Lesões músculo-esqueléticas no atletismo
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Lesões músculo-esqueléticas no atletismo
C.F.S. LAURINO, A.D. LOPES, K.S. MANO, M. COHEN & R.J. ABDALLA ARTIGO ORIGINAL Lesões músculo-esqueléticas no atletismo* CRISTIANO F. DE S. LAURINO1, ALEXANDRE DIAS LOPES2, KARINA DA SILVA MANO3, MOISÉS COHEN4, RENE J. ABDALLA5 RESUMO ABSTRACT Este estudo avaliou 103 atletas, 69 (67,0%) homens e 34 (33,0%) mulheres, amadores e profissionais praticantes de atletismo no Estado de São Paulo no ano de 1998. Foram estudados a presença e o comportamento da dor e das lesões músculo-esqueléticas decorrentes do treinamento ou da competição em relação ao sexo, idade, raça e modalidade praticada. A presença da dor foi relatada por 79 (76,7%) atletas, sendo 54 (68,4%) homens e 25 (31,6%) mulheres. Dos atletas avaliados, 78 (75,7%) relataram lesões, sendo 54 (69,2%) homens e 24 (30,8%) mulheres. A maioria das lesões (82,2%) acometeu os membros inferiores. As localizações mais comuns de lesão foram: a coxa (39,8%), joelho (22,1%), tornozelo (11,5%), perna (8,8%), região lombar (7,1%), ombro (6,2%) e outros (4,5%). As provas de velocidade e barreiras foram responsáveis por 43,3% das lesões, seguidas por 30,8% nas provas de salto, 13,3% nas provas de arremesso e lançamento, 7,5% nas provas de meio-fundo e 5,0% fundo. Os padrões de lesão variaram em função da modalidade praticada. Os resultados deste estudo evidenciam que os praticantes do atletismo apresentam um risco elevado de lesões músculoesqueléticas. Musculoskeletal injuries in track and field athletes Unitermos – Esporte; traumatismos em atletas Key words – Musculoskeletal injuries; track and field The objective of the present study is to evaluate 103 athletes, 69 of whom (67%) were male, and 34 (33.0%) female, practicing amateur and professional track and field, in the State of São Paulo, in 1998. The presence and behavior of pain and musculoskeletal injuries due to training or competition in relation to sex, age, race and practiced modality were studied. The presence of pain was reported by 79 (76.7%) athletes, 54 of whom (68.4%) were male, and 25 (31.6%) female. Among the evaluated athletes, 78 (75.7%) reported lesions, 54 of whom (69.2%) were male, and 24 (30.8%) female. Most of the lesions (88.2%) involved the lower limbs. The most common regions were: thigh (53.3%), knees (17.5%), ankle and foot (9.1%), leg (8.3%), lumbar region and upper limbs (11.7%). Sprints and hurdle races were responsible for 43.3% of the lesions, followed by 30.8% in the jumping events, 13.3% in the throwing events, 7.5% in the middle distance (800 and 1,500 m) and 5.0% in the long distance running. Lesion patterns varied in relation to the modality practiced. The results of this study showed that track and field athletes present a high risk of musculoskeletal injuries mainly in the inferior limbs. INTRODUÇÃO * Trabalho realizado no Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Universidade Federal de São Paulo (Serviço do Prof. Dr. José Laredo Filho). 1. Médico Assistente do CETE. 2. Residente em Fisioterapia do CETE. 3. Doutor em Ortopedia e Chefe do Centro de Traumatologia do Esporte (CETE) do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Unifesp-EPM. 4. Doutor em Ortopedia e Coordenador Científico do CETE. Recebido em 27/7/00. Aprovado para publicação em 26/9/00. Copyright RBO2000 364 A participação de atletas em esportes competitivos nos mais variados níveis tem ganho um número cada vez maior de adeptos em todas as faixas etárias. Este fato tem sido relacionado ao aumento do número e dos tipos de lesões músculo-esqueléticas encontradas. O atletismo abrange uma ampla variedade de eventos de características biomecânicas diversas, o que propicia o surgimento de lesões comuns e algumas vezes específicas a cada modalidade. Muitos estudos revelam que entre 17 e Rev Bras Ortop _ Vol. 35, Nº 9 – Setembro, 2000 LESÕES MÚSCULO-ESQUELÉTICAS NO ATLETISMO 1,9% 67% 1,9% 2,9% 1,0% 47,6% 