O Uso dos Viewpoints na Construção de um Espetáculo da Cia dos

Transcrição

O Uso dos Viewpoints na Construção de um Espetáculo da Cia dos
O USO DOS VIEWPOINTS NA CONSTRUÇÃO DE UM ESPETÁCULO DA CIA. DOS
ATORES
Camila Barbosa Tiago (Pesquisadora)
Narciso Larangeira Telles da Silva (Orientador)
E-mail: [email protected] / [email protected]
Universidade Federal de Uberlândia / Faculdade de Artes, Filosofia e Ciências Sociais /
Departamento de Música e Artes Cênicas / Curso de Teatro
Comunicação – Relato de Pesquisa
Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar uma reflexão sobre o uso da técnica dos
Viewpoints, desenvolvidos pela diretora norte-americana Anne Bogart, na construção da peça
Ensaio.Hamlet da Cia. dos Atores. Os Viewpoints são pontos de atenção que servem para o
ator tanto em montagem de cena como treinamento. O espetáculo estreou em 2004 com a
direção de Enrique Diaz e foi feito a partir do texto Hamlet de Willian Shakespeare. A Cia.
dos Atores é um grupo carioca com mais de vinte anos de carreira e referência do teatro
nacional. A proposta foi selecionar cenas da peça citada e analisá-las, tentando identificar
elementos dos Viewpoints durante o processo de montagem e durante a cena apresentada.
Esta comunicação é resultado da pesquisa desenvolvida dentro do projeto docente Aprender a
aprender: os Viewpoints como procedimentos de atuação e jogo, orientado pelo professor Dr.
Narciso Telles, do curso de teatro.
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa foi desenvolvida através da concessão da bolsa de pesquisa de Iniciação
Científica junto à FAPEMIG resultando na discussão e reflexão sobre o plano de trabalho
titulado Os Viewpoints em cena: análise dos processos criativos dos ateliês de criação e da
Cia dos Atores, vinculado ao projeto de pesquisa docente Aprender a aprender: os Viewpoints
como procedimentos de atuação e jogo, desenvolvido durante os anos de 2007, 2008 e 2009
sob a orientação do professor Dr. Narciso Telles.
A pesquisa tem como objetivo analisar o uso dos Viewpoints pela Companhia dos
Atores durante o processo de montagem do espetáculo Ensaio.Hamlet, texto original de
Willian Shakespeare, adaptado pela Cia. dos Atores com a direção de Enrique Diaz, assim
como identificar os procedimentos acionados para a criação do mesmo.
MÉTODOS
Para esta pesquisa foram acionadas bibliografias como livros, artigos, entrevista, que
continham informações e/ou reflexões sobre o trabalho da Cia. dos Atores. Foi realizada uma
aula de campo no Rio de Janeiro – RJ, para assistir à peça Ensaio.Hamlet e análise de um
DVD da mesma.
RESULTADOS
A Cia. dos Atores é uma companhia de teatro formada no Rio de Janeiro, desde 1988,
pelos atores Bel Garcia, César Augusto, Drica Moraes, Gustavo Gasparani, Marcelo Olinto,
Marcelo Valle, Susana Ribeiro e pelo diretor e ator Enrique Diaz. A companhia tem um
histórico com mais de vinte peças feitas, ganharam vários prêmios pelo país e consolidou-se
com um estilo de criação colaborativo em que todos os integrantes exercem tarefas variadas
inerentes ao teatro. Uma das características marcantes do grupo é a sua pesquisa em diferentes
linguagens teatrais. Em 1995 Enrique Diaz recebeu uma bolsa de pesquisa para estudar o
gênero melodrama, oferecida pela Fundação Vitae, e a Cia. dos Atores começou o processo de
montagem da peça Melodrama. Igualmente em 2002, Diaz foi a Nova York estudar os
Viewpoints na Siti Company (cidade de Nova Iorque). Após este período, voltou junto ao
grupo para começar um estudo prático sobre essa técnica e, como uma extensão do trabalho,
montou o espetáculo Ensaio.Hamlet que estreou em 2004.
Os Viewpoints como procedimentos de criação foram desenvolvidos pela diretora
norte-america Anne Bogart. Eles são pontos de atenção que servem para o ator, tanto em
montagem de cena como treinamento, sendo que esses são processos para criação de
repertório atorial. Esse procedimento é dividido em dois grupos: Tempo (tempo, duração,
resposta cinestésica e repetição) e Espaço (relação espacial, gesto, forma, arquitetura e
topografia).
