OUTRAS PAIXÕES 1
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OUTRAS PAIXÕES 1
OUTRAS PAIXÕES 1 OUTRAS PAIXÕES Editores: Christian von Koenig e Ismael A. Schonhorst Capa e Diagramação: Fabiano R. de Sousa Revisão: Christian von Koenig Foto da capa: Dolla Photo Club Autor fiore26 br.dollarphotoclub.com/stockphoto/macchina da scrivere/68022914 Conselho Administrativo: Christian von Koenig Ismael A. Schonhorst Fabiano R. de Sousa Pedro Jung Tavares Apoio editorananquim.com.br Site do projeto: paixoesclandestinas.com Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução de qualquer parte desse livro por meios físicos ou digitais, sem permissão escrita. 2 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES HISTÓRIAS SELECIONADAS 3 OUTRAS PAIXÕES Não aprendi muito nesta vida, mas carrego pelo menos uma valiosa lição: todos temos uma história para contar e cada um sabe o drama pelo que passou ou por qual ainda passa. Eu contei a história de meu amor e de minhas viagens no romance Paixões Clandestinas e aqui, novamente ao lado da Editora Nanquim, tenho um grande orgulho e muita comoção ao apresentar estas Outras Paixões. São narrativas igualmente emocionantes de amor e de paixão, sejam elas fiéis à realidade ou fictícias, mas nem por isso menos verdadeiras para quem as sente. Neste e book nossos prezados leitores encontrarão as 50 histórias selecionadas pelo público do Projeto Paixões Clandestinas: Outras Paixões, inscritas por autores e autoras das mais variadas regiões do Brasil e até d'além mar. Os contos refletem as mais variadas facetas do tema, segundo a percepção única de cada um. Também encontramse aqui diversos relatos que eu mesmo tive o prazer de reunir em outras viagens, à procura dessas outras paixões. São confissões de felicidade, de tristeza, de saudade... englobando nesta pequena coletânea a profundidade do drama humano. Eu e a Editora Nanquim desejamos a todos uma ótima e apaixonada leitura! Com carinho, Christian von Koenig. 4 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Mercedes 5 OUTRAS PAIXÕES Eu sou de José Bonifácio, lá no estado de São Paulo, pra lá de Rio Preto. O meu pai era o que mais tinha (gesto de dinheiro). Tinha muitas fazendas, muito gado, e comprou um sobradão que era o cartãopostal da cidade. Fui para lá com seis anos. Crescemos lá, estudamos lá, casamos lá. Casei com ele (Otoniel) contra a vontade. De tanto ele amolar, meu pai enfezou e foi marcar o casamento. Ah, foi muito triste, viu... Não gostava dele, não queria casar com ele. Daí quem eu gostava mesmo (Vitório), ficou. Desde o dia que Otoniel me viu ele não sossegou mais. Falou que se eu não casasse com ele ele ia me matar e se matar, aí minha mãe e meu pai ficaram com medo e fizeram o casamento. Meu Deus do céu... Eu e minha irmã fomos ao cartório para assinar os papéis, porque no dia do casamento ia ser um rebuliço danado. Aí Vitório estava esperando eu passar. Coitado; amarelo, chorando. “Mercedes, você não casa, Mercedes... Fala na hora que não quer casar com ele, que você não casa. Meu pai vai adiantar a minha idade mais um ano pra nós casarmos logo.” A família dele gostava de mim. Eu chegava na casa dele – eu tinha 14 anos, ele tinha 14 também – e iam tirar porcelana do fundo do baú para servir para mim. 6 OUTRAS PAIXÕES Ele chorava, eu chorava. Parecia que eu estava hipnotizada, sabe? Todo mundo falava: “Mercedes, quando a pessoa vai casar fica tão alegre, mas você está tão triste”. Aí eu falava: “Ah, vocês não sabem o que está aqui dentro (aponta para o coração)”. Depois que eu casei nós tínhamos um alambique de pinga na entrada da cidade e eu fui morar lá nesse alambique. Ali era a estrada do Vitório passar. Ele passava olhando, olhando, olhando lá para a minha casa. Às vezes eu estava no quintal e me recolhia ligeiro e ficava olhando pela gretinha da janela até ele sumir. Otoniel foi caprichoso, não digo que não, mas foi ciumento que queria me pôr dentro de um baú e fechar. Eu não podia olhar uma coisa que ele já queria ver o que era. Nunca tocou no nome do Vitório, nunca. Quando ele queria me namorar e eu não queria, os dois ficavam bebendo e quebrando as coisas no restaurante, brigando lá. Quebravam tudo e depois iam pagar. Eu lá no sobradão dormindo nem sonhava, só ouvia o boato que saía. A minha mãe falava: “Nenê, ele é um moço bom de família”. Aí eu: “Mas eu não gosto nem de olhar pra cara desse moço”. “Olha, se você não casar com o Otoniel, com o Vitório você não casa, não.” “Por quê? Eu vou casar com quem eu gosto, não vou casar para fazer boniteza para ninguém”, mas a mãe não queria, aí Otoniel criou asa mais ainda. Hoje eu estou com 91 anos. Faz vinte e seis anos que fiquei viúva. 7 OUTRAS PAIXÕES A minha filha passou uma internet para Fernandópolis, para saber do Vitório. Eu falei assim: “Eu estou viúva, se ele estiver viúvo nós podemos contrair um casamento bonito”. Mas aí o homem do cartório falou assim: “O Seu Vitório morreu, ele morreu novinho com quarenta a cinco anos, em 69”. Infelizmente não deu certo. Até hoje eu penso nele; do outro nem lembro. Quando não tem que dar certo, não dá. Eu passei uma vida de tristeza, mas criei meus filhos todos sadios, todos estudaram, quatro filhos homens e cinco filhas mulher. É tudo isso a minha vida. Relato dela. 8 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Além das palavras 9 OUTRAS PAIXÕES Ou: A tampa da panela dele Dentre os quase dez milhões de passageiros transportados nos ônibus da cidade de São Paulo todos os dias, você vê operários, playboys, manos, minas, pretos, brancos, loiros ou morenos, albinos, afroalbinos, moicanos, carecas, médicas, enfermeiros, engenheiros, domadores de leão, adestradores de poodles, professores de etiqueta, noivos tirando fotos para o casamento, casais terminando relacionamentos, pessoas narrando acontecimentos íntimos no telefone celular, entregadores de flores, vendedores de planos funerários, garis, pessoas jogando papel no chão, colando chiclete no teto e passando meleca no vidro, deficientes físicos e mentais de toda sorte, vendedores de bala, de caneta, de brinquedo, de pamonha, de peixe e de mãe, domésticas reclamando das patroas, patroas reclamando das domésticas, pessoas carregando baldes, melancias, microondas e pintinhos tingidos de rosa choque, adolescentes falando em dialeto próprio e ouvindo, em volume máximo, as últimas novidades do funk carioca e do sertanejo universitário. Recordome de ter lido em algum lugar que um tubarão morto foi encontrado no metrô de Nova York. Uma descoberta desse tipo, em algum ônibus paulista, não me surpreenderia – se fosse um jacaré gigante, turquesa, com bolinhas laranjas e sete patas, saído das águas do Rio Pinheiros, o fato talvez merecesse alguma atenção. 10 OUTRAS PAIXÕES No meio desse caos, conheci um passageiro que em nada contribuía para toda essa confusão e sonoridade. Ainda assim, ele foi o personagem da história mais inusitada já presenciada por mim em um coletivo. Passo a dividila com você. … – Bom dia, Seu Rolando! Não faço ideia de como Seu Xerxes, o velho cobrador, sabia o nome dele, se é que realmente sabia. É possível que tenha inventado. Afinal, em três anos de viagens naquele ônibus, que saía do Terminal Grajaú em direção à Praça da Sé, eu nunca ouvi a voz daquele passageiro. Jamais o vi retribuir o cumprimento de Seu Xerxes. Soltava somente um murmúrio, que poderia significar tanto um “Bom dia” quanto um “Me deixa em paz”. O cobrador devia acreditar na primeira hipótese, pois nunca deixou de cumprimentálo e sorrir. O nome, verdadeiro ou não, combinava com nosso herói. Era tão antiquado quanto ele. Observando atentamente Seu Rolando, acredito que ele devia ter uns quarenta e cinco anos, mas aparentava muito mais, graças à expressão severa e aos trajes um tanto anacrônicos e desalinhados. Blusa social sintética, gravata descombinada, sapato social descascado, óculos de lentes grossas. Sempre carregava algum livro antigo, grande, que na maioria das casas só serviria para escorar pé de mesa ou exibir para as visitas. Imaginava que fosse bibliotecário, escriturário, algum operário das letras e do passado, desprendido do mundo das aparências. Passada a catraca, Seu Rolando dirigiase ao banco dele. Sim, dele. Dia após dia, ele se sentava no mesmo lugar, uma poltrona individual, próxima à porta do meio. 11 OUTRAS PAIXÕES O ônibus não ficava muito cheio naquele horário, perto do almoço, e os passageiros eram basicamente os mesmos. A convivência diária e a sisudez de Seu Rolando serviam como título de propriedade. Ele passava a viagem inteira lendo, imune às conversas e ao mundo ao seu redor. A impressão que transmitia era a de que nada que pudesse acontecer seria mais importante que o seu livro ou mais interessante que a sua própria vida. Nós descíamos juntos no ponto final. Eu partia para a São Francisco e ele tomava o rumo oposto. Nunca esbarrei nele nos arredores, nem peguei com ele o ônibus da volta. Eu gostava de imaginar, às sextasfeiras, que o encontraria tomando cerveja em um dos vários botecos da região, aproveitando o happy hour e ouvindo um pagodinho. A ideia sempre me fazia sorrir. Tudo começou a mudar numa segundafeira ensolarada de novembro. Naquele dia, entrei no ônibus, sonolento, passei meu bilhete no leitor e me sentei. Estava olhando para o nada quando Seu Rolando entrou, se dirigiu à roleta e parou subitamente. Só então notei que Seu Xerxes não estava lá. Seu lugar era ocupado por um jovem com dreadlocks e fones de ouvido enormes, de cor verdelimão. Seu Rolando ainda hesitou um pouco, mas passou o bilhete e tomou o rumo de praxe. Sentado, deu mais uma olhada para o cobrador e, em seguida, abriu seu livro do dia. O ônibus partiu. Alguns pontos depois, Eliane, uma senhorinha simpática e escandalosa, já velha conhecida de todos, entrou no veículo. Uai, minha gente! Cadê o Seu Xerxes? 12 OUTRAS PAIXÕES O jovem cobrador não lhe deu atenção. Foi o motorista quem respondeu: – Seu Xerxes teve um derrame na madrugada de sábado para domingo. A neta dele passou ontem na garagem para avisar o pessoal. Está no hospital. A família acha que ele não volta a trabalhar. O rapazinho simpático aí é só um quebragalho. Amanhã deve vir um cobrador novo. Todos permaneceram em silêncio. Xerxes era como uma instituição local. Não havia quem não gostasse do velhinho doce e trabalhador – salvo, possivelmente, o Seu Rolando, que não emitia juízo de opinião, nem deixava escapar qualquer expressão que nos permitisse imaginar o que pensava. No dia seguinte, realmente havia um novo cobrador, ou melhor, uma nova cobradora. Usava crachá. Eu nunca tinha visto cobradores usando crachá antes. Seu nome era Maria. Cumprimenteia, e ela respondeu com um belo sorriso, que me impeliu a sorrir de volta. Gostei dela de imediato. Na casa dos quarenta anos, tinha cabelos castanhoclaros, na altura dos ombros, era magra e um pouco baixinha. Uma mulher bonita. Pouco depois, Seu Rolando entrou no ônibus e dirigiuse à catraca. Tirou o bilhete do bolso e, quando ia passálo no leitor, avistou a nova cobradora. Congelou por alguns segundos, após os quais enrubesceu. Maria lançoulhe um olhar intrigado, seguido de um sorriso tímido. Seu Rolando deu um suspiro, abaixou a cabeça e passou o bilhete no leitor, bem rápido. Ato contínuo, fugiu para o banco dele. Durante a viagem, abriu e fechou seu livro várias vezes, mas não conseguiu completar a leitura. Olhava de soslaio a nova cobradora, visivelmente incomodado. Quando chegamos ao ponto 13 OUTRAS PAIXÕES final, ele desceu muito mais depressa que o habitual. Na quartafeira, Seu Rolando não apareceu. Na quinta, ele retornou, e daí pra frente as mudanças foram cada vez mais intensas. Trajava calças jeans e uma camisa polo. O sapato social destoava, mas a melhora em sua aparência era visível. Entrou no ônibus mais pausadamente, passou o bilhete no visor e… Surpresa das surpresas: sorriu para a cobradora. Maria sorriu de volta. Em seguida, Rolando foi ocupar seu posto e abriu o livro que carregava. Mas novamente ele não leu. Continuava observando Maria furtivamente. Em alguns momentos, ela notou e desviou o olhar. Na sextafeira, ele sorriu novamente. A resposta de Maria foi um sorriso mais longo e doce que o do dia anterior. Quando passou por mim em direção a seu banco, reparei que Rolando não carregava um tijolo como de costume, mas um livrinho azul. Fiquei curioso. Quando descemos do ônibus, tive o cuidado de bisbilhotar e consegui ver o título: “Como fazer amigos e influenciar pessoas”. Na segundafeira, novas mudanças. Seu Rolando não pagou a passagem usando bilhete, como de costume. Pagou em dinheiro. Quando foi entregar a quantia, seus dedos tocaram de leve os dedos de Maria. Ambos coraram. Fiquei chocado ao perceber que Seu Rolando não trouxera livro algum. Ao invés de ler, ficou olhando ao redor. Parecia estar reparando, pela primeira vez, o que faziam os demais passageiros, e tentando identificar o que eles liam. Na terçafeira, novo pagamento em dinheiro, novo toque, novos sorrisos e um certo constrangimento adolescente. Eu já encarava a situação como uma novela, 14 OUTRAS PAIXÕES aguardando ansiosamente os próximos capítulos. Naquele dia, ele carregava um livro preto, e contive o riso ao ler o título: “Crepúsculo”. Minha intuição do dia anterior estava correta. Nos últimos meses, quase todas as mulheres no ônibus (ou melhor, de todos os ônibus, de todas as cidades do Brasil, de acordo com os relatos que chegaram a mim) carregaram algum dos livros desta série. Um fenômeno inexplicável! Seria alucinação coletiva? Na quarta, na quinta e na sextafeira, Rolando e Maria já tinham um ritual silencioso e bem estabelecido de alegria e timidez ao se encontrarem. Eu não era o único a perceber. Naqueles três dias, Seu Rolando não portava livros, mas sim revistas femininas. E na sextafeira, quase caí da cadeira quando vi que, ao invés de ocupar seu banco, Rolando sentouse bem na frente, a apenas duas cadeiras de distância de Maria. – Eu não acredito que o Seu Rolando tá gostando dela! O que será que ele viu nessa bruaca aí? – reclamou Eliane, sentandose ao meu lado, sua voz um tanto indignada, revelando sentimentos ocultos. Levantei os ombros. Eu realmente não imaginava. Estava mais curioso é para saber o que diabos ela vira nele. Uma nova semana se iniciou. Naquele dia, Seu Rolando entrou e se dirigiu à roleta. Não pagou em dinheiro como vinha fazendo – voltou a usar o bilhete eletrônico. Trocou um olhar rápido com Maria, um pequeno sorriso, abaixou a cabeça e se dirigiu rapidamente ao último banco do ônibus. Maria ficou desconcertada. Parecia haver lágrimas em seus olhos. 15 OUTRAS PAIXÕES Só ao descer do ônibus, ao lado de Rolando, entendi o que ocorreu. O título do livro do dia era “Cinquenta Tons de Cinza”. Dessa vez eu não consegui conter as gargalhadas, ou melhor, só as segurei até que ele se distanciasse de mim ao sair do veículo. Havia sangue naquelas veias! Para minha decepção, e visível tristeza de Maria, Seu Rolando não apareceu na terça. Nem na quarta. Nem na quinta. Na sextafeira, o suspense dos dias anteriores foi recompensado. Seu Rolando entrou no ônibus trajando um terno azul, sapatos reluzentes, camisa social branca – tudo moderno e alinhado. Usava óculos novos, daquele tipo sem aro. Rejuvenesceu dez anos, no mínimo. Trazia um buquê de rosas vermelhas. Deixou que todos os demais passageiros passassem à frente. Para a sorte de Maria, atualmente quase todo mundo usa o bilhete eletrônico, porque se alguém pagasse em dinheiro, creio que ela não conseguiria receber e muito menos calcular o troco, de tanto que tremia. Finalmente, todos ocuparam seus lugares, seja sentados, seja de pé. Os olhares estavam fixos no casal. Seu Rolando tremia e suava. Ficou parado por alguns segundos, como se estivesse juntando forças, e finalmente se dirigiu à roleta. Pagou em dinheiro a passagem. Quando Maria foi pegar a quantia, ele segurou delicadamente suas mãos e alisou seus dedos. Sorriu e entregou as flores. Foi a primeira vez que ouvi a voz dele. Era bonita. – Minha querida. Será que poderia te dizer algumas palavras? 16 OUTRAS PAIXÕES Maria não estava vermelha, estava roxa. Assentiu com a cabeça. Seu Rolando tirou uma folha do bolso da frente do paletó e passou a ler o discurso que segue. O momento era mágico. Posso jurar que não me esqueci de palavra alguma. – Minha querida. Há muitos anos, feri e fui ferido por palavras. Desde então, passei a achar que nesse mundo se fala demais. Fiz um voto de silêncio, que por quase duas décadas observei. Mas na primeira vez que a vi, soube que não poderia mais sustentar minha decisão. Pior. Compreendi que, na verdade, meu voto não havia sido fruto de qualquer ímpeto virtuoso, mas sim do medo de me machucar novamente. Era um voto de luto. Ao invés de me tornar alguém melhor, só fez com que eu me transformasse em um miserável. Ele parou, tirou um lenço do bolso e enxugou levemente o suor da testa. Em seguida, continuou: – Desde aquela terçafeira abençoada, minha vida mudou. Você me trouxe de volta. No início, fiquei atordoado. Não consegui ler, trabalhar. Tive febre. Queria entender o ocorrido, o motivo de tanto assombro. Compreender a razão pela qual, entre tantas mulheres que cruzaram meu caminho, só uma me causou esse efeito. Tentei esmiuçar o meu desejo, sem sucesso, pois o amor que sinto – repito, o amor – nada tem de racional. Ele simplesmente é. Quando entendi isso, minha angústia inicial cessou. Ele silenciou por mais alguns segundos, e em seguida soltou pesadamente o ar. – Passei a sentir um desejo imenso de me comunicar. Eu nunca havia percebido como estava carente de 17 OUTRAS PAIXÕES contato com o mundo exterior, após tantos anos afundado em livros e em meus próprios pensamentos. Só que não sabia mais como. Não fazia ideia do que pensavam as pessoas, do que ocupava a cabeça das mulheres. Tentei desesperadamente adquirir algum conhecimento que pudesse me ajudar na tarefa de chegar até você. No processo, percebi que não poderia enquadrála nos modelos femininos retratados nos livros e revistas que pude pesquisar, tão simplistas e caricatos. Não. Você é diferente, eu sei – não sei explicar como, mas sei. Você é única. Desejo imensamente conhecêla e compartilhar da sua vida, se me permitir. Ele abaixou o papel, olhou diretamente para os olhos de Maria, e terminou, agora sem ler e sem tremer. – Eu perguntaria isto hoje: posso compartilhar a vida com você? Perguntaria, porque sei que é o que quero. Mas sei que soaria insano. Você não me conhece. Então lhe pergunto, apenas, se me daria a chance de um café. Por alguns segundos, o ônibus silenciou. O veículo chegou a parar até que uma saraivada de buzinas tirou do transe o motorista. Maria enfim se moveu. Tirou do bolso uma pequena caderneta vermelha, com a capa florida, pegou uma caneta e pôsse a escrever freneticamente. Terminada a tarefa, tirou a folha e a entregou a Seu Rolando, que leu e abriu um largo sorriso. Eles se olharam, deram as mãos. Em seguida, se beijaram longamente. Todos aplaudiram. Naquele momento, não pude evitar de pensar que toda história de amor é um pouco clichê. Pensando bem, um pouco não, um bocado! … 18 OUTRAS PAIXÕES Minha curiosidade nunca foi tão grande. Vi que, quando eles se beijaram, a nota de Maria caiu no chão. Sinalizei para Eliane, que estava bem perto da roleta e entendeu perfeitamente o que eu queria, dando um jeito de pegar o papel. Ela levantou, me entregou discretamente a folha e desceu no ponto seguinte, com lágrimas nos olhos. A nota dizia o seguinte: “Meu querido. Desde que o vi, sonhei com um momento assim. Assim como você, minha vida mudou assim que o vi. Era inexplicável: eu sabia que você era a pessoa certa. Ao mesmo tempo, temia sua reação quando conhecesse minha realidade. Sou surda e muda desde que nasci. Mas agora meu medo acabou. Havia, como sempre sonhei, alguém no mundo reservado para mim, talhado para o silêncio. Sei ler lábios. Nunca na vida alguém me disse tão belas palavras. Minha resposta não poderia ser outra. Sim, para as duas perguntas.” Depois daquele dia, Maria e Seu Rolando não apareceram mais no ônibus. Meses se passaram. Eu me formei. Seu Xerxes, contrariando todos os prognósticos, voltou ao trabalho, sorridente como nunca, falando um pouco enrolado e manco de uma perna. Eliane arrumou um namorado, Manoel, que conheceu no próprio ônibus. Na última sextafeira, quando saí do trabalho, vi Rolando e Maria, de mãos dadas, sentados num boteco na Praça da Sé. Um grupo improvisado tocava pagode. Seu Rolando, sorrindo, tamborilava os dedos na mesa, acompanhando o ritmo. daniclau 19 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Semana Santa 20 OUTRAS PAIXÕES Sextafeira da Paixão Cristo morreu pelos meus pecados. É o que dizem. Sempre detestei essa afirmação, como detesto qualquer coisa que tenha a ver com o nãovisível. Não quero que ninguém morra pelos meus pecados. Dos meus pecados cuido eu. E meu pecado maior naquela sextafeira maldita foi ter deixado Clarissa ir embora. Ou será que fui eu quem a mandei embora? Talvez as duas coisas. Só recordo que a vi jogando algumas roupas na mochila velha e sair de casa batendo ruidosamente a porta. Ainda pensei em correr atrás dela, mas desisti. Fiquei em casa ouvindo CDs de blues e olhando com cara de idiota para o bacalhau dessalgado em cima da pia. Iríamos fazer um bacalhau à Gomes de Sá. Clarissa não comia carne nos dias da Semana Santa. Para mim, isso era uma besteira, eu teria adorado preparar uma picanha mal passada naquela noite, mas a paixão por Clarissa me fazia respeitar suas opiniões, pelo menos algumas delas. Pensei que Clarissa voltaria, mas, me enganei. Tomei alguns tranquilizantes para poder dormir, com o coração pesado de tristeza e de paixão. Sábado de Aleluia Aleluia! Clarissa telefonou. Não falou praticamente nada, balbuciou meia dúzia de palavras. Mas telefonou. Disse que estava tudo terminado e que na semana 21 OUTRAS PAIXÕES seguinte pegaria suas coisas no apartamento. Pensei em implorar para que voltasse, em sugerir que conversássemos, mas nada falei. Escutei o que ela falou até que pareceu que ela fosse chorar e ela então desligou o celular. Resolvi ir a uma igreja católica. Claro, desprezava o catolicismo, como a todas as demais religiões, mas senti vontade de ver os fiéis louvando um ser superior. Contudo, quando estacionava o carro próximo a uma igreja, mudei de ideia repentinamente e decidi beber algo na praia. Olhar o mar costumava me acalmar. Bebi demais, contudo, e voltei para casa totalmente bêbado, arriscando bater o carro ou ser pego pela polícia dirigindo embriagado. Não aconteceu nem uma coisa nem outra. Talvez fosse melhor se eu tivesse morrido. Domingo de Páscoa Acordei de ressaca. Bebi quase um litro de água e tive de ver na geladeira os ovos de chocolate que Clarissa havia comprado para a gente. Estávamos juntos havia três anos e todo domingo de Páscoa ela me dava um ovo de chocolate. Como sabia que eu não compraria um para ela, tratava de se presentear com um ovo, quase sempre de chocolate branco. Joguei os dois ovos fora. Também atirei o bacalhau na lata de lixo. Em seguida, vomitei e, me sentindo menos enjoado, decidi recomeçar minha vida. Tomei um bom banho, recorri a um analgésico potente e me resolvi a sair da cidade. Joguei em uma mochila algumas roupas, o laptop, a escova de dentes e alguns livros. Iria a uma pousada litorânea para pensar na vida nova que teria de levar. Estava abrindo a porta do carro quando o celular tocou. Clarissa, com voz 22 OUTRAS PAIXÕES lacrimosa, disse que queria conversar e retomar nosso casamento. Pediu desculpas e exigiu que eu as pedisse. Perguntou se eu não queria encontrála em um bar restaurante onde costumávamos ir. Concordei. Subi ao apartamento para deixar a mochila e rumei ao supermercado mais próximo, para comprar dois ovos de chocolate… Cefas Carvalho 23 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Ultimato 24 OUTRAS PAIXÕES Eu estou vivendo uma história de amor complicada, difícil. Casei com uma pessoa há quinze anos, nós trabalhávamos juntos, temos um filho e no começo deste ano ele foi embora. Eu estava achando que seria a melhor coisa nos separarmos, porque a relação estava desgastada. Comecei a trabalhar em outro lugar. Aí ele foi me procurar, quando já estava com outra pessoa. Na verdade ele estava com ela há tempos, muito antes de sair de casa. Estávamos separados, mas ainda vivendo juntos, e ele já estava envolvido com essa pessoa. Ele me procurou mesmo assim e nós recomeçamos. Virei amante, ao invés de esposa. Voltamos a trabalhar juntos e estamos assim até agora. Ainda está muito apegado a essa pessoa e é provável que vá me deixar para ficar com ela. Havia voltado para casa, mas foi procurála e voltou para ela. Continua namorando as duas ao mesmo tempo. Diz que gosta muito dela, que está muito confuso… Estava sempre me pedindo mais tempo, mais tempo, mais tempo, mas eu dei o ultimato para ele decidir. É provável que vá ficar com ela. Apesar de dizer que me ama muito, acho que ele quer ficar com ela. 25 OUTRAS PAIXÕES É uma história louca. Eu estou aguardando, mas não tenho esperanças. Érica K. 26 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história Dele 27 OUTRAS PAIXÕES Eu o conheci num hotel, em uma viagem. Até então eu tinha ficado com dois meninos, então foi o terceiro menino com que eu fiquei. Foi diferente. Era no tempo do MSN; ele passou o dele errado e eu passei o meu certo. Eu o adicionei e não apareceu nada. Passou um tempo e veio uma solicitação de amizade de alguém que eu não conhecia. Aceitei e vi a foto... Mas o nome não batia com o que ele tinha me dito. A gente começou a conversar e ele contou que passou o nome errado, que estava com medo, pois não sabia se era isso que ele queria para a vida dele – a gente era bem novo ainda. Na minha cabeça também passava isso de “será que estou fazendo isso certo?”; eu nunca tinha contado para os meus pais ou para os meus amigos. Acabou que a gente foi conversando, se encontrando – eu gostava dele e ele, de mim – e foi legal. A gente virou amigo e começou a namorar em 2009, e namoramos durante todo 2010. No verão de 2011, na praia, estava quente naquele dia e ele estava reclamando de pressão baixa, e daí simplesmente desmaiou. A gente chamou a ambulância, ele foi para o hospital e fizeram exames e exames: constataram que ele tinha leucemia mieloide aguda. Tinha 17 anos na época. Eu soube antes mesmo do que ele. Estava junto no hospital quando a mãe dele foi chamada e, como eu era 28 OUTRAS PAIXÕES próximo da família e sempre fui muito bem tratado, ela me contou para juntos contarmos a ele. Fez o tratamento de janeiro a junho. Ele morreu no dia 10 de junho de 2011. A leucemia é uma doença triste. Ela acaba com a pessoa e com a família de uma maneira que desestrutura. Tu vais ao hospital e vês uma criança de seis anos que diz que no próximo mês vai ter o aniversário, daí tu voltas em três semanas e ela não está mais lá. Várias vezes ele disse: “Vai, pode terminar. Segue a tua vida, não precisas ficar aqui”, mas eu continuei. E quando ele estava no hospital eu não deixava de sair com os amigos, porque vi que se parasse de viver a minha vida e dissesse que não fiz nada, não teria sobre o que a gente conversar. Eu via pessoas morrerem, ele via pessoas morrerem. Eu tinha que ir ao cinema e falar “chegou tal filme, a gente pode assistir depois”, ou que lançou tal livro, tal jogo, para ter o que conversar. Foi uma coisa com a qual eu acabei crescendo, porque eu tinha uma mentalidade diferente: “é de longe, não me atinge”, e do nada me atingiu. Teve épocas difíceis para mim. Não queria gostar das pessoas porque tinha medo de me machucar de novo. Hoje eu lembro com bastante carinho disso tudo. Foi um relacionamento legal, ele foi uma pessoa legal e já superei bastantes coisas relacionadas a isso. Eu brinco, faço piada, mostro vídeos engraçados da gente... Não é sempre assim, claro. Tem datas que me marcam mais, como o Dia dos Namorados – ele morreu em 10 de junho e o Dia dos Namorados é logo em seguida. 29 OUTRAS PAIXÕES É um amigo que morreu, infelizmente, mas a vida continua. Ficou uma lembrança boa. Relato dele. 30 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES O amante 31 OUTRAS PAIXÕES O peito tem a pele enrugada e os pelos crespos. A mão de Márcia descansa sobe ele. A testa gela e o suor começa a secar. Suas coxas se esparramam no colchão. A flacidez é clara. Ela escorrega para o lado e ele se sente desamparado. No quarto só o barulho do ar condicionado. O dia entardece. Um caminhão dá ré. Um aperto no peito, uma intromissão, uma ameaça em forma sonora. Seus movimentos tornamse mais lentos. Sente fome, e observa que o hotel oferece um serviço de lanche no fim de tarde. Pede duas saladas de frutas e um suco de laranja. O sexo no meio da tarde é um hábito que cultiva desde que se separou. Se levanta e anda até ao banheiro. Seu cabelo parece mais ralo que o normal. Márcia não faz comentários sobre seu corpo. Teria se relacionado com muitos homens antes dele? Tem raiva. Sente um calafrio. Precisa se controlar. Horas depois, no elevador, Márcia lhe pergunta se ele tem uma esposa. “Não tenho”, Jonas diz, abrindo a porta do carro. Márcia entra no lado do passageiro. O sinal está fechado. O parque tem grandes eucaliptos. Sombras alongadas cobrem os corredores na pista de exercícios. “Onde vocês se conheceram?” Ele pergunta. “Quem?” Ela diz distraída, olhando as mensagens no telefone. “Você e seu marido”, ele continua. Mas ela não responde. 32 OUTRAS PAIXÕES São Paulo está congestionada, é um fim de sexta feira. Um transeunte passa pelo carro pedindo esmola. Unhas sujas. Uma sombrinha quebrada. No estacionamento do aeroporto, Jonas sente um abafamento. Márcia o beija rapidamente e sai sem agradecer. Ele franze a testa. Espera um pouco e desce. Tenta se convencer de que é normal agir daquela maneira. O salão de beleza fica no terceiro andar. Quando entra, ela está de avental, organizando papéis no caixa. Leva um susto e deixa o telefone cair. Naturalmente, ele diz que quer fazer as unhas. Lhe indicam uma cadeira. A manicure já vem. Ela parece confusa. E se o marido descobrir que ela trai? A mão na água quente a acalma. “Márcia, me ajude.” O homem é magro, com uma barba por fazer. Usa calça moletom e uma blusa de um time de futebol. “Mamãe!” A menina corre e abraça Márcia pela cintura. Uma senhora de cabelos loiros levanta os olhos da revista. Está com uma toca no cabelo. A cabelereira e o homem sobem para o segundo andar. A filha sentase próxima à entrada. Tira um caderno corde rosa da bolsa e começa a desenhar. Jonas odeia pensar no próprio casamento. Ouve risadas no andar de cima. Um momento passa. Márcia reaparece para atender uma cliente. O alicate cutuca o canto do seu dedo indicador. O marido se chama Rubens. A manicure inspeciona as suas mãos. São peludas e com dedos grossos. Paga a unha com dinheiro e procura pelos olhos de Márcia. É ignorado. No café do aeroporto, encontra o marido tomando chope. Jonas se aproxima e pede um salgado com café. Tenta não encarar. Rubens a reconhece. Ele retorna ao 33 OUTRAS PAIXÕES carro e fica parado em frente à direção por cerca de dez minutos. Tem a sensação de que o automóvel diminuiu de tamanho, está sufocado ali dentro. Abre o vidro e dirige em direção à saída. Promete a si mesmo que nunca mais vai procurar Márcia. Mulheres casadas aumentam a sua sensação de solidão. À noite, em casa, liga para a ex esposa. Inesperadamente ela atende. Diz que quer vêla novamente. Sim? Ele se arrepende, mas já é tarde. Bárbara é dez anos mais nova do que ele. Viveram vinte e cinco anos juntos. Agora, mora sozinha numa casa de cinco quartos. Se encontram num restaurante italiano. “Você sentiu saudade?” Ela pergunta. “Não. Mas estou entediado.” Ele é incapaz de uma delicadeza. Ela ri. A voz é pausada, dona de si. Não tem intenção de se apaixonar por ele novamente. Gosta de viver sozinha. Não tem amantes. Isso é o que ela diz. Ele não que falar de si mesmo. Conversam sobre os filhos. Ele lamenta que está sem fantasias. A vida está cheia delas, ela afirma, basta saber escolher. No dia seguinte, liga para Márcia. Ela está deitada, acabou de acordar. Quando o telefone toca, não atende. Jonas é rico. Acha que pode tudo. Se conheceram numa loja de vitaminas. É velho, precisa de suplementos. Mas ela sente uma afinidade por ele. Gosta da forma de como ele lhe faz perguntas. É educado, fino. Rubens detesta conversar. A rotina não é uma aventura. O marido lê o jornal e come uma xícara de cereal com leite. Está menos ansioso, o salão começa a dar lucro. Chega ao aeroporto e os sons da vizinhança chamam a sua atenção. Quase nunca tem tempo de ouvir, tão 34 OUTRAS PAIXÕES apressado que sempre está. Os aviões passam com frequência sobre o edifício. O ritmo de pessoas é intenso, funcionários de companhias aéreas ou homens de negócio. O hall central tem um pédireito alto, e as cadeiras são quadradas, em couro preto e cinza. Uma grande tapeçaria enfeita a parede principal. Rubens usa uma camisa amarela social, uma jaqueta de risca de giz e uma calça preta. O barulho das turbinas é ensurdecedor. “Por que você me traía?” Bárbara pergunta, na noite anterior. “Não gosto de me sentir preso a ninguém”, Jonas desabafa. A sua imagem, tão segura do outro lado da mesa, o intimida. Ele passa a mão nos cabelos. Ralos. Os dois ficam sem se falar por algum tempo. Sabe que o encontro não foi uma boa ideia. Finalmente pede a conta. Nunca imaginava vêla assim, tão separada dele. Pensa em Márcia, no início do casamento. Quando sai do restaurante, sente uma palpitação no peito. Tem medo de morrer. “Obrigado”, ele diz, antes de ir embora. Mais tarde, Márcia aparece no seu apartamento. Seu visual é convidativo. Está vestida com uma saia vermelha florida, uma blusa branca tricotada. “Eu estava por perto, resolvi dar um pulo aqui”, ela afirma. “Vamos entrar”, ele diz, a abraçando pela cintura. Ela não quer que ele apareça no salão novamente. Ele não tem nenhuma expectativa. Está cansado, o corpo envelhecido. Ela adora se olhar no espelho. Quer ir a um restaurante caro, onde o marido não possa ir. Mas naquela noite, prefere assistir Casablanca. No fim de semana, encontra a exesposa numa churrascaria que costumavam frequentar juntos. Está acompanhada de um senhor alto, bem mais elegante que ele. O local é movimentado e o chão gorduroso, 35 OUTRAS PAIXÕES escorregadio. Ele pensa em cumprimentar o casal mas decide esquecer. Está numa mesa próxima, e pode ouvir a conversa. Falam sobre assuntos domésticos. A neta, Luísa, irá se apresentar no teatro da escola no sábado. Na saída, são obrigados a dizer alô. Jonas pergunta se eles precisam de carona e eles dizem que não, vão chamar um táxi. Ela havia dito que estava sozinha. A gente se vê por aí. Em casa, liga para a mãe, que apesar de idosa, está lúcida. Ela o parabeniza por ter saído com Bárbara. “Finalmente você tomou juízo”, enfatiza. “Um homem na sua idade não pode ficar sozinho.” Ele não se explica, e passa o dia pensando na exesposa, nas infidelidades e na vida. Pergunta se tudo aquilo valeu a pena. Conclui que prefere não saber. E procura um filme antigo para assistir. Desirée Jung 36 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Terçafeira de verão 37 OUTRAS PAIXÕES Ela esperou que todo inverno passasse. E nomeou bem uma terçafeira de verão. Era uma noite já iniciada. Mas o calor queimante quase iluminava, quase criava dia sem ofender as estrelas. Eu sabia que ela viria. Aguardei despreocupadamente. Caminhando pelo apartamento como quem caminha em busca de uma brisa. Tocou a campainha. Ela não ouviu meus passos. Captureilhe o corpo todo dentro da forma bojuda do olho mágico. Vinha escondendo apenas o que cismamos não poder mostrar. Imaginei o calor de sua pele e o cheiro natural que lhe caldeirava a nuca. Ao meu beijo sua boca esteve fria. Amarrada. Quadrada. Sem curva alguma. Perguntei se estava tudo bem. Ela respondeu “não”, mas que ficaria melhor. Refez o nó dos cabelos. Sentou a bolsa sobre minha mesa. Meus olhos desarmaramse, abandonados e frágeis. Ela disse não podermos mais. Eu olhei pela janela e na rua alguém passava rindo alto. Como aquilo me penetrou diabolicamente! Ela no sofá com um short que só escondia o que cismamos não poder mostrar. Pensei em ir nadar. O motivo, segundo ela, era ela mesma. Eu estava isento de qualquer conta, culpa ou benefício. Sentime torto como o armário que acaba de perder o calço que tanto lhe aprumava as quinas. Ela se foi com a boca fria. Amarrada. Quadrada. Sem curva alguma. Sai à rua. Era ainda terçafeira de verão. 