defensiva, que dificultaria a conversa,
fechando a possibilidade de comunicação.
Embora sempre falando de seus pais com admiração e respeito, essa moça
contou do quanto se irrita com a mãe, que sempre se imporia em tudo, nas
relações com os amigos, no modo de se portar, como falar, na escola... Contou
que, muitas vezes, sente-se tão sufocada que quer sair correndo, sentindo-se
impulsionada a se movimentar, não agüentando ficar parada ou permanecer em
local fechado. A conversa foi longa e aos poucos foi ficando mais tranqüila,
sentindo-se à vontade para compartilhar as suas experiências, em um clima de
confiança, no qual não se sentia mais ameaçada ou controlada e sim em
condições de ser ouvida.
Depois desses encontros grupais em que brincam por meio da dramatização de
diversas situações do universo do trabalho e da vida de modo geral, os jovens
aproximam-se de si identificando aquilo que os encanta e que o s atrai. A maioria
dos jovens chega a essa última conversa individual com a terapeuta com idéias
bem claras acerca do que os agrada ou não e das possibilidades de carreira a
seguir. Tendem a mostrar, nesta ocasião, uma certa independência para buscar e
investigar o que existe como cursos e profissões, deixando transparecer não
apenas uma apropriação pessoal de seus sentimentos e interesses, no que diz
respeito às possibilidades de carreiras, mas de suas vidas de modo geral,
mostrando iniciativa, movimento e empolgação para ir atrás do que os encanta.
Chama a atenção que os jovens chegam a essas impressões de um modo que
não é intelectual, mas que remete a uma vivência muito intensa, em que os
dramas encenados no grupo ganham principal importância, favorecendo um
movimento de integração pessoal no qual afeto, compreensão e iniciativa se
articulam de modo indissociável. Atento ao espírito lúdico presente nas artes,
Huizinga (2001) reconhece o caráter sagrado dessas atividades que são capazes
de proporcionar experiências que transcendem as limitações do intelecto. Por
meio da poesia, da música, do teatro, da dança, da linguagem, etc., as pessoas
podem viver experiências que as aproximam do que é belo, abandonando razão e
lógica e abrindo espaço para novas idéias, inspirações, para a inovação, a
121
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
audácia, o improviso. Esse caráter arrebatador e transcendente, que uma
experiência estética pode oferecer e cujo alcance não podemos circunscrever
racionalmente, transparece nas palavras de Huizinga (2001, p.177) acerca das
formas musicais, como sendo “determinadas por valores que transcendem as
idéias lógicas, que transcendem até nossas idéias sobre o visível e o tangível”.
Pensamos que o atendimento psicológico de jovens em processo de escolha
profissional, no enquadre das Oficinas Psicoterapeuticas de Criação Ser e Fazer,
favorece experiências semelhantes, nas quais os adolescentes, através do brincar
proposto nos grupos, têm a oportunidade de ultrapassar os limites do
meramente racional, alcançando esse estado de abertura a novas formas,
possibilidades, sentimentos e impressões. Esses encontros brincantes parecem
se constituir, a nosso ver, como hiatos no tempo e no espaço, durante os quais
somos transportados para esse mundo mágico transicional das dramatizações
que valoriza o viver e o sentir (Aiello-Vaisberg,2004). Por alguns momentos,
deixamos em suspensão a correria do dia-a-dia, as exigências sociais e pessoais,
o ambiente marcado por rupturas e desafios e nos entregamos a um brincar que
tem hora para acabar.
A certeza de começo, meio e fim para o brincar, que acontece no grupo, permite
arriscar e experimentar situações e personagens diferentes com tranqüilidade26.
Os jovens brincam de ser terroristas, empresários, assassinos, negociantes,
milionários, mendigos, artistas, etc. e criam cenas, que mesmo remetendo ao
mundo contemporâneo em que vivemos, aparentemente, acontecem em uma
outra dimensão. Observamos que brincam com o que conscientemente
consideram como opção profissional a seguir e também com o que nem
imaginam, ou nem sabem ao certo se gostariam de fazer no futuro, resgatando
um brincar mais antigo, mais infantil, que talvez esteja na raiz da escolha
profissional.
Em oficinas de velas artesanais, em ambiente hospitalar, com pacientes
soropositivos para HIV-1, Mencarelli (2003) observou que seus atendimentos
constituíam-se como momentos de repouso diante do sofrimento vivido, da
dureza do tratamento a ser seguido, da situação que cada participante dos
grupos enfrentava no cotidiano. Lembrando Herrmann (1983), que entende a
interpretação como qualquer movimento do analista que favoreça uma ruptura
de campo e não como sentença interpretativa, Mencarelli (2003) observa que em
seus grupos o que acontecia era uma ruptura do campo da agonia27, permitindo,
por algum momento, deixar em suspensão angústias e sofrimentos vividos.
26 Seguindo precisas indicações de Winnicott (1942) , entre nós Safra (1999) aponta que
a noção de começo, meio e fim é fundamental para que o fenômeno transicional aconteça
e para que se possa usufruir o brincar no tempo do faz-de-conta.
27 Para Winnicott (1945) o campo da agonia diz respeito a uma experiência de quebra de
continuidade de ser, capaz de ocasionar uma organização falso self ou estar na origem do
surto psicótico. Entendemos que a todo instante existem vários campos e não apenas
um, visto que o que acontece ultrapassa nossa capacidade de consciência. Assim sendo,
adotamos na Ser e Fazer o conceito de campo como inconsciente relativo circulando,
acontecendo no momento. (Aiello-Vaisberg, 1999).
122
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Embora o contexto vivido pelos jovens em processo de escolha profissional seja
muito diferente, pensamos que nossos encontros também se constituem como
momentos de ruptura de um campo onde rondam sentimentos de indefinição,
desconforto, incerteza, ansiedade, ligados à questão da escolha profissional, bem
como à vida agitada, que cobra resultados, chegando a ameaçar a integridade
das pessoas, podendo lançá-las em atividades que não necessariamente fazem
sentido. A ruptura deste campo, na situação brincante, instaura um campo de
descanso e suspensão, no qual se torna possível afastar-se, mesmo que
momentaneamente, de um registro intelectualizado e desse ambiente acelerado,
repleto de estímulos que, embora eventualmente instigante e interessante, pode
chegar a ameaçar o sentimento de continuidade, de presença e autenticidade no
viver.
Esses encontros brincantes com a mala, em ambiente confiável, de descanso e
suspensão, sustentado pela psicanalista presente, remetem a experiências muito
vivas e intensas, que acenam para estados de ser mais livres e espontâneos,
favorecendo, desse modo, um viver mais próximo de si e uma apropriação de si
que não advém de um entendimento intelectualizado dos interesses e do estilo
pessoal. Os jovens costumam chegar ao último encontro declarando terem se
dado conta, durante o brincar, que tal ou tal atividade os atrai ou não, que se
deram conta de que o que de fato querem é tal carreira e não outra.
Os achados dessa pesquisa parecem sugerir que esses sentimentos dos jovens
não decorrem de uma articulação intelectualizada de possibilidades de carreiras a
seguir ou de resultados observados em inventários de interesses e questionários.
Embora a articulação entre representações acerca de si e informações sobre
possibilidades de profissões também aconteça, fazem parte de uma experiência
mais ampla vivida no grupo, que transcende o registro fundamentalmente
intelectual, representacional. Lembrando que a conduta28 é unitária, e que
naturalmente se faz acompanhar pela reflexão e pela articulação simbólica,
reconhecemos que o valor do trabalho realizado está em promover mudanças
existenciais
que
ultrapassam
uma
dimensão
meramente
psíquicorepresentacional (Aiello-Vaisberg, 2004):
Não se trata, portanto, de resgatar ou promover autoconhecimento, mas de
promover uma experiência emocional significativa, situada no âmbito de um
sentir, que é fundamentalmente um sentir-se vivo, real e atuante diante da
alteridade do mundo. A articulação simbólica ocorrerá naturalmente, porque é
própria da natureza humana. (Aiello-Vaisberg, 2004, p.97)
Segundo essa perspectiva, a prática psicológica que aqui apresentamos privilegia
o sentir e a ocorrência de uma experiência emocional significativa, que favorece
a integração pessoal, posição pessoal na qual é possível sentir-se vivo, real e
capaz de movimento e de ação no mundo. Evitamos desse modo um trabalho
baseado no registro intelectual, por entender como pouco singificativas as
28 A conduta como conceito de gestualidade, não diz respeito a um movimento qualquer,
mas se dá em um campo intersubjetivo, diante de um outro e em um contexto amplo
influenciado por fatores sociais, políticos, econômicos, culturais. (Bleger, 1963/1989).
123
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
decisões baseadas em processos exclusivamente racionais e intelectuais. Nesses
casos, a escolha pode não corresponder ao que de fato o jovem busca para si,
dando-se de modo dissociado, desvinculado do sentir.
Pensamos ser importante esclarecer que não buscamos proporcionar um leque
amplo de situações e dramatizações para que possam experimentar diversas
possibilidades de atuação profissional. Na verdade, cada grupo traz as
personagens que fazem sentido para aqueles participantes em particular, de
modo que as dramatizações emergem a partir do próprio acontecer clínico.
Acontece eventualmente de um jovem dizer, no último encontro, que resolveu
seguir uma profissão que nem foi representada ou que teve pouco destaque nas
dramatizações do grupo. O contrário também ocorre, como, por exemplo,
quando um jovem brincou muito de ser jornalista para, ao término dos encontros
grupais, anunciar que não queria ser jornalista, que escrever artigos diariamente
seria, a seu ver, um sofrimento.
Outros dramatizam diversas personagens relacionadas aos seus interesses como,
por exemplo, uma moça que foi artista plástica, professora de artes, dona de
museu e que no final dos encontros reconheceu sua paixão pelas artes e disse
que gostaria muito de seguir uma carreira que estivesse intimamente ligada às
artes de um modo geral. Aconteceu, também, de algum jovem precisar de mais
tempo para que uma escolha seja possível. Nesses casos, abrimos a possibilidade
de realização de sessões individuais, findo o processo grupal, tendo em vista
acompanhá-lo até que se sinta suficientemente pronto para fazer a sua escolha
como gesto espontâneo.
Embora este trabalho tenha focalizado o processo de escolha profissional de
jovens de classe média, o modelo de atendimento proposto rompe com o
estereótipo da orientação profissional voltada para quem ingressa em um curso
superior (Lehman, Uvaldo e Silva, 2006), podendo ser empregado em outros
ambientes e com grupos diferentes, adaptando-se a freqüência e a duração das
sessões de acordo com a situação.
A mala com suas vestimentas e acessórios de característica amorfa se presta à
criação de personagens muito variados, atendendo a diferentes populações e
garantindo mobilidade em um universo de possibilidades que não se restringe às
carreiras oferecidas na universidade. Não se trata, necessariamente, de
dramatizar todas as possibilidades de profissões, mas de brincar livremente com
temas relacionados a trabalho e profissões, permitindo ao jovem recuperar algo
que já é dele, que já o atravessa enquanto potencialidade que existe como
possibilidade de acontecer no mundo.
Nesse sentido, talvez possamos pensar a questão vocacional como abertura
pessoal, sensibilidade e interesse por aspectos do mundo, que chamam a
atenção e que remetem ao self. Estamos diante do paradoxo de recuperar o que
já estava lá e que aparece para a pessoa em um determinado momento, em um
contexto histórico, cultural e político. Esse modo de pensar a escolha da profissão
como algo que recuperamos, e que aparece diante nós em um tempo e um
espaço contextualizado, afasta-se da idéia de verificação da presença de
124
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
características pessoais que habilitariam mais facilmente o indivíduo a seguir uma
ou outra profissão. A escolha, a nosso ver, vincula-se a uma experiência no
mundo que permite que o jovem reconheça o ato de escolher como gesto
espontâneo, como algo que já faz parte dele. Acreditamos que essa aproximação
pessoal do que já é seu, do que agrada e faz sentido, contribui para o sentimento
de se constituir como singularidade no tempo, para o sentimento de ser.
Como observa Winnicott (1970/1999), para uma pessoa poder ser criativa, capaz
de gestos espontâneos, ela antes “tem que existir, desenvolver um sentimento
de existência, não na forma de uma percepção consciente, mas como uma
posição básica a partir da qual operar” (Winnicott, 1970/1999,p.23). Esse
sentimento de ser, que antecede o fazer, oferece as bases para que o jovem
possa se sentir em movimento, capaz de ação no mundo, resgatando ou
desenvolvendo o viver livre e espontâneo do self verdadeiro. A partir do
momento em que alcança uma posição existencial a partir da qual se sente
estimulado e capaz de fazer o seu gesto espontâneo, naturalmente, o jovem irá
buscar as informações de que necessita para seguir o seu caminho, apropriandose de sua vida.
Fica claro que não se trata de uma proposta de cunho pedagógico com ênfase na
transmissão de mais conhecimento para jovens que já vivem em um ambiente
marcado pela abundância de dados disponíveis e que, às vezes, até podem
sentir-se entediados em ter que se sujeitar a mais informações e tarefas que não
necessariamente lhes fazem sentido. Nos encontros brincantes com a mala, o
encantamento e a empolgação dos jovens durante as dramatizações é visível.
Seus olhos brilham diante das falas divertidas que surgem no grupo, das cenas
inesperadas, das personagens criadas. Paira um clima de alegria e de satisfação,
que ao nosso ver indicam momentos de encontro verdadeiro, pois, quando não
há contato de verdade as pessoas se sentem frustradas em suas aspirações,
expectativas e busca de sentido.
Os jovens parecem contentes de usufruir um espaço confiável onde podem
brincar livremente enquanto conversam sobre a vida e onde se sentem
compreendidos. Consideramos valiosa essa possibilidade de trabalho no contexto
da escolha da profissão usando a mala como procedimento dialógico transicional,
pois parece fazer sentido para os jovens, atendendo às suas necessidades
expressivas, indo ao encontro de suas expectativas e de seus sonhos,
resgatando um brincar talvez perdido, deixado de lado, ou quem sabe nem
mesmo bem desenvolvido.
Em um tempo em que tudo já aparece pronto e padronizado, restringindo o
espaço ocupado pelo mundo fantástico das histórias infantis, dos sonhos, da
imaginação, esses grupos convidam os jovens a se lançarem no universo mágico
do faz-de-conta, retomando, em ambiente protegido e sustentado, a experiência
ilusória onipotente e resgatando o espírito lúdico que, segundo Huizinga (2001),
vem se perdendo no mundo contemporâneo e que, segundo acreditamos, ajuda
a alcançar estados mais sensíveis e próximos de si.
125
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
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126
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O IMAGINÁRIO DE ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO
STRICTO SENSU SOBRE A DOCÊNCIA E ENSINO SUPERIOR
PROJETO DE PESQUISA
Elisa Corbett29
Tânia Maria José Aiello-Vaisberg30
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
RESUMO O presente trabalho propõe uma investigação do imaginário coletivo de
alunos ingressantes num curso de pós-graduação stricto sensu sobre o docente
de Ensino Superior, com a intenção de produzir conhecimentos que iluminem a
escolha profissional pela carreira de pesquisador/docente de Ensino Superior, e
orientem atividades que contribuam para a formação profissional destes alunos.
Partimos, para tanto, da compreensão de que estas pessoas optaram por um
percurso voltado à formação de docentes pesquisadores, cuja atuação em
universidades se caracteriza pela não dissociação entre ensino e produção de
conhecimento.Do ponto de vista metodológico, este estudo implica na realização
de uma entrevista coletiva articulada ao redor do Procedimento de DesenhosEstórias com Tema, desenvolvido para pesquisa de representações sociais e
imaginários coletivos. As produções serão consideradas à luz do método
psicanalítico, tal como é operado na detecção de campos psicológicos nãoconscientes. Os resultados desta investigação serão disponibilizados a todos os
orientadores e alunos do Programa, em forma de artigo científico, possibilitando
sua utilização em atividades nos diversos Grupos de Pesquisa.
PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise, pós-graduação, formação de docentes
Abstract: This article proposes an investigation of the collective imaginary from
students entering a stricto sensu post-graduation program about Higher
Education’s Professor, with the intention of producing information that will shed
some light on the professional choice of a research/teaching position in Higher
Education and that will guide activities which could contribute for these students’
professional formation. For such, we start with the comprehension that these
people have chosen a path guided towards a researcher’s formation, whose
activities in universities can’t be separated from teaching practices and
professors who are better qualified for acting on Higher Teaching
Institutions.From a methodological point of view, this study implies a collective
29 Psicóloga, especialista em Sexualidade Humana, mestranda em Psicologia pela
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, bolsista CNPq.
30 Orientadora do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas, Professora Livre Docente aposentada do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, Coordenadora da “Ser e Fazer”: Oficinas Psicoterapêuticas de
Criação do IPUSP e Presidente do NEW- Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo.
127
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
interview centered on Themed Drawing Histories, developed for social
representation and collective imaginary research. The productions will be
analyzed under the psychoanalytic view, as it is used on the detection of nonconscious psychological fields.Results of this investigation will be available to all
professors and students of the Program, in the form a scientific article, enabling
it’s use in several of the Research Group’s activities.
Key-Words: Psychoanalysis, strictu sensu post-graduation, higher education’s
professor
INTRODUÇÃO
É notório o acelerado crescimento da pós-graduação brasileira nos últimos anos.
Tal processo tem sido garantido pela mobilização permanente da comunidade
acadêmica nacional, bem como pelo planejamento governamental que incorpora
um processo de avaliação institucional adequado e financiamento por parte do
poder público.
Se por um lado as universidades públicas ainda são responsáveis por 82% dos
cursos de mestrado e 90% dos cursos de doutorado, as universidades privadas
têm apresentado um crescimento expressivo na pós-graduação stricto sensu
(Coodernação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, 2004). Tal
crescimento tem sido apoiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), através de bolsas de mestrado e doutorado, bem
como verbas direcionadas ao desenvolvimento dos programas de pós-graduação.
Na área da Psicologia, pesquisas a respeito do perfil do psicólogo brasileiro
encomendadas e divulgadas pelo Conselho Federal de Psicologia (WHO Instituto
de Pesquisa de Opinião e Mercado, 2001; Instituto Brasileiro de Opinião Pública e
Estatística, 2004) permitem entrever acentuado aumento na procura por cursos
de mestrado por parte destes profissionais, bem queda na busca pelo doutorado.
Em 2001, 5,2% dos entrevistados responderam estar fazendo ou já ter feito
mestrado na área, e 3,4% informaram o mesmo a respeito do doutorado.
No ano de 2004, nova pesquisa aponta que 7% dos entrevistados são mestres
ou mestrandos em Psicologia e apenas 2% optaram por prosseguir seus estudos
através do doutorado nesta área do conhecimento. O crescente número de
profissionais que informa dedicar-se à docência e pesquisa em Psicologia, 2,8%
em 2001 e 5% no ano de 2004, aliado aos dados acima, sugere a importância de
estudos científicos que problematizem a formação do docente de Ensino Superior
nesta área.
Propomos, aqui, a realização de uma investigação sobre a escolha da pósgraduação stricto sensu como percurso de formação profissional a partir da
perspectiva da Psicanálise, método de pesquisa e atenção psicológica que
acreditamos trazer uma ótica diferenciada para este tipo de reflexão. Definimos o
método psicanalítico como aquele sustentado pelo pressuposto, já presente no
pensamento freudiano, de que toda conduta humana tem sentido e faz parte das
128
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
possibilidades humanas. Trata-se, portanto, de um método rigorosamente ético e
inclusivo, para o qual acreditamos que a teoria winnicottiana do sofrimento
humano traz contribuições fundamentais e inovadoras.
Winnicott (1945/2000) compreende o homem como ser que vem ao mundo com
um potencial inato para o desenvolvimento e a saúde, tendo como fator
necessário e suficiente para alcançá-los um ambiente inter-humano facilitador.
Descreve, portanto, um desenvolvimento emocional que se desenrola na relação
com outras pessoas, desde os princípios da constituição de um self. Tal
concepção aproxima-se das idéias de Bleger (1963/1984), quando este afirma
que o homem só chega a ser humano pela incorporação e organização de
experiências com os demais indivíduos que o cercam. Nosso trabalho se
desenvolve numa interlocução bastante próxima com estes dois autores.
Trata-se de uma investigação sobre o imaginário coletivo, e devemos ainda ao
leitor um esclarecimento sobre este conceito, a fim de permitir um melhor
entendimento sobre o que pretendemos fazer. Compreendemos os imaginários
coletivos como manifestações simbólicas de subjetividades grupais. Assim,
partindo do pensamento blegeriano, poderíamos defini-los como um grupo
particular de condutas que ocorre na área mental31 e no âmbito sociodinâmico32.
Enquanto condutas, tais manifestações configuram-se como objeto de estudo de
todas as ciências humanas, cada qual trabalhando a partir de sua perspectiva
particular de análise destes fenômenos. Uma destas seria a psicanalítica, à qual
nos alinhamos, que admite a presença de aspectos inconscientes nas condutas
humanas que influenciam nossas práticas.
Compreendemos, portanto, que o imaginário, como um ambiente humano, no
qual se mesclam dimensões históricas, sociais, culturais, psíquicas e emocionais,
é, ele próprio, produto da conduta humana. Tal ambiente, que é o contexto em
que emergem, por sua vez, novas práticas, sentimentos, idéias, obras e
instituições, organiza-se a partir de um substrato afetivo emocional não
consciente, denominado campo ou inconsciente relativo. Deste modo,
consideramos que abordar psicanaliticamente imaginários coletivos implica tanto
na identificação de produções imaginativas como na captação do inconsciente
relativo a partir do qual emergem.
31
Adotando a perspectiva de Pichon-Rivière, Bleger (1963/1984) divide as condutas
em três tipos, correspondendo aos fenômenos mentais, corporais e de atuação no
mundo.
32
Bleger (1963/1984) aponta que toda conduta humana dá-se num determinado
contexto. A fim de permitir a consideração deste contexto na investigação e compreensão
das condutas, propõe delimitações metodológicas, dentre as quais a amplitude em que se
considera o fenômeno humano focalizado: pode-se estudar o indivíduo de forma isolada,
conjuntos de indivíduos ou mesmo normas e pautas consideradas como instituições
sociais.
129
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
JUSTIFICATIVA
A partir de um levantamento bibliográfico33, notamos que poucos estudos
científicos abordam o tema da pós-graduação. Dentre estes, mais numerosos são
os que discutem a avaliação de programas e cursos, seja apenas enfocando um
caso particular (Balzan et al, 1999; Carvalho, 1999 e 2001; Rocha, 2006), seja
tratando do processo de avaliação de forma mais abrangente (Fonseca, 2001;
Alencar, 2002; Kerr-Pontes et al, 2005; Steiner, 2005; Stein, Falcke e Predebon,
2005; Kac et al, 2006; Hortale e Koifman, 2007). O desenvolvimento histórico da
pós-graduação no Brasil também figura no campo de preocupações de vários
pesquisadores, servindo em geral como apoio para uma discussão a respeito das
características atuais dos programas de diferentes áreas (Santos, 2003; Lüdke,
2005; Horta e Moraes, 2005; Ferraro, 2005; Kuenzer e Moraes, 2005; Oliveira e
Alves, 2006; Almeida e Borges, 2007). Tais dados permitem entrever, entre os
pesquisadores que se dedicam ao tema Pós-Graduação, uma grande
preocupação com seu aspecto institucional, não havendo espaço para refletir
sobre a opção por um curso stricto sensu como escolha de uma carreira
específica.
Realizamos, ainda, uma revisão da literatura científica nacional sobre a escolha
profissional34, a partir da qual verificamos que grande parte dos estudos que se
referem a este tema objetivam investigar as variáveis envolvidas no processo de
escolha profissional de maneira geral (Alchieri e Charczuk, 2002; Alencar,
Feldhusen e French, 2004; Lara, Araújo, Lindner e Santos, 2005; Faria e Guzzo,
2007; Gonçalves e Coimbra 2007), bem como aquelas envolvidas na escolha por
uma profissão específica (Kemmer e Silva, 2007; Magalhães, Straliotto, Keller e
Gomes, 2001; Millan, Azevedo, Rossi e Millan, 2005; Oguisso, Lira, Vieira,
Pereira, Mesquita e Silva, 2006; Silva, Koch e Sousa, 2007; Takahashi, 2001;
Spíndola, Martins e Francisco, 2008). Merece destaque a constatação de que
quase a totalidade dos artigos encontrados sobre as variáveis envolvidas na
escolha de uma carreira específica focaliza profissões pertencentes à área da
saúde, tais como enfermagem, medicina, odontologia e psicologia.
No que se refere à formação de professores dedicados ao Ensino Superior, foram
encontrados apenas dois artigos, o que equivale a menos de 2% do total de
artigos acessado. Em um deles, Madeira e Lima (2007) discorrem sobre os
saberes docentes que alicerçam as práticas pedagógicas do professor de
profissão. O outro trabalho encontrado reflete sobre o stress causado pelo
aumento da competição entre os pesquisadores e a redução progressiva do
33
Foram pesquisados estudos científicos publicados entre os anos 1999 e 2008,
disponíveis na Biblioteca Virtual em Saúde – Psicologia, e passíveis de serem acessados
através da palavras-chave “pós-graduação”.
34 Foram pesquisados estudos científicos publicados entre os anos 2000 e 2008,
disponíveis na Biblioteca Virtual em Saúde – Psicologia, e passíveis de serem acessados
através da palavras-chave “escolha profissional”.
130
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
financiamento público para pesquisas científicas, apontando que tal cenário pode
desestimular a escolha por esta carreira (De Meis, Velloso, Lannes, Carmo e De
Meis, 2003).
Nota-se, portanto, que na literatura científica publicada na área da escolha
profissional, a carreira de pesquisador e docente de Ensino Superior tende a ser
reduzida às possibilidades do mercado de trabalho e às práticas pedagógicas que
envolve. Parece não haver espaço, quer entre aqueles que estudam a pósgraduação stricto sensu, quer entre os que se interessam pela escolha
profissional, para considerar a pesquisa e a docência em Ensino Superior como
profissão, ou seja, mais do que uma das possibilidades de atuação no mercado
de trabalho, uma escolha pessoal.
O presente trabalho propõe uma investigação do imaginário coletivo de alunos
ingressantes num curso de pós-graduação stricto sensu sobre o docente de
Ensino Superior, com a intenção de produzir conhecimentos que iluminem a
escolha profissional pela carreira de pesquisador/docente de Ensino Superior, e
que orientem atividades voltadas ao enriquecimento da formação oferecida aos
discentes. Partimos, para tanto, da compreensão de que estas pessoas optaram
por um percurso voltado à formação de pesquisadores, cuja atuação em
universidades é indissociável da prática do ensino, e docentes melhor
capacitados para a atuação em instituições de Ensino Superior.
OBJETIVO
O objetivo do trabalho apresentado neste projeto é investigar psicanaliticamente
o imaginário coletivo de alunos ingressantes num curso de pós-graduação stricto
sensu sobre a docência em Ensino Superior, com a intenção de produzir
conhecimentos que iluminem a escolha profissional pela carreira de
pesquisador/docente de Ensino Superior, e orientem atividades que contribuam
para a formação profissional destes alunos.
MÉTODO
Os alunos aprovados no processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia serão convidados a participar voluntariamente desta investigação e
esclarecidos de que a recusa não lhes implicará qualquer prejuízo, e que nas
produções não será identificado de forma alguma o seu autor. A captação do
imaginário coletivo se fará mediante o uso, em uma entrevista coletiva, do
Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema, desenvolvido por Aiello-Vaisberg
(1999) para pesquisa de representações sociais e imaginários coletivos, a partir
de procedimento originalmente idealizado por Trinca (1976) para uso
psicodiagnóstico.
A utilização do Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema consiste na
solicitação ao participante de que desenhe, numa folha de papel sulfite que lhe
foi entregue pela pesquisadora, uma pessoa que vivencia determinada situação
e, em seguida, que invente e escreva, no verso desta mesma folha, uma história
131
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
sobre aquilo que desenhou. Nesta investigação, solicitaremos, aos alunos, o
desenho de um docente de Ensino Superior.
Consideramos que a elaboração do acontecer clínico, no âmbito da pesquisa, se
faz necessariamente pela via da interlocução. Assim, a partir das entrevistas,
serão elaboradas narrativas psicanalíticas, objetivando compartilhar com os
demais pesquisadores do Grupo de Pesquisa a experiência dos encontros. A
narrativa estimula uma interpretação livre da história narrada, favorecendo a
troca de experiências clínicas e a interlocução, sendo um lugar privilegiado para a
produção de conhecimento nas ciências humanas (Aiello-Vaisberg, Machado e
Ambrosio, 2003). Juntamente com os desenhos e estórias, tais narrativas
formarão o conjunto do material sobre o qual trabalharemos, e que será
analisado de acordo com o método psicanalítico, tal como é operado na detecção
de campos psicológicos não conscientes (Herrmann, 2001).
Os resultados desta investigação serão disponibilizados a todos os orientadores e
alunos do Programa, em forma de artigo científico, possibilitando sua utilização
em atividades nos diversos Grupos de Pesquisa.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Envelhecer no início do século XXI:
posição subjetiva e o convívio com as
tecnologias contemporâneas na comunicação
Helena Maria Rizzon Mariani
Resumo: As inovações tecnológicas têm permitido ampliar e diferenciar as
comunicações que estão cada vez mais sofisticadas, trazendo inquietação e
mudanças socioculturais. Questiona-se, então: como é envelhecer no início do
século XXI, considerando o convívio com o avanço da tecnologia nas
comunicações? Essa questão foi recortada da pesquisa: Espaço de Memórias –
imagens, palavras e sentimentos: corpo/sexualidade e a posição subjetiva ao
envelhecer no início do século XXI, caracterizada como sendo um estudo
qualitativo. O delineamento dessa pesquisa foi o de um estudo de corte
transversal. Os 30 participantes foram selecionados por intencionalidade,
atendendo aos seguintes critérios: idosos com mais de 60 anos de idade,
docentes e/ou alunos numa universidade da Região Nordeste do Estado do Rio
Grande do Sul. A técnica utilizada foi entrevista semidirigida, atendendo aos
objetivos da pesquisa: identificar a atual posição subjetiva ao envelhecer,
considerando-se o convívio social e o rápido desenvolvimento da informática e
das comunicações, para propor ações e intervenções que promovam o sujeito
criativo e responsável pela sua saúde ao envelhecer. Os resultados parciais
apontam para duas posições subjetivas do idoso: (a) a lamentação e o mal-estar
gerado pelo convívio com a tecnologia digital; (b) a autonomia e o compromisso
com esse processo inovador de comunicação.
Palavras-chave:
subjetiva.
Envelhecer.
Tecnologia
digital.
Comunicação.
Posição
Aging at the beginning of 21th Century: subjective
position and the conviviality with the contemporaneous
technologies in the communication
ABSTRACT: The technological innovations have been allowed to enlarge and to
differentiate the communications that are more and more sophisticated, so they
bring inquietude and social and cultural changes. It is questioned: how it is to
age at the beginning of 21th century, considering the conviviality with the advance
of the technology in the communications? This question was cut out of the
research: “Space of Memories – images, words and feelings: body/sexuality and
the subjective position in aging at the beginning of 21th century”, it is
characterized for being a qualitative study. The delineation of this research was
its transversal cut study. The participants (30) had been selected by
intentionality, in view of criteria: the aged with more 60 years old, professors
and/or students in an university of the Northeast Region of the Rio Grande do
Sul. The semidirected interview was an used technique in view of objectives of
the research: to identity the present subjective position in aging, regarding
136
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
oneself as the social conviviality with the fast development of the informatics and
the communications to propose actions and interventions that promote the
creative and responsible subject for its health in aging. The findings are being
treated and they are interpreted from the communication and psychoanalysis’
theoretical contributions. The partial results point two subjective positions of
aged: (a) lamentation and unrest generated by conviviality with the digital
technology; (b) autonomy and engagement with the innovative process of
communication.
Key words: Aging. Digital technology. Communication. Subjective position.
As pessoas que envelhecem, atualmente, representam um número cada vez
mais significativo e têm despertado a atenção do universo das ciências. No Brasil,
o crescimento da população idosa, a partir da década de 90 e, no mundo há bem
mais tempo, é definido como uma conseqüência do avanço das ciências e das
tecnologias. Mas, se, por um lado, esse contexto favorece a longevidade,
percebe-se o desprezo ao idoso, muitas vezes relegado ao ostracismo. Simone
de Beauvoir (1970) fala que há uma conspiração silenciosa contra a velhice.
Ao estudar o processo de envelhecimento, é necessário considerar que ele ocorre
num ambiente envolvendo outras pessoas,
[...] razão pela qual interdependência e solidariedade entre gerações (uma via de
mão-dupla, com indivíduos jovens e velhos, onde se dá e se recebe) são
princípios relevantes para o envelhecimento ativo. A criança de ontem é o adulto
de hoje e o avô ou avó de amanhã. A qualidade de vida [...] depende não só dos
riscos e oportunidades que experimentarem durante a vida, mas também da
maneira como as gerações posteriores irão oferecer ajuda e apoio mútuos,
quando necessário. (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2005, p. 13b).
Hoje, a expectativa de longevidade e a promessa de beleza e juventude,
divulgadas pelas mídias, têm estimulado a busca cada vez maior dos serviços de
saúde pelos idosos. Nas consultas, falam de suas dores, de seus sofrimentos, de
suas ansiedades, de seu desamparo e de suas inseguranças, ao terem que
assumir um novo corpo marcado pelo tempo, pelas transformações orgânicas e
pelas mudanças na posição social, decorrentes dessa etapa da vida. Isso se
contrapõe à imagem corporal valorizada pela sociedade atual. Aparece aqui um
paradoxo, uma vez que a sociedade ensina e impõe o dogma de que a vida
compreende diversas fases: nascimento, infância, juventude, adultez e velhice e,
também, prega que a fase de construção de projetos e investimentos para o
futuro perdura desde o nascimento até a velhice. Portanto, impõe-se a
necessidade de compreender a situação do envelhecer no mundo
contemporâneo, sabendo-se que a vida se desenvolve do nascimento à morte.
Nesse sentido, a figura do velho, nas sociedades mais primitivas e tradicionais,
representava a sabedoria, a paciência, e transmitia os valores da ancestralidade:
era ele quem detinha a memória coletiva; quem, através da evocação e da
transmissão oral, construía uma narrativa com a qual se incorporava (fazia-se
137
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
corpo) cada indivíduo na história do grupo, outorgando-lhe uma filiação bem
mais abrangente do que conhecemos, atualmente, quase restrita ao campo
familiar. (GOLDFARB, 1998, p. 25).
Ainda: o velho “era um elemento na vida do jovem que colaborava para sua
ancoragem no registro do simbólico, e este era o lugar simbólico para a velhice”.
(GOLDFARB, 1998, p. 25). Porém, a partir do século XVIII, com a Revolução
Industrial, a humanidade passou a vivenciar sucessivas transformações e a
conviver com o avanço acelerado das tecnologias, que repercutem no âmbito
social, com mudança de valores, e os valores tradicionais foram se perdendo, diz
a autora, em favor de uma sociedade individualista.
Assim, o envelhecer, neste início de século, chama a atenção tanto para o
aumento significativo da população idosa quanto para os fenômenos cujas
disposições psicológicas, associadas às inúmeras perdas nesse período,
influenciam na determinação de desadaptações sociais e no agravamento de
doenças orgânicas. E, como já afirmava Sócrates, o corpo não pode ser curado
sem curar-se a alma, lembra Perestello (1974), acrescentando que a razão de
alguns médicos desconhecerem a cura de muitas enfermidades é porque não
olham o paciente no seu todo.
Grifa-se que foi Hipócrates quem lançou os fundamentos da medicina moderna,
articulando a visão humanista ao rigor científico. Deu a devida importância à
observação clínica, às entrevistas de anamnese, à investigação etiológica e
prognóstica da história singular do doente, para obter a compreensão da doença.
Para ele o homem era considerado uma unidade organizada, sendo o corpo sua
dimensão funcional, a alma, sua dimensão reguladora, e a doença, o efeito da
desorganização dessa unidade. A cura só seria possível quando se considerassem
não apenas os sintomas, mas também a natureza do doente. (VOLICH, 2000).
Diante desse contexto, é pertinente também destacar que o homem é, por
natureza, um ser simbólico, ser de linguagem e comunicação (SANTAELLA, 2001)
e, na comunicação, as linguagens se cruzam, as palavras ressoam e se
estabelecem laços sociais – intermediando o social e o individual. (LACAN, 1992).
Nesse viés, a comunicação social, neste início de século, com suas inovadoras
linguagens, criadas pelo avanço das ciências e da tecnologia, têm ocasionado
rupturas no conhecimento estabelecido, gerando desconforto e sofrimento ao
sujeito. Esse se intensifica na medida em que estamos, atualmente, inseridos em
uma civilização caracterizada pela crescente inserção de avançados recursos da
tecnologia, no convívio diário, e pelas conseqüentes formas de comunicação de
domínio dos jovens, que causam desconforto, inquietações e mal-estar aos mais
velhos.
Essas questões são do interesse de várias áreas do conhecimento científico, e se
impõem como um desafio à medida que estão interligadas ao conceito
transdisciplinar de sujeito, presente em todos os campos do conhecimento
humano, que está alicerçado na cultura (crenças, tradições e mitos) e nas
linguagens. E as linguagens, nascentes do ciberespaço, são de domínio dos
138
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
jovens, muitas vezes, incompreensível pelos adultos e idosos que ainda não se
enlaçaram a esse desconhecido universo. Isso tem gerado um mal-estar, que,
neste trabalho, se situa como ocasionado pela virada de posição social; o jovem
criou um laço social e passou a ocupar a posição subjetiva de domínio da “coisa”
ao se deixar cativar pelo mundo do ciberespaço.
Essa paixão do jovem pelo ciberespaço provoca efeitos ameaçadores aos adultos
e idosos pelo fato de esses sentirem que estão perdendo a identidade de
poder/saber, para ocupar a posição subjetiva de não saber,35 precisando
aprender com os jovens nascidos na era digital. Isso está ocasionando uma
ruptura dos padrões socioculturais, desencadeando outras investigações. E,
desta vez, ao destacar a necessidade de investigar o discurso de idosos que
convivem com as interações sociais virtuais, possibilitadas pela informática,
procurou-se escutar, ler e decifrar falas de professores e alunos que, ao
envelhecer, neste início de século, transitam no contexto universitário.
O projeto de pesquisa de natureza qualitativa envolveu uma amostra constituída
de 30 participantes (professores e alunos), residentes no Estado do Rio Grande
do Sul, com idade acima de 60 anos. Na entrevista realizada, objetivou-se
escutar e fazer uma leitura psicanalítica das percepções de f(atos) dos
participantes sobre seu convívio com avanço da tecnologia nas comunicações.
Em vista disso, o objetivo foi identificar as implicações subjetivas nas interações
sociais (posição subjetiva), e propor ações e intervenções de responsabilidade
coletiva em busca da promoção da saúde do idoso.
Os participantes foram convidados, intencionalmente, a participar da pesquisa,
cujo projeto: Espaço de Memórias – imagens, palavras e sentimentos:
corpo/sexualidade e a posição subjetiva ao envelhecer no início do século XXI,36
foi previamente avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de
Caxias do Sul, tendo sido aprovado. Todos os participantes se dispuseram a falar
(e muito falaram), e das falas foram recortados alguns fragmentos, que
identificam a posição subjetiva contemporânea ao envelhecer diante das
inovadoras formas de comunicação. “Mas o que se faz do dito resta aberto. Pois
pode-se fazer dele uma porção de coisas.” (LACAN, 1985, p. 26).
Ao analisar as falas, encontrou-se concordância quanto ao acesso ao
conhecimento universal, por meio do computador, que está cada vez mais
próximo e disponível, vindo ao encontro do interesse pessoal dos participantes,
como disse um deles:
Eu sempre gosto de trabalhar na internet, [...] procurar as cidades na internet
[...] aqui tu viaja o mundo inteiro sem sair de casa. Não é uma boa? (P 12)
35
O saber se diferencia do conhecimento informativo. As informações armazenadas pelo
homem podem permanecer como uma representação exterior à experiência. O saber está
implicado com o aprimoramento de uma práxis.
36
Coordenação do projeto de pesquisa: Profa. Dra. Helena Maria Rizzon Mariani
(Professora no curso de Psicologia da Universidade de Caxias do Sul – RS); Pesquisadorcolaborador: Prof. Dr. Dino Roberto Soares De Lorenzi (Professor no curso de Medicina da
Universidade de Caxias do Sul – RS); Esp. Liliane Giordano (Fotógrafa); Bolsista: Elenice
Cazanatto – BIC/UCS (Acadêmica do curso de Psicologia).
139
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Por outro lado, os participantes acrescentaram que está se tornando difícil
percorrer esse vasto universo de informações devido à sua amplitude disponível
no ciberespaço. Segundo outro participante:
Ninguém consegue acompanhar totalmente o desenvolvimento da tecnologia
hoje, porque no momento em que tu aprendes a trabalhar com um avanço
tecnológico nesse último século [...], vem outro, imediatamente, melhor e
superior. [...] O avanço foi violento, [...], principalmente nos últimos 20 anos.
[...] Na hora que tu recebe um computador, ele já está obsoleto, já tem um
melhor no mercado, e aí? Como é que a gente faz? Eu muitas vezes me
pergunto. (P 2)
A realidade sociocultural do adulto e do idoso de hoje é diferente daquela de 20
anos atrás, e ele se defronta com o novo e o estranho nas comunicações. É,
como diz uma participante:
Foi uma mudança muito brusca [...] do tempo da minha mãe para o meu [...]
com 60 anos, aprendendo informática, porque há necessidade, senão a gente
não consegue fazer mais nada. Até mesmo pra gente se comunicar com os
filhos, com os netos, é necessário que haja assim, eu não digo que a gente
consiga acompanhar eles, mas que esteja ao alcance, porque, o que é que a
gente vai fazer nesse mundo aí, isolada de tudo, e sem o computador tu não
consegues, tu ficas meio alheia ao que está se passando, ao que acontece. (P
18)
Observaram-se, também, percepções referidas a:
diferenças e semelhanças ocorridas da infância à velhice
Uma velha, no tempo da minha avó, era fácil, porque o que ela tinha que saber
fazer era um pouquinho de tricô, contar umas histórias pros netos... Hoje não, as
minhas netas não querem tricô [...]. Histórias ainda elas gostam, elas não
querem o tipo de atrativo que existia uma vez. Hoje eu tenho que ser mais ativa,
porque, se eu parar, as minhas netas não vão conversar comigo. (P 1)
efeitos ocorridos nas interações sociais e manifestados como mal-estar
O jovem chega dominando o computador e, ás vezes, nós da terceira idade não
dominamos tanto. Saber que nesse sentido o jovem tem uma vantagem sobre
nós. (P 20)
Tudo isso favorece muito a vida, mas a gente não tem mais, como jovem, aquela
agilidade de ir mexendo e descobrindo e fazendo, inventando possibilidades. (P
24)
formas de lidar com o mal-estar provocado pelas inovadoras comunicações
Eu percebo como um avanço muito grande e me sinto, assim, desconfortável
dentro disso. [...] Acho que não evoluí, não me dediquei, não tirei o tempo de
140
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
aprender, de assimilar essa tecnologia, e me sinto assim que isso faz falta... (P
21)
Foi um elemento facilitador que obrigou o professor a se manter mais do que
muito atualizado. Isso aí sim obrigou o professor a não mais repetir as coisas
como às vezes é de praxe. (P 25)
As investigações, até o momento, têm permitido identificar, nos idosos
participantes deste estudo, um sujeito, que sente e percebe seu envelhecimento,
assumindo perante a vida posições subjetivas distintas ao lidar com o mal-estar
gerado no convívio com a tecnologia digital, ou seja, com as novas formas de
comunicação. Essas posições se manifestam como:
lamentação – posição em que o sujeito corre o risco de ficar sempre no
mesmo lugar e estagnar
Os jovens já nasceram nessa era da informática, que pra eles assim, eles já
nascem com o computador dentro de casa, pra eles é tudo muito fácil, pra nós,
tu fazer uma programação, até de uma televisão, quando começou a vir essa
televisão digital e tudo mais, já era difícil, porque a gente não conviveu muito,
foi uma coisa que apareceu de repente, então pra eles, eles acham que tudo é
muito fácil. (P 18)
compromisso com o processo inovador de comunicação, posição que, por sua
natureza, remete sempre a outras metáforas, porque o desejo sempre faz
referência a um mais além
O ser humano, ele tem que ir à busca do conhecimento, e o conhecimento está
ali, basta a gente estender a mão e trazê-lo para cada um de nós. [...] A
informática é uma janela para o mundo, e eu tenho também o computador na
minha casa já há muitos anos, então a maioria das noites eu procuro entrar na
internet, porque é uma janela, é muito bom, me sinto bem, é uma coisa que me
faz bem. (P 12)
A posição subjetiva se refere a um discurso, “a uma utilização da linguagem
como liame” (LACAN, 1985, p. 43) – um fenômeno não somente de palavras,
indicando, neste estudo, o laço social emergindo e observado por meio de f(atos)
indicando: (a) atração e fascínio pela imagem idealizada, que conduz à
alienação; (b) autonomia que mobiliza o sujeito a seguir a caminhada,
transpondo obstáculos em busca de algo mais e se responsabilizando pelos
resultados alcançados, indicadores que se opõem à posição subjetiva de
alienação.
E, ao concluir, ressoam outras palavras e abrem-se brechas ao ver e ao
investigar, pois a inovação tecnológica contemporânea criou “inevitavelmente
novo ambiente que age incessantemente sobre o sensorium”, como dizia
McLuhan (1969, p. 136), provocando uma revolução nos sentidos e ocasionando
certo mal-estar social. Nesse processo, muitas vezes, ocorre um trabalho de
autodestruição, similar ao do organismo de uma larva e, ao mesmo tempo,
141
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
refere Morin (2002, p. 8), acontece “um trabalho de autocriação, de onde
emerge um novo ser, outro, e, entretanto, com a mesma identidade. Ao final da
metamorfose aparece a borboleta, de início paralisada, entorpecida... até que,
subitamente, ela estende as asas e alça vôo”, abandonando a posição de larva
para explorar um outro universo.
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142
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
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143
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O desvelar da afetividade e sexualidade de
mulheres submetidas à cirurgia bariátrica
Érica Helena Martins de Godoy¹
Dra. Maria Alves de Toledo Bruns²
Resumo: A obesidade se tornou um problema de saúde pública e tem atingido
proporções epidêmicas. Sua expressão mais severa, a obesidade grau III, que
pressupõe um Índice de Massa Corpórea (IMC) acima de 40 kg/m², tem como
indicação de tratamento a cirurgia bariátrica. O emagrecimento provocado por
este procedimento gera uma modificação na imagem corporal e em diversos
fatores da vida do indivíduo, dentre os quais destacamos os fatores sexuais.
Objetivando compreender que sentido e significado a mulher obesa atribui à sua
vida afetivo-sexual no decorrer de sua existência, em especial com a nova
imagem corporal proporcionada no período pós-operatório, decorrente da perda
de peso, decidimos realizar uma pesquisa utilizando a metodologia qualitativa
fenomenológica. Como estratégia de coleta de dados, utilizamos a entrevista
fenomenológica compreensiva com dez mulheres adultas submetidas à cirurgia
bariátrica há pelo menos seis meses, para que pudesse ser constatada uma
perda de peso significativa. Os depoimentos foram submetidos ao referencial
teórico da Psicanálise. Com o auxílio da leitura psicanalítica foi possível
compreendermos que o procedimento cirúrgico tem se mostrado eficiente em
transformar o corpo externamente e proporcionar maior Qualidade de Vida. No
entanto, a realização da cirurgia ocasiona a remoção do excesso de peso corporal
e não a re-elaboração psíquica, a erogeneização do corpo, fazendo com que
ocorram problemas na veiculação erótica desse novo corpo e com que a busca
pelo preenchimento do objeto faltante continue.
Abstract: Obesity has reached epidemic proportion and become a Public Health
concern. It’s most severe state, Type III, which is defined by a BMI of 30 kg/m2
or higher, may require surgical intervention known as bariatric surgery. Weight
loss resulting from such procedure generates change in an individual’s body
image as well as in various other factors of that individual’s life, among which we
highlight the sexual factors. Aiming at investigating the sense and the meaning
obese women attribute to their sexual-affective life in their lifetime, and
especially to their new body following the surgery, when they experience weight
loss, we have decided to carry out research using the phenomenological
qualitative research method.
As a strategy for data collection, we used
phenomenological interviews with ten adult women who had been submitted to
the bariatric surgery at least six months before, as a means to ensure there had
been significant weight loss. The interviews were analyzed from the
Psychoanalyses perspective, which helped us to understand the outcomes of such
surgical intervention. It has proved to be efficient in transforming the body and
providing the individual with better life quality.
¹ Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP- USP
² Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP- USP
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
However, the surgery removes body fat, but does not bring about the reelaboration of one’s psychic structure, the erogenity of the body; consequently
causing issues regarding the erotic functioning of the new body to arise and the
search for the lacking object to continue.
1. Introdução
A obesidade se tornou um problema de saúde pública e tem atingido proporções
epidêmicas. Juntamente com o sobrepeso, essa epidemia mundial alcança
aproximadamente 1,7 bilhão de pessoas. Sua expressão mais severa, a
obesidade grau III, que pressupõe um Índice de Massa Corpórea (IMC) acima de
40 kg/m², tem como indicação de tratamento mais eficaz a cirurgia bariátrica. O
emagrecimento provocado por este procedimento gera uma modificação na
imagem corporal e em diversos fatores da vida do indivíduo, dentre os quais
destacamos os fatores sexuais.
Para a psicanálise a sexualidade é entendida como o conjunto de atividades sem
a ligação com os órgãos genitais, e portanto, uma sexualidade como
erogeneização, sendo que esta ocorre no desenvolvimento psicossexual do
indivíduo, com a ligação do psique e do soma e a formação das representações
mentais do corpo e das zonas erógenas.
De acordo com McDougall (1996) a obesidade também pode ser entendida como
manifestação sintomática que utiliza o corpo como linguagem para expressar um
sofrimento psíquico. Esta mesma autora refere que para os somatizadores,
considerados desafetados e deserogeneizados, as doenças psicossomáticas
podem representar uma luta pela sobrevivência psíquica e uma tentativa de
reintegração do psique-soma. Dessa forma, podemos pensar que quando o
sintoma desaparece, que no caso do obeso grau III pode ocorrer com a
realização da cirurgia bariátrica, a verdadeira razão do sofrimento psíquico e o
vazio interior podem ser desvendados de uma maneira dolorosa.
Assim, temos como objetivo desta pesquisa compreender que sentido e
significado a mulher obesa atribui à sua vida afetivo-sexual no decorrer de sua
existência, em especial com a nova imagem corporal proporcionada pela perda
de peso após a cirurgia bariátrica.
2. Metodologia
Utilizamos a metodologia de pesquisa qualitativa fenomenológica, centrada na
redução fenomenológica, o que nos permite o retorno ao mundo da experiência
vivida pelas colaboradoras, e o referencial teórico psicanalítico como forma de
realizar uma análise compreensiva-interpretativa dos depoimentos das
colaboradoras.
Como estratégia de coleta de dados utilizamos a entrevista fenomenológica
compreensiva com uma questão norteadora: “Fale a respeito de sua vida, como
145
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
foi sua infância, sua adolescência, sua vida adulta, relacionando com aspectos da
obesidade e de sua vida afetivo-sexual”.
Realizamos as entrevistas com dez mulheres adultas submetidas à cirurgia
bariátrica, há pelo menos seis meses, para que fosse constatada uma perda de
peso significativa. Tivemos acesso a estas colaboradoras por meio da equipe de
uma clínica especializada em cirurgia bariátrica, por contatos mediados por uma
integrante do Grupo de Pesquisa SexualidadeVida (USP/CNPq) e por outras
entrevistadas.
2.1. Momentos de análise dos depoimentos
Leitura e releitura das entrevistas com a finalidade de apreender o sentido
geral do fenômeno indagado;
Discriminação das unidades de significado e identificação das categorias
divergentes e convergentes;
Expressão do insight contido nas unidades de significado;
Síntese e integração dos insights para se obter uma descrição consistente da
estrutura do fenômeno e compreender a vivência afetivo-sexual de mulheres
submetidas à cirurgia da obesidade.
3. Resultados e Discussão
O método fenomenológico denota grande importância ao tratamento dos dados
referentes às condições da vida cotidiana procurando esclarecer o mundo do diaa-dia. Além disso, ele analisa os dados da realidade exaltando a
intersubjetividade como núcleo orientador da ação.
Cada colaboradora atribuiu significado particular às suas vivências, uma vez que
são elaboradas conforme a história de vida de cada uma delas. Dessa forma,
elaboramos cinco categorias de análise, com suas respectivas subcategorias.
A maioria dos relatos referiu-se às problemáticas vividas nos horizontes da
infância, seja perdas reais ou simbólicas de pessoas queridas sentidas
intensamente até como abandono, ou então doenças físicas graves, o que afetou
a expressão psíquica neurótica na fase adulta possibilitando a formação de
sintomas pela via biológica. Destacamos as colaboradoras 1, 3 e 8 que referiram
ao processo de construção do corpo obeso nesta época.
“...eu era muito magrinha...e faziam promessa...um monte de coisa pra eu
engordar....aí meu irmão nasceu e ele comia muito bem e eu queria comer muito
bem igual ele pra ficar bem em casa....porque eu sou de família italiana e lá
comer muito é lindo...”
Colaboradora 1, 33 anos, casada, espírita cardecista, nutricionista, classe social
B2.
146
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
“...eu sempre fui obesa...fui bebê obesa éh::..então...mas eu nunca sofri muito
por conta disso não...eu: era bebê obesa...depois eu fui menina gordinha...”
Colaboradora 8, 56 anos, casada, budista, técnica em nutrição, classe social B1.
A colaboradora 1 que diverge das outras duas ao afirmar com clareza o porque
começou comer em excesso e o quanto isso era bem visto pelas pessoas que a
cercavam, parece ter sentido a chegada do irmão como um abandono por parte
da figura materna que precisava ser reconquistada também por meio do
alimento. Freud (1931, 1933) nos ajuda a pensar que o nascimento de um irmão
pode contribuir para o desligamento da menina de sua mãe na fase pré-edipiana,
o que lhe ajudará na escolha da feminilidade ou não.
As colaboradoras 3 e 8 revelaram o preconceito sofrido perante a sociedade.
Benedetti (2003) nos diz que a imagem corporal, ou melhor, o que sentimos e
pensamos a respeito do nosso corpo é influenciado pelas relações sociais, e pode
repercutir no desenvolvimento de uma auto-imagem negativa quando as pessoas
sofrem com consequentes avaliações sociais negativas desde a infância.
As colaboradoras 3 e 9 que sofreram abuso sexual na infância e divergem da
outras colaboradoras neste sentido, convergem entre si e com a literatura sobre
o assunto no sentido de que tiveram sua sexualidade iniciada de forma precoce,
banalizaram a mesma e partiram para a aversão e ou indiferença à sexualidade
genital, além do desgosto pela feminilidade.
“...eu sempre fui uma criança problemática...eu tive uns probleminhas assim
de...de ter sofrido...um...eh::...(...)...foi uma coisa assim que...éh::...que mexeu
com a sexualidade e eu era criança...né...na infância foi...ah::..foi com meu
padrasto...(...)...isso...alterou tudo o curso natural...(...)...porque depois quando
fui entendendo o que era sexo...(...)...então eu não conseguia deixar que
ninguém me tocasse...”
Colaboradora 3, 49 anos, solteira, católica, engenheira, clase social B2.
“...eu tive esse período dos sete anos...que a minha mãe faleceu...(...)...meu
padrinho pegou eu pra morar com ele...(...)...só que nesse período ele mexeu
comigo...me levou debaixo de um pé de manga...tirou minha roupa né?...e
queria ter relação comigo...eu não sabia...daí eu chamei minha madrinha...eu
falei pra minha madrinha...e minha madrinha pôs ele na cadeia...”
Colaboradora 9, 33 anos, casada, evangélica, faxineira, classe social C.
Nasio (2007) comenta que a simples fantasia infantil de sedução pode ocasionar
a histeria na mulher adulta com o pensamento de que todos os homens são
iguais e, portanto, uma rebelião contra qualquer homem de quem ela poderia
depender e depois ser abandonada. Assim, podemos compreender a opinião
negativa a respeito da masculinidade transferida para outros homens, os não
abusadores, a partir da vivência de uma situação real de sedução.
147
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Na temporalidade da adolescência, as colaboradoras 2 e 4 iniciaram o
processo de construção do corpo obeso devido a questões referentes ao tornarse mulher, ao surgimento da menstruação e à preparação para a feminilidade
definitiva.
“...aí com quatorze anos...na minha primeira menstruação...eu comecei
engordar...(...)...eu tive meu primeiro namorado com quatorze anos...”
Colaboradora 2, 31 anos, divorciada, umbandista, arquiteta, classe social A1.
“...aí teve período também da gente namorar né...ela...teve umas...assim...umas
vezes que minha mãe impediu...de namorar né...e aquilo já fazia mal pra
mim...porque:...eu sou uma pessoa que não pode me contrariar...e aí que eu
vou e faço...”
Colaboradora 4, 46 anos, casada, evangélica, comerciante, classe social B2.
Segundo Levisky (1995) é normal engordar no período da adolescência devido às
mudanças hormonais ocorridas no corpo da menina, o que ocasiona também a
mudança na imagem corporal. Também podemos refletir embasados pelo
pensamento de McDougall (1996) que essa solução adictiva pode ter-lhes trazido
paz psíquica por confirmar que seus corpos estavam vivos e eram indivíduos
completos que não corriam riscos de perder suas identidade individual.
Ainda na temporalidade da adolescência, a grande maioria de nossas
colaboradoras (1, 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10) revelou suas vivências afetivo-sexuais,
comentaram sobre os namoros e a primeira relação sexual. As colaboradoras 5,
6, 8, 9 e 10 referiram sobre a gravidez neste período.
“...meu primeiro namorado eu devia ter uns...eu devia ter já uns 15 anos...tinha
uns quinze anos...que naquela época lá as meninas começavam a namorar muito
cedo né?...e quinze anos pra eles já era até tarde...”
Colaboradora 7, 55 anos, casada, evangélica, do lar, classe social B1.
“...doze anos engravidei...(...)...era muito criança...não sabia da onde aquela
criança vinha...eu não fiz pré-natal...(...)...foi a primeira vez que eu tive uma
relação querendo...porque eu já tinha tido uma relação sem querer antes
né?...no anterior...daí eu pensava que era sempre ruim né? daí foi quando eu
tive querendo eu engravidei né?...”
Colaboradora 9
Para Freud (1933) a menina precisa buscar em suas relações o sentido do que é
ser uma mulher. A menina ao voltar-se para o pai inicia-se o Complexo de Édipo
e pode então promover uma escolha de objeto amoroso segundo o tipo paterno.
De acordo com Nasio (2007) ao superar o Édipo, a menina, agora mulher,
reconhecerá o Falo no pênis ereto do homem amado e especialmente no amor
que este homem lhe dirige.
148
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Em relação à temporalidade da vida adulta, as colaboradoras 5, 6, 7, 9 e 10
vivenciaram conflitos ocorridos neste período que contribuíram para o processo
de construção do corpo obeso. A principal questão relatada foi a obesidade
surgida após as gestações. Apenas as colaboradoras 5 e 9 relataram além das
gestações a questão da traição sofrida no casamento.
“...mas engordar eu comecei engordar mesmo depois na gravidez da minha
filha...porque::...o meu tipo de sangue não combina com o do meu marido...e eu
não sabia...eu vim a saber na gravidez dela que o nosso sangue não
combinava...então eu tive uma gravidez de risco...”
Colaboradora 5, 53 anos, casada, católica, manicure, classe social B2.
“...obesa eu passei a ser depois que eu tive o meu primeiro filho...aí que eu
comecei a exagerar demais né?...ai comecei...mas até aí não...até eu sempre só
mais gorda um pouquinho...”
Colaboradora 7
Outro aspecto destacado na vivência adulta com o corpo obeso que convergiu
nos discursos de grande parte das colaboradoras (1, 2, 4, 6, 7, 9 e 10), foi a
questão do estigma da obesidade. Estas colaboradoras revelaram o preconceito
sobre o corpo obeso em relação à moda, além do preconceito vivenciado em
situações quotidianas como andar de ônibus, ir à lugares públicos como
supermercado, restaurante, entre outros.
“...porque quando eu era gorda eu me sentia mal sempre...eu não podia sair
porque não tinha roupa...éh::...uma roupa de moda nunca podia usar...então
éh::..você não se enquadrava na sociedade...se ia no cinema...não cabia na
cadeira...você vai comer num restaurante e todo mundo fica olhando..então quer
dizer...eu me sentia mal...o tempo todo...eu perdi o emprego porque eu era
gorda...”
Colaboradora 1
“...gordo não é gente...ninguém que é gordo pode ser feliz...como é que gordo
pode ser feliz desse jeito...não existe cara...entendeu?...você vai comprar
roupa...a pessoa olha pra você e fala...ah:: mas é pra você?...e você
fala...não...é pro meu dedo só...o resto não vai vestir...entendeu?”
Colaboradora 2
Lipovetsky (1989) compreende a moda como dispositivo social que pode afetar
esferas muito diversas da vida coletiva. De acordo com o autor, a moda também
propicia aos seres a observação e apreciação de suas aparências, favorece o
olhar crítico dos outros, a observação da elegância alheia, e pode se tornar um
aparelho gerador de juízo estético e social.
149
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Sobre os relacionamentos afetivo-sexuais antes da intervenção cirúrgica
relatados por todas as colaboradoras percebemos uma clara divergência de
sentidos e significados. As colaboradoras 4, 7, 8 e 10 que possuem um corpo
erogeneizado devido sua estruturação familiar que permitiu a formação de uma
identidade integrada do eu, ou então às simbolizações que permitiram
resignificar e ou compensar vivências, revelaram que seus companheiros não se
importavam com a questão do excesso de peso. Apesar disso, elas sentiam
vergonha de seus corpo e as relações sexuais ficavam dificultadas pelas
proporções físicas que causavam fadiga e na maioria das vezes falta de prazer.
“...me sentia muito deprimida assim...quando eu era obesa...na hora de...ter
relação...porque:...eu não tinha posição...sinceramente é muito difícil...ser
obesa...é não ter posição pra sexo...é muito difícil...você cansa muito...fadiga...e
posição não tinha...”
Colaboradora 4
“...ele nunca...nunca me desprezou por causa da obesidade...e eu era magra
quando a gente se conheceu...eu sei que ele não gostava de mulher gorda
né?...mas ele nunca me desprezou...(...)...na época que eu tava mais obesa até
hoje...ele lixa o meu pé...passa creme em mim...eu tomo banho...ele passa
creme no corpo...adoro ficar cheirosa...”
Colaboradora 10, 50 anos, casada, evangélica, comerciante, classe social B2.
As colaboradoras (1, 2, 3, 5, 6 e 9) também comentaram sobre a vergonha que
sentiam de seus corpos, o que inibia o ato sexual, mas referiram uma imagem
ruim de seus companheiros, diferente da imagem de cúmplice apresentada pelas
outras colaboradoras. Elas fizeram referência a maridos que traíam ou não se
importavam com seus desejos sexuais, somente querendo se satisfazer.
“...me casei com dezenove anos vivendo um conto de fadas...aí se passaram
sete anos...eu fui traída...tive uma traição aí eu entrei...eu saí de órbita e
disparei a engordar...”
Colaboradora 1
“bem antes da cirurgia nós teve uma relação um pouquinho saudável...quando as
crianças eram pequena assim sabe?...depois dos sete anos...que o X fez sete
anos...daí já foi mais complicado...teve o acidente dele...depois eu engordei
muito...eu ficava com vergonha...essas coisas da cama quebrar...”
Colaboradora 9
No que se refere à vivência após a cirurgia bariátrica, as colaboradoras 1, 3,
5, 6 e 9, que se fixaram no corpo não simbólico não parecem ter obtido melhora
nos relacionamentos afetivo-sexuais com seus parceiros, ou estão desiludidas
porque acharam que magras se sentiriam mais desejadas e seus
relacionamentos seriam mais interessantes.
150
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
“...eu achei que eu fosse ficar magra...eu achei que eu fosse ficar
arrasante...gostosa...e eu não sinto nada disso...é uma coisa que até me
surpreende...”
Colaboradora 3
A colaboradora 2 diverge das outras colaboradoras por estar em busca do corpo
erógeno, está se permitindo refletir sobre sua sexualidade para não utilizá-la
como fazia com o alimento. Além disso, está redescobrindo um corpo capaz de
veiculação na sociedade e de despertar desejo no outro fazendo com que os
relacionamentos afetivo-sexuais melhorem.
“...porque eu tô num momento que eu tô frágil...tô carente...(...)...a minha
carência hoje...não é uma carência vazia...não é aquela carência devoradora
porque:...eu posso fazer tão mal pra mim...quanto a outra pessoa...então existe
um processo de auto-destruição...e eu sai deste processo de autodestruição...então muitas coisas às vezes eu paro e penso...”
Colaboradora 2
As colaboradoras 4, 7, 8 e 10 que já possuíam um corpo erogeneizado antes da
cirurgia referiram melhora nos relacionamentos afetivo-sexuais. Para elas a
melhora é associada à diminuição da forma física contribuindo para um melhor
desempenho no ato sexual com menor fadiga e mais criatividade.
“...eu acho que mudou porque eu me sinto melhor hoje...(...)...então eu falo
assim que da minha parte houve uma grande mudança porque:...já não sinto
sabe aquelas coisa de antigamente...aquelas canseira...aquelas coisas...assim
então da minha parte mudou sim...pra melhor...”
Colaboradora 7
“...mas a vida melhorou muito...porque...talvez porque...até assim...os espaços
são melhores ocupado né?...(...)...porque eu acho que assim...que até pra
abraçar né?...você vai abraçar gordo fica desse tamanho não consegue...não
alcança...não vê...não tem charme...”
Colaboradora 8
Sobre os horizontes dos projetos de vida, as expectativas, desejos e
motivações após o emagrecimento e a reinserção do corpo na sociedade,
notamos uma convergência entre as colaboradoras 1, 4, 6 e 10 no que se refere
ao desejo de continuar o tratamento para a obesidade através de intervenções
cirúrgicas, da cirurgia plástica, apesar do medo de algumas.
“...eu vou fazer pelo plano…(...)...eu até ia tentar agora...mas como eu estou
com a resistência muito baixa...(...)...mas a ânsia de viver e ver as coisas é tão
151
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
grande...que não dá tempo de me cuidar...é como se eu fosse perder...parar e
perder um tempo sabe...”
Colaboradora 6, 50 anos, viúva, budista, artesã, classe social B2.
“...a cirurgia...quantas eu precisar fazer pro meu bem...eu faço...eu quero é ter
condições...(...)...o
que
eu
penso
mais
de
tudo
isso
é
a
saúde...sabe...lógico...agora vem a estética...agora eu me preocupo...mas antes
eu não me preocupava...agora sim...agora eu to pensando na estética também
né?...”
Colaboradora 10
As colaboradoras 2 e 9 que se referiram aos projetos de vida futura divergem
desse pensamento ao expressarem seu desejo de um cuidado interno.
“...eu vou procurar um psicólogo pra conversar mais vezes assim...sobre esse
negócio da ansiedade que eu sinto sabe?...minha vontade de comer...que eu sei
que eu operei o estômago...a cabeça não...e as vontade fica tudo na cabeça
né?...”
Colaboradora 9
Segundo Costa (2005) elas estão saindo da ética da visibilidade e da imagem a
todo custo, desenvolvendo um pensamento mais neurótico e se importando com
o mundo interno para se reconhecerem como ser dotado de sentido e
proporcionar uma melhora de dentro para fora.
4. Conclusão
O procedimento cirúrgico tem se mostrado eficiente em transformar o corpo
externamente e proporcionar maior Qualidade de Vida. Portanto, entendemos
que a realização da cirurgia ocasiona a remoção do excesso de peso corporal e
não a elaboração psíquica, a erogeneização do corpo, ocasionando problemas na
veiculação erótica desse novo corpo, e permitindo a continuação da busca pelo
preenchimento do objeto faltante.
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153
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A pesquisa qualitativa e o método psicanalítico
Érico Bruno Viana Campos37
Resumo
Este trabalho visa delinear a problemática metodológica inerente ao campo
psicanalítico e apresentar algumas orientações que norteiem a elaboração de
pesquisas nessa abordagem, bem como discutir a aproximação das pesquisas do
campo psicanalítico com o que se convencionou chamar de metodologia de
pesquisa qualitativa em ciências humanas e da saúde. Propõe-se que a distinção
fundamental no que concerne à metodologia de pesquisa em psicanálise está na
aplicação ou não do método psicanalítico como modo principal de investigação.
Assim, teríamos, por um lado, a pesquisa psicanalítica ou em psicanálise. Neste
primeiro grupo, teríamos tanto os estudos de casos clínicos no enquadre padrão
– a chamada psicanálise em intensão – quanto os estudos de aplicação do
método a contextos grupais, institucionais e sociais, bem como à cultura em
geral – a psicanálise em extensão ou aplicada. Nessa categoria podemos
encontrar uma série de propostas de práticas e pesquisas interventivas no campo
da saúde mental e geral. No segundo grupo, teríamos a pesquisa que não utiliza
o método psicanalítico como referencial essencial, constituindo o que pode ser
denominado de pesquisas sobre a psicanálise. Diz respeito à investigação da
história das idéias psicanalíticas, tanto no grupo exclusivamente teóricoconceitual quanto no epistemológico. Nesse último campo também podemos
incluir os delineamentos de pesquisas empíricas que utilizam as categorias
teórico-conceituais da psicanálise como referência para análise qualitativa de
dados. Conclui-se que há uma ampla gama de possibilidades de articulação do
saber e do método psicanalíticos com as exigências de uma metodologia de
pesquisa qualitativa em ciências humanas e da saúde.
Abstract
This presentation aims to discuss the methodological problems that are found on
the psychoanalytical field of knowledge and to present some directions for the
research development on this area, as well as to discuss the relation between
psychoanalytical researches and qualitative research designs on social and health
sciences. It proposes that the basic difference on psychoanalytical research
methodology is upon the using or not of the psychoanalytical method as the
major instrument of investigation. Therefore, there is, at one hand, the
psychoanalytical research or research on psychoanalysis. In this group, there are
both the clinical studies on standard settings – the so called intentional
psychoanalysis – as well as the studies were the method is applied to groups,
37 Psicólogo, mestre e doutorando em psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP, em
São Paulo (SP). Membro associado da Associação Livre – Instituto de Cultura e
Psicanálise, em Piracicaba (SP). Professor do curso de psicologia da UNIARARAS, em
Araras (SP). Contato: [email protected]
154
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
institutions or to society and culture in general – the so called applied or
extensional psychoanalysis. On this category we can find a series of practices and
interventional researches into general and mental health fields. On the other
hand, at a second group, there is the research that doesn’t use the
psychoanalytical method as major instrument, what is called research about
psychoanalysis. It is about the history of psychoanalytical concepts and theories,
both on theoretical and epistemological levels. On this last group we can also
include the empirical research designs that use psychoanalytical concepts and
theories as a reference for the qualitative data analysis. It is concluded that there
is a large array of relations of the psychoanalytical knowledge and method to the
methodology of qualitative research on human and health sciences.
Introdução
Tradicionalmente, a pesquisa e o saber psicanalíticos desenvolveram-se à
margem das instituições acadêmicas e universitárias. As razões para essa
distância são muitas, desde divergências epistemológicas e metodológicas com
relação ao saber psicanalítico e o saber científico tradicional, até as
circunstâncias históricas que fizeram com que a Psicanálise se desenvolvesse
dentro de um campo institucional próprio – o das sociedades e associações de
psicanálise – sem preocupações de se legitimar como uma prática profissional
específica. Assim, a Psicanálise continuou sendo uma formação em nível de pósgraduação, remetida durante um certo tempo ao campo psiquiátrico e
psicoterápico, com um campo institucional próprio de produção e circulação de
saber. Essa dimensão mais “clínica” da Psicanálise fez com que, inicialmente, ela
se desenvolvesse distanciada de algumas querelas acadêmicas como, por
exemplo, a discussão sobre os métodos das pesquisas sociais e em ciências
humanas e, mais recentemente, o campo das chamadas pesquisas qualitativas
em saúde.
