clubbers - Editora E

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clubbers - Editora E
publicação da Pós-Graduação
em Comunicação e Cultura
v. 6, n. 2, agosto a dezembro de 2003
Revista ECO-PÓS é uma publicação semestral da Pós-Graduação em
Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ, dedicada à análise
do papel e da dinâmica da comunicação na cultura contemporânea.
Av. Pasteur, 250 - Campus da Praia Vermelha
22290-240 - Urca - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
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Editor Chefe: Micael Herschmann - [email protected]
Editor Executivo: João Freire Filho - [email protected]
Conselho Editorial:
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Liv Sovik, Brasil
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Conselho Científico:
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Itália - Marcio Tavares D’Amaral, Brasil - Milton José Pinto, Brasil - Mohammed
Elhajji, Brasil - Nízia Villaça, Brasil - Rosana Reguillo, México - Sergio Dayrell Porto,
Brasil - Stuart Hall, Inglaterra
Design da capa: Paula Wienskoski
Design do miolo: Cecília Castro
Tradução: Eduardo Murad e Fernada Costa e Silva
Revisão: Rejane Moreira
Logotipo da Pós-Graduação: Márcia Cabral
Imagens da capa e da pág.11: Grafites produzidos por artistas anônimos no
muro do Jockey Clube do Rio de Janeiro.
Equipe de apoio: Daniel Mattos
Apoio:
CPM - Central de Produção Multimídia
Núcleo de Imprensa - ECO
Data de circulação: 28 de dezembro de 2003
Tiragem: Aproximadamente 500 exemplares
Essa Revista é comercializada na sua versão impressa e eletrônica pela E-Papers (www.epapers.com.br) e distribuída no Brasil e no exterior.
Revista indexada pelo Qualis/CAPES.
Revista Eco-Pós / UFRJ - Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola
de Comunicação - Vol.6, n.2 (2003) - Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 2003 Publicação semestral
ISSN 0104-6160
154 p.
1. Comunicação - Periódicos. 2. Cultura - Periódicos.
I. Brasil, Universidade Federal do Rio de Janeiro
CDD 302.2
6
v. 6, n. 2, ago-dez 2003
editorial ............................................................................................... 09
notas de conjuntura
. Fernando Andacht – Sobre nossa paixão indicial de
cada dia: entre o reality show e a imagem delatora ...................... 13
dossiê
Mídia, Música (Pop)ular e Sociedade
. Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita:
a importância do gênero musical para a análise da
música popular massiva .........................................................
Simone Pereira de Sá e Leonardo de Marchi - Notas
para se pensar as relações entre Música e Tecnologias
da Comunicação ....................................................................
João Freire Filho e Micael Herschmann – Funk carioca:
entre a condenação e a aclamação na mídia ..............................
Ricardo Sabóia - Periferia eletrônica: clubbers e
cybermanos na cidade de São Paulo .......................................
Denilson Lopes - Da música pop à música
como paisagem ....................................................................
Carolina Leão - A negociação manguebeat: cultura pop,
mídia e periferia no Recife contemporâneo .............................
.
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entrevistas
Sintonizando a música brasileira
. Hermano Vianna – De olho nos ritmos urbanos ...................
. Paulo César de Araújo – O autoritarismo na historiografia
113
da música popular brasileira .................................................. 119
portfólio
Adbusters e o movimento do anticonsumismo
. Zeka Araújo (Mauricio Lissowsky) – O Drama da lona ................... 129
resenhas
. Márcio Souza Gonçalves – O fascinante universo dos DJs ............. 137
. Fábio Malini - A mimética globalização ................................ 140
resumos/abstracts ............................................................................. 145
7
8
A
música produzida no Brasil e no mundo globalizado se
apresenta, hoje, como uma das mais importantes
expressões socioculturais, cruzando fronteiras e
aproximando indivíduos e grupos sociais, reafirmando-se, cada vez mais,
como uma das principais indústrias do entretenimento e da cultura. O notável
incremento dos processos comunicacionais, especialmente interativos, e a
crescente presença dos ritmos eletrônicos e das tecnologias digitais, ampliam
o conjunto de questões que demandam a atenção, na atualidade, dos estudiosos
da área de comunicação.
Este número da Revista ECO-PÓS se propõe a apresentar, em
seu núcleo temático, algumas das investigações a respeito do riquíssimo
universo da música popular contemporânea, desenvolvidas em diferentes
centros do país, ainda que com pouca visibilidade. Intitulado Mídia, Música
(Pop)ular e Sociedade, nosso dossiê traz dois artigos de Simone Sá &
Leonardo Marchi e Denílson Lopes que buscam, de perspectivas distintas,
examinar a relação entre Comunicação e Música, hoje. Em seu texto, Sá &
Marchi procuram contextualizar a abordagem que, em geral, é aplicada à
música eletrônica, na análise de sua imbricação com diferentes mídias e a
indústria da cultura; Lopes, por sua vez, tem como meta a reavaliação da
música ambiente, à luz do conceito de “paisagem”.
Além destes artigos, a seção conta, também, com participação
de Jeder Janotti Jr. e Ricardo Sabóia, que, a partir de suas pesquisas sobre o
metaleiros, clubbers e cybermanos, respectivamente, repensam a importância,
nos processos de consumo, do conceito de “gênero musical” e de
“agrupamentos urbanos”. João Freire Filho & Micael Herschmann, abordando
outros aspectos da relação entre mídia e música, analisam as representações
demonizadoras e glamourizadoras que gravitam em torno do funk carioca,
continuamente sob os holofotes da mídia. E, finalmente, fechando a seção
Dossiê, o artigo de Carolina Leão analisa a formação de uma cultura pop na
periferia de Recife, que se constrói como discurso social e estético, a partir
da geração manguebeat.
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ECO-PÓS oferece, ainda, a seus leitores, um ensaio do fotógrafo
Zeka Araújo sobre o carnaval carioca e entrevistas realizadas com dois
importantes pesquisadores da música popular brasileira: Hermano Vianna e
Paulo César Araújo. Ambos, em seus depoimentos, reavaliam o papel da
crítica e os cânones musicais vigentes. Acreditamos que as análises efetuadas
pelos dois estudiosos – oriundos de distintas áreas acadêmicas (antropologia
e história, respectivamente) – poderão enriquecer a bagagem daqueles
pesquisadores do campo da comunicação interessados nas múltiplas
articulações entre mídia, música e sociedade.
Micael Herschmann e João Freire Filho
Editores
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Editorial
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.9-11
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Data de recebimento do artigo: 01/10/2003
Data de aceitação do artigo: 08/11/2003
Sobre nossa paixão indicial de cada dia:
entre o reality show e a imagem delatora
Fernando Andacht
Tudo começa com algo que não é um simulacro, nem uma notícia, nem
uma construção social do nada, senão a pura e cega irrupção disso que resiste toda
indiferença, de algo que colide frontalmente contra a completa inocência, contra a
plácida e distraída normalidade coletiva de uma manhã qualquer. Refiro-me ao selvagem
episódio do 11 de setembro de 2001, na cidade de Nova York. Sem dúvida, são
incontáveis os ângulos desde os quais podemos abordar este assunto, passados mais
de dois anos do ataque terrorista com que se inaugura o novo milênio ocidental e a
cruzada contra o “eixo do mal” empreendida pelo governo do país afetado por esta
violência. Elejo pensá-lo desde a conjuntura dos estudos de comunicação, do assim
chamado campo comunicacional. Qual é a tarefa de um especialista em comunicação,
de um membro dessa área do universo acadêmico? Será que um comunicólogo tem
como função primordial averiguar com exatidão quantos olharam a imagem que se
reiterou até a exaustão, durante esse dia interminável e os seguintes? Ou, pelo contrário,
será a missão deste estudioso chegado um pouco tarde ao banquete das ciências
sociais, dedicar-se a formular juízos categóricos, muito amplos, de vocação filosófica
sobre o que implica a notícia deste evento para o mundo globalizado, para os governos
e para os governados? Acaso deve encarregar-se este especialista de indagar sobre o
que este acontecimento nos diz sobre as empresas de comunicação e sobre seu uso,
manejo e o aproveitamento dessa informação tão atraente pelo seu poder revulsivo,
como pelo seu efeito instrutivo, quase alegórico, em relação ao maior poder material
nunca antes conseguido na terra e aos seus sangrentos limites? Este é um aspecto de
minha abordagem: o que fazer com esse episodio brutal, enquanto feroz e enquanto
real, inegável, muito além do que se opine ou se reflita sobre ele, desde esse particular
lugar da reflexão e da escritura que se denomina a(s) ciência(s) da comunicação.
UMA COMPARAÇÃO ALGO INVEROSSÍMIL
Antes dessa data fatídica para a história contemporânea, o autor destas
linhas tinha começado a pesquisar outro fenômeno inegável, que não só era (e é) real,
senão que tem como seu principal objetivo a tematização da própria condição da realidade
e da sua representação nos e pelos meios de comunicação, fundamentalmente na televisão.
De um impacto muito potente na opinião pública, o reality show de confecção multinacional,
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marca Endemol, invadiu e conseguiu ocupar muitas horas nas emissoras da televisão
aberta e da TV a cabo a um nível globalizador marcante. Sem o estrondo horroroso do
ataque terrorista de 11 de setembro, mas com o barulho e a fúria provocado pelo notório
desmoronamento dos últimos bastiões da privacidade e do decoro (mais ou menos)
vigentes no âmbito midiático do ocidente, as versões locais - ainda que glocais talvez seja
mais exato – da proposta interativa e provocadora, desde seu próprio nome, do Big
Brother comoveram a intelectuais, a comunicólogos e, claro, ao multitudinário público
convocado por este programa em quase todos os países onde se produziu e exibiu desde
1999. Comparar a modalidade de sentido do espetáculo que parece ter dado a razão às
profecias mais sombrias da Escola de Frankfurt, por um lado, e a de alguns efeitos de
sentido sociais e midiáticos do maior atentado terrorista do ainda recente século, por
outro lado, não parece um empreendimento de todo razoável. Porém, no que segue,
pretendo demonstrar que esta comparação – que, como toda analogia, supõe semelhanças
e diferenças – nos permitirá avançar na compreensão de três elementos fundamentais
para o estudo da comunicação:
a) que propósito tem estudar a comunicação da perspectiva da academia,
independentemente da teoria que se adote para fazê-lo;
b) por que as diversas teorias da construção de sentido, ou da realidade, ou
de tudo que nos rodeia, não constituem uma explicação satisfatória nem do mundo, nem
das notícias, nem dos diversos espetáculos que nos chegam daquele;
c) em que consiste a atual paixão indicial que domina tantas pessoas ávidas
por receber signos do real, sejam os ditos signos especialmente formatados para consumo
e entretenimento, sejam aqueles que chegam ainda quentes à tela, junto com o fragor e a
violência de sua origem acidental, no mundo que está aí afora.
Ao tentar responder sucintamente a estas três questões, este texto pretende ser
um insumo a mais para avançar na discussão de algumas idéias que parecem ser aceitas já
como naturais ou inevitáveis, e que, por isso mesmo, seria bom começar a criticar para aceitálas ou descartá-las, mas a partir de uma postura não automática, baseada apenas em que é algo
que se diz ou se escreve muito no âmbito acadêmico da comunicação, e no ambiente jornalístico
próximo àquele. A alternativa ao construcionismo radical do real ou à construção do sentido
que exponho, a seguir, é derivada do realismo semiótico de tipo lógico, triádico originado na
obra do pensador C. S. Peirce (1839 – 1914).
DE ALGUNS INDÍCIOS CORPORAIS E ESPETACULARES
Que implica o ingresso de pessoas comuns e de suas idas e vindas em um
espaço que está fora do estúdio televisivo, do centro máximo de poder não governamental,
para deslocarem-se à vontade por essa espécie de anexo ou sucursal televisiva domesticada
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Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia
(em parte)? Quiçá não seja mais que outro estúdio televisivo portátil, como sugere o
especialista francês do fenômeno François Jost (2002), à semelhança do que ocorre com
os estúdios de gravação domésticos de alguns músicos famosos. Pode ser. Porém, o que
distingue o formato Endemol de reality show é sua proposta de macdonaldização da “ordem de
interação”, quer dizer, de normatizar e colocar à venda esse abundante e ubíquo fluxo sígnico
que nos aproxima e nos distancia, nos põe em afinidade emocional ou nos mantém à distância
formal com nosso próximo, quando nos encontramos em co-presença física. A ordem
de interação, tal como a descreveu, de forma pioneira, o canadense Erving Goffman
(1959, 1991), constitui o coração do que conhecemos como a vida cotidiana. A prática
de coexistir é um ato quase esquecido de si mesmo que só emerge à consciência quando
alguma coisa desse ritual lubrificado falha, quando ocorre um acidente interativo que produz
ridículo, risadas, insegurança, vergonha e, em casos extremos, anomia, quer dizer, a perda
completa da legalidade e a previsibilidade que nos torna humanos, segundo a definição de Ray
Birdwhistell, fundador do estudo da significação do corpo em movimento ou kinésica, não por
acaso um dos mestres do microsociólogo Goffman.
Macdonaldizar o âmbito da vida onde nos tornamos legais, críveis,
aceitáveis um para outro, em uma palavra, normais, não é um empreendimento menor e
isso explica, em parte ao menos, a enorme repercussão mundial do formato Big Brother.
Ao final do século 20, o reality show da Endemol inaugurou um tipo de turismo de
massas inédito: o programa se encarrega de organizar visitas mais ou menos guiadas ao
lugar onde se produz continuamente a apresentação do self, à cozinha transparente do
pequeno, mas poderoso deus ocidental, o si mesmo, algo que nunca tinha sido feito antes
pela TV ocidental. Há vários antecedentes midiáticos, claro. Desde a precoce técnica da
candid camera ou câmera oculta, introduzida pelo apresentador Allen Funt na televisão
norte-americana, em 1948, passando pela moda dos acidentes mais ou menos engraçados
filmados com câmeras domésticas de vídeo, e chegando até a mais recente e hoje já
histórica JenniCam, a página na internet onde uma jovem norte-americana inaugurou a
venda do acesso à sua intimidade cotidiana e sem barreiras – banheiro e quarto com
namorado sexualmente ativo incluídos – são todas tentativas de transmitir signos existenciais
diretamente desde a frente de batalha da mais pura normalidade, com variados temperos
para o maior entretenimento do espectador.
O que têm em comum as formas espetaculares e trágicas acima evocadas
com o reality show Big Brother, que descrevi em outro lugar como “la melocrónica de
los bastidores de la interacción humana” (Andacht 2003)? Todos eles baseiam sua proposta
para o espectador de TV ou para o usuário de internet no index appeal ou chamamento
indicial (Andacht 2002: 72-74). Moldado sobre o tradicional conceito de sex appeal da
indústria cinematográfica da idade de ouro, a noção de index appeal remete ao predomínio
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29
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ou hegemonia do tipo de signo que se define por manter uma relação existencial com seu
objeto, por não depender do fato de ser interpretado, e por possuir um peculiar efeito
quase táctil sobre o espectador – ainda que, em verdade, seja apenas audiovisual. Como
signo, o índice se limita a opor-se física e obstinadamente a nós, a nosso corpo; ingressa
desse modo brutal e compulsivo ao campo da experiência, como “a real força fisiológica”
de um hipnotizador, segundo a analogia que propõe Peirce (CP 8.41)1 para descrever o
efeito indicial sobre nós. Em contraste, o símbolo é uma classe de signo cujo
funcionamento supõe uma interpretação, e é um signo que para atuar necessita apoiar-se
em índices que os ancorem em algum contexto ou situação concreta, e em ícones que
proporcionem alguma imagem, que funciona como o sentido visualizado por todo aquele
que compreenda o valor simbólico.
O regime semiótico indicial tem sido tradicionalmente o menu principal
das notícias televisadas ou filmadas, e de um gênero especializado como o é o
documental no cinema. Ao redor do signo de efeito fáctico, surgem hoje duas demandas
opostas no plano ético, que se fazem ouvir com chamativa força: uma é a de saber o
inapresentável e banal, a outra a de (des)conhecer o sinistro e misterioso. Vejamos o
que implica cada uma destas demandas dentro do universo midiático. O desejo de
receber o impacto do que cai fora do decoro, e que tradicionalmente tinha sido protegido
pela piedosa barreira dos bastidores, por esse véu do backstage interacional humano,
encontra na melocrônica do Big Brother um festim suculento. Ter acesso aos signos
que saem do corpo, à copiosa transpiração sígnica do humano em interação com
outros, se tornou possível como um entretenimento popular para toda a família, desde
que caiu com leve estrondo a cortina encarregada de ocultar o indecoroso de nossa
humanidade, que é também em parte animal, fisiológica e que, por fim, está submetida
a esse mesmo regime existencial. Até o ingresso do formato televisivo Endemol, só
algum gênero literário marginal como a comédia grotesca no teatro, ou na literatura,
mostrava o que não se deve mostrar, senão ocultar dos outros com pudor.
Conhecer o autêntico através do banal cotidiano, da comunhão fática (Malinowski)
e dos gestos rituais com que se procura apaziguar ao outro e a nós mesmos, é a oferta básica
do espetáculo televisivo da realidade. E os signos não falham: ademais do evidente esforço de
produção televisiva – começando pelo casting telegênico e sedutor segundo o cânone vigente
em cada comunidade que compra e adapta a Bíblia da Endemol , o manual de produção – o ser
humano não pode não segregar esses rastros do self, mais ainda quando se está num lugar
especialmente projetado para (des)ocultar toda manobra de pudor ou, o que é o mesmo, para
convertê-la em um episódio da trama que se vai construindo com o aporte do index appeal e
com a intervenção telefônica ou via internet do público (o voto para expulsar a quem tenha sido
previamente indicado pelos demais participantes).
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Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia
A outra forte demanda indicial – ou sua colérica rejeição, que é o mesmo,
porém expressado negativamente – a encontramos no comportamento fascinado ou
enojado pela irrupção de um índice que, através do símbolo, nos conduz à reflexão sobre
algo oculto, estranho, implausível ou inaceitável para a coletividade de onde provém essa
interpretação de tipo indicial. O exemplo mais óbvio deste signo acha-se nos segundos
que, por puro acaso, o fato cego de estar no lugar e na hora exata, converteu o dentista
Abraham Zapruder em uma testemunha privilegiada da história. Sua pequena câmera
filmadora de 8 mm viu e registrou, antes que seu dono e executor, o impacto feroz e
irracional dos projétis no corpo sacudido do presidente J. F. Kennedy na cidade de
Dallas, em 22 de novembro de 1963. Na antípoda desse cadáver glorioso, vou me referir
aqui a outro tão desconhecido como os participantes da casa-mini-estúdio televisivo do
Big Brother, quem sabe mais, porque a visibilidade do seu corpo não foi o resultado de
um cuidadoso casting ou seleção, senão desses caminhos que se bifurcam e, às vezes, se
cruzam com o fim inusitado e incompreensível da morte violenta e absurda.
O que faz um jornalista cujo ofício é recolher e carregar as pegadas do
real em suas imagens, mais indiciais que icônicas, ainda que ambos os tipos de sentido
façam parte do efeito primordial desses retângulos de luz que iluminam e ilustram
reportagens, capas, notas e toda classe de narração escrita sobre o mundo? Faz o
mesmo que fez Richard Drew quando seu olfato profissional o conduziu, no meio da
manhã do outono boreal de Nova York, em 2001, a colocar sua máquina fotográfica
entre seu olhar e o mundo, para deixá-la se impressionar pela resistência brutal e cega
dos corpos que saltaram do World Trade Center nesse dia. A reação entre o real que
resiste e a ação do dispositivo ótico que registra é descrita por Peirce como o fenômeno
da Segundidade, a categoria analítica da experiência na qual se baseia a ação do índice.
Segundo nos conta Tom Junod (2003) em seu memorável artigo, “The Falling man”,
não é a primeira vez que o destino atravessa assim o caminho desse repórter gráfico:
são também suas as imagens comoventes do corpo ainda quente de Bobby Kennedy,
e as de sua viúva reclinada sobre o político agonizante, a quem vemos em uma dessas
fotos de 1968 enquanto implora ao homem da câmera que desista, que deixe de fazer
o que R. Drew nunca deixou de fazer. Ele não deixou de apertar o obturador de sua
câmera diante desses fragmentos do real com que se encontrou, e que logo se
converteriam na História, na efeméride, segundo escreve Junod.
Três norte-americanos, dois jornalistas do New York Times e o escritor
free-lance Tom Junod na revista Esquire, apresentam, de forma precisa e com um rigor
quase científico, um dos potentes efeitos pós 11 de setembro. Apesar de seus textos
serem ensaios, crônicas jornalísticas mais próximas do literário, sua forma de argumentar,
de submeter de modo sagaz sua escrita ao impacto e domínio do objeto no âmbito
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29
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comunicacional, ao regime indicial, os aproxima ao proceder de um pesquisador científico.
O que se passa quando nos encontramos frente a um mistério, ou a uma verdade cujo
acesso se deseja bloquear, de modo consciente ou inconsciente? A esta interrogativa
buscam responder estes três comunicadores. Por esse motivo, afirmo que, de fato senão
de intenção, eles se aproximam em seu proceder discursivo ao denominado “quarto
método de fixar as crenças”, esse que Peirce qualifica como o método científico. À sua
maneira, eles se defrontam com algo não humano, inegável, a isso que se opõe a nós, que
resiste a nossa indiferença, ódio ou repulsa, e que, simplesmente, continua estando ali,
imóvel frente a nossa aceitação ou repúdio. Esse objeto é insuportável, pois, a exposição
a ele é vivida como uma superexposição, como uma saturação visual instantânea, e por
isso desemboca em sua desejada e concretizada ausência – através da censura ou da
violenta negação do fato. Temos assim desenhada a figura de uma perfeita parábola: em
um de seus extremos se localiza a overdose de signos indiciais cujo objeto parece opaco
e duvidoso, pela sua natureza óbvia e mais que banal, me refiro às várias tristezas e
poucas alegrias do corpo sob enclausuramento escopofílico no programa televisivo Big
Brother; no outro extremo da parábola existe um inquietante enigma, algo que como
sociedade resistimos a olhar por seu intolerável peso indicial, algo que elegemos enviar
sem demora ao desterro visual, à terra de ninguém do imundo comunicacional.
Há aqui dois indícios icônicos cujo grande impacto pode se inferir a partir
do notório rechaço provocado por eles na comunidade norte-americana. Um indício é a
impactante fotografia do Falling Man (O homem que cai) que a câmera digital de Richard
Drew capturou aos 15 segundos das 9:41 AM, horário da costa leste dos Estados Unidos,
e que emergiu apenas uma vez diante da visão estremecida da opinião pública, logo após
o ataque contra o World Trade Center, em numerosos jornais, para nunca mais aparecer
na superfície, e levar a partir de então uma vida subterrânea nas catacumbas da internet.
A queixa dirigida contra esta evidência se baseou em sua suposta exploração abusiva da
dor alheia, por mostrar o corpo gracioso, invertido, quase artístico de um anônimo
cidadão em seu vôo etéreo, exatamente no meio das duas torres, com um pé recolhido
delicadamente, e sem exibir nenhum indício do espanto diante desse final atroz. O outro
indício é uma estátua em bronze que parece desenhada para ser a perfeita acompanhante
tridimensional e artística da fotografia do Falling Man, refiro-me a “Tumbling Woman”
(A Mulher que cai) do conhecido escultor norte-americano Eric Fischl.
Esse foi o outro indício delator e negado. A obra foi exposta exatamente
um ano depois do ataque terrorista ao WTC, a modo de memorial. Porém, em poucos
dias, o 18 de setembro de 2002, a comovente figura em bronze de uma mulher nua que
vemos agitar-se e lutar com todas as suas forças contra a lei da gravidade, foi expulsa do
seu lugar de exibição, no Rockefeller Center, muito próximo do lugar onde ocorreu a
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Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia
tragédia nova-iorquina, por virulentos protestos. Ainda podem encontra-se azedas
discussões em blogs da internet a favor e contra esta obra de arte. Quem apóia sua
existência e visibilidade argumenta, de modo previsível, que existe a liberdade de expressão e
que por isso não deveria ter sido proibida sua exibição. Entre os que se opõem e celebram com
alvoroço a censura que subtrai da visão do transeunte a representação volumosa e magnética da
dor desse personagem impossível do suicida assassinado, há quem formule, inclusive, seu
desejo de que alguém corte a cabeça do escultor Eric Fischl. O motivo para esta sumária
execução é que o artista teria brincado com a dor alheia, quando ele criou esse signo
público de algo que, eles acreditam, deve permanecer invisível, sepultado no esquecimento,
em vez de ser evocado e representado de modo tão tangível, próximo e indicial diante dos
sobreviventes desse dia penoso e ainda próximo no tempo.
Em duas colunas recentes do New York Times, o jornalista Frank Rich
escreve sobre o impulso majoritário nos Estados Unidos de meios massivos, governo e
comunidade de negar a complexidade do que ocorreu, e de se opor a indagar sobre os
verdadeiros motivos dessa tragédia. Seu primeiro texto alude ao chamativo desalojamento
dos indícios do 11 de setembro antes mencionados, o real-fotográfico e o fabricadoartístico. Sua outra coluna se refere à avidez por conseguir e contemplar o “money shot”,
uma expressão que poderia traduzir-se como “a tomada do dinheiro”, um termo que
provém da indústria de cinema pornográfico, e que denota a filmagem minuciosa e
incansável que documenta o instante da ejaculação, isso que certifica e dá seu selo de qualidade
a este gênero de filme. Encontro certo parentesco semiótico entre estas duas “tomadas de
dinheiro”. Por um lado, o esforço por negar-lhe toda legitimidade à contundente evidência
visual do momento mais vulnerável da nação mais poderosa da terra, ao documento que
registra de modo singular o desespero que, nessa manhã terrível, arrastou a tantos – entre 50 e
200, segundo um cálculo aproximado citado por Junod em seu texto – a pular para uma morte
segura como forma impossível de esperança. Por outro lado, a atitude da sociedade norteamericana de horrorizar-se pelas andanças perversas do ídolo musical Michael Jackson, enquanto
os meios se esforçaram para conseguir o mais ansiado “money shot” de todos, a saber, o
registro gráfico e minucioso do crime sexual envolvendo menores do que se acusa à decadente
estrela. A recusa a refletir sobre a densa obscuridade que ainda envolve o ataque de 11 de
setembro supõe adotar, de fato, o primeiro método descrito por Peirce (CP 5.378) para fixar
a crença qual seja, o método da tenacidade. O referido método implica fazer de conta que
isso que está aí nos olhando não existe, e contra toda evidência aderir a isso que, com
obstinação, queremos seguir acreditando. Talvez este método tenha sido crucial para o
lançamento da grande guerra contra o eixo do mal, para levar a cabo a invasão de um país
cuja aliança com o supremo inimigo dos Estados Unidos continua não estando provada,
e cada dia que passa parece mais improvável.
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29
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Outra habitual voz crítica do governo norte-americano no New York Times,
a da colunista Maureen Dowd (2003), narra sua impressão de total desencanto e decepção
diante do que ela descreve com ironia, no título de sua coluna, como “a insuportável
leveza da memória”. Dowd se refere aos oito projetos ganhadores do concurso organizado
para erigir um memorial ao 11 de setembro de 2001, no Ground Zero, a zona do desastre.
Impossível não pensar no contraste entre estes dois indícios extirpados do cenário público
– a fotografia de Drew e a estátua de Fischl – a causa de seu áspero caráter indicialicônico, seu efeito de sair ao encontro do transeunte que passara próximo destes signos
existenciais, por um lado, e as narrativas luminosas, etéreas, leves como a pluma, e
semelhantes a essas técnicas de auto-ajuda da “new age” (Dowd) pelo outro. Sua proposta
embelezadora da obscuridade insondável que ainda dois anos depois cerca esse lugar e à
nação toda, não faz mais que reforçar o brilho ausente, o clamor inocultável dos índices
obliterados pela opinião pública.
O costume de assistir a filmes históricos populares (como, por exemplo,
JFK do polêmico realizador norte-americano Oliver Stone) acabaria por converter-se em
uma “memória prostética” do espectador, já que, de tanto ver essas imagens, a sociedade
chegaria a acreditar e sentir que experimentou estes incidentes na própria carne, e que essa
ficção histórica forma parte documental e genuína de suas vidas, segundo uma proposta
analítica da historiadora Landsberg (cit. em Robinik 2002). Talvez teríamos que falar, então, da
gestação de uma amnésia prostética com relação ao forçado desaparecimento destes rastros da
realidade, destes traços da memória autêntica nos Estados Unidos. A voz majoritária dessa
nação pós 11 de setembro elege, sabendo ou não, esquecer com tenacidade o que lhe ocorreu,
e agarrar-se a uma interpretação oficial, maniqueísta e simplista que, para poder funcionar
eficazmente, deve prescindir do indicial, disso que ocorre e revela algo vital do tecido
humano. A manobra coletiva tenta evitar o enigmático e temível, a face oculta do cotidiano,
o âmbito do sinistro que teorizou Freud em 1919 como das Unheimliche. Prefere-se
buscar um aprazível refúgio em símbolos previsíveis e kitsch, como os que observa, na
exposição de Nova York em 2003, a jornalista Maureen Dowd e que ela considera
insuficientes, demasiado leves para suportar o peso da evocação do horror do ocorrido
na cidade mais cidadã do ocidente. Com sensatez, ela sugere que, quiçá, seria melhor
representar o horror ocorrido em 11 de setembro com alguns fragmentos desse real
insuportável que, não obstante, pode conduzir a quem os contemple pelo árido caminho
da verdade: “O que falta nos desenhos (ganhadores do concurso) é algum rastro do que
realmente se passou neste solo. Por que não voltar a colocar neste lugar o esqueleto
metálico retorcido, esse que fez das ruínas do World Trade Center uma recordação tão
horripilante e indelével para os milhares de norte-americanos que chegavam até o Ground
Zero nos meses posteriores ao ataque?” O indício delator brilha por sua ausência em uma
20
Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia
terra que parece temer a verdade e prefere distrair-se admirando elegantes e modernas
formas luminosas, inocentes, os admiráveis e refinados dispositivos de amnésia prostética.
Uma situação análoga e próxima no tempo me vem à mente. As não visíveis
fotografias, ou filmagens, do retorno dos corpos dos soldados mortos no Iraque que
chegam de regresso a cada dia, desde 2003, em seus respectivos ataúdes embandeirados,
como se o exército dos EUA os proclamasse como sua propriedade absoluta, assim na
vida como na morte. A estrita proibição de representar, indicial e iconicamente, os cadáveres
que diariamente produz uma guerra que se supunha já terminada, e de modo fulminante,
como resultado da campanha bélica de “shock and awe”, literalmente, choque e reverência,
aplicada pelo governo norte-americano no Iraque, nos lembra qual é a função por excelência
não só do signo indicial, senão de qualquer tipo de signo, qual seja, a revelação do real de
modo falível, incompleto, porém eficaz. Se não fosse assim, por que proibir estas imagens
fúnebres que não são muito diferentes das que ajudaram a acelerar o fim da guerra do
Vietnam, no final dos anos 60? Apesar do inapropriado do termo, de sua origem procaz,
é lícito afirmar que não se tolerou ou que se temeu a exibição desse money shot mortífero
e bélico. Em seu lugar, se preferiu apresentar, de modo também realista e indicial, um
money shot alternativo, de efeito contrário na opinião pública. Refiro-me à oportunidade
fotográfica do ano (“photo-op” é o termo do jargão político-eleitoral dos Estados Unidos), a
viagem secreta do presidente George Bush Jr. a Bagdá, para celebrar o dia de Ação de Graças
junto às tropas de ocupação dos EUA, que festejavam ali esse 27 de novembro de 2003. E
claro, também para produzir muitos e valiosos indícios-icônicos do fato duro de sua presença
real e tangível nesse lugar, durante duas horas e meia. Neste ponto, e segundo o anunciado no
início do texto, acredito ser oportuno passar à reflexão sobre a teoria da construção de sentido,
tal como é usada com grande freqüência nos estudos de comunicação.
CONTRA A CONSTRUÇÃO SOCIAL DE TUDO (E DE NADA)
Quando lhe pedem sua primeira contribuição à mesa que compartilha com
“notáveis e sensíveis”, em um estúdio do canal de televisão argentino Telefé, segundo as
palavras do apresentador do programa Gran Hermano. El debate2 , um célebre
comunicólogo local, de fama internacional, responde com certo desdém que não lhe
interessa em absoluto abordar a popular discussão sobre se fingem, ou se são autênticas,
as doze pessoas que estão trancadas voluntariamente na casa de Gran Hermano para
submeter-se a uma multitudinária visão e escuta dos melhores momentos de sua interação
cara a cara. Para liquidar tal discussão para sempre, o conhecido especialista em
comunicação propõe diante das câmeras que “tudo é construção, tanto a realidade como
a ficção.”3 Parece que a metáfora teórica da “construção” da realidade, social, individual
ou empresarial (dos meios de comunicação) tem tido uma sorte similar a dos conceitos
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29
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de ideologia e de subjetividade (do realizador de um documentário, por exemplo), na
teoria do cinema. Com uma convincente argumentação, o teórico Carrol (1996: 230ss)
demonstra que quanto maior é a amplitude denotativa destas noções, as que são usadas
amiúde como uma desqualificação formal ou analítica da representação do real no chamado
cinema verité e nos documentários mais sérios e mais respeitosos em seu trato com o
outro, menor é o valor analítico dos ditos conceitos. Se, efetivamente, todo sentido
imaginável fora o resultado do esforço construtivo humano, que tipo de contribuição
teórica seria, então, afirmar sobre uma atividade comunicacional concreta, por exemplo,
o formato de Gran Hermano ou a conduta dos participantes deste programa televisivo,
que dita atividade é construída? Isso valeria também para as notícias televisivas ou para
qualquer outro gênero imaginável. Se “construído” é definido como algo artificial, como
um dispositivo produzido pelo ser humano com algum propósito, cabe se perguntar que
coisa poderia escapar à dita definição. Portanto, pergunto, qual pode ser o interesse
metodológico ou analítico de descrever algo nesses termos. Termina-se, assim, por afirmar
o óbvio, isso que pouco e nada nos informa.
Suspeito que estes três conceitos – ideológico, subjetivo e construído –
são usados ou esgrimidos agressivamente com crescente freqüência nos estudos de
comunicação apenas como variantes estilísticas de uma condenação moral, valorativa
e subjetiva de algum produto ou instituição comunicacional. Defino o termo “subjetivo”
como toda crença fixada segundo um dos três métodos descritos por Peirce em
oposição e contraste com o quarto método, que ele denomina “científico”, em virtude
do qual “nossas crenças podem ser causadas por algo que não é humano em absoluto
(our beliefs may be caused by nothing human), por algo sobre o qual nosso pensamento
não tem nenhum efeito” (CP 5.384). O método científico permite fixar nossa opinião
sobre a base de algo que não é opinável, a saber, o objeto como esse exterior que é
experimentado, e que deve ser considerado auto-criticamente por uma comunidade
de pesquisadores, para avançar de modo falível e evolutivo na direção da verdade
sobre dito objeto, quer dizer, na direção do real que não é a coisa em si de Kant,
porém, que é uma meta alcançável a longo prazo. Sem essa esperança epistêmica, se
instala um tipo de atitude suicida para o conhecimento, a qual invalida toda e qualquer
ciência. A livre queda no cinismo parece um fim inevitável.