38 OUTRAS PAIXÕES Escondiamse apenas o que cismamos não poder mostrar. Ainda bem que ela esperou que todo inverno passasse. Rafael Alvarenga 39 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Suelen 40 OUTRAS PAIXÕES Ela o conheceu com 14 anos, através de um primo dele, e se interessou pelo rapaz de 17. Então, três ou quatro meses depois, ele puxou o assunto numa festa em que estavam e aí começaram a conversar. Ela gostou ainda mais dele nos meses que se seguiram, mas de repente deram um tempo por uma situação que surgiu. Enquanto estiveram separados, Suelen esperava que eles voltassem, o que aconteceu passados mais alguns meses. Eles se reencontrarem por acaso numa festa como aquela em que conversaram pela primeira vez. Após o retorno veio o pedido de namoro para os pais, numa relação que durou sete anos. Ele construiu a própria casa por influência dos pais, enquanto Suelen deixavase guiar pela pouca experiência de vida que tinha até então. No entanto, ela refletiu se era esse o futuro que queria para si. Com o tempo as diferenças entre as naturezas e as necessidades de cada um começaram a se manifestar mais evidentemente, por isso ela precisou tomar uma decisão. Nova Veneza é uma cidade pequena, com apenas 13.000 habitantes, onde vigora o respeito ao núcleo familiar. Isso impôs a Suelen um dilema: "O que dificultou tomar essa atitude foi a família mesmo, o que a família ia pensar. Porque, querendo ou não, já estava traçado um futuro para nós dois. Uma casa, uma vida a 41 OUTRAS PAIXÕES dois..." A separação foi bastante complicada não só para o casal, mas também para as pessoas próximas deles por causa dos laços criados entre as suas famílias. Somente aos poucos os familiares aceitaram e entenderam o porquê do que aconteceu. Hoje os dois vivem tranquilos, cada um seguindo os próprios planos e desejando a felicidade um do outro, onde seus caminhos os levem. Sobre como descobrir se alguém é a pessoa certa para se estar ao lado, ela completa: “Não existe uma fórmula, só convivendo com a pessoa dia após dia para saber. Relacionamento é isso: dia a dia”. Conforme o relato dela. 42 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Uma distração fatal 43 OUTRAS PAIXÕES Já faz muito tempo que, em uma cidade totalmente desconhecida por mim, eu encontrei você e nunca mais te esqueci. Aconteceu em um daqueles momentos em que a gente precisa usar nossa reserva, nesses momentos sociais em que o silêncio e a solidão nos invadem e nos distraem, levando embora o nosso olhar e a nossa atenção, como se fosse uma necessidade carnal do espírito. Foi bem assim que eu a vi, sem olhar, e você me viu. É que quando te descobri na multidão, você já olhava pra mim. E era um olhar tão firme e tão doce que me prendeu até o fundo da alma. Olhei ao meu redor para desfazer os enganos de ser o premiado por aquele teu inesperado olhar. Mas ele era mesmo pra mim. Você parecia emanar uma alma inteira por aqueles seus olhos vivos e castanhos, cravandoa profundamente em meu espírito. A multidão ao redor era grande e barulhenta, e mesmo assim o seu olhar não parava de me segurar, até que você desapareceu, levada por outras pessoas. Isso foi há muito tempo e eu não esqueci. Não porque eu tente não esquecer. É que, de vez em quando, sua imagem simplesmente invade a minha mente, com toda aquela força que emanou de você pra mim, naquela noite. E eu sei bem que é impossível encontrála novamente. Eu nem sei seu nome, não faço ideia de onde a procurar, nem mesmo essa sua imagem eu gravei direito. Faz tanto tempo… mas apesar dessa desolação, 44 OUTRAS PAIXÕES desse fracasso, o que você me deu eu não pude mais perder. Você me abençoou com um tipo único de esperança. É que agora, apesar da sua ausência, você me deixou pra sempre com uma misteriosa presença em mim. Moça da cidade desconhecida, da solidão em meio à multidão, eu nunca me esqueci de você. E quem dera você soubesse. Quem dera pudesse lhe dizer tudo isso que você não sabe e que nunca vai saber. Fico imaginando onde poderá estar agora. Em alguma casa simples, deitada no sofá? Sorrindo? Apressada em direção a algum compromisso? Distraída numa conversa de amigos? Pensativa? Não, eu não sei como você está. Mas o que você deu pra mim, essa sua presença constante e tão absoluta, isso eu não consigo mais perder. Foi um tipo de ilusão que, como todas as outras fantasias, é tão real. E isso tudo é mesmo tão real que, ainda que não esteja de fato aqui comigo, você demonstra uma magistral vontade própria, aparecendo sempre quando quer, e de surpresa. E eu me surpreendo toda vez com essa sua enigmática insistência em voltar, com essa sua capacidade de ir e vir sem nunca deixar de ficar. Voltas que a fazem tão viva dentro de mim… E como eu queria. Queria tanto que você soubesse que nesse mundo maldito em que tudo que é tocado por mim desaparece, você ainda permanece dessa forma em mim, com toda a sua imortalidade forjada em meu espírito, uma segunda existência sua, num só instante lançada eternamente sobre a minha solidão. Glauber Costa 45 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Amor de alguém 46 OUTRAS PAIXÕES História é uma palavra com origem no antigo termo grego historie, que significa “conhecimento através da investigação”. A História é uma ciência investigativa do passado da humanidade e do seu processo de evolução. Adoro saber o significado das palavras, sua orige. Adoro também saber a origem de tudo. Vivo investigando. Nasceu onde? Qual a origem? Significa o quê? Adoro história... Vivo meu presente procurando saber tudo o que posso sobre o passado. Não sou historiadora, mas hoje aqui vou contar a minha história. A minha grande história de amor. Desde sempre quis um grande amor. Suspirava ao ver namorados de mãos dadas, pessoas abraçadas, as trocas de carinhos. Era meio que intrusa a observar conhecidos e anônimos felizes nas ruas, nas praças, nos metrôs… em todo lugar. Porque o amor está em todo o luga e pode ser encontrado em qualquer lugar. Todo mundo parecia já ter encontrado seu amor, menos eu. Eu, solitária, a sonhar, a procurar… Queria encontrar o amor e parecia que ele sempre se escondia de mim. Me sentia triste em saber que nunca tinha sido também o amor de alguém. Não sei se há uma idade certa pro amor acontece. O que sei é que eu achava que comigo já havia passado do tempo. Sou linguista. Fiz meu doutorado em Paris. Quando 47 OUTRAS PAIXÕES fui pra lá estudar, levei na mala o sonho de meu amor encontrar. “Seria a perfeição… um amor em Paris”, pensava eu, sonhava eu. Não aconteceu. Quando voltei ao Brasil, quatro anos de solidão depois, fui estudar uma língua indígena em extinção no interior da Amazônia. Que diferença do mundo europeu. A selva, o rio, as matas… que beleza de imensidão, quanta história para conhecer. E lá estava eu, igualzinha de sempre, querendo fazer acontecer a minha história de amor. Cheguei a Nhamunda…. Você pode saber tudo sobre essa bela cidadezinha no Google e pode ver fotos também. Na minha segunda noite lá, o pessoal do hotelzinho em que fiquei me recomendou o Festival da Pesca do Tucunaré. Fui. Por alguns momentos os casais apaixonados não foram a minha atenção – lembre que sou neurótica com isso. Fiquei encantada com os peixes, com as pessoa, com a música… com tudo à minha volta. Meu olhar curioso se deliciava com a beleza exótica, perfumada, saborosa desse lugar. Me distraí caminhando pelo lugar. Me distraí a olhar as águas do rio Nhamundá. Não vi quando Carlos se aproximou… Ele me viu, ele me notou. O amor, até que enfim, me encontrou. Rosangela Calza 48 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Vivian 49 OUTRAS PAIXÕES Vivian recorda de Edson de um tempo em que jamais imaginaria a importância que teriam um para o outro, ele então um viciado em crack. Antes de o conhecer de verdade, ela o temia; lembrase de voltar tarde para casa e vêlo fora de si pelas ruas de Tubarão. Mas o amor os encontraria. Dez anos depois, Vivian namorava justamente o irmão de Edson, sem ainda ter conhecido este. Foi na noite em que celebrava o pedido de namoro que ela conheceu aquele que se tornaria o seu esposo. Ele havia mudado. Estava longe de ser o sujeito que avistava nas ruas. Ela e Edson dançaram naquela noite, algo que marcou muito os dois. Era a primeira prova de uma afinidade que só aumentaria com o passar do tempo. O namoro com o irmão não deu certo, enquanto Vivian e Edson continuaram a se ver como amigos por um ano, sem mencionarem o que sentiam um pelo outro. Tinham receio de se abrirem por causa do irmão dele. Então, depois de um ano de amizade, os dois se declararam. Em seguida decidiram viver juntos. No entanto, nem tudo foi tão simples. Pelo passado dele, a família de Vivian obrigoua a escolher: se preferisse ficar com ele, deveria partir imediatamente e não olhar para trás. Ela assim o fez. 50 OUTRAS PAIXÕES Após dois meses de união, Edson teve uma recaída. Uma noite, ao voltar para casa, encontrouo diferente; aquela visão partiulhe o coração. Ainda assim ela disse para si mesma: “se eu escolhi esse caminho vou ter que encarar junto com ele”. Colocouo no banho e conversaram francamente. A partir daí sempre que ele fosse comprar a droga ela o acompanharia, porque ambos temiam que um dia não voltasse para casa. Aos poucos Vivian conseguiu convencêlo a consumir menos. Cinco pedras, três pedras, duas pedras... Quando chegaram a uma pedra disselhe que deveria comprar uma para si também ou não o deixaria usar. O vício foi mais forte nele e de fato comproulhe a pedra. Em casa ela pegou aquilo nas mãos e falou com o coração diante de Edson: “isso está nos destruindo, quero que tu faças o mesmo que eu faço”, e jogou a pedra na privada. Depois de muita luta, muita dedicação e muito amor, hoje Edson está há sete anos livre das drogas. Nesse meiotempo se casaram e ele, vindo de uma família conturbada, pôde reatar os laços com seu pai. Ela também voltou a falar com a própria família. Para ele, Vivian é a mulher da sua vida; por tudo que ela demonstrou, Edson com certeza é o homem da vida dela. Os dois vivem muito felizes. Conforme o relato dela. 51 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Francisca e Júlio 52 OUTRAS PAIXÕES Trabalho e família evoluíram juntos para Francisca e Júlio. Não se pode contar a história do casal sem mencionar as Lojas Fátima. Júlio veio para Criciúma aos dezesseis anos, sob os cuidados de seu irmão mais velho, então empenhado em tornarse padre. Depois que este abandonou o seminário, começaram uma pequena livraria com artigos religiosos ao lado da Igreja Matriz da cidade. A livraria se chamava Nossa Senhora de Fátima. Algum tempo depois, foi num baile do City Club que Francisca e Júlio se conheceram, ela mais nova do que ele. Casaramse em 1963, Francisca começou a trabalhar como professora e Júlio assumiu a livraria. Os filhos vieram, quatro ao todo, e os negócios prosperaram. Após doze anos no magistério, Francisca passou a acompanhar lado a lado as atividades do marido na loja. Como ela diz, sempre foi uma mediadora nas situações; acalmava aqui ou animava ali quando preciso. E nem sempre foi fácil, pois como todo casal que batalha junto eles passaram por dificuldades. Os pais de Júlio foram rígidos na questão financeira e não permitiam desperdícios, o que o próprio Júlio passou a seus filhos quando precisaram. Nesse ponto podese ver uma maior alegria nos olhos de Francisca. Quando fala dos filhos e dos netos, tem a confiança de que passarão adiante o que aprenderam 53 OUTRAS PAIXÕES sobre o trabalho e sobre construir uma família. São eles que darão continuidade às Lojas Fátima, já com seis estabelecimentos. Ela recomenda aos netos: “Não deixem nada acontecer se naquele momento vocês não acreditarem que aquela pessoa é a pessoa das suas vidas”, e você sabe que ela fala com convicção, pois basta olhar o casal para perceber que eles encontraram as pessoas das suas vidas. Conforme o relato deles. 54 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Dois 55 OUTRAS PAIXÕES Estudavam juntos desde a quinta série. Renato estava na sala de aula, esperando seu amor chegar, batucando com o lápis sobre a mesa, entediado, era cedo ainda… Álvaro, apesar de estudar com ele desde a quinta série, era três anos mais velho, pois viera de uma cidade muito pequena do interior, e começara os estudos tardiamente, tinha muita dificuldade com aprendizado. Era alto, um pouco desengonçado, lembrava aqueles bonecos de posto de gasolina, tiravam muito sarro dele até a oitava série, mas depois pararam, primeiro por ser sério, depois porque estava mais alto e era mais velho que todos ali, um pouco menos desengonçado, e acabaram deixandoo de lado. Tinha apenas um único amigo, também quieto e solitário no fundo da sala, mas mais jovem e mais baixo que ele: Renato. Aproximaramse de forma bem vagarosa desde a quinta série, mas foram tornarse amigos mesmo na oitava, e começaram a namorar no primeiro colegial. Estavam hoje no terceiro colegial, namoro firme, várias pessoas sabiam, muitos desconfiavam, sofriam um pouco de preconceito, mas já estavam praticamente acostumados. Se é que um dia se acostuma ao preconceito. Foi no primeiro colegial, quando faleceu a avó de Álvaro, com quem morava, além de com um tio mais 56 OUTRAS PAIXÕES velho, é que ele começou a frequentar a casa de Renato. A princípio, seus pais foram com a sua cara, mas algo aconteceu, que fez com que seu pai não gostasse mais da presença dele ali. Assim como foi lenta a sua aproximação como amigos, também o foi como amantes. Trabalhos e trabalhos da escola, videogame, e outras razões para que Álvaro fosse visitar Renato pelo uma vez por semana, ficavam horas em seu quarto, tocavamse por engano, e vibravam de dentro a fora. Isso até o dia em que começaram a discutir por causa um jogo de videogame, uma discussão em tom de ironia e brincadeira, pois eram calmos demais para discutirem e gostavamse demais. E, no meio dessa discussão, seus olhos se encontraram e ficaram estáticos, a leremse reciprocamente. Beijaram se. Dali para o amor foi um pulo. É claro que as visitas de Álvaro continuaram frequentes, inclusive nas férias, e os pais de Renato gostavam muito dele. Mas o pai de Renato, que era extremamente preconceituoso, estava começando a suspeitar de que houvesse algo além de amizade entre ambos, apesar de ter menos contato com Álvaro, pois quando esse estava lá, geralmente estava trabalhando. Descobriramse ali, naquele pequeno quarto com mofo nas paredes e com móveis antigos, enquanto os pais de Renato trabalhavam, à tarde, depois da escola, mas sua mãe chegava mais cedo. Passouse um ano, dois anos, estavam já iniciando o terceiro e último ano do Ensino Médio. Tinham planos de começarem logo a trabalhar, morarem juntos, adotarem uma criança, serem, enfim, um casal pleno e feliz. Mas tropeçaram na ignorância e no preconceito alheios… 57 OUTRAS PAIXÕES Seu pai era religioso, bebia além da conta, tinha amigos que não eram, realmente, boas companhias. E já cobrava de Renato uma namorada havia tempos, bastante desconfiado de sua homossexualidade. Quando via Álvaro, mal olhava em sua cara, o clima começou a ficar pesado, e Álvaro estava começando a se preocupar, mas Renato não se preocupava, disse que logo tudo iria passar e seu pai se acostumaria. Não foi o que aconteceu. Certo dia chegou mais cedo, não os pegou na cama, mas pegouos num abraço, tão simples, tão sincero, e o amor, sentimento que o pai de Renato não conhecia, pulou em seus olhos frustrados e infelizes, e ele quase pulou em cima dos dois, pronto para espancálos. Mas decidiu não fazer nada, conseguiu se segurar, pois não estava bêbado. Desde esse dia o pai de Renato disse que não queria mais Álvaro lá, nem perto de seu filho, nem de sua família. Álvaro não foi mais lá, mas continuaram se vendo, escondidos, entre suspiros e gemidos, e braços que seriam curtos se tornavam longos, sonhavam com sua casa, com seu amor cultivado entre quatro paredes, mas livre. E assim mantiveram seu amor em cativeiro. Naquele dia, quando já se passavam dez minutos desde o início da aula e nem Álvaro, nem o professor chegavam, Renato começou a sentir algo estranho. De repente o professor entra, calado, mesmo diante das piadinhas sobre seu atraso, não era de se atrasar, olhou direto no fundo da sala como para certificarse de que Renato estava lá, seus olhos o miraram rapidamente, e neles se viu algo fundo, estava pensativo. Pigarreou. Renato engoliu em seco. Bom dia! Tenho uma má notícia 58 OUTRAS PAIXÕES para darlhes, o nosso colega de classe, Álvaro… Ele faleceu ontem à noite. Olhou de canto para Renato, sabia que eles eram namorados, perguntaramlhe o que havia acontecido, fora assassinado na porta de sua casa, às dez da noite. Foi quando estava voltando do encontro com Renato. Em alguns momentos sentiu que estavam sendo seguidos, disse a Renato, que pensou que ele estava apenas preocupado, afinal, quem os estaria seguindo? Mas há alguns dias tivera uma discussão séria com seu pai, e estava disposto a sair de casa, acabara de arrumar um emprego e estava procurando uma pequena casa para morar. E seu pai o ameaçara, ameaçara seu namorado, tinha amigos que realmente fariam qualquer serviço sujo para ele, mas não imaginou que ele tivesse coragem… Quando o professor deu a notícia, tudo fez sentido, depois tudo perdeu o sentido. A primeira vez que o viu, quando ele se sentou ao seu lado, com um olhar de canto, a primeira vez que se beijaram, risadas, olhares, abraços, amor. Sentiu uma forte pontada em seu coração e saiu imediatamente da sala, com um gosto gelado em sua boca. André Mascarenhas 59 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Sofismando 60 OUTRAS PAIXÕES É má a maré. Em certa época, duma dessas feitas em que havia perdido a Felicidade pela primeira vez, assuntei muito dentro de mim e cheguei à conclusão de que a dita perdida de fato consumado existia, por deveras. Bem que se não, não sabia direito o que ainda havia de me suceder. Pois veja, vou te contar piazote. Na primeira instância perdi um amor desses amores de enfado e comodismo. Sofri, chorei. Senti falta da dita por um bom tempo, e nesse tempo fui infelizinho. Mas buscava o tesaurus perdido, queria minha doce e dourada Felicidade de volta, ô se queria! Saí fora por aí andando, vivendo e me satisfazendo. Não fui feliz nem desinfeliz nesse meio tempo, mas fui algo preenchido, fui sim. Saí e farreei com moça alta loira bonita feia magra gorda mediana ruiva japa mulata louca capenga. Saí com um mundaréu de mulher e lambi os beiços em minha hedônica peregrinagem. Voltei a sorrir finalmente depois de uma epifania paga à vista, mas retirada a prazo. Voltei a sorrir cheio de dentes, sem amarelo nem forçado, sorrindo por sorrir, feito pinto no lixo. Aí então veio o conluio dos astros das estrelas dos planetas da astrologia horóscopo zodíaco sagitariano 1º decanato, foi sim. Encontrei a danada que tatuou meu coração pulsante fraquinho, fraquinho que se recuperava de doença de amor quebrado. A danada limpou bem o coração e fez dele novo feito folha. Ficou lindo, todo mecânico em quilowatts 61 OUTRAS PAIXÕES hora por quilômetro quadrado de joules e amperes bem fortes. Tinindo ficou e louco por ela. Fui feliz pacas, e sorria para qualquer coisa que me topava na rua. Cacete! Foi bacana demais, ô se foi. Ela era danada de boa e danada de meu amor que só meuzinho. Amormeuzinho, sim, eu chamava a danada desse modo, bem sofisma. Mas aí então veio Destino em sua grande biga puxada por cães negros e passou com a roda de ferro bem por cima do coração elétrico motorizado e o partiu em pedaços. Conto pra ti que na verdade verdadeira quem puxou a roda pra cima do coraçãozinho pequetito foi a danada, foi sim! Despedaçou o pobre bicho e saiu que saiu cantando poeira na carona da biga negra. Foise embora a danada e me deixou aqui, sofrido no quebrado do quebranto. Aí então sofismo comigo mesmo, depois de bem alimentado e bem bebido, cadê meu talismã? Felicidade se foi com a danada. Levou roubado na algibeira, e agora 'tou que cão sem dono. Já era, escafedeuse a jaguara. Assunto comigo mesmo bem pensado e mal falado que a Felicidade se foi pra nunca mais. Dantes ela tinha se perdido, mas foi facilmente reencontrada. Sem problemas, sem mistérios. São Longuinho me ajudou. Agora? Ih piá! Agora foi roubada, e a ladra fugiu pra não sei onde, nem quero saber. Fico aqui, sem jeito olhando a maré, vir e voltar. Vir e voltar. Subindo e descendo, como meu humor feito mar de lágrima salgada. J. Pinto Fernandes 62 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Darci 63 OUTRAS PAIXÕES Desde o primeiro instante você percebe que Darci não é uma mulher de meiaspalavras. Com 76 anos de vida e 56 anos de casada, essa senhora não carrega quaisquer visões mágicas sobre o amor. Ela sabe que viver é uma luta diária e se chegou até aqui ao lado de Clivaumir, seu esposo, é porque foi mais forte do que a vida. Os dois se conheceram quando ela tinha 17 e ele 24. Na época ela namorava um outro rapaz, que num baile deulhe as costas para falar com outra e por causa disso ela resolveu tirar Clivaumir para dançar, já que ele não era muito disso. E, como ela mesma diz, por teimosia eles continuam juntos até hoje. Não foi uma vida fácil, admite. O ponto mais crítico da sua união com Clivaumir foi o problema de alcoolismo deste, que graças à ajuda de Darci conseguiu superar. Foram muitos anos numa batalha silenciosa, pois ela não queria revelar aos três filhos nem às outras pessoas o que acontecia em casa. “Eu chorava, mas eles nunca me viram chorar. Se eles perguntassem, eu dizia: ah, tô gripada.” Tudo mudou quando ela resolveu internálo numa clínica. Tomouo pela mão, levoo de ônibus até lá e prometeulhe o quarto filho, que viria a se chamar também Clivaumir, como o pai. De volta à casa, a tentação de voltar a beber foi grande, principalmente quando se juntava com os amigos. Ele tinha medo de que o achassem mandado pela mulher, então Darci o pôs na 64 OUTRAS PAIXÕES linha: – Que bom que és um mandado pela mulher, porque pelo menos tens uma! Hoje em dia Clivaumir tem se revelado um bom cozinheiro, na medida das suas limitações, e cuida da casa direito, garante sua esposa. Eles só querem aproveitar o que construíram na paz de Nova Veneza e receber as visitas regulares dos filhos, que estão todos bem e moram pela região. E não nos esqueçamos dos bailes do Carnaval local, em que sempre estiveram presentes e não deixarão de ir. Para quem quiser conhecêla, a Dona Darci continuará lá em seu salão, disposta a contar com orgulho a sua história, entre um cigarro e outro. Eu também teria orgulho em seu lugar. Ela merece. Conforme o relato dela. 65 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Era uma vez o Amor 66 OUTRAS PAIXÕES Garimpava em um sebo do centro velho da cidade e o título de um livro me chamou a atenção: “Era uma vez o amor mas tive de matálo.” Pense que aquele título, que me pareceu bem interessante, cabia melhor em uma canção. E tinha relativa razão: folheandoo, descobri na contracapa a informação que o título derivava de uma música da banda Sex Pistols. Não levei o livro, pois tive que escolher entre ele e outros, de autores que havia me comprometido a ler; também não ouvi a canção, pois em questão de música o punk rock inglês não é bem um gênero que me atraia. O problema é que fiquei com aquele título na cabeça: “Era uma vez o amor mas tive de matálo.” Era capaz de ouvilo em meio a burburinho do restaurante a quilo onde costumava almoçar, diluído nos ruídos urbanos da cidade, trazido pela brisa fria de cada entardecer. Quando dormia, ouviao sussurrado suave na voz de Tércia, como se ela ainda ocupasse o seu lugar, ao meu lado esquerdo, no nosso leito conjugal. “Era uma vez o amor mas tive de matálo.” Não soube através de ninguém. Quando as suas cartas pararam de chegar e as minhas a serem devolvidas pelo correio, eu tive a certeza de que dentro de mim algo havia se rompido. Pela primeira vez levei a sério o que me pareceu premonitório. 67 OUTRAS PAIXÕES Bateu em mim o desespero dos impotentes. Gastei mais do que podia com telefonemas para o número que ela me deixara para ligar em caso de urgência e recebi respostas atravessadas, de pessoas sem o mínimo de consideração, e em um idioma que eu não dominava. Aquela porta me foi fechada. Achei e temi que ela estivesse morta, mas não o Amor. E atravessei as noites como quem cruza descalço um mar de vidro estilhaçado, consumido pela culpa de ter permitido que ela partisse. Ouvia à exaustão as fitas cassete que ela me enviara com o que chamava de trilha sonora do nosso amor. Entre estas canções não se encontrava aquela dos Sex Pistols. Uma madrugada, em uma daquelas fitas, detectei, quase que por acaso, um diálogo curto porém devastador. Atento, perscrutei mil vezes o seu conteúdo até entender, ou em meu ciúme conjecturar, que se tratava de uma conversa entre um homem e uma mulher. A voz feminina, eu podia jurar, era a dela, Tércia. Relaxados, como se descansassem de fazer amor e compartilhassem íntimos um cigarro, riam. Certamente de mim. Inoculado de ciúme, engendrei mil maneiras de me matar, de matála, ou de matálos; mas não cogitei em momento algum assassinar o Amor que para mim ainda era, como reza o soneto famoso, um sentimento imortal. Depois disso, abalado, rastejei como um réptil que digere a poeira estéril dos dias. Encharquei de álcool as minhas noites vazias e incinerei nas chamas frias do rancor as minhas parcas expectativas. Mas estava vivo. E permiti ao meu corpo o consolo de outros corpos. Passou. Ficou somente a lembrança. E aquela ideia tola de que o Amor não pode morrer jamais. 68 OUTRAS PAIXÕES Os anos correram. Nossos caminhos, talvez por mútua intenção ou por conspiração dos astros, voltaram a se cruzar. Ela falou em reatarmos, em darmos sequência àquela história interrompida, em encaixarmos as peças soltas da estrutura desarticulada que um dia ousamos edificar. Não acreditei que ainda apostasse no Amor. Eu agora tinha dúvidas e não dispunha de recursos emocionais que me permitissem arriscar novamente. Tudo o que ela pedia era uma nova chance. Posterguei a resposta. Uma noite, outra noite, sem qualquer remorso ou culpa, me vi a botar um ponto final naquela história. Como cantava o Sex Pistols, como escreveu o escritor colombiano Efraim Medina Reyes em seu livro, incapaz de esconder minhas mãos sujas de sangue e de disfarçar a minha covardia, tive de lhe confessar: “Era uma vez o amor mas tive de matálo.” Chico Pascoal 69 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Sabor aos quarenta 70 OUTRAS PAIXÕES A provocação iniciouse com pequenas mordiscadas nos lóbulos das orelhas. Palavras abusadas que roçavam a pornografia, mas que variavam com a delicadeza com que ele beijava os meus mamilos. Ao prenúncio do prazer que beira o incômodo, eu o respondia com gemidos de fêmea irritada e ansiosa pelo toque mais sacana. No jogo das sensações em que eu acabava de entrar, davamme satisfação os gestos largos com que ele me realizava como mulher. Lábios afogueados, besuntavam o meu corpo do pescoço até a virilha. Cada parte arrepiada incitavao ainda mais. A extensão daquele momento faziame querêlo todo dia. Impossível. Seria ilógico prendêlo a um relacionamento, qualquer que fosse. Ele nasceu para ser assim, livre, selvagem, insaciável. Naquele ritual entre os nossos corpos lubrificados, a língua do macho era protagonista. Foi a atuação mais sincera que já tive entre as minhas coxas. Sei que a linguagem é pesada, mas eu estava no cio. Se não estivesse não teria falado coisas que jamais diria a homem algum. A química perfeita se denunciava pela mistura dos cheiros de gozo dos nossos corpos. Quem chegasse ao quarto e se deparasse com aquele cenário, teria apenas uma noção da volúpia entre nós dois. Cama em desarranjo, calcinha na cabeceira do espelho, vinho derramado no chão. O esperma nos 71 OUTRAS PAIXÕES lençóis apenas evidenciava momentos que só dois animais sedentos de sexo poderiam saber. Mas… infelizmente tudo tem um final e preciso terminar essa história. Não porque tenha acontecido alguma quebra de encanto. Claro que não. O que houve foram intervalos de tempo entre os vários momentos do nosso caso. Devido ao curto espaço desta narrativa, deixolhe um pouco da minha experiência como mulher. Até aqui nada de novo. A novidade foi que isso aconteceu quando eu acabara de completar quarenta anos. Após a minha segunda separação, gozei pela primeira vez. Agora ponho fim no que lhe conto. Sobretudo, porque estou às pressas para cair de boca e nos braços deste ser fabuloso que pintei com as cores da luxúria para o nosso deleite, meu e dele, porque toda mulher tem o direito de se sentir desejada. Erick Bernardes 72 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Maria G. 73 OUTRAS PAIXÕES Aos 24 anos eu me formei professora de História aqui mesmo em Florianópolis e fui trabalhar em uma escola, onde conheci um professor de Língua Portuguesa, Paulo, também com 24 anos. Nós nos apaixonamos e tivemos um relacionamento de sete anos. Ele era uma pessoa muito culta. Nós viajávamos juntos, íamos a peças de teatro, cinemas, shows; eu vivi tudo isso junto com ele. Nós éramos mais do que namorados, tínhamos um amor de alma, de cumplicidade. Compramos um terreno juntos, mas não chegamos a casar. O Paulo era muito metódico e tudo tinha que ser mais, mais, mais. Nesse meiotempo eu fui trabalhar em outro colégio e ele foi fazer mestrado. Daí compramos um terreno lá no Campeche, construímos a casa, decidimos economizar mais um pouco... Quando fez sete anos, tivemos uma briga e terminamos. Um mês depois ele começou a desmaiar no colégio, passar mal na rua... Eu achava aquilo estranho, então fui saber por uma amiga minha que ele estava com leucemia. Liguei para o Paulo e falou que ia me procurar para contar toda a história, que não queria me assustar. Em seguida nós nos reaproximamos – ele se lamentando, porque amava a vida e gostava muito de aprender –, mas não mais como namorados, agora como grandes amigos. Ele ficou treze anos com leucemia. Em 2008, em 74 OUTRAS PAIXÕES março nós fomos a São Paulo para vermos uns shows, sempre como amigos, aí quando chegou junho ele piorou muito e teve de ser internado. Em agosto ele morreu. Passei dez anos sozinha porque eu não conseguia aceitar outra pessoa. Eu só fui conhecer alguém que me convenceu a dar uma chance para mim mesma agora, em 2012. Guardo isso com alegria e considero uma boa história, porque não é aquela história de amor tradicional... (risos) Relato dela. 75 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Falava das minhas “desgraças”, hoje escrevo a nossa tragédia 76 OUTRAS PAIXÕES Foi um momento na minha vida como outro qualquer – uma desgraça! Repetitivos e infortúnios fracassos constantes. Tais desapontamentos realmente mexem com o psicológico de uma garota, ainda mais ela sendo destoante da sociedade. Sim… Falarei da minha vida amorosa – outra desgraça! Que se juntava às coisas banais e fazia com que meu maior estímulo para levantar da cama fosse para assistir a reprises de séries escolares com jovens feias sendo escolhidas pelos garotos mais bonitos do colégio como suas namoradas. Por que tal façanha só ocorre na TV? A vida era muito cruel mesmo, e ainda sambava na minha cara quando descobria que a feia da série, na verdade, teve de se maquiar bastante para conseguir parecer feia, porque, na íntegra, ela era mais bonita do que todas as meninas que eu já tinha conhecido na minha vida. Assim, foi nesse espirito de revolta, de luta e como forma de evitar tomar antidepressivos que decidi criar um novo plano de metas para minha existência: decidi não esperar mais. Dessa vez era oficial e todas as fichas já haviam caído. Eu já sabia que não existiam chances de eu acordar um dia e ter me transformando em uma Miss Universo como resultado da minha “fase de crescimento”, que não podia nem mais pensar que poderia encantar um herdeiro de um conglomerado milionário vindo do outro lado do mundo e fazêlo desistir do dinheiro para poder se casar comigo, e que jamais teria alguém tão apaixonado por mim que viria se 77 OUTRAS PAIXÕES declarar na porta da minha casa a cavalo, nem mesmo de van… Então segui em frente. Influenciada, agora, por melodramas românticos e humorísticos sobre rompimento de relações, me tornei fiel ao dito “acredite e faça você mesma acontecer”. Impressionante como tais dizeres quando ditos por celebridades, acompanhados de uma música de fundo altamente motivacional, nos fazem acreditar que podemos conseguir qualquer coisa. Quer saber? Desgraça também! Porém, minha realidade, como já disse, sempre jogou contra mim. Como conseguir ser amada e admirada enquanto não possuía artifícios corporais “rebolantes” em escala master e altamente magnetizados para atrair alguém? Deveria incorporar um papel que pudesse cobrir esses espaços que não preenchia. Pensei em uma mudança radical, talvez fosse uma boa ideia. Mas como perder a minha personalidade, meu eu de verdade? Esquecer quem se é ia contra a principal ideia dos filmes de rompimento, de cujus princípios agora eu era adepta. Então fiquei do mesmo jeito… A mesma desgraça! Passei a pedir ajuda aos amigos e às pessoas mais próximas. “Como fazer para me dar bem no ramo amoroso?”, enchia todas as conversas com essa pergunta. Falando de sapatos, nada me impedia de citar o sapatinho de cristal de Cinderela e fazer alusão a sua grande conquista com o príncipe; falavam de sono durante a aula e eu sempre achava uma forma de comentar como a Bela Adormecida havia conseguido um príncipe encantado até enquanto dormia; conversavam sobre algo como água e por que não citar as águas do Atlântico por onde passou o Titanic e Rose e Jack se apaixonaram 78 OUTRAS PAIXÕES perdidamente somente por se apaixonar mesmo. Tudo que meus amigos diziam e faziam era uma perfeita desculpa para reclamar do meu estado dolorido de solteirice eterna. Isso posto, meu vocabulário agora era composto apenas por alusões a contos de fadas e a filmes bregas. Numa tarde de quinta me deparei com um concurso na internet. O tema era amor. Por algum motivo achei que poderia participar, pois, mesmo não tendo experiência nesse campo superestimado da vida, serviria como um passatempo. Pedi ajuda mais uma vez aos meus resistentes, pacientes e gentis amigos. Achei que pudessem relatar algumas experiências românticas ou quase piegas e assim eu poderia juntar com a minha escrita, que nunca antes tinha sido ridicularizada, e talvez tivesse chance de mostrar algum ponto de vista. Um conto fictício, mas não mais que um conto. Só que, pelo jeito, já tinha incomodado demais aqueles que estavam ao meu redor. Disseram que meus assuntos estavam monótonos e que não queriam ouvir mais nada. Me deixariam caso não ficasse de boca fechada dali em diante. Chorei. Resmunguei muito. Chorei mais um pouco. Já alterado com o meu show, um amigo mais ou menos próximo se levantou da mesa em que todos se reuniam e andou na minha direção. Me levantou rapidamente da cadeira, de uma só vez, com um puxão no meu braço. Me segurou e ainda relaxado tascoume um beijo. Um beijo na boca! Meu primeiro beijo… – Não era isso que queria? Acabar com esse estado de virgindade de beijos? Pronto, resolvido. Agora, calese! – ele disse, agora alterado, como quem expulsa alguém indesejado da casa no meio da noite. 79 OUTRAS PAIXÕES Cai lentamente (ou talvez assim só na minha cabeça) em movimento retilíneo uniforme. No chão. Não podia acreditar que depois de esperar 16 anos para ter um momento digno de realização amorosa, aquele momento havia sido arrancado tão abruptamente de mim e que, por mais que quisesse negar, no fundo tinha sido eu a causadora de tudo aquilo. Assim sendo, jamais existiria outra chance de ter a renomada primeira vez. Fiquei sentada lá, sem poder sair, imóvel e boquiaberta, processando mais uma derrota para minha lista de desgraças à la Dostoievski, em tamanho. Apesar de tudo, o beijo tinha sido muito bom. E por um momento, analisando o gosto bom que ainda sentia em minha boca, cheguei a dar razão a minha luta – de fato eram aqueles gratificantes porém pequeninos gestos que eu estava perdendo, sendo sozinha e desabraçada nessa vida. Contudo, logo esqueci essa ideia. Pois já tinha enfurecido os amigos, aqueles que sempre me deram afeto, os trocando por uma realidade construída com possibilidades platônicas. Logo em seguida fui ajudada a me levantar pelos outros que estavam no restaurante e dali em diante fiquei calada. Nada saía da minha boca, todavia meus pensamentos falavam e me insultavam a mil por hora. Como fui burra. E como poderia, por um momento sequer, ter apreciado um beijo que tinha sido concedido para me calar e humilhar? Passei o final de semana que se seguiu pensando nisso. Felizmente, recebi algumas visitas corrompidas por compaixão que me apoiaram no ocorrido no restaurante. “Foi muita maldade o que ele fez”, repetiam as meninas. “Você só queria escrever um conto, oras”, completavam as outras. Porém nunca deixavam de relembrar e de 80 OUTRAS PAIXÕES ressaltar: “claro que você não precisava ter nos enchido tanto com esse assunto”, ou “podia pelo menos ter escrito seu próprio conto, você sabia que já tinha passado dos limites”. Sim, tinha passado dos limites, mas não tendo história de amor nenhuma, como escreveria meu próprio relato? Escreveria sobre minhas tragédias, as mesmas que me colocaram no estado de coitada e condenada? Enfim, voltei. Fui normalmente à escola na segunda feira. Decidi ficar mais reclusa, de cabeça baixa, como sinal de arrependimento e digna de dó. Passei as aulas sentada comportadamente e, impressionantemente, prestando atenção na matéria, apesar de ter ainda assim de perceber as rodinhas comentando sobre mim, de ver pessoas apontando para mim e algumas rindo de mim. Mais tarde, lá pela quarta aula, ele apareceu – o justiceiro incrédulo que tinha feito justiça em nome de todos, mesmo que violentamente, e eu continuava a considerálo um amigo (ficando afastado por um momento), mesmo dadas as circunstâncias. Ele conversava com os outros meninos, estes pareciam querer convencêlo a pedir desculpas porque já tinham dó da minha pessoa. Todavia, ele não parecia se comover, não parecia quer ceder. E, falando sinceramente, eu não achava mais que ele tinha sido tão cruel comigo, dadas também as circunstâncias que eu tinha criado. De repente ele começou a se aproximar. Nesse momento quis morrer, e podia ter morrido sim. Meus batimentos foram nas alturas, acelerados por causa do conflito em minha mente que me julgava por ter sido decepcionada por um amigo, por ter gostado do beijo, e me sentir culpada pelos dois casos. Me afundei na 81 OUTRAS PAIXÕES carteira e me encolhi na jaqueta do uniforme. Ele, com seus olhos brilhando estranhamente, sinalizou que eu me levantasse. Fiz o que ele pediu. Logo já estava de pé, mas ainda não olhava nos seus olhos. Eu olhava para baixo. “Preciso falar com você”, ele disse. Me virei para o menino, olhei para seu rosto, ainda assim fazendo muito esforço. Me posicionei como se estivesse me esquivando de um soco iminente, só que agora olhava mesmo para ele. – Gostou do meu beijo? – o garoto me perguntou, com um sorriso sarcástico. Aquela pergunta me afetou muito! Eu tinha gostado sim do beijo, mas aquilo já era provocação. Então meu olhar, que antes pedia por misericórdia e gritava de tanta vergonha, mudou para raiva. Não me contive, mandei o dedo para o indivíduo. Ainda bem que percebi o erro logo, e completei o gesto com um pedido de desculpas, em voz baixa, claro. – Você estava insuportável! – ele continuou. – Eu sei – completei. Então ele ficou me olhando por alguns instantes. Me olhava estranho, com aquele olhar brilhante. – Não vai me falar se gostou do beijo? – indagou novamente. Prontamente o olhei feio e deixei bem claro que essa pergunta me incomodava. – Sabe, não sei como vou dizer isso, – continuou – mas o povo quer que eu me desculpe com você. No início, achei que devia fazer isso mesmo, só que agora não me arrependo mais do que fiz. – Como assim? Como não? – indaguei assustada. – Só não me arrependo – ele disse esfregando um pé no chão como quem sente vergonha de algo. 82 OUTRAS PAIXÕES Não entendi nada, mas imaginei que aquilo pudesse ser um insulto e por isso virei as costas e saí andando. – Eu não me arrependo. Na verdade, quero ajudála a ter um conto! – ele gritou enquanto me afastava. – Se me deixar… – Não se arrepende e ainda quer me ajudar a escrever um conto. Qual o sentido disso? – perguntei, muito zangada. – Não, eu não quero ajudála a escrever! Quero ser o sortudo a fazer parte do seu conto, ser aquele que a fez ter um! Desculpa – de repente as palavras saíram da boca dele, do mesmo menino de quem eu fugia segundos atrás. Todos que estavam próximos se viraram para ver a cena. Fiquei boquiaberta por alguns instantes e depois segui caminhando, agora mais lentamente, porém ainda para longe. – Eu gostei do nosso beijo. Foi incrível, na verdade. Sinto muito por ter sido tão cruel e ter desperdiçado seu momento. Mas eu ainda sim amei nosso beijo. Talvez nunca tenha feito alguém ficar pensando o dia todo em você antes, me atrevo a dizer que é porque nunca ninguém quis se aproximar de você, infelizmente. Agora acho injusto a sua antiga condição Só que eu, mesmo sem querer, acabei me aproximando e… Você é sim inesquecível! Fiquei honrado pela chance e passei horas desejando que você também tivesse gostado. Será você pode me dar uma chance? Me daria a permissão de me aproximar de novo? De verdade, por livre e apaixonada vontade? – foram as suas últimas palavras, à medida que eu me distanciava. Cheguei em casa chorando. Joguei todos os meus 83 OUTRAS PAIXÕES contos de fada fora e fiz questão de apagar da minha mente tudo o que um dia desejei sobre o amor. Não sei se entenderam, mas, para mim, aquela cena mostrou que tudo o que aconteceu era melhor do que princesas com seus príncipes e as plebeias com suas almas gêmeas. Ele também tinha gostado do beijo, ele também ficou pensando no que aconteceu entre a gente. Era a meu momento, eu tinha conseguido! Por meios tortos, mas alguém me amava e, supreendentemente, pude desafogar minha alma e declarar que o sentimento era recíproco. E então, “não mais que de repente” eu tinha meu próprio namorado, um quase poeta e um conto. Meu conto, não só baseado de fatos reais, mas totalmente composto por fatos reais. Agora ele está sentado ao meu lado, lendo este conto à medida que escrevo. Percebo de relance seu sorriso. – Meu poeta, – começo a dizer – adoraria registrar nossa tragédia de final feliz, posso? Ele diz que sim. E ainda ganho mais um daqueles beijos, o que não é nenhuma desgraça, hehe. Beatriz Lobo Miranda 84 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história do rapaz que nunca amou a moça 85 OUTRAS PAIXÕES Palavras! Preciso delas para contar a história do rapaz que nunca amou a moça. Um rapaz esquisito que ficava com a moça para ter do que desgostar. E uma moça boba, esperançosa, de tudo perfeito e feliz. Faz tempo que isso aconteceu, mas ainda lembro. Nada fez o destino. O rapaz agiu sozinho: desmanchou o namoro com o coice da palavra não. E o rapaz não pagou nenhum castigo até hoje. É milionário de não sei de quê. E a moça tem um filho feio de um outro rapaz que ela não gosta nada. Esse novo rapaz, pai do filho feio da moça, sabe um pouco sobre o passado dela. Entretanto, por nada desconfia do que ela ainda pensa. A moça faz para o rapaz que ela não gosta tudo aquilo que queria fazer para o que ela ainda gosta. E desse jeito vai pondo, por cima dos afazeres, uma pelúcia de felicidade. O menino, seu filho feio, vai mal na escola. E não gosta de ir pescar com o pai nos fins de semana. Prefere ficar no balcão da venda do avô materno. Mas como não se encontra em dar um troco sequer, o avô também lhe vai reprovando aos empurrões. E essa mãe bem informada sabe que o rapaz antigo, ainda bem lembrado, tem uma filha linda e inteligente. Um dia a mãe chegou a pensar em como se sentiria satisfeita, e talvez vingada – quem sabe? –, se seu filho desposasse essa menina. Para que, através de uma contiguidade do amor, ela 86 OUTRAS PAIXÕES reencontrasse o rapaz. Nunca aconteceu. Para isso jamais achei palavras. Rafael Alvarenga 87 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Letícia 88 OUTRAS PAIXÕES “A história começa há um ano e meio”, Letícia conta. Ele, doze anos mais velho, trabalhava no mesmo lugar que ela quando se envolveram. Logo ele lhe disse que não era a única na vida dele, pois namorava outras duas mulheres, mas como ela não procurava nada sério no momento aquilo lhe serviu. “Eu me interessava por ele e o achava inteligente, mais pela atração, então quis ficar com ele. No início ele disse que ia se separar e eu não quis, só que depois eu fui gostando dele. E também descobrindo mais coisas... E essas coisas eu não tenho como mudar, já são da índole dele.” Atraída pela conversa, pois, como diz, “eu gosto bastante de ler, então homem só me atrai pela inteligência, se tem algo para compartilhar”. É claro que a atração física desempenhou um papel importante nessa história, no entanto essa boa impressão dele se desfez quanto mais ela o conhecia. “Ele tem uma vida que nunca vai ser condizente com a minha. Não adianta, não posso insistir nisso. Só que eu já deixei de conhecer pessoas legais por causa dele. Eu esperava que ele mudasse de vida, mas isso nunca vai acontecer.” Não desejando conviver com isso, Letícia tomou a iniciativa de se afastar dele. Contudo, a paixão perdura, ainda depois das ameças da parte dele e de tudo que ele 89 OUTRAS PAIXÕES lhe fez. “Mesmo dizendo 'não', ele é tão machista ao ponto de dizer que ele tem que terminar com ela. Mulher não pode terminar com ele”, comenta uma amiga. “Por que aceito isso e ainda o amo? Eu não entendo o porquê. A única coisa que eu quero é ficar longe dele e ter paz.” Conforme o relato dela. 90 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Willy e Célia Zumblick 91 OUTRAS PAIXÕES Os dois nasceram em Tubarão, ele em 1913 e ela em 1915. Quando jovens, existia uma rixa entre clubes da sociedade; o pai era de um lado, ela, de outro. Então houve uma leve rejeição do namoro por parte dos pais deles porque eram de clubes diferentes. Como pintor, no colégio ele já desenhava e dali continuou se aperfeiçoando, sem ter um mestre ou frequentar uma escola de arte. Ele sempre dizia que ele tinha uma luz, uma estrela que o ajudava a desenvolver as pinturas. Depois o meu avô por parte de mãe foi embora para Timbó, aí eles noivaram enquanto o pai continuou morando aqui, cuidando da relojoaria do pai dele, que depois virou ótica, e a mãe ficou um ano lá porque naquele tempo não se podia vir, a não ser de navio. Ficaram noivos por um ano sem contato. Casaramse em 1937. Eles tiveram sempre uma vida muito saudável, uma vida de muito amor, integridade e respeito. Jamais ouvi o pai ou a mãe levantarem a voz. Eles tinham uma vida plena em sociedade, a mãe o ajudava muito nas festas de clube e estava sempre presente na ótica. Com 85 anos ela ainda vinha à loja. Foi inaugurado o Museu Willy Zumblick no ano 2000. Era o maior sonho da vida dele poder colocar todas as grandes obras num museu para perpetuálas. Criciúma e Brusque já haviam oferecido o espaço, mas 92 OUTRAS PAIXÕES ou ele colocaria aqui ou enrolaria as pinturas, porque de Tubarão não gostaria que elas saíssem. Uma semana depois de inaugurar o museu, ele fechou o ateliê e daquele dia em diante não pintou mais. Tinha conseguido realizar o sonho da sua vida. Ela se foi em 2005, enquanto ele, em 2008. Quando ela faleceu ele sofreu muito, não saiu mais e ficou cada vez pior; eles eram muito amigos, um não fazia nada sem o outro e se completavam. Deixam muita saudade. Relato da filha do casal, Maria Elisa. 