Embora desde as origens a Psicanálise tenha se proposto como uma teoria sobre
o homem e sua cultura e não somente uma psicoterapia, somente mais
recentemente – a partir dos anos 60 e 70 do século XX – essa tradição mais
crítica da Psicanálise tem sido resgatada. Além disso, o próprio campo de atuação
da Psicanálise se diversificou muito, passando a englobar não só diversos níveis
de intervenção na saúde geral – como ambulatórios, serviços públicos e hospitais
– mas também práticas de caráter social e institucional. Esse movimento por si
só aumentou a interlocução da psicanálise com saberes afins nas áreas das
ciências humanas e da saúde. Além disso, o desenvolvimento de modelos
interdisciplinares de atuação nas práticas de saúde e a entrada massiva do saber
psicanalítico no campo universitário contribuíram sobremaneira para a criação de
um contexto favorável de interlocução e, concomitantemente, uma demanda pela
fundamentação metodológica das pesquisas que utilizam a Psicanálise como
referencial teórico e metodológico.
Esse movimento tem produzido uma série de frutos na Europa e, principalmente,
na França, de onde uma série de propostas pioneiras alcançaram o meio
acadêmico e profissional brasileiro a partir do final dos anos 80 e ao longo dos
155
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
anos 90 do século XX. Hoje em dia, a legitimidade da Psicanálise como prática de
produção de saber no campos das ciências humanas e da saúde está bem
estabelecido no Brasil. Da mesma forma, consolidou-se uma certa tradição na
fundamentação metodológica dessas práticas, gerando uma ampliação e
diversificação das pesquisas psicanalíticas no âmbito da realidade social e cultural
brasileira. Contudo, embora no campo próprio da Psicanálise e da universidade
muito dessa discussão já esteja consolidada, ainda há um certo desconhecimento
desses desenvolvimentos em outros campos de saber, além da presença
insuficiente dessa fundamentação nos profissionais do chamado campo “psi”.
Essa carência é particularmente notável na formação universitária do profissional
de Psicologia no Brasil, já que essa interlocução entre os métodos da pesquisa
social e em saúde com a Psicanálise ainda é uma tarefa em andamento.
Este trabalho visa delinear a problemática metodológica inerente ao campo da
Psicanálise e relacioná-lo ao chamado campo da metodologia de pesquisa
qualitativa em ciências sociais e da saúde. Seu objetivo é apresentar referências
que norteiem a elaboração de delineamentos de pesquisa nessa interface.
O Método Psicanalítico
Desde Freud, entendemos que a psicanálise é constituída fundamentalmente por
um método que é simultaneamente terapêutico e investigativo e por uma teoria
derivada da aplicação desse método. Esse método é essencialmente clínico e
definido pela chamada regra fundamental da associação livre. Apesar de todas as
particularidades do enquadre analítico padrão, é na singularidade da escuta
analítica que se fundamenta toda a especificidade do método psicanalítico. Assim,
a emergência do objeto da psicanálise, o inconsciente, é função da constituição
de uma escuta específica. Por muito tempo, tendeu-se a tomar a escuta
psicanalítica como uma condição do enquadre clínico. Embora a própria obra de
Freud ateste o contrário, a chamada psicanálise aplicada precisou do reforço de
uma série de desenvolvimentos teóricos e práticos para ganhar um estatuto de
legitimidade para a psicanálise e, principalmente, para a comunidade científica
em geral.
Embora tenha uma longa tradição, o método psicanalítico e sua aplicação
estiveram restritos ao campo da psicanálise e de suas intervenções na área da
saúde mental. Sua origem eminentemente clínica e seu contexto institucional
próprio marcou um desenvolvimento em paralelo com a discussão metodológica
nas ciências humanas e da saúde. Assim, embora possamos entender que os
trabalhos psicanalíticos relacionem-se a uma metodologia qualitativa da pesquisa
empírica, essa vinculação é extremamente recente.
A Metodologia Qualitativa de Pesquisa
A denominação de uma metodologia “qualitativa” de pesquisa é fruto de um
desenvolvimento específico no campo das ciências humanas e sociais que, a
partir de um movimento de crítica aos modelos positivistas tradicionais que
partiam de um modelo baseado nas ciências naturais. Essa crítica inicialmente foi
156
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
embasada nos estudos da fenomenologia, da teoria crítica da sociedade e do
construtivismo social, criando um novo paradigma de pesquisa nas ciências
sociais.
Esse movimento se deu entre os anos 60 e 70 do século XX e logo foi endossado
por uma série de desenvolvimentos próprios no campo da psicologia e da
sociologia, como a teoria das representações sociais (SPINK, 1995), a análise de
discurso (MOSCOVICI, 2003), a metodologia da pesquisa-ação (THIOLLENT,
2000), a pesquisa interventiva (BRANDÃO, 1999) e assim por diante. O fato é
que, atualmente, temos um campo bastante diversificado de proposições
metodológicas e mesmo de teorias próprias na área da sociologia e da psicologia
social sob esse paradigma multifacetado. Costumo chamar essa tradição da
pesquisa qualitativa de eixo sócio-histórico, no qual se alinha boa parte da
produção nos campos social, pedagógico e da saúde. Essa tradição também é a
mais reconhecida e abordada no campo acadêmico, mesmo na psicologia
(PEREIRA, 1999; MINAYO, 2000; MINAYO et al, 2003).
Uma outra tradição de pesquisa não-quantitativa desenvolveu-se inicialmente no
campo das teorias e práticas psicológicas e psiquiátricas. Evidentemente esse foi
o caso da tradição psicanalítica, mas, também, da tradição fenomenológica e
existencialista que se desenvolveu na psicopatologia e na psicologia, sendo
incorporada posteriormente pelo que se costumou chamar, a partir do contexto
norte-americano, de psicologia humanista ou de terceira força do campo da
psicologia.38 Costumo nomear esse segundo eixo de clínico, dada a ênfase no
estudo do sofrimento mental.
Pois é nesse eixo clínico que se desenvolveu a discussão metodológica em
psicanálise e a partir do qual a pesquisa psicanalítica vem encontrar o campo das
chamadas pesquisas qualitativas. Esse encontro, no entanto, tem se dado pouco
até o momento. É mais comum vê-los correr em separado.39 Assim, a questão
da pesquisa qualitativa em psicanálise tem sido tradicionalmente abordada a
partir do próprio campo da Psicanálise, como veremos a seguir.
Delineamentos de Pesquisa em Psicanálise
A definição de uma metodologia de pesquisa psicanalítica passa,
necessariamente, pela discussão da especificidade de seu saber e de seu método
para, em seguida, apresentar os diferentes delineamentos de pesquisa possíveis.
A produção de conhecimento em psicanálise pressupõe sua operacionalização no
âmbito de um setting transferencial, onde o inconsciente pode emergir. Dessa
forma, a verdadeira pesquisa em psicanálise seria aquela que emerge da clínica
psicanalítica.
38 Os limites desta apresentação não me permitem enveredar pela rica tradição da
metodologia de extração fenomenológico-existencial nem considerar as frutíferas relações
entre esse campo e o da metodologia psicanalítica.
39 Uma rara e valiosa exceção está no trabalho de Turato (2003).
157
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Essa posição “clássica” é a defendida, em sua versão mais ortodoxa, por Freud
nas suas propostas de ensino de psicanálise na universidade, em que esse
deveria ser concebido com o intuito de divulgação das proposições psicanalíticas
e de forma dogmático-crítica (MEZAN, 1998b). É encontrada também em autores
que são taxativos em afirmar que a pesquisa acadêmica em psicanálise não pode
consistir em uma pesquisa empírica, sendo necessariamente de caráter teórico
(GARCIA-ROZA, 1994). O fundamento de tal argumento está no pressuposto de
que a verdadeira pesquisa em psicanálise seria aquela que ocorre no âmbito da
escuta psicanalítica em contexto clínico.
Posições menos restritivas, contudo, preocupam-se em marcar que apesar da
pesquisa especificamente analítica ser necessariamente do tipo clínico (MEZAN,
1994), isso não quer dizer que outras formas de aplicação do método
psicanalítico estejam vedadas. Isso implica que a distinção fundamental no que
concerne à metodologia de pesquisa em psicanálise está na aplicação ou não do
método psicanalítico como modo principal de investigação. Assim, teríamos, por
um lado, a pesquisa psicanalítica ou em psicanálise.
Neste primeiro grupo, teríamos tanto os estudos de casos clínicos (SAFRA, 1993)
quanto os estudos da aplicação do método a outros contextos, como a sociedade
e a cultura (ROSA, 2004).
Essa distinção, por sua vez, ganha respaldo a partir das contribuições da
psicanálise contemporânea de extração lacaniana, que distingue entre a chamada
psicanálise em intensão, baseada na aplicação do método em seu contexto
clínico e a doutrina dela derivada, da psicanálise em extensão, que diz respeito à
escuta psicanalítica em contextos grupais, institucionais e sociais, articulando a
prática do campo psicanalítico com ciências afins (PLON, 1999).40 O mérito
desse avanço está na inflexão que o movimento lacaniano trouxe para a
psicanálise, com sua ênfase não só na compreensão lingüística das produções do
inconsciente, como também em na compreensão do Outro como o campo da
linguagem e da cultura.
Da mesma forma, outros autores do campo mais tradicional da psicanálise têm
produzido uma série de contribuições no sentido da expansão da aplicação do
método psicanalítico. É o caso, no Brasil, do trabalho de HERRMANN (2001)41,
que retoma a problematização do método psicanalítico a partir das idéias de
princípio do absurdo e de ruptura de campo para pensar uma escuta psicanalítica
além da clínica padrão, pois tomará o inconsciente como uma produção
contextual de sentido, evidenciado pelo ato interpretativo.
Assim, é nesse plano que podemos demarcar uma pesquisa psicanalítica de
caráter aplicado, ou psicanálise aplicada, que diz respeito à articulação do saber
psicanalítico com a cultura em geral (MEZAN, 1994).
40 Outro autor de extração francesa que se preocupa com a demarcação de um campo de
aplicação da psicanálise é Laplanche (1992), que prefere o termo psicanálise extramuros.
41 Ver também Herrmann e Lowenkron (2004).
158
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Evidentemente, essa idéia de uma “aplicação” da teoria psicanalítica, não deve
ser entendida nos mesmos moldes da distinção entre pesquisa básica e pesquisa
aplicada em ciências naturais, já que a teorização em psicanálise emerge do seu
próprio método e nele se efetiva.
Por outro lado, teríamos a pesquisa que não utiliza o método psicanalítico como
referencial essencial, o que constitui um segundo grupo de delineamento que
pode ser denominado de pesquisas sobre a psicanálise (GARCIA-ROZA, 1994). É
nessa proposta que se inserem as pesquisas propriamente acadêmicas. Dizem
respeito à investigação ao campo das idéias psicanalíticas em sua articulação
com o saber em geral, quer seja no plano exclusivamente teórico-conceitual – as
articulações e desenvolvimentos conceituais de uma teoria psicanalítica – ou no
plano epistemológico – um recorte transversal de determinado campo de
problematização (MEZAN, 1994).
Por fim, é dentro desse âmbito que podemos incluir os delineamentos de
pesquisas empíricas que utilizem as categorias conceituais da psicanálise como
referência para a chamada metodologia qualitativa de pesquisa. É o caso, por
exemplo, de delineamentos de estudos de caso ou intervenções grupais que
partem de um relato de observação participante e o interpreta com auxílio do
referencial psicanalítico. Esse tipo de delineamento é muito comum em alguns
relatórios de estágio ou trabalhos de conclusão de curso em nível de graduação
em psicologia e é um exemplo de aproximação entre a tradição metodológica da
psicanálise e o modelo mais padrão de pesquisa qualitativa.
Conclusão
Em síntese, apesar dos diversos níveis e modos de delineamento da pesquisa
psicanalítica, até pouco tempo persistia uma diferença significativa entre a
Psicanálise em sua forma clínica “pura” e outros arranjos de aplicação de
conceitos, idéias e métodos psicanalíticos, considerados “menores”. Essa breve
revisão de literatura, contudo, mostra que há uma ampla gama de possibilidades
de articulação do saber e do método psicanalíticos com as exigências de uma
metodologia de pesquisa qualitativa em ciências humanas e da saúde.
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161
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Oficina de pintura: um estudo fenomenológico
sobre uma pratica psicológica
Giuliana Gnatos Lima Bilbao
Vera Engler Cury
PUC-CAMPINAS
Resumo Esta pesquisa-intervenção objetivou compreender a experiência vivida
em uma Oficina de Pintura, modalidade de atenção psicológica implementada no
serviço de psicologia da PUC-Campinas, durante três meses no ano de 2007. Os
referenciais teóricos adotados foram a Fenomenologia de Edmund Husserl e a
Psicologia Existencial-Humanista. Foram realizados catorze encontros de oficina,
com duração de duas horas, em uma sala do serviço de psicologia. A
pesquisadora conduziu os encontros como facilitadora, usando as atitudes
preconizadas por Rogers(1961/1999) de empatia, aceitação positiva incondicional
e congruência. Após cada encontro, a pesquisadora elaborou narrativas sobre a
experiência vivida, baseando-se tanto na concepção de narração de
Benjamin(1936/1994)
como
na
concepção
de
consciência
de
Husserl(1935/1996), buscando capturar o movimento da consciência na criação
de significados que configuram a experiência. A partir das narrativas construídas
pela pesquisadora, buscou-se explicitar os elementos vividos,, entendendo que
os significados que emergiram formaram-se na teia intersubjetiva dos encontros.
Através da experiência vivida na Oficina de Pintura e partindo do princípio de que
o homem é dotado de autonomia e possui dentro de si recursos para a autocompreensão e mudança, verificamos que as participantes da Oficina de Pintura
caminharam no sentido da integração psicológica,,compartilhando suas
experiências, num clima acolhedor e de apoio mútuo. Assim, numa perspectiva
de enquadres diferenciados de atenção psicológica, a Oficina de Pintura leva a
refletir sobre os benefícios e a viabilidade de implementar novos modelos de
intervenção clínica em instituições de saúde pública que privilegiem a autonomia
e o crescimento psicológico dos clientes. .
Palavras-chave: atenção psicológica clínica
fenomenológica; narrativa; oficina de pintura.
em
instituições;
pesquisa
Abstract his intervention research aimed to comprehend the experience of a
Painting Workshop, which is a psychological approach implemented in PUC –
Campinas Psychology Clinic during three months in the year of 2007. The
theoretical referential is Edmund Husserl’s Phenomenology, and the Humanistexistential Psychology. In a room of the Psychology Clinic fourteen workshop
meetings were organized, with duration of two hours each. They were conducted
by the researcher as a facilitator adopting Roger’s proposition of three attitudes:
empathy, unconditional positive regard and congruency. After each workshop,
the researcher elaborated narratives about the recently experienced meeting,
using Benjamin’s definition of narrative (1936/1994), and Husserl’s definition of
consciousness (1935/1996) as a base. It was the intention of the researcher to
capture the movement of consciousness in the meaning creation that configure
162
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
the experience. Based on the elaborated narratives, the intention was to expose
the elements experienced by the researcher, who understands that the emerging
meanings were configured in the inter-subjective net of the meetings. Through
the experience of the Painting Workshop and based on the principle that the
human being has whether autonomy and the resources for self-comprehension
and change, it was verified that participants of the Painting Workshop directed
themselves to psychological integration by sharing their experiences in a kind
and supportive environment. According to the perspective of setting
differentiated psychological attention, the Painting Workshop makes us think
carefully about the benefits and viability of the implementation of new models of
clinical intervention in public health institutions that are able to pririze clients’
autonomy and psychological growth.
Key words: clinical psychological attention in institutions; phenomenological
research; narrative; painting workshop .
Esta pesquisa pretendeu compreender, a partir de um enfoque fenomenológico, a
experiência vivida em uma Oficina de Pintura implementada em um serviço de
Psicologia.
Considerando a necessidade da implementação de novas práticas institucionais
em saúde mental que possam contemplar as necessidades dos indivíduos para
além dos modelos tradicionais de intervenção psicológica que buscam a cura ou a
correção, a Oficina de Pintura, tema deste trabalho, realizou-se numa perspectiva
existencial-humanista, de inspiração fenomenológica, como parte dos serviços de
atenção à saúde mental oferecidos pelo Serviço de Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas.
Foram realizados 13 encontros no ano de 2007 e elaboradas narrativas sobre os
mesmos posteriormente, buscando apreender a experiência vivida.
A pesquisa-intervenção norteou-se pelos princípios básicos da Abordagem
Centrada na Pessoa, focalizando atitudes facilitadoras da pesquisadora como
empatia , aceitação incondicional e congruência tais como sugeridas por
Rogers(1961/1999), seguindo também a postura de suspensão de conceitos e
julgamentos proposta por Husserl(1935/1996) como método de redução
fenomenológica para abordar o fenômeno estudado.
Baseadas no resgate da experiência proposto por Benjamin(1936/1994) e na
ênfase à subjetividade proposta por Husserl(1935/1996), as narrativas foram a
estratégia metodológica capaz de apreender o vivido que se desdobra ao longo
do tempo, tomando por base o movimento de intencionalidade da consciência.
Tais narrativas, por sua vez, sofreram uma transmutação ao longo do tempo,
pois novos elementos lhes foram acrescentados pela pesquisadora, que esteve
lendo e relendo as narrativas e alterando-as.
A modalidade de Oficina de Pintura foi sendo construída no tempo e durante os
encontros, não existindo a priori uma forma de implementá-la. Ela foi-se
163
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
constituindo a partir da maneira própria de se apropriar do espaço pelas
participantes.
Cada participante (5 no total) apropriou-se dos encontros de oficina de forma
peculiar, contando suas histórias, pedindo e dando opiniões diversas sobre os
vários assuntos conversados enquanto se pintava. Problemas familiares,
discriminação racial, doenças, depressão, casamentos, separações, filhos, pânico,
dificuldades de colocar limites foram alguns temas abordados.
Um vínculo entre as participantes formou-se, algumas delas se telefonavam e se
encontravam fora da oficina. Diziam que esperavam o dia dos encontros
ansiosamente pois ali poderiam pintar e conversar com liberdade e sem receios.
Partindo de uma perspectiva existencial-humanista, os encontros de oficina
possibilitaram que as pessoas tivessem liberdade de expressão, fossem aceitas
em seus parâmetros e compartilhassem suas experiências. Houve, em certos
momentos, a alteração das percepções sobre os fatos, compreendendo-os de
outras maneiras, escolhendo novas atitudes, contribuindo para um processo de
auto-percepção e auto-desenvolvimento, tendo por base a autonomia pessoal.
Referências Bibliográficas
BENJAMIN,W. (1994) (edição original 1936) Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense.
HUSSERL, E.(1996) (edição original 1935). A crise da humanidade européia e a
filosofia. (Introd e trad. Urbano Zilles). Porto Alegre: Edipucrs.
ROGERS,C.R.(1999) (edição original 1961). Tornar-se Pessoa. São Paulo: Martins
Fontes.
164
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O método do estudo de caso em uma
investigação clínica psicanalítica
Fernanda Kimie Tavares Mishima
Valéria Barbieri
Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto –
Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP)
Resumo
O estudo de caso como estratégia metodológica em pesquisa qualitativa recebe
muitas críticas, apesar de comumente usado. Isso acontece pela dificuldade de
generalização dos dados e pela importância dada à formação do pesquisador. O
presente trabalho tem por objetivo apresentar as características e concepções
atuais da perspectiva qualitativa, dando exemplo de uma pesquisa científica que
usou o método do estudo de caso dentro da abordagem psicanalítica. O estudo
de caso é de uma criança obesa, de 9 anos, e de seus pais, que passaram por
avaliação psicológica com aplicação de entrevista e técnicas projetivas. Após
análise dinâmica dos dados, concluiu-se que os três, pai, mãe e criança
apresentam um funcionamento psicodinâmico semelhante, com sinais de
insegurança, busca de apoio e dificuldade em se expressar de maneira pessoal e
criativa. Isso se deve à vivência de uma experiência com pouco acolhimento e
um ambiente que não foi suficientemente bom, que foi capaz de prover as
necessidades concretas em detrimento das afetivas. O estudo de caso na
perspectiva clínica psicanalítica de investigação mostrou-se comprovadamente
significativo para conhecimento das características psicodinâmicas familiares e
investigação da existência de uma ligação entre o relacionamento afetivo de
crianças com seus pais e mães e com a obesidade infantil, destacando a
influência familiar na determinação da patologia infantil.
ABSTRACT
The methodology study of case as strategy in qualitative research receives much
critical, although is generally used. It happens because of the difficulty of
generalization of the data and of the importance given to the formation of the
researcher. The present research has for objective to present the characteristics
and current conceptions of the qualitative perspective, giving example of a
scientific research that uses the methodology study of case with psychoanalytical
orientation. The case study is about an 9 year old obese child and its parents,
who had being trough psychological evaluation with application of interview and
projectives techniques. After dynamic analysis of the data, it was concluded that
the father, mother and child had a similar psychodynamic functioning, with
indication of unreliability, search of support and difficulty in expression personal
and creative way. This is related to an experience with insufficient holding and an
environment that was not enough good, that was capable to provide the concrete
necessities in detriment with the affective ones. The study of case in the
165
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
psychoanalysis clinical perspective resulted in a significant data for the
knowledge about psychodynamic family characteristics and in the importance of
the clinical investigation about the children emotional aspects related to parents,
detaching the familiar influence in the determination of the childhood pathology.
INTRODUÇÃO
Apesar de ser amplamente utilizado na investigação científica qualitativa, o
estudo de caso é muito criticado, particularmente devido à dificuldade de
generalização dos dados. Assim, o presente trabalho objetiva apresentar as
características e concepções atuais dessa metodologia, dando exemplos de uma
pesquisa científica que usou o método do estudo de caso.
A perspectiva qualitativa foi amplamente estudada por diversos autores, que
mostraram diferentes maneiras de cuidado com os dados e informações de
pesquisas, ora dando destaque a determinados procedimentos, ora a técnicas e
passos para a coleta e tratamento dos dados.
Um deles, Valles (1997), fez uma transposição entre as perspectivas
quantitativas e qualitativas, identificando seus estilos e características principais.
Outros afirmam que a pesquisa qualitativa destaca a descrição, indução, teoria
fundamentada e estudo das percepções pessoais (BOGDAN; BIKLEN, 1997).
A pesquisa qualitativa diferencia-se da quantitativa pela complexidade e extensão
da coleta de dados, tornando necessário apontar para os possíveis
procedimentos na análise dos mesmos. Destaca-se que, diferentemente das
investigações estatísticas, os procedimentos e técnicas de análise na abordagem
qualitativa não são padronizados. Contudo, mesmo sendo uma atividade pessoal,
a análise de dados não deve ser vista como um procedimento místico, com
processos interpretativos e criativos de difícil explicitação (VALLES, 1997).
Nos estudos qualitativos, Taylor e Bogdan (1998) destacam a riqueza dos dados
descritivos e o fato de que na interpretação não há linhas que definem a
quantidade de dados necessários que possam apoiar uma conclusão ou
interpretação. Assim, há dificuldade em definir o número de casos de um estudo.
As melhores apreensões surgem de uma quantidade pequena de dados, nos
quais o investigador irá demonstrar suas conclusões e interpretações sem
apresentar uma prova definitiva.
Valles (1997) cita como principais estratégias metodológicas: experimentos,
enquete, análise de informação de arquivo, estudos de caso, estudos de campo e
etnografia. Denzin e Lincoln (1994) apresentam outros: estudos de caso,
etnografia – observação participante, fenomenologia – etnometodologia,
grounded theory, método biográfico, método histórico, ação investigativa e
aplicada, e investigação clínica.
Concomitante a essas diferentes estratégias, este estudo focará o método do
estudo de caso, desenvolvido no contexto da investigação clínica.
166
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O Método Clínico e o Estudo de Caso
O termo ‘método clínico’ tem sua origem ligada à Psicanálise e representava um
tipo de ‘investigação dos processos anímicos’, diverso do método experimental.
Para compreendê-lo, é preciso considerar as implicações políticas, históricas e
metodológicas de determinada situação (AGUIAR, 2001).
Mezan (1999) pondera que toda investigação psicanalítica é do tipo qualitativo,
pois aprofunda casos específicos. Assim, cada caso tem grande valor, pois
oferece exclusividade e aspectos compartilhados com outros casos do mesmo
tipo.
O método clínico pressupõe que as respostas do participante não são produzidas
por mero acaso, mas são determinadas pelas condições psicológicas. A pessoa é
livre para se manifestar e se revelar, pontos facilitadores para o surgimento de
conteúdos psíquicos inconscientes, reflexo da organização de sua personalidade.
Assim, torna-se aceitável o estudo aprofundado de um único caso para conhecer
dados importantes e significativos da conduta humana (AMIRALIAN, 1997).
Em relação às considerações éticas no trabalho de estudo de caso, é importante
destacar que, apesar do interesse público, nada justifica a invasão da privacidade
dos outros (STAKE, 2000). É preciso respeitar a exposição pessoal por meio de
um código de ética rigoroso, exigindo um acordo prévio entre pesquisador e
pesquisado. É de extrema importância que os pesquisadores trabalhem com
muita cautela para minimizar os riscos, seguindo regras para proteção dos
sujeitos humanos e elaborando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Assim, a estratégia metodológica do estudo de caso de abordagem psicanalítica é
fundamental na perspectiva clínica de investigação. Para exemplificar, o presente
trabalho apresenta um estudo de caso de uma criança obesa e seus pais, que
passaram por avaliação psicológica com entrevista e técnicas projetivas: o teste
do Desenho da Figura Humana (DFH) e o Teste de Apercepção Temática (TAT;
CAT-A).
O construto a ser investigado foi o da existência de uma relação entre o
relacionamento afetivo de crianças com seus pais e mães e com a obesidade
infantil, destacando a influência familiar na determinação da patologia infantil.
Deve-se destacar que o método clínico psicanalítico usado também tem seus
limites, pois o estudo de caso não é um reflexo fiel de um fato concreto, mas
uma reformulação da história de acordo com a visão do pesquisador.
Estudo de caso
Antônio tem 09 anos, cursa a 3a. série do Ensino Fundamental, é obeso. A queixa
principal era o excesso de peso e a dificuldade em perdê-lo, não permanecendo
muito tempo em tratamento com nutricionista. Tem um irmão de 12 anos. Seu
pai tem 36 anos e sua mãe tem 46, ambos trabalham fora de casa, ela é
escriturária e ele técnico em Contabilidade.
167
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Na entrevista com os pais, Fernando e Sueli, a mãe afirma que, após o
nascimento do filho, sentiu-se mais “aliviada”, pois teve depressão pós-parto na
primeira gestação. Não amamentou a criança porque não teve leite e diz que “a
criança foi amamentada pelo pai” com a mamadeira. Nesta fase, Antônio já
demonstrava ser “meio bravinho”, o que acontece até hoje quando quer algo.
Era uma criança que chorava pouco, só quando sentia fome. A mãe diz que a
babá dava-lhe a comida “tudo de uma vez”, fazendo com que ele ficasse guloso,
um dos motivos atribuídos ao início da obesidade da criança, por volta de quatro
anos de idade.
A criança prefere atividades de lazer que precisem de pouco esforço físico (vídeo
game e alguns brinquedos). Evita fazer Educação Física na escola, pediu para
que a mãe arrumasse um atestado médico, pois nunca era chamado para fazer
parte dos times.
O ingresso da criança na escola ocorreu na idade de três anos. Nessa fase,
parece ter havido um “trauma”, pois quando os pais o levavam para a escola, ele
ficava com o corpo duro, parado na frente do portão da escola, não queria
entrar, só chorava. Eles não entenderam o motivo, nem a professora soube dar
explicações. Para solucionar o problema, os pais o mudaram de escola. Nos
primeiros dias, a mãe mentia que o esperava na cozinha durante a aula. Isso
aconteceu até ele se acostumar com a nova escola. Atualmente, não há
problemas em permanecer na escola, nem de relacionamento com a professora.
Ao falar do temperamento da criança, o pai diz que “ele é meio explosivo, tem
dia que é água, tem dia que é vinho”. Quanto à saúde da família, os pais
discordam acerca da personalidade deles mesmos: enquanto a mãe afirma que
ambos são difíceis de lidar (“até para casar”), o pai fala que ele é fácil, é só não
tirá-lo do sério. No relacionamento com os filhos, o pai se mostra mais acessível
e presente, fato confirmado pela mãe, que complementa que ela ‘poda’ mais, e
que as decisões devem ser conjuntas.
Quanto à relação com o irmão de 12 anos, os pais afirmam que eles se dão bem,
que Antônio só é um pouco ciumento, mas tem admiração pelo irmão,
principalmente porque o irmão é inteligente.
Os pais ressaltam que a criança não costuma mais ter festa de aniversário como
antes, eles preferem levá-lo ao shopping para comprar algum presente.
Ao final da entrevista foi possível notar que Sueli parece exercer seu papel
materno não apenas com o filho, mas com o marido também, demonstrando
autoridade. Ela também é aparentemente ambivalente quanto ao desempenho
de seu papel; mesmo exercendo autoridade na casa, tem insegurança, receio de
ser julgada pelos seus atos. Essas atitudes fazem com que Fernando não tenha
um espaço seu para expressar opiniões, sendo aparentemente passivo e
controlado.
Parece haver afetividade no relacionamento de Fernando com o filho, porém com
raros momentos de demonstração, como na comemoração do aniversário da
168
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
criança, no qual foi mais fácil dar um presente caro (algo concreto), que fazer
uma festinha. É possível pensar que o suporte material está mais presente que o
suporte afetivo. Essa deficiência afetiva também pode ser demonstrada no
momento da amamentação, quando a mãe afirma que não tinha leite para dar a
Antônio.
Quanto a Antônio, foi possível pensar em seu lugar dentro dessa família, já que
parece não ter um espaço próprio e um lugar seu. Isso se deve principalmente
ao fato de que os pais comparam muito os filhos, valorizando o mais velho por
causa da sua inteligência, e deixando para Antônio um lugar secundário, o que
dá a impressão de que ele não tem nenhuma habilidade e nenhuma característica
que mereça receber valor especial. Somado a esse fato, há carência de apoio e
cuidado para que Antônio tenha sua independência, o que pode aumentar seu
sentimento de solidão dentro da própria família.
Sessão com a criança
Antônio estava muito tímido, mantinha sempre a cabeça baixa, pareceu distraído
em alguns momentos, como se não estivesse ali presente, realizando atos de
forma automática.
Houve sinais de fragilidade, dificuldade na integração dos afetos, subestima do
corpo e valorização do controle racional, com indícios de um controle pulsional
bastante rigoroso. Denotou ambivalência quanto ao impulso para autonomia,
além de dificuldades no contato e adaptação.
Foi possível observar a presença marcante do tema da voracidade que não é
controlada, ocasionada pela falta de cuidado dos pais. Uma forma de aplacar a
voracidade seria contar com a presença do outro, mas muitas vezes esse outro
não está por perto para apoiar, para cuidar, fazendo com que a ameaça
permaneça.
O contato com o outro é permeado por pouco afeto. As pessoas que estão à sua
volta não são percebidas como acolhedoras; a figura materna foi vista como
controladora, que não permite a expressão das pulsões do filho, devido ao receio
das mesmas. Logo, resta à criança reprimir essas pulsões. Para frear os impulsos
instintivos do filho, os pais exercem um controle baseado na autoridade e não no
afeto. Eles são vistos como aqueles que não suprem a dependência da criança,
não promovem a sua independência e o castigam caso ele se mostre autônomo.
Com isso, aparece o sentimento de abandono, de medo, de solidão. Como não
pode contar com os pais para auxiliar a integração, resta-lhe se apegar a algo
concreto, à realidade. Além disso, os pais transmitem uma mensagem ambígua,
já que desejam que ele seja independente, mas o punem se isso acontece.
Concomitante ao tema da voracidade, apareceu o roubo e a perda, que também
são causadores de conflitos. Uma das maneiras de abrandar a angústia advinda
desses conflitos é através do apego à racionalidade, o distanciamento entre
representação e afeto. Ele demonstrou imaginação, porém destituída de
criatividade, de espontaneidade, dando sinais de que não houve integração com
169
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
os impulsos primitivos, impondo diretamente a realidade através dos fatos
concretos, sem espaço para a transicionalidade.
O privilégio do racional em detrimento do afetivo pode ser um aspecto que faz
com que a criança não consiga integrar a realidade interna e a externa,
impossibilitando a expressão da criatividade.
Antônio parece não se sentir aceito pelos pais por aquilo que ele é realmente,
tendo que seguir um modelo ideal para se sentir amado e parte da família. O
ambiente familiar parece não permitir a expressão do self verdadeiro da criança,
fazendo com que ele permaneça oculto, aspecto básico para o surgimento da
defesa de falso self. Parece haver um desenvolvimento precário da capacidade
simbólica, o que faz com que ele precise recorrer ao concretismo. O uso que faz
de algo concreto acaba por se mostrar permeado de voracidade, o que gera
culpa por essa expressão voraz dos impulsos instintivos.
Sessão com a mãe
Os relacionamentos permanecem no plano superficial, não demonstra muita
afetividade (evita o plano afetivo), volta-se para o intelectual e busca a
perfeição. Essa dinâmica afetiva permite supor que a mãe não recebeu afeto
suficiente, como se não tivesse se apropriado dele.
Aparece o conflito quanto ao exercício da sexualidade, o que a impede de se
apropriar do sentimento de independência, já que não passou pela experiência
de dependência, de entrega ao outro e vivência do conflito edípico.
A ansiedade gerada pelo conflito sexual é deslocada para o âmbito da racionalidade,
para o intelecto. Para agradar o outro é preciso ser inteligente e esforçado, ser
perfeito, o que não inclui o aspecto sexual, assim, o narcisismo também se desloca
do plano da sexualidade para o do pensamento. Essa sexualidade até se expressa,
mas é reprimida logo que constatada, há o deslocamento da angústia do conflito
sexual. O relacionamento homem mulher acaba se tornando semelhante ao de
cuidador e cuidado (uma relação mais paternal, para ser aceita sem angústia),
apesar da figura masculina não conseguir cumprir o papel de cuidador. Neste
ponto, há subestimação da figura, como se não adiantasse depender dela, pois
ela é insuficiente e pouco capaz de suprir suas necessidades.
Sua dificuldade de elaboração edípica (plano sexual) parece prejudicar sua função
materna, pois não há doação ao outro, não há vivência afetiva junto com o outro, o
que acaba refletindo na dificuldade de estabelecer um vínculo de afeto com o filho.
Ela foge da afeição e se refugia no racional, nas oportunidades concretas e materiais
e não no afeto recebido. Essa dinâmica se repete na relação com o filho: ela tenta
oferecer o que há de melhor materialmente, minimizando o afeto (há somente o
suprimento material e racional). Se com isso o outro não se desenvolver, o problema
é projetado nele, que deve “se virar” sozinho para arrumar outra solução. Assim,
deve ser afetivamente independente sem ter tido sua dependência suprida.
170
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Apesar de tentar fazer o melhor, ser a melhor e perfeita (mesmo que seja só no
âmbito da racionalidade), esse recurso nem sempre se mostra suficiente. O ser
perfeito não garante o afeto do outro e a recompensa externa, não impede que
as coisas continuem acontecendo, que os conflitos terminem.
Com isso, há indícios de que a mãe não consegue integrar a realidade interna e a
externa, acabando por viver uma realidade sobreposta, não integrada à sua
personalidade, o que prejudica a expressão do seu estilo pessoal de ser. Isso
acontece porque não há integração dos pensamentos com o afeto, que pode ter
sido causado pela insuficiência afetiva que a mãe recebeu. O afeto teria lhe
proporcionado a dependência para ter a capacidade de ser autônomo
(semelhante ao que ela proporciona ao filho). Ela parece não ter tido a
oportunidade de ser amada pelo que é, como acontece com o filho, que acaba
por se comparar com o irmão mais velho.
Há sinais de esperança, ou seja, a possibilidade de que pode resolver os
conflitos, de que ela tem recursos, mas está funcionamento com uma repressão
excessiva, o que prejudica a expressão de sua capacidade criadora.
Sessão com o pai
Fernando mostrou sinais de sentimento de solidão, a busca de se identificar com
a figura paterna. Essa carência quanto à figura paterna indica que o ambiente
não supriu a dependência dele, para que se tornasse independente. Assim, ele
recorre à fantasia de realização do desejo, não teve algo real, efetivo, então
fantasia que teve algo muito melhor, fruto de seu esforço (é o ideal de perfeição
para substituir a deficiência de afeto).
A demonstração de que não conseguiu o afeto dos pais, mas obteve algo melhor,
pode ser percebido como formação reativa. Neste ponto, pode-se notar o caráter
compensatório (ser menos e fazer mais). O conflito permanece, e, como forma
de abrandar a angústia gerada por ele, busca a elaboração do afeto pelo racional,
uma elaboração realizada de maneira metódica, organizada.
Aparece a dificuldade em alcançar a independência, em se desprender da figura
materna, agravada pela falta do pai. Para ele conseguir se vincular a outra
pessoa, a mãe tem que desaparecer (morrer), mesmo assim, a figura substituta
ainda permanece presa à original.
Dessa forma, os relacionamentos não são permeados pelo afeto, mas pela
idealização, ele precisa escolher entre a realização ou a afiliação emocional; ter
um implica em não ter o outro, denotando falta de integração somada ao
raciocínio concreto.
Essa falta de integração também acarreta a dificuldade em resolver o conflito
sexual, fazendo com que ele reprima seus impulsos sexuais e os desloque para
outros objetos. Caso haja satisfação sexual, esta deve ser punida.
171
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Considerações Finais: Psicodinamismos familiares
A dinâmica do pai, da mãe e da criança deste caso, parece ser semelhante em
alguns aspectos, especialmente no que se refere à carência de uma figura capaz
de suprir a dependência e, conseqüentemente, proporcione a capacidade de ser
independente, de ter um estilo pessoal de ser.
A angústia gerada pela deficiência afetiva faz com que eles recorram ao uso da
racionalidade, da valorização do intelectual, em detrimento dos afetos. Essa
defesa mostra-se rígida nos três, além do uso do deslocamento do afeto.
Pensando nesta característica, pode-se dizer que há a presença de um falso self,
que esconde o self verdadeiro e se expressa com falta de espontaneidade, e gera
um sentimento de futilidade e inutilidade.
A falta de integração entre afeto e razão traz prejuízos à capacidade de expressão da
criatividade, da espontaneidade. O valor dado ao intelectual faz com que a criança se
defenda através de um falso self, pois a expressão de seu self verdadeiro foi contida,
já que o ambiente não foi capaz de suprir suas necessidades afetivas e apoiar sua
expressão.
Os pais da criança apresentaram conflito em relação à sua sexualidade, devido à
identificação pouco sólida com as figuras materna e paterna, baseada no
relacionamento com os pais na infância, que permitiu a introjeção de figuras
afetivamente pobres. Essa introjeção comprometeu a relação atual deles com o
filho, denotando sinais de que eles se identificaram com os próprios pais,
repetindo a mesma dinâmica (o suprem materialmente, no plano concreto, e
deixam de lado o aspecto afetivo).
Da mesma forma, os pais parecem ‘ensinar’ para a criança que uma forma de
abrandar a carência afetiva é através da ingestão de comida, buscando algo
concreto como solução para a ansiedade gerada pela falta do afeto. Isso
acontece porque os pais não podem ensinar a elaboração do afeto, já que esta
também está comprometida neles.
Finalmente, o estudo de caso inserido na perspectiva clínica psicanalítica de
investigação mostrou-se comprovadamente significativo, atingindo seu propósito
inicial. Foi possível conhecer as características psicodinâmicas dessa família do
estudo e investigar a possível ligação entre o relacionamento afetivo de crianças
obesas e o relacionamento afetivo de seus pais, oferecendo fortes indícios de que
há uma estreita relação entre a dinâmica familiar na determinação da patologia
infantil.
Referências bibliográficas
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14, n. 3, p. 609-616. 2001.
172
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VALLES, M.S. Técnicas cualiltativas de investigacion social: Reflexion
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173
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O Psiquismo em Freud e Heidegger: Irritabilidade
(Reizbarkeit) e Abertura (Erschlossenheit)42
João Paulo F. Barreta e Zeljgo Loparick
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Resumo: De acordo com a fenomenologia as ciências pressupõem uma ontologia
(regional e formal). A psicanálise, da mesma forma, ao falar de uma certa região
de entes, o psiquismo, pressupõe uma compreensão do ser deste ente prévia.
Por outro lado, esta compreensão prévia pode ou não ser derivada “das coisas
mesmas”, o que abre a possibilidade de um erro fundamental, que incide não
sobre as descobertas factuais de uma dada ciência, mas sobre o quadro
ontológico no interior do qual aquelas são elaboradas. Este é o caso da
psicanálise freudiana segundo Heidegger. O objetivo deste trabalho é mostrar
que Freud parte de uma compreensão equivocada (naturalizada e objetificada)
do psiquismo como substância irritável [reizbar] capaz de transformar estímulos
e que a alternativa fenomenologicamente válida seria conceber o “psiquismo” à
luz do conceito heideggeriano de abertura fundamental [Erschlossenheit].
Abstract: According to phenomenology the different sciences presuppose a
(regional and formal) ontology. Psychoanalysis, in the same way, dealing with a
certain region of being, the psychological, presupposes a previous understanding
of the Being [Sein] of that being [Seiende]. On the other hand, this previous
understanding can be or cannot be taken from the “things themselves”, what
opens the possibility of a fundamental error, which is not related to the factual
discovers of a certain science, but to the ontological background from which
these (factual discovers) are elaborated. This is the case of the Freudian
psychoanalysis, according to Heidegger. The aim of this work is to show that
Freud makes a (naturalistic and objectifying) misunderstanding of the psychic as
an irritable [reizbar] substance capable of transforming stimulus and that the
alternative, phenomenological valid one would be to conceive it in terms of the
heideggeriana concept of fundamental openness [Erschlossenheit].
Introdução
Freud foi um dos pensadores que procurou desenvolver uma psicologia concebida
como ciência natural e aplicada (clínica) e Heidegger o filósofo que repôs a
Seinsfrage43 e criticou a onipresença da atitude teórica e de suas conseqüências
na cultura ocidental (justamente o esquecimento dessa questão). Acidentalmente
Heidegger veio a se deter sobre a psicanálise nos chamados Seminários de
Zollikon, e a refletir sobre seus fundamentos ontológicos. O resultado dessa
42 Este trabalho é uma versão modificada de uma parte de meu trabalho de doutorado
(2007) sob orientação do Prof. Zeljko Loparic na PUC-SP.
43 Cf. Heidegger 1927, p. 1
174
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
reflexão é uma crítica, que pode ser formulada da seguinte maneira: a
psicanálise freudiana “objetifica” o homem44.
O que permitiu essa reflexão do filósofo sobre a psicanálise foi, guardadas as
inúmeras diferenças, um tema comum: ambos formularam teses sobre aquilo
que pode ser genericamente chamado de psique – termo suficientemente vago
para englobar tanto o “aparelho psíquico” freudiano quanto o Dasein
heideggeriano. As divergências mencionadas se deveram a inúmeros fatores,
sendo dois os principais: Freud foi um cientista e um clínico, ao passo que
Heidegger, um filósofo; o primeiro se vinculava a uma tradição moderna
(empirista) e naturalista (fisiologicista), ao passo que o segundo às tradições
fenomenológica (Husserl) e hermenêutica (Dilthey) que, passando por Brentano
e Trendelenburg, tinham suas origens últimas em Aristóteles45. Isto indica que,
não obstante possuírem um tema comum, existiam enormes diferenças entre
esses autores, quer quanto ao método, ao objetivo, aos pressupostos, às tarefas,
aos problemas etc.
A conseqüência central desse pertencimento a diferentes tradições é que Freud
pretendeu desenvolver uma psicologia genética, explicativa, da psique (a partir
de sua experiência clínica com os pacientes neuróticos), ao passo que Heidegger
pretendeu desenvolver uma fenomenologia hermenêutica da existência (a
analítica do Dasein).
As críticas de Heidegger a Freud são do tipo ontológico. Isto significa que o
filósofo irá questionar o modo como a teoria psicanalítica freudiana compreende
o sentido do ser do ente estudado. Ou seja, a divergência em torno da qual
giram as criticas de Heidegger a Freud são relativas às perguntas: o que é o
psiquismo e qual é o seu modo de ser? Ou mais especificamente, são relativas às
respostas, mais ou menos implícitas, que Freud deu a essas questões centrais.
Mas isto não implica que as descobertas factuais da clínica psicanalítica sejam
falsas e que a ontologia heideggeriana teria outras teses factuais para substituir
às de Freud. Antes, o sentido geral da crítica, é de identificar o quadro ontológico
em que as descobertas factuais de Freud estão inseridas em sua teorização.
O objetivo deste trabalho é explicitar o pressuposto ontológico da psicanálise
freudiana (seu ser e seu modo de ser), o que não foi feito, nem pelo próprio
Heidegger, nem, até onde sei, por outros pesquisadores desta área da filosofia
da psicanálise46; e expor qual seria o ponto de partida fenomenologicamente
legítimo (do ponto de vista heideggeriano) para a reconstrução da psicanálise
freudiana.
O Pressuposto ontológico de Freud
44 Cf. Heidegger 1987, p. 197.
45 Cf. Heidegger 1925, § 4.
46 Um trabalho que aponta para essa mesma direção foi apresentado por Escoubas
(1992).
175
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Por pressuposto ontológico da psicanálise freudiana deve-se entender a
concepção do ser do ente psiquismo pressuposta por Freud. Para identificá-lo
apresentaremos rapidamente a teoria freudiana inicial das neuroses do período
dos anos 1890 e em seguida alguns elementos da concepção freudiana de
aparelho psíquico.
A teoria freudiana das neuroses em suas formulações iniciais do período anterior
a 1900 pode ser apresentada do seguinte modo: o sintoma neurótico é o
resultado de um processo psíquico que pode ser descrito como se dando em
algumas etapas:
1) Instalação de uma representação mental traumática (pela percepção de uma
cena traumática ou pela imaginação de uma fantasia). Traumática significa
aqui “carregada” ou “ocupada” [Besetzt] com uma grande soma de excitação
(afetos ou desejo).
2)
Frente à impossibilidade de descarga desta soma de excitação e frente à
exigência de sua descarga (pelo princípio de prazer) o resultado é a
repressão desta representação mental traumática.
3)
Com a repressão da representação mental traumática, o afeto/desejo, que
não pode ser reprimido, é deslocado (através dos vínculos associativos) para
outra representação mental (obsessão e fobia) ou para uma parte do corpo
(histeria). Esta última etapa coincidiria com o surgimento do sintoma
neurótico.
Desta teoria aqui esboçada em suas linhas fundamentais destacam-se os
seguintes pontos como essenciais para a reflexão filosófica:
a) Trata-se de uma teoria que explica os sintomas neuróticos encontrando suas
causas;
b) A explicação apresentada pressupõe três elementos chaves, além do próprio
conceito de causalidade: representação mental; afeto como quantidade de
excitação e princípio de prazer. Além desses conceitos chaves, apresenta
também certos processos “psíquicos”: a associação entre representações, o
deslocamento de afeto por elas, e o esquecimento (repressão) de
representações.
c) Por representações mentais Freud entende “imagens mentais” oriundas da
percepção. E por percepção Freud entende a incidência de estímulos físicos
(Reizen) no sistema perceptivo.
d) Por afetos Freud entende uma quantidade de excitação capaz de “ocupar”
representações mentais e se deslocar de uma para outra como se fosse uma
carga elétrica. Afeto, portanto, é o mesmo que quantidade de excitação de
uma certa representação mental.
e) Por Princípio de Prazer deve-se entender a tendência inata para a descarga
desta excitação.
176
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
É somente este princípio que permite a Freud explicar porque uma representação
mental carregada, ocupada, investida com uma grande quantidade de excitação
é traumática. Ou seja, o acúmulo de excitação “dentro” do psiquismo só pode ser
traumático porque ele tende a descarregar toda e qualquer excitação.
Não me estenderei aqui sobre a concepção de Freud a respeito da associação
mental de representações (em particular sobre o importante conceito de
representação-meta), nem sobre a sua concepção de memória ou de repressão.
Todos esses são temas clássicos e não são decisivos para a minha
argumentação.
De acordo com Freud o aparelho psíquico é um aparelho complexo. Possui mais
de um sistema. Suas partes componentes são: sistema perceptivo, mnemônico e
motor. E possui ainda uma direção: do primeiro para o último.
Por sistema perceptivo Freud entende aquele sistema que torna o aparelho capaz
de receber estímulos vindo do exterior do aparelho (do mundo externo ou do
próprio corpo); estímulos estes que serão arquivados no sistema mnemônico.
Este último sistema é um caminho intermediário entre o sistema perceptivo e o
sistema motor; isto é, trata-se de um sistema que permite dar diferentes
destinos para as excitações que adentram o aparelho. Finalmente, o sistema
motor é o sistema responsável pela descarga da excitação.
Nesta descrição do aparelho psíquico evidencia-se, novamente, a tese freudiana
de que o aparelho psíquico tende á descarga de excitações, uma vez que, nas
palavras de Freud, ele, o aparelho psíquico, deve ser concebido como possuindo
uma direção específica: da excitação do sistema perceptivo para a descarga no
sistema motor47.
Do que foi apresentado pode-se depreender o seguinte fato decisivo para este
trabalho: o aparelho psíquico é uma coisa que se relaciona com outras coisas no
mundo externo ao psiquismo (seja o mundo ou o próprio corpo). Esta relação é
do tipo de causa e efeito. Ele se relaciona por duas vias: pelo sistema perceptivo
e pelo sistema motor. No primeiro caso ele recebe estímulos no segundo ele
descarrega excitações. As excitações são o resultado da incidência de estímulos
no aparelho psíquico.
Portanto, aquilo com que o aparelho psíquico lida são estímulos (Reizen). Lida no
sentido de recebê-los e descarregá-los. Agora, a pergunta fundamental é: que
tipo de coisa recebe e descarrega estímulos? Freud é o primeiro a pensar uma
coisa que apenas recebe e descarrega estímulos? Não. Ele apenas transportou
uma tal concepção para o psiquismo.48Concepção esta que surgiu no contexto
da disputa entre vitalistas e mecanicistas em biologia. Ou seja, no contexto de
47 De onde a necessidade de se explicar a origem dos sonhos através do conceito de
regressão (tópica).
48 Também neste ponto ele não inovou. Antes dele, Broussais já havia proposto a
concepção do psiquismo como uma substância irritável. Veja-se quanto a isso
Canguilhem 1966/2007, pp. 23-4.
177
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
uma disputa entre duas maneiras distintas de se conceber o que é o ser vivo,
objeto da biologia. De um lado, os mecanicistas defendiam a tese de que os
seres vivos devem ser compreendidos como uma substância natural qualquer, de
outro, os vitalistas, que defendiam que os seres vivos devem ser concebidos
como substâncias irritáveis. Um dos últimos e mais importantes defensores
dessa concepção na Alemanha foi Johannes Müller, professor dos mais
importantes autores que influenciaram diretamente Freud.
Irritável [reizbar] é aquele organismo (ser vivo) que é afetado por estímulos
[Reiz] e não apenas por causas mecânicas, e que reage a eles, não no sentido da
reação mecânica de um corpo atingido por outro (determinada pela relação
direta entre ação e reação e entre causa e efeito), mas com uma reação
desproporcional como se visasse a “se livrar” do estímulo, primordialmente pela
fuga ou pela descarga (secundariamente por uma ação específica). Ambas as
reações (fuga e descarga) sendo concebidas como movimentos reflexos. Este
movimento permite constatar a irritabilidade e é esta (a irritabilidade) que o
torna possível. Em seu Projeto para uma Psicologia científica Freud diz:
O movimento reflexo torna-se compreensível agora como uma forma
estabelecida de efetuar essa descarga: a origem da ação fornece o motivo para o
movimento reflexo. Se retrocedermos ainda mais, poderemos, em primeira
instância, vincular o sistema nervoso, como herdeiro da irritabilidade
[Reizbarkeit] geral do protoplasma, com a superfície externa irritável [reizbar].
(Freud 1895, p. 348)
É certo que Freud apresenta esta característica em seu Projeto para uma
Psicologia Científica (1895), quando procura desenvolver uma teoria materialista
do psiquismo49, apoiada nas descobertas recentes da neurobiologia sobre o
neurônio. Deste modo, poder-se-ia argumentar que o que se caracteriza pela
irritabilidade [Reizbarkeit] não é o aparelho psíquico, ou seja, o psiquismo
psicologicamente pensado, mas o sistema nervoso, ou seja, o psiquismo
materialmente concebido. Contudo, na medida em que o esquema permanece o
mesmo, pode-se dizer que não há nenhuma alteração essencial na concepção de
190050.
De acordo com esta concepção, portanto, o aparelho psíquico teria como traço
distintivo o mesmo dos organismos vivos (desde os mais simples, os
protoplasmas). Contudo, o aparelho psíquico freudiano não é apenas capaz de
reflexo puro e simples, direto, como um tecido estimulado por uma corrente
elétrica. Isto é, além do processo mental primário há o secundário, segundo o
qual o psiquismo humano não apenas recebe e descarrega excitações, mas as
transforma, substitui, modifica (por deslocamento de excitação e associação de
representações) a ação motora. Esta última característica é fundamental para a
construção de um modelo do psiquismo capaz de explicar os fenômenos
neuróticos, uma vez que estes foram explicados por Freud como sendo
49 Cf. 1895, p. 347/ 387.
50 Ademais, pode-se dizer que Freud volta a falar da irritabilidade dos organismos da
qual se originaria o aparelho psíquico em seu texto de 1920.
178
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
justamente o resultado de uma descarga de excitação deslocada (e disfarçada)
de seu alvo original.
Deste modo o aparelho psíquico tem como sua natureza a irritabilidade, comum
a todos os organismos vivos, mas também a capacidade de transformar
energias/excitações como os aparelhos. A primeira está figurada no modelo
freudiano nos sistemas perceptivo e motor, ao passo que a segunda no sistema
mnemônico. E na medida em que este último é derivado do primeiro, o aparelho
psíquico nada mais faz do que encontrar vias mais adequadas ou “elevadas” para
a satisfação, nunca, contudo, mudando a natureza (irritável) do próprio
psiquismo51.
Este último ponto permitirá mostrar, posteriormente, que a elaboração de um
aparelho psíquico transformador de energias, só é necessária a partir da
concepção de que o psiquismo é irritável/excitável, passível apenas de receber
estímulos quantitativamente determinados e talvez mesmo mensuráveis. Ou
seja, uma concepção estreita, naturalista, de experiência como recepção de
estímulos leva necessariamente, se se quer explicar a realidade, à suposição de
um aparelho que posteriormente os sintetiza, associa, desloca etc. Uma
alternativa, como veremos, seria sofisticar a concepção de experiência,
substituindo a idéia fundamental de irritabilidade por uma outra
(fenomenológica), o que irá nos permitir dispensar a hipótese de um aparelho
psíquico, e com ela as tantas outras suposições que tiveram de ser aceitas por
Freud.
A existência na filosofia heideggeriana como abertura fundamental
[Erschlossenheit]
Como vimos em linhas gerais, Freud pressupunha que ter experiência de algo
significa fundamentalmente ser estimulado, ou dito de outro modo, a experiência
é concebida à luz do conceito de estímulo. Heidegger estava cônscio dessa
concepção de experiência em Freud. Quanto a isto, veja-se, por exemplo, a
seguinte citação dos Seminários de Zollikon, certamente endereçadas, como de
resto todo o seminário, a Freud.
Pode-se apenas perguntar se elas [as pessoas], quando vêem a lousa, têm e
percebem uma representação “mental” [mentale Vorstellung]. Quando se traz a
teoria da excitação sensorial [Sinnesreizen], deve-se perguntar, quando surge a
lousa como a lousa, que está aí, na qual eu escrevo ? A teoria do surgimento de
uma “representação” a partir de uma estimulação sensorial é uma pura
mistificação, isto é, fala-se de coisas, que não são comprovadas, que são puras
invenções, construções a partir de uma posição calculadora, teórico-causal,
explicativa em contraposição ao ente. Trata-se de uma inversão do mundo.
Quando se começa a explicar a percepção da lousa a partir de estímulos que
51 Este último ponto também é explicitamente defendido por Freud em um texto
posterior. Cf. Freud 1900, p. 629.
179
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
incidem sobre os sentidos, já se viu a lousa previamente. (Heidegger 1987, pp.
206-7).
Ou seja, a psicologia utilizada por Freud para construir sua teoria psicanalítica do
aparelho psíquico parte de uma concepção de experiência que pressupõe um
sujeito isolado do mundo, um mundo igualmente isolado do sujeito, mas que
afeta aquele como aos demais entes intramundanos, de maneira causal. Um
sujeito isolado que não se relaciona diretamente com os entes intramundanos,
apenas através de representações mentais, que surgem, elas mesmas, como
efeito da ação causal do mundo sobre mim. E que pretende explicar a origem dos
“dados da consciência” a partir de eventos fisiológicos.
Nessa concepção de experiência não se concebe o elemento decisivo da
experiência humana segundo Heidegger: a transcendência. Este elemento deve
ser descrito em sua estrutura a priori e no seu modo de ser. Essa a grande
contribuição de Heidegger para as ciências humanas na primeira parte de sua
obra (antes da virada).
Para Heidegger, por outro lado, a experiência deve ser concebida não em termos
da experiência teórica perceptiva, mas em termos da apreensão (Vernehmen) de
algo como algo. Sobre este ponto Heidegger é explicito em inúmeras passagens
de sua obra, quer em Ser e tempo (1927), quer nos Conceitos Fundamentais da
Metafísica (1929-30), quer nos Seminários de Zollikon. Neste último pode-se ler:
Vê-se sempre algo como algo. Naturalmente pode-se com isso ver algo como
algo desconhecido, estranho, não-confiável, etc., mas também aí portanto como
algo. (Heidegger 1987, p. 220-1)
A apreensão de algo como algo é também chamada por Heidegger de Sagen
(dizer)52. Ou seja, a experiência fundamental não é uma percepção sensível,
mas o dizer, ou melhor, uma experiência significativa. A condição de
possibilidade de uma tal experiência é a transcendência, isto é, o ser-no-mundo.
Por mundo deve-se entender não o conjunto de entes intramundanos, mas a
significância [Bedeutsamkeit], a partir da qual eu encontro algo como algo.
Os momentos fundamentais da abertura que é o ser-no-mundo são o
compreender [Verstehen], o encontrar-se [Befindlichkeit] e o discurso [Rede],
que são as condições de possibilidade da experiência significativa (de algo como
algo). Este é apenas o ponto de partida da analítica da existência, mas basta
para algumas considerações finais.
Considerações finais
A conclusão destas breves indicações é que a revisão da psicanálise a partir da
analítica da existência de Heidegger (1927) deve ser conduzida a partir de uma
revisão do conceito de experiência pressuposto por Freud à luz da tradição
52
Cf. Heidegger 1987, p. 19.
180
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
moderna (empirista) e naturalista (fisiológica) e sua substituição pela concepção
de experiência como “Estado de Abertura”. Uma tal revisão deve levar ao
abandono da suposição de que o psiquismo é uma substância fechada em si,
uma espécie de caixa e que o tema, o objeto a ser investigado, tratado e sobre o
qual deve-se teorizar em psicanálise são os eventos mentais, intra-psíquicos
(inconscientes). Se o ser humano é uma transcendência, não está “dentro” de si,
mas fora, habita um “mundo” compartilhado e dotado de sentido, mas também
compartilhado por outros, co-habitado.
Referências:
ANDERSSON, Ola 2000. Freud precursor de Freud. São Paulo, Casa do Psicólogo.
CANGUILHEM, G. (2007). Le normal et le pathologique (10ª Ed.). Paris: Puf.
Trabalho original publicado em 1966.
ESCOUBAS, Eliane 1992. “Analytique du Dsein et Psychanalyse”. In: La Notion
d’analyse. Actes du Colloque franco-péruvien 1991. Toulouse, Presses
Universitaires du Mirail, pp.282-294, 1992.
FREUD, Sigmund. Quelques Considérations pour une Étude Comparative des
Paralysies Motrices Organique et Histériques. 1893a. GW I.
______. Über den psychischen Mechanismus hysterischer Phänomene (Vortrag).
1893b. GW Nachtragsband.
______ . Die Abwehr-Neuropsychosen. 1894a. GW I.
______. Über die Berechtigung von der Neurasthenie einen bestimmten
Symptomenkomplex als “Angstneurose” abzutrennen. 1894b. GW I
______ . Studien über Hysterie. 1895a. GW I.
______. Entwurf einer Psychologie. 1895b. GW Nachtragsband.
______. Über die Berechtigung von der Neurasthenie einen bestimmten
Symptomenkomplex als „Angstneurose“ abzutrennen. 1895c. GW I..
______. Die Traumdeutung. 1900. GW II/III.
______. Jenseits des Lustprinzips. 1920. GW XIII.
HEIDEGGER, Martin 1994 [1925]. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs.
Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, GA 20.
_____ 1949 [1927a]. Sein und Zeit. Tübingen, Max Niemeyer.
_____ 1983 [1929/1930]. Die Grundbegriffe der Metaphysik: Welt, Endlichkeit,
Einsamkeit. Frankfurt am Main, Klostermann.
_____ 1987. Zollikoner Seminare. Frankfurt am Main, Klostermann, 2ª Edição,
1994.
181
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Pesquisa heurística e as ciências
socioambientais. Uma proposta de discussão.
Josemar de Campos Maciel
Resumo: No texto que segue é apresentada e discutida uma definição de
pesquisa heurística, e discutida a possibilidade de sua aplicação no campo das
ciências sociais. A pesquisa heurística, como proposta a partir da década de 1990
por Moustakas e Douglass, entende o processo de investigação científica como
sendo substancialmente um processo internalizado, o qual, por ter essa
característica, ao invés de resultados objetivamente relevantes, geraria
conhecimentos subjetivamente significativos para a sociedade. Além da sua
aplicação na área da pesquisa clínica, existe um esforço sendo empreendido para
aplicar o método no processo de investigação socioambiental, o que tem gerado
alguns resultados acerca da pesquisa sobre o sentimento comunitário de
pertença que podem ser postos em discussão. Assim, pode-se entrever um novo
desenho do processo de coleta de dados e de uma nova maneira de se ver o
processo de pesquisa, como amadurecimento de questões no pesquisador.
Palavras-chave:
socioambientais.
Pesquisa
fenomenológica.
Dimensão
Heurística.
Ciências
Heuristic research and the socio-environmental sciences. A discussion.
In the following text one presents and discusses a definition of heuristic research,
as well as the possibility of its deployment inn the field of the social sciences. The
heuristic research, as initially proposed in the nineties by Moustakas and
Douglass, understantd the process of scientific investigation as being
substantially an internalised process which, by its very characteristic, instead of
objectivelly relevant results, can generate subjectivelly significant knowledge to
society in general. Besides its well known application in the field of clinical
research, there is an effort being held to apply the method to the process of
socio-environmental research, generating some provisional results that touch the
feeling of belonging to groups. These results shall be discussed, providing some
elements to propose a design of the process of data gathering, as well as some
perspectives about the research process, considered from the standpoint of the
growth of the questions inside the researcher.
Keywords:
Phenomenological
environmental sciences.
research.
Heuristic
dimensions.
Socio-
... ciência é disciplina. Não podemos fazer o que queremos, mas devemos fazer o
que os fatos pedem. [ ... ] O maior mestre é aquele que se comporta como o
maior servo. Repetidas vezes sentimos, no progresso dos conhecimentos, até
que ponto somos suscetíveis de tropeçar, como é escasso nosso poder de
fazer conhecimentos e como devemos dar a nossos pensamentos tempo
para que cresçam e amadureçam. Portanto, a busca de conhecimentos, em
182
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
vez de tornar-nos orgulhosos e cheios de jactância, deve fazer-nos modestos e
humildes (KOFFKA, 1975, pág. 21).
Introdução
No tempo das revoluções nos processos de manipulação de dados o pesquisador
em geral – e eu em particular – tem(os) às vezes a impressão de atravessarmos
quarenta anos em quatro. Na verdade, o texto que o corajoso leitor vai
empreender comigo (pois é uma viagem) tem essa característica. Em 2004, sob
a orientação da Prof.a Dr.a Vera Engler Cury, defendi uma tese de doutorado
cuja valência apenas agora começo a entender. E não porque tenha escrito
grande coisa, mas porque estou começando a entender mais claramente que na
pesquisa científica os dados fornecidos por sujeitos possuem, em si mesmos,
uma configuração própria e um sentido de totalidade que não podem ser
desprezados, se o pesquisador quiser trabalhar cientificamente.
Assim, a seguir apresento brevemente o método heurístico, na proposta de Clark
Moustakas, e a partir da leitura dele que pude fazer, em 2004. Quando o
presente trabalho parecer carente de documentação, o benévolo leitor remeta-se
a esse trabalho.
Em seguida, mas simultaneamente, tento propor a importância da aplicação das
suas intuições fundamentais a um outro campo de pesquisa, o dos estudos sobre
o Desenvolvimento Local. O que pretendo expressar nas páginas que seguem
pode ser resumido em três proposições:
1ª. Existe um fator heurístico no trabalho científico, que não se restringe a um
método ou escola particular, e que coloca o pesquisador diante da
necessidade de trabalhar consigo como verdadeiro ambiente de elaboração
de significados, para poder se qualificar como tal (como pesquisador);
2ª. O campo de pesquisa do assim chamado Desenvolvimento Local, pela sua
história e pelas suas peculiaridades e exigências concretas, configura-se
como um dos possíveis (e fecundos) campos de prova da dimensão heurística
do trabalho científico;
3ª. Ainda há perspectivas a serem seguidas no sentido de individuar aplicações
do método heurístico mas, no atual estado de coisas, ele tem mostrado
fecundidade como processo de treinamento da escuta de cientistas sociais
que trabalham com a obrigação de posicionar-se em defesa ou em favor do
desenvolvimento, empoderamento ou desabrochamento de comunidades em
situações de urgência de mudança.
Estas três teses são uma tentativa de documentar um trabalho em curso de
elaboração. Mas espero ser capaz de torná-las mais claras no texto a seguir.
Obviamente, o texto está dividido em três itens, cada um dos quais
correspondendo à ampliação e discussão de uma delas.
Apresentação do método heurístico e uma proposta
183
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
1a. tese: Existe um fator heurístico no trabalho científico, que não se restringe a
um método ou escola particular, e que coloca o pesquisador diante da
necessidade de trabalhar consigo como verdadeiro ambiente de elaboração de
significados, para poder se qualificar como tal (pesquisador)
a)
Definição e fases
O método heurístico, conforme apresentado nos principais escritos de Clark
Edward Moustakas (Cf. MACIEL, 2004), é um complexo sistema de pesqusia na
área da psicologia, mas que pode se estender para outras áreas das ciências
humanas. Trata-se, em poucas palavras, de um sistema aberto, baseado na
consonância entre a experiência subjetiva de quem pesquisa e os
desdobramentos de um problema de pesquisa ao redor dessa persona. Em um
comentário inicial, podemos evocar três palavras: rigor, não neutralidade;
docilidade aos dados e, finalmente, expressividade polissêmica.
Rigor, não neutralidade
É pressuposto fundamental para o método heurístico a idéia de que o
pesquisador não pode ser imparcial, sob pena de não conseguir ver o que há a
ser visto. Trata-se de um processo que implica uma ressonância entre
experiências humanas, a fim de produzir atos de resgate do sentido dessas
experiências. Simplesmente não se lida com um tertium sobre-humano, um
critério definitivo de julgamento e de qualificação – seja ele matemático, físico ou
químico, a partir do qual o pesquisador esteja em condições de ajuizar a respeito
do que acontece no mundo plural e impressionista dos fatos.
Daí que para uma ciência de significados e de vetores de comunicação, não se
considera como válida a perspectiva da neutralidade. O que não significa, em
nenhum momento, que não possa haver pontos de encontro, de diálogo e
mesmo de fecunda e importante colaboração e respeito entre as duas
perspectivas. Isto nem sempre é claro para quem pesquisa no contexto da clínica
entendido como uma relação entre duas pessoas. Mas em momento algum se
pode perder de vista o contraponto de um sistema de trabalho tão radical na
escuta de dados pessoais, que é a existência de um sistema de vida humana,
que em larga escala se pode beneficiar, em muito, do entrecruzamento de
olhares que se torna possível se e quando os pesquisadores se interessam pela
colaboração entre si.
Docilidade aos dados
É componente fundamental de todo o trabalho de pesquisa, a partir do método
heurístico, que os dados falam por si mesmos, e que não são necessárias mais
manipulações do que aquelas impostas pela própria coisa. Entre o engajamento
inicial do pesquisador com o problema e a finalização do trabalho, existe um
momento criptográfico, que Moustakas (1990) denomina iluminação, em que
afirma literalmente que a luz acerca do sentido dos dados emerge por si, ou seja,
como se a pesquisa científica tivesse por condição fundamental uma espécie de
184
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
disciplina da escuta, que envolve um forte respeito às dinâmicas internas do que
se quer estudar.
Isso tem um motivo especial para se propor potencialmente um diálogo entre o
estudo de vivências pessoais e o de vivências comunitárias – mesmo propondo o
trabalho de pesquisa psicológico em relação macrodisciplinar com outras áreas
de pesquisa do fenômeno humano. Se se tratasse de pesquisa com dados
inanimados, puramente de espécie pré antrópica, se é que isso existe, poder-seia esperar que os dados ficassem abandonados a si mesmos, sem acabar de
juntar as suas forças e os seus diversos horizontes, em uma espécie de síntese
na mente de quem pesquisa.
Mas aqui se trata da experiência humana, pesquisada a partir da ressonância, da
escuta e da disciplinada responsorialidade constitutiva de outra experiência
humana. Nesse sentido, o dinamismo do dado é propriamente heurístico no
sentido mais próximo das matemáticas, ou seja, uma forma de inquietação
geradora de novos conhecimentos. Na proposição de Puchkin (1969, pág. 8),
“ ... o processo psíquico que, ao auxiliar sua solução, elabora uma nova
estratégia que se mostra como algo inédito, é designado como pensamento
criador ou, para usarmos terminologia que nos vem de Arquimedes, Atividade
heurística. [ ... ] Pode ser designada pelo nome de Heurística a ciência que
estuda as constantes do pensamento criador. Seus objetivos não se reduzem
apenas às pesquisas das constantes do pensamento criador, mas compreendem
também a elaboração de métodos e modos de direção dos processos
heurísticos”.
Puchkin, no seu clássico texto, olha para o trabalho da criatividade humana como
sendo inserido no contexto das atividades de expansão dos domínios da ciência e
da tecnologia (cf. PUCHKIN, 1969, P. 176 - 181); no entanto, não se trata
apenas de utilizar o potencial criativo dos seres humanos para o desenvolvimento
do conhecimento sobre ele próprio e sobre a natureza.
Aponta-se aqui para uma revisão da idéia mesma de ciência, que passa a ser
vista como um diálogo em grande escala, entre várias dimensões da atividade
humana. É interessante notar, por exemplo, que Moustakas jamais distingue a
atividade científica como trabalho ou como ócio, mas cria como que uma zona
metafórica em que afirma repetidas vezes que se trata, por exemplo, de uma
dança com os dados, com o real, com o outro, à moda da linguagem
bachelardiana. Ou no estilo do trabalho tradicional de Winnicott, com a sua
psicanálise materna e infantil, no melhor dos sentidos – facilitadora de um
crescimento simbólico, a partir de um contexto facilitador. Não há tempo nem
espaço num trabalho como este, mas é importante a metáfora da maternagem
winnicottiana para se entender o processo de amadurecimento de conhecimentos
no interior de um pesquisador. Fica anotado para outras ocasiões.
Expressividade polissêmica
185
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Enfim, para apresentar brevemente a pesquisa heurística, em sua diferença,
cumpre ressaltar que ela nasce, no modelo, visando um benefício social. Para
Moustakas, desde a primeira apresentação de seu trabalho, talvez por motivo de
seu background envolver o trabalho de ludoterapia, é resultado fundamental de
todo trabalho de pesquisa heurística uma forma qualquer de expressão.
Sobretudo se ela for artística. Em síntese, pode-se apresentar o trabalho com o
método como tendo as seguintes etapas, cada uma com um significado
específico, mas desabrochando em uma lógica muito clara, que pede um
momento de expressão:
Engajamento inicial – em que o pesquisador descobre um foco de
interesse. No início da pesquisa heurística o pesquisador introduz em sua
vida, como num relacionamento pessoal, aquilo que deseja estudar.
Imersão – em que o pesquisador direciona todos os aspectos possíveis da
sua existência a relações diretas ou indiretas com aquele fenômeno que
pretende entender. Este momento evoca fortemente o estilo de pesquisa
etnográfica, de sabor antropológico, pois trata-se, nos termos de Moustakas,
de “conviver com os dados” (MOUSTAKAS, 1990, p. 28).
Incubação – Passado o momento inicial de apaixonamento com o tema
pesquisado, o pesquisador convive com ele até à saturação. Neste ponto,
saturado de seus dados, deve deixar que eles fecundem a sua mente, que os
problemas se arranjem por si mesmos.