2,9% Masculino Feminino 5,9% 6,8% 12,7% 33% Gráfico 1 – Distribuição dos atletas quanto ao sexo 15,5% 65% dos atletas praticantes de atletismo apresentaram lesões músculo-esqueléticas durante a prática do atletismo(1-3). O presente estudo objetiva avaliar a freqüência relativa da dor na prática desse esporte, assim como descrever as características, distribuição, localização, gravidade e comportamento das lesões músculo-esqueléticas relatadas pelos atletas durante o treinamento do atletismo. Atletismo Handebol Triatlon Futebol Natação Judô Basquete Ginástica olímpica Vôlei Karatê Gráfico 2 – Distribuição percentual da primeira modalidade esportiva praticada na vida esportiva MATERIAL E MÉTODO Foram avaliados 103 atletas competidores de atletismo, com idade média de 23 ± 5 anos (22 a 38 anos), sendo 34 (33,0%) do sexo feminino e 69 (67,0%) do masculino (gráfico 1), sendo 38 brancos (36,9%) e 65 não brancos (63,1%). O tempo médio de treinamento do atletismo foi de 7 ± 5 anos (11 a 22 anos). As características individuais dos atletas estão descritas na tabela 1. A distribuição dos atletas por modalidade, como mostra a tabela 2, indica que as provas de velocidade e barreiras foram os eventos mais representativos. Os atletas foram entrevistados pelos pesquisadores através de questionário preestabelecido, abrangendo informações sobre o primeiro esporte praticado (gráfico 2), as características do treinamento do atletismo, elaboração (tabela 3), acompanhamento do treinador (tabela 4), freqüência, acompanhamento nutricional e médico (tabela 5). TABELA 1 Distribuição da idade (anos), peso (kg) e altura (m) dos atletas Variável Média ± DP Mín. Máx. Idade Peso Altura 23 ± 5 71 ± 14 1,77 ± 0,10 15 41 1,50 38 125 1,99 Fonte: CETE – EPM – Unifesp DP = desvio padrão; Mín. = mínimo; Máx. = máximo Rev Bras Ortop _ Vol. 35, Nº 9 – Setembro, 2000 82,5% nutricional 17,5% Não 67,0% Sim médico 33,0% 0,0% 20,0% 40,0% 60,0% 80,0% 100,0% Gráfico 3 – Freqüência relativa do acompanhamento médico e nutricional dos atletas durante a prática desportiva As lesões músculo-esqueléticas foram definidas como resultantes do treinamento ou competição dentro das modalidades do atletismo, e suficientes para provocar alterações no treinamento, tais como freqüência, forma, intensidade e duração por período igual ou superior a uma semana. Esta definição foi baseada naquela usada por Lysholm e Wiklander (1987)(3) e Bennell e Crossley (1996)(1). Informações adicionais foram incluídas a respeito das características específicas das lesões, como mecanismo de lesão, seja durante o treinamento ou competição, localização anatômica, métodos de tratamento, tempo de afastamento do treinamento e presença da dor associada ou não à lesão. RESULTADOS Dos 103 atletas avaliados, 78 (75,7%) relataram lesões, sendo 54 homens (69,2%) e 24 mulheres (30,8%), enquanto que 25 atletas (24,3%), sendo 15 homens (60,0%) e 10 mulheres (40,0%), não relataram episódios de lesões no atletismo. A distribuição das lesões quanto à raça se com365 C.F.S. LAURINO, A.D. LOPES, K.S. MANO, M. COHEN & R.J. ABDALLA TABELA 2 Distribuição do número (N), percentagem de atletas por modalidade e percentagem de lesões por modalidade Modalidades N % de atletas/ modalidade % de lesões/ modalidade Velocidade/barreiras (100m, 200m, 400m, 100m c/ bar., 110m c/ b, 400m c/ bar.) 54 52,4 43,3 Saltos (distância, triplo, altura e vara) 22 21,4 30,8 Arremessos e lançamentos (peso, disco, dardo e martelo) 14 13,6 13,3 Meio-fundo 800m e 1.500m 8 7,8 5,0 Fundo (5.000m e 10.000m) 3 2,9 7,5 Combinadas (decatlo) 2 1,9 / Fonte: CETE – EPM – Unifesp TABELA 3 O treinamento é preparado por: TABELA 4 O treinamento é acompanhado pelo treinador? Preparador do treinamento N % Professor de Educação Física 87 84,5 Fisioterapeuta 9 Próprio atleta Outro atleta Total Treinamento acompanhado pelo treinador N % Todo o treino 63 61,2 8,7 Parte do treino 30 29,1 6 5,8 Não acompanha 1 1,0 Total 103 100 10 9,7 103 100 Fonte: CETE – EPM – Unifesp Fonte: CETE – EPM – Unifesp