Caso se tolere uma grande vacuidade na denotação de termos como
“subjetivo”, “ideológico” e “construído” torna-se possível afirmar com tranqüilidade que
não há nada objetivo, nem isento de ideologia, de subjetividade ou de construção no
terreno da representação midiática (seja televisão, imprensa, cinema ou internet). Podemos
incluir outra expressão semelhante, também muito usada na teoria cinematográfica como
um projétil leve de ataque, que é a noção ampliada de “ficção”. Dessa postura de radical
22
Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia
ceticismo sobre o poder representacional dos signos, toda intervenção humana que envolve
a representação da realidade, fazer um filme sobre ela, por exemplo, se tornaria, ipso
facto, uma ficção. Esta posição teórica resulta estéril para a análise ou, de modo mais
geral, para alcançar uma maior compreensão do processo de produzir signos de ou sobre
o real, em oposição a produzir signos de tipo literário, moral ou publicitário. Se
desconsiderarmos esta distinção, estaríamos negando que um filme de não-ficção “é
objetivo no mesmo sentido no que o é a escrita de não-ficção”, já que este tipo de filme
se faz “responsável pelos padrões objetivos que sejam os mais apropriados ao assunto
com o qual estão tratando” (Carroll 1996: 236).
Não parece ser um conceito muito produtivo aquele que fosse compartilhado
por qualquer signo midiático, tanto pela ficção quanto pela não-ficção. Qual seria a utilidade
de uma noção teórica que não servisse para discriminar gêneros ou modalidades
discursivas tão distintas entre si como distinto é o que simplesmente é – o real apenas –
com respeito ao que é inventado com base no real, com o intuito de divertir, entreter ou
ensinar sobre o que é? Que ambos domínios de sentido se cruzam e se fertilizam já é um
lugar comum. Veja-se, por exemplo, esse costume tão brasileiro de introduzir as balas
perdidas de um bairro concreto e real como o do Leblon, situado na zona nobre do Rio de
Janeiro, dentro de uma novela cuja trama fictícia faz como se transcorresse nesse espaço
urbano real. Que pode haver de mais natural então que a presença televisiva e ficcionalisada
de um elemento que forma parte do cotidiano carioca? A violência organizada muito real
e seu temível impacto na vida carioca de cada dia estão presentes sob a forma semiótica
de uma citação, de um fragmento claramente identificável e reconhecível pelo espectador,
dentro de uma ficção realista, verossímil e atual. Se a esta prática compartilhada por
quase toda ficção industrial, é somada a ação de marketing social, na que incorre
habitualmente a maior produtora brasileira de ficção seriada, a Rede Globo, então nada é
mais previsível que encontrar na trama inventada para a telenovela Mulheres Apaixonadas,
o grande sucesso de público de 2003, pedaços integrais do real, diversos fragmentos do
mundo não fictício identificáveis sem confusão alguma pelo espectador que os observa,
e claro, sem que haja necessidade alguma de elaborar uma teoria especial sobre a ontologia
do mundo, ou sobre os efeitos da comunicação massiva.
Neste ponto, arrisco uma hipótese sobre qual poderia ser o papel do
comunicólogo, do pesquisador que não está trabalhando em uma empresa produtora de
entretenimentos nem de notícias, senão que se ocupa da pura pesquisa. O primeiro
requisito é que esse pesquisador aceite desprender-se da fascinação por essa teoria mais
ou menos selvagem ou refinada da construção social do real e da ficção, em que,
supostamente, se converteria qualquer assunto da realidade pelo simples fato de ser
filmado, de ser representado. O estudioso da comunicação pode, então, se dedicar a
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29
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analisar a enorme complexidade do diálogo que se estabelece, natural e inevitavelmente,
entre as séries de sentido que surgem na comunidade e aquelas que reproduz, ao seu
modo (obviamente), interessado e parcial, cada meio de comunicação, no gênero que
seja. Com o risco evidente de estar construindo um adversário fantasma, postulo aqui
que por trás da fachada legitimadora de uma irrestrita construção teórica de tudo, funciona
uma variante moderna e elegante dos princípios críticos mais severos da Escola de
Frankfurt e de seus diversos seguidores na Europa, América Latina e Estados Unidos.
Que modo melhor de se opor com máximo vigor às manipulações dos
meios massivos e a seu inegável desejo de lucro, que descrever tudo o que faz (e o que
deixa de fazer) uma empresa comunicacional como uma construção de sentido? Devo
reconhecer que exerce certo fascínio uma posição teórica que distribui em dois bandos
nítidos e antagônicos os infatigáveis engenheiros de significado, e que os põe a construir
sem descanso a realidade e o sentido de ambos os lados da tela e da página impressa.
Com a intervenção da vontade dos referidos construtores seria forjado o sentido válido,
enquanto epicentro de uma contenda épica entre quem tem o poder material de emitir
textos e quem não o tem. Sem embargo, esta sedutora visão sobre como se constrói a
significação encontra um obstáculo formidável, a saber, o comportamento real dos signos.
Se os signos não tivessem uma natureza disposicional, quer dizer, se não tivessem uma
capacidade própria de gerar significado, para que ocultar os indícios inquietantes do 11
de setembro? Para que produzir com um custo muito alto, incluído o risco de vida do
próprio presidente dos EUA, indícios que revelam um fato além de toda negação, qual
seja, a visita do mais alto funcionário desse governo ao lugar de uma batalha que não
termina. Só penso em uma resposta: o sentido não se constrói nem se fabrica; nossa ação
primordial como seres de sentido consiste em observar atentamente as propriedades que
levam os signos em seu corpo, e sua incessante ação de desdobrar-se diante de nós.
Observar o sentido não supõe, de modo algum, passividade ou resignação
conformista da parte do pesquisador; é tão só o requisito básico para poder compreender
e depois atuar em conseqüência, segundo o que se crê que é melhor, mais adequado para
uma comunidade. Já quando se trata de signos de existência, que meramente estão aí,
como os cadáveres de soldados ocultos da opinião pública, ainda que se saiba sobre seu
regresso cotidiano e sem glória para seu país de origem, ou de signos para serem
interpretados convencionalmente, como, por exemplo, uma frase do presidente G. Bush
Jr. na base militar de Bagdá, em novembro de 2003, preparada, possivelmente, por sua
equipe de relações públicas: “Estava buscando algum lugar onde desfrutar de uma comida
quente hoje”, estas manifestações de sentido têm um poder que resiste a toda negação de
qualquer poder terreno. O sentido dos signos é sempre “virtual”, afirma Peirce (CP
5.289): é o poder que possui um signo de ser representado em outro signo mais
24
Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia
desenvolvido. Em tal disposição ou tendência, e só nela, consiste o sentido, que, portanto,
não se reduz a uma classificação arbitrária da mente, a uma construção imposta de fora,
senão que é algo que realmente, como propriedade lógica, se encontra nos signos com os
quais compreendemos o mundo, e com os que podemos, se assim desejarmos, trocá-lo.
Afirmar isto não nega que, amiúde,os signos necessitem de nossa cooperação interpretativa,
porém, essa tarefa não é o exercício de uma vontade humana omnímoda, senão da
capacidade que exercemos e desenvolvemos como intérpretes, como navegantes mais
ou menos hábeis no agitado mar da significação.
Sem dúvida, é atrativa, e inclusive sedutora, a imagem épica do cientista
social, em geral, e a do comunicólogo, em particular, como alguém que sulca o mundo
do conhecimento denunciando que toda forma de comunicação é fatalmente um total ou
parcial engano, uma modalidade mais ou menos hábil de fraude coletiva. Não obstante,
creio que desde o lugar mais modesto e realista da observação e do estudo de como, de
fato, cresce e muda a cada instante o sentido, tanto na sociedade como em seu maior
porta-voz que, fiel ou traidor, segundo a ocasião, são os meios de comunicação, há uma
potencial contribuição muito maior a fazer que ao denunciar, sem descanso, a natureza
falsa, construída, fictícia ou artificial de tudo o que os meios representam. Entre outras
coisas, se aceitarmos a premissa construtiva de sentido se deixa de lado que nossa
comunicação na ordem de interação, através de nossos corpos em contato, seja verbal
ou não verbal, é também um poderoso meio de comunicação. Também se esquece,
assim, que a condenação de todo signo recebido ou enviado por não ser confiável, porque
supostamente seria o resultado de uma construção suspeita ignora a capacidade humana
sobre a que já refletia Sócrates, a de buscar e encontrar coletiva e dialogicamente a
verdade. Desse modo, a única ponte transitável de que dispomos para driblar com relativo
êxito as diferenças dentro e fora de nossa comunidade fica inutilizada. Perder a linha
divisória entre o não-ficcional e o ficcional, entre o verdadeiro e o falso, entre o que é
como é além de qualquer opinião pessoal, e a mera opinião, quer dizer, entre o objetivo e
o subjetivo, é um preço demasiado alto a pagar neste empreendimento de denúncia e
condenação dos poderes constituídos, e de seus lucrativos meios de comunicação.
A TÍTULO DE EPÍLOGO
Hora de encerrar minha argumentação e de resumir as principais idéias
expostas até aqui. Que é, portanto, o que busquei por meio da analogia algo inesperada
entre o banal e o terrível do regime indicial transmitido pelos meios de comunicação,
neste início do século XXI? Meu propósito ao descrever a paixão indicial foi explicar
como o principal e, quem sabe, único propósito dos signos é a revelação parcial, falível,
inclusive, frágil e sempre ameaçada do que é, do que poderia ser e do que foi. Naturalmente,
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29
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esta característica não exclui a existência de toda classe de distorção e de ocultamento do
real, seja de modo voluntário, acidental ou inconsciente. Como pode se inferir da manobra
social e oficial de amnésia prostética, que descrevi acima, como um dos efeitos inquietantes
do 11 de setembro de 2001, nos EUA, essas práticas não são, em absoluto, um privilégio
dos meios massivos, nem dos poderes máximos, senão que formam parte de nossa
condição humana, como experientes pilotos do sentido, que buscamos compreender,
porém muitas vezes tememos e evitamos ou negamos essa compreensão.
São inumeráveis as vozes airadas que reclamam e protestam contra a cínica
e pouco ética fabricação da normalidade ou da realidade cotidiana no formato multinacional
Big Brother. De forma plausível, se assinala a debilidade ou a ineficácia planejada do
atributo REALITY, em forte contraste com o predomínio ou hegemonia da porção
substantiva da frase, quer dizer, do SHOW, do espetáculo multinacional criado por Endemol
Produkties da Holanda. Não em vão, estamos diante de uma geração de espectadores que
nasceu e que se criou absorvendo as múltiplas maquinações catódicas. Parece tarefa
difícil, então, enganar a quem conhece de toda a vida o que muito mal se esconde sob
esse novo grande atrativo da visão que é o backstage, quer dizer, os bastidores da produção
de normalidade interativa. O que é mais justo e necessário que converter o backstage da
própria vida, a ordem da interação e sua cozinha ou lugar de preparação, no novo e não
muito obscuro objeto de desejo do espectador do século 21?
A pergunta a formular, que proponho agora, é qual seria, na verdade, esse
objeto dos signos que o formato Endemol exibe sem cessar dia após dia, pela TV aberta,
e todo o dia, todos os dias, pela TV a cabo? Porque se é transparente o menu audiovisual
que aparece na tela – nossos atos menos interessantes ou mais banais, incluindo outros
reservados à intimidade do ser comum, e à exibição dos mais e melhores dotados, em um
gênero fechado como a pornografia – não é tão claro a que remete, que coisa denota, de que
trata esse festival de signos do diário viver. Se fosse apenas a banalidade suprema da simples
existência cotidiana, algo que se faz e que se esquece quase no mesmo instante, então não
valeria a pena dedicar-lhe um programa, e de fazê-lo, este jamais alcançaria um Ibope tão
grande como o que, de fato, conseguiu Big Brother. Outra idéia que pode vir à mente do leitor
prevenido pelos críticos, mais ou menos especializados ou acadêmicos, é o insaciável e perverso
voyeurismo: todos estão (estamos) doentes! E então Freud tinha razão. Esta versão inflacionária
do mal estar (exacerbado) da cultura apresenta vários problemas. Assinalo só um dos
mais óbvios: as pessoas que entram na casa para serem vistas, admiradas e desprezadas,
em diversos graus, não podem sequer competir com os especialistas da exibição corporal,
como os há em abundância desde que existe imagem filmada ou gravada no mundo.
Quer seja no genérico erótico, no pornô brando ou no mais contundente, há muitas
melhores ofertas para o bom voyeur que nestas visões mais ou menos fugazes de seres
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Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia
em cativeiro voluntário, se de saciar o apetite da carne deleitosa se tratasse. Os resultados
do meu estudo deste gênero de reality show apontam a outro lugar de interesse ou da
paixão do espectador, a saber, a sua fascinação pela transpiração dos signos, do sentido
indicial que segregamos a toda hora, sem poder controlá-lo de todo, ou com menos
habilidade para fazê-lo que se envolvesse palavras. Nisso consiste o index appeal ou
chamamento indicial do reality show mais polêmico e bem sucedido do momento.
Por arriscado que pareça, entendo que renunciar à teoria da construção
social, individual ou corporativa de sentido ou da significação, e também da realidade,
supõe aceitar a castração simbólica, a real limitação do humano. Traço um paralelo entre
essa renúncia e a disposição de colocar o olhar sobre a temível cabeça da Górgone em
que se converteram a fotografia denunciadora de Richard Drew do Homem que cai e a
magnífica estátua de bronze de Eric Fischl da Mulher que cai. Ambos signos indiciais e
icônicos infundiam o maior temor imaginável: o de ter que se perguntar sobre o
desconhecido, e ter que aceitar que os signos realmente existentes são capazes de nos
revelar, gradual e tentativamente, a verdade, ainda que seja desagradável, chocante, e
demore muito em chegar. Recusar e desvalorizar esses signos de existência, declará-los
perversos e fora de lugar, supõe optar por uma narrativa já construída, enganosa, porém
tranqüilizadora: o mal seria isso que está aí afora, e então a obscuridade não estaria nesse
abismo terrível do Ground Zero de Nova York, senão em outro lugar completamente
alheio e tão distante como o território invadido do Iraque.
Entre o caminho da autocrítica, da renúncia à onipotência, e aquele do
temível outricídio negador de todo diálogo, e de todo possível contato sígnico com a
complexidade ancorada na duríssima realidade que emergiu no dia 11 de setembro de 2001,
a sociedade norte-americana preferiu o segundo rumo. Esta atitude de uma boa parte da
coletividade de seu próprio país a descreve com lucidez crítica o semiótico Vincent Colapietro
como a manifestação da “invencível presunção de inocência”, que não permitiria a “possibilidade
desconcertante de nossa própria cumplicidade no que nos aconteceu”. A negação do real,
a opção de refugiar-se em uma ficção sinistra que só pode conduzir a um maior
desconhecimento de si mesmo e do outro, não faz mais que colocar em evidência o risco
de atuar completamente à margem dos signos e do seu poder revelador da verdade.
Nossos signos de cada dia são tão bons, ou tão perversos, como os propósitos que
organizamos com e através deles. A paixão indicial que comove o mundo busca no
ambivalente “money shot”, essa “tomada do dinheiro”, conhecer o pior e o melhor da
humanidade, ambos os extremos são inseparáveis de nossos signos.
FERNANDO ANDACHT é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação
da Unisinos/RS.
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29
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NOTAS
1. Cito a obra de Peirce segundo a convenção habitual: “x.xxx” remete à
passagem dos Collected Papers mediante o volume e o parágrafo na referida edição.
2. Este derivado de Gran Hermano, a versão rioplatense do Big Brother,
era transmitido às segundas-feiras, às 23 hs, pela Telefé, em vez da terceira edição diária
de notícias, da emissora observada.
3. Trata-se de Eliseo Verón, “nosso convidado de luxo”, conforme foi
mencionado pelo apresentador, nessa primeira edição argentina ou rio-platense, já que se
transmitiu ao vivo ao Uruguai, a versão local do Big Brother, no inverno de 2001.
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Fernando Andacht - Sobre nossa paixão indicial de cada dia
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www.ejumpcut.org, el 5 de diciembre de 2003.
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.13-29
29
Comunicação, Música e Sociabilidade
na Contemporaneidade
Data de recebimento do artigo: 28/11/2003
Data de aceitação do artigo: 10/12/2003
À procura da batida perfeita:
a importância do gênero musical
para a análise da música popular massiva
Jeder Silveira Janotti Jr.
As relações entre gêneros midiáticos e o consumo dos produtos culturais,
que circulam nos meios de comunicação, estão tão entranhadas em nosso cotidiano
que raramente notamos como elas delimitam uma parcela importante dos processos
de produção de sentido inscritos na comunicação e cultura contemporâneas. O próprio
modo como arrumamos nossas estantes e distribuímos nossas coleções de discos e
livros, mostra muito sobre valores que interiorizamos e sobre aquilo que consideramos
positivo no mercado cultural contemporâneo. Não por acaso, há um certo frenezi
quando vamos receber algum convidado em nossas casas e, minutos antes da chegada
dessa pessoa, corremos apressados para decidir que livros, que discos, enfim, quais
objetos devem estar visíveis e quais devem ser escondidos. Isso para não falar, do
grande momento em que nosso ilustre visitante irá ter acesso aos preciosos bens que
compõem nossas bibliotecas e discotecas.
Mas, essa arrumação e as taxonomias que envolvem o consumo cultural
não estão situadas somente no campo da recepção. Uma rápida olhada pelos guias de
TV e pelos catálogos musicais permite perceber que uma parte importante da circulação
e do consumo dos bens culturais midiáticos está diretamente ligada não só às
classificações efetuadas pelas críticas e resenhas, mas ao próprio modo como essas
“classificações” permitem ao consumidor organizar e reconhecer suas valorações
dos produtos culturais. Quem não experimentou um certo desconforto, quando diante
das prateleiras de uma locadora encontrou distinções que não parecem adequadas ao
processo “tradicional” de arrumação desses produtos?
Assim, esse artigo parte de um pressuposto que parece simples, mas
bastante controverso, a idéia de que grande parte da apropriação da música popular
massiva é efetuada à partir de sua “classificação genérica”. Desse modo, um
questionamento fundamental estará presente, como uma sombra incomôda, durante
todo o percurso aqui apresentado: quais são as linhas que demarcam a validade dos
produtos musicais em suas especificidades, por exemplo como uma canção, se uma
parte de seu consumo é efetivada por elementos externos à audição musical particular?
Ou seja, até que ponto a delimitação por gênero não “pré-figura” as formações de
sentido das obras individuais? Questões complexas, que não tenho a pretensão de
resolvê-las neste artigo, mas devem servir de alicerces permanentes tanto para a
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.31-46
31
análise dos gêneros musicais no processo de consumo da música, como para a análise
de canções particulares. Não por acaso, e de maneira tensa, essa questão será tratada
na primeira parte deste artigo. Na segunda parte, o artigo dedica-se a analisar a canção
“Vai Vendo”1 do cantor Marcelo D2.
DAS CATALOGAÇÕES
De acordo com Simon Frith (1998), nós temos uma tendência a
“naturalizar” as apropriações musicais efetuadas pelas divisões dos gêneros midiáticos.
Nós só notamos esse processo, quando, por exemplo, vamos a uma loja de discos e
verificamos que a distribuição dos CDs nas prateleiras não obedece aos padrões
assimilados como “normais”. Diante das estruturas dos “shoppings culturais”, que
procuram interferir o mínimo possível no acesso direto dos consumidores aos produtos
expostos, chamar um vendedor, mostrar-se neófito em relação aos modos de
apresentação dos produtos pela loja, seria reconhecer-se como um “incompetente”
no cenário musical. Até porquê a catalogação por gêneros está presente não só nos
modos que a indústria fonográfica utiliza para direcionar certos produtos para o
consumidor potencial, como é parte essencial dos julgamentos de valor que perpassam
o consumo musical.
Esses pressupostos implicam o reconhecimento de que os gêneros da
música popular massiva não podem ser descritos e compreendidos apenas por seus
componentes econômicos. Mas, não se pode deixar de reconhecer que, por outro
lado, parte dos aspectos mercadológicos são fundamentais para o entendimento do
gênero como modo de direcionar os produtos musicais para os consumidores
potenciais. Desta forma, vale lembrar que gênero é:“(…) um modo de definição da
música em relação ao mercado, do potencial mercadológico presente na música”
(FRITH, 1998, p.76).
Seguindo esse caminho, pode-se partir do princípio de que o lançamento
de um produto musical envolve estratégias de divulgação que abarcam pelo menos
duas questões: 1) com que se parece esse som? e 2) quem irá comprar esse tipo de
música? Mas essas perguntas não são tão óbvias, não é uma simples questão de
definição de gênero e pronto, vendagem imediata. Nas perguntas colocadas acima
entra em cena uma constante negociação entre a indústria fonográfica, as rádios, as
lojas de disco a imprensa especializada, fanzines, promotores de shows e fãs.
O caso das lojas de CDs é um bom exemplo da complexidade que envolve
o endereçamento dos produtos musicais aos seus consumidores potenciais. De acordo
com Frith:
As lojas de disco são instrutivas em relação a esse contexto por várias
32
Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita
razões. Uma fã comprometida com universo musical logo achará, por
exemplo, que ela está interessada em sonoridades que parecem se adequar
a diversas categorias de uma só vez e que diferentes lojas, colocam os
mesmos discos em diferentes prateleiras e diferentes categorias (FRITH,
1998,p.77)
Gostaria de citar dois exemplos que dão conta da dificuldade de uma
classificação definitiva dos produtos nas prateleiras das lojas. Em que lugar ficaria
melhor colocar os CDs de Cássia Eller e Raul Seixas, “cantor e cantora nacionais” ou
“pop/rock brasil”? E o que dizer de Ozzy Osbourne? Heavy metal? Ou será que é
melhor, por precaução, colocar alguns exemplares na sessão “cantores internacionais”?
Esses exemplos mostram que algumas das divisões comerciais, antes de se basearem
em gêneros musicais, são efetuadas por padrões temporais, gêneros sexuais e/ou
feixes linguísticos/geográficos.
Do que foi dito até aqui parece possível inferir que as cartografias dos
gêneros musicais são, em parte, produzidas para tentar da conta do modo como
diferentes setores da economia midiática influenciam na constituição dos gêneros.
Essas negociações envolvem tensões com fãs, músicos, críticos e produtores,
envolvendo fatores que muitas vezes não parecem, pelo menos em um primeiro
momento, vinculados diretamente ao mercado da música. Durante o processo de
pesquisa para o desenvolvimento de minha tese (JANOTTI, 2003) notei, não sem
surpresa, que em algumas lojas de disco dos shoppings centers de Porto Alegre havia
uma divisão nas prateleiras entre heavy metal e rock; divisão inexistente nos shoppings
de Salvador. Na verdade, esse modo de “disponibilizar” os produtos musicais está
diretamente ligado a realidade local, uma vez que, já há algum tempo, o pop rock é um
dos principais produtos musicais do Rio Grande do Sul, o que pressupõe um contato
íntimo com uma arquelogia do rock; uma divisão mais rígida e tensiva dentro do
próprio rock. Já o mercado musical de Salvador, fortemente marcado pelas músicas
do carnaval baiano, não apresenta tais divisões, uma vez que, para praticamente todas
as formas de expressão roqueiras da cidade, o grande contraponto continua sendo a
chamada “axé-music”.
Um outro fato que deve ser destacado nesse processo é que, muitas
vezes, devido ao valor positivo das novidades e da avidez por novas informações por
parte dos consumidores, uma boa parte das catalogações das lojas é construída ao
redor das prateleiras que oferecem os “últimos lançamentos” ou as “promoções”. Em
geral essas divisões não obedecem qualquer critério de gênero e, sim, critérios de
“temporalidade” e “preço”.
Pode-se então concluir que um passeio pelo modo de oferta das lojas de
discos é bastante instrutivo em relação não só aos gêneros, mas também na observação
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.31-46
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das tensões globais e locais que fazem parte do consumo musical. Seguindo Frith,
podemos afirmar que o gênero musical “ (…)é uma conversa silenciosa que acontece
entre o consumidor, que sabe asperamente o que quer, e o vendedor, que trabalha
copiosamente, para imaginar o padrão dinâmico dessas demandas” (FRITH, 1998,
p.77). Essa é uma negociação tensiva e complicada. Quantos de nós não se sentem
completamente perdidos, para não dizer traídos, quando encontramos nossas lojas
preferidas rearrumando o modo de catalogação dos discos? Se essa questão não
envolvesse expressões identitárias e emocionais seria muito mais fácil. Talvez os fãs
de música passassem a adotar a ordem alfabética e não ficassem tanto tempo discutindo
se a banda Led Zeppelin fica melhor situada ao lado de roqueiros antigos como Jimi
Hendrix e Cream ou na estante dedicada ao heavy metal.
Nesse sentido, um importante mediador do consumo musical é a crítica.
Mas, vale lembrar que, ao contrário do que se possa imaginar em um primeiro momento,
grande parte das comparações e classificações exibidas pela crítica musical são frutos
dos releases enviados por gravadoras, produtores culturais e assessores de imprensa.
Quando a indústria fonográfica utiliza as classificações de gênero para tornar o processo
mercadológico mais eficiente, ela, na verdade, está assumindo que há uma relação
negociável entre o rótulo musical e o gosto dos consumidores.
Os gêneros musicais não descrevem somente quem são os consumidores
potenciais, mas o que esses produtos significam para eles. Os críticos de música
geralmente descrevem os discos a partir de paralelos com outros intérpretes e/ou
sonoridades, o que significa que, para a crítica, rotular através dos gêneros implica
em comparações, ou seja, conhecimento histórico e genealógico. Não por acaso,
“rótulos genéricos” estão entre as ferramentas essenciais da prática crítica. Como
podemos verificar nos exemplos abaixo, a catalogação do álbum e/ou intérprete
pretende organizar o próprio processo de audição do consumidor. No caso, uma
banda quase desconhecida, “Pullovers”, é apresentada ao leitor da Revista Zero através
de um percurso que permite imaginar qual é a sonoridade da banda, e seu gênero
implícito, o indie rock. É quase como colocar a audição como um complemento da
“rotulação genérica”:
Cantando em inglês e despejando uma série de novos hits undergrounds
em potencial, o Pullovers carimba seu passaporte definitivo para o seleto e
minúsculo rol das grandes bandas nacionais dos anos 00. Os músicos
paulistanos ainda amplia o leque de influências dos bons sons. Fãs
confessos de Pavement e Sonic Youth, respectivamente no vocal desleixado
e nas guitarras furiosas, os Pullovers ainda esbarram na tangente de Guided
By Voices, Vaselines (há o dueto entre Luiz e a baixista Ana Carolina em
várias faixas!), Superchunk, fase On the Mouth, psicodelismo e Lou Reed
34
Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita
pós-Velvet.Grande disco para um pequena grande banda nacional (Smith,
2003, p.53).
Já no caso de um gênero mais conservador, em relação às misturas e
inovações, como o heavy metal, nota-se, já no início da crítica, referências diretas e
precisas aos subgêneros e as bandas que caracterizam o percurso do grupo brasileiro
South Cry, cujo próprio nome remete a um gênero musical (rock sulista): “Hard rock
setentista, com ecos de Grand Funk e rock sulista em geral (Lynyrd Skyrnd, 38
Special, etc.) misturado com muitas citações de stoner rock e stoner metal , é o que
vem no disco de estréia dessa grata surpresa chamada chamada South Cry”
(MONTEIRO, 2003, p.30).
Não é difícil notar que os exemplos escolhidos tratam de bandas novas
e/ou desconhecidas, o que tornaria o exercício comparativo praticamente inevitável.
Mas uma rápida olhada nas críticas de álbuns de intérpretes famosos nos mesmos
números de Zero e Rock Brigade permite notar que a comparação se mantém, só que,
nesse caso, o exercício valorativo é centrado na própria obra dos músicos, já que se
supõem que as questões de gênero, nos casos citados abaixo, já estão “enraizadas”:
Depois da decepção com Strange Little Girls (2001), uma coleção de covers
atípica da dona da voz mais emocional dos EUA, a torcida era grande por
um lançamento que lembrasse mais discos cheios de raiva e amor, como o
maravilhoso Little Earthquakes. Ao saber que o próximo lançamento de
Tori Amos – Sacarlet´s Walk – era uma ‘história’ em forma de música sobre
seu país natal após a tragédia de 11 de setembro (quem ainda aguenta esse
assunto?), perdi as esperanças. (Mitchelle, 2003, p.54).
Pra começar, que fique claro: O Deep Purple jamais vai gravar outro disco
como Machine Rock ou In Rock. Os tempos são outros, os caras já estão
sessentões e, mais importante, eles já gravaram esses discos. Então, apesar
de a comparação ser inevitável como tudo na vida, é um princípio errado ter
álbuns como esses na mente na hora de se ouvir o mais novo disco do
quinteto, que leva o estranhíssimo nome de Bananas. (Monteiro, 2003,
p.28).
Como se pode perceber nas criticas musicais, a idéia dos gêneros
na música popular massiva está ligada a vários processos de mediação presentes no
consumo musical, mas que desde já, mostra-se muito mais complexo do que sua
conexão com a exploração comercial dos gêneros pelas grandes indústrias de
comunicação. Em meio a esse processo, por exemplo, não se pode esquecer que o
florescimento de gêneros musicais entre fãs, produtores, músicos e críticos estão,
muitas vezes, ligados a uma espécie de senso de exclusividade, conhecimento e
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.31-46
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familiaridade com uma espécie de “arqueologia musical”. De fato, pode-se até pensar
que um gênero musical só é claramente definido (tem todos os seus segredos revelados)
no momento em que cessa de existir, no momento em que não é mais exclusivo.
Na maioria dos produtos midiáticos que trabalham com esse senso de
exclusividade, como parece ser o caso de grande parte dos gêneros de rock e da
música eletrônica, a autenticidade acaba se tornando um valor crítico fundamental.
De acordo com Frith:
Para as pessoas que estudam gênero, as questões são retrospectivas: como
essas decisões foram tomadas, o que esses discos tinham que permitiu
serem rotulados do mesmo modo, o que eles têm em comum? As repostas
são muito mais formais: blues ou punk ou rock progressivo são descritos
em termos da linguagem musical que eles empregam, discos são excluídos
de suas definições porque não se adaptam tecnicamente – possuem a
estrutura, batida ou orquestação erradas. (FRITH, 1998, p. 89).
Os prazeres proporcionados pela música popular massiva, os valores,
gostos e afetos que ela comunica, em geral, estão relacionados com “estórias” que
elas contam sobre os consumidores potenciais dos diversos gêneros que compõem o
cenário do consumo musical na cultura contemporânea. Assim, quando examinamos
o modo como os elementos musicais produzem sentido (o som, a voz, as letras, o
ritmo), nós não podemos deixar de relacioná-los com os códigos de gênero: os prazeres
da cultura popular massiva são prazeres inscritos (parcialmente) nos gêneros midiáticos.
Diante do que foi apresentado até agora, pode-se perceber que quando
falamos de gênero no âmbito da música popular massiva, estão em jogo aspectos
mercadológicos, sociológicos e semióticos; assim, é possível realçar três campos
fundamentais para a análise da música popular massiva:
1- Regras econômicas que envolvem as relações de consumo (e os
endereçamentos presentes nesse circuito) nos processos de produção, difusão e
audição do produto musical.
2- Regras semióticas que abarcam as estratégias de produção de sentido
e às expressões comunicacionais do texto musical, além da conformação de valores
ligados ao que é considerado autêntico em detrimento da música “cooptada”, ao
modo como as expressões musicais se referem a outras músicas e como diferentes
gêneros trabalham questões ligadas aos modos de enunciação, às temáticas e às letras.
3- Por último, e não menos importante, regras técnicas e formais; como
convenções de execução do punk ou do rap, habilidades que cada gênero pressupõe
dos músicos, quais instrumentos são necessários ou tolerados, ritmos, alturas sonoras
nas relações entre voz e instrumentos, entre palavras e música.
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Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita
O principal problema do modelo de abordagem dos gêneros musicais
aqui esboçado está ligado ao fato de que as “regras genéricas” parecem fixar
determinadas fronteiras, quando na maioria das vezes, os gêneros, e a difusão de
diversos subgêneros no heavy metal e na cena eletrônica parecem comprovar essa
hipótese, estão em constante mutação. Os gêneros não são demarcados somente pela
forma ou “ estilo” de um texto musical em sentido estrito e, sim, pela percepção de
suas “formas” e “estilos” pela audiência através das perfomances pressupostas pelos
gêneros. Daí a afirmação de que todo gênero pressupõe um consumidor potencial.
Ainda de acordo com Frith (1998), para se mapear um gênero musical deve-se estar
atento para o seguinte percurso: convenções sonoras (o que se ouve), convenções de
performance (o que se vê), convenções de mercado (como uma música é embalada)
e convenções sociais (quais valores e ideologias são incorporadas em determinadas
expressões musicais). Isso significa que as mercadorias, os produtos musicais, só
estão aptos ao consumo porque elas carregam consigo sentidos potenciais, ou seja,
porque músicos, produtores, distribuidores, críticos e consumidores estão entrelaçados
em uma rede de expectativas presentes nos gêneros musicais. Compreender a estética
da música popular massiva é compreender também a linguagem na qual julgamentos
de valor são articulados e expressos e em que situações sociais eles são apropriados.
Assim, parte da comunicação dos sentidos e valores expressos pela
música popular massiva estão inscritas na codificação de gênero, ou seja, os gêneros
musicais, determinam, em parte, diferentes tipos de julgamentos estéticos,
competências diferenciadas para que se construam determinados quadros de valor
em relação a certas expressões musicais.
PERFORMANCE E CORPO
Um dos campos privilegiados para se abordar a materialidade do sentido
na música popular massiva é a observação das performances que envolvem não só a
configuração dos gêneros musicais, bem como as características individuais dos
diversos intérpretes. Nesse sentido, a performance aponta para uma espiral que vai
das codificações de gênero às especificidades da execução musical. Esse percurso
minimizaria em parte a idéia de que os gêneros seriam pré-determinantes no processo
de produção de sentido da música popular massiva. Assim, parte-se do pressuposto
de que a performance envolve não só a execução e a participação da platéia nos
shows, bem como videoclipes e o próprio ato privado de ouvir música. Mesmo que
de maneira virtual, a performance está ligada a um processo comunicacional que
pressupõe uma audiência e um determinado ambiente musical. Assim, a performance
define um processo de produção de sentido e conseqüentemente, de comunicação,
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.31-46
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que pressupõe regras formais e ritualizações partilhados por músicos e audiência,
direcionando certas experiências frente aos diversos gêneros musicais da cultura
contemporânea. Os corpos presentes em uma performancce não envolvem somente
tensões entre aspectos subjetivos e objetivos (máscara, persona), mas também,
conflitos que envolvem o que é público e o que é privado; como a tradicional imagem
do fã de heavy metal tocando sozinho em seu quarto uma guitarra iamginária (“air
guitar”). As performances produzem sentido quando conectadas de alguma forma
ao cotidiano, mas as performances se caracterizam, justamente, por revelar algo
estranho ao cotidiano, como, por exemplo a dança e a partida de futebol.
Não por acaso os atos performáticos da música popular massiva estão
diretamente conectados ao universo dos gêneros. Ser um astro do cenário heavy
metal ou da música eletrônica exige relações com a audiência que seguem as
especificidades dessas expressões musicais. Do mesmo modo que uma canção é ao
mesmo tempo a música e sua respectiva performance, a audiência não consome
somente as sonoridades, bem como a performance virtual inscrita nos gêneros. A
relação entre ouvir música e responder corporalmente a determinada sonoridade é
uma questão de convenções que, muitas vezes parecem “naturalizadas” pelos
consumidores de um gênero.