Iluminação – Os dados se encontram a si mesmos e surgem,
espontaneamente, em um arranjo lógico, na mente do pesquisador. Ele deve,
enquanto isso não acontece, manter uma postura básica de acolhida dos
insights, mas não deve forçar uma conclusão, enquanto ela não acontece.
Outra correspondência, a este ponto, é com os estudos incipientes sobre o
fenômeno da serendipidade (serendipity), em vários campos.
Explicação – Uma vez encontrada uma solução ao problema proposto, o
pesquisador expressa por escrito as linhas dessa solução, tentando utilizar
referências que tenham sido lidas em fases anteriores com o objetivo de
esclarecer as questões, mas a partir do delineamento provido pelos dados da
pesquisa.
Síntese criativa – A última fase do trabalho heurístico, no contexto inicial de
Moustakas, significa basicamente a tradução do trabalho e de seus frutos
através de uma espécie de Sirtaki acadêmico. O Sirtaki é uma das muitas
danças de família comuns na Grécia tradicional, na qual todos os presentes
se abraçam e dançam ao som de músicas simples, embelezadas por solos
virtuosísticos de Bouzouki, o bandolim grego, e outros instrumentos. Da
mesma forma que essa dança simbólica (é nesse momento que ocorre a
conhecida quebra dos pratos) resume e ressignifica o todo da festa, o
momento da síntese criativa num trabalho acadêmico é um momento que
deve espelhar a comunhão, a solução trazida pelo conhecimento novo, em
suma, um momento em que a ciência resvala para o campo da celebração
sem, no entanto, romper a tensão.
186
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
b)
Limites
Devereux (1967, xiii), anota que demorou para escrever sobre a relação de
transferência do trabalho científico porque ele mesmo não estava muito
preparado para seus próprios insights. Nem eu, em 2004, tinha condições de
perceber a gama imensa de literatura que deveria ter coberto para ter condições
de falar que um método podia ser revolucionário como desconstrutor de uma
forma de racionalidade científica. Também não sabia da importância da relação
entre Michael Polanyi (químico e filósofo) e Karl Polanyi (economista e filósofo),
nem muito menos da idéia de alguns teóricos da administração de aplicar o
pensamento de Michael às teorias emergentes (na década de 1990) sobre a
economia do conhecimento.
Quando tomei conhecimento do trabalho de Nonaka e Takeuchi (1995), comecei
a perceber como havia, naqueles alfarrábios que o químico cristão rabiscara na
década de 1960, um potencial revolucionário que podia ter sido ou estar sendo
ou correr o risco de ser desvirtuado. Os dois administradores japoneses
acabaram coisificando a noção de “tácito”, como se se tratasse de um tipo de
conhecimento – ou seja, quando se afirma, hoje em dia, que existe um
conhecimento tácito e outro conhecimento codificado (como em ALBAGLI e
LASTRES, 1999), o que se está fazendo é confundir conhecimento com
informação. Nos textos de Michael Polanyi ele fala, sempre, com clareza e
constância, de uma dimensão tácita do conhecimento. Isso chega a ser título de
um dos seus livros (1967). Mas então... apontando o dedo para os japoneses
percebi que eu também estava com esse pecado na consciência.
A grande questão, levantada por Polanyi, mas que não lhe pertence, é a do
amadurecimento dos dados na consciência histórica de quem pesquisa, ou seja,
a questão de se lidar sempre com uma sobra cultural para que dimensões
possíveis, virtualidades, devidas à fecundidade natural da relação entre os dados
e a mente humana criativa, possam emergir. O método heurístico não pertence à
psicologia humanista. E nem mesmo à psicologia.
Pode-se falar em método heurístico e em Clark Moustakas, é verdade, e pode-se
atribuir ao movimento da psicologia humanista a paternidade dessa idéia. Mas
pagando-se o preço de ter que provocar aqui uma discussão entre escolas, que
em última análise pode perder de vista o bem social que estas idéias podem
trazer. Porque entrementes, se em 1962 e 1967, por exemplo, Polanyi, uma das
mais importantes leituras de Moustakas, escrevia sobre a dimensão tácita do
conhecimento, esclarecendo que mesmo a ciência mais pretensamente precisa
necessita de mediações, Georges Devereux (1967) escrevia um clássico que iria
ser reivindicado por pensadores de extração psicanalítica, discutindo a dificuldade
de estudiosos das ciências do comportamento de lidar com sentimentos e
emoções. Sob a rubrica da transferência, na verdade, a psicanálise já vinha,
desde Ferenczy, frequentemente elogiado por Freud, trabalhando a mesma
questão.
É claro que não se trata de afirmar hegelianamente que aqui se tem um sistema
acontecendo debaixo dos meus olhos aterrados. Mas de constatar o que pode ser
187
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
um avanço, no sentido de entender o significado da idéia original – a de buscar o
sentido para a pesquisa psicológica daquela “invenção” de Moustakas. Na
verdade, o que ele individua, como bom grego, improvisando a sua dança, é
também uma dimensão da experiência humana em geral, que pode ser mais útil
se estudada, entendida e assimilada ao longo da formação de qualquer
pesquisador, da área das investigações (ciências?) socioambientais.
A idéia é que, ao que parece, o pesquisador ganha muito, qualifica-se mais
enquanto estudioso quanto presta – aprende a prestar atenção – a si e a
processos humanos que têm relação com seus próprios interesses, angústias,
sentimentos e emoções. Isto não pertence a uma escola psicológica, psiquiátrica,
filosófica, de pensamento genérico, que seja. Pertence ao patrimônio comum da
comunidade de pesquisadores que está interessada na própria sobrevivência com
um mínimo de qualidade humana.
O Desenvolvimento Local, uma área difícil de se pesquisar mas
emergente com grandes possibilidades e por que
2a. tese: O campo de pesquisa do assim chamado Desenvolvimento Local, pela
sua história e pelas suas peculiaridades e exigências concretas, configura-se
como um possível (e fecundo) campo de prova da dimensão heurística do
trabalho científico.
c)
Introduzindo o desenvolvimento Local para quem não é “da área”
Fui arremessado no campo da pesquisa em Desenvolvimento Local a partir de
2006 e, a partir daí, tenho tomado contato com uma área tão fascinante quanto
desafiadora de estudos, que envolve um amplo diálogo entre tudo o que se pode
estudar, atualmente, a resposta a problemas concretíssimos e urgentes, e a
necessidade de se repropor a questão ético-política na relação entre a academia
e a sociedade. Ou seja, uma área fascinante, meio ideal para a fermentação de
um trabalho heurístico puro-sangue, sem nem mesmo perceber. De que se trata?
Qualquer estudioso de economia conhece as teorias do desenvolvimento
econômico. Qualquer acadêmico de graduação em ciências sociais sabe o que é a
sociologia do desenvolvimento. Mas nem todos percebem duas grandes
questões.
Primeira delas: A origem da questão do desenvolvimento no Ocidente em larga
escala se deve à falência de modelos monetaristas e de políticas colonialistas. Ao
longo da história do ocidente cristão, pós-cristão, democrático, tecnológico e
cientificista, aconteceu uma sobrecarga em vários sistemas socias de larga
escala, a partir da descoberta liberal do dinheiro. A lógica simples do final do
século XIX, que gerou as grandes linhas de produção, era mais ou menos
expressa
nas
afirmações
seguintes:
Dinheiro
produz
possivelmente
enriquecimento; enriquecimento produz segurança. Com isso, a narrativa estava
posta para se calcular a prosperidade de um país a partir daquilo que seus
cidadãos produzem em dinheiro soante (PIB), ou consomem, sem comprometer
a receita do país (endividamento).
188
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O que aconteceu historicamente foi, primeiro, a polarização do mundo em dois
grandes blocos. De um lado, o urso; do outro, a águia, disputavam a hegemonia
e o controle da riqueza produzida no planeta. O urso adoeceu e morreu de
causas não muito desconhecidas. Com isso, pensou-se, por volta de 1989, que a
águia fosse resolver os problemas do planeta, mas começaram a acentuar-se
desigualdades, exclusões, e o reino da águia foi abalado em 2000, quando
profetas esfarrapados explodiram duas pequenas torres. Até aqui todo mundo
conhece a história (de dentro da toca da águia uma excelente referência para
entender estas narrativas, para quem precisar, são os escritos políticos de Noam
CHOMSKI).
Mas isso tem deflagrado, aos poucos, a segunda grande questão: O impacto da
pergunta pelo desenvolvimento se dá, não apenas em larga escala, mas em
todas as escalas, e em todos os sentidos. Ou seja, em tempos nos quais havia
maior abundância de recursos, o desenvolvimento podia ser procurado ao redor
de uma narrativa que adiava para longos períodos de outros tempos problemas
que vieram se acentuando: quem é realmente europeu, se a Europa anda sendo
visitada cada vez mais por multidões de cidadãos de ex-colônias que, de tão
pobres, não conseguem mais sustentá-los? O que é o trabalho, uma vez que a
técnica anda tão aperfeiçoada que campos inteiros de produção podem se
mudar de um país para outro em questão de dias? O que é o dinheiro, depois
que o mercado americano mostrou para todos o que significam títulos podres
comercializados com a anuência dos poderes que regem – a águia?
Em outras palavras, um pouco mais sérias, a pesquisa na área do
Desenvolvimento Local se pergunta pela importância, relevância, ou pela entrada
em campo do local, no seio ou no horizonte de grandes macropolíticas de
desenvolvimento, pensadas em escala muito ampla, como por exemplo, por um
BID, PNUD, ONU, UNICEF, e assim por diante. E o pesquisador na área do
Desenvolvimento Local investiga sobretudo como fazer para que quem foi
excluído da possibilidade de ter acesso a bens e serviços básicos que tornam a
vida humana minimamente confortável, possam ter accesso a eles do ponto de
vista estrutural, institucional – e sobretudo (aqui entrando a grande questão que
me ocupa neste texto) comunitário (BOUTROS-GALI, 1995).
d)
O problema da pesquisa na área do Desenvolvimento Local – e por
que ela pode impactar tanto a pesquisa em geral
Em outras palavras, o que foi dito até agora é que os pesquisadores do
Desenvolvimento Local procuram entender lógicas alternativas possíveis, para
dinamizar políticas e práticas de desenvolvimento, beneficiando populações que
andam excluídas do processo. Os estudos cobrem o campo das ciências sociais,
enquanto procuram entender dinâmicas comunitárias e mesmo mais amplas,
coletivas, macrossociais; e das ciências ambientais, pois tentam trabalhar a partir
das perspectivas da preservação para o desenvolvimento não torrar todos os
recursos, e da sustentabilidade, para que o desenvolvimento em geral seja autoreprodutivo.
189
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
É claro que a este momento o leitor vai estar se perguntando como é que se
define “Desenvolvimento” neste misterioso campo de pesquisas, afinal de contas.
Aqui há uma boa discussão, e eu apenas remeto a ela. Mas definamos,
provisoriamente, desenvolvimento como sendo o desabrochamento sustentado e
a exploração racional dos recursos internos a uma região, território ou
comunidade (definição minha, a partir da literatura comum entre os especialistas
da América Latina, como por exemplo, já citados, BOISIER, 2005 e também
ELIZALDE, 2000). E aqui nasce o problema no qual a pesquisa heurística tem
muito a dizer. Muito se tem estudado acerca da segunda parte desta minha
pobre definição. Isto é, muito se tem estudado acerca do que signifique racional,
sustentável, do que signifique comunidade, e perspectivas de inserção no
mercado.
Mas há um ponto cego que anda sendo individuado por alguns especialistas neste
campo. Ele responde justamente pela primeira parte da definição acima
oferecida. Como acontece o desabrochamento de uma série de recursos de uma
comunidade, se ela está em uma das situações abaixo:
Primeiro: Se se trata de uma comunidade que não tem mais uma língua, uma
cultura ou uma série de outros elementos de referência, e que por isso
deverá assimilar padrões estranhos ao seu próprio sistema de ver e de
pensar;
Segundo: Se é uma comunidade que simplesmente resiste, sem ter mais
tanta consciência das próprias forças em sentido humano – ou seja, uma
comunidade sem grande sentido gregário, desconfiada de lideranças,
amedrontada com a polícia, ressabiada com a política institucional;
Terceiro: Se é simplesmente uma comunidade desunida, como tantas, cheia
de pequenas divisões internas, espelhando a grande sociedade.
O que tem acontecido e que mostra um problema de grandes proporções, é a
falta de sustentabilidade comunitária que capacite grandes grupos humanos a se
tornarem auto-suficientes no sentido de produzirem as suas próprias referências
e condições de vida, a partir de uma série de projetos de fomento e de apoio,
tornando-se autônomos em seu modo de pensar e agir, e independentes em
seus sistemas de subsistência ou em suas pequenas redes de economia. Em
termos simples: existem recursos, e existem grandes idéias de implementação
de ações para a aplicação de recursos, para o desenvolvimento e melhorias de
vida de comunidades e cidades Brasil afora. Mas faltam critérios, estudos e
elementos que ajudem a pensar a relação entre esses recursos e a sua
sustentabilidade.
O enraizamento dos recursos, a conversão de recursos exógenos em matrizes
geradoras internas, ainda está longe de ter uma resposta fácil para os estudos na
área do Desenvolvimento Local. Ainda, resumindo mais: o lugar e os estilos do
local, ainda precisam ficar mais claros, e precisam transformar-se em políticas e
práticas de fomento, ou continuaremos perdendo muitos recursos materiais e
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
grandes potenciais humanos em políticas assistencialistas que apenas postergam
a falência de uma região atrás da outra.
É neste sentido que aparece como sendo muito fecundo o desenvolvimento e a
aplicação do método heurístico, não mais como apenas um método de pesquisa
psicológica, mas como uma dimensão de um outro tipo de pesquisa de larga
escala, não mais solitária, mas comunitária, visando também a experiências
comunitárias, e não mais apenas pessoais. Ou seja,
O que era método se torna dimensão;
O que era pessoal (Subjetivo), torna-se intersubjetivo de fato;
O que era experiência individual e mediação interpessoal torna-se
experiência individual mas mediação coletiva.
Como isso tudo se aplica, e como se desenvolve? O tempo ainda poderá dizer
com mais clareza. Mas a seguir tentarei avançar algumas linhas explorando
possíveis perspectivas. A idéia central é a de mostrar que, na verdade, a
pesquisa na área do desenvolvimento inclusivo envolve um aprendizado na
negociação com realidades humanas intangíveis e inefáveis, ou seja, das quais
não se pode dispor, nem no sentido moral (iussivo), nem no sentido econômico.
O que equivale a dizer que outras pessoas não podem ser estudadas apenas
como potencial de obediência (disciplinas sociais) ou de mão de obra (capital
social).
Perspectivas possíveis e ilustrações
3a. tese: Ainda há perspectivas a serem seguidas no sentido de individuar
aplicações do método heurístico mas, no atual estado de coisas, ele tem
mostrado fecundidade como processo de treinamento da escuta de cientistas
sociais que trabalham com a obrigação de posicionar-se em defesa ou em favor
do desenvolvimento, empoderamento ou desabrochamento de comunidades em
necessidade.
Nos limites de um breve ensaio que é quase um memorial, ao sabor de uma
iluminação típica dos (felizmente poucos) pensadores praticantes do método
heurístico, sou capaz apenas de acenar para algumas perspectivas do uso de
seus insights no campo das pesquisas sobre Desenvolvimento Local (nos confins
das ciências socioambientais) para, conclusivamente, resumir o trabalho em suas
palavras e sentidos mais importantes.
Psicologia ambiental... heurística
A generosidade de um estudante que concluía seu curso se psicologia conduziume à minha primeira aplicação do método, e de forma audaciosa, num curso de
graduação. O campo escolhido foi o da psicologia ambiental, mas estudando a
percepção do ambiente sob o recorte específico de representações, gestos e
191
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
iniciativas de sensibilidade. Disso saiu o título do trabalho: “o ambiente que sou
eu”, significando a proposição segundo a qual é impossível estudar-se
adequadamente o ambiente, impactos e questões de degradação ambiental, bem
como da sustentabilidade, sem uma passagem pessoal em algum momento, por
parte do pesquisador (CHAPARRO, 2007). Ou seja, se o ambiente não é sentido
em primeira pessoa, o resultado de uma pesquisa sobre o ambiente que deseja
gerar mudanças de atitude pode ficar um pouco mais pobre. No caso dessa
pesquisa, ffoi utilizada abundantemente a criatividade do estudante, que criou
uma instalação, utilizou-se de fotografias de uma lixeira e de um gato atropelado
para estudar, um pouco de forma antropológico-inserciva, alguns recortes da
experiência da invisibilidade da questão ambiental.
Um primeiro comentário que é preciso fazer, a este ponto, é que a sensibilidade
artística é um elemento profundamente facilitador de todo o processo de
elaboração da enorme gama de dados que aparecem, na medida em que o
proceso de imersão no problema vai acontecendo. O estudante possuía um
amplo domínio de técnicas expressivas, do desenho à dança, e ainda se deleitava
com leituras literárias, passando a sentir a necessidade de escrever contos para
expressar de forma ainda mais plástica a sua indignação com a indiferença que ia
notando nas pessoas em geral à questão ambiental. Neste sentido, ainda, um
elemento da expressão artística, mencionado na gênese do método heurístico,
parece começar a fazer um pouco mais de sentido.
A expressão artística de um conteúdo que pertence, de primeiro direito, ao
campo da ciência, no caso à ciência em uma forma descritiva e empírica, recria
uma zona de polissemia e, de certa forma, repropõe aos consumidores da arte –
ou do produto artístico resultante de um trabalho de pesquisa – a questão que já
se encontra pelo menos refletida no trabalho mais sistemático. Com isso, o
diálogo entre a academia e a sociedade nasce já dentro do trabalho de
investigação científica. De fato, além da apresentação da monografia e da sua
breve pulverização em eventos, ela transformou-se em algumas instalações,
gerando curiosidade, críticas e redimensionamentos do trabalho, quase que
imediatamente. Assim, parece que a elaboração Interna do pesquisador, no
interior de um projeto de pesquisa, conduz a um repensamento do papel de
quem investiga como estando já dentro da realidade social e em círculo com ela,
rejeitando modelos prontos, e forçando a um movimento produtivo que é
extremamente fecundo.
Um laboratório de imaginação qualitativa
Uma segunda iniciativa, que se encontra ainda em processo de gestação, no seio
do campo de estudos acima relatado, é a tentativa de estender o uso da
linguagem artística para o campo da elaboração interna do pesquisador. Ao
mesmo tempo em que foi notado que o trabalho interno, sugerido pela pesquisa
heurística, era muito rico, foi também percebido que o caso em questão era
muito raro de se repetir, ou seja, alguém provido de grande talento no sentido
da facilitação da própria expressividade. Daí que surge a iniciativa de se trabalhar
com um laboratório de crítica de material artístico, no qual se fomenta a
experiência da imaginação.
192
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Na literatura acerca da pesquisa qualitativa vários autores enfatizam uma função
desse(s) modelo(s) de investigação, como sendo o de aprofundar significados, ou
descrever criteriosamente a natureza de uma experiência humana (MINAYO,
1996). Esse tipo de pesquisa é extremamente importante na área das pesquisas
sobre o Desenvolvimento local, pois responde a conteúdos que dão conta de
processos profundos de enraizamento da cultura, no interior de comunidades
carentes, tradicionais, abaladas, cultural ou etnicamente diferenciadas. Mas por
outro lado, o estudante médio que se apresenta para dedicar-se a pesquisar essa
delicada área de mediação entre o social e a exclusão, muitas vezes não possui
treinamento acerca do material imaginativo básico que gerou a pesquisa
qualitativa, historicamente. Uma ilustração pode servir aqui.
Pense-se à situação de um professor que vai ministrar uma aula de ética a
respeito de um conteúdo como, por exemplo, o das paixões, da problemática da
vontade e de seus rigores, e dá como exemplo uma história sobre o traje preto
do homem-aranha, o filme recente com o material da ficção dos estúdios Marvel.
Acontece que o grupo de pessoas é uma classe de estudantes de referenciais
muito diferentes (trabalhadores em um matadouro), e o exemplo não é
compreendido. A aula fracassa, por falta justamente de correspondência de
categorias de imaginação.
Daí que uma experiência possível, que vem sendo praticada com certa
periodicidade há um semestre e começa a trazer seus primeiros frutos, é um
laboratório em que, posicionado como espectador de filmes brasileiros mais ou
menos famosos, de grandes bilheterias, ou seja, sem muita dificuldade para o
consumo e para o envolvimento estético, o estudante é desafiado a imaginar
uma leitura. Existe um sentimento lúdico comum, o de assistir a bons filmes, mas
também a prática de expressar-se acerca do que está sendo visto e da sua
conexão com teorias e opiniões que os outros estudantes vão evocando, ao longo
do debate, que dura mais ou menos uma hora e meia, a cada reunião.
É importante ressaltar que o relato acima não tem o objetivo de canonizar uma
forma de preparar o estudante em geral para o trabalho com o método
heurístico. Pode até funcionar dessa maneira. Mas em primeiro lugar o ganho de
pessoas não adestradas em crítica cinematográfica por participar de longas
sessões de discussão acerca da relação entre filmes, teorias e perspectivas de
visão dos mesmos filmes, é recuperar a credibilidade de estratégias que
contemplam o uso da imaginação no seio de uma comunidade acadêmica
fortemente marcada pela busca de intervenções pontuais e precisas, para o bem
de grupos necesitados, carentes e urgentes.
Alguns corolários
Em uma palavra, neste breve trabalho apresentei em suas grandes linhas o
método heurístico, tentando argumentar que, no trabalho das ciências sociais,
sobretudo no campo das pesquisas sobre desenvolvimento local, ele pode vir a
se tornar um fecundo instrumental para treinar o olhar do pesquisador,
facilitando a observação de experiências pessoais e de sua conjunção com as
193
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
grandes questões que afetam esse campo de pesquisas, como seja, o da
mudança comunitária e o enraizamento de práticas.
Assim, a partir da perspectiva aberta a partir dos estudos que possuem uma
dimensão heurística, podemos afirmar que há pelo menos quatro pontos, nos
quais convém investir alguma energia:
A criatividade – que é o motor básico do processo de descoberta. Se a ciência
é baseada na composição de novos conhecimentos, em um modelo de ciência
que visa ao relacionamento direto com pessoas e com suas vivências, estes
se devem necessariamente ancorar no processo mental da criação, que é o
mesmo na arte, na ciência e na religião, com diferenças de disciplina e de
objetos.
A elaboração pessoal – que é o motor das condições de possibilidade do
processo de descoberta. Um insight não pode ser apressado. Nisto todas as
abordagens da clínica psíquica concordam, cada uma à sua maneira. Um
insight forçado permanece exógeno à pessoa que busca ajuda terapêutica e,
assim sendo, não tem força para se transformar em prática, para enraizar-se
em hábitos, em mores.
A imaginação qualitativa – que responde, metodologicamente, pela qualidade
fundamental que é necessária ao pesquisador que trabalha pelo menos com o
conteúdo da experiência heurística. Para pensar em novos conhecimentos é
necessário criar. Mas antes de criar é importante brincar com os significados,
negociar um espaço lúdico na imaginação no qual as palavras, os
significados, os horizontes dos problemas e seus referentes possam dançar
livremente, mesmo que por poucos momentos.
194
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Referências
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Chicago: University of Chicago Press.
POLANYI, M. (1967) The Tacit Dimension. New York: Anchor Books.
195
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Ensaio sobre a construção: da fenomenologia a
construção social
Juares Soares Costa(1)
Vera Engler Cury(2)
Resumo
Neste Ensaio buscamos uma reflexão sobre o processo de mudança
epistemológica fundamental para vários campos das Ciências humanas, entre
estes a Psicologia: o mundo e seus significados entendidos como uma
construção! Ao apresentarmos o campo da Terapia Sistêmica de Família e
Casal, procuramos explicitar suas
bases epistemológicas,
e também
perguntamos por
influencias vindas da Fenomenologia. Apresentamos um
resumo das teorias Construtivistas e Construcionistas Sociais, que influenciaram
de modo significativo esta prática terapêutica.
E também apontamos
aproximações entre estas teorias e a Fenomenologia de Husserl.
Palavras-chave: psicologia; terapia; família; fenomenologia; construtivismo;
construcionismo-social.
Abstract
In this Essay, we reflect about a basic process of epistemological change: the
world understood as a construction. This change is specially fundamental for
the Human Sciences,
that includes the Psycology . We try to clear the
epistemological basis of the Sistemic Family Therapy, and ask about influences
coming from the Phenomenology. We present a summary about the
Constructivism and the Social Construcionism, that represented a great influence
for this therapeutic practice. And look for relations between these theories and
Husserl’s ideas.
Key-words: psychology; therapy; family; phenomenology; constructivism;
social-constructionism.
1. Doutorando do Programa de Pós Graduação em Psicologia, PUC - Campinas, bolsista
CAPES, médico psiquiatra, terapeuta de família. [email protected]
2. Docente do Programa de Pós Graduação em Psicologia,PUC-Campinas, psicóloga
clínica, psicoterapeuta. [email protected]
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Introdução
A Terapia de Família é uma prática que vem sendo desenvolvida por profissionais
de diferentes formações teóricas, desde a primeira metade do século XX.
Moreno, o criador do Psicodrama já atendia famílias por volta da década de 30.
Nos anos 50 especialmente nos Estados Unidos, encontramos vários exemplos
de aplicação da teoria psicanalítica na busca de compreensão dos vínculos
familiares. Salvador Minuchin, um dos pioneiros da Terapia Sistêmica de Família,
começou trabalhando com crianças órfãs, em Israel, logo após a fundação do
estado judeu, em 1948. Posteriormente estudou Psicanálise nos Estados Unidos,
e começou a trabalhar com jovens delinqüentes oriundos da comunidade portoriquenha. Não demorou muito para incluir a família em seus atendimentos
(Minuchin, 1995).Mas quase todos estes trabalhos pioneiros sentiam falta de
uma linguagem adequada, que pudesse dar conta das relações interpessoais e
da comunicação. Em suma, do modo de funcionamento dos grupos humanos,
entre eles a família .
A partir das demandas sociais crescentes após o final da Segunda Guerra
Mundial, houve, nos Estados Unidos, uma grande inversão de recursos em
pesquisas sobre a comunicação, na busca de compreensão dos mecanismos
reguladores dos grupos. A Cibernética surgiu neste contexto. Foi criada no final
dos anos 40, e definida como a ciência do controle e da comunicação nos seres
vivos e nas máquinas. Contribuiu para a Terapia de Família, especialmente com
os conceitos de feed - back , homeostase e auto-regulação. Juntamente com a
Teoria Geral dos Sistemas de Von Bertallanfy, tornou-se um referencial teórico
básico para este novo campo . Mas foi um antropólogo e biólogo, chamado
Gregory Bateson , quem semeou as bases do que mais tarde seria conhecido
como Terapia Sistêmica de Família e Casal .
Em 1952 , Bateson e equipe iniciaram um projeto de pesquisa sobre a
comunicação entre seres vivos, trabalhando inicialmente com animais. Mais tarde
passaram a estudar a comunicação entre pacientes esquizofrênicos e suas
equipes terapêuticas; e entre os pacientes e seus familiares . Esta pesquisa
acabou resultando em uma Teoria , a primeira teoria sobre a gênese da
esquizofrenia que não era genética ou intrapsíquica . Trata - se da Teoria do
Duplo–Vínculo, que relaciona as doenças mentais com um padrão familiar de
comunicação repetitivo, que contém ordens contraditórias, em diferentes níveis
lógicos, e que junto com a dificuldade que o paciente tem para abandonar o
campo relacional com a família, seria uma das causas dos sintomas psicóticos.
A partir destes estudos pioneiros, que utilizavam a metáfora da máquina autoreguladora , as noções de feed- back e de controle, e as teorias sobre a
comunicação humana, começaram a surgir as primeiras escolas de Terapia
Familiar de base interacional. Estes trabalhos pioneiros, do final da década de 50,
anos 60 e início da década de 70, tinham em comum , além das raízes teóricas ,
a posição do terapeuta. Este era visto como um observador externo ao sistema
, com a tarefa principal de detectar padrões disfuncionais na família, e de
prescrever mudanças nas sequencias interacionais e / ou nos padrões
hierárquicos e de organização das famílias(Wittezaele e Garcia,1994).
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Os conceitos-chave para as terapias deste período foram : o questionamento dos
modelos causais lineares e deterministas; a família vista como se fosse sistema
cibernético, onde o sintoma faria parte dos mecanismos de equilíbrio
(homeostase ) e a transferência da patologia do indivíduo para a família .
Ao mesmo tempo em que abriu novas possibilidades de atuação terapêutica, a
Terapia de Família dos anos 60 e 70 trouxe questionamentos e insatisfações .
Até onde um terapeuta tem direito de intervir em um sistema familiar, trazendo
um enfoque pré- estabelecido, a partir de seus conceitos (ou pré-conceitos),
sobre como deveria ser uma família? O que é uma família normal?
Estes questionamentos vieram a reboque da crise do Pensamento Moderno. De
forma simplificada podemos descreve-lo como uma forma de ver o mundo que se
apóia no tripé da Objetividade, da Simplicidade e da Estabilidade e também na
crença no poder ilimitado da ciência e da tecnologia para a redenção de nosso
mundo. As guerras, a pobreza , a ameaça de destruição do planeta em uma
hecatombe atômica , o desequilíbrio ecológico, tudo isto colocou em cheque a
certeza modernista. Para muitos, estas idéias e temas são agrupados sob a égide
do Pós-Modernismo.
A Terapia Sistêmica de Família mudou, junto com o mundo que já não é mais o
mesmo. As idéias pós-modernas,
com aportes filosóficos abordando
as
questões da linguagem, as teorias sobre a construção conjunta de significado, as
contribuições da nova física e os novos conhecimentos sobre o funcionamento do
cérebro e da mente, formaram um pano de fundo para o surgimento de novas
escolas de Terapia Família.
Sem abandonar completamente os pressupostos anteriores, estas novas escolas
passaram a explorar as narrativas dos diversos membros de uma família, em
busca de novas descrições para os problemas familiares, e de mais recursos
para o funcionamento da família, sempre se perguntando sobre o que seria
adequado em cada contexto sócio-cultural . O Terapeuta deixa de ser um
observador externo, um expert em detectar problemas, para se transformar em
um articulador , um mediador de conversações , preocupado em conhecer como
esta família se organiza e opera, e nos significados compartilhados por seus
membros.
Estes são os pressupostos fundamentais para a prática clínica com famílias e
casais, a partir dos anos 80-90: A conversação como resumo central da terapia;
a família vista como um sistema social flexível, composto por pessoas que
compartilham significados; a terapia entendida como a construção de um
contexto para recriação colaborativa de significados, que permitam à família
mudar as versões de história de vidas saturadas de problemas e déficits;
geração e recuperação de narrativas alternativas, que possam ser vivenciadas
como libertadoras e transformadoras. E o terapeuta e o cliente como co-autores
de um trabalho, sem a ilusão de uma única verdade conhecida apenas pelo
terapeuta.
198
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Temos aqui uma grande uma mudança. De uma visão de um trabalho com
famílias baseado na metáfora dos Sistemas Cibernéticos, definidos por papéis e
estruturas pré-estabelecidos, para um trabalho baseado em um conceito mais
amplo de Sistemas contextuais e produtos de uma comunicação social. Estes
sistemas seriam formados por indivíduos vivendo em uma relação mediada
através da linguagem, em um processo colaborativo, produzindo e
compartilhando significados. O Sistema terapêutico a ser atendido não se resume
apenas aos membros de uma família, definidos por laços de parentesco. Surge a
noção do Sistema definido a partir dos significados compartilhados pelas pessoas,
ou seja, a partir do que é considerado problema por um determinado grupo,
independentemente de laços de sangue.
Não mais se busca um problema em um Sistema (comunicação, interação,
estruturas, etc...), mas um Sistema que é formado a partir do problema
compartilhado pelas pessoas. Estas mudanças foram conseqüência
das
influencias das teorias pós-modernas. Grandesso (2000,pg 56, e 101) nos diz
que “o pensamento da pós-modernidade, associado a uma prática clínica
sistêmica,
manifesta-se...em
torno
dos
enfoques
conhecidos
como
construtivismo e construcionismo social...Posso dizer que, em linhas bem gerais,
a oposição dá-se entre uma visão de construção do conhecimento centrada no
indivíduo, no caso do construtivismo, e uma centrada na construção social, no
caso do construcionismo.”
Neste breve histórico, fazemos uma viagem “a jato“ por mais de 50 anos de
trabalho terapêutico, apresentando novas teorias e as práticas surgidas como
conseqüência. Mas de onde vieram estas teorias. Quais são suas
bases
epistemológicas?
II- Reflexões sobre as bases epistemológicas da Terapia Sistêmica de
Família.
Quando retornamos ao estudo da Fenomenologia, depois de ter contato com as
idéias do Construtivismo e do Construcionismo Social, tivemos a sensação de
encontrar alguns parentes, ou pelo menos velhos amigos de família, que por
algum motivo (talvez brigas, rompimentos, dissidências, como acontece em
tantas famílias) ficaram de fora das histórias contadas por nossos
pais/professores. Alguns conceitos pareciam-nos familiares, outros eram
estranhos, talvez de outras famílias. Enfim, ficou uma questão: “Existe uma
relação entre Fenomenologia e Construtivismo e Construcionismo Social?
Pertencem à mesma linhagem familiar? Houve uma separação conflituosa em
algum passado obscuro? Como o conhecimento Fenomenológico influenciou o
terapeuta de Família contemporâneo?
E foi com a Curiosidade, definida por Gianfranco Chechin como “uma posição
terapêutica que dá oportunidade para a construção de novas formas de ação e
interpretação”(in Schnitman,1999,pg220), e também com sua irreverência, que
buscamos uma aproximação entre estes dois campos: Fenomenologia e
Construcionismo Social. Spink(2004,pg23), afirma que:
199
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
“A perspectiva construcionista é resultante de três movimentos: na Filosofia,
como uma reação ao representacionismo; na Sociologia do Conhecimento, como
uma desconstrução da retórica da verdade, e na Política, como uma busca do
empowerment de grupos socialmente marginalizados...iremos focalizar o
construcionismo a partir da Psicologia Social e da Sociologia do Conhecimento,
apoiando-nos, para isso, em quatro autores: Peter Berger e Thomas Luckmann,
Keneth
Gergen e Tomás Ibanez.
Esses autores utilizam... a expressão
construção social para falar da ação, e construcionismo para referir-se a
abordagem teórica. Há autores que empregam o termo construtivismo, como por
exemplo aqueles vinculados às correntes teóricas da terapia familiar sistêmica,
herdeiros de Gregory Bateson e Paul Watzlawick...O termo construtivismo....dá
margem à adesão, (ainda que não intencional) a uma perspectiva
individualista...”
A mesma autora cita o clássico de Peter Berger e Thomas Luckmann, “A
Construção Social da Realidade”, como um marco para o Construcionismo Social,
listando entre seus “ancestrais” nomes como Karl Marx, Nietzche e Willheim
Dilthey. E enfatiza a importância de Max Scheler, filósofo alemão que nos anos
20 criou o termo sociologia do conhecimento. Lembra que Berger e Luckmann
partem do princípio de que a realidade é socialmente construída, e analisam em
sua obra como se dá esta construção.Não é nosso objetivo um aprofundamento
das idéias destes autores, mas deixamos uma questão: “ Como foi que Berger e
Luckmann chegaram a um questionamento do conhecimento como
representação? Que caminhos percorreram?
Em uma busca em textos de
outros autores, como Gergen(McNamee e
Gergen,1998), Watzlavick(1995)) e Glaserfeld(in Packman,1996), nomes
reconhecidos no campo do Construtivismo/Construcionismo Social, não
encontramos nenhuma referencia a Fenomenologia. Quando estudamos a
história da Terapia de Família, pode ficar uma falsa impressão de que, “quase
magicamente”, os profissionais tenham saído de um modelo baseado na
objetividade e simplicidade, para um modelo
que leva em conta a
Intersubjetividade e a complexidade do ser humano. Na mesma obra citada,
Marilene Grandesso nos diz que “depois de Kant, os cientistas, colocando-se
como “descobridores”, buscaram desvendar os mistérios da natureza, postulando
que o saber somente é digno de confiança se proporciona um conhecimento tal
qual é. Esse panorama começou a mudar com os filósofos da não-representação
– Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger - que se colocaram contra o discurso
epistemológico da modernidade...”(Grandesso,2000, pg 50-51).
Existe uma lacuna nesta breve apresentação da mudança paradigmática, que
atingiu não apenas a Terapia de Família, mas todo o campo de produção de
conhecimento. Schopenhauer viveu de 1788 a 1860. Nietzsche de 1844 a 1900
e Heidegger de 1889 a 1976. Um nome fundamental está faltando: Edmund
Husserl, de quem Heidegger foi discípulo, e que viveu de 1859 a 1938.
III-Fenomenologia e Construção do Conhecimento
200
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O pensamento de Husserl representa um profundo e efetivo questionamento em
relação ao paradigma cartesiano, que se viu reforçado no pensamento positivista.
Nesta forma de pensar, o único conhecimento válido era o conhecimento factual,
científico, em que se poderia estabelecer uma relação causal entre os elementos,
sempre se apoiando em um tripé de princípios: Estabilidade, Objetividade e
Simplicidade.
Husserl descobre que a filosofia está mais preocupada em fazer perguntas do
que em dar respostas. Por exemplo: “O que é conhecimento, em que
conhecimento se pode confiar”?
Fazendo um trajeto parecido com o de
Descartes, usando o método da dúvida, Husserl chega a conclusão de que não
há Consciência sem o objeto da Consciência, criando o conceito básico da
Fenomenologia: a Intencionalidade. Intencionalidade não significa intenção, é
apenas um conceito filosófico que expressa a impossibilidade de dissociação
entre a consciência e o objeto da consciência. Aqui começou a ser quebrado o
Paradigma Científico Cartesiano. O objeto enquanto objeto, perde a qualidade
de coisa em si. Ele só tem estas qualidades por que alguém vê. As coisas são
objeto para uma consciência e a qualidade que havia no conhecimento científico
não pode ser mais garantida como estável e universal, pois sempre há uma
subjetividade em jogo.
A questão positivista, de que conhecer o mundo é conhecer suas leis, cai por
terra, pois o conhecimento depende do sujeito que observa. O próprio mundo
passa ser uma constituição do ser humano. O homem cria o mundo e a razão
perde seu lugar central. Ainda segundo Husserl, existe uma Qualidade Essencial
nos vários objetos, embora outras qualidades factuais sejam diferentes. Isto
permite que se estude alguma coisa. Estudar seria descobrir a Essência do
objeto. No Paradigma Religioso, o plano da Essência antecede a Existência. No
Paradigma Científico Positivista, também existem leis que antecedem a
Existência. No novo Paradigma a Essência surge na própria Existência do objeto,
não é anterior, ela surge junto com a Existência.
Para Husserl, conhecer é conhecer a Essência, e ele desenvolveu um método
para seu conhecimento. Partindo do conhecimento intuitivo, propõe o que
chamou de Redução Fenomenológica, que tem os seguintes passos: Desfazer-me
das características factuais e desfazer-me do conhecimento prévio. Se eu quero
conhecer a essência de um objeto, preciso sair da crença em um mundo natural,
colocando-me em um ponto de vista reflexivo (filosófico) e me perguntando
sobre os aspectos essenciais do objeto.
Nunca se chega à Essência total, este é um método de meditação infinita, que
nunca alcança a essência. O que garante que chegamos a algum lugar? O
caráter de Imediatez. Quando me aproximo da Essência do fenômeno que
experimento em um dado instante, não posso duvidar. O objeto terá um
significado
para mim,
e também para outras pessoas. O que valida o
conhecimento é o Consenso. No Consenso todos concordamos sobre o significado
de algo, mas nada garante que tenhamos a mesma experiência. .
201
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O Paradigma Científico exige uma divisão entre sujeito e objeto para que seja
possível uma observação neutra. A Fenomenologia, através do conceito de
Intencionalidade, diz que sujeito e objeto são indivisíveis. Surge um novo modo
de fazer Ciência e de produzir Conhecimento, que inclui a experiência do sujeito
que conhece.
Em um primeiro momento da Fenomenologia, Husserl chega a uma posição
quase positivista, fica em busca de uma Essência total, quase como se fosse a
Lei. E talvez este seja o motivo pelo qual Husserl nem sempre seja lembrado
como um dos pensadores fundamentais para a mudança paradigmática que nos
levou à idéia da Construção do Conhecimento.
Para muitos, Husserl parece
ter ficado impregnado de um “ranço” positivista, essencialista, metafísico. Mais
do que um rompimento, as idéias de Heidegger podem ser vistas como uma
radicalização do pensamento husserliano. O conceito de intencionalidade(não há
sujeito sem consciência) se radicaliza no conceito Heideggeriano de Ser No
Mundo: Não há Ser sem Ser no Mundo.”( Roberto Novaes de Sá, comunicação
oral, 2008).
O conceito de Essência (que era considerada como anterior a Existência) evoluiu
para uma Essência constituída na Existência. Na existência de um ser, ou
sujeito. Uma pessoa que vem ao mundo pertencendo a uma cultura, a um
contexto, trazendo uma bagagem biológica, cultural, social. Conhecer passa a
ser trazer à luz o significado atribuído ao fenômeno experimentado. E um
significado que depende do contexto, da relação do sujeito com seu contexto e
do contexto com o sujeito.
As idéias de Husserl influenciaram muitos pensadores: Heidegger, Sartre e
Merleau-Ponty são alguns dos nomes mais conhecidos no campo filosófico. Na
Psiquiatria temos Jaspers como exemplo. E um nome menos conhecido, na
Sociologia: Alfred Schutz, que exerceu uma grande influencia sobre Berger e
Luckman, autores fundamentais para o campo do Construcionismo Social. No
prefácio do livro “ A construção Social da Realidade”, publicado juntamente com
Peter L. Berger em 1962, Luckman escreveu: “ Em várias partes deste tratado
ficará clara a dívida que temos com o falecido Alfred Schutz. Gostaríamos aqui
de reconhecer a influencia do ensino e das obras de Schutz em nosso
pensamento. (Berger, Luckmann, 1973).
Na Introdução de “Fenomenologia e Relações Sociais(Schutz,1979), Helmut R.
Wagner escreveu:
“Schutz nasceu em Viena em 1899 e morreu em Nova York em 1959...Durante
seus anos de estudo, veio a interessar-se profundamente pelo trabalho de Max
Webber e de Edmund Husserl...conheceu pessoalmente Husserl, visitando-o
freqüentemente...Este o convidou para seu assistente na Universidade de
Friburgo, oferta que declinou...devido a outras obrigações..Em 1938 com a
ameaça de ocupação da Áustria por Hitler, Schutz emigrou para Paris. Um ano
depois chegou aos Estados Unidos, onde entrou para a New School for Social
Research”.Juntamente com Thomas Luckman , Schutz publicou” As Estruturas do
Mundo da Vida”(1973).
202
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Não pretendemos neste espaço reduzido analisar as teorias de Schutz, mas
apenas ressaltar que a Fenomenologia de Husserl está presente como um dos
fundamentos de sua obra, juntamente com as idéias de Max Weber. Esta não
foi a única estrada percorrida pelas idéias de Husserl até a Terapia de Família,
mas com certeza, é um percurso pouco conhecido, e que chama a atenção pela
clareza dos sinais e mapas indicativos.
IV- CONCLUSÃO
Muitas foram as mudanças que marcaram o que tem sido chamado de virada
pós-moderna, ao longo do século XX, e entre estas temos a questão da
Construção do Conhecimento. E esta é uma questão que vem sendo discutida há
muito tempo: “O que quer que entendamos sob “conhecimento”, não pode mais
ser a imagem ou representação de um universo independente daquele vivido...
Protágoras, quinhentos anos antes da era cristã, já dizia que o homem é a
medida de todas as coisas, e (determina) o que elas são e como elas são.
Sócrates, contudo, no diálogo de Platão, Teeteto, defende a idéia de que a
percepção pressupõe algo perceptível.” (Watwlawick, P.,1995).
São muitas as teorias a respeito da Construção do Significado, algumas com
maior ênfase no sujeito cognoscente, e outras com ênfase no papel do
intercâmbio social e da linguagem, e não podemos cair na falácia de querer
reduzi-las a uma só, ou de buscar supremacia de uma sobre outras. Existem
quase sempre pressupostos básicos diferentes, que precisam ser compreendidos
e levados em consideração. Mesmo quando as teorias são antagônicas, podem
ter algo a nos ensinar, e quem sabe, revelar aspectos complementares.
Seguindo esta linha de raciocínio, podemos afirmar que a Fenomenologia de
Husserl pode e deve ser somada às teorias contemporâneas sobre a construção
do conhecimento, enriquecendo e ampliando a compreensão da mudança
epistemológica que vem influenciando nossas práticas terapêuticas.
Muitas vezes temos a impressão, ao estudar diferentes escolas de filosóficas, e
também escolas terapêuticas, que o desenvolvimento das idéias é apresentado
como se este ocorresse fora de um contexto e de um processo. Algo parecido
com determinadas narrativas
históricas, em que as mudanças não são
processuais e coletivas, mas fruto de “atos heróicos” de pessoas especiais,
iluminadas, que de repente fundam ou “proclamam” a independência de um
país.
Se aceitarmos as teorias sobre a Construção do Conhecimento, e pretendermos
ter em relação a estas um mínimo de coerência, devemos encará-las também
como uma Construção, e não como se fossem um espelho da natureza. E toda
Construção de Conhecimento se dá dentro de um processo, que inclui pessoas
em relação, entre elas, e com o meio que as cerca. E toda Construção também é
local, provisória, válida enquanto houver consenso a seu respeito. Erguida “
tijolo por tijolo” em um desenho com uma lógica da qual podemos tentar nos
aproximar, quem sabe em uma atitude que Husserl poderia chamar de redução
fenomenológica.
203
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
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204
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Trajetória de vida e construção da identidade
do nissei na sociedade brasileira
Trajectory of life and building identity’s
nissei in Brasilian society
Liliane Pusas Santos
Roberto Yutaka Sagawa
Unesp
Bolsa: FAPESP
Resumo Este projeto de pesquisa busca ser uma contribuição científica e social
sobre a relação dos descendentes de japoneses (os nisseis) com a sociedade
brasileira, destacando a ligação entre a antiga colônia japonesa e seu contexto
brasileiro, assim como as questões de construção de identidade dos nisseis nesse
contexto. Algumas das grandes questões tratadas nessa pesquisa remetem à
mudança de vida da zona rural para a urbana mediante a necessidade de os
filhos nisseis terem acesso à educação que lhes permitisse chegar à
universidade. O casamento inter-étnico também merece destaque, já que os pais
imigrantes japoneses preferiam manter o sistema de miai (casamento arranjado
por um intermediário) e jamais aceitavam o casamento com estrangeiro, no
caso, os brasileiros. Outra questão diz respeito às repercussões da Segunda
Guerra Mundial, sobretudo, após seu término, quando explodiram duas
tendências: kachigumi e makegumi, favorecendo o surgimento de uma
associação político-ideológica extremista e terrorista denominada ShindoRenmei, a qual pertenciam os kachigumi. O público-alvo da pesquisa são os
nisseis que atualmente residem na cidade de Ourinhos, com idade acima de 60
anos, pois contêm, na sua história de vida, os reflexos e as marcas da história
brasileira nos períodos das décadas de 30 e 50.
Abstract This research project aims to be a scientific and social contribution on
the relationship of the descendants of Japanese (the nisseis) with Brazilian
society, emphasizing the connection between the former Japanese colony and its
Brazilian context, as well as the issues of building identity of nisseis in that
context. Some of the major issues addressed in this study refer to the change of
life in a rural area to urban by the need for the children nisseis have access to
education allowing them to reach the university. The inter-ethnic marriage is also
highlighted, as the Japanese immigrant parents preferred to keep the system
miai (marriage arranged by an intermediary) and will never accept the marriage
with foreigners, in case the Brazilians. Another question concerns the impact of
the Second World War, especially after its completion, exploded when two
trends: kachigumi and makegumi, favoring the emergence of an association
political-ideological extremist and terrorist-called Shindo-Renmei, which belonged
to kachigumi. The target audience of research are the nisseis that are currently
residing in the town of Ourinhos, aged above 60 years, as contained in its history
205
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
of life, the reflexes and the marks of Brazilian history during periods of decades
30 and 50.
Introdução
A grande maioria das pesquisas se preocupou com as questões de integração dos
imigrantes japoneses no Brasil, no entanto, não foi construída uma história no
Brasil em que o nissei seja o protagonista. No entanto, tais questões parecem
estar sendo superadas, não sendo mais o alvo de publicações ou pesquisas.
Dessa forma, acreditamos que, por meio da história individual e do modo de
construção da identidade dos nisseis, é possível vir a formular os conflitos,
obstáculos, aproximações e distanciamentos entre os descendentes de japoneses
e o contexto brasileiro, revelando questões de preconceito e discriminação pelas
duas partes.
Por meio de um estudo sobre a trajetória de vida dos nisseis, podemos os
processos fundamentais por que passaram: mudança do rural para o urbano, a
ascensão social econômica, a educação, a Segunda Guerra Mundial e suas
repercussões, as religiões tradicionais (budismo e xintô), a idolatria ao
Imperador, a queda das escolas de língua japonesa (nihongo-gako), assim como
as associações culturais e esportivas (kai-kan).
Objetivos
O objetivo central dessa pesquisa é, portanto, possibilitar um entrelaçamento
entre história de vida do nissei, formação de identidade e história da sociedade
brasileira, de forma a aliar o quantitativo ao qualitativo, a partir do recorte
longitudinal (baseado nas ciências humanas) e do transversal (estabelecido na
psicologia, mais particularmente na psicanálise), onde o psíquico e o
social/cultural possam ser entrecruzados.
Metodologia
A metodologia se dá através da pesquisa de campo por meio de questionário
fechado, entrevista semi-estruturada e observação participante. A pesquisa é
aplicada aos nisseis que atualmente residem na cidade de Ourinhos, que já não
tem mais o antigo contingente de famílias de origem japonesa como ocorreu nos
anos 50 e 60, mas ainda assim continuam tendo um número significativo e
expressivo de descendentes japoneses. No total, são 80 questionários e 30
entrevistas. Primeiramente, será aplicado um questionário ao sujeito, em que ele
poderá ser convidado para realizar uma entrevista de forma mais aprofundada.
Resultados e Conclusão
Constatou-se que a maioria dos sujeitos da pesquisa chegou a, pelo menos,
iniciar sua vida escolar, completando ou não o Primeiro Grau. Nas entrevistas, foi
206
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
relatada a dificuldade em continuar os estudos depois da 4ª série do Primeiro
Grau, em que ou eles tinham que trabalhar para ajudar os pais ou mudar para
cidade, pois no sítio não havia 2º Grau.
Comparou-se a quantidade de filhos que seus pais tiveram com a quantidade de
filhos que eles (os nisseis) têm. Observou-se que 81% dos isseis tiveram de 5 a
10 filhos, em contrapartida, 89% dos nisseis entrevistados tiveram de 1 a 5
filhos, evidenciando uma diminuição pela metade na quantidade de filhos em
relação a geração de seus pais. Vale ressaltar que nenhum dos pais dos
entrevistados tiveram apenas 1 filho.
A maioria dos entrevistados (70%) relatou ter feito escola japonesa (nihongogakko). Porém disseram que, por falta de prática, já esqueceram muito do que
aprenderam, inclusive no que diz respeito à escrita. Esse dado é evidenciado
pelos 63% dos sujeitos que disseram não dominar a língua japonesa, aprendida
principalmente dentro de casa com seus pais ou avós, usando-a apenas para
conversas informais com amigos, e pelos 9% que relataram saber escrever muito
bem o japonês. Ainda quanto a esse aspecto, comentou-se amplamente sobre o
fato de as escolas japonesas terem sido fechadas na época da Segunda Guerra
Mundial, onde muitos tiveram que parar de estudar.
A quantia de 76% dos nisseis disseram se considerarem brasileiros,
principalmente por terem nascido no Brasil, sendo 5% o número representativo
dos que se consideram japoneses e 19% dos que se consideraram tanto
brasileiros como japoneses, relatando que suas raízes vieram do Japão, mas que
preferem os hábitos e a liberdade brasileira.
Quanto a religião Xintoísta, apenas 3 dos nisseis entrevistados disseram
conhecer algo sobre o Xintô, sendo 63% o número daqueles que desconhecem
essa religião, e 34% dos que pelo menos já ouviram falar de Xintoísmo.
Grande parte dos sujeitos (84%) disse não ter o retrato do casal imperial em sua
casa, porém argumentavam que seus pais tiveram e que tudo foi pego por conta
da Segunda Guerra Mundial.
No que diz respeito à religião, apenas 31% disseram pertencer a religião
Católica, sendo, muitos deles, não praticantes. Outros 31% disseram se
considerar tanto católicos quando budistas, freqüentando principalmente o oterá.
Dentre os entrevistados, 10% disseram pertencer, concomitantemente, às
religiões do Budismo, Seicho-no-ie e Catolicismo. A maioria dos sujeitos relatou
ter sido batizada na Igreja Católica.
A identidade se constrói dentro de uma cultura, não sendo determinada pela
consciência, mas resultante de um processo de formação psíquica em suas
internalizações das imagos primárias (FREUD, 1976). Portanto, o japonês
descendente não tem onde buscar esses valores se não no passado, nos pais, e
na cultura.
207
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A construção da identidade nipo-brasileira é uma questão que recebeu alguns
avanços e retrocessos da geração nissei, na medida em que esses se apropriam
ou não desta construção identitária. Nos casos mais extremos, eles desprezam
ou ignoram a importância de se posicionar em relação a essa identidade, como
se fosse possível ser um brasileiro qualquer, sem qualquer diferença de sua
origem japonesa.
Apesar de haver um discurso predominante de democracia étnica no Brasil, ainda
falta vencer muitos obstáculos impostos pelo não-dito da maioria contra os
demais, que se tornam discriminados e objetos de preconceitos. Dessa forma, o
que nos interessa com o decorrer da pesquisa é buscar as contradições e tentar
descobrir o grau de consciência que o nissei tem a respeito desse conflito
identitário.
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208
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A pesquisa fundamental em psicanálise: um modelo para
o tratamento da esquizofrenia
Luciane Loss Jardim53
UNICAMP
Resumo O presente trabalho se propõe a apresentar o modelo metodológico de
pesquisa do projeto intitulado “O imaginário na esquizofrenia: sobre o fenômeno
do transitivismo”. Trata-se de um trabalho de pesquisa em psicanálise que está
sendo realizado no âmbito do Ambulatório de Psicologia Médica e Psiquiatria do
Hospital de Clínicas da UNICAMP com pacientes com o diagnóstico de
esquizofrenia. A pesquisa fundamental em psicanálise, metodologia proposta
neste trabalho, está baseada na indissociabilidade entre procedimento de
investigação, dispositivo e método de pesquisa, o que exige o estudo dos
processos inconscientes. Nesta perspectiva, investigamos a partir deste projeto
de pesquisa as vicissitudes do imaginário na esquizofrenia, a partir do fenômeno
do transitivismo que ocorre na transferência na situação analítica de tratamento.
Palavras Chaves: Psicanalise, pesquisa, tratamento, esquizofrenia.
Abstract This study aims to present the model of methodological research
project entitled: The imagery in schizophrenia: on the phenomenon of
transitivism. This is a work of research in psychoanalysis that is being conducted
within the Clinic of Medical Psychology and Psychiatry at the Hospital de Clinicas
from UNICAMP with patients diagnosed with schizophrenia. The fundamental
research in psychoanalysis, proposed methodology in this work, is based on the
inseparable from the investigation procedure, device and method of research,
which requires the study of unconscious processes. From this perspective, we
investigated from this research project the variation of imagery in schizophrenia,
from the transitivism phenomenon that occurs in the situation in the transfer of
analytical treatment.
Key words: Psychoanalysis, research, treatment, schizophrenia.
Introdução
Existem dois modelos de pesquisa em psicanálise sendo propostos pela
comunidade psicanalítica e acadêmica que são independentes entre eles. O
primeiro está baseado exclusivamente em critérios psicanalíticos, tal como a
indissociabilidade entre procedimento de investigação, dispositivo e método de
pesquisa, o que exige o estudo dos processos inconscientes. O segundo modelo
de pesquisa, é a pesquisa feita por psicanalistas utilizando outros métodos que
não os próprios da psicanálise e tendo a ambição de satisfazer critérios científicos
53 Doutora em Psicologia Clínica PUC/SP, Pós-Doutoranda e Pesquisadora Colaboradora
no Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Departamento de Psicologia Médica e
Psiquiatria da UNICAMP e Professora do Curso de Psicologia da PUC-CAMPINAS.
209
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
exteriores com o objetivo de manter um intercâmbio de idéias e provas com
outras disciplinas sobre a eficácia terapêutica da psicanálise. Nesta perspectiva
destacam-se as idéias de Fonagy que presidiu a Comissão Permanente de
Pesquisa (Stading Research Committee) da IPA (International Psycoanalitical
Association) que defende uma sistematização dos “nossos conhecimentos de
base de tal modo que uma integração com as novas ciências da mente venha a
ser uma possibilidade, mas também para comunicar com os outros cientistas
acerca das nossas descobertas e mostrar que o nosso tratamento é eficaz”.54
Não é do escopo deste trabalho realizar um debate entre esses dois modelos de
pesquisas propostos. Todavia, estabelecer o contexto no qual se inscreve a
pesquisa que realizo, a saber, no modelo que alguns autores, como Botella &
Botella chamam de “pesquisa fundamental em psicanálise” 55, ou seja, que se
dedica a aprofundar os conhecimentos relativos aos fundamentos da psicanálise.
O projeto de pesquisa intitulado “O imaginário na esquizofrenia: sobre o
fenômeno do transitivismo” consiste em proposta de pós-doutorado que está
sendo realizado no âmbito do Ambulatório de Psicologia Médica e Psiquiatria do
Hospital de Clínicas da UNICAMP. Este projeto tem como objetivos investigar a
partir da psicanálise, baseado nas teorias de Sigmund Freud e Jacques Lacan, as
vicissitudes do imaginário na esquizofrenia. Nesta perspectiva, a partir do
fenômeno do transitivismo que ocorre na transferência na situação analítica de
tratamento, pretende-se contribuir teoricamente na explicação sobre a formação
corporal e a psicopatologia da esquizofrenia, e desta forma identificar
intervenções terapêuticas que possibilitem uma restituição imaginária para o
paciente esquizofrênico.
Esta pesquisa está sendo realizada com pacientes que são encaminhados para o
Serviço de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da Unicamp. Os pacientes que estão
sendo encaminhados à pesquisadora, pelos psiquiatras, possuem uma hipótese
diagnóstica psiquiátrica de Esquizofrenia segundo critérios do DSM IV-TR. A
partir destes encaminhamentos estão sendo realizadas entrevistas preliminares
para verificar a hipótese diagnóstica de psicose segundo critérios de diagnósticos
orientados pela psicanálise. Aqueles pacientes que não cumprem estes critérios
são encaminhados para outros profissionais que compõem o Serviço de
Psicanálise do Ambulatório de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da UNICAMP.
Após as entrevistas iniciais preliminares, o paciente psicótico é convidado a
participar da pesquisa, formalizando seu assentimento pela assinatura do termo
de consentimento livre e esclarecido (o qual, segundo o caso, poderá ser
assinado por um responsável). Somente participarão do estudo aqueles que
concordarem em assinar o termo de consentimento livre e esclarecido (em
anexo).
54 Fonagy, Peter. Apanhar urtigas e mancheias, ou porque a pesquisa psicanalitica e tao
irritante. In: Green A.(org.) Psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p.
335.
55 Botella,C.&Botella,S. A pesquisa em psicanalise. In: Green A. (org.) Psicanálise
contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 438.
210
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Após as entrevistas preliminares, o tratamento psicanalítico propriamente dito é
iniciado com os pacientes. A previsão inicial é de que esse tratamento possa
ocorrer durante os dois anos de duração desta pesquisa. No que concerne à
apresentação dos resultados desta pesquisa, serão selecionados alguns “casos
clínicos” que venham ao encontro das questões que foram levantadas pelo
projeto.
A Pesquisa Fundamental em Psicanálise
A psicanálise, desde seu nascimento e durante seu desenvolvimento, sempre
esteve sustentada por uma estrutura tríplice, a saber, a clínica, a pesquisa e a
teoria. A partir dessa posição, a psicanálise é um método de investigação dos
processos psíquicos inconscientes que se mostram inaccessíveis de outra
maneira, é também um método terapêutico baseado na própria investigação
destes processos e com os resultados obtidos a partir desta investigação, formula
um corpo de conhecimento teórico sobre o funcionamento psíquico humano56. A
pesquisa psicanalítica possui, portanto, esse dispositivo epistêmico, no qual a
clínica, a pesquisa e a teoria são impossíveis de serem pensados separadamente.
Esse dispositivo está calcado em paradigmas radicalmente opostos ao método
experimental, ela difere epistemologicamente das ciências ditas naturais.
O modelo de pesquisa em psicanálise a partir de seus fundamentos é o modelo
de investigação postulado por Freud, no qual o tratamento e a pesquisa em
psicanálise andam juntos, um é conseqüência do outro. Desta forma, considerase que a própria psicanálise é um procedimento de investigação, que tem como
objeto de estudo os processos psíquicos inconscientes originados na sessão
analítica. O modelo proposto por Freud guia a prática e esta permite re-construir
o modelo, que por sua vez, estão vinculados a alguns conceitos considerados
básicos na teoria psicanalítica. Freud57 definiu os pilares da teoria analítica, a
saber, o inconsciente, a doutrina da resistência e do recalque, a sexualidade
infantil e o complexo de Édipo. Estes são os fundamentos básicos da psicanálise
e aqueles que não tem condições de subscrevê-los não estão incluídos no meio
dos psicanalistas.
A pesquisa em psicanálise se constrói a partir de “casos clínicos” e segue o
modelo proposto por Freud na situação analítica de tratamento. A pesquisa em
psicanálise inicia nas sessões de análise marcadas pelos dispositivos
psicanalíticos que a sustentam e segue na pós-sessão, na esteira de uma
elaboração do analista que pode vir a germinar um novo conhecimento sobre a
teoria e ou a técnica psicanalítica.
Segundo Safra58 “a psicanálise é um campo que investiga o particular para
56 Freud, Sigmund (1923 [1922]). Dois Verbetes de Enciclopédia. In: Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
57 Idem, ibiden.
58 Safra, Gilberto. O uso do material clinico na pesquisa psicanalítica. In: Silva, Maria
Emila Lino (coord.) Investigação e Psicanálise. Campinas: Papirus, 1993, p.129.
211
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
tentar compor modelos abrangentes do psiquismo humano. (...) Ao iniciarmos
uma investigação a partir de um material clinico, realizamos um recorte, que é
delimitado pelo aspecto ou fenômeno que estamos interessados em pesquisar, e
também pelas concepções teóricas que utilizamos em nosso trabalho”.
No que concerne à metodologia da pesquisa em psicanálise, retomamos as
funções das entrevistas preliminares e a conformação destas com a estrutura do
tratamento propriamente dito a fim de esclarecer nossos procedimentos junto
aos pacientes.
O “ensaio preliminar” como nomeou Freud59 é ele próprio o início de uma análise
e deve conformar-se às suas regras. A tarefa do analista é apenas de relançar o
discurso do paciente, entretanto existem algumas razões para fazer estas
entrevistas preliminares antes de empreender o tratamento com o paciente.
Estas possuem três funções: estabelecimento do diagnóstico estrutural, a
transformação do sintoma do paciente em sintoma analítico, ou seja, a função
sintomal e a instituição da transferência, a ligação do paciente ao seu tratamento
e à pessoa do analista.
Segundo Quinet60, as entrevistas preliminares são divididas em dois tempos: um
tempo de compreender e um de concluir, no qual o analista toma a decisão de
aceitar ou não um paciente em análise. O fato de receber o paciente nas salas de
atendimento do ambulatório não significa que este paciente tenha sido aceito
para a pesquisa/psicanálise. Para se desencadear a análise a escolha deve advir
de ambos os lados, do paciente e do analista.
A função sintomal (sinto-mal) é a transformação do sintoma do qual o sujeito se
queixa em sintoma analítico, é uma das funções das entrevistas preliminares.
Essa função sintomal é responsável pela transformação da queixa numa
demanda endereçada ao analista, condição em que o sintoma passe do estatuto
de resposta ao estatuto de questão para o sujeito.
O estabelecimento da transferência, outra função das entrevistas preliminares, é
condição necessária para que uma psicanálise seja possível. Ela consiste na
atualização da realidade do inconsciente, no duplo sentido do termo atualização:
por em ato e presentificar, isto é, realizar no aqui e agora. Não é o analista que
motiva ou condiciona a transferência, pois ela é função do paciente. Segundo
Lacan61, os fenômenos da transferência fundamentam-se na função do sujeito
suposto saber que consiste na suposição ou conjectura de que há um saber
desconhecido que pode ser sabido. O que é essencial nesta noção é a suposição
59 Freud, Sigmund. (1913) Novas observações sobre a técnica da psicanálise: o início do
tratamento. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1976.
60 Quinet, Antonio. As 4+1 Condições da Análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1993.
61 Lacan, Jacques. (1963-964) O Seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais
da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
212
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
de um saber que pode vir a ser sabido e que alguém pode franquear ao sujeito o
acesso a esse saber.
Portanto, o método de investigação na psicanálise se conforma ao tratamento
proposto por esta, através de seus próprios pressupostos. A transferência é
condição si ne qua non para que um tratamento psicanalítico ocorra e a
conseqüente pesquisa sobre os processos inconscientes. A formalização da
pesquisa psicanalítica surge no a posteriori do tratamento psicanalítico como uma
construção do analista/pesquisador. Este trabalho se concretiza a través da
escrita que o psicanalista produz de textos a parti de seu trabalho da escuta do
inconsciente. Entretanto, essa formalização implica grandes dificuldades, pois
implica fazer uso da teoria para dar conta do ato analítico sem cair no equívoco
de usar o caso clínico para ratificar a teoria.
A construção do “caso clínico” deve estar sustentada na prática clínica,
entretanto o recorte clínico serve como alicerce para o avanço da teorização ou a
própria reformulação desta. A teoria e a técnica oriundas da pesquisa
psicanalítica, por sua vez, vai retro-alimentar a própria clínica.
No que se refere ao projeto de pesquisa em questão, a metodologia psicanalítica
se da a partir do estudo de caso de alguns pacientes e nesta abordagem
pretende pensar em modelos abrangentes para o tratamento e a compreensão
da esquizofrenia. Buscando identificar e elaborar dispositivos psicanalíticos de
intervenção no tratamento das psicoses levando em conta aspectos
fundamentais da constituição do sujeito esquizofrênico. A partir do estudo sobre
o transitivismo na situação psicanalítica de tratamento procura-se investigar as
vicissitudes do imaginário na esquizofrenia. Nesta perspectiva, buscam-se novas
contribuições teóricas sobre formação do eu corporal e suas relações com a
psicopatologia
da
esquizofrenia.
Pretende-se
identificar
intervenções
psicanalíticas que possibilitem para o sujeito uma restituição da sua função
imaginária amarrada ao simbólico e ao real.
Um projeto de pesquisa no âmbito universitário e dentro de uma de suas
modalidades, a saber, a graduação e a pós-graduação geralmente têm um prazo
pré-fixado para sua realização. A presente pesquisa se enquadra em um projeto
de pesquisa de pós-doutorado e está planejada para ocorrer por dois anos. Um
tratamento psicanalítico, normalmente, não tem um tempo prévio definido. Neste
caso, o tratamento psicanalítico dos pacientes que se submeterão à pesquisa é
pré-estabelecido e tem a duração de dois anos. Quanto à durabilidade do
tratamento psicanalítico proposto por esta pesquisa cabem algumas
considerações.
O início de uma psicanálise ocorre pela associação livre do paciente, esta é a
regra fundamental da psicanálise. Do lado do analista, não há regras, mas ética
regida pelo preceito da atenção flutuante e do desejo do analista. Para o final de
uma análise e conseqüentemente um fim para o vínculo transferencial
estabelecido entre paciente e analista consideramos a seguinte proposição: o
tempo da sessão deve incluir em si mesmo e a cada sessão a finitude da análise.
Assim, cada sessão da análise contém o final da análise. O conceito de final de
213
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
análise proposto por Lacan62 está vinculada a própria duração da sessão, é uma
função da análise na medida que ela é terminável. O final da análise deve estar
inscrito em cada sessão e isso desde o seu início. Neste sentido, com a
proposição antecipada de que o tratamento/pesquisa dos pacientes terminará em
dois anos introduzimos a função da pressa análoga à introduzida por Lacan63 na
própria sessão de análise, que tem por objetivo precipitar no sujeito o momento
de concluir, para que o sujeito se declare. A presa é amiga da conclusão.
Nessa perspectiva, o final desta pesquisa/tratamento está colocado desde seu
início, e a cada sessão concluímos o tratamento. A tensão temporal presente na
situação precipita o sujeito na conclusão e esta condição poderá em muitos casos
favorecer o processo analítico, em outros acarretar alguma dificuldade no
momento do término do processo e a desvinculação do paciente com a pessoa do
analista e com o tratamento. Cada caso será tratado particularmente, portanto
não temos nenhum procedimento padrão para dar conta do encerramento do
tratamento/pesquisa realizado com os pacientes. Será dado um encaminhamento
a cada caso dentro das condições éticas que regem o trabalho psicanalítico a
partir das condições institucionais existentes. Portanto, os pacientes poderão
ser encaminhados para outros colegas para dar “continuidade” ao tratamento. O
fim do tratamento com a pesquisadora terá lugar no próprio percurso do
tratamento, à medida que este surgir como questão para o paciente e será
antecipado pela pesquisadora à medida que o tempo de conclusão da pesquisa
de pós-doutorado chegar. Portanto, o corte do laço transferencial e costura com
outros laços sociais possíveis para o paciente serão trabalhados no percurso e no
final da pesquisa.
Um Modelo para o Tratamento da Esquizofrenia
Parafraseando Lacan64, um século de freudismo aplicado à psicose deixa seu
problema ainda por repensar. A clínica das psicoses segue interrogando os
diversos campos do conhecimento que se ocupam de seu tratamento. E se
admitimos a existência de formações do inconsciente na produção
fenomenológica dos sujeitos esquizofrênicos, a psicanálise tem a contribuir.
A esquizofrenia nasceu no entrecruzamento da psiquiatria com a psicanálise. A
partir da fenomenologia da esquizofrenia descrita por Bleuler, e seguindo a
orientação teórica de Freud e de Lacan sobre as psicoses, depreende-se o quadro
psicopatológico do o qual nos ocupamos nesta pesquisa. Em 1911, Bleuler
estabelece as bases para o conceito nososológico e nosográfico do quadro que é
conhecido hoje como esquizofrenia, no texto intitulado Dementia praecoux ou o
62 Lacan, Jacques (1945) O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In:
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
63 Idem, ibidem.
64 Lacan, Jacques. (1957-1958). O Seminário, livro 5. As formações do inconsciente. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
214
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
grupo das esquizofrenias65. No mesmo ano, Freud publica seu famoso estudo
sobre o presidente Schereber: Notas Psicanalíticas sobre um Relato
Autobiográfico de um Caso de Paranóia (Dementia paranoides)66. Nesse
trabalho, Freud esclarece sobre os mecanismos psíquicos inconscientes presentes
na psicose e delimita seu campo em relação ao da neurose. Freud empregou com
mais freqüência o termo psicose, sem distinção do tipo clínico nos seus trabalhos,
entretanto utiliza explicitamente o termo esquizofrenia no seu artigo sobre O
Inconsciente (1915)67 e postula uma diferenciação entre os diferentes tipos de
psicoses a partir de sua teoria da libido.
Atualmente, os manuais psiquiátricos de diagnóstico como o DSM-IV e o CID-10
são voltados para uma descrição objetiva e sistemática dos sinais e sintomas
partilhada pela maioria da comunidade psiquiátrica mundial. Os grandes quadros
clínicos da psiquiatria são considerados como “transtornos”, termo escolhido
explicitamente para manter o caráter de indefinição a priori das questões
etiológicas referentes a esses diagnósticos. Já a psicanálise refere-se ao
diagnóstico na perspectiva da organização da personalidade e na estrutura da
subjetividade, tal como esta se apresenta em seu dispositivo próprio de
avaliação: a situação analítica. Se a sintomatologia observada na clínica vem
mudando de acordo com o discurso dominante na civilização, as estruturas
clínicas permanecem relativamente estáveis e se conformam essencialmente em
neurose, perversão e psicose.