93 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Lembranças 94 OUTRAS PAIXÕES Faz um mês que ele se foi. No meu quarto, repleto de lixo e cacos de sonho, ainda sinto seu perfume. Um perfume nítido mas quase inexistente, fruto da lembrança das noites quentes de fim de verão. Mas ainda o sinto em todos os lugares. No corredor onde tantas vezes nos esbarramos sem querer (às vezes por querer), onde eu ainda preciso passar todos os dias. Nos rostos que eu ainda vejo todos os dias, e dos quais não posso fugir. Na cama, agora imensa, onde todas as noites senti o calor de seu corpo. Faz um mês que ele foi para longe. Não tão longe aonde eu não possa ir. Não tão perto que eu possa alcançálo. O sol está se pondo mais uma vez. Mais uma noite sem ele. ***** Caminho pelo corredor, sentindo o frio da chave machucando minhas mãos. Hoje está tão frio, preciso de um abraço quente, braços que me envolvam, me apertem contra um peito forte e aconchegante, preciso de lábios suaves que toquem os meus e me lembrem de que eu ainda consigo amar. Eu preciso dele. 95 OUTRAS PAIXÕES O quarto está tão bagunçado, igual ao meu coração. Suas lembranças estão espalhadas pelo carpete, dentro do armário, no disco do computador. O primeiro bilhete dele, escrito com tanto cuidado; a toalha que ele usava todos os dias depois do banho quente e perfumado; a camisa usada e não lavada que ainda tem um leve cheiro do seu corpo; fotos digitais que vão mostrar, para sempre, o lindo sorriso que me encantou desde o primeiro dia. Ele precisa de mim? O telefone ao lado da cama ainda toca. Mas ouço somente vozes estranhas, palavras ininteligíveis, barulho de vozes ao fundo. Nunca mais poderei ouvir sua voz através desse fone. Porque ele se foi. Ainda me lembro da primeira vez que vi seu rosto, corado, forte, ornado com um par de olhos brilhantes e puros, e um sorriso de satisfação em me conhecer. Ainda lembro da última vez que vi pessoalmente seu rosto, aqueles mesmos olhos brilhantes agora úmidos, querendo se desviar dos meus, seus braços delicadamente me afastando dele, tentando inutilmente criar uma distância que ainda não existia entre a gente. Eu penso nele. O chão do quarto repleto de cacos de esperança perdida, somente esperando que eu os recolha e os coloque na lixeira. Na tela do computador vejo um sorriso que só existe agora em meus sonhos. A caixa de mensagens está cheia, mas nenhuma delas me interessa. As palavras de que eu mais preciso são agora inacessíveis, talvez inexistentes. 96 OUTRAS PAIXÕES Pela fresta da cortina entreaberta, um tímido raio de luar tenta inutilmente vencer a escuridão do quarto. Nem sei mais quantas estrelas estão brilhando na noite de céu limpo e de lua cheia. Porque o céu do meu coração está agora permanentemente nublado. Eu sonho com ele. O sono custa a chegar, e quando chega, eu o rejeito. Já não faz muito sentido deitarme nessa cama quase vazia, sem seu cheiro, sem seu calor, sem seus braços para me aconchegar, sem o som da sua respiração para me ninar. O relógio, sempre impiedoso, continua avançando no tempo. Os minutos viram horas, e as horas viram eternidades. Tão longa é a noite sem ele. Sem ele. Meu peito dói, uma dor que eu poucas vezes experimentei. Meu coração parecendo que vai explodir, minha cabeça num turbilhão de pensamentos sem nexo, misturando o passado com o futuro, a realidade com a imaginação, o sonho com o pesadelo. Dói tanto, mas as lágrimas não surgem. Apesar disso, sinto meu coração se afogando. O desejo e a dor penetrando em meu corpo, como uma espada afiada. Faz um mês que ele se foi. Mas a realidade é impiedosa. A realidade não espera a ferida do coração cicatrizar. Ele está longe. Não tão longe que eu não possa alcançar. Mas descubro, agora, que seu coração está ainda mais longe. Tão longe que eu não posso mais alcançar. Um amor que tão rápido nasceu e tão logo pereceu. Uma rosa selvagem, de cores vivas e de perfume sensual. 97 OUTRAS PAIXÕES Agora, só restam os espinhos que perfuram minha alma. Foram tão curtos os dias que passei com ele. E tão longa é a noite sem ele. Nancy Keiko 98 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Arnaldo 99 OUTRAS PAIXÕES O pai de Arnaldo era taxista em Telêmaco Borba, Paraná, assim como o pai de Anna Júlia. Os dois senhores então investiram juntos em um negócio, com planos de melhorarem suas vidas. Graças a essa sociedade os dois jovens se aproximaram. Ela vinha de uma família grande e pacata; ele carregava o espírito aventureiro e independente de seu pai, mas ela sempre o apoiou e desde que se conheceram foram íntimos um do outro. Casaramse em 1949, quando ele tinha 26 anos e ela, 21. Tiveram três filhos, um homem e duas mulheres, ao longo de um casamento que durou por décadas, até o falecimento de Anna Júlia. Depois de passar por muitas lutas, agora cheio de histórias para contar dos seus 91 anos de idade, Arnaldo declara: “Foi uma vida abençoada. E disso tudo tirei proveitos enormes. Eu posso definir a minha vida com o seguinte: fui feliz, [tive uma] família feliz." Relato dele. 100 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Paixão no cais 101 OUTRAS PAIXÕES Todos os dias, os barcos desembarcavam no cais do Delta do Parnaíba, muitas vezes cheio de esperança, pois traziam consigo peixes, caranguejos e outros pescados que moviam grande parte da economia da cidade. Carlos era um pescador jovem, 23 anos, moreno alto e de corpo atlético, com cabelos encaracolados. Sua presença deixava as mulheres suspirando, ainda mais que sempre era notada pelo fato de andar sem camisa. Era a primeira vez que estava na cidade de Parnaíba, pois era viajante, deixava peixes nas cidades litorânea do Brasil, acreditase que nem mesmo o rapaz lembravase de onde vinha. Perto dali, encontravase a “Casa de Lena”, era um prostíbulo que existia nas proximidades do cais, ponto bem estratégico, por sinal, visto que muitos homens passavam por ali. Madame Lena, como era conhecida Maria Madalena, era uma senhora de 40 anos que cuidava do local. Priscila era filha de Lena, uma jovem de 18 anos, cabelos longos e castanhos, uma morena tipicamente nordestina, que deixava os homens “babando”. Como atingira a maior idade, deveria iniciar na casa de sua mãe. Para ela, não era estranha a ideia, visto que suas irmãs já estavam a certo tempo neste ramo. Certa noite, Priscila estava andando pela praia, ao entardecer, o sol se pondo deixava um tom amarelado em torno da praia. Ela acaba encontrando o jovem Carlos, 102 OUTRAS PAIXÕES que estava se preparando para partir. Parece mágico o encontro de ambos, iniciam uma longa conversa que acaba com os dois deitados nos fundos do barco, os outros pescadores ainda não haviam chegado. Ali, amamse intensamente. Para Priscila, sua primeira vez. Priscila conta toda sua vida para Carlos, após seu momento de amor. Ele indaga o porquê de ela não resistir a essa vida, nem entrava, já que ainda não havia vendido seu corpo. A jovem olha nos olhos do rapaz, promete fazer isso, o que ela desenvolveu pelo rapaz, era algo forte. Após esse momento, o rapaz volta para sua vida errante, nunca mais Priscila o veria. Priscila mudou de vida. Bateu o pé na parede e como o tempo tornouse enfermeira. Sempre que podia, ela ia à praia, não para tomar sol ou para nadar, mas à espera daquele navio, onde seu grande amor estava, aquele amor que a livrou de uma vida insana e sem objetivos. José de Sousa Magalhães 103 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Meu amor, meu amorzinho 104 OUTRAS PAIXÕES Num dia sem igual lhe dei a mão numa oração e não deixei de a olhar e de sentir seu coração. Convidaramme para uma festa anos sessenta em seu lar. Fui só para a observar e semanas depois acabei por ajudar a organizar o seu aniversário, para ter assunto e para ouvir sua voz. Eu pedia o salgado que sobrou e você não me dava chance nem ouvido, muito menos os salgados. Chamavaa para sair e você nunca aceitava, sempre inventando histórias. Numa armação de seu irmão, aonde iam pessoas de montão, saímos juntos para jogar boliche, sendo uma enorme diversão, e tomamos um açaí de que você não gostava até então e hoje ama de paixão. Mesmo assim você ainda continuava não me dando bola, mas pelo seu cansaço e pela minha persistência fomos ao cinema e assistimos a um filme para nunca esquecer. Na matinê de sábado, A Noiva Cadáver fomos ver, pois não queria a oportunidade perder. Beijeia e foi mágico, inesquecível, pois o mundo parou e do filme nem sei mais. Quando saí me assustei, pois você me pediu em namoro sem dó no coração e me fez ir à sua casa pedir ao seu pai a sua mão. O meu medo foi tanto que demorei uma hora para chegar à sua mansão. Chegando à sua casa, estava lotada. Não sabia onde olhar, a casa cheia de pessoas esperando, pessoas que 105 OUTRAS PAIXÕES nunca tinha visto, e eu ali para falar ao seu pai meus sentimentos e sonhos. E ele logo me pergunta qual era minha intenção com você. Na hora respondi, sem pensar e sem saber o que iria acontecer, que queria namorála e um dia casar com você. Como sempre cumpro minhas promessas e nunca desisto, hoje estou com você, tenho uma linda família e você será meu amor, meu amorzinho por toda a vida. Washington Lanfredi 106 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Sheila 107 OUTRAS PAIXÕES O inferno de Curitiba começa logo ao lado da Catedral. As calçadas são ocupadas por gente cansada do trabalho, a caminho de casa, e por aqueles que acabavam de começar o dia. São moradores de rua, viciados, traficantes, seguranças, garotos e garotas de programa, algumas longe de serem ainda garotas. Eu me perguntava como poderia haver amor no meio disso tudo. Cansado de caminhar e com frio, entrei num desses lugares. No palco uma das mulheres dançava ao som de Still Got the Blues, o que me deu um palpite de que ela seria diferente das outras que me olhavam, sentadas ao longo do balcão, à espera. Depois do show ela veio perguntar o meu nome e se apresentou como Sheila. Prefiro o nome verdadeiro, que me confidenciou no fim da noite, e que guardarei em segredo. Fui sincero com ela, disse que era escritor e que não estava atrás de sexo, mas de uma história de amor. Eu não estava nos seus planos, afinal ela era bonita e poderia conseguir outro, mas gostávamos das mesmas músicas e talvez por isso decidiu ficar por perto até o fim. Mesmo assim ainda não sei quem ela era realmente. Às vezes não percebia quem me falava, se a profissional ou a mulher por trás. Pelas histórias que me contou entendi que ali jamais poderia ser ela mesma. Ela também nunca sabia quem estava na frente dela. Havia malucos de todos os tipos; já foi ameaçada, roubada e existia sempre o risco de ser reconhecida fora 108 OUTRAS PAIXÕES dali. Nesse ramo o amor à primeira vista é apenas um teatro para quem esteja disposto a pagar. Contudo, nem isso impediu que encontrasse o amor com o tempo e pelo hábito. Como dizem, a confiança não se compra. Infelizmente as suas histórias eram tão obscuras quanto as minhas. Houve um cara com quem trabalhava ali e com quem esteve junto. Ele acabou por se matar; “drogas...”, ela concluiu e enterrou o assunto. Então apareceu esse piloto que vinha vêla todas as noites até o momento em que ela disse: “Não precisa mais pagar, eu já estou apaixonada por você”, só não me contou o que aconteceu com ele. “Final feliz” por ali quer dizer outra coisa. Sheila revelou por fim que estava com alguém que a ajudava bastante e esperava sair disso, mas não sabia quando o conseguiria. Não ganha tanto quanto se pensa que as mulheres nesse negócio ganham e o sonho de ter o próprio salão de beleza parecia ainda distante de se realizar. Espero que ela consiga, pois das histórias que ouvi a dela foi com a que mais me identifiquei e a que me deu menos esperança. Conforme o relato dela. 109 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Romance agalopado 110 OUTRAS PAIXÕES O que surge é uma mistura do som e da imagem. Chega e é resultado de instantes distintos. Finalmente sai da cabeça. É som de guitarra equalizada e distorcida por efeito de equipamento eletrônico. Som sincopado, imagem difusa. A batida é raivosa, brutal. E rápida. Tudo é muito rápido. Ao mesmo tempo é bem pensada e estuda cada passo. Quantos botões são necessários para afinar a compreensão de um homem sobre o bicho mulher? Explode um repicar de rabeca, saído do sertão sem chuva e de pôr do sol alaranjado e descoberto. A lembrança vem em flashes. Acendem e apagam no pensamento. Cruzamentos de dados e sentimentos que ficaram muito longe. Dez eles eram ao todo. Entre meninos e meninas de onze a dezessete anos e “quase dezoito”. Interrompe o recoreco. Barulho de folhas secas pisadas, cocheira fedendo a bicho que vive numa paz que o humano desconhece. Walt Whitman diria desse finito sossego que carregam, quase em oração: Lampião e seu bando rezam. A cartilha é mostrada em tela grande. Do que me lembro foi mais ou menos assim: juntos sairiam numa cavalgada. Não havia cavalos e éguas para todos. Uma estava prenhe – avisou o cocheiro. Apontou para a efígie ovalada de fêmea quase castanha erguida incrédula sob os cascos. Alguns resolveramse em pares. O espírito de ventura não permitiria que ela fosse na garupa do namorado. Não diria sobre ela, mais nova que ele. Ele menos bravo. 111 OUTRAS PAIXÕES Aquele episódio deixaria marcas. Reproduziria nela uma viva captura do instante. Do medo que não tinha nenhum e de um adaptarse habilidoso que fazia dela sempre pronta, sagaz. A menina era assim. Aos onze anos adorava cavalos. Naquele dia subiu com coragem e nenhum mito de dor numa égua prenhe. Tirou da cocheira o animal de pelo castanho que esperava a hora de seu potro. Saía com a coragem cega de quem tem impulsos maiores que as mãos. Medo sentia somente agora enquanto escrevia e discorria em estilo que ainda não conhecia, como bicho desabalado corria os dedos em teclas de letras e de palavras vazias de significado; a imagem da cavalgada já a possuía, a ideia de livrarse dela dominava conversas e tardes inteiras de alegria em estar com os amigos. Não suportava a ideia de repetir uma vez que fosse que ali ainda estava presa ao ritmo da história, do modo que acontecera, e que a prendia. O círculo derradeiro da pedra jogada no rio de sua vida pelo primeiro namorado. Uma promessa que durou três anos inteiros e a devoção a compreender mecanismos espíritas. Provou de marcas delicadas e escurecidas nas extremidades do seu peito, onde carregava com coragem, seu coração puro estava cheio de sonhos honestos, infantis e também medonhos. Somente de conhecer o mundo, de sair por aí cavalgando. Não aceitou a garupa, porque não aceitaria. Mesmo que não tivesse surgido dela a ideia para o passeio, da oportunidade de respirar ar puro no campo em cima do bicho suando suas pernas e joelhos, assentos e selas. Sentia como um mesmo animal quando subia neles. Talvez também porque tivesse a mania de levantar o queixo quando o vento que batia em seus cabelos. 112 OUTRAS PAIXÕES Lembrava que ele, o vento, vinha viajando de longe, como um dia também gostaria e faria. E fez. Em cidades do interior, de onde o vento não soprava para ela o litoral. Foi para onde podia mandar notícia aos que ficaram. E voltar quando queria. Montou na égua prenha. Todos se acomodaram aos pares com os animais. Seguiram passeio como quem segue viagem. A aventura jovem, iniciada em horas de meiatarde. Sentia sua égua mais macia, redonda, ovulada. O bicho que carregava na barriga não se mexia, já estava em momento de encaixe na bacia. Maduro, feito fruta, brilhando. Sabia da ousadia que cometia a cada passo da cavalgada. Foram na frente ela e a égua préparida, para logo ficar para trás. Bem atrás. O namorado não se conformava, ofendido dela não aceitar a anca do quadrúpede que comandava. Ele, desde menino, gostava também dos bichos, e melhor que todos os amigos montava neles num dos poucos traços de segurança de menino autônomo, o que não se parecia em nada o que era em outras horas da vida que levava. Pais que brigavam, irmãs que tinham direito a dança e cursos de línguas, ele mais velho, tinha as chances, e desperdiçava. Ali não, sentiase seguro, cavaleiro. Estava para se tornar o que todos esperavam. Ela na Universidade, Ele a meio palmo, Ali, nos caminhos estreitos de terra batida no campo, no comando do bando de meninos e meninas, Ela na égua prenha, bem atrás. A turma inteira que só galopava. Voltou um par de vezes acelerando o animal com o passo do outro que montava. Não tinha jeito. A égua a cada passo mais pesada. Levaram mais de meia hora no trajeto costumeiro, no cruzamento que alongava o passeio, 113 OUTRAS PAIXÕES aconteceu o que cocheiro avisou como resultado de desobediência. No instante em que o animal percebeu que a tortura ia ser prolongada, mexeu a cabeça puxando os arreios, dando salpicos com as patas traseiras até que se transformassem em pinotes que a turma ia identificando aos gritos da amazonas montada. Disparou o conjunto de três seres vivos numa campina sem árvore nem sombra. A égua ia que ia, desembestada. Até a chegada do estábulo na fazenda contavase uns cinco quilômetros. Metade de tudo somado em menos de alguns minutos tinha sido devorado pelas patas ligeiras do animal que queria voltar para casa. Isso acontecia a todos eles quando reconheciam o caminho, mas aquela fêmea já estava indisposta desde a hora que o passeio começara. O namorado vinha no encalço a um par de quilômetros, parecia mais o Zorro, herói de história em quadrinhos, foi emparelhando o cavalo e a égua, justo na hora que namorada já tinha dominado o susto do disparo e o movimento disforme impresso pela velocidade. Estava agarrada ao pescoço da égua, diminuiu o atrito do vento e os cabelos ainda voavam às chicotadas na cara. Sabia que tinha feito errado. Compreendia agora a pressa do animal que queria parir sossegada e se juntara à égua como parceira pelo único jeito que se dava, agachando o pescoço também longo, parecido com do animal, amarrando na fêmea os braços compridos e finos, feito pele revestindo osso puro. Ainda tentou olhar nos olhos da égua, sentiu que suas forças acabavam, mas aprendeu com naquele minuto como é que não se desiste por nada debaixo do céu e em cima do mundo. Não seria ela, aprendeu com a égua, um bicho que deixaria de lutar pela vida. 114 OUTRAS PAIXÕES Emparelhados os animais, o ritmo já não era mais o mesmo, o namorado puxou as rédeas juntando bem o cavalo na égua, gritava vermelho, com a veia pulando do lado da boca, com o gosto de sangue de um joelho ralado. Os calcanhares roçavam no estribo. Saíram dali mais carne viva e corderosa, que nem porco às vésperas de um dia de festa em família. Pense numa pegada rock’n roll. O jeito era soltar o pescoço da égua e agarrar do mesmo modo o corpo do cavaleiro, que naquele exato instante, sem saber por que o que ela odiava mais que nunca, ia obrigála a saber que deveria também amar mais que tudo e que todos que naquela vida. Passouse para o animal comandado pelo comandante de tudo, controlador da situação. Ele foi fechando os olhos para não enxergar mais o branco dos olhos esbugalhados em caras perplexas de meninos e meninas amedrontados. Aquele jeito que ele deu, ela não daria. Daria o jeito dela, isso sim. Pensou antes daquilo tudo que contaria a aventura em estribilho de vitória dela mesma, uma vez que chegaria sã e salva à fazenda da tia. Ele estragou tudo, estragou a história que contaria aos netos da irmã em algazarra de domingos. Nas rodas de amigos, nas páginas dos jornais, quem sabe um dia. Agora, havia um herói. E não uma heroína. Chegou à fazenda minutos depois da égua vingada estar já na coxia. Ela na garupa do namorado herói, que sorria e sorria e sorria. Ouviu mais de mil vezes a história ser contada e recontada pela própria mãe, que não dava valor para sua valentia. Não esqueceu nunca mais, e guardou bem guardada a certeza de que ele tirara dela a vitória de chegar primeiro a casa, mesmo que aos bofes na boca, refeita do pensamento de um erro, pois o 115 OUTRAS PAIXÕES risco valia a pena pela aventura vivida. Algo que conquistaria com a teimosia e com uma coragem desinformada. Atrás do páreo com o espírito de futuro engenheiro mecânico, vinha o namorado. Risadas do destino, escuta as até hoje, não quer ser mais perturbada. Ainda que seja, continua subindo sozinha em selas pelo caminho, trazendo à tona apenas a voz fina da avó materna que desde pequena ouvia dizer: “Quando o cavalo selado aparecer, não pergunte para onde vai, não queira saber. Suba sem nenhuma dúvida, depois, com as rédeas na mão, domine o destino, o futuro. Não dê ouvidos para o que vão dizer. Não abra mão nunca da aventura de quem quer muito mais nessa vida saber.” E vem ficando cada vez mais atenta aos mascarados desse mundo. Esses heróis que ficam guardados anos e anos em homens que ainda eram meninos quando a vontade nasceu. De salvar a donzela em grande perigo. Virando alguém poderoso sobre um cavalo que não era seu. A história da corrida pertencia a ela, mas a namorada salva seria posse dele. Para sempre. Justo ela, a adolescente indomável, destinada a ser mulher crescida com aquela vontade danada de aventura que não estanca nunca. Mais que isso, só lhe enche de saliva a boca. Molha os dentes todos até a garganta. Quando se depara com o precipício, é invadida até nos pulmões, no coração, na cintura, nos quadris, e vai deixando as pernas rentes com o dorso do bicho que a carrega, furando feito tronco crasso o túnel de um tempo que ainda não está aqui. 116 OUTRAS PAIXÕES Num modo agalopado de trazer o futuro, fazer de si mesma um erro calculado responsável pelo surgimento do homem adormecido no que antes era menino assustado. Foi o modo dela, fazendo brotar do músculo sem sangue e acovardado dele uma coisa pulsante, que afinal ergueu um troféu, a tal namorada, sentindo na boca antes seca, o gosto úmido de vitória. Sob a trilha sonora de uma Ópera Prima. Geórgia Alves 117 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de R. 118 OUTRAS PAIXÕES Existe muito preconceito hoje em dia, ainda, com relação a um homem casar com uma mulher que tenha filhos, seja separada, divorciada... Eu sofri muito preconceito. Era o “kit pronto”. Eu fiquei viúva muito cedo, com dezenove anos. Tinha casado com dezessete anos, estava grávida de uma filha e tinha uma de quatro meses. Nos quatro primeiros anos eu sempre chorava. Se saísse à rua e visse um casal com filhos, eu chorava porque não acreditava que realmente um homem pudesse me assumir com duas filhas. Então só pensava em trabalhar e em sustentar as duas, porque o amor seria bem complicado. O que eu mais queria era juntar de novo uma família para elas. Como eu tive e sempre acreditei que a base de tudo é a família, eu queria isso para elas. Hoje elas são duas criaturas maravilhosas e deram certo na vida. Acho que elas se espelharam muito naquilo que eu passei. Sempre as fiz entender a minha história e o porquê de elas não terem tudo o que as outras pessoas tinham. Eu conheci o meu segundo marido aos 25 anos, através de uma amiga minha, só que teve muita resistência da família dele. Eu era uma mulher sozinha, viúva, e ele era dois anos mais jovem do que eu. No começo era um namoro, claro, sem nenhum compromisso, mas ele passava uma coisa boa, como 119 OUTRAS PAIXÕES passa até hoje. Terminamos duas ou três vezes em função da pressão da família dele. Nesse meiotempo perdi a minha mãe e a minha irmã em três meses, e foi aí que ele veio conversar comigo e voltamos em definitivo. Eu deixei bem claro que nós só teríamos alguma coisa séria a partir do momento em que eu pudesse ter as minhas filhas junto. A razão de eu acordar todo dia e ter enfrentado tudo o que enfrentei são as minhas filhas. Foram a minha fortaleza e a minha bússola, porque com dezenove anos, viúva, sem fazer nada... Foi através delas que eu consegui. Até então era a minha exsogra que me ajudava a cuidar. A família do meu primeiro marido me apoia até hoje. No dia que eu ganhei o meu terceiro filho a minha exsogra faleceu. Ela dizia que só partiria tranquila quando eu achasse uma pessoa responsável. E ela o achava responsável, foi a única pessoa que a família do meu exmarido aceitou. Eu acho uma história comum, mas quem passa por isso sabe das dificuldades do dia a dia, porque por muito menos os casais se separam. Qualquer problema é cada um para o seu lado e acabou. Temos que acreditar nas coisas, acreditar em algo e ir atrás, embora não seja fácil. Tivemos tempestades, tivemos brigas como qualquer casal, mas estamos lá firmes e fortes. Criamos duas filhas, tivemos mais um; hoje temos uma neta. Somos uma família bem unida e estamos há vinte anos juntos. Relato dela. 120 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Igual a zero 121 OUTRAS PAIXÕES Na calçada, ela já não estava mais desacompanhada e o Huguinho que a puxava pela mão lhe dava a falsa sensação mista de proteção e de liberdade que ela tanto reclamava. Parecia feliz. Devia estar. O sorriso contagiante e constante lhe davam a impressão que tudo estava muito bem. Seguiam em frente. Eles haviam se conhecido em um bar. Na verdade, foi ali que ela o avistou pela primeira vez e, por ser expert em traçar perfis de desconhecidos com base em leitura de gestos e de vestimentas, vislumbrou ali uma possibilidade de sucesso em relacionamento. Na ocasião ele estava com um grupo de amigos e era, de longe, o menos entrosado. Os amigos pareciam mais intelectuais, enquanto ele não dava impressão de acompanhar o raciocínio, ficando vidrado no celular. Foi muito fácil depois para ela identificálo entre os que haviam feito checkin no Foursquare e fazer em seguida o possível para entrar em contato. Seus relacionamentos amorosos anteriores não haviam sido nada produtivos e ela estava mesmo em busca de alguém que a diminuísse menos e somasse mais. Não precisava ser nenhum Don Juan ou um poço de inteligência. Só um passatempo já bastaria para suprir a carência e se divertir com alguém que passava 4 horas por dia na academia e bem longe de qualquer leitura. Uma semana de conversas pela internet já foi o suficiente para marcarem um encontro e em poucas 122 OUTRAS PAIXÕES semanas já haviam assumido um namoro. Os familiares de ambos estranharam e comentavam entre si que um não tinha nada a ver com o outro. O brutamontes sabia apenas repetir a todos que Eduardo e Mônica tinham dado certo, enquanto ela tentava esquecer que as semelhanças com o par da canção iam muito além. Ela buscava sorrir o tempo todo, até porque não tinha por que não fazêlo. Já não tinha mais motivos para chorar, para se entristecer. As cobranças, os barracos e os nervos agora haviam ficado no passado dos ex e o fato de o atual mal compreender tudo que passava na cabeça dela a deixava aliviada de uma certa forma. Ele já estava mais do que satisfeito: vivia na ilusão de que tudo estava correndo às mil maravilhas, mas só até que… Só que “Até que…” não existia na vida deles. Eles se completavam. Ela falante, ele calado. Ela pensando, ele malhando. Ela sorrindo, ele também. Se eram felizes? Ninguém sabe. Nem eles tinham certeza disso. Mas pra que queriam ter certeza disso? Seguiam em frente. Dudu Zen 123 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Irrupção 124 OUTRAS PAIXÕES A carteira de canhoto era mais desconfortável que a de destros. Chegar atrasada significava não poder trocá la, pois todas já estavam ocupadas. Menos o seu lugar. Pelo menos ali eles respeitavam o implícito lugar marcado na sala – não como sua antiga turma. Mas a pilha de livros em que deitava ainda era mais confortável do que encarar o desprezível professor por cinquenta minutos diretos. Sua cabeça doía, parecia que um pedreiro tentava abrir seu crânio, como o concreto. O suéter da escola pinicava seu pescoço. Noventa reais para a droga do suéter pinicar. – …Ei, sente direito! Mensalidade de mil e setecentos, para ainda ter que usar um uniforme que pinica. – …Levanta a cabeça por favor! – Por quê? – respondeu ela, abrindo os olhos e olhando para cima, ainda deitada sobre os livros. – Como? – o professor pareceu surpreso com a resposta. – Por que você quer que eu sente direito? Ele pareceu mais confuso ainda. A turma toda o olhava. – Para prestar atenção na aula! Eu… – Você estava explicando porque moléculas polares 125 OUTRAS PAIXÕES são dipolo permanente, enquanto as apolares são dipolo induzido. – disse, ficando ereta na cadeira, encarandoo. – Eu não preciso estar ‘sentando direito’ para ouvir o que sai do seu microfone. Ela não percebeu, mas todos perceberam que ela provavelmente não devia ter acrescentado a última parte. A expressão de alunos do ensino médio, quando alguém está prestes a se ferrar, é universal. – Por que não vai lá fora falar com a Lúcia? – E eu digo o que para ela? – Apenas vá! – não chegou a ser um grito, mas com certeza pareceu, graças ao microfone. A garota se levantou, lentamente, tirando a franja do rosto enquanto descruzava as pernas. Cambaleou por entre as mochilas de sua fileira de carteiras, não olhou para ninguém. Não se importou se a observavam ou não. O que falavam ou não. Simplesmente não se importava mais. Abriu a porta e a bateu ao sair, de leve, mas o suficiente para fazer a classe prender a respiração e olhar o professor novamente, que apenas suspirou e voltou para sua explicação. Seguiu o corredor do terceiro ano até o final, onde os armários ficavam de um lado e a escada para o primeiro andar, do outro. Seus passos eram arrastados, o cadarço do All Star estava desamarrado e queria evitar um tombo – ao mesmo tempo em que queria evitar amarrálo. Ela era esse tipo de pessoa. A sala da cordenadora estava aberta. A mulher de quarenta anos, loira, olhava alguma coisa no computador. Provavelmente o Facebook. 126 OUTRAS PAIXÕES Deu uma leve batida na porta e entrou, sem esperar ser convidada. Sentouse na cadeira em frente à escrivaninha. – O André me mandou. – E porque ele te mandou? – Talvez porque ele não goste do fato de que eu não preciso estar olhando para ele para poder ouvilo. As sobrancelhas não pintadas de Lúcia ergueramse ligeiramente, enquanto as rugas de sua testa marcavam sua tez. Ela se endireitou na cadeira, dando um meio sorriso. Precisava recomporse. Passando levemente a língua pelo lábio inferior, falou, seu tom mais condescendente impossível: – Sabe, os professores andam preocupados com você. – Por quê? – foi a vez dela de ficar surpresa. – Minhas notas abaixaram? – Não, não – exclamou, olhando para o computador, mais por reflexo do que por necessidade. – Na verdade, elas aumentaram. – Então qual o problema? – Bom, dizem que você anda muito calada e passa o intervalo inteiro deitada sobre a carteira e… São tantos problemas que nem sei por onde poderia começar. Talvez pelo fato de nós sermos liberados dez minutos depois do prévestibular. Nesse meio tempo o restaurante já está lotado e sobram apenas os restos do almoço. Mas você não, né, Lúcia? Sempre sai quinze minutos antes, e come primeiro. Pensa que ninguém vê, mas você não come tão rápido quanto pensa, não. Ser a última turma do corredor também. Quase impossível ser 127 OUTRAS PAIXÕES o primeiro da fila no intervalo. Os salgados de frango com catupiry sempre acabam primeiro. Nem lembro da última vez que o comi. Seria bom se o Euclides usasse uma calça social mais larga – ou então uma cueca ao invés de samba canção. Ninguém merece ter que ver o pau do professor balançando. Nem a mulher dele andando que nem um pinguim pelo tablado – enfatizando o tamanho do Euclidão. Amigos que se esquecem de que você mudou de sala. Melhores amigos que começam a namorar e apenas te esquecem. Namoradas que te trocam por um cara. O fato dessa escola ser toda espelhada. A cor azul do vidro. O modo cinzaazulado que o céu fica nos dias nublados. O fato de o ensino médio ser presencial. O incômodo e desgastante jeito daquelas pessoas de serem. O fato de que a cada dia mais me pego pensando em qual faca na minha cozinha abriria o meu pulso mais facilmente. – …Talvez você queira falar com o psicólogo da escola? Ou com o padre? Padre. Que tipo de escola tem um padre? Talvez o do tipo que cobra quase dois mil de mensalidade, mas mesmo assim não compra um retroprojetor decente. Do tipo que tem umas prioridades bem estranhas. Do tipo que eu não deveria frequentar. Se eu pudesse simplesmente sair. Esquecer os últimos dois anos e meio que passei nesse lugar e com essas pessoas. Esquecer a garota que partiu meu coração idealizador e tiroume a virgindade antes que estivesse pronta. Esquecer a primeira vez que usei maconha. A primeira vez que senti uma amizade verdadeira. A primeira e última vez que fiz uma escolha simplesmente para desagradar alguém. 128 OUTRAS PAIXÕES Mas é mesmo… Eu não me importo. Então eu posso simplesmente sair. A garota levantouse. Lúcia seguia com os olhos, ainda esperando que ela a respondesse. Apenas a imitou quando a viu atravessando a porta, sem dar ouvidos aos seus chamados. – …Já a ligação iônic… O professor observou a porta se abrir e estático, assim como a turma, observou a garota adentrar, dirigirse ao seu lugar e Lúcia, pairando no portal, chamandoa. – O que você está fazendo? – perguntou, enquanto ela e André trocavam olhares atônitos. – Pegando minhas coisas – empurrou seus cadernos e estojo para dentro da mochila de qualquer jeito, não se preocupando em guardar os livros. – Vou embora daqui. Pôde sentir os olhares a seguindo, mesmo quando ainda estava agachada e tirou os cabelos dos olhos verdes. Atravessou o corredor congestionado de mochilas, sorrindo, pensando em como essa era a última vez. Teve até vontade de chutar algumas delas para comemorar. Mas pensou que era melhor não. – Aonde você pensa que vai? – É a última vez que vou ouvir esse microfone irritante. – Embora, não ouviu? – esbravejou, parando a alguns passos de Lúcia, de costas para as duas primeiras fileiras de carteiras da sala. De costas para ela. – Lúcia, por que você não liga para os pais del…? – Não, Lúcia, não há necessidade de ligar para a minha mãe. Ela não vai querer vir me buscar, além de só 129 OUTRAS PAIXÕES se aborrecer quando você a liga desnecessariamente. Principalmente para avisar que eu não vim para aula. – ela tirou os olhos do professor por um momento, para olhála, mas seu corpo não mexeu um centímetro. Tentou imitar sua condescendência o melhor possível – Se eu não vim, ela sabe. Eu tenho mais o que fazer do que ir matar aula. – André fez menção de que iria dizer alguma coisa, mas ela não lhe deu a oportunidade de começar. – Aprendo mais rápido lendo sozinha do que sendo obrigada a ouvir esse microfone que você usa como tentativa de esquecer que é apenas um professor de ensino médio. Se eu não precisar olhar pro seu bigode mal depilado mais nenhum minuto, poderei ser finalmente feliz. – E… – NÃO! – ela estava gritando. Com um professor. Gritando. – CANSEI. Olhos foram arregalados. Olhares trocadas. Sorrisos segurados. – QUEM QUE ESCOLHERIA FICAR POR OBRIGAÇÃO EM UMA ESCOLA QUE TEM UM PADRE? QUE TEM UMA ORAÇÃO TODA MANHÃ? COM ESSE TIPO DE GENTE? – continuou, dessa vez virando para os alunos, gesticulando. Olhou para ele novamente – Com professores de meiaidade que comem as alunas de dezoito. Com tanta gente escrota… E que não entende. O professor deu um passo em sua direção, olhando dela para Lúcia, como se buscasse sua ajuda para lidar com a situação. – Por que não nos acalmamos e… 130 OUTRAS PAIXÕES – PORRA. Sua mão correu em encontro à porta, atravessando a janela de vidro que ornamenta a parte lateral da mesma. Lúcia sobressaltouse com o movimento, assim como todos os outros presentes. O barulho foi estrondoso, mas rápido, fazendo com que as pessoas hesitassem se realmente aconteceu ou fora apenas imaginação. Porém, os cacos manchados de sangue aos pés da garota não mentiam. Ela retirou a mão do orifício da porta, lentamente. Sua cabeça abaixada e os cabelos tampando sua expressão da visão de Lúcia. Os alunos podiam apenas ver suas costas e ombros mexendo devido a sua respiração pesada. Ficando ereta, cambaleou até que ficasse de frente para André, que a olhava aturdido, como praticamente todos ali. Tentou fechar a mão, mas sentiu uma dor lancinante. Percebeu que um caco de vidro estava enterrado entre seu dedo do meio e o anelar. Com a outra mão, puxouo sem hesitar – ele tinha cerca de um centímetro. O sangue jorrou, mas pelo menos conseguiu fechála, apesar do incomodo. Seus olhos fitaram sua cadeira vazia. Ao seu lado estava sua única amiga ali, que também fora trocada de turma. Aparentava mais branca do que o normal, e seus longos dedos seguravam o celular como se tivesse sido interrompida no meio de uma importante mensagem. Uma das gêmeas chorava silenciosamente. Olhou para uma das pessoas na primeira carteira. Não chegava a ser amiga, mas era a mais perto. – Dullius, me empresta um pedaço de papel? – disse, andando até ela. 131 OUTRAS PAIXÕES A garota acordou do transe e balançou a cabeça, arrumando o óculos sobre o nariz. Arrancou um pedaço de papel de seu caderno e entregou à outra. – E um lápis? – não esperou pela resposta, apenas pegou o que estava ao lado do caderno. Escreveu uma combinação de seis números, com certa dificuldade devido ao estado de sua mão direita. Não se importou com o sangue que deixara no lápis após usálo. Caminhou em direção a Lúcia e ofereceua o papel. – Este é o número do meu armário, e essa é a combinação – a mulher o pegou, sem entender o que deveria fazer com a informação. – Pegue os meus livros e doe para a biblioteca. Sem perceber, tirou a franja dos olhos, usando a mão ensanguentada. Quando virouse para a turma, um traço de sangue partia da bochecha direita e seguia na diagonal, passando perto do olho e sobre o nariz, até o lado esquerdo da testa. O sangue era quase da mesma cor que os seus cabelos, dando a impressão de ser apenas alguns fios rebeldes. Seus olhos pararam na primeira fileira, em frente à porta e ao lado da parede, terceira carteira. De lá, encontrou os olhos cor de avelã a encarando. Sua boca estava entreaberta, igual quando tomava fôlego após um longo beijo. Seus cabelos loiros estavam presos atrás das orelhas, coisa que só fazia quando estudava ou precisava se concentrar. Olhoua por alguns segundos, tentando capturar aquele momento o mais precisamente possível. Sabia que seria a última vez em que a veria. Pelo menos pessoalmente. 