Toda expressão musical da “cultura pop” indica modos de específicos
de corporificação, que incluem, claro, determinados modos de dançar. Dança aqui
não significa somente uma expressão pública de certos movimentos corporais diante
da música e, sim, a corporificação presente na própria música, mesmo para os gêneros
musicais que pressupõem uma audiência passiva em termos de movimentos corporais.
Quando dançamos (pelo menos em se tratando de danças codificadas socialmente),
sujeitamos os movimentos de nossos corpos a regras musicais, o que revela um
senso físico da produção de sentido diante da música. Dançar, como demonstram as
danças de uma rave ou o break, é um modo codificado de processar a música.
Mas, para se tentar ir um pouco mais longe deve-se chegar ao intérprete
e questionar: qual a voz que canta (ou fala)? Ou no caso de alguns subgêneros da
música eletrônica: qual os corpos que tocam e dançam a música? Quem está tocando,
falando e/ou cantando?
A perfomatividade da voz ou do ato de “tocar” descrevem um senso de
personalidade, um modo peculiar de interpretar não só determinada música como as
próprias convenções de gênero, um modo característico de corporificação das
expressões musicais. Assim, a vocalização e a interpretação de uma certa canção são
“encorporações musicais”. Ouvir música é “encorpar” não só as vozes, bem como
os instrumentos harmônicos e percussivos. Só para citar um exemplo, vozes masculinas
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Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita
e femininas, mesmo quando interpretados a mesma canção, são definidas de maneira
estrutural, como sons ouvidos de maneira interdefinida com outras sonoridades que,
nesse caso, não estão, necessariamente restritas ao campo musical. Nós ouvimos e
vivenciamos vozes masculinas e femininas, e suas respectivas “corporificações”, de
acordo com nossas preferências e prazeres. Esses processos de produção de sentido
também dependem de determinadas institucionalizações. Isso nos permite pensar que
além das questões que envolvem a corporificação do feminino e do masculino nas
expressões musicais da cultura popular massiva, deve-se atentar para outros aspectos
como a idade, a etnicidade e as classes sociais, fatores que, se em um primeiro
momento parecem exteriores ao campo musical, acabam sendo incorporados como
partes importantes das expressões musicais.
DA ANÁLISE
O segundo CD solo de Marcelo D2, vocalista do grupo de rock Planet
Hemp foi lançado pela Sony Music em 2003 e chama-se “À procura da batida perfeita”.
Basicamente todas as faixas podem ser enquadradas no gênero musical rap, apesar
da peculiaridade do disco que desde o título até a sonoridade procura um diálogo
intertextual com o samba. Vale lembrar que apesar do gênero rap está intimamente
associado ao movimento hip hop, dificilmente os integrantes desse grupo aceitariam
Marcelo D2 como um membro do hip hop2 devido a alguns fatos estruturais como o
contrato com exposição massiva de sua personalidade e dos videoclipes, bem como,
talvez, pouca inserção no cotidiano desse movimento. De qualquer modo , a audição
do CD deixa claro sua relação com a musicalidade rap.
Uma das características essenciais do gênero rap é a tensão permanente
entre o local de origem de seus intérpretes, a vida dura nos guetos e favelas, e a
visibilidade que alcançada, sendo que hoje vários cantores de rap frequetam
regularmente as paradas de sucesso nos EUA. Isso acabou criando um estado de
conflito permanente entre a idéia de autencidade vs cooptação. Um outro ponto polêmico
do rap está intimamente associado à misogenia que alguns rappers expressam em
canções e atitude. Mas, sem sombra de dúvidas, parte do sucesso do gênero está
ligado ao modo como o rap serve de veículo engajado para a expressão de insatisfação
dos jovens , em geral negros, da periferia em relação às dificuldades e durezas do
cotidiano nos guetos das grandes cidades. O surgimento da cultura hip hop é creditado
ao músico Afrika Bambata que na década de 70 formou o grupo “The Zulu Nation”
como uma tentativa de canalizar a raiva dos adolescentes do Bronx diante do processo
de realocação de casas e ruas previstos no plano de reurbanização de Nova Iorque.
Em um primeiro momento, a falta de condições econômicas e técnicas
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.31-46
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para se tocar um instrumento tradicional como guitarra, baixo e bateria, acabou gerando
uma qualidade urbana única ao rap, a reinvenção da música à partir de bases prontas
de antigos discos de vinis, dando ênfase desse modo à figura do DJ (Disk Jockeys)
não mais como aquela/aquele que toca música, mas que a reinventa para o “proseado
melódico” do rapper. De uma maneira generalista, pode-se dizer que Rap é um modo
de expressão musical ligado à poesia oral tendo como base um ritmo criado sobre
uma batida 4/4 tocada de modo reiterativo. Essa batida é forjada no encontro da
mixagem dos vinis com as bases rítmicas. O DJ acabou se afirmando na cultura
musical contemporânea como um músico bricoleur.
Outro ponto que merece ser destacado na trajetória do rap são seus
aspectos cosmopolitas, talvez devido a sua gênese e sua base tecnológica, a sonoridade
rap está intimamente ligada à arquitetura urbana das grandes cidades, tanto que hoje,
ninguém se surpreenderá se encontrar como trilha sonora das favelas cariocas ou dos
guetos norte-americanos uma base rap, pelo contrário, essa parece ser um caminho
sonoro já assimilado pelo imaginário musical contemporâneo. Só que esses aspectos
cosmopolitas não significam, necessariamente, abrir mão das particularidades sonoras
e linguísticas presentes nas apropriações locais do rap. Ao contrário de gêneros musicais
como o heavy metal ou o psychobilly, as diversas apropriações do rap ao redor do
globo, como na França, no Quebec ou em Cuba, alimentam-se da língua e das gírias
locais, criando modos característicos de corporificar um gênero musical globalizado.
Isso não quer dizer que gêneros que se valem da língua inglesa, independentemente
do local em que se manifestam, não se valem de negociações com a cultura local e,
sim, que no rap esse é um fator essencial, ressaltado pelas diferentes línguas que são
utilizadas ao redor do globo.
Uma rápida olhada pela capa do segundo CD de Marcelo D2 permite ao
ouvinte inferir que se trata de um produto que procura estabelecer relações entre uma
tradição musical e os elementos cosmopolitas do rap. Não há delongas, além do
desenho estilizado do rosto de Marcelo D2, observa-se um pandeiro, uma cuíca, um
atabaque, uma pick up (toca-discos) e uma mesa de som. Isso sem contar todo apelo
gráfico do universo “grafiteiro”, que como já foi sublinhado é parte integrante da
cultura hip hop. O CD traz inclusive uma sobrecapa que pode ser utilizada como uma
máscara3 para se “grafitar o logotipo D2. A parte de traz da sobrecapa traz ilustrações
explicativas em quatro etapas sobre o modo de utilização da máscara. Outro aspecto
que merece destaque na parte gráfica é a ilustração do personagem pertencente ao
grupamento hip hop na contracapa que, além de estar aplicando a máscara para
“grafitar”, é imediatamente reconhecido pela mochila e o “moletom” com capuz
característico da vestimenta utilizada pelos fãs da sonoridade rap.
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Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita
Para a análise musical optou-se pela faixa 3 “VaiVendo” 4, como toda
seleção de material para análise, a escolha possui traços arbitrários. Pelo menos em
teoria todas as 11 faixas dos CDs poderiam ter sido analisadas em suas especificidades.
Mas como a audição do CD demonstrou que quase todas as canções tratam do encontro
entre a batida do samba e a levada rap, a escolha de “Vai Vendo” é justificada por ser
uma canção em que essa temática e os diálogos entre elementos da sonoridade rap e
do samba são utilizados como leitmotiv dos sons e das letras.
(…) a canção vai além de todas estas linguagens e informações específicas,
realizando-se como um artefato cultural que não é nem música, nem poesia
(nos sentidos tradicionais), nem pode ser reduzida a um reflexo singular de
totalidade que a gerou (da sociedade, da história, do autor ou do estilo
musical). (NAPOLITANO, 2002, p.97)
Logo na introdução da canção nota-se o percurso tenso e dialógico que
irá caracterizá-la. No caso, a voz de um sambista, com a ambientação sonora de uma
roda de samba apresenta Marcelo D2, que, por sua vez, apresenta a canção, que,
assumindo a postura do MC (Mestre de Cerimônias) de rap anuncia: “vocês estão
prontos para um ´rolé`?(…)Um rolé por qualquer banda, do hip hop ao samba”. Em
termos sonoros a contraposição, ou sobreposição, da batida tradicional do samba em
uma garrada com a batida 4/4 direta do rap fornece o corpo rítmico da canção. Não
é difícil notar que os referidos “Versos à procura da batida perfeita” que abrem a
canção, citando o título do álbum, explicitam o encontro entre rap e samba. A própria
voz de Marcelo D2, sonoridade rapper, masculina, incorpora uma espécie de
malandragem de rua, poesia oral característica tanto do samba, bem como da cultura
hip hop. A voz de Marcelo D2 transforma-se em um instrumento musical, uma mídia
que expressa um corpo afro-brasileiro estabelecido na tensão entre o local (samba) e
o global (rap). A repetição de uma base “funkeada”, próxima ao chamado “sambarock”5 , oferece um alívio melódico em relação à repetição que caracteriza a expressão
vocal do rap, marcada por melodias quase faladas , reforçadas pela base rítmica.
Em termos sonoros as estrofes reiteram a base rap enquanto o refrão
sugere um alívio, uma pausa para “respirar” anunciada pelo naipe de metais sampleado.
Em termos gerais pode-se perceber que “Vai Levando” é caracterizada pela polifonia
e pela repetitividade característica dos cenários urbanos contemporâneos.
A letra é um jogo constante entre a “incorporação” e “excorporação”
das sonoridades, da ambientação e da tensão que caracterizam o encontro rap/samba6 .
“Pau que nasce torto se endireita” e a citação e o reconhecimento da família de
Marcelo D2 são expressões da bipolaridade “força de vontade vs meio ambiente”. O
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predomínio do “querer” é reiterado na transcedência do meio “Nem Mané Galinha,
nem Zé pequeno” (personagens ligados ao tráfico no filme Cidade de Deus). Uma das
características do rap, e também comum no samba de roda, é a nomeação de quem
está falando, “Marcelo D2 boné ou cabelo black”, localizando não só quem fala,
como também a vestimenta e a filização à cultura negra. Tal como no samba tradicional,
o rap também valoriza a citação de sua linhagem. Assim, Vai Levando mistura desde
nomes tradicionais do samba, “Candeia”, intérpretes contemporâneos “Seu Jorge”,
com o “personalidades” do rap, “De Mos Def a Bambatta”. Reconhecendo os traços
comuns que caracterizariam a improvisação e a “versificação” dos encontros de rappers
e de sambistas: “Partideiros, repentistas, versadores”. Mas esses encontros
permanecem tensivos, tal como foi apontado na base rítmica e melódica, o refrão
reforça que Marcelo D2, aquele que personifica esse encontro, sente-se deslocado:
“Eu vim com o pesadelo do Pop”, o não-reconhecimento e a desconfiança da cultura
hip hop, afinal além de elementos “pop” como o refrão, Marcelo D2 é contratado de
uma mega-gravadora, a Sony Music. Por outro lado, a letra também expressa a
desconfiança dos sambistas em relação ao universo rap: “Eu sei que no samba eu
represento o hip hop”. Esse corpo em trânsito é reforçado pela referência ao local que
se desliga do peso excessivo da tradição, traço configurado na citação de duas
importantes estações de trem no Rio de Janeiro e em Nova Iorque: “ Da Central do
Brasil à Penn Station”, dando idéia de trânsito e interconexão. Desse modo, a mistura,
o tensivo e a bricolagem acabam sendo reconhecidos como “positividades”, realçando
a mistura entre a tradição e a novidade: “Não tem parada que não pode”.
“Vai Levando” dá expressão a um corpo que transita pelo ritmo constante
e aberto configurado na processualidade dos sons percussivos e da base rap. Assim,
a canção apresenta uma “narratividade” que remete tanto ao rap como à inspiração da
tradição, “No samba de raiz onde eu me inspiro e posso buscar, minha rima e até meu
iaiá iaiá”. A melodia acaba se apresentando como a possibilidade de expressão dos
paradoxos e potenciais das tensões e apropriações entra os traços globais e locais.
“Come down the selector”, as misturas de linguagens e sonoridades se transformam
em possibilidades de vivências no tecido cosmopolita.
Desse modo, o caminho em espiral que vai da caracterização dos gêneros
da música popular massiva à produção de sentido localizadas na análise de uma canção
específica indica que parte do prazer do consumo musical está diretamente ligada ao
modo como jogamos com as estratégias textuais “genéricas”, ao modo como
respondemos às sonoridades e às vozes que nos são endereçadas (discordando,
concordando ou desautorizando). Mas, também, nas negociações que envolvem à
incorporação dessas “vozes”: cantando sozinho, gritando com a audiência e/ou
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Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita
respondendo corporalmente.
Há um jogo entre o corpo presente no gênero e sua “corporificação”
particular, entre o personagem que protagoniza a canção, os personagens citados
implicitamente e o próprio endereçamento do produto musical. Na análise da música
popular massiva trabalha-se com camadas de interpretação, textualidades que se
sobrepõem. As canções constituem expressões que envolvem o corpo, o aparato
técnico-midiático, a performance e os personagens envolvidos nesse jogo. Assumindo
a complexidade desse processo, o pesquisador estará apto a reconhecer tanto os
limites do trabalho interpretativo, bem como a importância desse processo para a
compreensão de uma dimensão importante de nossas vivências diante da comunicação
e cultura contemporâneas.
JEDER SILVEIRA JANOTTI JR é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia e autor do livro Aumenta Que Isso Aí É
Rock and Roll: mídia, gênero musical e identidade (Editora E-Papers, 2003).
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NOTAS
1. MARCELO D2. À Procura da Batida Perfeita. Sony Music, 2003. 1 CD.
2. Além de uma forte ligação com ONGs e movimentos sociais o
movimento hip hop, surgido inicialmente no Bronx em Nova Iorque, está ligado a
quatro elementos básicos: o break (a dança de rua), os MCs (Mestres de Cerimônia)
– os cantores e agitadores do rap, os DJs – ou seja, os que tocam as pick ups e os
grafiteiros; na visão dos participantes dos movimento esses quatro elementos seriam
formas de inserção dos negros em atividades culturais ligadas ao meio-ambiente de
pouco poder aquisitivo de onde surgiu o hip hop.
3. Recorte vazado, muito utilizado com filmes de raio X, que quando
apoiados sobre uma superfície permite que o grafiteiro aplique o spray sobre a base,
fixando somente os dizeres ou desenhos vazados.
4. Faz-se necessário realçar a audição da música para a compreensão
do processo analítico aqui apresentado.
5. Espécie de apropriação brasileira de elementos do funk norteamericano dos anos 70 misturados às batidas locais. Entre os músicos que mereceram
esse rótulo, pode-se destacar Jorge Ben Jor, Trio Mocotó e Gerson King Combo.
6. “Versos a procura da batida perfeita/ Eu sei que pau que nasce torto
se endireita/ E eu exemplo vivo continuo na luta/ Graças ao Stephan , Lourdes e
Luca/ Eu tô ligado na parada e sem crocodilagem/ Safado é safado de humilde a
maladragem/ Nem Mané Galinha e nem Zé pequeno/ Eu sô aquele que cê sabe o nome
e vai vendo/ Marcelo d2 boné ou cabelo black/ não sei se o beck que me fuma ou sou
eu quem fuma o beck/ md2 é a sigla que vem no tag/ não sei se sirvo o rap ou o rap
é uem me serve/ fruto do andar criado na lapa/ do Seu Jorge a Candeia de Mos Def a
Bambataa/ Declaro meu respeito a todos os rimadores/ Partideros, repentistas e claro
os versadores/ Porque quem versa versa não fica de conversa/ E se tem pressa rima
melhor porque se estressa/ E a minha é dessa saca só saca só/Falei que eu vim com o
pesadelo do pop/ Eu sei no samba represento o hip hop Um bom partideiro só chora
versando/ vai da água para o vinho e não fica se lamentando/ À procura da batida
perfeita eu continuo rimando/ burn bay burn eu continuo queimando/ saca só todo
mundo que eu não vou repetir/ Intelecto de rua pronto pra se divertir/ E aproveito
cada instante ccom o ar que eu respiro/ Sagacidade e sem precisar resolver no tiro/
Da Central do Brasil à Penn Station/ Os mandantes que eu sigo são do Zulu Nation/ E
mesmo que não me deixem e ainda que se queixem/ As portas que se abrem cumpadi
nunca mais fecham/ No samba de raiz onde eu me inspiro e posso buscar /Minha rima
e até mesmo meu iaiá iaiá/ Não tem parada que não pode então saca só cumpadi (…)”
44
Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita
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Jeder Silveira Janotti Jr - À procura da batida perfeita
Data de recebimento do artigo: 28/11/2003
Data de aceitação do artigo: 10/12/2003
Notas para se pensar as relações
entre Música e Tecnologias da Comunicação
Simone Pereira de Sá e Leonardo de Marchi
No presente ensaio, pretendemos apresentar reflexões oriundas da
pesquisa em desenvolvimento Música Eletrônica, Tecnologias da Comunicação &
Dinâmicas Identitárias1 , buscando definir alguns pressupostos do trabalho.
Não por acaso, a música eletrônica 2 tem sido apontada como um
fenômeno típico do que os acadêmicos chamam de cibercultura. Ainda que não nos
distanciemos dessa afirmação, discutiremos primeiramente as diferentes perspectivas
sobre esta noção, situando-nos dentro deste contexto.
Nosso outro foco de interesse é o que chamamos de dimensão
comunicativa da música brasileira. Nele, apresentamos um breve mapeamento da
produção acadêmica sobre o tema da música popular brasileira, com o objetivo
específico de discutir como o aspecto da comunicação na música tem sido tratado –
ou melhor, tem sido ignorado - pelos estudiosos.
Se os dois primeiros momentos do texto são marcados pela exposição
dessas premissas, no terceiro explicitamos as hipóteses de nossa abordagem da música
eletrônica, apontando algumas questões que este objeto empírico permite-nos articular
com as temáticas anteriormente apresentadas. Ainda que brevemente, apontaremos
para aspectos das diversas apropriações tecnológicas que os artistas desse estilo de
música promovem e como eles efetivamente se relacionam com a Indústria Cultural,
seja alterando os “tradicionais” padrões de produção, circulação e consumo, seja
negociando a influência midiática na construção dessa música como estilo musical.
Enfim, trata-se de um trabalho que explora, de forma ensaística, as
possibilidades de se pensar as relações entre música e comunicação no Brasil, a partir
de um estudo de caso.
MÚSICA E NOVAS TECNOLOGIAS DA COMUNICAÇÃO
Tornou-se freqüente relacionar a música eletrônica com o
desenvolvimento das tecnologias digitais, designando aquela como um típico fenômeno
da cibercultura (Lévy, 1999). Ainda que também consideremos esta articulação
relevante, interessa-nos aqui distinguir diferentes abordagens acerca da cibercultura.
Primeiramente, buscamos nos afastar de certa perspectiva marcada por
uma abordagem determinista, utópica, de matriz técnico-libertária, que entende a
comunicação medida por computador como a base de um novo espaço público em
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.47-59
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que se reconfiguram e otimizam as interações sociais, criando um ambiente propício
à troca, à reciprocidade, à criação de laços afetivos. Nesse ambiente informacional
descentralizado e rizomático, relações mais democráticas entre todos os indivíduos
emergiriam “naturalmente” tão logo todos possam, sem prévia restrição, produzir e
fazer circular informação. Conseqüentemente e/ou ao mesmo tempo, as sociedades
tenderiam à conexão generalizada através das redes telemáticas, onde tudo e todos
atuam no projeto de construção de uma inteligência coletiva (Lévy, 1993; 1999). Em
poucas palavras,
A cibercultura é a expressão da aspiração de construção de um laço social
que não seria fundado nem sobre links territoriais, nem sobre relações
institucionais, nem relações de poder, mas sobre a reunião em torno de
centros de interesses comuns, sobre o jogo,sobre o compartilhamento do
saber, sobre a aprendizagem cooperativa, sobre processos abertos de
cooperação. (Lévy, 1999; 130).
Aqui, a estrutura de comunicação em rede é entendida como fundante
de uma nova forma de relação social necessariamente mais lúdica, horizontal,
democrática e participativa.
Contrariando este argumento, estudos pontuais (Castells, 1999; Sá, 2001)
demonstram que o ciberespaço engloba diferentes e conflitantes grupos sociais e
formas de expressões que ultrapassam (por vezes, rejeitam) o projeto de bem comum
– seja aquele representado pela noção de inteligência coletiva (Lévy, 1993; 1999) seja
nos termos de um espaço público ampliado de matriz habermasiana. Desta forma,
ainda que acreditemos que as novas tecnologias da comunicação possam reconfigurar
aspectos da sociabilidade do mundo contemporâneo, cabe distinguir esta premissa da
perspectiva anterior, que articula as novas tecnologias a um projeto de sociedade
democrática, com valores que representam mais elementos ideais do que efetivos e
possíveis na rede3 .
Há ainda, no extremo oposto, teorias que tratam de forma apocalíptica
os “efeitos” e “impactos” das tecnologias digitais na vida social contemporânea,
enfatizando aspectos como a radicalização da sociedade de controle, nos termos
deleuzianos; da realidade manipulada digitalmente; das inferências no corpo humano
no sentido de controlá-lo melhor. Por mais que apresentem interessantes discussões
e contrapontos ao argumento anterior, esses trabalhos compartilham o problema de
seus antagonistas “integrados” – uma super-valorização dos atributos tecnológicos
em detrimento da concretude das relações sociais.
Outra vertente de estudos sobre as tecnologias do virtual define a
cibercultura como um “dado”, ou como o principal elemento estruturante da sociedade
48
Simone Pereira de Sá e Leonardo Marchi - Notas para se pensar as relações entre música e tecnologias da comunicação
contemporânea.(Lévy; 1999; Trivinho, 2003). Desde então, a cibercultura estaria
estruturando todo o funcionamento social, político e econômico do sistema capitalista.
Em suma, entende-se que a cibercultura nomeia a macroconfiguração de época que,
manifesta desde (pelo menos) as três últimas décadas, implica e articula tanto o
arranjamento societário ao nível da infra-estrutura tecnológica quanto a atmosfera
simbólica, imaginária e comportamental correspondente a fase da história do capitalismo
organizada e permanentemente modulada a partir do, com base no e através do
processo extensivo e irreversível de informatização das práticas e relações sócioculturais, de virtualização dos objetos e corpos e de ciberespacialização do território,
em escala local, nacional e mundial. (Trivinho, 2003; 61).
Apesar do notável esforço desses estudiosos para compreender as
transformações que as tecnologias digitais têm promovido na vida econômica, política
e social, essa visada tende a perceber toda expressão da cultura contemporânea como
encompassada pelas tecnologias digitais, tratando dos mais distintos fenômenos sociais
como resultantes da cibercultura. Nesse caso, ainda, a noção de cibercultura torna-se
questionável, pois reificada e compreendida de forma substantiva.
Ambas as abordagens trazem consigo, ainda que em graus diversos,
um ponto em comum que obscurece uma discussão mais detida sobre a questão
tecnológica. De fato,
Nessas análises, a inovação técnica é apresentada como uma causa de
melhoria social e liberação política e intelectual, uma fuga histórica da antiga
mídia repressora. (…). As forças ideológicas que cercam novas tecnologias
produzem uma retórica de novidade, diferenciação e liberdade que funciona
para ocultar a semelhança estrutural entre mídias superficialmente
heterogêneas. (Aarseth, 1997; 14).
Em contraponto a estas posições, nossa perspectiva remete a idéia de
cibercultura primeiramente à noção de cultura, na tradição interpretativa da antropologia,
como um conjunto de valores, crenças, formas de pensar de um grupo, entendidos
na sua lógica simbólica. Desta forma, a cibercultura não é um mundo acabado e ideal;
é antes o conjunto do emaranhado de códigos múltiplos e plurais, fruto de um constante
apropriar e refazer social através das redes digitais, cujas “teias de significados” –
conflituosas, intrincadas, heterogêneas - cabe ao pesquisador desvendar. (Geertz,
1998).
Além disto, interessa-nos particularmente interpretar a questão tecnológica
a partir da dinâmica entre meios, indagando como um meio – ou tecnologia – reconfigura
experiências anteriores. Nesse sentido, remetemo-nos ao trabalho de Bolter & Grusin
(2000) em Remediation4 . Nesse texto, os autores questionam a aura de inovação que
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.47-59
49
os estudos sobre as novas tecnologias imprimem em suas análises, caracterizando
uma abordagem que sempre menospreza as possibilidades tecnológicas e sociais das
mídias tradicionais. Com efeito, Bolter & Grusin percebem toda nova tecnologia em
profundo diálogo, dívida e desafio às antigas. Dessa forma,
As novas mídias estão fazendo exatamente o que suas antecessoras fizeram:
apresentando-se como versões remoldadas e melhoradas de outras mídias.
A mídia digital visual pode ser melhor entendida pela forma como honram,
rivalizam e revisam pinturas em perspectiva linear, fotografia, cinema,
televisão e impressos. Nenhuma mídia hoje e, certamente, nenhum
acontecimento avulso da mídia, parece fazer seu trabalho cultural isolado
de outras mídias ou mesmo de outras forças sociais e econômicas. (Bolter
& Grusin, 2000; 65).
Além disso, apontam para os efeitos reformuladores que as tradicionais
tecnologias adquirem no novo contexto criado. Em outras palavras,
O que a nova mídia traz de novo são as formas particulares através das
quais elas remoldam mídias antigas e a forma com que as mídias antigas se
reinventam para responder aos desafios da nova mídia. (Bolter & Grusin,
2000; 65).
Esse processo, os autores denominam remediação e o percebem, de
certa forma, como característico da história da inovação tecnológica dos suportes,
tão logo, para eles, toda nova mídia é pensada e representada como, por um lado, em
continuidade e por outro desafiando as tecnologias em voga num determinado momento.
A partir destas observações, interessa-nos compreender o estudo
da cibercultura como um contínuo e plural processo de inovação e reapropriação
tecnológica, cujo desenvolvimento remonta ao diálogo com boa parte da história
das tecnologias da informação e da comunicação. Assim, pretendemos afastar
quaisquer determinismos tecnológicos e entender como as inovações são inscritas
na história.
A DIMENSÃO COMUNICATIVA DA MÚSICA BRASILEIRA
No caso da sociedade brasileira, a música popular tem uma importância
capital como instrumento de dramatização da vida política, dos valores
sociais, dos papéis sexuais, do poder, dos infortúnios, da morte e da doença,
do amor, do ciúme, da vingança e da indiferença, do trabalhador, da boemia
e da malandragem, da cidade e do campo. Importância que, nas sociedades
burguesas tradicionais, é desempenhada pela literatura. Basta mencionar
um tema para encontrar uma canção popular que o comentou – e o fez com
inteligência e sofisticação, pondo em foco e/ou relativizando algumas de
suas verdades.
50
Simone Pereira de Sá e Leonardo Marchi - Notas para se pensar as relações entre música e tecnologias da comunicação
A citação acima, extraída da análise de Roberto da Matta (1981) sobre a
música de carnaval, reitera com precisão uma observação que não só intelectuais de
momentos distintos mas também o senso comum compartilham – o de que, no Brasil,
ao lado do futebol, a música popular é uma das principais expressões para a articulação
da identidade.
Mario de Andrade dizia ser a música a “criação mais forte e a
caracterização mais bela de nossa raça”, em Gilberto Freyre esta é a nossa “arte por
excelência”; Antônio Cândido, por sua vez, refere-se à música popular dos anos de
1960 como “um dos fatos mais importantes da nossa cultura contemporânea”; Jeffrey
Needell ressalta a “contribuição rica e difusa” da música do povo no período da belleépoque brasileira. (cit. in Vianna, 1999; 33)5 .
Alberto Ribeiro da Silva, em trabalho sobre a censura à MPB, referenda
este argumento ressaltando que,
No Brasil, a partir do fim dos anos 20, é impossível pensar a cultura das
camadas populares e médias urbanas sem que se dedique alguma atenção
à música popular. (Silva, 1994; 11).
Se estas fontes, dentre outras, ressaltam a relevância da música na cultura
e na sociedade brasileiras, intriga-nos a timidez com que os estudos relacionados ao
campo comunicacional têm explorado essa temática.
Num breve mapeamento da bibliografia produzida no país, podemse identificar duas principais vertentes. A primeira é constituída de obras escritas
por críticos musicais, jornalistas ou pesquisadores autônomos, cujas principais
preocupações residem em discutir, ou melhor, defender qualidades estéticas dos
gêneros, a partir da construção de linhagens, legitimação de movimentos, visando
inserir certas expressões na tradição da música popular brasileira (Máximo e
Didier, 1990; Cazes, 1998).
Ainda nessa linha de pesquisa, encontramos um certo tipo de produção
que poderíamos chamar testemunhal ou memorialista, uma vez que é constituída por
auto-biografias ou “retratos de época” narrados por aqueles que viveram ou tiveram
acesso a narrativas de momentos históricos importantes da construção da música
popular brasileira no século XX.
Especificamente, há uma expressiva produção que se caracteriza por
trabalhos engajados no “resgate” de personagens, estilos musicais e celebrações com
forte predominância de estudos sobre samba, carnaval e folclore. Em geral, essas
abordagens insistem no argumento da contínua deterioração estética da música popular
tão logo ela tenha entrado em contato com a Indústria Cultural. Paradoxalmente,
acredita-se que, por um lado, essa música caminha cada vez mais na direção da
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.47-59
51
espetacularização e, por outro, perde espaço para a importação de gênero estrangeiros,
que ameaçam as expressões genuinamente brasileiras (entre os muitos títulos
publicados, ver: Cabral: 1974; Carneiro, 1987; Silva et Alli: 1980; Tinhorão: 1969).
Nesta perspectiva, deve-se entender que predomina uma visão romântica
da música, na medida em que ela é considerada a expressão máxima da cultura popular,
que por sua vez é pensada no singular, de forma homogênea e a esta são atribuídas
características como pureza, comunitarismo, primitivismo e autenticidade (Cf: Burke,
1989), constantemente ameaçadas frente aos processos combinados de expansão do
capitalismo e da cultura de massas.
Sem desmerecer o importante esforço de preservação da memória cultural
resultante destas preocupações, esta ótica torna-se problemática ao essencializar o
fenômeno da música popular, apostando na sua cristalização e desconsiderando as
dimensões híbridas e metamórficas de sua construção (Vianna, 1999), que lhe dão
vitalidade e dinamismo.
Numa outra vertente geral, situam-se os trabalhos marcados pela
perspectiva das ciências sociais e/ou da historiografia, que se interessam
preferencialmente pelos aspectos rituais da música no Brasil, considerando-a como
um “fato social total” em que são articuladas ordens e categorias diversas da sociedade
brasileira.
Na análise do Carnaval – como “ritual de inversão” – conforme o clássico
estudo de Roberto de Matta (1981); nos estudos de caso que se ocupam de Escolas
de Samba específicas, tais como os trabalhos de Cavalcantti (1995) e Goldwasser
(1975); assim como nos ensaios que se ocupam de aspectos específicos das Escolas:
as letras de samba-enredos (Augras, 1992) ou as relações entre samba e jogo do
bicho (Chinelli & Machado; s.d.); da temática racial (Cavalcantti, 1990) ou das políticas
culturais que consolidam o samba nos anos de 1930 (Vianna, 1999), vamos encontrar
as reflexões críticas mais estimulantes.
Dialogando com esses autores, encontram-se ainda obras marcadas pela
pesquisa historiográfica, em que se busca apreender os “significados profundos” da
festa através do tempo e do espaço (Queiroz, 1992). Com o objetivo de dar conta do
movimento histórico, da multiplicidade de carnavais e seus significados para diferentes
grupos que deles participam (Pereira, 1994), estes trabalhos complementam e
enriquecem, de forma crítica, as análise anteriormente citadas.
Ainda que o conjunto dessa produção represente uma expressiva
contribuição para os estudos da música popular brasileira – seja na forma de
documentos seja na forma de reflexão crítica – ela contrasta, como já mencionamos,
com a parca produção existente no âmbito dos estudos comunicacionais brasileiros.
52
Simone Pereira de Sá e Leonardo Marchi - Notas para se pensar as relações entre música e tecnologias da comunicação
Ao contrário da bibliografia sobre o cinema, a imprensa ou mesmo a
televisão no Brasil – temas que consolidaram grupos de pesquisa nos diversos
programas de pós-graduação –, a dimensão comunicativa da música popular e de
seus produtos/suportes (disco de vinil, fita magnética, videoclipes, DVD, CDs, entre
outros itens de uma longa lista) continua quase inexplorada. Em outras palavras, as
relações da música popular no contexto da indústria cultural, da cultura de massas e
das tecnologias da comunicação e ainda suas relações no âmbito das esferas de
produção, circulação e consumo, permanecem como um território amplo e fértil,
ainda pouco explorado pela comunicação, a exceção de esparsos e preciosos trabalhos
(Herschman, 2000 ; Villaça, 2001; Janotti Jr, 2003 – entre outros).
O ASPECTO COMUNICATIVO DA MÚSICA ELETRÔNICA
No que concerne aos estudos sobre novas tecnologias da informação e
da comunicação, a música eletrônica nos interessa enquanto representativa de um
processo mais longo de intervenção tecnológica na produção musical – desde a invenção
de tecnologias de reprodutibilidade do som, da criação de uma indústria do
entretenimento e de novas experiências estéticas (Benjamin, 1994; Gitelman, 1999;
Sá, 2002) às reformulações que esse estilo musical vem imprimindo nesses padrões
(Shapiro, 2000; Reynolds, 1999; Sá, 2003a; 2003b).
Assim, percebemos a música eletrônica como expressiva da cibercultura
na medida em que aquela apresenta uma série de apropriações tecnológicas que
reconfiguram o tradicional sistema de produção, circulação e consumo de música.
Nesse sentido, cabe discriminar níveis distintos de debate.
O primeiro aspecto se liga à questão da produção musical. Chamou-nos
a atenção como os produtores e/ou disc–jóqueis (DJ) utilizam diferentes tecnologias
para produzir música, sem mesmo ter conhecimento musical técnico. Assim, a música
eletrônica é marcada pela incessante e rica reutilização de sonoridades e equipamentos
tecnológicos que não figuram – ou melhor, não figuravam – como típicos instrumentos
musicais.
Dessa forma, boa parte dos valores estéticos da música eletrônica se baseia
no emprego de tecnologias na busca de um “estranhamento” à tradicional percepção
musical e conseqüente ampliação de seus valores. Esses artistas encontram nas tecnologias
digitais artefatos altamente eficazes para apropriação e alteração de sons (sampling),
reorganização de sonoridades pré-gravadas (remixagem), formas de gravação musical
(estúdios virtuais) entre outras técnicas. Ao mesmo tempo, a música eletrônica está
completamente relacionada à cultura do DJ, que se caracteriza por retomar e transformar
“antigas” tecnologias – como os toca-discos, o vinil, sintetizadores e aparelhos de gravação
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.47-59
53
analógicos – em poderosas ferramentas de composição musical, conjugando alta e baixa
tecnologia numa música de ares futuristas.
