clubbers - Editora E
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publicação da Pós-Graduação em Comunicação e Cultura v. 6, n. 2, agosto a dezembro de 2003 Revista ECO-PÓS é uma publicação semestral da Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ, dedicada à análise do papel e da dinâmica da comunicação na cultura contemporânea. Av. Pasteur, 250 - Campus da Praia Vermelha 22290-240 - Urca - Rio de Janeiro - RJ - Brasil Coordenadora da Pós-Graduação da ECO/UFRJ: Raquel Paiva Editor Chefe: Micael Herschmann - [email protected] Editor Executivo: João Freire Filho - [email protected] Conselho Editorial: Henrique Antoun, Brasil Liv Sovik, Brasil Muniz Sodré, Brasil Conselho Científico: Angela Prysthon, Brasil - Anibal Ford, Argentina - Antônio Albino Rubim, Brasil Antônio Fatorelli, Brasil - Antônio Fausto Neto, Brasil - Antonio Gutiérrez, Espanha Arlindo Machado, Brasil - Carlos Alberto M. Pereira, Brasil - Denilson Lopes, Brasil Denis de Moraes, Brasil - Fernando Andacht, Uruguai - George Yúdice, EUA - HenriPierre Jeudy, França - José Rabello, Portugal - Lorraine Leu, Inglaterra - Luciano Arcella, Itália - Marcio Tavares D’Amaral, Brasil - Milton José Pinto, Brasil - Mohammed Elhajji, Brasil - Nízia Villaça, Brasil - Rosana Reguillo, México - Sergio Dayrell Porto, Brasil - Stuart Hall, Inglaterra Design da capa: Paula Wienskoski Design do miolo: Cecília Castro Tradução: Eduardo Murad e Fernada Costa e Silva Revisão: Rejane Moreira Logotipo da Pós-Graduação: Márcia Cabral Imagens da capa e da pág.11: Grafites produzidos por artistas anônimos no muro do Jockey Clube do Rio de Janeiro. Equipe de apoio: Daniel Mattos Apoio: CPM - Central de Produção Multimídia Núcleo de Imprensa - ECO Data de circulação: 28 de dezembro de 2003 Tiragem: Aproximadamente 500 exemplares Essa Revista é comercializada na sua versão impressa e eletrônica pela E-Papers (www.epapers.com.br) e distribuída no Brasil e no exterior. Revista indexada pelo Qualis/CAPES. Revista Eco-Pós / UFRJ - Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação - Vol.6, n.2 (2003) - Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 2003 Publicação semestral ISSN 0104-6160 154 p. 1. Comunicação - Periódicos. 2. Cultura - Periódicos. I. Brasil, Universidade Federal do Rio de Janeiro CDD 302.2 6 v. 6, n. 2, ago-dez 2003 editorial ............................................................................................... 09 notas de conjuntura . Fernando Andacht – Sobre nossa paixão indicial de cada dia: entre o reality show e a imagem delatora ...................... 13 dossiê Mídia, Música (Pop)ular e Sociedade . Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita: a importância do gênero musical para a análise da música popular massiva ......................................................... Simone Pereira de Sá e Leonardo de Marchi - Notas para se pensar as relações entre Música e Tecnologias da Comunicação .................................................................... João Freire Filho e Micael Herschmann – Funk carioca: entre a condenação e a aclamação na mídia .............................. Ricardo Sabóia - Periferia eletrônica: clubbers e cybermanos na cidade de São Paulo ....................................... Denilson Lopes - Da música pop à música como paisagem .................................................................... Carolina Leão - A negociação manguebeat: cultura pop, mídia e periferia no Recife contemporâneo ............................. . 31 . . . . 47 60 73 86 95 entrevistas Sintonizando a música brasileira . Hermano Vianna – De olho nos ritmos urbanos ................... . Paulo César de Araújo – O autoritarismo na historiografia 113 da música popular brasileira .................................................. 119 portfólio Adbusters e o movimento do anticonsumismo . Zeka Araújo (Mauricio Lissowsky) – O Drama da lona ................... 129 resenhas . Márcio Souza Gonçalves – O fascinante universo dos DJs ............. 137 . Fábio Malini - A mimética globalização ................................ 140 resumos/abstracts ............................................................................. 145 7 8 A música produzida no Brasil e no mundo globalizado se apresenta, hoje, como uma das mais importantes expressões socioculturais, cruzando fronteiras e aproximando indivíduos e grupos sociais, reafirmando-se, cada vez mais, como uma das principais indústrias do entretenimento e da cultura. O notável incremento dos processos comunicacionais, especialmente interativos, e a crescente presença dos ritmos eletrônicos e das tecnologias digitais, ampliam o conjunto de questões que demandam a atenção, na atualidade, dos estudiosos da área de comunicação. Este número da Revista ECO-PÓS se propõe a apresentar, em seu núcleo temático, algumas das investigações a respeito do riquíssimo universo da música popular contemporânea, desenvolvidas em diferentes centros do país, ainda que com pouca visibilidade. Intitulado Mídia, Música (Pop)ular e Sociedade, nosso dossiê traz dois artigos de Simone Sá & Leonardo Marchi e Denílson Lopes que buscam, de perspectivas distintas, examinar a relação entre Comunicação e Música, hoje. Em seu texto, Sá & Marchi procuram contextualizar a abordagem que, em geral, é aplicada à música eletrônica, na análise de sua imbricação com diferentes mídias e a indústria da cultura; Lopes, por sua vez, tem como meta a reavaliação da música ambiente, à luz do conceito de “paisagem”. Além destes artigos, a seção conta, também, com participação de Jeder Janotti Jr. e Ricardo Sabóia, que, a partir de suas pesquisas sobre o metaleiros, clubbers e cybermanos, respectivamente, repensam a importância, nos processos de consumo, do conceito de “gênero musical” e de “agrupamentos urbanos”. João Freire Filho & Micael Herschmann, abordando outros aspectos da relação entre mídia e música, analisam as representações demonizadoras e glamourizadoras que gravitam em torno do funk carioca, continuamente sob os holofotes da mídia. E, finalmente, fechando a seção Dossiê, o artigo de Carolina Leão analisa a formação de uma cultura pop na periferia de Recife, que se constrói como discurso social e estético, a partir da geração manguebeat. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.9-11 9 ECO-PÓS oferece, ainda, a seus leitores, um ensaio do fotógrafo Zeka Araújo sobre o carnaval carioca e entrevistas realizadas com dois importantes pesquisadores da música popular brasileira: Hermano Vianna e Paulo César Araújo. Ambos, em seus depoimentos, reavaliam o papel da crítica e os cânones musicais vigentes. Acreditamos que as análises efetuadas pelos dois estudiosos – oriundos de distintas áreas acadêmicas (antropologia e história, respectivamente) – poderão enriquecer a bagagem daqueles pesquisadores do campo da comunicação interessados nas múltiplas articulações entre mídia, música e sociedade. Micael Herschmann e João Freire Filho Editores 10 Editorial ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.9-11 11 12 Data de recebimento do artigo: 01/10/2003 Data de aceitação do artigo: 08/11/2003 Sobre nossa paixão indicial de cada dia: entre o reality show e a imagem delatora Fernando Andacht Tudo começa com algo que não é um simulacro, nem uma notícia, nem uma construção social do nada, senão a pura e cega irrupção disso que resiste toda indiferença, de algo que colide frontalmente contra a completa inocência, contra a plácida e distraída normalidade coletiva de uma manhã qualquer. Refiro-me ao selvagem episódio do 11 de setembro de 2001, na cidade de Nova York. Sem dúvida, são incontáveis os ângulos desde os quais podemos abordar este assunto, passados mais de dois anos do ataque terrorista com que se inaugura o novo milênio ocidental e a cruzada contra o “eixo do mal” empreendida pelo governo do país afetado por esta violência. Elejo pensá-lo desde a conjuntura dos estudos de comunicação, do assim chamado campo comunicacional. Qual é a tarefa de um especialista em comunicação, de um membro dessa área do universo acadêmico? Será que um comunicólogo tem como função primordial averiguar com exatidão quantos olharam a imagem que se reiterou até a exaustão, durante esse dia interminável e os seguintes? Ou, pelo contrário, será a missão deste estudioso chegado um pouco tarde ao banquete das ciências sociais, dedicar-se a formular juízos categóricos, muito amplos, de vocação filosófica sobre o que implica a notícia deste evento para o mundo globalizado, para os governos e para os governados? Acaso deve encarregar-se este especialista de indagar sobre o que este acontecimento nos diz sobre as empresas de comunicação e sobre seu uso, manejo e o aproveitamento dessa informação tão atraente pelo seu poder revulsivo, como pelo seu efeito instrutivo, quase alegórico, em relação ao maior poder material nunca antes conseguido na terra e aos seus sangrentos limites? Este é um aspecto de minha abordagem: o que fazer com esse episodio brutal, enquanto feroz e enquanto real, inegável, muito além do que se opine ou se reflita sobre ele, desde esse particular lugar da reflexão e da escritura que se denomina a(s) ciência(s) da comunicação. UMA COMPARAÇÃO ALGO INVEROSSÍMIL Antes dessa data fatídica para a história contemporânea, o autor destas linhas tinha começado a pesquisar outro fenômeno inegável, que não só era (e é) real, senão que tem como seu principal objetivo a tematização da própria condição da realidade e da sua representação nos e pelos meios de comunicação, fundamentalmente na televisão. De um impacto muito potente na opinião pública, o reality show de confecção multinacional, ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29 13 marca Endemol, invadiu e conseguiu ocupar muitas horas nas emissoras da televisão aberta e da TV a cabo a um nível globalizador marcante. Sem o estrondo horroroso do ataque terrorista de 11 de setembro, mas com o barulho e a fúria provocado pelo notório desmoronamento dos últimos bastiões da privacidade e do decoro (mais ou menos) vigentes no âmbito midiático do ocidente, as versões locais - ainda que glocais talvez seja mais exato – da proposta interativa e provocadora, desde seu próprio nome, do Big Brother comoveram a intelectuais, a comunicólogos e, claro, ao multitudinário público convocado por este programa em quase todos os países onde se produziu e exibiu desde 1999. Comparar a modalidade de sentido do espetáculo que parece ter dado a razão às profecias mais sombrias da Escola de Frankfurt, por um lado, e a de alguns efeitos de sentido sociais e midiáticos do maior atentado terrorista do ainda recente século, por outro lado, não parece um empreendimento de todo razoável. Porém, no que segue, pretendo demonstrar que esta comparação – que, como toda analogia, supõe semelhanças e diferenças – nos permitirá avançar na compreensão de três elementos fundamentais para o estudo da comunicação: a) que propósito tem estudar a comunicação da perspectiva da academia, independentemente da teoria que se adote para fazê-lo; b) por que as diversas teorias da construção de sentido, ou da realidade, ou de tudo que nos rodeia, não constituem uma explicação satisfatória nem do mundo, nem das notícias, nem dos diversos espetáculos que nos chegam daquele; c) em que consiste a atual paixão indicial que domina tantas pessoas ávidas por receber signos do real, sejam os ditos signos especialmente formatados para consumo e entretenimento, sejam aqueles que chegam ainda quentes à tela, junto com o fragor e a violência de sua origem acidental, no mundo que está aí afora. Ao tentar responder sucintamente a estas três questões, este texto pretende ser um insumo a mais para avançar na discussão de algumas idéias que parecem ser aceitas já como naturais ou inevitáveis, e que, por isso mesmo, seria bom começar a criticar para aceitálas ou descartá-las, mas a partir de uma postura não automática, baseada apenas em que é algo que se diz ou se escreve muito no âmbito acadêmico da comunicação, e no ambiente jornalístico próximo àquele. A alternativa ao construcionismo radical do real ou à construção do sentido que exponho, a seguir, é derivada do realismo semiótico de tipo lógico, triádico originado na obra do pensador C. S. Peirce (1839 – 1914). DE ALGUNS INDÍCIOS CORPORAIS E ESPETACULARES Que implica o ingresso de pessoas comuns e de suas idas e vindas em um espaço que está fora do estúdio televisivo, do centro máximo de poder não governamental, para deslocarem-se à vontade por essa espécie de anexo ou sucursal televisiva domesticada 14 Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia (em parte)? Quiçá não seja mais que outro estúdio televisivo portátil, como sugere o especialista francês do fenômeno François Jost (2002), à semelhança do que ocorre com os estúdios de gravação domésticos de alguns músicos famosos. Pode ser. Porém, o que distingue o formato Endemol de reality show é sua proposta de macdonaldização da “ordem de interação”, quer dizer, de normatizar e colocar à venda esse abundante e ubíquo fluxo sígnico que nos aproxima e nos distancia, nos põe em afinidade emocional ou nos mantém à distância formal com nosso próximo, quando nos encontramos em co-presença física. A ordem de interação, tal como a descreveu, de forma pioneira, o canadense Erving Goffman (1959, 1991), constitui o coração do que conhecemos como a vida cotidiana. A prática de coexistir é um ato quase esquecido de si mesmo que só emerge à consciência quando alguma coisa desse ritual lubrificado falha, quando ocorre um acidente interativo que produz ridículo, risadas, insegurança, vergonha e, em casos extremos, anomia, quer dizer, a perda completa da legalidade e a previsibilidade que nos torna humanos, segundo a definição de Ray Birdwhistell, fundador do estudo da significação do corpo em movimento ou kinésica, não por acaso um dos mestres do microsociólogo Goffman. Macdonaldizar o âmbito da vida onde nos tornamos legais, críveis, aceitáveis um para outro, em uma palavra, normais, não é um empreendimento menor e isso explica, em parte ao menos, a enorme repercussão mundial do formato Big Brother. Ao final do século 20, o reality show da Endemol inaugurou um tipo de turismo de massas inédito: o programa se encarrega de organizar visitas mais ou menos guiadas ao lugar onde se produz continuamente a apresentação do self, à cozinha transparente do pequeno, mas poderoso deus ocidental, o si mesmo, algo que nunca tinha sido feito antes pela TV ocidental. Há vários antecedentes midiáticos, claro. Desde a precoce técnica da candid camera ou câmera oculta, introduzida pelo apresentador Allen Funt na televisão norte-americana, em 1948, passando pela moda dos acidentes mais ou menos engraçados filmados com câmeras domésticas de vídeo, e chegando até a mais recente e hoje já histórica JenniCam, a página na internet onde uma jovem norte-americana inaugurou a venda do acesso à sua intimidade cotidiana e sem barreiras – banheiro e quarto com namorado sexualmente ativo incluídos – são todas tentativas de transmitir signos existenciais diretamente desde a frente de batalha da mais pura normalidade, com variados temperos para o maior entretenimento do espectador. O que têm em comum as formas espetaculares e trágicas acima evocadas com o reality show Big Brother, que descrevi em outro lugar como “la melocrónica de los bastidores de la interacción humana” (Andacht 2003)? Todos eles baseiam sua proposta para o espectador de TV ou para o usuário de internet no index appeal ou chamamento indicial (Andacht 2002: 72-74). Moldado sobre o tradicional conceito de sex appeal da indústria cinematográfica da idade de ouro, a noção de index appeal remete ao predomínio ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29 15 ou hegemonia do tipo de signo que se define por manter uma relação existencial com seu objeto, por não depender do fato de ser interpretado, e por possuir um peculiar efeito quase táctil sobre o espectador – ainda que, em verdade, seja apenas audiovisual. Como signo, o índice se limita a opor-se física e obstinadamente a nós, a nosso corpo; ingressa desse modo brutal e compulsivo ao campo da experiência, como “a real força fisiológica” de um hipnotizador, segundo a analogia que propõe Peirce (CP 8.41)1 para descrever o efeito indicial sobre nós. Em contraste, o símbolo é uma classe de signo cujo funcionamento supõe uma interpretação, e é um signo que para atuar necessita apoiar-se em índices que os ancorem em algum contexto ou situação concreta, e em ícones que proporcionem alguma imagem, que funciona como o sentido visualizado por todo aquele que compreenda o valor simbólico. O regime semiótico indicial tem sido tradicionalmente o menu principal das notícias televisadas ou filmadas, e de um gênero especializado como o é o documental no cinema. Ao redor do signo de efeito fáctico, surgem hoje duas demandas opostas no plano ético, que se fazem ouvir com chamativa força: uma é a de saber o inapresentável e banal, a outra a de (des)conhecer o sinistro e misterioso. Vejamos o que implica cada uma destas demandas dentro do universo midiático. O desejo de receber o impacto do que cai fora do decoro, e que tradicionalmente tinha sido protegido pela piedosa barreira dos bastidores, por esse véu do backstage interacional humano, encontra na melocrônica do Big Brother um festim suculento. Ter acesso aos signos que saem do corpo, à copiosa transpiração sígnica do humano em interação com outros, se tornou possível como um entretenimento popular para toda a família, desde que caiu com leve estrondo a cortina encarregada de ocultar o indecoroso de nossa humanidade, que é também em parte animal, fisiológica e que, por fim, está submetida a esse mesmo regime existencial. Até o ingresso do formato televisivo Endemol, só algum gênero literário marginal como a comédia grotesca no teatro, ou na literatura, mostrava o que não se deve mostrar, senão ocultar dos outros com pudor. Conhecer o autêntico através do banal cotidiano, da comunhão fática (Malinowski) e dos gestos rituais com que se procura apaziguar ao outro e a nós mesmos, é a oferta básica do espetáculo televisivo da realidade. E os signos não falham: ademais do evidente esforço de produção televisiva – começando pelo casting telegênico e sedutor segundo o cânone vigente em cada comunidade que compra e adapta a Bíblia da Endemol , o manual de produção – o ser humano não pode não segregar esses rastros do self, mais ainda quando se está num lugar especialmente projetado para (des)ocultar toda manobra de pudor ou, o que é o mesmo, para convertê-la em um episódio da trama que se vai construindo com o aporte do index appeal e com a intervenção telefônica ou via internet do público (o voto para expulsar a quem tenha sido previamente indicado pelos demais participantes). 16 Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia A outra forte demanda indicial – ou sua colérica rejeição, que é o mesmo, porém expressado negativamente – a encontramos no comportamento fascinado ou enojado pela irrupção de um índice que, através do símbolo, nos conduz à reflexão sobre algo oculto, estranho, implausível ou inaceitável para a coletividade de onde provém essa interpretação de tipo indicial. O exemplo mais óbvio deste signo acha-se nos segundos que, por puro acaso, o fato cego de estar no lugar e na hora exata, converteu o dentista Abraham Zapruder em uma testemunha privilegiada da história. Sua pequena câmera filmadora de 8 mm viu e registrou, antes que seu dono e executor, o impacto feroz e irracional dos projétis no corpo sacudido do presidente J. F. Kennedy na cidade de Dallas, em 22 de novembro de 1963. Na antípoda desse cadáver glorioso, vou me referir aqui a outro tão desconhecido como os participantes da casa-mini-estúdio televisivo do Big Brother, quem sabe mais, porque a visibilidade do seu corpo não foi o resultado de um cuidadoso casting ou seleção, senão desses caminhos que se bifurcam e, às vezes, se cruzam com o fim inusitado e incompreensível da morte violenta e absurda. O que faz um jornalista cujo ofício é recolher e carregar as pegadas do real em suas imagens, mais indiciais que icônicas, ainda que ambos os tipos de sentido façam parte do efeito primordial desses retângulos de luz que iluminam e ilustram reportagens, capas, notas e toda classe de narração escrita sobre o mundo? Faz o mesmo que fez Richard Drew quando seu olfato profissional o conduziu, no meio da manhã do outono boreal de Nova York, em 2001, a colocar sua máquina fotográfica entre seu olhar e o mundo, para deixá-la se impressionar pela resistência brutal e cega dos corpos que saltaram do World Trade Center nesse dia. A reação entre o real que resiste e a ação do dispositivo ótico que registra é descrita por Peirce como o fenômeno da Segundidade, a categoria analítica da experiência na qual se baseia a ação do índice. Segundo nos conta Tom Junod (2003) em seu memorável artigo, “The Falling man”, não é a primeira vez que o destino atravessa assim o caminho desse repórter gráfico: são também suas as imagens comoventes do corpo ainda quente de Bobby Kennedy, e as de sua viúva reclinada sobre o político agonizante, a quem vemos em uma dessas fotos de 1968 enquanto implora ao homem da câmera que desista, que deixe de fazer o que R. Drew nunca deixou de fazer. Ele não deixou de apertar o obturador de sua câmera diante desses fragmentos do real com que se encontrou, e que logo se converteriam na História, na efeméride, segundo escreve Junod. Três norte-americanos, dois jornalistas do New York Times e o escritor free-lance Tom Junod na revista Esquire, apresentam, de forma precisa e com um rigor quase científico, um dos potentes efeitos pós 11 de setembro. Apesar de seus textos serem ensaios, crônicas jornalísticas mais próximas do literário, sua forma de argumentar, de submeter de modo sagaz sua escrita ao impacto e domínio do objeto no âmbito ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29 17 comunicacional, ao regime indicial, os aproxima ao proceder de um pesquisador científico. O que se passa quando nos encontramos frente a um mistério, ou a uma verdade cujo acesso se deseja bloquear, de modo consciente ou inconsciente? A esta interrogativa buscam responder estes três comunicadores. Por esse motivo, afirmo que, de fato senão de intenção, eles se aproximam em seu proceder discursivo ao denominado “quarto método de fixar as crenças”, esse que Peirce qualifica como o método científico. À sua maneira, eles se defrontam com algo não humano, inegável, a isso que se opõe a nós, que resiste a nossa indiferença, ódio ou repulsa, e que, simplesmente, continua estando ali, imóvel frente a nossa aceitação ou repúdio. Esse objeto é insuportável, pois, a exposição a ele é vivida como uma superexposição, como uma saturação visual instantânea, e por isso desemboca em sua desejada e concretizada ausência – através da censura ou da violenta negação do fato. Temos assim desenhada a figura de uma perfeita parábola: em um de seus extremos se localiza a overdose de signos indiciais cujo objeto parece opaco e duvidoso, pela sua natureza óbvia e mais que banal, me refiro às várias tristezas e poucas alegrias do corpo sob enclausuramento escopofílico no programa televisivo Big Brother; no outro extremo da parábola existe um inquietante enigma, algo que como sociedade resistimos a olhar por seu intolerável peso indicial, algo que elegemos enviar sem demora ao desterro visual, à terra de ninguém do imundo comunicacional. Há aqui dois indícios icônicos cujo grande impacto pode se inferir a partir do notório rechaço provocado por eles na comunidade norte-americana. Um indício é a impactante fotografia do Falling Man (O homem que cai) que a câmera digital de Richard Drew capturou aos 15 segundos das 9:41 AM, horário da costa leste dos Estados Unidos, e que emergiu apenas uma vez diante da visão estremecida da opinião pública, logo após o ataque contra o World Trade Center, em numerosos jornais, para nunca mais aparecer na superfície, e levar a partir de então uma vida subterrânea nas catacumbas da internet. A queixa dirigida contra esta evidência se baseou em sua suposta exploração abusiva da dor alheia, por mostrar o corpo gracioso, invertido, quase artístico de um anônimo cidadão em seu vôo etéreo, exatamente no meio das duas torres, com um pé recolhido delicadamente, e sem exibir nenhum indício do espanto diante desse final atroz. O outro indício é uma estátua em bronze que parece desenhada para ser a perfeita acompanhante tridimensional e artística da fotografia do Falling Man, refiro-me a “Tumbling Woman” (A Mulher que cai) do conhecido escultor norte-americano Eric Fischl. Esse foi o outro indício delator e negado. A obra foi exposta exatamente um ano depois do ataque terrorista ao WTC, a modo de memorial. Porém, em poucos dias, o 18 de setembro de 2002, a comovente figura em bronze de uma mulher nua que vemos agitar-se e lutar com todas as suas forças contra a lei da gravidade, foi expulsa do seu lugar de exibição, no Rockefeller Center, muito próximo do lugar onde ocorreu a 18 Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia tragédia nova-iorquina, por virulentos protestos. Ainda podem encontra-se azedas discussões em blogs da internet a favor e contra esta obra de arte. Quem apóia sua existência e visibilidade argumenta, de modo previsível, que existe a liberdade de expressão e que por isso não deveria ter sido proibida sua exibição. Entre os que se opõem e celebram com alvoroço a censura que subtrai da visão do transeunte a representação volumosa e magnética da dor desse personagem impossível do suicida assassinado, há quem formule, inclusive, seu desejo de que alguém corte a cabeça do escultor Eric Fischl. O motivo para esta sumária execução é que o artista teria brincado com a dor alheia, quando ele criou esse signo público de algo que, eles acreditam, deve permanecer invisível, sepultado no esquecimento, em vez de ser evocado e representado de modo tão tangível, próximo e indicial diante dos sobreviventes desse dia penoso e ainda próximo no tempo. Em duas colunas recentes do New York Times, o jornalista Frank Rich escreve sobre o impulso majoritário nos Estados Unidos de meios massivos, governo e comunidade de negar a complexidade do que ocorreu, e de se opor a indagar sobre os verdadeiros motivos dessa tragédia. Seu primeiro texto alude ao chamativo desalojamento dos indícios do 11 de setembro antes mencionados, o real-fotográfico e o fabricadoartístico. Sua outra coluna se refere à avidez por conseguir e contemplar o “money shot”, uma expressão que poderia traduzir-se como “a tomada do dinheiro”, um termo que provém da indústria de cinema pornográfico, e que denota a filmagem minuciosa e incansável que documenta o instante da ejaculação, isso que certifica e dá seu selo de qualidade a este gênero de filme. Encontro certo parentesco semiótico entre estas duas “tomadas de dinheiro”. Por um lado, o esforço por negar-lhe toda legitimidade à contundente evidência visual do momento mais vulnerável da nação mais poderosa da terra, ao documento que registra de modo singular o desespero que, nessa manhã terrível, arrastou a tantos – entre 50 e 200, segundo um cálculo aproximado citado por Junod em seu texto – a pular para uma morte segura como forma impossível de esperança. Por outro lado, a atitude da sociedade norteamericana de horrorizar-se pelas andanças perversas do ídolo musical Michael Jackson, enquanto os meios se esforçaram para conseguir o mais ansiado “money shot” de todos, a saber, o registro gráfico e minucioso do crime sexual envolvendo menores do que se acusa à decadente estrela. A recusa a refletir sobre a densa obscuridade que ainda envolve o ataque de 11 de setembro supõe adotar, de fato, o primeiro método descrito por Peirce (CP 5.378) para fixar a crença qual seja, o método da tenacidade. O referido método implica fazer de conta que isso que está aí nos olhando não existe, e contra toda evidência aderir a isso que, com obstinação, queremos seguir acreditando. Talvez este método tenha sido crucial para o lançamento da grande guerra contra o eixo do mal, para levar a cabo a invasão de um país cuja aliança com o supremo inimigo dos Estados Unidos continua não estando provada, e cada dia que passa parece mais improvável. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29 19 Outra habitual voz crítica do governo norte-americano no New York Times, a da colunista Maureen Dowd (2003), narra sua impressão de total desencanto e decepção diante do que ela descreve com ironia, no título de sua coluna, como “a insuportável leveza da memória”. Dowd se refere aos oito projetos ganhadores do concurso organizado para erigir um memorial ao 11 de setembro de 2001, no Ground Zero, a zona do desastre. Impossível não pensar no contraste entre estes dois indícios extirpados do cenário público – a fotografia de Drew e a estátua de Fischl – a causa de seu áspero caráter indicialicônico, seu efeito de sair ao encontro do transeunte que passara próximo destes signos existenciais, por um lado, e as narrativas luminosas, etéreas, leves como a pluma, e semelhantes a essas técnicas de auto-ajuda da “new age” (Dowd) pelo outro. Sua proposta embelezadora da obscuridade insondável que ainda dois anos depois cerca esse lugar e à nação toda, não faz mais que reforçar o brilho ausente, o clamor inocultável dos índices obliterados pela opinião pública. O costume de assistir a filmes históricos populares (como, por exemplo, JFK do polêmico realizador norte-americano Oliver Stone) acabaria por converter-se em uma “memória prostética” do espectador, já que, de tanto ver essas imagens, a sociedade chegaria a acreditar e sentir que experimentou estes incidentes na própria carne, e que essa ficção histórica forma parte documental e genuína de suas vidas, segundo uma proposta analítica da historiadora Landsberg (cit. em Robinik 2002). Talvez teríamos que falar, então, da gestação de uma amnésia prostética com relação ao forçado desaparecimento destes rastros da realidade, destes traços da memória autêntica nos Estados Unidos. A voz majoritária dessa nação pós 11 de setembro elege, sabendo ou não, esquecer com tenacidade o que lhe ocorreu, e agarrar-se a uma interpretação oficial, maniqueísta e simplista que, para poder funcionar eficazmente, deve prescindir do indicial, disso que ocorre e revela algo vital do tecido humano. A manobra coletiva tenta evitar o enigmático e temível, a face oculta do cotidiano, o âmbito do sinistro que teorizou Freud em 1919 como das Unheimliche. Prefere-se buscar um aprazível refúgio em símbolos previsíveis e kitsch, como os que observa, na exposição de Nova York em 2003, a jornalista Maureen Dowd e que ela considera insuficientes, demasiado leves para suportar o peso da evocação do horror do ocorrido na cidade mais cidadã do ocidente. Com sensatez, ela sugere que, quiçá, seria melhor representar o horror ocorrido em 11 de setembro com alguns fragmentos desse real insuportável que, não obstante, pode conduzir a quem os contemple pelo árido caminho da verdade: “O que falta nos desenhos (ganhadores do concurso) é algum rastro do que realmente se passou neste solo. Por que não voltar a colocar neste lugar o esqueleto metálico retorcido, esse que fez das ruínas do World Trade Center uma recordação tão horripilante e indelével para os milhares de norte-americanos que chegavam até o Ground Zero nos meses posteriores ao ataque?” O indício delator brilha por sua ausência em uma 20 Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia terra que parece temer a verdade e prefere distrair-se admirando elegantes e modernas formas luminosas, inocentes, os admiráveis e refinados dispositivos de amnésia prostética. Uma situação análoga e próxima no tempo me vem à mente. As não visíveis fotografias, ou filmagens, do retorno dos corpos dos soldados mortos no Iraque que chegam de regresso a cada dia, desde 2003, em seus respectivos ataúdes embandeirados, como se o exército dos EUA os proclamasse como sua propriedade absoluta, assim na vida como na morte. A estrita proibição de representar, indicial e iconicamente, os cadáveres que diariamente produz uma guerra que se supunha já terminada, e de modo fulminante, como resultado da campanha bélica de “shock and awe”, literalmente, choque e reverência, aplicada pelo governo norte-americano no Iraque, nos lembra qual é a função por excelência não só do signo indicial, senão de qualquer tipo de signo, qual seja, a revelação do real de modo falível, incompleto, porém eficaz. Se não fosse assim, por que proibir estas imagens fúnebres que não são muito diferentes das que ajudaram a acelerar o fim da guerra do Vietnam, no final dos anos 60? Apesar do inapropriado do termo, de sua origem procaz, é lícito afirmar que não se tolerou ou que se temeu a exibição desse money shot mortífero e bélico. Em seu lugar, se preferiu apresentar, de modo também realista e indicial, um money shot alternativo, de efeito contrário na opinião pública. Refiro-me à oportunidade fotográfica do ano (“photo-op” é o termo do jargão político-eleitoral dos Estados Unidos), a viagem secreta do presidente George Bush Jr. a Bagdá, para celebrar o dia de Ação de Graças junto às tropas de ocupação dos EUA, que festejavam ali esse 27 de novembro de 2003. E claro, também para produzir muitos e valiosos indícios-icônicos do fato duro de sua presença real e tangível nesse lugar, durante duas horas e meia. Neste ponto, e segundo o anunciado no início do texto, acredito ser oportuno passar à reflexão sobre a teoria da construção de sentido, tal como é usada com grande freqüência nos estudos de comunicação. CONTRA A CONSTRUÇÃO SOCIAL DE TUDO (E DE NADA) Quando lhe pedem sua primeira contribuição à mesa que compartilha com “notáveis e sensíveis”, em um estúdio do canal de televisão argentino Telefé, segundo as palavras do apresentador do programa Gran Hermano. El debate2 , um célebre comunicólogo local, de fama internacional, responde com certo desdém que não lhe interessa em absoluto abordar a popular discussão sobre se fingem, ou se são autênticas, as doze pessoas que estão trancadas voluntariamente na casa de Gran Hermano para submeter-se a uma multitudinária visão e escuta dos melhores momentos de sua interação cara a cara. Para liquidar tal discussão para sempre, o conhecido especialista em comunicação propõe diante das câmeras que “tudo é construção, tanto a realidade como a ficção.”3 Parece que a metáfora teórica da “construção” da realidade, social, individual ou empresarial (dos meios de comunicação) tem tido uma sorte similar a dos conceitos ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29 21 de ideologia e de subjetividade (do realizador de um documentário, por exemplo), na teoria do cinema. Com uma convincente argumentação, o teórico Carrol (1996: 230ss) demonstra que quanto maior é a amplitude denotativa destas noções, as que são usadas amiúde como uma desqualificação formal ou analítica da representação do real no chamado cinema verité e nos documentários mais sérios e mais respeitosos em seu trato com o outro, menor é o valor analítico dos ditos conceitos. Se, efetivamente, todo sentido imaginável fora o resultado do esforço construtivo humano, que tipo de contribuição teórica seria, então, afirmar sobre uma atividade comunicacional concreta, por exemplo, o formato de Gran Hermano ou a conduta dos participantes deste programa televisivo, que dita atividade é construída? Isso valeria também para as notícias televisivas ou para qualquer outro gênero imaginável. Se “construído” é definido como algo artificial, como um dispositivo produzido pelo ser humano com algum propósito, cabe se perguntar que coisa poderia escapar à dita definição. Portanto, pergunto, qual pode ser o interesse metodológico ou analítico de descrever algo nesses termos. Termina-se, assim, por afirmar o óbvio, isso que pouco e nada nos informa. Suspeito que estes três conceitos – ideológico, subjetivo e construído – são usados ou esgrimidos agressivamente com crescente freqüência nos estudos de comunicação apenas como variantes estilísticas de uma condenação moral, valorativa e subjetiva de algum produto ou instituição comunicacional. Defino o termo “subjetivo” como toda crença fixada segundo um dos três métodos descritos por Peirce em oposição e contraste com o quarto método, que ele denomina “científico”, em virtude do qual “nossas crenças podem ser causadas por algo que não é humano em absoluto (our beliefs may be caused by nothing human), por algo sobre o qual nosso pensamento não tem nenhum efeito” (CP 5.384). O método científico permite fixar nossa opinião sobre a base de algo que não é opinável, a saber, o objeto como esse exterior que é experimentado, e que deve ser considerado auto-criticamente por uma comunidade de pesquisadores, para avançar de modo falível e evolutivo na direção da verdade sobre dito objeto, quer dizer, na direção do real que não é a coisa em si de Kant, porém, que é uma meta alcançável a longo prazo. Sem essa esperança epistêmica, se instala um tipo de atitude suicida para o conhecimento, a qual invalida toda e qualquer ciência. A livre queda no cinismo parece um fim inevitável. Caso se tolere uma grande vacuidade na denotação de termos como “subjetivo”, “ideológico” e “construído” torna-se possível afirmar com tranqüilidade que não há nada objetivo, nem isento de ideologia, de subjetividade ou de construção no terreno da representação midiática (seja televisão, imprensa, cinema ou internet). Podemos incluir outra expressão semelhante, também muito usada na teoria cinematográfica como um projétil leve de ataque, que é a noção ampliada de “ficção”. Dessa postura de radical 22 Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia ceticismo sobre o poder representacional dos signos, toda intervenção humana que envolve a representação da realidade, fazer um filme sobre ela, por exemplo, se tornaria, ipso facto, uma ficção. Esta posição teórica resulta estéril para a análise ou, de modo mais geral, para alcançar uma maior compreensão do processo de produzir signos de ou sobre o real, em oposição a produzir signos de tipo literário, moral ou publicitário. Se desconsiderarmos esta distinção, estaríamos negando que um filme de não-ficção “é objetivo no mesmo sentido no que o é a escrita de não-ficção”, já que este tipo de filme se faz “responsável pelos padrões objetivos que sejam os mais apropriados ao assunto com o qual estão tratando” (Carroll 1996: 236). Não parece ser um conceito muito produtivo aquele que fosse compartilhado por qualquer signo midiático, tanto pela ficção quanto pela não-ficção. Qual seria a utilidade de uma noção teórica que não servisse para discriminar gêneros ou modalidades discursivas tão distintas entre si como distinto é o que simplesmente é – o real apenas – com respeito ao que é inventado com base no real, com o intuito de divertir, entreter ou ensinar sobre o que é? Que ambos domínios de sentido se cruzam e se fertilizam já é um lugar comum. Veja-se, por exemplo, esse costume tão brasileiro de introduzir as balas perdidas de um bairro concreto e real como o do Leblon, situado na zona nobre do Rio de Janeiro, dentro de uma novela cuja trama fictícia faz como se transcorresse nesse espaço urbano real. Que pode haver de mais natural então que a presença televisiva e ficcionalisada de um elemento que forma parte do cotidiano carioca? A violência organizada muito real e seu temível impacto na vida carioca de cada dia estão presentes sob a forma semiótica de uma citação, de um fragmento claramente identificável e reconhecível pelo