132 OUTRAS PAIXÕES – Espero que seja feliz na sua vida de hétero – a frase saiu como um deboche, graças à falha tentativa de sorrir e de dizer aquilo sinceramente ao mesmo tempo. Mas ela apenas virouse e saiu da sala. Não se importava mais em ser mal interpretada. Nas próximas semanas falariam apenas o que quisessem, não importava que fosse verdade ou não. Desceu a escada de dois em dois degraus, querendo sair dali o mais rápido possível. Nem percebeu que alguém a seguia – apesar de seus passos baterem no piso frio mais vezes que os dela, por não estar pulando os degraus. Foi apenas quando já estava no corredor do primeiro andar que ouvira ser chamada. – Espere! Parou abruptamente. Entre as pessoas que pensara que a seguiriam, ela não era uma delas. – Vocês está bem? A garota loira tentou aproximarse, olhando para sua mão, que pendia ao lado de seu corpo, como se não funcionasse mais. – O que você quer, Isadora? – Você nunca me chama assim. – ela parou, assustada por ouvir o próprio nome. – Bom, acho que perdi o direito de te chamar de Isa, não é? – ficaram em silêncio por algum tempo, ambas relembrando o momento em que flagrara a garota beijando o melhor amigo, apenas uma semana após terem terminado. – Mas não posso dizer que não esperava por isso. 133 OUTRAS PAIXÕES Ao dizer isso, continuou a andar em direção à saída, à sua liberdade. Mas, ao mesmo tempo, Lúcia e o professor André apareceram ao pé da escada, aparentando recém saídos de um transe. – Estão ligando para a sua mãe, talvez seja melhor esperar ela chegar aqui. – disse ele. – Vamos até a enfer… – NÃO! – gritou, parando para poder encarálos. Tinha chegado perto da catraca e já tinha aberto a mochila para pegar sua carteirinha de estudante. O porteiro, que estava sentado em sua mesa perto da saída, sobressaltouse e levantouse. – PARECE QUE VOCÊS SÃO BURROS OU NÃO QUEREM SE TOCAR. Os quatro olhavam para a garota. Ela começara a suar, e o sangue em sua testa começara a escorrer para seu rosto, obrigandoa a limpálo, mas realmente só fazendo tudo piorar. – Você e você provavelmente são as últimas pessoas que quero ver na vida. – exclamou, apontando tanto para o professor quanto a exnamorada. – ESSA ESCOLA DE MERDA, é o último lugar que quero ver na vida. – Por que a gente não senta ali no sofá e conversa um pouco? – disse Lúcia, aproximandose e pegando a mochila da garota do chão. A única coisa que lembrou foi uma fúria irradiar de dentro de si. Talvez gritara mais também. Isa certamente o fez. E o porteiro levantouse da cadeira tão rápido, que ela caiu no chão. Assim como Lúcia. Ao abrir os olhos, percebeu que o quarto estava escuro. Sentiase tonta e sua cabeça girava. Tivera o sonho mais estranho. Não lembrava exatamente dele, 134 OUTRAS PAIXÕES apenas que se passara na sala de aula e que havia gritos. E tinha quase certeza que no fim atacara Lúcia, o que era esquisito, pois gostava bastante dela. Uma porta abriu silenciosamente e percebeu uma silhueta adentrar o recinto – alguém que tentava não fazer barulho. – Ah, você está acordada – disse uma mulher de voz mansa, após uma fraca tentativa de comunicação da garota. – Sua garganta está bem arranhada, falar irá doer por um tempo. Aqui, beba um pouco de água. Ela levou um copo de plástico até os seus lábios, segurando o canudo para que ela bebesse. Não entendia quem era aquela pessoa no seu quarto, oferecendolhe água, mas sua sede era muita, e as perguntas tinham que esperar. – Não se preocupe, você vai ficar bem logo. Não conseguia ver o seu rosto claramente, mas percebeu que ela sorria. Colocando o copo em cima de uma mesa, a mulher pegou uma seringa do bolso do seu jaleco. Com habilidade, destampoua e injetou o líquido transparente no saco de soro. Confusa, percebeu que o soro estava ligado ao seu braço esquerdo. Olhou ao redor do quarto e percebeu que não estava em sua cama, muito menos em sua casa. – Isso vai te ajudar a dormir mais – a mulher saiu tão silenciosamente quanto entrou. Sua cabeça girava e fios de cabelo tampavamlhe os olhos. Tentou tirálos do rosto, mas quando tentou erguer a mão, ela parou no meio do caminho. Uma tira de pano prendiaa à cama. 135 OUTRAS PAIXÕES Forçando os olhos, pôde ver que a mão direita estava toda enfaixada. Sua mente já estava enevoada de sono quando percebeu que não havia sonhado. Amanda Marchi 136 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES É namoro ou amizade 137 OUTRAS PAIXÕES Quando pequeninos, a afeição também brota com o codinome namoro. É uma relação mutante. Volta e meia, com um novo affair a cada semana. Não há tempo nem para os familiares e para os professores decorarem os nomes dos afetos. Daí pode surgir a questão: é namoro ou amizade? A maioria nem sabe que está namorando, os meninos principalmente. É amizade, entende? Amizade pura. Sincera. Fofa. Sem mágoas ou cobranças tolas. Um laço com perdão expresso. Não há perda de tempo com DR ou com dar um tempo na relação. A regra é clara: pular, correr, gritar, estudar juntos, bagunçar… Namorar na infância é brincar pra valer. Mal saído dos cueiros, o meu levado vizinho dizia à minha mãe que era meu namorado. Detalhe, eu nem sabia falar. Vez ou outra, segundo Dona Eva, esse furacãozinho aparecia lá em casa, batia um papo com ela e me dava um oi… É obvio que as nossas mães achavam uma gracinha. Com cinco anos, fui picada por marimbondos no parquinho ao lado da minha escola. Foi bem na véspera do meu aniversário. Como consolo e, com direito a cartinha, meu suposto paquera abiscoitou o colar de miçangas da irmã e me deu de presente. Um luxo! Um ano depois, troquei de escola e de amigo namorado. Minha mãe ganhou um puxão de orelha da 138 OUTRAS PAIXÕES minha candidata a sogra, que ficou bravíssima ao encontrar bilhetinhos na mochila do filho… Moral da história: aprendi cedo o que é ciúme de sogra, mas não perdi o amigo, é claro. Minha mãe a tranquilizou, a encanação boba passou e a nossa amizade durou por muitos anos. Beijos, abraços ou mãos dadas, de modo geral, acontecem a pedido de adultos que acabam por forçar um teatro desconfortável entre as crianças. No namorico pueril se trocam desenhos, bilhetes, doces, segredos nada sigilosos, emoticons no batepapo. O amor na infância vem por simpatia. É gostar de estar e de se divertir juntos. E não minta. Você também já ouviu: tá namorando, tá namorando, tá namorando! Cintia Brasileiro 139 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Roseane 140 OUTRAS PAIXÕES Eu tive um relacionamento em que me apaixonei e ele, não. Foi olhar e gostar. Depois dele eu nunca mais tive ninguém. Nesse relacionamento ele já tinha quatro filhos, cada filho com uma mulher, e hoje tem seis. No começo eu só sabia de dois, da mesma mulher. Eu cuidava dos meninos nos finais de semana, quando vinham com a gente. Aí descobri que ele tinha uma menina; depois, através de umas fotos, descobri outro. Ele era muito mulherengo, o vício dele era mulher. Eu sofri muito; era doente por ele. Passei noites em claro na janela, esperando ele vir. Eu sabia quando chegava em casa e havia estado com outra. Não vivia a minha vida, vivia a vida dele. Hoje não, porque já passou aquilo tudo. Era aquele relacionamento que vai e volta. A gente se separou e voltou, separou e voltou, e eu engravidei. Ele já estava com uma outra grávida e eu não sabia. Dizia assim “tu não és a mulher da minha vida”. Negou a filha, mas quando nasceu ele viu que era a cara dele. A minha filha nasceu no mesmo ano em que ele teve outro. Ela está com 14 anos. Hoje me dedico à causa animal. Não pretendo ter mais ninguém. Relato dela. 141 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Nossas teorias 142 OUTRAS PAIXÕES Eu conheci você sem grandes expectativas, me pareceu raso, só mais um em meio a outros. Conversamos levianamente. Em um papo qualquer citei Foucault (o epistemólogo que mais admiro) e você rebateu, também o citando e ainda indagoume se já havia lido Bakunin e fiquei impressionado, abriu um leque de possibilidades. Conhecemonos em um dos seus típicos atrasos, que só fui descobrir depois de sua recorrência, e foi bom, nada extraordinário, mas bom. No dia seguinte vamos juntos para o centro e eis que na parada de ônibus (mais movimentada da cidade) me beija e ali já penso que você pode ser para a vida. Estamos juntos já faz um tempo, este que já desmitificou a idealização, a realidade bate na porta e vai de nós suportarmos as imperfeições e manias do outro que são escancaradas na nossa cara. Alguns pontos são ajustados, algumas lágrimas correm e em alguns momentos o silêncio se perpetua agonizando a ambos. Em meio aos nossos sorrisos e choros (pelo menos da minha parte) ficam aqueles “eu amo você” abafados no receio de admitir um sentimento tão intenso e abstrato no meio do caos que envolve o nosso redor. Não vivemos de grandes dramas, mas os que temos já dão o que falar. Mas quando eu o vejo, olho no olho, e consigo decifrar o que está sentindo, aí, só aí, eu tenho certeza do que sinto e sei que será para sempre, seja o quanto for este “para sempre”. Darlam do Nascimento 143 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES O homem da aurora e do ocaso 144 OUTRAS PAIXÕES O nome do rapaz era Yosef. Diziam que era um nome estranho e eu tenho de concordar com isso. Não sei nem pronunciar direito essa palavra. É de origem árabe ou algo do tipo? Bem, ainda assim, mais estranho que ele, o nome não era. Mas o que faz algo ser estranho? São as opiniões que vêm sobre aquilo que é assim considerado. E o que tornava Yosef estranho era o fato de ele se apaixonar facilmente pelas pessoas. Talvez não seja nem esse termo, ou talvez seja… Digamos que ele se apaixonava de um modo eufemista, sem exageros sentimentais ou grandes atrações corporais. Ele simplesmente sentia algo diferente dentro dele mesmo: um anjo, um demônio e um deus. Com poucos anos, ele já sentia aquele sentimento diferenciado com facilidade e, com o tempo, percebeu o fardo disso. Na primeira série, as garotas não percebiam o que ele dizia quando falava que gostava delas ou quando escrevia o nome delas na areia, dentro de um coração. Ele era estranho para elas e, com isso, o pobre rapaz era ignorado e aquele sentimento complexo acabava sendo escondido dentro dele. E os anos se passaram e em cada um deles ele encontrava uma nova estrela para colocar dentro do universo do seu coração. Algumas eram radiantes como o Sol, outras eram tão fúteis, apesar de brilharem dentro dele, enquanto outras morriam nele como qualquer 145 OUTRAS PAIXÕES estrela e o que restava era um buraco negro que devorava o próprio rapaz e suas inúmeras paixões. Tornouse um homem da aurora e do ocaso, e, a cada sentimento guardado, mais ele se perdia no mundo. Um dia, ele começou a listar todas as pessoas das quais adquiria todos aqueles sentimentos e a lista não era pequena: a dama que observava as flores diariamente na floricultura do bairro, uma jovem da idade dele que ele sempre encontrava no cinema e com quem acabava discutindo sobre filmes; a bela mulher que trabalhava no mercadinho ao qual ele tanto ia (só para encontrála), uma das colegas de escola dele que sempre parecia tão bela com toda a sua intelectualidade, a cantora que aparecia em vários festivais da cidade… Ad infinitum… Ele nunca conseguiria ter alguma coisa com qualquer uma delas, pois sabia lá no fundo que não podia confessarlhes seu amor, pois isto só iria ferilo mais. Entretanto, enquanto esse sentimento o feria de um lado, o sentimento de viver sem um par o feria também. No fim, decidiu amar unicamente a Deus e com isso tentou virar padre. Três dias depois, já havia desistido do objetivo: apaixonouse por uma noviça. Já não podia seguir nem uma busca por unicamente amar a Deus, e com isso decidiu amar algo que pensou ser o melhor para uma pessoa como ele: a morte. Foi até um prédio qualquer e se sentou na borda dele onde ficou olhando para o seu fim ainda com dúvida: deveria mesmo amar a morte ou esperar que algum outro amor pudesse salválo? Olhou por vários minutos, em silêncio, até perceber que havia outra pessoa por ali: uma mulher de cabelos escuros, um corpo belo de várias maneiras e uns olhos radiantes, que logo o fizeram dizer: 146 OUTRAS PAIXÕES – O que você faz aqui? – Nada demais. Acho que você não precisa saber. Mas e você? – Bem, podese dizer que eu andava pensando em me jogar daqui. – Interessante, eu também estava pensando em fazer isso. Qual o seu nome? – É um nome meio estranho. Yosef. É árabe, sabe? – Saquei. Meu nome é Carine. – Você tem um nome mesmo bonito… Quer tomar um café um dia desses? – Que tal agora? Isso de pensar em me matar me dá uma sede. – Então vamos lá! Prefere café ou cappuccino? – Eu gosto mais de um cappuccino. – Que bom. Eu também adoro… E assim se seguiu uma nova história. Não sei bem o que aconteceu com eles depois, mas dizem que começaram um relacionamento ou algo assim. É incrível como um quase suicídio pode unir pessoas. Isso chega a ser excentricamente romântico. Conrado MPL 147 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Um amor impossível 148 OUTRAS PAIXÕES Eu era apenas uma jovem cheia de sonhos. Estava com uma amiga e voltávamos para casa depois de alguns dias de férias fora do país. Enquanto esperávamos já dentro do ônibus na estação rodoviária do local, conversávamos alegremente sobre nossas impressões dos dias ensolarados do verão que acabáramos de passar. De repente ele entrou no ônibus, era jovem, bonito, com um corpo atlético. Veio sentarse no banco em frente ao nosso. Então nossos olhos se cruzaram; aqueles olhos profundos, serenos, fortes como raio no meio de uma tempestade. Meu coração disparou. Senti mil centelhas incendiarem todo o meu ser; parecia que minh’alma havia saído do meu corpo e entrado num outro universo. Eu sabia que o amor não começa na palavra, e sim no olhar, porque palavras são passageiras, mas um olhar dura toda uma vida. Ele sorriu, acomodou sua bagagem e tornou a sair do ônibus. Ficamos ali, minha amiga e eu, conversando sobre nossas vidas, porém confesso que estava meio anestesiada e não lembro muito bem o que lhe respondia. Eu me apaixonei completamente de forma irreversível. Naquele momento eu soube que minha vida nunca mais seria a mesma. Será que ele voltaria? Sim, voltou, mas não totalmente só, com ele entrou uma jovem muito simpática que nos sorriu antes de sentarse. Sabíamos que a viagem seria longa (42 horas) então começamos a 149 OUTRAS PAIXÕES nos conhecer. Eles eram casados e tinham duas filhinhas e estavam indo a São Paulo visitar o irmão da jovem. Foi uma viagem inesquecível. Rimos muito, brincamos, cantamos e quando chegamos ao nosso destino nos despedimos com abraços apertados, trocas de endereços e promessas de voltar a nos vermos. Já em minha cidade, voltei às minhas atividades normais, porém a forte sensação daquele primeiro momento ainda estava sufocada dentro de mim. Resolvi voltar nas férias de inverno àquele país. Afinal, eu tinha amigas muito queridas lá, e não era a primeira vez que passaria férias com elas. No dia seguinte à minha chegada, com o coração aos pulos liguei para os amigos que havia feito no ônibus no ultimo verão. Ele atendeu e demonstrou muita alegria ao ouvir minha voz e sem esperar resposta disse que estava vindo me buscar para jantar na casa deles. Fui acompanhada das amigas com quem estava hospedada. Foi uma noite maravilhosa, relembramos nossa agradável viagem de ônibus, as meninas eram encantadoras e passaram a me chamar de tia, e eu estava super feliz. Depois do jantar ele pegou seu violão e começou a cantar. A casa era bem alegre, e além das minhas amigas e eu, estavam também alguns amigos deles, pois era costume se reunirem para uma noitada divertida. A voz rouca dele enchia meu coração, e nas frases românticas das músicas, sempre seus olhos procuravam os meus. É verdade que quando dois lábios não podem se beijar, dois olhos se beijam na troca de um olhar. Eu sentia sua carícia, seus beijos através daquele olhar profundo. Durante anos passei minhas férias na companhia dessa gente maravilhosa. Sempre que nos encontrávamos 150 OUTRAS PAIXÕES havia muita emoção em seu abraço de boasvindas, porém nunca, em momento algum, trocamos uma única palavra sobre qualquer possível sentimento que existisse entre nós. Eu já fazia parte da família e tinha uma admiração e um respeito muito grande pela minha amiga e pelas suas filhas. Depois de alguns anos também eu me casei. Mesmo casada, ia com meu marido visitálos, mas já não com tanta frequência. O impacto da chegada ainda era igual ao do primeiro encontro. Porém tudo o que sentia estava guardado num cantinho muito escondido da minha alma. Eu sempre soube que jamais deveria revelar meus sentimentos, eles eram o fruto proibido. Um dia, uma das amigas que eu sempre visitava adoeceu, e eu tive que ir vêla. Estava sozinha pois meu marido não pode se ausentar do trabalho. Minha amiga estava impossibilitada de ir buscarme no aeroporto, então, para minha surpresa, pediu para que ele fosse me buscar. Ficamos pela primeira vez a sós, e enquanto nos dirigíamos à casa de minha amiga, ele confessou seu amor por mim. Disse que desde a primeira vez que me viu naquele ônibus não pôde mais pensar em outra coisa que não o desejo de terme entre seus braços, “foi como se uma luz irradiasse de você e enchesse meu coração de amor”, dizia ele. Eu também o amava e disse que eu soube que era ele, no exato momento em que nossos olhares se cruzaram pela primeira vez. Mas não, não tínhamos o direito de ferir pessoas queridas ligadas a essa estória. Não, não podíamos, tínhamos que ser fortes e sensatos. Nunca seríamos felizes sabendo que outras pessoas sofreriam por nossa causa. Então trocamos o nosso único beijo de amor. 151 OUTRAS PAIXÕES Nunca havia experimentado uma sensação tão profunda. Ficamos algum tempo abraçados e choramos muito. Alguns anos depois desse encontro ele ficou muito doente. Por telefone me disse que se algo pior acontecesse, queria que eu tivesse a certeza que me levaria em seu coração. Foi muito doloroso saber que uma semana depois ele partiu. Minha amiga contoume que sua última palavra foi meu nome. Nunca vou esquecêlo, e até hoje nas noites de solidão sinto seus lábios tocando os meus, no nosso único beijo de amor. Maria 152 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Esperandote 153 OUTRAS PAIXÕES Olhando o teu rosto corado, mas frio, as pálpebras cerradas e teu o peito pulsando ritmado da mesma forma que minha esperança brilha através dos meus olhos, queria que soubesses que estou aqui, contigo, e assim ficarei aguardando o teu regresso. Nós… Sempre juntos com nossas diferenças e brigas que nunca duravam mais que alguns segundos, porque tu estavas sempre certo. E teimoso, agia da tua maneira escolhendo o caminho mais difícil, quando só abrir a porta bastaria. Tu, imponderado… Seguiu dirigindo na noite de tempestade, pois só lembrou do nosso aniversário de madrugada. Tu… No escuro, cantando pneus para desviar do veículo… O susto, o impacto e tua ausência… Depois as noites nos bancos do hospital, teu coma induzido, o vazio da espera, a fome da tua voz e o silêncio como resposta. Eu já me ausentei de mim mesma porque esse vácuo de desabrigo é como despencar de uma montanha. Daria tudo para te ouvir novamente, ouvirte cantando para mim as músicas bregas dos anos oitenta e sentir teu corpo colando no meu para me fazer dançar mesmo sem querer; com teu jeito brincalhão que conseguia tudo sem insistência. Depois seguíamos para o quarto onde nos tornávamos um só no dueto do santo ato de comunhão e de partilha. Em ti me agarrei naquela tarde de férias em Niterói, e ainda na fila do supermercado firmei morada em teu 154 OUTRAS PAIXÕES peito, adiantando na mente o sabor dos teus lábios. Ficamos juntos aquém do tempo, devorando os medos e suprindo nossos anseios. Como queria beber teu hálito mais uma vez e te ver retirando as mechas morenas que emolduravam o teu rosto. Parar o mundo só para verte caminhando com pés desnudos no chão frio, com teu sorriso abobalhado me falando entre os dentes repetidas vezes que eu era tua menina e me fazer dormir contigo velando meu sono. Agora estou aqui, velando teu silêncio gelado, separada pela fina membrana de realidades opostas. Queria poder mergulhar nessa incerteza e te resgatar das garras do coma que te mantém preso e me faz caminhar sozinha… sem ti. A cada passo deste caminho, sofro e definho. A cada noite e a cada dia em que te procuro através de tempestades de dúvidas que me amedrontam, não me ausento do teu leito, porque mesmo fraca, me torno forte por ti, por esse amor não me deixa ir para casa sozinha. E fico aqui te esperando. Esperando que despertes e que possamos caminhar juntos no caminho que ainda nos resta na harmonia desarmonizada que só faz algum sentido para nós. Aqui estou eu, esperando. Esperando… Por ti. Maria Silva 155 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Fernanda 156 OUTRAS PAIXÕES Você já teve uma história que basicamente aconteceu só pela internet, em que as pessoas nunca se viram? Eu esse americano, achando que tinha 35 anos e era solteiro, e fiquei conversando com ele durante vários meses, horas todos os dias, até que eu descobri que na verdade tinha 49 anos, dois filhos e acabado um relacionamento de uma forma meio trágica. Ele era trinta anos mais velho do que eu. Fiquei muito sentida, porque ele mentiu para mim. Entendi que era por insegurança da parte dele, porque tinha sofrido rejeições e tentava parecer melhor do que era pelo medo de que a pessoa o deixasse. Mas eu jamais ia partir por ele ser mais velho. Foi um momento complicado porque eu saí do Rio Grande do Sul para vir para cá e não tinha ninguém por perto, então eu estava vulnerável em vários aspectos. Ele era meio que uma figura paterna, porque era mais mais maduro e eu o admirava. Mas ele queria cobrar de mim uma fidelidade muito estranha, porque a gente não se via e não tinha nenhuma possibilidade próxima de se ver. Ele tinha uma concepção de me esperar e eu, na minha urgência de 20 anos, não consegui. Eu me relacionei com outra pessoa e contei para ele, então parou de falar comigo. Foi aí que pensei 2eu realmente gostava dele...” Quando voltei a falar com ele, quatro meses depois, já 157 OUTRAS PAIXÕES estava se relacionando com outra pessoa. Mesmo sendo virtual, significou mais do que muitas pessoas que eu conheci na vida real. Eu nunca tinha conhecido alguém que me entendesse tão bem quanto ele; criei uma conexão com ele que eu sei que nunca vai se desfazer. Ele está lá com a vida ele, num relacionamento estável, e a gente se fala com muito carinho. Ainda gosta de mim, só que não da mesma forma, claro. É engraçado, eu diferenciava muito a vida real da vida online, mas na verdade as duas coisas estão fundidas. Você está conversando com uma pessoa: ela existe, tem sentimentos, mora num lugar, tem um passado, um futuro... Eu torço muito para que ele seja feliz. Relato dela. 158 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Mariana 159 OUTRAS PAIXÕES Eu conheci o meu marido no Orkut. Nós nos falamos por uns dois meses e não demos bola. Ele em nada me chamou a atenção. Eu o achava um bobo, um idiota que só falava bobagens e ele achava a mesma coisa de mim. Ninguém queria nada com nada. Por isso que no começo não deu muito certo. Eu tinha acabado de terminar um relacionamento, ele também. Era verão e ninguém estava muito aí. Nós nos falamos e nos encontramos poucas vezes. Continuamos não dando bola, mas ficamos dois anos juntos. Fizemos uma festa de casamento; o nosso filho nasceu. Ele tinha um ano e pouco quando terminamos. Estava ruim, sabe, tanto que brigamos e nos separamos. Foi uma briga e acabou. Eu e o meu marido ficamos praticamente sem nos falarmos nesses nove meses separados, apesar de termos um filho. Só nos encontramos por duas vezes para assinar os papéis da separação. Aí a dez dias de assinar a terceira etapa, que era a última, eu o chamei para conversarmos. Na verdade eu queria saber porque tínhamos terminado. Eu acho que estava de porre. Em dez dias já estávamos morando junto. Mês passado fez cinco anos que voltamos. Eu acho que era destino. Depois que conversamos, vimos que a exnamorada dele morava no prédio em 160 OUTRAS PAIXÕES frente ao meu, ele a buscava todo dia no mesmo colégio que eu estudava e parava o carro no lugar em que eu estava sempre almoçando. Era tanto destino que precisamos terminar e ficar separados para entender que não era sozinhos que queríamos ficar. Com certeza se não tivéssemos terminado, não estaríamos juntos até hoje. Quando lembramos dessas histórias, damos risada. Já planejo uma nova festa de casamento, porque por tudo o que passamos merecemos uma nova comemoração, e talvez um novo filho... A ideia é ficarmos velhinhos juntos. Relato dela. 161 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Seu Camilo 162 OUTRAS PAIXÕES Seu Camilo era um professor educado, além de ser fiel à Dona Lúcia, sua esposa. Não podia nem pensar em cometer adultério, pois amava sua companheira, uma relação de 30 anos, nada se arrependendo neste tempo. Ainda mais agora que Dona Lúcia estava em viagem visitando os netos recémchegados. Dona Lúcia, como era assim chamada pelo próprio esposo, nunca o perdoaria por uma infidelidade nesse tempo de sua ausência. Pois bem, eis que Marina, a mais recente aluna particular de Seu Camilo, entra na residência na ânsia de ter suas aulas préagendadas de literatura, a qual era uma das suas paixões. Seu Camilo era professor aposentado, e os bicos de aulas particulares complementavam sua aposentadoria. Seu Camilo, muito pomposo, como bom professor de literatura, a convidou para entrar e ficar à vontade. Marina caminhava em direção à sala que Seu Camilo ministrava suas aulas particulares, percebendo que ele a acompanhava com o olhar a cobiçando, a espiando de cima abaixo. Marina sabia que tinha lá seus dotes sensuais, e explorálos era sua especialidade. Valorizava muito bem cada centímetro de suas coxas e de seu quadril bem definidos, dadas suas horas de malhação, o que hoje a deixavam em atraso com a literatura, a ponto de ter que recorrer a um professor particular. Sabia muito bem que os homens enlouqueciam quando salientava seu busto com uma pequena blusa branca transparente de fecho, que usava em dias de vento Norte como aquele. Prontamente 163 OUTRAS PAIXÕES Marina sentouse bem à frente de Seu Camilo, e, entre uma explicação e outra, o professor de literatura, com óculos de lentes arredondadas a meio nariz, não hesitava e sua explicação sempre terminava olhando pra um pouco mais acima dos livros sob a mesa, onde ficavam os fartos seios de Marina, com o fecho da blusa entreaberto, tamanho calor daquele mês de dezembro. Calor este já sufocante para ambos, principalmente para o professor que tinha que concentrarse na explicação. Seu Camilo, já não aguentando a pressão, ofereceu uma limonada para sua aluna, fazendo assim uma leve pausa nos livros. Marina ficou pela sala, porém, como sempre a curiosidade a possuiu. Tentou sem êxito abrir um armário da sala, o dito armário das particularidades do matrimônio do casal da casa. Mas Marina foi tomada por susto quando Seu Camilo chegando com a jarra de suco e lhe indagou: Seu Camilo: Açúcar ou adoçante na limonada? Marina: 3 gotas de adoçante. Certa de não perder a forma e seu tempo de academia. Marina indagou: O que o Sr. guarda neste belo armário de madeira trancado a chaves? Pronto; agora além de estar sob pena de cometer adultério, Seu Camilo teria que explicar suas fantasias sexuais de casamento com o seu terno e com o vestido de noiva de Dona Lúcia, que se encontravam ali guardados. Seu Camilo: Nada de muito importante, apenas umas roupas velhas de casamento. Certo de que Marina não iria se interessar por roupas de casamentos Marina: Eu adoro roupas de época. O Sr. pode me 164 OUTRAS PAIXÕES mostrar? O professor não teria desculpas, teria que mostrar as roupas. Seu Camilo então sabia que estava a sós em casa e, certo de que ninguém ficaria sabendo, abriu o armário. E ali estavam elas. O terno ainda impecável, o vestido ainda com véu e grinalda como Dona Lúcia deixara. Marina então não hesitou, e foi sacandoas do armário e experimentando o vestido. Convicta de que eram apenas roupas de épocas sem valor sentimental algum. Fez Seu Camilo experimentar o terno que ainda cabia nele como uma luva. Para Marina, ainda que seus seios ficassem apertados, o vestido lhe deu bem. Marina: Mas o Sr. poderia insinuar que estava casando comigo? Seu Camilo: E sua aula? Indagou. Marina: Outro dia recuperamos com horas extras. Então ambos foram para a frente da casa, imbuídos em cumprir aquela tarefa. Marina muito ligeira deu de mão em umas flores que enfeitavam o passador da sala, enquanto Seu Camilo procurava seu chapéu para complementar a fatiota. Eis que desembarca na frente Dona Lúcia, sua filha e sua neta recémchegada. Resolveram fazer uma surpresa. E agora? Como explicar a situação, as roupas e a aluna? A bela e sensual Marina, vestida de noiva na frente da casa? Dona Lúcia não teve dúvidas; Camilo tinha ludibriado a sua nova aluna e ainda por cima usou as roupas do seu casamento para fazêlo, roupas tãos usadas nas noites românticas que o casal teve nos seus 30 anos de cumplicidade. Dona Lúcia não deu tempo para maiores explicações, Seu Camilo a tinha traído na sua ausência, apesar de sua fidelidade durante todo casamento. E foi logo pedindo divórcio, 165 OUTRAS PAIXÕES retirando a aliança do dedo, não queria amargar uma traição para o resto da vida. Seu Camilo não teve argumentos, perdeu a aluna, as roupas, e o pior: uma relação conjugal de 30 anos com Dona Lúcia, única mulher que amou em toda sua vida Rafael Pacheco 166 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Alice e Batista 167 OUTRAS PAIXÕES A função do meu pai era acompanhar essas mercadorias que iam e vinham no trem. Ele ficava no Rio de Janeiro, fazendo viagens para os outros locais. Foi aí que ele conheceu a cidade de Urussanga. Ele já ia retornar, mas ficou sabendo que tinha uma máquina chamada Marion, uma máquina enorme que tira carvão. Ele disse “vou ficar aqui” e ficou num hotel no centro da cidade, chamado Alfredo Gazola. Isso foi em 1971. Ele foi jantar num restaurante e nesse restaurante a minha mãe era gerente, no Tropical. Foi amor à primeira vista; foi um choque grande nele, nela, nas pessoas, porque a minha mãe tinha 17 anos e ele, 33. Ela acabou dando o troco para ele e ele escreveu o dia em que eles se conheceram. Aí ele ficou um pouco mais na cidade além do que era o dever dele. Ele deveria voltar ao Rio, apresentar o relatório, enfim... Acabou mandando uma correspondência para lá dizendo que estava com problema e ficou aqui. Aqui ele conheceu a família, conheceu os amigos e a vida dela. A minha mãe era uma moça interessante, bonita. Ele disse: “Não aguento, vou ter que te levar”. “Não, mas eu não sou assim de namorar”, porque o negócio era sério. O meu avô era um italianão brabo. E lá foi meu pai naquela semana conhecer a família. 168 OUTRAS PAIXÕES Acontece que o meu pai também era músico e ele acabou trazendo a família através da música. Ele foi agradando, era bom de papo e já tinha todo aquele carioquês dele... Um ano depois eles noivaram, um ano depois eles casaram, um ano depois eu nasci. E assim vem toda uma história devido à bendita da Marion! Relato da filha, Alice. 169 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES O tempo perdido 170 OUTRAS PAIXÕES Enquanto esperava o início do show do Morrissey, ele foi até a lanchonete. Naquela noite, informaram, não venderiam nada que contivesse carne, por ordem da produção. Para ele estava tudo bem, nem fazia questão. Às vezes comemos não pela vontade, mas pelo vício – pensou enquanto pedia um refrigerante. O saguão estava apinhado de gente diferente, vestida de modo não convencional, com seus assuntos estranhos, conversando animadamente sobre quase, quase nada. Ainda hoje, ouvir Smiths traz uma estranha sensação de perda e desapego, como se algo houvesse se partido ou estivesse destoado numa realidade distante. Como o fim de um sonho que nem chegou a ter começo. E então, como que saída diretamente de alguma espécie de devaneio, ele a viu: parecia alguém que conhecia de alguma outra situação e que talvez por isso chamasse sua atenção em meio a tanta gente e a memória remetia para algum lugar próximo demais, mas seu olhar detevese com mais afinco em seu belo porte, nas pernas esguias, no decote sugestivo. Bom, definitivamente era alguém que ele ainda não conhecia. E era linda, com sua saia de veludo ocre, um casaco preto e botas da mesma cor e uma boina vermelha, o que lhe conferia certo ar de mistério. E as botas! Ah… uma mulher de botas é sempre perigosa – pensou, sorrindo. O tempo então congelou. Como numa cena em slow 171 OUTRAS PAIXÕES motion , ela já não caminhava: deslizava, suave e leve como num sonho. Parou, acendeu um cigarro. E continuou deslizando em direção a ele com seu jeito sexy de fumar. Por alguns segundos, aquele clichê lembrou lhe de alguma diva do cinema americano, etérea, distante, terrivelmente bela e inalcançável. Talvez Greta Garbo ou Rita Hayworth, mas naquele momento ele não saberia dizer com precisão se alguma das duas fumava. Sempre achara deselegante e sem graça mulheres fumando, mas ela demarcava seu espaço com elegância e beleza. E se fazia linda. E inalcançável. Pelo menos era essa a impressão que ele tinha até o momento em que ela o olhou. Dessa vez não havia sorriso, apenas um olhar fixo, misterioso. Outro cliché de cinema. De repente, ele se deu conta de que devia estar com cara de tonto, olhando para aquela mulher como se estivesse vendo um ser de outro planeta. Ela riu do seu aparente embaraço e disselhe qualquer coisa que ele não entendeu bem. – Eu perguntei se você está se sentindo bem! – repetiu. Sua boca desenhava cada palavra com a mesma sutileza com que caminhava, deixando atrás de sí uma estranha sensação de perda. E as palavras desenhadas daquela maneira pareciam carregar consigo uma inocente e atordoante malícia, capaz de fazer um seminarista mudar suas convicções no instante seguinte. Ele disse alguma coisa sobre ela ser linda e tal. Ela enrubesceu, como se tivesse sido pega no contrapé. Era, de certa forma, sua confissão de culpa imediata, como se o rubor fosse assim uma espécie de confissão afetiva. Ela deu uma longa tragada e desviou os olhos. E riu 172 OUTRAS PAIXÕES meio sem jeito, ou talvez aquele fosse mesmo o seu jeito de ser e jogou a cabeça para trás, para em seguida olhálo novamente. Em seguida fez qualquer comentário sobre alguma coisa, mas ele já não estava prestando atenção no que ela dizia. Tinha um belo perfil: virava a cabeça toda vez que tragava o cigarro, como muitos fumantes fazem quando estão com alguém que não fuma, o que, no seu caso, era feito com um charme irretocável. Disse ser metódica, procurava fazer as coisas com relativa calma, ritualizava situações aparentemente banais, tornandoas ricas de sentido e grandeza. Esforçavase para viver um passo por vez. E adorava conversar. Bom, isso ele já tinha percebido. Embora suas palavras fossem pausadas e entremeadas de citações de tudo o quanto visse ou lesse, seu discurso e filosofia de vida eram centrados numa vivacidade e numa coesão de ideias pouco comuns para alguém da sua idade. Melancolicamente impulsiva e triste, já sonhara em ser atriz de teatro, embora todos teimassem em convencêla do contrário. Tinha desenvoltura, era desinibida ao extremo e tímida na medida do charme, com aquele olhar rodrigueano que comove e instiga. Achavase parecida com a personagem feminina do clássico de Milan Kundera. Sabia a letra de algumas canções de João Gilberto e Tom Jobim. Lia Álvares de Azevedo, Mário Quintana e venerava Vinicius de Moraes, o poeta que ousou, de modo furioso, romper as fronteiras entre o ofício poético e a vida. Ela tinha a clara certeza de que Para uma menina com uma flor fora escrito especialmente para ela. Nada mal, nada mal. – Bem, é melhor a gente entrar – disse por fim, dando 173 OUTRAS PAIXÕES uma última tragada. Nada mais parecia ter importância. Ele apenas a acompanharia. Para onde quer que fosse. Ela jogou o cigarro, que já não era mais um cigarro, era uma guimba manchada de batom vermelho, num daqueles coletores de lixo que tem uma espécie de cinzeiro na parte de cima. E ele então pensou em Greta Garbo amassando uma guimba num cinzeiro enorme. E emoldurando com seu andar os olhares atônitos à sua volta. Caminharam em silêncio até chegarem próximo ao palco. As luzes apagaramse e uma espécie de histeria tomou conta do ambiente. Naquele momento ela apertou sua mão com força, como velhos conhecidos, como se precisasse ser contida em sua alegria angustiadamente bela e melancólica. Bela como Hairdresser on Fire que abriu o show, já perto das onze horas. Melancólica como o cenário, com suas cortinas dramaticamente vermelhas. Bastou Morrissey desfiar sua poesia sofrida, falando de perdas, saudades e desencontros para ele notar que, definitivamente, não caberia naqueles pragmáticos anos 90. Naquele recém moderno mundo pop não havia mais por que sofrer, não havia quem idolatrar com reverência e sincretismo. Características típicas de uma geração marcada por certo vazio. Baudelaire avisou que Last Night I Dreamt seria a última canção da noite. Depois, as luzes acenderamse ao som de My Way na voz de Sinatra. Olhou para ela, que estava com os olhos umedecidos. Não falaram nada. Nem era preciso. Os olhos diziam tudo. Abraçaramse como cúmplices e ficaram ali, os corações batendo em dobro. O que sobrou foi um amontoado de pétalas espalhadas pelo chão, com seu multicolorido disforme, e 174 OUTRAS PAIXÕES a impressão de que algo, de alguma maneira, fora resgatado, reconquistado. O tempo perdido, talvez. Wallace Puosso 175 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Marília 176 OUTRAS PAIXÕES Naquele fim de tarde, Marília esperava. Ah, era terrível o sentimento de angústia durante a espera naquele fim de tarde. Tardava a tarde. Tardava o dia. Tardava o tempo. Gota a gota, caíam as areias da velha ampulheta do tempo imemorável e sem início. Tardava o Gonzaga. Marcara às seis. Dizia o bilhete. Olhava as rosas. Marília o esperava ansiosamente, sentada num banco próximo ao chafariz da Praça da Liberdade. A ânsia aumentava a cada instante e o retumbar do tictac do seu relógio era uma eterna tortura para o coração, que esperava. Marília temia. Seu idílio com o Gonzaga chegara a um ponto tal que ou o assumiam publicamente e arcavam com as consequências disso, ou abdicavam dele em definitivo. Só não mais podiam continuar a longa série de obtusos encontros no pequeno e discreto hotel Gontijo, da rua dos Tupinambás, no centro da capital mineira. Gonzaga. Marília o amava. Aliás, este não é o primeiro casal Gonzaga e Marília da história mineira. É, contudo, o meu e o de agora. Vinte anos mais velho que ela e seu chefe imediato no local onde estagiava, ele temia o desfecho dessa sua louca aventura. Um escândalo de adultério poria em risco o seu casamento – coisa que, francamente, embora há muito já cambaleasse e sobrevivesse de aparências, lhe era muito cara –, e sua ascendente carreira de funcionário de autarquia educacional do governo de 177 OUTRAS PAIXÕES Minas. Além disso, pensava na própria Marília, que poderia ser duplamente prejudicada, vindo a perder o estágio duramente conseguido graças a um empurrãozinho de um seu tioavô, amigo do Secretário de Educação, e a ter de enfrentar a enxurrada de represálias da tradicional família, que nunca a admitiria amásia de um homem casado. Gonzaga questionava a grandeza do sentimento que nutria. Seria esse sentimento suficientemente forte para suportar tamanhas intempéries? Por tudo isso, era um homem em conflito. Duas semanas antes do dia da espera, a situação se agravara. Por um vacilo de colegial malandro que cabula a aula, ambos foram surpreendidos em despedida na porta do referido hotel. Os olhos de águia de Borges, colega e rival do Gonzaga na disputa de uma almejada promoção funcional, flagraramnos num suspirante beijo. Dias depois, rumores na repartição já começavam a causar certo desconforto às intenções ascensionais do Gonzaga. Seu diretor, Dr. Clóvis, o olhava com desconfiança. As jovens do setor procuravam evitarlhe o contato. As senhoras viravamlhe a cara. Os homens riamse discretamente pelos cantos. Do trabalho para o lar, o boato do affaire se espalhou como uma epidemia de gripe sazonal, num efeito dominó. Aurora, sua esposa, suspirava tristemente lânguidos ais. Seus filhos o olhavam com o desconcertante olhar repreensivo da revolta, filha da vergonha com a decepção. Como se vê, o pobre Gonzaga começava a declinar moralmente nos dois sítios em que, malgrado os problemas, sentiase um soberano impoluto e intocável. “Estou acamado. Não vou trabalhar. Cancele a agenda de hoje. Me espere na praça, no final da tarde. 178 OUTRAS PAIXÕES Se não aparecer até as seis, é porque não vou. Abra, então, o envelope azul. Só abra nessa ocasião. Faça exatamente como lhe digo. Beijos do teu Gonzaga.” Esperando, Marília relia o bilhete. Esperava e obedecia cegamente, como qualquer apaixonada. Seu olhar era perdido. Mirava longamente o ramal das rosas vermelhas enviadas naquela manhã para o trabalho, com o bilhete e o misterioso envelope. Essa atitude do Gonzaga deulhe esperanças. Afinal, ele lhe enviara rosas na repartição! Sem ao menos imaginar o verdadeiro conteúdo do envelope azul e sem mesmo ousar pretender abrilo antes da hora determinada, Marília olhou em volta. Próximo ao chafariz, viu duas crianças correrem frescas e felizes sobre as alvinegras pedras portuguesas macadaminzadas do calçamento. Pareciam voar. Gritava o menino: “Avante, Sininho! Temos que encontrar o Gancho!” Marília teve um instante de alento para a sua tensão ao se deparar com a inocência da TerradoNunca daquele intrépido Peter Pan. Seu relógio de pulso tocou seis horas. Era o chamado de volta à realidade. Ainda esperou mais quinze minutos. Enfim, convenceuse: por algum motivo, o Gonzaga não iria. Seguindo as instruções, abriu, mãos tremendo, o envelope: “Acabo de transferila, em caráter irrevogável, para o gabinete do Dr. Clóvis. Não me procure mais, definitivamente! Adeus!! Gonzaga.” Estática, Marília sentiu apenas o bater frenético de seu coração no peito inflame e o feixe d’água amarga e salgada rolandolhe pela rubra face. Aérea, andou a esmo por alguns instantes, deixando pender da mão o ramal de 179 OUTRAS PAIXÕES flores. Murcha, qual a desesperança do cair da folha outonal, deixouse conduzir pelas pernas, atonitamente, mecanicamente, até o ponto de ônibus. Foi para casa, onde amargurou a dor infrene dos rejeitados. Sozinha, isolada no seio da família que pretendia enfrentar pela causa do amor, teve de aprender a trilhar a dura jornada da fênix. Aquelas rosasadeus pendidas de suas mãos foram catadas e despetaladas por Peter Pan e Sininho. Em seus voos rasantes e piruetas no ar e em suas perseguições e fugas ao Gancho, eles distribuíram suas pétalas entre o vento e as gotas da chuva artificial do chafariz. Cada pétala esvoaçante no escarlate céu crepuscular era um fragmento de sonho de amor… um beijo roubado, um afago, um carinho, um toque, um desejo, um gozo, uma hora desprendida e dedicada a um amor preterido e fracassado… Cada pétala era um sentimento expurgado, moído e liberto, esfarelado, feito em pó, farelo de terra reinventado em pozinho mágico de pirlimpimpim. Ricardo Tupiniquim Ramos 180 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Thomás e Náthaly 181 OUTRAS PAIXÕES Thomás e Náthaly se conheceram em Florianópolis, por causa de uma amiga em comum. Os dois ficaram juntos entre outubro e dezembro de 2012, quando Thomás teve de se mudar para o Rio de Janeiro, onde permaneceu até agosto deste ano. Voltou a Florianópolis para estar perto dela. Como se não bastasse a distância enfrentada nos últimos dois anos, a família dela é contra esse relacionamento. Além disso há a diferença de idade: ele tem 20 anos; ela, 15. No tempo em que eles estiveram separados matavam as saudades pela internet e com visitas dele a cada três meses. No entanto, não foi o bastante para os dois. “Abandonei tudo para ficar com ela. Trabalhava em laboratório... Lá a minha vida era bem melhor e minha mãe não queria que eu viesse para cá. A gente aqui não tá legal por causa da família dela. Lá a minha família ajuda mais do que a dela, que só quer separar.” Quando pergunto quais são os planos para o futuro, Thomás responde: “Agora é esperar ela fazer 18 para vir morar comigo no Rio.” Boa sorte para os dois. Relato deles. 