história da espiritualidade

Transcrição

história da espiritualidade
HISTÓRIA DA ESPIRITUALIDADE
Frei Aldir Crocoli, capuchinho
Introdução
A Espiritualidade não começa com o cristianismo, mesmo se entendida como uma confissão
explícita da vivência de uma determinada fé, estruturada numa série de ritos e orquestrada em um
modo de vida concreto. Nem começa com o povo bíblico. A experiência mística, e até a vida
contemplativa como instituição, são muito anteriores ao cristianismo. Entre os pitagóricos, seis
séculos antes de Cristo, havia comunidades contemplativas. Os vedas, os bramanistas, os hinduistas,
os xintoistas ...três mil anos antes de Cristo, já conheciam a ascese, a meditação, a vida
contemplativa eremítica e cenobítica. No tempo de Cristo eram muito famosos os essênios.
O povo bíblico teve sua experiência fundante com o êxodo. Viveu uma caminhada de fé
muito sinuosa ao longo da história, de tal modo que a balança da fidelidade muitas vezes se inclinava
mais para os "baals" do que para Javé, o Deus da vida e da libertação. Ao longo de treze séculos,
esta experiência fundante foi recebendo conotações novas conforme o contexto sócio-histórico que
se apresentava. Embora não se faça aqui uma referência explícita e constante desta espiritualidade
bíblica ela sempre será o pano de fundo, o referencial "canônico" que ajuda a compreensão do
desenvolvimento de toda a espiritualidade.
Há uma grande dificuldade de se encontrar livros apropriados de história da espiritualidade.
Geralmente eles caminham sobre as grandes escolas de espiritualidade e sobre grandes expoentes.
Quase sempre desconhecem, como muito bem constata Gustavo Gutiérrez, aquilo que o comum do
povo vive, bem como pouco prestam atenção ao contexto sócio-histórico que, como se sabe,
praticamente determina a vivência de uma espiritualidade. Talvez como reação a isto neste ensaio se
visará muito mais ressaltar a experiência espiritual do povo do que os expoentes e suas escolas.
Para que fique bem claro, nesta breve síntese se seguirá sempre, para cada grande etapa ou subetapa, três passos: o contexto sócio-histórico que mostra as grandes preocupações ou tensões
vividas pelo povo em geral, as forças místicas como energias desencadeadoras de iniciativas e, por
fim, são mostradas algumas expressões mais gerais da espiritualidade.
I Igreja Primeva (0- 3l3)
Este período abrange deste a época dos "padres apostólicos", como eram chamados os
cristãos da segunda geração, que haviam entrado em contato com os apóstolos, até o Edito de
Constantino, quando o cristianismo passa a ser uma religião com direitos de cidadania do Estado
Romano. São aspectos importantes do contexto:
l.l Contexto social e religioso
l. . Tempo em que a Igreja está se estruturando como entidade (corpo) social e como doutrina
sistemática. O desafio da inculturação é enfrentado com muita agudez e coragem: muitas festas
pagãs são assumidas com outro significado, como o natal que era a festa de Júpiter, o deus sol; ou
então é dada a elas outra roupagem e significação como aconteceu com as celebrações judaicas da
Páscoa, de Pentecostes. Em Assis a Igreja “Santa Maria sopra Minerva” era o templo da deusa
minerva, O Natal era a festa de Júpiter, o deus do sol, etc. A própria filosofia grega começou a
servir de esquema para explicar a fé dentro do universo da civilização ocidental, com sua
"cosmovisão racionalista e sua antropologia totalmente diversa da bíblica". Em nível eclesial se
constata o florescimento e o amadurecimento de muitos ministérios simplesmente inimagináveis na
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cultura judaica enquanto outros são abandonados, a organização de comunidades e estruturação da
liturgia, embora fosse muitas vezes "subterrânea", isto é, não pudesse aparecer ostensivamente ou
então “doméstica”.
2 - De um modo geral, os cristãos se sentem uma “terceira raça”. Diferentes quer dos pagãos, quer
os judeus, por quem eram vistos como seita. Têm um projeto comunitário-social alternativo muito
claro. Sentem-se minoria e pertencndo à periferia social pela rejeição que o Estado nutria para com
eles. Por serem cristãos sabem que não poderão assumir qualquer função ou emprego público e,
pela opção da partilha econômica da igreja que vive a “economia do evangelho, não podem aspirar o
enriquecimento. Não participam do serviço militar nem das festas populares por incluirem ambas a
aceitação da adoração do imperador como deus e a possibilidade de homicídios, no caso do serviço
militar. Combatem o aborto e o abandono de recém-nascidos, sobre quem o pai tinha total poder de
vida ou morte. Organizam um serviço ostensivo de atendimento aos carentes (são atendidas em uma
comunidade de Roma até l564 pessoas diariamente com refeições). Este são a riquza do diácono de
Roma São Lourenço, mártir. Vivem uma economia de partilha, também em vista de aquisição de
escravos para permitir-lhes ganhar a liberdade (Roma num ano destinou o equivalente a 50 mil
dólares para o resgate de escravos e dar-lhes a aforria). Eis um testemunho vindo da segunda
metade do II século sobre o modo de viver dos cristãos. Trata-se de trecho da carta de Diogneto.
Não se distinguem os cristãos dos demais, nem pela região, nem pela língua, nem pelos costumes.
Não habitam cidades à parte, nem empregam idioma diverso dos outros, não levam gênero de vida
extraordinário. A doutrina que se propõem não foi excogitada solicitamente por homens curiosos. Não
seguem opinião humana alguma, como vários fazem.
Moram alguns em cidades gregas, outros em bárbaras, conforme a sorte de cada um; seguem os
costumes locais relativamente ao vestuário, à alimetação e ao restante estilo de viver, apresentando um estado
de vida (político) admirável e sem dúvida paradoxal. Moram na própria pátria, mas como peregrinos.
Enquanto cidadãos, de tudo participam, porém tudo suportam como estrangeiros. Toda a terra estranha é
pátria para eles e toda a pátria, terra estranha.
Casam-se como todos os homens e como todos procriam, mas não rejeitam os filhos. A mesa é
comum; não o leito. Estão na carne, mas não vivem segundo a carne. Se a vida deles decorre na terra, sua
cidadania, contudo, está nos céus. Obedecem às leis estabelecidas, todavia superam-nas pela vida.
Amam a todos, e por todos são perseguidos. Desconhecidos, são condenados. São mortos e com isso
se vivificam.
Pobres, enriquecem a muitos. Tudo lhes falta, e têm abundância de tudo. Tratados sem honras, e
nestas desonras são glorificados. São amaldiçoados, mas justificados. Amaldiçoados, e bendizem. Injuriados,
tributam honras. Fazem o bem e são castigados qual malfeitores. Supliciados, alegram-se como se
obtivessem vida. Hostilizam-nos os judeus quais estrangeiros; perseguem-nos os gregos, e, contudo, os que
os odeiam não sabem dizer a causa da inimizade”
3. Como não podia deixar de ser, vivem um conflito aberto com o Império. Os cristãos são
perseguidos à morte. Calculam-se em pelo menos l0 mil os cristãos massacrados (segundo outros
esse número poderia elevar-se até a 180.000)1. Fazer-se batizar, participar do grupo dos seguidores
de Jesus Cristo é candidatar-se ao martírio. Em certos lugares fazia-se uma verdadeira preparação
ao martírio. Por isso, o longo catecumenato dos adultos antes do batismo. Os cristãos viviam o “não
conformar-se com este século” (Rm 12,2).
4. Já bem no final deste período, com o esfriamento da perseguição e com a forte influência do
platonismo e neo-platonismo começa-se a elaborar, com Orígenes, um tratado sobre a experiência
1
Cf MATOS, Henrique C.J. Caminhando pela História da Igreja. Vol I. Belo Horizonte: O Lutador. 1995. pg 35.
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(= conhecimento) de Deus como supremo bem. A influência do maniqueísmo já começa a se fazer
sentir. Assume-se a visão negativa da materialidade (=sobras da verdadeira realidade) e se perde a
dinâmica da militância do Reino, como diz Frei Betto. A espiritualidade passa a ser vista como
introversão e ascética individual.
l.2 Mística de sustentação
l. O testemunho (martírio) de um mundo novo, com novas relações. A convicção de que o cristão
vive um projeto social alternativo dá muita força. "Eu sou diferente", ando na "contramão da
história". Este sentimento de idenficação com os valores do Evangelho e com um grupo
determinado de pessoas "diferentes" funcionava como carga de energias. Vive-se concretamente o
preceito fundamental de Cristo: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei" (Jo 15,12). Não por
uma obrigação se ama, e sim como resposta a um amor primeiro e maior. Possui-se um sentido
muito vivo de que a pessoa humana é filha de Deus e incorporada a Cristo pelo batismo.
Testemunhá-lo era uma consequência; se necessário, até com o próprio sangue (martírio). Então
não é tão difícil viver uma economia de partilha de bens e da própria vida, ademais que se vive uma
compreensão muito imimente da parusia, diante da qual tudo fica relativizado.
Vale a pena ter presente aqui o testemunho de dois mártires para sentir a mística vivida pelas
comunidades cristãs. Em primeiro lugar o testemunho de Inácio de Antioquia, na Síria,morto sob o
imperador Trajano em 107 dC. Ele escreve viajando para Roma, depois de condenado:
“(...) Suplico-vos não vos transformeis em benevolência inoportuna para mim. Deixai-me ser comida
para as feras, pelas quais me é possível encontrar Deus. Sou trigo de Deus e sou moído pelos dentes das
feras, para encontrar-me como pão puro de Cristo. (...) Perdoai-me: sei o que me convém; começo agora a
ser discípulo. Coisa alguma visível ou invisível me impeça que encontre a Jesus Cristo. Fogo e cruz, manadas
de feras, quebraduras de ossos, esquartejamentos, trituração do corpo todo, os piores flagelos do diabo
venham sobre mim, contanto que encontre a Jesus Cristo. Aguarda-me o meu nascimento. (...) Permiti que
seja imitador do sofrimento do meu Deus. Meu amor está crucificado e não há em mim fogo para amar a
matéria; pelo contrário, água viva, murmurando dentro de mim, falando-me ao interior: Vamos ao Pai...”
Não menos eloqüente é o testemunho de Perpétua, uma jovem nobre, de 22 anos, recém
casada e mãe de um menino pequeno, condenada em 203 em Cartago. Enquanto aguarda o
julgamento na cadeia seu pai a visita e tenta demovê-la:
“Minha filha, tem dó de meus cabelos brancos. Tem pena de teu pai, se acaso sou digno deste nome.
Se te eduquei com todo o cuidado, com todas as minhas forças até esta idade, se te amei mais do que todos os
teus irmãos, olha para tua mãe, tua tia materna, olha para o filho que deverá morrer contigo, abandona este
teu louco propósito, se não queres ver-nos mortos. Ninguém mais entre nós poderá viver honradamente, se tu
tiveres de sofrer alguma condenação ignominosa. Falava assim movido pelo seu amor de pai e beijava-lhe as
mãos prostando-se aos seus pés e, com os olhos cheios de lágrimas, chamava-me não filha mas senhora. Eu
estava angustiada pelo sofrimento seu e magoava-me porque de toda a família só ele não sabia alegrar-se com
o meu martírio. Tentei confortá-lo dizendo: Quando eu for levada ao tribunal, far-se-á a vontade de Deus.(...)
No dia seguinte fomos levados ao interrogatório... Chegou a minha vez. A esta altura apareceu meu pai,
trazendo nos braços o meu menino. Segurando-me, suplicava: Tem piedade desta criança! O procurador
Hilarião disse-me: Tem compaixão de teu pai e da tenra idade de teu filho. Oferece um sacrifício pela saúde
dos imperadores. Respondi: Não o faço. O tribunal disse: És cristã ? Respondi: Sou. Então Hilarião anunciou
a sentença de morte, condenando-nos a sermos devorados pelas feras”.
2. A presença do Espírito do Ressuscitado. Como a experiência da ressurreição e do pentecostes
eram ainda muito próximas, é evidente que gera nos cristãos uma mística contagiante da presença
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do Espírito do Ressuscitado vivo na história. O povo proclama com convicção a força libertadora
do Senhor na história. Com isso, os cristãos são pessoas alegres, joviais, corajosas e fraternas.
3."Fuga mundi". Muita gente vive a necessidade de sair do mundo, de viver com intensidade a
proposta de Cristo, mormente nos períodos em que a perseguição arrefece.. Isto é buscado de duas
maneiras: ou mediante a retirada para o deserto (os eremetas) ou então mediante uma ascese severa.
O decisivo era "não conformar-se com este século".
l.3 Expressões de espiritualidade
l. A Eucarista como núcleo da vivência cristã . Vivida na dupla dimensão de memorial da paixão do
Senhor e de partilha-comunhão no econômico e no existencial a Eucaristia era o momento eclesial
por excelência. As eucaristias eram os momentos altos de evangelização e de comunhão fraterna.
Como não havia ainda uma forte tradição cristã as celebrações foram se afirmando a partir de
transformações das festas judaicas. A celebração era composta de canto de salmos, de reflexão da
Palavra e de partilha econômica (refleção e bens materiais).
2.Celebrações da vida e da paixão de Jesus e dos mártires. Era muito comum o povo fazer
peregrinações aos lugares percorridos por Jesus, bem como fazer encenações de fatos de sua vida
nas ruas. Como a grande maioria do povo não sabia ler, o teatro era uma das formas privilegiadas
de evangelizar(nos momentos de menor perseguição). Vivia-se muito uma piedade organizada em
torno da Cruz, como símbolo de um novo projeto, de uma nova forma de vitória e epifania do amor
extremo de Deus. As narrações da paixão (primeira parte dos evangelhos a ser escrita) criavam a
consciência de pertença a um novo projeto social de vida.