Para a psicanálise, o diagnóstico é estrutural, ou seja, é buscado no registro
simbólico, aonde são articuladas as questões fundamentais do sujeito. Estas
concernem à forma como cada um se depara com o sexo, o desejo, a lei, a
angústia e a morte. Trata-se da posição do sujeito diante do complexo de Édipo,
em relação à castração. Dessa forma, é importante que o analista/pesquisador
saiba detectar a estrutura clínica do sujeito nas entrevistas preliminares, uma
vez que a condução da análise do sujeito psicótico não poderá ter como
referência o Nome-do-Pai. O diagnóstico diferencial estrutural pode ser feito por
meio das três maneiras de passagem pelo Édipo, a saber, o recalque
(Verdrängung) no neurótico, conservando o elemento inconciliável no
inconsciente; o desmentido (Verleugnung) no perverso, que desmente a
castração, conservando-a imaginariamente pela via do fetiche e a foraclusão
(Verwerfung) no psicótico, que não conserva traço ou vestígio algum da
castração, excluindo-a do âmbito do simbólico.
No neurótico, o que institui a transferência é a suposição de um saber a um
terceiro, que sabe o que lhe faz sofrer, que sabe o que lhe falta. No psicótico,
também há um sujeito do saber que ele indaga, porém este saber não é suposto
65 Garrabé, J. Histoire de la schizophénie. Paris: Seghers, 1992.
66 Freud, Sigmund. (1911) Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um
caso de paranóia (Dementian Paranoides). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud.Imago: Rio de Janeiro:1969.
67 Freud, Sigmind. (1915) O Inconsciente. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud.Imago: Rio de Janeiro:1969.
215
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
a um terceiro, a um outro, ele é encarnado e presentificado. O laço social
estabelecido a partir desta modalidade de transferência é o que, diferentemente
à transferência neurótica, imporá o diagnóstico de psicose no diagnóstico
estrutural. Nesta, o saber e o sujeito que dele se deduz não faltam na psicose,
pelo contrário, nela a suposição se torna certeza.
A certeza psicótica se traduz pelo não questionamento do psicótico de seus
delírios, não há dúvida quanto a sua existência. Os sintomas para o psicótico
adquirem um estatuto de certeza em decorrência da relação que este sujeito
estabelece com a realidade68. Os delírios se apresentam como uma maneira de
se sustentar no mundo, de semanter estável. A realidade do sujeito psicótico
está na dependência da sua relação com o significante, sendo inicialmente
sustentada por um tipo de suporte denominado bengala imaginária. Este suporte
se apresentara ao sujeito, no registro imaginário, exatamente onde falta à
significação. Durante o surto, a ausência deste apoio imaginário, leva o indivíduo
a viver uma catástrofe subjetiva, uma experiência de despedaçamento, sendo
possível uma reorganização da sua realidade, somente a partir da construção de
uma idéia delirante (Quinet, 2000).
No concerne a sua sintomatologia corporal, para o psicótico, a imagem do corpo
próprio é sentida como se fosse um fantasma que o habita, pois percebe
sensações de que lhe são alheias, como se estas fossem de um outro corpo.
Neste sentido podemos situar o caso de uma paciente esquizofrênica que dizia
que seu corpo era “tomado pelas doutoras para curar os pacientes”. Esta
paciente incorporava os sintomas de outras internas com as quais convivia em
uma instituição, e passou a formular esse delírio após alguns meses do início do
tratamento psicanalítico. O eu da paciente (con)fundia-se, em alguns momentos
com sua analista e em outras situações assumia todo o colorido formal de outras
pacientes da instituição. A paciente chamava sua analista de “doutora”, assim
como se referia a si mesma como “doutora”, chamando de “suas pacientes” as
suas colegas de internação. Em certa ocasião, a paciente esquizofrênica sentiu
todas as dores de parto de uma outra paciente que estava grávida e parturiente.
Trata-se da captura imaginária pela imagem do outro, de uma impossibilidade de
separação entre o eu e o outro na constituição imaginária do sujeito. É nesse
sentido que utilizamos, a noção de transitivismo: “ausência entre o interior e o
exterior, de onde vem a confusão dos vetores centrípeto e centrífugo da
experiência vivida” 69.
Na psicose, a constituição do eu permanece no seguinte enunciado: “o outro sou
eu”, é o que Lacan70 vai chamar de transitivismo imaginário, próprio também da
criança que bateu no seu semelhante e diz, sem mentir: “ele me bateu”. Pois,
para ela é exatamente a mesma coisa. Portanto, o imaginário na psicose não
funciona como o imaginário na neurose; para o psicótico não somos
semelhantes. Na neurose é necessária uma segunda operação, de separação,
68 Lacan, Jacques. (1955-1956) O Seminário, livro 3. As Psicoses. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar,1988.
69 JALLEY, E. Freud, Wallon, Lacan: l’enfant au miroir. Paris: Epela, 1998, p. 45.
70 Lacan, Jacques. Op. cit.
216
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
que permite a volta para que se formule a consigna: “o outro não sou eu”. O
registro do imaginário no sujeito psicótico opera em um primeiro tempo no que
concerne à constituição do eu e à imagem que o sujeito tem de si mesmo.
Lacan71, no texto Homenaje a Marguerite Duras, del rapto de Lol V. Stein,
caracteriza a relação imaginária na psicose, descrevendo uma identificação
aderida ao outro, uma captura pela imagem do outro sem exclusão recíproca, o
que é próprio da clínica com pacientes esquizofrênicos.
Na novela de Duras72, a primeira cena transcorre em um salão de baile e tem
como personagens principais, uma jovem chamada Lol; seu namorado, Michael;
a amiga de Lol, Tatiana e uma intrigante mulher, Anne-Marie Stretter. Nessa
cena, Michael convida a intrigante mulher para dançar e Lol permanece toda
noite olhando a dança de seu noivo com essa mulher, deslumbrada e sem
mostrar nenhum sinal de sofrimento. No final do baile, quando o casal sai do
salão, Lol os segue com seu olhar e, quando estes desaparecem, cai desvanecida
no solo. Imediatamente entra em um mutismo, permanecendo trancada por
algumas semanas em seu quarto sem encontrar nenhuma palavra para dar conta
do vazio que experimenta.
Quando o casal desaparece, irrompe o desvanecimento subjetivo de Lol,
momento típico do desencadeamento de uma crise psicótica. Isto ocorre porque
falta uma referência simbólica que separe Lol da imagem do outro, para que seu
corpo não caia por seu peso. Somente isso permitiria que a inexplicável mulher
que seu namorado tinha nos braços fosse, para ela, outra mulher. No momento
da cena, Lol e Anne-Marie formam apenas uma mulher, um só corpo abraçado
pelo amor Michael. Lol está presa em um transitivismo, tempo de inclusão da
protagonista na condição de ser humano, mediante uma identificação maciça à
imagem de outro.
A posição do sujeito na estrutura imaginária, ou seja, enquanto eu ideal, só é
concebível se sustentada por uma referência que se encontra além do
imaginário, no nível simbólico. Nas palavras de Lacan “ele parte do referencial
imaginário – que é, de certo modo, instintivamente pré-formado na relação dele
mesmo com seu próprio corpo -, para enveredar por uma série de identificações
significantes cuja direção é definida como oposta ao imaginário [...]”.73. Esta
nova formação concerne ao ideal do eu e se faz através da intervenção da função
paterna.
A crise psicótica, geralmente, irrompe quando o sujeito recebe uma injunção, um
chamado peremptório, ao significante do Nome-do-Pai, o qual, na estrutura
psicótica, está foracluído. Na posição subjetiva da psicose, o apelo ao Nome-doPai encontra, “não a ausência do pai real, pois essa ausência é mais do que
71 Lacan, Jacques. Homenaje a Marguerite Duras, del rapto de Lol V. Stein. In:
Intervenciones y Textos 2. Buenos Aires: Manantial, 1988.
72 Duras, Margueritte. O Deslumbramento (La ravissement de Lol V. Stein). Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
73 Lacan, Jacques (1957-1958). Op.cit., p.235.
217
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
compatível com a presença do significante, mas a carência do próprio
significante” 74. Na crise psicótica, portanto, trata-se da foraclusão do saber
paterno sobre a operação de separação, da Verwerfung do significante do Nomedo-Pai. Nas palavras de Lacan, “a Verwerfung será tida por nós, portanto, como
a foraclusão do significante. No ponto em que, veremos de que maneira, é
chamado o Nome-do-Pai, pode responder no Outro um puro e simples furo, o
qual, pela carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no
lugar da significação fálica” 75. Portanto, aquilo que foi rejeitado no simbólico, a
saber, o significante paterno, reaparece no real, de forma alucinatória, por
exemplo, em algumas psicoses.
Na alienação imaginária na psicose, particularmente, na esquizofrenia,
encontramos o sujeito capturado a este fenômeno fundamental do transitivismo,
no qual o eu é o outro como nos revela a personagem Lol V. Stein de Marguerite
Duras.
O transitivismo é um fenômeno que surge em certos momentos do
desenvolvimento psíquico, após o estádio do espelho76, caracterizado por este
momento de báscula em que as ações da criança e do seu semelhante se
equivalem. A imagem da forma do outro é assumida pelo sujeito, é no
movimento de báscula com o outro que o sujeito se apreende como corpo. Nessa
mesma perspectiva, o que está no sujeito como desejo originário, não constituído
e confuso, é invertido no outro e no qual ele aprenderá a reconhecê-lo. Nas
palavras de Lacan “o sujeito está mais próximo da forma do outro do que do
surgimento de sua própria tendência. Ele é originariamente coleção incoerente de
desejos – aí está o verdadeiro sentido da expressão corpo despedaçado – e a
primeira síntese do ego é essencialmente alter ego, ela é alienada”.77
Por conseguinte, o fenômeno do transitivismo encontra-se instalado na relação
transferencial entre paciente e analista e o laço imaginário entre estes não está
regulado pelo fantasma. Desta forma, se coloca alguma questão norteadora
desta pesquisa: Como produzir uma palavra que possa ser incorporada e que
possa constituir um eu que não é um outro? Como articular o simbólico ao real
na cena analítica para o paciente psicótico que introduza uma separação entre o
eu e o outro? Como amarrar o simbólico ao real no imaginário da cena analítica?
Desta forma, busca-se, através deste estudo, investigar as vicissitudes da função
imaginária do sujeito esquizofrênico na situação psicanalítica de tratamento. Para
tanto, pretende-se descrever de que forma ocorre o fenômeno psicopatológico do
transitivismo, tal como este se apresenta na transferência. Por extensão, esperase que tal estudo permita uma elucidação da direção do tratamento no sentido
da restituição do eu e da imagem corporal do paciente esquizofrênico.
74 Lacan, Jacques. (1957-1958) Op. cit., p.563.
75 Idem, p.564.
76 Idem, ibidem.
77 Lacan, Jacques. (1955-1956). Op. cit.
218
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
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inconsciente. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999.
______________. (1963-964) O Seminário, livro 11, Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
_______________. Homenaje a Marguerite Duras, del rapto de Lol V. Stein. In:
Intervenciones y Textos 2. Buenos Aires: Manantial, 1988.
Quinet, Antonio. As 4+1 Condições da Análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1993.
Safra, Gilberto. O uso do material clinico na pesquisa psicanalítica. In: Silva,
Maria Emila Lino (coord.) Investigação e Psicanálise. Campinas: Papirus, 1993. .
219
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Mulheres e religião em conflito: estudo
das condições da mulher trabalhadora,
seus conflitos e sua religiosidade
Magali Scopel de Araujo
Calvino Camargo
Luciane dos Santos Iriyoda
Centro Universitário de Maringá – CESUMAR
Resumo: Atualmente a mulher passa a representar, cada vez mais, uma
importante fonte de sustento econômico da família. Entretanto, não existe uma
divisão igualitária dos deveres domésticos, o que inclui o cuidado com os filhos. A
igreja é uma das principais mantenedoras desses valores. Sendo assim, este
trabalho buscou levantar dados relativos às relações de poder no contexto
familiar e os conflitos relacionados aos papéis de mulher religiosa em relação ao
trabalho, família, cuidados com os filhos e responsabilidades domésticas, visando
a cooperação para um redirecionamento do discurso religioso atual. A pesquisa
foi realizada com 10 mulheres, pertencentes a diferentes igrejas evangélicas há
mais de 02 anos, residentes na cidade de Maringá, Estado do Paraná,
profissionais ativas em diversas áreas, com pelo menos 01 filho. A coleta de
dados foi efetuada através de entrevista semi-estruturada, utilizando-se
gravador de voz. Numa análise qualitativa, os resultados mostram que de um
universo de dez mulheres, seis dessas gostariam de ser donas de casa. Duas
situações de conflito se apresentaram, em que a primeira refere-se a
necessidade financeira, que leva a mulher para o trabalho, sendo que a sua
convicção religiosa lhe diz que o seu papel deve ser desempenhado na esfera
doméstica. Já a segunda surge nas mulheres que não abrem mão da realização
pessoal com o trabalho, mas sofrem com as exigências da família. Uma terceira
situação foi observada onde não há conflito, neste caso, para apenas 01 mulher.
Palavras-chave: Mulher; Religiosidade; Trabalho; Questões de gênero.
Introdução
Nos dias atuais, além do tempo dispensado ao trabalho doméstico e ao trabalho
remunerado, a mulher se vê obrigada a cumprir um outro turno nas escolas e
universidades, buscando qualificações profissionais, para conseguir superar a
competição no mercado de trabalho. Entretanto, constatam-se, através de
pesquisas, que não existe uma divisão igualitária dos deveres domésticos,
incluindo os cuidados com os filhos. (BIASOLI-ALVES, 2000; FLECK, WAGNER,
2003; KUBLIKOWSKI, MACEDO, 2001). Em virtude disso, mães que não têm
tempo para acompanhar seus filhos no cumprimento de seus deveres, estão
apresentando irritação e impaciência, pois querem que eles cumpram com suas
tarefas sem incomodá-las (BIASOLI-ALVES, 2000). Quando eles adoecem, essa
situação contribui para aumentar o sentimento de culpa pela sua ausência
(BIASOLI-ALVES, 2000; FLECK, WAGNER 2003).
220
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O avanço tecnológico também contribui para a criação de novas necessidades.
Para satisfazer o ideal consumista, é absolutamente necessário que a mulher
coopere financeiramente com a família (LIPOVETSKY, 2000). Mesmo com essa
cooperação, para muitas famílias, a renda mensal ainda é insuficiente. Sendo
assim, a dificuldade financeira têm sido apresentada como causa de estresse e
conflito conjugal. Nas casas de menor poder aquisitivo, geralmente, existe um
baixo nível de coesão entre casais, atribuído, também, ao fato da mãe passar
muito tempo fora de casa e, quando está presente, volta mais sua atenção aos
filhos do que ao esposo (FLECK, WAGNER, 2003).
Em alguns seguimentos profissionais, as condições dadas a mulher têm
contribuído para o agravamento dos conflitos que ela tem vivido. Pesquisa
realizada com analistas de sistemas constatou que os homens predominam nos
cargos de chefia, e na análise de saúde dos trabalhadores, as mulheres sofrem
maiores incômodos causados pela postura desconfortável, maior exposição ao
computador, maior freqüência de sintomas visuais, musculares e relacionados a
estresse, maior insatisfação com o trabalho, maior fadiga física e mental
(ROCHA, DEBERT-RIBEIRO, 2001).
Os resultados mostram que as mulheres têm ocupado os cargos menos
significativos e os homens ocupam os principais. Essas, mesmo protegidas por
acordos registrados e por negociações não sindicais, recebem reajustes menores
do que os homens. Observam-se casais que trabalham em parcerias, onde os
homens admitem o trabalho das esposas, entretanto, elas não têm acesso aos
lucros (VIEIRA, 2005). No México, por exemplo, as mulheres têm mais
dificuldade de conseguir trabalho, principalmente as casadas com filhos pequenos
(CRUZ, NORIEGA, GARDUNO, 2003). Com relação aos meios de comunicação,
esses trabalham a imagem da mulher ideal como a mulher do lar. Isso contribui
para aumentar a sensação de culpa que a mulher tem pelo fato de ter que se
ausentar dos filhos e esposo. (POSSATTI, DIAS, 2002).
A igreja é uma das principais mantenedoras desses valores, além de, em seus
discursos, enfatizar acerca das restrições e temores, ligados ao pecado da
desobediência (BIASOLI-ALVES, 2000). Diante desta realidade, levanta-se como
hipótese que, na sociedade atual, inclusive religiosa, prevalece o discurso
masculino, que contribui para a dominação do homem sobre a mulher,
intensificando situações de sofrimento psico-social e por isso pode transformarse em empecilho para o desenvolvimento e emancipação da mulher.
O objetivo deste trabalho é estudar as relações de poder no contexto familiar
influenciado por valores e ideais religiosos evangélicos e os conflitos relacionados
aos papéis de mulher em relação ao trabalho, família, cuidados com os filhos e
responsabilidades
domésticas.
Desta
forma,
cooperando
para
um
redirecionamento do discurso religioso e possíveis contribuições para uma
reflexão sobre as práticas pastorais na atualidade, bem como a avaliação da
necessidade de desenvolvimento de programas específicos de atenção pastoral
às mulheres, abordando os seus conflitos sociais e religiosos no cotidiano do
trabalho e da família.
221
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Material e métodos
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que investiga valores, crenças, atitudes,
opiniões, relação de poder no contexto familiar e os conflitos relacionados aos
papéis da mulher religiosa em relação ao trabalho, família, cuidados com os filhos
e responsabilidades domésticas. Também discute fenômenos e processos
subjetivos específicos de um grupo composto de 10 (dez) mulheres,
pertencentes a diferentes igrejas evangélicas há mais de 02 (dois) anos;
residentes na cidade de Maringá, Estado do Paraná; profissionais ativas em
diversas áreas; com pelo menos 01 (um) filho. Suas idades variam de 38 a 46
anos, sendo que 01 (uma) possui o ensino fundamental incompleto, 03 (três) o
nível médio, 01 (uma) curso superior incompleto, (04) quatro Lato sensu e 01
(uma) Stricto sensu. A coleta de dados foi efetuada individualmente em suas
residências e locais de trabalho, através de entrevista semi-estruturada,
utilizando-se gravador de voz, com o objetivo de colher dados relativos às
relações de poder no contexto familiar e os conflitos relacionados aos papéis de
mulher religiosa em relação ao trabalho, família, cuidados com os filhos e
responsabilidades domésticas. O levantamento de dados foi executado mediante
parecer favorável do Comitê Permanente de Ética em Pesquisa do CESUMAR
(COPec), sob o número 308/2006.
Resultados e discussão
A análise qualitativa dos dados, permitiu a categorização dos sujeitos em 03
(três) grupos distintos:
GRUPO A – SUBMISSÃO INCONDICIONAL. Mulheres que acreditam na submissão
incondicional ao esposo. Neste grupo encontram-se 03 (três) mulheres, que
afirmam que o homem deve ser o “o sacerdote do lar” e a mulher “a ajudadora”,
declaram que o esposo tem que ser aquele que ensina, sendo o exemplo dentro
de casa, o sacerdote do lar em tudo. Seu comportamento, em termos de
trabalho, surge na opção em trabalhar exclusivamente nas atividades do lar,
enfatizando que seu papel é daquela que faz o pão e a ceara. Em relação ao
discurso religioso, para este grupo, o homem deve ser “o cabeça” da mulher
porque, segundo elas, o homem é mais capaz psicologicamente. Como essas
mulheres estão trabalhando por necessidade econômica; possivelmente o conflito
esteja no fato de que trabalhar fora de casa está em desacordo com suas
convicções religiosas e com o seu papel de esposa e mãe. As mulheres desse
grupo concordam com o discurso religioso de suas igrejas.
GRUPO B – SUBMISSÃO CONDICIONAL. Mulheres que acreditam na submissão
condicional ao esposo. Neste grupo encontram-se 3 (três) mulheres, que
acreditam que o homem deve ser “o líder espiritual” e a mulher “a ajudadora”.
Em termos de trabalho, duas optam por ficar em casa e uma por trabalhar fora,
esta última, desde que seja por realização pessoal. Com relação ao discurso
religioso, seu entendimento é de que a mulher seja submissa ao esposo, desde
que amada e respeitada. O poder do homem parece predominar em termos
religiosos (líder espiritual), contudo, no que se refere ao cotidiano familiar e
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
conjugal, a mulher tem o direito de ser amada e respeitada. Quanto às questões
relacionadas à escolha profissional da mulher, ela deve ter autonomia para
decidir. Os conflitos surgem em duas, possivelmente pelas cobranças da família
sobre os afazeres domésticos e uma do filho em relação a sua ausência. Duas
mulheres desse grupo concordam com o discurso religioso de suas igrejas e
outra não.
GRUPO C – NÃO A SUBMISSÃO E SIM A IGUALDADE. Mulheres que acreditam
que homens e mulheres são iguais e por isso não deve haver submissão. Neste
grupo encontram-se 04 (quatro) mulheres. Para elas homem e mulher dividem
papéis com igualdade de direitos e responsabilidades. Com relação ao trabalho
fora de casa, no geral, a mulher não abre mão, com exceção de uma, que ficaria
em casa exclusivamente para resgatar o relacionamento com o filho.
No que se refere ao discurso religioso, entendem que a mulher é tão capaz
quanto o homem, desta forma, não há porquê existir submissão. O conflito
parece estar nas cobranças de esposo e filhos com relação ao tempo dispensado
a eles, com exceção de uma que não apresenta conflito. Nesse grupo apenas
uma mulher não concorda com o discurso religioso de sua igreja.
Dentro de um universo de 10 (dez) mulheres religiosas e trabalhadoras
pesquisadas, 06 (seis) delas gostariam de ser donas de casa, isto é, ficar em
casa cuidando dos filhos e dos afazeres domésticos. Dessas 06 (seis), 04
(quatro) trabalham exclusivamente por necessidade de sobrevivência, pois
acreditam que a família não pode ser sustentada sem sua contribuição, 01
acredita que a família poderia ser sustentada precariamente e 01 acha que essa
pode ser sustentada sem sua ajuda porque os filhos começaram a trabalhar, o
que ocorreu recentemente.
Numa análise dos sujeitos, surgem dois tipos de situações de conflito: o primeiro
seria o conflito pessoal, que está relacionado à necessidade financeira da família,
a qual leva a mulher para o trabalho, sendo que a sua convicção religiosa lhe diz
que o seu papel deve ser desempenhado dentro da esfera doméstica. O segundo
conflito surge nas mulheres que não abrem mão da realização pessoal com o
trabalho, mas sofrem com as exigências da família em relação aos afazeres
domésticos e a ausência do lar. Uma terceira situação foi observada onde não há
conflito, neste caso, para apenas uma mulher, as realizações familiar e religiosa
não são opostas à realização profissional.
CONCLUSÃO
Chegamos a conclusão que dentro de um universo restrito de dez mulheres, seis
gostariam de ser donas de casa, sendo que dentre essas , quatro delas
trabalham exclusivamente por necessidade financeira, o que demonstra uma
situação de conflito intenso. Constata-se também que oito mulheres concordam
com o discurso religioso de duas igrejas. Isso demonstra que a Igreja é uma
instituição que exerce grande influência sobre a mulher, no que se refere à visão
que ela tem de si mesma em relação ao seu papel familiar. Para a maioria das
223
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
mulheres entrevistadas o papel da maternidade se sobrepõe ao papel
profissional. Sugerimos, então, que nossa pesquisa possa suscitar outras a
respeito do tema em questão. Uma sugestão para esta continuidade seria um
estudo com mulheres religiosas que não trabalham fora, isso contribuiria para
uma melhor compreensão do contexto em que vivem.
Referências:
BIASOLI-ALVES, Zélia Maria Mendes. Continuidades e rupturas no papel da
mulher brasileira no século XX. Psic.: Teor. e Pesq., set./dez. 2000, vol.16, no.3,
p.233-239.
CRUZ, Adriana Cecilia, NORIEGA, Mariano e GARDUNO, María de los Ángeles.
Wage labor, housewifery, and health: qualitative and quantitative differences
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p.1129-1138.
FLECK, Ana Cláudia e WAGNER, Adriana. A mulher como a principal provedora do
sustento econômico familiar. Psicol. estud., 2003, vol.8, no.spe, p.31-38.
KUBLIKOWSKI, Ida e MACEDO, Rosa Maria S. de. Trabalho, família e a mulher na
meia idade: velhos dilemas em novos contextos. Psicol. rev; nov.2001, 12 (2):
pg. 99-107.
LIPOVETSKY, Gilles. A Terceira Mulher: permanência e revolução do feminino.
Tradução: Maria Lucia Machado. S. Paulo: Companhia das Letras, 2000
POSSATTI, Izabel Cristina e DIAS, Mardônio Rique. Multiplicidade de papéis da
mulher e seus efeitos para o bem-estar psicológico. Psicol. Reflex. Crit., 2002,
vol.15, no.2, p.293-301.
ROCHA, Lys Esther e DEBERT-RIBEIRO, Myriam. Trabalho, saúde e gênero:
estudo comparativo sobre analistas de sistemas. Rev. Saúde Pública, dez. 2001,
vol.35, no.6, p.539-547.
VIEIRA, Josênia Antunes. A identidade da mulher na modernidade. DELTA, 2005,
vol.21, no.spe, p.207-238.
224
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
QUE AMORES SÃO ESSES?
Maria Alves de Toledo Bruns78
Universidade de São Paulo
“Amar é também idealizar o eleito”
Juan-David Nasio
Resumo: Parto da premissa de que a ruptura na relação amorosa acentua a
carência que impulsiona a pessoa a buscar satisfação. Segundo Nasio (1997),
carência é um pólo organizador do desejo, só há desejo onde há falta.
Compreender que é o amado que, paradoxalmente, assegura a indispensável
insatisfação, para continuar a desejá-lo é um árduo aprendizado. Para algumas
pessoas, a perda do objeto amado é tão intensa que elas não conseguem abrir
espaço para novos amores. Outras abrem espaço, casam, têm filhos, mas o
eleito amado do passado continua vivo ao longo de toda sua existência. Outras,
por não suportarem a perda do(a) amado(a) se alucinam e matam literalmente
o(a) amado(a). Que amores são esses? Com que trama é tecida esse tipo de laço
amoroso? Participaram dessa pesquisa 15 homens e 15 mulheres com idade
entre 30 e 70 anos, grau de escolaridade médio e superior e de todas as classes
sociais. Seus depoimentos foram submetidos aos passos do método
fenomenológico e interpretados pela perspectiva psicanalista de Nasio (1997),
entre outros. Os depoimentos desvelam a intensidade do prazer erótico. Eles
mantêm acesa a presença imaginária do ser amado, seja religando o passado ao
presente e ao futuro, seja como um espelho interior a refletir a própria imagem.
A dor desencadeada pela perda da pessoa amada se expressa por sinais
corporais: o corpo fala, e fala da experiência da angústia, da solidão e da
desmotivação, por não conseguir atribuir sentido e significado à própria
existência, diante da ausência do ser amado.
Palavras-chave: Fenomenologia, Psicanálise, Separação.
Abstract What kind of love is this? I derive from the premise that the rupture
in a love relationship accentuates the feeling of neediness, which motivates one
to seek for satisfaction. According to Nasio (1997), neediness is what desire
originates from; desire can only be found where there is neediness. The
challenge lies in understanding that it is the beloved one who, paradoxically,
guarantees the indispensable dissatisfaction, so one is able to continue to long
for him/her. For some, the loss of the beloved object is so intense they cannot
manage to open up the door to new love experiences. Others can manage to do
that and get married, have children, but the beloved one from the past remains
78 Líder do grupo de Pesquisa Sexualidade vida-USP/CNPq; [email protected] /
www.sexualidadevida.com.br
225
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
alive throughout their life. Others, yet, unable to overcome the loss of the
beloved object lose their mind and literally kill their beloved one. What kind of
love is this? What kind of fiber is this love bond woven with? Fifteen men and 15
women between 30 and 70 years old, of high school and college education, and
of various social classes participated in this study. Their testimony was submitted
to the phenomenological method and interpreted through the psychoanalytic
perspective of Nasio (1997), among others. Their testimonies reveal the intensity
of the erotic pleasure. They maintain the light of the imaginary presence of the
beloved one. The pain triggered by the loss of the beloved one is expressed
through the body: the body talks, and talks of experiencing anguish, loneliness,
and demotivation for not being able to make any sense or meaning out of its own
existence, without the beloved one.
Key words: Phenomenoly, Psychoanalysis, Separation.
Para a mitologia grega, Eros é o deus do amor, da vida e do movimento, para os
poetas é a magia da vida materializada. Magia que pode nos colocar diante de
situações dolorosas, especialmente quanto à chegada, permanência e partida de
Eros. Isto porque ele chega quando não esperamos e parte quando ainda
clamamos por sua permanência. Outras vezes, parte deixando a impressão de
que se foi tarde.
Nesse descompasso entre sua chegada e sua partida, os sonhos e as fantasias de
amor eterno são solapados pelos ventos da impotência, que nos desestabilizam e
nos arremessam de encontro à crua realidade – a evidência de que “a
estabilidade e a segurança tão apregoadas e almejadas pela fidelidade habitam
tão somente o mundo do faz-de-conta, ou seja, os reinos encantados – onde
vivem os príncipes e as princesas” (Bruns, 2001).
É esse descompasso que se constata, de modo geral, nos relacionamentos,
quando um dos parceiros se encontra pronto para partir e o outro não percebe as
evidências, os sinais que indicam sua partida. E, quando os percebe, ainda assim,
precisa de tempo para processar a perda do(a) amado(a). É que o seu tempo de
partida ainda está para chegar (Bruns, 2001).
Nesse desencontro, a realidade da experiência amorosa registra momentos de
desencantos e sofrimento. Afinal, a ruptura na relação amorosa acentua a
carência – o vazio ontológico –, que impulsiona a pessoa a buscar satisfação.
Carência, vista pela perspectiva de Nasio (1997), é um pólo organizador do
desejo, só há desejo onde há falta.
Compreender que é o amado que, paradoxalmente, assegura a indispensável
insatisfação, para continuar a desejá-lo é um árduo aprendizado. As lembranças
ultrapassam as fronteiras do tempo cronológico e tornam-se propriedades do
sujeito. O inconsciente é atemporal e a experiência amorosa, certamente, foi
vivida, em ritmo vibrante, prazeroso e intenso. A intimidade erótica nesse tipo de
experiência é imantada por um colorido extraordinário, matizado pelas
excitações, registradas, internalizadas e guardadas na memória inconsciente.
226
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A dor da perda do amado é explicitada por Nasio (1997) como sendo uma fratura
da fantasia que mantém acesa a ligação amorosa, ou seja, a dor psíquica provém
da hipertrofia da imagem do eleito.
Nesta pesquisa, busco compreender: Que amores são esses que nem o tempo,
com sua incontestável força, e nem outros amores conseguem ressignificar e/ou
desimantar? Que amores são esses que permanecem, assim como uma
“impressão digital”, invisíveis a olho nu, contudo, marcas límpidas, gravadas em
nossas memórias? Como e por que isso ocorre? Com que trama é tecida esse
tipo de laço amoroso? O que faz esse amor ser tão especial? Para algumas
pessoas, a perda do objeto amado é tão intensa que elas não conseguem abrir
espaço para novos amores. Outras abrem espaço, casam, têm filhos, mas o
eleito amado do passado continua, tal como um vulcão, a jorrar suas lavras
incessantemente ao longo de toda sua existência. Outras, ainda, por não
suportarem a perda do(a) amado(a) se alucinam e matam literalmente o(a)
amado(a). Como nos dizeres de Nasio (1997): “O que dói não é perder o ser
amado, mas continuar a amá-lo mais do que nunca, mesmo sabendo-o
irremediavelmente perdido”.
Diante dessa realidade, entrei em contato com pessoas conhecidas e as convidei
para participar dessa pesquisa, que tem como objetivo entender a
experiência/processo desse tipo de relação amorosa para, assim, poder
compreender os significados e os sentidos que elas atribuem a tal experiência.
Para iniciar o diálogo entre a pesquisadora e o(a) colaborador(a) utilizei a
seguinte pergunta: Na sua historia de vida, você teve uma experiência amorosa
que continua ressoando no presente? Descreva como foi e como tem sido
conviver com essa experiência amorosa no decorrer de sua vida.
Para minha surpresa, esse tema foi passando de boca em boca e, nesse
momento, conto com mais de 30 histórias de amor vividas por homens e
mulheres de todas as idades, classes sociais, religiões, partidos políticos, raças e
orientações sexuais. Mesmo em tempos de amores líquidos, efêmeros, esses
amores continuam “sólidos” no decorrer de toda uma existência. Que amores são
esses?
Apresento nesse momento análise parcial dos relatos, que foram submetidos aos
passos do método fenomenológico e interpretados pela perspectiva psicanalista
de Caruso (1981), Barthes (1991), Nasio(1997), entre outros que focam seus
olhares nesse fenômeno. Seguem fragmentos de discursos reveladores da
singularidade e da significância atribuídas à experiência amorosa, vivida por
homens e mulheres.
“Nosso relacionamento terminou há cinco anos. Sofri muito mesmo. Fiquei
doente. Terminou? Não sei... até hoje ele está presente. Sabe! Vivemos
intensamente, foi forte demais. Às vezes sinto o cheiro de seu perfume e faz 5
anos que não o vejo.” Colaboradora 1, 30 anos, profissional da saúde, casada,
uma filha.
227
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A separação dói! Sempre? Muito? É suportável? Por que o desejo por
tanto tempo?
“Antes dela, eu tive outros amores... e tenho até hoje, mas não consigo
esquecê-la, esse é o meu segredo, às vezes, quando ouço uma música, ou
simplesmente um andar ou um gesto de outra mulher, esses desencadeiam
lembranças e saudades de um tempo que em fui muito feliz. Separamos e eu
sofri muito. Ela também. Foi muito difícil assumir outro relacionamento. Mas...
eu não tive coragem para assumir uma mulher independente. Ela era
independente demais e eu tive medo, nessa época eu tinha 25 anos. Fui
influenciado pela minha mãe que dizia: “Essa moça é livre demais, ela não será
uma boa esposa”. Segui esse conselho e voltei com a noiva, me casei, tenho
filhos e segui o curso da vida. Hoje estou velho e avalio o quanto construí uma
vida sem tesão e sem amor.” Colaborador 2, 55 anos, profissional liberal,
casado, três filhos.
“Tivemos um relacionamento há mais de 20 anos. Hoje, sou casada, realizada
profissionalmente, mas ela continua, como uma sombra, a seguir meus passos.
Às vezes, sinto seu perfume, seu jeito de amar.” Colaboradora 3, 49 anos,
empresária, casada, três filhos.
“Após prestarmos o vestibular, tivemos que seguir nossas escolhas profissionais
e ela foi estudar a mais de 3 mil km da minha universidade. Fui visitá-la muitas
vezes, mais fui definhando... sentia tanta falta dela que fiquei doente por sua
ausência... Éramos um inteiro, estudávamos juntos, passeávamos e fazíamos
planos para continuarmos nossa vida. Lembro-me que sofremos muito, muito
mesmo, na despedida. Casei com outra mulher, tive filhos, me separei e
continuo amando-a. Sabe... que há uns 10 anos atrás eu não resisti, utilizei
todos os meios e consegui entrar em contato com ela. Telefonei, e ao ouvir sua
voz, não acreditava que era verdade. Pensei: estou vivendo um sonho!
Marcamos um encontro e passamos um final de semana juntos. Foi como se o
tempo não tivesse passado. Revivemos tudo e retomamos o curso do tempo,
com suas ciladas. Ela é uma famosa profissional, casou, é mãe. Pensamos em
retomarmos a nossa história, mas na nossa história tem muitas outras histórias
– filhos, esposa, marido, trabalho, trabalho. Mexer nisso tudo? Como mudar
tudo??? Chegamos à conclusão que seria impossível. Passados mais 3 anos ela
me ligou propondo um novo encontro... Mas os compromissos profissionais
naquele dia impediram-me de ir ao seu encontro. Sofri muito, mas como sair de
uma hora para outra? Meu trabalho exige planejamento para poder ausentar-me.
Depois dessa tentativa mantemos o silêncio. Sei que sou para ela o que ela é
para mim. [Mais um silêncio interrompe o diálogo interno e, com os olhos
marejados de lágrima, pede para eu lhe responder] Porque esse amor se
mantém no decorrer de todo esse tempo? Porque esse amor se mantém? Por
que o esquecimento não consegue se instalar e apagá-lo de minha memória?
Que amor é esse???!!” Colaborador 4, 53 anos, empresário, separado,2 filhos.
As lembranças ultrapassam as fronteiras do tempo cronológico. A plasticidade do
inconsciente explicita o sabor único do desejo. Assim, a significância da relação
228
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
amorosa continua sendo como uma “impressão digital”, invisível a olho nu,
todavia, límpida, gravada em suas memórias.
Como nos dizeres de Barthes (1981), “Encontro pela vida milhões de corpos;
desses milhões posso desejar centenas; mas dessas centenas amo apenas um. O
outro pelo qual estou apaixonado me designa a especialidade de meu desejo”.
Na fala do Colaborador 1: “(...) eu não consigo esquecê-la”, na da Colaboradora
2: “(...)Terminou? Eu não sei”, bem como na da Colaboradora 3: “Ela continua,
como sombra, a seguir os meus passos”, e, ainda, na do Colaborador 4: “Porque
esse amor se mantém no decorrer de todo esse tempo? Porque esse amor se
mantém? Por que o esquecimento não consegue se instalar e apagá-lo de minha
memória? Que amor é esse???!!” fica evidente a perplexidade diante do enigma
da escolha do desejo de reter um ÚNICO, ESPECÍFICO.
Ao re-visitarem as experiências que tiveram, seus compassos demarcados por
uma afinação e satisfação intensa, ao perceberem que o eleito amado não está
mais presente para re-alimentar o ritmo do próprio desejo, eles sofrem por não
compreenderem o caráter indomável e paradoxal de Eros em não oferecer
certezas e tampouco garantia da duração desse estado de êxtase.
A intensidade do prazer erótico, a cumplicidade e intimidade, mantêm acesa a
presença imaginária do ser amado, seja religando o passado ao presente e ao
futuro, seja como um espelho interior a refletir nossa própria imagem.
A dor desencadeada pela perda da pessoa amada se expressa também por sinais
corporais: o corpo fala, e fala da experiência da angústia, da solidão e da
desmotivação, por não conseguir atribuir sentido e significado à própria
existência, diante da ausência do ser amado.
Segundo Igor Caruso (1981), a separação amorosa é uma das experiências mais
dolorosas vividas pelo ser humano, sendo pior do que a própria morte física. Há
na separação dos amantes uma sentença de morte recíproca, isto é, o outro
morre, em vida, dentro de mim enquanto eu morro na consciência do ser amado.
É o sentimento de que, apesar de me encontrar viva em meu corpo, sou um
cadáver para o eleito amado. Na visão desse autor, a separação é vivenciada de
modo equivalente ao processo abortivo, é arrancar a vida que floresce dentro do
ser.
Para Nasio (1997), “A pessoa amada é para o eu tão essencial quanto uma perna
ou um braço. Seu desaparecimento é tão revoltante que o eu ressuscita o amado
sob a forma de um fantasma. Desse modo, o amado continuará tal qual um
fantasma, a habitar o eu”.
Nesse trajeto, Eros realiza sua hermenêutica ao circunscrever nossa carência
irredutível. Carência que não só aspira ao desejo, como o organiza e orienta-nos
para a vivência do prazer absoluto, materializada nos momentos de sintonia
erótica. Audacioso, desafia as interdições, ora se alimenta de fantasias cujas
realização só a tão sonhada completude pode possibilitar, ora mergulha na dor
229
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
da separação e indaga, como o Colaborador 4, “Por que o esquecimento não
consegue se instalar e apagá-la de minha memória? Que amor é esse???!!”.
Referências bibliográficas
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BRUNS, Maria Alves de Toledo. O amor rompendo preconceitos. São Paulo:
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230
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Oficina de mosaico de papel: pesquisa sobre a
potencialidade mutativa de um enquadre diferenciado
para atendimento de pacientes com seqüelas
neurológicas graves
Maria Cecília Martins Ribeiro Corrêa
Tânia Maria José Aiello Vaisberg
Resumo: O presente trabalho se insere num conjunto de pesquisas cujo objetivo
é propor e avaliar a eficácia mutativa de enquadres clínicos diferenciados, de
modo que os benefícios do saber psicanalítico possam ser estendidos para grupos
que, geralmente, deles são excluídos. Aborda como fenômeno uma experiência
que foi concebida para atender, em contexto institucional, pacientes adultos com
deficiências físicas predominantemente adquiridas, que vivem em situação de
vulnerabilidade social e emocional. Esse atendimento configura-se como uma
oficina inspirada no estilo clínico Ser e Fazer, modalidade de trabalho
winnicottiano desenvolvido na Pontifícia Universidade Católica de Campinas e na
Universidade de São Paulo. Os procedimentos de pesquisa consistiram no
registro da experiência por meio de narrativas psicanalíticas e no seu exame à
luz do uso do método psicanalítico. A investigação permitiu perceber que os
sofrimentos dessas pessoas emergem a partir de dois campos psicológicos
diferenciados entre si, mas intimamente conectados - “interrupção trágica do
viver” e “corporeidade estrangeira”. Habitando tais campos, esses pacientes
encontram-se, muitas vezes, numa condição de vivência de radical exclusão da
comunidade humana. Constatamos que esse atendimento se configurou como
um encontro inter humano, no qual experiências criativas, que possibilitaram a
produção de novos sentidos e de novas maneiras de viver, foram concretamente
vividas. Foi possível favorecer a realização de ações transformadoras sobre o
mundo, o que, em seu conjunto, gerou um efeito de restauração de dignidade no
convívio social, configurando-se então como um campo de “sociabilidade com
dignidade”. Como conclusão, é possível afirmar que, ainda que os campos
inicialmente encontrados continuem operantes, importante transformação clínica
pôde ser alcançada.
Palavras-chave: enquadres clínicos diferenciados, oficina psicoterapêutica de
criação, deficiências físicas, D.W.Winnicott, Psicanálise.
Abstract - The present work is part of a group of studies aimed to evaluate the
changing potential of a differentiated clinical approach that extend benefits from
psychoanalytical knowledge to groups of people commonly excluded from it. Our
work uses a phenomenological approach of an experience that was idealized to
assist, in an institutional context, adult patients with predominantly acquired
physical disabilities that are socially and emotionally vulnerable. This model of
assistance consists in a workshop inspired on the Being and Doing clinical style, a
modality of Winnicott’s work developed in two Brazilian Universities: Pontifícia
Universidade Católica and Universidade de São Paulo. Research procedures
231
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
involved registering the experience through psychoanalytical narratives that
could be evaluated in light of psychoanalytical methods. This investigation results
suggest that these people’s suffering emerges from two differentiated
psychological dimensions intimately connected – the “tragic interruption of living”
and the “living in a foreigner body”. By maintaining themselves in these
dimensions, patients frequently found themselves in a situation of radical
exclusion from the human community. In our work, the proposed model of
assistance represented an inter-human encounter in a context from which
creative experiences that resulted in new meanings and new ways of living could
be concretely experienced. It was possible to facilitate the occurrence of world
transforming actions that all together generated a restoration effect on dignity
and social interaction that created an environment of “social interaction with
dignity”. In conclusion, it is possible to affirm that despite the two continuously
operant psychological dimensions, important clinical transformation could be
reached.
Key-words: differentiated clinical approaches, psychotherapeutic
workshops, physical disabilities, D.W. Winnicott, psychoanalysis.
creation
Com o objetivo de atender a grupos sociais excluídos dos benefícios oriundos do
saber psicanalítico, desenvolvemos um conjunto de pesquisas que propõe e
avalia a eficácia mutativa de enquadres clínicos diferenciados, na Universidade de
São Paulo e, mais recentemente, na PUC-Campinas. Trata-se de um grupo de
pesquisadores que busca enquadres psicoterapêuticos diferenciados inspirados
na psicanálise winnicottiana.
Neste artigo apresentamos uma experiência clínica que se configura como uma
oficina inspirada no estilo clínico Ser e Fazer. Essa experiência, ainda em curso,
teve início em agosto de 2005, quando uma instituição nos contatou solicitando
entretenimento para um grupo de pacientes adultos com deficiência física
predominantemente adquirida e que vivem em situação de exclusão e
vulnerabilidade social.
Na atualidade, nós, profissionais da saúde mental, somos chamados a responder,
em nossa prática clínica cotidiana, a demandas complexas, diversificadas e
muitas vezes inéditas. Essa situação pede abertura e disponibilidade para
“desenvolver enquadres clínicos diferenciados capazes de atender ao sofrimento
humano de modo integrado a sua vida, solidário, ético, respeitoso e inclusivo”
(Aiello-Vaisberg, 2004). Em nossa primeira entrevista com os responsáveis da
instituição, observamos que o pedido de entretenimento para os pacientes
respondia a uma necessidade de vê-los ocupados durante todo o dia.
Ainda que pareça uma demanda plausível, trata-se de uma visão que
desconsidera necessidades humanas fundamentais, o que não nos parece
aceitável, nem do ponto de vista da clínica nem eticamente. Contudo,
encontramos espaço institucional para iniciar encontros com os pacientes de
acordo com nossos próprios termos, propondo a realização do atendimento a
partir do enquadre clínico diferenciado que tem sido utilizado em situações
232
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
clínicas igualmente desafiadoras. Alguns exemplos são o cuidado ofertado a
pacientes soropositivos para HIV (Mencarelli, 2003) e a pacientes vítimas de
doença neurológica fatal e progressiva (Vitali, 2004).
Essa modalidade clínica pressupõe o homem como um ser criativo, criador de
sentidos, concebe saúde como possibilidade de realização do potencial individual
e coletivo e define-se como um encontro interhumano que tem como modelo o
brincar. Caracteriza-se por se articular ao redor de um material mediador, por
ocorrer preferencialmente em grupo e por adotar o holding como intervenção
fundamental. Importante destacar que, nesse enquadre, o holding sempre se
relaciona à busca pela autenticidade pessoal do cuidador e à manutenção de uma
situação que favoreça a continuidade de ser, a superação de dissociações e a
esperança de o paciente sentir-se vivo e real; isto é, ir “sendo-se” na
continuidade do tempo e no espaço compartilhado com o outro na sua
comunidade.
Nas oficinas de estilo clínico Ser e Fazer, um material mediador é então escolhido
e apresentado pelo terapeuta ao grupo, em um ambiente propício ao
desenvolvimento da capacidade de brincar, com o objetivo de diminuir o
sofrimento e favorecer a integração, expressão e realização dos vários potenciais
dos pacientes. Trata-se de uma prática que adota como paradigma o Jogo de
Rabisco (Winnicott,1971), usado no contexto de um enquadre particular,
denominado consultas terapêuticas. Esse jogo se configura como um mediador
da relação entre paciente e terapeuta, cujas características essenciais seriam sua
natureza formless e a presença integrada do terapeuta suficientemente
amadurecido para “ser e fazer” como pessoa total.
No enquadre clínico aqui em foco, a materialidade mediadora foi papel colorido,
apresentado juntamente com um convite para o grupo criar e compor
coletivamente uma paisagem, que teve como suporte uma folha de papel craft
de 1,20m X 0,90m com uma linha traçada em seu sentido longitudinal,
denominada linha do horizonte.
Desde sua concepção, essa intervenção aconteceu em grupo, sendo este, na
experiência aqui relatada, aberto e formado no máximo por dez pacientes de
ambos os sexos e na faixa etária compreendida entre 40 e 70 anos. Todos os
pacientes apresentam deficiências físicas, em sua maioria adquiridas e
decorrentes de diferentes etiologias, como acidente vascular cerebral,
aneurismas ou acidentes domésticos. Os encontros ocorrem uma vez por
semana, com três horas de duração. Nessa oficina, o mosaico de papel é criado e
confeccionado coletivamente, com todos os pacientes acomodados ao redor de
uma mesa que tem o papel craft no centro. Cada um contribui para construção
do mosaico de acordo com sua possibilidade e disponibilidade. Assim, existem
alguns pacientes que podem cortar e colar papéis, outros podem apenas cortar e
há também aqueles que podem apenas narrar o que está sendo construído pelo
grupo.
A Pesquisa
233
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A pesquisa, que tem como objetivo o estudo da eficácia clínica de uma
experiência que teve lugar no contexto de um enquadre diferenciado, acima
descrito, faz uso de dois tipos de procedimentos investigativos: narrativas
psicanalíticas79, mediante as quais realizamos um registro do acontecer clínico,
que permite sua comunicação a outros pesquisadores, e abordagem psicanalítica
da narrativa, tal como é formulada pela Teoria dos Campos (Herrmann,1979;
Aiello-Vaisberg,1999).
Assim, realizadas as sessões, a terapeuta80 elaborou uma narrativa do acontecer
clínico, a partir da observância do método psicanalítico. Assim, associou
livremente às lembranças do encontro, cultivando a atenção flutuante segundo
um estilo fenomenológico que busca o desapego de teorias, conhecimentos e
crenças prévias, para alcançar uma abertura máxima à emergência do novo, do
desconhecido. Posteriormente, a narrativa foi psicanaliticamente lida e relida,
pela terapeuta e pela co-autora, no intuito de “deixar surgir”, “tomar em
consideração” e “completar o desenho” (Herrmann, 1979), tendo em vista captar
o substrato afetivo-emocional a partir do qual emergiram as diversas
manifestações e comunicações emocionais dos pacientes.
Psicanaliticamente, pudemos apreender sofrimentos do grupo como emergentes
a partir de dois campos psicológicos distintos, porém relacionados: o campo da
“interrupção trágica do viver” e o campo da “corporeidade estrangeira”.
O uso de materialidades exige a presença do corpo; desse modo, podemos supor
que o enquadre aqui proposto favorece o aparecimento do campo “corporeidade
estrangeira”. Durante a construção do mosaico, surgem queixas dos pacientes
relativas às suas deficiências e às consequentes dificuldades sentidas diante do
fazer. Observamos, então, que essas queixas sempre se referem a um outro
corpo, por exemplo: “a mão boba”, “a perna boba”, “o olho bobo”. O desconforto
de viver em um corpo que não responde às suas necessidades e desejos é
também assinalado pelos pacientes literalmente: - você não sabe o que é
acordar em um corpo que não te obedece e que não reconhece como seu. Diante
desse sofrimento por habitar um corpo deficiente, a experiência de corporeidade
fica então referida a dois corpos: um saudável, vivido com nostalgia, e outro
deficiente, vivido como estrangeiro. A vivência de acordar e sentir-se habitando
um corpo que não reconhece como seu rompe a experiência de continuidade da
vida;
Em diferentes momentos, deparamos também com sofrimentos que decorrem do
fato dos acidentes e doenças, geradores das seqüelas, serem vividos como
desprovidos de sentido, como absurdos. As perdas, os projetos de vida
interrompidos, as convivências sociais dificultadas, os hábitos cotidianos e de
lazer impedidos, acabam por configurar o campo da “interrupção trágica do
79 A narrativa psicanalítica elaborada para este estudo encontra-se na íntegra no final
deste artigo, após a bibliografia.
80 Os atendimentos foram realizados por Maria Cecília Martins Ribeiro Corrêa
234
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
viver”. Além disso, a situação de vulnerabilidade social em que esses pacientes
vivem incrementa esse sofrimento, pois dificulta a possibilidade de confiança no
mundo humano e não humano.
Com a experiência de continuidade favorecida pela constância dos encontros
clínicos, o grupo pode confiar e compartilhar seu universo particular: escaras,
amputações, infecções, hospitalizações, cadeira de rodas, bengalas, adaptações,
discriminação, exclusão social e medos. Universo dramático, difícil de dizer para o
outro, apesar da necessidade de compartilhamento.
Considerações Finais
Diante da dimensão das carências desse grupo, alguns podem imaginar que
qualquer iniciativa, que pudesse representar alguma atenção interhumana,
poderia ser considerada clinicamente eficaz. Entretanto, no percurso da
experiência aqui em foco, pudemos observar a retomada do desenvolvimento
pessoal dos pacientes através de gestos que favorecem o convívio social,
facilitam a higiene, promovem a melhora do estado clínico, diversificam as
maneiras de participar da oficina de mosaico e abrem a possibilidade de
participação na vida comunitária como agentes transformadores da realidade.
Concluindo, todas essas mudanças, que nos parecem significativas, geraram
restabelecimento de dignidade no convívio social, configurando então uma
“sociabilidade com dignidade”, mesmo com os campos “interrupção trágica do
viver” e “corporeidade estfc rangeira” permanecendo operantes.
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Narrativa do acontecer clinico investigado
em
236
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Apresentaremos a seguir uma narrativa, intitulada “Um Lugar: O Campo”, na
qual o acontecer clínico é registrado como experiência vivida pela terapeuta,
abrangendo o período durante o qual o primeiro painel foi confeccionado pelo
grupo.
Cheguei à instituição acompanhada da fé, de concepções, de conceitos, préconceitos, convicções, papéis coloridos e cola. Fui recebida e surpreendida por
um grupo vivo, muito barulhento e sedento de atenção.
As limitações físicas dos pacientes que a princípio, na minha imaginação, me
pareciam obstáculos logo se transformaram - tinha diante de mim seres
humanos vivos, que queriam conversar, contar sua história de vida seu passado,
seu presente e seu futuro; queriam atenção, necessitavam de tempo e
disponibilidade afetiva. Nesse encontro, dentro de mim, proponho-me a viver
com esse grupo uma experiência no tempo que ele demandasse.
Iniciamos nosso encontro conversando sobre nossas origens: nosso nome, onde
nascemos, como éramos chamados, como vivíamos, do que brincávamos, o que
cantávamos, “causos” que ouvíamos e tudo mais que viesse à tona. Em meio a
um turbilhão de falas e memórias, abriu-se no grupo a possibilidade de
apresentação e compartilhamento dos seus diferentes universos e também dos
seus pontos em comum, sendo a vivência da roça, do campo, partilhada pela
maioria. A partir desse lugar, dessa marca em comum, definimos o tema da
paisagem a ser coletivamente construída em mosaico de papel, “O Campo”.
Desconfiados porém entusiasmados, após esclarecimento sobre o que é um
mosaico de papel e como seriam nossos encontros, o grupo iniciou seu trabalho:
picar papéis e colá-los no suporte, um papel craft grande, que ocupava
praticamente toda a mesa, com uma linha desenhada a qual denominamos linha
do horizonte. Durante a construção do céu e do chão, o fundo da nossa
paisagem, um grupo esperançoso e muito hesitante emerge e surpreendido pela
experiência brincante e viva, arrisca-se e faz, possibilitando-me vislumbrar seu
potencial através da dimensão lúdica alcançada.
O céu e o chão da nossa paisagem vão aparecendo e junto com eles a confiança
na terapeuta e as dificuldades para fazer. Impôs-se, em nossa experiência, a
doença, o limite, o corpo impedido e estranho, a vida tragicamente interrompida.
Porém, a plasticidade característica do mosaico de papel permite adequar os
fazeres com as disponibilidades, possibilidades e limites do grupo, favorecendo
as relações, criando um clima de cumplicidade e coesão entre os participantes e
garantindo a continuidade da oficina.
Paralelamente, nesse momento, surgiu uma questão: quais serão as figuras que
irão compor esse fundo? Quem habitará essa paisagem?
Assim, cada paciente escolheu um animal para colocar no painel que usarei,
nessa narrativa, para representar e apresentar as pessoas do grupo:
O Cavalo – o paciente viajante. Acordou, escorregou, bateu a cabeça e mudou
radicalmente sua vida, afirma que adquiriu uma escara que jamais irá fechar.
237
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Não pode mais rasgar, colar e nem se locomover. Imagina e fala com e pelo
grupo, tem um melhor nível sócio cultural, escreve no computador, enriquece o
grupo com suas colocações. “Topa” escrever uma narrativa sobre nossos
encontros, vamos ver...
O Pavão – a paciente vaidosa. Sempre muito arrumada, com unhas feitas, brinco
e colar, fala sem parar, não se locomove e refere-se à sua mão comprometida
como mão “boba”. Aceita minha ajuda para colar os papéis e acolhe, durante
nossos encontros, minhas interferências em seu monólogo, abre sua fala para
um diálogo: olha para o grupo, escuta.
O Passarinho – a paciente delicada. Fala muito pouco, não tem autonomia para
se locomover. Mostra lindos olhos azuis e um sorriso tímido que me encantam.
Tem uma fala mansa, baixinha, difícil de entender mas, silenciosa e tímida, rasga
e cola o papel no suporte com autonomia – marca sua presença naquele espaço
à sua maneira: silenciosa, delicada e livre.
A Arara – a paciente barulhenta. Caminha com bengala, lamenta a mudança
brusca de bairro a partir da fratura na bacia. Lembra-se e fala de sua história,
conta “causos” e canta:...”Saudades palavra triste...”. Fala de seu passado: boa
filha dedicada, agora solteira e solitária. Revela-se brincalhona, participativa,
acolhe as idéias do grupo, rasga e cola os papéis com autonomia. Surpreende-se
e encanta-se com a paisagem colorida que vai sendo construída. Em alguns
momentos ranzinza e brava, não suporta o grupo, afasta-se temporariamente.
A Onça Pintada – o paciente hábil. De nome difícil de lembrar, locomove-se com
bengala e também tem mão “boba e desobediente”. Alegre, pedreiro com muito
orgulho, habilidoso e caprichoso “assentador” de papéis. Vejo-o assentando
tijolos enquanto cola papéis.
O Elefante – a paciente densa. Curiosa, desconfiada, subjetivamente pesada,
tem autonomia, mas sem andar. Por necessidade e empatia – creio eu – topou
de imediato a experiência, ajuda-me muito com sua atitude colaborativa, com
suas conversas. Mineira, olha-me pelo canto dos olhos, a sensação que tenho é
de que ela vê tudo; companheira.
A Arara também – a paciente viva. Não pode tocar em nada, tudo dói. Conta
para o grupo sua história de amor e movimento – esposa de um caminhoneiro
vivia, com ele, pelas estradas da vida. Participa dos encontros quando quer.
Surpreendente, denuncia: “- um dia acordei assim! Num corpo que não é o
meu!”. Hostilizada pelo grupo é presença viva e espontânea – sofre.
E eu, sou passarinho também.
Vamos, com essa composição, fazendo nosso percurso construindo um lugar, o
campo. Concomitantemente ao fazer, as fragilidades para o acontecimento dos
nossos encontros aparecem: falta privacidade na sala de atendimento, o tempo
de duração de nossos encontros é pequeno, o motorista que transporta os
238
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
pacientes não foi trabalhar – não houve atendimento, fez frio - nenhum paciente
foi à instituição, a terapeuta ficou doente – faltou.
Esses acontecimentos levaram nossas conversas, enquanto fazíamos o mosaico,
para o tipo de vínculo existente entre eu e a instituição, entre os pacientes e a
instituição e entre eu e o grupo. Olhando para essas questões objetivas,
vislumbrei as experiências subjetivas.
Falar de vínculos é falar sobre confiança, dependência, medos, precariedades
dessa vida. Entendi que a questão nesse momento era: a senhora nos agüenta?
A instituição agüenta? Nós agüentamos? Iremos até o fim? Daremos
continuidade? Seremos interrompidos? Retomo nosso contrato e garanto:
estaremos juntos o tempo necessário para concluirmos esse painel com o
mosaico de papel.
Concluímos o fundo. Estamos agora no exato momento de por vida no lugar, de
colar as figuras no fundo, de colar árvores e bichos na paisagem do campo.
Iniciamos pelas árvores. Olhamos nosso trabalho de perto, contemplamos de
longe, conversamos sobre nossas árvores preferidas, observamos atentamente
um quadro do Monet da parede da nossa sala, falamos sobre a paisagem do
campo que estamos construindo e escolhemos o lugar das árvores: as grandes
nas pontas e as pequenas no centro.
Meus sentimentos eram de tensão. Atravessávamos um momento de risco? A
arara – a paciente barulhenta, não quer mais participar. Serão ressonâncias da
lucidez a respeito da precariedade da vida? Será o momento – colar figuras, a
vida, no fundo? Será um mal estar geral da convivência em grupo?
Não sei. Sentia-me inteiramente comprometida com nossa experiência e juntos
experimentávamos a visita da dúvida, do não saber, do medo, da ansiedade e da
angústia. Identifico nesse momento o sofrimento relativo à experiência de
interrupção trágica do viver. Silenciosamente, fazemos e colamos algumas
árvores, mas elas não sobreviveram, isto é: não satisfizeram o grupo e foram
retiradas do mosaico no encontro seguinte
Questiono (comigo mesma), se fazer e colar as árvores naquele momento não
estava a serviço de “remendar”, reagir, ao sofrimento que vivíamos. Isto é, uma
paralisia, com ansiedades e angústia geradas pela sensação de estar imerso nas
dúvidas quanto à qualidade de nossos vínculos, à possibilidade de confiar ou não,
ao medo do risco da interrupção dessa experiência. Nessa condição, como colar
a figura? Como dar vida ao painel? Como aparecer no grupo? Como prosseguir?
A minha abertura e disponibilidade verdadeira de estar junto com esse grupo
somada à continuidade dos nossos encontros possibilitou atravessarmos essa
situação e o universo de vivências particulares, inerentes a experiências desse
grupo, passou a ser compartilhado durante nossos encontros: as dificuldades
com as escaras e o paciente que necessitou amputar suas pernas porque não
cuidou delas. As infecções urinárias recorrentes e a paciente que foi
hospitalizada. O impedimento de sair do quarto da sua casa por não haver
239
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
qualquer tipo de adaptação que favoreça sua mobilidade. A dificuldade de
enxergar, de ir ao oculista. A raiva e a dor de, um dia, ter sua vida tragicamente
interrompida e repentinamente acordar com um corpo que não reconhece como
seu e que não responde à sua vontade – acordar sem entrever a liberdade.
Dessa vez, compartilhando as sofridas experiências humanas, encontramos uma
solução para tronco, folhas e flores da nossa paisagem que agradou a todos. As
árvores sobreviveram e nós também!
Continuamos nosso mosaico acompanhado de explicitações do universo de
vivências desse grupo: a discriminação e exclusão social, a submissão e invasão
pelo outro, a falta de sentido para a fatalidade, o potencial morto, a solidão.
Nesse momento aparece no grupo a valorização do nosso processo, aparece a
satisfação e o entusiasmo com a paisagem que vem sendo construída e o pedido
de fazer o mosaico nos dias que não estou na instituição. Acolho o pedido, deixo
os materiais com a enfermagem.
Estamos chegando ao fim: as árvores na paisagem estão praticamente prontas,
resta colar os animais escolhidos. A arara, a paciente barulhenta, visita o grupo,
admira-se e surpreende-se com a paisagem, retorna entusiasmada aos
encontros. O grupo, paradoxalmente, parece não finalizar, surgem sempre novas
idéias. Pergunto-me: estamos adiando o fim? Será um novo projeto? Ou estamos
nos aprontando para o fim?
Colamos os animais, cada paciente escolhe o seu lugar. Reflito como foi
importante enriquecermos nossa paisagem com animais, seres de movimento
que inspiram liberdade, e como foi rico imaginar o que tinham para contar do
lugar a partir do qual podiam olhar e interagir com a paisagem criada.
Estamos todos satisfeitos com o percurso. Junto com o grupo, olhando o mosaico
de longe, lembro-me de um quadro chamado “Roda” do artista Milton Dacosta.
Quieta, em nosso penúltimo encontro, levo um xerox dessa imagem com a
esperança secreta do grupo expressar o desejo de incluir pessoas no mosaico. O
Cavalo, o paciente viajante brinca, com seu olhar e imaginação, de encontrar
pessoinhas e outras figuras nos pedacinhos de papel que compõe nossa
paisagem e acaba por lamentar a ausência de pessoas e expressa o desejo de
incluí-las no mosaico.
Nesse momento mostro para o grupo a figura que trouxe. Todos gostam,
brincam, lembram de suas cirandas. A imagem é recortada e colada,
acrescentamos mais dois meninos e assim todos do grupo estão lá humanizados
– a vida, a brincadeira instala-se em nosso encontro.
Último encontro, celebramos o fim. O lanche dos pacientes é servido em nossa
sala. O Cavalo, o paciente viajante, lê sua “narrativa-relatório” sobre nosso
percurso. Eu entrego para cada paciente um cartão postal com a imagem do
nosso mosaico, o título da nossa obra é colocado – Um lugar, o Campo.
240
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Chegamos ao fim: - “Fazer um fim é fazer um começo”, como disse Elliot, o
poeta. As idéias que me animam agora são aberturas para novos projetos com
esse grupo.
Mosaico de papel intitulado “Um Lugar: O Campo”
241
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Pesquisa fenomenológica e intervenção: possibilidades
Mauro Amatuzzi
Karine Cambuy
Thais de Assis Antunes
Pedro Vitor Barnabé Milanesi
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Resumo: O texto apresenta e analisa algumas pesquisas de feitio
fenomenológico em andamento no grupo de pesquisa “Processos Psicológicos:
abordagens qualitativas” (PUC-Campinas) com a finalidade de estabelecer graus
possíveis de intervenção que possam ser exemplificados por elas, e,
paralelamente, levantar aspectos metodológicos relacionados com esses graus.
Entende-se por pesquisa fenomenológica aquela que lida com a experiência
subjetiva e os significados vividos, e faz isso no interior de uma relação de
implicação entre o pesquisador e o pesquisado e não numa relação de
exterioridade. O vivido só é acessível, ou só fica disponível, quando mobilizado.
Por isso a pesquisa de tipo fenomenológico tende a ser mobilizadora, o que
equivale a dizer que ela será sempre, em algum grau, interventiva. Além disso,
tal pesquisa pressupõe: 1) o compromisso ético de contribuir de alguma forma
para que os envolvidos possam obter algum benefício direto da pesquisa; 2) o
caráter construtivo-interativo de seu delineamento, 3) e a não separação entre
teoria e prática. Todas as pesquisas aqui consideradas trabalham com uma
proposta interventiva: estudar o fenômeno atuando sobre ele juntamente com
pessoas envolvidas. O grau mínimo de intervenção seria o existente nas
pesquisas baseadas na coleta de depoimentos. Um grau maior acontece quando
o pesquisador dialoga com o participante ajudando-o ativamente a acessar o
vivido. Quando o pesquisador participa, ele também, do mesmo grupo de
pessoas, então pode haver uma mobilização do grupo como um todo: terceiro
grau. E finalmente, quando a pesquisa se constitui como o olhar reflexivo de uma
prática que mobiliza significados, teríamos o grau maior de intervenção.
Palavras-chave:
qualitativa.
Pesquisa-intervenção,
pesquisa
fenomenológica,
pesquisa
Phenomenological research and interventional proposal:
some possibilities
Abstract: This paper presents and analyses some searches of phenomenological
character been processed by the group named "Psychological Processes:
qualitative approaches" (PUC – Campinas) in order to establish possible degrees
of intervention that can be exemplified by them, and in parallel, raise
methodological issues related to these degrees. It is assumed as
phenomenological research the one that deals with the subjective experience and
the meanings experienced inside a relationship of involvement among researcher
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
and researched and not in a relationship of exteriority. The experienced is only
accessible, or is only available when mobilized. So the phenomenological
research tends to be stimulating, which means that it will always have in some
degree, an interventionist role. This intervention research must include some
aspects: 1) the ethic commitment of contributing in some way so that all
participating people can get some direct benefit from the research, 2) its
constructive-interactive character, 3) and no separation between theory and
practice. All the researches here considerated works as an interventional
proposal: to study the phenomenon acting over it together with people involved.
The minimum degree of intervention would be found in searches based on
personal testimonies. A greater degree happens when the researcher dialogues
with the participating actively helping him to access the living. A third grade can
be considered when the researcher belongs, he too, to the same group or
community; then there may be a mobilization of the group as a whole. And
finally, when the search is the critical reflective thinking of the interventional
proposal, we would have the greatest degree of intervention.
Key-words: Interventional research, phenomenological research, qualitative
research.
Esta comunicação examina algumas pesquisas de feitio fenomenológico em
andamento no grupo de pesquisa “Processos Psicológicos: abordagens
qualitativas”, do Centro de Ciências da Vida da PUC-Campinas, com a finalidade
de estabelecer graus possíveis de intervenção que possam ser exemplificados por
elas, e paralelamente levantar aspectos metodológicos relacionados com esses
graus.
Estamos entendendo a pesquisa fenomenológica como aquela que lida com a
experiência subjetiva e seus significados vividos, no contexto de uma relação de
implicação entre o pesquisador e o pesquisado (ou entre sujeito e objeto) e não
numa relação de exterioridade (como se sujeito e objeto fossem totalmente
independentes um do outro). Isso já aponta para uma característica
metodológica: uma entrevista tipo questionário não é um instrumento tão
adequado para se chegar ao vivido quanto a entrevista reflexiva que acontece no
interior de uma interlocução aberta. O vivido só é acessível, ou só fica disponível,
quando mobilizado. Por isso a pesquisa de tipo fenomenológico tende a ser
mobilizadora, o que equivale a dizer que ela será sempre, em algum grau,
interventiva. Quais graus? Essa questão tem ocupado os membros do grupo em
suas reuniões.
O tipo de pesquisa que nos tem interessado, como participantes do grupo, é
aquele que 1) inclui o compromisso ético de contribuir de alguma forma para que
os envolvidos possam obter algum benefício direto da pesquisa; 2) tem um
caráter construtivo-interativo, isto é, cujos resultados sejam de alguma forma
construídos conjuntamente com os sujeitos participantes; e 3) evita a separação
entre teoria e prática, ou seja, o próprio ato de pesquisar possa ser um ato de
prática profissional.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Alguns temas presentes no grupo atualmente são: experiências de psicólogos
clínicos com projetos comunitários, grupos de crescimento ou de reflexão (com
hipertensos, seminaristas, pessoas que buscam definir opções de vida
profissional), liberdade de professores e o trabalho voluntário.
Muitas destas pesquisas têm trabalhado dentro de uma proposta interventiva:
estudar o fenômeno atuando sobre ele juntamente com pessoas envolvidas.
Outras, embora não sigam por esse caminho, buscam diálogos mobilizadores que
possam proporcionar crescimento pessoal aos sujeitos participantes.
Idéias de Paulo Freire (1999 e 2007) sobre modos alternativos de pesquisa
tiveram uma importância grande para a reflexão do grupo. Ele propõe a pesquisa
como forma de intervir no contexto da educação popular. O aspecto descritivo do
processo investigativo, nesse contexto, se integra em algo maior: um projeto
que visa a emancipação e o desenvolvimento. Ele expõe essas idéias ao falar
sobre a perspectiva libertadora. Ressalta a entrada do pesquisador no campo
(um bairro ou uma cidade), as visitas, os diálogos de onde nascem os temas
geradores e a devolução à população, sob forma de desafio, dessa percepção dos
temas. O pesquisador assume a posição de um facilitador de grupo de modo a
promover um aprofundamento do conhecimento de si e da realidade circundante,
superando os conhecimentos anteriores que, a essa luz, podem se mostrar como
ingênuos. Dentro dessa proposta, pesquisar e educar acabam se identificando em
um permanente e dinâmico movimento.
Amatuzzi (2008) segue os caminhos apontados por Freire quando fala de uma
psicologia popular entendida como pesquisa-intervenção. A psicologia popular
seria aquela explicitada na convivência e construída num contexto de ação
conjunta com as pessoas do povo. Segundo o autor esta psicologia será popular
quando: 1) considerar as pessoas comuns, em sua condição comum; 2) quando
for elaborada buscando a emancipação ou crescimento; 3) quando for elaborada
junto com as pessoas, de forma participativa. Ele afirma também que o psicólogo
tem uma contribuição importante nos grupos comunitários ao facilitar a
comunicação entre as pessoas, não só como profissional, mas como cidadão
comum. Segundo o autor, trabalhar com processos humanos de forma integrada
é tomar a iniciativa de começar a viver segundo outro paradigma.
Amatuzzi (2001) enfatiza a comunicação como forma de produção de sentidos
que faz a pessoa avançar em novos processos de subjetivação. Afirma ainda que
a possibilidade do pesquisador atuar como facilitador do acesso ao vivido é de
fundamental importância numa pesquisa fenomenológica; muitas vezes os
participantes, em uma entrevista, dizem sua experiência pela primeira vez, pois
nunca tiveram a oportunidade de dizê-la. Portanto, é na relação pessoal, quando
surge a oportunidade de dizer e ser compreendido, que o vivido é acessado; a
vivência é, assim, surpreendida e simbolizada pela pessoa na sua relação com o
pesquisador.
Trata-se, pois de uma pesquisa mobilizadora. Segundo o autor, o vivido
mobilizado é a mola propulsora do desenvolvimento individual e coletivo.