182 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Minha vida pertence a ti 183 OUTRAS PAIXÕES Meu nome é Kátia*. Sempre me achei uma mulher sozinha, apesar de ter alguns pretendentes, porém nenhum que realmente me completasse. No trabalho, sempre fui vista como uma mulher fatal, que era desejada por vários de meus colegas. Me arrisquei a ficar com alguns, mas logo vi que nenhum deles nutria um sentimento verdadeiro. Sempre fui uma boa funcionária. Aqui no Shopping Rio Sul era muito solicitada para treinar os novos funcionários da empresa em que eu trabalhava, fazendo a cobrança do estacionamento. Novos funcionários vinham numa frequência quase que rotativa. Alguns eram efetivados, e muitos eram dispensados depois de poucos meses de trabalho. Me lembro de ter treinado um jovem, com apenas 19 anos. Com certeza era seu primeiro emprego. Esse jovem era um rapaz franzino e tímido, que tentava se mostrar empenhado em aprender todo o serviço. Depois do curto período de treinamento, apenas três dias, o jovem foi efetivado. No início sequer procurei guardar o nome dele em minha mente, afinal, era apenas mais um colega de serviço. O jovem passou a conviver comigo e com os demais colegas de equipe. Eram raras as vezes em que vinha conversar comigo, e eram raras as vezes em que trabalhávamos juntos na mesma cabine de cobrança. 184 OUTRAS PAIXÕES Confesso que no começo o achava um chato! Além de muito caladão, tentava mostrar serviço e isso me deixava nervosa! Como um jovem pirralho poderia se destacar dessa maneira? Mas tudo começou a mudar quando começamos a trabalhar juntos. Aos poucos fui conhecendo mais e mais de sua vida, de seus problemas e de seus interesses. Fomos ficando amigos, nos interessávamos um pelo outro. Ele começou a fazer questão que eu fosse me despedir dele. Seu nome é Eduardo. Eduardo começou a me ver apenas como uma amiga, mas eu, sem perceber, já estava querendo vêlo mais e mais. Enquanto nossos colegas me viam como a mais “gostosa”, Eduardo me via como uma pessoa amiga, em quem podia confiar. Nossa amizade foi crescendo, até que um dia Eduardo assumiu que estava gostando de mim. Marcamos então nosso primeiro encontro no Réveillon de Copacabana. Eu fui na frente, com minha mãe, ele me encontraria depois, pois seu turno de trabalho terminaria às duas da manhã. Isso foi no dia 01/01/2001. Me lembro de que nessa virada de ano choveu muito e, quando fui encontrarme com Eduardo, eu estava ensopada! Nos encontramos em frente ao Shopping Rio Sul, e quando Eduardo me viu molhada daquele jeito, imediatamente, voltou para dentro do Shopping, indo até seu armário, e trouxe uma toalha para que eu me secasse. O resto da noite correu maravilhosamente bem, nos conhecemos melhor, e ele me contou que tinha uma namorada 18 anos mais velha que ele. Se tem duas coisas que me encantaram no Eduardo foram: seu 185 OUTRAS PAIXÕES cavalheirismo e sua sinceridade. Pouco tempo depois, ele deixou a namorada para ficar comigo, e com isso levamos nosso namoro muito a sério, sem contar para ninguém do nosso trabalho. Ficamos noivos em 17/11/2001, e só depois do noivado nossos colegas de trabalho ficaram sabendo de nosso relacionamento. No dia 09/06/2002 começamos a morar juntos. Não nos casamos oficialmente, as dificuldades da vida nos fizeram pular essa etapa. Durante todo nosso tempo de casado, tivemos altos e baixos. Passamos por muitas alegrias e muitas crises, que serviram para nos amadurecer ao longo dos anos. No dia 23/11/2003 nasceu nosso primeiro filho, Richard, e no dia 01/01/2010, o nosso caçula, Rafael. Infelizmente, no dia 11/10/2011, minha mãe, que sempre morou conosco, faleceu. E a partir daí eu tive a certeza de que Eduardo não era apenas o homem que eu amava ou o pai dos meus filhos. Eduardo era meu pilar de sustentação que me deu força e amparo quando tive que seguir sem minha amada mãe. Mas o que me deixa mais feliz ainda é saber que não só ele é meu pilar de sustentação. Eu também sou o dele, e por isso, hoje, nosso castelo é tão forte e sólido. Mesmo depois de todo esse tempo juntos, ele ainda prepara meu café da manhã, todos os dias. Ainda hoje, Eduardo faz carinho em minha nuca. Mesmo com filhos crescidos, nós nos beijamos a qualquer hora do dia, e dizemos, para quem quiser ouvir, que nos amamos, que nos desejamos. Temos uma família maravilhosa. Podemos não ser aquela família rica que estampa as capas de revista, mas 186 OUTRAS PAIXÕES em nosso lar há muito amor e carinho, e isso não trocamos por nada. Quando éramos namorados ele me dizia uma linda frase, e até hoje o ouço dizer cada doce palavra dela com o mesmo amor… “Minha vida a ti pertence!” Eduardo C. Duque *Essa é a minha história de amor com minha esposa, Kátia, narrada do ponto de vista dela. 187 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Eram eles três 188 OUTRAS PAIXÕES Era Júlia, Ricardo e essa tal de paixão. Essa que classificam como emoções que mexem e desestruturam o coração. Júlia era uma menina magrinha, estatura mediana, cabelos cacheados, nem feia, nem bonita, usava jeans rasgado e camisas legais. Adorava quadrinhos, estagiava no jornal local e uma vez por semana era voluntária na AD, associação que ajudava drogados em recuperação. A maior parte do tempo estudava, trabalhava e planejava cada passo dos seus sonhos. Ricardo era o tipo filhinho de papai, machista, lindo, alto, malhado, olhos castanhoescuros, jogava no time de basquete da faculdade. Um garanhão, desejado por todas as meninas da faculdade. Júlia olhou para ele pela primeira vez em uma cafeteria no centro da cidade, aquele instante foi suficiente para ela perceber que o sol existia apenas para iluminar o sorriso dele. O seu coração palpitava aceleradamente. Júlia pensou que talvez o bolo de chocolate lhe fizera mal, pois havia muitos calafrios na barriga. Ricardo, estudante de direito, tinha um nariz simetricamente perfeito, um sorriso de propaganda de creme dental, ar esnobe, jeito de riquinho, e estava sentado com um amigo de faculdade de Júlia, do curso de jornalismo. Paulo percebeu a presença de Júlia, a chamou levantando a mão direita. Júlia se aproximou, com a voz trêmula, perguntou se Paulo iria para a aula de fotografia na terçafeira, Paulo respondeu que sim. Esqueceuse de apresentar os dois. E ela disse “até lá” e 189 OUTRAS PAIXÕES foi embora. Duas semanas depois, em um sábado à noite, Júlia, que odiava sair de casa, a convite e insistência de sua amiga Suzi, decidiu ir para uma dessas baladas que reunem os universitários amantes de música sertaneja. Logo que chegou, viu Ricardo. Ele estava com Roberta, estudante de publicidade, ela era tão bonita que dava dó de olhar. E mesmo que não quisesse, Júlia desejava de alguma forma estar no lugar de Roberta. Às 2h40 da matina, Suzi havia decido ir embora com uma carinha qualquer. Júlia resolveu fazer o mesmo, mas sozinha. Quando chegou à saída encontrou Ricardo, bêbado e com cara de cachorro abandonado. Júlia decidiu lhe oferecer uma carona. Deixou o rapaz em casa, sem ter trocado uma palavra com ele no caminho. Na segunda feira Júlia recebeu um obrigado do moço, que depois das idiotices da noite de sábado não parecia mais tão bonito assim. Depois sempre acontecia um olá e um oi, todas as vezes que eles se encontravam sem querer na faculdade. Entre conversas, cafés, solicitações de amizades nas redes socais, eles se beijaram na mesma cafeteria que Júlia o viu pela primeira vez. Júlia achou que estava no céu, que estava no paraíso. Agora eram efetivamente eles três, Júlia, Ricardo e esse tal de namoro. E mesmo felizes, eles eram opostos demais. Ricardo pegou todas as mulheres que queria, mas sempre achou que mulher para casar era a que viveria à margem dos sonhos dele. Mas por Júlia ele tentou, até deixou de ir às baladas, aprendeu a ler quadrinhos e a ser mais humano. Júlia aprendeu a gostar de basquete e de leis. Parecia estar tudo programado, se não fosse a tal da razão. Depois de dois verões e de uma paixão intensa, de idas e vindas, Júlia se formou e ganhou uma bolsa de 190 OUTRAS PAIXÕES mestrado na Espanha, e dessa vez não deu para abaixar a cabeça e concordar com a posição de Ricardo, ele apenas lhe disse “você fica”. Ela chorou, arrumou as malas, pensou nos seus sonhos, e pediu paciência para ele. Tentou explicar que eram apenas dois anos e ele podia ir visitála sempre que uma saudade louca batesse. Eles se amariam por emails, cartas, telefonemas, mensagens, mas no fundo ela sabia aquela proposta seria apenas uma tentativa, Ricardo não concordaria. E novamente eram eles três Ricardo, Júlia e a razão. Júlia sabia que seu coração nunca mais amaria, nem veria o paraíso ao beijar outra pessoa. Foram dias lindos de sol, dias de abstinência, de liberdade ao lado de Ricardo. Mas para Júlia amor e prisão não combinavam. O tempo passou, agora Júlia está no terceiro ano do doutorado, leciona no curso de jornalismo da faculdade da Espanha e escreve contos sobre amor e vida veiculados aos domingos em um grande jornal espanhol. Escreveu dois romances que viraram bestsellers. Seus mocinhos e vilões sempre são inspirados nos lados opostos de Ricardo, que era amoroso, porém controlador. Ricardo seguiu os passos do pai, é um juiz dedicado, competente e respeitado, e casou com Carla, arquiteta loirinha. Eles têm dois filhos, um cachorro, uma bela casa de praia, e lembranças de viagens para Disney. Júlia e Ricardo se viram em uma bela tarde ao pôr do sol em um café na cidade de Madri, era janeiro, ele estava em uma dessas viagens em família. Eles se olharam intensamente e todo aquele sentimento surgiu de forma avassaladora. Depois de cinco minutos, Júlia se levantou sem terminar de beber seu café, e simplesmente saiu, tendo a plena certeza que Ricardo continuava lindo, simplesmente incrível. E Ricardo, ao ver Júlia ainda mais 191 OUTRAS PAIXÕES bela, serena, magra e leve, entendeu porque nunca, nem por um segundo conseguiu esquecer seus olhos, muito menos olhar para alguém com a mesma magia que olhava os seus cabelos cacheados balançados pelo vento. Jani Di 192 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Darwin 193 OUTRAS PAIXÕES Eu sou uruguaio. Morei dezessete anos no Rio Grande do Sul. Fui casado por doze anos. Foi um relacionamento bom – não vou dizer que não foi bom, tanto que durou –, mas se desgastou. Morava no lado uruguaio, na fronteira com o Brasil, e atravessei a ponte para ir a um baile com os amigos. Eu tinha 17 anos na época. A gente fez uma aposta para trovála e eu fui lá. Depois de cinco anos começou a desgastar. Eu era vendedor, viajava muito. Rolou muita cobrança e traições. Primeiro ela descobriu a minha traição e por último ela me traiu, por vingança. Ela falou assim para mim, o que até hoje eu guardo: “Bala trocada não dói”. Resolvi abrir mão da relação. Fazia dez anos que a gente estava casado; não tinha filhos, mas tinha uma vida bem estruturada, então pela própria pressão da família eu voltei. Todo mundo apostava que a gente desse uma chance. Foram mais dois anos empurrando com a barriga, só de aparências. Tentei conversar várias vezes com ela: “Vamos ser felizes os dois. Nós não somos felizes. Não deu...” A vida continua e ela se casou com outra pessoa. Eu estive por três anos no Uruguai, mas não me adaptei depois de estar por tanto tempo no Brasil. Fiz um curso de barman e comecei a trabalhar no bar de um brasileiro, em Punta del Este. Quando fechou ele me 194 OUTRAS PAIXÕES chamou para trabalhar no outro restaurante dele, no Rio de Janeiro. Depois uns amigos me convidaram para passar uma temporada aqui em Florianópolis. Fui ficando e já faz quatro anos que estou aqui. Depois dessa relação estive por um ano sozinho, então conheci a Janaína – muito bonita, muito simpática – na mesma cidade e na mesma balada em que conheci a minha primeira esposa. Faz sete anos que a gente está junto. Ela me acompanha em tudo quanto é lugar e nós temos planos de ter filhos. É incrível, estive com uma pessoa por doze anos e não sentia o que sinto por esta outra. É mais do que amor, é cumplicidade. Eu não vou cometer os erros que cometi no passado. Agora eu tenho certeza de que encontrei a pessoa certa. Relato dele. 195 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES As duas faces do Amor'al 196 OUTRAS PAIXÕES Até algum tempo, a profissão de contínuo foi muito conhecida, pois era exercida por uma pessoa, de qualquer idade, desde que empregada em um escritório, mais comumente em repartições públicas, e que prestava os serviços bancários, de entregas, de correios e outras atividades que denominamos hoje como as de officeboy. Valdemar, um tipo simpático, franzino, com olhos claros e pequenos que lhe davam um semblante maroto; fino nos gestos e muito educado no falar, um verdadeiro bom de papo, era um profissional dessa área. Profissional mesmo, pois nunca se atrasava no horário de chegada ao serviço, jamais faltara um dia sequer e era extremamente cumpridor de seus deveres no trabalho. Casado há muitos anos, vinte e cinco, mais ou menos, com Divina, uma esposa dedicada, meiga, de poucas palavras e muita afável, com quem tinha três filhos, um deles homem. Nada deixava faltar para a família desde que adaptado ao salário de funcionário público. Até seguro de vida ele tinha, estando como beneficiária a esposa, assim gostava de divulgar. Por motivo de uma crise conjugal, ocorrida após dez anos de casados, iniciouse minha amizade com o casal. Divina, em prantos, veio ao meu escritório e queria a separação do Valdemar, alegando motivos para ela trágicos. Porém, após uma breve conversa, se pôde observar que não eram de nenhuma gravidade, apenas discórdias conjugais, um pequeno desentendimento de 197 OUTRAS PAIXÕES marido e mulher. Reunidos os três, não foi difícil de minha parte apaziguar os ânimos e conciliar o entendimento entre ambos, em vez de promover a procurada separação. Por isso e por passar o casal a viver em paz, formou se entre nós uma amizade duradoura e sincera que se estendeu além do profissionalismo, passando a nos tornarmos amigos particulares, incluindo a companhia dos nossos familiares e com mútuas visitas às residências. Amizade sincera gera confidências e Divina não se cansava de confessar que fora uma tola naquela ocasião do desentendimento, que não tivera razão para desacreditar de seu querido Valdemar, mostrando a quem quisesse ver e ouvir o seu amor pelo marido, e demonstrando uma ternura imensa, sem exigir nenhuma prova dele. Anos seguidos fui testemunha daquele verdadeiro idílio existente entre ambos, daquela paz duradoura entre Divina, Valdemar e seus filhos. Ele permanecia fiel ao seu trabalho na repartição, pontual, cumpridor de seus deveres em todos os dias úteis da semana e dedicando o domingo à companhia da família e os sábados ao seu divertimento preferido, ao seu hobby único: jogar tênis no Clube Inglês. Algumas pessoas estranhavam o gosto do Valdemar, o seu passatempo preferido não coerente com um contínuo de repartição pública, portanto incompatível com seu salário, com seu modo de vida e com a condição social dos frequentadores daquele clube e daquele esporte. Porém, Valdemar respondia a quem o questionava dizendo que o que o atraía e o fascinava era o comportamento, a finesse e o trajar empregado na atividade esportiva dos companheiros daqueles encontros aos sábados. Por isso, Valdemar saía todas as semanas 198 OUTRAS PAIXÕES muito bem arrumado, com sua melhor camisa, calça vincada, sapatos polidos, barba raspada, cabelos sempre bem cortados e sobre a cabeça um boné tipo italiano, levando sua maleta de mão e sua raquete. Por anos, a rotina seguia com Valdemar saindo para seu trabalho ou para seu lazer e se despedindo carinhosamente da querida Divina todas as manhãs e voltando ao anoitecer, menos aos domingos, pois os domingos eram sempre e sempre dedicados exclusivamente aos seus queridos familiares. Naquele fatídico dia o telefone de meu escritório tocou e a notícia veio violenta, atordoando meus pensamentos, já que Divina, aos prantos, com a voz embargada dizia que o Valdemar havia sido internado às pressas, socorrido diretamente na repartição, em estado grave. Corri imediatamente para o hospital. Porém, ao chegar, Valdemar já estava a caminho do necrotério, corpo coberto dos pés a cabeça, atingido por um fulminante colapso do miocárdio. No funeral muito simples, caixão modesto e barato, somente familiares e amigos mais chegados consolavam a viúva, envolvida em um vestido preto obtido às pressas que mal contornava seu corpo de curvas já não acentuadas, mas simbolizava seu luto e externava seu imenso sofrimento. Desesperada, bradava ao mundo seu amor pelo defunto, as qualidades daquele que por vinte e cinco anos tivera por companheiro fiel e dedicado. Mergulhada em desespero, chegou a desmaiar por duas vezes durante o velório, e a dor da esposa enlutada era compartilhada por amigos e parentes presentes na caminhada da última morada. Do Clube Inglês não se viu ninguém, nem um representante, nem um companheiro de esporte, nem 199 OUTRAS PAIXÕES uma coroa de flores, nenhuma mensagem de condolências, nem mesmo uma simples rosa. Nada. Até a missa de sétimo dia a viúva continuava depressiva, derramando lágrimas dia e noite, apesar da tentativa de todos de consolála, porém com pouco êxito, pois Divina só enaltecia as qualidades do falecido. O tempo, no entanto, é o remédio de tudo e para tudo. Alguns dias mais, parcialmente aliviada de seu sofrimento, encarando a realidade, corajosamente Divina juntou os pertences e as roupas de seu querido esposo para doar a algum necessitado. Camisas, calças, meias, sapatos, tudo separado e embalado carinhosamente na esperança de que alguém, com as mesmas virtudes e com os mesmos valores do seu Valdemar, fizesse proveito daquelas vestimentas. Um a um dos vestuários foram lavados, passados e dobrados, especialmente aquela calça branca de gabardina, uma das preferidas e que ele usou recentemente quando de suas idas ao clube, aos sábados. Revisava antecipadamente toda a peça, verificando cuidadosamente quando notou um papel sutilmente colocado bem no fundo do bolso traseiro, quase imperceptível. Era um envelope cuidadosamente dobrado, alisadinho, trazendo no seu interior uma carta. Curiosa antes, trêmula depois, Divina abriu o envelope e começou a ler o conteúdo, notando antes uma forma de boca aplicada no papel branco, como se fosse uma marca d’água, sombreada em vermelho. Mais atentamente percebeu que era a forma de um beijo transferido de lábios pintados e firmado no fundo do papel da missiva. Em linhas carinhosamente escritas, uma delicada caligrafia feminina expressava declarações de amor eterno a Valdemar. A data era recente, mas as juras indicavam a continuidade em viver intensamente na 200 OUTRAS PAIXÕES forma como todos os sábados que já passaram juntos por tantos e tantos anos que já se foram: uma vida! Carinhos e declarações afetivas transbordavam do papel, escorriam carregando a tinta rubra do batom e atingiam Divina com a mesma violência das lavas derramadas de um vulcão em erupção. A confissão expressa da missivista pela predileção do falecido em acariciar os seus cabelos longos envoltos no rosto, foi como um soco no estômago, já revirado, da leitora. O sutil perfume do papel tão bem guardado entupia suas narinas, sufocando a. As letras manuscritas com tanto carinho enchiam seus olhos de lágrimas, inundandoos como a terrível invasão das águas em um navio naufragando. A sua rosada pele agora refletia um branco mais intenso do que o do papel que tinha em mãos. Seu coração disparado palpitava descontroladamente a cada palavra que lia e sua razão não aceitava a existência daquele momento, como atingida por um golpe no peito. Chegou às portas do desfalecimento ao deparar com o nome assinado ao final, abreviado: LÚ. Sentou na cama daquele quarto que venerava, que tinha em seu teto e em suas paredes o testemunho das tantas e quantas vezes que se entregara de todas as formas ao seu querido marido, por tantos anos, sem jamais cogitar tal situação. Vagarosamente, corajosamente procurou ordenar seus pensamentos e voltar a seu discernimento. Lentamente a tontura foi passando e deu lugar a um leve sentimento de rancor, que cada vez mais se avolumava como se quisesse sair por todos os poros de seu corpo em brasa. Uma raiva incontrolável passou a exteriorizar de todas as formas e através de todos os nervos de seu corpo tenso. Uma tremedeira, agora de furor, esbugalhou seus olhos; suas narinas, não mais entupidas, em chamas soltavam lavas e de sua boca 201 OUTRAS PAIXÕES zangada saiu um grito alto, forte, violento, nunca dito antes: – Filho da puta! E caiu desmaiada, deixando a singela missiva escorrer por seus dedos, pela mão mil vezes furada e dilacerada por suas unhas cravadas, molhada pelo suor de todo o seu corpo. Socorrida, Divina ficou em observação médica por um dia, no prontosocorro mais próximo. Alta obtida, cabeça no lugar à base de sedativos, passou a analisar o passado com lembranças de um nome que lhe ferira mortalmente, gravado com ferro ardente no seu cérebro: LÚ. Então era ela! Lucimeire, a copeira da repartição! Valdemar, algumas vezes, em conversa familiar enaltecera a qualidade daquela biscate, elogiando o sabor do café que ela servia. Chegou a mudar de marca, por várias vezes, do pó de café comprado na tentativa de igualar com o de sua casa o sabor daquele feito na repartição pública. Ah! O que ele queria mesmo, concluiu, era sentir o aroma da piranha, mesmo de longe, durante os dias da semana. E a panqueca? Jamais comera outra panqueca igual à da Lucimeire, dizia o verme de quando em vez. Aos poucos e devagar o raciocínio funcionava, trazendo esclarecimentos: e os amigos do Clube Inglês, que sequer vieram ao velório? Não poderiam vir mesmo, pois não existiam! E a raquete de tênis, sempre polida, impecável, cordoalhas sempre rígidas, não se conservavam por ser importada, de alta qualidade e sim por não serem nunca usadas! Boné italiano no clube inglês, por que nunca pensei nisso? Mas é lógico que na repartição não se fazem panquecas! Passados alguns dias, não sabendo ainda exatamente se seus sentimentos eram de raiva intensa ou só de tristeza, 202 OUTRAS PAIXÕES só vazio, sentindo apenas uma vontade de ajoelhar diante da tumba, apenas ajoelhar ali perante a sua morada eterna, Divina resolveu ir ao cemitério cuidar do túmulo, lavar e desfazerse das flores e das coroas enviadas pelos amigos no funeral, pois já deviam estar podres e mal cheirosas. Não foi o que viu, pois encontrou a laje límpida, com as pedras lavadas e polidas, e dois vasos com flores, um de cada lado, de rosas vermelhas e de cravos brancos adornando a cama final do descarado, do cretino, do sem vergonha. Sobre a lápide julgou ver escrito um nome, quase apagado, como querendo esconder por mais tempo a verdade, um pó, quase uma sombra: LÚ. Irada, raivosa, num acesso de fúria atirou longe os vasos, chutou as rosas e os cravos, pisoteou centenas de vezes o tampo em granito que selava a cova, gritando mil palavrões, xingando cada um dos examantes com todos os nomes feios que conhecia, fazendo palco para uma cena que se não fosse trágica, seria hilária. Dias depois, mais calma, até arrependida de sua fúria anterior, voltou ao cemitério e encontrou novamente a laje límpida, com as pedras lavadas e polidas, e dois vasos com flores, um de cada lado, de rosas vermelhas e de cravos brancos adornando a cama final do desavergonhado. Sobre a lápide julgou ver escrito um nome, quase apagado, como querendo esconder por mais tempo a verdade, um pó, quase uma sombra: LÚ. Sem perder a tranquilidade, desta vez simplesmente abaixou a cabeça, relaxou todos os músculos possíveis do corpo, deixou os ombros caírem e, suspirando fundo, volteou em direção à saída, caminhando a passos vagarosos pelas silenciosas alamedas daquele campo santo. Ao transpor o portal principal e passar sob a sombra de uma frondosa árvore, teve a cruel sensação de ver no 203 OUTRAS PAIXÕES solo a luz projetada pelos raios do sol transposta por entre alguns de seus ramos e de suas folhas, formando um escrito em letras garrafais, um nome: LÚ… Nunca mais retornou àquele supulcrário. Ligoume outro dia a Divina, querendo saber se poderia anular o casamento feito há mais de vinte e cinco anos com o Contínuo, forma como se referia ao falecido desde que se recusava a pronunciar novamente o nome daquele desprezível verme, conforme suas próprias palavras. Respondi que não, mesmo porque ela não era mais casada, pois passou à condição de viúva, seu estado civil atual. Do outro lado da linha ouvi sua risada, entre as palavras “É mesmo… É mesmo…”. Pergunteilhe se estava bem e como resposta ouvi que nunca estivera melhor, era livre, recebia pensão do Estado e até uma boa casa havia comprado com o dinheiro do seguro de vida, deixando de pagar aluguel, como sempre fez o Contínuo. Mesmo a distância percebi que aquele sorriso de escárnio estava marcado com uma linha espessa trazendo à mostra várias rugas recémchegadas à sua face plúmbea. E ouvi mais risos, tantos que foram gradativamente aumentando, aumentando até se transformarem em gargalhadas cada vez mais fortes, mais ruidosas e mais duradouras, que me obrigaram a desligar o telefone após algum tempo, sem poder concluir se foram gargalhadas de ciúme, de vingança ou de satisfação. Hoje ainda penso que era o gargalhar de uma louca. Flávio Dias Semim 204 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Loucuras de amor 205 OUTRAS PAIXÕES – Alô! – Fernanda? – Oi, amor, eu estava com saudades! Desse modo iniciavase nossa conversa por telefone todos os dias de manhã, depois de eu conhecêla, assim que mudouse para o bairro. Minha casa era separada da sua simplesmente por alguns metros e um canteiro onde os bemtevis cantavam nas árvores, parecendo chamar alguém. Apenas alguns veículos e alguns cães asquerosos insistiam em desafiar o sossego do local. Na sua casa ouviase somente, e muito raramente, a voz da sobrinha mimada e o movimento discreto de sua irmã. Fernanda viera para a capital em busca de estudos e do sonho de um bom emprego. Quando eu a vi de minha janela, meu coração disparou. Senti algo diferente, que nunca sentira por mulher alguma, nem mesmo por minha esposa. Fora amor à primeira vista. Morena alta, de corpo escultural, com os cabelos cacheados e negros batendo na bunda redonda e protuberante, ela parecia uma deusa de bronze esculpida pelos melhores artistas no auge de suas inspirações. Tinha apenas dezessete anos. Eu já estava com trinta e nove. Todos os dias, Fernanda saía no quintal com uma vassoura e com um balde de lixo nas mãos para limpar a sujeira das folhas e a terra deixada pelos ventos noturnos. Às vezes, nos movimentos de inclinação e momentos de 206 OUTRAS PAIXÕES descuido, seus belos seios, soltos e altaneiros, se descobriam parcialmente. Sentado numa cadeira, eu observava tudo atentamente. Percebi que ela também me olhava discretamente. Um sorriso lascivo saía de sua boca de lábios finos e sensuais. Certo dia, em sua limpeza de rotina, Fernanda apareceu usando um vestido puído de tecido simples e barato. Porém, nada disso tiravalhe a beleza e sensualidade. Beleza essa, quase indescritível mesmo pelos mais inspirados e apaixonados dos poetas em noite de lua cheia. Ela já havia me visto no mesmo canto da garagem, sempre a observála. Num instante, subitamente, uma lufada de vento levantou a barra do seu vestido acima dos joelhos, deixando entrever parte de suas lindas e torneadas coxas. Enrubescida, percebendo meu olhar de delírio, mostroume um sorriso tímido e bastante peculiar. Ajeitou rapidamente a roupa, acenou timidamente e entrou. À noite, Fernanda saiu toda lépida e faceira, seguindo até à escola onde estudava. Passou em frente ao jardim e sorriu para mim, ajeitando os cabelos sensualmente. Parecia me fazer um convite. Eu, munido pela paixão, numa coragem súbita, abri imediatamente o portão, liguei o carro e a segui. Na esquina eu a alcancei. Ela, após uma certa resistência e algum charme, entrou no carro. Leveia para um local ermo e escuro, longe de nossas casas e dos olhares curiosos. Nossos corações disparavam, com ambas as respirações tornandose ofegantes. Estacionei embaixo de uma grande árvore florida. Puxeia para o meu lado e, pela primeira vez, nos beijamos ardentemente. De dia, ela em seu quintal e eu no meu, namorávamos de longe com acenos, beijinhos e juras de amor por 207 OUTRAS PAIXÕES telefone. Porém, os encontros íntimos só aconteciam uma vez por semana. Fernanda, com medo de alguma coisa, resistia às minhas propostas de mais encontros. Provavelmente, medo de sua irmã, que era evangélica, descobrir e, principalmente, do fato de eu ser casado. Mesmo assim, estávamos completamente apaixonados. Eu quase não me alimentava nem dormia direito. Todos os dias, bem cedo, eu ligava. Sua voz macia, ao atender o telefone, faziame esquecer de tudo e de todos. Minha esposa não desconfiava de nada, preocupandose apenas com os afazeres da casa e com as crianças. A noite estava chuvosa, com nuvens densas e escuras. Encontravame em casa sozinho. Minha mulher saíra para uma festinha de aniversário, com minhas filhas. Fernanda apareceu no quintal. Linda e, como sempre, num vestido simples e muito sensual. Ela fechava o portão, pois sua irmã acabara de sair para um culto na igreja. Mandei um beijo para ela e entrei. Coloquei uma música para tocar e, sem titubear, liguei para sua casa. De minha janela a vi correndo para atender o telefone: – Oi, amor! – Oi, Fernanda! Vem aqui em casa, eu preciso de você! Estou sozinho! – Está bem, me aguarda que estou indo! Pela primeira vez senti firmeza em sua voz. Deixei o portão aberto e esperei. A ânsia me sufocava, com uma excitação incontrolável tomando conta de meu corpo. De repente o portão se abriu. Meu coração parecia querer sair pela boca. Subitamente, o céu escureceu e uma chuva forte caiu. Os raios, seguidos de fortes trovões, iluminavam a rua banhada pelas enxurradas. Puxei 208 OUTRAS PAIXÕES Fernanda, abraçandoa fortemente, passando a beijála sofregamente no rosto, no pescoço, nas orelhas e na boca de hálito quente. Ela, por sua vez, também me apertava, com suas unhas finas arranhando minhas costas. Era uma loucura total. Loucura de amor, loucura de paixão. Ambos soltávamos frêmitos de deleite, extasiados e com desejos mútuos. A chuva, como que nossa cúmplice, cessara no mesmo instante do final do ato de amor. Fernanda ajeitou a roupa e os cabelos. Nada parecia amedrontála. Deume um longo beijo de despedida, saindo com uma fisionomia serena. Atravessou lentamente a rua molhada, com seu andar sensual. Olhou mais uma vez para trás, sempre sorrindo, sumindo diante da escuridão da noite. De manhã, não avistei Fernanda como de costume. Liguei para sua casa e ninguém atendera. Tudo parecia estranho. Um misto de medo e tristeza tomou conta de meus pensamentos. À tarde, para meu espanto, eu a vi saindo com uma enorme mala. Ela, que ainda acenou para mim, partiu sem avisar. Fiquei do meu canto boquiaberto e inerte. Nunca mais soube notícias de minha deusa. O meu amor por Fernanda não fora efêmero, pelo contrário, fora um amor forte, verdadeiro, devastador. No início da separação passei a imaginála em toda parte, procurandoa pelos lugares mais difíceis e improváveis, sempre a perguntar em solilóquio “onde está meu amor?”. No entanto, apesar da perda, a cada dia passei a sentirme mais vivo e fortalecido. Até hoje, depois de vários anos que conheci Fernanda, ainda não consegui olvidála. Amiúde, 209 OUTRAS PAIXÕES lembrome da frase de uma música que ela me recitou, soprando ao meu ouvido: “agimos certo sem querer, foi só o tempo que errou”. Vicente de Melo 210 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Alide e Luis Alberto 211 OUTRAS PAIXÕES Com apenas 15 anos, a bela jovem de Passo Fundo já tinha uma história trágica para contar. Ela conhecera e se enamorara por um rapaz chamado Luis Alberto, que trabalhava como aviador. Para a tristeza de Alide, esse Luis Alberto, o primeiro da sua vida, faleceu. Depois dele, apareceu outro Luis Alberto, aviador como o primeiro. E, como o primeiro, não chegou a desfrutar a vida ao lado dela, pois também faleceu. Imaginem como deve ter se sentido a jovem quando por duas vezes perdeu os seus amores assim em circunstâncias tão similares e inusitadas. O mais curioso, no entanto, ainda está por vir. Então surgiu um terceiro homem, namorador e bem apessoado. O seu nome era Luis alberto, como os dois outros que passaram pelo caminho de Alide. E vocês querem saber o que ele fazia da vida? Sim, ele também era aviador. Assim, por teimosia do acaso ou do destino, Alide enamorouse por aquele que se tornaria o seu Luis Alberto para todo o sempre. Os dois tiveram um desses namoros à antiga, com direito a beijo roubado no fundo do quintal e a um pai desconfiado que se sentava entre eles quando iam ao cinema. A morte só veio encontrar o terceiro Luis Alberto após algumas décadas de um casamento bemhumorado e apaixonado. “Eu me apaixonava por ele toda vez que acordava”, Alide conta à sua família. 212 OUTRAS PAIXÕES Ainda hoje, decorridos vários anos do falecimento dele, a agora avó Alide sentese unida ao seu Luis Alberto tanto quanto sempre foi. Com a aliança no dedo, com um armário cheio de recordações da feliz união e comemorando cada aniversário de casamento, segue à espera do reencontro com o seu amado, embora, se lhe perguntarem a respeito, dirá que nunca se afastaram. “Minha avó diz que ele ainda está com ela”, revela a neta de Alide e Luis Alberto, Thalita, quem me conta essa história. Relato de Thalita, a neta. 213 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Cabelos de labaredas 214 OUTRAS PAIXÕES Que fosse eu a herdeira do baú, ninguém estranhou. Dos netos todos, sempre fui a preferida. Disfarçar ela sequer tentava. Diziam que era a semelhança o que nos tornava inseparáveis, cúmplices. Gastávamos horas brincando de misturar nossos cabelos, para depois adivinhar de quem era cada fio. Vê, não somos iguais? ela perguntava, em frente ao espelho. Temos as mesmas labaredas. Sim, éramos iguais, uma diferença apenas. Por que os meus olhos são verdes, vovó? Ela não respondia, apenas me olhava, apenas me admirava. Minha pergunta fazendoa flutuar, os pensamentos atravessados pelas lembranças. Mas nada disso eu sabia, pequena que era. Muito menos podia imaginar aquela saudade na alma, no corpo – saudade incrustada em cada recanto, em cada fibra. O baú. Agora era meu. Minha avó chamavao de Fênix. Foi tudo o que sobrou do incêndio. A casa toda destruída e ele ressurgido das cinzas, intacto. Faziame acreditar ser esta a razão de tamanha preciosidade. Os olhos castanhos aveludavamse no cuidado de interditá lo à chave, dentro do armário da biblioteca. Isso no tempo em que era preciso mantêlo longe das minhas mãos curiosas. E ali estava o diário, escondido sob linhas e agulhas de crochê. Na capa, duas letras num monograma. As folhas todas preenchidas com a caligrafia de minha avó, inconfundível, precisa, de alfabetizadora. No entremeio, 215 OUTRAS PAIXÕES envelopes com cartas. Nas cartas, uma letra masculina, vertida em poemas. Poemas. Escritos para ela, assinados apenas com Z, a letra que se entrelaçava ao A, inicial do seu nome. Já havia anoitecido no dia em que se conheceram. A reunião de professores prendeua na escola uma hora a mais. Ao sair da venda em frente à praça, logo na esquina, não conseguiu evitar o escorregão na calçada, ainda úmida da garoa daquela tarde. Constrangida, tentava recomporse, quando ouviu às suas costas: Vejo que precisa de ajuda, senhorita. A voz grave pontilhou suas vértebras, uma a uma, enquanto tentava livrar seu olhar do movimento das mãos morenas, juntando as maçãs esparramadas no chão. Deixa que eu carrego. Você mora por aqui? Ainda sem ter visto o verde daqueles olhos, verde da floresta quando chove, sentiu que os pensamentos a subjugavam, tirandolhe a razão. Mas ainda conseguiu dizer: Não precisa. Meu marido está aqui perto. Obrigada. O marido a aguardava, de fato, e estranhou que estivesse tão perturbada. O que foi? Problemas com a madre? Talvez não tenha notado que os cabelos dela pareciam mais afogueados que nunca. Semanas se passaram até que ele aparecesse em frente à escola, confundido com os pais à espera dos filhos, na saída. Naquela noite mesmo ela incluiu nas novenas uma nova intenção. Virgem Maria, me ajuda, preciso tirar este homem da cabeça. Preciso. Mesmo que isso tenha se tornado uma súplica, inócua mostrouse a intercessão divina. O tempo deixou de ser contado em horas, semanas ou meses; só existia, só fazia sentido, quando ele estava. E assim como ele estava, podia desaparecer sem aviso, sem promessa de volta. Na sua ausência, o consolo dos poemas, os que redesenhavam as 216 OUTRAS PAIXÕES lembranças, os que se moldavam aos desejos de minha avó. O carimbo no envelope, o único vestígio do seu paradeiro. Desistiu das orações no instante em que soube do bebê germinado em seu ventre. Não, ele não viu a barriga crescer, não tomou o filho como seu, não acompanhou as peripécias do menino adorado por todos, o caçula da família. Viuo uma única vez, no último encontro que tiveram, quando o presente foi entregue para a criança de dois anos. Mas os poemas de amor, estes, nunca deixaram de vir, em tempos imprevisíveis, descompassados, marca já conhecida na vida de minha avó. Ela apenas continuava presa ao fio daquelas palavras, a respiração sempre em suspenso, vigiando a hora do carteiro chegar. Sem conhecer endereço para respostas, escrevia tudo no seu diário, juntando ao dia correspondente as cartas recebidas. Não havia mais esperança de que esse amor definhasse – carecia do necessário abandono. Por isso, da saudade já nem precisava falar. O que contava era do menino que crescia. Da formatura, do casamento. Do filho deles tornado pai. É cada dia mais linda nossa neta. Tem cabelos iguais aos meus e hoje quis saber de onde veio o verde dos seus olhos. Bastaria que visse você uma vez. Bastaria. Eu, a neta preferida, refletindo o horizonte do amor que nunca puderam silenciar. Diante da morte, ela decidiu. A eternidade seria longa demais para tal segredo. Ana Luiza Tonietto Lovato 217 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Se o destino quis assim 218 OUTRAS PAIXÕES Assim que as dificuldades que advieram com a grande crise provocada pela perda de preço do café, que era o grande gerador de riquezas de então, os Pederneiras tiveram que se adequar à nova condição de vida. O enorme casarão na parte alta da cidade e os diversos carros da família ficaram apenas nas doces lembranças de um passado que não voltaria mais. A maior preocupação do chefe do clã era que os filhos continuassem a ter o mesmo nível de estudo que vinham tendo. Se teriam que ir às escolas de bicicleta ou de coletivo era o que menos o preocupava. Outra preocupação que deixou de ter foi manter um alfaiate e uma costureira à disposição de todos. – Um aviso moçada: os únicos luxos que manterei serão os estudos de línguas estrangeiras, as aulas de balé e as de aprendizagem de qualquer instrumento… O resto que vá pros diabos. Quem quiser ter dez pares de sapatos ou trinta gravatas que vá capinar lotes sujos pela cidade. – As mulheres? Uai, lavar chão, lavar roupa, cozinhar em casas de família… Falava assim, com determinação. Nem Deus sabia o quanto sofria por dentro. Adorava aqueles filhos, aprazialhe darlhes o melhor que pudesse. Costumava ficar na janela do casarão vendo quando eles saíam para as escolas ou para as festas, cada um no seu belo carro e em suas belas vestimentas. 