3. Concomitantemente lê-se muito também as "acta martyrum" que passam a ser os grandes
referenciais, junto com o Evangelho. Estes testemunhas da fé, que deram sua vida a exemplo de
Jesus de Nazaré, imitando-o na sua Paixão e Morte, são vistos como exemplos de vida e modelos de
perfeição. Eles são apresentados como fiéis que alcançaram a perfeição da vida cristã e sua morte é
prova de sua suprema caridade. A morte torna-se assim um segundo batismo, uma incorporação
total no mistério pascal de Cristo. Por isso são os primeiros santos com culto público. Não
desempenhavam tanto o papel de intercessores de favores como hoje são quase que exclusivamente
vistos quanto o de pro-vocadores do seguimento radical. A Igreja celebrava a data do martírio como
seu “vere dies natalis”, seu dia de nascimento em Deus. Passam a ser relacionados diretamente com
a Eucaristia, que era celebrada sobre suas relíquias, em memória da morte de Cristo. Por isso, o
martírio sempre constitui uma fonte de grande fecundidade espiritual e apostólica e nunca perde sua
atualidade na Igreja. Uma Igreja que não venera seus mártires, diz Pedro Casaldáliga, não vive seu
papel.
4. O Reinocentrismo. Nestes três primeiros séculos os cristãos expressam, de um modo geral, sua
espiritualidade na militância pelo Reino. Interessa acima de tudo viver um novo projeto de vida,
realmente alternativo ao vigente, apesar dos riscos. Quer-se ver articulados com a vida sócioeconômico-política os valores do Evangelho, como os modelos utópicos de Atos 2 e 4 apresentam.
Não há pois a preocupação devocional. Os santos, na sua grande maioria mártires, não são
invocados tanto como intercessores como sói acontecer hoje. São lidas e meditadas suas vidas e
"Atas de martírio" para se obter a mesma "parresia" (coragem profética). Os cristãos se alimentam
da Palavra de Deus e da oração dos salmos, rezados agora na perspectiva cristocêntrica. além dos
dois scramentos básicos: Eucaristia e Batismo.
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5. O ascetismo corporal. Em substituição ao martírio, muitos cristãos se entregavam a práticas
ascéticas oriundas do neoplatonismo e sobretudo do estoicismo, algumas delas muito fortes, como a
vivida por Orígines- século III - (encratismo-). Em todo o caso, sente-se nisso um meio de resistir à
força do mal e ao espírito do mal que o maniquísmo, religião filosófica provinda da região do atual
Iraque, tanto destacava como consequência de uma compreensão dicotômica da pessoa humana e
da realidade do mundo. Segundo esta visão tudo o que é material é criação do deus mau, enquanto
que o espiritual é criação do Deus bom. As fugas para o deserto poderiam ser, talvez, também
expressão deste ascetismo corporal, pois a luta deixou de ser investida contra as forças más da
sociedade para limitar-se ao combate dos vícios e pecados pessoais em grande parte do povo.
A vida eremítica no cristianismo tem origem no desejo de viver in-formado pelo Espírito
de Deus, mas afastado da turbulência e da ambiguidade deste século. Pode-se dizer que havia uma
vigilância para não se deixar influenciar pela mentalidade hegemônica propalada pelo império.
Outra forma de penitência, constatada no Novo Testamento, e cristianizada do paganismo, é a
virgindade, também entendida como um “martírio incruento”. Os que a assumiam se distinguiam no
seio das comunidades cristãs e se dedicavam sobretudo à liturgia (oração) e à prática da caridade,
embora continuassem residindo nas próprias casas. Era uma maneira de dar a vida pelo Senhor e
pelos irmãos no amor.
Na esteira da virgindade já se encontra neste período as primeiras formas de cenobitismo,
isto é, o eremitismo transformado em vida comunitária.
6. A Oração. De um modo geral os cristãos seguem as práticas de oração dos judeus, religião-mãe
de seu novo modo de ser. Rezam basicamente os salmos. Acrescentam a oração distintiva dos
seguidores de Jesus Cristo: o Pai Nosso. Celebram os sacramentos, sobretudo o batismo e a
eucaristia. Mas diferentemente da religião judaica começam a cultuar os santos e santos como
modelos de seguimento. Sobretudo os mártires (todos os santos deste período são mártires). Esta
oração a Maria, a mais antiga oração à Virgem que se conhece, é deste período. É anterior de
muitos séculos à Ave Maria. Não se conhecem informações sobre sua difusão, autoria e frequência.
Ela pede para ser livre da tentação. Qual ? A de desviar-se do projeto de vida alternativo de Jesus
Cristo:
“Sob o amparo de tua misericórdia, nós nos refugiamos, ó Mãe de Deus; não deixes cair em tentação
os que te suplicam, mas livra-nos do perigo, somente tu, casta e bendita”
II A alta Idade Média (3l3-l073)
O edito político de Milão que declara a liberdade religiosa publicado por Constantino, a fim
de poder governar com a colaboração dos cristãos, muda o rumo da história da Igreja. Por isso
serve de referência para a abertura deste período. E o fato que serve de baliza para o fechamento
desta etapa da Idade Média é a chamada “reforma gregoriana” com a qual a Igreja pretendia
combater a simonia e o nicolaísmo.
2.l Contexto histórico-social
l. Igreja com face "imperial". De perseguida, a Igreja passa a privilegiada. E sem ela se dar muita
conta das consequências, Constantino a cooptou para os interesses do Estado. Como religião oficial
e, portanto caminho para ocupar qualquer posto público, ela passa a aceitar todos quantos se
apresentam, mesmo movidos pela simples pretensão de ocupar cargos públicos. Recebe isenções de
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impostos, é ajudada pelo Estado na construção de grandes templos e a hierarquia eclesiástica se
equipara até nos trajes à hierarquia civil (estola, manípulo, capa magna...). À semelhança da
organização política, a Igreja se estrutura em territórios (dioceses e paróquias territoriais). Também
a solenização das liturgias pode ser atribuída a este fator. A construção de igrejas cada vez mais
pomposas, a assunção do traje e dos ritos da alta hierarquia do império para o serviço das
comunidades é parte deste movimento. Em 754 o papa recebe de Pepino, o breve, a primeira doação
dos Estados Pontifícios que, de vários modos serão expandidos até o século XIII, quando deterá
cerca de dois terços da Europa. Foi assumindo e impondo ainda o latim como língua oficial... Numa
palavra, pode-se dizer que a Igreja neste período sofreu um crescente processo de elitização. Ela se
instalou no regime de cristandade !
Em 313 o Edito de Milão de Constantito dá direito de cidadania no império romano ao cristianismo.
Em 380 Teodósio torna o cristianismo a religião oficial do Estado, dado origem ao tempo da cristandade.
Onze anos após, em 391 proibe-se todo o culto pagão na vida pública. Em 814, Carlos Magno, rei dos
Francos, impõe o cristianismo com métodos discutíveis a povos vencidos - ameaça com a pena de morte a
quem não aceita ser batizado ou não batiza dos filhos dentro do ano do nascimento, não pratica os 40 dias de
jejum quaresmal, não paga o dízimo, encinera cadáveres etc
2. A deficiente evangelização dos povos nórdicos. Com o passar dos anos, os povos do norte vão
baixando e entrando nos territórios cristianizados num Império em decadência: os bávaros,
húngaros, eslavos, francos, godos, visigodos, hunos, burgúndios, lombardos, saxões etc...Vêm eles
com seus esquemas mentais e idiossincrasias filosófico-religiosas que a Igreja não conhecia e nem
sabia como evangelizar. Dá-se o choque das crenças e culturas e muitos elementos religiosos pagãos
acabam integrados, travestidos de outros nomes, na vivência cristã, como as religiões afros fizeram
com o catolecismo no Brasil. Por outro lado, o cristianismo se expandira muito ao sul, pelo norte
da África, enquanto o islamismo (Maomé começa as pregações em 610) lhe oferece uma resistência
ativa. Jerusalém cai sob o seu poder em 638. O maometismo será durante todo o período medieval
o grande e temido adversário do cristianismo, visto como verdadeiro inimigo.
3. Assim como a Igreja se consolidava na estruturação, do mesmo modo começou se estruturar em
termos de conteúdos teológicos. Houve uma série de concílios doutrinários: Nicéia, em 325,
define que Jesus tem a mesma natureza de Deus: é consubstancial ao Pai; Constantinopla, em 381
define que o Espírito Santo é igual ao Pai e ao Filho; Éfeso em 43l proclama que Jesus é
plenamente homem e Deus e que Maria é mãe de Jesus e Mãe de Deus (Theotokos) etc. O "credo"
histórico-narrativo que o povo rezava deste o Antigo Testamento (Dt 6,21-25; 26,5-10) foi
substituído por um credo eminentemente doutrinário-teológico, aprovado pelo Concílio de
Constantinopla. Ao par das definições fazia-se guerra às heresias: arianismo, donatismo,
monofisismo, docetismo, maniqueísmo... vistas como perigo. E pertence ao final deste período
também o cisma grego de l054, a cisão com a Igreja Oriental, ortodoxa, por questões teológicas e
sobretudo culturais.
4. Não se pode esquecer aqui a figura tão influente de Agostinho (354-430) em toda a história da
Igreja ocidental. Homem muito culto e profundo conhecedor da filosofia platônica, e também
muito influenciado pelo maniqueísmo. Ele se converteu ao cristianismo, mas não conseguiu
converter seu esquema helêncio de pensar. Em seu esquema platônico, o cristão Agostinho de
Hipona pensava que a alma é algo que precisa se libertar do corpo. Quanto mais conseguimos
dominar o inimigo (o corpo) tanto mais a alma se projeta rumo a Deus. O demônio age através do
corpo, especialmente do corpo da mulher. Por isso toda a idéia de pecado está muito relacionada à
sexualidade. Eva foi a porta de entrada do pecado. O casamento para Agostinho "é um estado
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permitido de pecado". Durou muito tempo a discussão se a alma da mulher é igual à do homem !
Maria se torna mãe de Deus, mas fica privada da sexualidade. E não se consegue ver nela os
aspectos proféticos expressos no seu Magnificat. Este modo de ver influenciou muito o
cristianismo.
Mas Agostinho trouxe também imensos benefícios à Igreja. Autor de inúmeras obras que
marcaram época: Confissões, O Mestre, A cidade de Deus... Organizou também uma forma de vida
para os padres diocesanos viverem em comunidade que teve uma influência decisiva por um milênio.
Detentor de uma profunda espiritualidade, como se pode perceber neste trecho das “Confissões”, no
seu livro X:
“Onde encontrei a verdade, aí encontrei o meu Deus, a mesma verdade. Desde que a conheci, nunca
mais a deixei esquecer. Por isso, desde que vos conheci, Senhor, permaneceis na minha memória, onde vos
encontro, sempre que de vós me lembro e em vós me deleito. São estas as minhas santas delícias que, por
vossa misericórdia, me destes ao olhardes para a minha pobreza.
Tarde vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e
eu lá fora a procurar-vos! Disforme, lançava-me sobre as formosuras que criastes. Estáveis comigo e eu não
estava convosco! (...)
Quando estiver unido a vós, com todo o meu ser, em parte nenhuma sentirei dor e trabalho. A minha
vida será então verdadeiramente viva, porque estará cheia de vós. Libertais do seu peso aqueles que vós
encheis. Porque não estou cheio de vós, ainda sou peso para mim.
Só na grandeza de vossa misericórdia coloco toda a minha esperança. Dai-me o que ordenais, e
ordenai-me o que quiserdes.
Longe de mim, Senhor, longe do coração deste vosso servo, que se confessa a vós, julga-se feliz, seja
com que alegria for. Há uma alegria, sim, que não é concedida aos ímpios, mas só àqueles que
desinteressadamente vos servem. Esta alegria sois vós mesmo! A vida feliz consiste em nos alegrarmos em
vós e por vós. Esta é a vida feliz e não há outra!”
5. Neste tempo, século VI, presencia-se o aparecimento do monaquismo no Ocidente com os
Beneditinos (5l0), como uma Ordem que se estrutura ao redor da finalidade latrêutica da vida. Por
um lado esta Ordem surge como retorno a uma determinada compreensão antropológica cristã: a
pessoa foi criada para o louvor e para uma relação de diálogo permanente com Deus. E, por outro,
como reação à cooptação que o império fazia da Igreja, induzindo-a ao aburguesamento
institucional e à perda de seu profetismo. Era, no seu contexto, uma reação profética à estatização
da vivência religiosa. Fazendo uma síntese da tradição semicenobítica de S. Pacômio e cenobítica
de S. Basílio, o monaquismo Ociedental propõe o radicalismo evangélico calcado num ascetismo
rígido: o monge vive o voto de estabilidade para evitar a tendência da autonomia. Tem um
ordenamento da vida ordinária minuciosamente estabelecido, alternando as horas de oração
(Eucaristia, Liturgia das Horas, Meditação da Sagrada Escritura - a Opus Dei) com o trabalho
intelectual e físico (Opus historiae) que, uma vez conjugados resultam no "Ora et labora". O
monge vive sob a orientação pessoal e direta do abade que é seu pai espiritual. (cargo vitalício). A
virtude primeira do monge (monacus = solitário) é a obediência irrestrita ao abade, mediante a qual
coloca a alma à disposição de Deus através do abade.
O monaquismo desempenhou uma influência enorme na Igreja e na sociedade, tornando-se
centros de cultura, de tecnolgia e de irradiação da espiritualidade. Eram visibilizaçòes legítimas das
"civitates Dei" de Santo Agostinho. São Gregório Magno, beneditino, tentou “monaquizar” o
conjunto da Igreja. Ela deveria ser um grande mosteiro e todos os cristãos viver como monges,
sob a obediência do abade (papa). Assim vai se forjando a compreensão de que os verdadeiros
cristãos são os que vivem do jeito dos monges, em tudo.