É fundamental destacar como esse processo leva a cabo discussões
sobre os limites da indústria de música. O tema mais discutido está relacionado aos
direitos autorais da indústria fonográfica. Uma vez que a técnica básica de composição
da música eletrônica é a reutilização de sonoridades gravadas em discos de outros
artistas, as palavras da lei são constantemente ignoradas ou mesmo burladas pelas
possibilidades tecnológicas de alteração sonora dos softwares de música. Ainda que a
discussão sobre os problemas da colagem seja comum nas artes plásticas6 , somente
nas últimas décadas esse tema vem causando apaixonados debates no campo da
música7 , sem que tenha se chegado a conclusões e solução satisfatórias8 .
No âmbito da circulação, interessa-nos destacar a utilização de diferentes
suportes para produção musical. Os artistas de música eletrônica, mesmo tendo nas
tecnologias digitais aliados poderosos e práticos, caracterizam-se por trafegar por
diferentes suportes, desprovidos das crenças em evolução e superação das tecnologias.
Tão logo seu principal pilar seja a cultura de DJ, os artistas se preocupam em produzir
suas música em diferentes formatos que vão desde o vinil (de fato, revitalizando essa
indústria) e fitas magnéticas até os mais sofisticados arquivos digitais de música,
passando pelo polêmico MP3. Ainda que não caiba descrever aqui as motivações
dessa diversidade material, salta-nos aos olhos primeiramente a sua coexistência no
mercado (mesmo sendo alguns desses itens praticamente extintos no grande mercado
de música) e como seus processos de circulação e comercialização passam por regras
específicas de um mercado de nicho que, em muitos momentos, guarda suas próprias
lógicas de funcionamento9 (Geertz, 1998; Reynolds, 1999), que merecem atenção
especial.
Quanto à dimensão comunicativa da música eletrônica, pode-se afirmar
que, no Brasil, ainda é muito escassa a literatura específica sobre o tema, sendo
também caracterizada pelas narrativas auto-biográficas e jornalísticas. (Palomino,
1999; Assef, 2003). Mesmo no exterior, são poucos os trabalhos que privilegiam tal
aspecto. Exceções instigantes, entretanto, podem ser encontradas, como no caso de
Sarah Thorton (1996).
O trabalho dessa autora aponta para a importância de diferentes mídias
na construção de grupos sociais reunidos em torno do consumo de música eletrônica.
Discordando dos estudos que entendem as mídias como elementos periféricos às
subculturas (entre muitos outros, ver Frith, 1981), ou nocivos a sua existência, Thorton
apresenta uma nova perspectiva em que reconhece: a) a existência de diversas mídias
interagindo no contexto urbano contemporâneo; b) que as mídias são agentes
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Simone Pereira de Sá e Leonardo Marchi - Notas para se pensar as relações entre música e tecnologias da comunicação
fundamentais na forma como “constituímos grupos com as palavras” (pág. 117). A
autora entende que os meios de comunicação são
“Uma rede crucial para a definição e distribuição do conhecimento cultural.
Em outras palavras, a diferença entre estar ou não estar na moda, em alta ou
baixa de capital subcultural, correlaciona-se de modo complexo com graus
de cobertura, criação e exposição midiática. (Thorton, 1996; 14).”
Com efeito, o que Thorton busca trazer à tona na discussão sobre mídias
e música é a efetiva – e ignorada – importância dos meios de comunicação na
construção dos valores do consumo musical. Mais do que meros instrumentos de
atualização e publicização da cultura de música eletrônica, as mídias são agentes
importantes na configuração da identidade de um estilo musical, uma vez que, de
variadas maneiras, atuam na agregação, discussão, estabelecimento de códigos e regras
de sons e comportamentos que, enfim, ajudam a construir o que conhecemos por
música eletrônica (Thorton, 1996).
Essa relação simbiótica entre música e mídias demonstra, entre outras
coisas, que a música eletrônica não se coloca “fora” da esfera de influência da indústria
cultural, mas está em constante diálogo com ela – ainda que seja para confrontá-la.
Isso é importante para afastar a noção de resistência cultural normalmente atribuída
ao estilo, como se ele estivesse fora do circuito de produção-circulação-consumo.
Enfim, neste breve ensaio, exploramos alguns argumentos que,
esperamos, permitam-nos vislumbrar as possibilidades dos estudos voltados para o
estudo das expressões musicais urbanas, da música eletrônica, e suas relações com a
cibercultura e os meios de comunicação; demarcando ao mesmo tempo o nosso lugar
de fala dentro desta discussão.
SIMONE PEREIRA DE SÁ é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem
e Informação da UFF.
LEONARDO DE MARCHI é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem
e Informação da UFF.
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.47-59
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NOTAS
1. Pesquisa ligada à linha de Tecnologias do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação da UFF, orientada por Simone Pereira de Sá.Conta na equipe com os
alunos bolsistas PIBIC Leonardo Gabriel de Marchi e Roberto Jorge Carneiro de Souza
Leão, além da participação voluntária do aluno Marcelo Garson. A pesquisa tem o apoio
do CNPq através das bolsas de Iniciação Científica e de Produtividade.
2. Ainda que este termo se refira a uma série de produções musicais
desde pelo menos meados do século XX, nosso recorte privilegia a música dançante
surgida na década de 1980, nos EUA, migrando na década seguinte para a Europa,
caracterizando o fenômeno rave, que se espalhou como cultura da música eletrônica
para diversos centros urbanos mundiais.
3. Para um mapeamento dos pressupostos dessa proposta, ver Sá, 2001.
4. Aqui, traduziremos o termo como remediação. Para mais detalhes, ver
Bolter & Grusin, 2000; Sá 2003a.
5. Respectivamente: ANDRADE , Mário de. Aspectos da Música
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de Janeiro, Ed. José Olympio, 1974, 3ª edição; CÂNDIDO, Antonio. Educação pela
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Tropical. São Paulo, Cia. Das Letras, 1993.
6. É interessante notar a contínua apropriação de técnicas de que falamos
anteriormente, a partir da discussão de Reynolds (1999) – ao analisar o que chama de colagem
moderna de sons na música eletrônica, ou seja, quando os produtores musicais trabalham para
“mexer” tanto em um sample que ele se torna irreconhecível na nova composição – e também
do trabalho de Perloff (1993) historiando a técnica de colagem do modernismo russo que
buscava descontextualizar os elementos inseridos em suas pinturas.
7. É preciso discriminar que o funk e o hip hop foram os primeiros a
colocar essa questão em pauta.
8. Ou seja, a técnica de sampling não foi considerada um elemento novo e
à parte nos termos da lei. Até o momento a utilização de um sample reconhecível é
categorizada como uma regravação da música ou como plágio, que na verdade são
categorias absolutamente distintas do corte e colagem de sons.
9. É valido citar, como exemplo, a distribuição gratuita de vinis chamados
White-Label (sem selo de identificação) a DJ importantes para que eles toquem e critiquem
o funcionamento das músicas nas pistas antes de seu lançamento oficial. Também peculiar
a esse comércio é a venda de fitas cassete e/ou compact discs (CD) de DJ mixando
músicas de outros artistas sem autorização prévia. Longe de ser uma mera infração dos
direitos autorais, essa atitude é incentivada por essa indústria para disseminação das
músicas e dos artistas (Reynolds, 1999; Reighley, 2000).
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Simone Pereira de Sá e Leonardo Marchi - Notas para se pensar as relações entre música e tecnologias da comunicação
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Data de recebimento do artigo: 05/10/2003
Data de aceitação do artigo: 05/11/2003
Funk carioca:
entre a condenação e a aclamação na mídia
João Freire Filho e Micael Herschmann
O conceito de pânico moral foi utilizado pela sociologia britânica dos
anos 70, nos estudos sobre desvio comportamental e criminologia juvenil (Young,
1971; Cohen, 1971, [1972] 1980, Cohen & Young, 1973). O objetivo destes trabalhos
é, em linhas gerais, descrever e analisar o processo mediante o qual uma condição,
um episódio, um indivíduo ou um grupo de pessoas passa a ser encarado como
ameaça para os valores e os interesses basilares de uma sociedade. Às vezes, o
objeto de pânico é bastante recente; em outros casos, já existia há muito tempo, mas
repentinamente recebe os holofotes da mídia e torna-se o cerne das preocupações
públicas de agentes da lei, religiosos, intelectuais, políticos, entre outros atores sociais
com credibilidade e moralidade reconhecida. Às vezes, o pânico se dissipa e logo é
esquecido (exceto no folclore e na memória coletiva); em outras ocasiões, apresenta
repercussão mais séria e duradoura, podendo ocasionar mudanças nas esferas judiciária
e da política social, ou, até mesmo, na forma como a sociedade concebe a si mesma.
A chamada sociologia do pânico moral se desenvolveu a partir da já
então bem estabelecida teoria do rótulo, perspectiva analítica que considera o desvio
uma construção social e não uma qualidade intrínseca de atos ou atores sociais
específicos. Tal abordagem está associada especialmente ao trabalho do sociólogo
norte-americano Howard Becker (1963), que enfatizou o papel dos agentes de controle
social – os “empreendedores morais” – na fabricação do comportamento desviante.
Os meios de comunicação de massa são a grande fonte de difusão e
legitimação dos rótulos, colaborando decisivamente, deste modo, para a disseminação
de pânicos morais. A inter-relação entre forças de controle social, a mídia de massa e
certas formas de atividade desviante foi abordada por Stanley Cohen, no seu seminal
Folk devils and moral panics ([1972] 1980). O livro logo se tornou uma referência
fundamental para os estudos culturais e sociológicos a respeito das subculturas
espetaculares juvenis e sua demonização na mídia.
Cohen focalizou, em especial, a cobertura sensacionalista das desavenças
entre mods e rockers, em locais de veraneio do sul da Inglaterra, nos anos 60. Os
conflitos foram ampliados pela imprensa muito além de sua escala e de seus significados
reais, gerando um sentimento de grande inquietação no público ante as práticas culturais
das duas subculturas jovens (constituídas por membros da classe operária). Ao
sociólogo inglês interessava, sobretudo, a dimensão simbólica das ondas de pânico –
60
João Freire Filho e Micael Herschmann - Funk carioca
os conflitos morais e os estilos de vidas ameaçados. A criação do pânico moral, no
entendimento do autor, fornece oportunidade preciosa para os partidários de um
universo simbólico moral forjarem um universo moral antagônico, atacá-lo, e
redefinirem, a partir daí, as fronteiras entre o moralmente desejável e indesejável.
Entre as teses mais influentes do trabalho de Cohen, destaca-se a idéia de
que cada pânico moral tem seu bode expiatório, um “folk devil” sobre o qual o público
projeta seus medos e suas fantasias. Isto não equivale a dizer que o “folk devil” é criado
pelo pânico moral. O autor fez questão de frisar que, a despeito de usar termos como
“pânico” e analogias com o estudo das histerias e das ilusões de massa, não tencionava
sugerir que mods e rockers não teriam existido se não fosse o pânico moral ou que
teriam desaparecido se tivessem sido simplesmente ignorados. Sua intenção, em realidade,
era sugerir que diabolização destes movimentos era uma solução inadequada para a “questão
juvenil”. Em primeiro lugar, as atividades dos mods e rockers constituíam somente um
aspecto temporário e epidérmico do “problema”; as causas subjacentes do pânico moral
eram, de fato, a ambigüidade e a tensão cultural causadas pela mudança social. Trocando
em miúdos: o objeto do pânico moral não eram tanto os mods e os rockers quanto a
afluência e a liberdade sexual do pós-guerra que eles representavam; sendo assim, estes
movimentos juvenis seriam esquecidos dentro de alguns anos, e novas encarnações do
Mal emergiriam para substitui-los.
A reação exagerada dos guardiões da moral não era apenas míope, mas
também contraproducente, servindo, apenas, para incrementar a polarização social –
embora este pudesse ser precisamente o efeito político desejado, como demonstraram,
posteriormente, Stuart Hall et al. (1978), em sua tentativa de introduzir o conceito de
gramsciniano de hegemonia, na análise das formas por intermédio das quais pânicos
morais criam condições sociais de consentimento necessárias para a construção de
uma sociedade mais centralizada na lei e na ordem e menos inclinada ao “liberalismo”
e à “permissividade” dos anos 60. A faceta mais importante deste trabalho era o
reconhecimento de que a ideologia não era um processo social baseado apenas na
distorção da verdade, mas sim um força que opera continuamente por intermédio da
mobilização do “senso-comum”.
O relato histórico e teórico mais sistemático do pânico moral foi
apresentado por Goode & Ben-Yuda (1994a, 1994b). Cruzadas e pânicos morais
podem refletir, segundo os autores, uma busca coletiva de identidade – em esferas tão
variadas como a política, a religiosa, a científica ou a cultural – e tornarem-se um
fenômeno bastante difundido, principalmente nas sociedades heterogêneas e pluralistas,
cujas estruturas possibilitam que a moralidade em si mesma seja foco de debates e
negociações contínuas.
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61
A partir do exame de crônicas e reportagens publicadas na grande
imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, no período de 1992 a 2002, procuramos
explorar, neste artigo, a pertinência do modelo analítico de pânico moral para entender
o tratamento midiático dado ao movimento funk carioca, freqüentemente associado a
gangues e organizações criminosas, denúncias de relações sexuais anônimas nos bailes,
alienação, danças, letras e gírias de mau gosto, pornográficas e machistas.
Argumentamos que, não importa quão útil tenha sido no desenvolvimento
de um vocabulário para a compreensão do poder exercido pela mídia, a teoria do pânico
moral necessita ser revista e refinada teoricamente, a fim de ajustar-se a relevantes
tendências sociais, econômicas e culturais da contemporaneidade. Este tipo de abordagem
acerta quando vai além das investigações sociológicas que enfocam padrões de propriedade
e controle como os signos da cumplicidade entre mídia e governo. Equivoca-se, no
entanto, quando tende a tratar de maneira monolítica e monológica a produção e o consumo
midiático. É preciso estar mais atento para a multivascularidade da indústria cultural, em
hipótese alguma sujeita a interesses comerciais e ideológicos homogêneos, facilitando,
em alguns casos, por meio de inovações tecnológicas e miríades de novos canais de
distribuição, a expressão de vozes discrepantes. Em segundo lugar, é necessário observar
a complexidade da interação das audiências com os meios de comunicação: toda a
campanha de estigmatização e a criação de uma onda de pânico moral em torno do funk
carioca – nos noticiários de TV e nas páginas da grande imprensa – acabou, de certa
forma, contribuído para que o estilo de vida e a produção cultural dos jovens funkeiros
tenham exercido enorme fascínio entre grupos sociais situados muito além dos morros e
domínios da cidade do Rio de Janeiro. É justamente este processo ambíguo e interessante
de demonização e glamourização midiática do funk carioca que pretendemos abordar, a
partir de agora.
O FUNK INVADE A CENA MIDIÁTICA
Qualquer estudo que se proponha a analisar a trajetória do funk se deparará
com um acontecimento crucial: os arrastões e tumultos de outubro de 1992, no Rio
de Janeiro. Esses arrastões se tornaram uma espécie de marco de “fundação”, no
imaginário coletivo da história do funk e da vida social do Rio de Janeiro
(crescentemente identificados a conflitos urbanos). A partir daquele momento, o funk
– expressão cultural das periferias e favelas das grandes cidades, quase desconhecida
da classe média – ganha inusitado destaque no cenário mediático.1
Entretanto, a trajetória do funk não está apenas marcada pelo estigma.
Se, por um lado, são constantes, até hoje, as campanhas na mídia a favor da
interdição das atividades dos jovens funkeiros (manifestações socioculturais
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João Freire Filho e Micael Herschmann - Funk carioca
conceituadas como pretexto para a desordem urbana, a exploração do erotismo
de menores e a guerra entre galeras ligadas ao tráfico de drogas e aos comandos
organizados), por outro lado, a mesma mídia que condena o funk lhe oferece
visibilidade, pavimentando o caminho para que o gênero musical se popularize e
conquiste um lugar no mercado.
O processo de estigmatização midiática não impediu (quiçá, tenha até,
de certa forma, contribuído para) que o estilo de vida e a produção cultural exercessem
enorme fascínio sobre grande número de jovens de distintas classes sociais que parece
ter encontrado, nesse universo musical, formas fundamentais de expressão e
comunicação. O debate suscitado por essa diversificação social e ampliação do público
gravita em torno, invariavelmente, da seguinte questão: em que medida os jovens vêm
sendo “corrompidos”, “desencaminhados” pelo funk?
O Estado, apoiado por setores conservadores, vem mostrando-se
empenhado, desde meados dos anos 90, em conseguir a proibição dos chamados
“bailes de comunidades” (que eram realizados, gratuitamente, nas quadras poliesportivas
das periferias e favelas). Esses bailes já chegaram a reunir, nos fins de semana, mais
de cinco mil jovens de todos os segmentos sociais, que ali se divertiam, quase sempre
de forma tranqüila. Na verdade, um fato chamava sempre a atenção: a preocupação
da comunidade com o bem-estar dos freqüentadores do baile, a sua postura hospitaleira.
Numa época de intenso temor com a violência urbana, a recepção calorosa dos
organizadores e a sua atenção à questão da segurança tornaram esse tipo de baile o
grande atrativo de sucessivos verões.
Aqueles que clamam pelo fechamento dos bailes (de todos tipos de
bailes) oscilam entre o argumento de que o funk, além de incomodar a vizinhança pelo
barulho, consiste numa ameaça aos jovens freqüentadores de “boa família” (leia-se de
classe média), já que essas festas dão ensejo a brigas entre as galeras e ao convívio
promíscuo com “nativos” relacionados com o mundo do narcotráfico. A rivalidade
entre as turmas é, no entanto, apenas um dos ingredientes do baile, do qual fazem
parte, ainda, a alegria, o humor e o erotismo. A maior parte dos empresários e dos
organizadores de baile busca canalizar criativamente essa rivalidade, realizando os
chamados festivais de galera, nos quais são realizadas competições entre as turmas
que freqüentam a festa. Além disso, a relação do funk com organizações criminosas
– instaladas no cotidiano dos bolsões de miséria da cidade do Rio de Janeiro muito
antes de o funk surgir como expressão cultural local – praticamente não existe ou é,
em geral, superdimensionada. O que há de concreto é uma relativa identificação desses
jovens com os atos de virilidade e rebeldia que a vida criminosa possibilita, e isso era
expresso em algumas composições que narram o dia-a-dia da comunidade.
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.60-72
63
A HISTERIA ANTIFUNK DO FINAL DOS ANOS 90
Para desespero de segmentos conservadores da classe média, a histeria
anti-funk relacionada aos míticos arrastões do início dos anos 90 não impediu que o
gênero musical se consolidasse, no final de século, como força importante da indústria
do entretenimento e da moda – local e nacional. “Trata-se de uma das mais fortes
subculturas fashions já vistas no país. As popuzudas saíram da Zona Norte e das
favelas para, embaladas pelo som do funk, influenciarem até mesmo um nicho
aparentemente oposto, o das patricinhas”, registrou a jornalista Erika Palomino, numa
edição do caderno Moda, da Folha de S. Paulo, dedicada à divulgação da São Paulo
Fashion Week 2001. Na capa, a branquíssima e louríssima modelo e apresentadora da
MTV Fernanda Lima, fazendo a linha “popuzada-chic” (“com jeans customizado
Sommer, biquíni e top Rosa Chá, jóias Daslu e cinto Giulliano”), ilustrava a matéria
principal “Cultura popuzada – conheça o estilo das meninas que estão dominando o
verão no Rio” (30/01/2001). Palomino resumiu, para o leitor neófito, o cobiçado
estilo das meninas do funk: “O look é sexy, claro. Calças justíssimas, muito jeans,
tops para deixar a barriga de fora e cabelão.” A colunista acrescentou, ainda, que não
faltava, naquela ocasião, um hit popozudo nas festas hypes de São Paulo ou do Rio,
muitas vezes acompanhado das tradicionais dancinhas com a mão no joelho. O primeiro
“crossover” foi feito, segundo ela, na “glamourosa” festa de lançamento do perfume
da Forum, no Copacabana Palace, em dezembro de 2000, quando 40 segundos do
hino “Popozuda”, da banda DeFalla, deixaram os convidados “passados”. Pouco tempo
depois, numa noite memorável, socialites, dondocas, senhoras de gosto supostamente
refinado se esbaldaram, no Canecão, no Rio, ao som do batidão do funk; glamourosas
e desinibidas, latiram, pularam, fizeram trenzinho e muito mais; na saída do “baile”,
embora sorridentes, algumas acusavam dores generalizadas nas juntas e articulações...
Mas nem todos se divertiam com a expansão territorial e social do funk
carioca. Os discursos de autoridades governamentais e intelectuais contra o gênero
passaram a concentrar-se, no final dos anos 90, na questão da sexualidade: o que se
condena, de modo mais enfático, desde então, é o erotismo supostamente exagerado
dos bailes e o tratamento pejorativo dispensado à mulher, em algumas músicas (ver,
por exemplo, Luciano Trigo, “Um tapinha não dói”, O Globo, 13/03/2001, 8). Os
títulos impactantes não deixam dúvidas quanto à atmosfera geral de pânico criada por
reportagens e artigos veiculados no período: “O funk picante da periferia” (Época,
22/01/2001, 103); “Bonde a toda velocidade” (Jornal do Brasil, Caderno B, 18/02/
2001, 1, 2 e 4); “A explosão do funk” (IstoÉ, 28/02/2001, 66-71); “‘Engravidei no
trenzinho’” (Veja, 28/03/2001, 82-86); “Funk com ficha” (Veja, 09/05/2001, 141).
Ora, o erotismo e o humor escrachado – a classe média goste ou não –
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João Freire Filho e Micael Herschmann - Funk carioca
é parte da cultura e dos estilos de vida populares. O funk, como outras manifestações
da cultura popular, não é, nem nunca foi, politicamente correto. Contrariando as
expectativas das “feministas de plantão”, as jovens convivem de forma lúdica com
músicas do tipo Um tapinha não dói, Éguinha pocotó e outras consideradas ofensivas
à mulher. Quanto às notícias de adolescentes que supostamente engravidaram nos
bailes, vale registrar que esse tipo de argumentação só faz sentido para aqueles que
desconhecem a realidade das periferias e favelas brasileiras. Quantas jovens desses
segmentos sociais não ficam grávidas após terem conhecido a menstruação apenas
duas ou três vezes em suas vidas? Será que todas são funkeiras? Por que, em vez de
usar o funk como conveniente bode expiatório, não se desenvolve um intenso programa
educativo junto as jovens de classe baixa?
CULTURA & ANARQUIA
O artigo do poeta e crítico literário Affonso Romano de Sant’anna,
“Anomia ética e estética” (O Globo, Prosa & Verso, 17/03/2001, 2), é bastante
característico do tipo de objeção que manifestações populares pós-folclóricas, como
o funk, sofrem historicamente em nosso país. O autor começa enfatizando sua
autoridade para discutir, dentro de um suplemento literário, a “anomia ética e estética”
impulsionada pelo funk – afinal, não publicara ele, há alguns anos, o livro (de viés
estruturalista) Música popular e moderna poesia brasileira? Suas investidas contra o
ritmo do momento se apóiam, inicialmente, na análise (ou melhor, na citação) de duas
letras obscenas “alardeadas nas rádios e na tevê, ao som das quais adolescentes e até
crianças dançam” (na realidade, as duas músicas em questão tiveram divulgação restrita
na grande mídia) e na revelação do secretário de Saúde do Rio de Janeiro sobre o
elevado número de casos de gravidez e AIDS contraído durante a “dança das cadeiras”
dos bailes (os dados alarmantes foram, posteriormente, revistos pelo governo).
O subtítulo do artigo, “Músicas porno-dançantes trazem de volta o que
há de pior no machismo”, é altamente enganoso quanto ao real enfoque da reflexão do
colunista, que converge mais para uma atualização da problemática conservadora
arnoldiana da cultura versus anarquia (Arnold, [1869] 1994) do que para uma
abordagem teórica feminista radical. O alvo de Sant’anna é tanto a vanguarda artística
mundial contemporânea (que levou ao extremo o culto da transgressão) quanto a
indústria cultural brasileira (que se agiganta sob a proteção do clima de licenciosidade
pós-ditadura e sob a pressão da globalização, que transforma o cidadão num simples
“clone consumista” e faz do Ibope o regulador supremo da produção dos bens
simbólicos). A relação entre os dois fenômenos? Simples: do mesmo modo que, na
arte, cada um pode fazer o que quiser, porque hoje qualquer coisa é arte, a “marginalidade
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toma o lugar do sistema, o iletrado se apodera dos meios de comunicação, a quantidade
desaloja a qualidade, e aquilo que antes chamávamos de ‘cultura’ agora está exilada
como autêntica contra-cultura, uma cultura alternativa”. A anomia ética e estética e
até mesmo o “caos” que daí resultam estão verbalizados “inconscientemente” nas
letras do funk, tal qual a “análise literária” (sic) pode claramente demonstrar:
É impossível ouvir o grito de guerra – ‘tá tudo dominado’ – sem reconhecer
aí o eco do PCC ou de qualquer Comando Vermelho. É impossível não
reconhecer em ‘um tapinha não dói’ uma variante sedutora da violência
contra a mulher e a criança. É impossível não ouvir chamarem mulheres de
‘cachorras’ e não ver o retorno do pior do machismo. (O Globo. Prosa &
Verso, 17/03/2001, 2).
Diante de tantas impossibilidades interpretativas, só restava clamar por
um retorno urgente da ordem – quer dizer, por um pronto restabelecimento do cânone
como arma eficaz contra a desordem valorativa promovida (e refletida) pelo funk e
pelas vanguardas artísticas.
As diatribes de Sant’anna contra o funk trazem à tona, de maneira
eloqüente, preconceitos, ansiedades e idealizações que marcam a cartografia intelectual
do mau gosto nativo, tantas vezes fundamentada num monoteísmo estético que se
converte em ataque furioso ao pluralismo cultural Em nome da preservação dos valores
da Cultura com C maiúsculo (comumente associada à “grande arte” e ao produto
final de todo um processo de refinamento estético, intelectual e espiritual), do potencial
crítico e subversivo da produção estética “autônoma” do modernismo e/ou da proteção
de uma cultura popular idealizada (livre de toda ambigüidade, todos prazeres perversos,
todas incorreções políticas; “pobre, mas limpinha”), “brasileiros de espírito” de distintas
afinidades ideológicas uniram suas vozes, ao longo do século XX, para abafar os
“ruídos bárbaros” da cultura efetivamente praticada ou prestigiada pelo populacho
crescido no caos de nossas grandes cidades (Freire Filho, 2001).. “Claro está”,
conforme salientou Williams ([1958] 1969, 56), “que é mais fácil ser respeitoso e
reverente em relação ao ‘povo filosoficamente caracterizado’ que em relação a um
público que bulhentamente se manifesta.”
A PERIFERIA EM CONTEXTOS DE ALTA VISIBILIDADE ENTRE A CONDENAÇÃO E A EXPANSÃO NAS MÍDIAS
Seria, no entanto, caricaturar um relacionamento histórico complexo
tratar a mídia unicamente como porta voz da agenda política e dos preconceitos
estéticos e morais das classes dominantes. Não se pode negar que, desde os arrastões,
o funk ganhou espaços nas estações radiofônicas, e MCs e DJs vêm obtendo grande
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João Freire Filho e Micael Herschmann - Funk carioca
êxito na indústria fonográfica. Discos de cantores como Latino, MCs Claudinho &
Buchecha e William & Duda e coletâneas como Funk Brasil e Furacão 2.000 alcançaram
ótimos índices de vendagem. O funk conseguiu desenvolver, em alguns momentos
de sua trajetória, veículos próprios de divulgação: fanzines de razoável qualidade gráfica,
programas diários de rádio FM e programas semanais de TV dedicados, em grande
parte ou exclusivamente, ao mundo funk. Nos anos 90, o funk chegou a ser uma
indústria que envolvia a realização de bailes, a produção e o consumo de roupas,
discos/CDs, aulas de dança em academias, programas de TV/rádio, revistas e fanzines,
peças de teatro e sites na Internet. Gerava direta e indiretamente, só nos bailes, 20 mil
empregos, movimentando R$ 10,6 milhões.
Mais: depois de um período em que esteve menos presente na cena
mediática (e na indústria da cultura e do entretenimento), o funk parece ter, no
último verão (de 2003/2004), voltado a chamar a atenção dos formadores de opinião.
Em matérias publicadas nos principais jornais do país, importantes atores sociais,
autoridades, especialistas e DJs celebram a nova “Lei do Funk”2, e apostam num
outro ciclo do gênero musical, mais marcado pela legitimação crítica e sucesso
comercial do que pela condenação:
(...) no Ballroom, meninos e meninas que são figurinhas fáceis do Posto
Nove balançam a mãozinha e rebolam até o chão quando o DJ Marlboro
começa a tocar. Morro Dona Marta: mesmo sem o teto de zinco, levado pela
ventania da semana anterior, a quadra da escola de samba local recebe os
fãs da batida. Clube Boqueirão, na vizinhança do MAM: encontro das
equipes CurtiSom e Big Mix, os marinheiros de primeira viagem experimentam
o volume e o ritmo da música que mexe com o corpo, acelera o coração e
chega causar falta de ar. Também se espantam com a multidão que mistura
negros e brancos democraticamente. Eles dançam em paz até altas horas. O
bonde do funk circula pela cidade inteira. E cada vez mais lotado de
passageiros.
‘ – O funk é a cola da cidade partida – define DJ Marlboro, que em outubro,
no Tim Festival, tocou até as sete da manhã e mostrou que, desta vez, o
ritmo pode ter descido o morro definitivamente para contagiar da Zona
Norte à Zona Sul. (...) Marlboro é um dos maestros de um movimento que
este ano, além do TIM, invadiu lugares antes inimagináveis. Foi parar na
TV, em horário nobre, com direito a episódio inteiro da minisérie ‘Cidade
dos Homens’ e à musa Carolina Dieckman seduzida pelo pancadão no
programa ‘Cena Aberta’. E se transformou no tema de um aclamado desfile
da Blue Man no Fashion Rio. Se antes já era reverenciado por artistas como
o Ministro da Cultura, Gilberto Gil, os cantores Caetano Veloso e Fernanda
Abreu e a atriz Regina Case, hoje domina a noite de lugares tão díspares
quanto a Mariuzin, em Copacabana, onde Marlboro toca hoje a partir das
17 horas, e a Fundição Progresso, que vai sediar um animado baile no
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.60-72
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próximo sábado. Uma das promessas do verão é a noite funkeira que a sede
do Flamengo, na Gávea, vai abrigar em todos os fins de semana de janeiro.”3
Cabe ressaltar que, não é primeira vez que o funk goza de um
momento de um relativo prestígio. Na realidade, revendo sua trajetória, poderse-ia argumentar que o mercado funk se desenvolveu à margem ou nos interstícios
da indústria cultural. Entretanto, em vez de sair de uma condição informal/
marginal e consolidar-se como um subproduto internacional da world music, tal
como o samba e outras expressões culturais reunidas sob o rótulo axé music, o
funk, apesar do sucesso, até o momento, manteve uma condição ambígua –
periférica e central em relação ao mercado e à cultura urbana. Sua condição
lembra a já vivida pelos punks/skinheads (na Inglaterra), e pelos b-boys, nos
(Estados Unidos), que ocuparam um lugar peculiar no imaginário coletivo,
permitindo que se desenvolvesse tanto um nicho de mercado (criando empregos,
acumulando lucros e investimentos e também diversificando suas atividades e
seus produtos) quanto que se anatematizassem e excluíssem milhares de jovens.
Assim, o funk vem ocupando no mercado, no espaço urbano e nas
políticas públicas um lugar ambíguo, ora um pouco mais marginal, ora um pouco
mais central. Parece construir, por uma via sinuosa e por constantes tensões, conflitos
e negociações, um conjunto de códigos culturais (com referências locais/
internacionais) que lhe tem permitido ocupar, simultaneamente, uma posição periférica
e central na cultura contemporânea. Oferece tanto a possibilidade de construção de
uma visão crítica e/ou plural do social quanto a sua mediação e administração pelas
estruturas que gerenciam os ritmos do espetáculo e do consumo.
Em contraste com o que uma perspectiva apocalíptica das velhas e
novas mídias poderia sugerir, há, portanto, conforme assinalamos anteriormente, um
enorme potencial de luta, na esfera midiática, para os grupos minoritários, desde que
eles saibam espetacularizar-se, realizar operações de linguagens, processos de
“engenharia midiática” (Herschmann & Pereira, 2003). Os grupos minoritários e
excluídos devem atentar para essas possibilidades, explorando, na medida do possível,
especialmente as novas mídias de caráter interativo que ainda não estão regulamentadas
e abrem um novo campo para ações participativas.4
Evidentemente, não estamos ignorando, aqui, a função normalizadora
dos meios de comunicação sobre o social. Todavia, é importante identificar as
possibilidades de fazer emergir o outro no campo midiático. Apesar de a mídia ser um
espaço com inúmeras limitações e formatos, voltado para a elaboração de imagens
reguladoras e difusão de “pânicos morais”, também produz “frestas”, “brechas” nas
68
João Freire Filho e Micael Herschmann - Funk carioca
quais o outro emerge – isto é, constitui-se, também, em um espaço fundamental para
a percepção das diferenças. O discurso midiático oscila, como vimos, entre a
demonização e certa glamourização dos excluídos; na medida em que os torna “visíveis”,
permite-lhes, de certa forma, denunciar a condição de “proscritos” e reivindicar
cidadania, trazendo à tona, para o debate na esfera pública, a discussão do lugar do
pobre, ou melhor, o direito ao discurso, ao lazer e à cidade, pondo em pauta as
contradições do processo de “democratização” do país e suas tensões sociais.
Para além do discurso espetacularizado da repressão policial nos
territórios da pobreza, é justamente essa produção e esse discurso periférico/marginal/
local que ironicamente tem sido encampado, com grande freqüência, pela mídia e
pelo público jovem de origem social variada, que consome as expressões culturais
como o rap e o funk como signo de rebeldia e transgressão social e/ou como elementos
de uma estética camp (Freire Filho, 2003a, 2003b). Ganham densidade, desta forma,
a polifonia urbana e suas diversas “tribos”, em territórios marcados pela instabilidade
social, distanciados da lógica estatal de reforço das fronteiras, do enclausuramento,
do apartheid, dos discursos de “exclusão” e repressão que promovem o medo do
“outro”.
JOÃO FEIRE FILHO é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da
ECO/UFRJ.
MICAEL HERSCHMANN é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura
da ECO/UFRJ e autor do livro O funk e o hip hop invadem a cena (Ed. UFRJ).
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.60-72
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NOTAS
1. Para mais detalhes,cf. HERSCMANN, Micael (200), p. 87-100.
2. A Governadora Rosinha Matheus sancionou a Lei no. 4.264, que
regulamenta os bailes funk. De autoria do deputado Alessandro Calazans (PV-RJ), a
lei fixa regras para a realização desse tipo festa. A partir de agora, a responsabilidade
e organização dos eventos será dividida entre os produtores culturais – sejam eles
autônomos ou empresas – e as entidades contratantes (clubes, boates ou associações).
(Cf. NERI, Natasha. “Bailes funk de volta à Zona Sul” in Jornal do Brasil. Cidade.
Rio de Janeiro, 07 de janeiro de 2004, p. A 13).
3. Cf. matéria publicada intitulada “Funk – como é, quem faz e como
são os bailes de música que já foram confundidos com o crime e proibidos, mas hoje
contagiam a cidade” de autoria de Adriana Pavlova e Daniela Name in O Globo.