espectador, dentro de uma ficção realista, verossímil e atual. Se a esta prática compartilhada por quase toda ficção industrial, é somada a ação de marketing social, na que incorre habitualmente a maior produtora brasileira de ficção seriada, a Rede Globo, então nada é mais previsível que encontrar na trama inventada para a telenovela Mulheres Apaixonadas, o grande sucesso de público de 2003, pedaços integrais do real, diversos fragmentos do mundo não fictício identificáveis sem confusão alguma pelo espectador que os observa, e claro, sem que haja necessidade alguma de elaborar uma teoria especial sobre a ontologia do mundo, ou sobre os efeitos da comunicação massiva. Neste ponto, arrisco uma hipótese sobre qual poderia ser o papel do comunicólogo, do pesquisador que não está trabalhando em uma empresa produtora de entretenimentos nem de notícias, senão que se ocupa da pura pesquisa. O primeiro requisito é que esse pesquisador aceite desprender-se da fascinação por essa teoria mais ou menos selvagem ou refinada da construção social do real e da ficção, em que, supostamente, se converteria qualquer assunto da realidade pelo simples fato de ser filmado, de ser representado. O estudioso da comunicação pode, então, se dedicar a ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29 23 analisar a enorme complexidade do diálogo que se estabelece, natural e inevitavelmente, entre as séries de sentido que surgem na comunidade e aquelas que reproduz, ao seu modo (obviamente), interessado e parcial, cada meio de comunicação, no gênero que seja. Com o risco evidente de estar construindo um adversário fantasma, postulo aqui que por trás da fachada legitimadora de uma irrestrita construção teórica de tudo, funciona uma variante moderna e elegante dos princípios críticos mais severos da Escola de Frankfurt e de seus diversos seguidores na Europa, América Latina e Estados Unidos. Que modo melhor de se opor com máximo vigor às manipulações dos meios massivos e a seu inegável desejo de lucro, que descrever tudo o que faz (e o que deixa de fazer) uma empresa comunicacional como uma construção de sentido? Devo reconhecer que exerce certo fascínio uma posição teórica que distribui em dois bandos nítidos e antagônicos os infatigáveis engenheiros de significado, e que os põe a construir sem descanso a realidade e o sentido de ambos os lados da tela e da página impressa. Com a intervenção da vontade dos referidos construtores seria forjado o sentido válido, enquanto epicentro de uma contenda épica entre quem tem o poder material de emitir textos e quem não o tem. Sem embargo, esta sedutora visão sobre como se constrói a significação encontra um obstáculo formidável, a saber, o comportamento real dos signos. Se os signos não tivessem uma natureza disposicional, quer dizer, se não tivessem uma capacidade própria de gerar significado, para que ocultar os indícios inquietantes do 11 de setembro? Para que produzir com um custo muito alto, incluído o risco de vida do próprio presidente dos EUA, indícios que revelam um fato além de toda negação, qual seja, a visita do mais alto funcionário desse governo ao lugar de uma batalha que não termina. Só penso em uma resposta: o sentido não se constrói nem se fabrica; nossa ação primordial como seres de sentido consiste em observar atentamente as propriedades que levam os signos em seu corpo, e sua incessante ação de desdobrar-se diante de nós. Observar o sentido não supõe, de modo algum, passividade ou resignação conformista da parte do pesquisador; é tão só o requisito básico para poder compreender e depois atuar em conseqüência, segundo o que se crê que é melhor, mais adequado para uma comunidade. Já quando se trata de signos de existência, que meramente estão aí, como os cadáveres de soldados ocultos da opinião pública, ainda que se saiba sobre seu regresso cotidiano e sem glória para seu país de origem, ou de signos para serem interpretados convencionalmente, como, por exemplo, uma frase do presidente G. Bush Jr. na base militar de Bagdá, em novembro de 2003, preparada, possivelmente, por sua equipe de relações públicas: “Estava buscando algum lugar onde desfrutar de uma comida quente hoje”, estas manifestações de sentido têm um poder que resiste a toda negação de qualquer poder terreno. O sentido dos signos é sempre “virtual”, afirma Peirce (CP 5.289): é o poder que possui um signo de ser representado em outro signo mais 24 Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia desenvolvido. Em tal disposição ou tendência, e só nela, consiste o sentido, que, portanto, não se reduz a uma classificação arbitrária da mente, a uma construção imposta de fora, senão que é algo que realmente, como propriedade lógica, se encontra nos signos com os quais compreendemos o mundo, e com os que podemos, se assim desejarmos, trocá-lo. Afirmar isto não nega que, amiúde,os signos necessitem de nossa cooperação interpretativa, porém, essa tarefa não é o exercício de uma vontade humana omnímoda, senão da capacidade que exercemos e desenvolvemos como intérpretes, como navegantes mais ou menos hábeis no agitado mar da significação. Sem dúvida, é atrativa, e inclusive sedutora, a imagem épica do cientista social, em geral, e a do comunicólogo, em particular, como alguém que sulca o mundo do conhecimento denunciando que toda forma de comunicação é fatalmente um total ou parcial engano, uma modalidade mais ou menos hábil de fraude coletiva. Não obstante, creio que desde o lugar mais modesto e realista da observação e do estudo de como, de fato, cresce e muda a cada instante o sentido, tanto na sociedade como em seu maior porta-voz que, fiel ou traidor, segundo a ocasião, são os meios de comunicação, há uma potencial contribuição muito maior a fazer que ao denunciar, sem descanso, a natureza falsa, construída, fictícia ou artificial de tudo o que os meios representam. Entre outras coisas, se aceitarmos a premissa construtiva de sentido se deixa de lado que nossa comunicação na ordem de interação, através de nossos corpos em contato, seja verbal ou não verbal, é também um poderoso meio de comunicação. Também se esquece, assim, que a condenação de todo signo recebido ou enviado por não ser confiável, porque supostamente seria o resultado de uma construção suspeita ignora a capacidade humana sobre a que já refletia Sócrates, a de buscar e encontrar coletiva e dialogicamente a verdade. Desse modo, a única ponte transitável de que dispomos para driblar com relativo êxito as diferenças dentro e fora de nossa comunidade fica inutilizada. Perder a linha divisória entre o não-ficcional e o ficcional, entre o verdadeiro e o falso, entre o que é como é além de qualquer opinião pessoal, e a mera opinião, quer dizer, entre o objetivo e o subjetivo, é um preço demasiado alto a pagar neste empreendimento de denúncia e condenação dos poderes constituídos, e de seus lucrativos meios de comunicação. A TÍTULO DE EPÍLOGO Hora de encerrar minha argumentação e de resumir as principais idéias expostas até aqui. Que é, portanto, o que busquei por meio da analogia algo inesperada entre o banal e o terrível do regime indicial transmitido pelos meios de comunicação, neste início do século XXI? Meu propósito ao descrever a paixão indicial foi explicar como o principal e, quem sabe, único propósito dos signos é a revelação parcial, falível, inclusive, frágil e sempre ameaçada do que é, do que poderia ser e do que foi. Naturalmente, ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29 25 esta característica não exclui a existência de toda classe de distorção e de ocultamento do real, seja de modo voluntário, acidental ou inconsciente. Como pode se inferir da manobra social e oficial de amnésia prostética, que descrevi acima, como um dos efeitos inquietantes do 11 de setembro de 2001, nos EUA, essas práticas não são, em absoluto, um privilégio dos meios massivos, nem dos poderes máximos, senão que formam parte de nossa condição humana, como experientes pilotos do sentido, que buscamos compreender, porém muitas vezes tememos e evitamos ou negamos essa compreensão. São inumeráveis as vozes airadas que reclamam e protestam contra a cínica e pouco ética fabricação da normalidade ou da realidade cotidiana no formato multinacional Big Brother. De forma plausível, se assinala a debilidade ou a ineficácia planejada do atributo REALITY, em forte contraste com o predomínio ou hegemonia da porção substantiva da frase, quer dizer, do SHOW, do espetáculo multinacional criado por Endemol Produkties da Holanda. Não em vão, estamos diante de uma geração de espectadores que nasceu e que se criou absorvendo as múltiplas maquinações catódicas. Parece tarefa difícil, então, enganar a quem conhece de toda a vida o que muito mal se esconde sob esse novo grande atrativo da visão que é o backstage, quer dizer, os bastidores da produção de normalidade interativa. O que é mais justo e necessário que converter o backstage da própria vida, a ordem da interação e sua cozinha ou lugar de preparação, no novo e não muito obscuro objeto de desejo do espectador do século 21? A pergunta a formular, que proponho agora, é qual seria, na verdade, esse objeto dos signos que o formato Endemol exibe sem cessar dia após dia, pela TV aberta, e todo o dia, todos os dias, pela TV a cabo? Porque se é transparente o menu audiovisual que aparece na tela – nossos atos menos interessantes ou mais banais, incluindo outros reservados à intimidade do ser comum, e à exibição dos mais e melhores dotados, em um gênero fechado como a pornografia – não é tão claro a que remete, que coisa denota, de que trata esse festival de signos do diário viver. Se fosse apenas a banalidade suprema da simples existência cotidiana, algo que se faz e que se esquece quase no mesmo instante, então não valeria a pena dedicar-lhe um programa, e de fazê-lo, este jamais alcançaria um Ibope tão grande como o que, de fato, conseguiu Big Brother. Outra idéia que pode vir à mente do leitor prevenido pelos críticos, mais ou menos especializados ou acadêmicos, é o insaciável e perverso voyeurismo: todos estão (estamos) doentes! E então Freud tinha razão. Esta versão inflacionária do mal estar (exacerbado) da cultura apresenta vários problemas. Assinalo só um dos mais óbvios: as pessoas que entram na casa para serem vistas, admiradas e desprezadas, em diversos graus, não podem sequer competir com os especialistas da exibição corporal, como os há em abundância desde que existe imagem filmada ou gravada no mundo. Quer seja no genérico erótico, no pornô brando ou no mais contundente, há muitas melhores ofertas para o bom voyeur que nestas visões mais ou menos fugazes de seres 26 Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia em cativeiro voluntário, se de saciar o apetite da carne deleitosa se tratasse. Os resultados do meu estudo deste gênero de reality show apontam a outro lugar de interesse ou da paixão do espectador, a saber, a sua fascinação pela transpiração dos signos, do sentido indicial que segregamos a toda hora, sem poder controlá-lo de todo, ou com menos habilidade para fazê-lo que se envolvesse palavras. Nisso consiste o index appeal ou chamamento indicial do reality show mais polêmico e bem sucedido do momento. Por arriscado que pareça, entendo que renunciar à teoria da construção social, individual ou corporativa de sentido ou da significação, e também da realidade, supõe aceitar a castração simbólica, a real limitação do humano. Traço um paralelo entre essa renúncia e a disposição de colocar o olhar sobre a temível cabeça da Górgone em que se converteram a fotografia denunciadora de Richard Drew do Homem que cai e a magnífica estátua de bronze de Eric Fischl da Mulher que cai. Ambos signos indiciais e icônicos infundiam o maior temor imaginável: o de ter que se perguntar sobre o desconhecido, e ter que aceitar que os signos realmente existentes são capazes de nos revelar, gradual e tentativamente, a verdade, ainda que seja desagradável, chocante, e demore muito em chegar. Recusar e desvalorizar esses signos de existência, declará-los perversos e fora de lugar, supõe optar por uma narrativa já construída, enganosa, porém tranqüilizadora: o mal seria isso que está aí afora, e então a obscuridade não estaria nesse abismo terrível do Ground Zero de Nova York, senão em outro lugar completamente alheio e tão distante como o território invadido do Iraque. Entre o caminho da autocrítica, da renúncia à onipotência, e aquele do temível outricídio negador de todo diálogo, e de todo possível contato sígnico com a complexidade ancorada na duríssima realidade que emergiu no dia 11 de setembro de 2001, a sociedade norte-americana preferiu o segundo rumo. Esta atitude de uma boa parte da coletividade de seu próprio país a descreve com lucidez crítica o semiótico Vincent Colapietro como a manifestação da “invencível presunção de inocência”, que não permitiria a “possibilidade desconcertante de nossa própria cumplicidade no que nos aconteceu”. A negação do real, a opção de refugiar-se em uma ficção sinistra que só pode conduzir a um maior desconhecimento de si mesmo e do outro, não faz mais que colocar em evidência o risco de atuar completamente à margem dos signos e do seu poder revelador da verdade. Nossos signos de cada dia são tão bons, ou tão perversos, como os propósitos que organizamos com e através deles. A paixão indicial que comove o mundo busca no ambivalente “money shot”, essa “tomada do dinheiro”, conhecer o pior e o melhor da humanidade, ambos os extremos são inseparáveis de nossos signos. FERNANDO ANDACHT é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos/RS. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29 27 NOTAS 1. Cito a obra de Peirce segundo a convenção habitual: “x.xxx” remete à passagem dos Collected Papers mediante o volume e o parágrafo na referida edição. 2. Este derivado de Gran Hermano, a versão rioplatense do Big Brother, era transmitido às segundas-feiras, às 23 hs, pela Telefé, em vez da terceira edição diária de notícias, da emissora observada. 3. Trata-se de Eliseo Verón, “nosso convidado de luxo”, conforme foi mencionado pelo apresentador, nessa primeira edição argentina ou rio-platense, já que se transmitiu ao vivo ao Uruguai, a versão local do Big Brother, no inverno de 2001. 28 Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDACHT, Fernando (2002). “Big brother te está mirando: la irresistible atracção de un reality show global”. In Raquel Paiva (org.) Ética, cidadania e Imprensa. São Paulo: Mauad. __________________ (2003). El reality show. 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In: Jump Cut: A Review of Contemporary Cinema issue no. 45. Retirado de http:// www.ejumpcut.org, el 5 de diciembre de 2003. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29 29 Comunicação, Música e Sociabilidade na Contemporaneidade Data de recebimento do artigo: 28/11/2003 Data de aceitação do artigo: 10/12/2003 À procura da batida perfeita: a importância do gênero musical para a análise da música popular massiva Jeder Silveira Janotti Jr. As relações entre gêneros midiáticos e o consumo dos produtos culturais, que circulam nos meios de comunicação, estão tão entranhadas em nosso cotidiano que raramente notamos como elas delimitam uma parcela importante dos processos de produção de sentido inscritos na comunicação e cultura contemporâneas. O próprio modo como arrumamos nossas estantes e distribuímos nossas coleções de discos e livros, mostra muito sobre valores que interiorizamos e sobre aquilo que consideramos positivo no mercado cultural contemporâneo. Não por acaso, há um certo frenezi quando vamos receber algum convidado em nossas casas e, minutos antes da chegada dessa pessoa, corremos apressados para decidir que livros, que discos, enfim, quais objetos devem estar visíveis e quais devem ser escondidos. Isso para não falar, do grande momento em que nosso ilustre visitante irá ter acesso aos preciosos bens que compõem nossas bibliotecas e discotecas. Mas, essa arrumação e as taxonomias que envolvem o consumo cultural não estão situadas somente no campo da recepção. Uma rápida olhada pelos guias de TV e pelos catálogos musicais permite perceber que uma parte importante da circulação e do consumo dos bens culturais midiáticos está diretamente ligada não só às classificações efetuadas pelas críticas e resenhas, mas ao próprio modo como essas “classificações” permitem ao consumidor organizar e reconhecer suas valorações dos produtos culturais. Quem não experimentou um certo desconforto, quando diante das prateleiras de uma locadora encontrou distinções que não parecem adequadas ao processo “tradicional” de arrumação desses produtos? Assim, esse artigo parte de um pressuposto que parece simples, mas bastante controverso, a idéia de que grande parte da apropriação da música popular massiva é efetuada à partir de sua “classificação genérica”. Desse modo, um questionamento fundamental estará presente, como uma sombra incomôda, durante todo o percurso aqui apresentado: quais são as linhas que demarcam a validade dos produtos musicais em suas especificidades, por exemplo como uma canção, se uma parte de seu consumo é efetivada por elementos externos à audição musical particular? Ou seja, até que ponto a delimitação por gênero não “pré-figura” as formações de sentido das obras individuais? Questões complexas, que não tenho a pretensão de resolvê-las neste artigo, mas devem servir de alicerces permanentes tanto para a ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.31-46 31 análise dos gêneros musicais no processo de consumo da música, como para a análise de canções particulares. Não por acaso, e de maneira tensa, essa questão será tratada na primeira parte deste artigo. Na segunda parte, o artigo dedica-se a analisar a canção “Vai Vendo”1 do cantor Marcelo D2. DAS CATALOGAÇÕES De acordo com Simon Frith (1998), nós temos uma tendência a “naturalizar” as apropriações musicais efetuadas pelas divisões dos gêneros midiáticos. Nós só notamos esse processo, quando, por exemplo, vamos a uma loja de discos e verificamos que a distribuição dos CDs nas prateleiras não obedece aos padrões assimilados como “normais”. Diante das estruturas dos “shoppings culturais”, que procuram interferir o mínimo possível no acesso direto dos consumidores aos produtos expostos, chamar um vendedor, mostrar-se neófito em relação aos modos de apresentação dos produtos pela loja, seria reconhecer-se como um “incompetente” no cenário musical. Até porquê a catalogação por gêneros está presente não só nos modos que a indústria fonográfica utiliza para direcionar certos produtos para o consumidor potencial, como é parte essencial dos julgamentos de valor que perpassam o consumo musical. Esses pressupostos implicam o reconhecimento de que os gêneros da música popular massiva não podem ser descritos e compreendidos apenas por seus componentes econômicos. Mas, não se pode deixar de reconhecer que, por outro lado, parte dos aspectos mercadológicos são fundamentais para o entendimento do gênero como modo de direcionar os produtos musicais para os consumidores potenciais. Desta forma, vale lembrar que gênero é:“(…) um modo de definição da música em relação ao mercado, do potencial mercadológico presente na música” (FRITH, 1998, p.76). Seguindo esse caminho, pode-se partir do princípio de que o lançamento de um produto musical envolve estratégias de divulgação que abarcam pelo menos duas questões: 1) com que se parece esse som? e 2) quem irá comprar esse tipo de música? Mas essas perguntas não são tão óbvias, não é uma simples questão de definição de gênero e pronto, vendagem imediata. Nas perguntas colocadas acima entra em cena uma constante negociação entre a indústria fonográfica, as rádios, as lojas de disco a imprensa especializada, fanzines, promotores de shows e fãs. O caso das lojas de CDs é um bom exemplo da complexidade que envolve o endereçamento dos produtos musicais aos seus consumidores potenciais. De acordo com Frith: As lojas de disco são instrutivas em relação a esse contexto por várias 32 Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita razões. Uma fã comprometida com universo musical logo achará, por exemplo, que ela está interessada em sonoridades que parecem se adequar a diversas categorias de uma só vez e que diferentes lojas, colocam os mesmos discos em diferentes prateleiras e diferentes categorias (FRITH, 1998,p.77) Gostaria de citar dois exemplos que dão conta da dificuldade de uma classificação definitiva dos produtos nas prateleiras das lojas. Em que lugar ficaria melhor colocar os CDs de Cássia Eller e Raul Seixas, “cantor e cantora nacionais” ou “pop/rock brasil”? E o que dizer de Ozzy Osbourne? Heavy metal? Ou será que é melhor, por precaução, colocar alguns exemplares na sessão “cantores internacionais”? Esses exemplos mostram que algumas das divisões comerciais, antes de se basearem em gêneros musicais, são efetuadas por padrões temporais, gêneros sexuais e/ou feixes linguísticos/geográficos. Do que foi dito até aqui parece possível inferir que as cartografias dos gêneros musicais são, em parte, produzidas para tentar da conta do modo como diferentes setores da economia midiática influenciam na constituição dos gêneros. Essas negociações envolvem tensões com fãs, músicos, críticos e produtores, envolvendo fatores que muitas vezes não parecem, pelo menos em um primeiro momento, vinculados diretamente ao mercado da música. Durante o processo de pesquisa para o desenvolvimento de minha tese (JANOTTI, 2003) notei, não sem surpresa, que em algumas lojas de disco dos shoppings centers de Porto Alegre havia uma divisão nas prateleiras entre heavy metal e rock; divisão inexistente nos shoppings de Salvador. Na verdade, esse modo de “disponibilizar” os produtos musicais está diretamente ligado a realidade local, uma vez que, já há algum tempo, o pop rock é um dos principais produtos musicais do Rio Grande do Sul, o que pressupõe um contato íntimo com uma arquelogia do rock; uma divisão mais rígida e tensiva dentro do próprio rock. Já o mercado musical de Salvador, fortemente marcado pelas músicas do carnaval baiano, não apresenta tais divisões, uma vez que, para praticamente todas as formas de expressão roqueiras da cidade, o grande contraponto continua sendo a chamada “axé-music”. Um outro fato que deve ser destacado nesse processo é que, muitas vezes, devido ao valor positivo das novidades e da avidez por novas informações por parte dos consumidores, uma boa parte das catalogações das lojas é construída ao redor das prateleiras que oferecem os “últimos lançamentos” ou as “promoções”. Em geral essas divisões não obedecem qualquer critério de gênero e, sim, critérios de “temporalidade” e “preço”. Pode-se então concluir que um passeio pelo modo de oferta das lojas de discos é bastante instrutivo em relação não só aos gêneros, mas também na observação ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.31-46 33 das tensões globais e locais que fazem parte do consumo musical. Seguindo Frith, podemos afirmar que o gênero musical “ (…)é uma conversa silenciosa que acontece entre o consumidor, que sabe asperamente o que quer, e o vendedor, que trabalha copiosamente, para imaginar o padrão dinâmico dessas demandas” (FRITH, 1998, p.77). Essa é uma negociação tensiva e complicada. Quantos de nós não se sentem completamente perdidos, para não dizer traídos, quando encontramos nossas lojas preferidas rearrumando o modo de catalogação dos discos? Se essa questão não envolvesse expressões identitárias e emocionais seria muito mais fácil. Talvez os fãs de música passassem a adotar a ordem alfabética e não ficassem tanto tempo discutindo se a banda Led Zeppelin fica melhor situada ao lado de roqueiros antigos como Jimi Hendrix e Cream ou na estante dedicada ao heavy metal. Nesse sentido, um importante mediador do consumo musical é a crítica. Mas, vale lembrar que, ao contrário do que se possa imaginar em um primeiro momento, grande parte das comparações e classificações exibidas pela crítica musical são frutos dos releases enviados por gravadoras, produtores culturais e assessores de imprensa. Quando a indústria fonográfica utiliza as classificações de gênero para tornar o processo mercadológico mais eficiente, ela, na verdade, está assumindo que há uma relação negociável entre o rótulo musical e o gosto dos consumidores. Os gêneros musicais não descrevem somente quem são os consumidores potenciais, mas o que esses produtos significam para eles. Os críticos de música geralmente descrevem os discos a partir de paralelos com outros intérpretes e/ou sonoridades, o que significa que, para a crítica, rotular através dos gêneros implica em comparações, ou seja, conhecimento histórico e genealógico. Não por acaso, “rótulos genéricos” estão entre as ferramentas essenciais da prática crítica. Como podemos verificar nos exemplos abaixo, a catalogação do álbum e/ou intérprete pretende organizar o próprio processo de audição do consumidor. No caso, uma banda quase desconhecida, “Pullovers”, é apresentada ao leitor da Revista Zero através de um percurso que permite imaginar qual é a sonoridade da banda, e seu gênero implícito, o indie rock. É quase como colocar a audição como um complemento da “rotulação genérica”: Cantando em inglês e despejando uma série de novos hits undergrounds em potencial, o Pullovers carimba seu passaporte definitivo para o seleto e minúsculo rol das grandes bandas nacionais dos anos 00. Os músicos paulistanos ainda amplia o leque de influências dos bons sons. Fãs confessos de Pavement e Sonic Youth, respectivamente no vocal desleixado e nas guitarras furiosas, os Pullovers ainda esbarram na tangente de Guided By Voices, Vaselines (há o dueto entre Luiz e a baixista Ana Carolina em várias faixas!), Superchunk, fase On the Mouth, psicodelismo e Lou Reed 34 Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita pós-Velvet.Grande disco para um pequena grande banda nacional (Smith, 2003, p.53). Já no caso de um gênero mais conservador, em relação às misturas e inovações, como o heavy metal, nota-se, já no início da crítica, referências diretas e precisas aos subgêneros e as bandas que caracterizam o percurso do grupo brasileiro South Cry, cujo próprio nome remete a um gênero musical (rock sulista): “Hard rock setentista, com ecos de Grand Funk e rock sulista em geral (Lynyrd Skyrnd, 38 Special, etc.) misturado com muitas citações de stoner rock e stoner metal , é o que vem no disco de estréia dessa grata surpresa chamada chamada South Cry” (MONTEIRO, 2003, p.30). Não é difícil notar que os exemplos escolhidos tratam de bandas novas e/ou desconhecidas, o que tornaria o exercício comparativo praticamente inevitável. Mas uma rápida olhada nas críticas de álbuns de intérpretes famosos nos mesmos números de Zero e Rock Brigade permite notar que a comparação se mantém, só que, nesse caso, o exercício valorativo é centrado na própria obra dos músicos, já que se supõem que as questões de gênero, nos casos citados abaixo, já estão “enraizadas”: Depois da decepção com Strange Little Girls (2001), uma coleção de covers atípica da dona da voz mais emocional dos EUA, a torcida era grande por um lançamento que lembrasse mais discos cheios de raiva e amor, como o maravilhoso Little Earthquakes. Ao saber que o próximo lançamento de Tori Amos – Sacarlet´s Walk – era uma ‘história’ em forma de música sobre seu país natal após a tragédia de 11 de setembro (quem ainda aguenta esse assunto?), perdi as esperanças. (Mitchelle, 2003, p.54). Pra começar, que fique claro: O Deep Purple jamais vai gravar outro disco como Machine Rock ou In Rock. Os tempos são outros, os caras já estão sessentões e, mais importante, eles já gravaram esses discos. Então, apesar de a comparação ser inevitável como tudo na vida, é um princípio errado ter álbuns como esses na mente na hora de se ouvir o mais novo disco do quinteto, que leva o estranhíssimo nome de Bananas. (Monteiro, 2003, p.28). Como se pode perceber nas criticas musicais, a idéia dos gêneros na música popular massiva está ligada a vários processos de mediação presentes no consumo musical, mas que desde já, mostra-se muito mais complexo do que sua conexão com a exploração comercial dos gêneros pelas grandes indústrias de comunicação. Em meio a esse processo, por exemplo, não se pode esquecer que o florescimento de gêneros musicais entre fãs, produtores, músicos e críticos estão, muitas vezes, ligados a uma espécie de senso de exclusividade, conhecimento e ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.31-46 35 familiaridade com uma espécie de “arqueologia musical”. De fato, pode-se até pensar que um gênero musical só é claramente definido (tem todos os seus segredos revelados) no momento em que cessa de existir, no momento em que não é mais exclusivo. Na maioria dos produtos midiáticos que trabalham com esse senso de exclusividade, como parece ser o caso de grande parte dos gêneros de rock e da música eletrônica, a autenticidade acaba se tornando um valor crítico fundamental. De acordo com Frith: Para as pessoas que estudam gênero, as questões são retrospectivas: como essas decisões foram tomadas, o que esses discos tinham que permitiu serem rotulados do mesmo modo, o que eles têm em comum? As repostas são muito mais formais: blues ou punk ou rock progressivo são descritos em termos da linguagem musical que eles empregam, discos são excluídos de suas definições porque não se adaptam tecnicamente – possuem a estrutura, batida ou orquestação erradas. (FRITH, 1998, p. 89). Os prazeres proporcionados pela música popular massiva, os valores, gostos e afetos que ela comunica, em geral, estão relacionados com “estórias” que elas contam sobre os consumidores potenciais dos diversos gêneros que compõem o cenário do consumo musical na cultura contemporânea. Assim, quando examinamos o modo como os elementos musicais produzem sentido (o som, a voz, as letras, o ritmo), nós não podemos deixar de relacioná-los com os códigos de gênero: os prazeres da cultura popular massiva são prazeres inscritos (parcialmente) nos gêneros midiáticos. Diante do que foi apresentado até agora, pode-se perceber que quando falamos de gênero no âmbito da música popular massiva, estão em jogo aspectos mercadológicos, sociológicos e semióticos; assim, é possível realçar três campos fundamentais para a análise da música popular massiva: 1- Regras econômicas que envolvem as relações de consumo (e os endereçamentos presentes nesse circuito) nos processos de produção, difusão e audição do produto musical. 2- Regras semióticas que abarcam as estratégias de produção de sentido e às expressões comunicacionais do texto musical, além da conformação de valores ligados ao que é considerado autêntico em detrimento da música “cooptada”, ao modo como as expressões musicais se referem a outras músicas e como diferentes gêneros trabalham questões ligadas aos modos de enunciação, às temáticas e às letras. 3- Por último, e não menos importante, regras técnicas e formais; como convenções de execução do punk ou do rap, habilidades que cada gênero pressupõe dos músicos, quais instrumentos são necessários ou tolerados, ritmos, alturas sonoras nas relações entre voz e instrumentos, entre palavras e música. 36 Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita O principal problema do modelo de abordagem dos gêneros musicais aqui esboçado está ligado ao fato de que as “regras genéricas” parecem fixar determinadas fronteiras, quando na maioria das vezes, os gêneros, e a difusão de diversos subgêneros no heavy metal e na cena eletrônica parecem comprovar essa hipótese, estão em constante mutação. Os gêneros não são demarcados somente pela forma ou “ estilo” de um texto musical em sentido estrito e, sim, pela percepção de suas “formas” e “estilos” pela audiência através das perfomances pressupostas pelos gêneros. Daí a afirmação de que todo gênero pressupõe um consumidor potencial. Ainda de acordo com Frith (1998), para se mapear um gênero musical deve-se estar atento para o seguinte percurso: convenções sonoras (o que se ouve), convenções de performance (o que se vê), convenções de mercado (como uma música é embalada) e convenções sociais (quais valores e ideologias são incorporadas em determinadas expressões musicais). Isso significa que as mercadorias, os produtos musicais, só estão aptos ao consumo porque elas carregam consigo sentidos potenciais, ou seja, porque músicos, produtores, distribuidores, críticos e consumidores estão entrelaçados em uma rede de expectativas presentes nos gêneros musicais. Compreender a estética da música popular massiva é compreender também a linguagem na qual julgamentos de valor são articulados e expressos e em que situações sociais eles são apropriados. Assim, parte da comunicação dos sentidos e valores expressos pela música popular massiva estão inscritas na codificação de gênero, ou seja, os gêneros musicais, determinam, em parte, diferentes tipos de julgamentos estéticos, competências diferenciadas para que se construam determinados quadros de valor em relação a certas expressões musicais. PERFORMANCE E CORPO Um dos campos privilegiados para se abordar a materialidade do sentido na música popular massiva é a observação das performances que envolvem não só a configuração dos gêneros musicais, bem como as características individuais dos diversos intérpretes. Nesse sentido, a performance aponta para uma espiral que vai das codificações de gênero às especificidades da execução musical. Esse percurso minimizaria em parte a idéia de que os gêneros seriam pré-determinantes no processo de produção de sentido da música popular massiva. Assim, parte-se do pressuposto de que a performance envolve não só a execução e a participação da platéia nos shows, bem como videoclipes e o próprio ato privado de ouvir música. Mesmo que de maneira virtual, a performance está ligada a um processo comunicacional que pressupõe uma audiência e um determinado ambiente musical. Assim, a performance define um processo de produção de sentido e conseqüentemente, de comunicação, ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.31-46 37 que pressupõe regras formais e ritualizações partilhados por músicos e audiência, direcionando certas experiências frente aos diversos gêneros musicais da cultura contemporânea. Os corpos presentes em uma performancce não envolvem somente tensões entre aspectos subjetivos e objetivos (máscara, persona), mas também, conflitos que envolvem o que é público e o que é privado; como a tradicional imagem do fã de heavy metal tocando sozinho em seu quarto uma guitarra iamginária (“air guitar”). As performances produzem sentido quando conectadas de alguma forma ao cotidiano, mas as performances se caracterizam, justamente, por revelar algo estranho ao cotidiano, como, por exemplo a dança e a partida de futebol. Não por acaso os atos performáticos da música popular massiva estão diretamente conectados ao universo dos gêneros. Ser um astro do cenário heavy metal ou da música eletrônica exige relações com a audiência que seguem as especificidades dessas expressões musicais. Do mesmo modo que uma canção é ao mesmo tempo a música e sua respectiva performance, a audiência não consome somente as sonoridades, bem como a performance virtual inscrita nos gêneros. A relação entre ouvir música e responder corporalmente a determinada sonoridade é uma questão de convenções que, muitas vezes parecem “naturalizadas” pelos consumidores de um gênero. Toda expressão musical da “cultura pop” indica modos de específicos de corporificação, que incluem, claro, determinados modos de dançar. Dança aqui não significa somente uma expressão pública de certos movimentos corporais diante da música e, sim, a corporificação presente na própria música, mesmo para os gêneros musicais que pressupõem uma audiência passiva em termos de movimentos corporais. Quando dançamos (pelo menos em se tratando de danças codificadas socialmente), sujeitamos os movimentos de nossos corpos a regras musicais, o que revela um senso físico da produção de sentido diante da música. Dançar, como demonstram as danças de uma rave ou o break, é um modo codificado de processar a música. Mas, para se tentar ir um pouco mais longe deve-se chegar ao intérprete e questionar: qual a voz que canta (ou fala)? Ou no caso de alguns subgêneros da música eletrônica: qual os corpos que tocam e dançam a música? Quem está tocando, falando e/ou cantando? A perfomatividade da voz ou do ato de “tocar” descrevem um senso de personalidade, um modo peculiar de interpretar não só determinada música como as próprias convenções de gênero, um modo característico de corporificação das expressões musicais. Assim, a vocalização e a interpretação de uma certa canção são “encorporações musicais”. Ouvir música é “encorpar” não só as vozes, bem como os instrumentos harmônicos e percussivos. Só para citar um exemplo, vozes masculinas 38 Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita e femininas, mesmo quando interpretados a mesma canção, são definidas de maneira estrutural, como sons ouvidos de maneira interdefinida com outras sonoridades que, nesse caso, não estão, necessariamente restritas ao campo musical. Nós ouvimos e vivenciamos vozes masculinas e femininas, e suas respectivas “corporificações”, de acordo com nossas preferências e prazeres. Esses processos de produção de sentido também dependem de determinadas institucionalizações. Isso nos permite pensar que além das questões que envolvem a corporificação do feminino e do masculino nas expressões musicais da cultura popular massiva, deve-se atentar para outros aspectos como a idade, a etnicidade e as classes sociais, fatores que, se em um primeiro momento parecem exteriores ao campo musical, acabam sendo incorporados como partes importantes das expressões musicais. DA ANÁLISE O segundo CD solo de Marcelo D2, vocalista do grupo de rock Planet Hemp foi lançado pela Sony Music em 2003 e chama-se “À procura da batida perfeita”. Basicamente todas as faixas podem ser enquadradas no gênero musical rap, apesar da peculiaridade do disco que desde o título até a sonoridade procura um diálogo intertextual com o samba. Vale lembrar que apesar do gênero rap está intimamente associado ao movimento hip hop, dificilmente os integrantes desse grupo aceitariam Marcelo D2 como um membro do hip hop2 devido a alguns fatos estruturais como o contrato com exposição massiva de sua personalidade e dos videoclipes, bem como, talvez, pouca inserção no cotidiano desse movimento. De qualquer modo , a audição do CD deixa claro sua relação com a musicalidade rap. Uma das características essenciais do gênero rap é a tensão permanente entre o local de origem de seus intérpretes, a vida dura nos guetos e favelas, e a visibilidade que alcançada, sendo que hoje vários cantores de rap frequetam regularmente as paradas de sucesso nos EUA. Isso acabou criando um estado de conflito permanente entre a idéia de autencidade vs cooptação. Um outro ponto polêmico do rap está intimamente associado à misogenia que alguns rappers expressam em canções e atitude. Mas, sem sombra de dúvidas, parte do sucesso do gênero está ligado ao modo como o rap serve de veículo engajado para a expressão de insatisfação dos jovens , em geral negros, da periferia em relação às dificuldades e durezas do cotidiano nos guetos das grandes cidades. O surgimento da cultura hip hop é creditado ao músico Afrika Bambata que na década de 70 formou o grupo “The Zulu Nation” como uma tentativa de canalizar a raiva dos adolescentes do Bronx diante do processo de realocação de casas e ruas previstos no plano de reurbanização de Nova Iorque. Em um primeiro momento, a falta de condições econômicas e técnicas ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.31-46 39 para se tocar um instrumento tradicional como guitarra, baixo e bateria, acabou gerando uma qualidade urbana única ao rap, a reinvenção da música à partir de bases prontas de antigos discos de vinis, dando ênfase desse modo à figura do DJ (Disk Jockeys) não mais como aquela/aquele que toca música, mas que a reinventa para o “proseado melódico” do rapper. De uma maneira generalista, pode-se dizer que Rap é um modo de expressão musical ligado à poesia oral tendo como base um ritmo criado sobre uma batida 4/4 tocada de modo reiterativo. Essa batida é forjada no encontro da mixagem dos vinis com as bases rítmicas. O DJ acabou se afirmando na cultura musical contemporânea como um músico bricoleur. Outro ponto que merece ser destacado na trajetória do rap são seus aspectos cosmopolitas, talvez devido a sua gênese e sua base tecnológica, a sonoridade rap está intimamente ligada à arquitetura urbana das grandes cidades, tanto que hoje, ninguém se surpreenderá se encontrar como trilha sonora das favelas cariocas ou dos guetos norte-americanos uma base rap, pelo contrário, essa parece ser um caminho sonoro já assimilado pelo imaginário musical contemporâneo. Só que esses aspectos cosmopolitas não significam, necessariamente, abrir mão das particularidades sonoras e linguísticas presentes nas apropriações locais do rap. Ao contrário de gêneros musicais como o heavy metal ou o psychobilly, as diversas apropriações do rap ao redor do globo, como na França, no Quebec ou em Cuba, alimentam-se da língua e das gírias locais, criando modos característicos de corporificar um gênero musical globalizado. Isso não quer dizer que gêneros que se valem da língua inglesa, independentemente do local em que se manifestam, não se valem de negociações com a cultura local e, sim, que no rap esse é um fator essencial, ressaltado pelas diferentes línguas que são utilizadas ao redor do globo. Uma rápida olhada pela capa do segundo CD de Marcelo D2 permite ao ouvinte inferir que se trata de um produto que procura estabelecer relações entre uma tradição musical e os elementos cosmopolitas do rap. Não há delongas, além do desenho estilizado do rosto de Marcelo D2, observa-se um pandeiro, uma cuíca, um atabaque, uma pick up (toca-discos) e uma mesa de som. Isso sem contar todo apelo gráfico do universo “grafiteiro”, que como já foi sublinhado é parte integrante da cultura hip hop. O CD traz inclusive uma sobrecapa que pode ser utilizada como uma máscara3 para se “grafitar o logotipo D2. A parte de traz da sobrecapa traz ilustrações explicativas em quatro etapas sobre o modo de utilização da máscara. Outro aspecto que merece destaque na parte gráfica é a ilustração do personagem pertencente ao grupamento hip hop na contracapa que, além de estar aplicando a máscara para “grafitar”, é imediatamente reconhecido pela mochila e o “moletom” com capuz característico da vestimenta utilizada pelos fãs da sonoridade rap. 40 Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita Para a análise musical optou-se pela faixa 3 “VaiVendo” 4, como toda seleção de material para análise, a escolha possui traços arbitrários. Pelo menos em teoria todas as 11 faixas dos CDs poderiam ter sido analisadas em suas especificidades. Mas como a audição do CD demonstrou que quase todas as canções tratam do encontro entre a batida do samba e a levada rap, a escolha de “Vai Vendo” é justificada por ser uma canção em que essa temática e os diálogos entre elementos da sonoridade rap e do samba são utilizados como leitmotiv dos sons e das letras. (…) a canção vai além de todas estas linguagens e informações específicas, realizando-se como um artefato cultural que não é nem música, nem poesia (nos sentidos tradicionais), nem pode ser reduzida a um reflexo singular de totalidade que a gerou (da sociedade, da história, do autor ou do estilo musical). (NAPOLITANO, 2002, p.97) Logo na introdução da canção nota-se o percurso tenso e dialógico que irá caracterizá-la. No caso, a voz de um sambista, com a ambientação sonora de uma roda de samba apresenta Marcelo D2, que, por sua vez, apresenta a canção, que, assumindo a postura do MC (Mestre de Cerimônias) de rap anuncia: “vocês estão prontos para um ´rolé`?