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6. No final deste período constata-se uma sensível decadência moral do clero, junto com uma visível
má preparação teológico-pastoral, o que provocou a iniciativa da Reforma Gregoriana. Em vista
disso, o povo andava à deriva na fé. Era mantido apenas como "consumidor do sagrado", em
tempos de crise de mercado, sem nenhum poder de participação mais direta. O propósito primeiro
da Reforma Gregoriana era o de renovar e revigorar a Igreja toda, mediante a renovação do clero,
prisioneiro de dois grandes vícios: a simonia (venda de coisas sagrades por dinheiro, como as
indulgências) e o nicolaísmo (a não observância do celibato). Em vista de toda esta situação, já
começam a despontar e crescer inúmeros movimentos populares religiosos que na etapa seguinte
irão florescer motivados por um desejo intenso de maior radicalidade no seguimento de Cristo, uma
vez que também o monaquismo de modo geral se aburguesara.
7. Uma das tônicas deste período continua ser a especulação doutrinária. A própria espiritualidade
vinha sendo marcada demasiadamente pelo intelectualismo, pela gnóstica: O conhecimento conduz a
Deus. O conhecimento se torna a grande avenida de acesso ao Senhor. Por isso, nos séculos IX e
X, como reação, começa a tomar corpo uma espiritualidade devocional. Deixa a espiritualidade a
filosofia e a teologia e abraça a devoção, através da motivação dos símbolos: procissões, via-sacra,
relíquias, etc.
2.2 - Mística de sustentação
l A consciência de ser pecador. Devido à influência do platonismo na Igreja, através de Santo
Agostinho e de outros intelectuais, a natureza humana é vista perpassada pela maldade e a
materialidade carregada de negatividade. O povo que vive a cotidianidade da vida vê-se cada vez
mais alijado da participação direta na Igreja devido à sua crescente eletização. Ligado ao
preconceito cultural de que a origem bárbara (= inculto, selvagem...) era sinônimo de inferioridade
e até de incapacidade e ligado à compreensão platônica de que a realidade material é sombra e de
quem vive a ela ligado pessoa de categoria inferior, o povo foi adquirindo a consciência de que ele é
indigno, pecador, e portanto, afastado do sagrado. Como consequência, ele se auto-incentiva a
dimensão penitencial para poder reaver o beneplácito da divindade. Neste período histórico vai
crescendo a importância do sacramento da penitência e vai assumindo uma configuração totalmente
nova e diferente.
2. A antropologia latrêutica e transcendente. Por outro lado, dizia-se que o ideal da pessoa era
viver na presença e na comunhão constante e no louvor permanente e explícito à Divindade. O
monacato se revela como a estruturação perfeita desta antropologia. Passa a ser visto como uma
"societas perfecta", uma verdadeira "civitas Dei" onde o tempo é didivido em duas partes iguais:
uma dedicada à oração e outra a todas as demais atividades: comer, dormir, trabalhar... Nesta
atitude, pode-se desempenhar bem a missão de "contemplata aliis tradere" (levar aos outros as
coisas contempladas na meditação). Percebe-se aqui a influênciada filosofia platônica, para quem o
mundo das idéias é o determinante. Como para os gregos, para os beneditinos o ideal do homem
perfeito é aquele que não se envolve com a realidade histórica, sempre ambígua e materializada. A
finalidade latrêutica da vida faz esquecer a dimensão de militância do Reino, enquanto se tenta criar
uma nova realidade "ao lado" da realidade história. Parece que a história da salvação não consegue
se articular com a história humana.
2.3 Expressões de Espiritualidade
História da Espiritualidade -
9
l. A influência dos povos nórdicos fez com que certos ritos fossem revestidos de cristianismo
como as bênçãos às casas, às lavouras, aos instrumentos de trabalho... O sentido das bênçãos no
Antigo Testamento era muito diverso. Crescem de importância os exorcismos para expulsar os maus
espíritos, os atos de consagração, as promessas etc, o que revela uma mentalidade permeada de
"espiritismos" e outras concepções pagãs da vida.
2. Ligada à consciência de pecado e à busca de estar sob o beneplácido de Deus com as bênçãos
começa a se intensificar a peregrinação, especialmente aos lugares santos, com o lucrar de
indulgências. Caminhar para estes lugares era considerado uma excelente forma de penitência e de
sentir a presença de Deus. A peregrinação tem caráter antropológico. Aqui vem sendo buscada
como forma penitencial.
3. Por outro lado, o povo vai se valendo de testemunhos de santos, pois a hierarquia eclesiástica
vive muito atenta à doutrina e à estrutura da religião. À medida em que se avança no tempo as
hagiografias vão se multiplicando e recebendo um caráter mais edificante do que histórico. As
igrejas se enfeitam de vitrais e imagens de santos, de tal modo que a figura de Cristo e a reflexão
sobre o projeto de Deus expresso na Bíblia acaba minimizado. O povo vive se espelhando no
exemplo de vida dos santos, formando assim uma compreensão individualizada de caminhada
espiritual. A dimensão mais coletiva e comunitária de um projeto de vida com face também
social como a Bíblia propõe acaba sendo esquecida e substituída pela prática de devoções
individuais, reforçadas pelo próprio clero (intenções de missa,bênçãos...). Pelo alto número de
analfabetos, pelo alto custo dos livros e pelo pouco interesse do clero, o povo acaba por
desconhecer a Sagrada Escritura. Contempla mais os vitrais e imagens do que o projeto de
Deus e o testemunho do povo bíblico.
4.
“Extremamente importante para entendermos a fé medieval é o papel dos santos como intercessores
dos homens junto a Deus. Os santos são incontáveis e aparecem em todo o lugar. Cada província, cada
diocese reivindica para si dezenas deles. Quer na vida corrente, quer na geografia, tudo está sob a proteção
destes homens de Deus. Já ao nascer recebe o nome de um “padroeiro” que deve venerar com predileção.
Para conservar a saúde deve-se confiar mais nos santos do que nos médicos. Todos sabem que Santa
Genoveva cura as febres, que Santa Apolônia e São Brás curam os males da garganta e que Santo Humberto
preserva da raiva. No trabalho cotidiano, o camponês invoca são Médard para salvar a vinha da geada,
Santo Antâo para proteger os porcos e muitos outros para muitas outras necessidades. O pedreiro reza ao
apóstolo São Tomé, o cardador de lã a São Brás, o curtidor a São Bartolomeu, o sapateiro a São Crispim, e
todo o viajante sabe que não pode partir tranquilo sem a proteção do Arcanjo São Miguel ou de São João
Hospitaleiro. Até as estações do ano estão colocadas sob a proteção dos santos: São Marcos e São Jorge
são invocados na primavera. São João no verão e no inverno, São Martinho no outono, e tantos e tantos
outros...Entre todos os santos a Virgem Maria ocupa lugar de preeminência. Entre os monges cistercienses,
tempos depois, divulga-se o costume, proveniente da cavalaria e do amor cortês, de chamar a Maria de
„Nossa Senhora‟”.
4) Outra expressão ideológica, e ao mesmo tempo prática, da espiritualidade é o verticalismo
individualista, vivido sobretudo como "obediência" reforçado pela filosofia platônica (só tem valor
o transcendente), pelo sistema sócio-político feudalista (extremamente hierarquizado) e pela
espiritualidade beneditina (o "monacus" faz sua caminhada sozinho, acompanhado somente pelo
"abade"). O cristão vivia sua fé de modo individualizado, submisso à hierarquia, o quanto possível
alheio à história, depreciando a materialidade. Como se percebe, começa a se solidificar os vícios
do individualismo, do intimismo, do apego ao mediador (santo) mais que a Deus, a acreditar mais
em ritos do que numa postura existencial e global de seguimento. Ao mesmo tempo, vive-se uma
História da Espiritualidade - 10
mentalidade mágica e piedosa dos sacramentos, olvidando-se sua dimensão mais comunitária e
comprometedora com a prática de Jesus Cristo, o grande sacramento do Pai.
5) “A penitência na Idade Média. Na Igreja Antiga havia grande rigor quanto à recepção do
sacramento da penitência. Pecados capitais (idolatria, adultério e homicídio) eram, normalmente, perdoados
uma só vez (irrepetibilidade) e após longas e penosas penitências, que podiam durar anos! Havia igualmente
diversas classes de pecadores.
A partir do século VI, no início do período medieval, houve mudanças notáveis na práxis penitencial.
Divulga-se o costume de conceder a reconciliação todas as vezes que os fiéis a pedem. Serão sobretudo os
monges irlandeses que propagarão esta repetibilidade do sacramento.
Quais são as características dessa nova forma de penitência ? O pecador se apresenta ao sacerdote e
acusa seus pecados; este lhe impõe a penitência conforme o pecado confessado. Para cada pecado ou tipo de
pecados corresponde uma determinada penitência, segundo as diversas tarifas previamente estabelecidas. Daí
o nome de confissão tarifada. O pecador se retira depois da acusação e da imposição da penitência, cumpre a
penitência e retorna para receber a absolvição. Contudo, quando ao penitente se torna penoso voltar, a
absolvição podia ser dada imediatamente após a imposição da penitência, sob a condição de que o penitente a
cumprisse posteriormente. Nesta condição a absolvição é dada mediante a imposição das mãos, acompanhada
pelas devidas orações, mas normalmente sem a participação nem a presença da comunidade.
Para que os confessores estivessem em condição de assegurar penas adequadas aos pecadores foram
redigidas listas de tarifas, chamadas “livros penitenciais”. Havia uma grande série deles, que se
multiplicavam de acordo com as diversas regiões. O conjunto destes livros penitenciais mostra que a
penitência tarifada conserva, numa medida notável, o antigo rigor das obras penitenciais. Consistiam em
mortificações, mais ou menos duras, como mortificações corporais, vigílias, orações prolongadas, jejum e
abstinências de diversos tipos e gêneros. A duração destas penitências podia ser de um dia, de semanas, meses
e até anos. As penas impostas para cada pecado se somavam e assim, segundo o número e a gravidade dos
pecados, podiam totalizar um período de penitências que ultrapassava a duração da vida. Para evitar estes
casos, os próprios livros penitenciais estavam providos de tabelas de “comutações”, “compensações” ou
“redenções” das penas longas por outras mais breves e mais rígidas. Por outro lado, admitiu-se também na
penitência a “compositio” ou “redemptio” das obras penitenciais mediante uma soma de dinheiro. Outro meio
de comutação é o de mandar celebrar um determinado número de missas em vez da penitência prescrita. E
para que não houvesse problema de cálculo, os próprios livros já traziam indicada a tarifa correspondente em
missas. Como o clero paroquial não bastava para atender a tantos pedidos de missas penitenciais, foram
ordenados os monges, que então passaram a celebrar as missas penitenciais em série. Por conta própria, cada
sacerdote não podia celebrar mais de sete missas por dia. Mas quando necessário, por insistência dos fiéis,
podia celebrar até 20 missas diárias. Ainda havia outro tipo de comutação, a saber, de pagar a um outro para
executar a penitência imposta. Esta prática era justificada pelo texto de São Paulo “Carreguem os fardos uns
dos outros...” (Gl 6,2). Com isso frequentemente os pobres e os monges fariam penitência no lugar dos
pecadores ricos.
Ainda algumas curiosidades sobre o sacramento da reconciliação, na Idade Média. É só a partir do
século XIII que aparece o confessionário. Com isso a imposição das mãos é substituída pelo gesto da mão
levantada. O IV Concílio de Latrão (1215) prescreve a obrigatoriedade da confissão anual para todos que
pecaram gravemente”
III A baixa Idade Média (l073-l545)
O fato referência para a clausura deste período, para nosso propósito é a abertura do
concílio de Trento, que durou 20 anos e fora convocado precípuamente para contornar a crise do
rompimento do luteranismo. Ele teve uma influência decisiva na caminhada de fé do povo cristão.
Comumente, este período iria apenas até a queda de Constantinopla, mais ou menos 70 anos antes.
Isto é apenas referencial e relativo.
História da Espiritualidade - 11
3.l Contexto histórico
l. São os séculos turbulentos da passagem do sistema feudal para o capitalismo mercantilista. Uma
certa elite se expande à custa de uma marginalização de parcela significativa da população.
2. Com o alargamento do comércio intercontimental se alargam os horizontes de vida e começam a
surgir no cenário novos interlocutores e novos referenciais culturais.. No final do período são
descobertas novas civilizações em continentes ignotos (América do Sul, do Norte, Central e Caribe,
Índia). A bússula começa a exercer papel preponderante. É descoberta a imprensa com Guttenberg
e a pólvora, revolucionando o sistema bélico.
3. A par da autonomia das ciências está também o surgimento das universidades, embora
controladas pela Igreja. Em l300 já eram l6. E com elas presenciamos a elaboração das grandes
sumas (Tomás de Aquino, Alberto Magno, Duns Scotus) que passam a se constituir como que em
manuais de teologia a ser ensinada em todas as escolas (a escolástica). Por outro lado, o direito
canônico neste período passa a exercer um papel decisivo na teologia e na Igreja. Já no l050
encontramos a primeira edição de uma espécie de códico, as descretais de Graciano, que consagram
a divisão dos cristãos em duas classes: os perfeitos (heirarquia e religiosos) e os (leigos) “que
podem se salvar se ...”
4. Mais pelo final do período encontramos a época do renascimento na arte e na literatura, e se
expressa também como gótico na pintura e sobretudo na arquitetura e, na filosofia, como
humanismo. O antropocentrismo começa a impor-se como esquema de pensamento e passa
a substituir o transcendentalismo imperante. São aspectos que dão todo um novo colorido à
cosmovisão vigente até então. Este desabrochar vem precedido da lenta descoberta do lado humano
também da cristologia: o presépio, a valorização da Paixão, a presença de Maria (Bernardo de
Claraval), inclusive a espiritualidade do amor humano no Cântico dos Cânticos. Jesus Cristo é visto
na ótica humano-psicológica, especialmente em relação ao sofrimento. (Ainda hoje este maneira de
ver a Cristo marca fortemente a espiritualidade do povo simples). Os cristãos vivem um Cristo
sofredor, enquanto a Igreja oficial propõe o Cristo pantocrator.