219 OUTRAS PAIXÕES Emocionavase mais – nunca revelou pra ninguém – quando via o seu primogênito sair garboso, ora dentro de uma calça jeans, ora dentro de um summer bem ajustado ao corpo, e também quando via a caçula, uma poesia que anda, loirinha, delicada, saindo com algum dos irmãos. Um dia a esposa o logrou na janela, demoradamente olhando a cena e os seus olhos estavam marejados de lágrimas. Há muito não choravam juntos… A vida seguiu em frente levando cada Pederneira de um jeito. Os primeiros a ir foram os pais. Primeiro o marido e não muito tempo depois, a mãe. O primogênito, Maurício, passou a gerir os negócios que os pais deixaram, a orientar a vida dos irmãos mais novos e, sobretudo, a usar a mesma firmeza na distribuição dos recursos buscando preparálos para a vida, pois foi esse o último pedido do seu velho. A situação provocada pelo crash levou algum patrimônio que consistia em imóveis na cidade, ações em grandes empresas, bens móveis, saldos bancários, mas deixou o que chamavam de bagaceira, ou seja, uma fazenda de bom tamanho ainda precisando de investimentos, um sítio perto de onde residiam e umas cabeças de gado. Partindo daí, o velho ainda deu uma boa equilibrada nas coisas. Um costume dos seus pais era acertar as coisas da família em família, e para isso promoviam reuniões periódicas. Após as exéquias da mãe, quando assumiu de vez a direção de tudo, marcou a sua primeira reunião como gestor. Estavam todos presentes: Marília, que lhe sucedia, e depois Luis, Mariana, Celso e Cristina. Ele, o mais velho, com 38, e a mais nova, com 15 anos. Ele já 220 OUTRAS PAIXÕES com curso universitário completo e fazendo doutorado, Marília em vias de se formar e os outros ainda fora das universidades. Após colocar que manteria as disposições deixadas pelos pais e sobre isso não haveria discussão, passou a elaborar para cada um o objetivo a ser alcançado. Nada impôs a nenhum deles. Eles assumiram uma função dentro da organização familiar, respeitandose os horários de escolas e demais obrigações estudantis, mas cada um com uma função na manutenção da casa. Ele e o mano ficaram com os encargos que mais exigiam dedicação. Delegou ao irmão a função de gerenciar os trabalhos do sítio, ficando com a gerência da fazenda e das demais necessidades. Como o sítio era perto da cidade onde moravam, Marília ajudava Luis na direção dos serviços, quando por motivo ou outro ele não podia fazêlo. Era exímia motorista, dominava com maestria um cavalo por menos domado que fosse e entendia das coisas da fazenda. Como tudo funcionasse como um relógio suíço, a família passou a despertar a simpatia de toda a sociedade. Eram vistos como modelos a serem seguidos. E eram belos. Isso obrigava Maurício e Luis a ficarem atentos. Com três irmãs parecendo fadas de histórias em quadrinhos… E não davam moleza. – Ai, meu amigo, como você é chato! Até Marília cortava um doze nas mãos dos irmãos. Nas rodinhas de jovens, ela costumava dizer que na próxima encarnação ou nasceria homem ou se agarraria nas paredes do útero para não sair. 221 OUTRAS PAIXÕES – Uai, Marília, por que quer ser homem na próxima. Menina, o serviço mais pesado é o deles. – Que mais pesado que nada. Além de serem os mandões, ainda têm outras regalias. – Por exemplo, fala uma. – Vou falar mais de uma: um homem tem dois pares de sapatos e um par de botas e está maravilhoso para ele. Quantos pares de sapatos você tem? Um homem sai com uma manchinha na camisa e outro homem nem repara. Sai você com uma manchinha na blusa pra ver. A sua melhor amiga vai dizer que a sua blusa estava imunda. Um homem sai sem pentear o cabelo até pra ir à missa. Sai você sem passar pelo menos dez horas no cabeleireiro pra ver o que acontece. O seu jeito de ser, sua postura determinada, sua inteligência e sua cultura fizeram dela o objetivo, o alvo, a meta a ser alcançada por todos os jovens da cidade. Logo os pais passaram a ocupar lugar no quesito saudade e foram entrando no ritmo da própria vida, dos próprios sonhos e envoltos em seus particulares problemas. Maurício conheceu Solange, que se apaixonou por Maurício e lhe deu Luciana. Luis, mesmo com a desaprovação do irmão, encontrou Mercedes e com ela se amasiou. Como continuou residindo na mesma casa dos irmãos, para ela trouxe a amante, que apesar de boa moça era muito liberal e isso criava alguns constrangimentos, sobretudo quando se levantava e ia à mesa do café da manhã com suas roupas, digamos, um pouco escassas. Maurício falou com o irmão, mas nada adiantou. 222 OUTRAS PAIXÕES Alegou que isso não era bom exemplo para a irmã caçula. Marília não estava nem aí, como se diz; aliás, gostava da “cunhada” e até começou a imitála. Mas o pior veio da esposa de Maurício. Ciúmes… Ciúmes, como se sabe, vem do medo de perder algo ou alguém. No caso, alguém. E não surgiu de graça na pobre mulher. Por mais que Maurício rezasse, pedisse a Deus, não conseguia deixar de pensar na cunhada. Sonhava com ela, dormindo ou acordado. Fazia os castelos mais mirabolantes, possuíaa de todas as formas e não foram poucas as vezes nas quais se pegava masturbando pensando nela. Já não suportava olhar para o irmão. Solange percebeu o drama do marido, tinha até pena dele. Mudaram de residência; foram morar em outro bairro. Aparentemente a paz voltou a reinar. Luis ficou com a amanteesposa na casa, junto com os outros irmãos. Maurício e a esposa quase não apareciam, nem nas festivas da família. Foram os primeiros sinais de desagregação familiar. Um dia, Luis, doente, pediu que Marília fosse até ao sítio levar mantimentos, sal para o gado e o salário do funcionário. Para não ir sozinha, já que o tempo estava chuvoso, pediu à cunhada que lhe fizesse companhia. Combinaram com Luis que se o tempo piorasse, dormiriam no sítio e retornariam no outro dia. 223 OUTRAS PAIXÕES Fizeram boa viagem, cantaram pelo caminho, contaram piadas imundas e tudo o mais, tudo isso regado a algumas latinhas de cerveja que tinham levado em um isopor. Cumprida a exigência da viagem, não retornaram à cidade mesmo o tempo tendo ficado mais firme. Foram assistir o ocaso nas margens do rio que limitava a fazenda. Lugar paradisíaco, hora do Ângelus… Mais distante, o gado achegavase à cerca em grupos. Lá longe o grito do Jaó chamando pela companheira e o voo rasante do nhambu xintan indo pra perto do chororó. Na corredeira pulavam os lambaris e as piaparas em suas vidas que pareciam orações da natureza aos céus. Um silêncio respeitoso adveio com o último raio do sol. E nele algo transbordou sem que se esperasse, sem que houvesse o menor sinal anterior. Marília deitou suavemente a cunhada na verde relva, abriulhe a blusa e começou a beijarlhe os seios. Primeiro delicadamente e depois, tomada de uma volúpia como se estivesse tomada por mil demônios. Suas mãos caminharam sôfregas pelas pernas da parceira, arrancandolhe a calcinha e entrando nela primeiro com os seus dedos e depois com os seus lábios que entre beijos e sussurros, murmuravam frases desconexas. Ficaram ali por muito tempo. O capataz, que tinha ficado preocupado com as patroas, foi ao encontro delas de maneira silenciosa e discreta, e presenciou boa parte do acontecido. 224 OUTRAS PAIXÕES – Mãe de Deus! Um sentimento de posse começou a tomar conta de Marília com relação à cunhada, agora sua amante. Não se conformava em sabêla nos braços do marido, seu irmão. – Ódio… Ah, Deus! Será que estou odiando o meu irmão? Por mais que procurasse afastar esses pensamentos, eles vinham com mais força. Todos os cuidados tomados começaram a deixar pontos falhos. Se estavam juntas à mesa, se acariciavam por baixo da toalha. Quando se cruzavam propositalmente no banheiro, trocavam beijos apaixonados e carícias das mais íntimas. Como eram mulheres, o irmão não se incomodava se elas demorassem no banheiro durante o banho e assim todos os dias elas faziam um sexo intenso. Quando deveriam enjoar, saciaremse de tanto que se entregavam, aconteceu o contrário: quanto mais se davam, mais se queriam. O capataz, cada vez que via Maurício, sentia a tentação de contarlhe o ocorrido naquela noite, mas a sua mulher o impedia. – Criatura, elas vão negar. Vai terminar por ser a sua palavra contra a delas. E depois, como você vai encarar o senhor Luis? Aqui temos nosso presente garantido e o nosso futuro até que em boas mãos, pois eles são gente boa e gostam de nós. PelamordeDeus, homem! O serviçal ficou de bico calado. – Lourenço, por que eu sempre tenho a impressão que você tem algo pra me contar? Você está com problemas, 225 OUTRAS PAIXÕES doente, precisando de dinheiro, qualquer coisa na família? Ele orava com fervor, aprendeu novas orações para que os céus o ajudassem a ficar de boca fechada. E ficou. O tempo passou sem que algo mudasse e as duas amantes foram relaxando na guarda… De resto, é o que sempre acontece. Um dia, Maurício percebeu algo estranho. – Eita, tô vendo coisa. Não pode ser, devo estar louco. Um dia, Cristina, agora com 21 anos, chegou à casa meio fora de hora. Seu irmão tinha ido até a fazenda. Quando passou pelo quarto da sua irmã, ouviu uns sorrisos estranhos. Curiosa como toda mulher, prestou mais atenção e ficou pasma: – Eu amo você, não vivo sem você. Amo os seus seios, as suas pernas, gosto muito quando sinto que você está gozando comigo. – Tô doida. Mulher com mulher… Não pode ser. Quem será que está aí com minha cunhada? Abriu a porta e viu quem eram as duas que estavam nuas e abraçadas como se uma fossem. Bem que insistiram para que ficasse calada, mas a raiva tomou conta dela quando se lembrou dos sorrisos maliciosos, das frases entrecortadas dos amigos nas rodas de bate papo. Saiu correndo feito louca rumo à casa de Maurício. Atravessou a rua sem olhar e foi violentamente atropelada por um carro em alta velocidade. Foi jogada longe e prontamente encaminhada ao hospital mais 226 OUTRAS PAIXÕES próximo. Toda a cena do atropelamento foi assistida por Maurício. Como já diz famosa lei, se uma coisa começa bem, tem a possibilidade de terminar mal. Se começa mal… Mas a história daquela família tinha tudo para terminar desmentindo a tal lei. A quebradeira vinda com a crise econômica poderia ser um sintoma que aquela história estava começando mal e que a chance de terminar mal era considerável. Mas a garra e a firmeza de caráter do patriarca contornaram as dificuldades surgidas e deram um timão seguro para que os filhos pudessem navegar em águas calmas. Todos haviam estudado nas melhores escolas, recebido uma educação cultural esmerada que somadas à educação do berço, preconizava para todos um final feliz. Mas Deus escreve certo por linhas tortas ou o capeta escreve torto nas linhas certas. No cemitério, um túmulo de cores claras ao lado de um outro, duplo, daqueles de buraco no chão, coberto por parcas gramas. Luis, no auge do desespero e vítima de violenta emoção, antes de enlouquecer complemente, acaba com as vidas das amantes e hoje vive os seus dias de total alheamento em um nosocômio estadual. Maurício, aparentando muito mais idade do que a que realmente tem, cuida da própria família e dos irmãos que ficaram. 227 OUTRAS PAIXÕES Dizem que nada acontece sem que Deus queira…. Também acho. Hamilton Brito 228 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Os exnamorados 229 OUTRAS PAIXÕES Faltava um minuto para as sete da noite e, quando ela olhou pela janela, ele acabara de estacionar pontualmente o carro. Olhou o celular pela última vez antes de guardá lo no bolso e, quando abriu a porta, uma surpresa: ela estava impressionantemente mais linda nesse segundo encontro, muito mais que da primeira vez que ele a havia visto, deslumbrante num vestido leve, salto discreto e uma maquiagem que cobre tudo que há de errado. Maravilhada ficou ela também, não só pelas rosas vermelhas e brancas que trazia nas mãos, mas pelo perfume caro que exalava de seus poros e pelo seu porte extremamente elegante, um tanto diferente do visual bem despojado do primeiro encontro. Beijoulhe as costas das mãos, elogioua rebuscadamente e apressouse em abrir a porta do carro, cavalheirismo arcaico ao qual ela nunca se acostumara com o anterior. Embalados ao som romântico de Barry White e Marisa Monte logo chegaram ao restaurante que ela havia proposto, cujo ambiente e refinamento muito o agradaram. A reserva previamente feita a surpreendeu: uma clássica luz de velas em um local reservado não tinham passado pela imaginação fértil da moça, com relação àquele gentleman que ela estava para conhecer. Num papo agradabilíssimo descobriram mais afinidades do que se costuma se encontrar em primeiros encontros e buscaram não falar de planos para o futuro: não era o momento. O interesse de ambos cresceu ainda mais e quase não houve tempo para desviar o 230 OUTRAS PAIXÕES pensamento para os outros. No final, ele obviamente se ofereceu para pagar a conta e ela ficou aliviada em ver no retrovisor do carro que o batom não tinha manchado o dente e nem o cabelo tinha encrespado com a chuva fina que caía. Deixoua em casa, mas não antes de darem um belo beijo apaixonado e trocarem palavras carinhosas que eram a garantia de muitos mais encontros. Tão pronto se viram sozinhos, suspiraram profundamente, repousando o corpo tenso — Edson na poltrona do carro, Marina no sofá da sala. Num misto de esperança e medo, pegaram ao mesmo tempo seus respectivos celulares, devidamente configurados no mais absoluto silencioso. E com a estranha sintonia de metades de laranjas diferentes, frustraramse com a falta de torpedos ou ligações perdidas naquela noite que ansiassem por sua leitura. Enganaramse novamente mais a si mesmos. Dudu Zen 231 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES O beijo 232 OUTRAS PAIXÕES Os olhares infantis. Desejos atrás da porta em disfarces evidentes. Recatados. Assim um ao outro se viam. Não houve como. Nos olhares se avistaram. Ali mesmo se acharam naquele escondeesconde, mas não se encontravam no termômetro do contratempo. Foi amoramor. Retraídos nesse sentimento, aqueles adolescentes comiamse com os olhares em cada soturna despedida. Cada voz sempre abafada no desejo de um toque de pele com pele. – Quando? Assim o silêncio foi rompido. – Talvez… Dessa forma o encontro foi selado. Riscaram a amarelinha, emudeceram. Um dedo, empurrado pela mão, tocou o do outro. O silêncio morou ali quando os lábios dela procuraram os dele. E não se contiveram no aperto de ternura, nas bocas unidas encontraram o carinho de uma vida. Quanto mais se aprofundavam no ato daquele beijo, um ao outro se encontravam, aumentandolhes o desejo. Os braços fortes, as mãos carinhosas passeavamlhe nas costas. Os lábios se desgrudaram descendo, os dele, no pescoço dela. Enquanto ela gemia, ele a mordiscava e o beijo não parava de praticar a sua ação. Num ímpeto, os jovens se contiveram. Desgrudaram se por um instante. Foi bastante esse tempo para deixála inteira louca. Novamente ela buscou conforto naquela boca; no que ele a afastou, deixandoa à deriva. Ela não 233 OUTRAS PAIXÕES entendeu o interromper daquele culto. Aceitou tão logo ele a deitou no chão. Quanto mais um dava ao outro, muito mais os dois queriam. A verdade de um era aquilo que o outro consumia. Era tudo tão composto naquela dupla anatomia, quanto mais um se entregava, muito mais o outro sugava. E foram os sentidos em ambos explorados, partiram do abstrato para atos mais concretos. Tudo fora revelado pelo canal daqueles poros e os corpos já eram mapas para exploração do tal dueto. Escavou com sua língua uma gruta para entrar, ela era uma sereia e ele o seu mar. E de tanto que lambeu o sal ficou mais doce, pois se assim não fosse não seria amor. Muitos beijos surgiam descendo da boca ao colo. Já era demais para ele suportar o fecho ecler. Naquele instante, ele foi homem e a fez sua mulher. Ele a amou e a amou enquanto ela o beijava. Pedia ao cavalheiro que em sua anca cavalgasse e ele, naquela luta, deleitandose na garupa, dentro dela se ajeitou. No enlace chave daquelas pernas, entregouse inteiramente àqueles gestos tão suaves. Aproveitando aquele ensejo de prazeres e afins, trancouse inteiro naquele avesso de cetim. Lá pelas tantas, de tantos disfarces, revelou a sua face e ao lado dela descansou. Viua sem o véu, tomou o que era seu: ela – o seu troféu – e ajoelhado, sorrindo, ele orou. Alcançou o altar e, sobre ele, o Homem novamente a amamentou. Rita Lavoye 234 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Jane 235 OUTRAS PAIXÕES Primeiro, foram dois casamentos que não deram certo. É difícil dizer que não vais repetir os mesmos erros, porque tens um modo de pensar, de ser, de agir. Mas conforme vais avançando na tua vida, tu vais moldando aquilo ali, ponderando mais. Um dos erros que eu cometia era a falta de confiança na pessoa, o famoso ciúme. No primeiro casamento sentia um tipo de ciúme que no segundo casamento já não era tão intenso, eu fui aprendendo. Na primeira vez talvez eu nem sentiria, mas a outra pessoa começou a sentir ciúme. Acho que acontece muito isso: quando o rapaz passa a sentir muito ciúme parece que aquilo passa para a gente. Por que tanto ciúme se eu não estou dando motivo? A gente vai amadurecendo, vai depositando confiança mesmo. Ou tu confias ou tu não confias, mas podes trabalhar isso também; às vezes vem umas pontadinhas de desconfiança e tu dás uma volta nela e faz ficar tudo bem de novo. A mulher tem que ser muito segura e ter uma auto confiança muito grande para sentir que se aquela pessoa está com ela é porque está a fim. Só que também é uma troca; o que falta no homem é exteriorizar o sentimento. Os homens não falam muito e a mulher tanto quer ver em atitudes quanto quer ouvir. No segundo casamento eu estava mais desencucada. Tenho uma filha casada e uma filha préadolescente que 236 OUTRAS PAIXÕES vai passar por tudo isso ainda. Pelo o que eu passei posso aconselhálas. No meu caso, se eu falasse com a minha mãe ela botaria lenha na fogueira. A gente às vezes precisa desabafar com alguém e vai muito do que se ouve nessas horas. Relato dela. 237 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A visita da jovem senhora 238 OUTRAS PAIXÕES Norinha chegava às 17 horas, via São Paulo. Maria Dalva pagou um dia extra à diarista (que vinha há muitos anos duas vezes ao mês, sempre na segundafeira, arrastando uma perna varicosa), o apartamento ficou um brinco. Não queria que a comadre, amiga de infância, a chamasse de “velha relaxada”, numa de suas brincadeiras quase ofensivas. Norinha nunca se casara, tivera alguns casos passageiros, uns mais e outros menos duradouros. Era bonita, a danada, numa longínqua juventude. Olhos grandes, escuros, rostinho ovalado, corpo de bailarina. Devia andar atualmente pelos 65 anos; ela, Maria Dalva, já ia pros 70 em breve. Maria Dalva ficou viúva há uns 15 anos. O marido, Josias, morreu inexplicavelmente, de complicações no estômago. Era um cinquentão elegante, vaidoso, de ombros estreitos e pernas finas, procurando sempre esconder a barriguinha de cerveja. Escanhoavase quase diariamente e já começava a pintar os cabelos, ainda abundantes. Maria Dalva era consideravelmente ciumenta. Não tinha a autoconfiança da amiga, que batizara seu único filho, agora quase quarentão. Um dia, falara ao marido, num tom entre brincalhão e ameaçador: se souber que você me trai com alguém, sou capaz de matar os dois. Eram quase três horas da tarde. A limpeza do apartamento estava concluída, o banheiro, grande e antigo, cheirando a lavanda; trocara toda a roupa de cama do quarto de hóspedes, sem uso desde a última 239 OUTRAS PAIXÕES visita da amiga, isso antes do falecimento do marido. Após aquela temporada, Norinha havia conhecido um português, grisalho e educadíssimo, e aceitara o convite de se mudar para Portugal. De lá, mandava sempre cartões postais, nas datas memoráveis. Os postais não informavam dos desvãos de sua vida lá em terra estranha. Há menos de um mês, Maria Dalva recebera uma mensagem pela internet, no correio eletrônico do filho: meu quartinho ainda está disponível? Ficarei uma semana no Brasil, chegarei aí no dia 17. Às 16 horas, Maria Dalva tirou do estacionamento do prédio o Palio 99, riscado e amassado nas laterais, utilizado apenas nos dias de compra no supermercado. O porteiro sempre lhe perguntava: quando vai trocar a condução? Para ela, o Palio era isso mesmo, uma condução. Pra que trocar? Não tinha mais a vaidade dos jovens, não precisava mostrar status que não tinha. Assumia sua idade, era uma futura vovó, com direito a ficar tranquilamente com seu tricô e suas novelas. Sua linha do passado era bem maior do que a do futuro. Parou no posto da esquina e mandou colocar um quarto de tanque de combustível. Depois, fez uma conversão à direita, e pegou a reta que ia até o aeroporto. O movimento ali já era intenso, era o segundo e último pouso de avião da tarde. Executivos de grandes e médias empresas iam ou voltavam de São Paulo. Motoristas dessas empresas enfileiravam os carros diante do prédio do aeroporto. Foi difícil conseguir uma vaga. Chegou ainda com 15 minutos de antecedência. Parou num estande para olhar capas de revistas, comprou pastilhas de hortelã, sem açúcar, para limpar o hálito do resquício dos temperos do almoço. Depois, através da grande vidraça, acompanhou o pouso da aeronave. 240 OUTRAS PAIXÕES Quase não reconheceu a amiga. Miúda, serelepe, estava com os cabelos curtos, pintados de vermelho. O rosto lisinho, provavelmente obra de algum competente cirurgião plástico. Vestia calças corderosa, um casaquinho do mesmo tom e calçava sandálias de saltinho, no afã de parecer um pouco mais alta. A idade apenas transparecia nas mãos, com leves manchas escuras e veias saltadas. Com mostras exageradas de alegria, Norinha estreitou a amiga nos braços. No trajeto para casa, Norinha atropelava as palavras, tinha muito para contar e principalmente para lembrar: a juventude, o curso normal, as amizades, os namoricos no escurinho do cinema – tempo bom. Maria Dalva ouvia em silêncio. Norinha chegou afogueada, depois de quatro lances de escada, o prédio, de quatro pavimentos, não tinha elevador. – Hum, isto aqui não mudou nada. É capaz de estar com as mesmas teias de aranha daquela época – brincou. – Não gosto de mudanças. Me sinto bem aqui, neste ambiente. – Ainda sentes falta dele? – Dele? – Do Josias, de quem mais? – Me acostumei. O bule esmaltado de café estava posto à mesa, juntamente com as xícaras de porcelana, presentes de casamento, que Maria Dalva guardava como um tesouro. Um pão cortado em fatias, manteiga de pacote, queijo muçarela e barrinhas de açúcar, além de adoçante. A copa conjugada à sala era espaçosa, característica das 241 OUTRAS PAIXÕES antigas construções. Encostado a uma das paredes, o oratório com portas de treliças; a mesa de madeira escura, pesadona, com cadeiras de espaldar alto, assoalho de tacos com verniz já desbotado. O tom escuro dos móveis e a claridade abafada por cortinas davam ao ambiente um ar lúgubre, triste, quase sufocante. Numa das superfícies do oratório havia uma grande caixa envernizada, com as bordas já desgastadas: era o faqueiro de prata que Maria Dalva havia herdado da mãe. Já não o utilizava há muitos anos, a última vez fora numa festinha de aniversário do marido. Na realidade, os talheres serviam mais como enfeite, vestígios de uma ascendência mais abastada, as facas de fio embotado não serviam para cortar nada. Norinha estava louca por um banho. Saiu do banheiro displicentemente, de camisola e com a cabeça envolta numa toalha. As pernas brancas iam terminar num tornozelo fino, as extremidades dos pés apresentavam discretos joanetes. Tomou duas xícaras de café puro e devorou duas fatias de pão com queijo. Ficaram conversando até quase meianoite, com pausa para Maria Dalva assistir ao capítulo de sua novela. Norinha parou na porta do quarto de hóspedes. Passou o olhar longamente pelas paredes, a janela tipo guilhotina com cortina branca, rendada, a cama antiga, larga, o piso de tacos desgastados. Tudo como lhe ficara na lembrança. Soltou um suspiro. Por meses fora ali seu ninho de amor. Duas noites por semana Maria Dalva saía para sessões no centro espírita, do qual era vice presidente. Havia uma sessão fechada, para os trabalhos, e uma noite de atendimento ao público, em que se davam “passes” e distribuíam remédios e gêneros alimentícios. Norinha tomava banho, vestia o beibidol cor de rosa sem 242 OUTRAS PAIXÕES nada mais por baixo e aguardava recostada na cama, com um travesseiro entre as pernas. Isso o deixava louco, dizia Josias. Sem se importarem com mais nada, afundavam no colchão macio, prodigalizandose loucas carícias. Josias era um safado. Olhando seu jeito manso, discreto, de funcionário subalterno, não se imaginava o comportamento lascivo, o jeito debochado de lhe apertar e sugar as partes pudendas, a delícia de seus beijos molhados. A princípio, Norinha resistiu aos avanços do compadre, não desejava conspurcar uma amizade de juventude, nunca desejaria magoar Maria Dalva. Mas sua natureza libidinosa foi mais forte, a solidão atual, o aconchego do quarto, as mãos teimosas de Josias, que insistiam em bolinála, levantando por trás seu vestido, tudo isso concorreu para vencer os escrúpulos e prostrá la abandonada às carícias do macho. Já no exterior, poucos meses depois, ainda chorou quando soube da morte inesperada do compadre. Foram tempos idos e vividos, como dizia o poeta. Agora iria dedicar a semana à amiga, tirála daquele isolamento de eterna viúva, espanarlhe as “teias de aranha”; sairiam a tomar chope, dar passeios longos e divertidos, procurar as amigas de juventude. Antes de se deitar, Maria Dalva foi à cozinha, já de pijama de algodão e chinelinho de pano; destampou uma garrafa térmica e encheu meia caneca de leite morno, depois voltou a seu quarto, abaixouse, afastou as franjas do cobertor que cobriam a parte lateral da cama e dali tirou um vidrinho de um fundo falso. Derramou umas cinco gotas do líquido incolor na caneca, mexeuo lentamente com uma pazinha de madeira, jogou a pazinha numa lixeira e dirigiuse ao quarto da amiga. 243 OUTRAS PAIXÕES Bateu de leve na porta, e entrou com um sorriso manso, de pura bondade e cortesia: – Querida, trouxe um leitinho quente pra você dormir melhor. Hilton Görresen 244 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Retrato ao amanhecer 245 OUTRAS PAIXÕES Acordei meio confuso, sem saber bem onde a realidade começava e terminava, e completamente em polvorosa devido aos meus sonhos sempre tão fantásticos, mesmo que às vezes aterrorizantes. Ainda não tinha aberto os olhos quando ouvi a respiração suave ao meu lado. Então aquilo tinha sido real – e o primeiro sorriso daquele novo dia cobriu meu rosto como se tudo fosse felicidade. Abri os olhos e continuei imerso na escuridão, já que o sol ainda não tinha dado a graça de sua companhia. Enquanto meus olhos se acostumavam à pouca claridade dos postes da rua que as cortinas de tom pastel deixavam entrar no quarto, virei de lado e fiquei observando o homem deitado ali, a boca levemente entreaberta. Aos poucos comecei a enxergar os contornos de seu corpo de ombros largos e de pernas grossas por causa dos esportes frequentes – tudo nele era tão erótico, quase pornográfico! Até sua barba mal feita me chamava a atenção. Aproximei minha mão do seu peito, mas não lhe toquei. Sabia que se eu começasse ali, dificilmente conseguiria parar. Pouseilhe um beijo rápido na bochecha e me afastei, com medo de ficar preso ali pela eternidade, sem jamais conseguir me desvencilhar dele. Levantei e fui ao banheiro do meu quarto. Olheime no espelho enquanto escovava dentes, observando algumas pequenas falhas no rosto – não, não vou me ligar nelas. Já estou farto de pensar nisso. 246 OUTRAS PAIXÕES Voltei ao quarto e abri um pouco as cortinas, o suficiente apenas para que eu pudesse me encostar à janela para observar o mundo lá fora. Sempre fui acostumado a acordar cedo, antes mesmo do amanhecer. Foi uma mania que adquiri ainda quando morava com os meus pais e com meus irmãos mais novos. A partir das seis horas da manhã tudo era tão caótico, cheio de gritaria sobre o pagamento de contas, o brinquedo que quebrou, choro de criança que não quer tomar banho e tampouco ir à escola. Tudo turbulento demais para mim. C’était trop turbulent! E foi assim que comecei a acordar cedo, no mesmo instante em que todos ainda estavam no universo além consciência. A casa era finalmente um recanto de solitude. Eu podia andar pelos corredores pensando nos personagens que lia nos velhos livros da biblioteca do meu avô. Imaginava o que eu faria naquelas situações, das mais aterradoras histórias de horror cósmico de H. P. Lovecraft até os romances de Jane Austen. Ah! Solidão, solidão! Continuei com o hábito mesmo quando fui morar longe, noutro estado, longe dos meus pais, irmãos e amigos. Mas não por causa deles. Percebi que era bom acordar antes do mundo e vêlo despertando, com o sol a aparecer no céu e os pássaros começando seus cantos agudos. Tenho feito isso desde então, e muitos dos meus exnamorados achavam estranho que eu apreciasse tanto a solidão. Um deles – aquele cheio de neuroses, devo ressaltar – costumava dizer que era porque eu não gostava o suficiente dele e que preferia estar longe. Alegava me amar. Duvido disso. Preciso dessa calmaria no início do meu dia para poder me expandir e pensar, sem dúvida alguma. Mas é 247 OUTRAS PAIXÕES tão difícil achar alguém que se encaixe perfeitamente nessas nossas pequenas manias, que nos faça rir mesmo quando estamos tristes, e ainda nos enlouqueça na cama e nos conforte e suporte nos momentos difíceis. É árdua essa tarefa de achar um companheiro e muitas vezes acreditei que jamais encontraria, pois preferia ter apenas a mim a aceitar menos do que o grande amor. Naquele momento em que eu pensava sobre todas essas coisas de amores e futuro, os pássaros começavam a cantar e a voar de uma direção para outra, agitados. O sol começava a surgir por detrás uma grande árvore de formato estranho por entre as árvores. Abri a janela e respirei aquele ar único, ainda sem a fumaça que os automóveis soltam enlouquecidamente ao longo do dia. Solidão, tão bela – mas sei que a partir de um momento cansa. Aliás, o que me traz a felicidade é o equilíbrio perfeito dum e doutro, com pequenas margens de erro. Um pouco de solidão pela manhã para abstrair, um pouco mais tarde para ler e escrever, e um mundo de amor e paixão. Quando estava quase pronto para aceitar a turbulência do dia, o corpo de Guilherme me surpreendeu, abraçandome pelas costas. Bom dia, amor – ouvi sua voz qual veludo, que eu só podia imaginar pertencer a deuses, gregos, romanos, egípcios, africanos. Seu corpo quente por causa do sono encostava diretamente em minha pele e sua respiração sobre o meu pescoço me deixou arrepiado. Virei o rosto e lhe dei um beijo. Perfeito. No exato instante em que a solidão já deixava de me agradar, ele chegou a mim, e finalmente pareceu que eu poderia ter os dois, tudo o que eu poderia querer na vida. Sem ser sufocado, sem pressão – os dois livres, mas querendo ficar ali. 248 OUTRAS PAIXÕES – Vamos ter um futuro maravilho, sabias? – Vamos começar esse futuro daqui a trinta segundos, então? – Como vamos fazer isso? – Vamos para debaixo daquele lençol ali e fazer coisas maravilhosas lá – e me arrastou em direção à cama, preso num abraço cheio de calor e de desejo, com sua barba roçando no meu rosto. E antes de ir, fechei a janela. Não a da rua, mas a da solidão completa, apenas para talvez a abrir durante o próximo amanhecer. Bruno Eleres 249 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Primeiro amor 250 OUTRAS PAIXÕES Do fundo do salão eu o avistei. Era tão belo! Seu corpo deslizava suavemente, embalado pelo som daquela música fantástica… De longe observava cada um de seus movimentos, e atraídos meus olhos estavam. Como que levado por uma atração inexplicável, ele me olhou. Senti um fogo queimar dentro de mim. Minhas mãos responderam, prontamente molhadas pelo suor, provocado pelo nervosismo do momento. Ele sorriu, eu sorri. Era o mais belo sorriso já visto pelo brilho dos meus olhos. Tão encantada eu estava. Era o amor! Tinha certeza! Só podia ser o tal amor, até então desconhecido por mim. Veio em minha direção, enquanto intimamente todo o meu eu preparavase para recebêlo… Já podia sentir seus braços em volta de minha cintura enquanto bailássemos pelo salão. Seu cheiro, já imaginava como seria. O calor do corpo, a maciez de suas mãos. Oh, o amor! Como era belo o amor! Estava amando à primeira vista; e ele estava ali, a poucos metros do meu corpo. Porém, antes mesmo que eu me levantasse para recebêlo, uma moça surge na penumbra. Aceita seu 251 OUTRAS PAIXÕES abraço, e saem para bailar, enquanto meu coração sofre pela primeira vez uma decepção. Enquanto vejo eles deslizarem pelo salão, ao som daquela música marcante, já sinto cada vez mais aquela ausência de alguém que nunca esteve presente. A necessidade de têlo um pouquinho, só um pouquinho! Nada mais. Meus olhos observam tristes com lágrimas teimosas a rolar, enquanto os dois bailam no salão. Perfeitos, sincronizados. Como se seus corpos fossem só um. Retiro minha alma, ou o que sobrou dela, e vou, desejando ardentemente viver mais uma vez esta emoção. A emoção do amor! Arlete Klens 252 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Fares 253 OUTRAS PAIXÕES No Centro de Balneário Camboriú há um restaurante libanês chamado Fares. Em seu cartaz vêse uma foto de uma família unida e sorridente, os Fares. Ao ver essa foto eu sabia que ali encontraria uma grande história, contada pelo patriarca da família. Antes de se tornar um dono de restaurante, o Sr. Fares trabalhou por muito tempo como jornalista no Líbano, ao longo de toda a guerra civil libanesa, que durou de 1975 a 1990, e mais além. Em 2006, depois dos bombardeios israelenses no Líbano, a família decide mudarse definitivamente para o Brasil. Esta não foi a primeira vez que estiveram aqui. Entre 1990 e 1998 a família cuidou de um pequeno comércio em Foz do Iguaçu, para então retornar à terra natal. Fares conheceu a sua esposa, Mahasen, enquanto trabalhavam como voluntários numa clínica, no começo dos anos 1980. Assim ele me descreveu o primeiro encontro: – Eu entra clínica. Essa clínica ajuda pobre. Ela também trabalha lá. A primeira vez entra, olha para ela. Poc, poc – corazón… Os trinta e três anos de casamento foram marcados por muitas mudanças e por muitos perigos, tudo isso enquanto criavam seus três filhos. Como jornalista e perseguido político por causa da guerra, Fares foi obrigado a fazer várias idas e vindas entre o Líbano e outros lugares. Sozinho ou com a família, passou por França e Suíça até se estabelecer no Brasil. 254 OUTRAS PAIXÕES Sua família sobreviveu à guerra, ao Hezbollah, aos conflitos com a Síria e com Israel. O passado deste senhor é cheio de escapadas milagrosas; enquanto trabalhava, as bombas estouravam ao redor e numa noite, ao voltar para casa de carro, um míssil caiu ao seu lado, na estrada. Fares continuou a dirigir. Por sorte, o míssil falhou e não explodiu, para alívio de Mahasen, que sempre ficou nervosa com as atividades políticas do marido. Como conseguiram encontrar o amor e viver num cenário desses? Ele explicou que os incidentes não ocorrem em todos os lugares ao mesmo tempo e, no fim, as pessoas se adaptam. “Aqui tem guerra, ali não tem. Ali continua a vida. Não normal, claro.” Hoje em dia os Fares estão bem adaptados ao Brasil, cada um cuidando da sua carreira e dos negócios da família. Quem passar por Balneário Camboriú pode conhecer mais dessa história. Conforme o relato de Fares. 255 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Maria e o equilibrista 256 OUTRAS PAIXÕES Maria era uma moça muito distraída e desajeitada. Quando tinha dez anos de idade, ela quase colocou fogo na cozinha dos pais enquanto tentava apenas encher o filtro de água. Não me pergunte como isso aconteceu. A verdade é que as mãos dela estavam sempre cobertas por esparadrapos e seus jeans tinham furos nos joelhos. Acidentes a seguiam o tempo todo. Ela era muito paparicada pelo pai, que constantemente contava sobre a vez que ela quase dirigiu a caminhonete dele por uma avenida, acidentalmente, quando tinha apenas cinco anos de idade. Ela tinha duas irmãs e um irmão, todos preocupados com o que chamavam de Condição Peculiar de Maria. Que era a capacidade dela de tropeçar, escorregar, cair, derrubar… tudo quanto é coisa, e que acontecia com ela constantemente. Apesar disso, ela era uma companhia agradável, com um sorriso charmoso mais que exuberante e de índole modesta e inofensiva, sempre explodindo em gargalhadas com os próprios erros. Você pode imaginar o número de vezes que ela tropeçou na rua para ser resgatada quase imediatamente por algum jovem, que sorriria encantadoramente, para então ser puxado de lado pelo irmão, por uma das irmãs ou pela mãe, que diriam: – Ela tem uma condição peculiar… 257 OUTRAS PAIXÕES Assim, ela cresceu linda e imaculada, exceto pelos seus pequenos acidentes. Mas Maria tinha muitos sonhos e um dia o circo chegou à cidade. A verdadeira mágica do circo não é somente a tenda colorida ou o cheiro de pipoca e de algodão doce. É que o circo tem uma mágica para cada pessoa. Alguns precisam ver o domador de leões; outros, o lançador de facas com a venda sobe os olhos, e sentem um calafrio quando dizem que a moça amarrada no alvo é a sua amada esposa; alguns precisam ver o mágico com a sua cartola, muitos amam os palhaços, outros precisam ver os acrobatas, ou o homembala, a contorcionista, o homem forte ou os elefantes ou o devorador de fogo. Para Maria, a magia foi o equilibrista. Quando ela viu aquele homem, lá no alto, vestido com um macacão verde e uma capa branca, pulando em um cabo como se estivesse na calçada, Maria tinha certeza de que ele cairia. Afinal de contas, para ela, apenas subir a escada era um feito heroico. Ele foi anunciado pelo mestre de picadeiro: – Atenção, senhoras e senhores, para o anjo capaz de unir o céu e a terra, o mestre do horizonte, o infalível João, o desafiador da Gravidade na sua ducentésima trigésima quarta apresentação consecutiva sem uma queda. No primeiro dia, Maria foi com o irmão, que adorou a magrinha garota contorcionista, que conseguia entrar em uma pequena bolsa e fechar o zíper sempre sorrindo. No segundo dia, ela foi com a irmã mais velha, que adorou tanto o devorador de fogo que chegou a lamber os beiços, murmurando “hummm” e acariciando a barriga. 258 OUTRAS PAIXÕES No terceiro dia, ela foi com a sua irmã mais nova, que amou o momento no qual o mágico começou a fazer surgir da sua cartola um coelho atrás do outro. No quarto dia, ela foi com os pais que adoraram o lançador de facas, tanto que até Maria ficou um pouco preocupada. Finalmente, no último dia, foi sozinha e descobriu a mágica do circo. Primeiro, descobriu que o tempo fluía de maneira diferente. Se no primeiro dia João estava se apresentando pela ducentésima trigésima quarta vez, no segundo já era a centésima vigésima terceira e, na última noite, era a quatrocentésima quinquagésima sexta apresentação. E então, apesar da distância entre eles, apesar de ela estar sentada no meio de uma multidão, João estava olhando diretamente para ela todos os dias. Os olhos escuros de Maria saltando com excitamento e ansiedade o tempo todo atraiu sua atenção, e isso foi o que ele disse quando conversaram depois do show: – Nunca vi alguém tão impressionado como você. Ninguém aqui sequer acredita que eu vou cair. Mas você acredita. Ela concordou, incapaz de explicar para ele a razão. Então, caiu. Ele a amparou e perguntou: – O que aconteceu? Você está bem? – Oh, eu apenas tropecei – ela disse, sentido o braço dele segurandoa com uma firmeza que ela nunca sentiu antes. – Mas você não estava nem andando… – ele disse, sentido o coração dela saltando feito louco, como ele nunca sentiu antes. E eles gargalharam. Ela tropeçou, ele a segurou, eles 259 OUTRAS PAIXÕES gargalharam, ela tropeçou, ele… Era algo tão impossível, tão incrível, Maria e João juntos, que a família dela só percebeu que eles estavam juntos quando ele se encontrava na sala de visitas da casa pedindo a mão de Maria em casamento. Eles ficaram tão estupefatos com o sorriso que ela deu ao dizer “sim”, deixando um copo de água cair sobre ele, e com a calma de João quando apanhou o copo no ar, deixando apenas algumas poucas gotas espirrarem, que o vocabulário deles sofreu uma redução. Especialmente, as palavras negativas sumiram. Não era que eles não gostassem de João. Não, ele era educado, respeitoso e considerado. Mas eles tinham tanto medo do que aconteceria com Maria que se reuniam quase todos os dias lamentando: – Oh, o que será da pobre Maria! – Quando entrar na igreja! – Quando colocar o anel! – Quando lançar o buquê! – Oh, meu Deus, ela é capaz de acertar um avião passando no céu! – Ela ai tropeçar no vestido! – Ela vai quebrar o salto do sapato! – Não, esses problemas não serão grandes, porque estaremos por perto. Assim como durante a festa. É quando ela ficar sozinha com ele, por muito tempo, que teremos problemas de verdade. Tantos desastres podem acontecer! Todos concordaram, balançando a cabeça, com o rosto pálido de tanto terror. 