Como uma extensão do treinamento dos Viewpoints, Bogart desenvolveu também a
Composição1 que é a ação de construir, em grupo, peças curtas usando o tempo e o espaço, e
que essa ‘peça’ possa ser repetida, comunicativa e teatral. Ela é estruturada por tarefas que os
atores têm que cumprir dentro de um tempo curto. Essas tarefas são pré-definidas pelo diretor
ou coordenador do grupo e podem ser qualquer elemento que vai de encontro com o tema
escolhido para trabalhar, como por exemplo, usar um trecho de um texto qualquer, uma
música, uma objeto, criar um momento de pausa conjunta por quinze segundos, entre outras
tarefas criadas pelo diretor. A composição é, por natureza, um processo criativo colaborativo,
onde o grupo decide em conjunto o que fazer e como fazer para criar uma cena, ou uma
1
Conceito estruturado no livro BOGART, Anne & LANDAU, Tina. The viewpoints book: a practical guide to
viewpoints and composition. New York: Theatre Communications Group, 2005. 224 p.
performance, ou uma intervenção cênica. Ao apresentá-la, deve considerá-la um esboço do
que se propõe, o princípio de algo que deve ser lapidado como um diamante bruto, onde
compete ao diretor retirar e acrescentar elementos para aprimorá-la. Os atores usam a
consciência dos nove Viewpoints para ‘escrever’ algo no espaço e no tempo através da
linguagem teatral.
Para fazer o espetáculo Ensaio.Hamlet Enrique Diaz começou por um estudo do texto,
para retirar os temas que serviriam como ponto de partida, e dar início ao processo de
montagem colaborativo a partir do trabalho com os Viewpoints e a Composição. Ele usou o
texto como pré-texto para a improvisação das cenas, servindo como mais um elemento de
estímulo para os atores durante o processo de criação da mesma. Os temas escolhidos para a
construção do espetáculo foram o homem e seus conflitos de identidade, a carne que é
metamorfoseada para adaptar às relações que são construídas, o conflito do personagem
Hamlet de tomar a decisão de vingar ou não a morte do pai. A análise da peça foi feita a partir
da escolha de quatro cenas, onde identificamos elementos da composição, usados pelo diretor
como estímulo ao ator para a montagem da cena.
A peça inicia com o que vou chamar aqui de prólogo, onde os atores no palco se
relacionam com o público que se adentra e ao mesmo tempo colocam os objetos que serão
usados na primeira cena. A ação de arrumar os objetos é feita com os atores caminhando em
‘gride’ pelo palco. ‘Gride’ é o termo que Anne Bogart conceitua de: grade - imaginar linhas
paralelas, ou diagonais às paredes da sala de trabalho desenhadas no chão, ou linhas circulares
- e movimentar a partir dessas linhas imaginárias. A relação entre os atores é o jogo de
resposta cinestésica (responder corporalmente, sem racionalizar, a um estímulo externo) aos
estímulos dados pelos colegas de cena e pelo público, com a ‘tarefa’ de arrumar os objetos da
cena seguinte. Nesta cena ficam dispostos ao chão pequenos espelhos com velas e taças em
cima, são nove instalações iguais, esses são os objetos que vão sendo arrumados em cena.
Veja uma imagem da cena:
Imagem nº1: O Prólogo
DIAZ, Enrique. Espetáculo Ensaio.Hmlet. Rio de Janeiro:
Teatro SESC Copacabana, 2004. 1 DVD(124 mim), NTSC, som, color.
Em seguida acontece a cena do encontro do espectro do falecido rei com Horácio.
Passa para a cena II, a fanfarra, onde estão presentes os convidados, a rainha, o rei e Hamlet.
Nesta cena há um diálogo entre a rainha e seu filho. Uma proposta que podemos identificar
durante a peça é a de aproximar as formas de relações entre as personagens da trama, que foi
escrita no século XVII, com as formas de relações da contemporaneidade. O diálogo entre
Hamlet e sua mãe, na encenação de Enrique Diaz, é semelhante a uma conversa entre uma
mãe estressada, impaciente, que fala com o filho mas não o escuta. O tema presente nessa
cena é a relação entre mãe e filho, como a mãe ‘enxerga’ o filho: um menino que nunca
cresce; é sempre uma criança no seu ponto de vista e isso fica evidente quando a atriz Malu
Galli, que interpreta Gertrudes, encontra o ator Marcelo Olinto, que interpreta o Hamlet,
sentado encima de um banquinho que está encima de um cubo, fumando. Ela começa a trocar
as roupas do filho. Tira-lhe os sapatos e tenta colocar um sapato de criança, assim como tira o
casaco preto e tenta colocar uma blusa pequena. Veja a foto da cena em que a atriz coloca o
sapato pequeno no ator:
Imagem nº2: Gertrudes com Hamlet
DIAZ, Enrique. Espetáculo Ensaio.Hmlet. Rio de Janeiro:
Teatro SESC Copacabana, 2004. 1 DVD (124 mim), NTSC, som, color.
Toda a sua ação é feita em um ritmo acelerado, enquanto Olinto está parado,
obedecendo às ordens da ‘mãe’ e repetindo com intensidade normal: “está apertado”. A mãe
nem lhe dá ouvidos e sai para falar com o rei. Ele vai até Hamlet e acontece o diálogo entre
Cláudia e seu sobrinho como aparece no texto de Shakespeare.