5. A Igreja institucional passa por crises fortes: acontece o exílio de Avinhão (l309-l377 - chamado
de “Cativeiro babilônico dos papas) e o cisma do Ocidente (l378-l4l7, com a existência de dois ou
até, nos últimos 8 anos, de três papas simultaneamente). Já em l23l a Igreja criara a Inquisição para
frear as heresias, confiando-a aos dominicanos. Em 1252 autoriza o emprego da tortura.
“No decorrer dos anos o conceito de herege é de tal forma ampliado que grupos inteiros caem sob a
suspeita e atuação da inquisição, tais como sacrílegos, blasfemadores, homossexuais, feiticeiros, alquimistas,
bruxas, judeus etc.
As penas eram variáveis, conforme o gênero de delito e iam desde a confiscação dos bens,
encarceramento, duras penitências com identificação pública, até a morte na foqueira.
Eis um exemplo de penas imposto a um grupo de 750 pessoas suspeitas de simpatia com os judeus na
Espanha, julgadas em 12 de fevereiro de l486: Realizar procissões durante seis sextas-feiras, disciplinando o
corpo com açoites de fibras de cânhamo, as costas nuas e os pés descalços e a cabeça descoberta. Fazer isto
em jejum completo. Pelo resto da vida não poderiam mais exercer funções públicas como as de governador,
magistrado, vereador ou jurado, nem ser escrivães públicos ou mensageiros. Aqueles que estivessem
exercendo tais funções deviam deixá-las. Não poderiam igualmente ser emprestadores de dinheiro, lojistas,
merceeiros, ou ocupar qualquer cargo oficial. E não deviam usar roupa de seda ou escarlate ou mesmo de
outras cores, nem ouro, prata, pérolas, ou qualquer jóia. Nem podiam apresentar-se como testemunhas. E se
forem relapsos, seriam condenados à fogueira”
História da Espiritualidade - 12
Intestinamente vive ela grandes disputas com os movimentos pauperísticos que lhe
condenam o aburguesamento, a acomodação diante da missão de evangelizar (o clero é qual "cão
mudo"). A Reforma Gregoriana veio, com um êxito muito relativo, para tentar pôr a casa em
ordem. Neste empenho, a Igreja se vale muito mais do direito do que de uma real conversão dos
costumes. Faz sua política de aproximação e de favorecimento do povo com a concessão de
indulgências, por alguns depois utilizadas como simonia. Tudo isso gera um ambiente de
insatisfação e descontentamento entre o povo que deseja uma vivência mais autêntica da fé que se
torna o húmus do protestantismo a eclodir oficialmente em l5l7, com a publicação das 95 teses de
Witenberg.
6. Neste ambiente de efervescência intra-eclesial e de busca sincera de um retorno ao Evangelho,
surgem inúmeros movimentos pauperísticos laicais como os humilhados, os valdenses, os cátaros,
os albigenses, os pobres católicos, os patarinos, os arnaldistas, os amalricianos, os ortliebários, os
luciferianos,os stedíngios, os irmãos do novo Espírito, os apostólicos... De um modo geral criticam
a encarnação histórica concreta da Igreja como instituição política forte, burocrática, rica, distante
do povo e atrelada à busca do poder. Proclamam o retorno à Igreja apostólica e pobre. Muitos não
aceitam os sacramentos. Arvoram-se em autênticos seguidores dos apóstolos. Negam a validade
dos sacramentos administrados pelo clero indigno. Condenam a simonia, a fácil concessão de
indulgências, o comércio de relíquias etc.
7. Surgem também os movimentos de reforma dentro da Vida Religiosa. Em geral são
entendidos como um retorno à intuição inicial da Igreja, passando a viver na periferia da instituição.
Aparecem os Cartuxos (com S. Bruno +1101), os Cistercienses (com S. Bernardo de Claraval
+1153), as Ordens Mendicantes (Agostinianos, Carmelitas, Dominicanos, Franciscanos, Servos de
Maria, Mercedários) e outras congregações que retomam alguma dimensão esquecida da
comunidade dos crentes do tempo apostólico. Joaquim de Fiore (1130-1202) havia predito um novo
período na Igreja, o tempo do Espírito Santo, em substituição ao tempo de Cristo. Este tempo novo
criaria uma Igreja do Espírito, sem estruturas, pobre e livre, da qual a Igreja histórica seria apenas
uma passagem transitória para a plenitude da Igreja espiritual. Os mendicantes (e os franciscanos
particularmente) foram identificados como o despontar desta nova era eclesial.
8. Em relação ainda à Igreja institucional encontramos todo o movimento e a política muito
ambígua das cruzadas (iniciadas a pedido do Concílio de Clermont, em 1095). Se os muçulmanos
realmente representam um perigo para a Igreja, o modo como são combatidos não condiz com o
Evangelho. A Igreja organiza cruzadas, precedidas por campanhas econômicas, de oração, de
concessão de indulgências, levando a milhares e milhares de pessoas simples se candidatarem para a
luta, a fim de obter indulgência e na esperança de retornar com algum espólio. São Bernardo de
Claraval foi um grande propagador das cruzadas, enquanto que Francisco de Assis, as denunciou,
propondo um método pacífico de evangelização destes povos, cuja cultura e fé respeita
profundamente.
9. No final deste período temos o eclodir da Reforma Protestante. Em 1517 são promulgadas as
95 teses nas quais além de criticar a prática indevida das indulgências expressa um novo enfoque da
fé . Este movimento teve consequências muito sérias na Igreja que passou a reagir mais apologética
que evangélicamente. Proibiu o uso da Bíblia para os católicos, incentivava a rivalidade com os
protestantes, vistos como pervertidos etc. No entanto, o luteranismo, nas suas várias facções,
propunha o retorno à valorização da Palavra de Deus (sola Scriptura, como reação a uma teologia
por demais desvinculada da Bíblia) e a uma organização eclesial menos hierarquizada. Defende uma
igualdade comum dos batizados onde o ministério hierárquico é tão somente um serviço. O poder
História da Espiritualidade - 13
continuaria na assembléia do povo. Consequentemente, a Igreja (hierárquica) não é mediadora da
salvação, não podendo conceder indulgências (ponto crucial do conflito).
Ao monge agostiniano Martinho Lutero, seguem João Cavino, na Suiça e depois, Henrique
VIII na Inglaterra, originando, respectivamente o calvinismo e a Igreja Anglicana.
Martinho LUTERO: Como se deve orar
Passo-lhe adiante minha experiência com a oração e a maneira como costumo praticá-la. Nosso
Senhor Deus conceda a você e a todos os demais que o possam fazer melhor, amém.
Em primeiro lugar: Às vezes sinto que, por causa de ocupações ou pensamento alheios, fiquei frio ou
perdi a vontade de orar. Pois a carne e o diabo estão constantemente dificultando e impedindo a oração.
Nestes momentos pego meu pequeno saltério, vou para o meu quarto ou, conforme o dia e a hora, para a
igreja, em meio às pessoas. E passo a falar para mim mesmo, oralmente, os dez mandamentos, o credo e,
dependendo da minha disponibilidade de tempo, diversas citações de Cristo, de Paulo ou dos Salmos, tudo
coisas que as fazem as crianças.
Por isso, é bom que de manhã cedo, se faça da oração a primeira atividade, e, de noite, a última. E
cuide-se muito bem desses pensamento falsos e enganosos que dizem: espera um pouco, daqui a uma hora vou
orar, antes ainda tenho que resolver isto ou aquilo. Porque com estes pensamentos a gente passa da oração
para os afazeres que prendem e envolvem a gente a ponto de não mais sair oração o dia inteiro.
Estou vendo que não é uma boa oração se alguém se esquece do que falou. Porque uma oração bem
feita considera cuidadosamente todas as palavras e pensamentos do início ao fim da oração.
Assim um barbeiro aplicado e competente, tem que voltar seu pensamento, sua atenção e seus olhos,
com muita precisão, para a navalha e os cabelos, e não se descuidar, não sabendo o que esteja afiando ou
cortando. Mas se ele, ao mesmo tempo, quisesse fazer muita conversa ou ficar pensando ou olhando muita
coisa, certamente iria cortar fora a boca ou o nariz, e até o pescoço. Dessa forma, cada coisa que é para ser
bem feita, quer ter a pessoa inteira, com todos os seus sentidos e membros. Quem pensa em muita coisa, não
pensa em nada, também não faz nada direito. Tanto mais a oração precisa ter o coração uno, por inteiro e
exclusivo, se é que deva ser uma boa oração”
10. O final deste período pressionado pela pesada estrutura eclesial e política que inviabilizava
qualquer tentativa de renovação e ao mesmo tempo alentada pela descoberta de novos continentes
onde se pode sonhar com o nascimento de uma nova sociedade e uma nova Igreja, nascem as
UTOPIAS. São famosas as de Erasmo de Rotterdam (1467-1536) e a de Tomás More (+ 1535).
Este último acaba exercendo grande influência sobre os missionários franciscanos que aportam no
México. A utopia, no momento, foi uma forma de superar a profunda crise em que a Igreja e a
sociedade estavam mergulhados.
Os povos da península ibérica sentem-se como “novo povo messiânico”, com a missão
recebida de Deus de “dilatar o Reino de Cristo no mundo”. Em l455 começar a ser implantado, com
a bula Romanus Pontifex de Nicolau I a instituição do PADROADO, isto é, o governo do Estado
(Rei) sobre a Igreja em seus países. É em força deste padroado que a evangelização do Brasil
integrava o projeto colonizador. A implantação e consolidação do cristianismo aqui dependia
diretamente dos interesses da coroa. A religião servia como instrumento legalizador da política
colonial imperialista da Metrópole. E para esta o “deus verdadeiro é o ouro” como denunciou o
cacique Hatuey, na ilha de Cuba, em 1511-1512.
3.2 Mística de Sustentação
l. "Fazei Penitência". O fato do laicato ter sido completamente alijado do ministério de
coordenação da Igreja, somado a mais outros fatores ideológicos, reforçou no povo a forte
consciência de ser pecador, indigno do sagrado e, portanto, de estar longe de Deus. Vive ele uma
intensa busca de "conquistar o céu" mediante penitências corporais. Surgem muitas Ordens e
História da Espiritualidade - 14
movimentos eclesiais de "penitentes". Respira-se uma atmosfera de fazer penitência, entendida como
retorno à proposta de Jesus Cristo por uns e como mortificação corporal pela grande maioria.
O “fazer penitência” era vivido mais que como sincero desejo de conversão, como um medo
de ser condenado eternamente. A teologia vigente ressaltava a ameaça dos castigos divinos, a ação
forte dos demônios, a presença constante do pecado e, sobretudo, a precariedade da vida, a certeza
da morte, a severidade do julgamente. Deus, acima de tudo, é juiz!
“Vida breve, morte certa;
Mas da morte a hora é incerta.
Todos, só uma alma temos:
E, perdida, o que faremos ?
Certo é o tempo que agora tens;
Vem a morte, e mais não tens.
Deus te vê, te julgará:
Céu ou inferno te caberá
2. Retorno às fontes. Como que desacreditado da Igreja institucional, o povo vive a busca sincera
de viver "o evangelho de Jesus Cristo na sua originalidade", diferentemente do que na prática vinha
sendo apresentado pelo modo de ser da Igreja institucional. O meio concreto para quase todos é a
pobreza, a itinerância e a pregação do Reino como os apóstolos viveram.
3. Mística afetiva. Enquanto as reflexões da igreja institucional eram muito racionais, com grande
preocupação com a verdade e com a glória de Cristo, muitas correntes e grupos religiosos
começam a se ligar a uma espiritualidade mais prática e sentimental: a compaixão pela humanidade e
pelos sofrimentos de Cristo e dos pobres. Põem o amor como centro de sua prática e o
conhecimento passa a ser encarado até com desconfiança. Amor à natureza, ao próximo, aos
marginalizados e excluídos de todo o tipo etc.
3.3 Expressões de Espiritualidade.
l. Às peregrinações se junta a busca frenética de indulgências. A Igreja passa a tabelar orações,
peregrinações, esmolas, sacramentos com tantos dias, meses e anos de indulgência. Por isso às vezes
as indulgências acabam sendo compradas ou concedidas em troca de favores políticos ou
econômicos. O povo desperta para uma febre em garantir a própria salvação, aumentando com isso
o individualismo na vivência da fé.
“As peregrinações medievais atraem multidões. Os três locais preferidos são: a Terra Santa
(Palestina), Roma e São Tiago de Compostela, a Espanha. As viagens muitas vezes, assumem um caráter
penitencial ou realizam-se em cumprimento de uma promessa. Sâo caminhadas longas e perigosas. Gastamse, por ex., nove meses para chegar a Compostela, um pouco menos para atingie Roma, mas um tempo bem
maior (às vezes três anos) para tocar o Santo Sepulcro, em Jerusalém”.
2. Junto com isso presencia-se a busca de relíquias. As cruzadas oportunizam o ingresso de
inúmeras relíquias, autênticas ou de origem suspeita, do Oriente Médio. Mesmo com relação aos
santos desencadeia-se uma verdadeira luta por relíquias, a ponto de disputar os cadáveres de
pessoas que morriam com alguma fama de santidade. Essas são vistas como garantia da bênção e
do favorecimento da divindade. Eram felizes as igrejas (ou famílias) que conseguissem possuir
alguma relíguia.
História da Espiritualidade - 15
“Na vivência da fé, as relíquias ocupam um lugar de destaque. O homem medieval deseja
ardentemente ter à sua disposição “um pedaço da realidade sobrenatural”. Desenvolve-se um verdadeiro
comércio em torno das relíquias, cuja procedência frequentemente é duvidosa. Há até evidente falsificações.
Assim, por exemplo, venera-se em três lugares a cabeça de São João Batista; chega-se a 33 o número de
cravos da Santa Cruz. Alguns se orgulham de terem visto e tocado”o fruto proibido do paraíso terrestre”, ou
as espigas da narração evangélica (Mc 2,23). Coisas absurdas são expostas à devoção dos fiéis, tais como
os fios de barba de São Pedro ou penas das asas do glorioso arcanjo São Miguel.
