A China fala em 20 mortos, o Dalai Lama em 150. A violência de 14
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A China fala em 20 mortos, o Dalai Lama em 150. A violência de 14
DOSSIER Inesperada revolta dos tibetanos Polícia repele centenas de tibetanos que se ma A China fala em 20 mortos, o Dalai Lama em 150. A violência de 14 de Março em Lassa, capital do Tibete, continua por esclarecer, mas as suas ondas de choque fazem-se ainda sentir: há décadas que o problema do Tibete não ganhava tanta projecção internacional e, por outro lado, inesperadamente, o sucesso dos Jogos Olímpicos de Pequim, agendados para o próximo Verão, parece ameaçado texto Leonídio Paulo Ferreira* fotos Lusa FÁTIMA MISSIONÁRIA 16 ANO LIV | Maio de 2008 nifestam diante da embaixada chinesa em Kathmandu, Nepal Numa Lassa onde o número de chineses da etnia han não pára de aumentar, pondo em risco a sobrevivência da cultura tibetana, adivinhava-se desde há muito os ressentimentos mal dissimulados. Os protestos populares iniciaram-se a 10 de Março e tomaram proporções dramáticas a 14, quando tibetanos atacaram lojas de chineses, causando várias mortes, e a polícia retaliou disparando sobre os contestatários, deixando mais de uma centena de vítimas caídas nas ruas segundo vários relatos. Rapidamente, a situação se tornou uma revolta generalizada contra o domínio de Pequim sobre o Tibete, a mais grave desde que em 1950 as tropas de Mao Tsé-tung vieram “libertar” essa região. Aliás, os FÁTIMA MISSIONÁRIA 17 ANO LIV | Maio de 2008 protestos fizeram-se sentir mesmo em outras províncias chinesas, que outrora fizeram parte do Tibete histórico. Acusado pelos governantes comunistas chineses de estar a incentivar a revolta, o Dalai Lama, que vive no exílio, apelou já ao fim da violência e ameaçou mesmo demitir-se de líder espiritual e político dos tibetanos se os protestos não forem pací- DOSSIER ficos. Durante décadas, toda a luta política de Tenzin Gyatso pelo reconhecimento da especificidade cultural tibetana tem-se baseado numa mensagem de paz associada ao budismo, religião maioritária no chamado “tecto do mundo” desde o século VII. Aliás, a forma como a partir do exílio em Dharamsala, na Índia, tem defendido esse povo de pouco mais de dois milhões de pessoas valeu ao 14.º Dalai Lama o Prémio Nobel da Paz em 1989. Falso problema de soberania Decidida a manter a sua soberania sobre o Tibete, a China argumenta ter trazido a prosperidade económica a essa região e que os protestos são comandados pelo próprio Dalai Lama de modo a prejudicar a imagem da China em ano de Jogos Olímpicos. Na sua primeira declaração oficial sobre os acontecimentos de Lassa a 14 de Março, o presidente chinês, Hu Jintao, declarou a 12 de Abril: “O nosso conflito com o grupo do Dalai Lama não é um problema étnico, nem um problema religioso, nem um problema de direitos humanos. Trata-se de salvaguardar a nossa soberania nacional, de não dei- xar desagregar-se a pátria”. A China tem desde sempre acusado o Dalai Lama de ambicionar a independência do Tibete, um vasto território a Norte dos Himalaias, que viveu geralmente na órbita da China, mas que conheceu também longos períodos de autonomia total, como aconteceu entre 1911, data do fim da monarquia chinesa, e 1950, ano em que as tropas da recém-criada República Popular da China (proclamada por Mao a 1 de Outubro de 1949) avançaram sobre Lassa em nome da unidade nacional. Por seu lado, o líder tibetano assegura só desejar a preservação dos direitos culturais do seu povo, ameaçados pela chegada de cada vez mais colonos chineses, sobretudo a Lassa, pois no resto do Tibete mais de 90 por cento da população continua a ser autóctone. “O mundo inteiro sabe que o Dalai Lama não procura a independência ou a separação do Tibete”, declarou o Nobel da Paz a 13 de Abril durante uma visita aos Estados Unidos. Mancha nos Jogos Olímpicos Associado ao problema do Tibete, surgiu um movimento a favor do boicote dos Jogos Olímpicos de Pequim, tomando o exemplo da violência policial em Lassa como paradigmático do alegado desrespeito chinês pelos direitos humanos. Mas, se a ideia de boicote não parece recolher muitos adeptos (evitando uma repetição dos grandes boicotes políticos aos Jogos de Moscovo em 1980 e de Los Angeles em 1984), a verdade é que manifestantes pró-Tibete causaram problemas inéditos ao percurso mundial da tocha olímpica, sobretudo aquando da sua passagem por Londres, Paris e Los Angeles. E muitos líderes mundiais, querendo mostrar certo desagrado com a situação no Tibete, mas sem irem ao ponto de desafiarem a China, poderão faltar à cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, marcada para 8 de Agosto na capital chinesa. O que seria uma mancha num evento que o regime de Pequim