Segundo Caderno. Rio de Janeiro, p. 1, 21 de dezembro de 2003.
4. Para mais detalhes sobre algumas experiências que vêm sendo
realizadas no país, cf. NOVAES, Regina e outros (orgs.). Juventude, cultura e
cidadania. Rio de Janeiro, ISER/UNESCO, 2002.
70
João Freire Filho e Micael Herschmann - Funk carioca
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ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.60-72
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72
João Freire Filho e Micael Herschmann - Funk carioca
Data de recebimento do artigo: 28/11/2003
Data de aceitação do artigo: 10/12/2003
Periferia eletrônica: clubbers e cybermanos
na cidade de São Paulo
Ricardo Sabóia
Ser clubber é tudo, é música, é moda, é conhecimento. Uma coisa vai levando
à outra: o DJ leva à musica, a música leva à amizade e da amizade vai, daí por
diante.
(Sílvia, clubber de Itaquera, São Paulo)1
Cybermano é o cara que curte techno e mora na periferia, certo?
(Marcos LP)2
A música possui um papel central na articulação de diversas experiências
sociais dos jovens das metrópoles contemporâneas. Na cidade de São Paulo, por
exemplo, é possível identificar grupos tão diversos como punks, góticos, mods,
metaleiros, adeptos do hip hop e clubbers, cada um orientado pela preferência por
determinado gênero musical.
Estudos analisando grupos urbanos juvenis que se organizavam pelas
atividades de lazer, pela adoção de determinados símbolos que compunham um estilo
visual particular e pela associação a um “gênero musical” ganharam impulso com a
afirmação dos Estudos Culturais na década de 70, alinhados ao Centro para os Estudos
Culturais Contemporâneos (CCCS) da Universidade de Birmingham, Grã-Bretanha
(cf. Hall, S; Jefferson, T, 1976).
Um dos trabalhos que alcançou significativa repercussão na época e ao
longo dos anos 80 foi a pesquisa de Dick Hebdige (1996 [1979]). O autor consolidou
o conceito de subcultura como forma de definir todo um conjunto de práticas e
experiências referentes aos agrupamentos urbanos emergentes na Grã-Bretanha a
partir do Pós-Guerra (como mods, teddy boys e skinheads), construindo sua análise
mais centradamente no movimento punk que despontava na época.
Segundo o autor, as subculturas constituiriam-se essencialmente na
questão de classe social, representando uma resposta às condições e vivências da
“classe trabalhadora” (working class) britânica:
Subculturas são formas expressivas, mas o que elas expressam é, em
última instância, uma tensão fundamental entre aqueles no poder e
aqueles condenados a posições subordinadas e vidas de segunda
classe. Essa tensão é expressa figurativamente na forma de estilo
subcultural [...] Uma forma de resistência em que contradições e objeções
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.73-85
73
experimentadas em relação a ideologia dominante são obliquamente
representadas através do estilo (HEBDIGE, 1996, p. 132 e 133)
Se os conceitos de subcultura e estilo subcultural, após o trabalho de
Hebdige, tornaram-se referenciais nos estudos voltados para a área, percebe-se desde
o final dos anos 80 e ao longo da década de 90 a necessidade de realizar leituras
críticas sobre sua perspectiva teórica (cf. Middleton, 1990; Gelder & Thornton, 1997).
Influenciado por leituras “gramscianas” e “althusserianas” de “hegemonia” e “ideologia”,
em voga nos Estudos Culturais da época, Hebdige pouco debatia como, de fato, os
jovens punks negociavam com os códigos, símbolos e gênero musical no dia-a-dia para
articular o que classificaria como “subcultura”. Recorria à semiótica para enfatizar como
a “luta de classes” entre grupos situados em posições dominantes/hegemônicas e aqueles
em condições subordinadas era “ao mesmo tempo uma luta na significação”, expressa no
estilo, “uma luta pela posse do signo que se estende até às áreas mais mundanas da vida
cotidiana” (HEBDIGE, 1996, p. 17), não se debruçando com atenção sobre esse
mesmo cotidiano, na relação que os jovens estabeleciam com os artistas, com os
discos lançados, com os espaços sociais, com o consumo do próprio gênero musical.
Também é preciso reconhecer que, no cenário contemporâneo,
expressões socioculturais como o hip hop ou os gêneros de “música eletrônica”
manifestam-se em diversos segmentos sociais e dizem respeito não apenas à questão
de “classe”, mas a diversas políticas e novas disputas por espaços sociais, acesso ao
lazer, aos bens culturais, modos de se expressar, de se fazer ver e ouvir. Como
discutir assim essas disputas e conflitos de produção de sentido que pontuam esses
universos?
Simon Frith proporciona um interessante ponto de partida ao questionar
a perspectiva com que a “academia” trata a música:
Freqüentemente, tentativas de relacionar formas musicais a processos
sociais ignoram os meios em que a música em si é um processo social. Em
outras palavras, ao examinar as estéticas da música popular, nós temos que
inverter o argumento acadêmico usual: a questão não é como uma música,
um texto, “reflete” valores populares, mas como – em atuação – os produz
(FRITH, 1996, p. 270).
O autor pontua sua crítica para o modo como as análises estruturam-se
reproduzindo a idéia de “homologia”, ou seja, como uma subcultura, um estilo
subcultural “refletiria” nos objetos, na música, nos códigos visuais e nas “práticas
significativas” representadas por estes as relações sociais, suas lógicas e contradições,
e não atentariam para o próprio processo em que estes atuariam, no interior do jogo
de construção dessas experiências sociais.
74
Ricardo Sabóia - Periferia eletrônica
Fugir dessa perspectiva “subculturalista” e ao mesmo tempo atentar
como as cenas musicais contemporâneas constituem-se na “contínua transformação
de relações sociais e culturais – e de alianças entre comunidades particulares” (STRAW,
1991, p. 375; tradução minha) nas cidades contemporâneas desponta como desafio
epistemológico. A tarefa de analisar as cenas musicais exige tanto um olhar para as
práticas cotidianas dos jovens atores, das práticas e das alianças de sociabilidade que
a constitui como uma atenção a uma experiência midiatizada onde circulação de
informação e códigos e a constituição de um capital (sub)cultural (Thornton, 1996)
específico são pontos fundamentais na articulação de expressões culturais elaboradas
na partilha de valores, códigos e bens simbólicos.
CULTURA CLUB
A cultura club surgiu como um conjunto de práticas articuladas no
consumo de gêneros musicais de música eletrônica (house, techno e, posteriormente,
jungle, trance e diversos sub-gêneros), na definição de espaços sociais particulares
(os clubes noturnos e raves3 ), códigos de um estilo visual característico onde predomina
o colorido, o uso de acessórios como pulseiras e colares fluo, presilhas e acessórios
infantis como bolsas e bonecos de pelúcia.
Sua origem encontra-se na Grã-Bretanha, em meados da década de 80,
quando começou a se disseminar em casas noturnas e festas ao ar livre o interesse
dos jovens locais pelo acid house (vertente do gênero musical originário de Chicago)
e techno (som emergente nas áreas mais pobres de Detroit, cidade industrial que na
época vivia grave crise econômica e social), a consolidação da figura do DJ (disc
jockey) como centro dessa cultura musical e do clube noturno como palco de uma
experiência única pontuada na fruição dos gêneros de música eletrônica, no consumo
de novos estimulantes químicos (particularmente o ecstasy, conhecido como “droga
do amor”).
Thornton, em pesquisa sobre o universo dos clubes e raves britânicas
de final dos anos 80 e início dos 90, apresenta a seguinte definição para cultura club
ressaltando a centralidade do clube noturno e das raves como seus espaços sociais, e
sua constituição como “cultura de gosto”:
Cultura club é a expressão coloquial dada às culturas juvenis para quem os
dance clubs e suas ramificações dos anos 80, as raves, são o eixo simbólico
e centro social de atividade. O sentido de lugar proporcionado por esses
lugares é tanto que freqüentadores regulares assumem o nome dos espaços
que freqüentam, tornando-se clubbers e ravers [...] As culturas club são
culturas de gosto. Os grupos club geralmente estão congregados na base
de seu gosto musical comum, no consumo de uma mídia comum e, mais
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.73-85
75
importante, suas preferências por pessoas com gostos semelhantes aos
deles. Participar da cultura club, por sua vez, é construir afinidades maiores,
sociabilizar os participantes a partir de um conhecimento dos (e
freqüentemente uma crença em) gostos e de suas aversões, significados e
valores da cultura (1996, p. 3).
Essa cultura espalha-se para outros países, como Alemanha, Estados
Unidos e Brasil na década de 90. Em São Paulo, é possível reconhecer no início
daquela década o aparecimento de casas noturnas voltadas para a música eletrônica e
um crescente interesse de um público específico por esses locais. Clubes como Nation
e Sra. Krawitz firmaram-se como novas referências alternativas e diferenciadas no
lazer noturno dos jovens de classe média e alta da capital paulista, tornando-se
reconhecidos como berços da cultura club local (cf. ASSEF, 2003).
A cultura club também se espalhou, ainda na primeira metade da década
de 90, por clubes noturnos dos bairros mais distantes do circuito de clubes localizados
no eixo “centro-Jardins”. Casas como Sound Factory, Toco e Overnight abriam cada
vez mais espaço para os gêneros de música eletrônica, atraindo a cada final de semana
milhares de jovens da Zona Leste (região desses clubes), de outros bairros periféricos
e das cidades da região metropolitana da capital paulista.
Esses locais em pouco tempo se tornaram uma opção de lazer
diferenciada para os jovens da periferia, constituindo espaços para ouvir o “som
eletrônico”, encontrar os amigos, conhecer novas pessoas. O clubber Rodrigo, 21,
morador de Itaquera, Zona Leste, descreve uma das casas que freqüentava na década
passada, a Sound Factory:
No domingo todo mundo se reunia esperando bater três horas pra
pegar o ônibus no ponto e ir pra Sound. Quando a gente começou a ir
lá, a gente ia em um número de 15, 16 pessoas. E quando a gente vai
num clube, você sabe, a gente não vai uma vez só, a gente pretende
freqüentar mais vezes o clube, assim você vai conhecendo bastante
gente. Muitos clubbers de agora que conhecem música eletrônica não
conhecem o som eletrônico das antigas.O jungle mesmo foi um
fenômeno naquele tempo.4
Nessas casas noturnas situadas fora do circuito “centro-Jardins” também
desenvolveu-se uma cena voltada para um novo gênero musical, o jungle. Conhecido
atualmente sob a forma de drum’n’bass, este surgiu nos bairros mais pobres de Londres
no início dos anos 90, resultante do cruzamento de uma série de sonoridades que iam
do dub e do ragga jamaicano ao hip hop, hip house, hardcore e o techno mais “pesado”.
Em São Paulo, propagou-se primeiramente a partir da atuação de DJs como Marky,
Julião, Andy, Patife e Koloral, que importavam vinis do gênero em expansão na Grã-
76
Ricardo Sabóia - Periferia eletrônica
Bretanha e os apresentavam aos jovens da periferia nos sets musicais que executavam
nas pista dos clubes locais.
Ainda no decorrer dos anos 90, outra forte referência para os jovens da
periferia que definiam preferência pelos gêneros de música eletrônica era o grupo
inglês Prodigy, cuja carreira ganhou impulso internacional na época. Cada vez mais
interessados no som da banda – o primeiro contato desse público com o grupo tinha
sido estabelecido poucos anos antes, com algumas das músicas do início da carreira
do grupo sendo executadas em casas noturnas periféricas. A partir dos anos de 1996
e 1997, começou a se notar a influência do Prodigy, sobretudo de seu vocalista, Keith
Flint, na composição de um visual colorido, com referências que passavam pelo punk
(o personagem costumava usar uma espécie de moicano duplo nas laterais do cabelo,
tingido de cores berrantes) e pelo uso de vários piercings e lentes de contato estampadas,
entre os clubbers da periferia. A adoção desses elementos estéticos e a idolatria ao
grupo por esses jovens acabou servindo como referencial para a definição e
reconhecimento destes como um grupo urbano juvenil específico, batizados de
“cybermanos”.
CLUBBER DA PERIFERIA E CYBERMANO, “ALIANÇA
AFETIVA” E “CAPITAL SUBCULTURAL”
A preferência pelos gêneros de música eletrônica ente os jovens
paulistanos da periferia pontua uma série de experiências, pautando o modo como
esses garotos e garotas organizam sua vida cotidiana, suas relações de amizade, seus
locais de lazer, música e artistas favoritos, configurando o sentimento de participar de
um agrupamento cultural urbano juvenil particular, como acontece em outros universos
musicais difundidos na periferia, como punks ou os adeptos do hip hop.
De acordo com a Coordenadoria Especial da Juventude da Prefeitura
Municipal de São Paulo, o número de clubbers nos bairros de periferia da capital
paulista é estimado em 25% da população juvenil entre 15 e 24 anos 5 . O
coordenador do órgão, Alexandre Youssef, analisa a representatividade dessa
expressão cultural:
É um fenômeno absolutamente difuso e generalizado. Podemos
identificar o peso dessa manifestação relativa a outras manifestações
que existem na juventude, identificando todos os grupos jovens,
culturais, esportivos, sociais, ONGs, religiosos. É uma das expressões
mais importantes e mais maciças da juventude de São Paulo.6
A estimativa da Coordenadoria é expressiva e, naturalmente, um dado
relevante, na medida que nos permite ter uma dimensão mais geral da propagação da
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.73-85
77
cultura club entre os jovens da periferia da cidade e seu “peso” em relação a outras
manifestações igualmente significativas. Proponho discutir aqui, porém, questões mais
específicas referentes a esse investimento na cultura club e na identificação desses
garotos e garotas como clubbers.
Discorrendo sobre o inicio de sua atividade como disc jockey de jungle
e o interesse do público da periferia paulista por esse segmento da música eletrônica
caracterizado pelas batidas mais aceleradas e quebradas, DJ Andy afirma:
Como na época não havia essa coisa de um DJ de um estilo só e eu tocava
em uma casa para 2 mil pessoas [Overnight], tocava house, techno, hip hop
e fazia um set maior dentro do meu “baile”, vamos falar assim, de hardcore
e jungle. 60% do meu baile era hardcore e jungle, os outros 40 % era hip
hop, techno, house, trance... Do mesmo jeito que eu procurei uma coisa
nova para me diferenciar dos outros DJs, a galera começou a gostar do meu
som. E eu vi nisso uma necessidade deles também quererem uma coisa
diferente. Então eu fui colocando cada vez mais e mais esse estilo. E como
eu tocava na sexta-feira, era o dia do meu baile mais alternativo, em que eu
podia tocar um som mais pesado, então as pessoas iam para ouvir esse tipo
de som.7
O depoimento do DJ nos permite discutir questões diversas acerca do
processo de afirmação de uma cena musical, do papel do disc jockey como um
“especialista” cultural8 à articulação de uma audiência. Vou me deter, porém, em dois
pontos: a busca pela diferenciação por parte público, que o DJ identifica na opção
pelo “som diferenciado” e pelo “baile alternativo”, e a própria associação que traçam
dessas preferências como uma experiência “alternativa”.
É comum os clubbers dos bairros de periferia de São Paulo, ao
discorrerem sobre seus gêneros musicais preferidos, sobre determinados clubes e
raves que costumam freqüentar ou ainda sobre sua escolha por ser clubber, ressaltarem
o caráter subjetivo que envolve essas experiências, ao mesmo tempo que reconhecem
sua participação em uma comunidade específica diferenciada, constituída por clubbers.
Ser diferente de outros e reconhecer semelhanças de um grupo particular aparecem
como faces de um mesmo processo, como sugere os depoimentos de dois jovens,
uma garota que se identifica como clubber e um garoto que se diz cybermano:
Sílvia, 18 anos: Só vivendo para saber o que é ser clubber, não tem
explicação. É muito de você. Se você perguntar para outro, ele vai te
responder talvez outra coisa, mesmo que ele esteja na mesma balada
que você.9
Thiago, 19 anos: Sou outra pessoa depois de ter virado cybermano.
Ser cyber é me diferenciar dos outros, se diferenciar nas idéias, ter
78
Ricardo Sabóia - Periferia eletrônica
outro estilo de se vestir. Eu sou igual a todo mundo, mas sou diferente
ao mesmo tempo, entende? Não sou um “mano” [do hip hop].10
Paul Gilroy afirma com muita propriedade que “pensar sobre música –
de uma forma não figurativa, não conceitual – evoca aspectos de subjetividade
corporificada que não são redutíveis ao cognitivo e ao ético” (2001, p. 163). Simon
Frith entende que o “paradoxo sociológico” da análise da experiência musical está no
fato dessa ser “socialmente produzida como algo especial”, cuja importância “é tomada
então como se seu significado fosse não produzido socialmente, mas estivesse de
algum modo ‘na música’”, ressaltando que os “fãs acreditam que a música deriva seu
valor de sua alma interior particular” (1996, p. 252).
Admitir tais subjetividades, ao mesmo tempo que é um exercício
necessário para reconhecermos a valoração e a atribuição de significados que os
jovens conferem a esse investimento em ser clubber, exige situar esse mesmo
investimento em um contexto pontuado por uma série de relações sociais construídas
(e não “refletidas”) no consumo de certos gêneros musicais, de determinadas
vestimentas, na demarcação de “territórios” particulares no espaço urbano e no
consumo de canais midiáticos segmentados (programas de rádio de música eletrônica,
principalmente, revistas ou mesmo os flyers que circulam nas festas informando
outros eventos, locais onde os DJs vão tocar, programação mensal das casas etc).
Dois conceitos, reapropriados conjuntamente, podem ser úteis para tratar
desse “paradoxo” que se revela na proposta de analisar essas manifestações culturais
juvenis: “aliança afetiva” e “capital subcultural”.
Grossberg, analisando o rock and roll, descreve a rede de relações
que o constitui tomando como referência a conformação de uma “aliança afetiva”,
a definindo como
organização de práticas materiais concretas e eventos, formas culturais e
experiências sociais que tanto abre como estrutura o espaço de nossos
investimentos afetivos no mundo (1997, p. 31).
O autor discorre sobre essa “aliança afetiva” no processo de
construção sociocultural do rock and roll, mas é possível estabelecermos aqui
um paralelo com a cultura club como um conjunto de práticas e experiências
referentes ao modos do jovem da periferia construir um espaço de seus
“investimentos afetivos”. Esses investimentos remetem aos anseios, à “produção
e organização de desejos e prazeres” (GROSSBERG, 1997, p. 38) que estão
envolvidos na elaboração, por esses jovens, de uma comunidade afetiva
diferenciada no cenário cultural da cidade contemporânea.
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.73-85
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O terreno cultural que constroem, por sua vez, é configurado na
estruturação de um capital (sub)cultural particular. Thornton (1996), apropriando-se
do conceito de “capital cultural” do sociólogo Pierre Bourdieu, posiciona esse capital
como uma forma de conferir distinção e reconhecimento das práticas culturais
específicas que estruturariam o mundo club:
[Os clubbers] constantemente catalogam e classificam as culturas
juvenis de acordo pelo gosto musical, estilos de dança, tipos de rituais
e estilos de roupa. Eles carregam imagens dos mundos sociais que
elaboram a cultura club. Esses mapas mentais, ricos em detalhes culturais
e julgamentos de valores, oferecem a eles um ‘senso de lugar mas
também um senso de lugar do outro’ (Bourdieu, 1990) [...] O capital
subcultural parece ser um moeda de troca que legitima e está
correlacionado a status desiguais ( p. 99, 104).
O “capital subcultural” que constitui a cultura club é construído no
estabelecimento de uma série de hierarquias e valorações de reconhecimento e
pertencimento, de quem poderia ser reconhecido como clubber (e/ou cybermano),
quem é realmente fã e conhecedor dos DJs, dos gêneros de música eletrônica, entre
outros pontos.
No interior da cultura club paulistana, o reconhecimento da condição de
clubber em segmentos sociais fora do universo da periferia por muito tempo foi
controverso (e ainda tem sido em determinados espaços e situações sociais). É nesse
contexto que situo o termo cybermano.
Desde meados dos anos 90, principalmente a partir de 1997, cybermano
tem sido usado como modo de designar o público da periferia adepto da música
eletrônica e da estética visual club por parte dos freqüentadores dos clubes noturnos
dos “Jardins” ou da Vila Olímpia (“áreas nobres” da cidade, redutos de casas noturnas)
e nos veículos de comunicação massivos. Nesse sentido, tem funcionado como rótulo
genérico para classificar o clubber oriundo dos bairros da periferia, substituindo outros
termos estabelecidos pelos freqüentadores dos clubes e eventos das áreas nobres
quando os jovens da periferia começaram a “invadir” seus espaços, como “clubberfavela” ou “clubber-flanelinha”.
Se o termo propagou-se e também adquiriu visibilidade como modo de
diferenciar ou estigmatizar o público da periferia nas casas dos Jardins e nos meios de
comunicação, não há consenso se este se originou naqueles espaços. É que,
simultaneamente ao uso do termo nas casas dos Jardins, jovens da periferia já se
identificavam com o termo “cyber”, em parte com a expressão cyber punk11 , em um
momento que o grupo Prodigy era referência estética cada vez mais significativa com
sua combinação de rock e eletrônica pontuada por referências ao visual punk. Como
80
Ricardo Sabóia - Periferia eletrônica
relata o depoimento de Rodrigo, 21 anos, clubber da Zona Leste paulistana:
Com o impacto do Prodigy, você via muita gente de cabelo em pé,
cyber punk em 96, 97, foi um negócio que virou febre na cena eletrônica.
A gente lembra que a gente saía e só via o pessoal vestido assim, aqui
em Itaquera, amigos meus da [Cidade] Tiradentes, de [Conjunto
Habitacional] Juscelino (Kubitschek), mais o pessoal da periferia mesmo,
isso explodiu. Em 96, num flyer de um salão, eu vi um desenho mó
interessante, pedi para um amigo fazer o desenho e escrever “União
Cyber Punk”. Nossa, aí era todo mundo cyber punk, cyber punk, todo
mundo dizendo “legal pra caramba”. Depois do cyber punk é que surgiu
o cybermano que agora é o que está aí. 12
No interior da atual cultura club da periferia, é mais comum o
estabelecimento de uma diferenciação no modo como se reconhecem: cybermano
seria aquele clubber que, em linhas gerais, investiria em um visual mais agressivo,
com algumas referências ao punk, sobretudo a adoção do cabelo “moicano” e do
“coturno”, e a preferência por sons de batidas mais “pesadas”, como hard techno e
determinadas vertentes do drum’n’bass. Uma parcela do público da periferia, assim,
identifica-se (e é identificada) como cybermano, enquanto outra parcela apresenta-se
apenas como clubbers (contrastando com a imagem que rotula todo clubber dos
bairros de periferia como cybermano). Também é possível identificar discursos de
jovens que tanto rejeitam o termo “cybermano” como o celebram, ou ainda de garotos
e garotas que demonstram certa indiferença em ser designado como clubber ou cyber13 .
Essa (auto)identificação como clubber ou como cyber, em ser visto
como clubber e/ou como cybermano é revelador de como a cultura club, ao se difundir
entre os jovens da periferia paulistanos, envolve uma série de conflitos, lógicas,
hierarquias e referenciais particulares (na elaboração de um capital subcultural particular,
no sentido atribuído por Thornton), sendo construída no diálogo que esses jovens
travam entre si e com outros segmentos sociais, nos modos como se identificam,
buscam reconhecimento e são retratados nos meios de comunicação.
UNDERGROUND E PRÁTICAS ALTERNATIVAS NA METRÓPOLE
Um dos problemas das análises subculturalistas era polarizar as
práticas musicais/culturais em underground/subcultural (formas de “resistência”)
e mainstream (cultura dominante e hegemônica). Situar os gêneros de música
eletrônica na cidade de São Paulo hoje a partir de tal polarização seria inconsistente:
techno, drum’n’bass e trance, por exemplo, são sons que circulam tanto entre os
jovens de classe média e alta como no público juvenil da periferia. Eventos como
o Skol Beats (maior festival privado de música eletrônica brasileiro, com a presença
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.73-85
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de DJs nacionais e internacionais) ou a parada anual de música eletrônica realizada
em São Paulo reúnem um público diversificado.
É preciso reconhecer que os clubbers da periferia e cybermanos situam
seus códigos visuais, gêneros musicais e DJs prediletos, casas noturnas e festas
como elementos de uma expressão cultural alternativa, “diferente” ou underground.
Elaboram referências, valorações e critérios de classificação no interior das
manifestações culturais contemporâneas construindo discursos em que se situam (e
pautam suas práticas) em uma posição diferenciada das expressões que associam a
um mainstream. Nesse caso específico, poderíamos citar a evocação da figura do
“pagodeiro” e do pagode ou do fã de axé como integrantes de uma cultura que os
clubbers da periferia/cybermanos desqualificariam como massiva, ou ainda, no próprio
interior da cultura club, do “modinha” como símbolo do clubber, como sugere a
expressão, seguidor de “moda”, desinformado ou não-comprometido com sua cultura.
É igualmente importante atentar, porém, que essa vinculação a uma
cultura que entendem como underground e a associação de outras manifestações
como mainstream diz respeito a estratégias essenciais na legitimação de suas práticas
e na busca para conferir a elas “autenticidade”, de construir uma identidade distintiva.
Tais estratégias são elaboradas em um diálogo constante com os diversos bens
simbólicos da cultura contemporânea, com a valoração de outros gêneros musicais, a
partir da relação com outros agrupamentos urbanos juvenis. E são traçadas não em
simples (e irreais) configurações culturais isoladas como subcultura ou como
mainstream, e sim nos espaços em que estas constantemente se negociam.
Os modos como a cultura club é apropriada e recriada pelos jovens da
periferia paulistanos sugerem uma intensa negociação referente ao reconhecimento e
a afirmação perante outros grupos urbanos dos bairros de periferia (punks, skatistas,
carecas e manos do hip hop que despontam como grupos “rivais”) e outros setores da
sociedade e às relações que remetem à estigmatização, inserção e exclusão tanto no
interior da cena musical eletrônica como no cenário cultural da metrópole em um
plano mais geral. Representa um investimento que revela, semelhante ao que
Herschmann enxerga no mundo dos funkeiros e dos adeptos do hip hop, a batalha
pela obtenção de “visibilidade”:
Busca-se em última instância, o reconhecimento, reclama-se o “direito
à cidade” e à “cidadania”, esta última considerada tangível pela
visibilidade. O consumo se traduz, portanto, em territorialidades, em
ocupações físicas e simbólicas da cidade (seja ela a cidade física ou a
exibida na mídia), ou melhor, de áreas e lugares dos quais anteriormente
esses grupos sociais estavam praticamente excluídos e são agoras
ocupados, ainda que de forma transitória, por esses jovens. Assim, ao
82
Ricardo Sabóia - Periferia eletrônica
enfocar as territorialidades que essas redes sociais traçam, esperamos
discutir as relações de coexistência entre segmentos sociais que atuam
em uma dinâmica cultural urbana que ora arremessa esses jovens à
margem, ora ao centro (2000, p. 229).
Nos rituais que envolvem essa demarcação em participar de um uma
expressão cultural diferenciada de ser clubber e/ou cyber, ocorre o que Herschmann
define como “prazer lúdico de tomar a cidade” (2000, p. 231). Ao tomarem conta dos
ônibus, trens e vagões de metrô rumo às “baladas”, formam um grande “corpo” em
eventos anuais que reúnem dezenas ou centenas de milhares de pessoas. Ao espetarem
seus cabelos e irem às ruas com um visual chamativo, ao vestirem blusas coloridas
com a inscrição dos seus gêneros musicais preferidos, ao tomarem posse de
determinados espaços privados e públicos, ao comprarem peças falsificadas de grife
clubbers nos camelôs do centro, os clubbers da periferia e cybermanos de São Paulo
vão deixando sua marca e seus rastros na cidade. Ao som de cada batida eletrônica,
em cada passo de dança, constroem suas narrativas como atores sociais, estabelecendo
suas relações particulares de sociabilidade, redesenhando o espaço urbano da grande
metrópole, traçando novas formas de expressão no repertório da cultura
contemporânea.
RICARDO SABÓIA é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura
Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia.
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NOTAS
1. Entrevista concedida ao autor em 06 de fevereiro de 2003.
2. Jornal da Tarde, 27 de novembro de 2000, seção “Frases”.
3. Raves são festas comumente realizadas distante das áreas urbanas,
geralmente em sítios ou praias. Esse modelo de festa firmou-se na Grã-Bretanha
ainda na década de 80, atraindo milhares de jovens para áreas descampadas no interior
do país ou galpões abandonados. Difundiu-se no Brasil nos anos 90, primeiramente
no Rio e posteriormente em São Paulo. O som característico são os gêneros de
música eletrônica, como techno, drum’n’bass e trance.
4. Entrevista concedida ao autor em 29 de março de 2003.
5. Cf. “Manos eletrônicos”, Revista Época, 27 de outubro de 2003.
6. Entrevista concedida ao autor em 05 de junho de 2003.
7. Entrevista concedida ao autor em 24 de outubro de 2003.
8. Para uma discussão a respeito de especialistas e suas atuações no
processo de conferir “autonomia” e “prestígio” de determinadas formas culturais,
cf. Featherstone (1997).
9. Entrevista concedida ao autor em 06 de fevereiro de 2003.
10. Entrevista concedida ao autor em 15 de outubro de 2003.
11. Cyber punk permanece atualmente como referência de um segmento
minoritário do público club da periferia, que investe em um visual menos colorido
(predominando as roupas pretas), mais “agressivo” e alinhado mais diretamente ao
que identificam como “ideologia do movimento punk”.
12. Entrevista concedida ao autor em 29 de março de 2003.
13. Reportagem da Revista da MTV publicada em março de 2003
promove um rico debate sobre os termos “cybermano” e “clubber” como formas de
identificação, apresentando depoimentos de DJs e dos próprios jovens que tinham
participado de uma festa retratada na matéria. Em uma das páginas, destacava-se
uma declaração atribuída a um estudante: “tanto faz o pessoal me chamar de cybermano
ou o que for, mas gosto mesmo que me chamem de clubber. Por que a gente tem
outro nome?” (“Eletroperiferia”, Revista da MTV, número 23, p. 96-99). Outros
textos jornalísticos que pontuam a questão podem ser conferidos na Revista Beatz (“
- Tá de pijama?”, Beatz, n. 2, maio de 2003) e no Jornal Folha de S. Paulo (“Os
donos das ruas”, Folha de S. Paulo, suplemento Folhateen, 20 de outubro de 2003).
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Ricardo Sabóia - Periferia eletrônica
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Data de recebimento do artigo: 28/11/2003
Data de aceitação do artigo: 10/12/2003
Da música pop à música como paisagem*
Denilson Lopes
Tudo é questão de manter
a mente quieta
a espinha ereta
e o coração tranqüilo.
(Walter Franco)
Como os estudos de comunicação têm sido, no Brasil , um campo
poroso aos diversos debates que acontecem nas várias disciplinas das humanidades,
creio que ainda seja um lugar privilegiado para discutir e avaliar algumas possibilidades
do estudo da música no Brasil. Há um certo tempo, os colegas de Letras deixaram de
fazer análises das letras de Chico Buarque, Caetano Veloso, e mais recentemente
Renato Russo e Cazuza, para citar apenas alguns nomes, sem levar em consideração
a música e a tradição da canção ( MATTOS, C. ; MEDEIROS, F. e TRAVASSOS, E.:
2002). A musicologia tem deixado seu reduto tradicional da música erudita e avança
com muita força, especialmente na música popular. Complementando esta discussão,
nossos colegas das ciências sociais - esta talvez seja a perspectiva que mais ecoa na
área de comunicação - fazem uma espécie de mapeamento musical do Brasil urbano,
de suas subculturas, tribos, galeras, incorporando cada vez os meios de comunicação
não só para pensar as condições de produção e circulação de bens dentro de uma
sociedade massiva, mas os afetos e as sociabilidades que envolvem a música enquanto
prática social e comunicativa1 , complexificando a relação exposta de uma forma um
pouco primária no início dos estudos culturais ingleses como grupos de jovens
resistindo ao processo de homogeneização midiática. Cada vez mais os mass media
e o consumo se tornam elementos fundamentais para apreender uma forma de
conhecimento do mundo em que vivemos. Se de fato acreditamos, e eu acredito,
que para se apreender a música deve se ir para muito mais longe do que um mero
formalismo descritivo interno à história da música e de seus gêneros, sabemos
desde pelo menos os primeiros estudos marxistas 2 que todo material sóciohistórico está interno à própria obra. Não se trata de repetir dualidades desgastadas
como arte e sociedade, na busca de mediações que possibilitem compreender a
obra e o que ela nos diz sobre o mundo a que ela pertence. Categorias como discurso,
imaginário, rizoma serviram para abrir nossa compreensão para maneiras mais
múltiplas de compreender as manifestações culturais dentro da sociedade
contemporânea .
86
Denilson Lopes - Da música pop à música como paisagem
Dentro deste contexto, os estudos de comunicação têm aparecido como
um campo fértil para compreender a emergência de uma música pop, na segunda
metade do século XX. Aqui entendida não apenas como sinônimo de descartável,
fácil, pré-fabricado, ainda que possa ser isto também, mas num quadro mais amplo
na elaboração de uma cultura, constituindo-se como um dos grandes vetores da arte
do século XX e que nos remete às questões que ultrapassam o limite da música3 . Ou
seja, a música pop se sustenta cada vez mais no processo descrito tão felizmente por
Néstor Garcia Canclini (1997) como hibridismo em que as hierarquias tradicionais
entre música erudita, popular e massiva são cada vez mais embaralhadas quando não
esfaceladas, na prática e analiticamente. Em contraposição à densidade e ao
distanciamento, valores caros a várias tendências da arte moderna, notadamente
construtivistas e cerebrais; a afetividade e o envolvimento parecem assumir na música
pop uma força suficiente para compreender problemáticas semelhantes, por exemplo,
no cinema e na literatura, servindo mesmo como um referente importante para
compreender todo um caminho da arte dita pós-moderna, pós-vanguarda, no momento
em que o desejo pelo novo e pela transgressão se banalizam como mais uma estratégia
de marketing.
Mas deixando de lado este frágil panorama, me posiciono neste debate
ao considerar a música não só como produto cultural e/ou processo comunicacional,
mas como uma experiência no horizonte de uma estética da comunicação4 .
Há uma diversidade de sentidos na forma como o termo estética da
comunicação vem sendo utilizado, desde para traduzir apenas o impacto das novas
tecnologias da comunicação até o processo generalizado da estetização da vida cotidiana,
presente no trabalho de Michel Maffesoli e Mike Feathestone. Interessa-me reafirmar,
seguindo um filão pragmatista, na esteira de filósofos como John Dewey, Herman
Parret e Richard Shusterman, a necessidade de resgatar o afetivo, o corporal, como
possibilidade de comunicação, para além de posições meramente intelectualistas, tão
presentes na teoria e produção marcadamente modernas que isolaram a arte da vida.
Na perspectiva de uma estética da comunicação é fundamental diluir
cada vez mais não só as fronteiras entre arte erudita, popular e massiva, mas
desconstruir o dualismo entre música experimental e música comercial, fazer dialogar
objetos de valor estético com produtos culturais, não para não considerá-los apenas
como mercadorias dentro de uma indústria cultural, mas reafirmar a centralidade da
reprodutibilidade técnica da imagem e do som como central para pensar a arte do
século XX, para além de qualquer visão instrumental da comunicação, colocando-a
na esfera da possibilidade de compartilhamento de experiência e não da simples troca
de informações.