Sabe-se, através de textos, que foram propostas à veneração dos fiéis um relicário contento pão
mastigado por Jesus, a esponja que foi levada aos lábios na cruz, os cestos da multiplicação dos pães, os
panos com que foi envolvido no presépio, as gotas do suor que verteu no horto do Getsêmani e até um dos
seus dentes...!
3. As relíquias, por outro lado, despertaram a devoção popular para a dimensão humana de
Jesus. Começam assim a ganhar espaço na espiritualidade popular a devoção ao Natal com a
popularização dos presépios (São Francisco), à Via Sacra, a Maria (através do Rosário divulgado
por São Bernardo de Claraval - l090-ll53 - do "lembrai-vos", do "Angelus", ao Corpo de Deus
(festa instituída em l246), ao nome de Jesus (São Bernardino de Sena - + l444 - percorre a Europa,
fazendo pregações sobre esta devoção) etc.
A devoção à humanidade de Cristo levou a ver o Cristo como uma pobre criatura sofredora
e a considerar os pobres como seus representantes entre os homens (pauperes Christi) e seus
intercessores diante de Deus. Isto levará à multiplicação de fundações de clérigos e leigos, em favor
dos pobres, doentes, leprosos e peregrinos. Novas ordens surgem (templários, hospitaleiros,
mendicantes...). São criadas as esmolarias. E Avinhão, o papa distribuia em 1320 67 000 pães por
semana. Vinte e quatro anos depoisjá distribuia 32 000 rações de comida por dia. Por volta de 1250
havia na Europa 19 000 leprosários. Os pobres eram 35 a 40% da população.
Devoção à humanidade de Cristo
“No segundo milênio cristão, o Cristo se torna mais próximo da condição humana e de suas alegrias e
sofrimentos. A imagem do Crucificado se espalha pelas igrejas, muitas vezes marcada por um cruel realismo.
O povo “gosta” de contemplar a “deposição”, o Senhor morto nos braços de Maria, sua Mãe, nossa Senhora
da Piedade. O povo revive a paixão de Jesus na semana santa, na via-sacra e em outras representações ao
vivo de sua caminhada dolorosa rumo ao Calvário. O povo venera até as mínimas lembranças da paixão de
Jesus: os pregos, o martelo, os espinhos...E esta devoção é alimentada nos séculos XI-XIV e mesmo depois
pelas peregrinações à Terra Santa e Cruzadas.
Mas não é apenas a paixão de Jesus que suscita a devoção do povo. A sua infância também atrai. O
seu nascimento também é recordado na festa do Natal e pelo presépio, que São Francisco de Assis contribuiu
a popularizar e difundir. Daí nasce ainda a veneração pela Sagrada Família, por São José, pelo Menino Jesus.
Muitos mistérios da vida de Jesus são celebrados e revividos junto com os de Maria. Mais tarde, no fim da
Idade Média, espalha-se entre os leigos de certa cultura, nas cidades, uma nova espiritualidade - a devoção
moderna - que tem como eixo a imitação de Cristo e dará origem a uma obra prima da espiritualidade: o livro
da Imitação de Cristo (século XV). Em suma, o homem Jesus se torna mais próximo do povo cristão e o
seguimento de Jesus - ou ao menos a contemplação de sua vida - se torna o caminho que introduz o povo no
coração da fé cristã e do mistério de Deus”.
A Eucaristia começa a ser mais ostentada do que “recebida em comunhão”. Acaba, de modo
geral, desligada de sua origem e intenção para ser vivida periférica e como que magicamente. Os
dados abaixo ilustram a realidade:
História da Espiritualidade - 16
Devoção à Eucaristia
“Para conduzir o povo ao centro do mistério de Cristo, a Igreja tem ainda o caminho do culto à
Eucaristia, considerada sobretudo como “Corpo de Deus”, como milagre permanente que transforma as
espécies eucarístias no Corpo de Cristo.
A celebração eucarística estava no centro da vida das comunidades cristãs antigas, dos primeiros
séculos. A liturgia romana, centrada ao redor da Eucaristia, continuou a se desenvolver admiravelmente
durante os primeiros séculos da Idade Média (VI-IX). Nesta época fixam-se, substancialmente, os formulários
das missas e as grandes festas do ano litúrgico, que permanecerão até a recente reforma.
Um grande esforço de renovação litúrgica foi realizado pelos monges de Cluny. Enquanto isso, uma
mudança de mentalidade estava acontecendo, talvez como reação às idéias de Berengário (+ 1088), acentua-se
na eucaristia o aspecto da “presença real”. Olha-se menos o conjunto da liturgia eucarística como sacrifício e
como comunhão eclesial. Olha-se mais para o “resultado” da ação eucarística. Olha-se para a hóstia
consagrada, enquanto nela Cristo está realmente presente. Dos santos havia relíquias. De Cristo, há a
presença viva na hóstia. E a Igreja se serve de formas do antigo culto das relíquias para desenvolver agora o
culto do Santíssimo Sacramento. As custódias de vidro, feitas para mostrar aos fiéis as relíquias de mártires
e santos, agora se tornam o “ostensório”, para expor a hóstia consagrada à adoração dos fiéis.
Em 1264 é instituída a festa do Corpo de Deus; a partir do final do século XIV, a procissão de
“Corpus Christi” se torna a mais importante do ano, a que reune a cidade inteira. Ela continua mais solene
ainda na Idade Barroca, tanto na Europa como no Barsil.
Com a crescente devoção ao Santíssimo Sacramento não aumentou, contudo, a frequência da
comunhão eucarística. A comunhão na missa, por parte dos leigos, é um fato raro nos séculos XI-XV. O
povo pensa que basta “ver” a hóstia. Crenças populares reforçam esta convicção: quem vê a hóstia na missa
da manhã não morrerá naquele dia, não ficará cego, terá comida, terá os pecados perdoados, etc. Assim,
chega-se a dar importância à elevação da hóstia, para que todos possam vê-la, mesmo de longe. A elevação
da hóstia, generalizada desde o início do século XIII, torna-se o momento alto da missa. Alguns dos fiéis, que
não podem assistir a toda a missa, entram na igreja só para ver a elevação. Outros até correm de igreja em
igreja para ver várias elevações no mesmo dia.
A devoção ao Santíssimo Sacramento e à presença real de Cristo na eucaristia leva também a
valorizar muito mais a “reserva eucarística”. Na Igreja Antiga, conservavam-se as espécies eucarísticas< para
distribui-las aos fiéis, sobretudo aos doentes, fora da missa. Mas o local da “reserva” era escondido na
sacristia ou em outro local fora da igreja.
Aos poucos difunde-se o costume de conservar as hóstias consagradas em lugar visível para os fiéis.
No início usam-se pequenos armários ou cofres, em forma de pomba suspensa sobre o altar, de torre etc.
Mais tarde (século XVII) aparece o tabernáculo em altar lateral e, depois do Concílio de Trento, no altar
central.. No século XV, no auge da devoção que quer “ver” a hóstia, usam-se tabernáculos com grade que
permitem ver o interno e, às vezes, altas torres dentro da própria igreja. Depois entra o costume da exposição
do Santíssimo Sacramento, o das “Quarenta Horas” de adoração (1537), a adoração perpétua e - há pouco
mais de 100 anos - os primeiros congressos eucarísticos (Lille, l873)
O rosário tem uma história de gestação muito interessante. Construída a muitas mãos e
responde a um modo de rezar caracteristicamente popular: poucas idéias, simplicidade, calcada em
testemunhos bíblicos, etc. Assemelha-se à oração do peregrino russo: a repetição prolongada de
alguma fórmula, acompanhada de momentos de contemplação de fatos da vida de Jesus.
História do Rosário
“A história da oração do rosário é muito complexa, pois nela convergem todas as formas de piedade
mariana da Idade Média. Encontramos, desde o século XII, a repetição da Ave Maria ligada à celebração das
Cinco Alegrias de Maria: Anunciação, Natividade, Ressurreição, Ascensão e Assunção.
História da Espiritualidade - 17
Passa-se, a seguir,às Sete Alegrias e, pouco a pouco, às Quinze Alegrias que igualam o Saltério de 15
dezenas (150 salmos = 150 Ave-Marias).
No século XIII e XIV, Franciscanos e Servitas difundiram a devoção as Cinco Dores, depois às Sete
Dores de Maria. Na mesma época, uma reação contra uma tendência demasiado histórica introduz o culto às
sete Dores Celestes de Maria.
No século XIV, o vocábulo Rosário designava um florilégio, uma coleção de pensamentos ou de
pequenos poemas. Chamou-se então, rosários de Maria a séries (50, 150...) de estrofes rimadas em Ave,
depois àa repetição da Ave-Maria evangélica. Finalmente, o século XV vê nascer dois rosários marianos
ainda hoje praticados: a) o Rosário de Domingos, o cartucho, + 1410) como uma série de de 150 AveMarias, às quais se acrescentam outras tantas cláusulas que evocam episódios da vida de Cristo e da Virgem
Maria: e o “bendito o fruto do vosso ventre”; b) O novo Saltério da Virgem Maria que Alain de la Roche,
dominicano, começou a pregar em Donai, em l464. Parece que a ele se deve a estrutura das três séries de
mistérios: gozosos, dolorosos e gloriosos, correspondendo aos aspectos fundamentias do mistério de Cristo:
encarnação,Paixão e Ressurreição.
A “espiritualidade do rosário”: Na encíclica “Marialis Cultus” Paulo VI recolhendo o ensinamento
tradicional dos papas, diz que o rosário é um “resumo de todo o Evangelho”, uma “oração evangélica
centrada no mistério da Encarnação redentora”, onde a repetição litânica da Ave-Maria se torna um louvor
incessante de Cristo (MC 46).
A sua recitação calma e atenta faz dele uma “oração contempletiva, onde se meditam os mistérios da
vida do Senhor, vistos através do coração daquela que mais perto esteve do Senhor” (MC 47). Rezar o
rosário é contemplar com Maria o Senhor encarnado, crucificado e ressuscitado para a nossa salvação.
São igualmente deste período da história orações muito célebres como: “Lauda Sion” (Hino
eucarístico, de Tomás de Aquino), “Stabat Mater” (Hino a Nossa Senhora das Dores, de Jacopone
de Todi) , “Dies Irae”( Hino para os ofícios de defuntos, de Tomás de Celano), o “Tantum Ergo”, o
“Pange Lingua” e o “Salutaris Hostia”, os três de Tomás de Aquino, bem como a “Salve Regina”
que ainda rezamos hoje em dia (de autoria do monge Henrique Contratus de Reichmann) e outro
igual, porém em versos:
“Salve Rainha, Mãe de Deus, és Senhora, nossa Mãe,
nossa doçura, nossa luz, doce Virgem Maria.
Nós a ti clamamos, filhos exilados,
Nós a ti voltamos nosso olhar confiante.
Volta para nós, ó Mãe, teu semblante de amor,
Dá-nos teu Jesus, ó Mãe, quando a noite passar.
Salve Rainha, Mãe de Deus, é auxílio do cristão,
Ó Mãe clemente, Mãe piedosa, doce Virgem Maria.
4. Encontramos nesta época a famosa "escola de São Vitor" de Paris. Seus expoentes, Hugo
(1096-114l) e Ricardo († 1173). Colocando o amor como centro da vivência cristã, tentam
sistematizar os seis graus da contemplação, como itinerário para a comunhão com Deus. Falam de
uma contemplação ao mesmo tempo especulativa e afetiva, intelectual e práxica. Daí sua enorme
influência, sobretudo no clero. Aliás, os Cônegos Regulares de São Vitor (Paris) são sacerdotes
diocesanos que passam a ter vida comum, emitem os votos, obedecem a uma Regra (Santo
Agostinho) com a finalidade de melhor desempenhar seu ministério pastoral. São ordens com a
mesma espiritualidade dos premonstratenses, dos lateranenses e dos crucígeros.
5. Segue muito presente no povo a "fuga mundi" vista como sinônimo de ingresso numa ordem
religiosa ou num movimento. A garantia de salvação era muito mais evidente quando se pertencesse
a alguma Ordem, fazendo parte do "número dos perfeitos". As Ordens Religiosas tinham milhares
História da Espiritualidade - 18
de membros . Atraíam o povo quer pela nova proposta de espiritualidade, quer por se apresentarem
como um jeito concreto de seguimento de Cristo defendido pela Igreja. Deve-se reconhecer a
enorme influência exercida na população pelas espiritualidades: carmelita, dominicana, franciscana,
mariana e de outros movimentos eclesiais/Ordens como os templários, os hospitalários, etc. Sua
novidade é que não mais "fogem" do mundo, mas se inserem no mundo. Fica aqui muito clara a
identificação do segundo período da VR: o da periferia, em substituição ao do deserto. O
decisivo e o novo agora é voltar-se para os pobres, sobretudo, para aqueles que estão na margem
da vida social.
No século XIII, com a escolástica, ocorreu também todo um esforço de sistematização da
mística. Santo Tomás e São Boaventura são expoentes. Para eles Deus está imanente na pessoa.
Sua busca coincide com a interiorização. O auge da expressão da mística é o ênstase,(não o êxtase
como dirá Santa Tereza) isto é, o entrar dentro de si, despojar-se cada vez mais de si mesmo e
neste despojamento conseguir não só a liberdade do corpo, mas a completa nudez do espírito (S.
Tomás).