(…)Um rolé por qualquer banda, do hip hop ao samba”. Em termos sonoros a contraposição, ou sobreposição, da batida tradicional do samba em uma garrada com a batida 4/4 direta do rap fornece o corpo rítmico da canção. Não é difícil notar que os referidos “Versos à procura da batida perfeita” que abrem a canção, citando o título do álbum, explicitam o encontro entre rap e samba. A própria voz de Marcelo D2, sonoridade rapper, masculina, incorpora uma espécie de malandragem de rua, poesia oral característica tanto do samba, bem como da cultura hip hop. A voz de Marcelo D2 transforma-se em um instrumento musical, uma mídia que expressa um corpo afro-brasileiro estabelecido na tensão entre o local (samba) e o global (rap). A repetição de uma base “funkeada”, próxima ao chamado “sambarock”5 , oferece um alívio melódico em relação à repetição que caracteriza a expressão vocal do rap, marcada por melodias quase faladas , reforçadas pela base rítmica. Em termos sonoros as estrofes reiteram a base rap enquanto o refrão sugere um alívio, uma pausa para “respirar” anunciada pelo naipe de metais sampleado. Em termos gerais pode-se perceber que “Vai Levando” é caracterizada pela polifonia e pela repetitividade característica dos cenários urbanos contemporâneos. A letra é um jogo constante entre a “incorporação” e “excorporação” das sonoridades, da ambientação e da tensão que caracterizam o encontro rap/samba6 . “Pau que nasce torto se endireita” e a citação e o reconhecimento da família de Marcelo D2 são expressões da bipolaridade “força de vontade vs meio ambiente”. O ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.31-46 41 predomínio do “querer” é reiterado na transcedência do meio “Nem Mané Galinha, nem Zé pequeno” (personagens ligados ao tráfico no filme Cidade de Deus). Uma das características do rap, e também comum no samba de roda, é a nomeação de quem está falando, “Marcelo D2 boné ou cabelo black”, localizando não só quem fala, como também a vestimenta e a filização à cultura negra. Tal como no samba tradicional, o rap também valoriza a citação de sua linhagem. Assim, Vai Levando mistura desde nomes tradicionais do samba, “Candeia”, intérpretes contemporâneos “Seu Jorge”, com o “personalidades” do rap, “De Mos Def a Bambatta”. Reconhecendo os traços comuns que caracterizariam a improvisação e a “versificação” dos encontros de rappers e de sambistas: “Partideiros, repentistas, versadores”. Mas esses encontros permanecem tensivos, tal como foi apontado na base rítmica e melódica, o refrão reforça que Marcelo D2, aquele que personifica esse encontro, sente-se deslocado: “Eu vim com o pesadelo do Pop”, o não-reconhecimento e a desconfiança da cultura hip hop, afinal além de elementos “pop” como o refrão, Marcelo D2 é contratado de uma mega-gravadora, a Sony Music. Por outro lado, a letra também expressa a desconfiança dos sambistas em relação ao universo rap: “Eu sei que no samba eu represento o hip hop”. Esse corpo em trânsito é reforçado pela referência ao local que se desliga do peso excessivo da tradição, traço configurado na citação de duas importantes estações de trem no Rio de Janeiro e em Nova Iorque: “ Da Central do Brasil à Penn Station”, dando idéia de trânsito e interconexão. Desse modo, a mistura, o tensivo e a bricolagem acabam sendo reconhecidos como “positividades”, realçando a mistura entre a tradição e a novidade: “Não tem parada que não pode”. “Vai Levando” dá expressão a um corpo que transita pelo ritmo constante e aberto configurado na processualidade dos sons percussivos e da base rap. Assim, a canção apresenta uma “narratividade” que remete tanto ao rap como à inspiração da tradição, “No samba de raiz onde eu me inspiro e posso buscar, minha rima e até meu iaiá iaiá”. A melodia acaba se apresentando como a possibilidade de expressão dos paradoxos e potenciais das tensões e apropriações entra os traços globais e locais. “Come down the selector”, as misturas de linguagens e sonoridades se transformam em possibilidades de vivências no tecido cosmopolita. Desse modo, o caminho em espiral que vai da caracterização dos gêneros da música popular massiva à produção de sentido localizadas na análise de uma canção específica indica que parte do prazer do consumo musical está diretamente ligada ao modo como jogamos com as estratégias textuais “genéricas”, ao modo como respondemos às sonoridades e às vozes que nos são endereçadas (discordando, concordando ou desautorizando). Mas, também, nas negociações que envolvem à incorporação dessas “vozes”: cantando sozinho, gritando com a audiência e/ou 42 Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita respondendo corporalmente. Há um jogo entre o corpo presente no gênero e sua “corporificação” particular, entre o personagem que protagoniza a canção, os personagens citados implicitamente e o próprio endereçamento do produto musical. Na análise da música popular massiva trabalha-se com camadas de interpretação, textualidades que se sobrepõem. As canções constituem expressões que envolvem o corpo, o aparato técnico-midiático, a performance e os personagens envolvidos nesse jogo. Assumindo a complexidade desse processo, o pesquisador estará apto a reconhecer tanto os limites do trabalho interpretativo, bem como a importância desse processo para a compreensão de uma dimensão importante de nossas vivências diante da comunicação e cultura contemporâneas. JEDER SILVEIRA JANOTTI JR é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia e autor do livro Aumenta Que Isso Aí É Rock and Roll: mídia, gênero musical e identidade (Editora E-Papers, 2003). ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.31-46 43 NOTAS 1. MARCELO D2. À Procura da Batida Perfeita. Sony Music, 2003. 1 CD. 2. Além de uma forte ligação com ONGs e movimentos sociais o movimento hip hop, surgido inicialmente no Bronx em Nova Iorque, está ligado a quatro elementos básicos: o break (a dança de rua), os MCs (Mestres de Cerimônia) – os cantores e agitadores do rap, os DJs – ou seja, os que tocam as pick ups e os grafiteiros; na visão dos participantes dos movimento esses quatro elementos seriam formas de inserção dos negros em atividades culturais ligadas ao meio-ambiente de pouco poder aquisitivo de onde surgiu o hip hop. 3. Recorte vazado, muito utilizado com filmes de raio X, que quando apoiados sobre uma superfície permite que o grafiteiro aplique o spray sobre a base, fixando somente os dizeres ou desenhos vazados. 4. Faz-se necessário realçar a audição da música para a compreensão do processo analítico aqui apresentado. 5. Espécie de apropriação brasileira de elementos do funk norteamericano dos anos 70 misturados às batidas locais. Entre os músicos que mereceram esse rótulo, pode-se destacar Jorge Ben Jor, Trio Mocotó e Gerson King Combo. 6. “Versos a procura da batida perfeita/ Eu sei que pau que nasce torto se endireita/ E eu exemplo vivo continuo na luta/ Graças ao Stephan , Lourdes e Luca/ Eu tô ligado na parada e sem crocodilagem/ Safado é safado de humilde a maladragem/ Nem Mané Galinha e nem Zé pequeno/ Eu sô aquele que cê sabe o nome e vai vendo/ Marcelo d2 boné ou cabelo black/ não sei se o beck que me fuma ou sou eu quem fuma o beck/ md2 é a sigla que vem no tag/ não sei se sirvo o rap ou o rap é uem me serve/ fruto do andar criado na lapa/ do Seu Jorge a Candeia de Mos Def a Bambataa/ Declaro meu respeito a todos os rimadores/ Partideros, repentistas e claro os versadores/ Porque quem versa versa não fica de conversa/ E se tem pressa rima melhor porque se estressa/ E a minha é dessa saca só saca só/Falei que eu vim com o pesadelo do pop/ Eu sei no samba represento o hip hop Um bom partideiro só chora versando/ vai da água para o vinho e não fica se lamentando/ À procura da batida perfeita eu continuo rimando/ burn bay burn eu continuo queimando/ saca só todo mundo que eu não vou repetir/ Intelecto de rua pronto pra se divertir/ E aproveito cada instante ccom o ar que eu respiro/ Sagacidade e sem precisar resolver no tiro/ Da Central do Brasil à Penn Station/ Os mandantes que eu sigo são do Zulu Nation/ E mesmo que não me deixem e ainda que se queixem/ As portas que se abrem cumpadi nunca mais fecham/ No samba de raiz onde eu me inspiro e posso buscar /Minha rima e até mesmo meu iaiá iaiá/ Não tem parada que não pode então saca só cumpadi (…)” 44 Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENNETT, Andy. 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Nosso outro foco de interesse é o que chamamos de dimensão comunicativa da música brasileira. Nele, apresentamos um breve mapeamento da produção acadêmica sobre o tema da música popular brasileira, com o objetivo específico de discutir como o aspecto da comunicação na música tem sido tratado – ou melhor, tem sido ignorado - pelos estudiosos. Se os dois primeiros momentos do texto são marcados pela exposição dessas premissas, no terceiro explicitamos as hipóteses de nossa abordagem da música eletrônica, apontando algumas questões que este objeto empírico permite-nos articular com as temáticas anteriormente apresentadas. Ainda que brevemente, apontaremos para aspectos das diversas apropriações tecnológicas que os artistas desse estilo de música promovem e como eles efetivamente se relacionam com a Indústria Cultural, seja alterando os “tradicionais” padrões de produção, circulação e consumo, seja negociando a influência midiática na construção dessa música como estilo musical. Enfim, trata-se de um trabalho que explora, de forma ensaística, as possibilidades de se pensar as relações entre música e comunicação no Brasil, a partir de um estudo de caso. MÚSICA E NOVAS TECNOLOGIAS DA COMUNICAÇÃO Tornou-se freqüente relacionar a música eletrônica com o desenvolvimento das tecnologias digitais, designando aquela como um típico fenômeno da cibercultura (Lévy, 1999). Ainda que também consideremos esta articulação relevante, interessa-nos aqui distinguir diferentes abordagens acerca da cibercultura. Primeiramente, buscamos nos afastar de certa perspectiva marcada por uma abordagem determinista, utópica, de matriz técnico-libertária, que entende a comunicação medida por computador como a base de um novo espaço público em ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.47-59 47 que se reconfiguram e otimizam as interações sociais, criando um ambiente propício à troca, à reciprocidade, à criação de laços afetivos. Nesse ambiente informacional descentralizado e rizomático, relações mais democráticas entre todos os indivíduos emergiriam “naturalmente” tão logo todos possam, sem prévia restrição, produzir e fazer circular informação. Conseqüentemente e/ou ao mesmo tempo, as sociedades tenderiam à conexão generalizada através das redes telemáticas, onde tudo e todos atuam no projeto de construção de uma inteligência coletiva (Lévy, 1993; 1999). Em poucas palavras, A cibercultura é a expressão da aspiração de construção de um laço social que não seria fundado nem sobre links territoriais, nem sobre relações institucionais, nem relações de poder, mas sobre a reunião em torno de centros de interesses comuns, sobre o jogo,sobre o compartilhamento do saber, sobre a aprendizagem cooperativa, sobre processos abertos de cooperação. (Lévy, 1999; 130). Aqui, a estrutura de comunicação em rede é entendida como fundante de uma nova forma de relação social necessariamente mais lúdica, horizontal, democrática e participativa. Contrariando este argumento, estudos pontuais (Castells, 1999; Sá, 2001) demonstram que o ciberespaço engloba diferentes e conflitantes grupos sociais e formas de expressões que ultrapassam (por vezes, rejeitam) o projeto de bem comum – seja aquele representado pela noção de inteligência coletiva (Lévy, 1993; 1999) seja nos termos de um espaço público ampliado de matriz habermasiana. Desta forma, ainda que acreditemos que as novas tecnologias da comunicação possam reconfigurar aspectos da sociabilidade do mundo contemporâneo, cabe distinguir esta premissa da perspectiva anterior, que articula as novas tecnologias a um projeto de sociedade democrática, com valores que representam mais elementos ideais do que efetivos e possíveis na rede3 . Há ainda, no extremo oposto, teorias que tratam de forma apocalíptica os “efeitos” e “impactos” das tecnologias digitais na vida social contemporânea, enfatizando aspectos como a radicalização da sociedade de controle, nos termos deleuzianos; da realidade manipulada digitalmente; das inferências no corpo humano no sentido de controlá-lo melhor. Por mais que apresentem interessantes discussões e contrapontos ao argumento anterior, esses trabalhos compartilham o problema de seus antagonistas “integrados” – uma super-valorização dos atributos tecnológicos em detrimento da concretude das relações sociais. Outra vertente de estudos sobre as tecnologias do virtual define a cibercultura como um “dado”, ou como o principal elemento estruturante da sociedade 48 Simone Pereira de Sá e Leonardo Marchi - Notas para se pensar as relações entre música e tecnologias da comunicação contemporânea.(Lévy; 1999; Trivinho, 2003). Desde então, a cibercultura estaria estruturando todo o funcionamento social, político e econômico do sistema capitalista. Em suma, entende-se que a cibercultura nomeia a macroconfiguração de época que, manifesta desde (pelo menos) as três últimas décadas, implica e articula tanto o arranjamento societário ao nível da infra-estrutura tecnológica quanto a atmosfera simbólica, imaginária e comportamental correspondente a fase da história do capitalismo organizada e permanentemente modulada a partir do, com base no e através do processo extensivo e irreversível de informatização das práticas e relações sócioculturais, de virtualização dos objetos e corpos e de ciberespacialização do território, em escala local, nacional e mundial. (Trivinho, 2003; 61). Apesar do notável esforço desses estudiosos para compreender as transformações que as tecnologias digitais têm promovido na vida econômica, política e social, essa visada tende a perceber toda expressão da cultura contemporânea como encompassada pelas tecnologias digitais, tratando dos mais distintos fenômenos sociais como resultantes da cibercultura. Nesse caso, ainda, a noção de cibercultura torna-se questionável, pois reificada e compreendida de forma substantiva. Ambas as abordagens trazem consigo, ainda que em graus diversos, um ponto em comum que obscurece uma discussão mais detida sobre a questão tecnológica. De fato, Nessas análises, a inovação técnica é apresentada como uma causa de melhoria social e liberação política e intelectual, uma fuga histórica da antiga mídia repressora. (…). As forças ideológicas que cercam novas tecnologias produzem uma retórica de novidade, diferenciação e liberdade que funciona para ocultar a semelhança estrutural entre mídias superficialmente heterogêneas. (Aarseth, 1997; 14). Em contraponto a estas posições, nossa perspectiva remete a idéia de cibercultura primeiramente à noção de cultura, na tradição interpretativa da antropologia, como um conjunto de valores, crenças, formas de pensar de um grupo, entendidos na sua lógica simbólica. Desta forma, a cibercultura não é um mundo acabado e ideal; é antes o conjunto do emaranhado de códigos múltiplos e plurais, fruto de um constante apropriar e refazer social através das redes digitais, cujas “teias de significados” – conflituosas, intrincadas, heterogêneas - cabe ao pesquisador desvendar. (Geertz, 1998). Além disto, interessa-nos particularmente interpretar a questão tecnológica a partir da dinâmica entre meios, indagando como um meio – ou tecnologia – reconfigura experiências anteriores. Nesse sentido, remetemo-nos ao trabalho de Bolter & Grusin (2000) em Remediation4 . Nesse texto, os autores questionam a aura de inovação que ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.47-59 49 os estudos sobre as novas tecnologias imprimem em suas análises, caracterizando uma abordagem que sempre menospreza as possibilidades tecnológicas e sociais das mídias tradicionais. Com efeito, Bolter & Grusin percebem toda nova tecnologia em profundo diálogo, dívida e desafio às antigas. Dessa forma, As novas mídias estão fazendo exatamente o que suas antecessoras fizeram: apresentando-se como versões remoldadas e melhoradas de outras mídias. A mídia digital visual pode ser melhor entendida pela forma como honram, rivalizam e revisam pinturas em perspectiva linear, fotografia, cinema, televisão e impressos. Nenhuma mídia hoje e, certamente, nenhum acontecimento avulso da mídia, parece fazer seu trabalho cultural isolado de outras mídias ou mesmo de outras forças sociais e econômicas. (Bolter & Grusin, 2000; 65). Além disso, apontam para os efeitos reformuladores que as tradicionais tecnologias adquirem no novo contexto criado. Em outras palavras, O que a nova mídia traz de novo são as formas particulares através das quais elas remoldam mídias antigas e a forma com que as mídias antigas se reinventam para responder aos desafios da nova mídia. (Bolter & Grusin, 2000; 65). Esse processo, os autores denominam remediação e o percebem, de certa forma, como característico da história da inovação tecnológica dos suportes, tão logo, para eles, toda nova mídia é pensada e representada como, por um lado, em continuidade e por outro desafiando as tecnologias em voga num determinado momento. A partir destas observações, interessa-nos compreender o estudo da cibercultura como um contínuo e plural processo de inovação e reapropriação tecnológica, cujo desenvolvimento remonta ao diálogo com boa parte da história das tecnologias da informação e da comunicação. Assim, pretendemos afastar quaisquer determinismos tecnológicos e entender como as inovações são inscritas na história. A DIMENSÃO COMUNICATIVA DA MÚSICA BRASILEIRA No caso da sociedade brasileira, a música popular tem uma importância capital como instrumento de dramatização da vida política, dos valores sociais, dos papéis sexuais, do poder, dos infortúnios, da morte e da doença, do amor, do ciúme, da vingança e da indiferença, do trabalhador, da boemia e da malandragem, da cidade e do campo. Importância que, nas sociedades burguesas tradicionais, é desempenhada pela literatura. Basta mencionar um tema para encontrar uma canção popular que o comentou – e o fez com inteligência e sofisticação, pondo em foco e/ou relativizando algumas de suas verdades. 50 Simone Pereira de Sá e Leonardo Marchi - Notas para se pensar as relações entre música e tecnologias da comunicação A citação acima, extraída da análise de Roberto da Matta (1981) sobre a música de carnaval, reitera com precisão uma observação que não só intelectuais de momentos distintos mas também o senso comum compartilham – o de que, no Brasil, ao lado do futebol, a música popular é uma das principais expressões para a articulação da identidade. Mario de Andrade dizia ser a música a “criação mais forte e a caracterização mais bela de nossa raça”, em Gilberto Freyre esta é a nossa “arte por excelência”; Antônio Cândido, por sua vez, refere-se à música popular dos anos de 1960 como “um dos fatos mais importantes da nossa cultura contemporânea”; Jeffrey Needell ressalta a “contribuição rica e difusa” da música do povo no período da belleépoque brasileira. (cit. in Vianna, 1999; 33)5 . Alberto Ribeiro da Silva, em trabalho sobre a censura à MPB, referenda este argumento ressaltando que, No Brasil, a partir do fim dos anos 20, é impossível pensar a cultura das camadas populares e médias urbanas sem que se dedique alguma atenção à música popular. (Silva, 1994; 11). Se estas fontes, dentre outras, ressaltam a relevância da música na cultura e na sociedade brasileiras, intriga-nos a timidez com que os estudos relacionados ao campo comunicacional têm explorado essa temática. Num breve mapeamento da bibliografia produzida no país, podemse identificar duas principais vertentes. A primeira é constituída de obras escritas por críticos musicais, jornalistas ou pesquisadores autônomos, cujas principais preocupações residem em discutir, ou melhor, defender qualidades estéticas dos gêneros, a partir da construção de linhagens, legitimação de movimentos, visando inserir certas expressões na tradição da música popular brasileira (Máximo e Didier, 1990; Cazes, 1998). Ainda nessa linha de pesquisa, encontramos um certo tipo de produção que poderíamos chamar testemunhal ou memorialista, uma vez que é constituída por auto-biografias ou “retratos de época” narrados por aqueles que viveram ou tiveram acesso a narrativas de momentos históricos importantes da construção da música popular brasileira no século XX. Especificamente, há uma expressiva produção que se caracteriza por trabalhos engajados no “resgate” de personagens, estilos musicais e celebrações com forte predominância de estudos sobre samba, carnaval e folclore. Em geral, essas abordagens insistem no argumento da contínua deterioração estética da música popular tão logo ela tenha entrado em contato com a Indústria Cultural. Paradoxalmente, acredita-se que, por um lado, essa música caminha cada vez mais na direção da ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.47-59 51 espetacularização e, por outro, perde espaço para a importação de gênero estrangeiros, que ameaçam as expressões genuinamente brasileiras (entre os muitos títulos publicados, ver: Cabral: 1974; Carneiro, 1987; Silva et Alli: 1980; Tinhorão: 1969). Nesta perspectiva, deve-se entender que predomina uma visão romântica da música, na medida em que ela é considerada a expressão máxima da cultura popular, que por sua vez é pensada no singular, de forma homogênea e a esta são atribuídas características como pureza, comunitarismo, primitivismo e autenticidade (Cf: Burke, 1989), constantemente ameaçadas frente aos processos combinados de expansão do capitalismo e da cultura de massas. Sem desmerecer o importante esforço de preservação da memória cultural resultante destas preocupações, esta ótica torna-se problemática ao essencializar o fenômeno da música popular, apostando na sua cristalização e desconsiderando as dimensões híbridas e metamórficas de sua construção (Vianna, 1999), que lhe dão vitalidade e dinamismo. Numa outra vertente geral, situam-se os trabalhos marcados pela perspectiva das ciências sociais e/ou da historiografia, que se interessam preferencialmente pelos aspectos rituais da música no Brasil, considerando-a como um “fato social total” em que são articuladas ordens e categorias diversas da sociedade brasileira. Na análise do Carnaval – como “ritual de inversão” – conforme o clássico estudo de Roberto de Matta (1981); nos estudos de caso que se ocupam de Escolas de Samba específicas, tais como os trabalhos de Cavalcantti (1995) e Goldwasser (1975); assim como nos ensaios que se ocupam de aspectos específicos das Escolas: as letras de samba-enredos (Augras, 1992) ou as relações entre samba e jogo do bicho (Chinelli & Machado; s.d.); da temática racial (Cavalcantti, 1990) ou das políticas culturais que consolidam o samba nos anos de 1930 (Vianna, 1999), vamos encontrar as reflexões críticas mais estimulantes. Dialogando com esses autores, encontram-se ainda obras marcadas pela pesquisa historiográfica, em que se busca apreender os “significados profundos” da festa através do tempo e do espaço (Queiroz, 1992). Com o objetivo de dar conta do movimento histórico, da multiplicidade de carnavais e seus significados para diferentes grupos que deles participam (Pereira, 1994), estes trabalhos complementam e enriquecem, de forma crítica, as análise anteriormente citadas. Ainda que o conjunto dessa produção represente uma expressiva contribuição para os estudos da música popular brasileira – seja na forma de documentos seja na forma de reflexão crítica – ela contrasta, como já mencionamos, com a parca produção existente no âmbito dos estudos comunicacionais brasileiros. 52 Simone Pereira de Sá e Leonardo Marchi - Notas para se pensar as relações entre música e tecnologias da comunicação Ao contrário da bibliografia sobre o cinema, a imprensa ou mesmo a televisão no Brasil – temas que consolidaram grupos de pesquisa nos diversos programas de pós-graduação –, a dimensão comunicativa da música popular e de seus produtos/suportes (disco de vinil, fita magnética, videoclipes, DVD, CDs, entre outros itens de uma longa lista) continua quase inexplorada. Em outras palavras, as relações da música popular no contexto da indústria cultural, da cultura de massas e das tecnologias da comunicação e ainda suas relações no âmbito das esferas de produção, circulação e consumo, permanecem como um território amplo e fértil, ainda pouco explorado pela comunicação, a exceção de esparsos e preciosos trabalhos (Herschman, 2000 ; Villaça, 2001; Janotti Jr, 2003 – entre outros). O ASPECTO COMUNICATIVO DA MÚSICA ELETRÔNICA No que concerne aos estudos sobre novas tecnologias da informação e da comunicação, a música eletrônica nos interessa enquanto representativa de um processo mais longo de intervenção tecnológica na produção musical – desde a invenção de tecnologias de reprodutibilidade do som, da criação de uma indústria do entretenimento e de novas experiências estéticas (Benjamin, 1994; Gitelman, 1999; Sá, 2002) às reformulações que esse estilo musical vem imprimindo nesses padrões (Shapiro, 2000; Reynolds, 1999; Sá, 2003a; 2003b). Assim, percebemos a música eletrônica como expressiva da cibercultura na medida em que aquela apresenta uma série de apropriações tecnológicas que reconfiguram o tradicional sistema de produção, circulação e consumo de música. Nesse sentido, cabe discriminar níveis distintos de debate. O primeiro aspecto se liga à questão da produção musical. Chamou-nos a atenção como os produtores e/ou disc–jóqueis (DJ) utilizam diferentes tecnologias para produzir música, sem mesmo ter conhecimento musical técnico. Assim, a música eletrônica é marcada pela incessante e rica reutilização de sonoridades e equipamentos tecnológicos que não figuram – ou melhor, não figuravam – como típicos instrumentos musicais. Dessa forma, boa parte dos valores estéticos da música eletrônica se baseia no emprego de tecnologias na busca de um “estranhamento” à tradicional percepção musical e conseqüente ampliação de seus valores. Esses artistas encontram nas tecnologias digitais artefatos altamente eficazes para apropriação e alteração de sons (sampling), reorganização de sonoridades pré-gravadas (remixagem), formas de gravação musical (estúdios virtuais) entre outras técnicas. Ao mesmo tempo, a música eletrônica está completamente relacionada à cultura do DJ, que se caracteriza por retomar e transformar “antigas” tecnologias – como os toca-discos, o vinil, sintetizadores e aparelhos de gravação ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.47-59 53 analógicos – em poderosas ferramentas de composição musical, conjugando alta e baixa tecnologia numa música de ares futuristas. É fundamental destacar como esse processo leva a cabo discussões sobre os limites da indústria de música. O tema mais discutido está relacionado aos direitos autorais da indústria fonográfica. Uma vez que a técnica básica de composição da música eletrônica é a reutilização de sonoridades gravadas em discos de outros artistas, as palavras da lei são constantemente ignoradas ou mesmo burladas pelas possibilidades tecnológicas de alteração sonora dos softwares de música. Ainda que a discussão sobre os problemas da colagem seja comum nas artes plásticas6 , somente nas últimas décadas esse tema vem causando apaixonados debates no campo da música7 , sem que tenha se chegado a conclusões e solução satisfatórias8 . No âmbito da circulação, interessa-nos destacar a utilização de diferentes suportes para produção musical. Os artistas de música eletrônica, mesmo tendo nas tecnologias digitais aliados poderosos e práticos, caracterizam-se por trafegar por diferentes suportes, desprovidos das crenças em evolução e superação das tecnologias. Tão logo seu principal pilar seja a cultura de DJ, os artistas se preocupam em produzir suas música em diferentes formatos que vão desde o vinil (de fato, revitalizando essa indústria) e fitas magnéticas até os mais sofisticados arquivos digitais de música, passando pelo polêmico MP3. Ainda que não caiba descrever aqui as motivações dessa diversidade material, salta-nos aos olhos primeiramente a sua coexistência no mercado (mesmo sendo alguns desses itens praticamente extintos no grande mercado de música) e como seus processos de circulação e comercialização passam por regras específicas de um mercado de nicho que, em muitos momentos, guarda suas próprias lógicas de funcionamento9 (Geertz, 1998; Reynolds, 1999), que merecem atenção especial. Quanto à dimensão comunicativa da música eletrônica, pode-se afirmar que, no Brasil, ainda é muito escassa a literatura específica sobre o tema, sendo também caracterizada pelas narrativas auto-biográficas e jornalísticas. (Palomino, 1999; Assef, 2003). Mesmo no exterior, são poucos os trabalhos que privilegiam tal aspecto. Exceções instigantes, entretanto, podem ser encontradas, como no caso de Sarah Thorton (1996). O trabalho dessa autora aponta para a importância de diferentes mídias na construção de grupos sociais reunidos em torno do consumo de música eletrônica. Discordando dos estudos que entendem as mídias como elementos periféricos às subculturas (entre muitos outros, ver Frith, 1981), ou nocivos a sua existência, Thorton apresenta uma nova perspectiva em que reconhece: a) a existência de diversas mídias interagindo no contexto urbano contemporâneo; b) que as mídias são agentes 54 Simone Pereira de Sá e Leonardo Marchi - Notas para se pensar as relações entre música e tecnologias da comunicação fundamentais na forma como “constituímos grupos com as palavras” (pág. 117). A autora entende que os meios de comunicação são “Uma rede crucial para a definição e distribuição do conhecimento cultural. Em outras palavras, a diferença entre estar ou não estar na moda, em alta ou baixa de capital subcultural, correlaciona-se de modo complexo com graus de cobertura, criação e exposição midiática. (Thorton, 1996; 14).” Com efeito, o que Thorton busca trazer à tona na discussão sobre mídias e música é a efetiva – e ignorada – importância dos meios de comunicação na construção dos valores do consumo musical. Mais do que meros instrumentos de atualização e publicização da cultura de música eletrônica, as mídias são agentes importantes na configuração da identidade de um estilo musical, uma vez que, de variadas maneiras, atuam na agregação, discussão, estabelecimento de códigos e regras de sons e comportamentos que, enfim, ajudam a construir o que conhecemos por música eletrônica (Thorton, 1996). Essa relação simbiótica entre música e mídias demonstra, entre outras coisas, que a música eletrônica não se coloca “fora” da esfera de influência da indústria cultural, mas está em constante diálogo com ela – ainda que seja para confrontá-la. Isso é importante para afastar a noção de resistência cultural normalmente atribuída ao estilo, como se ele estivesse fora do circuito de produção-circulação-consumo. Enfim, neste breve ensaio, exploramos alguns argumentos que, esperamos, permitam-nos vislumbrar as possibilidades dos estudos voltados para o estudo das expressões musicais urbanas, da música eletrônica, e suas relações com a cibercultura e os meios de comunicação; demarcando ao mesmo tempo o nosso lugar de fala dentro desta discussão. SIMONE PEREIRA DE SÁ é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da UFF. LEONARDO DE MARCHI é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da UFF. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.47-59 55 NOTAS 1. Pesquisa ligada à linha de Tecnologias do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF, orientada por Simone Pereira de Sá.Conta na equipe com os alunos bolsistas PIBIC Leonardo Gabriel de Marchi e Roberto Jorge Carneiro de Souza Leão, além da participação voluntária do aluno Marcelo Garson. A pesquisa tem o apoio do CNPq através das bolsas de Iniciação Científica e de Produtividade. 2. Ainda que este termo se refira a uma série de produções musicais desde pelo menos meados do século XX, nosso recorte privilegia a música dançante surgida na década de 1980, nos EUA, migrando na década seguinte para a Europa, caracterizando o fenômeno rave, que se espalhou como cultura da música eletrônica para diversos centros urbanos mundiais. 3. Para um mapeamento dos pressupostos dessa proposta, ver Sá, 2001. 4. Aqui, traduziremos o termo como remediação. Para mais detalhes, ver Bolter & Grusin, 2000; Sá 2003a. 5. Respectivamente: ANDRADE , Mário de. Aspectos da Música Brasileira. São Paulo, Ed. Martins, 1965; FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 1974, 3ª edição; CÂNDIDO, Antonio. Educação pela Noite e Outros Ensaios. São Paulo, Ed. Ática, 1987; NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque Tropical. São Paulo, Cia. Das Letras, 1993. 6. É interessante notar a contínua apropriação de técnicas de que falamos anteriormente, a partir da discussão de Reynolds (1999) – ao analisar o que chama de colagem moderna de sons na música eletrônica, ou seja, quando os produtores musicais trabalham para “mexer” tanto em um sample que ele se torna irreconhecível na nova composição – e também do trabalho de Perloff (1993) historiando a técnica de colagem do modernismo russo que buscava descontextualizar os elementos inseridos em suas pinturas. 7. É preciso discriminar que o funk e o hip hop foram os primeiros a colocar essa questão em pauta. 8. Ou seja, a técnica de sampling não foi considerada um elemento novo e à parte nos termos da lei. Até o momento a utilização de um sample reconhecível é categorizada como uma regravação da música ou como plágio, que na verdade são categorias absolutamente distintas do corte e colagem de sons. 9. É valido citar, como exemplo, a distribuição gratuita de vinis chamados White-Label (sem selo de identificação) a DJ importantes para que eles toquem e critiquem o funcionamento das músicas nas pistas antes de seu lançamento oficial. Também peculiar a esse comércio é a venda de fitas cassete e/ou compact discs (CD) de DJ mixando músicas de outros artistas sem autorização prévia. Longe de ser uma mera infração dos direitos autorais, essa atitude é incentivada por essa indústria para disseminação das músicas e dos artistas (Reynolds, 1999; Reighley, 2000). 56 Simone Pereira de Sá e Leonardo Marchi - Notas para se pensar as relações entre música e tecnologias da comunicação REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AARSETH, J. Espen. Cybertext – Perspectives on Ergodic Literature. Baltimore & Londres. Johns Hopkins Press, 1997. ASSEF, Cláudia. Todo DJ já Sambou: a História do Disc-Jóquei no Brasil. São Paulo. Conrad, 2003. AUGRAS, Monique –Medalhas e Brasões: a História do Brasil no Samba. Rio de Janeiro. Editora Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, 1992. BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. São Paulo. Editora Brasiliense, 3ª Edição, v.1, 1994. BOLTER, Jay David & GRUSIN, R. Remediation : Understanding New Media. Massachussets. MIT Press, 2000. BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Média. São Paulo. Cia. Das Letras, 1989. 