260 OUTRAS PAIXÕES Muitas coisas ocorreram durante a cerimônia, mas se eu for registrar tudo o que aconteceu, esta história teria tantos volumes que nem mesmo todas estantes da biblioteca pública seriam o suficiente para guardála. Basta dizer que três horas depois do previsto, Maria e João estavam casados. João começou a pressentir que algo estava errado durante a festa. Depois que receberam os cumprimentos dos convidados, ele tentou escapar para uma sacada, esperando beijar sua esposa apropriadamente – o mais próximo que ela conseguiu acertar foi no nariz dele, na cerimônia – e o irmão dela veio até ele, como se tivesse algo importante para dizer, mas apenas balbuciava incoerentemente quasepalavras. João pensaria que ele estava bêbado, exceto que ele não bebia. Quando conseguiu se livrar do irmão, viu que a irmã mais velha havia levado Maria para o banheiro para ajeitar a maquiagem. Maria usava pouca maquiagem, mas, ainda assim, ficaram no banheiro por quase meia hora. Quando ela saiu e foram para a sacada, encontrou um grupo de pessoas, levado pela irmã mais nova para observar a lua. Apesar do prédio bloquear a lua, que era melhor observada na sacada do outro lado, onde ele encontrou os pais de Maria e um grupo de convidados mais velhos, que estava lá tomando um ar e deixando o salão de dança para os mais jovens. Uma vez que Maria gargalhava e quase caiu da beirada da sacada, na piscina logo abaixo, ele deixou aquilo de lado e levoua para dançar. Entretanto, assim que se ajeitaram, a irmã mais velha pediu para dançar com ele, por que amava muito aquela canção e ninguém queria ser o seu par. O que ele achou muito estranho, pois haviam muitos outros jovens livres 261 OUTRAS PAIXÕES na pista de dança e ela era definitivamente bonita, com olhos cor de mel que aqueciam a mais fria noite de inverno. Mas assim que pararam, foi a vez da irmã mais jovem vir, também afirmando que não conseguia um par, exigindo que ele dançasse com ela. Mais uma vez, ele viu outros jovens livres e ele ponderava o que havia de errado com ela, pois ainda que se vestisse mais simplesmente do que as irmãs, seu sorriso era tão cativante e jovial que agradaria a qualquer um que o visse. Mas não foi o fim de tudo. Quando eles pararam, a mãe veio afirmando que ele lhe prometera uma dança – o que ele havia feito realmente, ainda que apenas brincando – e que o joelho do marido não o permitia dançar, então pediu que dançassem. Todo o tempo, Maria hora dançava, hora tropeçava, hora pisava nos pés dos outros com o irmão. Quando a música pausou, ele deixou o local, afirmando estar cansado, antes que o pai e o irmão também viessem exigindo uma dança. As esquisitices não acabaram aí. Quando chegou o momento de fatiar o bolo, ele descobriu que foi substituído pelo irmão, enquanto as irmãs levavam Maria para jogar o buquê… Que foi jogado pela mãe, rindo como uma colegial. Apesar de tudo isso, Maria estava feliz e, quando a festa terminou, João suspirou aliviado, pensando que daquele momento em diante haveria somente ele e Maria. Eles alugaram um quarto no mesmo hotel da festa e entraram no elevador. Quando a porta se fechava, ouviram um “espera”, então outro e outro e mais outro. Toda a família entrou no elevador e, para a surpresa dele, desceram no mesmo andar que ele e Maria, retirando chaves do bolso, chaves que percebeu, tinham números dos quartos adjacentes ao quarto deles. 262 OUTRAS PAIXÕES – Esperem – ele disse, parando no corredor. A irmã já puxava Maria pela mão. – Sim? Algo errado? Você quer que nós olhemos se o quarto é seguro? – Não precisa. Eu já averiguei – disse o irmão. – Talvez você queira que eu a carregue nos braços? É bem mais seguro se eu a carregar mesmo. – Oh, eu posso ajudar Maria a trocar de roupa. Vestido de casamento é muito perigoso – disse a irmã mais nova. – Talvez Maria devesse dormir conosco – disse o pai. – Nós nos vemos amanhã no café da manhã? – Ótima ideia, eu sou muito boa em passar manteiga e geleia no pão… – Não, não – todos ficaram em silêncio com a surpresa. Era Maria falando. – Mãe, pai, Marcos, Sara e Melissa, eu não sou a sua menininha mais. Casei. Com João. Se vocês vissem o jeito que ele anda na rua sem trombar em ninguém. Se pudessem vêlo descendo a escada espiral de ferro com aqueles degraus estreitos do nosso prédio sem escorregar. Se o vissem subindo o portão do parque, de noite quando estavam fechados, esticando todo o corpo e o braço, equilibrandose na ponta dos pés, sem ao menos atrapalhar o cabelo, para colher um Jasmim branco para mim, vocês teriam certeza, como eu tenho, de que nunca estive tão segura como quando estou com ele. Ao terminar, Maria saiu andando pelo corredor até a porta do quarto, sem tropeçar. O único que não estava pasmo, olhando para ela, era João. Ele endireitou a gravata, empinou o corpo e marchou adiante: – Com licença – disse. 263 OUTRAS PAIXÕES Maria e João esperaram a família dela entrar nos quartos, com a cabeça baixa, talvez para esconder uma lágrima de felicidade e orgulho. Então, ele a ergueu nos braços. Ela colocou os braços ao redor do pescoço dele. Ele abriu a porta e deu passo para frente… – Ai, ai, ai – Maria berrou. – O quê? – ele disse. – Minha cabeça! Seu desastrado! Você acertou a minha cabeça na parede. Dói… João empalideceu, olhando por sob o ombro, esperando que as portas dos outros quartos se abrissem e que sua sonhada noite com Maria estivesse perdida. Então ela cutucou o peito dele. – Você me dá um beijo para sarar depois – ela ria e massageava a cabeça. – Agora, marche! Maria e João finalmente estavam sozinhos. Devemos deixálos também, certo? Ao menos até a manhã, quando o sol se elevar no horizonte e o telefone começar a tocar. João Camilo de Oliveira Torres 264 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Outro dia 265 OUTRAS PAIXÕES Seu nome é Maria, menina bela. Outro dia a encontrei, num domingo, em uma tarde de outono, ela estava no escorrega, usando fraldinha, brinco de bolinha e mariachiquinha. Foi amor à primeira vista, fui falar com ela, mas antes mamãe me chamou para tomar o meu leitinho na mamadeira. Outro dia trompei com ela na rua, estava de mochilinha nas costas e de uniforme da escolinha, nossa! Ela estava incrível, foi nesse dia que tomei uma atitude inacreditável, falei oi. Outro dia no laboratório de Química, fiquei no mesmo grupo que ela, falei tudo o que eu sabia, e ela ficou realmente encantada com tanta inteligência. Outro dia, chegando a casa, logo após o trabalho, sentei no sofá, e em seguida ela chegou me trazendo a notícia, estava grávida, foi um momento de muita alegria, que se repetiu algumas vezes. Hoje, aos oitenta, dos muitos anos já vividos, de tantos fatos acontecidos, estou ainda ao lado dela, para amála ainda mais, até que chegue outro dia. Haristom Willy Ferreira Monção 266 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Apoteose 267 OUTRAS PAIXÕES Quando queremos contar uma história, podemos começar de centenas de maneiras diferentes, assim como encerrála. Aqui não terei esse problema, sendo que me manterei fiel aos reais acontecimentos. A diversidade humana funciona da mesma maneira, só que, às vezes, ela é simplesmente ignorada; credo, etnia e orientação são partes dela. Nos completam e definem o que fazemos ou o caminho que trilhamos em nossas vidas. Acredito nisso, não existe destino; tudo o que nos sucede são atos de outras pessoas e nossos próprios. Durante minha vida, sempre sonhei em simplesmente viver cada dia, sem pretensões e vontades. Mas, como as melhores histórias, esta começa de maneira inesperada. Enquanto eu andava, minha mente era inundada por tudo que havia à minha volta; as cores, os sons, as centenas de pessoas caminhando sem destino certo – o que era hilário –, todos iam a algum lugar e nenhum ao mesmo tempo. Elas seguiam o que se esperava que seguissem, sem confrontarem suas existências. E talvez, apenas talvez, eu estivesse passando por uma crise existencial naquele momento. A vida continuava, o tempo nunca parava, mesmo quando eu fugia de mim mesmo e da escola. O primeiro horário deveria ser de Matemática, mas o professor não havia vindo, então ninguém ia perceber minha falta até o recreio, quando talvez alguém me procurasse para passar cola na prova, que seria no último horário. E, como 268 OUTRAS PAIXÕES sempre, eu me mantinha informado; a prova foi adiada depois que descobriram que alguém entrou na Sala dos Professores para roubar o gabarito. Isso havia acontecido há apenas meia hora. Quando entrei na biblioteca da cidade, os olhos de Gus se encontraram com os meus. Ele era a única pessoa que eu podia definir como amigo naquele lugar. Sempre tive problemas com interação humana… Me sentei na mesma mesa e percebi que ele estava lendo. – O que está lendo agora? – Perguntei. Na verdade fiz isso apenas para quebrar o gelo, pois odiava o silêncio. – O novo romance do Riordan. – Espera, você conseguiu Blood of Olympus antes da prévenda? – Eu estava impressionado, havia sido lançado há poucas horas, e ele já estava na metade. – Sim e não. – Como assim? Vai começar a fazer mistério agora?! – Tá bom, eu consegui ontem. Minha mãe trabalha com uma mulher, e a filha dela trabalha no Porão da Torre. Ela ganha as remessas da Amazon, então consegui antes de todos. Eu estava boquiaberto. A livraria à qual se referira era a única da cidade em que você conseguia um livro que não era de 2 ou 3 anos atrás. – Usando hack de novo? Se der um spoiler eu te mato, escutou? – Disse tentando me manter firme, o que não deu certo, pois ele era bem maior que eu. – Achei que você gostaria de saber o que acontece com o Nico. – Ele pegou pesado dessa vez, bem na ferida. 269 OUTRAS PAIXÕES – Okay, pode falar. – Enquanto ele explicava eu prestava atenção em sua expressão, em sua barba que estava crescendo, e que o cabelo escuro mantinha o contraste com pele branca e com os olhos castanhos. Admito que não consegui prestar muita atenção no que ele dizia. O tempo foi passando, de novo implacável, e saímos da biblioteca em direção à praça. – Então o que quer fazer agora? – Ele perguntou. – Que tal um chocolatequente? – Eu quero um brownie. Nós fizemos os pedidos e sentamos à mesa. Eu apoiei a minha cabeça em seu ombro. – Você sabe por que sua mãe está fazendo isso, não é? – Ele demorou um pouco para responder. – Sobre eu ir embora? Não acho que ela iria querer agradar a mim só para me convencer a ir. Você sabe, ela tem ficado bem emocional esses dias por causa do divórcio. É obvio que vou com ela, mas perder você seria horrível… – Não termine a frase, tá?! Você não vai me perder. Irei vêlo sempre que vier visitar seu pai. Não será muito tempo, mas será o suficiente. – Tem razão. – Disse ele, passando a mão por meus cabelos. Eu olhava atentamente o semáforo, onde um homem fazia malabarismo com diversos objetos. Se alguém me pedisse para definir a vida, seria aquilo: algo sendo jogado para o alto, para a sorte de alguém conseguir pegar. – Eu amo você, sabia? – Disse pressionando meus lábios aos dele, e imaginando o futuro. Robert White 270 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Amor: aliança e valor 271 OUTRAS PAIXÕES Afrodite sonhava com a supremacia do amor. No sonho, a deusa estava perto da fonte dos desejos. Aproximouse de Juno e de Vesta. Cansadas das separações e desencontros, elas queriam aproximar os casais. Amor, um espelho de desejos. Amor, concretude dos deuses. Amor humano. Amor financeiro. O primeiro encontro deu indícios de um afastamento. Eles se conheceram na igreja. Paulo, na época, estava um pouco acima do peso. Chegou com o violão e com a voz. Pensava ele serem suficientes para conquistar as mulheres. Aliás, era especialista nesse critério. Um jovem que, com ou sem violão, atraía as damas. Tinha um sorriso encantador capaz de derreter qualquer donzela. Homem disputadíssimo. Compromisso sério? Nem pensava. Nem queria. Características enaltecedoras comentaram as deusas. Mudará a opinião. E Débora usou os azuis para aproximar ou distanciar? Confesso que tais dotes ficaram despercebidos pela pequena. Olhos do afastamento. Na época, ela estava comprometida. Paulo não sabia. Desanimaram as deusas. Porém, não desistiram. Sopros de coragem, ele precisava. Cheio de charme e convencido, o conquistador mandou um recado, no dia seguinte, em que destacava os atrativos da moça. Ela leu e respondeu a mensagem: – Não sinto interesse por homens com a barriga saliente. 272 OUTRAS PAIXÕES A resposta foi como uma bomba. O homem só não foi chamado explicitamente de gordo, mas leu as entrelinhas. Imaginem como se sentiu. Uma mistura de ódio com dor de amor recalcado. Maldita gordura ou panela sem tampa? Na hora, sem pestanejar, respondeu: – Muito menos gosto de mulher esnobe e mimada. Foi uma réplica indiferente, sem significado nenhum para ela. Percebese, leitor, que houve o interesse, mas faltaram a reciprocidade e a correspondência à altura. Juno sentiuse ofendida. Empurrãozinho cruel, gritava Vesta. Culpa da Juno, balbuciou Afrodite. Após algumas semanas, Paulo começou a namorar uma vizinha dele. Não pensava mais na jovem cantora. Início de uma separação. Se ao menos, pode assim ser chamado. Nem ensaiavam mais na mesma equipe. Seguiram rumos diferentes. Brotavam em vasos separados. Aproximação. Promessa das deusas. Tempo vai, tempo vem, e os dois terminaram os relacionamentos que pareciam ser para sempre. Não se sabe se por coincidência ou se existe mesmo destino, os rompimentos aconteceram em datas próximas. Nenhum sabia o que havia acontecido com o outro. Seriam as ninfas soprando a favor do casal? Nos finais de semana aconteciam os ensaios, cada grupo em um determinado horário. Aconteceu que o violonista da equipe da Débora adoeceu e tiveram que convidar outro. O único disponível era Paulo. Foi inesperado. Parecia casual. Nasceu o primeiro olhar misterioso e comprometedor. Ele sorriu. Ela sorriu. Eles sorriram. Botão de rosa. Após o ensaio, os adolescentes saíram e foram lanchar em uma praça próxima à igreja. Era costume da maioria 273 OUTRAS PAIXÕES deles. Paulo e Débora ficaram próximos um do outro. Primeiro a conversa era em grupo. Perceberam certa afinidade e passaram a conversa a dois. Dois apaixonados, dois enamorados, dois encantados, dois fascinados. Sim, dois. Um lugar apenas: perto do chafariz. Foi por acaso? Ele se ofereceu para levála a casa. Ela aceitou. Foi a oportunidade para o pedido em namoro. A resposta foi “não”. Pediu um tempo para pensar. Estava muito confusa. Trocaram os números dos celulares e os emails. Deram um abraço longo e se separaram. As deusas somente lamentaram. Desistiram? Mal Paulo entrou em casa, recebeu a seguinte mensagem “O amor é um sentimento inexplicável. Não sei o que sinto por você. Só sei que dentro de mim, você acendeu uma chama. Estou sem saída. Não pense em mim como namorada. Isso eu não quero. Desculpe”. O rapaz gelou e entendeu que entre eles não seria construído um castelo de amor. E resolveu dormir. Porém, só deitou na cama. Dormir, não conseguia. Presença da deusa Themis. Isso aconteceu em um sábado. Passaramse uns 40 minutos da primeira mensagem e o sinal de uma nova. Ele não queria nem olhar, mas não resistiu “Paulo, encontrei você no Facebook. Vi o seu perfil, as fotos. Se quiser, poderá aparecer em minha casa, amanhã. Aceito o pedido de namoro”. Vibração total. Houve justiça, insinuaram as deusas. O coração de Paulo acelerou e ele não conseguia acreditar. Dormir ou ficar acordado, a partir daquele momento, era insignificante. Pausa para as deusas. Saíram com Zeus, Baco e Dionísio. Menos Vesta. Ao raiar do dia seguinte, nascia para eles não apenas 274 OUTRAS PAIXÕES um novo dia, mas o namoro, o primeiro beijo e um relacionamento sério. Um casal perfeito. Eles conversavam muito e se entendiam. Resolveram marcar a data do noivado. Faltavam exatos quinze dias para o tão esperado noivado. Mas cadê as alianças? Detalhe importante e indispensável: faltava o dinheiro. Paulo ficou desempregado, só fazia os chamados “bicos” e descolava o suficiente para pagar algumas contas, o aluguel e a comida. Menos mal, pensava ele. Bateu a tristeza, mas não o desespero. Sabia que tudo se resolveria. Em uma conversa com José, que era pedreiro, surgiu a esperança e a solução. Esse amigo disse que certa vez conseguiu a façanha de fazer um anel com uma torneira. Com certeza, conseguiria fazer as alianças. Só precisaria de duas torneiras de tamanhos diferentes. A serra e a lixa ele já possuía. Ao final do dia, seguiram ao apartamento de Paulo. O tanque e a pia do banheiro ficaram sem as torneiras. Não preciso explicar o porquê. Ao serem lixadas e serradas se transformaram em um lindo par de alianças. Paulo juntou as economias e seguiu a uma relojoaria para que o símbolo do vínculo e da união recebesse um banho de ouro e os nomes dos pombinhos enamorados. Chegou o dia do noivado. Eles receberam bastantes elogios. As alianças ficaram perfeitas. Até pelo menos o dia seguinte. Débora, que trabalhava em um escritório numa cidade vizinha, saía de manhã e só voltava à noite. Era muito competente e os patrões, um casal de advogados, permitiam à moça ficar no computador durante o intervalo do almoço. Porém, nesse dia, um após o noivado, 275 OUTRAS PAIXÕES a jovem dedicouse somente à aliança. Parecia opaca. Resolveu lustrála. Afrodite, Juno e Vesta tentaram impedir. De repente, toca o celular de Paulo. Era a noiva desesperada, avisando ao rapaz que ele fora trapaceado. Disse que ao tentar limpar a aliança, a peça ficou desbotada e horrível. O homem emudeceu, gaguejou, não conseguia falar. No final, teve que contar a verdade. Débora apenas chorava e repetia: – Você fez as alianças de torneira? Veja, caro amigo, as surpresas relacionadas com o amor. Uma história cômica e, ao mesmo tempo, dramática. Sem recursos. Metal. Símbolo. Criatividade. Sonho. Desilusão. Ponto final. Insistiu. Sofrimento. Assim como os movimentos decorrentes na música, percebeu Paulo ser o relacionamento dele e da Débora. Primeira fase, lenta, os olhos se conheceram. Distanciamento dos azuis e castanhos. Na próxima etapa, muita agitação. Mexeu profundamente com os sentimentos. Aceitação. Por fim, a desilusão. Fase funesta. Sim, para ele tudo estava perdido. Tragédia. Jamais seria perdoado, pensou. As deusas resgatarão o relacionamento? Tudo acabado? Amor e valor. Enigmas. Choro de emoção e reconhecimento. Amor real. Pensou Débora. O patrão da moça, assustado com a choradeira, havia se aproximado e ouviu, sem querer, a conversa. Assim que Débora desligou o celular, disse ter ficado muito emocionado com a história e avisou que os presentearia com um par de alianças. Ela não se conteve, disse que não precisava. Mas acabou aceitando e convidando os patrões para serem os padrinhos dela. 276 OUTRAS PAIXÕES Depois de tudo resolvido, veio o casamento, algumas discussões, pequenas brigas. Nada para abalar o amor entre os dois. A descoberta do material que os anéis de noivado foram confeccionados era sempre motivo de muitos risos. Os dois ingressaram com afinco nos estudos. Conseguiram bons empregos. Estabilizaram. Vieram os filhos. Dois meninos. Conseguimos, enfatizavam as deusas. Reflexo no espelho da vida de todos os momentos. O verdadeiro amor reflete a beleza interior. Perfeito. Valores vencidos. Sonhos realizados. Sonhos para serem ainda realizados. Vida a dois. Dois multiplicado por dois. Enfim, resistiram a tudo e a todos, simplesmente por haver entre eles o amor verdadeiro. Aquele que vem da alma e é capaz de enxergar beleza além dos olhos e sentir a presença alheia mesmo a longas distâncias. Tornouse eterno por ser cultivado para esse fim. Como afirma Antoine de SaintExupéry “O verdadeiro amor nunca se desgasta. Quanto mais se dá mais se tem.” Saiu. Foi buscar os dois na escola. Não! Grita Débora. O carro do Paulo? Branco. Não! Três vítimas? Não! Acidente fatal? Não! Os três? Não! Cadê as deusas? Rosa Silva 277 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Sergio 278 OUTRAS PAIXÕES Ela era uma amiga, uma irmã. A gente cresceu junto em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, e se conheceu quando eu me mudei para esse bairro, com cinco anos. Greice era minha vizinha. A gente já ficou amigo na primeira semana, estudou no mesmo colégio e para mim era como uma irmã mesmo. Não era um amor platônico em que se fica gostando da melhor amiga o tempo todo e não se declara. Eu contava as minhas histórias para ela e viceversa. Ela começou a namorar cedo, com 15 anos. Aos dezoito ela disse que ia casar, aí eu me liguei. Esse foi o estalo. Eu fingi que estava tudo bem, mas uma amiga me entregou. Aí que vem o clichê, pois adivinha o que a Greice disse: “Por que não falou?” e que se eu tivesse falado antes poderia ter sido diferente. O cara com quem ela casou me odiava. Todos os nossos amigos em comum foram ao casamento, então nesse dia não teve como não saber onde estavam. Era um domingo, fiquei em casa, não fiz nada demais… A gente não se viu depois disso. Ela se casou, foi morar numa cidade vizinha, em Novo Hamburgo, teve filhos e não voltou mais para o bairro. Hoje em dia em acho que a gente teria dado em nada. Relato dele. 279 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Um encontro 280 OUTRAS PAIXÕES Era noite e a música alta fazia vibrar os tímpanos de todos os que estavam no ginásio. Jorge estava lá, numa das mãos a cerveja, na outra a mão da Moça. Assistiam ao show de uma banda que ele achava muito ruim, mas sabia que agradava muito à Moça. Ele só a levara ao show porque tinha certeza de que a comeria depois de duas horas um som péssimo. Não prestava atenção na música e pensava só em que motel levaria a Moça sem gastar muito dinheiro. Sentiu algo bater no seu pé e, em seguida, um líquido entrando pelo tênis e molhando a meia. Olhou para baixo e viu uma Garota, extremamente desastrada ou um pouco bêbada, não sabia ao certo, já se levantando após recolher o copo. A Garota levantouse com um pedido de desculpas saltando dos lábios, enquanto ele ensaiava um palavrão, prestes a proferir. Ambos levantaram os olhos e se olharam profundamente, como muitas vezes já haviam feito. Eram amigos de amigos. Já foram apresentados umas três vezes, ele se lembrava, pelos amigos que sempre esqueciam que eles já haviam sido apresentados. Nas poucas vezes que se viram trocaram palavras tímidas e desconfortáveis, mas se olharam muito. Sempre tinham alguém ao lado; em um dos lados, pelo menos. Da última vez era ela, de mãos dadas com um fortão, meio rato de academia e suposto lutador, que nada tinha a ver com a Garota. Jorge já havia lançado algumas indiretas e quase fora percebido pelo lutador, que não entendeu o que se passava. A Garota, fingindo 281 OUTRAS PAIXÕES não notar, disparavalhe olhares flamejantes todas as vezes que se encontravam. No show, cumprimentaramse com um sorriso amarelo. Dois beijos no rosto e ele percebeu: ela estava ligeiramente bêbada. A Garota se desculpou novamente pela cerveja no pé. Jorge tentou apresentar a Moça que havia levado, mas era a “melhor música” e a Moça evocava a letra aos gritos, alternando com elogios ao cantornãotãobonitoassim. Jorge perguntou o que a Garota fazia naquele show, e então ela mostrou uma amiga também enlouquecida com o hit de sucesso. – É Jorge, né?! – E você, Letícia. Jorge passava muito tempo pensando em Letícia e, em noites solitárias, imaginava suas mãos tocandolhe o corpo. Mas o que lhe sobrava eram somente as mãos. Será que ela não sabia o nome dele? Letícia sabia, apesar de se fazer desentendida. Mantinha encontros secretos com ele em seus sonhos e, em todos, ele sussurrava em seu ouvido com a voz rouca de vontade. O encontro era tenso, como todos os que haviam tido. Isso porque a tensão sexual que os cercava era tão grande que emperrava qualquer possibilidade de contato mais próximo. Conversaram mais um pouco sobre o show ruim, perguntaram sobre os amigos em comum, mas o som alto demais impedia que se escutassem. A cada resposta de Jorge, Letícia sentia o bafo quente perto de seu pescoço e, assim, ligeiramente bêbada, imaginava que ele dizia palavras muito diferentes daquelas ao pé do seu ouvido. Quando Letícia respondia, com sua voz suave, o cabelo passando pelo rosto de Jorge e o seio encostando levemente em seu braço, ele a imaginava nua 282 OUTRAS PAIXÕES e entregue. Permaneceram por alguns minutos conversando sobre amenidades. E foi então que Letícia tomou um gole de coragem, que desceu tão difícil quanto o resto de cerveja quente que carregava. Perguntou se a Moça era namorada de Jorge. Ele apressouse em negar. Letícia sorriu aliviada. Naquele momento, fezse um silêncio entre eles, apesar do alto barulho que fazia no local. Ambos sentiram o coração acelerar. Decidiram falar ao mesmo tempo e, quando viraram um para o outro seus lábios se esbarraram por uma fração de segundos, e os corações agora pareciam beijaflores. Ela, vermelha, abaixou levemente a cabeça e fechou os olhos, sentindo a boca quente de Jorge aproximarse e ele dizendo com um sussurro em seu ouvido “Andei pensando em você…”. Ela sentiu uma mão apertarlhe o braço e abriu rapidamente os olhos. Sua amiga, tropeçando nas próprias pernas, agarrouse para não cair. Letícia olhou para Jorge e decidiu sair de lá rapidamente, arrastando sua amiga bêbada, antes que a Moça gritante, já debruçada sobre ele perguntasse “Quem é essa?”. Debora Baracho 283 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Amor platônico 284 OUTRAS PAIXÕES O amor sempre foi clandestino para mim, quando era adolescente. Se pararmos para pensar que clandestino era algo feito às escondidas, eu sempre me apaixonei do modo clandestino, era escondido principalmente da pessoa que eu gostava. Ou será que era melhor dizer platônico? Mas o meu maior defeito, quando tinha lá meus quinze anos, era que eu não conseguia ficar de boca fechada, não conseguia guardar das minhas amigas por quem eu tinha uma quedinha e isso não acabava bem. Você pode imaginar como uma adolescente pode ser cruel quando quer? Eu era boca aberta mesmo. Estudava em uma sala só de meninas. Era inocente e achava que todas as meninas eram amigas de todas, como se fôssemos unidas, como se pudéssemos contar tudo para todos. É claro que eu estava muito enganada. E mesmo hoje que já me aproximo dos quarenta outonos, tenho que me frear quando começo a falar, senão pareço papagaio e despejo tudo o que estou pensando, principalmente quando estou chateada. É como se todos fossem obrigados a serem terapeutas de plantão. Voltando para a história. Da janela de minha sala de aula eu avistava a janela do terceiro ano. Uma sala cheia de meninas sem graça e de rapazes populares. Um deles me deixava louca. Ele era lindo. Alemão e jogador de futebol. Já disse tudo. Foi nessa época que comecei a 285 OUTRAS PAIXÕES gostar de futebol e a torcer pelo São Paulo Futebol Clube, dá para imaginar o motivo? Ele sentava na última carteira da sala, ao lado da janela, e quando eu não estava admirando seu talento com a bola, ficava sentada suspirando na janela. É claro que ele sabia. Ele me via ao longe. Fingia que não se importava. Fingia que eu não estava lá. Numa dessas sessões de admiração compulsiva acabei contando para uma das meninas da sala. Ela era dois anos mais velha que eu, morena e alta. Passava um batom vermelho para ir à escola e andava com a calça jeans justa e rebolando. Pobre de mim, nunca me importei com roupas de marca, gostava do meu cabelo louro comprido e tinha o rosto salpicado de sardas. Era óbvio que ele nunca gostaria de mim. Minha autoestima acabaria no buraco. A melhor amiga dessa menina era prima do melhor amigo dele, um roqueiro que nunca desgrudava dele. Um covarde, diga se de passagem, tinha que ver como ficou lá no Playcenter! Essa menina convenceu o primo a apresentálo para a amiga dela. E a tragédia estava feita! De modo clandestino os dois foram ficando juntos. Descobri, um tempo depois, que ele gostava era de uma morena, gostosona, coisa que eu nunca seria. Fiquei arrasada vendo as outras falando pelas minhas costas e dando risadinhas. Principalmente, quando num dia que a escola estava relaxada, com os professores fechando notas e nós nos divertindo com conversas pelos pátios e jogando bola eu percebi que a amiga dela falava de mim para ele e o amigo. Eles riam muito. É claro que ela deve ter dito que eu pagava mico suspirando por ele e 286 OUTRAS PAIXÕES desejando conhecêlo. Tudo foi extremamente vergonhoso para mim. Acabei me calando um pouco e parei de falar sobre mim mesma. Com o tempo a gente supera as decepções. Amores vieram e se foram. Quando eu já tinha passado dos vinte e cinco, estava eu pesquisando os nomes das minhas amigas pelo Orkut, principalmente aquelas de quem tinha perdido o contado, e acabei encontrando o nome dele na comunidade de minha escola. Eu me lembro de ter entrado na página e de ter fuçado nas fotos e só. Um tempo depois ele me adicionou e conversamos virtualmente. Não sentia mais nada por ele. Era apenas uma parte do meu passado que queria esquecer, e continuar vivendo. Porém ele continuou insistindo. Conversávamos muito, conversas privadas. Ele era divertido e tínhamos a mesma profissão. Coincidência? É claro que ele tinha sido casado. Ficou, inclusive, com aquela menina da escola por muito tempo, mesmo com ela desdenhando da situação. No último ano da escola, que graça a Deus não estudamos juntas, ela ficou grávida, mas perdeu o bebê. E ele, que sofreu e aprendeu muito com aquele relacionamento desastroso, acabou partindo para outra. Um tempo depois de nossas conversas furtivas pela internet, ele me convenceu e acabamos nos encontrando para conversar num shopping grande e abarrotado. Pensei inclusive que ele não me reconheceria ou que desistiria quando me visse. Mas a vida é um mistério. Não se pode entender o coração humano. Ele realmente gostava de mim e estava feliz em me ter por perto. Fomos ao cinema. Jantamos. Falamos de trabalho. Fizemos planos para encontros 287 OUTRAS PAIXÕES futuros. Depois de algumas idas ao shopping, num dia sossegado, longe da algazarra e do barulho. No início de uma sessão no cinema, ele me beijou. Tudo se encaixava. Tudo fazia sentido naquele momento. Sofri porque precisava crescer primeiro para saber aproveitar a todas as nuances que a vida ofereceria. Ele precisava amadurecer e saber valorizar uma mulher pelo que ela era e não apenas por sua aparência física e por seu sorriso fácil. Hoje, mais de vinte anos depois de ter terminado o Ensino Médio, sou casada com ele e muito feliz. Brincamos com nosso menino no pequeno sítio onde moramos, afastado da loucura da cidade, curtindo a natureza. Na festa de casamento, um ano depois de nosso reencontro (os preparativos para o casamento foram rápidos) minhas antigas amigas ficaram chocadas ao ver quem era o noivo. Nosso relacionamento foi às escondidas até decidirmos que nos casaríamos. Só Deus para entender tudo que passei para desfrutar de toda essa alegria que vivo agora. Guacira Maffra 288 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Cinquenta tons de azul 289 OUTRAS PAIXÕES Do que mais sinto falta na minha terra é o céu. No Rio de Janeiro, ele ou está completamente nublado ou completamente azul. Sinto falta dos amarelos e dos laranjas colorindo o pôr do sol. Dos tons de cinza quando a seca finalmente acaba e as chuvas alagam as tesourinhas. Das cores dos ipês que eu podia ver da janela do meu quarto. Da sombra quadriculada dos longos corredores dos prédios antigos da Asa Sul, aqueles onde a luz do sol atravessa os cobogós, fazendo o piso parecer um interminável tabuleiro de xadrez. Mas o azul é o que é constante agora. O cobalto do mar, misturado com a areia e a espuma das ondas, o brandeis do céu límpido sem nuvens, e o dodger dos olhos dela. Agora não basta eu ver esta cor todos os dias na paisagem, também o vejo ao fechar os olhos, ou até mesmo nos meus sonhos acordados. Neles eu esqueço como a vida é complicada, como estou a esmo chegando à beira de um precipício, abandonada ao acaso. Neles eu me pego sendo observada por estes olhos, que veem acompanhados de um sorriso branco e de uma piscadela sutil, apenas para mim. Esqueço que mal a conheço, que quase nada sei a seu respeito e vice versa. Esqueço pelo que passei, como sempre, e entro no mesmo círculo vicioso de costume. Mas ao mesmo tempo me recordo do sorriso, da risada e da fala compulsiva. Do modo alegre que me cumprimenta 290 OUTRAS PAIXÕES quando retorno alguma ligação perdida. Ela é meio maluca, e acho que se faz de desentendida, mas nada que é muito fácil tem graça. Ainda espero pelo momento em que vou ver aqueles olhos azuis bem de perto, fechandose ao meu toque. Se não… Pelo menos sentir alguma coisa fora do normal me mantém viva. Amanda Marchi 291 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Uma família feliz 292 OUTRAS PAIXÕES Naquela pequena agência de publicidade, Leonardo era quase todo o departamento de criação. A agência havia se especializado na publicação de anúncios em jornais e revistas e na criação de folders. Assim, ela resumiase a, praticamente, ao departamento de criação, uma central de captação, um centro de digitalização dos anúncios e três rapazes, os quais tinham como incumbência todo o trabalho externo da agência, que constituía visitar clientes, especialmente aqueles que não anunciavam há um tempo, e na distribuição dos anúncios aos veículos nos quais seriam publicados ou distribuídos. Leonardo criava e editava os textos para os anúncios e folders, para clientes com maior poder aquisitivo, além do tradicional símbolo do telefone ou do simples clip art, buscava adaptar fotos ou imagens ilustrativas. Olívia trabalhava no CPD da agência, era muito boa com o Corel e com o Photoshop, ou seja, ela digitalizava as ideias de Leonardo, dandolhes forma estética agradável. Leonardo tinha esposa, mas não era segredo para ninguém que sofria com as inconsequências e exigências de Thaissa. Ela gostava de roupas e de calçados e não resistia a passar o dia no Shopping, comprando o que não podiam pagar. Depois de ficarem inadimplentes no cartão de crédito, não demorou a Leonardo perceber que não podia deixar na responsabilidade de Thaissa o dinheiro do mercado, 293 OUTRAS PAIXÕES da padaria, da luz, do aluguel ou da diarista, ou ela o gastaria com as coisas dela. Num final de semana, Thaissa, para desespero de Leonardo, sumiu sem aviso nenhum, nem atendia o seu celular. Só reapareceu na segundafeira, como se nada tivesse acontecido, e unicamente para pegar algumas de suas coisas. – Achei alguém que sabe me apreciar melhor. Depois volto para buscar o resto das minhas coisas – e Thaissa, ante um Leonardo estupefato, se foi. Olívia namorava uma pessoa muito especial; ninguém conseguiria ser um peso morto tão eficientemente quanto ele. Além de mulherengo, preguiçoso e dominador, fazia como se estivesse fazendo um favor a Olívia, por estar com ela. – Olívia, eu não me conformo de ter criado você para cair na conversa de um cafajeste deste tipo – dizialhe o pai. Edno vivia aprontando o tempo todo, quando não era uma coisa, era outra; e para acreditar nas suas inumeráveis desculpas, só uma idiota como Olívia. Abandonado por Thaissa, Leonardo ficou muito abatido. Olívia se condoeu muito com a situação do colega de trabalho e, muito simpática, esforçavase por levantar o animo do amigo. Primeiro, longos batepapos na firma, depois na lanchonete ou no restaurante da esquina na hora do almoço, então um lanchinho depois do expediente, um cineminha, para assistirem a um filme que interessava aos dois. E Olívia foi se apercebendo da diferença entre um homem como Leonardo e um cafajeste como Edno. Para alegria do seu pai, mandou o moço andar. 294 OUTRAS PAIXÕES Num domingo convidou Leonardo para almoçar na casa dos pais dela e ele, sem titubear, aceitou o convite e foi. Na segundafeira começaram um relacionamento mais sério e, logo após o divórcio de Leonardo, casaram se. Instado pela esposa, Leonardo passou a procurar um novo emprego, em agências de porte maior. Enviou alguns currículos e, finalmente, acabou por se inscrever em uma agência de recolocação. Passadas algumas semanas foi convidado a participar de uma entrevista, pela agência de recolocação, todavia, na filial de São Paulo. No dia aprazado ele compareceu pontualmente. Na saída achou que fora bem na entrevista, mas que a sua experiência, em uma agência pequena, não o ajudava muito. Foi com muita alegria que receberam o contato da agência informandoos de que ele havia sido selecionado para o emprego. O salário inicial oferecido era duas vezes maior que o dele e o de Olívia juntos na pequena agência e, para completar, como ele vinha de outra cidade, teria direito a um apartamento funcional, gratuitamente, por três anos. Não havia como resistir. Sampa! Lá vamos nós! Fernando e Nathalia, casados há quase trinta anos, tinham uma vida estável e tranquila. Nathalia era funcionária concursada da Assembleia Legislativa. Fernando advogava, tinha um pequeno escritório próximo ao metro Santana, mas não nutria paixão especial pelo seu trabalho. Através do deputado ”X”, Nathalia ficou sabendo da chegada de uma ONG que iria assumir a saúde em pelo menos quatro cidades paulistas, uma no litoral, duas na região noroeste do estado e outra na RMC, região 295 OUTRAS PAIXÕES metropolitana de Campinas. A ONG desejava instalar um escritório central em São Paulo, Capital, visto que pretendia expandir sua atuação no estado. Nathalia achou que era a oportunidade de Fernando mudar de vida e gestionou junto ao deputado para que o marido gerenciasse o escritório. – Dr., ele é de absoluta confiança. Havia quem estivesse interessado no acanhado escritório de Fernando e, com um bom salário em vista, ele o repassou, mas guardou alguns clientes, filé mignon – apesar do trabalho na ONG daria para conciliar. Nos três anos que se seguiram, a ONG ia muito bem. Mais algumas cidades pequenas foram adicionadas ao seu rol de clientes e Fernando, ao demonstrar sua eficiência, teve consideráveis melhorias salariais, mas por fora. Foi nesse período que as duas famílias se tornaram vizinhas de porta e os casais acabaram por se tornarem bons amigos. Nos primeiros três meses, em Sampa, a vida de Leonardo conduziase de forma bem normal; saía cedo para o trabalho e retornava pela tardezinha. O metrô facilitava tudo. Trazia alguns serviços para casa, que Olívia digitalizava para ele com muito gosto. Repentinamente a agência se agitou: cliente novo, de grande porte, vindo se estabelecer no Brasil e precisando tornar sua marca conhecida. Leonardo foi escalado na equipe que trabalharia no projeto. – É uma grande oportunidade, meu amor – dizia, feliz, para a esposa. Olívia concordava, só achava meio chato que ele 296 OUTRAS PAIXÕES talvez tivesse que fazer uns serões. A vida deles mudou muito; Leonardo saía mais cedo de casa e chegava muito tarde. Cansado, arriado, mal comia alguma coisa e já caía na cama a dormir. Nos finais de semana o celular não parava, mal dava para conversar com o marido. Olívia começava a se sentir muito sozinha. Bomba, estourou uma bomba, foi notícia até no Jornal Nacional. A ONG ligada ao deputado “X” estava metida em complicadas falcatruas. Em questão de poucas semanas o emprego de Fernando foise embora e ele, para completar, encontravase envolvido em uma grande confusão. Fernando passou a ficar em casa praticamente todos os dias e só lhe restava de ocupação os seus clientes especiais. A duvida o assolava: abro ou não abro um novo escritório? – Restame tão pouco tempo para a aposentadoria... Nathalia também está à porta dela, e agora? – Não, não abre nada, não, querido! – disse Nathalia. Vou antecipar minha aposentadoria, vendemos este apartamento e nos mandamos para nossa casinha em Ubatuba. Só preciso aguardar mais uns três ou quatro meses, completar um decênio na gratificação para poder dar entrada na aposentadoria. Fernando e Olívia, solitários em casa, passaram a se encontrar todos os dias, combinavam de ir ao mercado, à feira, à padaria e, também, para outras coisas menos agradáveis de fazer, como pagar as contas e enfrentar a fila do banco. – Vamos pedir comida japonesa? – perguntou Olívia num dos batepapos. 