6. Como ilustração de uma espiritualidade afetiva, ainda não sistematizada, fazemos aqui uma
tentativa de sintetizar a proposta da espiritualidade franciscana, muito próxima às demais acima
mencionadas.. Por serem clássicos, mantemos os quatro pontos:
a) Fraternidade: É a meta, o método e a utopia do Movimento. Viver a fraternidade com
todas as pessoas, desde as mais excluídas (leproso e muçulmano), até com a natureza e os animais
passando pelas pessoas mais próximas, pelos pobres,... O fundamento desta compreensão está na
descoberta de que Deus é o Pai de tudo e de todos, muito mais do que fonte de verdades. E porque
todos somos irmãos, há que existir uma igualdade fundamental entre todas as pessoas. Não há mais
espaço para a hierarquia. O superior é um ministro e servo. Todos os irmãos devem participar de
todas as decisões, pois o Espírito Santo pousa igualmente sobre sábios e ignorantes. Desta postura
nasce a cortesia.
b) Minoridade. Ela abrange necessariamente a pobreza (= não apropriação). Mas não
coincide. A apropriação é o pecado original para o franciscano. A expropriação é o caminho para a
fraternidade (ser pobre para ser fraterno). A minoridade não coincide apenas com uma atitude
interna; faz-se necessário que obtenha uma configuração social. "Estar contentes quando se está
entre os pobres, os aleijados, os leprosos e mendigos da rua" ('Rnb 9,3). Recompensados são os
que se deslocam geograficamente para lá e assumem também o lugar social do pobre, lutando pela
sua libertação (Rnb 9,ll-l2). Esta é a fonte da verdadeira alegria (= ser leve) e da jovialidade, da
ternura e da compaixão. A razão desta opção é o seguimento do Cristo que se fez irmão menor,
viveu como excluído entre os marginalizados para resgatar-lhes a dignidade de filhos e irmãos.
c) Missionariedade. O franciscano, como o cristão que segue o exemplo de Jesus de
Nazaré, vive para os outros. Sua preocupação maior é a salvação dos outros e não a própria. E
trata-se de uma salvação global, da pessoa inteira, mais que garantir o céu. Faz-se evangelização
pelo exemplo, em primeiro lugar. Vale dizer: no trabalho cotidiano, vivendo junto aos outros uma
vida rica de sentido, iluminada pelos valores do Evangelho. São tarefas pastorais cuidar dos doentes
e leprosos, estabelecer relações democráticas de poder, assumir culturas diferentes (a islâmica),
propor uma economia de partilha que preserve a fraternidade, a favoreça e lhe dê razões teológicas
(Rnb l7,l7-20) etc. O campo de evangelização do franciscano vai muito além do campo
específicamente religioso. Atinge sobretudo a pessoa, toda a pessoa, mormente a que está na
periferia.
d) Contemplação. O franciscano propõe-se viver em permanente comunhão com Deus,
conduzido pelo Espírito Santo, a quem quer estar em "estado de obediência permanente". O
decisivo é amar como Jesus amou, pois a comunhão não vem estabelecida pelo conhecimento das
História da Espiritualidade - 19
coisas espirituais (os demônios conhecem muito mais) e sim pela prática do amor. No amor
concreto se adquire a capacidade de "ver" a Deus nos pobres e leprosos em quem se espelha o rosto
de Jesus de Nazaré que "nasceu por nós à beira do caminho", nos infiéis condenados como
personificações do mal (Jesus foi condenado como blasfemo) e na criaturas da natureza que
expressam sempre algo daquele que é a Beleza e a bondade por excelência. Neste sentido, todo o
universo se torna sacramento de Deus. O Evangelho vem endossado como norma susprema e o
presépio, a cruz e a eucaristia lugares referenciais da presença humilde e encarnada do Senhor Jesus.
CÂNTICO DO SOL
São Francisco de Assis, 1225-1226.
Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória, a honra e toda a bênção.
Só a ti, Altíssimo, são devidos;
E homem algum é digno de Te mencionar.
Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o senhor irmão sol,
Que faz o dia e pelo qual nos iluminas.
E ele é belo e radiante, com grande esplendor,
De ti , Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a lua e as estrelas,
No céu as formaste claras, preciosas e belas
Louvado sejas, meu Senhor, por nosso irmão o vento,
Pelo ar, pelas nuvens ou céu sereno e todo o tempo.
Pelo qual às tuas criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a água,
Que é muito útil e humilde e preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, por nosso irmão o fogo.
Pelo qual iluminas a noite.
E ele é belo e alegre, vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a mãe terra,
Que nos sustenta e governa,
E produz frutos diversos com coloridas flores e erva.
Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor.
E suportam enfermidades e tribulações.
Bem-aventurados os que sustentam a paz
Que por ti Altíssimo serão coroados.
Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a morte corporal,
Da qual homem algum pode escapar.
Ai daqueles que morrem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar conformes à tua santíssima vontade,
Pois a morte segunda não lhes fará mal.
Louvai e bendizei ao meu Senhor, rendei-lhe graças e servi-O com grande humildade
7. Mística Renana ou a mística do norte. Inspirando-se também em movimentos laicais do sul, a
mística renana abriu as portas para uma participação maior na vida religiosa dos leigos. É dentro
desta corrente que surgem os beguinos e as beguinas, em fins do século XII. Propõem-se a viver os
ideiais das Ordens e movimentos mendicantes e pauperísticos numa forma de vida menos rígida, em
pobreza e no serviço ao povo de Deus. Simultaneamente era uma reação ao sistema feudal que a
Igreja institucional adotara. Embora o movimento dos beguinos e beguinas tenha perdurado por
séculos, muitos dos seus membros passaram a pertencer às Ordens Terceiras dos dominicanos e
franciscanos. São discípulos e ao mesmo tempo expoentes desta mística, o Mestre Eckhart(l260l327), Henrique Suso, João Taulero e João Ruysbroeck...
História da Espiritualidade - 20
Esta corrente de espiritualidade também foi chamada de "devotio moderna", da qual o livro
básico é a "imitação de Cristo" (geralmente atribuída a Tomás de Kempis, 1391-1471), cuja
influência perdura até o último quarto deste século atual. A meta última do cristão para a Imitação
de Cristo é a conformidade e a configuração a Cristo. Tornou-se um verdadeiro manual de
cabeceira de espiritualidade, provavelmente o livro mais lido depois da Bíblia. O livro contém quatro
partes(livros):
a) a primeira trata do desprezo do mundo e desconfiança do saber racionalista ("cada vez que vou
entre os homens volto menos homem").
b) Na segunda parte se aborda a iniciação a Cristo ou sua identificação que passa pelo controle dos
instintos e despojamento dos bens sensíveis.
c) No terceiro segmento se trata do cultivo da amizade com Cristo, mediante um relacionamento
vivo e imediato.
d) No último, desenvolve o amor que impele ao itinerário ascensional que se alimenta e fortalece da
Eucaristia.. Esta "devotio moderna" incentiva uma vivência da fé mais intimista e até certo ponto
psicológica, por reação à teologia oficial que era essencialmente racionalista e estratosférica. Porém
não sem fundamento teológico, tanto que, em muitos aspectos, válida para nosso contexto atual.
Leonardo Boff traduziu um livro do Mestre Eckhart, tanta é a validade que vê nela.
Imitação de Cristo (Livro I, cap. 24)
“Em todas as coisas olha o fim, e de que sorte estarás diante do severo Juíz a quem nada é oculto,
que não se deixa aplacar com dadivas, nem aceita desculpas, mas que julgará segundo a justiça. Ó misérrimo
e insensato pecador! Que responderás a Deus, que conhece todos os teus crimes, se, às vezes, te amedronta
até o olhar de um homem irado ? Porque não te acautelas para o dia do juízo, quando ninguém poderá ser
desculpado ou defendido por outrem, mas cada um terá assaz que fazer por si ? Agora o teu trabalho é
frutuoso, o teu pranto aceito, o teu gemer ouvido, satisfatória a tua contrição.
Muito ligada a esta corrente está o Movimento leigo chamdo de “Fratres de Vita
Communis”. Em 1515 tinham 41 casas. Dividem seu tempo entre leitura (da Bíblia), oração e
trabalho. Vivem uma espiritualidade cristocêntrica, de caráter subjetivo e afetivo.
8. A renovação espiritual na Espanha. Na virada do século XV para o XVI a Espanha viveu uma
intensificação espiritual quase inusitada. Tendo como uma das colunas deste processo o Cardeal
Ximenes de Cisneros (l437-l5l7), a renovação abrangeu estes aspectos principais: o gosto pela
Sagrada Escritura; a comunhão frequente e o zelo missionário de levar a fé cristã a outros
continentes. Esta mística gerou levas e levas de missionários para as Américas, com grande ardor
de evangelização, porém incapazes de valorar as formas de religiosidade encontradas entre os
nativos. Esta foi a grande lacuna e o pecado histórico dos missionários vindos às Américas e
Caribe..
IV Época Moderna (l545 - l962)
Estende-se este período do Concílio de Trento, o concílio da Contra-Reforma até o Concílio
Vaticano II que abre "as portas e janelas da Igreja para a entrada do ar novo da renovação da
Igreja", segundo o papa João XXIII que o convocou.
4.1 Contexto histórico
l. Com a emancipação das ciências surgem correntes filosófico-ideológicas que combatem
abertamente as propostas da Igreja ou ao menos se distanciam muito de seu pensar, como o
idealismo, o absolutismo, o racionalismo, o positivismo... Nestas correntes a fé quase não tem
História da Espiritualidade - 21
espaço. Há como que uma revolução copernicana no pensar. A revolução francesa (l789...) talvez
seja a expressão mais eloqüente desta autonomia rebelde das ciências em relação à teologia cristã.
Substitui o crucifixo das igrejas pela deusa razão, símbolo de que ela agora é o novo e máximo
critério de verdade. O que não pode ser sustentado pelo argumento racional não tem mais razão de
ser. O mundo começa a se organizar em torno da ciência e não mais a partir e em função da religião
e da fé. O mundo deixa de ser cosmocêntrico para ser antropocêntrico desde a renascença. Por
exemplo: na capela Sistina do Vaticano pintada por Miguel Ângelo o homem aparece com a
mesma exuberância que Deus, igualmente majestoso. Só que o homem está totalmente nu e Deus
está envolto. O movimento de arco que faz o corpo do homem exprime a tensão entre o corpo que
é atraído pela terra e o dedo, a mão, o toque que não pode perder a energia divina nem o vínculo
com o céu.
2. A evangelização dos novos países. Em l455 o Papa Nicolau I escreve a bula “Romanus
Pontifex” autorizando o Rei de Portugal a coordenar o trabalho de evangelização nos novos países.
Portugal, sobretudo, sentia-se como “novo povo messiânico com a missão divina de “dilatar a fé até
as extremidades da terra”. É a mentalidade da cruzada da fé. Antônio Vieira falava em “povo
sagrado” ou “povo escolhido por Deus”. Semelhante autorização é dada à Espanha alguns anos
mais tarde. Deste modo, cabia aos reis a apresentação de candidatos ao episcopado e às paróquias,
bem como zelar pela construção e conservação dos edifícios do culto, a remuneração do clero e
pregação da fé cristã (para isso eram cobrados dízimos), através do envio de missionários que, antes
de partir para a colônia, prestavam juramento de fidelidade ao Rei. Por isso sua atuação era muito
ambígua. Os índios acabaram dizimados, pois “o deus dos cristãos é o ouro” disse o cacique
Hatuey, na atual ilha de Cuba.
Por força do padroado, a evangelização fazia parte do projeto colonizador. As levas e levas
de missionários trabalhavam em primeiro lugar em prol do rei; depois pelo bem das pessoas.
Dentre os poucos que conseguiram manter uma atitude profética podem ser citados: Bartolomeu de
las Casas OP, Frei Montesinos OP, Frei Pedro de Córdoba OFM, Frei Bernardino de Sahagún
OFM; Frei Jerônimo Mendieta OFM, Frei Alonso de Molina OFM e uns poucos outros.
Neste mesmo sentido vale a pena ter presenta a Instrução da recém criada “Propaganda
Fide”, com data de 10.11.1659:
“Não desempenhem nenhum zelo, não apresentem nenhum argumento para convencer esses povos de
mudar seus ritos, costumes ou modos de ser, quando estes não estão em evidente contradição com nossa
religião e moral. Que haveria de mais absurdo do que transportar para os chineses a França, a Itália ou
qualquer outro país da Europa ? Não se introduzam neles nossos países, mas sim nossa fé. Fé esta que não
rejeita nem fere ritos ou usos de nenhum povo, enquanto não sejam detestáveis. Ao contrário, promove sua
conservação e os protege. stimar, amar e privilegias as tradições de seus países, e a própria pátria como tal,
está, por assim dizer, gravado na natureza de todos os homens. Por isso surge tanto afastamento e ódio,
quando há mudanças forças em costumes próprios de uma nação.
O que aconteceria se, uma vez abolidos, são sbustituídos por elementos trazidos de fora? Por isso
não façam comparações entre os usos desses povos e os da Europa, mas procurem adaptar-se. Admirem e
louvem o que merece louvor. Quanto àquilo que não é digno disso (...) evitem emitir juízos ou, pelo menos,
nada condenem de maneira irrefletiva e excessiva. No que diz respeito a costumes francamente maus, convém
antes desaprová-los com um simples meneio de cabeça ou atitude de silêncio, do que com expressões verbais.
Aguarde-se o momento propício de maior disposição das almas para abraças a verdade. E verificar-se-á que
tais usos desaparecerão naturalmente”
História da Espiritualidade - 22
3. Com o evoluir da emancipação das ciências, houve um período de “descristianização da
Europa”, cujo epicentro estava localizado na França, momento da Revoluação Francesa. A Igreja é
mal vista. Os mais exaltados querem eliminá-la como infame. Tenta-se suprimir o domingo,
introduzindo a semana de dez dias, a eliminação do casamento religioso e a abolição do celibato dos
padres. É promovido o “culto da razão”, com a exaltação da liberdade (estátua), em substituição às
“supersticiosas e antiquadas missas”. Uma religião natural deveria ocupar o lugar da “religião
sobrenatural, vista como irracional. Há uma ofensiva enorme contra a religião cristã e sobretudo
contra a Igreja-instituição.