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ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.47-59 59 Data de recebimento do artigo: 05/10/2003 Data de aceitação do artigo: 05/11/2003 Funk carioca: entre a condenação e a aclamação na mídia João Freire Filho e Micael Herschmann O conceito de pânico moral foi utilizado pela sociologia britânica dos anos 70, nos estudos sobre desvio comportamental e criminologia juvenil (Young, 1971; Cohen, 1971, [1972] 1980, Cohen & Young, 1973). O objetivo destes trabalhos é, em linhas gerais, descrever e analisar o processo mediante o qual uma condição, um episódio, um indivíduo ou um grupo de pessoas passa a ser encarado como ameaça para os valores e os interesses basilares de uma sociedade. Às vezes, o objeto de pânico é bastante recente; em outros casos, já existia há muito tempo, mas repentinamente recebe os holofotes da mídia e torna-se o cerne das preocupações públicas de agentes da lei, religiosos, intelectuais, políticos, entre outros atores sociais com credibilidade e moralidade reconhecida. Às vezes, o pânico se dissipa e logo é esquecido (exceto no folclore e na memória coletiva); em outras ocasiões, apresenta repercussão mais séria e duradoura, podendo ocasionar mudanças nas esferas judiciária e da política social, ou, até mesmo, na forma como a sociedade concebe a si mesma. A chamada sociologia do pânico moral se desenvolveu a partir da já então bem estabelecida teoria do rótulo, perspectiva analítica que considera o desvio uma construção social e não uma qualidade intrínseca de atos ou atores sociais específicos. Tal abordagem está associada especialmente ao trabalho do sociólogo norte-americano Howard Becker (1963), que enfatizou o papel dos agentes de controle social – os “empreendedores morais” – na fabricação do comportamento desviante. Os meios de comunicação de massa são a grande fonte de difusão e legitimação dos rótulos, colaborando decisivamente, deste modo, para a disseminação de pânicos morais. A inter-relação entre forças de controle social, a mídia de massa e certas formas de atividade desviante foi abordada por Stanley Cohen, no seu seminal Folk devils and moral panics ([1972] 1980). O livro logo se tornou uma referência fundamental para os estudos culturais e sociológicos a respeito das subculturas espetaculares juvenis e sua demonização na mídia. Cohen focalizou, em especial, a cobertura sensacionalista das desavenças entre mods e rockers, em locais de veraneio do sul da Inglaterra, nos anos 60. Os conflitos foram ampliados pela imprensa muito além de sua escala e de seus significados reais, gerando um sentimento de grande inquietação no público ante as práticas culturais das duas subculturas jovens (constituídas por membros da classe operária). Ao sociólogo inglês interessava, sobretudo, a dimensão simbólica das ondas de pânico – 60 João Freire Filho e Micael Herschmann - Funk carioca os conflitos morais e os estilos de vidas ameaçados. A criação do pânico moral, no entendimento do autor, fornece oportunidade preciosa para os partidários de um universo simbólico moral forjarem um universo moral antagônico, atacá-lo, e redefinirem, a partir daí, as fronteiras entre o moralmente desejável e indesejável. Entre as teses mais influentes do trabalho de Cohen, destaca-se a idéia de que cada pânico moral tem seu bode expiatório, um “folk devil” sobre o qual o público projeta seus medos e suas fantasias. Isto não equivale a dizer que o “folk devil” é criado pelo pânico moral. O autor fez questão de frisar que, a despeito de usar termos como “pânico” e analogias com o estudo das histerias e das ilusões de massa, não tencionava sugerir que mods e rockers não teriam existido se não fosse o pânico moral ou que teriam desaparecido se tivessem sido simplesmente ignorados. Sua intenção, em realidade, era sugerir que diabolização destes movimentos era uma solução inadequada para a “questão juvenil”. Em primeiro lugar, as atividades dos mods e rockers constituíam somente um aspecto temporário e epidérmico do “problema”; as causas subjacentes do pânico moral eram, de fato, a ambigüidade e a tensão cultural causadas pela mudança social. Trocando em miúdos: o objeto do pânico moral não eram tanto os mods e os rockers quanto a afluência e a liberdade sexual do pós-guerra que eles representavam; sendo assim, estes movimentos juvenis seriam esquecidos dentro de alguns anos, e novas encarnações do Mal emergiriam para substitui-los. A reação exagerada dos guardiões da moral não era apenas míope, mas também contraproducente, servindo, apenas, para incrementar a polarização social – embora este pudesse ser precisamente o efeito político desejado, como demonstraram, posteriormente, Stuart Hall et al. (1978), em sua tentativa de introduzir o conceito de gramsciniano de hegemonia, na análise das formas por intermédio das quais pânicos morais criam condições sociais de consentimento necessárias para a construção de uma sociedade mais centralizada na lei e na ordem e menos inclinada ao “liberalismo” e à “permissividade” dos anos 60. A faceta mais importante deste trabalho era o reconhecimento de que a ideologia não era um processo social baseado apenas na distorção da verdade, mas sim um força que opera continuamente por intermédio da mobilização do “senso-comum”. O relato histórico e teórico mais sistemático do pânico moral foi apresentado por Goode & Ben-Yuda (1994a, 1994b). Cruzadas e pânicos morais podem refletir, segundo os autores, uma busca coletiva de identidade – em esferas tão variadas como a política, a religiosa, a científica ou a cultural – e tornarem-se um fenômeno bastante difundido, principalmente nas sociedades heterogêneas e pluralistas, cujas estruturas possibilitam que a moralidade em si mesma seja foco de debates e negociações contínuas. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.60-72 61 A partir do exame de crônicas e reportagens publicadas na grande imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, no período de 1992 a 2002, procuramos explorar, neste artigo, a pertinência do modelo analítico de pânico moral para entender o tratamento midiático dado ao movimento funk carioca, freqüentemente associado a gangues e organizações criminosas, denúncias de relações sexuais anônimas nos bailes, alienação, danças, letras e gírias de mau gosto, pornográficas e machistas. Argumentamos que, não importa quão útil tenha sido no desenvolvimento de um vocabulário para a compreensão do poder exercido pela mídia, a teoria do pânico moral necessita ser revista e refinada teoricamente, a fim de ajustar-se a relevantes tendências sociais, econômicas e culturais da contemporaneidade. Este tipo de abordagem acerta quando vai além das investigações sociológicas que enfocam padrões de propriedade e controle como os signos da cumplicidade entre mídia e governo. Equivoca-se, no entanto, quando tende a tratar de maneira monolítica e monológica a produção e o consumo midiático. É preciso estar mais atento para a multivascularidade da indústria cultural, em hipótese alguma sujeita a interesses comerciais e ideológicos homogêneos, facilitando, em alguns casos, por meio de inovações tecnológicas e miríades de novos canais de distribuição, a expressão de vozes discrepantes. Em segundo lugar, é necessário observar a complexidade da interação das audiências com os meios de comunicação: toda a campanha de estigmatização e a criação de uma onda de pânico moral em torno do funk carioca – nos noticiários de TV e nas páginas da grande imprensa – acabou, de certa forma, contribuído para que o estilo de vida e a produção cultural dos jovens funkeiros tenham exercido enorme fascínio entre grupos sociais situados muito além dos morros e domínios da cidade do Rio de Janeiro. É justamente este processo ambíguo e interessante de demonização e glamourização midiática do funk carioca que pretendemos abordar, a partir de agora. O FUNK INVADE A CENA MIDIÁTICA Qualquer estudo que se proponha a analisar a trajetória do funk se deparará com um acontecimento crucial: os arrastões e tumultos de outubro de 1992, no Rio de Janeiro. Esses arrastões se tornaram uma espécie de marco de “fundação”, no imaginário coletivo da história do funk e da vida social do Rio de Janeiro (crescentemente identificados a conflitos urbanos). A partir daquele momento, o funk – expressão cultural das periferias e favelas das grandes cidades, quase desconhecida da classe média – ganha inusitado destaque no cenário mediático.1 Entretanto, a trajetória do funk não está apenas marcada pelo estigma. Se, por um lado, são constantes, até hoje, as campanhas na mídia a favor da interdição das atividades dos jovens funkeiros (manifestações socioculturais 62 João Freire Filho e Micael Herschmann - Funk carioca conceituadas como pretexto para a desordem urbana, a exploração do erotismo de menores e a guerra entre galeras ligadas ao tráfico de drogas e aos comandos organizados), por outro lado, a mesma mídia que condena o funk lhe oferece visibilidade, pavimentando o caminho para que o gênero musical se popularize e conquiste um lugar no mercado. O processo de estigmatização midiática não impediu (quiçá, tenha até, de certa forma, contribuído para) que o estilo de vida e a produção cultural exercessem enorme fascínio sobre grande número de jovens de distintas classes sociais que parece ter encontrado, nesse universo musical, formas fundamentais de expressão e comunicação. O debate suscitado por essa diversificação social e ampliação do público gravita em torno, invariavelmente, da seguinte questão: em que medida os jovens vêm sendo “corrompidos”, “desencaminhados” pelo funk? O Estado, apoiado por setores conservadores, vem mostrando-se empenhado, desde meados dos anos 90, em conseguir a proibição dos chamados “bailes de comunidades” (que eram realizados, gratuitamente, nas quadras poliesportivas das periferias e favelas). Esses bailes já chegaram a reunir, nos fins de semana, mais de cinco mil jovens de todos os segmentos sociais, que ali se divertiam, quase sempre de forma tranqüila. Na verdade, um fato chamava sempre a atenção: a preocupação da comunidade com o bem-estar dos freqüentadores do baile, a sua postura hospitaleira. Numa época de intenso temor com a violência urbana, a recepção calorosa dos organizadores e a sua atenção à questão da segurança tornaram esse tipo de baile o grande atrativo de sucessivos verões. Aqueles que clamam pelo fechamento dos bailes (de todos tipos de bailes) oscilam entre o argumento de que o funk, além de incomodar a vizinhança pelo barulho, consiste numa ameaça aos jovens freqüentadores de “boa família” (leia-se de classe média), já que essas festas dão ensejo a brigas entre as galeras e ao convívio promíscuo com “nativos” relacionados com o mundo do narcotráfico. A rivalidade entre as turmas é, no entanto, apenas um dos ingredientes do baile, do qual fazem parte, ainda, a alegria, o humor e o erotismo. A maior parte dos empresários e dos organizadores de baile busca canalizar criativamente essa rivalidade, realizando os chamados festivais de galera, nos quais são realizadas competições entre as turmas que freqüentam a festa. Além disso, a relação do funk com organizações criminosas – instaladas no cotidiano dos bolsões de miséria da cidade do Rio de Janeiro muito antes de o funk surgir como expressão cultural local – praticamente não existe ou é, em geral, superdimensionada. O que há de concreto é uma relativa identificação desses jovens com os atos de virilidade e rebeldia que a vida criminosa possibilita, e isso era expresso em algumas composições que narram o dia-a-dia da comunidade. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.60-72 63 A HISTERIA ANTIFUNK DO FINAL DOS ANOS 90 Para desespero de segmentos conservadores da classe média, a histeria anti-funk relacionada aos míticos arrastões do início dos anos 90 não impediu que o gênero musical se consolidasse, no final de século, como força importante da indústria do entretenimento e da moda – local e nacional. “Trata-se de uma das mais fortes subculturas fashions já vistas no país. As popuzudas saíram da Zona Norte e das favelas para, embaladas pelo som do funk, influenciarem até mesmo um nicho aparentemente oposto, o das patricinhas”, registrou a jornalista Erika Palomino, numa edição do caderno Moda, da Folha de S. Paulo, dedicada à divulgação da São Paulo Fashion Week 2001. Na capa, a branquíssima e louríssima modelo e apresentadora da MTV Fernanda Lima, fazendo a linha “popuzada-chic” (“com jeans customizado Sommer, biquíni e top Rosa Chá, jóias Daslu e cinto Giulliano”), ilustrava a matéria principal “Cultura popuzada – conheça o estilo das meninas que estão dominando o verão no Rio” (30/01/2001). Palomino resumiu, para o leitor neófito, o cobiçado estilo das meninas do funk: “O look é sexy, claro. Calças justíssimas, muito jeans, tops para deixar a barriga de fora e cabelão.” A colunista acrescentou, ainda, que não faltava, naquela ocasião, um hit popozudo nas festas hypes de São Paulo ou do Rio, muitas vezes acompanhado das tradicionais dancinhas com a mão no joelho. O primeiro “crossover” foi feito, segundo ela, na “glamourosa” festa de lançamento do perfume da Forum, no Copacabana Palace, em dezembro de 2000, quando 40 segundos do hino “Popozuda”, da banda DeFalla, deixaram os convidados “passados”. Pouco tempo depois, numa noite memorável, socialites, dondocas, senhoras de gosto supostamente refinado se esbaldaram, no Canecão, no Rio, ao som do batidão do funk; glamourosas e desinibidas, latiram, pularam, fizeram trenzinho e muito mais; na saída do “baile”, embora sorridentes, algumas acusavam dores generalizadas nas juntas e articulações... Mas nem todos se divertiam com a expansão territorial e social do funk carioca. Os discursos de autoridades governamentais e intelectuais contra o gênero passaram a concentrar-se, no final dos anos 90, na questão da sexualidade: o que se condena, de modo mais enfático, desde então, é o erotismo supostamente exagerado dos bailes e o tratamento pejorativo dispensado à mulher, em algumas músicas (ver, por exemplo, Luciano Trigo, “Um tapinha não dói”, O Globo, 13/03/2001, 8). Os títulos impactantes não deixam dúvidas quanto à atmosfera geral de pânico criada por reportagens e artigos veiculados no período: “O funk picante da periferia” (Época, 22/01/2001, 103); “Bonde a toda velocidade” (Jornal do Brasil, Caderno B, 18/02/ 2001, 1, 2 e 4); “A explosão do funk” (IstoÉ, 28/02/2001, 66-71); “‘Engravidei no trenzinho’” (Veja, 28/03/2001, 82-86); “Funk com ficha” (Veja, 09/05/2001, 141). Ora, o erotismo e o humor escrachado – a classe média goste ou não – 64 João Freire Filho e Micael Herschmann - Funk carioca é parte da cultura e dos estilos de vida populares. O funk, como outras manifestações da cultura popular, não é, nem nunca foi, politicamente correto. Contrariando as expectativas das “feministas de plantão”, as jovens convivem de forma lúdica com músicas do tipo Um tapinha não dói, Éguinha pocotó e outras consideradas ofensivas à mulher. Quanto às notícias de adolescentes que supostamente engravidaram nos bailes, vale registrar que esse tipo de argumentação só faz sentido para aqueles que desconhecem a realidade das periferias e favelas brasileiras. Quantas jovens desses segmentos sociais não ficam grávidas após terem conhecido a menstruação apenas duas ou três vezes em suas vidas? Será que todas são funkeiras? Por que, em vez de usar o funk como conveniente bode expiatório, não se desenvolve um intenso programa educativo junto as jovens de classe baixa? CULTURA & ANARQUIA O artigo do poeta e crítico literário Affonso Romano de Sant’anna, “Anomia ética e estética” (O Globo, Prosa & Verso, 17/03/2001, 2), é bastante característico do tipo de objeção que manifestações populares pós-folclóricas, como o funk, sofrem historicamente em nosso país. O autor começa enfatizando sua autoridade para discutir, dentro de um suplemento literário, a “anomia ética e estética” impulsionada pelo funk – afinal, não publicara ele, há alguns anos, o livro (de viés estruturalista) Música popular e moderna poesia brasileira? Suas investidas contra o ritmo do momento se apóiam, inicialmente, na análise (ou melhor, na citação) de duas letras obscenas “alardeadas nas rádios e na tevê, ao som das quais adolescentes e até crianças dançam” (na realidade, as duas músicas em questão tiveram divulgação restrita na grande mídia) e na revelação do secretário de Saúde do Rio de Janeiro sobre o elevado número de casos de gravidez e AIDS contraído durante a “dança das cadeiras” dos bailes (os dados alarmantes foram, posteriormente, revistos pelo governo). O subtítulo do artigo, “Músicas porno-dançantes trazem de volta o que há de pior no machismo”, é altamente enganoso quanto ao real enfoque da reflexão do colunista, que converge mais para uma atualização da problemática conservadora arnoldiana da cultura versus anarquia (Arnold, [1869] 1994) do que para uma abordagem teórica feminista radical. O alvo de Sant’anna é tanto a vanguarda artística mundial contemporânea (que levou ao extremo o culto da transgressão) quanto a indústria cultural brasileira (que se agiganta sob a proteção do clima de licenciosidade pós-ditadura e sob a pressão da globalização, que transforma o cidadão num simples “clone consumista” e faz do Ibope o regulador supremo da produção dos bens simbólicos). A relação entre os dois fenômenos? Simples: do mesmo modo que, na arte, cada um pode fazer o que quiser, porque hoje qualquer coisa é arte, a “marginalidade ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.60-72 65 toma o lugar do sistema, o iletrado se apodera dos meios de comunicação, a quantidade desaloja a qualidade, e aquilo que antes chamávamos de ‘cultura’ agora está exilada como autêntica contra-cultura, uma cultura alternativa”. A anomia ética e estética e até mesmo o “caos” que daí resultam estão verbalizados “inconscientemente” nas letras do funk, tal qual a “análise literária” (sic) pode claramente demonstrar: É impossível ouvir o grito de guerra – ‘tá tudo dominado’ – sem reconhecer aí o eco do PCC ou de qualquer Comando Vermelho. É impossível não reconhecer em ‘um tapinha não dói’ uma variante sedutora da violência contra a mulher e a criança. É impossível não ouvir chamarem mulheres de ‘cachorras’ e não ver o retorno do pior do machismo. (O Globo. Prosa & Verso, 17/03/2001, 2). Diante de tantas impossibilidades interpretativas, só restava clamar por um retorno urgente da ordem – quer dizer, por um pronto restabelecimento do cânone como arma eficaz contra a desordem valorativa promovida (e refletida) pelo funk e pelas vanguardas artísticas. As diatribes de Sant’anna contra o funk trazem à tona, de maneira eloqüente, preconceitos, ansiedades e idealizações que marcam a cartografia intelectual do mau gosto nativo, tantas vezes fundamentada num monoteísmo estético que se converte em ataque furioso ao pluralismo cultural Em nome da preservação dos valores da Cultura com C maiúsculo (comumente associada à “grande arte” e ao produto final de todo um processo de refinamento estético, intelectual e espiritual), do potencial crítico e subversivo da produção estética “autônoma” do modernismo e/ou da proteção de uma cultura popular idealizada (livre de toda ambigüidade, todos prazeres perversos, todas incorreções políticas; “pobre, mas limpinha”), “brasileiros de espírito” de distintas afinidades ideológicas uniram suas vozes, ao longo do século XX, para abafar os “ruídos bárbaros” da cultura efetivamente praticada ou prestigiada pelo populacho crescido no caos de nossas grandes cidades (Freire Filho, 2001).. “Claro está”, conforme salientou Williams ([1958] 1969, 56), “que é mais fácil ser respeitoso e reverente em relação ao ‘povo filosoficamente caracterizado’ que em relação a um público que bulhentamente se manifesta.” A PERIFERIA EM CONTEXTOS DE ALTA VISIBILIDADE ENTRE A CONDENAÇÃO E A EXPANSÃO NAS MÍDIAS Seria, no entanto, caricaturar um relacionamento histórico complexo tratar a mídia unicamente como porta voz da agenda política e dos preconceitos estéticos e morais das classes dominantes. Não se pode negar que, desde os arrastões, o funk ganhou espaços nas estações radiofônicas, e MCs e DJs vêm obtendo grande 66 João Freire Filho e Micael Herschmann - Funk carioca êxito na indústria fonográfica. Discos de cantores como Latino, MCs Claudinho & Buchecha e William & Duda e coletâneas como Funk Brasil e Furacão 2.000 alcançaram ótimos índices de vendagem. O funk conseguiu desenvolver, em alguns momentos de sua trajetória, veículos próprios de divulgação: fanzines de razoável qualidade gráfica, programas diários de rádio FM e programas semanais de TV dedicados, em grande parte ou exclusivamente, ao mundo funk. Nos anos 90, o funk chegou a ser uma indústria que envolvia a realização de bailes, a produção e o consumo de roupas, discos/CDs, aulas de dança em academias, programas de TV/rádio, revistas e fanzines, peças de teatro e sites na Internet. Gerava direta e indiretamente, só nos bailes, 20 mil empregos, movimentando R$ 10,6 milhões. Mais: depois de um período em que esteve menos presente na cena mediática (e na indústria da cultura e do entretenimento), o funk parece ter, no último verão (de 2003/2004), voltado a chamar a atenção dos formadores de opinião. Em matérias publicadas nos principais jornais do país, importantes atores sociais, autoridades, especialistas e DJs celebram a nova “Lei do Funk”2, e apostam num outro ciclo do gênero musical, mais marcado pela legitimação crítica e sucesso comercial do que pela condenação: (...) no Ballroom, meninos e meninas que são figurinhas fáceis do Posto Nove balançam a mãozinha e rebolam até o chão quando o DJ Marlboro começa a tocar. Morro Dona Marta: mesmo sem o teto de zinco, levado pela ventania da semana anterior, a quadra da escola de samba local recebe os fãs da batida. Clube Boqueirão, na vizinhança do MAM: encontro das equipes CurtiSom e Big Mix, os marinheiros de primeira viagem experimentam o volume e o ritmo da música que mexe com o corpo, acelera o coração e chega causar falta de ar. Também se espantam com a multidão que mistura negros e brancos democraticamente. Eles dançam em paz até altas horas. O bonde do funk circula pela cidade inteira. E cada vez mais lotado de passageiros. ‘ – O funk é a cola da cidade partida – define DJ Marlboro, que em outubro, no Tim Festival, tocou até as sete da manhã e mostrou que, desta vez, o ritmo pode ter descido o morro definitivamente para contagiar da Zona Norte à Zona Sul. (...) Marlboro é um dos maestros de um movimento que este ano, além do TIM, invadiu lugares antes inimagináveis. Foi parar na TV, em horário nobre, com direito a episódio inteiro da minisérie ‘Cidade dos Homens’ e à musa Carolina Dieckman seduzida pelo pancadão no programa ‘Cena Aberta’. E se transformou no tema de um aclamado desfile da Blue Man no Fashion Rio. Se antes já era reverenciado por artistas como o Ministro da Cultura, Gilberto Gil, os cantores Caetano Veloso e Fernanda Abreu e a atriz Regina Case, hoje domina a noite de lugares tão díspares quanto a Mariuzin, em Copacabana, onde Marlboro toca hoje a partir das 17 horas, e a Fundição Progresso, que vai sediar um animado baile no ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.60-72 67 próximo sábado. Uma das promessas do verão é a noite funkeira que a sede do Flamengo, na Gávea, vai abrigar em todos os fins de semana de janeiro.”3 Cabe ressaltar que, não é primeira vez que o funk goza de um momento de um relativo prestígio. Na realidade, revendo sua trajetória, poderse-ia argumentar que o mercado funk se desenvolveu à margem ou nos interstícios da indústria cultural. Entretanto, em vez de sair de uma condição informal/ marginal e consolidar-se como um subproduto internacional da world music, tal como o samba e outras expressões culturais reunidas sob o rótulo axé music, o funk, apesar do sucesso, até o momento, manteve uma condição ambígua – periférica e central em relação ao mercado e à cultura urbana. Sua condição lembra a já vivida pelos punks/skinheads (na Inglaterra), e pelos b-boys, nos (Estados Unidos), que ocuparam um lugar peculiar no imaginário coletivo, permitindo que se desenvolvesse tanto um nicho de mercado (criando empregos, acumulando lucros e investimentos e também diversificando suas atividades e seus produtos) quanto que se anatematizassem e excluíssem milhares de jovens. Assim, o funk vem ocupando no mercado, no espaço urbano e nas políticas públicas um lugar ambíguo, ora um pouco mais marginal, ora um pouco mais central. Parece construir, por uma via sinuosa e por constantes tensões, conflitos e negociações, um conjunto de códigos culturais (com referências locais/ internacionais) que lhe tem permitido ocupar, simultaneamente, uma posição periférica e central na cultura contemporânea. Oferece tanto a possibilidade de construção de uma visão crítica e/ou plural do social quanto a sua mediação e administração pelas estruturas que gerenciam os ritmos do espetáculo e do consumo. Em contraste com o que uma perspectiva apocalíptica das velhas e novas mídias poderia sugerir, há, portanto, conforme assinalamos anteriormente, um enorme potencial de luta, na esfera midiática, para os grupos minoritários, desde que eles saibam espetacularizar-se, realizar operações de linguagens, processos de “engenharia midiática” (Herschmann & Pereira, 2003). Os grupos minoritários e excluídos devem atentar para essas possibilidades, explorando, na medida do possível, especialmente as novas mídias de caráter interativo que ainda não estão regulamentadas e abrem um novo campo para ações participativas.4 Evidentemente, não estamos ignorando, aqui, a função normalizadora dos meios de comunicação sobre o social. Todavia, é importante identificar as possibilidades de fazer emergir o outro no campo midiático. Apesar de a mídia ser um espaço com inúmeras limitações e formatos, voltado para a elaboração de imagens reguladoras e difusão de “pânicos morais”, também produz “frestas”, “brechas” nas 68 João Freire Filho e Micael Herschmann - Funk carioca quais o outro emerge – isto é, constitui-se, também, em um espaço fundamental para a percepção das diferenças. O discurso midiático oscila, como vimos, entre a demonização e certa glamourização dos excluídos; na medida em que os torna “visíveis”, permite-lhes, de certa forma, denunciar a condição de “proscritos” e reivindicar cidadania, trazendo à tona, para o debate na esfera pública, a discussão do lugar do pobre, ou melhor, o direito ao discurso, ao lazer e à cidade, pondo em pauta as contradições do processo de “democratização” do país e suas tensões sociais. Para além do discurso espetacularizado da repressão policial nos territórios da pobreza, é justamente essa produção e esse discurso periférico/marginal/ local que ironicamente tem sido encampado, com grande freqüência, pela mídia e pelo público jovem de origem social variada, que consome as expressões culturais como o rap e o funk como signo de rebeldia e transgressão social e/ou como elementos de uma estética camp (Freire Filho, 2003a, 2003b). Ganham densidade, desta forma, a polifonia urbana e suas diversas “tribos”, em territórios marcados pela instabilidade social, distanciados da lógica estatal de reforço das fronteiras, do enclausuramento, do apartheid, dos discursos de “exclusão” e repressão que promovem o medo do “outro”. JOÃO FEIRE FILHO é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da ECO/UFRJ. MICAEL HERSCHMANN é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da ECO/UFRJ e autor do livro O funk e o hip hop invadem a cena (Ed. UFRJ). ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.60-72 69 NOTAS 1. Para mais detalhes,cf. HERSCMANN, Micael (200), p. 87-100. 2. A Governadora Rosinha Matheus sancionou a Lei no. 4.264, que regulamenta os bailes funk. De autoria do deputado Alessandro Calazans (PV-RJ), a lei fixa regras para a realização desse tipo festa. A partir de agora, a responsabilidade e organização dos eventos será dividida entre os produtores culturais – sejam eles autônomos ou empresas – e as entidades contratantes (clubes, boates ou associações). (Cf. NERI, Natasha. “Bailes funk de volta à Zona Sul” in Jornal do Brasil. Cidade. Rio de Janeiro, 07 de janeiro de 2004, p. A 13). 3. Cf. matéria publicada intitulada “Funk – como é, quem faz e como são os bailes de música que já foram confundidos com o crime e proibidos, mas hoje contagiam a cidade” de autoria de Adriana Pavlova e Daniela Name in O Globo. Segundo Caderno. Rio de Janeiro, p. 1, 21 de dezembro de 2003. 4. Para mais detalhes sobre algumas experiências que vêm sendo realizadas no país, cf. NOVAES, Regina e outros (orgs.). Juventude, cultura e cidadania. Rio de Janeiro, ISER/UNESCO, 2002. 70 João Freire Filho e Micael Herschmann - Funk carioca REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARNOLD, Matthew. Culture and anarchy. New Haven & London: Yale University Press, 1994 [1869]. 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(Marcos LP)2 A música possui um papel central na articulação de diversas experiências sociais dos jovens das metrópoles contemporâneas. Na cidade de São Paulo, por exemplo, é possível identificar grupos tão diversos como punks, góticos, mods, metaleiros, adeptos do hip hop e clubbers, cada um orientado pela preferência por determinado gênero musical. Estudos analisando grupos urbanos juvenis que se organizavam pelas atividades de lazer, pela adoção de determinados símbolos que compunham um estilo visual particular e pela associação a um “gênero musical” ganharam impulso com a afirmação dos Estudos Culturais na década de 70, alinhados ao Centro para os Estudos Culturais Contemporâneos (CCCS) da Universidade de Birmingham, Grã-Bretanha (cf. Hall, S; Jefferson, T, 1976). Um dos trabalhos que alcançou significativa repercussão na época e ao longo dos anos 80 foi a pesquisa de Dick Hebdige (1996 [1979]). O autor consolidou o conceito de subcultura como forma de definir todo um conjunto de práticas e experiências referentes aos agrupamentos urbanos emergentes na Grã-Bretanha a partir do Pós-Guerra (como mods, teddy boys e skinheads), construindo sua análise mais centradamente no movimento punk que despontava na época. Segundo o autor, as subculturas constituiriam-se essencialmente na questão de classe social, representando uma resposta às condições e vivências da “classe trabalhadora” (working class) britânica: Subculturas são formas expressivas, mas o que elas expressam é, em última instância, uma tensão fundamental entre aqueles no poder e aqueles condenados a posições subordinadas e vidas de segunda classe. Essa tensão é expressa figurativamente na forma de estilo subcultural [...] Uma forma de resistência em que contradições e objeções ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.73-85 73 experimentadas em relação a ideologia dominante são obliquamente representadas através do estilo (HEBDIGE, 1996, p. 132 e 133) Se os conceitos de subcultura e estilo subcultural, após o trabalho de Hebdige, tornaram-se referenciais nos estudos voltados para a área, percebe-se desde o final dos anos 80 e ao longo da década de 90 a necessidade de realizar leituras críticas sobre sua perspectiva teórica (cf. Middleton, 1990; Gelder & Thornton, 1997). Influenciado por leituras “gramscianas” e “althusserianas” de “hegemonia” e “ideologia”, em voga nos Estudos Culturais da época, Hebdige pouco debatia como, de fato, os jovens punks negociavam com os códigos, símbolos e gênero musical no dia-a-dia para articular o que classificaria como “subcultura”. Recorria à semiótica para enfatizar como a “luta de classes” entre grupos situados em posições dominantes/hegemônicas e aqueles em condições subordinadas era “ao mesmo tempo uma luta na significação”, expressa no estilo, “uma luta pela posse do signo que se estende até às áreas mais mundanas da vida cotidiana” (HEBDIGE, 1996, p. 17), não se debruçando com atenção sobre esse mesmo cotidiano, na relação que os jovens estabeleciam com os artistas, com os discos lançados, com os espaços sociais, com o consumo do próprio gênero musical. Também é preciso reconhecer que, no cenário contemporâneo, expressões socioculturais como o hip hop ou os gêneros de “música eletrônica” manifestam-se em diversos segmentos sociais e dizem respeito não apenas à questão de “classe”, mas a diversas políticas e novas disputas por espaços sociais, acesso ao lazer, aos bens culturais, modos de se expressar, de se fazer ver e ouvir. Como discutir assim essas disputas e conflitos de produção de sentido que pontuam esses universos? Simon Frith proporciona um interessante ponto de partida ao questionar a perspectiva com que a “academia” trata a música: Freqüentemente, tentativas de relacionar formas musicais a processos sociais ignoram os meios em que a música em si é um processo social. Em outras palavras, ao examinar as estéticas da música popular, nós temos que inverter o argumento acadêmico usual: a questão não é como uma música, um texto, “reflete” valores populares, mas como – em atuação – os produz (FRITH, 1996, p. 270). O autor pontua sua crítica para o modo como as análises estruturam-se reproduzindo a idéia de “homologia”, ou seja, como uma subcultura, um estilo subcultural “refletiria” nos objetos, na música, nos códigos visuais e nas “práticas significativas” representadas por estes as relações sociais, suas lógicas e contradições, e não atentariam para o próprio processo em que estes atuariam, no interior do jogo de construção dessas experiências sociais. 74 Ricardo Sabóia - Periferia eletrônica Fugir dessa perspectiva “subculturalista” e ao mesmo tempo atentar como as cenas musicais contemporâneas constituem-se na “contínua transformação de relações sociais e culturais – e de alianças entre comunidades particulares” (STRAW, 1991, p. 375; tradução minha) nas cidades contemporâneas desponta como desafio epistemológico. A tarefa de analisar as cenas musicais exige tanto um olhar para as práticas cotidianas dos jovens atores, das práticas e das alianças de sociabilidade que a constitui como uma atenção a uma experiência midiatizada onde circulação de informação e códigos e a constituição de um capital (sub)cultural (Thornton, 1996) específico são pontos fundamentais na articulação de expressões culturais elaboradas na partilha de valores, códigos e bens simbólicos. CULTURA CLUB A cultura club surgiu como um conjunto de práticas articuladas no consumo de gêneros musicais de música eletrônica (house, techno e, posteriormente, jungle, trance e diversos sub-gêneros), na definição de espaços sociais particulares (os clubes noturnos e raves3 ), códigos de um estilo visual característico onde predomina o colorido, o uso de acessórios como pulseiras e colares fluo, presilhas e acessórios infantis como bolsas e bonecos de pelúcia. Sua origem encontra-se na Grã-Bretanha, em meados da década de 80, quando começou a se disseminar em casas noturnas e festas ao ar livre o interesse dos jovens locais pelo acid house (vertente do gênero musical originário de Chicago) e techno (som emergente nas áreas mais pobres de Detroit, cidade industrial que na época vivia grave crise econômica e social), a consolidação da figura do DJ (disc jockey) como centro dessa cultura musical e do clube noturno como palco de uma experiência única pontuada na fruição dos gêneros de música eletrônica, no consumo de novos estimulantes químicos (particularmente o ecstasy, conhecido como “droga do amor”). Thornton, em pesquisa sobre o universo dos clubes e raves britânicas de final dos anos 80 e início dos 90, apresenta a seguinte definição para cultura club ressaltando a centralidade do clube noturno e das raves como seus espaços sociais, e sua constituição como “cultura de gosto”: Cultura club é a expressão coloquial dada às culturas juvenis para quem os dance clubs e suas ramificações dos anos 80, as raves, são o eixo simbólico e centro social de atividade. O sentido de lugar proporcionado por esses lugares é tanto que freqüentadores regulares assumem o nome dos espaços que freqüentam, tornando-se clubbers e ravers [...] As culturas club são culturas de gosto. Os grupos club geralmente estão congregados na base de seu gosto musical comum, no consumo de uma mídia comum e, mais ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.73-85 75 importante, suas preferências por pessoas com gostos semelhantes aos deles. Participar da cultura club, por sua vez, é construir afinidades maiores, sociabilizar os participantes a partir de um conhecimento dos (e freqüentemente uma crença em) gostos e de suas aversões, significados e valores da cultura (1996, p. 3). Essa cultura espalha-se para outros países, como Alemanha, Estados Unidos e Brasil na década de 90. Em São Paulo, é possível reconhecer no início daquela década o aparecimento de casas noturnas voltadas para a música eletrônica e um crescente interesse de um público específico por esses locais. Clubes como Nation e Sra. Krawitz firmaram-se como novas referências alternativas e diferenciadas no lazer noturno dos jovens de classe média e alta da capital paulista, tornando-se reconhecidos como berços da cultura club local (cf. ASSEF, 2003). A cultura club também se espalhou, ainda na primeira metade da década de 90, por clubes noturnos dos bairros mais distantes do circuito de clubes localizados no eixo “centro-Jardins”. Casas como Sound Factory, Toco e Overnight abriam cada vez mais espaço para os gêneros de música eletrônica, atraindo a cada final de semana milhares de jovens da Zona Leste (região desses clubes), de outros bairros periféricos e das cidades da região metropolitana da capital paulista. Esses locais em pouco tempo se tornaram uma opção de lazer diferenciada para os jovens da periferia, constituindo espaços para ouvir o “som eletrônico”, encontrar os amigos, conhecer novas pessoas. O clubber Rodrigo, 21, morador de Itaquera, Zona Leste, descreve uma das casas que freqüentava na década passada, a Sound Factory: No domingo todo mundo se reunia esperando bater três horas pra pegar o ônibus no ponto e ir pra Sound. Quando a gente começou a ir lá, a gente ia em um número de 15, 16 pessoas. E quando a gente vai num clube, você sabe, a gente não vai uma vez só, a gente pretende freqüentar mais vezes o clube, assim você vai conhecendo bastante gente. Muitos clubbers de agora que conhecem música eletrônica não conhecem o som eletrônico das antigas.O jungle mesmo foi um fenômeno naquele tempo.4 Nessas casas noturnas situadas fora do circuito “centro-Jardins” também desenvolveu-se uma cena voltada para um novo gênero musical, o jungle. Conhecido atualmente sob a forma de drum’n’bass, este surgiu nos bairros mais pobres de Londres no início dos anos 90, resultante do cruzamento de uma série de sonoridades que iam do dub e do ragga jamaicano ao hip hop, hip house, hardcore e o techno mais “pesado”. Em São Paulo, propagou-se primeiramente a partir da atuação de DJs como Marky, Julião, Andy, Patife e Koloral, que importavam vinis do gênero em expansão na Grã- 76 Ricardo Sabóia - Periferia eletrônica Bretanha e os apresentavam aos jovens da periferia nos sets musicais que executavam nas pista dos clubes locais. Ainda no decorrer dos anos 90, outra forte referência para os jovens da periferia que definiam preferência pelos gêneros de música eletrônica era o grupo inglês Prodigy, cuja carreira ganhou impulso internacional na época. Cada vez mais interessados no som da banda – o primeiro contato desse público com o grupo tinha sido estabelecido poucos anos antes, com algumas das músicas do início da carreira do grupo sendo executadas em casas noturnas periféricas. A partir dos anos de 1996 e 1997, começou a se notar a influência do Prodigy, sobretudo de seu vocalista, Keith Flint, na composição de um visual colorido, com referências que passavam pelo punk (o personagem costumava usar uma espécie de moicano duplo nas laterais do cabelo, tingido de cores berrantes) e pelo uso de vários piercings e lentes de contato estampadas, entre os clubbers da periferia. A adoção desses elementos estéticos e a idolatria ao grupo por esses jovens acabou servindo como referencial para a definição e reconhecimento destes como um grupo urbano juvenil específico, batizados de “cybermanos”. CLUBBER DA PERIFERIA E CYBERMANO, “ALIANÇA AFETIVA” E “CAPITAL SUBCULTURAL” A preferência pelos gêneros de música eletrônica ente os jovens paulistanos da periferia pontua uma série de experiências, pautando o modo como esses garotos e garotas organizam sua vida cotidiana, suas relações de amizade, seus locais de lazer, música e artistas favoritos, configurando o sentimento de participar de um agrupamento cultural urbano juvenil particular, como acontece em outros universos musicais difundidos na periferia, como punks ou os adeptos do hip hop. De acordo com a Coordenadoria Especial da Juventude da Prefeitura Municipal de São Paulo, o número de clubbers nos bairros de periferia da capital paulista é estimado em 25% da população juvenil entre 15 e 24 anos 5 . O coordenador do órgão, Alexandre Youssef, analisa a representatividade dessa expressão cultural: É um fenômeno absolutamente difuso e generalizado. Podemos identificar o peso dessa manifestação relativa a outras manifestações que existem na juventude, identificando todos os grupos jovens, culturais, esportivos, sociais, ONGs, religiosos. É uma das expressões mais importantes e mais maciças da juventude de São Paulo.6 A estimativa da Coordenadoria é expressiva e, naturalmente, um dado relevante, na medida que nos permite ter uma dimensão mais geral da propagação da ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.73-85 77 cultura club entre os jovens da periferia da cidade e seu “peso” em relação a outras manifestações igualmente significativas. Proponho discutir aqui, porém, questões mais específicas referentes a esse investimento na cultura club e na identificação desses garotos e garotas como clubbers. Discorrendo sobre o inicio de sua atividade como disc jockey de jungle e o interesse do público da periferia paulista por esse segmento da música eletrônica caracterizado pelas batidas mais aceleradas e quebradas, DJ Andy afirma: Como na época não havia essa coisa de um DJ de um estilo só e eu tocava em uma casa para 2 mil pessoas [Overnight], tocava house, techno, hip hop e fazia um set maior dentro do meu “baile”, vamos falar assim, de hardcore e jungle. 