Além do caráter propriamente interventivo da pesquisa como uma ação concreta
do pesquisador junto a uma determinada população, temos que considerar o
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
caráter interativo na produção do conhecimento. Maraschin (2004) afirma que
como pesquisadores do campo das ciências humanas, indagamos sobre os
modos de viver, existir, sentir e pensar, próprios de nossas ou de outras
comunidades de sujeitos. O próprio fato de perguntar produz, ao mesmo tempo,
tanto no pesquisador quanto nos participantes, possibilidades de auto-produção,
de autoria. Nossos “objetos de pesquisa” também são pesquisadores ativos, pois,
enquanto participam dessas redes de conversação e reflexão, produzem novos
sentidos, os quais, por sua vez, podem ser transformados a partir de novas
conexões, novos encontros (Maraschin, 2004).
González Rey (2005) destaca o caráter interativo do processo de produção do
conhecimento, enfatizando as relações pesquisador-pesquisado. Segundo o
autor, é importante outorgar valor aos diálogos envolvidos na produção do
conhecimento, nos quais os sujeitos se envolvem emocionalmente e
comprometem sua reflexão em um processo em que se produzem informações
de grande significado para a pesquisa. O autor também enfatiza a importância da
comunicação como uma via através da qual os participantes de uma pesquisa
possam se converter em sujeitos, envolvendo-se no problema pesquisado a
partir de seus interesses, desejos e contradições.
Para ilustrar algumas destes aspectos já levantados, podemos partir de algumas
pesquisas em andamento:
Referente à questão do caráter mobilizador da pesquisa fenomenológica, partindo
de entrevistas individuais e o caráter construtivo-interativo, podemos citar a
pesquisa de mestrado realizada por MiIanesi (2007-2009) intitulada: “Os
sentidos da liberdade segundo professores da Educação Básica”; cujo objetivo é
compreender os sentidos da liberdade segundo a experiência desses educadores.
Para tanto, o pesquisador realizou entrevistas reflexivas com cada professor,
buscando, ouvir e refletir sobre a experiência cotidiana focando a temática da
liberdade no contexto da educação, cabendo ao pesquisador atuar como um
interlocutor e facilitador da reflexão a partir do vivido do entrevistado. Após cada
uma das entrevistas foram elaboradas narrativas expressivas do encontro entre
pesquisador e professor preservando seus dinamismos e levando em conta a
presença de ambos.
Os resultados encontrados até então indicam que a liberdade vivenciada pelos
professores consiste na possibilidade de uma prática educativa que faça sentido e
que seja baseada em questões e problemas percebidos como reais tanto pelo
educador como pelo educando, quer sejam em âmbitos institucionais (incluindo
políticas de ensino), quer sejam na relação professor-aluno.
O caráter construtivo-interativo da pesquisa aparece, por exemplo, na entrevista
com Ricardo, um professor da educação infantil. Se observarmos o fluxo do
discurso, notaremos que ele inicia a entrevista com uma fala sintética “Sinto que
temos e não temos liberdade, entende?”, porém justifica a afirmação com
palavras abstratas, gesticula enquanto tenta explicar. Com o decorrer da
entrevista reflexiva, fala sobre a falta de liberdade e sobre as pressões que as
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
políticas de ensino exercem sobre os professores. Mais adiante, reflete que
apesar dessas pressões ele ainda consegue praticar uma educação que faça
sentido, tanto pessoal, como para o contexto. Por fim faz considerações sobre a
surpresa que teve ao dar liberdade a seus alunos e o quão satisfeito ficou com os
resultados.
Ao final da entrevista, nas considerações finais (versão de sentido), este
professor relatou estar novamente motivado, com forças renovadas,
considerando que a liberdade é um objetivo nobre e vale lutar por ela, a pesar
das pressões.
Para exemplificar o aspecto da pesquisa intervenção que diz respeito à questão
da inseparabilidade e da retroalimentação constante que acontece entre pesquisa
e intervenção, podemos citar a pesquisa de doutorado em andamento de
Cambuy (2006-2010), intitulada ““Experiências comunitárias em Saúde Mental:
Repensando a clínica psicológica no SUS”, cujo objetivo é compreender como
vivências comunitárias de psicólogos clínicos podem contribuir para a ampliação
do conceito de clínica psicológica em Saúde Pública.
A questão de pesquisa surgiu da própria prática da pesquisadora que também é
psicóloga de uma Unidade Básica de Saúde e de suas observações quanto à
importância de atentar para novos paradigmas e técnicas em psicologia que
atendam as reais necessidades terapêuticas dos usuários que procuram as
instituições públicas de saúde, visto que, os sofrimentos ultrapassam os limites
da clínica tradicional e do modelo individualista dentro do qual muitos psicólogos
foram formados para atuar.
O projeto de pesquisa se encontra na fase da coleta de dados. Têm sido
realizadas entrevistas individuais com psicólogos clínicos contratados para
trabalhar na Rede Pública de Saúde em Campinas e que estão envolvidos com
projetos ligados à Centros de Convivência ou Oficinas de Geração de Renda. A
pesquisadora também tem utilizado registros de acontecimentos significativos do
próprio espaço comunitário onde ela atua como profissional, de reuniões que
freqüenta para discutir questões acerca de tais projetos no Município de
Campinas, e de visitas feitas aos projetos comunitários nos quais os psicólogos
estão inseridos.
Percebe-se até o momento a potencialidade das práticas comunitárias na vida
das pessoas, potencialidade esta que transcende os objetivos da clínica
psicológica tradicional. Pode-se afirmar que o processo de pesquisar tem
interferido diretamente na prática profissional da pesquisadora que tem
procurado formas cada vez mais criativas de desenvolver sua clínica na
comunidade. Além disso, pode-se dizer que as questões de pesquisa estão a todo
o momento permeando também a prática dos participantes e da pesquisadora.
As entrevistas representam uma parte de um processo de reflexão que já se
iniciou mesmo antes da proposta deste estudo, porém sem uma sistematização
teórica. Acredita-se desta forma, que a pesquisa pode contribuir para a
construção de um referencial teórico que permita avançar um modelo de atuação
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
mais ampliado em saúde pública e comprometido com as questões sociais e que
possibilite o crescimento humano a partir da inserção comunitária.
Um outro exemplo da inseparabilidade e da retroalimentação constante entre
pesquisa e intervenção é a pesquisa de doutorado, em andamento, de Campos
(2006-2010), intitulada: “O ser voluntário”, que visa compreender os sentidos
que a prática do voluntariado tem para as pessoas que se dedicam a ela, a pelo
menos dois anos.
Parte-se do pressuposto que esses sentidos não se reduzem ao que é
imediatamente expresso nos discursos dos voluntários. Outros sentidos podem
ser encontrados se a tais pessoas for facultada a possibilidade de se
aprofundarem em suas vivências no contexto de uma entrevista facilitadora, não
diretiva e reflexiva. Tal entrevista é um encontro interpessoal, uma situação de
interação humana, que inclui a intencionalidade dos protagonistas e se constitui
num momento de organização de idéias, de construção de conhecimento e de
ressignificação de vivências. A partir da explicitação dos sentidos da prática
pretende-se discutir o significado do voluntariado no contexto social
contemporâneo em confronto com a literatura atual sobre o tema. Para tanto
pretende-se conhecer a vivência que os voluntários têm dessa experiência
(buscando por um caminho fenomenológico, ir além das primeiras declarações
fornecidas); refletir sobre as diversas possibilidades de atuação voluntária e
discutir o significado do voluntariado no contexto social contemporâneo.
Considerando o aspecto propriamente interventivo como ação concreta junto a
um grupo, podemos citar a pesquisa de doutorado desenvolvida por Baungart
(2006-2010) cujo título é: “Grupo de Crescimento psicológico na formação
sacerdotal: pertinência e possibilidades”, que tem como objetivo descrever e
compreender o processo de desenvolvimento psicológico e formativo de préseminaristas católicos com a prática do grupo de crescimento.
Para tanto, são realizados quinzenalmente encontros com pré-seminaristas
católicos a fim de promover reflexões acerca das experiências de vida cotidiana
do grupo. A pesquisadora atua como facilitadora dos encontros e procura, junto
com os participantes, construir novos significados a cada reflexão trazida pelo
grupo. Isso para que, através da descrição e re-significação das experiências
relatadas se possa elaborar, junto com os participantes, uma pesquisa que faça
sentido para a população estudada.
Os resultados parciais dessa pesquisa mostram que a realização (intervenção) de
um grupo de crescimento com pré-seminaristas contribui de maneira significativa
para o crescimento pessoal e, conseqüentemente, para o desenvolvimento
psicológico desta população. Isso porque durante a realização dos encontros, os
participantes experimentam falar sobre suas vivências, seus sentimentos, suas
incertezas e ansiedades frente ao desafio que pretendem enfrentar ao ingressar
para o seminário. Ao compartilhar tais sentimentos com o grupo e a
pesquisadora, o participante tem a oportunidade de refletir sobre aquilo que esta
falando. Além disso, a ação conjunta do grupo tende a proporcionar um
acolhimento que por si só gera no participante uma força interior capaz de
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
promover mudanças de comportamento e algumas vezes até de sentimentos que
resultam no crescimento pessoal.
Esses projetos de pesquisa demonstram a existência de quatro possíveis graus
de intervenção para a pesquisa fenomenológica. O grau mínimo seria o que
existe numa pesquisa baseada em depoimentos colhidos de experiências vividas,
no modelo clássico de pesquisa fenomenológica de Amedeo Giorgi (1985). Uma
vez solicitado o pedido do pesquisador e tendo ele sido entendido, o participante
expõe seu depoimento quase sem diálogo. A intervenção que pode existir aqui
decorre simplesmente do fato de o participante ter tido a oportunidade de
vasculhar sua memória e narrar uma experiência.
Acima desse grau podemos ver uma intervenção maior quando a “coleta de
dados” não é feita simplesmente na forma de um depoimento, mas sim de uma
entrevista reflexiva. O pesquisador dialoga com o participante, ajudando-o a
chegar na experiência que pode interessar e, mais do que isso, podendo até
trazer questões para serem elaboradas nesse diálogo. É claro que a mobilização
aqui pode ser maior, como se verifica na pesquisa de Milanesi.
A mobilização que situamos após esta depende de o pesquisador ser um
participante da mesma situação, e estar envolvido pessoalmente também com o
problema a ser pesquisado. Resulta do diálogo uma abertura de perspectivas e
sentidos que podem interferir na prática tanto do participante como do próprio
pesquisador: há uma mobilização do meio em que eles se encontram pelo
surgimento de novos sentidos. É o caso da pesquisa de Cambuy e Campos.
E finalmente o grau maior de intervenção ocorre quando a pesquisa se constitui
como a dimensão reflexiva crítica de uma atuação concreta, que é o caso
exemplicado pela pesquisa de Baungart. E aqui poderíamos ainda subdividir: num
nível teríamos uma mobilização, digamos, individual provocada pelos novos
sentidos pessoais vividos no grupo, e, em um nível mais abrangente, uma
mobilização decorrente da integração de sentidos provenientes de uma
conscientização maior de outros âmbitos de sentido (sociais, culturais,
ecológicos, religiosos por exemplo).
Referências bibliográficas
Amatuzzi, M. M. (2001). Pesquisa fenomenológica em Psicologia. In: Bruns, M. A.
T. & Holanda, A. F. (Org.). Psicologia e Pesquisa Fenomenológica - Reflexões e
Perspectivas. 1ª ed. Ômega: São Paulo, p. 15-22.
Amatuzzi, M. M. (2008). Por uma psicologia humana. 2ª ed. Alínea: Campinas –
SP.
Freire, P. (2007). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica
educativa. 36ª edição. Paz e Terra: Rio de Janeiro.
Freire, P. (1999). Criando métodos de pesquisa alternativas; In: Brandão, C. R.
(Org.) Repensando a pesquisa participante. Brasiliense: São Paulo.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Giorgi, A. (Org.) (1985). Phenomenology and psychological research. Duquesne
Univ. Press: Pittsburgh.
González Rey, F.L. (2005) Pesquisa qualitativa e Subjetividade: Os processos de
Construção da informação. São Paulo: Pioneira Thomson Learning.
Maraschin, C. (2004) Pesquisar e Intervir. Psicologia & Sociedade; 16 (1): 98107. Recuperado em 22/08/07: http:// www.scielo.br
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Psicodinamismos da mãe de crianças com tendência
anti-social – Um Estudo de Caso
Nerielen Martins Neto Fracalozz
Valéria Barbieri
Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo
Resumo: O comportamento anti-social é tema de preocupação universal em
função das graves conseqüências individuais e sociais que acarreta. A literatura
aponta para um importante vínculo entre a qualidade do relacionamento dos pais
com os filhos e o desenvolvimento e manutenção da tendência anti-social na
criança. Nesse sentido, a contribuição teórica da Psicanálise, em especial de
Winnicott, Freud e Klein aponta para a influência das características dos objetos
materno e paterno dos pais na qualidade do cuidado dispensado ao filho. Neste
contexto, este trabalho objetivou investigar as percepções inconscientes da
estrutura e dinâmica familiar e a qualidade dos objetos internos de uma mãe de
uma criança com tendência anti-social. Foi realizada um entrevista e o DF-E com
uma mulher de 35 anos, proveniente de uma família intacta, de nível sócioeconômico médio-alto, mãe de uma criança com tendência anti-social, verificada
através do questionário SDQ. Os dados colhidos, analisados segundo o
referencial psicanalítico, indicaram que a participante possui um controle
pulsional rígido e que tem dificuldades em lidar com a própria agressividade,
voltando-a contra si mesma. Há uma doação excessiva ao filho, frustrando-o
pouco, além de uma relação de controle. Os principais mecanismos de defesa
utilizados por ela foram negação e racionalização e a angústia presente é de
perda do objeto. A análise dos dados permitiu associar a relação de controle com
o filho e a qualidade dos objetos internos da mãe ao comportamento anti-social
do filho, sustentando as hipóteses propostas na literatura.
Summary: Antisocial behavior is subject of universal concern in function of the
serious individual and social consequences that it causes. Literature points to an
important bond between the quality of the relationship of the parents with the
children and the development and maintenance of the antisocial tendency in the
child. In this direction, the theoretical contribution of the Psychoanalysis, in
special of Winnicott, Freud and Klein points to the influence of the parents’
characteristics of objects maternal and paternal in the quality of the dispensed
care to the son. So, this work objectified to investigate the unconscious
perceptions of the structure and familiar dynamics and the quality of internal
objects of a mother of a child with antisocial tendency. An interview and the DF-E
were done with a woman of 35 years, proceeding from an intact family, of upper
middle-high-economic level, mother of a child with antisocial tendency, verified
through questionnaire SDQ. The data had indicated that the participant possesss
a rigid pulsional control and that has difficulties in dealing with the proper
aggressiveness, coming back it against herself. She has an extreme donation to
the son, not frustrating him the sufficient, beyond a relation of control. The main
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
mechanisms of defense used by her had been negation and rationalization and
the present anguish is of the object’s loss. The analysis of the data allowed to
associate the relation of control with the son and the mother’s quality of internal
objects to the son’s antisocial behavior, supporting the hypotheses in literature.
Introdução:
A literatura científica, em especial estudos relacionados à Psicologia e Psicanálise,
tem apontado para a importância do relacionamento familiar na produção e/ou
manutenção da tendência anti-social infantil. Teorias propostas por autores como
Freud, Klein e Winnicott auxiliam na compreensão desta relação, ressaltando a
importância das figuras parentais e do ambiente para o seguimento da tendência
anti-social e do comportamento agressivo.
O comportamento agressivo está ligado ao comportamento anti-social que, de
acordo com Black (2001), indica uma rebelião contra a sociedade, uma negação
das obrigações que ligam os indivíduos uns aos outros.
Bordin e Offord (2000) relacionam o comportamento anti-social a fatores
constitucionais e ambientais, entre eles ser do sexo masculino, receber cuidados
maternos e paternos inadequados, viver em meio à discórdia conjugal. Tal
comportamento está relacionado a transtornos psiquiátricos como o Transtorno
de Conduta, o Transtorno Desafiador Opositivo e o Transtorno de Personalidade
Anti-Social.
Estudos de abordagem psicanalítica contribuem para a compreensão da etiologia,
manutenção e prognóstico dos Transtornos de Conduta, Desafiador Opositivo e
Anti-Social, relacionando-os com aspectos intrapsíquicos e etapas do
desenvolvimento infantil. Nesses termos, conceitos como Complexo de Édipo, do
superego, identificações e outros, desempenham papel de suma importância para
a melhor compreensão de tais transtornos.
Para Freud (1928/1974), a psicodinâmica do criminoso remete ao complexo de
Édipo, especificamente ao processo de formação do superego no menino, tal
como vivido por uma personalidade com forte disposição bissexual. Se nessa
ocasião do desenvolvimento o pai for duro e cruel na realidade, o superego
tornar-se-á sádico ao herdar esses atributos paternos, e o ego irá se converter
em masoquista, desenvolvendo uma forte necessidade de punição. Nesse caso,
um castigo infligido por um agente externo ou pelo superego pode satisfazer a
necessidade masoquista do ego.
Apesar de algumas divergências, em termos gerais, Klein (1927/1981) reforça os
pressupostos freudianos sobre o comportamento criminoso. Ela também associa
o desenvolvimento das condutas criminais ao Complexo de Édipo. Portanto,
quando a criança pratica o delito, está tentando escapar da situação edípica,
pois, por mais severo que possa ser o castigo real, ele é confortador se
comparado aos ataques assassinos dos pais fantasiados pela criança.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Diferentemente de Freud e Klein, Donald Winnicott não relaciona a tendência
anti-social ao funcionamento do superego. Para ele, “existe uma relação direta
entre tendência anti-social e deprivação” (WINNICOTT, 1956/1993, p. 503),
deprivação no sentido da perda de algo bom, que foi retirado num momento
específico do desenvolvimento, em que a criança já é capaz de perceber que a
falha ocorrida foi ambiental.
Para o bom desenvolvimento do bebê é necessário uma relação saudável com as
figuras parentais. Apesar de alguns desacordos, os autores psicanalíticos
enfatizam a influência dos cuidados maternos, assim como do grau de integração
da personalidade parental no desenvolvimento saudável ou patológico dos filhos.
Objetivos: Em vista da influência que tem o procedimento dos pais,
principalmente da mãe, no desenvolvimento saudável ou não dos filhos, e uma
vez que os cuidados proporcionados a eles dependem das condições psicológicas
dos pais, da maneira como eles se percebem em seu papel na família e em suas
relações familiares, o presente estudo visa investigar as percepções
inconscientes da estrutura e dinâmica familiar e a qualidade dos objetos internos
de uma mãe de uma criança com tendência anti-social.
Método:
Participante:
Aline81 tem 35 anos e mora com marido e filhos. É de nível sócio-econômico
médio-alto, e fez curso técnico. Possui dois filhos, um de 5 anos, (Cauã*) e outro
de 8 anos, Guilherme*, que foi diagnosticado pelo questionário SDQ como
apresentando tendência anti-social.
Materiais:
Além do Termo de Consentimento Livre Esclarecido, foi empregado o SDQ Strenghs and Difficulties Questionnaire, (Cury e Golfeto, 2003), um instrumento
diagnóstico para a investigação da saúde mental de crianças e adolescentes, para
avaliação do menino.
Quanto aos instrumentos utilizados na avaliação da mãe, constaram uma
entrevista psicológica desenvolvida pelas pesquisadoras que serviu para
identificar a concepção da participante acerca da dinâmica e estrutura familiar e
objetos internos; e também o Procedimento de Desenhos de Família com
Estórias (DF-E), criado por Walter Trinca em 1978, visando apreender aspectos e
conteúdos de natureza consciente ou inconsciente a respeito da dinâmica
familiar.
Análise de dados:
81 Nomes fictícios
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Os resultados foram avaliados com base no referencial psicanalítico. Inicialmente
foi feita uma análise individual da entrevista, abordando o relato manifesto da
participante, e análise de conteúdo temática das interpretações, incluindo o seu
conteúdo latente, conforme modelo proposto por Figueiredo (1998). Os
resultados do DF-E também foram submetidos à análise com base no referencial
psicanalítico, referente ao seu conteúdo latente, e categorizados conforme um
roteiro proposto pelas pesquisadoras.
Estudo de caso:
Resumo da entrevista
A primeira gravidez de Aline foi inesperada, e foi tranqüila até os sete meses,
época em que ocorreram alguns problemas com o marido, o que tornou a
gravidez um pouco mais agitada. Hoje se vê como uma mãe mais tranqüila
quando se compara ao seu marido, que considera autoritário, mas acaba se
sentindo às vezes uma mãe irresponsável. Aline considera-se uma mãe ideal,
mas diz que poderia ser mais paciente. Quanto ao marido, considera-o um
excelente pai, que se preocupa e é carinhoso. Para ela, ele seria o pai ideal,
contanto que fosse menos enérgico e exigente com os filhos.
A participante vê o filho mais velho, Guilherme, como muito agitado, consumista,
desligado, porém muito carinhoso. O que mais a preocupa com relação ao filho é
seu comportamento “explosivo”, expresso principalmente quando ele é
contrariado. Um acontecimento marcante para ela foi quando Guilherme chorou e
se sentiu culpado por ter deixado um pintinho perto de sua cachorra que o
matou. Aline ficou surpresa com essa reação do filho, porque anteriormente o
considerava insensível.
Sobre os relacionamentos dele na escola, ela relatou que ele tem vários amigos,
e se faz algo que incomoda um deles, ainda sobram outros; então ele parece não
se importar e nem tenta resolver a situação, e isso a deixa preocupada.
Sobre a obediência do filho a ordens, ela disse que ele obedece mais ao pai.
Geralmente ele a obedece também, mas depois de certa insistência. Caso ele não
obedeça, ela o coloca de castigo, retirando algo que ele gosta, como o futebol.
Aline avaliou sua relação com o filho como boa, mas gostaria que ele lhe
contasse mais sobre sua vida. Já no relacionamento com o pai, ela diz que
Guilherme costuma reclamar do comportamento exigente do pai, mas que os
dois brincam juntos com freqüência. Ela gostaria que o filho fosse mais carinhoso
com o pai.
A concepção de família de Aline é estar todo mundo junto, ter saúde e querer
que os demais membros estejam bem. Essa seria considerada uma família ideal.
Análise da entrevista:
A análise individual e a análise de conteúdo temática da entrevista expressam
253
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
que Aline é extremamente rígida consigo mesma e pouco autônoma. Pareceu
estar ligada a valores morais e exigir que o filho seja da mesma maneira. Por
exemplo, a forma mais “seca” de demonstrar afeto dela com o filho, e do filho
com os outros, está aquém do que ela julga que seria o correto. Seguindo esta
linha de raciocínio, ela considera que o marido está certo ao ser exigente, e se
considera irresponsável, demonstrando uma certa culpa por não atingir o que
considera ideal. Assim, acaba exercendo grande pressão sobre si mesma,
buscando o que é socialmente aceito em detrimento do que ela realmente é.
Ainda relacionado à sua exigência, Aline parece sentir que para ser uma boa mãe
é importante satisfazer todos os desejos de seu filho, mas se ressente quando
percebe que o retorno não é tão sólido como esperava. Numa doação excessiva,
a participante frustra pouco o filho. Quando tenta dar tudo, a criança não
consegue discriminar o que realmente deseja e acaba não se envolvendo com o
que lhe é oferecido, por conseguir tudo tão facilmente.
Além disso, permanece numa relação de controle sobre o filho. Ela acredita que
sendo um exemplo perfeito, o filho poderá seguí-lo, mas para isso precisa ser
monitorado, faltando aí abertura e flexibilidade para seu pleno desenvolvimento.
Guilherme parece se esforçar para manter sua autonomia e separação da mãe.
Aline atribui as dificuldades do filho a uma semelhança com ela mesma, a
questões específicas a um desenvolvimento normal e a uma acomodação do
filho. A agressividade do filho parece ser assustadora para ela, talvez por não dar
conta de entrar em contato com a própria agressividade. Nesse momento ela
precisaria repudiar o objeto para se afastar e se diferenciar dele.
A figura de autoridade da casa é o pai, que, em sua percepção, impõe limites de
forma rígida e autoritária. Ela, no entanto, parece possuir dificuldade em impor
limites ao filho, que a obedece, mas com dificuldade.
Os principais mecanismos de defesa utilizados são a negação, por exemplo
quando ela não aceita que os irmãos não se gostem o quanto ela acredita que
deveriam, e a racionalização, expressa quando explica suas dificuldades como
mãe por ter tido filho quando era mais velha, quando, na verdade, ela ainda era
jovem, com 28 anos. Suas principais frustrações estão relacionadas à própria
mãe, que ela relatou ter sido sempre muito desligada, e em relação à falta de
diálogo com o filho.
DF-E:
Serão expostos os desenhos da participante e recortes das estórias criadas a
partir deles. As falas entre parênteses são da entrevistadora.
Primeiro desenho: desenhe uma família qualquer
254
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Comentário: Qualquer? Como assim? Pode ser a minha? Nossa, sou péssima pra
desenhar. Meu Deus. Minha família. Seria meu marido, eu, Guilherme e o Cauã.
Gente, sou péssima pra isso. [...]
Estória: Aqui então tá o Guilherme ensinando o Cauã a soltar pipa. E, eu de
repente servindo um lanchinho pra eles lá na rua. [...] E meu marido ajudando
eles. Porque é muito legal ver meu marido soltar pipa com eles. Que quando eu
era criança meu pai que vinha soltar pipa comigo. [...] Acho que é isso. (Como
estão?) Tá todo mundo se divertindo, eu um pouquinho só estressada,
preocupada com a rua. Eu fico o tempo todo assim pra ver se não está vindo
carro. Mas curtindo o momento também.
Título: um fim de tarde feliz
Segundo desenho: desenhe uma família que você gostaria de ter.
Estória: [...] o Guilherme quando ficou sabendo que ia ter um irmãozinho, ele
não gostou muito da idéia. Quando o Cauã nasceu eu sentia que ele mudou, no
começo ele ficou muito revoltado. Começou a fazer xixi na cama de novo, aquela
coisa que volta né. Porque assim, eu tinha vontade de ter 3 filhos. Mas a situação
financeira não dá muito. [...] Então assim, por enquanto não dá. A minha
vontade é que tipo assim, a gente conseguisse chegar nessa fase de falar
podemos ter mais um filho, e os dois, o Guilherme e o Cauã aceitar muito bem.
Porque eu sofri muito com essa rejeição do Guilherme, no começo né. Da
rejeição
do
Guilherme com o
Cauã. [...] Então
não dá (para ter
mais um filho), mas
eu acho que ia ser
uma família super
alegre. 3 meninos
eu tinha vontade de
255
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
ter. Se viesse menina ia ser legal também. Mas eu ia gostar muito se viesse um
menino.
Título: a família dos sonhos.
Terceiro desenho: desenhe uma família em que alguém não está bem.
É
alguém
família?
da
Eu.
Porque
eu
acho que eu sou
mais forte pra
agüentar eu estar
doente, eu estar
com
algum
problema, do que
os meninos, do
que
o
meu
marido. [...] eu
percebo que eu
sou mais fraca. Se
for comigo eu sou
mais forte assim.
[...] então a gente
acaba
ficando
forte mesmo. Você tem que ficar sempre com a cabeça erguida. [...] Então não
venham me falar ‘ah, o Cauã não ta normal. Ai o Guilherme esse negocinho na
perna dele’. Não suporto. Sabe assim, eu brigo, chego a brigar. [...] Tipo assim,
parece, é como se eu, eu to vendo que alguma coisa não ta normal, mas que eu
não aceitasse. Eu não aceito que isso não esteja normal. [...] Então eu acho que
eu sou muito fraca pra suportar os problemas dos outros. [...] se eu não me
sentir bem por algum motivo assim, eu fico mais calada. [...] Eu fico mais
quietinha, gosto de ficar na retaguarda. [...]
Título: o aguardo do amanhã. O amanhã vai tudo melhorar. Hoje eu não to bem,
mas amanhã vai ta tudo ótimo. No aguardo do amanhã melhor.
Quarto desenho: desenhe a sua família.
256
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Estória: ... ah, uma família bem feliz. [...] olha, agora eu vejo uma família bem
equilibrada, ta tudo bem, [...] eu
vejo assim, que eu chego em casa
ta tudo tranqüilo, eu me preocupo
muito com a saúde. [...] Então ta
tudo bem com a saúde, pra mim
ta ótimo. [...] Mas assim, hoje,
hoje minha família ta equilibrada.
Título: Uma família saudável e
feliz.
Análise do DF-E
O primeiro desenho aparece com
braços e pernas muito finos, frágeis, simbolizando uma falha de sustentação e da
capacidade de agir no mundo. A falta do uso da cor indica uma dificuldade de
integração do afeto. Apresenta no início do teste certa dificuldade para regredir,
expressada por sua fala hesitante antes de começar a desenhar. Não faz
diferença no desenho entre criança e adultos, mas os papéis familiares estão
bem demarcados e estereotipados. A mãe como provedora, porém com algumas
dificuldades, expressadas pela linha que a corta (desenho de uma bandeja), e o
pai junto aos filhos como modelo de identificação. Na estória é expressa a
angústia de que algo ruim aconteça com os filhos se saírem do controle dela.
Mostra-se capaz de aceitar a autonomia dos filhos, mas com reservas.
No segundo desenho as pernas dos personagens estão ainda mais finas, e estão
longe da linha desenhada como solo, indicando piora na capacidade de
sustentação, o que indicaria uma família um pouco mais dependente. O pescoço
fino e comprido indica controle restrito, inibidor das pulsões. Além disso, o tronco
separado da parte inferior do corpo indica repressão das pulsões sexuais.
Na estória ela parece perceber o ciúme entre os irmãos, situação típica da
circunstância do nascimento de um novo irmão, como uma rejeição. Parece
pensar que uma família ideal não tem conflito, nem rejeições, e que aquilo que
fugir dessa concepção ameaça a integridade do grupo. Isso demonstra uma
dificuldade em integrar suas pulsões agressivas.
No terceiro desenho a angústia parece aumentar. A debilidade física aumentada,
não há diferenciação sexual entre as crianças, e a autonomia simbolizada pelos
membros aparece mais abalada, principalmente na figura feminina, com pernas
unidimensionais e separadas do tronco. Essa figura quase não tem pescoço,
indicando dificuldade na transposição das pulsões.
Na estória, doença é vista como ferida narcísica e o apontamento de que a
família não está bem é visto como algo agressivo. Ademais, perceber-se frágil e
precisar da ajuda do outro também causa tal ferida. Dessa maneira, ela parece
tentar proteger os outros de sua agressividade voltando-a contra si própria e
257
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
preservando assim o objeto. A principal angústia presente é a de perda do
objeto.
No último desenho a autonomia de todos os personagens parece comprometida.
Apenas a figura paterna parece manter maior contato com a realidade, por
possuir as pernas em contato com a linha do solo. Ao dar importante valor à
saúde da família, a participante reforça a angústia de perda do objeto. Diante de
sua insegurança, qualquer doença fica aumentada e passa a ameaçar a
segurança e integridade da família. Parece haver um receio de que a perda do
objeto possa comprometer a união e felicidade da família.
Discussão:
A análise do caso sustenta as hipóteses propostas na literatura sobre a etiologia
do
comportamento
anti-social
como
procedente
das
características
psicodinâmicas dos pais. O comportamento exigente do pai pode estar agindo
como a figura paterna cruel e sádica que promove o desenvolvimento de um
superego sádico e um ego masoquista na criança. Da mesma forma, a mãe
oferece uma educação inconsistente quando é permissiva demais com o filho,
mas ao mesmo tempo exigente. Outra ambivalência presente é sua forma mais
“seca” de demonstrar afeto, mas, em contrapartida, gostaria que o filho fosse
mais próximo e que houvesse mais diálogo.
De acordo com a literatura, há uma relação entre as características dos objetos
internos dos pais e a qualidade do relacionamento deles com os filhos. Nesse
sentido, podemos relacionar parte dessas falhas de Aline no cuidado dispensado
ao filho à qualidade do cuidado parental que Aline recebeu, a partir de seu relato
sobre ter uma mãe omissa e distante.
Além disso, o comportamento anti-social do filho pode estar se revelando numa
tentativa de afastar-se da mãe em busca de autonomia. Seria uma forma para
fugir dessa relação de controle e monitoramento excessivo com a mãe, que teme
que a perda do objeto possa dissolver a família.
Referências bibliográficas:
BLACK, D. W. Bad boys, bad men. Rev. Bras. Psiquiatr., São Paulo, v. 23, n.
4, 2001.
BORDIN, I. AS; OFFORD, D. R. Transtorno da conduta e comportamento antisocial. Rev. Bras. Psiquiatr., São Paulo, 2000.
CURY,C.R.;GOLFETO,J.H. Strengths and difficulties questionnaire (SDQ): a study
of school children in Ribeirão Preto. São Paulo. Revista Brasileira de Psiquiatria.
v.25, n. 3, 2003.
FIGUEIREDO, M. A. C. Escalas afetivo-cognitivas de atitude. Construção,
validação e interpretação de resultados. In: ROMANELLI G & BIASOLI-ALVES Z.
Diálogos metodológicos sobre prática de pesquisa, Editora Legis Summa, Ribeirão
Preto, p. 51-70, 1998.
258
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
FREUD, S. (1928) Dostoieviski e o Parricídio. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Imago Editora.
v. XXI, p. 179 a 198, 1974.
GOODMAN, R. The Strengths and Difficulties Questionnaire: A research note.
Journal of Child Psychology, Psychiatry, and Allied Disciplines, 38 (5), 581-586,
1997
KLEIN, M. (1927) Tendências criminais em crianças normais. In: Contribuições à
psicanálise. Trad Maillet, M. São Paulo, Mestre Jou, 1981, p.233-252.
WINNICOTT, D.W. (1956) A tendência anti-social. In: Textos selecionados: da
Pediatria à Psicanálise. Trad. Russo, J. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1993, p.
499-511.
259
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Inconsciente e singularidade: diretrizes iniciais
de pesquisa de formação de gupos de conversação
no Instituto de Psiquiatria da Universidade
Federal do Rio de Janeiro
Nelisa Guimarães
Resumo: Após pesquisa sobre saídas de pacientes de longa permanência em
internação psiquiátrica (FAPERJ - IPUB/UFRJ), inicia-se pesquisa com grupos de
conversação de pacientes internados, com base conceitual psicanalítica e com
inclusão da equipe clínica multidisciplinar em sua realização. Os conceitos que
fundamentam o início da pesquisa são expostos para discussão, assim como o
ponto de partida metológico para o funcionamento dos grupos e para sua
continuação com registros dos efeitos produzidos.
Abstract: After a research about patients leaving psychiatric hospital from long
term internation (FAPERJ - IPUB/UFRJ), a new work begins with conversation
groups for patients still in the hospital. This work is based on psychoanalytic
concepts. The groups include professional technicians from the clinic
multidisciplinary team. The fundamental concepts that started the new research
are exposed for discussion, and also the methods for conversation groups
functioning and their continuous maintenance with notes from the effects
observed.
Apresentação do ponto de partida da pesquisa:
O ponto de partida conceitual é o enfoque da psicanálise na perspectiva atual do
pensamento da diferença1 - situando-a no campo da imanência, das
intensidades, da diferença pura e da potência de singularização. As posições
singulares que oferecem resistência ao Outro social haviam sido destacadas por
Freud em seu conceito de mal-estar, que define a experiência humana entre o
laço comum – altruísta – e o prazer ou o gozo próprio do supereu no sentimento
de culpa – egoísta – que pode favorecer oudesfavorecer a inclusão neste laço
comum2.
A prática da psicanálise depende sempre de uma ética em que o desejo do
psicanalista não é um desejo puro – é um desejo de obter a diferença absoluta,
como afirmou Lacan3 ao definir a relação singular entre uma posição de se
assujeitar e um significante primordial. As formas de subjetivação, no modo
psicanalítico de apreensão, se dispersam num devir singular, na plena
contingência, na dimensão de resistir e arriscar o impossível contra posturas
padronizadas ou coercitivas – como indica o autor citado anteriormente C. A.
Peixoto Jr. e também o autor S. Zizek4.
No IPUB/UFRJ, encontramos mais diretamente a padronização das classificações
diagnósticas internacionais e a primazia do uso de medicamentos na clínica
260
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
psiquiátrica. Ainda existem pacientes internados no hospital que ali permanecem
por meses ou anos, devido à falta de alternativa de moradia assistida ou de
cuidados domiciliares. Alguns pacientes elegem significantes primordiais como
"presos" no hospital, ou "cobaias" das alterações medicamentosas, das pesquisas
ou da ECT, para definir sua singular condição.
Das 5 equipes clínicas, coordenadas por psiquiatras, apenas 1 tem
funcionamento regular multidisciplinar: com residentes, especializandos, além do
staff composto por psiquiatra, psicólogo, assistente social e enfermeiro. As
posições de todos os profissionais é bastante diversificada, o empenho clínico é
exposto e avaliado nas Sessões Clínicas semanais. Das 4 equipes que não
contam com todas as presenças profissionais regularmente, pertenço atualmente
a 2 – para realizar a pesquisa e promover a direção multidisciplinar na
conversação em grupo com pacientes internados, seguindo o foco de elaboração
dos seus respectivos projetos terapêuticos.
A realização permanente dos 2 grupos tem um ponto de partida psicanalítico, e é
acompanhada por pesquisa na área de Avaliação de Serviços coordenada pela
dra. Maria Tavares (atual coordenadora da Psiquiatria no CCS/UFRJ). O ponto de
partida psicanalítico considera os conceitos de inconsciente e singularidade na
promoção do laço multidisciplinar, que deve envolver o projeto terapêutico de
cada paciente e as decisões possíveis para desenvolvê-lo efetivamente, e deve
auxiliar na promoção do laço social que envolve pacientes, familiares,
profissionais, e seus relacionamentos. Se as posições subjetivas são singulares, o
encaminhamento e o atendimento de dificuldades também seguem a mesma
direção singular.
Os grupos estão sempre abertos para a participação dos profissionais e dos
alunos de cada equipe clínica, e para os pacientes (mesmo quando saem de
internação) e respectivos familiares. Funcionam semanalmente no horário de
plantão da respectiva equipe clínica.
Momento inicial da pesquisa: pontos de discussão
1. A posição a --> S barrado do discurso psicanalítico:
Este matema lacaniano serve de orientação para o pesquisador nos primeiros
tempos de implantação dos grupos de conversação e indica algumas direções:
não recuar diante da psicose e das incompatibilidades com o laço social;
não recuar diante da segregação entre profissionais especialistas dentro da
instituição, nem diante da exclusão promovida eventualmente por
ignorâncias ou mestrias especializadas;
na atuação constante do pesquisador nas equipes clínicas e nos grupos de
conversação, seguir trajetos que partem de uma causa real fora dos padrões
e padronizações, fora dos saberes, na direção do não-saber e das
261
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
singularidades assumidas por cada profissional e cada paciente (S barrado),
na aproximação de uma mestria inconsciente que quase sempre conduz a
trajetos solitários não reconhecidos.
Obs. Não se trata de elucidar ou interpretar a mestria inconsciente, mas de
seguí-la e respeitá-la para aproveitar sua orientação.
O método da conversação:
O dispositivo da fala aqui não se confunde com um grupo terapêutico, uma
terapia institucional ou uma oficina da palavra:
a conversação põe em curso a dimensão subjetiva, a emergência do sujeito
em sua fala, num espaço em que o inconsciente se torna audível pelo
encontro com uma escuta e um destinatário muito particulares;
o grupo de conversação é o destinatário que toma alguns ditos ou algumas
palavras como "senha", mot de passe, abertura de sentidos próprios da
língua de cada um5 (cada paciente e cada profissional) para entrar na
perspectiva de saída de internação;
a repetição, o defeito de falar demasiado de si, a desatenção, a tendência à
contradição, à discussão, à pilhéria...tudo isso pode, paradoxalmente,
converter-se em trunfos, refletir-se em jogo, produzir um ritmo, ser a marca
de uma singularidade que rechaça o tédio e, em vez de extinguir o espírito
da conversação, perpetuar-lhe a febre, o encanto6.
Para o biólogo H. Maturana da Universidade do Chile, uma ontologia da realidade
se constitui com a posição de observação das interações: o sistema vivo
humano, com um sistema nervoso fechado em rede, é autopoiético. Ou seja,
suas interações coordenam ações e emoções como na linguagem das
conversações que promovem, segundo ele, contínua mudança estrutural do
sistema – a esse fluir entrelaçado de linguajar e emocionar eu chamo conversar,
e chamo conversação o fluir, no conversar, em uma rede particular de linguajar e
emocionar7.
Então, podemos dizer que a conversação provoca singularidades e coloca em
processo mudanças estruturais biológicas da realidade de cada um ?
Podemos, a seguir, comentar a diferença de andamento dos 2 grupos e algumas
situações específicas de pacientes e profissionais – comentários a serem
expostos em comunicação oral.
Outubro 2008
[email protected]
21/ 22759619 e 99781425
1Peixoto Jr, C.A. Singularidade e subjetivação. Rio de Janeiro: 7 Letras / Ed.
PUC-Rio, 2008, p.13-14.
262
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
2Freud, S. "O Mal-estar na Civilização" (1930) em Edição Standard das Obras
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p.165.
3Lacan, J. O Seminário – livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar ed., 1979, p.260.
4Zizek, S.; Daly, G. Arriscar o impossível – conversas com Zizek. São Paulo:
Martins Fontes, 2006, p.28-29.
5Chottin-Burger, A. ."Le mot de passe – d'une langue à l'autre", CIEN, Bordeaux,
2007.
6Morellet, A. . Sobre a Conversação, Prefácio de Ch. Thomas, p. XXVII. São
Paulo: Martins Fontes, 2002, com texto de J. Swift.
7Maturana, H. A Ontologia da Realidade. Belo Horizonte: ed. UFMG, 1997, p.167
e p.279, citação p. 172.
263
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Família monoparental: um estudo psicanalítico do
imaginário coletivo de universitários
Paulo César Ribeiro Martins
Andrei Ferrari Faria
William Divaldo Mortele
Universidade de Passo Fundo
Resumo: Este estudo objetivou investigar o imaginário coletivo de universitários
sobre famílias monoparentais, bem como elucidar os campos psicológicos não
conscientes. O método psicanalítico foi operado através da Teoria dos Campos,
em próxima interlocução proposta pelo psicanalista José Bleger. O Procedimento
de Desenhos-Estórias com Tema foi utilizado na abordagem coletiva de uma
classe de estudantes de Direito. Foram encontrados dois campos psicológicosvivenciais, que denominamos “família happy day”, e “a dor de uma saudade”.
Palavras-chaves: Procedimento de Desenhos-Estorias com Tema, imaginário
coletivo, família monoparental, psicanálise, direito.
Abstract: The objective of this research is to investigate the collective imaginary
of students about aloneparent families, as well as to elucidate the non conscious
psychological field. Therefore, the psychoanalytic method was operated through
the Fields Theory, having as groundwork the psychoanalytic theory of José
Bleger. The Procedure of Thematic Drawing-and-Telling Stories was used in a
collective approach in a classroom of Law students. They were found two fields
psychological-living: "family happy day" and “the pain of a longing".
Keyword: procedure of drawing-stories with a theme, collective imaginary of
students, aloneparent families, psychoanalysis, law.
De acordo com Correia (2008), A família monoparental é constituída por um só
cônjuge e seus filhos, os quais podem ter diversas idades. Nesse sentido, a
família, após a Constituição de 1988 (2003), é considerada uma entidade
reconhecida e protegida pelo Estado que pode ser composta por apenas por uma
pessoa adulta responsável pelos cuidados e formação de outra pessoa
(Winnicott, 1983; 1996).
Já nos anos de 1970, havia grande incidência desse modelo de familiar. Nessa
época, predominava o modelo familiar tradicional, conseqüentemente, outros
modelos não eram reconhecidos como família. Na atualidade, mesmo com a
proteção do Estado e o aumento dessas famílias que hoje representam segundo
Correia (2008), vinte e seis por cento dos tipos de configurações familiares,
ainda é evidenciado através dos meios de comunicação que o modelo tradicional
é o modelo mais almejado. Neste contexto, coube investigar o que as pessoas
imaginam acerca dessa família, já que o imaginário coletivo determina condutas
264
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
(Bleger, 1989) e pode influenciar na qualidade de vida no que diz respeito à
dignidade da pessoa humana preconizada pela Constituição de 1988.
A Constituição Federal brasileira reconheceu não existir mais a necessidade da
existência de um casal com seus filhos para a configuração de uma família.
Posteriormente, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (2008),
reafirmou integrar as relações monoparentais quando em seu artigo 42,
expressou a possibilidade de adoção independente de estado civil, havendo uma
verdadeira subtração do antigo pressuposto do casamento e da exigência de um
casal – homem e mulher – para uma possível adoção e construção de uma
família.
A formação da família monoparental tem se dado por diversos fatores. Este
fenômeno parece ter começado a se evidenciar após as grandes guerras, em
função de muitas mulheres ficarem viúvas e se verem obrigadas a cuidar de seus
filhos sozinhas. Outro fator preponderante começou a surgir a partir dos anos de
1950, com estudos de Kinsey sobre comportamento sexual (Martins, 2007), os
quais influenciaram profundamente os valores culturais dos Estados Unidos
durante os anos sessenta, repercutindo no advento da revolução sexual,
resultando numa maior autonomia feminina em todos os sentidos, tendo como
conseqüência o fato de que, a partir dos anos 70, essa configuração familiar
triplicou.
No Brasil, as famílias monoparentais chefiadas por mulheres vem aumentando
como demonstra os dados fornecidos pelo IBGE (Correia, 2008), onde em 1970,
82,3% das famílias monoparentais eram chefiadas por mulheres e 17,7% por
homens, já em 2003 a proporção é de 95,2% de mulheres e 4,6% de homens.
Com isso observa-se que há um crescente número de famílias monoparentais,
nos últimos anos, presididas por mulheres. Lôbo (2008) aponta como causa disso
a maior facilidade para os homens do que para as mulheres em reconstituírem
novas uniões estáveis, conseqüentemente formando novas famílias segundo o
modelo tradicional (pai, mãe e filho). Outro fator da monoparentalidade é a
questão de os homens, segundo dados do IBGE (Correia, 2008), estarem
morrendo mais cedo do que as mulheres, conseqüentemente elas ficam viúvas,
muitas tendendo a cuidar de sua prole sozinhas.
Como descrevemos, são várias as situações que levam à formação de uma
família monoparental, na qual ocorre à ausência de um casal: por livre vontade,
viuvez, situações relacionadas à separação ou casos de adotante solteiro. Cabenos como pesquisadores buscar contribuições de ciências instrumentais ao
Direito como a Psicanálise, para fornecer uma melhor compreensão do fenômeno
da família monoparental no que diz respeito ao imaginário coletivo.
De acordo com Aiello-Vaisberg (1999), o imaginário coletivo pode ser
considerado, à luz das propostas blegerianas, como conjunto de manifestações
simbólicas de subjetividades grupais, vale dizer, como condutas de âmbito sóciodinâmico que se expressam na mente, que vem à luz como acontecimento
dotado de múltiplos sentidos emocionais (Bleger, 1989). Nesse contexto, a
pesquisa sobre o imaginário coletivo comporta tanto sua identificação como a
265
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
elucidação de seu substrato lógico-emocional não consciente, o que configura a
adoção de uma perspectiva psicodinâmica.
Esta concepção coincide com o enquadramento dramático, que propõe estudar os
fenômenos humanos em termos de experiência subjetiva enquanto
acontecimento dotado de sentido, numa perspectiva psicológica. Nessa linha, o
método psicanalítico foi operado através da Teoria dos Campos, que busca o
inconsciente relativo, a partir do qual está lógico-emocionalmente estruturada a
conduta emergente (Herrmann, 2001).
Metodologia
Realizamos uma entrevista coletiva com trinta estudantes de uma classe da
faculdade de Direito. Durante a entrevista, o Procedimento de Desenhos-Estórias
com Tema foi utilizado como recurso mediador visando facilitar o
estabelecimento de uma comunicação significativa, focalizada sobre a questão da
família monoparental.
O Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema foi desenvolvido por AielloVaisberg a partir de procedimento diagnóstico criado, na Universidade de São
Paulo, por Walter Trinca (2006). O qual consiste na solicitação de um desenho
especificado em termos temáticos, bem como de uma estória sobre a figura
produzida (Aiello-Vaisberg, 1999). No presente caso, solicitamos o desenho, na
presença do pesquisador, de uma família monoparental. Em seguida, pedimos
aos alunos que virassem a página e, no verso, usando a imaginação e
criatividade, inventem uma estória sobre o desenho.
Finalizada a entrevista coletiva foi realizada a análise de todos os desenhosestórias em dois momentos. No primeiro foi feita uma análise do conteúdo
manifesto nos desenhos-estórias buscando identificar as produções imaginárias.
Num segundo momento os pesquisadores buscaram a elucidação do substrato
lógico-emocional não consciente de acordo com o método interpretativo
psicanalítico. Os pesquisadores não buscaram o significado verdadeiro de cada
comunicação, até porque não existe o tal significado verdadeiro, mas se
deixaram impressionar pelas associações que lhes vierem espontaneamente
diante das produções dos sujeitos. Ou seja, todo o processo foi presidido pela
associação livre e pela atenção equiflutuante que, segundo Aiello-Vaisberg e
Machado (2007), são práticas que têm caráter fenomenológico, correspondendo
à suspensão de juízos e conhecimentos prévios, bem como à abertura e
acolhimento à expressão.
Resultados
A partir da análise e identificação das produções imaginárias, surgiram as
seguintes dimensões: definição, causalidade, conseqüências e soluções.
As definições apresentadas a respeito da família monoparental, consideradas por
homens e mulheres, tendem a imaginar primeiramente como uma família
266
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
composta apenas por mãe e filho, seguido por pai e filho. No que se refere as
causas, a maior prevalência é a separação dos pais, seguida da morte e
abandono de um dos parceiros.
Em relação às conseqüências obtivemos as positivas e as negativas. As positivas
são as que na situação de monoparentalidade as famílias podem seguir suas
vidas bem adaptadas. As negativas são que algumas crianças apresentam
dificuldades de se aproximar das pessoas e de ter amigos para brincar. A
discriminação sobre as famílias monoparentais também aparece como um
determinante das relações sociais dessas famílias, sendo igualmente expressiva a
visão de que as crianças dessas famílias ficam mais vulneráveis, apresentando
incertezas quanto ao futuro e sua estabilidade. Aparecem sentimentos de
solidão, tristeza, carência afetiva, frustração, revolta, necessidade de atenção por
terem perdido o pai ou a mãe e dificuldade de perdoar em função de situações
onde houve abandono.
No imaginário dos estudantes aparece claramente o sentimento da falta do pai e
de ser diferente em função da monoparentalidade. Como solução, tanto para os
homens como para as mulheres, os cuidados com a família monoparental
envolvem: ajuda da rede de apoio que implica em fazer amigos, ir à escola e
receber cuidados dos demais familiares. A solução mágica aparece apenas em
um desenho-estória de uma mulher, enquanto a solução do “recasamento”
aparece em ambos os sexos.
No que se refere aos campos psicológico-vivenciais sobre os quais se organizam
as concepções conscientes, o diálogo de criação/descoberta dos campos não
conscientes, subjacentes aos desenhos-estórias pesquisados, resultou na
captação de dois campos, que denominamos “família happy day” e “a dor de uma
saudade”.
O primeiro refere-se ao campo constituído pela crença segundo a qual a falta de
uma das figuras parentais não é impedimento para a felicidade familiar. O
segundo organiza-se ao redor da crença segundo a qual os genitores são os
causadores da infelicidade familiar. O campo da “família happy day” é produzido
pela ação de defesas maníacas, tais como negação da falta da figura parental
ausente e a idealização de uma vida perfeita sem problemas. Já o campo “a dor
de uma saudade” se estrutura, evidentemente, a partir da depressão.
Considerações finais
A família monoparental tem aumentado muito nas últimas décadas, tanto a nível
nacional como internacional. Por isso, estudar a monoparentalidade é importante
para a compreensão do que as pessoas imaginam sobre esta questão, já que
existe uma predominância social em ressaltar o modelo clássico triangular, ou
seja, a família formada por pai, mãe e filhos, como o modelo mais adequado em
detrimento dessa nova família que vem crescendo, o que é uma porta aberta
para a manutenção da discriminação em relação a outros modelos familiares.
267
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Assim, conhecer os campos psicológico-vivenciais sobre os quais se organizam as
concepções conscientes pode facilitar transformações no modo como os grupos
sociais concebem a família monoparental, libertando-os de adesões a concepções
restritivas que tendem a empobrecer o viver.
Referências bibliográficas
AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Encontro com a loucura: transicionalidade e ensino
de psicopatologia. 1999. 197f. Tese (Livre-Docência em Psicopatologia Geral I e
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brincante.
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e
do
Adolescente
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dá
outras
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Disponível
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<_TTP://66.102.1.104/scholar?hl=ptBR&lr=&1r=&q=cache:7p1wsnengd0j:publisaude.com/rpcgpdfs/2002/julago02/n
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HERRMANN, F. A. Andaimes do real: o método da psicanálise. 3. ed. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 2001.
LÔBO, P. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008.
MARTINS, P. C. R. O amante competente e outros campos do imaginário coletivo
de universitários sobre dificuldades sexuais masculinas. 2007. Tese (Doutorado
em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Centro de Ciências
da Vida, Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas, 2007.
TRINCA, W. Investigação clínica da personalidade: o desenho livre como estímulo
de apercepção temática. São Paulo: EPU, 2006.
WINNICOTT, D. W. O ambiente e o processo de maturação. Porto Alegre:
Artmed, 1983.
WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1996.
268
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
“Será que ele é?”
O imaginário sobre a homossexualidade
Paulo César Ribeiro Martins
Tânia Maria José Aiello Vaisberg
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Resumo: Este artigo apresenta resultados parciais de pesquisa realizada com
objetivo de investigar psicanaliticamente as produções imaginárias de
universitários sobre dificuldades sexuais masculinas, por meio do uso do
Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema em aplicação coletiva em uma
classe de estudantes de Direito. A análise do material se fez mediante o uso do
método psicanalítico, que foi operado com o auxílio da Teoria dos Campos e do
conceito de conduta de José Bleger. Foram encontrados três campos
psicológicos-vivenciais, que gravitavam ao redor da supervalorização da
performance sexual masculina, das dificuldades nos relacionamentos estáveis, e,
finalmente, da orientação sexual. Este texto focaliza, especificamente, o campo
denominado “Será que ele é”, que diz respeito a produções que inserem as
dificuldades sexuais masculinas no contexto da orientação sexual.
Palavras-chave: Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema, dificuldade
sexual masculina, imaginário coletivo, psicanálise, homossexualidade.
Will it be that he is?
The imaginary of students about homosexuality
Abstract: This article presents partial results of a research accomplished with
objective is to investigate the collective imaginary of students about male sex
problems. Therefore, the psychoanalytic method was operated through the Fields
Theory, having as groundwork the psychoanalytic theory of José Bleger. The
Procedure of Thematic Drawing-and-Telling Stories was used in a collective
approach in a classroom of Law students. The psychoanalytic analysis indicated
that the imaginary figure is organized starting from fields linked to the need of
reaching a certain pattern of competent behavior, to the difficulties to get a
stable relationship and sexual orientation. This text focuses, specifically, the
denominated field “will it be that he is?”, which refers the male sex problems in
the context of the sexual orientation.
Keyword: procedure of drawing-stories with a theme, male sex problems,
collective imaginary of students, psychoanalysis, homosexuality.
269
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A condição masculina, a partir do paradigma vigente na cultura ocidental, segue
o modelo da família patriarcal que é permeado por expectativas sobre quais são
os comportamentos próprios do homem e da mulher. Neste sentido, podemos
dizer que os papéis sociais feminino e masculino são histórica e socialmente
produzidos.
Como indica Bleger (1963), todo conhecimento é socialmente condicionado.
Deste modo, não nos surpreende constatar que a teorização dos grandes
psicanalistas, de Freud a Winnicott, exibe marcas de influências sócio-históricas.
Entretanto, podemos perceber que, ao longo do século XX, período durante o
qual a posição da mulher mudou muito, pelo menos na sociedade ocidental,
muitas mudanças ocorreram no âmbito da teorização psicanalítica, com
crescente reconhecimento acerca do valor da mulher, que deixa de ser vista, a
partir das contribuições da escola inglesa, tão-somente como um ser castrado.
Entretanto, temos dúvidas acerca do quanto uma melhor visão da mulher chegou
realmente a afetar o modo como é visto o homem, pois a impressão que temos,
tanto a partir da clinica como da presente pesquisa, é que as exigências relativas
à masculinidade não se modificaram substancialmente em termos do imaginário
coletivo. Parece que à antiga lista de requisitos somam-se, atualmente, novas
exigências, que incluem participação em mundos que anteriormente ficavam a
cargo das mulheres, maior sensibilidade afetiva e dedicação sexual à parceira,
como temos visto neste início do século XXI. No entanto, parece ainda estar
fortemente presente a idéia de que quem não se enquadra nos padrões de
condutas masculinos socialmente estabelecidos tem sua orientação sexual posta
em dúvida.
Dessa forma, cabe introduzir a contribuição do estudo do imaginário coletivo
sobre as questões da orientação sexual, para que possamos ter uma
compreensão mais completa do que envolve esta realidade. A consideração do
fenômeno da orientação sexual a partir do estudo do imaginário coletivo faz
sentido pleno quando defendemos uma concepção de homem como ser
socialmente determinado, emergente de uma complexa rede de vínculos e
relações sociais (Aiello-Vaisberg, 1999).
Método
De acordo com Bleger (1963), trabalho investigativo, no campo da psicologia,
deve partir sempre da dramática da vida para seguir caminhos de teorização que
se mantenham maximamente próximos ao plano concreto das vivências
emocionais. Assim, tanto nos preocupamos com o estabelecimento de uma
estratégia de pesquisa que possibilitasse o surgimento de manifestações
simbólicas de subjetividades grupais, como buscamos refletir sobre o material
emergente de modo a evitar explicações abstratas e distanciadas do viver. O uso
psicanaliticamente orientado do Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema
(Aiello-Vaisberg, 1999), considerado como mediação, permitiu que entrássemos
em contato com o imaginário de adultos sobre as questões sexuais masculinas.
270
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Esta concepção coincide com o enquadramento dramático, que propõe estudar a
conduta em termos de experiência subjetiva enquanto acontecimento dotado de
sentido humano, numa perspectiva psicológica. Nessa linha, o método
psicanalítico foi operado através da Teoria dos Campos, que busca o inconsciente
relativo, a partir do qual está lógico-emocionalmente estruturada a conduta
emergente (Herrmann, 1979; 1984).
Para tanto, realizamos uma entrevista coletiva com cinqüenta e cinco estudantes
de uma classe da faculdade de Direito. Durante a entrevista, o Procedimento
Desenhos-Estórias com Tema foi utilizado como recurso mediador visando
facilitar o estabelecimento de uma comunicação significativa, focalizada sobre as
questões sexuais masculinas.
O Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema foi desenvolvido por AielloVaisberg a partir de procedimento diagnóstico criado, na Universidade de São
Paulo, por Walter Trinca (1976). Consiste na solicitação de um desenho
especificado em termos temáticos, bem como de uma estória sobre a figura
produzida (Aiello-Vaisberg, 1999). No presente caso, solicitamos o desenho, na
presença do pesquisador, de um homem com dificuldades na vida sexual. Em
seguida, pedimos aos alunos que virassem a página e, no verso, usando a
imaginação e criatividade, inventassem uma estória sobre o desenho.
Finalizada a entrevista coletiva, realizamos a análise de todos os desenhosestórias em dois momentos. No primeiro fizemos uma análise do conteúdo
manifesto nos desenhos-estórias buscando identificar as produções imaginárias.
Num segundo momento buscamos a elucidação de seu substrato lógicoemocional não consciente de acordo com o método interpretativo psicanalítico.
Os pesquisadores não buscaram o significado verdadeiro (até porque não existe
o tal significado verdadeiro) de cada comunicação, mas se deixaram impressionar
pelas associações que lhes vieram espontaneamente diante das produções dos
sujeitos. Ou seja, todo o processo foi presidido pela associação livre e pela
atenção equiflutuante que, segundo Aiello-Vaisberg e Machado (2007), são
práticas que têm caráter fenomenológico, correspondendo à suspensão de juízos
e conhecimentos prévios, bem como à abertura e acolhimento à expressão. A
partir das associações, chegamos a configuração de sentidos que se realizam
como criação/encontro dos campos psicológico-vivenciais.
É importante frisar que adotamos esta estratégia psicanalítica de pesquisa num
movimento de afastamento epistemológico do positivismo empírico, e nos
aproximamos da fenomenologia, numa decidida valorização do mundo vivido, da
experiência dramática, sempre dotada de múltiplos sentidos, muitos deles
desconhecidos, inconscientes (Bleger, 1963; Aiello-Vaisberg, Machado, 2007).
Nossa formulação teórica é dinâmica e relacional, visando uma elaboração
compreensiva e abrangente sobre os motivos humanos que presidem as
condutas. Lidamos com fatos psicológicos que emergem da relação do
pesquisador com o pesquisado, sendo os desenhos-estórias concebidos como
apresentações de um acontecer clínico (Aiello-Vaisberg; Machado, 2007). Todo o
processo investigativo partiu da idéia de que a pessoalidade dos pesquisadores
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
são parte constitutiva do acontecer clínico. Analogamente, a elaboração
compreensiva que nos permitiu acessar campos psicológicos subjacentes às
produções imaginativas, buscando sermos rigorosos e fieis, não deixou de ser
autoral, correspondendo àquilo que estes pesquisadores-clínicos – como pessoas
concretas e não como puros sujeitos cognoscentes – puderam captar.
Será que ele é?
O campo psicológico-vivencial denominado “será que ele é?” abrange
manifestações imaginárias encontradas nos desenhos-estórias de homens e
mulheres, que se referem à dificuldade de o homem comportar-se segundo
padrões especificamente masculinos, em virtude da presença de desejos
homossexuais que gerariam impotência. Neste campo são freqüentes
associações relativas ao despertar da sexualidade, momento durante o qual se
definiria, segundo o imaginário coletivo, a capacidade de desejar sexualmente
pessoas do mesmo ou do sexo oposto.
O campo “será que ele é?”, de acordo com o imaginário dos estudantes de
Direito, relaciona-se a um ambiente cultural nitidamente machista e homofóbico,
que abre caminho para a discriminação e o preconceito. É interessante notar,
então, que a atração por outros homens é considerada perda de potência
masculina, concepção que não deve se modificar diante da lembrança de que os
homossexuais têm ereções e ejaculações. Então, esta estranha perda de
potência sexual tem o efeito de diminuir o valor pessoal do indivíduo, que perde
o respeito dos demais e vê sua dignidade afetada na medida em que “não dá
conta do recado” em relação à mulher.
Se, inicialmente, o “não dar conta do recado” alude à incompetência sexual, não
é descabido repensar este fenômeno como evidência de dificuldades mais amplas
de vinculação. Como sexo é vínculo, as dificuldades sexuais masculinas podem
ser pensadas em termos de retração do vínculo, o que parece ter muito a ver
com a estrutura de conduta esquizóide (Bleger, 1963), que inclui condutas de
introversão. Essas condutas, de acordo com as produções imaginativas, podem
começar a se manifestar ainda na infância, antes da puberdade, quando o
menino pode apresentar vergonha de cenas de sexo que aparecem, por exemplo,
na televisão. A dificuldade de lidar com os desejos sexuais, como referem os
estudantes em suas produções imaginativas, pode iniciar na infância e seguir
pela adolescência e vida adulta resultando, entre outras coisas, em uma
dificuldade de se relacionar com mulheres.
A situação de frieza afetiva e incômodo lembra o breve relato de um aluno,
participante desta pesquisa, que trocou algumas poucas e rápidas palavras com o
pesquisador, exatamente no momento em que entregava seu desenho-estória.
Contou então que, quando tinha menos idade, muitos dos seus amigos tinham
namoradas e ele dava graças a Deus por não ter este “tipo de incômodo”. Mais
tarde começou a namorar e quando beijava sua namorada não sentia nenhuma
excitação, o que só veio a ocorrer com o passar do tempo. Esse relato nos
lembra Winnicott (1965a), quando refere que com as mudanças da puberdade
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
despertam as defesas organizadas nos primeiros anos de vida contra as
ansiedades produzidas nesta fase.
Ao mesmo tempo em que levanta a questão de que o amadurecer é um processo
e não acontece na mesma idade nem da mesma forma para todas as pessoas,
sendo que umas amadurecem antes para determinados aspectos da vida do que
outras. Esta situação é bem clara no campo “será que ele é?”, no contexto do
qual as produções imaginárias levantam a questão de que algumas pessoas
despertam mais tardiamente para o sexo, referindo que alguns personagens
desenhados entram na adolescência e demoram a vivenciar práticas autoeróticas, comuns nessa fase, e só bem mais tarde começam a estabelecer
vínculos amorosos estáveis, diminuindo as condutas defensivas esquizóides na
medida em que vão reconhecendo seu modo de ser no que se refere a sua
orientação sexual.
O relacionamento com o sexo oposto aparece, nas produções imaginativas
relativas ao campo “será que ele é?”, como uma obrigatoriedade por meio da
qual se pode confirmar, numa demonstração para os demais, a condição de
masculinidade, mesmo que o relacionamento seja marcado pela falta de
interesse e pela dificuldade de se vincular com a mulher. Essa obrigatoriedade
expressada pelas figuras desenhadas pelos estudantes é decorrente, a nosso ver,
do temor de exclusão social em função do preconceito. Por este motivo, relatam
que os personagens desenhados se sentem cada vez menos encorajados a
participar da vida social, uma vez que compete ao rapaz assumir condutas ativas
não apenas em relação às meninas, mas também em outras esferas do viver. O
rapaz menos “atirado” será comumente discriminado pelo grupo social.
Segundo as produções imaginativas, a dificuldade de se vincular afetivamente
pode ocorrer com as figuras desenhadas que possuem um excelente nível
cognitivo, em função de estarem passando por um processo pelo qual estão se
descobrindo como pessoas, podendo vir a manifestar a vida sexual ativa
tardiamente, até mesmo após o ensino superior. Segundo Winnicott (1965b, p.
118), “para muitos, há um longo período de incerteza quanto à própria existência
de um impulso sexual de fato”, sendo que adolescentes mais jovens podem não
saber realmente se são hetero ou homossexuais.
No caminho desta descoberta, as produções imaginárias demonstram, através
das figuras desenhadas, a existência de crenças segundo as quais podem ocorrer
experiências de relações heterossexuais para depois descobrirem a
homossexualidade ou assumi-la de vez. O período de descoberta pode ser
bastante penoso, de modo que os personagens desenhados só conseguiriam
viver plenamente sua orientação sexual com ajuda psicológica. De outro modo,
correriam o risco de manter a estrutura de conduta defensiva esquizóide, não
conseguindo se vincular, distanciando o afeto das relações, ficando impedidos de
relacionarem-se como pessoas inteiras e construírem relações estáveis.
Considerações finais
273
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Finalizando, este panorama relativo a condutas não conscientes do campo “será
que ele é?” demonstra claramente que a construção da identidade masculina, ou
seja, o que é ser homem, segundo o imaginário coletivo dos estudantes de
Direito, está intimamente relacionado com o contexto social em que o indivíduo
se insere, sendo que esta descoberta se estende pela vida afora, ultrapassando o
período da adolescência e início da vida adulta, sempre acompanhada pelo
fantasma do preconceito.
“Será que ele é?” envolve manifestações sobre as dificuldades dos homens em se
comportarem como tal – o que implicaria em envolver-se sexualmente com
pessoas do sexo oposto –, em função de desejos homossexuais, de acordo com o
imaginário dos estudantes pesquisados. As produções deste campo envolvem o
período em que começa a surgir o despertar da sexualidade no sentido da pessoa
começar a ter consciência dos seus desejos por outros do mesmo sexo ou do
oposto. De acordo com o imaginário dos estudantes este campo relaciona-se com
um ambiente cultural machista, que impõe um modelo do que é ser homem
abrindo as portas para a rejeição das pessoas que não se enquadram nos moldes
socialmente pré-estabelecido.
Inspirados num pensamento psicanalítico inovador, que se apóia nas
contribuições de D.W.Winnicott e José Bleger, defendemos a idéia de que uma
preocupação psicoprofilática em relação à vida sexual pode se realizar como
prática psicológica em enquadres diferenciados junto a diferentes grupos sociais,
seja em escolas, serviços de saúde e outras instituições, tendo em vista
promover experiências emocionais enriquecedoras mediante o favorecimento da
expressão de potencialidades para a criação/transformação da realidade. O
objetivo fundamental será o de contribuir para o alcance de uma vida sexual
saudável, criativa e o mais afastada possível da discriminação e do preconceito.
Referências bibliográficas
AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Encontro com a loucura: transicionalidade e ensino
de psicopatologia. 1999. 197f. Tese (Livre-Docência em Psicopatologia Geral I e
II) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.
AIELLO-VAISBERG, T. M. J.; MACHADO, M. C. L. Narrativas: o gesto do sonhador
brincante.
Disponível
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<http://www.estadosgerais.org/encontro/IV/PT/trabalhos/Tania_Maria_Jose_Aiel
lo_Vaisberg_e_Maria_Christina_Lousada_Machado.php>. Acesso em: 27 fev.
2007.
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Diehl. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. 244p.
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TRINCA, W. (1976). Investigação clínica da personalidade: o desenho livre como
estímulo de apercepção temática. São Paulo: EPU, 2006. 154p.
274
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
WINNICOTT, D. W. (1965a). A criança e o sexo. In: WINNICOTT, D. W. A criança
e o seu mundo. 6. ed. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: 1985. p.166-182.
WINNICOTT, D. W. (1965b). Adolescência. In: WINNICOTT, D. W. A família e o
desenvolvimento individual. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo:
Martins Fontes 1993. p.115-127.
275
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A perspectiva terapêutica da arte no campo da
saúde mental - Relato de experiência
Raquel Rossi Tavella82
Mariana Wisnivesky 83
Resumo: Este estudo busca analisar as contribuições terapêuticas da oficina de
arte oferecida a usuários de um Centro de Apoio Psicossocial (CAPS),
pertencente ao Serviço de Saúde Candido Ferreira (SSCF). As atividades desta
oficina foram acompanhadas, ao longo do ano, pela estagiária autora desta
pesquisa, como parte das atividades do Estágio em Saúde Mental, realizado por
alunos concluintes do curso de Psicologia através de um convênio entre a PUCCampinas e o SSCF. A proposta da oficina é utilizar atividades artísticas como
estratégias de inclusão social e intervenção cultural, como alternativa às
vivencias que os usuários trazem diante do estereótipo da incapacidade, exclusão
e doença. Da oficina fazem parte: uma terapeuta ocupacional, uma enfermeira,
uma estagiária de psicologia e, aproximadamente, oito usuários. Este é,
portanto, o contexto geral a partir do qual vem sendo possível observar e
analisar contribuições significativas ao tratamento em saúde mental. Apesar de
as atividades ainda estarem em andamento, já é possível identificar o processo
dinâmico da arte funcionando como fio condutor capaz de construir uma relação
terapêutica promotora da melhoria da qualidade de vida, abrindo as portas para
a perspectiva da saúde e da criatividade no campo do tratamento ao sofrimento
psíquico. A obra criativa não apenas alarga o universo externo, mas também
enriquece e expande o mundo interno. Para Freud, a arte estaria na metade do
caminho entre a realidade e a imaginação, comparou o fazer do artista ao brincar
das crianças e nos adiantou: ambos, em seu fazer, estão criando e, desta forma,
estão sendo.
Abstract The aim of this study is to analyze the therapeutic contributions of art
workshop activities to patients of a Psychosocial Support Center (CAPS), a
branch of the Health Service Center Candido Ferreira (SSCF). The activities of
this art workshop have been surveyed all over this year by the author of this
research as part of the university training period carried out by students of
Psychology Course through a partnership between PUC-Campinas and the SSCF.
The aim of the art workshop is to use art activities as strategies of social
inclusion and cultural involvement as an alternative to the patients’ experiences
regarding stereotypes such as incapacity, exclusion and disease. The participants
of this art workshop include an occupational therapeutic, a nurse, a psychologist
trainee and eight patients. This is, therefore, the general context in which it has
been possible to observe and analyze considerable contributions to mental health
treatment. Although the activities are still in progress, it is already possible to
82 Estagiária do SSCF e aluna do curso de Psicologia da PUC-Campinas
83 Professora e Supervisora de Estágio em Saúde Mental da PUC-Campinas
276
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
identify the dynamic process of art acting as an important tool that enables a
therapeutic support to life quality improvements, allowing new perspectives to
health and creativity concerning the treatment of psychic suffering. Creative art
not only widens the outward universe, but also enriches and enlarges the internal
world. Freud’s writings support that art is half way between reality and
imagination. He compared the work of an artist to children at play: in their affair,
both are creating, and, thus, both are being.