portou da seguinte maneira: 49 atletas não brancos (62,8%) e 29 atletas brancos (37,2%) apresentaram lesões, enquanto que 16 atletas não brancos (64,0%) e nove atletas brancos (36,0%) não apresentaram lesões. O segmento anatômico mais freqüentemente acometido por lesões foi a coxa (53,3%), seguido pelo joelho (17,5%), tronco e membros superiores (11,7%), tornozelo e pé (9,1%) e perna (8,3%). A localização das lesões expressas em percentagem do total de lesões é identificada no gráfico 4. As lesões musculotendíneas foram as mais predominantemente encontradas, com a seguinte distribuição percentual conforme os grupos musculares: músculos isquiotibiais (60,4%), músculo quadríceps (19,8%), músculos adutores da coxa (4,4%), músculos da perna (5,5%), músculos 366 TABELA 5 Freqüência de treinamento: horas/dia e dias/semana Horas/dia N % Dias/sem N % 1 7 6,8 1 / / 2 25 24,3 2 / / 3 47 45,6 3 3 2,9 4 24 23,3 4 3 2,9 5 / / 5 20 19,4 6 / / 6 67 65,0 7 / / 7 10 9,7 Fonte: CETE – EPM – Unifesp Rev Bras Ortop _ Vol. 35, Nº 9 – Setembro, 2000 LESÕES MÚSCULO-ESQUELÉTICAS NO ATLETISMO 9,1% Coxa 11,7% 2,6% 4,0% 53,3% 2,0% 6,0% Joelho Coxa 1,3% Joelho Perna 21,2% 9,9% Reg.Lombar Tornozelo Perna Pé 8,3% Tornozelo e pé Ombro 17,5% Quadril Tronco e MMSS Tórax 9,9% 17,9% 12,6% Gráfico 4 – Localização anatômica do total de lesões e distribuição em percentagem M.Superior 12,6% Região cervical Gráfico 6 – Distribuição percentual da dor por região anatômica 23,3% Meio fundo 44,3 Sim Fundo 66,7 Não 50 Arremessadores 76,7% Gráfico 5 – Freqüência relativa da dor durante o treino/competição Saltadores 32,4 82,7 Velocistas/Barreiristas 0 dos membros superiores (6,6%) e músculos do tronco (3,3%). Houve diferença estatística significante quanto à presença de lesões musculares isquiotibiais e a modalidade de velocidade e barreiras, sendo menos freqüente nas demais modalidades do atletismo (P < 0,05). As lesões músculo-esqueléticas foram mais encontradas nas provas de velocidade e barreiras (43,3%), seguidas pelas provas de saltos (30,8%), arremessos e lançamentos (13,3%), meio-fundo (7,5%) e fundo (5,0%), conforme a tabela 2. A coxa foi o local de maior acometimento de lesões entre velocistas e barreiristas (82,7%), saltadores (32,4%) e corredores de meio-fundo (44,3%). O tronco e os membros superiores foram os locais mais acometidos de lesões entre os atletas arremessadores (50,0%), enquanto o joelho foi a região mais acometida entre os corredores de fundo (66,7%). A distribuição das lesões por região anatômica entre as modalidades foi expressa no gráfico 7. O tempo de afastamento dos atletas do treinamento em decorrência das lesões se comportou conforme a tabela 6. As associações entre o sexo dos atletas, a raça e a presença de dor ou lesão não foram estatisticamente significantes (P < 0,05). A associação entre a idade do atleta e a presença de dor não foi estatisticamente significante, assim como a relação entre o acompanhamento do treinamento do atleta pelo treinador e a presença de lesões (P < 0,05). Rev Bras Ortop _ Vol. 35, Nº 9 – Setembro, 2000 Tronco/MMSS/Quadril 10 20 30 40 50 60 % de lesões por região anatômica Coxa Joelho Perna 70 Tornozelo 80 90 Pé Gráfico 7 – Distribuição percentual das lesões por região anatômica e por grupos de modalidades Houve diferença estatística significante na associação entre a idade do atleta e presença de lesões, com o predomínio das lesões ocorrendo em idade superior ou igual a 20 anos. A associação entre a raça e a presença de lesões não foi estatisticamente significante (P < 0,05). O acompanhamento do treinamento do atleta pelo treinador não apresentou relação estatisticamente significante com o surgimento de lesões. O tempo de afastamento dos treinamento em decorrência das lesões foi descrito na tabela 6. A dor foi relato freqüente em 79,0% dos atletas nos treinamentos e competições (gráfico 5) e foi distribuída anatomicamente conforme o gráfico 6. DISCUSSÃO A prevalência das lesões músculo-esqueléticas neste estudo (75,7%) revelou-se