60% do meu baile era hardcore e jungle, os outros 40 % era hip hop, techno, house, trance... Do mesmo jeito que eu procurei uma coisa nova para me diferenciar dos outros DJs, a galera começou a gostar do meu som. E eu vi nisso uma necessidade deles também quererem uma coisa diferente. Então eu fui colocando cada vez mais e mais esse estilo. E como eu tocava na sexta-feira, era o dia do meu baile mais alternativo, em que eu podia tocar um som mais pesado, então as pessoas iam para ouvir esse tipo de som.7 O depoimento do DJ nos permite discutir questões diversas acerca do processo de afirmação de uma cena musical, do papel do disc jockey como um “especialista” cultural8 à articulação de uma audiência. Vou me deter, porém, em dois pontos: a busca pela diferenciação por parte público, que o DJ identifica na opção pelo “som diferenciado” e pelo “baile alternativo”, e a própria associação que traçam dessas preferências como uma experiência “alternativa”. É comum os clubbers dos bairros de periferia de São Paulo, ao discorrerem sobre seus gêneros musicais preferidos, sobre determinados clubes e raves que costumam freqüentar ou ainda sobre sua escolha por ser clubber, ressaltarem o caráter subjetivo que envolve essas experiências, ao mesmo tempo que reconhecem sua participação em uma comunidade específica diferenciada, constituída por clubbers. Ser diferente de outros e reconhecer semelhanças de um grupo particular aparecem como faces de um mesmo processo, como sugere os depoimentos de dois jovens, uma garota que se identifica como clubber e um garoto que se diz cybermano: Sílvia, 18 anos: Só vivendo para saber o que é ser clubber, não tem explicação. É muito de você. Se você perguntar para outro, ele vai te responder talvez outra coisa, mesmo que ele esteja na mesma balada que você.9 Thiago, 19 anos: Sou outra pessoa depois de ter virado cybermano. Ser cyber é me diferenciar dos outros, se diferenciar nas idéias, ter 78 Ricardo Sabóia - Periferia eletrônica outro estilo de se vestir. Eu sou igual a todo mundo, mas sou diferente ao mesmo tempo, entende? Não sou um “mano” [do hip hop].10 Paul Gilroy afirma com muita propriedade que “pensar sobre música – de uma forma não figurativa, não conceitual – evoca aspectos de subjetividade corporificada que não são redutíveis ao cognitivo e ao ético” (2001, p. 163). Simon Frith entende que o “paradoxo sociológico” da análise da experiência musical está no fato dessa ser “socialmente produzida como algo especial”, cuja importância “é tomada então como se seu significado fosse não produzido socialmente, mas estivesse de algum modo ‘na música’”, ressaltando que os “fãs acreditam que a música deriva seu valor de sua alma interior particular” (1996, p. 252). Admitir tais subjetividades, ao mesmo tempo que é um exercício necessário para reconhecermos a valoração e a atribuição de significados que os jovens conferem a esse investimento em ser clubber, exige situar esse mesmo investimento em um contexto pontuado por uma série de relações sociais construídas (e não “refletidas”) no consumo de certos gêneros musicais, de determinadas vestimentas, na demarcação de “territórios” particulares no espaço urbano e no consumo de canais midiáticos segmentados (programas de rádio de música eletrônica, principalmente, revistas ou mesmo os flyers que circulam nas festas informando outros eventos, locais onde os DJs vão tocar, programação mensal das casas etc). Dois conceitos, reapropriados conjuntamente, podem ser úteis para tratar desse “paradoxo” que se revela na proposta de analisar essas manifestações culturais juvenis: “aliança afetiva” e “capital subcultural”. Grossberg, analisando o rock and roll, descreve a rede de relações que o constitui tomando como referência a conformação de uma “aliança afetiva”, a definindo como organização de práticas materiais concretas e eventos, formas culturais e experiências sociais que tanto abre como estrutura o espaço de nossos investimentos afetivos no mundo (1997, p. 31). O autor discorre sobre essa “aliança afetiva” no processo de construção sociocultural do rock and roll, mas é possível estabelecermos aqui um paralelo com a cultura club como um conjunto de práticas e experiências referentes ao modos do jovem da periferia construir um espaço de seus “investimentos afetivos”. Esses investimentos remetem aos anseios, à “produção e organização de desejos e prazeres” (GROSSBERG, 1997, p. 38) que estão envolvidos na elaboração, por esses jovens, de uma comunidade afetiva diferenciada no cenário cultural da cidade contemporânea. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.73-85 79 O terreno cultural que constroem, por sua vez, é configurado na estruturação de um capital (sub)cultural particular. Thornton (1996), apropriando-se do conceito de “capital cultural” do sociólogo Pierre Bourdieu, posiciona esse capital como uma forma de conferir distinção e reconhecimento das práticas culturais específicas que estruturariam o mundo club: [Os clubbers] constantemente catalogam e classificam as culturas juvenis de acordo pelo gosto musical, estilos de dança, tipos de rituais e estilos de roupa. Eles carregam imagens dos mundos sociais que elaboram a cultura club. Esses mapas mentais, ricos em detalhes culturais e julgamentos de valores, oferecem a eles um ‘senso de lugar mas também um senso de lugar do outro’ (Bourdieu, 1990) [...] O capital subcultural parece ser um moeda de troca que legitima e está correlacionado a status desiguais ( p. 99, 104). O “capital subcultural” que constitui a cultura club é construído no estabelecimento de uma série de hierarquias e valorações de reconhecimento e pertencimento, de quem poderia ser reconhecido como clubber (e/ou cybermano), quem é realmente fã e conhecedor dos DJs, dos gêneros de música eletrônica, entre outros pontos. No interior da cultura club paulistana, o reconhecimento da condição de clubber em segmentos sociais fora do universo da periferia por muito tempo foi controverso (e ainda tem sido em determinados espaços e situações sociais). É nesse contexto que situo o termo cybermano. Desde meados dos anos 90, principalmente a partir de 1997, cybermano tem sido usado como modo de designar o público da periferia adepto da música eletrônica e da estética visual club por parte dos freqüentadores dos clubes noturnos dos “Jardins” ou da Vila Olímpia (“áreas nobres” da cidade, redutos de casas noturnas) e nos veículos de comunicação massivos. Nesse sentido, tem funcionado como rótulo genérico para classificar o clubber oriundo dos bairros da periferia, substituindo outros termos estabelecidos pelos freqüentadores dos clubes e eventos das áreas nobres quando os jovens da periferia começaram a “invadir” seus espaços, como “clubberfavela” ou “clubber-flanelinha”. Se o termo propagou-se e também adquiriu visibilidade como modo de diferenciar ou estigmatizar o público da periferia nas casas dos Jardins e nos meios de comunicação, não há consenso se este se originou naqueles espaços. É que, simultaneamente ao uso do termo nas casas dos Jardins, jovens da periferia já se identificavam com o termo “cyber”, em parte com a expressão cyber punk11 , em um momento que o grupo Prodigy era referência estética cada vez mais significativa com sua combinação de rock e eletrônica pontuada por referências ao visual punk. Como 80 Ricardo Sabóia - Periferia eletrônica relata o depoimento de Rodrigo, 21 anos, clubber da Zona Leste paulistana: Com o impacto do Prodigy, você via muita gente de cabelo em pé, cyber punk em 96, 97, foi um negócio que virou febre na cena eletrônica. A gente lembra que a gente saía e só via o pessoal vestido assim, aqui em Itaquera, amigos meus da [Cidade] Tiradentes, de [Conjunto Habitacional] Juscelino (Kubitschek), mais o pessoal da periferia mesmo, isso explodiu. Em 96, num flyer de um salão, eu vi um desenho mó interessante, pedi para um amigo fazer o desenho e escrever “União Cyber Punk”. Nossa, aí era todo mundo cyber punk, cyber punk, todo mundo dizendo “legal pra caramba”. Depois do cyber punk é que surgiu o cybermano que agora é o que está aí. 12 No interior da atual cultura club da periferia, é mais comum o estabelecimento de uma diferenciação no modo como se reconhecem: cybermano seria aquele clubber que, em linhas gerais, investiria em um visual mais agressivo, com algumas referências ao punk, sobretudo a adoção do cabelo “moicano” e do “coturno”, e a preferência por sons de batidas mais “pesadas”, como hard techno e determinadas vertentes do drum’n’bass. Uma parcela do público da periferia, assim, identifica-se (e é identificada) como cybermano, enquanto outra parcela apresenta-se apenas como clubbers (contrastando com a imagem que rotula todo clubber dos bairros de periferia como cybermano). Também é possível identificar discursos de jovens que tanto rejeitam o termo “cybermano” como o celebram, ou ainda de garotos e garotas que demonstram certa indiferença em ser designado como clubber ou cyber13 . Essa (auto)identificação como clubber ou como cyber, em ser visto como clubber e/ou como cybermano é revelador de como a cultura club, ao se difundir entre os jovens da periferia paulistanos, envolve uma série de conflitos, lógicas, hierarquias e referenciais particulares (na elaboração de um capital subcultural particular, no sentido atribuído por Thornton), sendo construída no diálogo que esses jovens travam entre si e com outros segmentos sociais, nos modos como se identificam, buscam reconhecimento e são retratados nos meios de comunicação. UNDERGROUND E PRÁTICAS ALTERNATIVAS NA METRÓPOLE Um dos problemas das análises subculturalistas era polarizar as práticas musicais/culturais em underground/subcultural (formas de “resistência”) e mainstream (cultura dominante e hegemônica). Situar os gêneros de música eletrônica na cidade de São Paulo hoje a partir de tal polarização seria inconsistente: techno, drum’n’bass e trance, por exemplo, são sons que circulam tanto entre os jovens de classe média e alta como no público juvenil da periferia. Eventos como o Skol Beats (maior festival privado de música eletrônica brasileiro, com a presença ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.73-85 81 de DJs nacionais e internacionais) ou a parada anual de música eletrônica realizada em São Paulo reúnem um público diversificado. É preciso reconhecer que os clubbers da periferia e cybermanos situam seus códigos visuais, gêneros musicais e DJs prediletos, casas noturnas e festas como elementos de uma expressão cultural alternativa, “diferente” ou underground. Elaboram referências, valorações e critérios de classificação no interior das manifestações culturais contemporâneas construindo discursos em que se situam (e pautam suas práticas) em uma posição diferenciada das expressões que associam a um mainstream. Nesse caso específico, poderíamos citar a evocação da figura do “pagodeiro” e do pagode ou do fã de axé como integrantes de uma cultura que os clubbers da periferia/cybermanos desqualificariam como massiva, ou ainda, no próprio interior da cultura club, do “modinha” como símbolo do clubber, como sugere a expressão, seguidor de “moda”, desinformado ou não-comprometido com sua cultura. É igualmente importante atentar, porém, que essa vinculação a uma cultura que entendem como underground e a associação de outras manifestações como mainstream diz respeito a estratégias essenciais na legitimação de suas práticas e na busca para conferir a elas “autenticidade”, de construir uma identidade distintiva. Tais estratégias são elaboradas em um diálogo constante com os diversos bens simbólicos da cultura contemporânea, com a valoração de outros gêneros musicais, a partir da relação com outros agrupamentos urbanos juvenis. E são traçadas não em simples (e irreais) configurações culturais isoladas como subcultura ou como mainstream, e sim nos espaços em que estas constantemente se negociam. Os modos como a cultura club é apropriada e recriada pelos jovens da periferia paulistanos sugerem uma intensa negociação referente ao reconhecimento e a afirmação perante outros grupos urbanos dos bairros de periferia (punks, skatistas, carecas e manos do hip hop que despontam como grupos “rivais”) e outros setores da sociedade e às relações que remetem à estigmatização, inserção e exclusão tanto no interior da cena musical eletrônica como no cenário cultural da metrópole em um plano mais geral. Representa um investimento que revela, semelhante ao que Herschmann enxerga no mundo dos funkeiros e dos adeptos do hip hop, a batalha pela obtenção de “visibilidade”: Busca-se em última instância, o reconhecimento, reclama-se o “direito à cidade” e à “cidadania”, esta última considerada tangível pela visibilidade. O consumo se traduz, portanto, em territorialidades, em ocupações físicas e simbólicas da cidade (seja ela a cidade física ou a exibida na mídia), ou melhor, de áreas e lugares dos quais anteriormente esses grupos sociais estavam praticamente excluídos e são agoras ocupados, ainda que de forma transitória, por esses jovens. Assim, ao 82 Ricardo Sabóia - Periferia eletrônica enfocar as territorialidades que essas redes sociais traçam, esperamos discutir as relações de coexistência entre segmentos sociais que atuam em uma dinâmica cultural urbana que ora arremessa esses jovens à margem, ora ao centro (2000, p. 229). Nos rituais que envolvem essa demarcação em participar de um uma expressão cultural diferenciada de ser clubber e/ou cyber, ocorre o que Herschmann define como “prazer lúdico de tomar a cidade” (2000, p. 231). Ao tomarem conta dos ônibus, trens e vagões de metrô rumo às “baladas”, formam um grande “corpo” em eventos anuais que reúnem dezenas ou centenas de milhares de pessoas. Ao espetarem seus cabelos e irem às ruas com um visual chamativo, ao vestirem blusas coloridas com a inscrição dos seus gêneros musicais preferidos, ao tomarem posse de determinados espaços privados e públicos, ao comprarem peças falsificadas de grife clubbers nos camelôs do centro, os clubbers da periferia e cybermanos de São Paulo vão deixando sua marca e seus rastros na cidade. Ao som de cada batida eletrônica, em cada passo de dança, constroem suas narrativas como atores sociais, estabelecendo suas relações particulares de sociabilidade, redesenhando o espaço urbano da grande metrópole, traçando novas formas de expressão no repertório da cultura contemporânea. RICARDO SABÓIA é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.73-85 83 NOTAS 1. Entrevista concedida ao autor em 06 de fevereiro de 2003. 2. Jornal da Tarde, 27 de novembro de 2000, seção “Frases”. 3. Raves são festas comumente realizadas distante das áreas urbanas, geralmente em sítios ou praias. Esse modelo de festa firmou-se na Grã-Bretanha ainda na década de 80, atraindo milhares de jovens para áreas descampadas no interior do país ou galpões abandonados. Difundiu-se no Brasil nos anos 90, primeiramente no Rio e posteriormente em São Paulo. O som característico são os gêneros de música eletrônica, como techno, drum’n’bass e trance. 4. Entrevista concedida ao autor em 29 de março de 2003. 5. Cf. “Manos eletrônicos”, Revista Época, 27 de outubro de 2003. 6. Entrevista concedida ao autor em 05 de junho de 2003. 7. Entrevista concedida ao autor em 24 de outubro de 2003. 8. Para uma discussão a respeito de especialistas e suas atuações no processo de conferir “autonomia” e “prestígio” de determinadas formas culturais, cf. Featherstone (1997). 9. Entrevista concedida ao autor em 06 de fevereiro de 2003. 10. Entrevista concedida ao autor em 15 de outubro de 2003. 11. Cyber punk permanece atualmente como referência de um segmento minoritário do público club da periferia, que investe em um visual menos colorido (predominando as roupas pretas), mais “agressivo” e alinhado mais diretamente ao que identificam como “ideologia do movimento punk”. 12. Entrevista concedida ao autor em 29 de março de 2003. 13. Reportagem da Revista da MTV publicada em março de 2003 promove um rico debate sobre os termos “cybermano” e “clubber” como formas de identificação, apresentando depoimentos de DJs e dos próprios jovens que tinham participado de uma festa retratada na matéria. Em uma das páginas, destacava-se uma declaração atribuída a um estudante: “tanto faz o pessoal me chamar de cybermano ou o que for, mas gosto mesmo que me chamem de clubber. Por que a gente tem outro nome?” (“Eletroperiferia”, Revista da MTV, número 23, p. 96-99). Outros textos jornalísticos que pontuam a questão podem ser conferidos na Revista Beatz (“ - Tá de pijama?”, Beatz, n. 2, maio de 2003) e no Jornal Folha de S. Paulo (“Os donos das ruas”, Folha de S. Paulo, suplemento Folhateen, 20 de outubro de 2003). 84 Ricardo Sabóia - Periferia eletrônica REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSEF, Cláudia. Todo DJ já sambou: a história do disc-jóquei no Brasil. São Paulo: Conrad, 2003. FEATHERSTONE, Mike. 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Há um certo tempo, os colegas de Letras deixaram de fazer análises das letras de Chico Buarque, Caetano Veloso, e mais recentemente Renato Russo e Cazuza, para citar apenas alguns nomes, sem levar em consideração a música e a tradição da canção ( MATTOS, C. ; MEDEIROS, F. e TRAVASSOS, E.: 2002). A musicologia tem deixado seu reduto tradicional da música erudita e avança com muita força, especialmente na música popular. Complementando esta discussão, nossos colegas das ciências sociais - esta talvez seja a perspectiva que mais ecoa na área de comunicação - fazem uma espécie de mapeamento musical do Brasil urbano, de suas subculturas, tribos, galeras, incorporando cada vez os meios de comunicação não só para pensar as condições de produção e circulação de bens dentro de uma sociedade massiva, mas os afetos e as sociabilidades que envolvem a música enquanto prática social e comunicativa1 , complexificando a relação exposta de uma forma um pouco primária no início dos estudos culturais ingleses como grupos de jovens resistindo ao processo de homogeneização midiática. Cada vez mais os mass media e o consumo se tornam elementos fundamentais para apreender uma forma de conhecimento do mundo em que vivemos. Se de fato acreditamos, e eu acredito, que para se apreender a música deve se ir para muito mais longe do que um mero formalismo descritivo interno à história da música e de seus gêneros, sabemos desde pelo menos os primeiros estudos marxistas 2 que todo material sóciohistórico está interno à própria obra. Não se trata de repetir dualidades desgastadas como arte e sociedade, na busca de mediações que possibilitem compreender a obra e o que ela nos diz sobre o mundo a que ela pertence. Categorias como discurso, imaginário, rizoma serviram para abrir nossa compreensão para maneiras mais múltiplas de compreender as manifestações culturais dentro da sociedade contemporânea . 86 Denilson Lopes - Da música pop à música como paisagem Dentro deste contexto, os estudos de comunicação têm aparecido como um campo fértil para compreender a emergência de uma música pop, na segunda metade do século XX. Aqui entendida não apenas como sinônimo de descartável, fácil, pré-fabricado, ainda que possa ser isto também, mas num quadro mais amplo na elaboração de uma cultura, constituindo-se como um dos grandes vetores da arte do século XX e que nos remete às questões que ultrapassam o limite da música3 . Ou seja, a música pop se sustenta cada vez mais no processo descrito tão felizmente por Néstor Garcia Canclini (1997) como hibridismo em que as hierarquias tradicionais entre música erudita, popular e massiva são cada vez mais embaralhadas quando não esfaceladas, na prática e analiticamente. Em contraposição à densidade e ao distanciamento, valores caros a várias tendências da arte moderna, notadamente construtivistas e cerebrais; a afetividade e o envolvimento parecem assumir na música pop uma força suficiente para compreender problemáticas semelhantes, por exemplo, no cinema e na literatura, servindo mesmo como um referente importante para compreender todo um caminho da arte dita pós-moderna, pós-vanguarda, no momento em que o desejo pelo novo e pela transgressão se banalizam como mais uma estratégia de marketing. Mas deixando de lado este frágil panorama, me posiciono neste debate ao considerar a música não só como produto cultural e/ou processo comunicacional, mas como uma experiência no horizonte de uma estética da comunicação4 . Há uma diversidade de sentidos na forma como o termo estética da comunicação vem sendo utilizado, desde para traduzir apenas o impacto das novas tecnologias da comunicação até o processo generalizado da estetização da vida cotidiana, presente no trabalho de Michel Maffesoli e Mike Feathestone. Interessa-me reafirmar, seguindo um filão pragmatista, na esteira de filósofos como John Dewey, Herman Parret e Richard Shusterman, a necessidade de resgatar o afetivo, o corporal, como possibilidade de comunicação, para além de posições meramente intelectualistas, tão presentes na teoria e produção marcadamente modernas que isolaram a arte da vida. Na perspectiva de uma estética da comunicação é fundamental diluir cada vez mais não só as fronteiras entre arte erudita, popular e massiva, mas desconstruir o dualismo entre música experimental e música comercial, fazer dialogar objetos de valor estético com produtos culturais, não para não considerá-los apenas como mercadorias dentro de uma indústria cultural, mas reafirmar a centralidade da reprodutibilidade técnica da imagem e do som como central para pensar a arte do século XX, para além de qualquer visão instrumental da comunicação, colocando-a na esfera da possibilidade de compartilhamento de experiência e não da simples troca de informações. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.86-94 87 Desta forma, pensar uma obra artística como fenômeno comunicacional implica situá-la em diálogo não só com o solo histórico, com já o fazem há muito tempo os estudos de sociologia da cultura e da arte, notadamente de vertente marxista, mas implodir a dualidade arte e sociedade, resituá-la num fluxo de discursos, imagens e processos que transitam social e temporalmente, como uma narrativa que traduz a experiência contemporânea. Ao considerar as imagens e os sons como narrativas, vamos além das considerações que enfatizam os dilemas da indústria cultural, sem nos isolarmos em visões formalistas à medida que elas se tornam experiências dos sujeitos contemporâneos. Ainda que seja imediata na percepção, a experiência traz uma estória, uma verdade, sempre mediada por discursos sociais, não a verdade (ver SCOTT, J.: 1999, 42). A experiência é o que resta instável no tecido social, impressão, rastro, vestígio, não de um sujeito isolado, nem da linguagem sem sujeito, mas algo próximo ao que Raymond William (1977, 128) chamava de estrutura do sentimento. Ao considerar a música como experiência, estamos nos abrindo para uma perspectiva em que as linguagens se cruzam e convergem tecnologicamente, tanto na produção quanto numa recepção cada vez mais marcadas por uma simultaneidade de meios e sensações. Se houve um momento em que o grande dilema estava em definir as linguagens literária, fotográfica, cinematográfica, musical e assim por diante, parece-nos hoje mais rentáveis os espaços de intersecção, já pensados em termos como multimídia, recorrente na tradição experimental das instalações e performances, entre-imagens, para definir este espaço de passagens e transformação de imagens e narrativas, e paisagens, como veremos em seguida. Resumindo, de que estética ainda podemos falar? E é dela que quero falar, não só de crítica, leitura, interpretação de obras. Uma estética, sem dúvida localizada e engajada num tempo e numa sociedade, ao invés de abstrata e universal, que emerge do embate com as obras mas procura confrontá-las, compará-las, estabelecer séries, linhagens, a partir de problemas, conceitos, categorias. Uma estética pop, que não tem medo do fácil, da redundância informativa, do descartável, do afetivo. Uma estética híbrida, intertextual, transemiótica, multimidiática. Uma estética centrada na experiência, palavra ardilosa, múltipla, que traz uma tensão constante entre a possibilidade de acúmulo, transmissão, comunicação e conversação ou/e sua impossibilidade. Esta experiência está sempre além da arte mas afirma o lugar desta como forma de conhecimento e de estar no mundo. Uma estética da comunicação, não dos meios de comunicação. Portanto, considerar a música como experiência implica associá-la não só à estética, mas também a uma ética, aqui entendida na esteira de Foucault, como 88 Denilson Lopes - Da música pop à música como paisagem modos de conduta, o que fazer diante da vida. É claro que não se trata de respostas gerais. Para precisar um pouco mais o que acabo de dizer, vou tomar não tanto como uma ilustração mas como um ponto de partida para pesquisas futuras que é de ver em que medida a música é capaz de construir categorias que dêem uma resposta ética e estética diante do excesso de informação, de rapidez no nosso mundo. Se a música pop colocou como central os afetos, a noção de paisagem pode dar uma outra inflexão neste debate. A música pop se constituiu em grande parte na mística do vocalista enquanto star e no uso da voz como forma de articulação das experiências dos ouvintes, marcando seus cotidianos e suas memórias. Mas, nos ano 70 emerge na música pop a elaboração da categoria de paisagem ou ambiência que possibilita uma alternativa ao excesso do envolvimento romântico com a música, nos complexos jogos de identificação e estranhamento entre fã e ídolo. A introdução da noção de paisagem sonora na esfera pop desconstrói o formato da canção pop, curta e marcada por refrões, associada comumente à tradicional constituição das bandas de rock com vocal, guitarra, baixo e bateria. Isto está presente não só na música ambiente, como um subgênero da música eletrônica, mas em várias formas do rock, chamado por alguns como rock de arte (ver BAUGH, B.: 1994), no fim dos anos 60 e início dos anos 70, que bem pode incluir uma variedade de tendências, como o psicodélico e o progressivo, que no diálogo com formas sinfônicas, na elaboração da música como uma viagem, constrói uma música mais para a cabeça do que para os pés. Na indissociação entre som e imagem, na incorporação de teclados, sintetizadores, em usos diferenciados da guitarra, para além do solo, afirmam a noção da música como ambiência, paisagem. Dando um salto no tempo, podemos identificar este movimento no pós-punk do início dos anos 80 e no pós-rock (REYNOLDS, S.: 1995) dos anos 90, em detrimento de momentos mais puristas, de ênfase no formato básico e despretensioso do rock dos anos 50 ao hardcore e ao grunge. A paisagem, num primeiro momento, se situa na tradição das artes plásticas, dos grandes pintores do século XIX, como Turner e Constable, passando pelos impressionistas até chegar às experiências da land art. Mas ao usarmos a palavra paisagem no contexto da música, ela se situa, por um lado, num momento em que o conceito de música se amplia enormemente, incluindo a rigor todo som que é produzido, dialogando com o acaso e com o cotidiano (TOOP, D.: 1995, 36). É neste sentido que R. Murray Schaffer fala de uma paisagem sonora em que “os ruídos são os sons que aprendemos a ignorar” e de uma espécie de ecologia sonora que mapea os sons do mundo (2001, 18), em sintonia com as aberturas realizadas na história da música erudita (por exemplo, Cage) , aproximando mais vida cotidiana e arte, desmistificando o processo de ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.86-94 89 especialização da música, mas com o risco, no caso de Murray Schaffer, de uma nostalgia de um mundo pré-cultura de massa. Ocean of Sound de David Toop parece mais rico, ao fazer uma espécie de genealogia da paisagem, da noção de ambiência, pelo século XX, de Satie à música eletrônica pop nos anos 90, através de um mistura de ensaísmo, depoimentos, entrevistas, narrativas, fragmentos, em que a música de apresenta como “paisagem onde o ouvinte pode caminhar (1995, XI) . Livro que interessa tanto pela sua construção em aberto e quanto pela sua aproximação com a música ambiente, especialmente a um dos seus mais notáveis artistas e pioneiros, Brian Eno. Seria importante lembrar que inserir a música ambiente em uma tradição que remonta ao Impressionismo, implica “compreender a sensibilidade impressionista [que] envolve portanto uma expansão enorme das faculdades de percepção sensual e um aguçamento da sensibilidade, pois o intelecto sozinho é totalmente incapaz de apreender o sentido do tempo, do movimento e da vida” (KRONEGGER, M. E.: 1973, 39), diferenciando-se tanto da subjetividade transcendente do romantismo quanto da objetividade onisciente do realismo (STOWELL, H. P.: 1980, 4). O resgate dessa trajetória não seria apenas para identificar uma espécie de perversão da leveza quanto mais dentro da arte da alta modernidade, na medida em que o Impressionismo cede mais lugar ao Expressionismo e a leveza se substitui pelo excesso, mas também lançar luzes sobre uma possível e sutil volta da leveza no presente, o prazer de olhar à deriva, seja nas ficções da viagem ou no desafio do invisível, seja no Minimalismo ou na música ambiente. Se o Impressionismo pictórico representa hoje um gosto visual basicamente acadêmico e o culto de imagens e sons atmosféricos acabou se constituindo numa arma essencial para a publicidade que quer vender uma atitude antes de vender o produto, isso diz tanto da dificuldade como do interesse do retorno do Impressionismo como um imaginário no seio da sociedade de massas. O Impressionismo seria, portanto, menos um efeito de iluminação, um estilo de época do que um elemento para construir a genealogia de uma estética da leveza para a contemporaneidade, para a arte que se constrói na pós-vanguarda, a partir da segunda metade dos anos 70, bem como o vislumbre de um mundo onde a suavidade não só está presente mas possibilita se pensar em uma felicidade possível, uma “modesta alegria” (ABREU, C. F.: , 157). Brian Eno5 constrói sua carreira solo ao se afastar do Roxy Music, banda glitter que ajudou a criar, e no meios dos anos 70 vai dar uma guinada no álbum Before and After Science. O primeiro lado remetia as perversões próximas ao Roxy Music e no segundo, inicia um caminho na recusa do estrelato pop, sua voz começa a se retirar em favor do instrumental. Ao lado da listas das músicas na contracapa, há 90 Denilson Lopes - Da música pop à música como paisagem quadros que remetem a paisagens sem a presença humana, recusa tanto do narcisismo egocêntrico da indústria de estrelas mas também de uma aspereza da música erudita. Curiosamente, a partir de então, nas capas seu rosto foi substituído por imagens que evocam mapas. O sujeito se eclipsa como também o objeto, não mais falar de si, nem dançar em êxtase permanente. Em meio à explosão do punk e do disco, Eno prefere a discrição de criador de trilhas para novos espaços, das pausas e silêncios, em contraponto ao ruído e ao excesso, ou ser produtor de de trabalhos como a coletânea No New York, da guinada terceiro mundista dos Talking Head e da deriva eletrônica do U2. Tomamos, como exemplo, a penúltima música de Before and After Science, By the River. A música remete a duas pessoas, um casal talvez, que contempla o rio passar. O fluxo do tempo e a correnteza do rio se interligam. A música cria uma paisagem temporal, ainda no formato curto de uma canção pop, mas no limiar da dissolução que ocupará seu trabalho seguinte, manifesto da música ambiente, Music for the Airports, definida como uma atmosfera, ou para usar as próprias palavras de Eno “ uma influência que nos rodea, uma matiz” que frisa idiossincrasias atmosféricas e acústicas mais do que as oculta. A musica ambiente leva à calma e constrói um espaço para pensar, acomoda vários níveis de prestar atenção sem reforçar um em particular (TOOP, D.: 1995, 9). Nada de grandioso, retumbante, visceral, apenas detalhes, pequenos gestos, notas frágeis que evocam um mundo etéreo, tão tranqüilo quanto fugaz, recuperando o que de melhor o Impressionismo nos deixou como postura diante do mundo, que dissolveu o eu romântico, suavizou o descritivismo naturalista. O que resta não é a realidade, nem as emoções em primeira pessoa, mas traços, vestígios, impressões. Se nutrindo dos clichês da muzak, da música feita para elevador, para suavizar ambientes de tensão e trabalho, sem redundar no que vai se chamar de música new age, trilha favorita de aulas de yoga e meditação, a música ambiente como encarnada neste trabalho de Eno lança um apelo à beleza do cotidiano, ao sublime no banal. Sua atualidade aponta para longe das pistas de dança. A festa acabou. Ainda que ela continue. E ela vai continuar, quinze anos depois do verão do amor na Inglaterra. Não a vertigem do ato, mas a serenidade. Não o êxtase, o excesso, nem o tédio de noite após noite, mas a sutileza, a claridade, a luz, um outro corpo, em repouso. Não a nostalgia eletro, techno, house, drum and bass, nem a canção pop, mas o som bruto, o gesto inútil, a voz solta. Não mais dançar, mas contemplar. Menos altura, menos volume. Menos. Não o grandioso, o retumbante, mas o pequeno, ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.86-94 91 o banal. Não o eterno, mas o precário, o que não dura. Não mais confissões, sentimentos, mas a matéria, o corpo, a pele. A música não é mais música, é um caminho, uma viagem, um destino, um espaço, um ambiente, este ou outro. Nada de especial. Um lugar onde se pode morar. Uma pausa. Um porto. Uma paisagem A paisagem redime o sujeito. A paisagem não fala de si, é. A paisagem não é expressão, é impressão. Frágil marca. A paisagem não precisa de porquês, nem de espectadores distantes. Exige pertencimento, naufrágio, não mais ser, dissolver. Imagem. Quadro. Retorno ao indefinido, ao inumano, ao mistério das superfícies. Frágil marca, frágil texto. A paisagem solicita a adesão dos viajantes, andarilhos, nômades. Onde há um lugar para se estar, para falar a frágil fala. A sutileza como companhia da leveza e da delicadeza. Uma fala baixa, um modo menor. Viagem poética. A música é um mar. É preciso desatenção para ouvir. Som repetido, quase imperceptível, quase invisível. É preciso tempo. É preciso se deixar. É preciso não ter medo. As ondas vão chegando, envolvendo. Você não quer fugir. Não consegue. Lentamente, o corpo se torna leveza, ar, água, transparência. Espuma. A música não é sua, você é da música. Você é música. A viagem não tem fim. Do ruído emerge a suavidade, um mundo que não cessa de ser criado. Repouso depois das derivas urbanas, velocidades percorridas, desencantos, desencontros. Esta música fala da fragilidade do sujeito sem o sujeito. Nem máquina, nem homem. Ou se é verdade que o grande consumo da música pop é feito entre aqueles que têm 18 e 30 anos, talvez esse meu interesse por este tipo de música seja apenas sinal da idade, apenas senilidade precoce. DENILSON LOPES é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília, presidente da Associação Brasileira de Estudos de Homocultura , autor de Nós os Mortos: Melancolia e Neo-Barroco (RJ, Sette Letras, 1999) e O Homem que amava Rapazes e Outros Ensaios (RJ, Aeroplano, 2002). 92 Denilson Lopes - Da música pop à música como paisagem NOTAS * Este trabalho só foi possível graças a DJ Isnt (André da Costa) pelo convite para participar de performance no lançamento de seu CD Nós os Monstros (2003) e a Simone Pereira de Sá pelo convite para integrar mesa-redonda sobre música e comunicação no Encontro Brasil/Alemanha realizado em outubro de 2003, na Universidade Federal Fluminenense. 1. Entre outros trabalhos, ver CAIAFA, J.: 1985; HERSCHMAN, M.: 2000; JANOTTI, J.: 2003. 2. E no caso da música a obra de Adorno ainda é uma poderosa sombra que se lança sobre nós, 3. Como poderíamos desenvolver a partir dos trabalhos de Simon Frith (1999, 133/150), Bruce Baugh (1994) e Antônio Marcus Alves de Souza (1995, 13/44). 4. Aprofundei esta questão em LOPES, D. : 2003. 5. Para uma visão mais global da carreira de Brian Eno, ver TAMM, E.: 1988. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.86-94 93 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Caio Fernando. Os Dragões não Conhecem o Paraíso. São Paulo, Companhia das Letras, 1988. BAUGH, Bruce. “Prolegômenos a uma Estética do Rock”, In Novos Estudos-CEBRAP, 38, março 1994. CAIAFA, Janice. Movimento Punk na Cidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985. CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas. São Paulo, Edusp, 1997. FRITH, Simon. “Towards an Aesthetics of Pop Music” in LEPPERT, Richard e McCLARY, Susan (Orgs.). Music and Society. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, 133/150. LOPES, Denilson. “Da Experiência Comunicacional ao Sublime no Banal”, manuscrito, 2003 (inédito). HERSCHMANN, Micael. 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A tentativa era universalizar esses elementos nacionais, com o intuito de mostrar e criar uma nova cena para o mundo, conectando o Brasil com o cenário pop mundial, e estabelecendo, por fim, um diálogo com as manifestações artísticas que trouxeram à tona um Brasil cosmopolita como o Movimento Antropofágico e a Tropicália. Em 1992, o jornalista e músico Fred 04, vocalista e líder da banda Mundo Livre S/A, um dos principais representantes do manguebeat juntamente com Chico Science & Nação Zumbi, redige um press release que vem sintetizar as idéias dessa nova geração de artistas. Intitulado Caranguejos com Cérebro, o release logo se transformou em “manifesto”, através da crítica musical (principalmente do Caderno C do Jornal do Comércio) e chegou aos jornalistas causando uma euforia coletiva na imprensa pernambucana. Dividido em três partes, o conceito, a cidade e a cena, o pequeno texto foi lançado um ano antes de Chico Science e Nação Zumbi editar o seu primeiro álbum, Da Lama ao Caos. O release toma o ecossistema da cidade como metáfora e subverte os seus princípios ecológicos ao desgaste físico e cultural da metrópole recifense. Articulando ideologia política e estética, o manifesto traça uma visão de um incipiente pólo de comunicação no Recife e contextualiza-o em um cenário recortado pelas transformações das metrópoles na contemporaneidade. O texto reúne três breves conceitos relativos à cultura do mangue (vegetação típica da cidade) que contêm implícitas referências ao período histórico marcado pela informatização e pelo capitalismo neoliberal. No citado “manifesto”, Fred 04 explica o manguebeat da seguinte forma: Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um “circuito energético”, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111 95 O tom do texto é de urgência como pretendem ser os manifestos de uma forma geral. Como argumenta Fred 04: O desvario irresistível de uma cínica noção de “progresso”, que elevou a cidade ao posto de “metrópole” do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade. Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada à permanência do mito da “metrópole” só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano. Sob o fundo da trilha sonora composta por Chico Science & Nação Zumbi, Recife passa a ter uma visão mais panorâmica da sua cultura urbana no contemporâneo. Nem popular, nem elitista; nem (ainda) massificada ou mitificada. Logo, um dos mais famosos slogans políticos das manifestações estudantis do Maio de 68, inspira o desenho de uma das primeiras camisas da cena cultural que ficou conhecida como manguebeat: “Sous le pavés, la plage”. Um caranguejo exibia suas patas tomando o asfalto da cidade “dos habitantes silenciosos”, como outrora definira Gilberto Freyre. Sobre a cidade, o mangue. A vegetação e os elementos do manguezal surgem reproduzidos nas telas de camisetas, enquanto um narrador performático, Chico Science, faz o anúncio de uma nova manifestação social que transformará os conceitos ideológicos existentes na cultura nordestina. Dada a intervenção da cena manguebeat no âmbito da música pop, algumas transformações passam a ser percebidas, também, no espaço social. Colocando esse jovem modelo artístico dentro do circuito da cultura de massa, o manguebeat destaca as mudanças pelas quais a cidade do Recife começa a ser conhecida e reconhecida como um pólo cultural urbano e fomentador de música pop. Socialmente essas mudanças também afetam a antiga representação feita do Nordeste e pelos artistas e intelectuais nordestinos nos meios de comunicação. A partir desse momento, os intelectuais que construíram o suporte para a criação de uma “mitológica cultura nordestina”, de Gilberto Freyre a Ariano Suassuna, vão cedendo seu espaço midiático aos jovens articuladores culturais, que resolveram colocar o caos e as maravilhas da cidade numa narrativa pop. Recife: um verdadeiro caleidoscópio de culturas cujo aspecto visual nos remete aos grandes centros urbanos da pós-modernidade, nos quais a relação entre tradição e tecnologia é exposta no espaço social. Nesse mercado global de estilos, vemos outdoors eletrônicos disputando sua visibilidade com fotos de um caboclo do maracatu rural coladas nos muros da cidade. Outdoors exibem elementos da cultura popular, enquanto os casarios do Recife antigo são reformados para abrigar o público 96 Carolina Leão - A negociação manguebeat noctívago, consumidor de uma tradição reformulada para vender uísque, soda e diversão. Como continuar, portanto, exaltando a cidade em meio à transformação do espaço urbano e de um novo estilo de vida comungado pelos jovens cidadãos recifenses? Dessa forma, o manguebeat tenta se colocar como contraponto de outros estilos e movimentos culturais nordestinos. Recife passa a ser, portanto, um dos principais expoentes de uma nova “comunidade imaginada” (HALL, 1998: 17) que ressalta as várias características da cidade brasileira imersa na cultura pós-moderna. E dela se desenvolve um novo discurso sobre a identidade nacional surgido das zonas periféricas, de movimentos sociais que contestam e transgridem as diversas representações institucionalizadas da cultura nordestina através do Estado de Pernambuco. O manguebeat respondeu de outra forma ao partidário discurso cultural brasileiro que se caracterizara por excluir ou o nacional ou o estrangeiro. Chico Science & Nação Zumbi destitui a cana-de-açúcar da época da colonização como símbolo nacional e adotou a diversidade dos manguezais. O que corresponde a uma visão ou teoria mais ampla sobre a dinâmica da globalização: as culturas monolíticas (metaforizadas pela monocultura da cana-de-açúcar) não poderiam ser tomadas como suporte de uma sociedade que funcionava com uma sobrecarga de informações tecnológicas, conceituais e visuais. Logo, os projetos culturais e artísticos da identidade nacional brasileira são “mixados” a estas várias experiências heterogêneas como um processo natural, conseqüente da própria quantidade de informações que os seus produtores recebem como cidadãos pertencentes a um mundo globalizado. Há uma abertura cultural, nas manifestações socais, que vem absorver o universal e uni-lo ao local. Dessa forma, o projeto de uma nova identidade nacional, produzido nos bairros da região metropolitana recifense, torna-se mais uma expressão de autonomia cultural de grupos e classes sociais que se encontram na periferia, de um país que se encontra na periferia da organização política mundial, do que uma manifestação arquetípica do povo brasileiro. Nesse sentido, parece improvável também que a geração de artistas da qual o manguebeat faz parte se autonomize da esfera econômica e busque a transformação estética simplesmente com base na informação de sua localidade. Promovendo um mix de idéias que abordam desde a Antropofagia Paulista ao psicodelismo da Tropicália, o manguebeat estabeleceu uma nômade incursão por esses projetos tornando-os elementos históricos e estéticos dentro desse caldeirão multicultural proposto por seus integrantes. Porém há uma “negociação”, entre todos esses movimentos, que recria um fluxo cosmopolita e permite uma troca maior de informações ao colocar a cultura da metrópole dentro desse contexto pluralizado. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111 97 Incluído nesse processo, o manguebeat revela uma geração de jovens que cresceu ouvindo música pop importada de Londres e Nova York e cujo comentário estético englobaria tanto as questões referentes ao seu grupo social de origem, como o musical, quanto, sobretudo, as inúmeras expressões urbanas que, por fim, formam o núcleo central de seu questionamento. O caráter homogêneo que porventura dominara o contexto artístico em expansão durante o século XX dá lugar aos hibridismos socioculturais. Os quais, na cidade do Recife, se observam na problemática da vida cotidiana em confronto com a realidade urbana, o imaginário pop e a fantasia popular, representados aqui pelos jogos publicitários que brincam com os mesmos signos que compõem as metrópoles. Ser mangueboy é pertencer à cidade, escutar música pop pelas rádios locais e manter uma identidade conectada à juventude dos grandes centros culturais. A cidade é pop. Veloz e fugaz, ainda se traduz como o arquétipo da modernidade, conceito fincando nos ideais de desenvolvimentos sociais iluministas pelos quais se edificaram os sistemas filosóficos da história moderna. Esta teve a incumbência de atribuir aos centros urbanos a categoria de espaço onde o saber, a ciência e o progresso seriam fomentados através de universidades e outros mecanismos de racionalização. Ainda que tenha tardiamente recebido essas informações, o Recife figura numa prática que explora os conceitos surgidos da modernidade enquanto projeto inacabado. Pelo menos nessa cidade periférica da América Latina ainda é tempo de dar andamento aos princípios elementares a uma sociedade intelectualmente e organicamente avançadas, segundo a proposta da estética mangue. A mistura da sua embolada com o rap é, para o Fred 04, uma atitude modernizante ou a evolução tecnológica que por fim chegou à periferia da cidade – onde, ao invés da ciência, a cultura configura-se como o movimento condutor da transformação. A modernidade, o moderno e toda carga racionalista que o conceito carrega é claramente expresso nas canções do grupo cuja referência ao progresso praticamente ignora que este não chegou a este ponto da terra porque ele não foi incluído na noção de evolução da humanidade proposto durante o período iluminista. Mais que uma condição natural do desenvolvimento da sociedade pósmoderna, o hipotético cosmopolitismo, permitido pela globalização das culturas, é uma estratégia para enfrentar e criar os próprios mecanismos que venham dar o tão clamado progresso à cidade. A cultura como movimento é sugerida pelo manguebeat que tematiza a cidade, seu caos e maravilhas, como a fonte de composição artística, o espaço onde a arte cria seus comentários. Há a exposição e projeção da cultura popular (samba, maracatu) através das citações e da necessidade de modernizar a cidade sem que outros elementos 98 Carolina Leão - A negociação manguebeat artísticos estejam excluídos do discurso que faz desse cosmopolitismo urgente um novo paradigma cultural através dessa manifestação social. Nesse caso voltamos a uma questão fundamental relativa à arte da América Latina na contemporaneidade: A indústria da informação saturou os países latino-americanos com filmes, vídeos, livros, exibições, aparatos eletrônicos e espetáculos multimídia provenientes do estrangeiro, criando territórios supranacionais nos quais as fronteiras entre eles e nós estão se diluindo. Nesses espaços, a oposição entre o próprio e o distante se apaga na medida em que os bens culturais e o consumo são desterritorializados. Assim, somos arrebatados de nossos contextos originários e integrados a novas localidades globais. (Mendieta, 1999). No desenvolvimento do manguebeat, os líderes dessa cena, Chico Science e Fred 04, explicam a experiência da contemporaneidade enfatizando o imaginário contido nas estéticas, mitos e ritos presentes na cultura urbana recifense. Esta tem sua égide no espírito pós-moderno, o qual pode ser revelado na complexidade do seu multiculturalismo étnico, estético e social. O mangue toma a própria metrópole pra explicar as contradições socioeconômicas do Recife que acolheu durante a sua urbanização uma massa de desempregados vindos do interior do Estado em busca da ‘oportunidade” da capital. Mas fala também do jovem consumidor de música pop que, mesmo não podendo obter materialmente os elementos que fazem parte dessa cultura, está incluído nela em conseqüência dos processos globalizantes. O manguebeat vem, portanto, popularizar a idéia de que já não é mais possível conceber os processos globais em torno da dominação de um centro único sobre periferias. Um dos primeiros conceitos que viriam chamar a atenção para o grupo Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ) foi o de vanguarda. Com Da Lama ao Caos, CSNZ ganhou destaque na mídia por apresentar uma visão crítica da periferia recifense; conquistando a simpatia de músicos veteranos como Gilberto Gil e Arnaldo Antunes com sua estética manguebeat. O fato de ter recriado um novo discurso sobre o Nordeste ou compor sua linguagem mixando informações já utilizadas pela cultura pop impulsionou a sua celebração pela geração mais antiga da MPB. Mas foi o diálogo que ele manteve com a cultura da cidade, mais especificamente da periferia, o motivo pelo qual ele foi caracterizado como uma cena vanguardista. Não por trazer quaisquer novidades ao universo pop, mas principalmente por seu discurso constituir um posicionamento crítico num momento no qual a juventude artística havia “abandonado” os temas transgressores que, anteriormente, tinham caracterizado toda uma produção contracultural. Bem aceito por jovens da classe média e pela intelectualidade local, até mesmo por setores mais conservadores da sociedade (como o Governo do Estado e, ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111 99 em menor intensidade, por personalidades como o escritor e criador do Movimento Armorial, Ariano Suassuna) o manguebeat teve alguns representantes da periferia integrados a sua articulação, mas foi no campo midiático que obteve o seu êxito. Representando alguns elementos da periferia com suas informações pop, a cena mangue conseguiu furar o cerco da grande indústria da música trazendo à massa, espontaneamente até (pelo tom popularesco e sua moda até certo ponto performática), o conceito de exótico tão consumido pelos meios de comunicação. O destaque colocado sobre o papel das comunicações de massa enquanto fenômeno importante na era da modernidade permite considerar as representações com um fenômeno capaz de explicar o modo pelo qual o novo é engendrado nos processos de interações sociais e, inversamente, como estes nos produzem as representações sociais (Nóbrega, 7). Ainda que esse exótico tenha feito parte do cotidiano no Recife com seu folclore e elementos popular, a sua utilização veio se firmar na cultura jovem como parte desse processo de transformação dos elementos regionalistas sob o aval do ímpeto cosmopolita proporcionado manguebeat. Uma abertura para a história pósmoderna globalizada que identificaria esses grupos sociais como consumidores e produtores do manguebeat. O fato de problematizar a cultura não significaria apenas um posicionamento político mas sim um resultado desse processo dialógico da apresentação x representação. Apresentando suas músicas, reforçada pelo caráter imagético do grupo, CSNZ traçou um panorama cultural da capital pernambucana e legitimou seu discurso, considerado da periferia, baseado nos símbolos que lhe garantiram visibilidade no meio social. Alguns componentes dessa cena faziam parte da região periférica da cidade; outros não. CSNZ é periférica em alguns significados que esse verbete pode suportar. É nacionalmente periférico por estar situado no Nordeste; é localmente periférico por ter surgido nos subúrbios da região metropolitana, o que não o torna, em nenhuma hipótese, o “herói oprimido do sistema”. E por mais que tenha existido esse confronto entre sistema x periferia ou o consumo do discurso mangue por uma parcela da população local que não fazia parte do “gênero periférico”, ele deu uma abertura para se questionar essa problemática. Como emblematicamente fala a música Manguetown: Estou enfiado na lama é um bairro sujo/onde os urubus tem casas e eu não tenho asas/mas estou aqui em minha casa onde os urubus tem asas/vou pintando, segurando as paredes do mangue do meu quintal manguetown/ andando por entre becos, andando em coletivos/ninguém foge ao cheiro sujo da lama da manguetown/Essa noite sairei, vou beber com os meus amigos/e com as asas que os urubus me deram ao dia, eu voarei por toda periferia. 100 Carolina Leão - A negociação manguebeat A cidade, antes de se colocar como um local onde as diversas culturas se encontram, é um território da diferença. Diversos papéis e representações sociais se intercruzam em hierarquias e critérios normativos impostos pela sociabilidade. Nesse ambiente, de certa forma fechado aos outros que circulam com suas variadas posições sociais, a comunicação das particularidades de um sujeito urbano é problematizada pelos vários discursos dos Eus existentes hoje. O manguebeat de CSNZ fala dessa experiência. Mas fala onde? Como? Para quem? Inúmeros cidadãos que circulam pela cidade não têm informação suficiente para falar, se expressar, construir uma linguagem ou estão privados da expressão por justamente não saberem o quê falar. Mas apesar do acesso “negado” à fala eles organizam uma identidade pela qual os reconhecemos enquanto sujeito. A identidade é um modelo discursivo que garante visibilidade e caracteriza um determinado grupo social em relação aos outros tantos existentes na urbe contemporânea. O manguebeat construiu sua identidade e foi rotulado como a expressão do sujeito periférico. Mas os anseios, as vozes e desejos daquele sujeito tiveram uma tradução bem elaborada pelo mix de cultura pop que o manguebeat proporcionou aos seus consumidores. Conforme explica Eduardo Mendieta, sobre a crítica pós-colonialista, eles os agitadores culturais do manguebeat: Não se vêem a si mesmos como profetas que articulam a voz do oprimido, como guardiões de alguma tradução cultural extra ocidental ou como representantes intelectuais do Terceiro Mundo. Sua crítica ao colonialismo não está motivada pela crença em um âmbito - moral ou cultural - de “exterioridade” frente ao Ocidente e muito menos pela idéia de um retorno nostálgico a formas tradicionais ou pré-capitalistas de existência. (Mendieta, 1999). Chico Science & Nação Zumbi teve uma boa circulação das rádios nacionais, chegou ao topo das paradas de world music e foi trilha sonora de novela da globo. Se hoje os meios de comunicação ocupam um espaço que deveria ter sua origem no Estado através da educação e da cultura, a mídia se torna, então, o ventríloquo que permite a essas cenas sociais, como o manguebeat, serem ouvidas pela sociedade. A cultura de massa surge, portanto, como o espaço onde esse crossover da cultura marginal para a de massa é produzido e mantém-se como o entre-lugar dentro do qual se negocia a ambigüidade entre o popular e o social. Ainda assim, a idéia do CSNZ ser um expoente da periferia e dar voz ao sujeito periférico fez com que ele fosse reconhecido enquanto movimento políticocultural. A forma como sua narrativa ecoa dá voz aos periféricos, mas não é ele que fala ou se representa socialmente através da cena mangue, embora a cultura midática ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111 101 a tenha exposto como o articulador da periferia. A questão da identidade ou representação desta aparece na tentativa de rearticular a relação entre sujeitos e práticas discursivas. “As identidades culturais são os pontos de identificação, os pontos instáveis de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e da história. Não uma essência, mas um posicionamento” (Hall, 1996:70). O que necessita ser questionado, no entanto, é o modo de representação dessa alteridade, que depende da forma como a cultura oficial a absorve. Mas mesmo que tenha criado esses estereótipos (ancorados em identidades e estéticas) estariam eles mais plurais e com a possibilidade de serem substituídos por outros sem que o movimento original tenha sido extinto? O estereótipo seria ainda a principal forma usada pelo discurso colonial para acolher essas estéticas e gêneros sociais, como critica Spivak: Do outro lado da divisão internacional do trabalho pelo capital socializado, dentro e fora do circuito de violência cognitiva da lei e educação imperialista que complementa um texto econômico anterior, os subalternos não podem falar? (1995: 25). Como prova o manguebeat é possível sim falar a partir do espaço da alteridade mesmo que seja, nesse caso, através de um ventríloquo chamado meios de comunicação. Nesse sentido, entra novamente como fator determinante desse diálogo os elementos exóticos pertencentes ao grupo. Trata-se de adotar essa linguagem por uma questão bem óbvia ao mercado cultural: a sua necessidade por novidades. E o novo está exatamente na possibilidade de fazer da estética manguebeat um modelo de consumo social e econômico. A mídia e a cultura de massa estão naturalmente prontas para obter essas novidades. E CSNZ também estava inserindo nessa dinâmica social quanto obteve dos meios de comunicação o caminho de fácil acesso à sociedade. A TV e o rádio, principalmente, seguidos pelas revistas de moda e música, prontamente se dispuseram a descobrir que tipo de linguagem artística era aquela que mixando o local ao global não deixava de garantir o quinhão de visibilidade para periferia recifense – de onde essa cena também surgira. O que nesse caso reduz o campo de compreensão dessa alteridade e implicaria uma perda da própria identidade do artista da periferia; posto que, consumido independente de classes e opções sociais, o manguebeat foi apenas uma das representações desse ambiente urbano marcado pela dificuldade de expressão social. O que pode ser observado com o manguebeat é a sua celebração como o “movimento da periferia brasileira” quando no máximo ele foi uma das representações dessa cultura subalterna. Esta tem um movimento diário próprio que inclui diversão nos subúrbios 102 Carolina Leão - A negociação manguebeat da cidade ao som de música brega. Mas que também não deixa de ser apresentada com outras particularidades específicas à juventude dessa periferia que, mesmo com todo “esforço” de CSNZ, ao ser processada como produto da massa para os meios de comunicação transformou-se num objeto de consumo como tantos outros. Nesse momento, passou a ser “legal” pertencer à periferia. Mas como quem fala nesse caso não são os cidadãos periféricos e sim os artistas que adotaram essa questão na sua temática chegamos novamente onde tantas outras cenas culturais haviam partido: à falsa representação da realidade por meio de estereótipos e fetiches. A estereotipia designa um estado de simplificação das dimensões dos estímulos, do imediatismo da reação e, às vezes, de rigidez. Em outro nível, mais freqüentemente, esta noção exprime o grau de generalidade de uma opinião, de aceitação ou de rejeição de uma representação de um grupo ou de uma pessoa. O estereótipo consiste numa resposta que é ao mesmo tempo genérica e reducionista à simplificação dos fatos (Nóbrega, 24). Como o ventríloquo que ludibria os espectadores com truques falsos, CSNZ via meios de comunicação traz uma realidade marcada pela diferença e desigualdade social que pode muito bem virar um clichê ou um momento “curinga” para a manipulação das massas. Como se estivessem dando à chance desse artista e cidadão periféricos falarem de sua problemática, os meios de comunicação também negociam uma forma de apelar para o senso comum e chamar a atenção do seu público para aquele produto criado pelas minorias sociais. Entram em cena os estereótipos e as formas que traduzam essa experiência artística da melhor maneira possível ao consumo massificado. “Estereotipar não é criar uma imagem falsa que se transforma no bode expiatório das práticas discriminatórias. É um texto muito mais ambivalente” (Bhabha, 1991: 198). Ambivalência que nos leva a crer que como toda criação de uma imagem, estereotipar depende também da forma como o ser representando se apresenta publicamente e o que faz com sua linguagem ou discurso seja apreendida por meio de um conceito fixo e fragilizado. Mas tal constatação nos levar a um vazio existencial já que é da qualidade humana se fazer aceito, ou aceitar, por meios de sínteses pessoais ou “resumos” que caracterizem um determinado grupo. Se as culturas populares, como observa Canclini, “se constituem por uma apropriação desigual dos bens econômicos de uma nação ou etnia por parte dos seus setores subalternos” (1996: 17) o resultado desse processo seria, entre outros, a reprodução e transformação dos seus possíveis bens simbólicos e, consequentemente, a adaptação destes às condições gerais da vida social. Ou melhor: produtos surgidos no território de uma cultural não-oficial estariam sujeitos a serem representados numa ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111 103 forma bem adaptada ao consumo massificado, que rejeita as particularidades e absorve um resultado padronizado à sociedade de massa. Sobre esse mecanismo de representação, apresentado via estereótipos e fetiches, Homi Bhabha destaca que ele funciona como “um aparato que acende o reconhecimento e a negação das diferenças raciais/culturais/históricas. Sua função estratégica predominante diz respeito à criação de um espaço para a subjetividade das pessoas através da produção de conhecimento em termos de a vigilância ser exercida e a forma complexa de prazer/desprazer, incitada” (Bhabha, 1991: 191). Característica típica do pós-moderno que constantemente alterna seu interesse pelo exótico ou diferente conforme a permanência ou fugacidade que aqueles possam ter no campo midiático. Geralmente, essa característica pode ser observada em cenas culturais ou estéticas que repentinamente se tornam aproveitáveis por trazer nos elementos formadores de sua estrutura quaisquer diferenciais aos que são consumidos diariamente no cotidiano das grandes cidades. Estas também estão situadas, juntamente com a prática da “adaptação massificada”, nos países pobres da periférica América Latina, cujos movimentos culturais vêm se revelando como um dos principais exemplos dessa ambígua relação entre originalidade e universalidade, representação, estereótipo ou como sugere Homi Bhabha, substituto e sombra. De uma forma mais ampla, esse complexo relacionamento teria se formado no início do século XX quando os movimentos de grupo surgem como uma resposta ao “fracasso” da cidadania universalizante da modernidade. Nesse momento não se tratava mais da dialética de classes, mas sim de grupos. Mediante o desenvolvimento de questões sociais ligadas aos gêneros (raça, crença, estilo de vida, sexualidade, entre outros), confrontava-se a problemática do homem contemporâneo. Este começa a ter acesso político a sua cidadania por pertencer a um grupo específico, que lhe dava a garantia de ser ouvido pelo sistema social, ou até mesmo integrá-lo como cidadão, ao destacar as características biológicas, genéticas ou culturais elementares a sua personalidade. Inclusa também nesse processo, a arte da pós-modernidade tanto passa a ser o meio pela qual se constróem linguagens auto-referenciais quanto se revela a estrutura propulsora de comportamentos baseados nessa tendência da aceitação da diferença. Afinal, não só as questões referentes às singularidade de cada cidadão (como a raça e a classe econômica) passam por uma estratégia de representação como também a experiência artística chega a um momento no qual desloca-se do seu ambiente de origem para alcançar todas as esferas sociais, indiscriminadamente. A instância antietnocêntria revela uma estratégia que, ao reconhece o espetáculo da alteridade, concebe um paradoxo central a estas teorias. Para 104 Carolina Leão - A negociação manguebeat se compreender a crítica do logocentrismo e idealismo ocidentais, é necessário que haja um discurso constitutivo de perda, imbricada numa filosofia da presença que torne possível uma leitura descontrutivista e diferencial nas entrelinhas (idem: 99 ). Esteticamente, a América Latina foi o local onde o crossover da cultura popular para a de massa se desenvolveu com maior rapidez e intensidade no circuito da música pop. Começando com pequenas cenas e movimentos artísticos ao redor do globo, a música pop latina começou a ter destaque nos meios de comunicação de massa no início dos anos 80. Paralelamente a uma abertura político-econômico aos países latino-americanos, os centros fomentadores da cultura pop nesse momento, Estados Unidos e Europa, começaram a absorver a música que surgia em locais como Porto-Rico. É óbvio que o inglês continuava como a língua oficial da cultura dominante. Mas fenômenos de massa como o grupo porto-riquenho Menudo, por exemplo, mostravam que os holofotes do showbizz concentravam suas luzes também para o produto do ainda chamado terceiro-mundo. Nesse momento surgem também categorias musicais específicas como a world music, um rótulo dado ao mix de sons, culturas e etnias que se desenvolvera na derrocada da cena pós-punk e que para os hit parades significa a expressão da musicalidade terceiro-mundista. Atualmente, os grandes prêmios de música pop, como o Billboard Award e o Grammy, criaram espaços exclusivos para o gênero world music e destacam na suas edições anuais as novidades do pop latino (colombiano, argentino, brasileiro) que tanto podem ser fenômenos equivalentes ao Menudo como representantes da música popular/folclórica de tais países. Simultaneamente esses artistas são apresentados como o outro do sistema oficial (aquele que, principalmente, não canta em inglês) e representam, de certa forma, a imagem que se faz da América Latina nos meios de comunicação. O ato de representar-se, obviamente inerente à condição humana, mediante os elementos constitutivos de cada linguagem passa necessariamente pela reprodução de uma imagem. Esta funciona como a síntese sensorial do outro, facilitando o acesso ao seu universo da forma mais prática e simples possível. As imagens representam iconograficamente, isto é, por meio de semelhanças. E é na semelhança, ou na possibilidade de um elemento que a coletividade comungue com as cenas e grupos específicos, que se encontra a porta de entrada para a aceitação da diferença. Aparelhamento funcional do estado, políticas estruturais viáveis, sociedades civis democráticas devem ser concebidas em relação a circunstâncias específicas de determinados países latino-americanos e não modeladas a partir do paradigma dominante da modernidade ocidental. (Yúdice, 1991: 96). ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111 105 Quando o manguebeat se utiliza de imagens para acompanhar sua performance musical ele resume iconograficamente uma certa narrativa, que por meio de caranguejos e parabólicas sintetiza o conceito de sua linguagem híbrida. As imagens, isto é, os tais ícones são a materialidade de um discurso que criou outras representações para a identidade nordestina. Talvez, essa cena não tivesse sido tão consumida caso não houvesse um elemento que facilitasse a entrada a esse universo estético. Mas por conter um certo aparato de performance e imagens referentes a um conceito específico, o manguebeat conseguiu adentrar em espaços socais que incluíam desde a juventude da periferia ao consumidor de música pop de uma forma geral, cuja informação era proveniente da mídia. Por isso, quando se destacam as cenas culturais latino-americanas, por exemplo, faz-se de forma que os elementos mais expressivos que componham a sua imagem para o mundo se sobressaiam, incluindo a tendência de mitificar o seu exotismo ou sua excentricidade. O estereótipo não é uma simplificação por ser uma representação falsa de uma realidade especifica, mas uma simplificação falsa porque é uma forma de representação fixa e interrompida, que ao negar o jogo da diferença cria um problema para a representação do sujeito em acepções de relações psíquicas e sociais (Bhabha, 1991: 193). Pois, afinal, o que pode ser expressivo para o “eu” latino-americano não significa necessariamente que seja também para o “outro”, seja qual for a sua origem e posicionamento político. Uma dicotomia presente nas relações culturais contemporâneas que criam mecanismos de aceitação ou rejeição por meio do desenvolvimento de estereótipos, processo que fixa imagens e conceitos nesse caminho do reconhecimento. Ou como destaca Bhabha, a representação via estereótipo se transformaria, além de um caminho de fácil acesso, num fetiche. Entretanto, se atravessamos o milênio baseando a experiência cotidiana na mobilidade das identidades culturais, como aceitar a fixação de um conceito sob determinado ponto de vista já que o mesmo pode atualmente ser facilmente modificado conforme a velocidade pela qual caminham os aspectos ligados a identificação social? Modernistas são antropófagos; regionalistas, conservadores, tropicalistas, performáticos, armoriais, retrógrados e marginais (malditos). A cada cena cultural brasileira corresponde uma identificação estética que dialoga não apenas com a linguagem artística presente no seu discurso bem como com a realidade social na qual está inserida. E o manguebeat, uma das principais cenas da cultura brasileira contemporânea quiçá da própria América Latina, de que forma estaria inserido nessa dinâmica? 106 Carolina Leão - A negociação manguebeat O manguebeat revela algumas influências das estéticas que formaram a identidade da cultura brasileira. Mas é importante destacar que não se trata de assumir a linguagem do outro, mas de combiná-la ou até mesmo confrontá-la. Eles também são performáticos como os tropicalistas e pretenderam atingir o local através de um cosmo unificado. Mas toda a sua representação cênica passa pelo contexto globalizado no qual ele surge. Um ambiente onde a permissividade para os tantos outros dessa cultura mundializada é permitida pelo fácil acesso ao global, através da mídia, e a um passado histórico que fundamentara a identidade nordestina durante o período da sua modernização, no século XX. Eles deixam de ser antropófagos para serem sujeitos híbridos, resultado da própria experiência social vivida no território urbano. Ao usar a cultura popular nordestina como suporte artístico, o manguebeat praticava a antropofagia, outrora vanguardista, que no pós-moderno seria apresentada como o mix do local ao global. Mas se formos voltar ao movimento cultural que o antecedeu, o Armorial, vemos que, apesar de utilizar a cultura popular como recurso estético, ele não faz parte de uma cena que tenha por objetivo levar a expressão do “povo para o povo“ como estandarte. A cultura popular está inserida nessa linguagem com intensidade semelhante ao funk, samba, rock e hip hop. E é justamente na possibilidade de mixagem desses elementos que surge um dos mais fortes estereótipos desse grupo. A fusão de sons e idéias se tornou o meio pelo qual CSNZ caracterizou toda uma geração de artistas pop com base nas suas colagens musicais. É pouco provável que a mídia hoje, principalmente do eixo Rio/São Paulo, não faça, depois do manguebeat, referência a esse hibridismo estético - cujo êxito foi representar o novo artista nordestino como aquele que quer ser cidadão do mundo via sampler e tecnologias. Negando ou identificando-se com as cenas que compuseram o panorama cultural do País, Chico Science & Nação Zumbi propôs “modernizar o passado e exigir uma evolução musical” mas também criou e foi representado por seus estereótipos e acabou sendo fetichizado, posteriormente, pela cultura de massa que utilizou imagens e conceitos para impor um discurso manguebeat na mídia. Dessa forma, ele foi exaltado pela cultura oficial por praticar essa comunicação com as informações universais. O que, finalmente, levou a caracterizar os grupos locais que produziam qualquer tipo de mix, até mesmo aqueles cuja mistura tinha como base o rock e o funk sem a inclusão da cultura popular em sua estética, como produto do manguebeat ou influência deste. O hibridismo faz parte de uma conseqüência até de certa forma natural à cultura contemporânea, que tem uma infinidade de movimentos e estéticas para recorrer através do passado ou das experiências correntes. O grande problema desse hibridismo que vira um fetiche (o fácil acesso ao outro através de uma falsa realidade ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111 107 ou representação) foi, talvez, ter eclipsado algumas questões concernentes à cultura periférica da qual ele faz parte. Ao enfatizar a adoção do cosmopolitismo como o grande momento em que o artista subalterno recifense conseguiu adentrar no espaço público, a cultura de massa e o senso comum esquecem que na periferia também há diferenças e nem tudo que é periférico no Recife é manguebeat. Nem todas as expressões sociais produzidas por essas minorias pretendem ser cosmopolitas ou fazer parte da cultura de massa, ainda que venha a ser influenciada por esse quadro no qual mídia e globalização são palavras de ordem. É claro que ao invés de um confronto, o manguebeat preferiu negociar, por meio de mecanismos como o próprio hibridismo, com a cultura globalizada. Mas sua negociação, por mais que tenha tornado heterogênea a sua identidade cultural, também produziu uma gama de estereótipos com os quais se identificou posteriormente toda uma geração de jovens consumidores de música pop no Nordeste. Como observa Homi Bhabha, o fetiche ou o estereótipo também “possibilita o acesso a uma identidade, que, sendo uma forma de convicção múltipla e contraditória, se baseia tanto no domínio do prazer quanto na ansiedade e defesa” (Bhabha, 1991:”179). Ao fixar essas imagens no imaginário dessa nova cultura nordestina, CSNZ criou seus estereótipos da mesma forma que outros movimentos regionalistas criaram. E como um véu invisível, essa representação foi adotada pela cultura de massa como o momento no qual o periférico foi ouvido pelo sistema. Mas estamos falando de que periférico? Posto que consumido pela classe média e divulgado pela cultura de massa, ele circulou entre jovens que tinham poder aquisitivo suficiente para comprar discos e camisetas e ir aos shows de Chico Science & Nação Zumbi. Ressaltando ainda que o estereótipo do hibridismo manguebeat fez valer essa noção de que a periferia estaria, finalmente, sendo apresentada ao domínio público, o qual conheceria as suas mazelas sociais conforme consumisse a música (supostamente panfletária) de Chico Science & Nação Zumbi. CAROLINA LEÃO é mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco. 108 Carolina Leão - A negociação manguebeat REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Nadia de Maia. (2001). Caras no Espelho: Identidade Nordestina através da Literatura. São Paulo: ed. Dp&A. BHABHA, Homi K. (1998). O Local da Cultural. Belo Horizonte: Editora da UFMG. BENNETT, David (org). (1998). Multicultural States: Rethinking Difference and Identity. London/New York. BUARQUE DE HOLLANDA, Heloísa. (1991). Pós-Modernismo e Política. Rio de Janeiro: Rocco. BAKHTIN, Mikhail. (1992). Marxismo e Filosofia da Linguagem. (79) São Paulo: Hucitec. BOAVENTURA, Maria Eugência. (1985). A Vanguarda Antropofágica. São Paulo: Ática. 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O Fim do Nordeste e Outro Mitos. São Paulo: Ed: Cortez. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111 111 Sintonizando a música brasileira De olho nos ritmos urbanos Os novos ritmos e sons urbanos – que emergem e/ou são reelaborados em diferentes regiões do país, ganhando visibilidade com auxílio da mídia tradicional ou por intermédio das novas tecnologias interativas de informação e comunicação – desafiam observadores e pesquisadores. Entre os exploradores deste vasto e intricado campo, destaca-se, sem dúvida, o nome do antropólogo Hermano Vianna, autor de O mundo funk carioca (1988), O mistério do samba (1995) e inúmeros artigos e ensaios que se tornaram referências para os estudos (de cunho sócio-antropológico) da música no Brasil. Vianna, porém, está muito longe de ser um típico intelectual de gabinete: irrequieto, atua, também, como roteirista de televisão e cinema, tendo trabalhado nos documentários musicais African Pop, Folia na Bahia, Baila Caribe e Música do Brasil. Nesta entrevista, ECO-PÓS instigou Vianna a tratar de temáticas controversas que perpassam o universo da Comunicação e da Música, tais como: o impacto das novas tecnologias sobre a produção musical (especialmente, a eletrônica), o papel do DJ na criação musical, os novos rumos do mercado fonográfico e o despreparo dos jornalistas da área cultural. Micael Herschmann e João Freire Filho E: O mundo funk carioca, lançado em 1988, já chamava a atenção para o papel central da figura dos DJs. Passados 15 anos do lançamento do livro, qual a sua opinião acerca do peculiar status usufruído, hoje, por estes profissionais, guindados a astros da nova ordem musical? HV: O status atual dos DJs reflete uma nova forma de consumo musical, bem menos passivo do que aquele que a indústria fonográfica sabe controlar ou que as leis do direito autoral e do copyright regulamentam. O DJ utiliza a produção artística de outras pessoas como base para seu trabalho também artístico. Ele escolhe, mixa, recombina, remixa as músicas que vão fazer as pessoas dançar, criando novos contextos onde essas músicas passam a ter novos sentidos e ganham novas interpretações (tanto que muitos deles atuam também como produtores musicais). Sua “ideologia” é o mesmo “cut-and-paste” divulgado pelo pensamento modernista e que se tornou o procedimento essencial da maioria dos softwares, de processadores de textos a editores de cinema digital. É claro que há tentativas de domar a situação. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.113-118 113 Os DJs, por exemplo, foram transformados em estrelas, tão poderosas e milionárias – e distantes do público – quanto astros de rock. Mas algo nesse novo show business não funciona muito bem e impede a formação de uma barreira entre quem está nos toca-discos e quem está dançando. Pouca gente vai para uma pista de dança para admirar o virtuosismo de quem seleciona as músicas. A maior parte do público ignora o novo star system, o que - para quem foi criado pela filosofia do-it-yourself do punk, como eu fui - não deixa de ser bastante “saudável”. E: Como você analisa, a propósito, a comentada apresentação do DJ Marlboro, na noite de encerramento do primeiro TIM Festival, que arrebatou jovens afinados com distintas cenas musicais, modernas, alternativas, indies? Para você, Marlboro tem razão ao proclamar que o funk é a verdadeira música eletrônica brasileira? HV: O sucesso da apresentação do Marlboro no Tim me pegou de surpresa. Acostumado a anos de preconceito, tendo que defender o funk carioca dos ataques mais pesados, quase absolutamente unânimes, da imprensa à polícia, não estava preparado para ver tal consagração. Era como que um baile de carnaval. As pessoas pareciam estar dando um grito de liberdade, afirmando a plenos pulmões (o público cantava todas as músicas, o que demonstrava que apesar do boicote midiático e policial – vários bailes continuam proibidos e eles não são anunciados nos jornais – todos continuaram ouvindo os últimos sucessos das favelas) algo assim como “it’s only funk carioca but I like it!” Era gente que sempre me foi descrita como inimiga do funk. Aquela festa demonstrava bem a vitalidade do funk carioca e sua capacidade de expressar sentimentos dos mais variados grupos culturais que formam a população carioca. O funk carioca não tem nem 15 anos de vida. Quando eu fiz meu trabalho de campo que resultou na dissertação de mestrado, não havia funk cantado em português ou produzido no Rio tocando nos bailes. Era um consumo de 100% de música importada. Hoje, os bailes tocam 100% de música nacional. É uma virada que também me surpreendeu. Nada, no meu trabalho de campo, indicava que isso poderia acontecer, apesar de nunca ter acreditado nas profecias apocalípticas que diziam que a indústria de entretenimento norte-americana iria impor uma única cultura para todo o mundo (e, na minha dissertação, o consumo de funk no Rio já atuava como um exemplo contrário a essa profecia, revelando um circuito de consumo e intercâmbio cultural paralelo sem nenhum apoio da grande mídia). O funk carioca começou a ser gravado, em 1989, como mera cópia dos sucessos do Miami Bass (estilo do hip hop criado na Flórida, a partir das batidas 114 Hermano Vianna - De olho nos ritmos urbanos nova-iorquinas de Afrika Bambaataa e Arthur Baker). Apenas tinha letras em português. Aos poucos, sem ser uma estratégia consciente, foram aparecendo melodias (como a do Rap da Felicidade - “eu só quero é ser feliz / andar tranqüilamente na favela onde eu nasci”...) que poderiam fazer parte de samba-enredo se tivessem acompanhamento de baterias de escola de samba e não de baterias eletrônicas. Aos poucos também elementos musicais “tipicamente” cariocas, como um “tamborzão” que toca ritmos de umbanda e hoje domina todos os sucessos, foram se misturando à trama eletrônica. Hoje, o funk carioca é um novo estilo musical. Talvez, seja realmente a música eletrônica brasileira, com mais voz própria e inconfundível. As outras, mesmo o drum’n’bass-bossa paulistano, me parecem mais ligadas a fórmulas inventadas fora do Brasil. Mas isso, de maneira alguma, quer dizer que sejam menos “verdadeiras”. E: Em ensaio publicado no livro Ritmos em trânsito (1997), Livio Sansone destaca a diferença entre o samba no pé do Rio de Janeiro e o samba na bunda ou rebolado da Bahia, herança da diferença entre samba fino e samba de roda. No Rio, observa Sansone, constata-se uma postura mais controlada, afinada e sinuosa, enquanto que, em Salvador, o importante é o requebrado, o rebolado e o jogo de cintura. O autor argumenta que talvez seja esse o motivo de entre o samba duro e a intelectualidade baiana não ter havido a mesma sedução recíproca que caracteriza a história do samba no Rio de Janeiro, analisada no seu O mistério do samba (1995). A hipótese lhe parece convincente? Em caso afirmativo, esta distinção contribuiria, ainda, para hostilidade da crítica carioca contra os grupos da chamada axé music? HV: Não li ainda o ensaio. Mas a sugestão é extremamente “boa de pensar”. Talvez o funk junte até as duas coisas, o pé com a bunda. Vi, outro dia, um grupo de garotos num baile demonstrando seu rebolado para umas meninas, que julgavam quem deles tinha a melhor bunda? No funk, homens e mulheres rebolam como se fossem as Sheilas do Tchan! É uma sensualidade totalmente unissex, que também está sendo exportada para o samba dos ensaios de escola de samba. Mas isso acho que é novidade. Antigamente, era mais fácil ver esse tipo de rebolado na Bahia e talvez essa mais libidinosa expressão corporal tenha afastado muitos intelectuais (certamente não afastaria Gilberto Freyre), não sei ao certo. No Rio, sempre houve um samba de que os intelectuais gostam mais, que não é exatamente o samba de que a maioria da população da cidade gosta. Isso pode ser comprovado em qualquer visita a um dos milhares de pagodes que acontecem todas as noites na cidade, onde Zeca Pagodinho (representando o estilo aceito por intelectuais) convive muito bem com bandas como Pique Novo ou Só Para Contrariar. Nos anos 60, enquanto a intelectualidade redescobria o “samba de raiz” de Cartola, a garotada (e Hélio Oiticica!) ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.113-118 115 dos morros e adjacências estava acelerando o ritmo das baterias de escolas de samba, numa jogada até hoje desprezada por intelectuais “puristas”. A situação, tanto no Rio quanto em Salvador, é certamente bem complexa. Mas o “tipo ideal” proposto pelo Livio Sansone, segundo a descrição da pergunta, certamente esclarece muitos pontos obscuros dessa complexidade. E: No artigo Condenação silenciosa (Folha de S. Paulo, Mais!, 25/ 04/1999, 10), você criticou, de forma contundente, o perfil do nosso jornalismo cultural, despreparado, extremamente opiniático e afeito à fofocas. É possível fugir muito deste padrão, atuando dentro das diretrizes da grande imprensa? HV: Seria importante que alguém estudasse o ambiente das redações de nossos cadernos culturais, para descrever como tudo funciona. Eu não entendo nada desse mundo. Não gosto de gente que fica exaltando os velhos tempos, mas não posso deixar de pensar que esses cadernos produziam jornalismo de maior qualidade nos anos 70. Não sei o que houve para a qualidade cair tanto assim. Como diz Caetano Veloso, o mesmo comercialismo criticado pelos jornalistas nos produtos da indústria fonográfica parece ter tido resultados mais constrangedores nos cadernos “culturais” do que na música brasileira. Vide o lançamento de discos de nossas grandes estrelas: os jornais lutam por furos de reportagem, para dar notícias sobre o disco antes dos concorrentes. Quando o disco é finalmente lançado, todos os jornalistas se deixam controlar pelas estratégias de marketing das gravadoras, publicando críticas no dia seguinte ao recebimento do disco, quando não houve tempo para escutá-lo com o devido cuidado, se baseando geralmente nas informações publicadas em press releases ou em entrevistas feitas às pressas. Como leitor, eu preferiria uma crítica mais interessante a uma notícia publicada antes dos outros jornais. Mas os jornalistas parecem não pensar assim. Por exemplo: lancei o Música do Brasil, projeto que documenta músicas na sua maioria sem nenhum registro anterior, de 82 municípios brasileiros. Houve muitas matérias celebratórias no lançamento, não posso me queixar. Mas não houve nenhum artigo analisando a produção musical ali revelada. O mesmo aconteceu com tudo que fiz na televisão. Nunca li nenhum artigo interessante, falando bem ou mal, que me ajudasse a pensar sobre o que estou fazendo. É uma situação que considero bem triste. Acho que a internet comercial brasileira não se confirmou como uma alternativa a esse tipo de jornalismo. Tudo nela é ainda mais rápido e superficial, nada parece incentivar uma reflexão mais complexa. Nos sites mais populares (muitos deles ligados aos donos dos grandes jornais), são usadas técnicas comerciais, que 116 Hermano Vianna - De olho nos ritmos urbanos incluem cookies espiões do comportamento dos usuários, que se fossem utilizadas por nossas emissoras de televisão ou pelo governo causariam revolta pública radical e editoriais indignados nos jornais. E: E quanto à investigação acadêmica, quais são, no seu entendimento, os principais desafios enfrentados pelos pesquisadores interessados em estudar a música popular contemporânea? HV: Acho que o principal desafio é a preguiça. Talvez, também, o preconceito contra tudo o que é popular agora. Há milhares de coisas interessantes acontecendo no Brasil, quase nada foi objeto de estudo. Voltei ontem de Manaus. Passei os últimos dias indo aos forrós daquela cidade. É uma cena impressionante. Já derivada do forró mais eletrônico cearense, mas com características bem próprias. Mas como é padrão intelectual falar mal desse forró contemporâneo para elogiar um mítico forró “pé-de-serra”, considerado mais autêntico, ninguém estuda o que está acontecendo. Estamos perdendo um tempo precioso, por preguiça (tanta gente faz pesquisa baseada só naquilo que os jornais publicam, sem nunca ir para a rua!) ou por bobagem. Tenho certeza que o forró de Manaus ou o funk carioca têm mais qualidade propriamente musical do que muita música que os pesquisadores consideram de bom tom estudar. E: Quais as estratégias que a produção musical da periferia vêm encontrando para ganhar terreno e atrair consumidores, em articulação ou tensão com a grande mídia? Em que medida, no mundo contemporâneo, a cadeia produtiva da música vêm se articulando de forma mais intensa com outras cadeias produtivas do audiovisual? HV: Quando cheguei de Manaus, escutando os discos que comprei no camelô, descobri que a faxineira, freqüentadora dos forrós dos morros cariocas, conhecia todas a músicas que para mim eram a maior novidade. Um circuito paralelo de distribuição cultural leva o novo forró para todo o Brasil, sem depender da grande mídia, das grandes gravadoras. Isso acontece com vários outros estilos musicais. E os músicos estão inventando novas estratégias de sobrevivência, assumindo até a pirataria como marketing. Não há nenhuma tensão explícita com a grande mídia, pois a grande mídia não se interessa por esses fenômenos (e acho que por isso vai ser cada vez menos “grande”). A mesma coisa acho que vai acontecer com o audiovisual, quando os equipamentos de produção se tornarem mais baratos (algo parecido já acontece com o cinema caseiro produzido em grandes capitais africanas). Para fazer o Música do Brasil, viajei por quase todos os locais mais pobres do Brasil, de reservas extrativistas ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.113-118 117 do Acre ao sertão do Piauí. Não tem lugar que não tenha videolocadoras, que parecem ter se transformado nas novas bibliotecas populares. Produções locais vão certamente fazer sucesso nesse novo circuito de distribuição de imagens, que ficará ainda mais potente com a popularização da banda larga. E: Na sua opinião, as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação decretaram uma crise econômica e de identidade sem precedentes na indústria fonográfica? Será que essas mesmas tecnologias permitirão, às grandes corporações, encontrar uma saída para o problema? HV: Penso que a indústria fonográfica, como existe hoje, está com os dias contados. Sua reação contra as novas tecnologias é burramente policialesca. Repressão e mais repressão e nenhuma proposta realmente inovadora para resolver os problemas. Precisamos ter muito cuidado com campanhas contra a pirataria e para melhorar a cobrança dos direitos autorais. Mesmo a numeração dos CDs pode ser um dia usada para controlar nosso consumo musical. Imagine como uma ferramenta dessas pode dar alegria para ditadores. Temos que ser mais criativos que os piratas, se não quisermos virar reféns de sua barbárie. MICAEL HERSCHMANN e JOÃO FREIRE FILHO são professores da ECO/UFRJ e editores da Revista ECO-PÓS. HERMANO VIANNA é roteirista de televisão e cinema e doutor em antropologia pelo Museu Nacional/UFRJ. 118 Hermano Vianna - De olho nos ritmos urbanos O autoritarismo na historiografia da música popular brasileira A biografia de Paulo Cesar de Araújo parece tão singular quanto as idéias que defende em seu primeiro livro, Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar (2002). Baiano de Vitória da Conquista, Paulo Cesar passou a infância entre os estudos e o trabalho como engraxate e vendedor de picolé. Veio com a família para São Paulo, onde foi funcionário de uma fábrica de óculos, em um bairro operário de Vila Maria; em seguida, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde graduou-se em Comunicação Social pela PUC e em História pela UFF. No primeiro curso, iniciou sua carreira de pesquisador musical, com o Projeto PUC Memória; no segundo, amadureceu a questão que iria acompanhar-lhe até o mestrado em História Oral da Uni Rio: por que a música ouvida e amada pela maioria do povo – inclusive, por ele próprio – não consta da historiografia do nosso cancioneiro popular? Talvez fosse realmente necessário o aparecimento de um pesquisador proveniente das camadas populares – alguém que tivesse uma relação afetiva com a obra dos intérpretes românticos malditos – para que a música popular dita cafona fosse reavaliada como objeto digno de estudo, dentro da história da cultura. Nesta entrevista a ECO-PÓS, além de expor e aprofundar as questões mais relevantes e polêmicas desenvolvidas em Eu não sou cachorro, não, Paulo César de Araújo analisa o lugar sui generis ocupado, em nosso cânone musical, por Roberto Carlos, protagonista de seu próximo livro. João Freire Filho e Eduardo Coutinho E: Na orelha de Eu não sou cachorro, não, o jornalista Lula Branco Martins define seu trabalho como um livro de guerrilha. O que levou você a defender a causa dos cantores e compositores cafonas dos anos 70? PCA: Cresci ouvindo rádio. Não tínhamos televisão, toca-discos, mas havia um rádio. E, no meio dos anos setenta, quando estava com 7 ou 8 anos de idade, essa geração de cantores e compositores chamados cafonas era muito forte. Tocava-se bastante Paulo Sérgio, Nelson Ned, Agnaldo Timóteo... Mais tarde, quando me interessei pela história do Brasil e, particularmente, pelo estudo da história da música popular brasileira, eu constatei que aqueles cantores que eu ouvia no rádio, que meus pais ouviam, que os meus amigos ouviam, que o povo brasileiro ouvia, não ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.119-127 119 aparecia nos livros de conhecidos historiadores da música popular brasileira. Se você pegar a obra de um José Ramos Tinhorão, de um Sérgio Cabral, de um Ricardo Cravo Albin, você não vai encontrar referência, não digo a um ou outro compositor, não, mas a um geração inteira de artistas da música brasileira. Então, na verdade, a idéia do livro partiu da constatação dessa exclusão. A idéia era fazer um livro para denunciar isso, num primeiro momento e, claro, entender que produção foi essa. Qual repercussão que isso provocou na época, na história do Brasil? Nesse sentido, é um livro de guerrilha, sim. Eu vim para brigar mesmo. Para denunciar, para apontar, para mostrar que essa questão do autoritarismo, no Brasil, não é apenas política, está na própria memória historiográfica produzida. E: Um dos ganchos que você usou para resgatar essa produção musical cafona foi mostrar a relação contraditória que ela estabeleceu com o período da ditadura... PCA: Isso é importante, porque a idéia que se tinha era a seguinte: sempre que se referia à música popular do período da ditadura militar, os nomes lembrados eram Chico Buarque, Caetano Veloso, Gonzaguinha, Geraldo Vandré... Quer dizer, artistas que tematizavam a questão política, institucional do país. Era como se uma geração de cantores românticos fossem de outro planeta ou de outro país. Como se não tivessem nada a ver com a história do Brasil daquele período e com a própria sociedade brasileira. Então, eu fiz questão de enfatizar logo de cara a relação dessa produção musical com o momento histórico. E minha surpresa foi ouvir esses discos. Eu tinha memória das canções que ouvia no rádio, mas se você pega um LP com 12 faixas, há muitas faixas que não tocavam na época e que eu mesmo não conhecia. Ouvi essa produção, peguei disco a disco toda a produção discográfica da geração daquele período. Eu percebi que eles questionavam, denunciavam e focalizavam questões cruciais e fundamentais da sociedade brasileira. Um cantor como Odair José, o “Bob Dylan da Central”, “Terror das Empregadas”, que foi um dos mais proibidos na época, fala de homossexualismo, racismo, exclusão social, prostituição, consumo de drogas, ou seja, temáticas que incomodavam. Isso está na obra de Odair José como está na de Timóteo, de Nelson Ned (uns mais outros menos). Então, esse aspecto foi fundamental: identificar, na produção musical desses cantores, temas polêmicos que levaram muito deles a ser proibidos, sendo Odair José o mais proibido de todos, porque foi o que mais tocava nessas questões. E: Eu não sou cachorro não é o desabafo de um homem maltratado por uma mulher. Mas poderia ser interpretado como a fala de um indivíduo 120 Paulo César de Araújo - O autoritarismo na historiografia da música popular brasileira oprimido pela ditadura ou, ainda, como protesto de um sujeito que não tem sua linguagem musical reconhecida pela historiografia da canção popular quer dizer, é um título polissêmico. De que maneira você relaciona a repressão política daquele momento à exclusão ideológica desse amplo segmento da população que tem a chamada música cafona como forma de expressão? PCA: Isso é uma questão para um seminário (risos). Achei que podia ser até uma epígrafe para o livro, essa leitura do título Eu não sou cachorro, não. A primeira coisa que escolhi, antes de escrever qualquer palavra, foi o título, pensando nessa questão da geração de cantores excluídos. Um manifesto de exclusão social, rejeição amorosa e também exclusão na historiografia. É como se cada um deles falasse: “Eu não sou cachorro não, eu também mereço fazer parte de um livro de história”. Num capítulo do livro, “A cultura da brutalidade”, eu defendo o seguinte: os cantores e compositores da MPB tinham uma preocupação com a questão política. E isso se explica: todos eram universitários e estavam debatendo, com a consciência de que viviam um período de exceção. Então, a obra desses artistas está falando do Médici, do “Cale-se”. A obra dos cantores bregas vai expressar uma visão de mundo particular, porque eles estão falando de uma repressão que não é apenas políticoinstitucional, mas de uma repressão que viviam no seu dia-a-dia. A empregada doméstica, o porteiro, o operário, o camelô são, no seu cotidiano, humilhados e ofendidos. “Eu não sou cachorro não” não é só questão de rejeição amorosa, pode ser entendido também como uma rejeição social. Daí, a identificação desse público com a música. Há uma canção de Odair José chamada “Deixe essa vergonha de lado”, na qual ele fala do quarto de empregada. Numa música de Luis Carlos Magno, está escrito: “dois por dois mede o quarto de empregada”. É uma questão social, mas esse repertório era considerado alienado, porque não falava da questão política. Mas eles estão tocando na repressão do cotidiano, uma repressão que não é do período militar apenas. Para as classes populares, o autoritarismo é vivido no seu cotidiano e não apenas nos períodos excepcionais. Para aquela classe (média, intelectual) o autoritarismo está mais nas questões institucionais. E: Em que referências você se apoiou, no instante de fixar a moldura teórica e metodológica de sua pesquisa? PCA: O pensamento de Marilena Chauí sobre o autoritarismo, no texto “Conformismo e resistência”, foi uma referência teórica importante, para ver que o autoritarismo não é apenas um regime de governo que se instala nos chamados períodos excepcionais, mas uma característica de uma sociedade de classes, e, no caso do Brasil, é um autoritarismo permanente. A leitura que Marilena Chauí faz do processo ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.119-127 121 de conformismo e resistência no Brasil me ajudou a entender essa produção popular musical. Também foi fundamental para pensarmos na questão do tempo histórico, o trabalho em que Michel Pollak fala de “memórias plurais diferenciadas”. Sobre aquela idéia de que os bregas eram alienados, eu fiz questão de perguntar a Odair José, Nelson Ned e outros mais: onde você estava em 68? E todos eles vão dizer que não sabem, não lembram do AI-5, confundem com 64. Isso significa que cada grupo social tem uma vivência diferenciada do momento histórico. Se para a classe média intelectual universitária, o AI-5 foi um marco divisor de águas, para os segmentos populares não organizados aquilo não teve importância nenhuma. Não significa que eles não tenham vivido as conseqüências disso, mas que a memória é plural e diferenciada. Daí, a importância, para mim, desse trabalho de Pollak com as “histórias” e não apenas com “A História”, “A História de 68”. Pollak foi importante para relativizar essa questão dos “alienados”, e dizer que vivendo experiências diferentes você vai ter uma memória diferente. Isso não se trata de ser pior ou melhor, é só contingência mesmo da vida social. E: Do ponto de vista teórico, o capítulo mais importante do seu livro parece ser aquele intitulado Tradição e modernidade. Nele, você procura definir, de forma bastante original, o conceito de brega. É possível identificar, do ponto de vista das letras e da estrutura musical, os traços mais característicos dessa produção? PCA: Esse é mesmo o capítulo que eu considero mais importante no livro. Essa era a explicação que eu buscava. Para definir o que é música brega, é aquela coisa: dizem que musica brega você reconhece quando ouve, mas não sabe definir o que é. Então, eu procurei dar uma definição, começando por desconstruir aquilo que se afirmava sobre música brega. Primeiro, você não identifica música brega por um ritmo. A balada é considerada brega, o bolero, até o sambão jóia é considerado brega e mesmo a música do Pará, de ritmo bem agitado. Não é um gênero musical. Também não se pode definir o brega por um tipo de letra. É verdade que os bregas têm como característica aquele amor derramado, choroso. Mas você vai encontrar aquilo em Maísa, que não é considerada brega. Elizete Cardoso só fala de tristeza, desamor e sofrimento, e não é considerada brega. Então, também não vai ser pela temática da letra. Digo que música brega é toda aquela produção musical popular na qual o público de classe média não identifica as chamadas “raízes” do samba (uma tradição), nem uma modernidade instaurada, no campo da música popular, a partir de 58, com a bossa nova, e que continua com o tropicalismo. Toda produção em que o público de classe média não identifique tradição nem modernidade é rotulada 122 Paulo César de Araújo - O autoritarismo na historiografia da música popular brasileira de brega ou cafona. Tomemos, como exemplo, o Waldik Soriano. Ele não faz samba, não está identificado à tradição. Também não foi influenciado pelo João Gilberto nem pela bossa nova, logo não está identificado com a modernidade. O que ele é? Brega. Ele está no limbo da história. Não é questão só de preconceito social. É uma visão da cultura brasileira que se consagrou a partir dos anos 60, tendo como marcos historiográficos o livro de José Ramos Tinhorão, Musica popular: um tema em debate (1966), defendendo a tradição, e o livro de Augusto de Campos, Balanço da bossa (1968), defendo a modernidade. São marcos que sintetizaram duas vertentes. Claro que a questão não é rígida, há uma linha gradativa. Aquele cantor que tiver um pézinho na tradição é menos brega que aquele que não tem nada. Compare Benito di Paula e Waldik Soriano. Waldik Soriano é brega completo, não tem nada de tradição ou de modernidade. Já o Benito di Paula, bem ou mal, toca samba. É uma samba considerado abolerado, descaracterizado, e ele é rotulado de brega por fazer um samba totalmente desintegrado à tradição. Mas, mesmo assim, ele é considerado menos brega que Waldik. Resumindo, eu acho o seguinte: o que há em comum na música brega é o que há em comum em toda música popular do século XX: a temática amorosa. Fala-se de sofrimento, de amor. Se você pegar a obra de Frank Sinatra, 99% da obra está falando “eu te amo, te adoro, estou só, você me deixou”. O mesmo acontece com a música de Lennon e McCartney. Bolero, então... Agora, se você pegar Paulinho da Viola, a mesma coisa. Cartola, Nelson Cavaquinho, mesma coisa. Waldik Soriano, Nelson Ned, Lindomar Castilho, Vicente Celestino, Custódio Mesquita, Orlando Silva etc. Isso é o que há em comum: a temática da rejeição amorosa, do sofrimento. Tudo mais muda, o ritmo, os arranjos etc... E: Instigado pela leitura de seu livro, um internauta argumentou, na lista de discussão do site especializado Samba & choro, que os bregas dos anos 80 e 90 Naim, Ovelha, Marquinhos Moura, Zezé di Camargo & Luciano, entre outros já não possuem a mesma autenticidade de Odair José, Fernando Mendes ou Milionário e José Rico. Tomando como base esta distinção, bastante recorrente, gostaríamos que você falasse um pouco a respeito do uso do problemático conceito de autenticidade, no julgamento do valor musical. PCA: Eu fugi dessa coisa quando eu fiz a análise do meu livro. Não existe o autêntico. Você tem uma leitura sobre isso. O cara considera autêntico ou não. Mais autêntico por quê? A partir de que premissa? Quando se diz que Benito di Paula não é um compositor popular autêntico, porque está afastado das chamadas raízes da música popular brasileira, trata-se de uma convenção instaurada por um ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.119-127 123 determinado grupo social. Quando eu ouço que o Zezé di Camargo já não é tão autêntico como o Odair José, questiono: o que difere? Você está em épocas distintas, só isso. Ele está falando de amor, revestindo sua música, então ele está dizendo aquilo, na época dele, com os arranjos, com a tecnologia da sua época. Não vai ser a mesma do Odair José. Mas daí a dizer que isso já não é autêntico, que saiu de uma linha, eu já acho discutível. Eu prefiro dizer que são diferentes, até porque mudou o conceito, a tecnologia, a roupagem. Zezé di Camargo e Luciano vão ter uma aceitação maior que Odair José e Waldik Soriano tiveram no seu tempo. E: Principalmente entre a classe média, não é? PCA: Claro. Isso tem a ver com o próprio avanço da sociedade. A emergência dos chamados novos ricos, que, embora tenham dinheiro, não se desfazem daquele gosto, daquela estética, você não compra isso, você traz com você. Quer dizer, mesmo essas pessoas agora tendo dinheiro, elas vão continuar ouvindo a música que ouviriam se não tivessem. Então, ouve um avanço. Zezé di Camargo e Luciano vão tocar no Canecão, vão tocar no Palace, em São Paulo, coisa que, em sua época, Odair José não tinha espaço para fazer. E, principalmente, vão tocar na TV Globo, coisa que Odair José e Nelson Ned não conseguiram. No meu livro, eu não uso adjetivo para qualificar ou desqualificar musica nenhuma. Se existe um marco deste livro que tem que ser dado é este. É o primeiro livro de música popular que não entra nessa questão de qualificação, de música boa ou música ruim, autêntica ou inautêntica. Eu não entro nessa questão. Trato a música como objeto cultural de repercussão social. Se eu tivesse dito que Odair José é um grande cantor, um injustiçado que fez músicas lindas, que Nelson Ned canta muito etc., os historiadores e a crítica podiam deitar e rolar, dizendo: “Esse cara não entende nada de música, vai ouvir Dick Farney para ver o que é uma voz...”. Como eu fugi disso, desta discussão estética, eles ficaram desarmados para o combate, porque eu entrei na questão histórica, e ela é indiscutível. Eu apontei a exclusão, disse que os cantores românticos da época da ditadura tocaram em questões cruciais, foram censurados, mostrei os documentos. O que os meus colegas podiam dizer? Eu fugi disso que eles costumam fazer, julgar uma obra, fazer uma análise histórica partindo da estética. Por isso, o livro não teve uma crítica. Eles ficaram desarmados. E: Todo aquele que acompanha, com algum interesse, a dinâmica do consumo cultural contemporâneo sabe que o rótulo de brega não é, necessariamente, um caminho sem volta o cafona de hoje pode ser o cult de amanhã. Como você analisa o processo que levou artistas que, nos anos 70 e 124 Paulo César de Araújo - O autoritarismo na historiografia da música popular brasileira 80, endoideceram as macacas de auditório da Discoteca do Chacrinha a ser tornarem objetos de culto entre jovens, modernos e alternativos? PCA: É importante dizer que quando se usa o conceito de cult para essa produção musical popular brega, ele não tem o mesmo sentido do cult da Marisa Monte ou da Maria Rita.. Quando você fala que o Wando é cult, isso não o está valorizando, é um sentido irônico. Essa incorporação, essa assimilação pelos jovens da classe média se dá, muitas vezes, pelo lado do pastiche e da ironia. Se você pegar, por exemplo, essas bandas Copacabanas, Vexame, que fazem uma releitura de um repertório popular, você vê que há um distanciamento, há uma ironia. Tem aí uma valorização negativa. É diferente da leitura que Caetano faz, por exemplo. Quando ele canta Peninha, Fernando Mendes, ele não está tirando uma onda, até porque aí entra a questão do tropicalismo, que se caracterizou pela estética da inclusão. Se você pegar a obra de Caetano Veloso, a partir do tropicalismo desde a gravação do Vicente Celestino, você vê um tratamento respeitoso, querendo colocar essa produção no mesmo nível, na mesma linhagem, como se não fosse diferente. Isso é uma postura da estética de inclusão, que não é a mesma desses jovens que colocam a música na discoteca, sempre com um sentido jocoso, irônico, nunca no mesmo do patamar. A propósito, alguém me perguntou, outro dia, como é que eu avaliava isso do Lindomar Castilho estar na tela da Globo (nos anos 70, nenhum dos cafonas entrava na Globo), na abertura do seriado Os normais. Serve para piada, é para rir, aquilo não é sério. Eles não pegam uma série como Anos Rebeldes ou Anos Dourados, e botam, como tema de abertura, uma música de Waldik Soriano ou Nelson Ned. Não vão fazer isso, porque não se presta a isso, aquilo é muito sério. Eu dou, ainda, como exemplo, o filme Cidade de Deus, que se pretende uma abordagem realista da questão social do Brasil nos anos 60. Na trilha sonora do filme, só há artistas da tradição ou da modernidade. Nos anos 60, na Cidade de Deus, o pessoal ouvia muito Paulo Sérgio, Nelson Ned e Agnaldo Timóteo. Aí você vai assistir ao filme, e o cara está ouvindo Cartola. E quem ouvia Cartola, na Cidade de Deus, nos anos 60? Cidade Deus, porém, é um filme que se pretende muito sério para botar uma música de Paulo Sérgio, então bota Cartola. E: Seu livro obteve notável visibilidade midiática você esteve em diversos talk shows, deu entrevistas aos suplementos culturais da grande imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo. E quanto à repercussão acadêmica da obra? Parece que antes de ser aprovado, com louvor, no mestrado em Memória Social e Documento da UniRio, o seu projeto de pesquisa foi rejeitado pelo departamento de História da Unicamp... ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.119-127 125 PCA: Eu fiz o projeto assim que me formei em história, e mandei para Unicamp. Não foi aprovado lá. Foi interessante. Um amigo meu que estava na Unicamp falou que os examinadores ficaram em dúvida entre dois projetos: um sobre samba e malandragem no Rio, na época de Vargas, e o meu. Não sei se fui discriminado, a exemplo do meu objeto de pesquisa, talvez o outro projeto fosse mesmo melhor. Mas o fato é que o predomínio da produção sobre o samba é disparado. Eu digo, no meu livro, que o samba é samba de roda, samba de breque, samba malandro... Quer dizer, se é samba, se está ligado à tradição tem um peso e ganha uma importância que a música brega nunca teve. Eu brinco com os meus amigos sambistas que gostam de falar que o samba agoniza mas não morre. Parece que o samba está acabando, sendo perseguido. Eu, que não gosto de samba, me sinto perseguido pelo samba. Onde eu vou, só escuto samba. Ligo o rádio, e é Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Martinho da Vila... Então, eu sou sufocado pelo samba. Mas eles tem aquele discurso que o samba está sendo discriminado, que está acabando... E: Por que você não incluiu Roberto Carlos em seu livro sobre a música popular cafona? Roberto não seria cafona, visto que era consumido, durante a ditadura, pelo mesmo público de Waldik Soriano e Odair José, sendo assim igualmente rejeitado pelo público intelectual de classe média. PCA: Vou voltar à minha tese de tradição e modernidade. Não inclui o Roberto porque ele, embora seja considerado brega por muitos, tem uma raiz na modernidade. Isso está apontado lá pelo Augusto de Campos. Augusto de Campos foi pioneiro em perceber, no Roberto Carlos, o cantor moderno, discípulo direto de João Gilberto. Se você pegar os cantores da jovem guarda – por exemplo, Wanderley Cardoso, Jerry Adriani – e comparar com Roberto, vai ver a diferença. São operetas, é de uma escola de canto da ópera. Aquela escola do Nelson Ned, do Agnaldo Rayol, sem nenhum pé na modernidade. O canto do Roberto Carlos, já está lá nos primeiros discos dele, é o canto moderno, sem vibrato. Esse toque de modernidade na voz de Roberto é o que o afasta de ser um cantor totalmente brega, embora o repertório e o público sejam. Mas Roberto não é moderno como Caetano. É uma gradação. Ele está muito mais próximo do brega do que outros, mas não é brega, porque tem um pé na modernidade, na forma de cantar. Agora, não é bom julgar esta questão pelo público, já que esse mesmo público que consumiu brega, consumiu Martinho da Vila e, principalmente, Clara Nunes. Clara Nunes gravou três discos de bolero que foram fracassos. Então, ela passou para o samba e começou a vender muito. Ela é uma cantora popular. Seus discos eram comprados pelo mesmo público que comprava Benito e Roberto. Mas 126 Paulo César de Araújo - O autoritarismo na historiografia da música popular brasileira ela não é considerada brega, porque está ligada ao candomblé, à umbanda, que identificam uma raiz. Por isso que eu desmontei aquela vertente que interpreta a música brega como popularesca e comercial. Então, se vendeu muito é brega. Mas por que Martinho da Vila não é considerado brega? Porque suas raízes estão identificadas. É por isso que eu não incluo o Roberto. É verdade, foi consumido pelo mesmo público, mas, como já disse, não foi só ele, e, além disso, há esse toque de modernidade na sua voz. Isso foi reconhecido pioneiramente por Augusto de Campos, no livro publicado em 68, onde ele dizia que Roberto parecia mais moderno, naquele momento, até mesmo do que Elis Regina, que estaria gesticulando exageradamente. Roberto cantava contido e econômico, muito mais próximo das lições da bossa nova do que supostos cantores de bossa nova da época. E: O que justificaria a enorme repercussão social que a obra do Roberto Carlos ostenta? Seria o fato de estar nessa posição fronteiriça que permite que ela seja do agrado de vários segmentos... PCA: O Roberto Carlos aboliu a luta de classes na música popular brasileira. Não existe um exemplo igual ao dele. Todo cantor popular desse país é consumido por um segmento social e não é por outro. Chico Buarque, por exemplo, é considerado um gênio da música popular. Não adianta, é consumido por um segmento de classe média, não atinge o povo. Não quer dizer que isso seja bom ou ruim. Tom Jobim – na minha opinião, o maior compositor do século XX – não atingiu o povão. O fato é esse: Roberto Carlos é o único artista da música popular brasileira que atinge todas as classes sociais. O único foco de resistência ao Roberto Carlos são as elites intelectuais, segmentos de esquerda, especificamente. É um bolsão de resistência. Ele atinge a elite econômica, mas esse bolsão de resistência é da elite intelectual, particularmente da área de humanas, que fazia oposição aos militares e tinha Roberto como exemplo de um reflexo do regime militar. JOÃO FREIRE FILHO é professor da ECO/UFRJ e editor da Revista ECO-PÓS. EDUARDO COUTINHO é professor da Escola de Comunicação da UFRJ. PAULO CESAR DE ARAÚJO é mestre em história pela UniRio e autor do livro Eu não sou cachorro, não (Ed. Record). ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.119-127 127 Rosângela Rennó O drama da lona O propósito estético dominante da fotografia moderna foi, como nos sugere El Lissitzky, fincar uma cunha no agora, alargando cada vez mais a distância entre o antes e o depois. Quem se dá ao trabalho de inventariar seus resultados constata a variedade de sentidos, de possibilidades de sentido, para ser exato, que logrou-se assim realizar. Da fenda aberta por esta cunha emergem as formas do instantâneo que vieram a constituir o repertório típico do fotojornalismo (“o que é isso?”, “como isso está?”, “para onde isso vai?” etc.): perguntas às quais uma legenda deve necessariamente responder. Para que o fotógrafo torne visível cada uma destas oportunidades de legenda, uma vez que tenha mergulhado na duração em busca do instantâneo, deve agora retroceder com sua presa e oferecê-la cristalinamente ao público. Um dos limites evidentes da experiência fotográfica moderna foi, então, persistir na duração, sem retroceder, permanecendo indefinidamente no transe do instante. Comparem-se estas fotos carnavalescas de Zeka Araújo (tiradas entre 1987 e 1989, creio) com as imagens de êxtase propostas por Arthur Omar na Antropologia da face gloriosa. A obra de Omar nos fornece o testemunho deste transe, único modo de habitar o interior do instante. O carnaval de Zeka Araújo buscou forçar os limites da fotografia moderna de um outro modo. Consulto minha agenda de 1986 e espanto-me com o que descubro. Era uma sexta-feira de dezembro, como hoje, quando fui encontrar-me com o Zeka na F4. Quantas pessoas seriam capazes de nos tirar de casa, em um dia como esse, para uma reunião de trabalho? O que ele me descreveu, com a peculiar animação, era a mais recente bolação da agência: um artifício para capturar a “fantasia do brasileiro”. O dispositivo, discutido, aperfeiçoado e produzido pela equipe da F4 nos meses seguintes, compreendia uma lona usada, cabos, gambiarras, meia dúzia de fotógrafos e dois estagiários, estes últimos encarregados de preencher a ficha de cada um dos retratados (nome, idade, profissão, título da fantasia, etc.) O bloco da F4 ganhou a rua pela primeira vez em 28/02/1987, sábado de carnaval, e ali permaneceu durante todo o “reinado de Momo”. Fomos à Av. Rio Branco, onde costumava haver o concurso de “folião original”, à Praça General Osório, em Ipanema, point transformista da época, e aos bairros de Encantado e Campo Grande, em busca dos tradicionais Clóvis e Morcegos. A aventura repetiu-se por mais um ou dois carnavais, mas o bloco se desfez. Apenas Zeka e Rogério Reis apegaram-se à lona, ainda que tenham derivado dela trabalhos distintos. Fundos lisos de tecido foram muito comuns nas primeiras décadas da arte fotográfica. Nós os vemos em Hippolyte Bayard, antes de 1850; nos magníficos ECO-PÓS- v.6, n., agosto-dezembro de 2003, pp.129-135 129 pierrôs de Nadar (1855); e ainda em 1859, no retrato do pequeno príncipe imperial, filho de Napoleão III, eqüestremente estampado, aos três anos de idade, como um pedestre qualquer, diante da “lona” de Mayer Bros. & Peirson. Foi antes o avanço da técnica do que o gosto estético que deu fim ao fundo neutro portátil capaz de isolar o assunto de um entorno ameaçador (na época áurea da lona, objetos móveis ao fundo e grandes contrastes de luminosidade podiam arruinar retratos morosamente posados). A reinvenção do artifício neste carnaval de 1987 tinha todo um outro significado. Era uma tentativa de restabelecer a soberania do espaço no ato fotográfico. O retrato de rua, travestido de lona, reinstalava-se no seu mais antigo set; e o ato de fotografar reencontrava, nesta cena, o seu teatro. Tudo aconteceu de forma surpreendentemente ordeira, pois o que a lona fazia vigir, em primeiro lugar, era uma respeitosa distância. Respeitosa porque recíproca. Distância que procurava preservar o ponto de vista do fotógrafo, mas igualmente criar a arena de uma performance, de uma atuação (por isso a lona não apenas pendia de um suporte, mas entendia-se sobre o chão). Tínhamos imaginado várias maneiras de prevenir ou dispersar eventuais invasões da lona por legiões de bêbados. Para perplexidade geral da nação, mesmo os mais exaltados foliões faziam fila, esperando pacientemente sua vez de subir ao “palco-lona” e ali, somente ali, nos oferecer a sua pose. A tensão dramática criada pela lona despiu pouco a pouco a “fantasia do brasileiro” de sua pretensão etnográfica. Não estendeu-se diante de outras festas populares e folclóricas, conforme desejado inicialmente; e a análise sociológica dos foliões tornou-se irrelevante, ainda que a opção do Zeka pela cor e pelo filme 35mm tenha sido uma forma de resistir à potência de abstração do dispositivo. Passados 17 anos de sua estréia, alguém poderia dizer que a lona tornou-se refém do carnaval. Não seria justo, pois trata-se exatamente do contrário. Estou convencido que a lona é a expressão carnavalesca da fotografia por excelência, fotografia às avessas que expõe as entranhas do seu écran e converte o instantâneo em cenário, o flagrante em pose, o ato fotográfico em dramaturgia. Lona-tela que só a máscara pode desvelar. Mas se é carnaval, se ainda é carnaval (e só poderia ser carnaval), de onde vem toda esta melancolia? O motivo sempre esteve diante de nossos olhos. Vestida de lona, a fotografia fez sua folia à moda antiga, fora do tempo e da história: fotografia-colombina fadada a recriar, dramaticamente, junto a ela/longe de si, pierrôs e arlequins. Rio de Janeiro, 26/12/03 Mauricio Lissowsky 130 Mauricio Lissowsky - O drama da lona ECO-PÓS- v.6, n., agosto-dezembro de 2003, pp.129-135 131 132 Zeka Araújo - O drama da lona ECO-PÓS- v.6, n., agosto-dezembro de 2003, pp.129-135 133 134 Zeka Araújo - O drama da lona MAURICIO LISSOWSKY é doutor em Comunicação e professor da ECO/UFRJ. ZEKA ARAÚJO é fotógrafo, premiado internacionalmente, e autor de diversas obras, entre elas, o livro Jardim Botânico do Rio de Janeiro (em parceria com Tom Jobim). ECO-PÓS- v.6, n., agosto-dezembro de 2003, pp.129-135 135 ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.137-139 São Paulo, Conrad, 2003. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Todo DJ já sambou: a história do disc-jóquei no Brasil ○ Claudia Assef nos convida, em seu Todo DJ já sambou: a história do disc-jóquei no Brasil, a participar de uma viagem a um universo complexo e movente, com seus heróis, suas histórias, sua dinâmica própria: o universo dos DJs ou disc-jóqueis. As surpresas reservadas para a viagem são muitas, sobretudo para os que não participam diretamente do circuito brasileiro dos clubes de dança e da musica eletrônica. Vejamos rapidamente alguns elementos desse mundo a ser descoberto. O modo de trabalho e o estatuto do DJ se alteraram radicalmente desde o surgimento da profissão. Inicialmente o DJ era uma figura anônima e oculta cujo papel central era trocar discos longe das vistas do público dançante, o DJ era em suma uma “orquestra invisível”. Aqui surge o nome do primeiro DJ brasileiro, pioneiro entre os pioneiros: Osvaldo Pereira, originalmente técnico de rádio. Lentamente, o DJ vem para o centro da cena, seu nome ganha importância, até hoje ocupar lugares destacados em clubes, tocando de frente para a platéia. O deslocamento no espaço do salão ou da boate corresponde a um deslocamento na escala de valorização social. A relação dos DJs com as equipes de som também passou por transformações significativas na curta história desses personagens no Brasil. A importância se deslocou progressivamente da equipe para os DJs. A situação em que o DJ é apenas um funcionário anônimo da equipe, funcionário cujo nome raramente aparecia - “o nome, a grife, era a equipe, ninguém nem chegava, a saber, o nome do DJ” (p. 120) - está longe. O lento processo de individuação fez do DJ o centro da atenção. Paralelamente a essa valorização do DJ, sua prática musical se transforma, de modo que o DJ se torna cada vez mais uma espécie de compositor. Da simples troca de discos com uma pausa silenciosa entre uma canção e outra (tanto menor quanto mais competente for o disc-jóquei), chegamos ao mixer e à possibilidade da passagem insensível de uma música à outra (tanto mais insensível quanto melhor o DJ). A intervenção sobre as músicas foi o passo seguinte: “As primeiras experiências com a arte de reconstruir músicas aconteceram no rádio. Ao requisitar DJs para dar uma cara mais radiofônica às músicas, as emissoras serviram de estágio para que os profissionais das pick-ups dessem um largo passo à frente” (p. 125). Fazendo de início uma intervenção concreta e mecânica sobre as fitascassete, com o uso de uma gilete para cortar, o DJ finalmente passa do rádio para as gravadoras, “que começaram a ler ‘big money’ na testa dos DJs” (p. 126). De trocador de discos a “cirurgião plástico musical”, remixador, produtor... uma longa trajetória cujos nomes mais ou menos anônimos o ○ ○ ○ Márcio Souza Gonçalves ASSEF, Claudia, ○ ○ ○ O fascinante universo dos DJs 137 livro de Cláudia tem o enorme mérito de recuperar. Uma dimensão importante do ofício de DJ é a de divulgador cultural, tomando essa expressão em dois sentidos diferentes. Divulgador cultural, em primeiro lugar, por ser um forte transmissor de culturas específicas dentro do ambiente social amplo (a cultura Hip Ho por exemplo, cf. p. 117). Mas um DJ é também o divulgador de sua própria profissão e, nesse sentido, um formador de novos DJs. É impressionante perceber, com a ajuda de Cláudia, que no universo dos DJs existe uma preocupação pedagógica intensa, que envolve cursos de formação mas também filiações e relações pessoais de mestria. O DJ Ricardo Lamounier “foi um dos primeiros a demonstrar o desejo de formar novas gerações de DJs” (p. 66). Para o novato que quer se formar DJ, a referência aos grandes é constante. A mestria e a exemplaridade, tão desacreditadas no mundo atual, encontram no universo dos DJs um refúgio. Claudia nos conta: “O precursor Osvaldo abandonou a carreira de DJ no final dos anos 60, mas viciou no ramo cerca de vinte herdeiros, representantes da família Pereira. O primeiro mordido pelo vírus DJ foi o sobrinho, Zé Carlinhos, que começou como ajudante do tio e, nos anos 60, acabou se tornando um famoso DJ de black. Além de ter filhos DJs, como Tadeu – hoje um respeitado discotecário de nostalgia -, Osvaldo é tio de um ídolo da black music, Grandmaster Ney, que ficou conhecido como DJ da lendária equipe de Chic Show. ‘Tenho o maior orgulho da minha árvore genealógica’, diz Ney. Não é pra menos” (p. 25). A rivalidade, tema igualmente importante quando se trata de pensar a formação social dos humanos, se apresenta diretamente no mundo dos DJs, e se apresenta especialmente em uma vertente positiva e necessária. DJ KL Jay: “Eu e o Edy Rock vivíamos indo um na casa do outro, porque eu tinha parte do equipamento, e ele, o resto. A gente queria ver quem era o melhor nas mixagens, então vivia brigando. Com isso, eu me animei em ficar treinando. Ele sugeriu que a gente montasse um grupo” (p. 121). É igualmente surpreendente a penetração social diferenciada dos diversos movimentos musicais que fazem parte do universo dos DJs. Rigorosamente falando, são vários os universos musicais, todos coexistindo nas grandes metrópoles brasileiras. Comentando o movimento jungle, Patife, um dos maiores DJs nacionais, diz: “nos Jardins, ninguém estava sabendo do jungle. Mas lá nas vilas, tinha fila toda noite na porta da Sound Factory, Arena, Overnight...” (p. 183). A riqueza e diversidade musical dos diversos movimentos que compõem o mundo dos DJs se traduzem numa variedade de nomes estranhos ao leigo, nomes que indicam estilos de música: jungle, house, trance, drum’n’bass, tecno... Entre esses diversos movimentos, relações complexas de oposição, de filiação, de transformação. No início dos anos noventa, por exemplo, “a música eletrônica se dividiu em duas facções: o house e o tecno” 138 Márcio Souza Gonçalves - O fascinante universo dos DJs (p. 155). Claudia Assef traça de modo competente um grande panorama dessa história musical. Um dos grandes méritos do livro é apresentar, no decorrer de seu texto, diversas entrevistas com personagens importantes na história brasileira dos DJs, o que nos dá acesso direto à voz dos envolvidos. Cabe mencionar igualmente o glossário final. Dentre as curiosidades altamente improváveis que o texto nos revela, temos o nome do cantor do primeiro Rap do Brasil: a versão brasileira de “Rapper’s Delight”, que em português se transformou em “‘Melô da Tagarela’, cantada (ou melhor, falada) pelo comediante/cantor Luiz Carlos Miele. Bizarro, hein?” (p. 116). Alias, temos nesta curta citação um exemplo do estilo jornalístico extremamente leve e pessoal da escrita de Cláudia. Podemos ouvir sua voz por detrás das letras. A projeção internacional de alguns DJs brasileiros, desconhecida da maioria do público, chama a atenção. A música “LK”, por exemplo, parceria dos DJs brazucas Marky e Xerxes, “tornou-se obrigatória para qualquer DJ de drum’n’bass. Em novembro de 2002, ‘LK’ alcançou o oitavo lugar na parada britânica de singles de dance music e se tornou carrochefe do V Recordings, o mais sólido selo de drum’n’bass do Reino Unido. No ranking geral de vendas, o disco chegou ao 17 º lugar, colocação mais importante que um artista brasileiro já alcançou até hoje” (p. 16). O livro de Claudia pode ser lido por todos. Pode ser lido por DJs interessados em conhecer a história do movimento e para quem essa consciência do passado certamente pode desempenhar um papel bastante positivo; pode ser lido pelo teórico interessado em fazer pesquisas aprofundadas sobre esse aspecto tão importante para as culturas jovens contemporâneas, e para quem Todo DJ já sambou... pode funcionar perfeitamente como texto de contato inicial e de abertura de horizontes; pode ser lido, finalmente, pelo leitor médio - essa ficção que na realidade nos define a todos nós em nossa existência cotidiana -, que certamente terá momentos de prazer e surpresa acompanhando essa narrativa do percurso desses nossos batalhadores brasileiros. Todo DJ já sambou é uma ótima introdução a esse vibrante microcosmo que envolve os DJs, suas músicas, seus públicos. Microcosmo cuja complexidade e riqueza nada deixa a dever à cultura mais ampla na qual se insere. Se o livro é uma “história do disc-jóquei no Brasil”, trata-se de um dos mais interessantes tipos de história, uma história do presente, que nos revela facetas de nós próprios desconhecidas e intrigantes. MÁRCIO SOUZA GONÇALVES é professor da Faculdade de Comunicação Social da UERJ. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.137-139 139 Fábio Malini ○ ○ ○ ○ ○ ○ A mimética globalização ○ ○ ○ ○ ○ “Além de pensar a revolução em termos éticos e políticos, nós a pensamos também em termos de profunda modificação antropológica: da mestiçagem e hibridação contínua de populações, de metamorfose biopolítica. O primeiro campo de luta é, desse ponto de vista, o direito universal de movimentar-se, trabalhar, aprender em toda superfície do globo” (Antonio Negri). ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 2003. ○ ○ Ed. Iluminuras, ○ ○ São Paulo, ○ ○ ○ ○ A globalização imaginada ○ ○ CANCLINI, Nestor Garcia. Após mexer no vespeiro do consumo (desmitificando a oposição esquerdista consumo x cidadania), o antropólogo argentino Nestor Garcia Canclini chacoalha os estudos político-culturais ao afirmar que “muitos dos discursos sobre a globalização são falsos”. A provocação — fortemente embasada em dados, tabelas, depoimentos e peças artísticas — está impressa no livro “A globalização Imaginada”, um contra-discurso à bibliografia corrente sobre a globalização. É um livro que se ancora em três questões: o que se diz e o que dizer da globalização? Como se produz o Eu e o Outro quando a cultura, em tempos de exaltação a todo tipo de fundamentalismo, se hibridiza e se antagoniza? Qual política cultural global deve ser implementada diante de um imaginário pautado na sociedade anônima, nas marcas e no multiculturalismo? As respostas de Canclini estão sempre emolduradas por uma perspectiva de recusa das visões economicista da globalização (o mercado determina as mentes) e antropologicista (as mentes determinam o mercado). Seu método peculiar continua intacto: desvendar o entre, a coisa que transita entre dois mundos. No caso deste livro, desvendar o entre mercado e cultura, o entre global e local, o entre imaginário e concreto, o entre identidade nacional e a identidade nômade, o entre cultura midiática e ação política. O QUE SE DIZ E O QUE DIZER DA GLOBALIZAÇÃO? Esse método é limitado por um outro emolduramento: a globalização provoca uma entre-cultura — localizada entre a fragmentação e a homogeneização do mundo. “O que se costuma chamar de globalização apresenta-se como um conjunto de processos de homogeneização e, ao mesmo tempo, de fragmentação articulada do mundo que reordenam as diferenças e as desigualdades sem suprimi-las” (p.44-5). Uma outra coisa importante: a datação da globalização é recente, pós-guerra, pós-tecnologias da automação, dos satélites, dos trens de alta velocidade, do transporte aéreo, dos blocos supranacionais, do cassino financeiro da moeda desterritorializada e da cibercultura. O resto é conversa fiada: caravelas, absolutismo, imperialismo... Antes de chegar a essa definição, o antropólogo vai desarmando algumas narrativas sobre a globalização, algumas chamando até de falsas. 140 Fábio Malini - A mimética globalização Canclini, de alguma forma, vai induzindo o leitor a se filiar a uma idéia nas entre-linhas: a globalização antes de ato, é relato. E o primeiro relato a desarmar é aquele pautado na encruzilhadacomportamental “globalizar-se ou defender a identidade local”. Essa indefinição cultural acabaria por construir um esquema de interpretação teórico baseado no maniqueísmo binário. Canclini então evoca seu método: é preciso analisar como o global entra e sai na cultura local, e vice-versa. “Há que elaborar construções logicamente consistentes, que possam ser contrastadas com as maneiras como o global ‘estaciona’ em cada cultura e com os modos como o local se reestrutura para sobreviver, e talvez tirar algum proveito das trocas que se globalizam” (p.33). Atenção porque o objetivo de Canclini não seria identificar a fusão glocal. Ao contrário, é sempre investigar o mimetismo cultural (logo, algo temporário, já que o mimético ocorre no sabor do momento, ora de perigo, ora de ataque, ora de oportunismo). Assim, Canclini quer investigar o momento em que o global se mimetiza de local como forma de vampirizar a diferença, ou quando a peculiaridade local se mimetiza de global como forma de resistir, de criar ou de se expandir. Exemplos destes mimetismos culturais são fartos no seu livro. Curioso o exemplo do restaurante Taquería Goiaz, em San Francisco/EUA — uma reunião de mexicanos com brasileiros goianos que evidencia as diversas formas em que o local se transveste de global como alternativa de sobrevivência. Ou o contrário, quando as músicas cantadas em “latinoamericano” são mimetizadas e viram world music, fazendo com que toda diferença se homogeneíze e ganhe um rótulo que mais as marginaliza que as divulga. Tal operação mantém as coisas onde elas estão: nós aqui, eles lá. Dois outros relatos muito ditos - e que nosso autor avacalha – é, primeiro, a tese da esquerda ortodoxa que vê na globalização única e exclusivamente um dispositivo neoliberal. E, segundo, a tese pós-moderna que o saber universal deve dar lugar às múltiplas narrativas. Duas teses que engessam qualquer possibilidade de pensar um know-global, restando se amargurar no no-global. É um deleite como Canclini desarma essas bombas: “pensar a globalização exige superar essas duas posturas: tanto a que faz da globalização um paradigma único e irreversível, e a que resta importância à sua incoerência e ao fato de não integrar a todos. Antes parece metodologicamente necessário, diante das tendências que homogeneízam partes dos mercados materiais e simbólicos, investigar o que representa aquilo que a globalização exclui para se constituir” (p.44). A forma cancliniana de revê a globalização é norteada a partir de uma análise subjetiva, que expõe como a globalização é feita por “gente” e que gera conseqüências em “gente”: “Se neste trabalho se dará um grande espaço às narrativas e metáforas não é só por esse caráter fugidio, como algo móvel, da globalização. É também porque, para tratar dos processos globalizadores, deve-se falar, sobretudo, de gente que migra ou viaja, que não vive onde nasceu, que troca bens e mensagens ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.140-143 141 com pessoas distantes, que assiste a cinema e televisão de outros países ou conta história em grupo sobre o país que deixou. Gente que se reúne para celebrar alguma coisa distante ou que se comunica por correio eletrônico com outras pessoas que não sabe quando irá rever. De certo modo, sua vida está em outro lugar. [...] A globalização sem a interculturalidade é um ‘OCNI’, um objeto cultural não-identificado” (p.46). A PRODUÇÃO DO OUTRO NA GLOBALIZAÇÃO Essa interculturalidade que se apresenta como parte constituinte da globalização será a artimanha do autor para criar um distanciamento da perspectiva que fixa a identidade como núcleo da cultura. Na verdade, desde “Consumidores e Cidadãos”, Canclini já havia aberto essa brecha, ao falar de um novo tipo de “identidade” — a sócio-comunicacional, ou seja, uma comunhão que se dá entre os homens, mas não mais pela terra e pela língua, mas pelo consumo e pelas trocas globais. Mas, em Globalização Imaginada, o autor avança ao criticar o uso político da identidade, que a restringe: algo que é local, homogêneo e puro. Em resposta afirma que “a identidade é, hoje, para milhões de pessoas, uma co-produção internacional”. A compreensão da globalização passa, portanto, por reler o que nós somos. Essa atividade nos conduz a uma indagação: seria o EU, na globalização, uma identidade unívoca ou atravessada por uma “multiplicidade de gente”? Para tentar solucionar isto, no âmbito particular, talvez, como afirmara o presidente Lula (na ocasião da reunião da cúpula do Mercosul, em novembro de 2003), precisaríamos definir “o que somos, o que temos e o que queremos” no mundo globalizado. Mas fazer essa autodefinição não através da perspectiva binária do EU versus o Outro, mas na perspectiva da hibridação, atesta Canclini, citando Stuart Hall: “Não se pode dizer onde acabam os britânicos e onde começam a colônia, onde acabam os espanhóis e onde começam os latino-americanos, onde começam os latino-americanos e onde, os indígenas. Nenhum desses grupos permanece mais dentro de seus limites. [...] Quando dizemos ‘fronteiras’ pensamos, sobretudo, nas coisas que passam através delas” (p.114). Portanto, a hibridação – a intercultura, o entre – é um dado que faz emergir uma cidadania multiforme que infelizmente não é traduzida na esfera do direito e, conseqüentemente, na prática das políticas públicas. A esses cidadãos multiformes restam o afogamento no Mediterrâneo, os tubarões nos mares cubanos, os muros da fronteira de Tijuana ou a expulsão da Europa por não ter cidadania européia. O discurso de Canclini é o discurso desse Outro discriminado que não se vê como pólo dialético do EU (norte-americano, europeu etc). Ao contrário, tenta recompor o discurso latino-americano para dar a essa gente um discurso que legitima a sua possibilidade (ou liberdade) de circular, já que circular é hoje uma condição para poder produzir, criar, inventar o novo. A primeira operação de recomposição é desmitificar o EU latinoamericano — tarefas inscritas neste livro que deixo para o leitor identificar e 142 Fábio Malini - A mimética globalização saborear, no capítulo em que fala da América Latina entre Estados Unidos e Europa. Ao desmitificar esse EU, Canclini compõem um “ser latino-americano hifenizado”, que se associa ao Outro, através de redes sociais e comunicacionais, como estratégia de criação e resistência. “Muitas vezes, a necessidade de somar forças nas comunicações, no trabalho e para apresentar-se diante dos outros (os norte-americanos) transforma dois ou três grupos étnicos em ‘mexicanos’. Até se inventam comunidades brasileiro-mexicanas, cubano-porto-riquenhas, argentinouruguaias. Aqui os hífens importam, sim: designam a integração nova e precária para além da inércia identitária nacional” (p.112). A POLÍTICA CULTURAL DA GLOBALIZAÇÃO A terceira parte do livro é o resultado do trabalho de Canclini para organismos internacionais que pensam a política cultural para os excluídos. Desse trabalho, Canclini pôde sistematizar algumas premissas para a produção de políticas para os cidadãos em globalização, aqueles de cidadania multiforme e “interculturados”. É uma parte que não inova em relação aos desejos dos intelectuais ligados aos estudos culturais: fundos para a cultura, criação de espaços audiovisuais regionais, organização dos intercâmbios comerciais, desconcentração da informação das agências internacionais, o Estado investir na ampliação da oferta e da circulação da cultura, inserção na pauta de negociação dos acordos de livre comércio dos blocos supranacionais o acesso e o intercâmbio de serviços e bens culturais que estimulem o reconhecimento da diferença cultural etc. Não há conclusão neste livro, só há a proposição de premissas para as políticas culturais. Se houvesse, talvez seria o fato de: “atenção, meus leitores, o conceito de identidade deve vir a ser abandonado ou talvez reinventado através do conceito de híbrido”. A identidade desvanece. E não por conta de um Deus malvado, mas porque os homens querem romper uma certa globalização que ainda é só imaginação. E ao lutar a favor da possibilidade de circular, de ser livre, os homens reinventam a cultura, ora determinada, num passado recente, pelas esquizofrenias nacionais. Agora, lembra Canclini: “um dos pontos-chave que definem o caráter – opressivo ou libertador – da globalização é o fato de ela permitir, ou não, a imaginação sobre várias identidades, flexíveis, modulares, por vezes superpostas, e ao mesmo tempo criar condições para que se possa imaginar como legítimas e combináveis, não apenas competitivas ou ameaçadoras, as identidades, ou melhor, as culturas dos outros” (p.116). FÁBIO MALINI é doutorando em Comunicação do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ. ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.140-143 143 resumos - abstracts Sobre nossa paixão indicial de cada dia: entre o realityshow e a imagem delatora ANDACHT, Fernando. Resumo: O texto constrói uma análise a partir da comparação entre dois produtos televisivos de grande repercussão no mundo globalizado: um programa televisivo de reality show de grande audiência em vários países, o Big Brother, e a cobertura jornalística da catástrofe do 11 de setembro, ocorrida em Nova York. Este artigo analisa esses produtos à luz da semiótica, especialmente através de alguns conceitos empregados por Charles S. Peirce. Palavras-chave: mídia, reality show; signos, teoria da comunicação Of our adumbrative passion of each day: between the reality show and the informer image ANDACHT, Fernando. Abstract: This text builds an analysis by comparing two products of television with great repercussion in the globalized world: a reality show with large audiences in many countries, Big Brother, and the news coverage of September 11th in New York. That article analyse these products under the óptica of semiotic, particulary through of some concepts applied by Charles S. Peirce. Keywords: media, reality show, signs, comunication theory À procura da batida perfeita: a importância do gênero musical para a análise da música popular massiva JANOTTI Jr., Jeder S. Resumo: Levando-se em consideração a importância dos gêneros musicais nos processos de audição da música popular massiva, o artigo é dividido em duas seções: a primeira procura definir os gêneros musicais em suas relações com o consumo musical e a performance. Na segunda seção, seguindo o percurso analítico esboçado anteriormente, foi efetuada a análise da canção ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.145-149 145 “Vai Vendo”, gravada pelo músico carioca Marcelo D2 no CD “À Procura da Batida Perfeita”. Palavras-chave: música, comunicação, consumo e performance In search of the perfect beat: the importance of musical genre to the analysis of popular mass music JANOTTI Jr., Jeder S. Abstract: Based on recognition of the importance of musical genres in the consumption practices surrounding popular music, this article is divided into two sections. The first seeks to define musical genres in terms of their relationship to the consumption and performance of music. The second section will extend this method through an analysis of the song “Vai Vendo,” recorded by Marcelo D2 of Rio Janeiro on the CD “A Procura de Batida Perfeita.” Keywords: music, communication, consumption and performance Notas para se pensar as relações entre Música e Tecnologias da Comunicação SÁ, Simone Pereira de e MARCHI, Leonardo de. Resumo: O artigo apresenta reflexões decorrentes da pesquisa Música Eletrônica, Tecnologias da Comunicação e dinâmicas identitárias, realizando um sucinto mapeamento da produção acadêmica sobre os temas da cibercultura e da música popular brasileira. Dessa forma, pretende-se contextualizar de maneira geral a abordagem aplicada à música eletrônica e suas relações com as mídias e a indústria cultural. Palavras-chave: música eletrônica, indústria cultural, MPB, novas tecnologias da comunicação, cibercultura. Notes for questioning the relationship between Music and Communication Technologies SÁ, Simone Pereira de e MARCHI, Leonardo de. Abstract: The essay focuses on questions related to the academic research Electronic 146 Resumos - Abstracts Music, Tecnologies of Communication and identity dynamics. An effort has been made to draw a sketch of the academic debates to which that work is directly connected, that is, the new technologies of communication and brazilian popular music. In doing so, the purpose here is to contextualize, actually in a general way, the approach applyed to the electronic music and its relations to the medias and cultural industry. Keywords: electronic music, cultural industry, MPB (popular brazilian music), new communication technologies, cyberculture Funk carioca: entre a condenação e a aclamação na mídia FREIRE Fo., João e HERSCHMANN, Micael. Resumo: A partir do exame de crônicas e reportagens publicadas na grande imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, a partir de 1992, procurou-se nesse artigo analisar as representações glamourizadoras e demonizadoras que estão associadas ao funk carioca, isto é, buscou-se repensar o tratamento mediático dado ao funk carioca, freqüentemente associado não só ao entretenimento e ao lazer de jovens das principais cidades brasileiras, mas também: a gangues e organizações criminosas, denúncias de relações sexuais anônimas nos bailes, alienação, danças, letras e gírias de mau gosto, pornográficas e machistas. Palavras-chave: comunicação, música, pânico moral, violência Funk carioca: between condemnation and acclamation in the media FREIRE Fo., João e HERSCHMANN, Micael. Abstract: Based on the study of chronicles and news reports published by the “big” press of Rio de Janeiro and São Paulo since 1992, this article seeks to analyse the glamourous and demoniac representations associated with the funk music of Rio de Janeiro. It intends to rethink the mediatic view of the funk of Rio de Janeiro, frequently connected not only to the entertainment and leisure of young people of the main brazilian cities but also: to gangs and criminal organizations, expositions of anonimous sexual relations in funk parties, alienation, dance, lyrics and slang of bad taste, pornography and male superiority. Keywords: communication, music, moral panic, violence ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.145-149 147 Periferia eletrônica: Clubbers e cybermanos na cidade de São Paulo SABÓIA, Ricardo. Resumo: O artigo discute questões emergentes na análise dos agrupamentos urbanos juvenis contemporâneos articulados essencialmente no consumo de gêneros musicais. Analisando especificamente a cultura club e os clubbers e cybermanos dos bairros da periferia da cidade de São Paulo, aborda as relações de sociabilidade e as formas de identificação e reconhecimento construídas na vivência dessa expressão cultural. Palavras-chave: música; subcultura; clubber; cybermano Clubbers and cyberbuddies in the city of São Paulo SABÓIA, Ricardo. Abstract: The article proposes the discussion of emergent questions in the analysis of the urban contemporary youthful groups in relation to the consumption of musical genres. While analyzing specifically the club culture and its clubbers and cybermanos from the poor neighborhoods of the city of São Paulo it shows the relations of sociability and forms of identification and recognition built upon the experience of this cultural expression. Keywords: music; subculture; clubber; cybermano Da música pop à música como paisagem LOPES, Denílson. Resumo: A partir de um mapeamento da relação música e comunicação, a noção de paisagem sonora aparece como alternativa ética e estética no seio do cenário da música eletrônica, exemplificado pela obra de Brian Eno. Palavras-chave: Pop, música, comunicação, paisagem, ambiente From pop music to music as landscape LOPES, Denílson. Abstract: After mapping the relationship between music and communication, the notion of sound landscape becomes an ethic and aesthetic alternative in the eletronic music scene, taking as an example the work of Brian Eno Keywords: pop, music, communication, landscape, environment 148 Resumos - Abstracts A negociação manguebeat: cultura pop, mídia e periferia no Recife contemporâneo. LEÃO, Carolina. Resumo: O texto discute a formação da cultura pop na periferia recifense, que se define como discurso social e estético a partir da geração manguebeat, cuja cena começara a ser desenvolvida por volta de 1991. Palavras-chave: cultura pop, mídia, manguebeat, periferia The manguebeat negotiation: pop culture, media and outskirts in contemporary Recife. LEÃO, Carolina. Abstract: This text discusses the building up of the pop culture in the outskirts of Recife, that is defined as a social and aesthetic discourse since the manguebeat generation which starts to be developed around 1991. Keywords: pop culture, media, manguebeat, periphery ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.145-149 149 proposta editorial Hoje, mais do que nunca, pensar o tempo presente implica a elaboração de análises que dêem conta, em alguma medida, da amplitude e dinâmica do campo da comunicação, que vem sendo alterado sensivelmente: as relações dos indivíduos com o espaço e o tempo; os circuitos de produção, distribuição e consumo; as possibilidades de interações e agenciamentos afetivos e simbólicos produzidos por diferentes agentes e segmentos sociais; e os processos e fluxos que vêm atualizando a gestão da informação e do conhecimento. Em outras palavras, refletir sobre a complexa realidade atual demanda a construção de interpretações que levem em conta as mudanças em curso e operem com os processos e circuitos comunicacionais que, cada vez mais, constituem-se nos alicerces do mundo atual. Daí a centralidade do campo da comunicação na cultura contemporânea. Esta é a designação generalista para a intrincada trama de dispositivos técnicos, representações sociais, fluxos informativos, espaços mentais ou configurações de consciência que confluem para a constituição de novos estilos de vida que quotidianamente articulam-se e colocam-se em tensão com o capital transnacional e o mercado. A mídia, portanto, hipostasia essa forma, ensejando o desenvolvimento de uma tecnocultura que se impõe como superfície semiótica de um mundo globalizado e multicultural. Para a compreensão do fenômeno, de pouco vale o apelo isolado às disciplinas tradicionais do pensamento social: a realidade, hoje, demanda com urgência um sistema de inteligibilidade afinado epistemológica e metodologicamente com a nova dinâmica sociocultural. De modo geral, é isto o que vem buscando a perspectiva transdisciplinar, adotada desde os começos no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da ECO/UFRJ. Conseqüentemente, esta publicação está aberta a contribuições de pesquisadores de diferentes áreas, desde que, mesmo guardadas as suas diferenças disciplinares ou especializadas, se empenhem em atravessar fronteiras para experimentar as interfaces do conhecimento. Nossa expectativa é que, assim, os estudos de comunicação constituam-se num viés, numa perspectiva para a apreensão dos saberes sobre a vida social em sua dinâmica de transformação e passagem. Os Editores 150 encaminhamento de artigos Colaborações para a revista podem ser enviadas em disquetes ou por email, em modo attached. As colaborações deverão conter: a) notas de rodapé de acordo com as normas de referência bibliográfica; b) referências, ao final do texto, apenas das obras mencionadas; c) um resumo de, no máximo, 250 palavras na língua original do texto, acompanhado de palavras-chaves; d) abstract com keywords e résumés com mot-clés e) breve nota biográfica do autor que indique, se for o caso, onde ensina, estuda e/ou pesquisa, sua área de atuação e principais publicações; f) indicação, em nota à parte, caso o texto tenha sido apresentado em forma de palestra ou comunicação. As colaborações por e-mail devem ser enviadas para: [email protected] ou [email protected] Os disquetes devem ser encaminhados com o respectivo endereço, telefone, fax e e.mail do autor para: Revista ECO-PÓS Escola de Comunicação - Campus da Praia Vermelha – UFRJ Av. Pasteur 250 (fundos), Urca Cep 22290-240 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil A Revista ECO-PÓS pode ser adquirida nas versões impressa e eletrônica através do site da E-papers Editora (http://www.e-papers.com.br) ou em livrarias selecionadas. aviso - temática dos próximos números: . vol. 7, número 1: Televisão: Produção, Programação e Recepção (entrega dos papers: março de 2004) . vol. 7, número 2: Comunicação e Estudos Culturais (entrega dos papers: agosto de 2004) 151 números anteriores v. 5, n. 1, 2002 DOSSIÊ - A (re)invenção do nacional no futebolespetáculo O jogo bonito: futebol na Inglaterra e no Brasil dos anos 50 e 60 / Kevin Foster Cidadania e narrativas nacionais do futebol argentino contemporâneo / Pablo Alabarces A crise do futebol brasileiro: perspectivas para o século XXI / Ronaldo Helal e Cesar Gordon ENTREVISTASO Império e a Multidão / Michael Hardt e Antonio Negri PORTFÓLIO - Ensaio fotográfico / Rosângela Rennó RESENHAS- Imprensa e História no Rio de Janeiro dos anos 50 / Ana Paula Ribeiro Das estrelas móveis do pensamento / Anelise Pacheco RESUMOS v. 5, n. 2, 2002. DOSSIÊ - Encenações contemporâneas: cultura, espetáculo e periferia Os novos realismos da cultura do espetáculo / Tatiana Salem Levy e Karl Erik Schøllhammer Os sonhos da razão produzem monstros: discurso espetacular e mito na literatura da cibercultura / Erick Felinto Arte e mediação: reflexões sobre violência e representação / Santiago Villaveces-Izquierdo Da periferia industrial à periferia fashion: dois momentos do cinema brasileiro e a espetacularização da cultura / Angela Prysthon e Rodrigo Carrero ENTREVISTAS - Uma cidade em cena Paulo Lins PORTFÓLIO - Desigualdade Concurso Arte e Mídia / Escola de Comunicação RESENHAS- Ratinho: a crise da TV brasileira e as reinvenções do popular / Isabel Christina E. Guimarães Nós, Ciborgues: a ficção científica como narrativa da subjetividade homem-máquina / Fátima Cristina R. de Oliveira RESUMOS 152 v. 6, n. 1, 2003. NOTAS DE CONJUNTURA - O deslocamento do boné / Antônio Fausto Neto DOSSIÊ - Comunicação e Consumo Por que as marcas causam polêmica? / Douglas Holt Mídia, consumo cultural e estilo de vida na pós-modernidade / João Freire Filho Cultura do consumo, Islã e a política do estilo de vida / Baris Kiliçbary e Mutlu Binak Universalidades e singularidades juvenis / Silvia H. S. Borelli Música brega, sociabilidade e identidade na Região Norte / José Maria da Silva A responsabilidade social na ordem da produção e do consumo / Eduardo Murad ENTREVISTASComunicação e Direitos do Consumidor Léa Freire PORTFÓLIO - Adbusters e o movimento do anticonsumismo www.adbustres.org RESENHASEconomia da experiência / Marcio M. Rolla Repensando o papel das marcas / Daniel Mattos RESUMOS 153