A perspectiva terapêutica da arte no campo da Saúde Mental.
O presente estudo busca analisar as contribuições terapêuticas da oficina de arte
oferecida a usuários de um Centro de Apoio Psicossocial (CAPS), pertencente ao
Serviço de Saúde Candido Ferreira (SSCF). As atividades desta oficina foram
acompanhadas, ao longo do ano, pela estagiária autora desta pesquisa, como
parte das atividades do Estágio em Saúde Mental, realizado por alunos
concluintes do curso de Psicologia através de um convênio entre a Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (PUCC) e o SSCF.
Ao longo do século XVII, com o surgimento dos hospitais gerais, a loucura foi
considerada pela sociedade como sinônimo de pobreza, de incompetência e de
incoerência. Em diversos lugares foram construídos espaços de confinamento e
junto com as prisões, nasceram os hospitais gerais, também conhecidos como “A
Grande Internação”, com o intuito de absorver os insanos e dementes. Dessa
forma, o louco foi destinado às casas de internação, ou seja, a um espaço
institucional da exclusão (Focault, 1972).
No século XVIII Pinel e seus contemporâneos possibilitaram o nascimento de
uma nova psiquiatria, que desacorrentava os loucos e que propunha uma espécie
de asilo para o tratamento dos mesmos. Nesses asilos o doente era vigiado,
contradito nos seus delírios, submetido a ordens, o que limitava assim sua
liberdade. O trabalho, nessas instituições, era utilizado como uma estratégia para
prevenir o comportamento não desejado e os pensamentos mórbidos (Focault,
1972).
Os primeiros hospitais psiquiátricos foram fundados por Pinel, que utilizou o
princípio do isolamento para os chamados alienados, o qual foi considerado o
primeiro modelo de terapêutica, entendido como estratégia fundamental para
que “o alienado” pudesse receber um tratamento adequado. Dessa forma, podese observar que o princípio do isolamento estava associado à produção do
conhecimento no campo do “alienismo”, sendo agora transformado em instituição
médica, o hospital se tornava uma espécie de laboratório, onde as pessoas eram
observadas e também estudadas (Amarante, 2007).
Porém, as duas Guerras Mundiais fizeram com que a sociedade refletisse sobre a
natureza humana, pensando tanto sobre a crueldade quanto sobre a
solidariedade existentes entre os homens, ou seja, estavam sendo criadas
condições históricas para o período das transformações psiquiátricas. Esse
contexto permitiu que a sociedade dirigisse seu olhar para os hospícios
percebendo a semelhança dessa instituição com os campos de concentração.
277
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Deste modo se originaram as primeiras experiências de reforma psiquiátrica
como aponta Amarante (2007)
Houve muitas experiências de reformas em vários países. Algumas foram
consideradas mais marcantes por sua inovação e impacto a ponto de serem
reconhecidas ainda hoje e influenciarem experiências contemporâneas. Porém no
Brasil, no final da década de 1970, a reforma psiquiátrica surge do movimento
popular que se opõe a limitação das liberdades democráticas na ditadura,
denunciando os maus-tratos de pessoas em sofrimento psíquico, consideradas
“tratadas” em hospitais psiquiátricos (Amarante, 2007).
De acordo com Lima (2007), no século XX as atividades artísticas participaram
de um processo de transformação das instituições psiquiátricas em que a loucura
passou por um questionamento e também pela redefinição do seu lugar. A partir
da reforma psiquiátrica brasileira, a arte foi um dos caminhos que contribuiu para
a prática de desinstitucionalização. Essa nova configuração da saúde mental
voltou-se par a promoção e valorização do indivíduo, uma vez que abriu as
portas para a perspectiva da criação e também da produção artística.
Atualmente, as oficinas de arte proporcionam a inserção social nos hospitais
psiquiátricos num espaço que possibilita tanto a convivência como a criação,
afinal além do tratamento clínico, o paciente psiquiátrico carece da necessidade
de criar e também de relacionar-se (Mendonça, 2005).
Dessa forma, a arte terapia é considerada um processo terapêutico que utiliza
diversos recursos expressivos para ajudar os pacientes a entrarem em contato
com os seus conteúdos inconscientes. Permitindo assim, o acesso com níveis
mais profundos de funcionamento psíquico, a arte terapia, procura promover o
desenvolvimento da personalidade como um todo. Conforme apontado por
Ormezzano (2005), o processo terapêutico do ateliê de artes parte do
pressuposto de que, através das atividades artísticas, o paciente psiquiátrico
consegue expressar as manifestações do inconsciente.
Nesse contexto a estagiária e autora desta pesquisa acompanhou as oficinas de
Arte que utilizavam atividades artísticas como estratégias de inclusão social e de
intervenção cultural, proporcionando experiências diferentes daquelas que a
comunidade está habituada a presenciar no que diz respeito ao estereótipo de
incapacidade e impotência dos pacientes psiquiátricos.
Através deste estudo foi possível fazer um recorte do material analisado, obtido
por meio de observações dos comportamentos e das falas transcritas dos
usuários nas oficinas de Arte. No âmbito desse espaço, foi possível participar, no
período de um ano, dessas oficinas com duração de uma hora e meia. O grupo
foi composto por uma terapeuta ocupacional, uma enfermeira, uma estagiária de
psicologia e por aproximadamente oito usuários do CAPS, sendo estes de ambos
os sexos e que estavam inseridos no programa de atendimento do CAPS Toninho
situado na cidade de Campinas.
278
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Nessas oficinas não era exigida a produção de obras de arte, que são valorizadas
socialmente, mas sim, um possível caminho para a expressão do sofrimento
psíquico. Dessa forma, não houve determinação das atividades e nem
obrigatoriedade, ou seja, ela partiu da escolha de cada usuário.
Apesar de as atividades ainda estarem em andamento, já é possível identificar o
processo dinâmico da arte funcionando como fio condutor capaz de construir uma
relação terapêutica promotora da melhoria da qualidade de vida, abrindo as
portas para a perspectiva da saúde e da criatividade no campo do tratamento ao
sofrimento psíquico. A obra criativa não apenas alarga o universo externo, mas
também enriquece e expande o mundo interno. Para Freud, a arte estaria na
metade do caminho entre a realidade e a imaginação, comparou o fazer do
artista ao brincar das crianças e nos adiantou: ambos, em seu fazer, estão
criando e, desta forma, estão sendo.
Assim as atividades artísticas realizadas neste contexto destacam o processo
construtivo e a criação do novo, através da reinvenção do homem e do mundo,
de maneira concreta, à medida que produz objetos, ações, experiências,
acontecimentos e imaginação. Desta forma, essas atividades simbolizam o
enriquecimento de competências e habilidades individuais e acesso à cultura
(Mendonça, 2005).
Referências bibliográficas:
Mendonça, T. C. P. As Oficinas na Saúde Mental: relato de uma experiência na
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279
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Transtorno Bipolar e a experiência de perda: contato
com uma paciente num ambulatório psiquiátrico
Relato de experiência
Samira Kalil Waldemarim
Marcelo Roberto de Brito Nardozzi
Maíra Fernanda Marcatti
Marly Aparecida Fernandes
Uma alegria tumultuosa anuncia uma felicidade medíocre e breve.
Plutarco
O humor é a forma mais sã de lucidez
Jacques Brel
Resumo: Este artigo tem o objetivo de discutir a compreensão psicológica do
Transtorno Bipolar. A partir de uma prática de Psicopatologia em um ambulatório
de Psiquiatria de um hospital universitário, os autores utilizaram o referencial
teórico psicanalítico e avaliaram a experiência de perda como um dos fatores
desencadeadores da crise no referido transtorno, através da análise da história
de vida de uma paciente deste contexto.
Palavras-Chave: Transtorno Bipolar; Perda; Psicanálise.
Abstract: This article has the purpose of discuss the psychological understanding
of the Bipolar Disorder. From a practice of Psychopathology at a Psychiatric
ambulatory of an academic hospital, the authors have used the theoretical
psychoanalysis and have evaluated the experience of loss as one of the triggering
factors from crisis of the mentioned disorder, through the analysis of the life
history of a pacient from this context.
Key-Words: Bipolar Disorder; Loss; Psychoanalysis.
Este artigo foi realizado com base nas experiências práticas realizadas em um
ambulatório de psiquiatria de um hospital geral e universitário do município de
Campinas, estado de São Paulo. O Transtorno Bipolar foi a psicopatologia mais
freqüentemente observada neste contexto, principalmente entre mulheres.
Visitamos o ambulatório em trio, uma vez a cada quinze dias, durante o período
de dois meses (segundo semestre do ano de 2007), para observar e ter contato
com os pacientes internados, em cumprimento à atividade pedagógica proposta
pela disciplina Psicopatologia II do curso de Psicologia da PUC-Campinas. As
experiências foram compartilhadas em sala de aula durante as aulas de
laboratório.
280
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Inicialmente, resolvemos estudar o Transtorno Bipolar devido à grande incidência
de pacientes com este diagnóstico. O interesse por enfocar a perda como um
agente causador, surgiu a partir do momento em que entramos em contato com
a história de vida de uma paciente que nos chamou mais a atenção dentre os
demais, em decorrência de sua grande comunicabilidade e por sua incessante
busca de contato interpessoal.
Primeiramente faremos uma introdução teórica do Transtorno Bipolar, levantando
um breve histórico desta psicopatologia, conceituando-a e caracterizando a sua
sintomatologia típica. A partir destas explanações, visamos relacionar a perda
como potencial agente causador deste transtorno (dentro da abordagem
psicanalítica), através do estudo da história de vida da paciente supra citada.
Relacionaremos também os fenômenos psicopatológicos (sinais e sintomas)
apresentados por ela com a sintomatologia clínica da doença, dados estes
coletados a partir da leitura de seu prontuário e do contato direto com a
paciente.
O Transtorno Bipolar se enquadra dentro de um grupo de transtornos
denominado como transtornos do humor. De acordo com o CID-10 (Classificação
Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados Com a Saúde,
décima revisão, 1993), os transtornos do humor são aqueles nos quais a
perturbação fundamental é uma alteração do humor ou do afeto, no sentido de
uma depressão (com ou sem ansiedade associada) ou de uma elação. Goodwin e
Hirschfeld (1992) assinalam que os transtornos do humor englobam um amplo
espectro de condições, variando de reações à perda e outras experiências de vida
negativas, até doenças severas, recorrentes e incapacitantes.
Atualmente, o Transtorno Bipolar ora é denominado desta maneira, ora
denominado como Transtorno Afetivo Bipolar, ou ainda, como Transtorno do
Humor Bipolar. Para Kaplan et al. (1997), o uso do termo transtorno afetivo é
inadequado já que a patologia crítica nesta doença é do humor (o estado
emocional interno mais constante de uma pessoa) e não do afeto (a expressão
externa do conteúdo emocional atual). O próprio DSM (Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais) alterou suas denominações para este grupo
de transtornos ao longo de suas edições. O DSM-IV (quarta edição) chama de
transtornos do humor o que o DSM-III (terceira edição) chamava de transtornos
afetivos. Dessa forma, pode-se notar que muitas vezes as palavras humor e
afeto são usadas como sinônimos. Para facilitar, chamaremos esta psicopatologia
neste artigo como tão somente Transtorno Bipolar.
Vale lembrar que o Transtorno Bipolar já foi chamado de Psicose ManíacoDepressiva. Tal denominação surgiu a partir do trabalho nosológico de Emil
Kraepelin. Em 1899, ele agrupou todas as psicoses descritas anteriormente em
uma entidade fundamental: doença maníaco-depressivo, que ele considerava
uma afecção endógena e constitucional (Alcantara, et al., 2003). Uma das
psicoses maníaco-depressivas descritas por Kraepelin continha a maioria dos
critérios usados atualmente para o estabelecimento do diagnóstico de Transtorno
Bipolar tipo I (Kaplan et al., 1997).
281
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Moreno & Moreno (2007) trazem alguns dados acerca deste transtorno. Segundo
eles, os custos da doença Bipolar, considerando apenas a forma mais grave que
acomete 1% da população geral, foram calculados entre 12 mil e 18 mil dólares
ao ano por paciente. As estimativas alarmantes levaram a OMS a incluir esta
psicopatologia como sexta maior causa de incapacitação. A sua prevalência mais
que quintuplicou e seu início tem se apresentado cada vez mais precoce. Em
análise detalhada da amostra brasileira, a prevalência observada do espectro
bipolar foi de 8,3%. A Suíça e os Estados Unidos, por exemplo, apresentam
respectivamente taxas de 10,9 e 1,6%.
De acordo com a CID-10 (1993), o Transtorno Bipolar se caracteriza por dois ou
mais episódios nos quais o humor e a atividade do sujeito estão perturbados. Ele
consiste na alternância entre episódios de mania ou hipomania (elevação do
humor e aumento da energia e da atividade) e episódios de depressão
(rebaixamento do humor e redução da energia e da atividade).
Esta recorrência de episódios de mania e depressão acarreta em um enorme
impacto na qualidade de vida dos indivíduos acometidos, o que faz do Transtorno
Bipolar uma doença grave. O suicídio é uma das mais drásticas conseqüências
desta doença (Gomes et al., 2007). Aproximadamente 15% de indivíduos
seriamente deprimidos podem eventualmente cometer suicídio (Goodwin &
Hirschfeld, 1992).
A mania (ou episódio maníaco) é caracterizada por um humor persistentemente
elevado, eufórico, expansível ou irritável, com presença típica de risos,
trocadilhos e gesticulações. Os sintomas observados são: 1. Auto-estima inflada
ou grandiosidade; 2. Necessidade diminuída por sono; 3. Paciente mais falante
que o habitual ou pressão para continuar falando (os pacientes tagarelam
desenfreadamente); 4. Aceleração dos processos cognitivos com pensamentos
velozes, fuga de idéias ou experiência subjetiva de que os pensamentos estão
correndo; 5. Distração; 6. Aumento na atividade dirigida ao objetivo
(socialmente, no trabalho, na escola ou sexualmente); 7. Agitação psicomotora
(superabundância de energia e atividade; inquietude geral); 8. Envolvimento
excessivo com atividades agradáveis com um alto potencial para conseqüências
dolorosas; 9. Conduta impulsiva (pacientes tipicamente intrometidos, desinibidos
e impulsivos) 10. Pode-se encontrar também a presença de aspectos psicóticos
durante um episódio de mania como, por exemplo, delírios e alucinações (DSMIV-TR, 2002; Kaplan et al., 1997; Kaplan & Sadock, 1999; Goodwin & Hirschfeld,
1992).
O indivíduo em episódio maníaco (especialmente aquele com características
psicóticas) pode mostrar-se hostil, fisicamente ameaçador, agressivo e suicida
(DSM-IV-TR, 2002). A irritabilidade é bastante comum. Estes pacientes podem
ter baixa tolerância à frustração, acarretando sentimentos de raiva e hostilidade.
Com freqüência, um paciente pode exibir uma mudança de um humor
predominantemente eufórico, no início da doença, para irritabilidade
posteriormente. Kaplan et al. (1997) indicam que aproximadamente 75% dos
maníacos são agressivos ou ameaçadores.
282
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Segundo Kaplan & Sadock (1999), o apetite sexual em pacientes maníacos está
tipicamente aumentado e pode levar à indiscrição sexual. Mulheres casadas com
vidas sexuais anteriores sem máculas podem ligar-se a homens de nível social
inferior. Os homens em geral freqüentam bares, abusam do álcool e contratam
prostitutas. Segundo o DSM-IV-TR (2002), alguns descrevem um sentido muito
mais aguçado de olfato, audição ou visão.
Goodwin & Hirschfeld (1992) assinalam que a necessidade por menos sono faz
com que pacientes maníacos possam não dormir durante dias. O fato de às vezes
encontrarem-se maciçamente psicóticos e desorganizados exige com freqüência
a contenção física e o uso de tranqüilizantes musculares (Kaplan et al., 1997).
A hipomania é reconhecida pelo DSM-IV como um episódio com variantes não
psicóticas e não desorganizadas. O paciente tem uma experiência agradável e
tende a não estar ciente de sua condição ou até mesmo negá-la. Ela se
caracteriza por um período em que há uma leve elevação do humor, pensamento
aguçado e positivo e maior nível de energia e de atividade. Entretanto, não são
encontrados os comprometimentos do episódio maníaco (como alucinações e
delírios, por exemplo). A distrabilidade é incomum neste episódio e há uma
relativa preservação do insight (Kaplan et al., 1999).
A depressão (ou episódio depressivo maior) é caracterizada por um humor
deprimido ou perda de interesse ou de prazer por quase todas as atividades. Este
humor deprimido refere-se a uma excitação afetiva negativa, variadamente
descrita como depressiva, angustiada, lamentosa e irritável. Os sintomas
observados são: 1. Relato subjetivo de tristeza ou vazio; 2. Interesse ou prazer
acentuadamente diminuídos por todas ou quase todas as atividades; 3. Perda ou
ganho significativo de peso quando não está realizando dieta ou diminuição ou
aumento de apetite; 4. Insônia ou Hipersonia; 5. Agitação ou retardo
psicomotor; 6. Fadiga ou perda de energia; 7. Sensação de inutilidade ou culpa
excessiva ou inapropriada (que pode ser delirante); 8. Capacidade diminuída
para pensar ou concentrar-se ou indecisão; 9. Pensamentos recorrentes sobre
morte (não apenas o medo de morrer), ideação suicida recorrente sem um plano
específico, ou uma tentativa de suicídio ou um plano especifico para cometê-lo;
10. Retraimento social (DSM-IV-TR, 2002; Kaplan et al., 1997; Kaplan & Sadock,
1999; Goodwin & Hirschfeld, 1992).
Segundo Goodwin & Hirschfeld (1992), um paciente com humor deprimido
apresenta processos cognitivos diminuídos e o conteúdo cognitivo reflete a baixa
auto-estima do sujeito. Pessoas deprimidas geralmente se descrevem como
insignificantes e são freqüentemente pessimistas, sempre esperando o pior. O
retraimento social pode ser tão intenso que os pacientes podem nem sequer
levantar-se da cama. Eles freqüentemente parecem estar em câmera lenta,
falando e movendo-se vagarosamente. Contudo, Kaplan et al. (1997) afirmam
que a agitação psicomotora também pode estar presente, especialmente nos
idosos.
Nos depressivos, a libido é afetada podendo estar completamente ausente. A
incapacidade de sentir prazer é tão grande que nada parece agradável (Goodwin
& Hirschfeld, 1992). Para Kaplan et al. (1997), a apresentação clássica de um
283
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
paciente deprimido envolve uma postura curvada, ausência de movimentos
espontâneos e um olhar abatido e perdido.
Os deprimidos também podem manifestar sintomas psicóticos. Os pacientes
bipolares apresentam delírios e alucinações congruentes com o humor: os
delírios de um deprimido incluem culpa, pecado, inutilidade, pobreza, fracasso,
perseguição e doenças somáticas terminais. Em pacientes maníacos os sintomas
psicóticos envolvem grande riqueza, habilidades ou poder. No entanto, delírios e
alucinações bizarras não congruentes com o humor também são vistos na mania.
A presença destes sintomas é vista em 75% dos maníacos (Kaplan et al.,
1997).
Dentre os fatores associados à depressão na vida adulta, são encontrados a
exposição a estressores na infância (como a morte dos pais ou do cuidador), as
privações materna ou paterna por abandono, as separações ou divórcio, entre
outros (Eizirik et al., 2002). Podemos evidenciar que vários deles se referem
direta ou indiretamente a situações de perda.
O episódio misto se caracteriza por um período de tempo (no mínimo uma
semana) durante o qual o indivíduo experimenta uma rápida alternância de
humor (tristeza, irritabilidade, euforia), acompanhada dos sintomas de um
episódio maníaco e de um episódio depressivo maior quase todos os dias. A
sintomatologia freqüentemente encontrada é: 1. Agitação; 2. Insônia; 3.
Desregulação do apetite; 4. Características psicóticas; 5. Pensamentos suicidas.
Esta condição pode ser decorrente dos efeitos diretos de medicamentos
antidepressivos (DSM-IV-TR, 2002).
Existe muita polêmica acerca da categorização dos estados mistos. As idéias
variam desde critérios rígidos (como no CID-10 e DSM-IV, que requerem a
presença coexistente de critérios de episódios maníaco e depressivo), até
propostas mais abrangentes. Diversos autores propõem vários e diferentes tipos.
Esta questão é muito importante, já que dependendo da classificação, entre 20 e
74% dos pacientes com doenças afetivas apresentaram em algum período um
episódio misto. Não existe consenso entre os pesquisadores. Kraepelin propôs
seis tipos de estados mistos, resultantes da interação entre funções como humor,
atividade e pensamento. Para exemplificar, um dos tipos propostos por ele
denominado como mania inibida, apresenta humor e pensamento maníacos
enquanto a atividade é deprimida. Ou seja, o estado emocional é eufórico, seus
processos cognitivos são acelerados, porém, a agitação e a inquietude não são
vistas (Alcantara et al., 2003).
Segundo o DSM-IV-TR (2002), o Transtorno Bipolar é dividido em alguns tipos. O
Transtorno Bipolar I é caracterizado pela ocorrência de um ou mais episódios
clínicos maníacos ou mistos geralmente acompanhados de episódios depressivos
maiores. Trata-se de um transtorno recorrente e mais de 90% dos indivíduos que
tem um único episódio maníaco terão futuros episódios. Os portadores deste tipo
têm aproximadamente quatro episódios durante dez anos. Entretanto, de 5 a
15% dos sujeitos acometidos apresentam múltiplos episódios de humor (quatro
284
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
ou mais) durante um ano e são denominados cicladores rápidos. Para estes
pacientes o prognóstico é pior.
O Transtorno Bipolar II é caracterizado pela ocorrência de um ou mais episódios
depressivos maiores acompanhados por pelo menos um episódio hipomaníaco.
Os episódios hipomaníacos freqüentemente precedem ou seguem os episódios
depressivos maiores em um padrão característico para cada determinada pessoa
(DSM-IV-TR, 2002).
Homens e mulheres apresentam prevalências semelhantes (no que se refere à
epidemiologia) quanto ao Transtorno Bipolar tipo I. As diferenças encontram-se
no curso da patologia, visto que as mulheres têm maior chance de desenvolver a
ciclagem rápida, bem como a mania mista e episódios depressivos mais longos e
freqüentes. Elas apresentam uma diátese (disposição do organismo para ser
atacado freqüentemente por certa classe de doenças) em relação à
sintomatologia depressiva, o que explicaria o fato de as mulheres representarem
o dobro dos casos no transtorno unipolar (depressão maior) e no Bipolar tipo II.
Há uma prevalência do estado eufórico entre os homens, no entanto, a
cronificação da mania é mais significativa entre mulheres (Borja, et al., 2005;
Dias et al., 2006).
A depressão costuma ser o episódio de humor inicial mais freqüente entre as
mulheres diagnosticadas com Transtorno Bipolar. Elas tendem a passar um terço
das suas vidas neste episódio. A depressão é mais longa e resistente em
comparação com a dos homens, fato que pode dificultar o tratamento. Pouco se
sabe sobre o porquê da maior manifestação depressiva entre as mulheres e as
hipóteses variam desde explicações das diferenças culturais e psicológicas entre
homens e mulheres, até as relativas diferenças hormonais (Dias et al., 2006).
O Transtorno Bipolar foi estudado pela Psicanálise, entretanto não se utilizava
este termo. Freud chamava de melancolia o que hoje é entendido como
depressão. A mania, segundo Freud (apud Mauer, 1997), é um estado
sintomaticamente oposto à melancolia e surge como uma resposta ao estado
melancólico. Para ele, “a peculiaridade mais singular da melancolia é sua
tendência a transformar-se em mania”.
Freud atribuiu as neuroses dos adultos a traumas infantis, sendo que os danos
decorrentes do trauma variavam de acordo com a vulnerabilidade de cada
indivíduo. A depressão ou melancolia é um dos fatores concorrentes à perda de
um ente querido ou representante do mesmo (Eizirik et al., 2002). Inicialmente,
ele entendia a melancolia não como um distúrbio ou transtorno de humor, mas
sim como um luto pela perda da libido. Posteriormente, abandonou esta
explicação puramente mecanicista. A melancolia seria então decorrente de uma
situação de luto em que parte da perda é inconsciente, ou seja, o sujeito sabe
quem perdeu, mas não o que se perdeu com ele. (Mauer, 1997; Rodrigues,
2000; Ferrari, 2005).
Freud define o luto como uma reação normal, até mesmo esperada, que se
produz pela perda de um ser amado ou de um valor equivalente: a pátria, o
285
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
ideal, a liberdade, etc. O rompimento de uma relação significativa, como por
exemplo, o divórcio, mudanças forçadas, a morte, a aposentadoria, produzem
impacto sobre a família e o indivíduo, sendo algumas vezes a longo prazo. O luto
pode ser desencadeado por uma perda objetiva ou por uma decepção. As causas
desencadeantes do luto podem ser variadas e múltiplas, mas todas elas terão
como base comum a valorização que o sujeito, consciente ou inconscientemente,
atribui à perda (Mauer, 1997; Parkes, 1998).
O luto pode ser normal ou patológico. No luto normal ocorre a aceitação da perda
do objeto (Mauer, 1997). Isto se dá pelo desligamento das pulsões libidinais
investidas no objeto perdido. Esta elaboração se faz paulatinamente e ao final
deste processo, há a possibilidade de deslocamento da libido para um novo
objeto. Tanto no luto patológico como na melancolia, não se aceita a perda do
objeto, ou seja, a libido não se desloca a um novo objeto, mas se retrai
narcisicamente sobre o eu, que passa a se identificar com o objeto perdido.
Como parte da perda é inconsciente, o melancólico não consegue entender de
todo o que é que o absorve tanto (Mauer, 1997; Rodrigues, 2000).
Freud afirma que o luto e a melancolia se caracterizam por um “estado de ânimo
profundamente doloroso, uma cessação de interesse pelo mundo externo, a
perda da capacidade de amar e a inibição de todas as funções”. A isto se
acrescenta, na melancolia, uma diminuição do amor próprio, que se traduz em
reprovações e acusações que o paciente faz a si próprio, e que pode incluir uma
espera delirante de castigo. Assim, as mesmas circunstâncias que desencadeiam
o luto, podem fazer surgir em pessoas com predisposição a isso, uma melancolia
(Mauer, 1997).
O ego do melancólico é empobrecido e sua auto-estima é baixa. O indivíduo se
descreve como indigno, incapaz e moralmente condenável. Ele se reprova, se
insulta, se humilha e comunica a todo mundo seus defeitos. A identificação do
ego com o objeto perdido é a causa destes comportamentos. O melancólico
maltrata seu ego como se estivesse maltratando o objeto. A sombra do objeto
(como disse Freud) caiu sobre o ego (ibid).
Ao emergir de uma crise depressiva o paciente sente-se alegre, reconciliado com
a vida, capaz de estabelecer novas relações com objetos (internos e externos) e
ao vencer a crise, o ego aparece como renascido, como tendo recusado seguir o
destino do objeto perdido. Isto ocorre em situação de luto normal, no luto
patológico e na depressão franca em que o ego sai da crise e recupera suas
funções de síntese e de adaptação ao real (Uchôa, 1979).
Se após a depressão há um quadro de mania, todos os aspectos
fenomenológicos dinâmicos são intensificados: alegria, excitação psicomotora,
aceleração do curso do pensamento, sentimento de onipotência, etc., passam a
dominar a área consciente. Ocorre uma instabilidade na relação com objetos e
ela torna-se dispersiva, instável e superficial e o maníaco passa a viver num
mundo narcísico, ilusório e que nega as experiências de sofrimento, opressão,
tristeza, culpa e remorso.
286
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Os estudos psicanalíticos de Freud e Abraham revelam semelhanças nas
constelações conflituosas na melancolia e na mania, variando os mecanismos de
defesa que o ego utiliza no curso de um ou outro. Na mania ocorre uma abolição
do super-ego ou sua fusão com o ego, desaparecendo as diferenciações no
aparelho psíquico. É possível que essa perda de diferenciação represente um
mecanismo geral dos organismos vivos que não suportariam o esforço constante
de adaptação ativa às condições do meio. E a nivelação maníaca traduziria a
necessidade de fuga das restrições e coerções impostas pela cultura (ibid).
Recapitulando, de acordo com a Psicanálise Freudiana, o Transtorno Bipolar (tal
como é entendido hoje) se origina a partir de uma situação de perda. Disto
ocorre um processo de luto patológico (o não desligamento das pulsões libidinais
investidas no objeto perdido). Por vezes, o luto patológico acaba por levar o
indivíduo a um estado de melancolia (depresão). Surge então a mania como uma
tentativa de o ego dominar os sentimentos ocasionados pela perda do objeto,
como se tivesse se emancipado do objeto que o faz sofrer. A mania se origina
como uma resposta equívoca do ego de melhora. O ego de um maníaco se
orgulha por ter encontrado uma maneira de acabar com o estado melancólico.
Esta melhora é ilusória (a libido continua ligada ao objeto perdido) e disto
decorre a volta ao estado melancólico. Eis então as oscilações de humor que
caracterizam a bipolaridade.
Em nossa experiência prática, tivemos contato com vários pacientes. Uma delas
nos chamou mais atenção. Ela foi internada no dia de nossa segunda visita. É
através desta paciente que visamos compreender a experiência de perda como
um dos fatores desencadeantes do Transtorno Bipolar. Usaremos o nome fictício
Rosa com o intuito de preservar a sua identidade. Rosa tem outros quatro
registros de internações no ambulatório visitado, sendo este último a quinta
entrada.
Rosa tem quarenta anos, reside no município de Campinas-SP, é dona de casa, é
proveniente de um nível sócio-econômico baixo, não chegou a completar a
primeira série do ensino fundamental e sua primeira entrada no hospital foi em
junho de 1998. A família conta que cerca de dois anos após rompimento de
noivado, Rosa começou a apresentar diversos sintomas e mudanças de
comportamento que culminaram na primeira internação.
O término do noivado de Rosa foi um assunto recorrente nas entrevistas com os
familiares. Eles revelam que após o ocorrido, ela passou a isolar-se mais que o
de costume, culpabilizando-se pelo insucesso da relação. Sua irmã diz que Rosa
é ainda virgem e que na época do fim da relação expressava culpa e
arrependimento por não conseguir manter relações sexuais com o noivo.
Não existem antecedentes psiquiátricos na família, e segundo a irmã, o quadro
de Rosa se iniciou após separação do noivo. Antes disso, não havia históricos de
doença mental. Os familiares apontam que antes do ocorrido, Rosa era uma
pessoa normal, trabalhava como faxineira e era inteligente.
287
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Além das cinco hospitalizações no ambulatório em questão, Rosa foi internada
em um serviço de saúde mental municipal onde foram levantadas as hipóteses
diagnósticas de retardo mental leve e de transtorno delirante orgânico (tipo
esquizofrênico). Já no ambulatório visitado, além destes possíveis diagnósticos,
as hipóteses levantadas ao longo de nove anos foram: esquizofrenia (aguda e
paranóide), transtorno depressivo grave com sintomas psicóticos e transtorno
dissociativo. Apenas na última entrada (outubro de 2007) foi levantada a
hipótese de Transtorno Bipolar.
Consideramos o Transtorno Bipolar como sendo o diagnóstico mais adequado
para Rosa levando em conta que a paciente apresenta claramente episódios de
humor ora maníacos e ora depressivos. Como já visto, os transtornos de humor
podem apresentar diversas causas, sendo reação à perda uma das mais
freqüentes. Este fato é outro preponderante para confirmação da bipolaridade
em Rosa, já que a paciente sofreu uma perda significativa em sua vida. A perda
pode ser real (objetiva) ou por uma decepção. Esta última seria o caso de uma
noiva abandonada: aqui o objeto não morreu, mas perdeu-se como objeto
erótico (Mauer, 1997). Desta forma, justifica-se o estudo desta paciente para
cumprir com o objetivo deste artigo.
Nas internações, de acordo com os dados do prontuário, Rosa mostrou
inquietude, ansiedade, desorientação do tempo e do espaço, agressividade,
irritabilidade, agitação psicomotora, hipervigilância, baixo nível de atenção, alta
atividade verbal (com discurso muitas vezes desconexo), aceleração do
pensamento e pensamento confuso. A paciente apresenta grande prejuízo
cognitivo, com empobrecimento intelectual e perda das capacidades laborativa e
de abstração.
Ao longo de todas as internações, os familiares de Rosa relataram grande grau
de agressividade e vários comportamentos inadequados. Segundo eles, Rosa
passou a trocar o dia pela noite, perambulando pelas ruas sem horário para
voltar, deixou de se alimentar, falava sozinha (solilóquios) e blasfemava (xingava
as demais pessoas na rua).
Os sintomas e comportamentos acima apresentados são tipicamente de um
estado de humor maníaco. A confusão no pensamento, desorientação do tempo
e do espaço e todo o prejuízo cognitivo, com empobrecimento intelectual e perda
das capacidades laborativa e de abstração podem ser decorrentes da aceleração
dos processos cognitivos, uma das características do humor eufórico. A agitação
da paciente é bastante significativa, o que poderia levar aos comportamentos
inadequados. Segundo Mauer (1997), o maníaco empreende uma série de
atividades geralmente autodestrutivas.
Vimos nos arquivos também que por vezes, os familiares contaram que Rosa
evitava contato social, manifestava comprometimento de sua higiene (em sua
segunda entrada no ambulatório, chegou inclusive com roupas sujas), dizia
conversar com a mãe falecida, freqüentemente tendia ao choro e apresentou
perda de peso. Estes aspectos são característicos e freqüentemente vistos em
288
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
pacientes depressivos. Desta forma, infere-se a alternância de estados de humor
em Rosa.
Nestes nove anos de histórico psiquiátrico a paciente apresentou por várias vezes
piora do quadro clínico, com reagudização dos sintomas e má administração da
medicação. O quadro de Rosa se agravou após o falecimento da mãe em 2000
(os familiares afirmam que ela era muito ligada à mãe). O agravamento do
quadro de Rosa após a morte da mãe indica uma dificuldade da paciente em lidar
com situações de perda e luto.
A experiência com Rosa foi extremamente rica para todos os autores deste
ensaio. Ela ficou internada por 28 dias, período este compreendido entre nossa
segunda e quarta visitas. Assim, todo o desenrolar de sua última internação foi
de certa forma acompanhado por nós. Percebemos a manifestação de diversos
sintomas.
O contato direto com a paciente nos fez concluir que esta estivesse no presente
momento em um estado eufórico de humor. Por outro lado, no primeiro dia que a
vimos, Rosa estava medicada e pouco responsiva. Apenas nas posteriores visitas
que pudemos conversar mais com ela. Rosa se encontrava bastante agitada
(andando de um lado para outro, gesticulando bastante); quando
conversávamos, era difícil a compreensão devido à velocidade de sua fala e ao
seu discurso por vezes incoerente. Ela se mostrava extremamente alegre, com
risos sem causas aparentes que os justificassem.
Rosa apresentou também sintomas psicóticos como alucinações e delírios. As
alucinações eram em sua maioria auditivas. A paciente dizia que ouvia vozes que
prenunciavam eventos ruins (relatou ouvir os vizinhos dizendo que matariam a
sua família, ou seja, situações que de certa forma se referem a uma
circunstância de perda). Rosa também ouvia vozes de seu ex-namorado e de um
suposto esposo. Ela também tinha alucinações visuais, pois enxergava vultos.
Os delírios presentes se referiam muitas vezes à existência de um namorado. Em
casa, Rosa não deixava a família dormir gritando e chamando por este parceiro.
Certa ocasião, quando internada, disse que seu nome era Gina, que nascera em
Portugal e que entrara no corpo de Rosa (para Gina, Rosa era uma cigana).
Outro exemplo de delírio ocorreu na última internação: a paciente dizia estar
grávida e sentia até tontura pelo seu estado, bem como movimentos no abdome.
Delírios persecutórios também foram presentes.
Muitas vezes a paciente demonstrava estar alucinando, na medida em que
durante as conversas, Rosa parecia dirigir a fala a uma pessoa ao seu lado, a
quem agredia através de xingamentos. Todos estes comportamentos eram
emitidos de forma rápida e repentina. Além desta possível alucinação, podemos
elucidar a agressividade e irritabilidade de Rosa, características bastante comuns
em pacientes bipolares, já que cerca de 75% dos maníacos são agressivos e ou
ameaçadores (Kaplan et al., 1997).
289
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Em uma das conversas que tivemos com a paciente, Rosa relatou que era noiva
de “Zé do Caixão”. Perguntamos se ela se referia ao ator e cineasta brasileiro de
filmes de terror caracterizado por possuir unhas grandes. Rosa respondeu
positivamente. Contudo, disse que ele havia cortado as unhas e que agora se
apresentava mais bonito e melhor arrumado por causa da relação que mantinha
com ela.
Como já dito, a presença de aspectos psicóticos é encontrada em bipolares. O
conteúdo dos delírios e alucinações são congruentes com o estado de humor
(deprimidos apresentam delírios que envolvem culpa e inutilidade, por exemplo).
Rosa delirou ser Gina (mulher portuguesa que entrara no corpo da paciente).
Esta alteração do pensamento mostra-se um tanto quanto peculiar (sinalizando
um alto grau delirante). Todavia, delírios e alucinações bizarras não congruentes
com o humor também são vistos na mania (Kaplan, et al., 1997).
A partir dos dados até aqui expostos concluímos que bipolares cuja etiologia da
doença é decorrente de uma reação à perda, os sintomas psicóticos por eles
apresentados tendem a ser relacionados com esta situação. Os delírios e
alucinações propendem a negar a perda (criando circunstâncias em que o objeto
perdido é de alguma forma recuperado) ou a colocar o medo de perder como
aspecto central do conteúdo psicótico. Podemos ilustrar isto a partir do momento
em que Rosa diz ouvir vozes de seu ex-noivo e quando pensa estar se
relacionando com outras pessoas (seja seu antigo parceiro ou ainda outrem, o
que denota a necessidade de esta paciente ser um objeto amado e assim, anular
a perda).
Rosa se culpabiliza pelo fim de seu relacionamento. Ela acredita que o fato de
não manter relações sexuais com seu parceiro foi a causa da separação. Isto
explica o delírio de Rosa quando pensa estar grávida. A gravidez simboliza a
concretude do ato sexual, o que evitaria a perda.
Dentre as alucinações auditivas, Rosa afirmou que ouvia seus vizinhos dizerem
que matariam sua família. Ela também manifestou medo por pensar na
possibilidade de matar a própria família. Ela nos relatou isso no dia que obteve
alta. Estas situações se referem a uma circunstância de perda. Aqui o conteúdo
psicótico gira em torno do medo de perder. Seu ego, uma vez fragilizado, amplia
a experiência de perda para várias esferas, e desta forma, cria a ansiedade de
perder outros objetos importantes.
O medo que Rosa expressa de matar a família também pode ser interpretado
como decorrente do estado melancólico, que segundo Freud (apud Mauer, 1997),
cria no paciente uma diminuição do amor próprio que implica em reprovações e
acusações que o indivíduo faz a si mesmo, e que pode incluir uma espera
delirante de castigo, ou seja, Rosa estaria colocando-a como agente causador de
outras perdas significativas em uma tentativa do ego de se acusar e de se
condenar (já que o objeto perdido está identificado com o ego, agredir o ego é
uma forma de agredir o objeto e negar assim, a importância dada a ele). O fato
de Rosa sentir-se acusada e culpada pelo desejo de matar os familiares funciona
como uma forma eficaz de agressão ao seu ego.
290
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Para Freud, a relação inicial do bebê com sua mãe é o protótipo de todas as
relações posteriores, formando o ego, o qual é construído ao longo do
desenvolvimento (Eizirik et al., 2002). Como vimos anteriormente, as mesmas
circunstâncias que desencadeiam o luto, podem fazer surgir em pessoas com
predisposição a isso, uma melancolia (Mauer, 1997). Desta forma, a
predisposição à melancolia pode ter sido originada na relação inicial entre mãe e
bebê. Sendo assim, é questionado o porquê algumas pessoas reagem de forma
tão intensa a uma situação de perda e outras não. Podemos inferir que Rosa
desenvolveu um quadro de Transtorno Bipolar por conta do seu protótipo de
relação, que não contribui para a elaboração de perdas.
Enfim, o caso de Rosa serviu para ilustrar a reação à perda como um dos fatores
desencadeantes do Transtorno Bipolar. O rompimento do noivado foi a perda
mais significativa na vida da paciente que competiu para o surgimento desta
psicopatologia. A separação levou a um estado de luto, que por sua vez, gerou a
melancolia (depressão). A mania é vista como uma resposta a este estado que
promove uma falsa sensação de melhora para o ego. Como a melhora é ilusória,
a volta ao estado depressivo é esperada. Assim, inicia-se um quadro de
bipolaridade. A incapacidade de lidar com perdas fez com que o transtorno de
Rosa se agravasse com a morte de sua mãe. E através do contato com ela,
percebemos o quanto é importante ter um olhar psicológico para compreender a
etiologia dos transtornos mentais.
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292
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O sintoma psicossomático:
uma proposta traumática para sua etiologia
Sebastião Abrão Salim
Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro
Núcleo Psicanalítico de Belo Horizonte
Associação Brasileira de Psiquiatira
O sintoma psicossomático (SP) permanece sem explicação etiológica, embora
haja incontável número de pesquisas procedentes das diversas áreas do
conhecimento biológico e psicológico.
Há apenas uma convergência: ele é mediado pelo Sistema Nervoso Autônomo
com seus ramos Simpático e Parassimpático. Devido a este fato, os órgãos alvos
são aqueles de musculatura lisa.
Sobre a etiologia existem inúmeras divergências e radicalismos, havendo teorias
puramente biológicas e outras psicogênicas, sem diálogos de seus defensores. A
Psicanálise arvorou-se em explicá-lo, considerando-o resultado de conflitos
inconscientes que se expressam pelo corpo na impossibilidade de uma expressão
verbal. No início havia o absurdo de explicar um estado febril como resultado de
um desejo sexual reprimido. Na esteira da correção deste extremismo, Ferenczi
(1926) cunhou a expressão “organo-neurose” para diferenciar as entidades
psicossomáticas da neurose histérica.
A partir de Franz Alexander (1962) e da escola americana de Medicina
Psicossomática esse referencial foi modificando. Para ele o SP “seria uma
resposta fisiológica ao estado de tensão emocional crônica, mantida por
processos inconscientes presididos pelo sistema nervoso autônomo; não eram
representantes simbólicos de conteúdo inconsciente sexual reprimido”.
Como ilustração: a úlcera duodenal era resultante da antítese entre as
tendências para a regressão e a necessidade de superá-la. As vias
parassimpáticas eram relacionadas com a dependência e as vias simpáticas com
as tendências de luta e competição. Seus estudos levaram-no a concluir que os
transtornos psicofisiológicos constituíam respostas-padrão a determinadas
situações de conflito dentro do sujeito. Daí desenvolveu a “teoria da
especificidade dos conflitos”.
Nessa mesma linha, Dunbar (1947) sustentou antes a hipótese de que “cada
doença teria um perfil psicológico próprio determinado por experiências infantis
traumáticas”. Descreveu a “personalidade traumatofílica, isto é, seu portador
repete em suas vidas situações traumáticas acontecidas sem consciência desse
fato”. Como será salientada adiante, essa relação com o trauma tem a ver com
minha proposta teórica apresentada neste trabalho.
Infelizmente os analistas a partir da metade do século XX, foram desvinculando a
Psicanálise da Biologia, segundo Kandel (2003) em troca da valorização das
293
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
teorias das relações objetais e da intersubjetividade. O próprio Freud fez o
mesmo, quando no início de seus estudos, abandonou seu Projeto para uma
Psicologia Cientifica (1895), e depois seu trabalho Além do principio do prazer
(1920), ambos tentativas de encontrar as bases biológicas para os processos
mentais. Abandonou-os, mas não deixou de vaticinar até o fim de sua obra que
no futuro estas bases haveriam de ser encontradas.
Com exceção de Winnicott (1978), talvez pela sua proximidade com a Pediatria,
e de Tustin (1990) com seus estudos sobre a experiência física sensória, os
psicanalistas têm recaído no entendimento do SP como ‘uma linguagem corporal’
para expressar conflitos reprimidos, isto é, um auxiliar para a expressão verbal
limitada nesses pacientes. Desconhecem, assim, que o universo psicossomático é
um universo sem palavras e sem símbolos.
Entre os psicanalistas atuais, McDougall (1989), embora de acordo com essa
conceituação biológica, se mostra indefinida, por vezes interpretando o SP como
“regressão a um erotismo infantil inicial”. Citam-se, ainda, Pierre Marty e M de
M’Uzan (1994) com o conceito de “pensamento operatório”.
O autor concorda com McDougall que o paciente psicossomático padece de uma
angústia de morte ou de loucura. Assim se expressa a autora: “Os fenômenos
psicossomáticos escondem, paradoxalmente, uma luta pela vida, e especialmente
pela sobrevivência psíquica do ser”.
É fato corrente de fácil constatação que mesmo os citados psicanalistas
reincidem na interpretação do sintoma psicossomático conforme a teoria inicial
de Freud sobre o inconsciente e considero esse fato do conhecimento incompleto
dos elementos que interferem na etiologia do SP. Continuamos com referências
questionadas pela neurociência cognitiva. A teoria freudiana ainda continua
sendo o porto mais firme.
Na outra ponta estão os especialistas da área biológica que insistem em teorias
genéticas, hormonais e enzimáticas para explicar o SP. O autor deste trabalho
declara que não possui o conhecimento dessas áreas para afirmar ou refutar
essas teorias, mas entende que seus adeptos se mostram parciais na medida em
que excluem a relação do paciente com sua doença e com seu meio ambiente,
por vezes tão importante quanto o próprio sintoma em si, como acontece na
Enurese Noturna ou na Anorexia Nervosa. Desse modo, ainda que sua etiologia
fosse genética, seu portador requer cuidados que só a Psicanálise por meio da
Psicoterapia Psicanalítica pode oferecer. O autor contesta os recentes métodos de
Psicoterapia como a Psicoterapia Cognitiva galgada na Neurociência porque não
consideram a insuficiência do paciente e nem tratam as questões da relação dele
com a doença e com seu meio ambiente.
O autor tem como objetivo neste trabalho advogar a hipótese segundo a qual a
etiologia do SP tem relação com a angústia de morte que se segue a um trauma
físico ou psíquico e as defesas intuitivas do organismo para fazer frente às
mesmas.
Utiliza para comprovar essa formulação seus conhecimentos de
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Psicanálise e estudos sobre o trauma de acordo com o DSM-IV (1994), o
retraimento autista, a percepção sensória, a memória implícita e o estresse.
A teoria do trauma segundo o DSM-IV
Freud (1920) conceituou o trauma como um evento que incide sobre um ego
psíquico com capacidade cognitiva, portanto neurologicamente desenvolvido,
com tal intensidade que o impede de elaborar a situação, invocando o
mecanismo da repressão. A partir daí propôs suas teorias sobre a psicopatologia,
diferenciando as neuroses de transferência (histeria, fobia e obsessão) das
neuroses atuais resultantes de traumas físicos, como as neuroses de guerra.
Diante dessas confessou sua insuficiência teórica para entendê-las e resolveu
não prosseguir nesse estudo devido à enorme tarefa que tinha pela frente para
cientificar suas descobertas e ampliá-las e à falta de pesquisas biológicas sobre
as mesmas na época.
Os psicanalistas que o seguiram também não o fizeram e com poucas exceções
se voltaram para o estudo das relações objetais. A psicopatologia psicanalítica
continuou sendo entendida como resultante da repressão de um conflito psíquico
que se expressa pelos sonhos, atos falhos, sintomas neuróticos e sintomas
psicossomáticos.
Aproximadamente há dez anos, o autor desse trabalho vem modificando seu
referencial teórico e clínico, utilizando a contribuição da Psiquiatria sobre o
trauma que considera de fundamental importância para a Psicanálise. Trata-se do
enfoque biológico do trauma definido pelo DSM-IV (1994) “como um
acontecimento que determina em sua vítima ou testemunha uma noção concreta
de morte”. Dessa forma o autor passou a entender a psicopatologia das neuroses
atuais conseqüentes à angústia de morte física e psíquica (loucura) e reservou
para ansiedade de castração, relacionada à sexualidade e ao Complexo de Édipo,
o elemento central na etiologia das neuroses de transferência. As neuroses atuais
recebem na Psiquiatria atual o nome de Transtorno de Estresse Pós-traumático.
Essa angústia de morte, a exemplo da angústia de castração, tem
desdobramentos orgânicos e psíquicos importantes, que vão desde a imobilidade
até a hiperatividade física e psíquica, que o autor já descreveu em outro trabalho
(Salim, 2002).
Prosseguindo nesses estudos, o autor encontrou em outros dois autores, Levine
(1962) e Harlow (1958), ambos psicólogos experimentais, os elementos
biológicos importantes que fundamentam as intuições de Tustin (1990),
Winnicott (1978) e Ogden (1996) sobre a existência de uma matriz psíquica
primária, que data da fecundação até dez dias após o nascimento. As
experiências de Harlow e Levine com macacos e ratos recém-nascidos
demonstram que há diferença de comportamento desses animais quando
separados das matrizes logo após o nascimento, ou se separados depois de dez
dias do nascimento.
295
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
No primeiro caso, quando ambos são colocados em contato com as matrizes após
seis meses de separação, mostram-se estranhos, procuram o isolamento e estão
desvitalizados. Esse estado é irreversível e pode ser observado, tempos depois,
com os dois tipos de animais. O mesmo não ocorre com o segundo grupo. Logo
se socializam e recuperam sua vitalidade. Essas experiências mostram os
resultados do trauma precoce e a existência de duas matrizes psíquicas,
diferenciação importante para a psicopatologia.
Pode-se afirmar que há uma matriz autista presidida pelo ego biológico, e outra
quando o recém nascido adquire um ego psíquico com capacidade para distinguir
o eu e o não eu, o sujeito e o objeto, devido à maturação do Sistema Nervoso
Central. Cada matriz origina um tipo de sintomatologia diferente depois de um
trauma que afeta o sentimento de “continuar sendo” do feto. A recomposição
desse sentimento seria dada pela percepção de uma sensação sensória, fato que
acontece de modo marcante desde a vida fetal, como comprova a ultrasonografia fetal quando demonstra o feto coçando as orelhas ou os órgãos
genitais.
Embora Winnicott (1988) não estendesse seus estudos ao período fetal do
desenvolvimento psíquico, deixou claro sua importância nos seus trabalhos.
Afirmou que “A base da psique é o soma, e, em termos de evolução, o soma foi o
primeiro a chegar. A psique começa como uma elaboração imaginativa das
funções somáticas... A elaboração imaginativa da função deve ser considerada
existente em todos os níveis de proximidade do funcionamento físico
propriamente dito... refere-se à fantasia quase-física, àquela que está menos ao
alcance da consciência”.
Tustin (1990) com seus estudos sobre o autismo psicogênico e o que chamou de
“barreiras autistas em pacientes psiconeuróticos” aproximou-se desta abordagem
do psiquismo fetal. Embora não a explicitasse ou a sistematizasse, explicitou a
importância da geração auto-sensória pelo feto, como discriminei em outro artigo
(Salim, 2006).
Posteriormente Ogden (1989b) desenvolveu o conceito de uma posição autistacontígua, anterior à posição esquizoparanóide, deixando implícita sua
continuidade desde a vida fetal. Segundo ele, a matriz psíquica desta posição
gera a psicopatologia psicótica, como ilustrou com casos clínicos.
Para o autor estas contribuições e outras da Neurobiologia validam a
possibilidade da percepção sensória constituir nossa primeira representação
psíquica com registro pela incipiente memória implícita fetal. A percepção
sensória não é uma presença inerte e responde pela noção subjetiva do existir do
feto e do recém-nascido, de “quem sou” e “onde estou”.
Aqui é importante introduzir outro desenvolvimento importante no referencial
teórico do autor. Trata-se dos seus estudos sobre a memória implícita com sede
na amídala cerebral. Sua função básica é a regulamentação dos elementos e dos
procedimentos responsáveis pela preservação da sobrevivência. Daí ser
designada também como memória de procedimento ou de longo prazo. Ela
296
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
funciona independentemente
freudiano.
da
consciência,
a
exemplo
do
inconsciente
Talvez essa memória tenha relação com o conceito de Freud (1926) de “ego
corporal”, conceito que ele não desenvolveu e apenas mencionou que: “O ego é
antes de tudo corporal”. Em nota de roda pé, acrescentada em 1927, continua
ele: “Isto é, o ego em última análise deriva das sensações corporais,
principalmente das que se originam da superfície do corpo (a pele - meu)”.
Poder-se-ia dizer que o ego neste período inicial é um ego biológico formado pelo
registro contínuo das percepções sensórias pela memória implícita, cujo
rudimento existe desde a fecundação.
Para detalhar e ilustrar clinicamente a importância da percepção sensória e da
memória implícita na etiologia do SP, o autor vale-se do sintoma da enurese, da
sudorese e da salivação intensa.
A enurese noturna é freqüente na clínica e objeto de extensa pesquisa na
pediatria, na psiquiatria e na psicanálise. É uma manifestação psicossomática de
etiologia desconhecida e de tratamento não específico. Traz para a criança e para
aqueles que a cuidam incômodos e embaraços que, invariavelmente, conduzem a
dificuldades no relacionamento familiar e social, muitas vezes, sob forma de
traumas físicos e psíquicos, com seqüelas irreversíveis na vida adulta. Seu
portador fica indelevelmente marcado por traumas. Costuma ser interpretado
psicanaliticamente, como representante simbólico de uma excitação erótica
reprimida ou de ódio reprimido voltado para a mãe ou substituto, impedido de
ser verbalizado.
A sudorese intensa também é ligada a um elemento líquido, no caso, o suor.
Normalmente é atribuída à ansiedade edípica (ansiedade de castração). Acontece
em situações diversas como viagens de avião, entrevista para admissão em
emprego, ou a exposição em público.
A salivação, embora menos freqüente, costuma passar despercebida, embora
muito incômoda para seu portador, podendo produzir alterações na dentição e na
mucosa bucal.
O autor propõe a hipótese de que esses sintomas são organizações do ego
corporal, portanto de natureza biológica intuitiva e reflexa, tendo como centro a
auto-geração de percepções sensórias, utilizando para tanto a urina e o suor
sobre a pele e a salivação sobre a mucosa bucal.
Esses sintomas assemelham-se aos eczemas que obrigam seus portadores a se
coçarem continuamente. São percepções que conferem ao agente a noção de
estar existindo, de coesão física e psíquica, que pode ser testada por todos nós,
quando prensamos uma caneta nas mãos ou nos dentes.
O autor intui que no início, logo após a fecundação, as percepções sensórias do
feto são aquelas ligadas aos processos vitais de anabolismo e catabolismo
celular, assim como aos batimentos cardíacos, os movimentos intestinais e as
297
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
funções respiratórias da mãe, que têm o mesmo ritmo e intensidade. Mais tarde,
com a maturação biológica do feto, este se torna capaz de auto-gerar percepções
sensórias com o auxílio de elementos corporais seus com as superfícies sensórias
do próprio corpo.
Tustin (1990) descreveu a importância dessas percepções produzidas pelo bebê
ou pelo recém-nascido, utilizando-se de elementos macios e duros do seu próprio
corpo sobre suas superfícies sensórias, principalmente a pele. Entre os primeiros
estão a saliva, a urina, os vômitos, as fezes liquefeitas, o muco das vias aéreas e
depois o suor e a lágrima, que denominou de “formas autistas”. Entre os
segundos estão as fezes, a língua, os dedos, as mãos, os pés e os punhos, que
denominou de “objetos autistas”.
A ultra-sonografia fetal mostra de forma bastante evidente o feto com as mãos,
os dedos, e a língua na boca, assim como movimentos de tocar com as mãos e
os dedos seu órgão genital, os lóbulos das orelhas e outras partes do corpo. Se
estivermos atentos, podemos observar que são movimentos executados com o
mesmo ritmo e intensidade. Têm a mesma regularidade dos movimentos
autonômicos vitais do feto e da mãe. Essas ações reflexas de auto-geração de
percepções sensórias persistem na vida pós-natal até a senilidade. Aparecem sob
a forma de morder ou tocar os lábios e a boca com a língua, dedos, e outros
objetos duros ou macios.
Também o salivar, o roer as unhas, o apertar objetos duros com a mão, o
balanceio cadenciado do corpo e das pernas. Na vida adulta, os representantes
são os toques repetidos das contas de um terço com os dedos, os banhos
demorados, o enrolar os cabelos da cabeça com os dedos, e outros tantos. É
costume universal do povo islâmico o uso do masbarah, um cordão de contas de
material duro, ajeitadas de forma semelhante às contas de um terço dos
católicos. Seus usuários ficam tocando as contas com as pontas dos dedos da
mão para se serenarem por longo tempo no dia. Esses arranjos acompanham o
indivíduo pela vida toda e foram denominados de “barreiras autistas” por Tustin.
Irão constituir a personalidade autista, se sua presença é muito evidente.
Esses objetos e formas autistas são anteriores aos “objetos transicionais” de
Winnicott (1975). Segundo ele: “É sabido que os bebês, assim que nascem,
tendem a usar o punho, os dedos, e os polegares em estimulação da zona
erógena oral, para satisfação dessa zona, e em tranqüila união. É igualmente
sabido que, após alguns meses, bebês de ambos os sexos passam a gostar de
brincar com bonecas e que a maioria das mães permite aos seus bebês algum
objeto especial, esperando que eles se tornem, por assim dizer, apegados a tais
objetos”. Embora possa existir esse componente sexual, Winnicott não relacionou
estas experiências com a percepção sensória em busca de apaziguamento para
uma angústia de morte. Manteve-se preso a teoria freudiana da pulsão libidinosa.
Tustin também não se desvencilhou por completo dessa teoria clássica da
satisfação das zonas eróticas, mas considerou essas ações como movimentos em
busca de coesão e tranqüilidade ao seu portador.
298
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Freud (1920) relacionou esse estado ao “principio de constância” e apontou para
uma psicopatologia anterior à da repressão sexual, ligada à morte, mas não deu
prosseguimento ao estudo.
A retirada autista
O termo autista tem a ver com o primeiro estado biológico do ser emergente.
Este é organizado sob a égide da homeostase com todas as condições ótimas
para a continuidade dos processos de maturação biológica e sua manutenção.
Nesse estado, há uma absorção e consumo de oxigênio pela célula em
quantidade mínima, suficiente para fornecer a energia necessária aos processos
vitais, como mostram experiências recentes de Eric et all (2005). Denominaramnas de “suspensão animada” devido ao estado próximo da inércia vegetativa.
Essas experiências têm demonstrado que, através de isquemia produzida, podese prolongar a vida de órgãos para transplante por técnicas que reduzem o
consumo de oxigênio pelo órgão a ser transplantado.
É proposto neste trabalho que qualquer trauma com noção da descontinuidade
do existir promove, mesmo no período fetal, de forma instintiva, um retorno do
seu portador ao estado homeostático anterior para prolongar a vida. O autor
denomina esse retorno de “retirada autista” e o considera elemento importante
na etiologia do SP. Assemelha-se ao que Freud descreveu como regressão,
usando a metáfora do exército que deixava para trás pontos de apoio aos quais
poderia recorrer em caso de necessidade: um recurso para sobreviver
retornando à lugares seguros.
O trauma fetal pode ser resultante do traumatismo de parto, de estados tóxicos
e infecciosos durante a gravidez, de malformação congênita e de qualquer fator
que coloca a sobrevivência do feto ou recém-nascido em risco.
Para proteger-se, como dito, ocorre um retraimento autista sem conseqüências
patológicas, se transitório, como acontece no trabalho de parto normal ou uma
situação existencial passageira. É regido pelo sistema nervoso parassimpático.
Além da retirada autista, que gera um estado de suspensão da vida com
sintomas de imobilismo, sonolência, perda de apetite e libido, pode ocorrer uma
outra resposta caracterizada pela hiperatividade. Nesta, as funções vitais são
ordenadas pelo sistema nervoso simpático. Se prolongada, dá início a um
processo de desgaste, que Selye (1936) denominou de estresse. Desencadeia a
denominada “Síndrome de adaptação geral”, que envolve a hipófise, o
hipotálamo, o sistema nervoso simpático e parassimpático e a as glândulas
supra-renais. Termina com uma alteração morfológica irreversível do órgão e um
estado de insuficiência orgânica e psíquica, como se observa no paciente
psicossomático. Geralmente está insuficiente para a vida familiar, social, sexual e
profissional, mas tenta continuar ativo, fato que leva ao desgaste, ao estresse.
Tanto a hipo como a hiperatividade, dependem da avaliação intuitiva do nosso
cérebro reptilíneo da gravidade, da intensidade, da iminência do perigo, e das
299
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
experiências traumáticas anteriores para optar pelos movimentos de imobilismo,
de luta, ou de fuga. O corpo chega antes da cognição.
Caso Clínico
L estava com trinta e quatro anos, quando iniciou a Psicoterapia Psicanalítica com
o autor com duas sessões semanais. Queixava-se de bruxismo acentuado,
eczema grave, constipação intestinal acentuada, incapacidade para o trabalho e
desinteresse pela vida. Desde a adolescência apresentava ocasionalmente esses
sintomas, que agravaram aos vinte e sete anos, após a morte do tio com quem
trabalhava.
Informa que o pai faleceu quando nova, e a mãe foi obrigada a trabalhar. Passou
a cuidar em casa dos irmãos menores. Na juventude, teve dificuldades escolares
de relacionamento com colegas pelo seu temperamento de pessoa isolada e
calada. Apresentou amenorréia prolongada. Aos dezoito anos, começou a
trabalhar na empresa do tio, que lhe demonstrou afeto e confiança. Dedicou-se
ao trabalho e foi assumindo sua direção. Conseguiu formar um pequeno
patrimônio.
Casou-se com vinte e dois anos, mas separou um ano depois, pela intolerância
ao modo extrovertido do marido, que colidia com alguns rituais comedidos de
alimentação e de diversão, e com seu apego à família e ao trabalho. Aos vinte e
sete anos seu tio morre e a família deste a impede de continuar na empresa. O
bruxismo surgiu assim que deixou a empresa do tio e obrigou-a a longo
tratamento odontológico para não perder os dentes. Fez ainda vários
tratamentos médicos durante os anos seguintes, sem melhoras.
Aos trinta e quatro anos foi convidada pelos familiares que a afastaram da
empresa para retomar sua direção. Sentiu-se física e psiquicamente insuficiente.
Dedicou-se a fazer trabalhos artesanais de bordado, que exercia com habilidade
e lhe rendia algum dinheiro. Nessa época procurou tratamento com o autor.
Após dois anos de tratamento apresentou melhoras apreciáveis. Entendeu a
importância da reincidência traumática das perdas do pai e do tio para o
agravamento de seus sintomas, e que os sintomas (bruxismo, eczemas,
constipação intestinal) eram resultado da sua necessidade de se produzir
percepções sensórias para se sentir com vida. Estava se refazendo com o auxílio
da manutenção regular do setting, através dos horários regulares, pelo
tratamento afetivo constante do autor por meio do olhar, da fala, e da
compreensão empática.
Também estava sendo útil o trabalho interpretativo da sua relação com a
insuficiência para o viver. Subestimava-se e era subestimada pelos outros, fato
que a mantinha em constante baixa estima. Continua em tratamento.
Conclusão
300
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Os longos anos de pesquisa do autor associados com o emprego desse
referencial na sua prática clínica levam-no a considerar pertinente continuar
esses estudos.
Pelo exposto, a etiologia do SP estaria relacionada à reincidência traumática em
paciente portador de personalidade autista. O corpo se converte pela presença
da homeostase na “mãe suficientemente boa”, com semelhança ao conceito
desenvolvido por Winnicott.
Um setting terapêutico adequado, fornecido principalmente pela constância da
confiança no psicoterapeuta, mantém semelhanças com a homeostase e o
paciente poderá retomar seus processos de maturação. O mecanismo de cura é
lento e passa pela afetividade, segundo Almeida (2005). O trabalho interpretativo
fica destinado aos elementos da transferência-contratransferência e da relação
do paciente com sua doença (elementos esses relacionados à matriz psíquica
esquizoparanóide, depressiva e edipiana.)
Pode-se fazer a conjetura de que a questão da “fragilidade dos órgãos”
remontaria ao momento do trauma com a embriogênese de determinados
aparelhos orgânicos. Esse trauma seria registrado pela memória implícita, e
evocado posteriormente diante de novo trauma, recaindo o peso biológico sobre
o órgão afetado anteriormente.
Há necessidade de mais estudos conduzidos de forma articulada entre
psicanalistas, psiquiatras e neurocientistas.
Resumo
A etiologia do sintoma psicossomático continua indefinida apesar de inúmeros
estudos das ciências afins.
O autor apresenta a hipótese de que o mesmo está relacionado a um ou mais
traumas fetais ou peri-natais associados com apego aos objetos autistas e
formas autistas descritos por Tustin para se auto-apaziguar e uma recorrência
traumática na vida posterior. Esse apego responde pela base constitucional da
predisposição autista necessária para o desenvolvimento de determinado sintoma
psicossomático.
Os traumas devem ser de intensidade tal que promovam na vítima uma sensação
intuitiva de morte. Como defesa biológica reflexa para essa angústia resultante, a
vítima faz uma retirada autista, isto é, tenta retornar aos primeiros períodos do
desenvolvimento do feto, em busca do estado de homeostase reinante, onde
pode haver possibilidade de sobrevivência pelo consumo diminuído de oxigênio
para o exercício das funções vitais. Assemelha-se ao conceito de regressão de
Freud. O corpo se tornaria "uma mãe suficientemente boa", como descrita por
Winnicott.
O sintoma psicossomático seria uma instintiva organização biológica formada por
objetos e formas autistas para atenuar a angústia de morte, sob a regência do
ego corporal e não um representante simbólico de conflitos sexuais ou
301
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
destrutivos reprimidos que não podem ser expressos verbalmente. O autor
ilustra com casos clínicos.
Essa hipótese etiológica tem por base os estudos do autor sobre a posição
autista-contígua proposta por Ogden, o conceito de trauma segundo o DSM-IV
que inclui uma noção de morte física, contribuições da Neurociência sobre a
memória implícita e contribuições da Psicologia experimental.
Conforme formulou MacDougall, o autor pensa que o fenômeno psicossomático
esconde, paradoxalmente, uma luta pela vida e especialmente pela sobrevivência
psíquica do paciente.
Descritores: Sintoma Psicossomático. Objeto Autista. Forma Autista. Trauma.
Memória Implícita. Percepção Sensória.
Abstracts
The psychosomatic symptom: a traumatic proposal to its etiology.
The etiology of the psychosomatic symptom remains indefinite in spite of many
studies by sciences concerned.
In this paper the author presents the hypothesis that it is related with one or
more fetal traumas or per-partum traumas associated with the attachment to the
Tustin's autistic objects and forms to auto-appease and a traumatic recurrence in
other age. This attachment makes the constitutional basis for the necessary
predisposition to develop the psychosomatic symptom.
The traumas must have an intensity that promotes on their victims an intuitive
feeling of physical death. As a reflex biological defense to death anguish the
victim makes an autistic withdrawal, i.e. try to return to the first fetal
development period looking for the initial homeostatic state of being, where there
is possibility to survive due to diminished oxygen waste to the exercise of the
vital functions. It has a similarity with Freud concept of regression. In this state
the body converts in "an enough good mother" similar to that conceived by
Winnicott.
The psychosomatic symptom would be an instinctive biological organization made
by the autistic objects and forms to appease the death anguish, under the control
of the corporal ego and not a symbolic representation of sexual and aggressive
repressed conflicts that could not be verbally expressed. The author illustrate
with clinical cases.
This etiologic hypothesis is based in author's studies on Ogden's autisticcontiguous position, the trauma's concept as formulated by the DSM-IV that
302
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
evolves a physical death notion, Neuroscience's contributions on implicit memory
and Experimental Psychology contributions.
As MacDougall said, the author thinks that the psychosomatic phenomenon
hides, paradoxically, a fight to live and especially to the patient psychic survival.
Keywords: Psychosomatic Symptom. Autistic Object. Autistic Forms. Trauma.
Implicit Memory. Sensorial Perception.
Resumen
El síntoma psicossomático: una proposta traumática para su etiologia
La etiología del síntoma psicosomático continúa indefinida a pesar de los
innumerables estudios de las ciencias afines.
El autor presenta como hipótesis que el mismo está relacionado a uno o más
traumas fetales o perinatales, asociados al apego a los objetos autistas y formas
autistas descriptas por Tustin para autoapaciguarse, y una recurrencia
traumática en la vida posterior. Este apego es el responsable de la base
constitucional de la predisposición autista necesaria para que se desarrolle un
determinado síntoma psicosomático.
Los traumas deben tener una intensidad tal que promuevan en la víctima una
sensación intuitiva de muerte. Como defensa biológica refleja ante esta angustia
resultante, la víctima hace una retirada autista, o sea, intenta retornar a los
primeros períodos de su desarrollo fetal, en busca del estado de homeostasis
reinante, donde puede existir la posibilidad de sobrevivencia por el menor
consumo de oxígeno para el ejercicio de las funciones vitales. Se asemeja al
concepto de regresión de Freud. El cuerpo se volvería "una madre
suficientemente buena", como la describe Winnicott.
El síntoma psicosomático sería una instintiva organización biológica formada por
objetos y formas autistas para atenuar la angustia de muerte, bajo la regencia
del ego corporal y no un representante simbólico de conflictos sexuales o
destructivos reprimidos que no pueden ser expresados verbalmente. El autor lo
ilustra con casos clínicos.
Esta hipótesis etiológica tiene como base los estudios del autor sobre la posición
autista-contigua propuesta por Ogden, el concepto de trauma según el DSM-IV
que incluye una noción de muerte física, contribuciones de la Neurociencia sobre
la memoria implícita y contribuciones de la Psicología experimental.
De acuerdo a lo dicho por MacDougall, el autor piensa que el fenómeno
psicosomático esconde, paradójicamente, una lucha por la vida y especialmente
por la sobrevivencia psíquica del paciente.
Pallabras-llave
Síntoma Psicosomático. Objeto Autista. Forma Autista.
implícita. Percepción sensorial.
Trauma. Memoria
303
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
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305
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Mudança em Coaching de Executivos
Change in Executive Coaching
Sueli Aparecida MILARÉ84
Elisa Medici Pizão YOSHIDA85
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Resumo O objetivo deste estudo foi o de avaliar a eficiência de um programa de
coaching de executivos. O coaching de executivos utiliza-se das informações
obtidas sobre o desempenho e a problemática do indivíduo para, posteriormente,
ajudá-lo no desenvolvimento de novas competências para atingir as metas
organizacionais. A amostra ficou constituída por dez executivos, de diversas
empresas da região metropolitana de Campinas, sendo que seus superiores
espontaneamente buscaram o programa desenvolvido pela primeira autora em
sua prática profissional privada. Foram realizadas avaliações, no início e ao final
dos processos, da eficácia adaptativa, do nível de prontidão para mudança, da
tendência comportamental e do esforço realizado em direção aos feedbacks
recebidos. Os resultados demonstram que o programa de coaching é eficiente,
permitindo a promoção e o desenvolvimento de novas competências pessoais
que possibilitam aos executivos atingir suas metas organizacionais. Observou-se
que certos perfis adicionados às condições de gerenciamento, poderão gerar
desempenho inadequado.
Palavras-chave: mudança comportamental em organizações; instrumentos
psicológicos; psicoterapia de executivos.
Abstract The objective of this study was to evaluate the efficiency of an
executive coaching program. The executive coaching program is based on
information about the executive performance and aims to help him or her
developing new competences to reach the organizational goals. Ten executives,
from different companies of the metropolitan area of Campinas, constituted the
sample. They were designed to the program by their companies. The executive
coaching program was developed by the first author. Assessment of the adaptive
efficacy, level of readiness for change, behavioral tendency and the effort to
accomplish the received feedbacks was carried out at the beginning and at the
end of the processes. Results suggest that the coaching program is efficient,
promoting the development of new personal competences which makes possible
to the executives reach organizational goals. It was observed that some profiles
84 Doutora em Psicologia, Programa de Pós Graduação em Psicologia, Pontifícia
Universidade Católica de Campinas. Av, John Boyd Dunlop, s/n, Jd Ipaussurama.
Campinas, SP. CEP 13060-904. E-mail [email protected]
85 Professora Doutora, Programa de Pós Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade
Católica de Campinas. Av. John Boyd Dunlop, s/n, Jd Ipaussurama. Campinas, SP. CEP
13060-904. E-mail [email protected]
306
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
when submitted to management conditions where expectation of their behavior
are not clear, can result in inappropriate performance.