concordante com os estudos de Lysholm e Wiklander (65%) em 1987(3) e de D’Souza (61%)(2) em 1994, embora não tenhamos utilizado o mesmo período de tempo. A presença do treinador durante os treinamentos também foi observada neste estudo. Dentre os atletas que se 367 C.F.S. LAURINO, A.D. LOPES, K.S. MANO, M. COHEN & R.J. ABDALLA TABELA 6 Distribuição percentual das lesões em relação ao tempo de afastamento dos treinamentos Tempo de afastamento % do total < 1 mês 23,8% 1 – 3 meses 33,3% 3 – 6 meses 19,0% > 6 meses 23,8% Fonte: CETE – EPM – Unifesp diziam acompanhados integralmente durante os treinamentos, 70,7% apresentaram lesões, o que difere dos 40,4% observados por D’Souza (1994)(2). Os atletas acompanhados parte do treino ou não acompanhados pelo treinador apresentaram índices de lesões de 87,1% e 75,0%, respectivamente. Não houve diferença estatística significante entre os grupos estudados. As queixas de dor durante os treinamentos ou competições foram muito freqüentes: 79,0% dos atletas estudados, com predomínio dos membros inferiores (75,5%), o que de certa forma coincide com a localização anatômica mais freqüente da totalidade das lesões relatadas (88,2%). As lesões dos membros superiores e tronco estiveram mais representadas no grupo de atletas arremessadores (50,0%), em virtude do grau de solicitação elevado a que estes atletas são submetidos durante os complexos e vigorosos movimentos de arremesso. Na amostra estudada, a idade variou entre 15 e 38 anos e assim como Bennell (1996)(1,4) e D’Souza (1994)(2), o número de lesões aumentou nos atletas mais velhos, embora alguns autores não tenham encontrado alterações na prevalência de lesões com a idade(2). As lesões da musculatura isquiotibial, representadas neste estudo como 60,4% das lesões musculotendíneas, são consideradas por muitos autores como o grupo de lesões mais freqüentes e debilitantes da prática esportiva, sobretudo no atletismo, em que a solicitação constante deste grupo muscular durante a corrida de velocidade e salto, situações que requerem grande velocidade, aceleração e força pode culminar com o aparecimento de lesões, quer sejam agudas ou crônicas (overuse). A prolongada atividade dos músculos isquiotibiais reflete a importância destes músculos para a corrida. A tensão na unidade musculotendínea está relacionada a dois grandes fatores: o comprimento do músculo (componente 368 passivo) e a sua atividade contrátil (componente ativo). A acentuação destes componentes durante a corrida e salto pode causar tamanha tensão na unidade miotendínea, que culmina com o aparecimento dos mais variados graus de lesões. Muito se tem estudado a respeito dos fatores predisponentes e desencadeantes das lesões, como a anatomia biarticular deste grupo muscular, a proporção aumentada de fibras do tipo II, o desbalanço de forças em relação ao músculo quadríceps, inadequado “aquecimento” e “alongamento” muscular, além das deficiências de flexibilidade e coordenação neuromuscular. Acrescentemos o fato de que as lesões isquiotibiais, por gerarem dor associada à perda de força e coordenação, retardam de maneira importante o retorno ao treinamento específico, além do que apresentam alta taxa de recorrência. CONCLUSÃO Este estudo permitiu avaliar o comportamento dos atletas frente a algumas características das modalidades do atletismo, que permitem considerá-lo um esporte de risco elevado para o surgimento de lesões. REFERÊNCIAS 1. Bennell K.L., Crossley K.: Musculoskeletal injuries in track and field: incidence, distribution and risk factors. Aust J Sci Med Sport 28: 69-75, 1996. 2. D’Souza D.: Track and field athletics injuries. A one-year survey. Br J Sports Med 28: 197-202, 1994. 3. Lysholm J., Wiklander J.: Injuries in runners. Am J Sports Med 15: 168171, 1987. 4. Bennell K.L., Malcolm S.A., Thomas S. A. et al: Risk factors for stress fractures in track and field athletes. A twelve-month prospective study. Am Sports Med 24: 810-817, 1996. 5. 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