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.86-94
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Desta forma, pensar uma obra artística como fenômeno comunicacional
implica situá-la em diálogo não só com o solo histórico, com já o fazem há muito
tempo os estudos de sociologia da cultura e da arte, notadamente de vertente marxista,
mas implodir a dualidade arte e sociedade, resituá-la num fluxo de discursos, imagens
e processos que transitam social e temporalmente, como uma narrativa que traduz a
experiência contemporânea. Ao considerar as imagens e os sons como narrativas,
vamos além das considerações que enfatizam os dilemas da indústria cultural, sem
nos isolarmos em visões formalistas à medida que elas se tornam experiências dos
sujeitos contemporâneos.
Ainda que seja imediata na percepção, a experiência traz uma estória,
uma verdade, sempre mediada por discursos sociais, não a verdade (ver SCOTT, J.:
1999, 42). A experiência é o que resta instável no tecido social, impressão, rastro,
vestígio, não de um sujeito isolado, nem da linguagem sem sujeito, mas algo próximo
ao que Raymond William (1977, 128) chamava de estrutura do sentimento.
Ao considerar a música como experiência, estamos nos abrindo para
uma perspectiva em que as linguagens se cruzam e convergem tecnologicamente,
tanto na produção quanto numa recepção cada vez mais marcadas por uma
simultaneidade de meios e sensações. Se houve um momento em que o grande dilema
estava em definir as linguagens literária, fotográfica, cinematográfica, musical e assim
por diante, parece-nos hoje mais rentáveis os espaços de intersecção, já pensados em
termos como multimídia, recorrente na tradição experimental das instalações e
performances, entre-imagens, para definir este espaço de passagens e transformação
de imagens e narrativas, e paisagens, como veremos em seguida.
Resumindo, de que estética ainda podemos falar? E é dela que quero
falar, não só de crítica, leitura, interpretação de obras. Uma estética, sem dúvida
localizada e engajada num tempo e numa sociedade, ao invés de abstrata e universal,
que emerge do embate com as obras mas procura confrontá-las, compará-las,
estabelecer séries, linhagens, a partir de problemas, conceitos, categorias. Uma estética
pop, que não tem medo do fácil, da redundância informativa, do descartável, do
afetivo. Uma estética híbrida, intertextual, transemiótica, multimidiática. Uma estética
centrada na experiência, palavra ardilosa, múltipla, que traz uma tensão constante
entre a possibilidade de acúmulo, transmissão, comunicação e conversação ou/e sua
impossibilidade. Esta experiência está sempre além da arte mas afirma o lugar desta
como forma de conhecimento e de estar no mundo. Uma estética da comunicação,
não dos meios de comunicação.
Portanto, considerar a música como experiência implica associá-la não
só à estética, mas também a uma ética, aqui entendida na esteira de Foucault, como
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Denilson Lopes - Da música pop à música como paisagem
modos de conduta, o que fazer diante da vida. É claro que não se trata de respostas
gerais. Para precisar um pouco mais o que acabo de dizer, vou tomar não tanto como
uma ilustração mas como um ponto de partida para pesquisas futuras que é de ver em
que medida a música é capaz de construir categorias que dêem uma resposta ética e
estética diante do excesso de informação, de rapidez no nosso mundo.
Se a música pop colocou como central os afetos, a noção de paisagem
pode dar uma outra inflexão neste debate. A música pop se constituiu em grande
parte na mística do vocalista enquanto star e no uso da voz como forma de articulação
das experiências dos ouvintes, marcando seus cotidianos e suas memórias. Mas, nos
ano 70 emerge na música pop a elaboração da categoria de paisagem ou ambiência
que possibilita uma alternativa ao excesso do envolvimento romântico com a música,
nos complexos jogos de identificação e estranhamento entre fã e ídolo.
A introdução da noção de paisagem sonora na esfera pop desconstrói o
formato da canção pop, curta e marcada por refrões, associada comumente à tradicional
constituição das bandas de rock com vocal, guitarra, baixo e bateria. Isto está presente
não só na música ambiente, como um subgênero da música eletrônica, mas em várias
formas do rock, chamado por alguns como rock de arte (ver BAUGH, B.: 1994), no
fim dos anos 60 e início dos anos 70, que bem pode incluir uma variedade de tendências,
como o psicodélico e o progressivo, que no diálogo com formas sinfônicas, na
elaboração da música como uma viagem, constrói uma música mais para a cabeça do
que para os pés. Na indissociação entre som e imagem, na incorporação de teclados,
sintetizadores, em usos diferenciados da guitarra, para além do solo, afirmam a noção
da música como ambiência, paisagem. Dando um salto no tempo, podemos identificar
este movimento no pós-punk do início dos anos 80 e no pós-rock (REYNOLDS, S.:
1995) dos anos 90, em detrimento de momentos mais puristas, de ênfase no formato
básico e despretensioso do rock dos anos 50 ao hardcore e ao grunge.
A paisagem, num primeiro momento, se situa na tradição das artes
plásticas, dos grandes pintores do século XIX, como Turner e Constable, passando
pelos impressionistas até chegar às experiências da land art. Mas ao usarmos a
palavra paisagem no contexto da música, ela se situa, por um lado, num momento
em que o conceito de música se amplia enormemente, incluindo a rigor todo som
que é produzido, dialogando com o acaso e com o cotidiano (TOOP, D.: 1995,
36). É neste sentido que R. Murray Schaffer fala de uma paisagem sonora em
que “os ruídos são os sons que aprendemos a ignorar” e de uma espécie de
ecologia sonora que mapea os sons do mundo (2001, 18), em sintonia com as
aberturas realizadas na história da música erudita (por exemplo, Cage) ,
aproximando mais vida cotidiana e arte, desmistificando o processo de
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especialização da música, mas com o risco, no caso de Murray Schaffer, de uma
nostalgia de um mundo pré-cultura de massa.
Ocean of Sound de David Toop parece mais rico, ao fazer uma espécie
de genealogia da paisagem, da noção de ambiência, pelo século XX, de Satie à música
eletrônica pop nos anos 90, através de um mistura de ensaísmo, depoimentos,
entrevistas, narrativas, fragmentos, em que a música de apresenta como “paisagem
onde o ouvinte pode caminhar (1995, XI) . Livro que interessa tanto pela sua
construção em aberto e quanto pela sua aproximação com a música ambiente,
especialmente a um dos seus mais notáveis artistas e pioneiros, Brian Eno.
Seria importante lembrar que inserir a música ambiente em uma tradição
que remonta ao Impressionismo, implica “compreender a sensibilidade impressionista
[que] envolve portanto uma expansão enorme das faculdades de percepção sensual e
um aguçamento da sensibilidade, pois o intelecto sozinho é totalmente incapaz de
apreender o sentido do tempo, do movimento e da vida” (KRONEGGER, M. E.:
1973, 39), diferenciando-se tanto da subjetividade transcendente do romantismo quanto
da objetividade onisciente do realismo (STOWELL, H. P.: 1980, 4). O resgate dessa
trajetória não seria apenas para identificar uma espécie de perversão da leveza quanto
mais dentro da arte da alta modernidade, na medida em que o Impressionismo cede
mais lugar ao Expressionismo e a leveza se substitui pelo excesso, mas também
lançar luzes sobre uma possível e sutil volta da leveza no presente, o prazer de olhar
à deriva, seja nas ficções da viagem ou no desafio do invisível, seja no Minimalismo
ou na música ambiente. Se o Impressionismo pictórico representa hoje um gosto
visual basicamente acadêmico e o culto de imagens e sons atmosféricos acabou se
constituindo numa arma essencial para a publicidade que quer vender uma atitude
antes de vender o produto, isso diz tanto da dificuldade como do interesse do retorno
do Impressionismo como um imaginário no seio da sociedade de massas. O
Impressionismo seria, portanto, menos um efeito de iluminação, um estilo de época
do que um elemento para construir a genealogia de uma estética da leveza para a
contemporaneidade, para a arte que se constrói na pós-vanguarda, a partir da segunda
metade dos anos 70, bem como o vislumbre de um mundo onde a suavidade não só
está presente mas possibilita se pensar em uma felicidade possível, uma “modesta
alegria” (ABREU, C. F.: , 157).
Brian Eno5 constrói sua carreira solo ao se afastar do Roxy Music,
banda glitter que ajudou a criar, e no meios dos anos 70 vai dar uma guinada no álbum
Before and After Science. O primeiro lado remetia as perversões próximas ao Roxy
Music e no segundo, inicia um caminho na recusa do estrelato pop, sua voz começa
a se retirar em favor do instrumental. Ao lado da listas das músicas na contracapa, há
90
Denilson Lopes - Da música pop à música como paisagem
quadros que remetem a paisagens sem a presença humana, recusa tanto do narcisismo
egocêntrico da indústria de estrelas mas também de uma aspereza da música erudita.
Curiosamente, a partir de então, nas capas seu rosto foi substituído por imagens que
evocam mapas. O sujeito se eclipsa como também o objeto, não mais falar de si, nem
dançar em êxtase permanente. Em meio à explosão do punk e do disco, Eno prefere
a discrição de criador de trilhas para novos espaços, das pausas e silêncios, em
contraponto ao ruído e ao excesso, ou ser produtor de de trabalhos como a coletânea
No New York, da guinada terceiro mundista dos Talking Head e da deriva eletrônica
do U2.
Tomamos, como exemplo, a penúltima música de Before and After
Science, By the River. A música remete a duas pessoas, um casal talvez, que contempla
o rio passar. O fluxo do tempo e a correnteza do rio se interligam. A música cria uma
paisagem temporal, ainda no formato curto de uma canção pop, mas no limiar da
dissolução que ocupará seu trabalho seguinte, manifesto da música ambiente, Music
for the Airports, definida como uma atmosfera, ou para usar as próprias palavras de
Eno “ uma influência que nos rodea, uma matiz” que frisa idiossincrasias atmosféricas
e acústicas mais do que as oculta. A musica ambiente leva à calma e constrói um
espaço para pensar, acomoda vários níveis de prestar atenção sem reforçar um em
particular (TOOP, D.: 1995, 9).
Nada de grandioso, retumbante, visceral, apenas detalhes, pequenos
gestos, notas frágeis que evocam um mundo etéreo, tão tranqüilo quanto fugaz,
recuperando o que de melhor o Impressionismo nos deixou como postura diante do
mundo, que dissolveu o eu romântico, suavizou o descritivismo naturalista. O que
resta não é a realidade, nem as emoções em primeira pessoa, mas traços, vestígios,
impressões.
Se nutrindo dos clichês da muzak, da música feita para elevador, para
suavizar ambientes de tensão e trabalho, sem redundar no que vai se chamar de
música new age, trilha favorita de aulas de yoga e meditação, a música ambiente
como encarnada neste trabalho de Eno lança um apelo à beleza do cotidiano, ao
sublime no banal.
Sua atualidade aponta para longe das pistas de dança. A festa acabou.
Ainda que ela continue. E ela vai continuar, quinze anos depois do verão do amor na
Inglaterra. Não a vertigem do ato, mas a serenidade. Não o êxtase, o excesso, nem
o tédio de noite após noite, mas a sutileza, a claridade, a luz, um outro corpo, em
repouso. Não a nostalgia eletro, techno, house, drum and bass, nem a canção pop,
mas o som bruto, o gesto inútil, a voz solta. Não mais dançar, mas contemplar.
Menos altura, menos volume. Menos. Não o grandioso, o retumbante, mas o pequeno,
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.86-94
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o banal. Não o eterno, mas o precário, o que não dura. Não mais confissões,
sentimentos, mas a matéria, o corpo, a pele.
A música não é mais música, é um caminho, uma viagem, um destino,
um espaço, um ambiente, este ou outro. Nada de especial. Um lugar onde se pode
morar. Uma pausa. Um porto. Uma paisagem A paisagem redime o sujeito. A paisagem
não fala de si, é. A paisagem não é expressão, é impressão. Frágil marca. A paisagem
não precisa de porquês, nem de espectadores distantes. Exige pertencimento, naufrágio,
não mais ser, dissolver. Imagem. Quadro. Retorno ao indefinido, ao inumano, ao
mistério das superfícies. Frágil marca, frágil texto. A paisagem solicita a adesão dos
viajantes, andarilhos, nômades. Onde há um lugar para se estar, para falar a frágil fala.
A sutileza como companhia da leveza e da delicadeza. Uma fala baixa, um modo
menor. Viagem poética.
A música é um mar. É preciso desatenção para ouvir. Som repetido,
quase imperceptível, quase invisível. É preciso tempo. É preciso se deixar. É preciso
não ter medo. As ondas vão chegando, envolvendo. Você não quer fugir. Não consegue.
Lentamente, o corpo se torna leveza, ar, água, transparência. Espuma. A música não
é sua, você é da música. Você é música.
A viagem não tem fim. Do ruído emerge a suavidade, um mundo que
não cessa de ser criado. Repouso depois das derivas urbanas, velocidades percorridas,
desencantos, desencontros. Esta música fala da fragilidade do sujeito sem o sujeito.
Nem máquina, nem homem.
Ou se é verdade que o grande consumo da música pop é feito entre
aqueles que têm 18 e 30 anos, talvez esse meu interesse por este tipo de música seja
apenas sinal da idade, apenas senilidade precoce.
DENILSON LOPES é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade
de Brasília, presidente da Associação Brasileira de Estudos de Homocultura , autor de Nós os Mortos:
Melancolia e Neo-Barroco (RJ, Sette Letras, 1999) e O Homem que amava Rapazes e Outros
Ensaios (RJ, Aeroplano, 2002).
92
Denilson Lopes - Da música pop à música como paisagem
NOTAS
* Este trabalho só foi possível graças a DJ Isnt (André da Costa) pelo
convite para participar de performance no lançamento de seu CD Nós os Monstros
(2003) e a Simone Pereira de Sá pelo convite para integrar mesa-redonda sobre música
e comunicação no Encontro Brasil/Alemanha realizado em outubro de 2003, na
Universidade Federal Fluminenense.
1. Entre outros trabalhos, ver CAIAFA, J.: 1985; HERSCHMAN,
M.: 2000; JANOTTI, J.: 2003.
2. E no caso da música a obra de Adorno ainda é uma poderosa
sombra que se lança sobre nós,
3. Como poderíamos desenvolver a partir dos trabalhos de Simon
Frith (1999, 133/150), Bruce Baugh (1994) e Antônio Marcus Alves de Souza
(1995, 13/44).
4. Aprofundei esta questão em LOPES, D. : 2003.
5. Para uma visão mais global da carreira de Brian Eno, ver
TAMM, E.: 1988.
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.86-94
93
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Denilson Lopes - Da música pop à música como paisagem
Data de recebimento do artigo: 20/11/2003
Data de aceitação do artigo: 10/12/2003
A negociação manguebeat:
cultura pop, mídia e periferia
no Recife contemporâneo
Carolina Leão
Da fusão de ritmos regionais (maracatu, samba, coco, ciranda) com o
pop (funk, rock, soul, black, hip hop, punk), desenvolveu-se o manguebeat – síntese
musical que expõe um tipo de sincretismo de ritmos e a interação deles com as
diversas culturas do globo. O tambor tribal juntou-se à guitarra e aos amplificadores
norte-americanos. A tentativa era universalizar esses elementos nacionais, com o
intuito de mostrar e criar uma nova cena para o mundo, conectando o Brasil com o
cenário pop mundial, e estabelecendo, por fim, um diálogo com as manifestações
artísticas que trouxeram à tona um Brasil cosmopolita como o Movimento
Antropofágico e a Tropicália.
Em 1992, o jornalista e músico Fred 04, vocalista e líder da banda
Mundo Livre S/A, um dos principais representantes do manguebeat juntamente com
Chico Science & Nação Zumbi, redige um press release que vem sintetizar as idéias
dessa nova geração de artistas. Intitulado Caranguejos com Cérebro, o release logo se
transformou em “manifesto”, através da crítica musical (principalmente do Caderno
C do Jornal do Comércio) e chegou aos jornalistas causando uma euforia coletiva na
imprensa pernambucana. Dividido em três partes, o conceito, a cidade e a cena, o
pequeno texto foi lançado um ano antes de Chico Science e Nação Zumbi editar o seu
primeiro álbum, Da Lama ao Caos.
O release toma o ecossistema da cidade como metáfora e subverte os
seus princípios ecológicos ao desgaste físico e cultural da metrópole recifense.
Articulando ideologia política e estética, o manifesto traça uma visão de um incipiente
pólo de comunicação no Recife e contextualiza-o em um cenário recortado pelas
transformações das metrópoles na contemporaneidade. O texto reúne três breves conceitos
relativos à cultura do mangue (vegetação típica da cidade) que contêm implícitas
referências ao período histórico marcado pela informatização e pelo capitalismo neoliberal.
No citado “manifesto”, Fred 04 explica o manguebeat da seguinte forma:
Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da
cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era
engendrar um “circuito energético”, capaz de conectar as boas vibrações
dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem
símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111
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O tom do texto é de urgência como pretendem ser os manifestos de
uma forma geral. Como argumenta Fred 04:
O desvario irresistível de uma cínica noção de “progresso”, que elevou a
cidade ao posto de “metrópole” do Nordeste, não tardou a revelar sua
fragilidade. Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que
os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos
anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada à
permanência do mito da “metrópole” só tem levado ao agravamento
acelerado do quadro de miséria e caos urbano.
Sob o fundo da trilha sonora composta por Chico Science & Nação
Zumbi, Recife passa a ter uma visão mais panorâmica da sua cultura urbana no
contemporâneo. Nem popular, nem elitista; nem (ainda) massificada ou mitificada.
Logo, um dos mais famosos slogans políticos das manifestações estudantis do Maio
de 68, inspira o desenho de uma das primeiras camisas da cena cultural que ficou
conhecida como manguebeat: “Sous le pavés, la plage”. Um caranguejo exibia suas
patas tomando o asfalto da cidade “dos habitantes silenciosos”, como outrora definira
Gilberto Freyre. Sobre a cidade, o mangue. A vegetação e os elementos do manguezal
surgem reproduzidos nas telas de camisetas, enquanto um narrador performático,
Chico Science, faz o anúncio de uma nova manifestação social que transformará os
conceitos ideológicos existentes na cultura nordestina.
Dada a intervenção da cena manguebeat no âmbito da música pop,
algumas transformações passam a ser percebidas, também, no espaço social.
Colocando esse jovem modelo artístico dentro do circuito da cultura de massa, o
manguebeat destaca as mudanças pelas quais a cidade do Recife começa a ser conhecida
e reconhecida como um pólo cultural urbano e fomentador de música pop. Socialmente
essas mudanças também afetam a antiga representação feita do Nordeste e pelos
artistas e intelectuais nordestinos nos meios de comunicação. A partir desse momento,
os intelectuais que construíram o suporte para a criação de uma “mitológica cultura
nordestina”, de Gilberto Freyre a Ariano Suassuna, vão cedendo seu espaço midiático
aos jovens articuladores culturais, que resolveram colocar o caos e as maravilhas da
cidade numa narrativa pop.
Recife: um verdadeiro caleidoscópio de culturas cujo aspecto visual nos
remete aos grandes centros urbanos da pós-modernidade, nos quais a relação entre
tradição e tecnologia é exposta no espaço social. Nesse mercado global de estilos,
vemos outdoors eletrônicos disputando sua visibilidade com fotos de um caboclo do
maracatu rural coladas nos muros da cidade. Outdoors exibem elementos da cultura
popular, enquanto os casarios do Recife antigo são reformados para abrigar o público
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Carolina Leão - A negociação manguebeat
noctívago, consumidor de uma tradição reformulada para vender uísque, soda e
diversão. Como continuar, portanto, exaltando a cidade em meio à transformação do
espaço urbano e de um novo estilo de vida comungado pelos jovens cidadãos recifenses?
Dessa forma, o manguebeat tenta se colocar como contraponto de outros
estilos e movimentos culturais nordestinos. Recife passa a ser, portanto, um dos
principais expoentes de uma nova “comunidade imaginada” (HALL, 1998: 17) que
ressalta as várias características da cidade brasileira imersa na cultura pós-moderna.
E dela se desenvolve um novo discurso sobre a identidade nacional surgido das zonas
periféricas, de movimentos sociais que contestam e transgridem as diversas
representações institucionalizadas da cultura nordestina através do Estado de
Pernambuco.
O manguebeat respondeu de outra forma ao partidário discurso cultural
brasileiro que se caracterizara por excluir ou o nacional ou o estrangeiro. Chico Science
& Nação Zumbi destitui a cana-de-açúcar da época da colonização como símbolo
nacional e adotou a diversidade dos manguezais. O que corresponde a uma visão ou
teoria mais ampla sobre a dinâmica da globalização: as culturas monolíticas
(metaforizadas pela monocultura da cana-de-açúcar) não poderiam ser tomadas como
suporte de uma sociedade que funcionava com uma sobrecarga de informações
tecnológicas, conceituais e visuais.
Logo, os projetos culturais e artísticos da identidade nacional brasileira
são “mixados” a estas várias experiências heterogêneas como um processo natural,
conseqüente da própria quantidade de informações que os seus produtores recebem
como cidadãos pertencentes a um mundo globalizado. Há uma abertura cultural, nas
manifestações socais, que vem absorver o universal e uni-lo ao local. Dessa forma,
o projeto de uma nova identidade nacional, produzido nos bairros da região
metropolitana recifense, torna-se mais uma expressão de autonomia cultural de grupos
e classes sociais que se encontram na periferia, de um país que se encontra na periferia
da organização política mundial, do que uma manifestação arquetípica do povo brasileiro.
Nesse sentido, parece improvável também que a geração de artistas da
qual o manguebeat faz parte se autonomize da esfera econômica e busque a
transformação estética simplesmente com base na informação de sua localidade.
Promovendo um mix de idéias que abordam desde a Antropofagia Paulista ao
psicodelismo da Tropicália, o manguebeat estabeleceu uma nômade incursão por
esses projetos tornando-os elementos históricos e estéticos dentro desse caldeirão
multicultural proposto por seus integrantes. Porém há uma “negociação”, entre todos
esses movimentos, que recria um fluxo cosmopolita e permite uma troca maior de
informações ao colocar a cultura da metrópole dentro desse contexto pluralizado.
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111
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Incluído nesse processo, o manguebeat revela uma geração de jovens
que cresceu ouvindo música pop importada de Londres e Nova York e cujo comentário
estético englobaria tanto as questões referentes ao seu grupo social de origem, como
o musical, quanto, sobretudo, as inúmeras expressões urbanas que, por fim, formam
o núcleo central de seu questionamento. O caráter homogêneo que porventura dominara
o contexto artístico em expansão durante o século XX dá lugar aos hibridismos
socioculturais. Os quais, na cidade do Recife, se observam na problemática da vida
cotidiana em confronto com a realidade urbana, o imaginário pop e a fantasia popular,
representados aqui pelos jogos publicitários que brincam com os mesmos signos que
compõem as metrópoles. Ser mangueboy é pertencer à cidade, escutar música pop
pelas rádios locais e manter uma identidade conectada à juventude dos grandes centros
culturais.
A cidade é pop. Veloz e fugaz, ainda se traduz como o arquétipo da
modernidade, conceito fincando nos ideais de desenvolvimentos sociais iluministas
pelos quais se edificaram os sistemas filosóficos da história moderna. Esta teve a
incumbência de atribuir aos centros urbanos a categoria de espaço onde o saber, a
ciência e o progresso seriam fomentados através de universidades e outros mecanismos
de racionalização. Ainda que tenha tardiamente recebido essas informações, o Recife
figura numa prática que explora os conceitos surgidos da modernidade enquanto
projeto inacabado. Pelo menos nessa cidade periférica da América Latina ainda é
tempo de dar andamento aos princípios elementares a uma sociedade intelectualmente
e organicamente avançadas, segundo a proposta da estética mangue.
A mistura da sua embolada com o rap é, para o Fred 04, uma atitude
modernizante ou a evolução tecnológica que por fim chegou à periferia da cidade –
onde, ao invés da ciência, a cultura configura-se como o movimento condutor da
transformação. A modernidade, o moderno e toda carga racionalista que o conceito
carrega é claramente expresso nas canções do grupo cuja referência ao progresso
praticamente ignora que este não chegou a este ponto da terra porque ele não foi
incluído na noção de evolução da humanidade proposto durante o período iluminista.
Mais que uma condição natural do desenvolvimento da sociedade pósmoderna, o hipotético cosmopolitismo, permitido pela globalização das culturas, é
uma estratégia para enfrentar e criar os próprios mecanismos que venham dar o tão
clamado progresso à cidade. A cultura como movimento é sugerida pelo manguebeat
que tematiza a cidade, seu caos e maravilhas, como a fonte de composição artística,
o espaço onde a arte cria seus comentários.
Há a exposição e projeção da cultura popular (samba, maracatu) através
das citações e da necessidade de modernizar a cidade sem que outros elementos
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Carolina Leão - A negociação manguebeat
artísticos estejam excluídos do discurso que faz desse cosmopolitismo urgente um
novo paradigma cultural através dessa manifestação social. Nesse caso voltamos a
uma questão fundamental relativa à arte da América Latina na contemporaneidade:
A indústria da informação saturou os países latino-americanos com
filmes, vídeos, livros, exibições, aparatos eletrônicos e espetáculos
multimídia provenientes do estrangeiro, criando territórios
supranacionais nos quais as fronteiras entre eles e nós estão se diluindo.
Nesses espaços, a oposição entre o próprio e o distante se apaga na
medida em que os bens culturais e o consumo são desterritorializados.
Assim, somos arrebatados de nossos contextos originários e integrados
a novas localidades globais. (Mendieta, 1999).
No desenvolvimento do manguebeat, os líderes dessa cena, Chico
Science e Fred 04, explicam a experiência da contemporaneidade enfatizando o
imaginário contido nas estéticas, mitos e ritos presentes na cultura urbana recifense.
Esta tem sua égide no espírito pós-moderno, o qual pode ser revelado na complexidade
do seu multiculturalismo étnico, estético e social. O mangue toma a própria metrópole
pra explicar as contradições socioeconômicas do Recife que acolheu durante a sua
urbanização uma massa de desempregados vindos do interior do Estado em busca da
‘oportunidade” da capital. Mas fala também do jovem consumidor de música pop
que, mesmo não podendo obter materialmente os elementos que fazem parte dessa
cultura, está incluído nela em conseqüência dos processos globalizantes. O manguebeat
vem, portanto, popularizar a idéia de que já não é mais possível conceber os processos
globais em torno da dominação de um centro único sobre periferias.
Um dos primeiros conceitos que viriam chamar a atenção para o grupo
Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ) foi o de vanguarda. Com Da Lama ao Caos,
CSNZ ganhou destaque na mídia por apresentar uma visão crítica da periferia recifense;
conquistando a simpatia de músicos veteranos como Gilberto Gil e Arnaldo Antunes
com sua estética manguebeat. O fato de ter recriado um novo discurso sobre o
Nordeste ou compor sua linguagem mixando informações já utilizadas pela cultura
pop impulsionou a sua celebração pela geração mais antiga da MPB. Mas foi o diálogo
que ele manteve com a cultura da cidade, mais especificamente da periferia, o motivo
pelo qual ele foi caracterizado como uma cena vanguardista. Não por trazer quaisquer
novidades ao universo pop, mas principalmente por seu discurso constituir um
posicionamento crítico num momento no qual a juventude artística havia “abandonado”
os temas transgressores que, anteriormente, tinham caracterizado toda uma produção
contracultural.
Bem aceito por jovens da classe média e pela intelectualidade local, até
mesmo por setores mais conservadores da sociedade (como o Governo do Estado e,
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111
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em menor intensidade, por personalidades como o escritor e criador do Movimento
Armorial, Ariano Suassuna) o manguebeat teve alguns representantes da periferia
integrados a sua articulação, mas foi no campo midiático que obteve o seu êxito.
Representando alguns elementos da periferia com suas informações pop, a cena mangue
conseguiu furar o cerco da grande indústria da música trazendo à massa,
espontaneamente até (pelo tom popularesco e sua moda até certo ponto performática),
o conceito de exótico tão consumido pelos meios de comunicação.
O destaque colocado sobre o papel das comunicações de massa enquanto
fenômeno importante na era da modernidade permite considerar as
representações com um fenômeno capaz de explicar o modo pelo qual o
novo é engendrado nos processos de interações sociais e, inversamente,
como estes nos produzem as representações sociais (Nóbrega, 7).
Ainda que esse exótico tenha feito parte do cotidiano no Recife com seu
folclore e elementos popular, a sua utilização veio se firmar na cultura jovem como
parte desse processo de transformação dos elementos regionalistas sob o aval do
ímpeto cosmopolita proporcionado manguebeat. Uma abertura para a história pósmoderna globalizada que identificaria esses grupos sociais como consumidores e
produtores do manguebeat. O fato de problematizar a cultura não significaria apenas
um posicionamento político mas sim um resultado desse processo dialógico da
apresentação x representação. Apresentando suas músicas, reforçada pelo caráter
imagético do grupo, CSNZ traçou um panorama cultural da capital pernambucana e
legitimou seu discurso, considerado da periferia, baseado nos símbolos que lhe
garantiram visibilidade no meio social. Alguns componentes dessa cena faziam parte
da região periférica da cidade; outros não. CSNZ é periférica em alguns significados
que esse verbete pode suportar. É nacionalmente periférico por estar situado no
Nordeste; é localmente periférico por ter surgido nos subúrbios da região metropolitana,
o que não o torna, em nenhuma hipótese, o “herói oprimido do sistema”. E por mais
que tenha existido esse confronto entre sistema x periferia ou o consumo do discurso
mangue por uma parcela da população local que não fazia parte do “gênero periférico”,
ele deu uma abertura para se questionar essa problemática. Como emblematicamente
fala a música Manguetown:
Estou enfiado na lama é um bairro sujo/onde os urubus tem casas e eu não
tenho asas/mas estou aqui em minha casa onde os urubus tem asas/vou
pintando, segurando as paredes do mangue do meu quintal manguetown/
andando por entre becos, andando em coletivos/ninguém foge ao cheiro
sujo da lama da manguetown/Essa noite sairei, vou beber com os meus
amigos/e com as asas que os urubus me deram ao dia, eu voarei por toda
periferia.
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Carolina Leão - A negociação manguebeat
A cidade, antes de se colocar como um local onde as diversas culturas
se encontram, é um território da diferença. Diversos papéis e representações sociais
se intercruzam em hierarquias e critérios normativos impostos pela sociabilidade.
Nesse ambiente, de certa forma fechado aos outros que circulam com suas variadas
posições sociais, a comunicação das particularidades de um sujeito urbano é
problematizada pelos vários discursos dos Eus existentes hoje. O manguebeat de
CSNZ fala dessa experiência. Mas fala onde? Como? Para quem?
Inúmeros cidadãos que circulam pela cidade não têm informação
suficiente para falar, se expressar, construir uma linguagem ou estão privados da
expressão por justamente não saberem o quê falar. Mas apesar do acesso “negado” à
fala eles organizam uma identidade pela qual os reconhecemos enquanto sujeito. A
identidade é um modelo discursivo que garante visibilidade e caracteriza um
determinado grupo social em relação aos outros tantos existentes na urbe
contemporânea. O manguebeat construiu sua identidade e foi rotulado como a
expressão do sujeito periférico. Mas os anseios, as vozes e desejos daquele sujeito
tiveram uma tradução bem elaborada pelo mix de cultura pop que o manguebeat
proporcionou aos seus consumidores. Conforme explica Eduardo Mendieta, sobre a
crítica pós-colonialista, eles os agitadores culturais do manguebeat:
Não se vêem a si mesmos como profetas que articulam a voz do oprimido,
como guardiões de alguma tradução cultural extra ocidental ou como
representantes intelectuais do Terceiro Mundo. Sua crítica ao colonialismo
não está motivada pela crença em um âmbito - moral ou cultural - de
“exterioridade” frente ao Ocidente e muito menos pela idéia de um retorno
nostálgico a formas tradicionais ou pré-capitalistas de existência. (Mendieta,
1999).
Chico Science & Nação Zumbi teve uma boa circulação das rádios
nacionais, chegou ao topo das paradas de world music e foi trilha sonora de novela da
globo. Se hoje os meios de comunicação ocupam um espaço que deveria ter sua
origem no Estado através da educação e da cultura, a mídia se torna, então, o ventríloquo
que permite a essas cenas sociais, como o manguebeat, serem ouvidas pela sociedade.
A cultura de massa surge, portanto, como o espaço onde esse crossover da cultura
marginal para a de massa é produzido e mantém-se como o entre-lugar dentro do qual
se negocia a ambigüidade entre o popular e o social.
Ainda assim, a idéia do CSNZ ser um expoente da periferia e dar voz ao
sujeito periférico fez com que ele fosse reconhecido enquanto movimento políticocultural. A forma como sua narrativa ecoa dá voz aos periféricos, mas não é ele que
fala ou se representa socialmente através da cena mangue, embora a cultura midática
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111
101
a tenha exposto como o articulador da periferia. A questão da identidade ou
representação desta aparece na tentativa de rearticular a relação entre sujeitos e práticas
discursivas. “As identidades culturais são os pontos de identificação, os pontos instáveis
de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e da história.
Não uma essência, mas um posicionamento” (Hall, 1996:70).
O que necessita ser questionado, no entanto, é o modo de representação
dessa alteridade, que depende da forma como a cultura oficial a absorve. Mas mesmo
que tenha criado esses estereótipos (ancorados em identidades e estéticas) estariam
eles mais plurais e com a possibilidade de serem substituídos por outros sem que o
movimento original tenha sido extinto? O estereótipo seria ainda a principal forma
usada pelo discurso colonial para acolher essas estéticas e gêneros sociais, como
critica Spivak:
Do outro lado da divisão internacional do trabalho pelo capital socializado,
dentro e fora do circuito de violência cognitiva da lei e educação imperialista
que complementa um texto econômico anterior, os subalternos não podem
falar? (1995: 25).
Como prova o manguebeat é possível sim falar a partir do espaço da
alteridade mesmo que seja, nesse caso, através de um ventríloquo chamado meios de
comunicação. Nesse sentido, entra novamente como fator determinante desse diálogo
os elementos exóticos pertencentes ao grupo. Trata-se de adotar essa linguagem por
uma questão bem óbvia ao mercado cultural: a sua necessidade por novidades. E o
novo está exatamente na possibilidade de fazer da estética manguebeat um modelo de
consumo social e econômico. A mídia e a cultura de massa estão naturalmente prontas
para obter essas novidades. E CSNZ também estava inserindo nessa dinâmica social
quanto obteve dos meios de comunicação o caminho de fácil acesso à sociedade. A
TV e o rádio, principalmente, seguidos pelas revistas de moda e música, prontamente
se dispuseram a descobrir que tipo de linguagem artística era aquela que mixando o
local ao global não deixava de garantir o quinhão de visibilidade para periferia recifense
– de onde essa cena também surgira.
O que nesse caso reduz o campo de compreensão dessa alteridade e
implicaria uma perda da própria identidade do artista da periferia; posto que, consumido
independente de classes e opções sociais, o manguebeat foi apenas uma das
representações desse ambiente urbano marcado pela dificuldade de expressão social.
O que pode ser observado com o manguebeat é a sua celebração como o “movimento
da periferia brasileira” quando no máximo ele foi uma das representações dessa cultura
subalterna.