quer usar para mostrar o enorme desenvolvimento económico do país (crescimento médio de 10 por cento ao ano desde o final dos anos 70), minimizando, por outro lado, as limitadas liberdades políticas existentes. * jornalista do Diário de Notícias Envolvido na bandeira do seu povo, um activista comemora o levantamento contra o poder chinês FÁTIMA MISSIONÁRIA 18 ANO LIV | Maio de 2008 Nobel da Paz vindo do tecto do mundo Para o mundo, Tenzin Gyatso tornou-se conhecido em 1989, quando recebeu o Prémio Nobel da Paz pela sua luta em defesa dos direitos culturais do povo tibetano. No entanto, desde 1937, quando tinha apenas dois anos, que a sua vida estava ligada intimamente à do Tibete. Um de nove filhos de um casal de camponeses chamava-se Lhamo Dhondrub e vivia na aldeia de Takster quando foi identificado como a reencarnação do 13.º Dalai Lama, recém-falecido. Levado para Lassa, em 1950 assumiu a liderança política e espiritual dos tibetanos na sua qualidade de 14.º Dalai Lama, um título que foi dado no século XVI pelos poderosos mongóis e que significa “Oceano de Sabedoria”. Nesse mesmo ano, os novos governantes comunistas da China enviaram um poderoso exército para “libertar” o Tibete, que nas décadas anteriores tinha vivido numa situação de independência graças às sucessivas guerras na China. Durante alguns anos, o Dalai Lama procurou um entendimento com o regime comunista sobre o futuro do seu povo e em 1956 chegou a encontrar-se com Mao Tsé- -Tung, mas em 1959 uma revolta popular em Lassa foi reprimida e Tenzin Gyatso fugiu para a Índia juntamente com uns 80 mil seguidores. Acolhido pelas autoridades indianas, o Dalai Lama criou um Governo e um Parlamento no exílio sedeados em Dha ramsala e a partir dessa cidade dos Himalaias tem procurado defender os tibetanos, que considera estarem a ser eliminados na sua própria terra. Viajante incansável, o Dalai Lama tem sido recebido pelos principais líderes políticos ocidentais e pelo próprio Papa, ao mesmo tempo que com a sua mensagem de paz conquista simpatias populares. Odiado pelos dirigentes chineses que o acusam de desejar a independência, o Dalai Lama responde que apenas quer uma larga autonomia para o Tibete e que aceita a soberania chinesa se Pequim travar a vinda de chineses Han para o chamado “Tecto do Mundo”, que se acentuou com a inauguração do caminho-de-fer- Dalai Lama, líder espiritual dos tibetanos, no exílio na Índia ro a ligar Lassa às províncias chinesas vizinhas. Em certos pontos, a ferrovia está acima de seis mil metros. Nas últimas semanas, devido ao clima de confrontos em Lassa entre tibetanos e chineses, O Dalai Lama tem ameaçado demitir-se das suas funções se a violência for o caminho para Dalai Lama tem ameaçado demitir-se das suas funções se a violência for o caminho para aqueles que dizem segui-lo FÁTIMA MISSIONÁRIA 19 ANO LIV | Maio de 2008 aqueles que dizem segui-lo. Ao mesmo tempo, esforça-se por assegurar que é favorável à realização dos Jogos Olímpicos de Pequim e que a defesa dos direitos dos tibetanos não deve passar por um confronto com a China. Adepto do despertar matinal (quatro da manhã), Tenzi Gyatso gosta de se proclamar “um simples monge budista, nem mais nem menos”, mas a revista americana “Time” já o considerou uma das cem personalidades mais influentes do mundo. DOSSIER Perguntas e respostas influência desproporcionada em relação ao seu número e de serem os principais beneficiários do desenvolvimento, enquanto ameaçam a identidade cultural da região. A abertura da linha de caminho-de-ferro entre Golmud e Lassa veio intensificar a chegada de han ao Tibete. Do que vive a economia do Tibete? Depende em grande parte da agricultura. As florestas e sobretudo as pastagens ocupam grande parte do território. Com um subsolo rico em minerais, a falta de uma rede de transporte tem dificultado a sua exploração. O turismo contribui para parte do orçamento. Qual a religião no Tibete? O budismo chegou à região no século VII e tornou-se religião de Estado. É de tal forma importante que o líder espiritual tibetano, o Dalai Lama, é também o seu líder político. Quem é o actual Dalai Lama? Tenzin Gyatso é o 14.