Keywords: organizational
executive psychotherapy.
behavior
change;
psychological
instruments;
Introdução
As constantes demandas no mundo do trabalho exigem renovação tanto na
estrutura organizacional como nas relações entre as pessoas. Tanto as mudanças
exigidas para um processo de trabalho otimizado como a necessidade de um
perfil mais flexível do profissional, provocam a necessidade de desenvolvimento
contínuo. Outro fator novo é a crescente circulação de informação no mundo e as
relações cada vez mais globalizadas indicando a necessidade de constante
qualificação e aprendizagem. A aprendizagem passa a ser determinante para os
resultados positivos e necessariamente estimulada por uma liderança que
valorize as pessoas (Milaré & Yoshida, 2007). Para privilegiar a aprendizagem no
ambiente organizacional, o mercado de trabalho tem optado em trabalhar com a
metodologia de desenvolvimento, coaching.
O coaching oferece a oportunidade de ajudar as pessoas a enfrentarem desafios
em todos os níveis. Permite também que as pessoas aprendam enquanto estão
trabalhando. Etimologicamente, coaching vem de coach, uma palavra antiga com
origem em uma pequena vila húngara onde foi desenvolvida a carruagem
coberta, chamada koczi. Hendrickson (1987, citado por Stern, 2004) refere sua
idealização para proteger seus habitantes das intempéries regionais ao serem
transportados de um lugar para outro. Mais recentemente esta palavra tem sido
associada ao esporte, ou seja, o técnico que treina a equipe para que juntos
atinjam suas metas em diferentes competições. Conforme com estas definições,
o dicionário Oxford (2005) traz a informação de que a palavra coach é sinônima
de técnico, treinador, tutor, assim como carruagem, ônibus e viagem em carro
ou em carruagem.
Bluckert (2006) afirma que o coaching é a facilitação da aprendizagem e
desenvolvimento com a finalidade de melhorar performance e enfatizar a ação
eficaz, o atingimento de metas e a satisfação pessoal. A evolução do conceito
levou à utilização do coaching como forma de desenvolvimento dos executivos.
Em termos de definição, pode-se entender o coaching de executivos como:
O coaching de executivos é um processo individualizado de desenvolvimento de
liderança que otimiza a capacidade do líder para alcançar metas organizacionais a
curto e a longo prazo. É conduzido por interação um – a – um dirigido por
feedbacks de múltiplas fontes e baseado em confiança e respeito mútuo. O
processo pode requerer qualquer tipo de mudança: atitudes e hábitos,
habilidades em desenvolvimento, preparar-se e desenvolver-se para tarefas
futuras, definir e implementar liderança, metas de negócios e estratégias (Stern,
2004, p. 154).
307
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Muitos motivos justificam o interesse pela utilização desta metodologia, mas o
principal é que ela contribui diretamente para a aquisição e amadurecimento de
competências, adaptação aos processos de transformação organizacional com
melhoria de desempenho (Milaré, 2004).
Entre os temas emergentes sobre o assunto, encontram-se publicações sobre a
melhor abordagem para o sucesso do coaching. Os fundamentos da abordagem
cognitivo-comportamental têm se mostrado úteis na condução de processos de
coaching de executivos (Milaré, 2004. Esta abordagem permite reforçar,
periodicamente, os novos comportamentos aprendidos, podendo até pedir a
colaboração de pares ou subordinados, caso não traga prejuízos ao cliente
(Peltier, 2001).
Qualquer modelo de coaching de executivos deve levar em conta que o
participante deste processo é alguém com alto desempenho em sua organização
e a intervenção precisa levar a efeitos significativos e duradouros de
desenvolvimento. A expectativa é a de que o executivo que se submete ao
coaching estará em condições de aplicar os princípios para seus subordinados
diretos, assim possivelmente aumentando o desempenho de outros membros de
suas unidades de trabalho (Ducharme, 2004; Peltier, 2001). Ao receber este tipo
de feedback os executivos aumentam sua autoconsciência, auto-estima,
evidenciando um princípio subjacente importante ao coaching, o aumento da
consciência psicológica e social dos executivos, o que por sua vez poderá
aumentar a moral, produtividade e lucros (Kilburg 2000; O'Neill, 2001).
Também como suporte ao programa de coaching de executivos, pode-se citar a
utilidade da Teoria DISC (acrônimo de Dominância, Influência, eStabilidade e
Conformidade) e o emprego do instrumento PPA (Personal Profile Analysis).
Neste enfoque, Marston (1928) identificou dois tipos de percepção importantes
para explicar as respostas das pessoas em situações particulares: a percepção do
ambiente e a percepção de si mesma. Utilizando-se destes conceitos, o psicólogo
americano Thomas Hendrickson (1950, citado por Thomas International, 1996)
adaptou-os para o contexto do trabalho e da administração. Sistematizou essa
abordagem num procedimento intitulado, Análise do Perfil Pessoal - PPA. O estilo
comportamental de cada indivíduo é a combinação dos altos e baixos dos quatro
fatores comportamentais identificados pela teoria DISC. Considera-se relevante
ao programa de coaching de executivos a realização do PPA. Para o exercício da
atividade de liderança, o que se espera do executivo é que ele tenha bem
evidenciado em seu perfil a alta influência e a alta dominância (Duarte 2006).
Estas características estariam relacionadas à eficácia adaptativa demonstrada.
De acordo com Yoshida (1999), a avaliação da configuração adaptativa de
candidatos a psicoterapias, por meio da Escala Diagnóstica Adaptativa
Operacionalizada – EDAO-R (Simon, 1995), fornece base segura dos recursos da
pessoa em termos de capacidade de enfrentamento e de flexibilidade de
respostas frente aos seus problemas, constituindo-se em critério prognóstico da
qualidade dos resultados terapêuticos de sujeitos que concluem atendimentos.
Além da avaliação da eficácia adaptativa, Yoshida & Enéas (2004) sugerem que
se considere o reconhecimento da necessidade de mudança, manifesto pelo
308
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
paciente. A evolução do reconhecimento de que se tem um problema e da
disposição para enfrentá-lo, pode ser identificada por meio do conceito de
estágios de mudança, proposto por DiClemente e Prochaska (1982). A escala
desenvolvida para avaliação destes estágios foi proposta por McConnaughy,
Prochaska e Velicer (1983) - EEM - Escala de Estágios de Mudança. Cada estágio
reflete o nível de consciência de um problema e o grau despendido de esforço
para enfrentar este problema.
Em psicoterapia pressupõe-se que o paciente esteja no estágio de contemplação
para encontrar-se disposto a enfrentar seus conflitos e quanto melhor a
qualidade de suas respostas adaptativas maiores serão as chances do processo
psicoterápico ser bem sucedido (Yoshida & Enéas, 2004). De forma semelhante,
no coaching de executivos tem sido observado que as atitudes positivas e
abertura em relação ao desenvolvimento do programa fazem com que o processo
seja mais fluido, passando pelos módulos de forma consistente e com evolução
gradual. Da mesma forma, tem sido observado que as mudanças obtidas por
alguns não possuem a mesma rapidez e consistência observadas em outros,
principalmente aqueles com maiores dificuldades no setor afetivo-relacional
(Milaré & Yoshida, 2007).
Com base em analogias feitas entre os processos psicoterapêuticos e os de
coaching de executivos, hipotetizou-se que o estágio de mudança do início do
processo e o grau de eficácia adaptativa do executivo estariam associados à
possibilidade de mudança num programa de coaching. Para verificação destas
hipóteses, a pesquisa foi realizada através do acompanhamento de programas de
coaching de executivos realizados dentro dos procedimentos propostos pela
primeira autora, e composta de três etapas: formalização do contrato com a
empresa-cliente, formalização do contrato com o participante e avaliação dos
resultados. Sendo que a segunda etapa é subdividida em 4 módulos, que
compõem a essência do programa de coaching de executivo propriamente dito
(Milaré, 2003): auto-percepção (entrevistas, PPA e análise do auto-desempenho
– AAD); identificação das oportunidades de melhoria; elaboração e execução do
plano de ação e acompanhamento. Os formulários, instrumentos e questões são
parte integrante do Manual do Programa de Coaching (Milaré, 2003), que fica em
poder do participante do processo de coaching de executivos.
Utilizado na prática profissional da primeira autora, o programa não contava até
então com evidência científica de sua eficiência. Neste sentido, o objetivo do
estudo foi o de avaliar os resultados do programa de coaching de executivos para
profissionais em cargos de comando em organizações.
Método
Participantes / coachees
A amostra foi constituída por dez executivos, sendo 5 mulheres e 5 homens. As
idades variaram entre 36 e 52 anos, com média de 43 anos e a mediana 41
anos. Seis executivos com nível de comando em organizações multinacionais de
grande porte e privadas; dois de empresas nacionais privadas de grande porte,
309
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
dois de empresas nacionais públicas, de pequeno porte. Nove foram indicados
para programa de coaching por sua empresa e um por iniciativa própria. Seis
executivos eram pós graduados (especialistas) e os demais graduados em nível
superior.
Foram utilizados os registros dos atendimentos do programa de coaching de
executivos.
Medidas de avaliação
Escala
Diagnóstica
Adaptativa
Operacionalizada-Redefinida/
EDAO-R
desenvolvida por Ryad Symon (1989) para a avaliação da eficácia adaptativa. A
classificação da qualidade da adaptação é feita por setores da personalidade
(Afetivo- Relacional e Produtividade). Atribui-se um escore a cada setor, em
função do grau em que as respostas dadas pelo sujeito, resolvem o problema,
tragam satisfação e evitem conflito interno ou externo. Da somatória dos escores
resultam cinco grupos possíveis (Simon, 1997): Grupo I, Adaptação Eficaz;
Grupo II, Adaptação Ineficaz Leve; Grupo III, Adaptação Ineficaz Moderada;
Grupo IV, Adaptação Ineficaz Severa; Grupo V, Adaptação Ineficaz Grave.
Escala de Estágios de Mudanças/EEM, desenvolvida por McConnaughy, Prochaska
e Velicer (1983), trata-se de uma escala que tem a finalidade de avaliar os
estágios de mudança, segundo o nível de consciência manifesto pelo sujeito, em
relação ao seu problema e o grau despendido de esforço para enfrentar este
problema. Segundo a apresentação validada por Yoshida, Primi e Pace (2003) a
escala é composta por 32 itens, subdivididos em quatro grupos de oito,
destinados a avaliar cada um dos seguintes estágios de mudança: précontemplação; contemplação; ação e manutenção. As respostas são do tipo
Likert de cinco pontos, onde 1 corresponde a discordo totalmente e 5 a concordo
totalmente.
Personal Profile Analysis - PPA
Este instrumento foi desenvolvido a partir do modelo conceitual de Marston
(1928), que tinha como objetivo compreender e sistematizar modelos de
interação entre os indivíduos e seus ambientes. A partir das palavras escolhidas
(+ e -) pelo sujeito no formulário do PPA obtém-se uma descrição acurada das
características que mais se destacam em seu estilo comportamental. As quatro
características analisadas são: dominância; influência; estabilidade e
conformidade.
Auto Análise do Desempenho - AAD
Este instrumento foi desenvolvido a partir do modelo conceitual de Fournies
(1978, citado por Bárbara Darraugh, 2000), que visava a compreensão e
sistematização do que estaria influenciando a insatisfação quanto ao desempenho
do coachee. A proposta é buscar junto ao superior imediato do coachee uma
análise de seu desempenho, principalmente dos esforços realizados para atingir
suas metas organizacionais. Com base nestes conceitos, a pesquisadora
310
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
desenvolveu um instrumento self report que busca identificar através da análise
do próprio coachee como está seu desempenho e o quanto de feedback tem
recebido de seu superior. O questionário é composto por 9 perguntas com
respostas classificadas como sim ou não.
Procedimento
O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-Campinas, com
a aprovação publicada em 08 de agosto de 2006, sob o Protocolo 392/06.
Os participantes foram recrutados dentre os executivos atendidos pela primeira
autora em sua prática privada. A participação na pesquisa foi voluntária e
antecedida pela assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Avaliações por meio da EDAO-R e da EEM foram realizadas antes e depois dos
programas de coaching de executivos, realizado segundo os quatro módulos
descritos na introdução. Os processos tiveram duração máxima de 20 encontros,
a mínima de 6 encontros e a duração média de 10 encontros.
Com vistas à estimativa do grau de acordo entre avaliadores, a eficácia
adaptativa foi avaliada segundo a EDAO-R pelas duas autoras, de forma
independente. Para tanto, a segunda autora baseou-se, nas transcrições da
primeira e da última reuniões com o coachee.
Resultados
Em relação à EDAO- R, o percentual de acordo entre os avaliadores
independentes foi de 70%, considerado por Stemler (2004) como adequado para
estimativa de consensos.
Os resultados estão demonstrados na Tabela 1.
Discussão
Pode-se observar que parte das dificuldades enfrentadas pelos participantes e
que teriam dado origem à indicação de um programa de coaching de executivos
a eles, se deveu, de um lado, à falta de compreensão dos superiores quanto às
percepções e expectativas que o coachee tinha de seu ambiente (superiores e
colegas). E, por outro lado, pela falta de percepção do próprio coachee, sobre a
necessidade de ampliar ou modificar suas atitudes, de forma a adequá-las às
exigências deste ambiente. Considerou-se relevante ao programa de coaching de
executivos, a realização do PPA. Através desta ferramenta pode-se levantar o
perfil predominante do coachee e seus possíveis ajustes e desajustes à sua
função.
A informação sobre o estágio de mudança medida no início do programa através
da EEM, também contribuiu para a elaboração de estratégias no decorrer do
tempo. Percebeu-se que o estágio de mudança inicial, tem relação com a rapidez
311
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
e a eficácia com que o programa se desenvolveu. A EEM ao ser utilizada como
parte do processo de coaching de executivos apresentou-se de utilidade,
considerando que orientou a escolha mais adequada dos procedimentos
adotados, assim como a modalidade de intervenção que sensibilizou para a
mudança (Milaré & Yoshida 2007).
Todos coachees indicaram, no início do programa, sua disponibilidade para
mudar seu comportamento em sua Auto Análise de Desempenho (AAD).
Apontaram a falta de feedback e a falta de reconhecimento por parte de seus
superiores como causas dos déficits de desempenho, o que é compatível com o
ponto de vista de Kampa-Kokesch e Anderson (2001).
As estratégias cognitivas utilizadas para estes ganhos comportamentais foram
absorvidas pelos executivos que puderam rapidamente ver o foco de trabalho
através de uma diferente percepção e o benefício potencial decorrente. Para
evitar o retorno ao comportamento anterior (Peltier, 2001), cada participante foi
instado a traçar um plano de ação pós coaching, identificando todos aqueles que
consideraram como importantes para a manutenção dos comportamentos,
envolvendo as pessoas de sua relação que poderiam ajudar no estabelecimento
consolidado dos novos comportamentos.
Os resultados desta pesquisa corroboraram esta expectativa teórica, pois a
EDAO-R permitiu a identificação de qual setor da personalidade estava mais
comprometido e quais os tipos de respostas apresentam-se como mais
freqüentes em processos de coaching de executivos. Percebeu-se que quanto
maior o comprometimento da eficácia adaptativa, mais recursos precisarão ser
disponibilizados ao coachee para que ele se desenvolva. E, decorrente disto, uma
postura mais ativa por parte do coach.
Como parte do programa de coaching os executivos receberam feedback do
coach, assim como de seus superiores e como decorrência observaram aumento
de sua autoconfiança corroborando com a teoria (O'Neill, 2001; Kilburg, 2000).
Assim sendo, as respostas eficazes, relatadas tanto pelos coachees quanto por
seus superiores, são principalmente aquelas relativas ao restabelecimento de
relações interpessoais, melhor aceitação e respeito ao ritmo e forma de trabalho
de cada um dos membros da equipe , o desenvolvimento da delegação de tarefas
e conseqüente flexibilização, além da melhoria da comunicação em geral. O
autocontrole, diante de situações adversas, também foi desenvolvido.
A EDAO-R, quando incorporada ao programa, permitiu identificar quais são as
situações que estariam gerando desprazer e conflito, medindo sua evolução tanto
por meio das próprias respostas do coachee, quanto pelo depoimento das
pessoas que convivem com ele. As avaliações da EDAO-R em conjunto com o
PPA, mostraram-se úteis na escolha das estratégias e ferramentas utilizadas pelo
coach durante os módulos do programa. Por outro lado, a EEM permitiu
identificar o grau de prontidão do coachee para enfrentar novas solicitações do
ambiente. Estas informações adicionadas aos feedbacks que ele já possuía (ou
não), e que foram evidenciados pelos resultados da AAD, colaboraram para o
sucesso do programa.
312
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Considerações Finais
Apesar deste estudo ter sugerido que programas de coaching de executivos
podem ser eficientes e que uma certa sistematização dos procedimentos é
desejável, é preciso observar que eles não devem se tornar procedimentos
rigidamente padronizados. A forma como as técnicas são introduzidas e os
momentos são totalmente particulares a cada caso. Para estas discriminações
faz-se necessário que o coach tenha um bom nível de preparo para o exercício
desta atividade, requerendo forte base e formação humanista, ter vivência
organizacional diversificada, ser um profissional sênior, e que seu histórico
profissional garanta credibilidade e confiança, preferencialmente um psicólogo
(Milaré, 2004). Os resultados desta pesquisa permitem, pois concluir que, da
mesma forma que na psicoterapia, não se espera que o processo de mudança no
coaching de executivos se dê de forma repentina, mas é função de todo um
contexto que precisa ser avaliado (Yoshida & Enéas, 2004). Ademais, perfis
comportamentais com o predomínio do estilo “dominância” podem ser mais
predispostos a enfrentar problemas, principalmente quando combinados com
condições de gerenciamento que o executivo está submetido em seu ambiente
de trabalho. Nesta medida, uma avaliação que considere o perfil de
personalidade do executivo, sua eficácia adaptativa, o estágio de mudança em
que ele se encontra, integrada às características do ambiente organizacional,
parece ser útil na abordagem preventiva dos problemas psicológicos, facilitando a
opção pelo programa ou intervenção mais adequado. Acredita-se também que
este estudo trouxe a possibilidade de ampliação da utilização de instrumentos
psicológicos como a EDAO-R e a EEM, que tradicionalmente são empregados no
campo clínico, para as organizações, sugerindo sua utilidade de aplicação a
diferentes contextos. Ele também permitiu demonstrar que os fundamentos da
psicologia podem ajudar a aperfeiçoar o trabalho, desde que privilegiados a ética
e os princípios da dignidade humana.
Poucos estudos sistematizados são encontrados na literatura científica a respeito
de programas de coaching de executivos. Os resultados deste estudo contribuem
parcialmente para o preenchimento desta lacuna. Este estudo contém limites,
como o fato dos processos de coaching terem sido realizados pela primeira
autora. Em pesquisas futuras sugere-se o estudo de processos de coaching
conduzidos por outros profissionais. Ademais, amostras diversas e maiores
deverão garantir maior capacidade de generalização dos resultados. E
finalmente, sugere-se que novas pesquisas incluam o seguimento dos resultados
por ao menos seis meses ou um ano.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
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Tabela 1 – Avaliação de cada participante de acordo com o Personal Profile Analysis
(PPA), Auto-Análise do Desempenho (AAD) e avaliação inicial e final da
Escala Diagnóstica Adaptativa Operacionalizada Redefinida (EDAO-R) e a
Escala de Estágios de Mudança(EEM).
Coachee
PPA
A
Alta
estabilidade e
alta
conformidade
B
C
D
E
F
G
H
I
j
AAD
Desempenho
insatisfatório
Falta Feedback
Falta reconhecimento
Equipe e chefe
obstáculos
Alta
Desempenho
conformidade
insatisfatório
e alta
Falta reconhecImento e
estabilidade
Feedback
Equipe e chefe
obstáculos
Alta influência
Falta reconhecimento
e alta
Não ser aceito pelo
dominância
chefe
Alta
Falta clareza de metas
dominância e
de Gestão de Pessoas
alta influência
Falta reconhecimento
Não ser aceito pelo
chefe
Alta
Desempenho
dominância e
insatisfatório
alta
Censura devido
à
conformidade
ansiedade
Alta
Desempenho
dominância e
insatisfatório
alta
Falta reconhecimento
conformidade
Alta
conformidade
Alta
dominância e
alta influência
Alta
dominância e
alta
conformidade
Alta
Estabilidade
Falta Feedback
EEM
Inicial
Preparação
Contemplaão
Ação
Final
Ação
Ação
Ação
EDAO-R
Inic Final
ial
Grupo
III
I
AR
2
3
Pr
1
2
Grupo
AR
Pr
II
2
2
I
3
2
Grupo
AR
Pr
III
2
1
I
3
2
Contemplação
Preparação
Grupo
AR
Pr
III
1
2
I
3
2
Contemplação
Preparação
Grupo
AR
Pr
IV
1
1
II
2
2
Contemplação
Ação
Grupo
AR
Pr
II
2
2
I
3
2
Contemplação
Ação
Grupo
AR
Pr
Grupo
AR
Pr
Grupo
AR
Pr
II
2
2
III
1
2
IV
1
1
I
3
2
I
3
2
II
2
2
III
2
1
III
2
1
Feedback inconsistente
Contemplação
Ação
Falta reconhecimento
Não ser aceito pelo
chefe
Précontemplação
Contemplação
Desemp. insatisfatório
Falta Feedback
Falta reconhecimento
Não ser aceito pelo
chefe
Contemplação
Contem- Grupo
AR
plação
Pr
315
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
316
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A Criança em Sofrimento: o imaginário
de pais sobre a criança com problemas
[86]
[87]
Tânia Maria José Aiello-Vaisberg [88]
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Sueli Regina Gallo-Belluzzo
Elisa Corbett
Resumo Este trabalho objetiva investigar o imaginário coletivo de pais, cujos
filhos foram encaminhados para psicodiagnóstico, sobre “crianças com
problemas”, a fim de produzir conhecimentos que contribuam para o
desenvolvimento de práticas psicoterapêuticas e psicoprofiláticas diferenciadas.
Para tanto, foram realizadas entrevistas articuladas ao redor do uso do
Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema, utilizado como facilitador da
comunicação emocional. O material resultante foi compreendido à luz do método
psicanalítico, tal como é operado na detecção dos campos psicológicos vivenciais
em que se organiza o inconsciente relativo. Foram encontrados dois campos nãoconscientes, denominados “A culpa é dos pais” e “O que meu filho tem não é
problema”. O primeiro campo configura um mundo imaginário- transicional que
deriva da crença central segundo a qual a criança com problema seria vítima da
falta de atenção dos pais. O segundo campo organiza-se ao redor da crença de
que as crianças só apresentariam problemas caso fossemos vítimas de doenças
orgânicas. Em conjunto, os campos captados indicam que o grupo pesquisado
tende a negar a possibilidade de que crianças apresentem dificuldades de ordem
psicológica, num movimento de certa desvalorização de sua subjetividade
afetivo-emocional.
Palavras-Chave: Imaginário Coletivo – Criança-Problema – Procedimento
Desenhos-Estórias com Tema – Campos Psicológicos
Abstracts The aim of this paper is to investigate the collective imaginary of
parents, whose children had been directed for psychodiagnosis, about “children
with problems”, in order to produce knowledge that contribute for the
development of differentiated psychotherapeutics and psycho-prophylactic
practice. The Procedure of Thematic Story-Drawing was used and tends to a view
to facilitate the emotional communication. The productions were considered in
the light of the psychoanalytic method, as it operated in the detection of the
86 Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Campinas, Doutoranda em Psicologia como
Profissão e Ciência pela PUC-Campinas, Professora do Curso de Psicologia da FAJ Faculdade de Jaguariúna.
87 Mestranda em Psicologia como Profissão e Ciência pela Puc-Campinas, bolsista CNPQ.
88 Orientadora do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas, Professora Livre Docente aposentada do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, Coordenadora da “Ser e Fazer”: Oficinas Psicoterapêuticas de
Criação do IPUSP e Presidente do NEW- Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo.
317
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
existential psychological fields where is organized the relative unconscious. We
found two non-conscientious psychological fields: “The parents are guilty” and
“My child don’t have problem”. The first psychological field takes shape an
imaginary-transitional world that drifts of the belief according to which the child
with problem would be victim of the lack of attention of the parents. The second
psychological field gets itself organized around of the belief of that the children
alone would present problems in case that they were victims of organic illnesses.
In set, the caught fields indicate that the searched group tends to deny the
possibility of that children presents difficulties of psychological order, in a
movement of certain depreciation of its affective-emotional subjectivity.
Keywords: Collective Imaginary – Problem Child – Procedure of Thematic StoryDrawing – Psychological Fields
Este trabalho é resultado de um estudo sobre o imaginário de pais de crianças
que são encaminhadas para diagnóstico em uma clínica-escola vinculada a uma
faculdade de psicologia. No contexto deste serviço de atendimento, a clientela é
encaminhada pela escola que freqüenta, implicando em que geralmente parte
desta instituição, e não dos pais, a percepção de que estas crianças apresentam
dificuldades passiveis de serem avaliadas por um profissional habilitado.
Compreendendo que os pais desempenham um papel fundamental na atenção
psicológica à criança, interessamo-nos em investigar o que estes imaginam sobre
uma criança com um problema.
O conceito de imaginário coletivo foi desenvolvido por Aiello-Vaisberg (1999), a
partir do refinamento conceitual da teoria das representações sociais. Privilegia a
experiência emocional a partir da qual emerge determinada conduta (Bleger,
1963/1984), sendo mais adequado ao objeto do presente estudo do que o termo
“representação”, que remete a uma atividade cognitiva de cópia da realidade
exterior. Enfatizamos, ainda, que a conduta imaginativa envolve, desde o nosso
ponto de vista, uma atividade criadora do sujeito.
A proposta de investigação de coletivos se sustenta na afirmação de Bleger
(1963/1984) de que a conduta individual é também social, não existindo, no seu
entender, o indivíduo como uma mônada isolada. Entendemos que a conduta da
criança, tratada como problema, ocorre num determinado ambiente, portanto, o
imaginário dos pais sobre essa criança tem importância no seu desenvolvimento.
O imaginário coletivo, nessa perspectiva, pode ser entendido como um lócus
transicional que fundamenta e permeia as idéias, os sentimentos e as ações de
uma pessoalidade coletiva. Usamos, dessa forma, o conceito de transicionalidade
de Winnicott (1967) que atribui ao lugar a que nos referimos o significado de
espaço intermediário, entre o que é percebido objetivamente e concebido
subjetivamente (Aiello-Vaisberg, 2004). Nesse espaço intermediário é que
julgamos encontrar o real significado de pensamentos, sentimentos e ações
humanos.
Para realizar a pesquisa do imaginário dos pais, fizemos uso de um recurso
mediador dialógico, inspirado nas consultas terapêuticas de Winnicott (1971),
318
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
nas quais lançava mão de um brincar chamado Jogo do Rabisco, através do qual
ele e seu paciente faziam rabiscos até completarem – ou não - um desenho.
Através do brincar, Winnicott acreditava favorecer a comunicação emocional
profunda do paciente, além de facilitar que aquele momento lúdico se
transformasse num encontro potencialmente mutativo, no sentido de possibilitar
que o processo natural de amadurecimento pessoal, eventualmente bloqueado,
voltasse a fluir. O uso desse recurso teve a finalidade não apenas favorecer a
comunicação emocional dos participantes acerca do tema de pesquisa, mas,
também, de facilitar a integração de determinados aspectos emocionais
possivelmente dissociados.
Dentre os diversos “jogos do rabisco’ possíveis, utilizamos nesta pesquisa o
Procedimento Desenhos-Estórias com Tema, desenvolvido por Aiello-Vaisberg
(1999) a partir do Procedimento Desenhos-Estórias de Trinca (1972). Os
participantes foram convidados a realizar um desenho acerca de uma criança que
tem problema e, em seguida, a inventar uma história a partir da figura
desenhada. A solicitação para realizar esse procedimento foi feita a cinco mães,
cujos filhos foram encaminhados a uma clínica-escola. Esse procedimento é
utilizado como recurso de abordagem para temas de difícil acesso, que não estão
no campo consciente e/ou suscitam emoções indesejáveis.
Os desenhos-estórias foram considerados à luz da Teoria dos Campos de
Herrmann (1979/1991), que, na leitura de Aiello-Vaisberg (1999), prevê uma
aproximação psicanalítico-fenomenológica em relação ao acontecer clínico.
Assim, fizemos uso das técnicas psicanalíticas de associação livre e de atenção
equiflutuante, a fim de deixarmos que o material nos impressionasse da mesma
forma que nos impressionamos com um paciente, na clínica, vale dizer, sem
recorrer à literatura especializada, sem juízo de valor e sem nos atermos ao
conteúdo manifesto. A partir daí, foi possível captarmos os campos psicológicos
não conscientes (Bleger, 1963/1984), isto é, os determinantes lógico-emocionais
relativos a uma criança que tem problema.
Um indivíduo que está vivendo sua conduta está impedido de conhecer o campo
que a sustenta (Herrmann, 1979/1991), desta forma o uso do Procedimento de
Desenhos-Estórias com Tema facilita a expressão de determinações
inconscientes e da dramática do viver humano. Este campo que permeia a
conduta estabelece-se como uma matriz produtora de sentido (Aiello-Vaisberg,
1999)
Os Campos Psicológicos Vivenciais
Foram detectados dois campos psicológicos não conscientes nas produções das
participantes, que denominamos “A culpa é dos pais” e “O que meu filho não tem
é problema”.
O primeiro campo, “A culpa é dos pais”, configura um mundo transicional em que
a criança é olhada como vítima da falta de tempo e atenção por parte dos seus
cuidadores, aparecendo nos desenhos-estórias como da Figura 1. Neste
contexto, comportamentos agressivos infantis são entendidos apenas como
319
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
reação à rejeição paterna. A regra lógico-emocional que rege este mundo é a de,
se o comportamento da criança é resultado de sua tristeza, raiva e frustração
diante da ausência dos pais, a forma correta de resolver este problema é
provendo-lhe atenção – de preferência, muita atenção. Movemo-nos, portanto,
num terreno no qual a culpa surgiria frequentemente como sentimento comum a
pais que, envolvidos com seu trabalho e outras atividades, vêm-se mais distantes
dos filhos do que acreditam que deveriam.
Assim, nos momentos em que podem estar mais próximos, evitam repreendêlos, e procuram atender aos seus desejos. Deste modo, pensamos que este
campo aponta para certa dificuldade dos pais em assumir a função de
educadores capazes de atuar de forma continente em relação à criança sem, no
entanto, deixar de estabelecer limites. Compreendemos, então, a regra lógicoemocional que rege o campo “A culpa é dos pais” pode inclusive ser vista como
uma espécie deturpação do conceito de holding, central na teoria construída por
este autor. Tal conceito se traduz como a possibilidade de, a partir de um estado
de abertura em relação ao outro, perceber o que seria necessário a ele, e agir de
forma condizente. Inicialmente, podemos refletir que faz parte do processo de
amadurecimento deparar-se com as limitações que o mundo apresenta. É papel
dos pais, portanto, apresentar à criança tais limitações de forma que não violem
sua continuidade em ser, e não furtar-se a colocá-las em pauta.
Figura 1
“Essa criança é carinhoso, meigo ao perceber que alguém o rejeita, ele quer
atenção, começa a
trazer flores, desenhar.
Quando não retribuído
ele começa a xingar e
joga o pau na pessoa.
Quando ele é contido
ele chora muito, soluça
(parece bebê)
É dado atenção a ele
questionando o que ele
quer ser, o que quer
fazer e depois de
acalmar ele pede
desculpas e diz que não
sabe porque fica assim.
Se
há
alguma
reclamação dele, e que
ele
está
sempre
sozinho.
320
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Ele em uma qualidade, vai muito bem na escola, é inteligente, e quer sempre ser
o primeiro.”
Já os habitantes do segundo campo, denominado “O que meu filho não tem é
problema”, consideram que “problema” é ter uma deficiência física que afete em
grande medida suas possibilidades de interação social e independência futura de
seus cuidadores, aparecendo em produções como a ilustrada na Figura 2 . Este
revela-se um mundo dualista, em que existem apenas as pessoas que têm um
“problemão” e as que não têm problema nenhum. Assim, são negadas as
questões de ordem psicológica, bem como todas aquelas consideradas menos
limitantes.
Figura 2
“Esta é V., filha de uma prima
de meu marido, ela tem 3
anos, tem uma síndrome que
eu não sei o nome, ela é uma
criança que não anda, não
fala, ela chora como um
miado de um gato. A mãe
apesar de não ter aceito a
doença da filha, a trata com
muito
amor,
atenção
e
carinho, para uma mãe não é
fácil aceitar que o seu filho
tem algum problema, os pais
já são mais compreensivos e
para eles é mais fácil aceitar.
A Vitória tem um irmão de 5 anos (o V.) que é uma criança normal.
Eu falei sobre ela por ser da família e que perto dela nem meu filho e nem minha
filha acredito não ter nada.”
A consideração conjunta dos dois campos permite perceber que, embora estas
crianças tenham sido encaminhadas para uma clínica psicológica pela escola que
freqüentam, indicando que esta instituição acredita que necessitem de atenção
especializada, seus parecer ter uma visão diferente. Do ponto de vista racional,
podem perceber que os filhos não se comportam da forma como deveriam, e se
vêem em dificuldades para lidar com a situação, possivelmente um dos motivos
pelos quais procuram o serviço de atendimento e garantem as condições para
que os filhos participem das sessões. No entanto, do ponto de vista da
experiência emocional, parece que ainda é para eles muito complicado
aproximar-se desta questão. Sentem-se culpados pelos problemas, ou negam
sua importância, necessitando também de suporte, por parte da equipe de
atendimento, para que possam elaborar seu próprio sofrimento em relação à
situação e, conseqüentemente, oferecer aos filhos reais condições de superação
de suas próprias dificuldades.
321
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
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322
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O imaginário de mulheres sobre o câncer de mama
Sueli Regina Gallo Belluzzo89
Thais Helena Andrade Machado Couto90
Tânia Maria J. Aiello-Vaisberg91
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Resumo: Este artigo investiga as concepções de mulheres sobre o câncer de
mama. A pesquisa foi realizada através do uso do Procedimento de DesenhosEstórias com Tema, no enquadre de entrevistas individuais para abordagem de
pessoalidade coletiva. A análise do material, baseada em conceitos blegerianos,
revelou a existência de três campos do imaginário das mulheres investigadas,
sobre a vivência de quem possui câncer de mama: “Tive câncer, e daí?”, “Tenho
câncer: o que esta doença fez comigo!”, “Mulheres infelizes podem ter câncer”. O
primeiro campo nega a tragicidade e o impacto da doença na vida de uma
pessoa, enquanto o segundo tem caráter fatalista e traz a possibilidade implícita
da morte e o terceiro, ao considerar o câncer como conseqüência da infelicidade
humana, traz a marca do preconceito.
Palavras-chave: Câncer de Mama – Imaginário Coletivo - Procedimento
Desenhos-Estórias com Tema – Psicanálise
Abstracts: This paper investigates the women’s conception about breast cancer.
The research was undertaken by using the Procedure of Thematic Story-Drawing,
in a framework of individual interviews for boarding collective pessoalidade.
Based on Bleger’s concepts, data analysis disclosed the existence of three
psychological fields of the imaginary one of the women investigated, on the
experience of who possess breast cancer: “I had cancer, and from there?”, “I
have cancer: what this illness made with me!”, “Unhappy women can have
cancer”. The first psychological field denies the impact of the illness in the life of
a person, while the second has a fatalist character and it brings the implicit
possibility of the death and third, when considering the cancer as consequence of
the misfortune human being, it brings the mark of the preconception.
Keywords: Breast cancer – Collective imaginary - Procedure of Thematic StoryDrawing – Psychological Fields
89 Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Campinas, Doutoranda em Psicologia como
Profissão e Ciência pela PUC-Campinas, Professora do Curso de Psicologia da FAJ Faculdade de Jaguariúna.
90 Mestre em Psicologia pela PUC-Campinas
91 Orientadora do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas, Professora Livre Docente aposentada do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, Coordenadora da “Ser e Fazer”: Oficinas Psicoterapêuticas de
Criação do IPUSP e Presidente do NEW- Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo.
323
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O câncer de mama como sofrimento humano
Em nosso trabalho em consultório e como pesquisadoras, temos constatado que
um tipo de sofrimento vivido por um grande número de mulheres é aquele
decorrente da experiência de ter um câncer de mama. Visualizamos este
sofrimento inserido em vários contextos, inclusive no âmbito dos preconceitos
que subjazem a processos de exclusão social.
A ligação entre câncer de mama e exclusão social nem sempre é estabelecida de
imediato, aliás, mais comumente associada a grupos de minorias, tais como
deficientes físicos e mentais, negros, soropositivos, homossexuais, etc.
Encontramos no artigo de SantAnna (2000) sobre a mulher e o câncer na
história, um estudo sobre os significados e interpretações acerca da doença e das
situações que lhe estão associadas, mostrando a relação do câncer com o
preconceito.
No século XIX e primeiras décadas do século XX, o câncer era considerado
contagioso e associado à falta de limpeza, à sujeira física e moral. Acreditava-se
que a doença poderia ser resultado de “pecados e vícios”, em especial das
práticas sexuais, sendo o sexo oral identificado como a causa principal das
neoplasias nas mulheres, principalmente nas homossexuais e bissexuais. Por fim,
concebia-se que a doença poderia ser contagiosa entre os amantes dos excessos
do prazer.
Durante os anos 30 e 40 surgem novas hipóteses sobre os fatores
predisponentes ao câncer, tais como a ingestão de alimentos com produtos
químicos, o hábito de fumar, o excesso de trabalho e o aumento das
preocupações diárias, porém as argumentações de cunho moral continuavam em
evidência.
Na década de 50 os avanços nos métodos de diagnóstico e tratamento
possibilitaram o aumento do número de sobreviventes e do tempo de sobrevida
dos pacientes. Surgiu a necessidade de lhes proporcionar boa qualidade de vida.
Algumas áreas da medicina, incorporando conhecimentos psicanalíticos,
começaram a levantar a possibilidade de participação de fatores psíquicos no
desenvolvimento do câncer. Os argumentos morais se atualizavam: eram os
indivíduos frígidos e impotentes, pervertidos sexualmente ou doentes do sexo
que se tornavam segundo diversos médicos, presas fáceis do câncer.
A noção do câncer como castigo foi sendo substituída pela de que a doença
expressa o caráter do paciente. A doença que era vista como uma conseqüência
da conduta desregrada do indivíduo, cujos comportamentos e emoções eram
desmedidos, passou a ser relacionada com a contenção do desejo ou
incapacidade de expressar suas emoções.
A ênfase na concepção de que determinados estados psicológicos e certas
características de personalidade do doente são importantes fatores
324
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
predisponentes ao câncer pode mostrar-se tão punitiva quanto a noção da
doença como castigo (Silva, 2008).
Temos adotado a visão do psicanalista Bleger sobre o homem, segundo o qual,
ele é um ser que nasce na cultura, pertencendo a determinada classe social, a
um grupo étnico e religioso. Conseqüentemente, coexiste na cultura
incorporando e organizando experiências com os demais indivíduos, sendo o
conjunto das relações sociais o campo que o indivíduo se constitui em sua
personalidade, “porque o meio ambiente do ser humano é um ambiente social,
do qual vêm os estímulos fundamentais para a organização de suas qualidades
psicológicas” (Bleger, 1963, p. 20).
Neste contexto, surge a relevância dos fenômenos psíquicos porque, na medida
em que os humanos são seres capazes de atividade simbólica, todas as suas
condutas manifestam-se simultaneamente na área da mente, de modo
consciente ou não consciente. Todas as pessoas estão em permanente
interdependência com o mundo externo, de tal maneira que não há fatos isolados
e a influência que se dá entre eles é uma permanente ação recíproca. (Bleger,
1963)
Em conformidade com essa visão destacamos a importância da dimensão
emocional na abordagem da mulher com câncer de mama. Encontramos na
literatura alguns estudos que, embora não sendo de cunho psicanalítico,
reconhecem a importância deste enfoque. São estudos realizados por
profissionais da área de saúde, que acompanham mulheres que se encontram
em tratamento do câncer (Cantinelli et al, 2006; Duarte & Andrade, 2003;
Lorencetti & Simonetti, 2005; Silva, 2008). Estes autores apontam que o câncer
representa uma ameaça em vários níveis: o medo da morte, da rejeição, da
mutilação, dos efeitos do tratamento quimioterápico, assim como o surgimento
de sintomas de estresse, ansiedade e depressão.
Tais sentimentos negativos podem afetar a elaboração de atitudes que
facilitariam o enfrentamento das terapêuticas, muitas vezes desconfortáveis. Isso
indica a importância da participação de profissionais de saúde mental nas equipes
de saúde. Entretanto, a verdade é que raramente estas pacientes contam com o
atendimento de psicólogos e psiquiatras, permanecendo entregues aos cuidados
do oncologista, do cirurgião e da enfermeira.
Entendemos que é muito importante conhecer melhor o sofrimento da mulher
vítima do câncer de mama. Este sofrimento, contudo, emerge, quando o
diagnóstico acontece, num ambiente humano, que é constituído não apenas da
realidade material, mas também pelo imaginário coletivo, vale dizer, por um
conjunto de sentimentos, pensamentos e crenças que circulam no mundo social.
A nosso ver, tanto as dimensões individuais, que se concretizam quando uma
determinada mulher é efetivamente diagnosticada, como as dimensões sociais
circundantes, nas quais vigoram certas concepções sobre o câncer, merecem ser
rigorosamente investigadas, quando consideramos importante produzir
conhecimentos que permitam melhorar o atendimento às pacientes,
compreender o sofrimento emocional concomitante, auxiliar em processos de
325
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
recuperação ou contribuir no sentido da psicoprofilaxia do próprio câncer e do
sofrimento emocional a ele vinculado. No momento, optamos focalizar o
imaginário coletivo de mulheres sobre o câncer de mama.
De acordo com a visão psicanalítica blegeriana, as queixas psicológicas são
sintomas que expressam problemáticas existenciais relacionais (Bleger, 1963). O
sofrimento da pessoa com câncer faz sentido levando-se em conta os contextos
da vida individual e da vida coletiva da qual emerge.
O imaginário coletivo deve ser compreendido como um conjunto de produções
ideo-afetivas, de “sentimentos-pensamentos”, que se constituem como condutas
(Bleger, 1963). É um conceito que rompe com o pressuposto segundo o qual o
psiquismo acontece como interioridade individual, para entendê-lo como
fenômeno que se gesta intersubjetivamente. A conduta, ao lado de outros
elementos, tais como a linguagem, os utensílios e os usos e costumes,
correspondem ao que se pode corretamente designar como ambiente humano ou
cultural, que é o campo a partir do qual toda conduta é emergente (AielloVaisberg, 2005). O conceito de conduta, na concepção de Bleger é diferente
daquele adotado pelos comportamentalistas, pois é definida como manifestações
humanas dotadas de sentido emocional, que tem lugar em contextos pessoais,
sociais e históricos.
O conhecimento do imaginário de mulheres sobre o câncer de mama permitirá
lidar melhor com o sofrimento das pessoas que recebem a notícia do diagnóstico
de câncer de mama e daquelas que estão em tratamento. Tal conhecimento
permite identificarmos as produções imaginativas das pessoas que fazem parte
do nosso mundo social e elucidarmos o inconsciente relativo, ou seja, a sua
lógica emocional inconsciente, sobre a qual se estruturam (Bleger, 1963; AielloVaisberg, 1999). A compreensão e transformação dos campos psicológicovivenciais subjacentes aos imaginários coletivos poderão possibilitar mudanças
profundas e duradouras tanto nas condutas das pessoas que passam pelo
sofrimento de ter um câncer, como nas pessoas com quem convivem ou que
fazem
parte
das
equipes
de
saúde
encarregadas
do
seu
tratamento,proporcionando o benefício da ampliação de oportunidades e
possibilidades vivenciais, libertando o ser humano de adesões a concepções
restritivas sobre o sofrimento dessas pessoas. (Aiello-Vaisberg, 1999, Martins,
2007)
Pensamos que esta pesquisa pode colaborar com a melhoria da qualidade de vida
das mulheres com câncer, ao buscarmos a compreensão emocional do ambiente
humano no qual se desenrola dramaticamente o viver dessas pessoas.
A Pesquisa do Imaginário Coletivo
O trabalho investigativo, no campo da psicologia, deve partir da dramática da
vida para seguir caminhos de teorização que se mantenham maximamente
próximos ao plano concreto das vivências emocionais (Bleger, 1963).
Preocupamo-nos com o estabelecimento de uma estratégia de pesquisa que
326
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
possibilitasse o surgimento de manifestações simbólicas de subjetividades
grupais, e também buscamos refletir sobre o material emergente evitando
explicações distanciadas do viver. Propomo-nos pesquisar o imaginário coletivo
de mulheres sobre o câncer de mama por meio do Procedimento de DesenhosEstórias com Tema (Aiello-Vaisberg, 1999) a partir do Procedimento DesenhosEstórias de Trinca (1997), tendo em vista produzir conhecimentos que possam
orientar o planejamento de práticas psicológicas em instituições, em registros
psicoterapêuticos e psicoprofiláticos.
Tal procedimento consistiu na solicitação do desenho de “uma mulher que tem
câncer de mama” e da invenção de uma história sobre a figura desenhada. As
entrevistas foram individuais, na residência de cada uma das participantes da
pesquisa. Foram entrevistadas oito mulheres, que não tiveram câncer de mama.
A presente pesquisa visa identificar os complexos ideo-afetivos constituintes do
imaginário coletivo de mulheres sobre o câncer de mama, bem como captar os
campos psicológico-vivenciais não-conscientes sobre os quais se sustenta. A
estratégia teórico-metodológica utilizada está apoiada na afirmação de Bleger
(1963/2001) de que é no contexto dos campos vivenciais que nascem os
sentidos das condutas e que a tarefa do psicanalista é a da pesquisa das
motivações inconscientes das condutas de indivíduos e coletivos.
Utilizamos, no processo de “criação/encontro” dos múltiplos sentidos veiculados
pelos desenhos-estórias, o auxílio da Teoria dos Campos (Hermann, 1979).
Acessar tais campos corresponde a interpretar clinicamente, o que aqui será
feito, não com objetivo terapêutico-individual, mas tendo em vista produzir
conhecimento sobre o ambiente coletivo no qual as condutas individuais têm
lugar. Neste contexto, torna-se interessante tomar as produções individuais
como associações de um único sujeito coletivo, no caso, mulheres que não
sofrem nem sofreram de câncer de mama.
Os Campos Psicológicos Vivenciais
Ao introduzirmos o tema “O Câncer de Mama” verificamos que as entrevistadas
abordaram diversos tipos de sofrimento que podem ser vividos pela mulher
acometida por esta doença.
Foram identificados três campos nas produções de Desenhos-Estórias com Tema.
O primeiro campo captado foi denominado “Tive câncer, e daí?”. Neste é negado
o caráter trágico da experiência de se ter um câncer. Num primeiro momento
pode-se pensar que isso se deve à campanha que tem sido veiculada sobre a
importância do diagnóstico precoce, que possibilita um alto índice de cura, bem
como a experiência social de convivência com pessoas curadas, fato
extremamente raro há algumas décadas. Porém, uma reflexão mais profunda,
mostra-nos o não enfrentamento da doença com todos os matizes de sofrimento
que ela apresenta: as cirurgias mutiladoras, os tratamentos quimio e
radioterápicos, e a possibilidade da morte.
327
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
No Campo “Tenho câncer: o que esta doença fez comigo!”, os desenhos e
histórias apresentados, trazem a vivência dramática de quem é acometido pelo
câncer. O medo da morte, da mutilação e do tratamento são abordados de
maneira explícita. O câncer é sentido como um “divisor de águas” na existência
da pessoa que tem esse diagnóstico, pois há um estilo e uma forma de viver
anterior ao câncer, que se contrasta com as mudanças que se sucedem após a
constatação da presença da doença.
No terceiro campo, “Mulheres infelizes podem ter câncer” a doença é relacionada
a um estado emocional. Verificamos que o câncer ainda tem uma conotação
preconceituosa no imaginário coletivo, ou seja, o seu surgimento é relacionado à
falta de amor, à raiva, à mágoa, à depressão. Ao sofrimento emocional que é
vivido por aquele que tem câncer, acrescenta-se a culpa de que os estados
emocionais anteriores ao aparecimento da doença, na verdade foram os seus
geradores.
A consideração conjunta dos três campos permite perceber o caráter fatalista dos
dois primeiros, vale dizer, qualquer ser humano está sujeito a ter câncer. Já o
terceiro campo relaciona o câncer a uma pré-determinação: estados emocionais
negativos são fortes componentes para deflagrar a doença.
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329
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Rabiscando o imaginário sobre o cuidado materno: uso
de narrativas interativas na pesquisa psicanalítica92
Tania Mara Marques Granato
Tânia Maria José Aiello-Vaisberg
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Resumo: Partindo do pressuposto de que a experiência humana ganha sentido
quando tecida em narrativas que a sustentam, pretendemos realizar uma
pesquisa psicanalítica que faça uso de narrativas interativas, a fim de acessar os
campos de sentido sobre os quais repousa o imaginário dos indivíduos sobre o
cuidado materno. A primeira parte de uma narrativa é apresentada, como
recurso dialógico, pelo pesquisador, que convida o participante, ou o grupo de
participantes, a completar aquela história, da maneira mais livre possível. Abrese, a seguir, um espaço para interlocução, durante a qual os participantes podem
ser expressar livremente sobre a experiência vivida e/ou sobre a temática do
encontro. A regra fundamental da Psicanálise estará presente tanto na
apresentação do procedimento quanto no tratamento dado pelo pesquisador às
narrativas produzidas, priorizando-se a associação-livre e a atenção flutuante
como meio de acesso aos campos inconscientes da trama criada. A partir do
resgate dos campos de sentido que apresentam o contexto intersubjetivo em que
a mulher se torna mãe, imaginamos poder contribuir para transformar o modo
como o bebê é acolhido por todos aqueles que estão envolvidos em seu cuidado.
Palavras-chave: maternidade, narrativa, imaginário, psicanálise.
Squiggling the imaginary about infant care: use of interactive
narratives in the psychoanalytic research
Abstract: According to the premise that human experience makes sense when
woven into narratives, we intend to do a psychoanalytic investigation making use
of interactive narratives in order to access meaning fields upon which the
individual’s imaginary about infant care rests. The first part of a narrative is
presented, as a dialogical strategy, by the researcher who invites the participant,
or the group of participants, to complete the story, in a free way. After that, it is
proposed a moment of interlocution, when the participants can express their
feelings about the experience and/or the thematic of the encounter. The
fundamental rule of Psychoanalysis will be observed during the narrative
procedure as well as in the subsequent narratives’ treatment, in which free
association and free floating attention will be the means to access the
unconscious fields of the constructed plot. Becoming aware of the meaning fields
that present the intersubjective context in which a woman becomes a mother, we
aim to contribute to change the way in which a baby is welcomed by all the
people involved with infant care.
92 Pesquisa financidada como Pós-Doutorado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo – FAPESP.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Key words: motherhood, narrative, imaginary, psychoanalysis.
Partindo do refinamento conceitual a que Fabio Herrmann (2004) se lança com
vistas a situar o método psicanalítico como a verdadeira inspiração da
Psicanálise, usualmente tomada como corpo teórico fundamental e dispositivo
terapêutico eficaz, chegamos à antropologia que subjaz à própria empreitada
psicanalítica. Seguindo uma mesma concepção de homem, Bleger (1983), AielloVaisberg & Machado (2008) e o próprio Herrmann (2007) buscam o sentido que
sustenta qualquer conduta humana, por mais incompreensível que ela possa
parecer e chegam ao fato psicológico que Politzer (1928) procurava, ao
interrogar a Psicanálise quanto à sua condição de Psicologia concreta,
encontrando-o no contexto dramático expresso nas narrativas dos pacientes a
seus analistas.
A produção dessas narrativas se dá em campo intersubjetivo, tecido a partir de
um contexto maior (Spence, 2001; Stolorow, 1994) e orientado pelas duas
regras básicas do método psicanalítico — a associação livre do paciente, cujo
esforço se dá no sentido de libertar-se dos grilhões da auto-censura, e a atenção
flutuante do analista que afina sua escuta, visando a apreender o inaudível, o
inconsciente, o sentido.
Como diz Schafer (2005), em sua formulação
contemporânea do pensamento psicanalítico, a riqueza da experiência analítica
não cabe nas anacrônicas dicotomias freudianas, tais como impulso/defesa,
princípio do prazer/princípio de realidade, feminino/masculino, sugerindo ao
analista que explore a rede de sentidos de uma determinada conduta, tanto
quanto o uso que o paciente faz dela, recolocando-o como autor da própria
história.
A experiência humana, e não apenas a psicanalítica, organiza-se, toma forma e
ganha sentido ao ser narrada. Narrativa esta que é sempre dirigida a alguém que
não apenas partilhará daquela experiência, mas a legitimará como pertencente
ao campo do humano, como bem cita Ricoeur (1983): “...que o tempo se torna
tempo humano na medida em que é articulado num modo narrativo, e a
narrativa alcança sua significação plena quando ela se torna uma condição da
existência temporal” (p.105).
Se o sentido se afigura como condição para que compreendamos e toleremos
nossas experiências cotidianas, se a ele temos acesso através das narrativas
que abrem a possibilidade para vivenciarmos uma experiência (Safra, 2006),
situando-nos como herdeiros de uma cultura, de uma história ou de uma
sabedoria, que são sempre talhadas pela dramática da vida (Benjamin, 1936;
Aiello-Vaisberg, Machado & Ambrosio, 2003), a narrativa se configura como
procedimento privilegiado para a pesquisa psicanalítica.
Considerando a observância do método psicanalítico como critério de rigor na
pesquisa psicanalítica, podemos supor que a utilização de narrativas como
procedimento de pesquisa pode se configurar como dispositivo apropriado de
acesso aos campos de sentido inconscientes que se produzem também em
situações não-clínicas. O conflito, o sentido, o inconsciente e o sofrimento
psíquico não são prerrogativas da clínica psicanalítica, ali estão para serem renarrados pela dupla paciente-terapeuta que busca que novos campos de sentido
331
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
se instaurem, promovendo uma maior flexibilidade do paciente. No entanto, para
além da clínica, tais elementos participam de qualquer encontro humano.
Tomando a maternidade como tema de pesquisa psicanalítica, por tratar-se de
experiência usualmente carregada de conflitos emocionais e, portanto, geradora
de sofrimento, poderíamos pensar em acessá-la a partir dos mais variados
procedimentos, desde que se mantivesse o método psicanalítico. Como somos
psicanalistas, é natural que dialoguemos com teorias psicanalíticas com as quais
nos identificamos, em função de sua adequação aos problemas que enfrentamos
no cotidiano da clínica (Aiello-Vaisberg & Granato, 2006; Granato, 2000, 2004,
2005, 2006a, 2006b; Granato & Aiello-Vaisberg, 2002a; 2002b; 2002c; 2003;
2004a; 2004b; 2005; 2008). Entretanto, em termos de procedimento ou
estratégia metodológica, sentimo-nos livres para escolher o que fizer mais
sentido nesse momento de nosso percurso na construção do conhecimento
psicanalítico, porque esta é a opção que melhor se harmoniza com uma visão da
Psicanálise como ciência que se define a partir do uso de um método, cujas
virtudes heurísticas têm sido comprovadas ao longo de décadas.
Mantidas a coerência teórico-metodológica e uma postura de abertura para
novas perspectivas de pesquisa sobre os sentidos que tecem e sustentam o
cuidado materno, optamos pelo uso de narrativas interativas (Granato, 2004)
como recurso dialógico que, à semelhança do Jogo do Rabisco de Winnicott
(1964), pretende facilitar o compartilhar de experiências significativas na área do
brincar (Winnicott, 1971). Com isso pretendemos conhecer a produção
imaginativa de pessoas e coletivos sobre a maternidade — suas crenças, seus
medos, suas teorias, fantasias, sonhos — e, quiçá, promover alguma
movimentação psíquica e existencial, transformando campos rígidos como o da
moral e o do preconceito, ao oferecer ao pesquisado a possibilidade de escutar,
refletir e narrar a própria experiência emocional.
Apresentando o início de uma narrativa ficcional, que traz o drama de uma
mulher em relação à maternidade, o pesquisador faz o seu primeiro rabisco. Não
podemos deixar de sublinhar que tal rabisco, um pouco mais comprometedor que
o winnicottiano, já carrega os campos de sentido do pesquisador que se defronta
com a experiência materna, agora construída e narrada por ele, vivendo na
relação com o pesquisado uma “experiência inteira” (Wilner, 1998, p. 233), isto
é, aquela que integra seus aspectos objetivos e subjetivos.
Em seguida, é solicitado ao participante que faça o seu rabisco, ou seja, que
complete aquela história da maneira que lhe convier, enfatizando a ausência de
expectativas ou critérios de acerto, deixando-o totalmente livre para imaginar
como a trama se desdobra. Ao final, as histórias são guardadas e abre-se um
espaço para conversar sobre o tema tratado na história, sobre o impacto do
procedimento em si, questionamentos sobre o assunto ou sobre a pesquisa e o
interesse do pesquisador; enfim, pretendemos
oferecer um espaço de
interlocução que pode ser aproveitado da maneira que for possível naquele
encontro.
Apesar do crescente interesse em trabalhar teórica e/ou metodologicamente com
332
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
narrativas em pesquisas qualitativas (Calvasina et al, 2007; Dutra, 2002; Meleiro
& Gualda, 2004; Miller, 2000; Ribeiro & Lyra, 2008; Rocha-Coutinho, 2005; Silva
& Trentini, 2002; Teixeira, 2003), observamos que após uma longa e trabalhada
introdução teórico-metodológica de algumas pesquisas, o tratamento das
narrativas obtidas deixa muito a desejar, se o que se pretende é afastar-se
maximamente do paradigma positivista que objetifica e faz a apologia da
técnica. As conclusões não deixam de ser quantitativamente inspiradas, já que
excluem qualquer interlocução do pesquisador com o material obtido, cuja
riqueza emocional fica desperdiçada numa análise de conteúdo que privilegia o
número de vezes em que uma dada palavra faz sua aparição, sem preocupação
com seu papel na trama dos sentidos.
Nesse sentido, pretendemos trabalhar as narrativas de modo qualitativo e
psicanalítico, fazendo uso da regra fundamental, associando livremente num
primeiro momento para em seguida dirigir nossa atenção flutuante para tudo o
que foi produzido, seja a narrativa do pesquisador, a narrativa produzida pelos
pesquisados ou notas tomadas pelo pesquisador após o encontro investigativo.
Tal esforço se dirige à captação dos campos de sentido, em seus elementos
conscientes e inconscientes, onde repousa a criação imaginativa de cada um.
Esta será, assim, compreendida não só como ferramenta de construção de
narrativas, mas principalmente como reveladora do avesso que alimenta nossas
atitudes e posturas diante do outro e da vida.
Pensamos poder contribuir com tal pesquisa para uma retomada mais ativa das
pessoas em relação à própria capacidade e criatividade, interrogando e
transformando a maneira como o bebê é acolhido por todos aqueles que estão
envolvidos em seu cuidado. Sem a preocupação de dar conta do fenômeno
humano, que será sempre transbordante (Escars, 2002) a qualquer
procedimento que, na tentativa de explicá-lo, acabe por reduzi-lo, pretendemos,
através de narrativas interativas, trazer para reflexão condutas que, porventura,
sejam motivadas por expectativas idealizadas, preconceitos ou ideologias.
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335
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
“O mundo marcado”: o imaginário coletivo de jovens
sobre a adolescência contemporânea
Tânia Maria José Aiello Vaisberg93
Miriam Tachibana94
Mariana Leme da Silva Pontes95
Aline Vilarinho Montezi96
Resumo: Uma vez que a adolescência é marcada por diversas mudanças,
entendemos que se faz necessário o olhar da Psicologia clínica acerca do
indivíduo que se encontra nesta etapa do desenvolvimento humano. Assim,
decidimos investigar o imaginário coletivo de jovens acerca da adolescência na
contemporaneidade. Para tanto, contatamos cento e noventa e sete estudantes
de oitava série a terceiro colegial e solicitamos que fizessem, individualmente,
desenhos-estórias segundo o tema “um adolescente nos dias de hoje”. Para este
estudo, selecionamos os dez desenhos-estórias em que havia menção explícita
ao uso de roupas de marcas. A partir deste material, captamos um campo de
sentido, que denominamos “Mundo marcado”. Compreendemos, assim, que o
jovem vive num mundo em que o outro é definido, valorizado e incluído segundo
a marca da roupa usada.
Palavras-chaves: Adolescência; Imaginário Coletivo; Procedimento DesenhosEstórias com Tema; Consumismo
Abstract: Since adolescence is marked by a lot of changings, we understand
that it is needed the care of Psychological clinic around the individual who lives
this phase of the human development. So we decided to investigate the collective
imaginary of teenagers around the contemporary adolescence. For such we
contacted a hundred and ninety and seven students from eighth grade to third
college and we asked them to realize, individually, drawings-stories according the
theme “a teenager from nowadays”. For this study, we selected ten drawingstories in which there was explicit mention around the use of griffe’s clothes.
From this material, we caught one felt’s field, named as “Marked world”. Through
this field, we understood that the teenager lives in a world where the other is
defined, valorized and included according the use of griffe’s clothes.
93 Professora Livre Docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo,
Orientadora de Mestrados e Doutorados dos Programas de Pós Graduação em Psicologia
do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas, Coordenadora da Ser e Fazer: Oficinas Psicoterapêuticas de
Criação e Presidente da NEW- Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo.
94 Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, com bolsa CNPq.
95 Ex-bolsista PIBIC/CNPq de iniciação científica em Psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica de Campinas.
96 Bolsista FAPIC de iniciação científica em Psicologia pela Pontifícia Universidade
Católica de Campinas.
336
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Key-words: Adolescence; Collective Imaginary; Procedure Drawing-Stories with
Theme; Consumerism
A adolescência contemporânea
Sabemos que a adolescência consiste numa etapa do desenvolvimento humano
em que o indivíduo vivencia diversas mudanças, tanto corporais, exigindo que o
jovem esteja aberto para a vivência de transformações em seu próprio corpo,
quanto sociais, na medida em que consiste no período transitório entre o mundo
infantil e o adulto, equivalentes, respectivamente, a posições sociais de maior
dependência e de maior autonomia (Camps, 2003; Barreto, 2006).
Justamente por consistir num momento marcado por diversas mudanças,
entendemos a importância do olhar da Psicologia clínica sobre os jovens, atuando
não apenas de maneira interventiva, mas, também, psicoprofilática. De fato,
deparamo-nos com diversos estudos psicológicos, que visam, através do
conhecimento científico produzido, amparar a atuação clínica junto aos
adolescentes.
Se, por um lado, consideramos tais estudos valiosos, na medida em que
configuram uma iniciativa de compreender a condição emocional de indivíduos
que estão vivenciando o complexo processo de adolescer, por outro, entendemos
que tais pesquisas devam ser realizadas com cautela, sem a adoção de um
discurso estereotipado segundo o qual a adolescência corresponderia, de saída, a
um estado psicopatológico, que independe do ambiente vivido.
Partindo da compreensão de que é bastante desejável a realização de estudos,
que investiguem a condição emocional do adolescente de maneira
contextualizada ao ambiente vivido, considerando suas manifestações de acordo
com a realidade atual, e não como expressões meramente intrapsíquicas,
idealizamos uma investigação que focaliza o modo como os próprios adolescentes
consideram esta fase da vida nos dias de hoje. Dessa maneira, enquanto o
projeto de pesquisa, do qual deriva esta apresentação, centrou-se na
investigação psicanalítica do imaginário coletivo de adolescentes sobre os jovens
dos dias de hoje, é importante esclarecer que o objetivo do presente trabalho
consiste em abordar o imaginário de jovens em relação ao uso de roupas de
marca.
Encontrando com os adolescentes
Para investigarmos como os adolescentes vêem a si mesmos na sociedade
contemporânea em que vivem, fizemos uso do conceito de imaginário coletivo,
desenvolvido por Aiello-Vaisberg (1999), para referir-se às produções
imaginativas que o coletivo tece ao redor dos fenômenos humanos. Dessa
maneira, visamos investigar o imaginário coletivo de adolescentes acerca do
jovem dos dias de hoje.
337
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Assim, abordamos97 estudantes de oitava série a terceiro colegial de dez escolas
públicas e particulares situadas no interior do estado de São Paulo, após termos
obtido autorização institucional por parte dos diretores. Vale destacar que os
encontros realizados junto aos adolescentes foram inspirados nas consultas
terapêuticas de Winnicott (1970), nas quais o psicanalista fazia uso de um
recurso mediador-dialógico, denominado Jogo do Rabisco (Winnicott, 1968), com
o objetivo de criar um ambiente lúdico a partir do qual o paciente poderia
assumir uma postura relaxada e comunicar-se de maneira significativa.
Dessa maneira, inspiradas nas consultas terapêuticas de Winnicott, nos
encontros com os estudantes, que ocorreram em contexto de sala de aula,
fizemos uso de um recurso mediador-dialógico denominado Procedimento
Desenhos-Estórias com Tema (Aiello-Vaisberg, 1999), originado do Procedimento
Desenhos-Estórias de Trinca (1972). Assim, durante o encontro, as
pesquisadoras convidaram os jovens a realizarem, individualmente, um desenho
acerca do tema “um adolescente dos dias de hoje”, além de inventarem uma
história a partir da figura desenhada.
Devido ao fato de termos solicitado que os estudantes fizessem desenhosestórias acerca de um tema amplo, obtivemos cento e noventa e sete produções
gráficas que tratavam de temas diversos, o que permitiu que realizássemos
estudos sobre diversas temáticas (Cabreira, Pontes, Tachibana & Aiello-Vaisberg,
2007a; Cabreira, Pontes, Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2007b; Cabreira, Pontes,
Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2007c). Neste trabalho, optamos focalizar nos dez
desenhos-estórias nos quais havia menção explícita às roupas de marca, na
medida em que observamos que se tratava de uma temática importante, aos
jovens, nesta sociedade tão voltada ao consumismo.
Desse modo, os dez desenhos-estórias foram apresentados aos integrantes do
grupo de pesquisa CNPq “Atenção psicológica clínica em instituições: prevenção e
intervenção”, estratégia esta que se revelou eficaz em outras investigações que
realizamos, uma vez que permite a multiplicidade de associações livres, de
percepções, de impressões..., o que, no paradigma científico intersubjetivo,
consiste numa oportunidade de enriquecer as reflexões clínico-teóricas acerca do
material clínico.
Ainda, vale destacar que, ao considerarmos os desenhos-estórias, fizemos uso do
conceito de campo de sentido, desenvolvido por Aiello-Vaisberg (1999,2008) a
partir do refinamento conceitual de campo de Bleger (1963) e Herrmann (2001).
Dessa maneira, temos partido da compreensão de que a conduta humana é
sempre emergente de um campo, constituído por regras lógico-emocionais.
Assim, através do debruçar sobre o material clínico, captamos os campos de
sentido, sustentadores do imaginário dos jovens acerca do processo de adolescer
na contemporaneidade.
97 Estes encontros foram realizados por Mariana Leme da Silva Pontes e Jaqueline
Caldamone Cabreira.
338
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Campo “Mundo marcado”
O uso do método psicanalitico, tal como é operado a partir da Teoria dos
Campos, permitiu a captação de um campo de sentido, que denominamos “
Mundo marcado”, o qual se configura ao redor da regra lógico-emocional
segundo a qual ser jovem, nos dias de hoje, faz sentido quando o uso de roupas
de marca é possível. Tal uso cumpriria a função de permitir que o jovem seja
identificado e notado pelo outro, segundo linhas que variam, numa evidente
conotação narcisista, entre o poder sentir-se incluído socialmente e o ser
admirado como superior aos demais. Apresentamos, a seguir, à guisa de
exemplos, três histórias, que permitem a apreciação de situações de busca de
inclusão ou de busca de superioridade:
Para ilustrar este imaginário de que o adolescente precisa voltar-se ao uso de
roupas de marcas para ser identificado pelo outro, selecionamos a seguinte
história:
“Esse menino é um estilo surfista que anda só com
a camisa aberta e bermuda NOS. Geralmente ele pega
a sua prancha e vai surfar com os amigos no litoral”.
“A maioria dos adolescentes só pensa em
andar bem vestido, não sei porque, eu acho
que é para serem bem vistos pela sociedade.”
“(...) a busca por um lugar ao sol segue as grandes marcas”.
Vale informar que este pequeno trecho que acaba de ser transcrito, faz parte de
uma produção vinculada a um desenho em que aparecem quatro adolescentes,
dos quais dois vestem roupas de marcas diversas, segurando cartazes com
valores de dinheiro, enquanto os outros dois, de tamanho relativamente menor,
sem usar roupas de griffe, olham fixamente para os dois primeiros. Fica, assim,
evidente, uma necessidade de supremacia e prestígio às custas da humilhação do
outro.
Reflexões clínico-teóricas
O material clínico que encontramos, a partir da análise de produções
imaginativas que trazem a questão da roupa de marca no conteúdo manifesto,
não nos deve fazer esquecer que este fenômeno não é encontrado apenas entre
jovens. Minerbo (2000), que teve a oportunidade de elaborar reflexões clínicoteóricas, a partir do atendimento psicanalítico de uma mulher adulta que só
usava roupas de griffe, demonstrou com clareza que a marca equivale a um
sobrenome
de
valor,
que
conferiria
maior
status
ao
individuo,
independentemente de sua idade.
339
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Desde uma perspectiva winnicottiana, segundo a qual a saúde emocional
dependeria da capacidade do individuo de se sentir vivo e real, a partir de um
agir no mundo fundamentalmente não submisso, o quadro aqui encontrado
revela-se preocupante, na medida em que aponta com clareza o uso de uma
estratégia que, pela sua superficialidade, insere-se evidentemente em um
registro falso self. Não cabe, a nosso ver, interpretar este fenômeno como mera
expressão da comentada necessidade do adolescentes de se aproximar do grupo
de pares e de se afastar da família primária, porque não é esta a questão que
está em pauta. Entendemos, assim, que o mais importante, neste contexto, seja
a consideração das formas particulares pelas quais este movimento conhecido
dos adolescentes vem sendo feito ultimamente, as quais se caracterizam pela
superficialidade, pela banalidade, pela uniformização e, finalmente, pela
submissão a padrões que, ainda que grupais, são evidentemente autoritários e
externos ao self.
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Cabreira, J. C., Pontes, M.L. da S., Tachibana, M. & Aiello-Vaisberg, T.M.J.
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340
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
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Paulo. São Paulo, SP.
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Winnicott, D.W. (1971). A criatividade e suas origens. Em Winnicott, D.W.
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de Janeiro, RJ: Imago.
341
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Desastre na vida sexual: o imaginário coletivo de
adolescente sobre a gravidez na adolescência
Tânia Maria José Aiello Vaisberg98
Miriam Tachibana99
Mariana Leme da Silva Pontes100
Tomíris Forner Barcelos101
Resumo: Afinadas à Psicanálise intersubjetiva, entendemos que os fenômenos
sociais, inclusive o processo de adolescer, devem ser investigados de acordo com
o contexto em que se inserem. Assim, decidimos investigar o imaginário coletivo
de cento e noventa e sete jovens acerca da adolescência na contemporaneidade.
Para tanto, contatamos estudantes de oitava série a terceiro colegial e
solicitamos que fizessem, individualmente, desenhos-estórias segundo o tema
“um adolescente nos dias de hoje”. Para este estudo, selecionamos os treze
desenhos-estórias em que havia menção explícita à gravidez na adolescência. A
partir deste material, captamos quatro campos de sentido: “Fatalidade”, “Morte”,
“Transgressão” e “Abandono”. Assim, compreendemos que, no imaginário
coletivo de jovens, a gestação seria fruto inevitável da vida sexual, com a
adolescente gestante sendo vista como transgressora, abandonada e sem
perspectiva de futuro.
Palavras-chaves: Adolescência; Imaginário Coletivo; Procedimento DesenhosEstórias com Tema; Gravidez
Abstract: According the intersubjective Psychoanalysis, social phenomenas,
including the process of being teenager, should be investigated considering the
context in which they happen. So we decided to investigate the collective
imaginary of one hundred and ninety and seven teenagers around the
contemporary adolescence. For such we contacted students from eighth grade to
98 Professora Livre Docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo,
Orientadora de Mestrados e Doutorados dos Programas de Pós Graduação em Psicologia
do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas, Coordenadora da Ser e Fazer: Oficinas Psicoterapêuticas de
Criação e Presidente da NEW- Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo.
99 Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, com bolsa CNPq.