Esta tem um movimento diário próprio que inclui diversão nos subúrbios
102
Carolina Leão - A negociação manguebeat
da cidade ao som de música brega. Mas que também não deixa de ser apresentada
com outras particularidades específicas à juventude dessa periferia que, mesmo com
todo “esforço” de CSNZ, ao ser processada como produto da massa para os meios
de comunicação transformou-se num objeto de consumo como tantos outros. Nesse
momento, passou a ser “legal” pertencer à periferia. Mas como quem fala nesse caso
não são os cidadãos periféricos e sim os artistas que adotaram essa questão na sua
temática chegamos novamente onde tantas outras cenas culturais haviam partido: à
falsa representação da realidade por meio de estereótipos e fetiches.
A estereotipia designa um estado de simplificação das dimensões dos
estímulos, do imediatismo da reação e, às vezes, de rigidez. Em outro nível,
mais freqüentemente, esta noção exprime o grau de generalidade de uma
opinião, de aceitação ou de rejeição de uma representação de um grupo ou
de uma pessoa. O estereótipo consiste numa resposta que é ao mesmo
tempo genérica e reducionista à simplificação dos fatos (Nóbrega, 24).
Como o ventríloquo que ludibria os espectadores com truques falsos,
CSNZ via meios de comunicação traz uma realidade marcada pela diferença e
desigualdade social que pode muito bem virar um clichê ou um momento “curinga”
para a manipulação das massas. Como se estivessem dando à chance desse artista e
cidadão periféricos falarem de sua problemática, os meios de comunicação também
negociam uma forma de apelar para o senso comum e chamar a atenção do seu
público para aquele produto criado pelas minorias sociais. Entram em cena os
estereótipos e as formas que traduzam essa experiência artística da melhor maneira
possível ao consumo massificado. “Estereotipar não é criar uma imagem falsa que se
transforma no bode expiatório das práticas discriminatórias. É um texto muito mais
ambivalente” (Bhabha, 1991: 198).
Ambivalência que nos leva a crer que como toda criação de uma imagem,
estereotipar depende também da forma como o ser representando se apresenta
publicamente e o que faz com sua linguagem ou discurso seja apreendida por meio de
um conceito fixo e fragilizado. Mas tal constatação nos levar a um vazio existencial já
que é da qualidade humana se fazer aceito, ou aceitar, por meios de sínteses pessoais
ou “resumos” que caracterizem um determinado grupo.
Se as culturas populares, como observa Canclini, “se constituem por
uma apropriação desigual dos bens econômicos de uma nação ou etnia por parte dos
seus setores subalternos” (1996: 17) o resultado desse processo seria, entre outros, a
reprodução e transformação dos seus possíveis bens simbólicos e, consequentemente,
a adaptação destes às condições gerais da vida social. Ou melhor: produtos surgidos
no território de uma cultural não-oficial estariam sujeitos a serem representados numa
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111
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forma bem adaptada ao consumo massificado, que rejeita as particularidades e absorve
um resultado padronizado à sociedade de massa.
Sobre esse mecanismo de representação, apresentado via estereótipos e
fetiches, Homi Bhabha destaca que ele funciona como “um aparato que acende o
reconhecimento e a negação das diferenças raciais/culturais/históricas. Sua função
estratégica predominante diz respeito à criação de um espaço para a subjetividade das
pessoas através da produção de conhecimento em termos de a vigilância ser exercida
e a forma complexa de prazer/desprazer, incitada” (Bhabha, 1991: 191).
Característica típica do pós-moderno que constantemente alterna seu
interesse pelo exótico ou diferente conforme a permanência ou fugacidade que aqueles
possam ter no campo midiático. Geralmente, essa característica pode ser observada
em cenas culturais ou estéticas que repentinamente se tornam aproveitáveis por trazer
nos elementos formadores de sua estrutura quaisquer diferenciais aos que são
consumidos diariamente no cotidiano das grandes cidades. Estas também estão
situadas, juntamente com a prática da “adaptação massificada”, nos países pobres da
periférica América Latina, cujos movimentos culturais vêm se revelando como um
dos principais exemplos dessa ambígua relação entre originalidade e universalidade,
representação, estereótipo ou como sugere Homi Bhabha, substituto e sombra.
De uma forma mais ampla, esse complexo relacionamento teria se
formado no início do século XX quando os movimentos de grupo surgem como uma
resposta ao “fracasso” da cidadania universalizante da modernidade. Nesse momento
não se tratava mais da dialética de classes, mas sim de grupos. Mediante o
desenvolvimento de questões sociais ligadas aos gêneros (raça, crença, estilo de vida,
sexualidade, entre outros), confrontava-se a problemática do homem contemporâneo.
Este começa a ter acesso político a sua cidadania por pertencer a um grupo específico,
que lhe dava a garantia de ser ouvido pelo sistema social, ou até mesmo integrá-lo
como cidadão, ao destacar as características biológicas, genéticas ou culturais
elementares a sua personalidade.
Inclusa também nesse processo, a arte da pós-modernidade tanto passa
a ser o meio pela qual se constróem linguagens auto-referenciais quanto se revela a
estrutura propulsora de comportamentos baseados nessa tendência da aceitação da
diferença. Afinal, não só as questões referentes às singularidade de cada cidadão
(como a raça e a classe econômica) passam por uma estratégia de representação
como também a experiência artística chega a um momento no qual desloca-se do seu
ambiente de origem para alcançar todas as esferas sociais, indiscriminadamente.
A instância antietnocêntria revela uma estratégia que, ao reconhece o
espetáculo da alteridade, concebe um paradoxo central a estas teorias. Para
104
Carolina Leão - A negociação manguebeat
se compreender a crítica do logocentrismo e idealismo ocidentais, é
necessário que haja um discurso constitutivo de perda, imbricada numa
filosofia da presença que torne possível uma leitura descontrutivista e
diferencial nas entrelinhas (idem: 99 ).
Esteticamente, a América Latina foi o local onde o crossover da cultura
popular para a de massa se desenvolveu com maior rapidez e intensidade no circuito
da música pop. Começando com pequenas cenas e movimentos artísticos ao redor
do globo, a música pop latina começou a ter destaque nos meios de comunicação de
massa no início dos anos 80. Paralelamente a uma abertura político-econômico aos
países latino-americanos, os centros fomentadores da cultura pop nesse momento,
Estados Unidos e Europa, começaram a absorver a música que surgia em locais
como Porto-Rico. É óbvio que o inglês continuava como a língua oficial da cultura
dominante. Mas fenômenos de massa como o grupo porto-riquenho Menudo, por
exemplo, mostravam que os holofotes do showbizz concentravam suas luzes também
para o produto do ainda chamado terceiro-mundo.
Nesse momento surgem também categorias musicais específicas como
a world music, um rótulo dado ao mix de sons, culturas e etnias que se desenvolvera
na derrocada da cena pós-punk e que para os hit parades significa a expressão da
musicalidade terceiro-mundista. Atualmente, os grandes prêmios de música pop, como
o Billboard Award e o Grammy, criaram espaços exclusivos para o gênero world
music e destacam na suas edições anuais as novidades do pop latino (colombiano,
argentino, brasileiro) que tanto podem ser fenômenos equivalentes ao Menudo como
representantes da música popular/folclórica de tais países.
Simultaneamente esses artistas são apresentados como o outro do sistema
oficial (aquele que, principalmente, não canta em inglês) e representam, de certa
forma, a imagem que se faz da América Latina nos meios de comunicação. O ato de
representar-se, obviamente inerente à condição humana, mediante os elementos
constitutivos de cada linguagem passa necessariamente pela reprodução de uma
imagem. Esta funciona como a síntese sensorial do outro, facilitando o acesso ao seu
universo da forma mais prática e simples possível. As imagens representam
iconograficamente, isto é, por meio de semelhanças. E é na semelhança, ou na
possibilidade de um elemento que a coletividade comungue com as cenas e grupos
específicos, que se encontra a porta de entrada para a aceitação da diferença.
Aparelhamento funcional do estado, políticas estruturais viáveis,
sociedades civis democráticas devem ser concebidas em relação a
circunstâncias específicas de determinados países latino-americanos e não
modeladas a partir do paradigma dominante da modernidade ocidental.
(Yúdice, 1991: 96).
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111
105
Quando o manguebeat se utiliza de imagens para acompanhar sua
performance musical ele resume iconograficamente uma certa narrativa, que por
meio de caranguejos e parabólicas sintetiza o conceito de sua linguagem híbrida. As
imagens, isto é, os tais ícones são a materialidade de um discurso que criou outras
representações para a identidade nordestina. Talvez, essa cena não tivesse sido tão
consumida caso não houvesse um elemento que facilitasse a entrada a esse universo
estético. Mas por conter um certo aparato de performance e imagens referentes a um
conceito específico, o manguebeat conseguiu adentrar em espaços socais que incluíam
desde a juventude da periferia ao consumidor de música pop de uma forma geral, cuja
informação era proveniente da mídia.
Por isso, quando se destacam as cenas culturais latino-americanas, por
exemplo, faz-se de forma que os elementos mais expressivos que componham a sua
imagem para o mundo se sobressaiam, incluindo a tendência de mitificar o seu exotismo
ou sua excentricidade.
O estereótipo não é uma simplificação por ser uma representação falsa de
uma realidade especifica, mas uma simplificação falsa porque é uma forma
de representação fixa e interrompida, que ao negar o jogo da diferença cria
um problema para a representação do sujeito em acepções de relações
psíquicas e sociais (Bhabha, 1991: 193).
Pois, afinal, o que pode ser expressivo para o “eu” latino-americano não
significa necessariamente que seja também para o “outro”, seja qual for a sua origem
e posicionamento político. Uma dicotomia presente nas relações culturais
contemporâneas que criam mecanismos de aceitação ou rejeição por meio do
desenvolvimento de estereótipos, processo que fixa imagens e conceitos nesse caminho
do reconhecimento. Ou como destaca Bhabha, a representação via estereótipo se
transformaria, além de um caminho de fácil acesso, num fetiche.
Entretanto, se atravessamos o milênio baseando a experiência
cotidiana na mobilidade das identidades culturais, como aceitar a fixação de um
conceito sob determinado ponto de vista já que o mesmo pode atualmente ser
facilmente modificado conforme a velocidade pela qual caminham os aspectos
ligados a identificação social? Modernistas são antropófagos; regionalistas,
conservadores, tropicalistas, performáticos, armoriais, retrógrados e marginais
(malditos). A cada cena cultural brasileira corresponde uma identificação estética
que dialoga não apenas com a linguagem artística presente no seu discurso bem
como com a realidade social na qual está inserida. E o manguebeat, uma das
principais cenas da cultura brasileira contemporânea quiçá da própria América
Latina, de que forma estaria inserido nessa dinâmica?
106
Carolina Leão - A negociação manguebeat
O manguebeat revela algumas influências das estéticas que formaram a
identidade da cultura brasileira. Mas é importante destacar que não se trata de assumir
a linguagem do outro, mas de combiná-la ou até mesmo confrontá-la. Eles também
são performáticos como os tropicalistas e pretenderam atingir o local através de um
cosmo unificado. Mas toda a sua representação cênica passa pelo contexto globalizado
no qual ele surge. Um ambiente onde a permissividade para os tantos outros dessa
cultura mundializada é permitida pelo fácil acesso ao global, através da mídia, e a um
passado histórico que fundamentara a identidade nordestina durante o período da sua
modernização, no século XX. Eles deixam de ser antropófagos para serem sujeitos
híbridos, resultado da própria experiência social vivida no território urbano.
Ao usar a cultura popular nordestina como suporte artístico, o
manguebeat praticava a antropofagia, outrora vanguardista, que no pós-moderno
seria apresentada como o mix do local ao global. Mas se formos voltar ao movimento
cultural que o antecedeu, o Armorial, vemos que, apesar de utilizar a cultura popular
como recurso estético, ele não faz parte de uma cena que tenha por objetivo levar a
expressão do “povo para o povo“ como estandarte. A cultura popular está inserida
nessa linguagem com intensidade semelhante ao funk, samba, rock e hip hop. E é
justamente na possibilidade de mixagem desses elementos que surge um dos mais
fortes estereótipos desse grupo. A fusão de sons e idéias se tornou o meio pelo qual
CSNZ caracterizou toda uma geração de artistas pop com base nas suas colagens
musicais. É pouco provável que a mídia hoje, principalmente do eixo Rio/São Paulo,
não faça, depois do manguebeat, referência a esse hibridismo estético - cujo êxito foi
representar o novo artista nordestino como aquele que quer ser cidadão do mundo via
sampler e tecnologias.
Negando ou identificando-se com as cenas que compuseram o panorama
cultural do País, Chico Science & Nação Zumbi propôs “modernizar o passado e
exigir uma evolução musical” mas também criou e foi representado por seus estereótipos
e acabou sendo fetichizado, posteriormente, pela cultura de massa que utilizou imagens
e conceitos para impor um discurso manguebeat na mídia. Dessa forma, ele foi exaltado
pela cultura oficial por praticar essa comunicação com as informações universais. O
que, finalmente, levou a caracterizar os grupos locais que produziam qualquer tipo de
mix, até mesmo aqueles cuja mistura tinha como base o rock e o funk sem a inclusão
da cultura popular em sua estética, como produto do manguebeat ou influência deste.
O hibridismo faz parte de uma conseqüência até de certa forma natural
à cultura contemporânea, que tem uma infinidade de movimentos e estéticas para
recorrer através do passado ou das experiências correntes. O grande problema desse
hibridismo que vira um fetiche (o fácil acesso ao outro através de uma falsa realidade
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro 2003, pp.95-111
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ou representação) foi, talvez, ter eclipsado algumas questões concernentes à cultura
periférica da qual ele faz parte. Ao enfatizar a adoção do cosmopolitismo como o
grande momento em que o artista subalterno recifense conseguiu adentrar no espaço
público, a cultura de massa e o senso comum esquecem que na periferia também há
diferenças e nem tudo que é periférico no Recife é manguebeat. Nem todas as
expressões sociais produzidas por essas minorias pretendem ser cosmopolitas ou
fazer parte da cultura de massa, ainda que venha a ser influenciada por esse quadro
no qual mídia e globalização são palavras de ordem.
É claro que ao invés de um confronto, o manguebeat preferiu negociar,
por meio de mecanismos como o próprio hibridismo, com a cultura globalizada. Mas
sua negociação, por mais que tenha tornado heterogênea a sua identidade cultural,
também produziu uma gama de estereótipos com os quais se identificou posteriormente
toda uma geração de jovens consumidores de música pop no Nordeste. Como observa
Homi Bhabha, o fetiche ou o estereótipo também “possibilita o acesso a uma identidade,
que, sendo uma forma de convicção múltipla e contraditória, se baseia tanto no domínio
do prazer quanto na ansiedade e defesa” (Bhabha, 1991:”179).
Ao fixar essas imagens no imaginário dessa nova cultura nordestina,
CSNZ criou seus estereótipos da mesma forma que outros movimentos regionalistas
criaram. E como um véu invisível, essa representação foi adotada pela cultura de
massa como o momento no qual o periférico foi ouvido pelo sistema. Mas estamos
falando de que periférico? Posto que consumido pela classe média e divulgado pela
cultura de massa, ele circulou entre jovens que tinham poder aquisitivo suficiente
para comprar discos e camisetas e ir aos shows de Chico Science & Nação Zumbi.
Ressaltando ainda que o estereótipo do hibridismo manguebeat fez valer essa noção
de que a periferia estaria, finalmente, sendo apresentada ao domínio público, o qual
conheceria as suas mazelas sociais conforme consumisse a música (supostamente
panfletária) de Chico Science & Nação Zumbi.
CAROLINA LEÃO é mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.
108
Carolina Leão - A negociação manguebeat
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111
Sintonizando a música brasileira
De olho nos ritmos urbanos
Os novos ritmos e sons urbanos – que emergem e/ou são reelaborados
em diferentes regiões do país, ganhando visibilidade com auxílio da mídia tradicional
ou por intermédio das novas tecnologias interativas de informação e comunicação –
desafiam observadores e pesquisadores. Entre os exploradores deste vasto e intricado
campo, destaca-se, sem dúvida, o nome do antropólogo Hermano Vianna, autor de O
mundo funk carioca (1988), O mistério do samba (1995) e inúmeros artigos e ensaios
que se tornaram referências para os estudos (de cunho sócio-antropológico) da música
no Brasil. Vianna, porém, está muito longe de ser um típico intelectual de gabinete:
irrequieto, atua, também, como roteirista de televisão e cinema, tendo trabalhado nos
documentários musicais African Pop, Folia na Bahia, Baila Caribe e Música do
Brasil.
Nesta entrevista, ECO-PÓS instigou Vianna a tratar de temáticas
controversas que perpassam o universo da Comunicação e da Música, tais como: o
impacto das novas tecnologias sobre a produção musical (especialmente, a eletrônica),
o papel do DJ na criação musical, os novos rumos do mercado fonográfico e o
despreparo dos jornalistas da área cultural.
Micael Herschmann e João Freire Filho
E: O mundo funk carioca, lançado em 1988, já chamava a atenção
para o papel central da figura dos DJs. Passados 15 anos do lançamento do livro,
qual a sua opinião acerca do peculiar status usufruído, hoje, por estes profissionais,
guindados a astros da nova ordem musical?
HV: O status atual dos DJs reflete uma nova forma de consumo musical,
bem menos passivo do que aquele que a indústria fonográfica sabe controlar ou que
as leis do direito autoral e do copyright regulamentam. O DJ utiliza a produção artística
de outras pessoas como base para seu trabalho também artístico. Ele escolhe, mixa,
recombina, remixa as músicas que vão fazer as pessoas dançar, criando novos
contextos onde essas músicas passam a ter novos sentidos e ganham novas
interpretações (tanto que muitos deles atuam também como produtores musicais).
Sua “ideologia” é o mesmo “cut-and-paste” divulgado pelo pensamento modernista e
que se tornou o procedimento essencial da maioria dos softwares, de processadores
de textos a editores de cinema digital. É claro que há tentativas de domar a situação.
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.113-118
113
Os DJs, por exemplo, foram transformados em estrelas, tão poderosas e milionárias
– e distantes do público – quanto astros de rock. Mas algo nesse novo show business
não funciona muito bem e impede a formação de uma barreira entre quem está nos
toca-discos e quem está dançando. Pouca gente vai para uma pista de dança para
admirar o virtuosismo de quem seleciona as músicas. A maior parte do público ignora
o novo star system, o que - para quem foi criado pela filosofia do-it-yourself do punk,
como eu fui - não deixa de ser bastante “saudável”.
E: Como você analisa, a propósito, a comentada apresentação do
DJ Marlboro, na noite de encerramento do primeiro TIM Festival, que arrebatou
jovens afinados com distintas cenas musicais, “modernas”, “alternativas”, “indies”?
Para você, Marlboro tem razão ao proclamar que “o funk é a verdadeira música
eletrônica brasileira”?
HV: O sucesso da apresentação do Marlboro no Tim me pegou de
surpresa. Acostumado a anos de preconceito, tendo que defender o funk carioca dos
ataques mais pesados, quase absolutamente unânimes, da imprensa à polícia, não
estava preparado para ver tal consagração. Era como que um baile de carnaval. As
pessoas pareciam estar dando um grito de liberdade, afirmando a plenos pulmões (o
público cantava todas as músicas, o que demonstrava que apesar do boicote midiático
e policial – vários bailes continuam proibidos e eles não são anunciados nos jornais –
todos continuaram ouvindo os últimos sucessos das favelas) algo assim como “it’s
only funk carioca but I like it!” Era gente que sempre me foi descrita como inimiga
do funk.
Aquela festa demonstrava bem a vitalidade do funk carioca e sua
capacidade de expressar sentimentos dos mais variados grupos culturais que formam
a população carioca. O funk carioca não tem nem 15 anos de vida. Quando eu fiz meu
trabalho de campo que resultou na dissertação de mestrado, não havia funk cantado
em português ou produzido no Rio tocando nos bailes. Era um consumo de 100% de
música importada. Hoje, os bailes tocam 100% de música nacional. É uma virada que
também me surpreendeu. Nada, no meu trabalho de campo, indicava que isso poderia
acontecer, apesar de nunca ter acreditado nas profecias apocalípticas que diziam que
a indústria de entretenimento norte-americana iria impor uma única cultura para todo
o mundo (e, na minha dissertação, o consumo de funk no Rio já atuava como um
exemplo contrário a essa profecia, revelando um circuito de consumo e intercâmbio
cultural paralelo sem nenhum apoio da grande mídia).
O funk carioca começou a ser gravado, em 1989, como mera cópia dos
sucessos do Miami Bass (estilo do hip hop criado na Flórida, a partir das batidas
114
Hermano Vianna - De olho nos ritmos urbanos
nova-iorquinas de Afrika Bambaataa e Arthur Baker). Apenas tinha letras em português.
Aos poucos, sem ser uma estratégia consciente, foram aparecendo melodias (como a
do Rap da Felicidade - “eu só quero é ser feliz / andar tranqüilamente na favela onde
eu nasci”...) que poderiam fazer parte de samba-enredo se tivessem acompanhamento
de baterias de escola de samba e não de baterias eletrônicas. Aos poucos também
elementos musicais “tipicamente” cariocas, como um “tamborzão” que toca ritmos
de umbanda e hoje domina todos os sucessos, foram se misturando à trama eletrônica.
Hoje, o funk carioca é um novo estilo musical. Talvez, seja realmente a música
eletrônica brasileira, com mais voz própria e inconfundível. As outras, mesmo o
drum’n’bass-bossa paulistano, me parecem mais ligadas a fórmulas inventadas fora
do Brasil. Mas isso, de maneira alguma, quer dizer que sejam menos “verdadeiras”.
E: Em ensaio publicado no livro Ritmos em trânsito (1997), Livio
Sansone destaca a diferença entre o “samba no pé” do Rio de Janeiro e o
“samba na “bunda” ou rebolado da Bahia, herança da diferença entre samba
fino e samba de roda. No Rio, observa Sansone, constata-se uma postura mais
controlada, afinada e sinuosa, enquanto que, em Salvador, o importante é o
requebrado, o rebolado e o jogo de cintura. O autor argumenta que talvez seja
esse o motivo de entre o samba duro e a intelectualidade baiana não ter havido
a mesma sedução recíproca que caracteriza a história do samba no Rio de Janeiro,
analisada no seu O mistério do samba (1995). A hipótese lhe parece convincente?
Em caso afirmativo, esta distinção contribuiria, ainda, para hostilidade da crítica
carioca contra os grupos da chamada axé music?
HV: Não li ainda o ensaio. Mas a sugestão é extremamente “boa de
pensar”. Talvez o funk junte até as duas coisas, o pé com a bunda. Vi, outro dia, um
grupo de garotos num baile demonstrando seu rebolado para umas meninas, que
julgavam quem deles tinha a melhor bunda? No funk, homens e mulheres rebolam
como se fossem as Sheilas do Tchan! É uma sensualidade totalmente unissex, que
também está sendo exportada para o samba dos ensaios de escola de samba. Mas isso
acho que é novidade. Antigamente, era mais fácil ver esse tipo de rebolado na Bahia e
talvez essa mais libidinosa expressão corporal tenha afastado muitos intelectuais
(certamente não afastaria Gilberto Freyre), não sei ao certo. No Rio, sempre houve
um samba de que os intelectuais gostam mais, que não é exatamente o samba de que
a maioria da população da cidade gosta. Isso pode ser comprovado em qualquer visita
a um dos milhares de pagodes que acontecem todas as noites na cidade, onde Zeca
Pagodinho (representando o estilo aceito por intelectuais) convive muito bem com
bandas como Pique Novo ou Só Para Contrariar. Nos anos 60, enquanto a
intelectualidade redescobria o “samba de raiz” de Cartola, a garotada (e Hélio Oiticica!)
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.113-118
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dos morros e adjacências estava acelerando o ritmo das baterias de escolas de samba,
numa jogada até hoje desprezada por intelectuais “puristas”. A situação, tanto no Rio
quanto em Salvador, é certamente bem complexa. Mas o “tipo ideal” proposto pelo
Livio Sansone, segundo a descrição da pergunta, certamente esclarece muitos pontos
obscuros dessa complexidade.
E: No artigo “Condenação silenciosa” (Folha de S. Paulo, Mais!, 25/
04/1999, 10), você criticou, de forma contundente, o perfil do nosso jornalismo
“cultural”, despreparado, extremamente opiniático e afeito à fofocas. É possível
fugir muito deste padrão, atuando dentro das diretrizes da grande imprensa?
HV: Seria importante que alguém estudasse o ambiente das redações de
nossos cadernos culturais, para descrever como tudo funciona. Eu não entendo nada
desse mundo. Não gosto de gente que fica exaltando os velhos tempos, mas não
posso deixar de pensar que esses cadernos produziam jornalismo de maior qualidade
nos anos 70. Não sei o que houve para a qualidade cair tanto assim. Como diz Caetano
Veloso, o mesmo comercialismo criticado pelos jornalistas nos produtos da indústria
fonográfica parece ter tido resultados mais constrangedores nos cadernos “culturais”
do que na música brasileira. Vide o lançamento de discos de nossas grandes estrelas:
os jornais lutam por furos de reportagem, para dar notícias sobre o disco antes dos
concorrentes. Quando o disco é finalmente lançado, todos os jornalistas se deixam
controlar pelas estratégias de marketing das gravadoras, publicando críticas no dia
seguinte ao recebimento do disco, quando não houve tempo para escutá-lo com o
devido cuidado, se baseando geralmente nas informações publicadas em press releases
ou em entrevistas feitas às pressas. Como leitor, eu preferiria uma crítica mais
interessante a uma notícia publicada antes dos outros jornais. Mas os jornalistas
parecem não pensar assim.
Por exemplo: lancei o Música do Brasil, projeto que documenta músicas
na sua maioria sem nenhum registro anterior, de 82 municípios brasileiros. Houve
muitas matérias celebratórias no lançamento, não posso me queixar. Mas não houve
nenhum artigo analisando a produção musical ali revelada. O mesmo aconteceu com
tudo que fiz na televisão. Nunca li nenhum artigo interessante, falando bem ou mal,
que me ajudasse a pensar sobre o que estou fazendo. É uma situação que considero
bem triste.
Acho que a internet comercial brasileira não se confirmou como uma
alternativa a esse tipo de jornalismo. Tudo nela é ainda mais rápido e superficial, nada
parece incentivar uma reflexão mais complexa. Nos sites mais populares (muitos
deles ligados aos donos dos grandes jornais), são usadas técnicas comerciais, que
116
Hermano Vianna - De olho nos ritmos urbanos
incluem cookies espiões do comportamento dos usuários, que se fossem utilizadas
por nossas emissoras de televisão ou pelo governo causariam revolta pública radical
e editoriais indignados nos jornais.
E: E quanto à investigação acadêmica, quais são, no seu
entendimento, os principais desafios enfrentados pelos pesquisadores interessados
em estudar a música popular contemporânea?
HV: Acho que o principal desafio é a preguiça. Talvez, também, o preconceito
contra tudo o que é popular agora. Há milhares de coisas interessantes acontecendo no
Brasil, quase nada foi objeto de estudo. Voltei ontem de Manaus. Passei os últimos dias
indo aos forrós daquela cidade. É uma cena impressionante. Já derivada do forró mais
eletrônico cearense, mas com características bem próprias. Mas como é padrão intelectual
falar mal desse forró contemporâneo para elogiar um mítico forró “pé-de-serra”,
considerado mais autêntico, ninguém estuda o que está acontecendo. Estamos perdendo
um tempo precioso, por preguiça (tanta gente faz pesquisa baseada só naquilo que os
jornais publicam, sem nunca ir para a rua!) ou por bobagem. Tenho certeza que o forró
de Manaus ou o funk carioca têm mais qualidade propriamente musical do que muita
música que os pesquisadores consideram de bom tom estudar.
E: Quais as estratégias que a produção musical da periferia vêm
encontrando para ganhar terreno e atrair consumidores, em articulação ou
tensão com a grande mídia? Em que medida, no mundo contemporâneo, a
cadeia produtiva da música vêm se articulando de forma mais intensa com outras
cadeias produtivas do audiovisual?
HV: Quando cheguei de Manaus, escutando os discos que comprei no
camelô, descobri que a faxineira, freqüentadora dos forrós dos morros cariocas,
conhecia todas a músicas que para mim eram a maior novidade. Um circuito paralelo
de distribuição cultural leva o novo forró para todo o Brasil, sem depender da grande
mídia, das grandes gravadoras. Isso acontece com vários outros estilos musicais. E
os músicos estão inventando novas estratégias de sobrevivência, assumindo até a
pirataria como marketing. Não há nenhuma tensão explícita com a grande mídia, pois
a grande mídia não se interessa por esses fenômenos (e acho que por isso vai ser
cada vez menos “grande”).
A mesma coisa acho que vai acontecer com o audiovisual, quando os
equipamentos de produção se tornarem mais baratos (algo parecido já acontece com
o cinema caseiro produzido em grandes capitais africanas). Para fazer o Música do
Brasil, viajei por quase todos os locais mais pobres do Brasil, de reservas extrativistas
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.113-118
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do Acre ao sertão do Piauí. Não tem lugar que não tenha videolocadoras, que parecem
ter se transformado nas novas bibliotecas populares. Produções locais vão certamente
fazer sucesso nesse novo circuito de distribuição de imagens, que ficará ainda mais
potente com a popularização da banda larga.
E: Na sua opinião, as Novas Tecnologias de Informação e
Comunicação decretaram uma crise econômica e de identidade sem precedentes
na indústria fonográfica? Será que essas mesmas tecnologias permitirão, às
grandes corporações, encontrar uma saída para o problema?
HV: Penso que a indústria fonográfica, como existe hoje, está com os
dias contados. Sua reação contra as novas tecnologias é burramente policialesca.
Repressão e mais repressão e nenhuma proposta realmente inovadora para resolver
os problemas. Precisamos ter muito cuidado com campanhas contra a pirataria e para
melhorar a cobrança dos direitos autorais. Mesmo a numeração dos CDs pode ser um
dia usada para controlar nosso consumo musical. Imagine como uma ferramenta
dessas pode dar alegria para ditadores. Temos que ser mais criativos que os piratas,
se não quisermos virar reféns de sua barbárie.
MICAEL HERSCHMANN e JOÃO FREIRE FILHO são professores da ECO/UFRJ e editores da
Revista ECO-PÓS.
HERMANO VIANNA é roteirista de televisão e cinema e doutor em antropologia pelo Museu
Nacional/UFRJ.
118
Hermano Vianna - De olho nos ritmos urbanos
O autoritarismo na historiografia
da música popular brasileira
A biografia de Paulo Cesar de Araújo parece tão singular quanto as
idéias que defende em seu primeiro livro, Eu não sou cachorro, não: música popular
cafona e ditadura militar (2002). Baiano de Vitória da Conquista, Paulo Cesar passou
a infância entre os estudos e o trabalho como engraxate e vendedor de picolé. Veio
com a família para São Paulo, onde foi funcionário de uma fábrica de óculos, em um
bairro operário de Vila Maria; em seguida, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde
graduou-se em Comunicação Social pela PUC e em História pela UFF. No primeiro
curso, iniciou sua carreira de pesquisador musical, com o Projeto PUC Memória; no
segundo, amadureceu a questão que iria acompanhar-lhe até o mestrado em História
Oral da Uni Rio: por que a música ouvida e amada pela maioria do povo – inclusive,
por ele próprio – não consta da historiografia do nosso cancioneiro popular?
Talvez fosse realmente necessário o aparecimento de um pesquisador
proveniente das camadas populares – alguém que tivesse uma relação afetiva com a
obra dos intérpretes românticos malditos – para que a música popular dita cafona
fosse reavaliada como objeto digno de estudo, dentro da história da cultura. Nesta
entrevista a ECO-PÓS, além de expor e aprofundar as questões mais relevantes e
polêmicas desenvolvidas em Eu não sou cachorro, não, Paulo César de Araújo analisa
o lugar sui generis ocupado, em nosso cânone musical, por Roberto Carlos, protagonista
de seu próximo livro.
João Freire Filho e Eduardo Coutinho
E: Na orelha de Eu não sou cachorro, não, o jornalista Lula Branco
Martins define seu trabalho como um “livro de guerrilha”. O que levou você a
defender a causa dos cantores e compositores “cafonas” dos anos 70?
PCA: Cresci ouvindo rádio. Não tínhamos televisão, toca-discos, mas
havia um rádio. E, no meio dos anos setenta, quando estava com 7 ou 8 anos de
idade, essa geração de cantores e compositores chamados cafonas era muito forte.
Tocava-se bastante Paulo Sérgio, Nelson Ned, Agnaldo Timóteo... Mais tarde, quando
me interessei pela história do Brasil e, particularmente, pelo estudo da história da
música popular brasileira, eu constatei que aqueles cantores que eu ouvia no rádio,
que meus pais ouviam, que os meus amigos ouviam, que o povo brasileiro ouvia, não
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.119-127
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aparecia nos livros de conhecidos historiadores da música popular brasileira. Se você
pegar a obra de um José Ramos Tinhorão, de um Sérgio Cabral, de um Ricardo
Cravo Albin, você não vai encontrar referência, não digo a um ou outro compositor,
não, mas a um geração inteira de artistas da música brasileira. Então, na verdade, a
idéia do livro partiu da constatação dessa exclusão. A idéia era fazer um livro para
denunciar isso, num primeiro momento e, claro, entender que produção foi essa.
Qual repercussão que isso provocou na época, na história do Brasil? Nesse sentido,
é um livro de guerrilha, sim. Eu vim para brigar mesmo. Para denunciar, para apontar,
para mostrar que essa questão do autoritarismo, no Brasil, não é apenas política, está
na própria memória historiográfica produzida.
E: Um dos ganchos que você usou para resgatar essa produção
musical cafona foi mostrar a relação contraditória que ela estabeleceu com o
período da ditadura...
PCA: Isso é importante, porque a idéia que se tinha era a seguinte: sempre
que se referia à música popular do período da ditadura militar, os nomes lembrados
eram Chico Buarque, Caetano Veloso, Gonzaguinha, Geraldo Vandré... Quer dizer,
artistas que tematizavam a questão política, institucional do país. Era como se uma
geração de cantores românticos fossem de outro planeta ou de outro país. Como se
não tivessem nada a ver com a história do Brasil daquele período e com a própria
sociedade brasileira. Então, eu fiz questão de enfatizar logo de cara a relação dessa
produção musical com o momento histórico. E minha surpresa foi ouvir esses discos.
Eu tinha memória das canções que ouvia no rádio, mas se você pega um LP com 12
faixas, há muitas faixas que não tocavam na época e que eu mesmo não conhecia.
Ouvi essa produção, peguei disco a disco toda a produção discográfica da geração
daquele período. Eu percebi que eles questionavam, denunciavam e focalizavam
questões cruciais e fundamentais da sociedade brasileira. Um cantor como Odair
José, o “Bob Dylan da Central”, “Terror das Empregadas”, que foi um dos mais
proibidos na época, fala de homossexualismo, racismo, exclusão social, prostituição,
consumo de drogas, ou seja, temáticas que incomodavam. Isso está na obra de Odair
José como está na de Timóteo, de Nelson Ned (uns mais outros menos). Então, esse
aspecto foi fundamental: identificar, na produção musical desses cantores, temas
polêmicos que levaram muito deles a ser proibidos, sendo Odair José o mais proibido
de todos, porque foi o que mais tocava nessas questões.
E: “Eu não sou cachorro não” é o desabafo de um homem maltratado
por uma mulher. Mas poderia ser interpretado como a fala de um indivíduo
120
Paulo César de Araújo - O autoritarismo na historiografia da música popular brasileira
oprimido pela ditadura ou, ainda, como protesto de um sujeito que não tem sua
linguagem musical reconhecida pela historiografia da canção popular – quer
dizer, é um título polissêmico. De que maneira você relaciona a repressão política
daquele momento à exclusão ideológica desse amplo segmento da população
que tem a chamada música cafona como forma de expressão?