º Dalai Lama. O líder espiritual tibetano foi forçado ao exílio pelas forças chinesas em 1959. Refugiado na Índia, em Dharamsala, foi aí que estabeleceu um Governo eleito pelos tibetanos no exílio. O Dalai Lama defende a independência do Tibete? Mulheres tibetanas nos arredores de um mosteiro budista nas montanhas da província de Gansu a 1.900 quilómetros de Pequim O que é o Tibete? Esta região dos Himalaias conhecida como “o tecto do mundo” e governada durante séculos alternadamente pelos imperadores chineses e mongóis e pelos Dalai Lama está integrada na República Popular da China desde 1950. A Região Autónoma do Tibete corresponde, contudo, apenas a metade do território do Tibete histórico. As restantes zonas foram integradas noutras províncias chinesas. Quem lá vive? A larga maioria (93 por cento) da população é tibetana, apesar da forte migração de chineses han, sobretudo para a capital, Lassa. Com uma grande extensão – 1,2 milhões de quilómetros quadrados – o Tibete tem apenas 2,6 milhões de habitantes (A China conta com 1300 milhões). Quais as consequências da migração de chineses han? Pequim garante que tem ajudado ao desenvolvimento económico da região. Números oficiais de 2003 garantem que o PIB é 28 vezes superior ao de 1978. Os tibetanos acusam os han de ter uma Não. O líder espiritual tibetano e Nobel da Paz em 1989 é apologista de uma autonomia alargada. O Dalai Lama tem mantido um contacto intermitente e indirecto com o regime comunista de Pequim. A tensão entre Pequim e Lassa foi reforçada pelo facto de discordarem sobre a identidade do Panchen Lama, a segunda figura mais importante para os tibetanos. O Dalai Lama acusa os chineses de terem feito desaparecer o menino que ele acredita ser a reencarnação do Panchen Lama para o substituir por uma criança que eles escolheram. Com um subsolo rico em minerais, a falta de uma rede de transporte tem dificultado a sua exploração. O turismo contribui para parte do orçamento FÁTIMA MISSIONÁRIA 20 ANO LIV | Maio de 2008 Um jesuíta português no Tibete Membro da Companhia de Jesus, e fluente em persa (língua de cultura e de comércio de grande parte da Ásia no século XVII), António de Andrade tinha 43 anos quando partiu de Agra, na Índia, para o Tibete. Nascido em Oleiros, na Beira Baixa, esse missionário português tornou-se em 1624 o primeiro europeu a entrar em contacto com os tibetanos, um povo budista que habita os vastos planaltos situados a norte da cordilheira dos Himalaias. Habituado ao contacto com outras culturas, pois desde 1600 que vivia na Índia, o padre Andrade descreveu com grande pormenor as terras e gentes que viu, sobretudo em Chaparangue, então capital do Tibete Ocidental: “Todos estes lamas vivem sem casar, e na verdade a fama de sua vida é mui boa; uns deles vivem em comunidade com superior, e seus mosteiros; outros, em suas casas particulares; todos porém de esmolas que pedem, e por mais, que alguns são rico; não deixam porém de as pedir e receber as que lhes dão; sua profissão é rezar grandes lendas”. Traduzido para várias línguas (desde o castelhano ao polaco), o relato de Antó- nio de Andrade seria durante mais de um século a maior fonte de informação no Ocidente sobre o Tibete. Além das suas opiniões sobre a vida dos monges budistas, as suas cartas falam também da aridez das terras, mas ao mesmo tempo da abundância que parecia marcar a vida do povo tibetano, pois “não faltava carne nem manteiga“. O jesuí ta beirão, que viajou acompanhado por outro sacerdote, Manuel Marques, fez ainda uma segunda viagem ao Tibete. Morreu em 1634. A política e os jogos olímpicos Quando o barão francês Pierre de Coubertin pensou em organizar os Jogos Olímpicos da época moderna, em 1896, um dos seus objectivos era unir os povos. Por isso criou um evento desportivo no qual o “importante não era vencer mas participar”. O que não imaginou foi que a política se atravessasse tantas vezes no caminho dos Jogos, como agora parece acontecer em relação à violência no Tibete e ao grande evento olímpico marcado para Agosto em Pequim. Começou logo com a suspensão durante a Primeira Guerra Mundial (que se repetiria na Segunda). Mas o episódio mais grave teve, sem dúvida, lugar em 1972 nos Jogos de Munique, quando um comando palestiniano sequestrou e acabou por Averi Brundage, do Comité Olímpico, presta homenagem aos atletas massacrados em Munique matar 11 atletas israelitas. Além do conflito israelo-palestiniano, a Guerra Fria também marcou a história dos Jogos através dos boicotes de 1980 e 1984. Os Estados Unidos e 61 outros países do Bloco Ocidental recusaram participar nos FÁTIMA MISSIONÁRIA 21 ANO LIV | Maio de 2008 Jogos de Moscovo em protesto contra a invasão soviética do Afeganistão, no ano anterior. Uma atitude que levou resposta, quatro anos depois, quando um grupo de países comunistas, liderados pela URSS, Cuba e Alemanha de Leste, boicotaram os Jogos de Los Angeles. O evento contou, contudo, com a presença da Roménia, aliada de Moscovo. Mas a história dos Jogos Olímpicos também já provou que participar pode ser a melhor forma de protesto. Se os Estados Unidos não tivessem enviado os seus atletas a Berlim, em 1936, o negro Jesse Owens nunca teria tido oportunidade de humilhar Adolf Hitler ao provar que corria mais do que os atletas arianos tão propagandeados pelos nazis.
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