100 Ex-bolsista PIBIC/CNPq de iniciação científica em Psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica de Campinas.
101 Bolsista PIBIC/ CNPq de iniciação científica em Psicologia pela Pontifícia Universidade
Católica de Campinas.
342
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
third college and we asked them to realize, individually, drawings-stories
according the theme “a teenager from nowadays”. For this study, we selected
thirteen drawing-stories in which there was explicit mention around pregnancy in
adolescence. From this material, we caught four felt’s field: “Fatality”, “Death”,
“Trespass” and “Abandonment”. Through those fields, we understood that the
teenagers imagine that pregnancy would be as inevitable result of sexual life, and
that the girl who gets pregnant is seen, in the collective imaginary of
adolescents, as a delinquent and abandoned person without future perspectives
in her life.
Key-words: Adolescence; Collective Imaginary; Procedure Drawing-Stories with
Theme; Pregnancy
O adolescente dos dias de hoje
Ao partirmos da compreensão de que a experiência emocional do ser humano
está intrinsecamente relacionada ao ambiente (Bleger, 1963), marcado,
atualmente, pela virtualidade das relações, o imediatismo e a valorização
excessiva da aparência, dentre outros, entendemos que cabe questionarmos
quem é o adolescente dos dias de hoje (Barreto, 2006; Camps, 2003).
Assim, idealizamos a realização de uma investigação psicanalítica com o objetivo
de compreender como os adolescentes contemporâneos vêem a si mesmos na
sociedade em que vivem, entendendo que, a partir da realização deste trabalho,
seria possível produzir um conhecimento acerca da condição emocional do jovem
dos dias de hoje, que poderia auxiliá-los, de maneira interventiva e
psicoprofilática, na medida em que contribuiria para a criação de ambiente não
apenas não prejudica, mas que sobretudo seja favorecedor do processo de
amadurecimento emocional dos adolescentes (Winnicott, 1968a).
Para nos aproximarmos da vivência emocional dos jovens, fizemos uso do
conceito de imaginário coletivo (Aiello-Vaisberg, 1999), que temos entendido
como as manifestações simbólicas de subjetividades grupais, visando
conhecimento que leve à compreensão do substrato afetivo-emocional que
subjaz as ações humanas, o que temos feito no âmbito de nosso grupo de
pesquisa CNPq “Atenção psicológica clínica em instituições: prevenção e
intervenção”. Dessa maneira, enquanto o projeto de pesquisa, do qual deriva
esta apresentação, centrou-se na investigação psicanalítica do imaginário
coletivo de adolescentes sobre os jovens dos dias de hoje, é importante
esclarecer que o objetivo do presente trabalho consiste em abordar o imaginário
de jovens em relação à gravidez na adolescência.
O caminho percorrido
Ao realizarmos este estudo nos moldes epistemológicos e metodológicos
estabelecidos, tornou-se necessário o uso de recursos mediadores-dialógicos que
ultrapassassem a abordagem do fenômeno apenas no plano da percepção
consciente ou da opinião (Aiello-Vaisberg, 1995). Pensar em recursos
mediadores-dialógicos remeteu-nos ao Jogo do Rabisco de Winnicott (1968b),
343
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
uma forma de brincar, através da qual ele e seu paciente desenhavam rabiscos,
de um modo maximamente flexível, tendo em vista facilitar a comunicação
emocional do paciente. Assim, inspiradas no Jogo do Rabisco de Winnicott,
lançamos mão do Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema (AielloVaisberg, 1999), em que o indivíduo é convidado a realizar um desenho, bem
como uma história sobre aquilo que desenhou, a partir de um tema definido pelo
pesquisador.
Visando uma aproximação com os adolescentes dos dias de hoje, contatamos
dez escolas públicas e particulares situadas no interior do estado de São Paulo,
sendo que, em cada instituição, selecionamos uma sala de aula de oitava a
terceiro colegial. Desse modo, as pesquisadoras102 que realizaram os encontros
propriamente ditos iam às salas de aula e solicitavam aos alunos que
desenhassem, individualmente, “um adolescente dos dias de hoje”, para, a
seguir, inventar uma história sobre a figura desenhada.
Ao final, obtivemos cento e noventa e sete desenhos-estórias, que abordavam
diversos temas, o que deu margem para que realizássemos estudos focalizando
temáticas diversas (Cabreira, Pontes, Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2007a;
Cabreira, Pontes, Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2007b; Cabreira, Pontes,
Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2007c). Neste trabalho, abordaremos um tema
presente em trezes produções imaginativas gráfico-verbais, relativo à gravidez
na adolescência. Consideramos importante dedicar um estudo separado a este
achado, tanto em virtude do fato de surgirem de modo angustiado, que lhes
conferia realce quando comparados aos demais, como também porque incide
sobre fenômeno considerado importante no contexto da pesquisa epidemiológica
e da saúde publica, como afirmam Belo & Silva (2004) e Persona, Shimo &
Tarallo (2004).
Assim, apresentamos os treze desenhos-estórias que faziam referência explícita
à gravidez na adolescência, ao grupo de pesquisadores, afinadas à concepção de
que, em ciências humanas, a produção de conhecimento se dá em campo
intersubjetivo. Fazendo uso da associação livre e da atenção equiflutuante,
deixamo-nos impressionar pelo material clínico, cultivando uma atitude
psicanalítico-fenomenológica de desapego em relação às teorias, conhecimentos
e crenças prévias. A partir daí, foi possível captarmos os campos de sentido
(Aiello-Vaisberg, 1999), entendidos como as regras lógico-emocionais que
sustentam o imaginário.
Campos do imaginário
Foram encontrados quatro campos de sentido como fundamento afetivoemocional a partir dos quais pôde ser compreendido o conjunto de produções
encontradas: fatalidade, morte, transgressão e abandono. Como vemos, todos
apresentam matizes negativas, apontando para uma visão da gestação na
adolescência como essencialmente negativa e problemática.
102 As pesquisadoras que realizaram os encontros foram Jaqueline Caldamone Cabreira e Mariana
Leme da Silva Pontes.
344
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Campo “Fatalidade”
Pudemos captar um campo de sentido regido pela regra lógico-emocional de que
a gravidez seria uma conseqüência inevitável da vida sexual, de modo que,
mesmo tomando todas as devidas precauções, a relação sexual acarretaria
forçosamente a gestação. Para ilustrar, elegemos a seguinte história:
“Apesar de tantos recursos, de tantas assistências
e de alguns cuidados, Maria acabou engravidando do seu
namorado. Eles estavam juntos há apenas quatro meses.
Mesmo tomando todos os cuidados, o pior aconteceu...”
Campo “Morte”
Este campo de sentido refere-se à crença de que a gravidez na adolescência
corresponderia à morte da jovem. Assim, este campo associa-se às produções
imaginativas de que a irrupção da gestação levaria a jovem ao fim de sua vida,
que podemos entender, para além do sentido literal, como o “assassinato” de
suas aspirações, seu cotidiano e seu percurso existencial. Esta questão fica clara
através da seguinte história:
“Um certo dia, uma adolescente que se dizia fel, descobre que está
grávida com apenas 16 anos, e faz de sua vida um inferno, cai em depressão
e ainda por cima seus pais se separam. Ela acaba se matando e
acabando com duas coisas preciosas, duas vidas”.
Campo “Transgressão”
Este campo de sentido remete-se às produções gráficas que ora definem os
adolescentes que engravidam como transgressores, ora trazem os filhos de pais
jovens como futuros delinqüentes. De um jeito ou de outro, vê-se que os
adolescentes encontram-se mergulhados num campo cuja regra lógico-emocional
seria a de que a gravidez precoce associa-se à delinqüência.
Em relação aos pais serem vistos como transgressores, este imaginário pôde ser
observado através dos desenhos-estórias que retratavam a gravidez na
adolescência de maneira similar às pixações de muro, ao uso de álcool e
drogas... Entendemos, dessa maneira, que, no imaginário coletivo dos
estudantes, a gestação precoce configuraria uma violação similar aos atos
considerados legalmente transgressores. Já o imaginário de que os filhos de pais
adolescentes seriam futuros transgressores pode ser exemplificado através da
seguinte história:
Meu nome é Amanda tenho 16 anos, moro num barraco com dois filhos
e estou à espera de mais um que é de outro cara. O dos dois primeiros
está preso por homicídio... Sou muito infeliz. Creio que
um dos meus filhos irá para a Febem.
345
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Campo “Abandono”
Esse último campo de sentido refere-se à crença de que a jovem que engravida
deixa de contar com o afeito do parceiro sexual e de seus próprios pais. Assim,
este campo refere-se à regra lógico-emocional de que engravidar na
adolescência equivale a ser abandonada por uma das duas figuras paternas: ou a
da própria adolescente ou a do bebê que estaria sendo gestado.
Para ilustrar, podemos refletir a partir de uma produção gráfica, na qual são
imaginados dois adolescentes que se encontram numa festa, têm relação sexual
e, após estar grávida de seis meses, a jovem diz a um homem: “Espere, eu
estou grávida de seis meses”, que lhe responde: “Some da minha casa!”: Neste
material, além de ser imaginada uma adolescente gestante abandonada, na
última cena representada, a figura do homem é ambígua, no sentido de não ser
possível identificar se se trata do pai da jovem grávida ou, ainda, de seu
namorado. Independentemente se se trata de um ou de outro, observamos que,
de maneira geral, no imaginário coletivo dos jovens, a adolescente que engravida
está fadada a ficar sozinha, cuidando de seu bebê.
Reflexões clínico-teóricas
A partir dos campos de sentido captados, pudemos observar que, no imaginário
coletivo de jovens, a gestação precoce é carregada de imagens negativas.
Podemos refletir que estas produções imaginativas relacionem-se com a
percepção de que, de fato, um episódio como a gravidez pode tornar a tarefa de
adolescer ainda mais complexa, na medida em que, enquanto a jovem parte em
busca de reconhecimento do mundo, lançando suas ações para o espaço amplo
do mundo compartilhado, a maternidade recria um mundo menor, protegido, a
partir do qual um bebê pode começar a ser alguém (Granato & Aiello-Vaisberg,
2005). Desde esta perspectiva, entendemos que a imagem da morte, associada
à gravidez na adolescência, como observamos no campo “Morte”, simbolizaria,
para além da morte literal, o imaginário de que, ao tornar-se mãe, a jovem tem
a sua fase de adolescência “assassinada”.
Por outro lado, cabe indagarmos o quanto o discurso social acerca da gravidez na
adolescência, principalmente aquele emitido em programas de orientação sexual,
encontra-se intimamente relacionado a este imaginário de que a ocorrência de
uma gestação, na juventude, equivaleria à uma vida sem grandes realizações e
marcada por privações insuperáveis. Evidentemente, cabe pensar no quanto as
produções imaginativas de que a gravidez seria fruto inevitável da vida sexual,
tal como apontado no campo “Fatalidade”, estariam associadas às imagens
sociais acerca do início do exercício da sexualidade, que, como observamos, são
voltadas aos “perigos” inerentes à vida sexual, como a gestação não planejada e
a contaminação de doenças sexualmente transmissíveis.
Apesar de compreendermos que a veiculação destas imagens consiste numa
estratégia de combate à gestações na adolescência, vemos que a jovem que
acaba engravidando, seja de maneira não planejada, seja porque assim o quis,
acaba sendo estigmatizada socialmente, o que, evidentemente, configura um
346
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
fenômeno de exclusão social. Assim, partindo desta compreensão, encerramos
este estudo refletindo sobre a necessidade de revermos as estratégias que temos
usado, em termos de educação sexual, para minimizar os casos de gravidez na
adolescência, bem como a importância da Psicologia clínica voltar-se para os
casais jovens que acabam engravidando, tanto no sentido de auxiliá-los neste
processo complexo de adolescer e gestar, como, também, no de lhes
proporcionar um ambiente em que possam confiar em sua capacidade de serem
pais, a despeito do imaginário preconceituoso vigente de que serão incapazes de
cuidar de seus filhos, que por sua vez se tornarão delinquentes, como vimos no
campo “Transgressão”.
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348
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A metáfora da doença: um diálogo entre a criação
artística e as dimensões do adoecer humano
Tiago Sanches Nogueira
Resumo O presente estudo pretende articular os mecanismos inconscientes
referentes à criação artística e o processo de adoecimento humano. Destaca-se a
importância da linguagem da fantasia na expressão do sentido no sintoma e na
obra de arte, dando ênfase aos processos simbólicos subjacente a ambos.
Palavras-Chave: Psicanálise – arte – doença – sintoma – simbolismo – fantasia.
Abstract The present study it intends to articulate the referring unconscious
mechanisms to the artistic creation and the process of human illness. Importance
of the language of the fantasy in the expression of the direction in the symptom
and the work of art is distinguished it, giving emphasis to the symbolic processes
underlying to both.
Keywords: Psychoanalysis - art - illness - symptom - symbolism - fantasy.
Um corpo, uma arte
Sem sequer tentar, o homem parece tender à produção. A anatomia do desejo
demonstra uma capacidade enigmática de transformação do que lhe é estranho,
que segundo os estudos de Freud (“O Estranho”, 1919), se caracteriza
justamente por algo que era familiar e se torna súbita e inexplicavelmente
estrangeiro, estranho. Segundo ele, o estranho deriva seu terror não de alguma
fonte externa ou desconhecida, mas, pelo contrário, de algo estranhamente
familiar que supera quaisquer esforços do indivíduo para se separar dele. Algo
que percorre a beleza sublime de Eros, bem como ao horror estético e
emblemático de Thânatos.
Em sua indescritível condição paradoxal, o homem revela ao
diferentes texturas de suas experiências internas, das mais
emprestando sentido a seu corpo, possibilitando um vislumbrar
diferentes aspectos. Porém, há que se compreender o signo do
e legitimado nas entrelinhas das produções humanas.
mundo visível as
diversas formas,
da existência sob
desejo encoberto
Freud empreende uma busca incessante da significação central destas
produções. Em seu texto Conferências Introdutórias sobre Psicanálise
(1916[1915-16]) inicia sua conferência número cinco dizendo que um dia havia
sido descoberto que os sintomas patológicos de determinados pacientes
neuróticos tinham um sentido, fundamentando o método psicanalítico de
tratamento. A partir desta descoberta altera-se completamente a noção de
enfermidade e a concepção do doente. O pai da psicanálise conclui que toda a
enfermidade é intencional e que para curá-los é preciso convencê-los por meio
349
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
da análise de seu próprio propósito de enfermar (Freud, 1905). Ele também
refere que no decurso desse tratamento os pacientes, em vez de apresentarem
seus sintomas, apresentavam sonhos, surgindo a suspeita de que também os
sonhos teriam um sentido. Em sua perspectiva a experiência humana é
atravessada por conjunturas de inúmeras origens e formas, cujos efeitos são
constitutivos fazendo com que o fracasso do trabalho defensivo do recalque dê
origem a expressões simbólicas do conflito, como os sonhos, os lapsos e os
sintomas neuróticos, inclusive os que buscam expressão no corpo – veículo das
mais diversas possibilidades de manifestações simbólicas humanas. Dentre elas,
a arte ocupa um lugar especial, pois em geral produz o corte que vai reposicionar
os sentidos e as formas instituídas. Abre, portanto, um novo lugar de olhar,
sentir e de pensar.
Em Escritores Criativos e Devaneios (1908[1907]), Freud descreve com maestria
os processos psicológicos referentes ao ato de criação artística e evidencia que o
artista ao criar, funciona como uma criança que brinca. Uma vez que este brincar
é movido por uma fantasia, cujas motivações são os desejos insatisfeitos, o ato
de criar consiste em uma realização de um desejo, uma correção da realidade
insatisfatória. Desta forma, uma poderosa experiência no presente desperta no
artista a lembrança de uma experiência anterior (infância), da qual se origina
então um desejo que encontra realização na obra criativa. Nas palavras de
Freud, “a própria obra revela elementos da ocasião motivadora do presente e da
lembrança antiga” (1908[1907], p.156).
Arley Andriolo (2005), em seu texto O corpo do artista na experiência estética
contemporânea, utiliza-se da máxima merleau-pontyana “Emprestando seu
corpo ao mundo é que o pintor transforma o mundo em pintura” para designar o
caráter sine qua non do corpo frente a arte e a experiência estética. Andriolo
revela que toda a arte é corporal devido ao fato de que o artista encontra-se
situado corporalmente no mundo. Mas será possível subvertermos este conceito
aludindo a idéia de que o corpo pode se fazer arte? Tal concepção tangencia o
caráter idiomático residente em algo que, para o ser humano, sempre fora
incógnito e desconhecido: seu inconsciente.
Segundo Ávila (1999), a hipótese do inconsciente para Freud possui vital
importância, principalmente frente à sua intenção de esclarecer os atos psíquicos
que permanecem ocultos, mas que podem se manifestar indiretamente como
lacunas na consciência, ou como sonhos, parapraxias ou sintomas, levando-o a
estruturar um quadro teórico inicialmente concebido a partir de sua primeira
teoria das neuroses - idéia na qual a neurose seria provocada pelas ações
sexualmente perversas do pai sobre a filha (teoria da sedução [1893]) e que
posteriormente foi descartada em sua carta 69 à Fliess (1897).
No entanto, a passagem da teoria da sedução para a fantasia de sedução (teoria
segundo a qual os elementos relatados na construção do discurso de cada
paciente não fazem parte da realidade, entretanto a maneira como são relatadas
possui determinada importância para que sejam produzidos sintomas, mesmo
sendo uma experiência fantasiosa) nunca foi plenamente realizada, e Freud
continuou a buscar a certeza de um fato escondido a ser revelado, articulando
350
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
as intenções hermenêuticas da teoria psicanalítica, re-significando as acepções
referentes à questão dos sintomas psíquicos, atribuindo-lhes determinados
sentidos e possibilitando a consideração da função do psiquismo na vida humana
e suas relações com o funcionamento orgânico, influenciando autores a
discorrerem sobre o papel da dimensão psíquica sob as patologias.
O nascimento desta forma de pensar é inaugurado a partir da obra do médico
Georg Groddeck (1923) para quem as doenças orgânicas eram compreendidas e
tratadas pela psicanálise pois, segundo ele, a essência do humano é
psicossomática. No entanto, sua concepção de inconsciente, chamado por ele de
Isso, mantinha maior proximidade com o orgânico e uma dimensão construtiva
que atua em todas as dimensões do adoecer. Para ele, a busca de símbolos nas
dores e nos sintomas possibilitava uma leitura de sinais criativos de uma
linguagem carregada de finalidade, sentido e função expressiva. Embora tenha
apresentado muitas discordâncias em relação a Freud, Groddeck marcou
profundamente a teoria, principalmente no que diz respeito às relações entre o
funcionamento psíquico e o orgânico.
Um sofredor, um artista
Aproximar e articular a idéia da doença e da criação artística compreendendo seu
sentido à luz da teoria psicanalítica sempre fora alvo de minhas inquietações
durante meu percurso. Em discussões com colegas e mestres sobre minha
participação clínica tanto no Hospital Geral quanto em um ambulatório de
infectologia, bem como aos estudos e observações com meus pares, pude
observar que experiências físicas são interpretadas como relações objetais em
fantasia dando-lhes significado emocional. A prática mostrou-me que um
indivíduo com dor, por exemplo, pode sentir-se odiado, afetando seu
funcionamento físico, uma vez que essas fantasias se aproximam muito do
somático.
A cegueira de um paciente103 é plenamente compreendida ao descobrir eventos
fatídicos de sua vida que o levou a presenciar uma traição conjugal, fato negado
por ele durante muito tempo. A regressão a uma linguagem primitiva pré-verbal,
característica da conversão histérica fez com que fizesse uso de um processo
visceral (orgânico) para expressar tal afeto. Um ego incapaz de tolerar tal
angústia impede que seja efetuada uma simbolização eficaz, já que o simbolismo
juntamente com sua função de realidade, serve para expressar, conter e
canalizar a Fantasia Inconsciente.
Pude perceber também que além de promover a importante capacidade de
simbolizar, a chamada posição depressiva delimitada por Klein (1939), também
propicia outras importantes aquisições. A dor pelo luto na posição depressiva e
dos impulsos reparadores são também, segundo Hanna Segal (1964), a base
103 Paciente apresentando quadro de Diabetes Mellitus, que fora atendido por mim
durante minhas visitas à clínica médica do hospital.
351
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
para a criatividade e a sublimação. Deste modo, indaga-se sobre a possível
relação existente entre a formação de símbolos e da função simbólica presentes
tanto no processo de criação artística quanto no processo de adoecer, onde por
intermédio de alguns mecanismos, as palavras podem ser percebidas e sentidas
em ambos como o mesmo que o objeto. A autora denominou esses mecanismos
como equação simbólica e representação simbólica, diferenciando o uso
simbólico do homem para determinadas atividades que no âmbito do psiquismo
hipoteticamente se aproximam: tanto a criação artística, quanto o processo de
adoecimento humano, combinam uma enorme capacidade de uso simbólico do
material para exprimirem suas fantasias inconscientes com uma sisudez
extremamente apurada das características reais do material que utilizam.
Tomemos por um instante o conceito de equação simbólica. Nela o símbolosubstituto é sentido como sendo o objeto original diferente do que ocorre na
representação simbólica em que o símbolo é disponível para sublimação. Tenho
como hipótese que tais mecanismos subjazem a ambos processos: adoecer e
criar. Parafraseando Ávila: “Cada doença uma obra de arte. Cada sofredor um
artista. E a Psicanálise, guia-mestra da interpretação que arrebata, da
interpretação que cura, transforma (Ávila, 1999)”.
Linguagem e sentido
Assim como Foucault (1979) referiu em uma entrevista que é pelo estudo dos
mecanismos que penetram os corpos, nos gestos, nos comportamentos, que é
preciso construir a arqueologia das ciências humanas, o saber psicanalítico
permite a contemplação desta arqueologia, dando sentido à multiplicidade da
linguagem do sintoma, em especial ao que faz marca no corpo.
Jurandir Freire Costa (2001) refere que para o surgimento do sentido, a
linguagem é uma condição necessária. Para ele, a “causa” destes afetos pode ser
não-verbal, porém seu sentido é sempre verbal. Melanie Klein enfatizou essa
importância contida nas palavras em um artigo publicado em 1927, referindo que
a palavra é a ponte para a realidade que a criança evita enquanto apresenta suas
fantasias somente brincando, considerando um progresso quando a criança tem
de reconhecer a realidade dos objetos por meio de suas próprias palavras. Sua
descrição do funcionamento da linguagem da criança permite que ela formule o
que concebe como relação ente o funcionamento da fantasia e o das palavras.
Em sua obra, afirma que a linguagem do inconsciente é concreta e descritiva e
que a fantasia inconsciente é uma atividade primária nuclear, uma expressão
original tanto de impulsos como de defesas.
Jacques Lacan eleva a condição da linguagem e a coloca como forma de
estruturação do inconsciente. No entanto, em se tratando de arte, para Lacan
(1959-1960) ela caracteriza-se por um certo modo de organização em torno do
vazio. Vazio que no centro do vaso, a partir da função artística mais antiga – a do
ceramista – é exemplo do mistério da criação. A arte tem como combustível esse
vazio.
352
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
É absolutamente necessário abordar a importância deste vazio, uma vez que o
nada que nele é inerente, pulsa de forma incessante tal qual o papel em branco
pulsa para ser escrito, a madeira pulsa para ser esculpida, o silêncio pulsa para
ser tocado. A aproximação entre sintoma e criação parece se dar no instante em
que essa esse nada, podendo ser traduzido como a Coisa freudiana (Das Ding) é
revelada através de simbolismo, via sublimação. Nas palavras de Lacan, o objeto
artístico “é instaurado numa certa relação com a Coisa que é feita
simultaneamente para cingir, para presentificar e para ausentificar” (LACAN,
1959 – 1960 p.176).
Desde Freud, o conceito de simbolismo é utilizado livremente para explicar as
obras de arte. Entretanto, não há dúvida de que deva haver alguma diferença
fundamental entre o simbolismo que dá origem a sintomas ou o que é expresso
numa obra de arte, porém o próprio pai da psicanálise observa que a há algo da
fantasia inconsciente que subjaz a ambos. Para mim, o jogo entre a capacidade
de representar e equacionar simbolicamente um conflito, bem como a qualidade
da transformação do vazio em algo sublime, é o que diferenciará os mecanismos
simbólicos dos dois processos.
Um escritor-cientista
Buscar compreender e dialogar criação artística e as dimensões do adoecer,
buscando um ponto de intersecção entre os mecanismos psíquicos responsáveis
por tais produções humanas, afugenta a inexpressividade de referenciais teóricofilosóficos que se baseiam na abolição da subjetividade humana, dando
continuidade ao trabalho freudiano de ampliar as considerações sobre o trabalho
do artista comparando-a, tal qual ele fez em seu Estudo Autobiográfico (1925), à
fabricação do sintoma neurótico como do sonho, que teriam por função o
afastamento da realidade insatisfatória e a busca, concomitante, de amparo no
mundo da imaginação.
Neste sentido, também afugenta a deontologia gerenciada pelas próprias escolas
de formação cujos membros desconhecem ou renegam que sua disciplina não
cessa de operar o que Freud chamava de revolução copernicana, sendo
atualizada a cada experiência. Por isso, re-inventar o pensar analítico tomando
como ponto de partida a viabilidade do desejo de Freud (1919[1918]) de que a
Psicanálise pudesse colaborar em outros campos da cultura, disponibiliza a
inauguração de uma nova perspectiva. Sobre este aspecto epistemológico da
psicanálise, Rosenfeld (1999) refere que as idéias de Merleau-Ponty vêm
alimentar tais reflexões, demonstrando que por mais que ele pretendesse fazer
ciência, acabou fazendo outra coisa:
“Ela (teoria freudiana) estaria muito mais próxima do logos do mundo estético,
que rompe dicotomias clássicas (sujeito-objeto, verdade-ficção, corpo-alma,
interno-externo), do que da ciência. Os conceitos de pulsão, realidade psíquica e
après-coup, por exemplo, revelam a quebra de tais dicotomias. O trabalho com o
singular e com a subjetividade do investigador também distancia a psicanálise da
ciência. E mais: a própria psicanálise é criada a partir da experiência estética de
353
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Freud, presente em sua escrita, em sua pesquisa e em sua prática. A experiência
estética diferencia-se da atitude científica na medida em que é uma oscilação
entre atitude crítica e sentimental (Figurelli), em que o homem está confundido
com as coisas (Dufrenne). A escrita de Freud é vista como ato artístico, o que o
transforma num escritor-cientista” (Rosenfeld, 1999).
Parafraseando Lopes (2003), acredito que a genialidade de Freud estava em sua
liberdade de pensar. Sua capacidade de formular, abandonar ou reformular
hipóteses, ampliando os horizontes de sua teoria, instiga-nos a plagiá-lo, no que
diz respeito a essa liberdade, levando-nos à reflexão da vivência prática,
juntamente com os devidos estudos teóricos, possibilitando o vislumbre de novos
fenômenos específicos, anunciados nas entrelinhas da enfermidade humana,
distinguindo o horror frente ao sofrimento, da beleza estética da existência.
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355
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
O psicodiagnóstico interventivo psicanalítico
na transformação do ambiente adverso em
suficientemente bom: um estudo de caso
Profª Drª Valéria Barbieri
FFCLRP-USP
Resumo: O Psicodiagnóstico Interventivo é uma prática clínica caracterizada
pela congregação simultânea entre os processos de avaliação e intervenção. Ele
descende das Consultas Terapêuticas, sendo o Jogo dos Rabiscos substituído
pelas técnicas projetivas como meio de comunicação entre o psicólogo e o
paciente. Do mesmo modo que no procedimento winnicottiano, quando utilizado
com crianças, os benefícios terapêuticos do Psicodiagnóstico Interventivo
dependem da qualidade do ambiente familiar. Diante disso, esse trabalho visou
investigar se a realização do Psicodiagnóstico Interventivo na criança e nos pais
poderia transformar um ambiente inicialmente adverso em suficientemente bom,
para manter os benefícios que a criança obteve desse procedimento clínico. É
apresentado o caso de um menino de 8 anos de idade com tendência anti-sociale
sua mãe. Os instrumentos empregados foram a entrevista inicial com os pais, o
Procedimento de Desenhos-Estórias e duas entrevistas familiares, uma aplicada
no início do processo e a outra no final. Os resultados revelaram que os sintomas
do menino originavam-se de duas privações emocionais inter-relacionadas, uma
sofrida por ele mesmo e a outra pela mãe. A entrevista familiar final mostrou,
como efeito do Psicodiagnóstico Interventivo, que a mãe pode alcançar o estágio
das experiências transicionais e obter maior solidez egóica. A nova condição da
mãe aumentou a confiança do menino em sua capacidade para reparação e
permitiu-lhe um uso mais livre das pulsões. Portanto, este estudo de caso indicou
que o Psicodiagnóstico Interventivo pode ser considerado capaz de transformar a
qualidade do ambiente familiar.
Palavras-chave: Psicodiagnóstico interventivo; família; tendência anti-social.
Abstract Therapeutic Assessment capability of changing an adverse
environment into a good-enough one: a case study
Therapeutic
Assessment is a clinical practice characterized by combining diagnostic and
intervention process at the same time. It descends from Therapeutic
Consultations but, instead of the Squiggle Game, projective techniques are
employed as means of communication between psychologist and patient.
Similarly to winnicottian procedure, when Therapeutic Assessment is
accomplished with children, benefits depend upon their family environment
quality. Considering this circumstance, this work aimed to investigate if the
accomplishment of Therapeutic Assessment with both child and parents could
change a previously adverse environment into a good-enough one, in order to
keep the benefits that child has granted from this clinical practice. It is described
a case of an 8 year-old boy presenting anti-social tendency and his mother. The
techniques employed in the Therapeutic Assessment were the initial interview
356
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
with parents, Draw-Stories Procedure and two family interviews, one of them
conducted at the beginning of the process and the other at its ending. Results
revealed that the symptoms of the boy stemmed from two interconnected
emotional deprivation, one of them suffered by him, and the other by his mother.
The final family interview showed, as an effect of Therapeutic Assessment, that
the mother could achieve the transitional experiences stage and improve her ego
strength. This new condition of the mother increased boy’s confidence in his
capability of reparation and allowed him to use his pulsions in a freer way. Thus,
this case study indicated that Therapeutic Assessment can be considered able to
change the quality of the family environment.
Key-words: Therapeutic Assessment; family; anti-social tendency.
O Psicodiagnóstico Interventivo é um procedimento clínico que passou a ser mais
bem organizado e debatido na literatura a partir da década de 1990. Ele consiste
em efetuar intervenções como perguntas, assinalamentos, holding e
interpretações durante a realização de entrevistas e aplicação de testes
psicológicos, oferecendo ao paciente devoluções parciais ao longo do processo
diagnóstico e não somente ao seu final. Pode ser realizado de acordo com
diferentes modelos, sendo os mais conhecidos o Psicométrico (Finn & Tonsager,
1997) o Fenomenológico-Existencial (Fischer, 1979) e o Psicanalítico (Vaisberg,
2004).
Um dos precursores dessa prática clínica foi Winnicott (1948/1993 e 1965/1993),
que afirmava ser possível fazer um tratamento psicanalítico na primeira
entrevista de avaliação, pois nela surgem elementos que levariam meses ou anos
para emergir em um trabalho psicoterápico posterior, e que são produzidos pelo
paciente para serem interpretados.
A aproximação entre as situações de avaliação e intervenção também foi
proposta por Morgan e Murray (1935) e Bellak (1974), que exploraram as
possibilidade de utilização do TAT na psicoterapia, e Friedenthal (1976), que
propôs o emprego interventivo do TRO. No Brasil, estudos dessa natureza foram
desenvolvidos por Ancona-Lopez e cols. (1995), Barbieri (2002), Trinca (2003),
Tardivo (2006), entre outros
Dentre os estudos que se destinaram à população infantil, somente o nosso
(Barbieri,
2002)
se
preocupou
em
realizar,
juntamente
com
o
diagnóstico/intervenção nas crianças, também uma avaliação psicológica dos
pais, visando associar suas características aos resultados terapêuticos das
crianças. Os dados mostraram vínculos importantes entre a integridade de
determinadas funções egóicas dos pais e o prognóstico da criança,
proporcionando uma visão mais compreensiva e holística referente à etiologia e
tratamento da tendência anti-social infantil. Essa circunstância conduziu à
proposta de um estudo visando averiguar os benefícios terapêuticos trazidos à
criança e à sua família quando o Psicodiagnóstico Interventivo é aplicado a ela e
seus pais.
357
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Assim, é apresentado aqui o estudo de caso de um menino de 8 anos de idade,
de nível sócio-econômico baixo, a quem chamaremos de Samuel, submetido ao
Psicodiagnóstico Interventivo juntamente com seus pais, por apresentar
tendência anti-social (desobediência em casa e na escola, agressividade física e
mentiras). Os instrumentos utilizados consistiram na entrevista com os pais,
entrevista familiar e Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E). No caso desta
última técnica, serão apresentados somente as estórias, inquérito e título da
terceira unidade de produção (UP) da criança e das duas unidades realizadas pela
mãe.
História pessoal
A mãe de Samuel teve três casamentos, sendo que ele é o único filho do
segundo deles. A mãe separou-se do pai da criança logo após o nascimento
desta, por haver descoberto um relacionamento extraconjugal dele; a separação
ocasionou-lhe um período de depressão. Ela tem mais três filhos do primeiro
casamento, todos já casados.
Oito meses após o nascimento de Samuel, a mãe passou a viver com o atual
marido, sendo que a criança tem muito pouco contato com o pai biológico.
O aleitamento materno estendeu-se até os três anos de idade, quando o menino
deixou o seio voluntariamente, o que foi descrito pela mãe como um momento
doloroso para ela. A saúde física da criança é boa, mas houve alguns acidentes
em função de seu comportamento (fratura da clavícula, afundamento dos dentes
e destroncamento do dedo). Samuel brinca bastante e faz amigos com facilidade.
Primeira Entrevista Familiar Diagnóstica
O padrasto contou que, na semana anterior, havia sofrido um acidente de
trânsito e no dia seguinte a esse, teve ameaça de infarto. A mãe comentou,
ansiosa, que tudo havia ocorrido em apenas dois dias; falou também que havia
recebido mais reclamações da escola sobre o filho.
Samuel foi brincar com os patins de dedo. Os pais sorriram quando viram os
patins e a mãe contou que o filho havia lhe pedido um skate e ela respondeu “só
se for aqueles de dedo”, referindo-se aos perigos desse brinquedo.
Samuel deixou os patins e pegou o revólver. A mãe contou que ele já teve esse
brinquedo, mas depois o deixou com um amigo e ele acabou se perdendo,
“graças a Deus” (sic). Apontei que ela associava o revolver à agressividade, e
isso a preocupava muito.
Samuel pegou o jogo de damas e convidou o padrasto para jogar. O jogo
transcorreu sendo as regras ora respeitadas, ora não. Apontei essa instabilidade,
mas eles nada disseram. Mais ao final do jogo, Samuel tentou mover uma de
suas damas em direção não permitida, mas o padrasto não aceitou. O jogo
terminou com a vitória do menino e eles iniciaram uma partida de dominós,
358
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
sendo que Samuel tentou trapacear por duas vezes, mas o padrasto não
permitiu. Mesmo assim, o menino venceu a partida, e eu comentei que aquele
jogo ele ganhara de fato, ao passo que nas damas sua vitória havia sido
suspeita. Os pais sorriram ao meu comentário.
A mãe contou que uma de suas filhas batia muito em seus netos e dizia que
Samuel possuía uma liberdade excessiva, por isso tinha problemas. Acrescentou
que não achava certo bater no filho, ao que o padrasto concordou. Comentei a
associação que faziam entre impor limites e agressão e falei que essas coisas
eram diferentes; assim, eles poderiam pensar em uma maneira de impor regras
ao filho mais em acordo com o seu jeito de ser.
Samuel foi até a lousa e fez um desenho geométrico. A mãe olhou sua produção
e disse que parecia um pato, mas achou estranho o fato de o pescoço dele estar
virado para trás. Foi até o filho e resolveu ensiná-lo a fazer um pato a partir do
número 2. Contudo, o desenho dela ficou excessivamente estreito e ela
comentou que o seu pato estava muito magro. A sessão foi encerrada.
Interpretação
As poucas brincadeiras conjuntas com o filho revelaram prejuízos na capacidade
para a transicionalidade dos pais.
A mãe demonstrou angústia sobre a integridade física do marido e do filho,
revelando seu receio de que as próprias pulsões e as do menino acometam-lhes
de modo incontrolavelmente destrutivo. Assim, há evidências de pouca solidez do
bom objeto interno, que não inspira confiança. Os processos secundários são
pouco desenvolvidos, levando-a, em alguns momentos, a simbolizações quase
diretas.
O padrasto permaneceu inibido e pouco ajudou a criança no processo de
integração das pulsões no self, não oferecendo um modelo de superego realista
em suas características protetoras e proibitivas. Tanto ele como a mãe
pareceram tolerar pouco a frustração, o que os impelia a conceder uma liberdade
excessiva ao filho, mas que esbarrava na angústia dos efeitos das pulsões sobre
ele próprio.
O comportamento anti-social de Samuel parece fundado nas dificuldades dos pais
em estabelecer limites, oriundas, por parte da mãe, do próprio narcisismo, e, por
parte do padrasto, no uso excessivo da repressão pulsional. Com isso, as normas
eram colocadas para a criança de forma inconsistente e pouco realista, deixandoa insegura na construção do próprio superego.
Procedimento de Desenhos-Estórias
SAMUEL
3ª unidade de produção.
359
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Estória
Era uma vez um carro que todo dia de domingo chamava um monte de gente. Aí
foi um dia (...) que eles falaram que o carro ia chamar ‘nóis’. Aí eles fez um
colante grandão e colaram no carro e aí todo mundo saíram (...). Aí foi um dia
que o carro começou a pegar falha. Aí é... aí eles tinham que buscar gasolina e
era bem longe, não tinham nenhum carro para ir buscar. Aí começou a anoitecer,
aí o carro dormiu na rua. Aí ninguém pode sair para divertir. Aí o moço saiu na
rua de manhã (...) tava vindo com a gasolina na mão, aí eles falam:
_Você pode vender essa gasolina para mim?
_ Sim (...)
E aí eles passaram a noite divertindo e correndo com o carro.
Aí foi um dia que eles bateram com o carro porque ‘tava’ muito bêbados. E aí não
tinha carro para comprar e nunca mais saíram para a rua.
Título: O carro ‘nóis’.
Interpretação:
A figura do carro revela o prazer na realização de uma atividade conjunta com
um objeto importante. A temática gira em torno da pulsão e da culpa, mas vivida
no contexto de uma dupla privação. O carro, representação da mãe, que acolhe
muitos filhos e proporciona bem-estar, sofre uma privação, resultando num
período de abandono, que ocasiona privação também aos filhos. A reparação da
privação é feita por um agente externo, mas a recuperação é seguida pela avidez
do menino (abuso da bebida), que compromete a integridade do objeto e o
destrói de maneira irreparável.
MÃE
1ª UP
Estória
Eu fiquei 13, 14 anos esperando uma casa da COHAB. No dia do sorteio, tinha
não sei quantas mil pessoas e eu fui sorteada, eu consegui. Só que no dia, eu
morava sozinha. A moça pediu os documentos do companheiro. Aí (...) eu já
estava com o V. (...)
Aí, quando a gente chegou lá para legalizar os papéis (...) a moça (...) viu que o
V. tinha um terreno e cancelou. (...) Comecei a chorar lá dentro. Falei com o
(vereador), para ver se podia fazer alguma coisa por mim, mas ele disse que não
podia fazer nada. (...)
360
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Título:
A estória do sonho de uma casa.
Interpretação:
A estória revela um momento na vida da paciente em que o ambiente foi ao
encontro da sua criatividade, transformando o sonho em realidade (ilusão): a
casa foi dada à paciente, representando a mãe que ela havia criado. Contudo,
uma privação se impôs, e a perda do bom objeto promoveu um sentimento de
ruptura com o ambiente. Como resultado, houve a perda de confiança na
realidade, levando a um vínculo ambivalente com o meio (mãe) que promete e
decepciona.
2ª UP
Estória
Na fazenda, sabe aquelas Coroas de Cristo? Eu vi um cordão bonito... eu fui
pegar, era uma cobra. (...)
Inquérito
Nesse momento, a mãe contou que, em sua infância, viveu dos sete aos doze
anos com outra família porque sua mãe não tinha condições financeiras para
sustentá-la. Essa família tentou adotá-la e ela, com medo, pediu para sua mãe ir
buscá-la de volta, caso contrário iria fugir.
Título: Mais alimentos, serve? (...). Mais alimento ‘pras criança”.
(Mostra-me a unha machucada).
Interpretação:
Há nova referência à busca de algo bonito e sublime que se demonstra
enganoso, reiterando a privação oriunda da experiência real de ser afastada de
sua família. Essa situação gerou insegurança e desconfiança para com a própria
mãe, conduzindo à introjeção inconsistente do bom objeto e pouca solidez
egóica, levando à escassa continência das pulsões e da ansiedade.
Em termos da fantasia de cura, a necessidade de mais experiências de ilusão e
de gratificação surge no título, uma vez que a ausência dessa condição conduz
ao sofrimento (unha machucada).
Em seqüência à aplicação do Procedimento de Desenhos-Estórias foram
agendadas as sessões individuais de devolução dos resultados para Samuel e
para a mãe. O menino compareceu, mas a mãe não. Mesmo assim, a entrevista
familiar diagnóstica final revelou os efeitos que o trabalho provocou sobre ela.
Entrevista Familiar Diagnóstica Final
361
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Samuel pegou o tabuleiro de damas e convidou os pais para jogar; a mãe
aceitou. A partida transcorreu em clima de alegria e descontração, que permeou
toda a sessão. Como a mãe se confundia um pouco nas regras do jogo, o menino
a ajudou, mesmo quando isso lhe custou a perda de suas peças. Comentei que
ela precisava de Samuel para lhe ensinar a brincar.
Ela contou que havia ganho uma boneca de uma conhecida sua. Disse que
sempre quis ter uma boneca e que agora ia brincar com ela. Estava cuidando da
boneca e de sua cachorrinha.
Eu lhe disse que a capacidade de brincar, que ela estava recuperando, ia ajudá-la
a se manter mais próxima do filho. Com a ajuda de Samuel, a partida terminou
com a vitória da mãe. Ela contou que o filho estava mais caseiro e que seu
boletim estava bom, sem nenhuma nota vermelha.
Samuel foi desenhar; a mãe pegou o “Pequeno Construtor” e começou a montar
uma casa. Disse que teria dificuldades nessa atividade e o marido sugeriu que ela
copiasse o modelo estampado na caixa. Ela deu a entender que faria isso, mas
ignorou o modelo e construiu uma casa bem diferente, maior e mais rica que ele.
Como ela e Samuel dividiam uma mesa pequena e ele estava pintando seu
desenho, às vezes a mesa se movia; a mãe lhe disse para tomar cuidado para
não desmanchar a casa. A mãe terminou de fazer a casa, desmanchou-a e
começou a construir outra.
Com a massa de modelar, Samuel começou a fazer uma trave de futebol e
depois todo o campo. Quando ele terminou a construção, dramatizou, por duas
vezes, que a bola bateu na trave e entrou no gol. Depois, pegou uma das traves
e fez uma circunferência, emitindo barulho de carros. Perguntei-lhe se está
fazendo uma pista de fórmula 1; ele fez uma expressão alegre e disse “Pode
ser”. Juntou várias tonalidades de cores de modo a obter efeitos marmorizados.
Enquanto isso a mãe terminou a segunda casa e o padrasto comentou que não
estava igual ao modelo, mas ela não se importou. Comentei que ela quis fazer
uma casa própria, pessoal. Nisso, Samuel, sem querer, esbarrou na casa e a
desmanchou. Ele e a mãe permaneceram tranqüilos quanto a isso e ele, rindo,
devolveu a ela os blocos que caíram. Ela construiu uma terceira casa. Samuel
terminou de pintar a pista e fez dois postes com fios ligando um ao outro.
Perguntei se sabia para que serviam aqueles fios e ele respondeu que eram de
telefone.
Comentei que eles serviam para a comunicação. A mãe pegou uma folha e
escreveu “Samuel eu amo você”, enfeitando com lápis de cor as letras das
palavras e, mostrando isso ao filho; disse que ele poderia fazer isso quando fosse
escrever algo para alguém de quem gostasse muito. Contou, novamente, que
tem uma cachorrinha que adora agradar e pegar no colo. Repito que brincando
ela está mais próxima do filho e. encerrei a sessão.
Interpretação
362
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Houve mudanças importantes com relação à primeira entrevista na psicodinâmica
da mãe e do filho.
Samuel permaneceu avaliando até que ponto sua expressão pulsional poderia
ferir a mãe e mostrou-se capaz de ajudá-la e protegê-la. Essas observações
indicaram a possibilidade de um controle melhor e mais realista das próprias
pulsões, advindo de duas percepções: a de que elas são menos perigosas do que
ele imaginava (a mesa balança, mas não destrói a casa-mãe) e a de que, quando
causam esse tipo de estrago, o objeto não é destruído por completo e dispõe de
capacidade para se recompor. Assim, houve maior possibilidade de incorporar as
pulsões no self e matizá-las (mistura de cores da massa de modelar). Com isso,
ocorreu uma liberação das defesas mais rígidas e aumento da capacidade
simbólica (melhora na escola), que lhe permitiu maior fluidez da expressão
pulsional.
Já a mãe deu um passo importante no seu desenvolvimento e alcançou a área da
transicionalidade. Alguma insegurança e dúvida quanto à própria integridade e
capacidade de desempenhar a função materna permaneceram, mas foram logo
dissipadas pela realidade. Assim, ela construiu três casas diferentes e criativas, a
despeito de o marido seduzi-la com uma opção falso self. A impulsividade do
filho, embora ainda a ameaçasse um pouco, foi sentida como possível de ser
absorvida por ela sem sentir-se irremediavelmente destruída.
Nesse sentido, a melhora de Samuel parece dever-se a uma mudança da atitude
e da percepção da mãe com relação a si mesma, lançando os alicerces para a
construção de um superego mais realista por parte dele.
Discussão e conclusões
O Psicodiagnóstico Interventivo realizado permitiu aproveitar as oportunidades de
estabelecer um contato profundo com os familiares.
O Procedimento de Desenhos-Estórias possibilitou a compreensão dos conflitos
nodais da personalidade da mãe e da criança, não tendo se constituído como um
instrumento invasivo ou desrespeitoso ao ritmo individual deles. As produções
dos integrantes foram analisadas e discutidas em seu caráter mais pessoal (e
não-normativo), o que lhes permitiu sentirem-se compreendidos por outra
pessoa, perceberem a legitimidade de sua existência no mundo e recuperarem o
sentido de continuidade com ele.
Houve a chance por parte da mãe e de Samuel, de retomarem seu
desenvolvimento, em função de terem sido colocados em movimento os
processos inconscientes em direção à cura. Nesses termos, Winnicott
(1971/1984) também sustenta que um dos efeitos da consulta terapêutica, por
ocasionar uma liberação das defesas, é habilitar a criança a utilizar a ajuda
disponível no ambiente.
363
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A modificação que o Psicodiagnóstico Interventivo provocou na mãe aponta para
a necessidade de reconsideração da pauta utilizada para a exclusão de
candidatos à Psicoterapia Breve, de presença de organização borderline de
personalidade (Trad, 1993). Assim sendo, há indícios de que a efetividade e
profundidade de um método terapêutico não dependeriam da sua duração.
Os resultados alcançados, no caso de Samuel, subsidiam as conclusões da
literatura sobre a obtenção de benefícios terapêuticos por meio do
Psicodiagnóstico Interventivo, acrescentando a possibilidade de alcançá-los
mesmo com pacientes mais graves e com prejuízos não negligenciáveis na
capacidade simbólica. Nesses termos, esse procedimento, ao permitir a
transformação de um ambiente inicialmente adverso em suficientemente bom,
deixa-nos bastante otimistas quanto às chances de manutenção dos ganhos
obtidos pela criança ao longo do processo.
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364
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
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Cunha, J.M.X. Rio de Janeiro, Imago, 1984.
365
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
“Eu quero um filho, eu não quero um problema”104–
sofrimento e possibilidades de re(criação)
de sentido em crianças adotivas
Yara Ishara
Vara da Infância e Juventude da Comarca de Osasco
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Faz parte da cultura de adoção no Brasil a preferência por crianças pequenas,
especialmente de zero a dois anos. Segundo dados de pesquisa realizada pelo
CeCIF105 (2002) nesta faixa etária existem 36 pretendentes à adoção para cada
criança. Dos dois aos cinco anos, a proporção cai consideravelmente: temos 5
pretendentes por criança. A partir dos cinco anos a relação entre pretendentes
e crianças se inverte. Não temos mais pais aguardando a vinda de uma criança,
mas crianças aguardando a possibilidade de serem inseridas numa família, sendo
que a cada ano que passa a possibilidade de serem adotadas diminui
vertiginosamente. Na faixa dos cinco aos sete anos existem 2 crianças para cada
pretendente à adoção. Dos sete aos dez anos, 13 crianças por pretendente. A
partir dos dez anos, 66 crianças aguardando para cada pretende - uma será
inserida em família e 65 possivelmente permanecerão abrigadas até os 18 anos.
É angustiante, para o profissional que trabalha na Vara da Infância e Juventude,
o enfrentamento dessa realidade. Acompanhamos cotidianamente a ansiedade e
sofrimento de crianças e adolescentes que, na impossibilidade de retornarem
para seus familiares, permanecem abrigadas, por falta de pessoas interessadas
em sua adoção. Mesmo tendo conhecimento de que são poucas as chances de
serem inseridas numa nova família, muitas delas continuam expressando sua
expectativa – mais propriamente, sua necessidade - de reencontrarem a
experiência de se sentirem filhos, viverem e serem cuidadas dentro de uma
família. Frases como: “tia, você me arruma um pai e uma mãe?” são difíceis de
ser ouvidas e respondidas. Ou, o relato de uma menina, de 12 anos, órfã e
“devolvida” pelos familiares ao abrigo: “tia, você sabia que eu choro todos os
dias?......porque no dia das mães eu não tenho ninguém para quem entregar a
minha cartinha”. Situações como estas têm nos evidenciado que a falta de um
destinatário para suas experiências afetivas, a falta de alguém que acolha suas
comunicações e expressões – presentes, por exemplo, na idéia da carta - parece
ser tão sofrida como a falta de experiência de serem cuidadas e investidas
afetivamente.
No presente artigo, buscamos refletir sobre possíveis fatores associados à cultura
de adoção em nosso país, que evidencia clara preferência pela adoção de
104 Frase dita por uma pretendente à adoção ao Juiz da Vara da Infância e Juventude
como resposta a possibilidade de adoção de crianças acima dos cinco anos.
105 Centro de capacitação e incentivo à formação de profissionais voluntários que
desenvolvem trabalho de apoio à convivência familiar.
366
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
crianças pequenas106. Levantamos a hipótese de que entre diversos aspectos,
essa opção encontra-se associada à idéia, presente no imaginário coletivo, de
que uma criança numa faixa etária maior (que possivelmente teria passado por
um período mais longo de privações e sofrimentos) teria grande possibilidade de
ser uma criança problemática - “Eu quero um filho, eu não quero um problema”
foi a resposta dada por uma pretendente à adoção ao Juiz da Vara da Infância e
Juventude, o qual observava a existência de crianças disponíveis para adoção, na
faixa etária acima dos cinco anos.
Tomando por base tal situação questionamos em que medida o uso de algumas
teorias psicológicas poderia embasar ou corroborar preconceitos em relação aos
adotados. Realizamos ainda algumas breves reflexões quanto às possibilidades
de reconstrução e retomada em seu desenvolvimento de crianças adotadas, que
passaram por sofrimentos significativos, entre eles a perda e ruptura nos
vínculos afetivos que constituíram. Utilizaremos prioritariamente, como pano de
fundo de reflexão, nossa experiência clínica no judiciário. Como principal
referencial teórico, o pensamento de D.W.Winnicott.
O contexto de atuação do judiciário
Diversas são as situações de crianças e adolescentes que passam por
atendimento - e por nossas vidas - na Vara da Infância e Juventude. Muitas delas
vivenciam sofrimentos importantes advindos de experiências de negligência,
abandono, abuso sexual, maus tratos, tendo ainda, algumas vezes, que se
deparar com situações de difícil enfrentamento, como a separação ou perda das
figuras que constituíam anteriormente sua principal referência afetiva.
Paradoxalmente isso ocorre como forma de “proteção”. Em função da gravidade,
cronicidade ou risco de morte de algumas situações, medidas como o
abrigamento (que implica em separação) ou a destituição do poder familiar107
(que implica na perda e ruptura de relações) são medidas legais utilizadas, sendo
previstas no Estatuto da Criança e Adolescente como “medidas de proteção”.108
Vale esclarecer que um primeiro investimento do profissional que atua na Vara
sempre se dá no sentido de possibilitar a permanência da criança ou adolescente
em sua família de origem. Ressaltamos, porém, que em geral, os casos
envolvendo maus-tratos de crianças e adolescentes, já passaram por
atendimento e intervenções de várias outras instâncias, como Conselho Tutelar,
Secretarias de Saúde, Promoção Social ou CRAS (Centro de Referência de
106 Não é nossa intenção questionar o desejo ou a necessidade de pessoas que optam
pela adoção de bebês ou crianças menores.
107 Destituição do poder familiar – trata-se de uma medida legal na qual o(s) genitor(es)
perde todos os direitos e poderes sobre o(s) filho(s). Atualmente na Vara da Infância e
Juventude de Osasco, onde atuamos, temos cerca de 117 crianças abrigadas e 66
.adolescentes. Em 60 casos, os genitores foram ou estão sendo objeto de ação de
destituição do poder familiar 21 crianças e 2 adolescentes estão em processo de
colocação em família adotiva.
108 Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069 de 13/07/90.
367
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Assistência Social), antes de chegarem ao âmbito do judiciário. Nesses casos, o
Judiciário acaba funcionando de maneira análoga a uma “UTI”, tornando difícil,
dada a gravidade dos casos, nos furtamos de realizar intervenções que, por
vezes, acabam sendo invasivas. Resta muitas vezes, aos profissionais que atuam
na Vara, psicólogos, juízes e assistentes sociais e promotores, optar pela
intervenção e medida legal tida como “menos pior” à criança ou adolescente:
“Infelizmente, algumas vezes, não posso escolher entre uma medida boa e uma
ruim, mas entre uma ruim e uma pior” 109
Várias crianças e adolescentes - ainda que tenha sido necessário permanecerem
abrigadas temporariamente - retornam ao convívio dos pais, familiares, ou
outros guardiões. Em alguns casos, porém, constatamos a impossibilidade ou
inviabilidade dos pais, ou familiares, reassumirem, de fato, os cuidados dessas
crianças, sendo inúmeros e complexos os motivos pelos quais não conseguem
fazê-lo.110 Em virtude da gravidade dessas situações, alguns casos têm como
desfecho a perda ou destituição do poder familiar.Tal medida visa, sempre que
possível à colocação da criança ou adolescente em família adotiva, a fim de evitar
o prolongamento da condição de abrigamento, com os prejuízos amplamente
conhecidos de um processo de institucionalização. Visa, em última instância,
assegurar-lhes o direito fundamental à convivência familiar Se adotadas, estas
crianças e adolescentes terão a tarefa de reconstruir suas vidas e seus vínculos
numa nova família.
Muitos são os estudos na literatura apontando para as repercussões prejudiciais
ou traumáticas para as crianças decorrentes da separação ou ruptura nos
vínculos afetivos que constituíram. Dentre a literatura especializada vale citar os
estudos realizados por Bowlby (1979/1982).
Em nossa atuação, sempre que possível, as relações parentais são preservadas.
Porém, como exposto acima, faz parte da realidade do profissional que atua na
Vara da Infância e Juventude se deparar com situações em que se faz necessária
a interrupção dos mesmos. Temos observado que, para o psicólogo que trabalha
no âmbito do judiciário, tem sido bastante custoso, do ponto de vista emocional,
o posicionamento e a sugestão de medidas que envolvam a interrupção dos
vínculos afetivos, desde separações temporárias, como no caso de abrigamentos,
até perdas e rupturas desses vínculos, como no caso das destituições do poder
familiar. Levantamos a hipótese de que a idéia de que estas medidas poderiam
impor prejuízos traumáticos irreversíveis a essas crianças, acaba paralisando o
profissional na condução e direcionamento dos casos.111 Consideramos que este
receio esteja assentado, em parte, em idéias presentes em algumas teorias
109 Dr. Samuel Karasin – Juiz da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Osasco.
110 Está para além dos objetivos desse texto expor ou retomar essas questões.
Ressaltamos, no entanto, a necessidade de melhor investimento, gerenciamento e
funcionamento de recursos públicos e sociais que auxiliem as famílias na superação de
suas dificuldades.
111 Vale notar que faz parte das atribuições do psicólogo judiciário o posicionamento
sobre qual medida legal seria mais favorável à criança.
368
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
psicológicas, ou mais propriamente numa leitura determinista e fatalista destas
teorias.
Como ficaria o prognóstico de crianças e adolescentes que chegam a Vara com
uma história marcada por significativas privações e falhas ambientais? Quais as
repercussões e consequências do ponto de vista emocional da vivência e
imposição de novas rupturas, como as inerentes às medidas de abrigamento e
destituição? Quais as possibilidades dessas crianças e adolescentes se
recuperarem dos traumas vivenciados e retomarem seu desenvolvimento
emocional quando colocadas em uma nova família? Que condições favorecem ou
dificultam a retomada de seu desenvolvimento?
A teoria winnicottiana como sustentação possível à atuação do psicólogo
no âmbito do judiciário
Em nossa atuação vimos utilizando como principal referencia teórica o
pensamento e trabalho de D.W.Winnicott. Consideramos que as idéias, e mais
propriamente as concepções sobre o homem deste autor, têm nos fornecido
importante sustentação teórica e técnica, dando suporte as nossas reflexões e
intervenções.
A opção pelo uso da teoria winnicottiana em nosso trabalho, no âmbito do
judiciário, encontra-se em parte associada ao valor dado por Winnicott às
experiências e observações diárias de atendimento112- e uma certa aversão a
grandes abstrações que se distanciassem da realidade. Aversão à submissão a
teorias, ainda que brilhantes, distanciadas da experiência e do viver real.113
Winnicott atuou durante anos como pediatra. Apesar de formar-se
posteriormente em psicanálise (British Psychoanalytic Society) e de atuar em
análises longas e individuais em clínica particular, nunca se distanciou da
experiência e da enorme demanda de atendimento ambulatorial. Há dados
apontando que tenha realizado cerca de 60 mil atendimentos entre bebês,
crianças e familiares no Paddington Green Children’s Hospital (NEWMAN,
1995/2003:178).
Masud Khan (WINNIOCTT, 1958/2000:11 a 12) descreve o autor como alguém
que privilegia fatos. “Para ele os fatos eram a realidade, e as teorias – o titubear
humano buscando apreender os fatos. Ele era militantemente avesso aos
dogmas. Winnicott era não-conformista desde o berço; nada era estabelecido ou
absoluto. Cada qual deveria buscar e definir a sua própria verdade. O que havia
de estabelecido era o espectro da experiência”.
112 Winnicott atuou durante anos como pediatra. Apesar de formar-se posteriormente
em psicanálise (British Psychoanalytic Society), atuando clinicamente em análises longas,
nunca se distanciou da experiência e da enorme demanda de atendimento ambulatorial.
Há dados apontando que tenha realizado cerca de 60 mil atendimentos entre bebês,
crianças e familiares no Paddington Green Children’s Hospital.
113 VAISBERG realiza uma aproximação teórica deste autor com as idéias de POLITZER,
que “ incitam o abandono das teorizações abstratas e distanciadas do viver, em prol de
um retorno à vida humana tal como se dá concretamente” - cf. VAISBERG (2004)
369
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Assim como outros autores, Winnicott afirma que as bases da saúde mental se
constituem nos primeiros anos de vida. Atenta ainda para os efeitos prejudiciais
de experiências invasivas ao self. Boa parte do trabalho deste autor foi dedicado
à compreensão e atendimento de graves patologias, particularmente os estados
psicóticos, aproximando-se de sofrimentos agudos, como os que denomina
“agonias impensáveis”. É interessante notar, no entanto que, mesmo estando em
contato direto com graves sofrimentos e patologias, Winnicott parece manter um
certo “otimismo” frente ao ser humano - uma esperança quanto a sua
possibilidade de recuperar-se e recriar-se, a partir do encontro com um
“ambiente favorecedor” - entendido como um encontro humano.
Winnicott descreve a tendência ao desenvolvimento como sendo inata. “No
universo psicológico, há uma tendência ao desenvolvimento que é inata”
(WINNICOTT, 1993/2001:5). Afirma: “O potencial herdado inclui a tendência no
sentido do crescimento e do desenvolvimento”. (WINNICOTT, 1983/1990:43).
Concomitantemente a “aposta na importância do meio-ambiente humano como
condição favorecedora do desenvolvimento emocional” (2005:118), o autor
ressalta, portanto, a presença de um potencial criativo no indivíduo, uma força
ou impulso para a vida. “O desenvolvimento emocional ocorre na criança se se
provêem condições suficientemente boas, vindo o impulso para o
desenvolvimento de dentro da própria criança” (WINNICOTT, 1983/1990:63).
Neste sentido, um “ambiente suficientemente bom” seria o que oferece uma
“provisão para concretizar o impulso criativo da criança” (WINNICOTT,
1983/1990:68).
Ao mesmo tempo em que aponta para os prejuízos emocionais advindos de
falhas ambientais, onde a criança não se viu atendida em suas necessidades,
Winnicott paradoxalmente, parece assegurar ao indivíduo um espaço de
transformação de sua história.
Consideramos que mais do que diante de idéias estamos diante de um
posicionamento ético frente ao ser humano, do qual partilhamos. Nossa opção
pelo uso da teoria winnicottiana, neste sentido, é comprometida e
compromissada com pontos de identificação e afinidade com as idéias desse
autor, mas, sobretudo, com o que entendemos ser um posicionamento ético de
Winnicott frente à vida.
Apontando para conceitos como força / potencial criativo, esperança, tendência
ao desenvolvimento Winnicott, no nosso entender, tira o indivíduo da condição de
“condenado” a uma condição patológica decorrente de falhas ambientais,
subvertendo e assegurando-lhe um espaço de co-criação de sua vida e de sua
história. Vale ressaltar que tal posição guarda afinidades com a concepção
freudiana das séries complementares (Freud, 1916) e com as formulações
epistemológicas de Bleger.(1963- Psicologia de la Conduta).
Concepções presentes no imaginário social da adoção
AEILLO-VAISBERG e FERREIRA (2005) têm apontado para o risco do uso de
teorias psicanalíticas ou, mais propriamente, para o uso de uma leitura superficial
370
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
e determinista destas teorias, para embasar e reforçar preconceitos em relação à
criança adotada. “Se no meio psicanalítico residem determinismos sobre os
adotados, é natural que a sociedade assimile tais concepções”. (AIELLOVAISBERG, FERREIRA, 2005:123).
As autoras afirmam: “Quando consideramos a criança adotiva a partir de uma
perspectiva que confere importância às primeiras relações com o cuidado
materno, somos levados a pensar na qualidade deste primeiro vínculo, no quanto
pôde ou não favorecer os processos iniciais do viver, a integração, a
personalização e o estabelecimento de relações objetais (WINNICOTT,
1945/2000). Entretanto, não p odemos, a nosso ver, deixar de perceber que a
idéia, segundo a qual as primeiras relações são fundamentais, no
estabelecimento das bases do amadurecimento emocional, pode cair num
determinismo objetivante que pode ser manipulado no sentido da culpabilização
das mães e da discriminação daquelas crianças que, pouco afortunadamente,
deixaram de contar com um ambiente suficientemente bom nos primórdios da
vida. Assim parece-nos importante examinar este tema desde uma perspectiva
clínica e ética”. (AIELLO-VAISBERG; FERREIRA, 2005:19).
Tendo em vista estas considerações, as autoras ressaltam a necessidade de se
levar em conta a singularidade de cada experiência, evitando generalizações e
abstrações distanciadas do viver e da experiência real do indivíduo. “Não
podemos esquecer que existem diversas histórias de crianças adotivas e
diferentes formas de privação, abandono e separações. Toda história é singular e
circunstanciada, cada criança vive a experiência de um modo pessoal.
Generalizar uma condição subjetiva é abstrair o problema, formular uma teoria
eventualmente distanciada do acontecer vital e não considerar que toda conduta
é humana e singular. É possível citarmos Politzer (1928/1998) e Bleger
(1963/1984) como aqueles que mais combateram um destino destes para
psicanálise: estruturalista, determinista e distante do drama em primeira pessoa”
(2005:123).
O percurso da vida nos afeta. Somos tocados e transformados pelos
acontecimentos, vivências e singularidade de nossa história. Tocados
particularmente pelas pessoas que se constituem como referências afetivas
significativas nesse percurso. Marcas existenciais são inevitáveis – trata-se de
uma condição humana, presente em crianças adotadas ou não. “ (...) todos os
seres humanos são afetados por seu percurso vital, pelos acontecimentos que
sucessivamente constituem a linha de sua biografia”.(2005: 122). Não obstante,
considerar que a criança adotada, por ter tido um início de vida difícil, estaria
condenada a perpetuar seus traumas, sendo incapaz de reconstruir e
encontrar/criar novos sentidos para suas vidas, é um posicionamento ético, no
nosso entender, preocupante, podendo funcionar como uma segunda situação de
violência às mesmas.
Em seu texto “Psicanálise do self e sofrimento humano”, Safra (2003) refere-se a
várias formas de sofrimento, descrevendo de forma sensível e peculiar àquele
371
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
advindo de situações de sucessivas rupturas.114 “Aqui ocorre um padecimento
que nem mesmo pode ser sofrido. O indivíduo encontra em sua história rupturas
que o impedem de se constituir. São rupturas que acontecem em suas
necessidades mais fundamentais, tais como a necessidade do outro, de
comunicação, do olhar do outro, do encontro de um lugar no mundo, da
realização de uma contribuição para o mundo. Essas são necessidades humanas
e, por vezes, o indivíduo não pôde encontrar a possibilidade de constituir
qualquer uma delas, o que provoca uma fenda, uma fratura no sentido de si. O
que para um outro ser humano é experiência de ser, para essas pessoas é
verdadeiro buraco negro sem sentido. Isto origina um padecimento que pode
tanto acontecer como um acontecimento psíquico ou corporal. Aqui o adoecer é
um sinal da esperança da possibilidade de um encontro”. (grifos do autor –
SAFRA, 2003:57).
É interessante notar o destaque dado pelo autor ao conceito de esperança.
Mesmo o adoecer, a patologia, é percebida como um sinal de esperança.
“Quando se acompanha uma pessoa durante um longo período se tem a
oportunidade de observar como o adoecimento de alguém é a cristalização de
uma esperança”. (SAFRA, 2003:55). Como caminho e direção de “cura”, o autor
aponta: “No segundo tipo de sofrimento ocasionado por rupturas nas
necessidades de constituição, estamos frente a uma situação que não pode ser
abordada pela interlocução, mas sim pela oferta do encontro que possa
constituir” (SAFRA, 2005:57).
Temos assistido - e sofrido - com o padecimento de várias crianças e
adolescentes que não puderam, por diversas razões, permanecer em suas
famílias de origem. Temos, no entanto, constatado também como o encontro
com pessoas que se dispõem a investir afetivamente nessas crianças e
adolescentes, mantendo-se como uma referência afetiva contínua que, no caso,
é a dos pais adotivos, têm funcionado como importantes facilitadores e
promotores na retomada de seu desenvolvimento. Temos visto crianças e
adolescentes serem “curados” por esses encontros. Vale ressaltar que, dentro da
perspectiva winnicottiana, o conceito de cura não está associado ao alcance de
um estado particular de elaboração de conteúdos conflitivos, mas a possibilidade
de sair de uma condição paralisante - um “por em marcha”, “em movimento”,
“em transicionalidade”. Sobre a atuação que temos assistido de diversos pais
adotivos, na “cura” de seus filhos, lembramos uma expressão disponível no
imaginário cultural “O espírito humano é sempre assim. Por pior que tenha sido o
passado ele segue adiante. O que eu fiz foi coloca-lo num trilho”115
Considerações finais
Frente às situações graves de sofrimento com quem nos deparamos na Vara da
114 Não se trata de uma experiência, mas de um padrão de expeirências.
115 Frase dita por um personagem médico, de um seriado de TV americana (Everwood),
quando indagado sobre sua intervenção na cura de um paciente neurológico em estado
grave.
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Infância e Juventude, vimos contrapondo, de certa forma, o conceito de
esperança presente na teoria winnicottiana. Sua aposta na capacidade humana
de desenvolver-se e recuperar-se, mesmo frente a situações adversas ou
traumáticas.116 Notamos que para além de uma sustentação teórica, este
posicionamento ético tem nos possibilitado lidar, enfrentar e sustentar o
sofrimento destas crianças, auxiliando-as a atravessarem suas dores.
Entendemos que face ao histórico de sucessivas falhas ambientais dessas
crianças e adolescentes parecem se configurar vários caminhos de atuação. Um
deles seria o de percebê-los, prioritariamente, como vítimas passivas de graves
falhas ambientais, condenados ao longo de suas vidas a perpetuar e repetir seus
traumas. Outro, do qual partilhamos, é percebê-los como sujeitos, em estado de
importante sofrimento, necessitando de um ambiente humano facilitador que os
auxilie na possibilidade de retomada de suas vidas.
Salientamos que este posicionamento não busca, de forma alguma, negar a
condição de vulnerabilidade da criança e as marcas advindas de falhas
ambientais, onde a criança não se viu atendida em suas necessidades, ou sofreu
experiências invasivas ao self. 117 Foge, no entanto de uma conduta
determinista, guardando um espaço para a capacidade da criança e de todo o
indivíduo de desenvolver-se e recuperar-se de situações traumáticas e adversas,
a partir de um ambiente favorecedor, tido como um encontro humano.
Consideramos que ainda pouco sabemos sobre a forma como crianças e
adolescentes que passaram por importantes rupturas afetivas reconstroem – ou
não – suas vidas. Atentamos, no entanto, para os riscos de uma
psicopatologização da criança adotiva e do uso de teorias psicológicas como
forma de corroborar preconceitos. “Contribuir para pensar a criança adotiva e os
pais adotantes sob a égide do patológico é, a nosso ver, algo que demanda
profunda
reflexão
ética”.
(AIELLO-VASIBERG;
FERREIRA,
2005:121).
Entendemos que o caminho da desmistificação de idéias e preconceitos sobre o
tema da adoção passa pela realização de pesquisas, estudos e observações
cuidadosas, em todos os âmbitos e particularmente no âmbito do judiciário.
Resumo
Partindo da cultura de adoção, em nosso país, que denota uma clara preferência
pela adoção de bebês e crianças pequenas, buscamos levantar alguns aspectos
associados a essa preferência, particularmente à idéia, presente no imaginário
116 Essa aposta de Winnicott no desenvolvimento parece expressa em idéias como a
tendência inata ao desenvolvimento, a capacidade criativa e o conceito de verdadeiro
self. Vale ressaltar que, para o autor, este último, ainda que recuado, oculto ou protegido
sob a forma de um falso self, “espera” ou aguarda condições favoráveis para atualizar-se
e vir a ser. “Como já indiquei, é necessário considerar a impossibilidade de uma
destruição completa da capacidade de um indivíduo humano para o viver criativo,
117 Vale notar a distinção entre desejo e necessidade. Nem todos desejos devem ser
realizados, porém as necessidades devem ser atendidas.
373
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
coletivo, de que uma criança adotada numa faixa etária maior seria uma “criança
problema”.
Tomando por base o pensamento de D.Winiccott, realizamos algumas reflexões
quanto às possibilidades -ou não- de retomada em seu desenvolvimento de
crianças e adolescentes que passaram por situações de importante sofrimento,
entre eles, a perda ou ruptura das relações afetivas que constituíram. Atentamos
ainda para os riscos de um uso superficial e determinista das teorias psicológicas
para embasar e corroborar preconceitos em relação aos filhos adotivos.
Abstract
Taking the adoption culture in Brazil as a starting point, which culture indicates a
strong preference for the adoption of young babies and children, we have
attempted to discuss a few aspects associated with such preference, in particular
the idea, which is present in the collective imaginary that a child adopted at an
older age would become a "problematic child".
Based on D. Winnicot´s teachings, we have analysed the possibility or
impossibility) of children and teenagers resuming development after experiencing
severe suffering, including the loss or breaking of affective relationships they had
built. Also, we discuss the risks of a superficial and deterministic use of
psychological theories to create and reinforce prejudice against adopted
children.
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