297 OUTRAS PAIXÕES – Vamos – concordou Fernando. E ligou para o China in the Box. Sentaram, os dois, à mesa da cozinha de Olívia. Inesperadamente, olhos nos olhos, um leve toque na mão e… a comida esfriou na mesa enquanto o sofá ferveu, naquela tarde. Olívia havia três meses sentia carência da presença do marido. Fernando, um cinquentão, ao conquistar uma moça bonita como Olívia, se sentia mais homem, mais viril. Quase todas as tardes se encontravam para um “exercício”. Passadas duas semanas, naquela tarde, Olívia sentiu algo diferente. Seu corpo reagiu de maneira diversa, algo inexplicável, mas imediatamente ela soube: havia engravidado. Como não se preocupava em engravidar com Leonardo nem pensou no caso com Fernando, mais um grande erro. Olívia cortou as tardes com Fernando, que insistiu um pouco, mas logo respeitou a decisão da amiga e passaram a se ver muito raramente. Em contrapartida, passou a exigir que Leonardo comparecesse todo dia e a toda hora possível, mesmo estando exausto e protestando seu cansaço. Passados uns 30 ou 40 dias, mostrou ao marido um teste de gravidez, daqueles de farmácia, positivo, logo confirmado em laboratório. Leonardo ficou bobo de alegre. Imediatamente diminuiu o ritmo de trabalho – afinal não precisava ser o primeiro a chegar e o último a sair –, organizando sua vida de forma que tivesse mais tempo para a esposa e para o filho que viria, sem prejudicar seu trabalho. Junior era o único xodó do pai, até que Olívia resolveu engravidar novamente. Nasceulhes D’Ea, em homenagem à avó de Olívia, que se foi um pouco antes 298 OUTRAS PAIXÕES do nascimento da menina. Hoje são uma família feliz e completa. André George Moricz 299 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Chapéu branco: a paixão de Hellena 300 OUTRAS PAIXÕES Um sonho? Talvez, mas um sonho tão real que ainda hoje, após 39 anos, sinto todo o sentimento que me consumia na época. Estava eu sentada na pracinha do mercado público, tinha lá meus dezesseis anos de idade, idade certa para se apaixonar? Acho que não, pelo menos minha mãe sempre falava que não. Só sei que andava meio triste, sentia vontade de encontrar alguém com quem compartilhar minhas alegrias, tristezas, me sentia só, e realmente precisava de alguém. Acordei decidida a achar alguém, mas sabia eu que não seria naquele banco de praça, só sabia que precisava estar ali. Eram mais ou menos cinco e quarenta e cinco da tarde, mal sabia eu que minha vida mudaria dali em diante, havia me arrumado toda como se estivesse adivinhando, passei meu batom cor de rosa, que havia usado pela primeira vez, olhei o quase pôr do sol, sem nada para fazer, como se esperasse algo acontecer de repente. Quando me preparava para deixar aquele banco e direcionarme à minha casa, eis que um homem surge à minha frente, alto, cabelos claros e olhos castanhos também claros e algo que me chamou muito minha atenção, ele usava um chapéu branco. Ele me perguntou se eu estava ali esperando alguém, eu disse que não, e perguntei se ele estava esperando alguém. Resposta: Sim, você. Uma chama de emoção me consumiu, apesar de achar que foi uma cantada barata. Conversamos muito 301 OUTRAS PAIXÕES aquela noite, seu nome era Eduardo, nossa conversa se estendeu por horas, depois por dias, até que com uma semana, demos nosso primeiro beijo. Começamos uma bela história de amor, sempre estava usando seu chapéu branco, ele nunca quis me dizer o porquê de gostar tanto daquele chapéu, já que ele sempre usava o mesmo. Fazíamos tudo juntos, lanchávamos, brincávamos, estudávamos, era tudo mesmo, até que certo dia, em sua casa… Hum, naquele dia, chovia, fazia frio, muito frio, foi ali que tivemos nossa primeira noite de amor, foi lindo… A partir dali, tinha certeza que Eduardo, era o homem de minha vida. Resolvemos nos casar, mas meus pais não permitiram, só lembro que chorei muito naquela noite, senti vontade até de tirar a própria vida, quando senti uma coisa boa em mim, olhei a janela e estava ali uma rosa vermelha, com uma mensagem pregada nela dizendo “você será muito feliz, não se preocupe”. Fiquei melhor, e me tranquilizei. No outro dia, resolvi aparecer naquele mesmo banco da praça para agradecer o presente, quando cheguei lá encontrei apenas seu chapéu branco em cima do banco. Senti que nunca mais o veria, e assim aconteceu, desde aquele dia nunca mais vi Eduardo e seu chapéu branco. Todos dizem que ele só quis brincar comigo, mas não acho, sinto que o que ele realmente me amou, e hoje tenho Eduardo Jr. para confirmar isso. Por que não o vi mais, só o destino terá a missão de me explicar. Hoje, com 55 anos, tenho certeza que esse foi meu maior amor. José de Sousa Magalhães 302 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES A história de Ivonira 303 OUTRAS PAIXÕES Olha, meu filho, foi uma história... Eu acho que quando tem que ser, acontece. Namorar, isso é das moças. A gente tem que namorar... Como aqui no Ribeirão não era um lugar onde tivesse muitos moços, eu ia passear na casa da minha irmã no continente e foi lá que a gente se encontrou e se gostou. Só que ele se iludiu com outra garota. Ele estava pensando que nada tinha acontecido, mas engravidou a menina, depois eu fui saber. A família dela foi em cima. Ele tinha saído daqui e foi para casa. Quando chegou, a mãe dele falou assim: “Ó, aqui tem um problema para resolver. A mãe da menina veio se queixar de que a menina engravidou.” Ele achou no direito, depois de fazer as coisas erradas, de casar com a outra no cartório. Viveu ainda dez anos com a guria. Vê o que é a vida... Nesses dez anos eles ficaram numa boa e eu aqui em casa não estava nem aí. As pessoas diziam que eu era apaixonada por ele, porque não apareceu nesse intermédio mais ninguém de quem eu pudesse gostar. Se aparecesse outra pessoa que servisse para eu conviver, eu pegava. Depois de dez anos ela não quis mais saber dele, daí gostou de outro cara, o enganou e foi embora. Eu já sabia que não tinha dado certo porque a mãe dele tinha vindo aqui em casa. “O meu filho deixou a esposa. Ela fez uma sujeira com ele, traiu com o próprio cunhado...” Eu 304 OUTRAS PAIXÕES disse: “Bem feito, agora ele aprende!” Quando a gente era para ficar junto e não tinha problema, ele não quis. A gente não ia fazer um casamento, mas ia se juntar, porque hoje ninguém mais casa. O casamento é aquele que bem vive, né? Um belo dia ele veio com a mãe dele, com vergonha de vir sozinho. Depois de dez anos ele diz: “Eu vim aqui falar contigo, nada deu certo, eu me arrependi do que fiz” e não sei o quê... Ele disse que estava partindo para o desquite. E eu disse que tudo bem, na cara dele, assim como estou falando contigo. “Depois que você desquitar, depois que você trouxer o papel para eu ler, porque também não sou burra, eu vou pensar.” Não queria ninguém me incomodando; não queria que a outra viesse com filho no braço para discutir comigo. Então a gente fez um partido. Se ele aceitasse viver junto com a minha mãe o partido estava feito. Se desse certo, deu, se não desse... Ele aceitou e a gente se juntou. Eu casei com ele com 40 anos e fui ter a minha filha com 42. Foram vinte e sete anos juntos. Nunca bateu em mim, nunca chegou bêbado, porque não queria ver homem meu em bar, nunca virou mesa... E era um homem honesto, graças a Deus. Foi uma convivência boa. Ele gostava de mim e eu gostava dele. Faz agora quatro anos que ele faleceu. A minha vida foi assim. Relato dela. 305 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Uma pequena gata, aveludada e com grandes olhos azuis 306 OUTRAS PAIXÕES Domingo. Eu acabara de chegar do clube, fazia um frio de junho, estava cansado e resolvi tomar banho, antes de ver o que havia no freezer para jantar. Foi o que fiz e, enquanto sentia a água quente escorrendo gostosa pelas minhas costas, comecei a pensar se, em vez de me envolver numa batalha com os congelados, não seria melhor ideia comer fora, tranquilamente, em algum lugar onde eu não precisasse preparar o jantar e, talvez, ainda que por sorte, encontrasse alguém para uma conversa inteligente. Grossas meias, cômodos tênis, jeans e uma blusa quente, foi o que vesti, enquanto me decidia se, finalmente, sairia ou ficaria em casa. Assim estava posta a questão. Antes, porém, preguiçoso, abri o notebook, investigando se havia mensagens. Deletei a primeira e a segunda, mas a terceira me intrigou: “Oi. Não nos conhecemos, mas não consigo me impedir de lhe dizer. Ontem sonhei com você. No sonho, você estava na minha cidade para assistir a uma conferência e nos encontramos casualmente na plateia, procurando lugar. Você gentilmente me permitiu passagem e, depois, como havia lugar, sentouse ao meu lado. A conferência foi ótima e não muito longa. Você fez dois ou três comentários e eu idem. Ao terminar, saindo, você me perguntou se eu achava boa ideia se jantássemos juntos e, como nada tinha comido desde o almoço, concordei. Eu estava na minha cidade, sugeri o restaurante que mais me agradava e você não teve muita 307 OUTRAS PAIXÕES escolha. “Foi ótimo e houve uma coincidência: ambos pedimos camarões, que estavam deliciosos, assim como o vinho e as framboesas com chantilly, na sobremesa. Acordamos abraçados e, só então, percebi que eu sonhara. Como eu encontrei seu email? Descubra, se tiver interesse. Beijos.” Li e reli três ou quatro vezes a mensagem. Nessa altura, já não mais pensava em sair para comer e, provavelmente, me contentaria com um sanduíche e com um chá quente, só para poder ficar pensando naquela estranhíssima história. Quem seria aquela moça e como descobrira meu e mail? Se não me conhecia – como afirmara no início da mensagem – como poderia sonhar comigo? O que significaria, de verdade, aquela história de que havíamos “acordado abraçados”? Que sugestões existiriam na mensagem e o que pretendia com a irrecusável provocação: “Descubra se tiver interesse”? Eu estava intrigadíssimo e sabia que me sentiria desprezível se não descobrisse resposta para todas essas perguntas. Poderia ser alguém que me conhecesse e a mentirinha inicial seria apenas provocativa: “Não nos conhecemos, mas…”. Sim, a pessoa tinha de me conhecer e estava fingindo estímulos e desafios. Em segundo lugar, deveria ser uma mulher. Um homem, mesmo por piada e com as liberdades de hoje, não me procuraria com uma conversa dessas. Por terceiro, parecia óbvio – com a alusão sobre 308 OUTRAS PAIXÕES minha visita à sua cidade – que seria uma mulher que eu conhecera em algum lugar, aqui ou fora, mas que morava em outro lugar que não na Capital. Onde? Eu ainda não sabia, mas pelo menos, não seria aqui. Uma quarta pergunta, tornava ostensiva outra pista: era uma mulher erudita, ou preocupada com atividades culturais ou, ainda – que delícia – uma jovem estudante. Sim, porque, ao referir que me encontrara em visita à sua cidade para assistir a uma palestra, isso significava que nós ambos éramos dedicados a esse tipo de prestigiada atividade. Contudo, antes de tentar resposta para uma quinta pergunta, percebi de repente que ia me envolvendo emocionalmente cada vez mais com o resultado daquela pesquisa. Enquanto isso ocorria, tinha terminado meus sanduíches, meu chá e esquecera, completamente, a ideia de jantar fora. Acendera um pequeno aquecedor portátil, de tal forma que também o frio já não mais me incomodava. Quis voltar para minha pesquisa, mas não consegui, pois nem mais me lembrava de qual seria a próxima pergunta a responder. Seria cansaço? Eu, que chegara tarde, desejando banho quente e cama? Irritadíssimo, resolvi suspender a faina detetivesca, enviei uma mensagem – para a hipótese dela voltar – e desliguei. A mensagem era a seguinte: “Adoro camarões, gosto muito de palestras e estou precisando acordar abraçado”. Como fui dormir, a eventual resposta eu só encontraria depois, talvez no dia seguinte, se houvesse. Sendo segundafeira, passei o dia todo trabalhando muito e, para ser sincero, me esqueci daquele texto. No final, fui jantar com minha irmã, na casa dela, passando 309 OUTRAS PAIXÕES um tempo bastante agradável, como sempre, e retornei muito tarde. Caí na cama e dormi até às sete da manhã, já na terça feira. Naquele dia, por mera coincidência, voltei mais cedo para casa e, como de hábito, fui conferir eventuais mensagens. A primeira, eu deletei. A segunda, era da minha “amiga” inominada. Só podia ser dela, pois dizia simplesmente: “Eu também.”. Com isso respondia a mensagem que eu deixara, para uma eventual visita. Eu não conseguia pensar em quanto mais precisaria fazer para alcançála. Havia, pois, que ser tão ousado quanto ela e, sendo honesto, dizer isso: quero conhecêla, não consegui meios para encontrála e peço que me dê seu endereço eletrônico ou seu telefone, ou ambos, para que possamos atingir nossos objetivos que parecem ser os mesmos. Foi o que fiz, desenhando essa mensagem em meu email. Depois desliguei e fui dormir. No dia seguinte, terminadas minhas obrigações no escritório, retornei cedo e diretamente para casa, desta vez não por coincidência, mas porque agora desejava conferir no notebook se teria havido uma nova visita. Havia sim, mas, lendo, eu me senti ofendido. Dizia simplesmente: “Você me pareceu mais inteligente e as pessoas eruditas costumam ser mais perspicazes. Você ainda não me localizou porque não se dedicou a isso, com afinco e com inteligência emocional. Repasse suas anotações, se é que as fez. Doulhe um prazo de dois dias. Se você não fizer progresso, esqueça. Beijos.” Fiquei ensandecido. Não apenas porque ela me diminuíra, dizendo que eu lhe parecera “mais inteligente”, mas também porque me dera um prazo que, na minha opinião, era muito curto. De repente, quase explodi, ao perceber que na última 310 OUTRAS PAIXÕES mensagem ela, intencionalmente ou não, me dera nova pista: ela me conhecia sim! Pois ao dizer “você me pareceu mais inteligente e as pessoas eruditas são mais perspicazes”, ela, na realidade, sugeria que já me conhecia e isso poderia ser uma dica de como ela achara meu email. Então, o que eu tinha que fazer era tentar identificar como isso acontecera. Ela afirmara que me havia encontrado numa palestra. Então o que eu tinha que fazer era repassar todas as conferências a que eu fora, ao longo do último mês. A partir daí pareceu fácil porque, afinal, eu não vou a palestras todos os dias. Na realidade, eu havia assistido a três conferências, nas últimas quatro semanas, sendo uma na Capital e outras duas em cidades do interior do Estado. O problema, agora mais fácil, era saber em qual das duas. Vibrei quando me propus a seguinte questão: ela dissera que, no seu sonho, nós havíamos ido jantar após a palestra. Assim, passei a conferir o horário das conferências. Uma ocorrera em Jundiaí, com início às dez horas da manhã. Impossível, portanto, o jantar. A outra ocorrera em Campinas e terminara por volta de nove e meia. Derrubei a cadeira, ao me levantar, tal a minha alegria, pulando pela sala. Encontrara, no jantar, a resposta. Quase. Faltava ainda alguma coisa, mas com um pouco da inteligência que ela duvidara que eu tivesse, chegaria lá. Vasculhei minhas anotações, feitas quando da conferência em Campinas. Todavia, eu não me lembrava de, em nenhum momento, ter ocorrido qualquer tipo de encontro ou 311 OUTRAS PAIXÕES simples troca de ideias com minha desconhecida amiga. Nem mesmo me sentara ao lado dela, pois – eu me recordava bem – de ambos os lados, na fila onde eu ficara, se haviam sentado dois senhores. Assim, como poderia ela ter me identificado? De repente, como sempre acontece, fezse a luz: minha cópia da Inscrição para Perguntas, no final da palestra. Ali devem constar todos os dados do inquiridor e da qual, uma vez terminada a conferência, eu já não mais necessitava. Aquele papel então ficara dentro do envelope original, em plástico transparente, sobre minha poltrona quando eu me levantara, após o encerramento. Na ficha de inscrição havia meu nome completo, endereço eletrônico, celular, tudo, enfim, como de hábito. Ela, provavelmente, ocupando uma cadeira próxima, estivera me olhando durante a palestra – quanta vaidade! – e, encerrada a conferência, simplesmente se permitira apanhar o tal envelope, sobre a poltrona, tão logo eu me retirara. Fácil! Adotei, imediatamente, um procedimento inverso. Fugindo ao lento processo utilizado por ela, com a flagrante intenção de me provocar, cuidei de conseguir pela Internet o telefone dela, visando contato direto. Hoje eu não moro mais na Capital. Consegui minha transferência para Campinas, onde dou aulas na Fundação Histórico Geográfica e moro com ela. Eduardo Monteiro 312 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Pantomima 313 OUTRAS PAIXÕES Um trovão abafou o violento bater da porta. Com a respiração acelerada, ele entrou no apartamento, deixou a mochila cair no chão e procurou por algo que o ajudasse a voltar para dentro da própria mente, da qual desejava nunca ter saído. A maldita timidez ao menos era segura. Viu o velho Zafu, esquecido havia semanas no canto da sala. Sentouse e esperou pela concentração, que não veio. Contrariado, voltou à técnica iniciante de contar as respirações, de um a dez. Um, a primeira visão que teve dela, no aeroporto, passando a língua nos lábios ressecados, que ele imediatamente quis curar. Dois, a eletricidade quando a tocou pela primeira vez. Três, o maxilar de contornos triangulares que ele tanto acariciou em sua imaginação. Quatro, os olhos levemente puxados, sempre iluminados. Cinco, o sorriso, o sorriso. Seis, o jeito agitado, empolgado com a vida. Sete, as noites sem dormir. Como entender, como explicar, como agir? Oito, a viagem com amigos. Nove, o desespero. Nunca seria leve e feliz como ela, jamais conseguiria acompanhála. Dez, ela merece alguém melhor, e naquela praia não faltavam opções. Onze… Onze! Droga. Levantouse, passou as mãos pelo rosto e cabelo, molhados de suor. O que fazer? O saco de pancadas! No caminho para a sacada, apertou automaticamente o play do aparelho que ficava na estante da sala. As caixas de som explodiram com uma das músicas estilo grunge que ela lhe apresentou. “I ain’t afraid to let it out, I’m unafraid to take that fall, but I have found beyond all doubt, we say 314 OUTRAS PAIXÕES more by saying nothing at all…” Socou o aparelho, que caiu, levando junto uma garrafa de vinho. A campainha tocou. Pelo olho mágico ele fitou, atônito, a visita inesperada: completamente molhada, os cabelos negros grudados no rosto sério; ainda usava a saída de praia amarela, a bolsa de palha, os chinelos. Ouviu então o som da maçaneta. Só naquele momento lembrou de respirar. Não havia trancado a porta. Quando tentou segurar, já era tarde. Agora bem perto dela, pode ver que não era só a água da chuva que molhava aquela face. E isso ele não podia suportar. Contornou o rosto dela com as mãos. A mesma corrente elétrica. Daí pra frente, foi como se seu corpo funcionasse sozinho, acompanhado pelo dela, numa coreografia ensaiada sem que qualquer dos dois soubesse. Tudo em perfeita sincronia, como deveriam ser não só as primeiras vezes, mas também todas as outras. Beijos intensos, colo, sofá; carícias delicadas, urgentes, impensáveis e crescentes; roupas desaparecendo; pele, suor, vinho, chuva, sal, saliva, lágrimas; corpos entrelaçados se movendo; mãos mostrando o que ele jamais conseguiria expressar em palavras. daniclau 315 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES Amores em segredo 316 OUTRAS PAIXÕES Quando Nívea chegou a casa, o filho já lá estava a jantar, a cozinheira Antónia tinhalho preparado. – Boa tarde, mãe. Vem jantar comigo. –Aclamou Gastão. – Já vou, mas terá de ser depressa, pois tenho ainda que preparar as aulas de amanhã. – Confessou sentando se à mesa. Comeram e depois cada um foi para o seu quarto. Nívea não podia usar o escritório porque o marido estava lá a escrever os textos para o jornal do dia seguinte. Normalmente vinha tarde para a cama e já não estavam juntos há muitos meses. Na manhã seguinte os três voltaram aos seus trabalhos. Nívea foi lecionar Psicologia para a faculdade, Gastão foi para a aula de alemão e Arnaldo para a redação. Ficavam relativamente perto uns dos outros, embora a mãe e o filho ficassem mais perto por estarem ambos na universidade de Coimbra. Na hora do almoço, Gastão foi almoçar, como sempre, com Cesário, Eliana e Camila. Cesário decidiu declarar se a Camila mesmo na presença dos outros. Ela ficou um pouco espantada com a coragem dele à frente dos restantes e corou sem palavras. – Doute tempo para te mentalizares na minha proposta e te preparares para a tua nova vida… comigo. – Proferiu sorrindo, colocandolhe uma mão em cima da dela. Então ela decidiu que iam tentar. Os outros riram. 317 OUTRAS PAIXÕES Nesse instante Cesário olhou para Gastão e incentivouo: – Devias fazer o mesmo. A Eliana também me parece ansiosa por um beijo teu. – Eu!? Não estou, não. O que eu quero é passar o ano e tirar o curso para um dia ser tradutora. – Eu também penso assim. – Concordou Gastão. – Somente quero estudar para um dia ser um bom docente de alemão e inglês. – Tu e ela estão mesmo bem um para o outro. Muito envergonhadinhos. – Sou quase como tu. Demoraste cinco anos para te declarares. – Proferiu sorrindo, acrescentando de seguida: – Eu bem sei que gostas dela desde o primeiro ano. – Pois, – acrescentou Eliana – estás sempre a tentar engatar as das outras turmas… admirome tu a querêla e ela quererte. – Estás interessada? – Perguntou, espantado. – Não. – Eu sou mais corajoso do que ele. O Gastão demorará décadas para se declarar. – E sorriu olhandoo. – Somente estou a mangar contigo. Nada de stress. – Para de gozar com ele. – Intrometeuse Camila. – Se queres namorar comigo não poderás dizer piadas parvas e rebaixar os outros. Portate bem. Eles não merecem. – Ó, Camila fica sempre do meu lado, gosta de tudo aquilo que eu fizer. No sábado seguinte eles saíram juntos os quatro para irem a um bar, mas à determinada altura o casalinho ausentouse para um sítio mais calmo para curtir. Estavam a gostar muito de estar juntos que pensaram em 318 OUTRAS PAIXÕES oficializar o namoro brevemente com a família. Voltaram a casa de táxi. No domingo à tarde, o irmão de Camila, Cláudio, fora à casa de Gastão pedirlhe um jogo de computador para desanuviar do estudo. – Tu não tens nada para estudar? – Inquiriu Gastão, admirado. – Estudo depois. Precisava da ajuda da tua mãe para estudar Psicologia. Ela já me ajudou e eu subi a nota, sem ela não consigo estudar com pachorra. – Então vai dizer a ela. Minha mãe está no escritório porque o meu pai hoje vai chegar mais tarde. Ele lembrouse como era para lá chegar, agradeceu e despediuse do amigo. Desceu as escadas e bateu na porta do escritório. Nívea sorriu ao vêlo. Deixouo entrar e perguntou o que queria. – Queria que me explicasse umas matérias em que tenho dúvidas. – Declarou enquanto fechava a porta atrás de si. Ela explicoulhe o que ele não compreendia. Cláudio agradeceu e perguntou quanto custava, mas ela não quis cobrar porque era um amigo do filho e não era muito. O jovem gostou do que ouvira, assim como do sorriso dela. Contudo, apenas se levantou da cadeira e baixou a cabeça saindo. Nívea achouo estranho, mas não falou no assunto. O estágio da turma de Línguas estava para breve e Gastão sentiase mais próximo de Eliana. A futura tradutora andava a conquistar corações e o amigo sentia se ameaçado, pois ela era tão reservada para ele que 319 OUTRAS PAIXÕES Gastão ficava com ciúmes, mesmo sem ela dar trela a quem se aproximava mais para conversar ou para pedir apontamentos. Um dia, a sós, Gastão manifestou os seus sentimentos: – Eu queria que os dias de faculdade não acabassem. Bem, estou a mentir. – Declarou embaraçado. – Eu queria era que os momentos que nós temos juntos não terminassem. E tu? – Eu também gosto muito da tua companhia. Nunca te esqueças que moramos na mesma cidade e que ficaremos para sempre amigos. – Parecia que me conhecias tão bem e afinal ainda não percebeste o que queria dizer. – Percebi. Deixa essa poeira baixar. Os ânimos estão exaltados por causa do final do curso, mas não significa mais nada. – Queres enganar a ti própria? Tens vergonha de mim? Crescemos praticamente juntos, sabes quais as minhas intenções. – Pois, é por isso. Não se confunde amizade com amor. – Não queres arriscar um beijo? Ninguém está a ver. – E olhou à volta, fazendoa olhar também. – Agora não. Não estou preparada para isso, não sei bem por quê. Deve ser por causa da reviravolta universitária. – Não insisto. Porém, sabes que devíamos tentar. – Agora só quero acabar este estágio e começar a trabalhar. Quando isso acontecer logo se vê. Até lá, falamos normalmente. – Aceito. – Retorquiu ele. 320 OUTRAS PAIXÕES Cláudio já arranjara uma namorada, Bianca, estudante de enfermagem, como ele. Curtira com ela, mas achava que não gostava o suficiente. Ela não parecia muito interessada, depois só queria estudar sozinha e falava pouco na curtição. – Assim não tem graça. Gostava de estudar contigo. – Gostava mais quando eras somente amigo. – Ok, afastome. Eu também estudo bem sozinho. Cláudio ficou triste, não conseguira ficar mais de um mês com a rapariga e gostava dela a sério. Pensava noutras colegas, mas elas não mostravam muito interesse, queria apenas estudar e tirar altas notas. Ele já estava farto daquela vida de estudante e ainda tinha mais um ano. As professoras achavamno um menino e não lhe davam muita trela. Tinha que arranjar alguém de fora. Mas quem? Nas férias de Verão, Nívea foi para a praia com o filho e duas amigas, a Eduarda levou os filhos Cláudio e Camila; e a Gertrudes, a filha Eliana. Cláudio, Camila e Gastão prepararamse logo para jogar futebol na areia junto ao Cesário, que lá estava. Eliana ficou deitada numa toalha a ler um livro de novela de época, junto de sua mãe Gertrudes e das outras mulheres. A bola ia algumas vezes para perto das senhoras que eram muito apreciadas pelos homens nos seus fatos de banho ou biquínis! Quase todos os dias de verão foram à praia juntos. As aulas universitárias voltaram e com elas novos estudos, novas alegrias e tristezas, novos romances, sonhos, planos, amigos e novas noitadas. Era o ano do 321 OUTRAS PAIXÕES estágio de Cláudio. Correu bem, no geral, tentou concentrarse mais e melhores notas positivas apareceram, terminando o curso com média de quinze valores. Gastão e Eliana já estavam a namorar e a trabalhar. Cesário e Camila também já tinham um emprego e o casamento marcado. Nívea dava as suas aulas de Psicologia como sempre. A meio do ano letivo começou a desconfiar que o marido andava a enganála porque ele saía da redação e não voltava direto para casa. A primeira vez ficou muito preocupada se lhe tinha acontecido alguma coisa. Ele nunca fazia isso! Sempre que tinha algum compromisso importante avisavaa antes. Porém, Arnaldo estava estranho, já não falava muito com ela, já não era romântico, dormiam apenas e não havia carinhos. Um dia ligou para a redação a perguntar se ele vinha já a casa. Ele disse que tinha um compromisso. Ela não gostou do seu tom de voz e resolveu ir até ao seu trabalho. Ficou no carro à espera de ele sair e seguiuo. Onde iria ele às dez horas da noite! Ainda em Coimbra, ele estacionara na berma da estrada, perto dum restaurante novo. Entrou no edifício e a esposa foi atrás pouco depois. Viuo lá sentado à mesa com uma loura! Sentouse noutra mesa afastada e pediu um café quando o garçom a abordou. Olhouos de soslaio e verificou que já estavam muito íntimos. Ficou triste, quase chorou. “Mas eu estou longe, pode não ser o que parece” , pensou. Então resolveu pedir ao empregado de mesa, dando lhe uma gorjeta: – Poderia fazerme o favor de perguntar àquele casal o 322 OUTRAS PAIXÕES que são um ao outro? – Com certeza, minha senhora. Ele foi lá e quando voltou disse a Nívea: – Eles são casados. O que deseja mais? – Nada. Obrigada. – E saiu com as lágrimas nos olhos. Voltou para casa e ligou logo para Gertrudes, que era advogada, para tratar do divórcio. – Tens a certeza de que é isso que queres? – Claro. Não suporto traições. – Devias falar com ele primeiro. O Arnaldo precisa concordar. Se for amigável é mais fácil, embora ainda demore algum tempo. Na manhã seguinte, na cozinha, ela confrontou o marido sobre uma amante, mentindo: – Já sei o teu segredo. Ela ligou para mim a contar tudo o que há entre vocês. – Não sei do que estás a falar. – Balbuciou denteando um pedaço de pão. – Já sei que tens uma amante há algum tempo e que há promessas de amor futuro. – Não é possível. – Quero o divórcio. – Declarou com prontidão, colocando as mãos em cima da mesa. – Por acaso tu tens algum e queres que eu também tenha? – Não mudes a conversa. – Protestou, intimando – Eu sei mais do que tu pensas. 323 OUTRAS PAIXÕES – Estou tão bem aqui contigo e com o Gastão. – Disse ele, levantandose da mesa enquanto bebia o café, resmungando. – Mas eu quero a minha liberdade. – Assim não. Fica com ela e eu voume embora daqui. – Não faças isso. – E olhoua, depois de abandonar a chávena no lavalouças. – Para que gastar dinheiro com advogados? Estamos bem assim… – Nós já não temos uma relação, parecemos uns estranhos, nem falamos, apenas trabalho e mais trabalho. Ele pegoulhe nas mãos e perguntou: – Que queres que façamos para inovar o nosso relacionamento? – Nada. – E baixou os olhos afastandose. – Eu sei que tu estiveste com uma mulher num restaurante e tiveste a lata de a apresentar como tua esposa. Se queres esse título para ela então deixame, vai com ela, não me enganes. – E começou a chorar sentandose na cadeira da cozinha. – Andaste a seguirme? Já não confias em mim? – Gritou desiludido. – Detesto que me vigiem. Parece que já não és a mesma. Agora queres controlarme todos os passos! – Não é isso. Somente quero mais atenção. – Eu tenho o trabalho. Foi com uma amiga da redação que eu jantei. – Pois, é sempre isso que dizes: amigas e colegas de trabalho, mas afinal tens uma amante. – Então queres mesmo acabar? – Sim. Já falei com a Gertrudes e ela vai tratar de tudo, falta o teu consentimento. 324 OUTRAS PAIXÕES – Está bem. Se é assim que queres, assim será. – Porque não admites que tens outra? – Ainda me custa acreditar que isso me tenha acontecido. Mas me apaixonei mesmo por uma colega de trabalho. Ela chegou lá há pouco tempo e cativoume. – Podes calarte. Vaite embora. – Ordenou exaltada sem o olhar. – Eu ainda não tive sexo com ela. – Confessou. – Ai não! Por quê? – Porque ainda não chegamos a essa parte. Não tenho amante, no fundo. – Então por que disseste que era a tua mulher? – Confrontouo. – Porque estou a gostar mais dela do que de ti. Pensei, de fato, em te trocar, mas ainda não tinha bem a certeza. Estás a ajudarme a decidir. – E sorriu andando para a sala. – Então isso quer dizer que vamonos divorciar? – Bradou. – Sim e vou tentar ser mais feliz com ela. – Proclamou aproximandose da porta de saída, despedindose. Ela ficou triste, mas desta vez não chorou, pensou em arranjar também alguém, mas será que queria outra pessoa para a fazer sofrer? No outro dia ela voltou para casa dos seus pais e Gastão ficou com o pai naquela casa em que o viu nascer. Quando foi para a praia contou também às amigas o que lhe sucedera. Eduarda ficou espantada: – Pareciam um casal tão amigo! 325 OUTRAS PAIXÕES – Mas ele já se cansou de mim. – Desabafou, voltandose depois para a Gertrudes, informando: – Vê se tratas do divórcio depressa que quero que esse assunto acabe. – Vou tentar dar prioridade ao teu processo, mas tenho outros mais antigos. – Mas eu sou a tua amiga, tenho prioridade. Eu pago bem. – Sim. Vou dar prioridade ao teu. Nívea gostava de ver os rapazes a jogar futebol. O Cláudio jogava melhor que o filho, parecia mesmo um jogador profissional. Mas o Gastão era melhor que o da outra em muitas matérias da escola. Ela estava orgulhosa do filho por lhe seguir as pisadas, apesar de não lecionar a sua disciplina, era professor de inglês e alemão. Uma tarde de verão, na bolsa de praia dela, apareceu um bilhete em letras garrafais: ESTOU APAIXONADO E ANDO À PROCURA DE PARCEIRA. GOSTARIA DE A VER A SÓS HOJE ÀS 21H NESTA PRAIA. UM ADMIRADOR SECRETO Ela viu o bilhete ao chegar a casa e remexer na mala, sorriu ao lêlo. Adorou a ideia de ter um admirador secreto e depois de um banho e do jantar, não hesitou em ir, merecia alguém. Disse aos pais, que viam televisão: – Vou dar uma volta para espairecer. Não se preocupem que eu volto antes da meianoite. – E sorriu. – Sim, filha. – Responderam ambos sorridentes. Ela foi de carro até ao local combinado. Não estava 326 OUTRAS PAIXÕES frio e ainda não escurecera totalmente e havia candeeiros públicos por perto. Ao chegar lá, antes de chegar à areia, ao lado de uns bancos, reparou que havia um homem de pé, voltado de costas, com um chapéu preto, uma tshirt branca e uns calções de ganga preta a combinar com os chinelos. Pareceulhe familiar aquela estatura. Ele voltouse ao sentir os passos dela e achegouse mais. Também tinha óculos tal como ela. – Quem és tu? – Perguntou corajosamente. Ele acercouse e estendeu o braço para lhe dar a rosa, informando: – O seu admirador secreto. Se não fosse assim não tinha graça. – Acrescentou, entregandolhe a flor. Ela ficou surpreendidíssima quando pegou na flor e se apercebeu de quem se tratava. Ele olhoua de cima a baixo, averiguando a sua saia xadrez e a sua blusa branca, lisonjeando: – Está muito bonita. Ela agradeceu um pouco embaraçada, confessando depois: – Nunca pensei que fosses tu. – Não tive coragem de lho dizer pessoalmente, mas gostaria de me envolver consigo. – Estás louco!? – Já ando há algum tempo a gostar de si. Já tive com outras, mas depois penso sempre em si. – Eu tenho a idade da tua mãe e sou amiga dela, sou mãe de um rapaz da tua idade que é teu amigo e da tua irmã, nós… – e movimentou a mão em desacordo – não podemos, não faz sentido. – E, dito isso, voltouse. 327 OUTRAS PAIXÕES – Espere. Não saia assim. – Ordenou suavemente agarrandolhe o pulso direito. – É por ser assim tão chegada que me fui apaixonando. Quando ela o olhou ele retirou o chapéu e pôs na cabeça dela para brincar e fazêla rir. O que, de fato, aconteceu. E rapidamente tirou do bolso dos calções uma máquina digital e tiroulhe uma foto. – Faça uma pose. Como ninguém estava a ver ela deixouse levar e colocou as mãos na cintura. Cláudio estava a gostar cada vez mais dela. – Dê uma volta. Ela virouse de costas e voltou o rosto. Tiraram mais algumas fotos e a seguir ambos se dirigiram até um banco que estava perto. Ficaram lá sentados a ver as estrelas e o mar. Nívea pensou: “Foi bom ter vindo. Sintome mais jovem, mais amada.” – Queres dizerme alguma coisa? – Inquiriu ele. – Fala tu. – Que pensou do meu bilhete? – Gostei de o receber, depois da decepção com o meu marido, era disso que estava a precisar. Somente pensei que era alguém para a minha idade. – Você deixame muito excitado. Ela baixou a cabeça sem saber o que dizer. A noite estava quente e ela não tinha frio nos braços nem nas pernas. A seguir Cláudio propôslhe: 328 OUTRAS PAIXÕES – Quer ir até a um bar comigo? Ela encarouo com um olhar de quem não acreditava no que estava a ouvir. – Tu, afinal, queres mesmo um relacionamento? – O meu bilhete foi bem claro. – Não é adequado o nosso envolvimento. – Bem… Mas você é divorciada. – Mesmo assim, a diferença de idade é muita. – Estiqueime. – Respondeu atrapalhado. – Então falemos de qualquer coisa. Eu espero o tempo que for preciso. – Não é questão de tempo… Tens de me esquecer. – Não faça isso. – Eu quero encontrar alguém, não nego, mas da minha idade. – Gosta de que tipo de música? Pensou em não responder e ir embora, mas depois disse: – Não sou muito exigente, ouço qualquer coisa. Mas essencialmente pop e baladas. – O meu favorito é pop/rock. Vamonos dar bem, certamente. – E sorriu aproximandose mais. – Não insistas. – Diz que não pode, mas não diz que não quer. – Porque me falas assim? Vou dizer à tua mãe. – Brincou seriamente. – Diga, pode ser que não se zangue, já que é sua amiga. 329 OUTRAS PAIXÕES – Nem pensar. Não quero perder a sua amizade. – E a sessão de fotos? Não teve valor? – Tenho de ir. – E levantouse. – Já passam das dez. Ele levantouse também e foi até ela, roubandolhe um beijo. Ela excitouse e lembrouse do seu marido. Há tanto tempo que não tinha um beijo e um carinho! – Porque não me afastou? – Não sei. – Balbuciou baixando a cabeça indo em direção ao carro. Cláudio foi atrás dela e gritoulhe: – Toma o meu número de telemóvel? Ela ignorou e abriu o carro. – Voute dizer coisas que já não estás habituada a ouvir. Olhouo e sorrindo atiroulhe as palavras: – Sério! Quais? As da idade da pedra? Ele estacou a sua caminhada até ao seu carro e riu à socapa. – Procura alguém da tua idade. – Aconselhou entrando no carro. – Pois, talvez ainda não saibam tais coisas. Porém, quero dizêlo a si. – E chegou perto do carro dela. Ela ignorouo e arrancou com o veículo. Ele não insistiu, entrou no seu carro e abalou atrás dela. Depois teve uma ideia estapafúrdia e acelerou até cento e vinte quilómetros e ultrapassoua, atravessando o carro na estrada mais à frente. Ela travou assustada. Cláudio veio até ao carro dela e Nívea não parava de rir. 330 OUTRAS PAIXÕES – Parece que gostas mesmo muito de mim. – Deixou escapar. – Dême o seu número de telemóvel ou email. – Eu voute dar que é para ver se chego a casa, mas não esperes que te envie alguma coisa. – Vou lutar até ao fim por si. Trocaram os números e ele enviavalhe quase todas as noites mensagens de bons sonhos e Nívea nunca respondia. No início de outro ano letivo, Nívea mudarase para um apartamento em Coimbra, dizia aos pais que não queria estar longe da universidade, mas no fundo o que ela queria era independência e esquecer que o seu casamento fracassara e que voltara para a casa de solteira. Além disso, ela esperava ocultamente que o seu admirador secreto voltasse e que fosse morar com ela. Quando pensava em Cláudio e na cena da praia sentiase uma adolescente. Nunca teve coragem de contar a quem tinha confiança o que se estava a passar consigo. Nem o próprio Cláudio sabia da sua mudança de sentimentos. Não conseguira apagar o número dele do telemóvel, nem as mensagens, nem o email, nem a sessão de fotos, da sua memória. O novo verão na praia fora triste, não se sentia à vontade com as amigas para falar do admirador secreto. Não lhe apetecia ver os rapazes jogar. Pensou em ir nadar e lá ficar, mas não podia fazer isso, o seu filho não merecia. Então num ato brusco tirou o telemóvel e enviou uma mensagem ao admirador secreto. Será que ainda o era?! As amigas estavam deitadas na areia e nem se apercebiam do que ela fizera. Cláudio demorou para ver a sms. Ela resolveu ler um livro deitada na areia 331 OUTRAS PAIXÕES como as outras. Já tinha chegado ao carro com o Gastão quando sentiu o sinal de mensagem, mas ignorou, embora tivesse a curiosidade à flor da pele. Quando chegou a casa deixou o filho ir ao wc primeiro e foi ver a mensagem do telemóvel. – Nunca pensei que fosse esperar tanto tempo para se decidir a aturarme. Encontro na praia às 21h. Bjs. Desta vez o casal ficou sentado num banco a conversar. Pareciam dois amigos. Ela confessou: – Eu estou arrependida, um pouco, de te ter enviado a tal mensagem, mas como estou sozinha no apartamento lembreime de nós o ano passado na praia. – Não precisas dizer mais nada. – Concluiu Cláudio achegandose para ela, beijandoa com ternura. A conversa tomara um novo rumo, ele excitadíssimo mostroulhe o quanto era homem. Ela ficou envergonhada. – Falemos de nós: então queres ficar mais tempo com os encontros na praia? – Sim. É um local tão bonito e aconteceunos coisas tão românticas aqui. – E sorriu. – Vem comigo. – Pediu erguendose do banco e levandoa pela mão para a areia. – Para onde me levas? – Perguntou com um ligeiro sorriso, entusiasmada com a ideia de estar com ele na praia. – Que tal o jogo do apanha na praia? – Propôs. – Já fizeste isso com alguém? – Sim. Mas contigo será especial. – E abraçoua, antes 332 OUTRAS PAIXÕES de fugir para ela o apanhar. – Não corras tanto, senão não consigo. Ele parou e ela afastouse, dando uns passos atrás, afastandose para um lado e para o outro sorridente. – Surpreendesme! – Exclamou sem a apanhar. Ela gostou da brincadeira, mas deixouse apanhar. Parecia cena tirada de novela! Com o marido nunca houvera semelhante coisa. Depois desse jogo ambos pensaram em dar um mergulho. – É pena somente virmos para aqui de noite. – Lamentou ele. Ela concordou. – Gostaria de nadar contigo. E se nos aventurássemos? – Sugeriu aproximandose da água, querendo levála também. – A água deve estar fria. É melhor não. – Replicou Nívea, recuando. – Olha, eu vou entrar. – Informou Cláudio deixando os chinelos na areia e despindo a camisa. Ela baixou a cabeça para não o ver em tronco nu. Ele desafioua: – Não queres ir comigo? – E estendeulhe uma mão. – É melhor ficar aqui. Vai tu. – Concluiu cruzando os braços. – Prometes que não te vais embora? – Prometo. Então ele tirou os calções de ganga e correu para o mar. Nívea ficou a vêlo e achouse tonta por estar ali na praia àquelas horas com um rapaz mais novo que o filho. 333 OUTRAS PAIXÕES Pensou em ir embora, mas algo a prendia àquele sítio. Como poderia ser pecado ser feliz?! Estava a ter uma das melhores noites! Seus encontros foram cada vez mais frequentes e deliciosos. Ele fora para o apartamento dela durante uns dias e tinha a cópia da chave. Mentira à família dizendo que ia para casa duma excolega com quem namorava. – Não gosto nada de esconder coisas à tua mãe. Ela não me vai perdoar de eu andar contigo. – Ela não tem de te perdoar de nada, estarmos juntos é bom, é justo sentirmonos bem. – E abraçoua. – Mesmo assim não vou arriscar contar a alguém. Como consegues mentir e não sentir remorso? – Não faço nada de mal. Fazerte feliz é mau? – Sondou, beijandoa em seguida. – Claro que não. Se pudéssemos contar a todos ia ser tão bom! – Desabafou com ar sonhador. – Pois era, mas iam todos ficar escandalizados. – É verdade, o meu pai de certeza que lhe daria um ataque e a minha mãe ia ficar muito desiludida. A tua família nunca mais me falaria, esperam que te cases como a Camila com uma da tua idade e eu sou uma divorciada da idade da tua mãe. – Lamentou com as lágrimas nos olhos. Ele enxugouas suplicando: – Não chores, parteme o coração. Estás comigo, tens de estar alegre. – E beijoua com muito carinho para que ela se excitasse e se esquecesse da tristeza. De vez em quando, Cláudio fazialhe surpresas. Já lhe dera um anel prateado que servira para marcar o dia em 334 OUTRAS PAIXÕES que o admirador secreto apareceu. Cantava karaoke para ela, assim como ela para ele. Davalhe rosas, comprava frutos afrodisíacos, champanhe, espalhava rosas pelo quarto e acendia velas de cores diferentes cada dia. Ela comprara pizza para comerem, de outras vezes galinha e outros alimentos para preparar jantares deliciosos para ambos. Muitas vezes parecia que o resto do mundo não existia e que eram apenas eles a habitar o planeta, como se o mundo fosse o apartamento. Uma noite foram a uma discoteca na cidade do Porto juntos. Adoraram parecer um casal à frente das outras pessoas e saírem do seu lugarejo! Mas mantiveram sempre segredo da sua relação para não fazerem sofrer entes queridos. Lénia Aguiar 335 OUTRAS PAIXÕES Projeto PAIXÕES CLANDESTINAS OUTRAS PAIXÕES HISTÓRIAS SELECIONADAS A Editora Nanquim apoia e utiliza softwares open source. Foram utilizados os seguinte softwares para a elaboração desse livro: GIMP INKSCAPE SCRIBUS Fonte utilizada: Liberation Serif, corpo 12. 336