4. Por outro lado, a Igreja ao invés de compreender e avaliar-se diante desta crítica, radicaliza-se
sempre mais. Assume uma atitude fortemente conservadora. Em 1864, dez anos após a
proclamação do dogma da Imaculada, no mesmo dia e mês, vem editada a bula “Quanta Cura”, de
Pio IX, contendo um apêndice de 80 condenações de teses consideradas inaceitáveis para o católico,
classificadas em 4 grupos: as filosofias modernas, a ética leiga, as relações Igreja-Estado e a
liberdade de consciência, de culto, de imprensa e de opinião. A 80ª é sintomática para o teor de
todo o documento: “É absurdo afirmar que o Pontífice romano pode e deve conciliar-se e transigir
com o progresso, como liberalismo e com a civilização moderna”.
A postura conservadora da Igreja é uma característica de todo este período entre Trento e o
Vaticano II. A Igreja condenava sistematicamente os movimentos de independência nas
Américas. Considera-os todos como “rebeliões diabólicas” que causam “prejuízos terríveis e muito
graves”. São uma “funesta cizânia” de desordens, de sedições que o inimigo semeou. A revolta
contra a Espanha é vista como contra a própria Igreja. Leão XII em 1824 declara ilegítimas as
guerras de independência com a bula “Etsi jam diu”.
O conservadorismo da Igreja se manifestou ainda de modo vigoroso na luta para manter as
relações Igreja-Estado. De vários modos a Igreja desejava permanecer aliada ao Estado, como no
tempo da cristandade. “A democracia não pode ser obra de Deus”. A hierarquização da sociedade
com suas “desigualdades naturais”, tendo no vértice a sagrada monarquia, é o modelo ideal do
ordenamento sócio-político, porque promana diretamente do poder divino. Daqui decorrem dois
desdobramentos:
a) Um primeiro aspecto o desenvolvimento do galicanismo e o movimento ultramontanista que
defende o primado do papa e acaba aprovando em sessão muito tumultuada, embora apoiada pela
grandíssima maioria dos conciliares, a infalibilidade do papa, em 08.12.1869. Mas 50 bispos
abandonaram o concílio em protesto. Ao redor da figura do papa começa-se ainda maior
centralização na Igreja, de tal modo que os bispos em suas dioceses perderam, na prática, sua
autonomia.
b) Depois vem reforçado a aliança com o Estado. No Brasil, por exemplo, o imperador dominava
totalmente a Igreja. Ele nomeava os bispos, controlada a correspondência entre o episcopado e
Roma e vice-versa; tinha a supervisão dos seminários; as licenças para a admissão de candidatos à
VRConsagrada... Evidentemente que a missão de evangelizar ficou gravemente prejudicada. Em
reação a isso temos o movimento de romanização e a ação dos “bispos reformadores” como D.
Viçoso e D. Vital.
5. Não só no mundo das idéias houve mudanças. A sociedade conheceu transformações incríveis
com a implantação da civilização européia praticamente em todo o mundo. A revolução industrial
alterou completamente o "modus vivendi": trabalha-se até a exaustão, sem amparo social algum ...
E a Igreja não se fragava desta realidade. Somente pouco antes da metade do século passado, em
1839, ela começou a condenar, timidamente a escravidão, por exemplo. (Joaquim Nabuco
História da Espiritualidade - 23
entrevistou-se com Leão XIII em l888 pedindo o apoio do papa à luta anti-escravagista no Brasil.)
E no final do século começa a ir ao encontro dos pequenos e desprotegidos com a conhecida
encíclica Rerum Novarum (15.05.l891) que inaugurou uma nova era para a Igreja, com a defesa dos
direitos de dignidade humana do trabalho e de organização dos operários. O marxismo precedeu em
muito a Igreja com sua análise social da realidade e sua postura política.
6. Por outro lado, a Igreja ao longo destes séculos adotou prioritariamente uma postura de rejeição
ao novo e ao diferente. O Concilio de Trento (l545 - l563) assumiu uma atitude apologética muito
forte e uma política de centralização ainda mais contundente: cria catecismos, manuais, uma
estrutura hierárquica pesada em Roma. Quer preservar a ortodoxia a todo o custo. No Concílio
Vaticano I se condena o modernismo porque dispensa a fé, o liberalismo porque não leva em conta
a autoridade eclesial e o socialismo porque considera a Deus dispensável nesta luta pela
reorganização da sociedade. Aparece o famoso "Syllabus errorum" (l867) e depois se continua
incluindo obras e obras no "Index". Por outro lado, como reação de auto-afirmação se fermenta
intensamente a idéia da infabilidade do papa, até receber caráter dogmático no Concílio naquele
concílio. Mas eram vários séculos que esta questão retornava aos debates.
7. No entanto, no interior da Igreja, movidos pela ação do Espírito Santo, desencadeia-se um
verdadeiro surto de surgimento de Congregações Religiosas de caráter missionário. Em l50 anos
(l800 - l954) surgem l254 congregações de direito pontifício, (sem contar as de caráter diocesano,
em número também considerável) quase todas voltadas para problemas sociais (juventude, velhice,
doença, insanidade mental, educação, leprosos, órfãos, mães solteiras...) ou de desafios de fronteira
da Igreja (missões, evangelização de povos longínquos, de migrantes, etc.). Além do número de
congregações houve um incremento extraordinário de membros nas congregações em geral. Na
França, por exemplo, em 1815 são 30.000 religiosas; em 1861, 105.000; e em 1878 chegam a
135.000. Quase sem exceção, as novas famílias religiosas se situam num clima de “restauração”.
Não raras vezes o “modelo monástico”, restabelecido na época numa linha de “fidelidade à tradição,
serve como ponto de referência e fonte de inspiração”. Como diz Henrique Cristiano de Matos,
“não podemos minimamente colocar em dúvida a generosidades destes contingentes de homens e
mulheres consagrados. Exerceram na sociedade uma „função de suplência‟ de grande atualidade e
alcance social, exatamente onde o Estado se omitia. Assim, os religiosos e religiosas foram os
pioneiros de avanços sociais, hoje patrimônio comum dos países”.
Em relação à VR masculina, dois fatos chamam a atenção no século XIX: a crescente
clericalização e o fenômeno de “congregações inteeiramente laicais”.
4.2 Mística de sustentação
1. Mística da Salvação, própria e dos outros. Ainda que se comentasse a autonomia das ciências,
na prática para a pessoa se salvar havia um único caminho: A Igreja (nulla salus extra ecclesia).
Não apenas pertencer oficialmente a ela, mas também viver em filial obediência. Submissão às
orientações da Igreja era a nota básica da espiritualidade, não só popular, mas também clerical e da
vida religiosa. Estar na Igreja era o mandamento primeiro e básico para todo aquele que buscasse a
salvação. E para a grande maioria,"Roma locuta, causa finita". Vivia-se um medo muito grande de
condenação eterna. Isso funcionava também em relação a povos que não conheciam esta nossa fé.
Era natural tentar todos os meios parar levá-los à obediência da Igreja, inclusive os violentos.
Além do estar na Igreja para poder obter a salvação, esta era compreendida como algo que
se relacionava única e exclusivamente com a vida após a morte. Salvação significava céu. Inclusive
o sofrimento aqui poderia ajudar na conquista daquela. Grupos de padres missionários adotavam
História da Espiritualidade - 24
como lema o "salva tua alma", denotando destarte que de modo geral pouco se considerava a
dimensão social e comunitária da salvação. "Aprouve a Deus salvar-nos como povo" como afirma a
Lumen Gentium.
2. Como consequência da filosofia escolástica, o cristão devia se esmerar em fazer "obras de
piedade" para obter a salvação.
O processo de santificação era quantificado e vivido
individualmente por práticas de piedade e pelo cultivo das virtudes, vistas ordinariamente apenas
em relação aio combate das paixões e tendências desregradas, sem considerar o combate ao pecado
social e à construção da grande utopia do Reino. Aliás, a realidade sócio-histórica era pouco
considerada. A dimensão espiritual era vista como decisiva.
4.l Expressões de espiritualidade
l. Virtude da Obediência. O povo vive uma grande "obediência" no sentido de submissão à Igreja
institucional, devido a toda aquela ideologia que incutia medo da condenação eterna aos que se
rebelassem ou simplesmente não reverenciassem as posições doutrinárias ou as pessoas ligadas à
hierarquia eclesiástica. Daí, o povo fazia tudo quanto a Igreja recomendava: missa dominical,
confissão frequente (e sempre antes da comunhão), participação nos sacramentos, especialmente na
Eucaristia, etc. Além desse aspecto de obediência, o povo buscava ainda pertencer a alguma
corrente devocional, a algum movimento de Igreja para pertencer mais estreitamente a ela e mais
facilmente conseguir a salvação e a santificação.
2) Vida sacramental e devocional. Os sacramentos são muito participados, porém de forma
devocional ou legalista. O Batismo é recebido como condição de pertença oficial à Igreja e
sobretudo como condição de salvação e de poder receber os demais sacramentos. Mas não significa
o engajamento num projeto de vida calcado nos valores evangélicos, nem mesmo uma pertença a
uma comunidade organizada em função do amor, da celebração da fé e da evangelização. A
Eucaristia igualmente é buscada como meio de santificação pessoal, de receber graças... Não se
enfatiza o engajamento de vida no projeto de vida de Jesus e menos ainda a participação na sua
paixão, morte e ressurreição.
A par deste aspecto devocional dos sacramentos constata-se ainda a ausência quase
completa da Palavra de Deus. Devido à Reforma Protestante a Bíblia foi literalmente vedada ao
povo. Seu acesso era através da "História Sagrada" que induzia a uma compreensão ideológica,
perdendo por completa sua dimensão reinocêntrica que Jesus Cristo tanto priorizou.
Também o papel dos santos na espiritualidade enveredou pela trilha do devocional. Ocupam
um lugar de grande destaque na piedade popular. São invocados como intercessores de favores.
São buscados os mais poderosos, mais para o favorecimento pessoal do que como encarnações do
Evangelho de quem são visibilizações.
3. Virtudes isoladas e atos individuais Constata-se um divórcio claro entre prática de vida e fé. O
povo vive de atos de piedade, ainda que muito intensos e feitos com um alto grau de virtude e
heroismo. Mas carece totalmente da consciência da dimensão social da vida e do pecado. Então
tudo é vivido no interior da pessoa, num intimismo e num individualismo exagerados. Em relação
aos outros havia apenas o exemplo que se dava, bom ou mau. E a esses atos correspondia uma
espécie de santificação quantitativa, por acúmulo de graças.
Gostaria de reportar aqui um pequeno trecho da descrição da “vida de um simples” cristão,
de l874, na França. Ilustra bastante o universo religioso do povo simples:
História da Espiritualidade - 25
“Eu acreditava na existência de um Deus que tudo dirige, tais como o curso das estações, o aparecimento do
sol, da chuva, do gelo e do granizo. E como nosso trabalho no campo depende muito da temperatura, esforçava-me
por agradar a esse Senhor dos elementos e fonte de nossos interesses. Por isso não faltava às cerimônias religiosas
para pedir boa colheita. Igualmente observava cuidadosamente todas aquelas piedosas tradições em uso entre os
camponeses, nas diversas circunstâncias. Assim todo o ano ia à missa de ramos com uma grande braçada de busxo e
depois colocava pedacinhos deles atrás de todas as portas. Nestes mesmos lugares punha pequenas cruzes de vime,
bentas no mês de maio, os espinheiros das Rogações e os ramalhetes compostos de três variedades de erva de são
Roque, tida como proteção contra doenças dos animais. Assistia a procissão de São Marcos para obter os bens da
terra e depois participava da missa de Santo Atanásio, o celeste protetor contra o granizo. Aspergia sempre com água
benta os depósitos, antes de recolher a forragem. Iniciando o trabalho nos trigais, fazia o sinal da cruz com o primeiro
feixe. O mesmo gesto usava em relação às sementes e ao pão antes de parti-lo. Finalmente traçava, com o primeiro
leite após o nascimento da cria, o sinal da cruz sobre o dorso das vacas-mães. Não achava estranho acender um vela
quando trovejava forte. Eu tirava sempre o chapéu quando passava pelo cruzeiro das estradas. E pela manhã e à noite
fazia uma pequena oração. É verdade, praticava tudo isso por hábito como por querer contentar a Deus. Todo o
mundo agia assim e considerava todas estas coisas naturais...”
Hugo Fragoso fala do caráter da religiosidade no Brasil do século XIX:
“ Sob o controle da Igreja Hierárquica, nosso povo praticava os atos religiosos ordinários, ainda muito sob o
critério da lei e da obrigação. Daí a frequência à missa dominical ou aos sacramentos eram o cumprimento de uma
obrigação religiosa. Também em torno desta obrigação é que se situava o critério de „católico praticante‟.
Era porem nos atos de devoção que a alma religiosa do povo mais se manifestava: as santas missas, as festas
religiosas, as procissões, as novenas, o mês de Maria, o culto do Coração de Jesus. Em todos estes atos religiosos a
alma popular se expressava em duas atitudes justapostas: expiação e festa. O catolecismo do nosso povo era
profundamente marcado do um caráter penitencial. Este sentido de penitência era ainda mais acentuado por ocasião
dos grandes castigos de Deus: secas, epidemias, revoluções, calamidades públicas. A grande seca do nordeste de 1845
ou as epidemias de cólera morbus foram motivo de muitas procissões de penitência, de santas missões, de novenas a
São Sebastião, para defender da peste, fome e guerra.
O outro aspecto da manifestão da alma popular era a festa. Consideravam-se as festas religiosas
praticamente as únicas compatíveis com o sentido de vida cristã da maior parte do nosso povo religioso. As festas que
não fossem festas da Igreja passavam como se fossem festas mundanas. É bem verdade que não faltavam as críticas
dos acadêmicos pastorais, de que „todos os nossos templos... desgraçadamente vão se transformando pouco a pouco
em outros tantos teatros, em outros tantos pontos de distração na falta de outros divertimentos que chamem as
atenções do povo‟. Mas os nossos vigários do interior, os párocos de centros de devoção, mais mergulhados na
psicologia do povo,não somente toleravam, mas incentivam este aspecto festivo dos atos religiosos. (...)