Nesta cena identificamos características de uma composição como a delimitação do
espaço (trabalhar encima de um cubo), o uso de objetos (os sapatos e as roupas pequenas), a
contraposição dos tempos nas ações dos atores (a atriz está no tempo rápido e o ator está
parado respondendo no tempo normal), o tema “a relação entre mãe e filho”, elementos que se
caracterizam como tarefas pré-estabelecidas pelo diretor aos atores, que a partir do seu
entendimento sobre o que lhe é proposto, e as informações dadas, montam uma cena.
Outra cena em que podemos encontrar noções de uma composição é quando a atriz
Bel Garcia fala sobre Ofélia. A atriz entra em cena falando de sua dificuldade de entender a
personagem Ofélia, pois no ponto de vista da atriz, Ofélia é uma adolescente ‘mimada’ e ela
diz não ter afinidade com adolescentes. Enquanto fala sobre a personagem, Bel Garcia arruma
a cena, ajeita um abajur que já estava no palco, coloca um som portátil ao lado que toca uma
música romântica e pega uma bolsa. Neste momento a bolsa passa a ser Ofélia e a atriz a
indaga por suas atitudes de descaso com o príncipe em obediência ao pai que lhe pedira para
não falar mais com Hamlet. De repente a bolsa se abre e de dentro dela caem muitas cartas,
CDs, objetos típicos que adolescentes dão a pessoa amada quando estão apaixonados. A atriz
pega uma carta no chão e começa a ler num ‘tom’ de quem está apaixonada e se transforma
em Ofélia. Quando a bolsa abre é um ato inesperado para o público o que se caracteriza,
segundo Anne Bogart, como elemento surpresa onde algo de imprevisto acontece. A música
também se caracteriza com um ingrediente pré-determinado pelo diretor para que o ator crie a
composição. A foto a seguir explicita o momento em que a bolsa se abre:
Imagem nº 3: Ofélia
DIAZ, Enrique. Espetáculo Ensaio.Hmlet. Rio de Janeiro:
Teatro SESC Copacabana, 2004. 1 DVD (124 mim), NTSC, som, color.
Outro momento em que Enrique Diaz consegue transformar um jogo dos Viewpoints
em cena é quando os atores começam a andar em ‘gride’, e, em resposta cinestésica, vão
arrumando os objetos em cena, falando sobre fatos da vida de Shakespeare e dados históricos
sobre a peça. Com uma música de fundo vão pontuando todos os Viewpoints de espaço e
tempo como a topografia, a repetição, a relação espacial, a forma, o gesto, resposta
cinestésica, caracterizando uma coreografia ‘não-coreografada’, são corpos em movimento no
espaço sem a virtuose dos bailarinos:
Imagem nº 4: A Grade
DIAZ, Enrique. Espetáculo Ensaio.Hmlet. Rio de Janeiro:
Teatro SESC Copacabana, 2004. 1 DVD (124 mim), NTSC, som, color.
Neste momento da peça podemos identificar um jogo de improvisação, onde há
algumas regras como organizar os objetos em cena, num determinado tempo alguém colocará
uma cadeira em uma posição já definida e quando a cadeira estiver posicionada o ator
Fernando Eiras começará a contar uma história sobre um acidente cênico durante outra peça.
Sobretudo não podemos afirmar que em todas as apresentações será sempre o mesmo ator a
contar a história e se será a mesma história. A movimentação dos atores não é determinada,
mas alguns acontecimentos sim, até que o jogo se dilui e passa para outra cena.
Uma característica relevante de Ensaio.Hamlet é a fragmentação do texto, onde os
atores contam a história de Hamlet, de Willian Shakespeare, sem a preocupação de manter a
sequência cronológica do texto estabelecida pelo autor, transformando a dramaturgia em mais
um estímulo, entre outros, para o ator criar.
CONCLUSÃO
Identificamos que o uso dos Viewpoints para a construção de um espetáculo
proporciona:
•
Uma nova apreensão cênica de um texto clássico;
•
Um processo de montagem no qual o ator possui maior participação na criação das cenas;
•
A relação dos Viewpoints com um processo colaborativo de criação artística.
Enrique Diaz optou por partir de temas presentes no texto Hamlet, escrita por
Shakespeare, para servirem como estímulos no processo de composições das cenas feitas
pelos atores. Como os temas abordados em Hamlet são universais, permitiu aos atores
aproximá-los à suas realidades e construir uma cena que dialogue com questões
contemporâneas. Essa aproximação do texto clássico é reforçada quando os atores colocam o
próprio ponto de vista sobre o tema abordado como na cena da Ofélia e na cena da Gertrudes
com Hamlet.
Os atores ganham autonomia na criação da peça, pois a Composição proposta por
Anne Bogart, e usada por Diaz no processo de criação desse espetáculo, torna o ator um autor
da cena, permitindo-lhe dialogar com a mesma e colocar questões pessoais na sua criação.
Fatores como estes permitem uma forma diferente de trabalhar com textos clássicos.
FONTE
DIAZ, Enrique. Espetáculo Ensaio.Hamlet. Rio de Janeiro: Teatro SESC Copacabana, 2004.
1 DVD (124 mim), NTSC, som, color.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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and composition. New York: Theatre Communications Group, 2005. 224 p.
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