Na família, o catolecismo popular continuava marcado pelos batizados dos filhos, pelo ensino das rezas às
crianças, pela primeira comunhão a que se dava então grande importância. (...) O que porém era bem característico
nas famílias tradicionais era a recitação coletiva do terço todos os dias, à noite, para a qual reuniam-se todos de casa
sem faltarem os próprios escravos, muitas vezes. Aos sábados recitava-se o ofício de nossa Senhora e nas segundas
feiras o ofício das almas, devoção que tinha extraordinária ressonância em nosso povo.
Nas comunidades ou nas famílias mais ampliadas, em que o padre raramente ou nunca aparecia, eram
comuns muitas vezes atos coletivos de religião...”
4. Entre as expressões de Espiritualidade particulares e de grupos específicos não podemos
deixar de mencionar:
a) A Companhia de Jesus Inácio de Loyola (l49l-l556) funda esta congregação (l534) cuja
espiritualidade se reporta no método à devoção moderna (exercícios espirituais e obediência quase
militar - miles Christi) e à mística da missão, entendida como propagação da fé.A idéia inicial que
presidiu ao nascimento da Companhia de Jesus é a de uma corporação de homens às ordens da
Igreja na pessoa do papa, generosamente pronta para qualquer obra da glória de Deus. A
obediência ao papa é, por isso, seu quarto voto. O apostolado dos jesuitas abrangia sobretudo
quatro frentes: os exercícios espirituais, para os orientadores de pessoas; a defesa da fé católica; as
missões “ad gentes”; e a educação e o ensino da juventude. Mais tarde assumem as congregações
leigas, entre as quais se destacam as congregações marianas.
História da Espiritualidade - 26
b) A Reforma Carmelita com Santa Tereza d'Ávila (l5l5-l582) e São João da Cruz (l542l59l). Os dois santos que desceram a detalhes profundíssimos na dinâmica da comunhão trinitária.
Santa Tereza escreve, entre outras obras, o "Castelo Interior" onde faz uma análise do itinerário
para o matrimônio espiritual. Propõe uma espiritualidade muito próximo à do "Cântido dos
Cânticos da Bíblia: Deus a pessoa vivem uma relação de apaixonados, um amor esponsal. Estes
dois santos são considerados mestres na oração contemplativa. São João é conhecido sobretudo
pelas obras Noite Escura e a Subida do Monte Carmelo.
Santa Tereza . “Castelo Interior”. VII Moradas. A Amizade com Deus:
“Digamos que a união é como se duas velas de cera se juntassem aos extremos, que toda a luz fosse
uma, ou que o pavio, a luz e a cera fosse tudo uma coisa só, mas depois podem apartar as duas velas e ficam
duas velas e o pavio de cera.
Aqui é como se caísse água num rio ou numa fonte, onde tudo se torna água e não se poderá dividir
ou apartar o que é água do rio ou do céu. Ou como se um pequeno rio entrasse no mar, não haverá meio de
os apartar, ou como se num pequeno aposento houvesse duas janelas pelas quais entrasse a luz. Ainda que
entre dividida, se faz uma só luz...”
c) A devoção mariana cresce sobretudo incentivada pelas inúmeras aparições de Nossa
Senhora, que começaram a ocorrer no século XVII. A partir daí elas foram se disseminando por
toda a Europa e outros continentes como as de Guadalupe no México. Além do surgimento dos
santuários como centros de peregrinação, muitas congregações se dedicam a divulgar sua presença e
benefícios. E devoções como o sábado de Maria e as festas marianas crescem em número com uma
rapidez extraordinária.
d) O quietismo. O quietismo (século XVII) é uma compreensão de espiritualidade segundo a
qual não se chega a Deus pelo esforço e sim unicamente pela graça de Deus. À medida que a pessoa
se abre à força de Deus, verdadeiro sujeito da ação mística, ocorre a transformação da pessoa e a
comunhão mística. Esta tendência espiritual foi influenciada pelo pensamento protestante que retém
a fé como caminho único de salvação.
e) A devoção ao Sagrado Coração de Jesus (nove primeiras sextas feiras do mês) recebe um
incremento enorme quer pelo psicologismo vindo ainda da "devotio moderna", quer pela revelação a
Santa Margarida Maria Alaquoque (†l690) e quer pela grande expansão obtida na França, país de
influente ascendência religiosa no século XIX, depois assumida no chamado "processo de
Romanização" em muitos países do mundo inclusive o Brasil.
V Linhas Emergentes e Dimensões da Espiritualidade
Contemporânea
A espiritualidade, sendo a força/presença de Deus na vida de uma pessoa ou de um povo
tem variadas formas de se expressar nesta realidade histórica, enquanto marchamos, sob o impulso
da esperança, para os novos céus e a nova terra. Consideramos aqui, em primeiro lugar, as grandes
linhas em que ela, hodiernamente, vem sendo entendida e buscada pelo povo. Depois olhamos para
as diversas dimensões que se constituem em dado obrigatório para a vivência da espiritualidade.
Segundo Estêvão di Fiores, coordenador do Dicionário de Espiritualidade publicado sob os
auspícios da Universidade Gregoriana de Roma são cinco as principais linhas emergentes da
Espiritualidade hoje. Vamos apenas mencionar:
História da Espiritualidade - 27
a) Espiritualidade como opão fundamental e horizonte significativo da existência. Trata-se de
saber se a vida merece ou não ser vivida, pois o homem moderno não se suporta vivendo sem
razões. A consciência de sua dignidade apela para o significado da vida. Ser religioso significa estar
apaixonadamente em busca dum sentido da vida e manter-se aberto às respostas que possam
emergir. Este tipo de espiritualidade possibilita a alguém vivê-la até com profundidade, mas sem se
ligar a uma comunidade concreta, como hoje em dia é muito comum França e na Europa.
b) Espiritualidade como experiência de Deus. Para um grande número de teólogos e filósofos, a
espiritualidade consiste na experiência de Deus. Pode ser a experiência cosmológica de Deus,
enquanto encantamento pela criação. Pode ser a experiência antropológica de Deus baseada na
relação de amor. Ou pode ser a experiência histórico-salvífica de Deus enquanto mistagogia da
salvação redenção como a Bíblia mostra. Sobretudo esta última modalidade merece apoio.
c) Espiritualidade como compromisso no mundo. O compromisso com a sociedade se torna o
sacramento do amor de Deus. E a salvação passa pelas mãos: "crer com as mãos". Valoriza
sobretudo o capítulo 25 do Evangelho de Mateus como referencial. Digamos que esta perspectiva é
parente próxima da espiritualidade da libertação.
d) Espiritualidade da Libertação. Sua vivência postula três atitudes básicas: a conversão ao
próximo oprimido, fruto do pecado social; a celebração histórica do mistério pascal de Jesus Cristo
e de tantos mártires, por vezes anônimos; e valorização da Bíblia lida em ótica libertadora (não
exclusiva). Nesta espiritualidade as virtudes cristãs, a dimensão eclesiológica da fé (Igreja,
sacramentos, os santos...) recebem uma conotação reinocêntrica..
e) Espiritualidade comunitária. Assentada sobre a nova concepção humana de pessoa enquanto nó
de relações, mais que "ultima solitudo entis". Esta corrente privilegia mais os momentos
comunitários de fé, as iniciativas conjuntas, convicta de que Deus nos salva como povo, mesmo sem
desconhecer a dimensão pessoal.
Estas tendências se interpenetram e complementam, sem perder sua característica básica.
Nenhuma de per si é completa. Todas têm seus pontos altamente significativos, bem como suas
lacunas. A própria espiritualidade da libertação ultimamente está valorando mais a dimensão afetiva
e pessoal, antes tempo totalmente olvidada.
Por outro lado, entre as principais dimensões que a espiritualidade deveria hoje expressar,
evidentemente além da dimensão de busca da comunhão com o Deus da vida na oração, Henrique
Cristiano José Matos elenca cinco:
a) Solidariedade. A solidariedade é expressão de nossa conversão. A solidariedade é a sintonia de
pessoas convertidas ao Evangelho que lutam, em comunhão, por transformar o coletivo. Porque, a
existência de pobres e excluídos é sempre um sinal da quebra da aliança de Deus, como evidencia o
livro do Deuteronômio (15, 7-11), a solidariedade se impõe como um dever. A solidariedade
articulada (ou política) se apresenta hoje como a melhor maneira de viver o mandamento do amor
ao próximo.
b) A luta não-violenta pela paz. A defesa e a promoção da vida humana se constituem num dever
para todos aqueles que vivem o seguimento de Cristo. A paz não é mera ausência de guerra, nem
História da Espiritualidade - 28
se reduz ao simples equilíbrio de forças, nem é resultado da opressão violenta. É antes obra da
justiça que restitui a dignidade a toda a criatura humana.
c) A Ecologia. A ecologia é um problema profundamente fraterno e religioso. Trata-se do bemestar e da sobrevivência dos homens criados pelo amor de Deus. Basicamente, a ecologia conclama
a todos os homens a uma nova maneira de pensar e de ser. Trata-se de superar o egoísmo, o
consumismo, a ganância de possuir mais a qualquer preço. Trata-se de ser escrupulosamente
preocupado em preservar e conservar o ar, a água, a flora, e a fauna que são elementos necessários
ao próximo. Trata-se de readquirir o carinhoso respeito e a contemplativa admiração das coisas da
natureza. Aqui São Francisco de Assis é o modelo.
d) Ecumenismo. É o modo de pensar, o estado de espírito, a preocupação e a solicitude para com
a humanidade que transcende as dimensões da Igreja. Seja o ecumenismo um impulso e dimensão
constante e sempre crescente, pois Cristo veio para formar um só rebanho... Seja o ecumenismo
buscado e vivido mais na prática do relacionamento direto e na busca de superar desafios da vida do
que na discussão de problemas teológicos, sempre infindáveis.
e) Libertação Integral. Esta acontecerá sob a influência determinante da dimensão espiritual do
viver, mas deverá alcançar o político, o econômico, o social, o cultural, o antropológico. A fome é
consequência do egoísmo. O Espírito não mudará a história, mas muda as pessoas para que
transforme a história.
Conclusão
Como tudo o que é humano, também a história da espiritualidade no seu desenvolvimento
está sujeita a aprofundamentos e a desvios ou deturpações condicionados por uma série de fatores
contextuais. Com a espiritualidade se constata que a proposta evangélica original vivida por Jesus
Cristo passou por sucessivas encarnações históricas que foram deixando marcas profundas, positivas
ou menos recomendáveis. Compete a nós, agentes de pastoral, saber discernir a energia vital que as
fez nascer da concreção histórica e sempre reconduzi-las ao seu lugar original.
Parece poder se afirmar que uma das tendências ou riscos que a espiritualidade sempre sofre
é o da constante manipulação do sagrado. É tremendamente duro e exigente permanecer na
abertura completa ao mistério divino, como Moisés a quem Deus revelou o nome de modo
enigmático: "Eu sou aquele que sou", aquele que está comprometido com vocês, que caminha com
vocês em busca de vida plena e aí aderir à proposta d'Ele. Por isso não se pode fazer imagens de
Deus. Ele não é manipulável. No entanto, ao longo da história a Igreja se preocupou muito com a
doutrina, com a definição dos dogmas. Mais do que com a ortopráxis. A Igreja caiu na tentação de
ir "quantificando os merecimentos" e de manipular o poder dos santos com as indulgências e
relíquias. A busca de uma segurança de salvação sempre foi uma tendência na Igreja. Este mais
forte a tendência de usar o sagrado em favor das pessoas do que auxiliar a pessoa a "entrar no
projeto de divino". A espiritualidade é sempre também um retorno "à imagem e semelhança" do
Criador.
A história das devoções quer aos santos, quer aos diversos aspectos do humano em Jesus
Cristo, de um modo geral foram se distanciando e criando um enorme hiato em relação ao projeto
do Reino que Jesus Cristo veio anunciar. As devoções como tal são legítimas quando vividas "ex
voto", "de voto", isto é, enquanto opções por viver a realidade para a qual apontam e sempre em
História da Espiritualidade - 29
sontonia com o Projeto de Deus. De modo que hoje se impõe um profundo trabalho de renovação
no sentido de devolver-lhes o espírito original. Por exemplo: a via sacra não pode ser somente uma
reflexão sobre os sofrimentos físicos de Jesus Cristo, dissociados da causa que os provocou: a
devoção ao Sagrado Coração de Jesus seja vivida como fonte para se imbuir os sentimentos e da
energia de amor que movia a pessoa de Cristo e não somente como garantia de ir ao céu, o que no
fundo é um egoísmo espiritual.
Por fim, convém reafirmar a necessidade de devolver à Palavra de Deus o seu devido lugar
como fonte da espiritualidade cristã. Pois anterior às diversas concreções históricas dos santos, dos
saramentos, das devoções todas está a Palavra de Deus que Ele revelou ao longo dos séculos e que
na plenitude dos tempos "se fez carne em Jesus Cristo". Ela seja o referencial por excelência da
caminhada na fé
Referências bibliográficas:
l. DE FIORES, S. e GOFFI, T. Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1989.
2. MATOS, H. C. J. - Curso de Espiritualidade Cristã para Leigos. Belo Horizonte (manuscrito)
Ed. O Lutador.
3._______ Caminhando pela História da Igreja. Vol. I, II e III. Belo Horizonte: O Lutador.
1996
4. VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental – séculos VIII a XIII. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1995.
5. MIRANDE, J Características marcantes nas etapas da Hist. da Espiritualidade. In: GRANDE
SINAL 1997/3 pg 313 - 324.
6. CODINA, Victor. Renascer para a Solidariedade. S. Paulo, Loyola, 1984.
7. MAROTO, D. de Pablo. Historia de la Espiritualidad Cristiana. Madrid, Editorial de la
Espiritualidad, 1990.
(Manuscrito para aulas)
Frei Aldir Crocoli