PCA: Isso é uma questão para um seminário (risos). Achei que podia ser
até uma epígrafe para o livro, essa leitura do título Eu não sou cachorro, não. A primeira
coisa que escolhi, antes de escrever qualquer palavra, foi o título, pensando nessa questão
da geração de cantores excluídos. Um manifesto de exclusão social, rejeição amorosa e
também exclusão na historiografia. É como se cada um deles falasse: “Eu não sou
cachorro não, eu também mereço fazer parte de um livro de história”.
Num capítulo do livro, “A cultura da brutalidade”, eu defendo o seguinte:
os cantores e compositores da MPB tinham uma preocupação com a questão política.
E isso se explica: todos eram universitários e estavam debatendo, com a consciência
de que viviam um período de exceção. Então, a obra desses artistas está falando do
Médici, do “Cale-se”. A obra dos cantores bregas vai expressar uma visão de mundo
particular, porque eles estão falando de uma repressão que não é apenas políticoinstitucional, mas de uma repressão que viviam no seu dia-a-dia. A empregada
doméstica, o porteiro, o operário, o camelô são, no seu cotidiano, humilhados e
ofendidos. “Eu não sou cachorro não” não é só questão de rejeição amorosa, pode ser
entendido também como uma rejeição social. Daí, a identificação desse público com
a música. Há uma canção de Odair José chamada “Deixe essa vergonha de lado”, na
qual ele fala do quarto de empregada. Numa música de Luis Carlos Magno, está
escrito: “dois por dois mede o quarto de empregada”. É uma questão social, mas esse
repertório era considerado alienado, porque não falava da questão política. Mas eles
estão tocando na repressão do cotidiano, uma repressão que não é do período militar
apenas. Para as classes populares, o autoritarismo é vivido no seu cotidiano e não
apenas nos períodos excepcionais. Para aquela classe (média, intelectual) o autoritarismo
está mais nas questões institucionais.
E: Em que referências você se apoiou, no instante de fixar a moldura
teórica e metodológica de sua pesquisa?
PCA: O pensamento de Marilena Chauí sobre o autoritarismo, no texto
“Conformismo e resistência”, foi uma referência teórica importante, para ver que o
autoritarismo não é apenas um regime de governo que se instala nos chamados períodos
excepcionais, mas uma característica de uma sociedade de classes, e, no caso do
Brasil, é um autoritarismo permanente. A leitura que Marilena Chauí faz do processo
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.119-127
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de conformismo e resistência no Brasil me ajudou a entender essa produção popular
musical. Também foi fundamental para pensarmos na questão do tempo histórico, o
trabalho em que Michel Pollak fala de “memórias plurais diferenciadas”. Sobre aquela
idéia de que os bregas eram alienados, eu fiz questão de perguntar a Odair José,
Nelson Ned e outros mais: onde você estava em 68? E todos eles vão dizer que não
sabem, não lembram do AI-5, confundem com 64. Isso significa que cada grupo
social tem uma vivência diferenciada do momento histórico. Se para a classe média
intelectual universitária, o AI-5 foi um marco divisor de águas, para os segmentos
populares não organizados aquilo não teve importância nenhuma. Não significa que
eles não tenham vivido as conseqüências disso, mas que a memória é plural e
diferenciada. Daí, a importância, para mim, desse trabalho de Pollak com as “histórias”
e não apenas com “A História”, “A História de 68”. Pollak foi importante para relativizar
essa questão dos “alienados”, e dizer que vivendo experiências diferentes você vai ter
uma memória diferente. Isso não se trata de ser pior ou melhor, é só contingência
mesmo da vida social.
E: Do ponto de vista teórico, o capítulo mais importante do seu
livro parece ser aquele intitulado “Tradição e modernidade”. Nele, você procura
definir, de forma bastante original, o conceito de brega. É possível identificar,
do ponto de vista das letras e da estrutura musical, os traços mais característicos
dessa produção?
PCA: Esse é mesmo o capítulo que eu considero mais importante no
livro. Essa era a explicação que eu buscava. Para definir o que é música brega, é
aquela coisa: dizem que musica brega você reconhece quando ouve, mas não sabe
definir o que é. Então, eu procurei dar uma definição, começando por desconstruir
aquilo que se afirmava sobre música brega. Primeiro, você não identifica música
brega por um ritmo. A balada é considerada brega, o bolero, até o sambão jóia é
considerado brega e mesmo a música do Pará, de ritmo bem agitado. Não é um
gênero musical. Também não se pode definir o brega por um tipo de letra. É verdade
que os bregas têm como característica aquele amor derramado, choroso. Mas você
vai encontrar aquilo em Maísa, que não é considerada brega. Elizete Cardoso só fala
de tristeza, desamor e sofrimento, e não é considerada brega. Então, também não vai
ser pela temática da letra. Digo que música brega é toda aquela produção musical
popular na qual o público de classe média não identifica as chamadas “raízes” do
samba (uma tradição), nem uma modernidade instaurada, no campo da música popular,
a partir de 58, com a bossa nova, e que continua com o tropicalismo. Toda produção
em que o público de classe média não identifique tradição nem modernidade é rotulada
122
Paulo César de Araújo - O autoritarismo na historiografia da música popular brasileira
de brega ou cafona. Tomemos, como exemplo, o Waldik Soriano. Ele não faz samba,
não está identificado à tradição. Também não foi influenciado pelo João Gilberto nem
pela bossa nova, logo não está identificado com a modernidade. O que ele é? Brega.
Ele está no limbo da história. Não é questão só de preconceito social. É uma visão da
cultura brasileira que se consagrou a partir dos anos 60, tendo como marcos
historiográficos o livro de José Ramos Tinhorão, Musica popular: um tema em debate
(1966), defendendo a tradição, e o livro de Augusto de Campos, Balanço da bossa
(1968), defendo a modernidade. São marcos que sintetizaram duas vertentes.
Claro que a questão não é rígida, há uma linha gradativa. Aquele cantor
que tiver um pézinho na tradição é menos brega que aquele que não tem nada. Compare
Benito di Paula e Waldik Soriano. Waldik Soriano é brega completo, não tem nada de
tradição ou de modernidade. Já o Benito di Paula, bem ou mal, toca samba. É uma
samba considerado abolerado, descaracterizado, e ele é rotulado de brega por fazer
um samba totalmente desintegrado à tradição. Mas, mesmo assim, ele é considerado
menos brega que Waldik.
Resumindo, eu acho o seguinte: o que há em comum na música brega é
o que há em comum em toda música popular do século XX: a temática amorosa.
Fala-se de sofrimento, de amor. Se você pegar a obra de Frank Sinatra, 99% da obra
está falando “eu te amo, te adoro, estou só, você me deixou”. O mesmo acontece
com a música de Lennon e McCartney. Bolero, então... Agora, se você pegar Paulinho
da Viola, a mesma coisa. Cartola, Nelson Cavaquinho, mesma coisa. Waldik Soriano,
Nelson Ned, Lindomar Castilho, Vicente Celestino, Custódio Mesquita, Orlando Silva
etc. Isso é o que há em comum: a temática da rejeição amorosa, do sofrimento. Tudo
mais muda, o ritmo, os arranjos etc...
E: Instigado pela leitura de seu livro, um internauta argumentou,
na lista de discussão do site especializado Samba & choro, que os “bregas” dos
anos 80 e 90 – Naim, Ovelha, Marquinhos Moura, Zezé di Camargo & Luciano,
entre outros – já não possuem a mesma autenticidade de Odair José, Fernando
Mendes ou Milionário e José Rico. Tomando como base esta distinção, bastante
recorrente, gostaríamos que você falasse um pouco a respeito do uso do
problemático conceito de autenticidade, no julgamento do valor musical.
PCA: Eu fugi dessa coisa quando eu fiz a análise do meu livro. Não
existe o autêntico. Você tem uma leitura sobre isso. O cara considera autêntico ou
não. Mais autêntico por quê? A partir de que premissa? Quando se diz que Benito di
Paula não é um compositor popular autêntico, porque está afastado das chamadas
raízes da música popular brasileira, trata-se de uma convenção instaurada por um
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.119-127
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determinado grupo social. Quando eu ouço que o Zezé di Camargo já não é tão autêntico
como o Odair José, questiono: o que difere? Você está em épocas distintas, só isso.
Ele está falando de amor, revestindo sua música, então ele está dizendo aquilo, na
época dele, com os arranjos, com a tecnologia da sua época. Não vai ser a mesma do
Odair José. Mas daí a dizer que isso já não é autêntico, que saiu de uma linha, eu já
acho discutível. Eu prefiro dizer que são diferentes, até porque mudou o conceito, a
tecnologia, a roupagem. Zezé di Camargo e Luciano vão ter uma aceitação maior que
Odair José e Waldik Soriano tiveram no seu tempo.
E: Principalmente entre a classe média, não é?
PCA: Claro. Isso tem a ver com o próprio avanço da sociedade. A
emergência dos chamados novos ricos, que, embora tenham dinheiro, não se desfazem
daquele gosto, daquela estética, você não compra isso, você traz com você. Quer
dizer, mesmo essas pessoas agora tendo dinheiro, elas vão continuar ouvindo a música
que ouviriam se não tivessem. Então, ouve um avanço. Zezé di Camargo e Luciano
vão tocar no Canecão, vão tocar no Palace, em São Paulo, coisa que, em sua época,
Odair José não tinha espaço para fazer. E, principalmente, vão tocar na TV Globo,
coisa que Odair José e Nelson Ned não conseguiram.
No meu livro, eu não uso adjetivo para qualificar ou desqualificar musica
nenhuma. Se existe um marco deste livro que tem que ser dado é este. É o primeiro
livro de música popular que não entra nessa questão de qualificação, de música boa
ou música ruim, autêntica ou inautêntica. Eu não entro nessa questão. Trato a música
como objeto cultural de repercussão social. Se eu tivesse dito que Odair José é um
grande cantor, um injustiçado que fez músicas lindas, que Nelson Ned canta muito
etc., os historiadores e a crítica podiam deitar e rolar, dizendo: “Esse cara não entende
nada de música, vai ouvir Dick Farney para ver o que é uma voz...”. Como eu fugi
disso, desta discussão estética, eles ficaram desarmados para o combate, porque eu
entrei na questão histórica, e ela é indiscutível. Eu apontei a exclusão, disse que os
cantores românticos da época da ditadura tocaram em questões cruciais, foram
censurados, mostrei os documentos. O que os meus colegas podiam dizer? Eu fugi
disso que eles costumam fazer, julgar uma obra, fazer uma análise histórica partindo
da estética. Por isso, o livro não teve uma crítica. Eles ficaram desarmados.
E: Todo aquele que acompanha, com algum interesse, a dinâmica
do consumo cultural contemporâneo sabe que o rótulo de “brega” não é,
necessariamente, um caminho sem volta – o “cafona” de hoje pode ser o “cult”
de amanhã. Como você analisa o processo que levou artistas que, nos anos 70 e
124
Paulo César de Araújo - O autoritarismo na historiografia da música popular brasileira
80, endoideceram as macacas de auditório da Discoteca do Chacrinha a ser
tornarem objetos de culto entre jovens, “modernos” e “alternativos”?
PCA: É importante dizer que quando se usa o conceito de cult para essa
produção musical popular brega, ele não tem o mesmo sentido do cult da Marisa
Monte ou da Maria Rita.. Quando você fala que o Wando é cult, isso não o está
valorizando, é um sentido irônico. Essa incorporação, essa assimilação pelos jovens
da classe média se dá, muitas vezes, pelo lado do pastiche e da ironia. Se você pegar,
por exemplo, essas bandas Copacabanas, Vexame, que fazem uma releitura de um
repertório popular, você vê que há um distanciamento, há uma ironia. Tem aí uma
valorização negativa. É diferente da leitura que Caetano faz, por exemplo. Quando ele
canta Peninha, Fernando Mendes, ele não está tirando uma onda, até porque aí entra
a questão do tropicalismo, que se caracterizou pela estética da inclusão. Se você
pegar a obra de Caetano Veloso, a partir do tropicalismo desde a gravação do Vicente
Celestino, você vê um tratamento respeitoso, querendo colocar essa produção no
mesmo nível, na mesma linhagem, como se não fosse diferente. Isso é uma postura
da estética de inclusão, que não é a mesma desses jovens que colocam a música na
discoteca, sempre com um sentido jocoso, irônico, nunca no mesmo do patamar.
A propósito, alguém me perguntou, outro dia, como é que eu avaliava
isso do Lindomar Castilho estar na tela da Globo (nos anos 70, nenhum dos cafonas
entrava na Globo), na abertura do seriado Os normais. Serve para piada, é para rir,
aquilo não é sério. Eles não pegam uma série como Anos Rebeldes ou Anos Dourados,
e botam, como tema de abertura, uma música de Waldik Soriano ou Nelson Ned.
Não vão fazer isso, porque não se presta a isso, aquilo é muito sério. Eu dou, ainda,
como exemplo, o filme Cidade de Deus, que se pretende uma abordagem realista da
questão social do Brasil nos anos 60. Na trilha sonora do filme, só há artistas da
tradição ou da modernidade. Nos anos 60, na Cidade de Deus, o pessoal ouvia muito
Paulo Sérgio, Nelson Ned e Agnaldo Timóteo. Aí você vai assistir ao filme, e o cara
está ouvindo Cartola. E quem ouvia Cartola, na Cidade de Deus, nos anos 60? Cidade
Deus, porém, é um filme que se pretende muito sério para botar uma música de Paulo
Sérgio, então bota Cartola.
E: Seu livro obteve notável visibilidade midiática – você esteve em
diversos talk shows, deu entrevistas aos suplementos culturais da grande imprensa
do Rio de Janeiro e de São Paulo. E quanto à repercussão acadêmica da obra?
Parece que antes de ser aprovado, com louvor, no mestrado em Memória Social
e Documento da UniRio, o seu projeto de pesquisa foi rejeitado pelo
departamento de História da Unicamp...
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PCA: Eu fiz o projeto assim que me formei em história, e mandei para
Unicamp. Não foi aprovado lá. Foi interessante. Um amigo meu que estava na Unicamp
falou que os examinadores ficaram em dúvida entre dois projetos: um sobre samba e
malandragem no Rio, na época de Vargas, e o meu. Não sei se fui discriminado, a
exemplo do meu objeto de pesquisa, talvez o outro projeto fosse mesmo melhor. Mas
o fato é que o predomínio da produção sobre o samba é disparado. Eu digo, no meu
livro, que o samba é samba de roda, samba de breque, samba malandro... Quer dizer,
se é samba, se está ligado à tradição tem um peso e ganha uma importância que a
música brega nunca teve. Eu brinco com os meus amigos sambistas que gostam de
falar que o samba agoniza mas não morre. Parece que o samba está acabando, sendo
perseguido. Eu, que não gosto de samba, me sinto perseguido pelo samba. Onde eu
vou, só escuto samba. Ligo o rádio, e é Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Martinho da
Vila... Então, eu sou sufocado pelo samba. Mas eles tem aquele discurso que o samba
está sendo discriminado, que está acabando...
E: Por que você não incluiu Roberto Carlos em seu livro sobre a
música popular cafona? Roberto não seria cafona, visto que era consumido,
durante a ditadura, pelo mesmo público de Waldik Soriano e Odair José, sendo
assim igualmente rejeitado pelo público intelectual de classe média.
PCA: Vou voltar à minha tese de tradição e modernidade. Não inclui o
Roberto porque ele, embora seja considerado brega por muitos, tem uma raiz na
modernidade. Isso está apontado lá pelo Augusto de Campos. Augusto de Campos foi
pioneiro em perceber, no Roberto Carlos, o cantor moderno, discípulo direto de João
Gilberto. Se você pegar os cantores da jovem guarda – por exemplo, Wanderley
Cardoso, Jerry Adriani – e comparar com Roberto, vai ver a diferença. São operetas,
é de uma escola de canto da ópera. Aquela escola do Nelson Ned, do Agnaldo Rayol,
sem nenhum pé na modernidade. O canto do Roberto Carlos, já está lá nos primeiros
discos dele, é o canto moderno, sem vibrato. Esse toque de modernidade na voz de
Roberto é o que o afasta de ser um cantor totalmente brega, embora o repertório e o
público sejam. Mas Roberto não é moderno como Caetano. É uma gradação. Ele está
muito mais próximo do brega do que outros, mas não é brega, porque tem um pé na
modernidade, na forma de cantar.
Agora, não é bom julgar esta questão pelo público, já que esse mesmo
público que consumiu brega, consumiu Martinho da Vila e, principalmente, Clara
Nunes. Clara Nunes gravou três discos de bolero que foram fracassos. Então, ela
passou para o samba e começou a vender muito. Ela é uma cantora popular. Seus
discos eram comprados pelo mesmo público que comprava Benito e Roberto. Mas
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Paulo César de Araújo - O autoritarismo na historiografia da música popular brasileira
ela não é considerada brega, porque está ligada ao candomblé, à umbanda, que
identificam uma raiz. Por isso que eu desmontei aquela vertente que interpreta a
música brega como popularesca e comercial. Então, se vendeu muito é brega. Mas
por que Martinho da Vila não é considerado brega? Porque suas raízes estão
identificadas. É por isso que eu não incluo o Roberto. É verdade, foi consumido pelo
mesmo público, mas, como já disse, não foi só ele, e, além disso, há esse toque de
modernidade na sua voz. Isso foi reconhecido pioneiramente por Augusto de Campos,
no livro publicado em 68, onde ele dizia que Roberto parecia mais moderno, naquele
momento, até mesmo do que Elis Regina, que estaria gesticulando exageradamente.
Roberto cantava contido e econômico, muito mais próximo das lições da bossa nova
do que supostos cantores de bossa nova da época.
E: O que justificaria a enorme repercussão social que a obra do
Roberto Carlos ostenta? Seria o fato de estar nessa posição fronteiriça que
permite que ela seja do agrado de vários segmentos...
PCA: O Roberto Carlos aboliu a luta de classes na música popular
brasileira. Não existe um exemplo igual ao dele. Todo cantor popular desse país é
consumido por um segmento social e não é por outro. Chico Buarque, por exemplo,
é considerado um gênio da música popular. Não adianta, é consumido por um segmento
de classe média, não atinge o povo. Não quer dizer que isso seja bom ou ruim. Tom
Jobim – na minha opinião, o maior compositor do século XX – não atingiu o povão.
O fato é esse: Roberto Carlos é o único artista da música popular brasileira que atinge
todas as classes sociais. O único foco de resistência ao Roberto Carlos são as elites
intelectuais, segmentos de esquerda, especificamente. É um bolsão de resistência.
Ele atinge a elite econômica, mas esse bolsão de resistência é da elite intelectual,
particularmente da área de humanas, que fazia oposição aos militares e tinha Roberto
como exemplo de um reflexo do regime militar.
JOÃO FREIRE FILHO é professor da ECO/UFRJ e editor da Revista ECO-PÓS.
EDUARDO COUTINHO é professor da Escola de Comunicação da UFRJ.
PAULO CESAR DE ARAÚJO é mestre em história pela UniRio e autor do livro Eu não sou
cachorro, não (Ed. Record).
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Rosângela Rennó
O drama da lona
O
propósito estético dominante da fotografia moderna foi, como
nos sugere El Lissitzky, fincar uma cunha no agora, alargando
cada vez mais a distância entre o antes e o depois. Quem se dá
ao trabalho de inventariar seus resultados constata a variedade de sentidos, de
possibilidades de sentido, para ser exato, que logrou-se assim realizar. Da fenda aberta
por esta cunha emergem as formas do instantâneo que vieram a constituir o repertório
típico do fotojornalismo (“o que é isso?”, “como isso está?”, “para onde isso vai?”
etc.): perguntas às quais uma legenda deve necessariamente responder. Para que o
fotógrafo torne visível cada uma destas oportunidades de legenda, uma vez que tenha
mergulhado na duração em busca do instantâneo, deve agora retroceder com sua
presa e oferecê-la cristalinamente ao público. Um dos limites evidentes da experiência
fotográfica moderna foi, então, persistir na duração, sem retroceder, permanecendo
indefinidamente no transe do instante. Comparem-se estas fotos carnavalescas de
Zeka Araújo (tiradas entre 1987 e 1989, creio) com as imagens de êxtase propostas
por Arthur Omar na Antropologia da face gloriosa. A obra de Omar nos fornece o
testemunho deste transe, único modo de habitar o interior do instante. O carnaval de
Zeka Araújo buscou forçar os limites da fotografia moderna de um outro modo.
Consulto minha agenda de 1986 e espanto-me com o que descubro. Era
uma sexta-feira de dezembro, como hoje, quando fui encontrar-me com o Zeka na
F4. Quantas pessoas seriam capazes de nos tirar de casa, em um dia como esse, para
uma reunião de trabalho? O que ele me descreveu, com a peculiar animação, era a
mais recente bolação da agência: um artifício para capturar a “fantasia do brasileiro”.
O dispositivo, discutido, aperfeiçoado e produzido pela equipe da F4 nos meses
seguintes, compreendia uma lona usada, cabos, gambiarras, meia dúzia de fotógrafos
e dois estagiários, estes últimos encarregados de preencher a ficha de cada um dos
retratados (nome, idade, profissão, título da fantasia, etc.)
O bloco da F4 ganhou a rua pela primeira vez em 28/02/1987, sábado
de carnaval, e ali permaneceu durante todo o “reinado de Momo”. Fomos à Av. Rio
Branco, onde costumava haver o concurso de “folião original”, à Praça General Osório,
em Ipanema, point transformista da época, e aos bairros de Encantado e Campo
Grande, em busca dos tradicionais Clóvis e Morcegos. A aventura repetiu-se por
mais um ou dois carnavais, mas o bloco se desfez. Apenas Zeka e Rogério Reis
apegaram-se à lona, ainda que tenham derivado dela trabalhos distintos.
Fundos lisos de tecido foram muito comuns nas primeiras décadas da
arte fotográfica. Nós os vemos em Hippolyte Bayard, antes de 1850; nos magníficos
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pierrôs de Nadar (1855); e ainda em 1859, no retrato do pequeno príncipe imperial,
filho de Napoleão III, eqüestremente estampado, aos três anos de idade, como um
pedestre qualquer, diante da “lona” de Mayer Bros. & Peirson. Foi antes o avanço da
técnica do que o gosto estético que deu fim ao fundo neutro portátil capaz de isolar o
assunto de um entorno ameaçador (na época áurea da lona, objetos móveis ao fundo
e grandes contrastes de luminosidade podiam arruinar retratos morosamente posados).
A reinvenção do artifício neste carnaval de 1987 tinha todo um outro significado. Era
uma tentativa de restabelecer a soberania do espaço no ato fotográfico. O retrato de
rua, travestido de lona, reinstalava-se no seu mais antigo set; e o ato de fotografar
reencontrava, nesta cena, o seu teatro. Tudo aconteceu de forma surpreendentemente
ordeira, pois o que a lona fazia vigir, em primeiro lugar, era uma respeitosa distância.
Respeitosa porque recíproca. Distância que procurava preservar o ponto de vista do
fotógrafo, mas igualmente criar a arena de uma performance, de uma atuação (por
isso a lona não apenas pendia de um suporte, mas entendia-se sobre o chão). Tínhamos
imaginado várias maneiras de prevenir ou dispersar eventuais invasões da lona por
legiões de bêbados. Para perplexidade geral da nação, mesmo os mais exaltados
foliões faziam fila, esperando pacientemente sua vez de subir ao “palco-lona” e ali,
somente ali, nos oferecer a sua pose.
A tensão dramática criada pela lona despiu pouco a pouco a “fantasia do
brasileiro” de sua pretensão etnográfica. Não estendeu-se diante de outras festas
populares e folclóricas, conforme desejado inicialmente; e a análise sociológica dos
foliões tornou-se irrelevante, ainda que a opção do Zeka pela cor e pelo filme 35mm
tenha sido uma forma de resistir à potência de abstração do dispositivo. Passados 17
anos de sua estréia, alguém poderia dizer que a lona tornou-se refém do carnaval. Não
seria justo, pois trata-se exatamente do contrário. Estou convencido que a lona é a
expressão carnavalesca da fotografia por excelência, fotografia às avessas que expõe
as entranhas do seu écran e converte o instantâneo em cenário, o flagrante em pose,
o ato fotográfico em dramaturgia. Lona-tela que só a máscara pode desvelar.
Mas se é carnaval, se ainda é carnaval (e só poderia ser carnaval), de
onde vem toda esta melancolia?
O motivo sempre esteve diante de nossos olhos. Vestida de lona, a
fotografia fez sua folia à moda antiga, fora do tempo e da história: fotografia-colombina
fadada a recriar, dramaticamente, junto a ela/longe de si, pierrôs e arlequins.
Rio de Janeiro, 26/12/03
Mauricio Lissowsky
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Mauricio Lissowsky - O drama da lona
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Zeka Araújo - O drama da lona
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Zeka Araújo - O drama da lona
MAURICIO LISSOWSKY é doutor em Comunicação e professor da ECO/UFRJ.
ZEKA ARAÚJO é fotógrafo, premiado internacionalmente, e autor de diversas obras, entre elas, o
livro Jardim Botânico do Rio de Janeiro (em parceria com Tom Jobim).
ECO-PÓS- v.6, n., agosto-dezembro de 2003, pp.129-135
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ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.137-139
São Paulo,
Conrad,
2003.
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Todo DJ já
sambou: a
história do
disc-jóquei
no Brasil
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Claudia Assef nos convida, em seu Todo DJ já sambou: a
história do disc-jóquei no Brasil, a participar de uma viagem a um universo
complexo e movente, com seus heróis, suas histórias, sua dinâmica própria:
o universo dos DJs ou disc-jóqueis. As surpresas reservadas para a viagem
são muitas, sobretudo para os que não participam diretamente do circuito
brasileiro dos clubes de dança e da musica eletrônica. Vejamos rapidamente
alguns elementos desse mundo a ser descoberto.
O modo de trabalho e o estatuto do DJ se alteraram radicalmente
desde o surgimento da profissão. Inicialmente o DJ era uma figura anônima
e oculta cujo papel central era trocar discos longe das vistas do público
dançante, o DJ era em suma uma “orquestra invisível”. Aqui surge o nome
do primeiro DJ brasileiro, pioneiro entre os pioneiros: Osvaldo Pereira,
originalmente técnico de rádio. Lentamente, o DJ vem para o centro da cena,
seu nome ganha importância, até hoje ocupar lugares destacados em clubes,
tocando de frente para a platéia. O deslocamento no espaço do salão ou da
boate corresponde a um deslocamento na escala de valorização social.
A relação dos DJs com as equipes de som também passou por
transformações significativas na curta história desses personagens no Brasil.
A importância se deslocou progressivamente da equipe para os DJs. A
situação em que o DJ é apenas um funcionário anônimo da equipe, funcionário
cujo nome raramente aparecia - “o nome, a grife, era a equipe, ninguém nem
chegava, a saber, o nome do DJ” (p. 120) - está longe. O lento processo de
individuação fez do DJ o centro da atenção.
Paralelamente a essa valorização do DJ, sua prática musical se
transforma, de modo que o DJ se torna cada vez mais uma espécie de
compositor. Da simples troca de discos com uma pausa silenciosa entre
uma canção e outra (tanto menor quanto mais competente for o disc-jóquei),
chegamos ao mixer e à possibilidade da passagem insensível de uma música
à outra (tanto mais insensível quanto melhor o DJ). A intervenção sobre as
músicas foi o passo seguinte: “As primeiras experiências com a arte de
reconstruir músicas aconteceram no rádio. Ao requisitar DJs para dar uma
cara mais radiofônica às músicas, as emissoras serviram de estágio para que
os profissionais das pick-ups dessem um largo passo à frente” (p. 125).
Fazendo de início uma intervenção concreta e mecânica sobre as fitascassete, com o uso de uma gilete para cortar, o DJ finalmente passa do rádio
para as gravadoras, “que começaram a ler ‘big money’ na testa dos DJs” (p.
126). De trocador de discos a “cirurgião plástico musical”, remixador,
produtor... uma longa trajetória cujos nomes mais ou menos anônimos o
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Márcio Souza Gonçalves
ASSEF,
Claudia,
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O fascinante universo dos DJs
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livro de Cláudia tem o enorme mérito de recuperar.
Uma dimensão importante do ofício de DJ é a de divulgador
cultural, tomando essa expressão em dois sentidos diferentes. Divulgador
cultural, em primeiro lugar, por ser um forte transmissor de culturas
específicas dentro do ambiente social amplo (a cultura Hip Ho por exemplo,
cf. p. 117). Mas um DJ é também o divulgador de sua própria profissão e,
nesse sentido, um formador de novos DJs. É impressionante perceber, com
a ajuda de Cláudia, que no universo dos DJs existe uma preocupação
pedagógica intensa, que envolve cursos de formação mas também filiações
e relações pessoais de mestria. O DJ Ricardo Lamounier “foi um dos
primeiros a demonstrar o desejo de formar novas gerações de DJs” (p. 66).
Para o novato que quer se formar DJ, a referência aos grandes é constante.
A mestria e a exemplaridade, tão desacreditadas no mundo atual, encontram
no universo dos DJs um refúgio. Claudia nos conta: “O precursor Osvaldo
abandonou a carreira de DJ no final dos anos 60, mas viciou no ramo cerca
de vinte herdeiros, representantes da família Pereira. O primeiro mordido
pelo vírus DJ foi o sobrinho, Zé Carlinhos, que começou como ajudante do
tio e, nos anos 60, acabou se tornando um famoso DJ de black. Além de ter
filhos DJs, como Tadeu – hoje um respeitado discotecário de nostalgia -,
Osvaldo é tio de um ídolo da black music, Grandmaster Ney, que ficou
conhecido como DJ da lendária equipe de Chic Show. ‘Tenho o maior
orgulho da minha árvore genealógica’, diz Ney. Não é pra menos” (p. 25).
A rivalidade, tema igualmente importante quando se trata de
pensar a formação social dos humanos, se apresenta diretamente no mundo
dos DJs, e se apresenta especialmente em uma vertente positiva e necessária.
DJ KL Jay: “Eu e o Edy Rock vivíamos indo um na casa do outro, porque
eu tinha parte do equipamento, e ele, o resto. A gente queria ver quem era o
melhor nas mixagens, então vivia brigando. Com isso, eu me animei em ficar
treinando. Ele sugeriu que a gente montasse um grupo” (p. 121).
É igualmente surpreendente a penetração social diferenciada
dos diversos movimentos musicais que fazem parte do universo dos DJs.
Rigorosamente falando, são vários os universos musicais, todos coexistindo
nas grandes metrópoles brasileiras. Comentando o movimento jungle, Patife,
um dos maiores DJs nacionais, diz: “nos Jardins, ninguém estava sabendo
do jungle. Mas lá nas vilas, tinha fila toda noite na porta da Sound Factory,
Arena, Overnight...” (p. 183).
A riqueza e diversidade musical dos diversos movimentos que
compõem o mundo dos DJs se traduzem numa variedade de nomes estranhos
ao leigo, nomes que indicam estilos de música: jungle, house, trance,
drum’n’bass, tecno... Entre esses diversos movimentos, relações complexas
de oposição, de filiação, de transformação. No início dos anos noventa, por
exemplo, “a música eletrônica se dividiu em duas facções: o house e o tecno”
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Márcio Souza Gonçalves - O fascinante universo dos DJs
(p. 155). Claudia Assef traça de modo competente um grande panorama
dessa história musical.
Um dos grandes méritos do livro é apresentar, no decorrer de
seu texto, diversas entrevistas com personagens importantes na história
brasileira dos DJs, o que nos dá acesso direto à voz dos envolvidos. Cabe
mencionar igualmente o glossário final.
Dentre as curiosidades altamente improváveis que o texto nos
revela, temos o nome do cantor do primeiro Rap do Brasil: a versão brasileira
de “Rapper’s Delight”, que em português se transformou em “‘Melô da
Tagarela’, cantada (ou melhor, falada) pelo comediante/cantor Luiz Carlos
Miele. Bizarro, hein?” (p. 116). Alias, temos nesta curta citação um exemplo
do estilo jornalístico extremamente leve e pessoal da escrita de Cláudia.
Podemos ouvir sua voz por detrás das letras.
A projeção internacional de alguns DJs brasileiros, desconhecida
da maioria do público, chama a atenção. A música “LK”, por exemplo,
parceria dos DJs brazucas Marky e Xerxes, “tornou-se obrigatória para
qualquer DJ de drum’n’bass. Em novembro de 2002, ‘LK’ alcançou o
oitavo lugar na parada britânica de singles de dance music e se tornou carrochefe do V Recordings, o mais sólido selo de drum’n’bass do Reino Unido.
No ranking geral de vendas, o disco chegou ao 17 º lugar, colocação mais
importante que um artista brasileiro já alcançou até hoje” (p. 16).
O livro de Claudia pode ser lido por todos. Pode ser lido por
DJs interessados em conhecer a história do movimento e para quem essa
consciência do passado certamente pode desempenhar um papel bastante
positivo; pode ser lido pelo teórico interessado em fazer pesquisas
aprofundadas sobre esse aspecto tão importante para as culturas jovens
contemporâneas, e para quem Todo DJ já sambou... pode funcionar
perfeitamente como texto de contato inicial e de abertura de horizontes;
pode ser lido, finalmente, pelo leitor médio - essa ficção que na realidade nos
define a todos nós em nossa existência cotidiana -, que certamente terá
momentos de prazer e surpresa acompanhando essa narrativa do percurso
desses nossos batalhadores brasileiros.
Todo DJ já sambou é uma ótima introdução a esse vibrante
microcosmo que envolve os DJs, suas músicas, seus públicos. Microcosmo
cuja complexidade e riqueza nada deixa a dever à cultura mais ampla na qual
se insere.
Se o livro é uma “história do disc-jóquei no Brasil”, trata-se de
um dos mais interessantes tipos de história, uma história do presente, que
nos revela facetas de nós próprios desconhecidas e intrigantes.
MÁRCIO SOUZA GONÇALVES é professor da Faculdade de Comunicação Social da UERJ.
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.137-139
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Fábio Malini
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A mimética globalização
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“Além de pensar a revolução em termos éticos e políticos, nós a
pensamos também em termos de profunda modificação
antropológica: da mestiçagem e hibridação contínua de populações,
de metamorfose biopolítica. O primeiro campo de luta é, desse
ponto de vista, o direito universal de movimentar-se, trabalhar,
aprender em toda superfície do globo” (Antonio Negri).
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2003.
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Ed. Iluminuras,
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São Paulo,
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A
globalização
imaginada
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CANCLINI,
Nestor
Garcia.
Após mexer no vespeiro do consumo (desmitificando a oposição
esquerdista consumo x cidadania), o antropólogo argentino Nestor Garcia
Canclini chacoalha os estudos político-culturais ao afirmar que “muitos dos
discursos sobre a globalização são falsos”. A provocação — fortemente
embasada em dados, tabelas, depoimentos e peças artísticas — está impressa
no livro “A globalização Imaginada”, um contra-discurso à bibliografia
corrente sobre a globalização.
É um livro que se ancora em três questões: o que se diz e o que
dizer da globalização? Como se produz o Eu e o Outro quando a cultura, em
tempos de exaltação a todo tipo de fundamentalismo, se hibridiza e se
antagoniza? Qual política cultural global deve ser implementada diante de
um imaginário pautado na sociedade anônima, nas marcas e no
multiculturalismo?
As respostas de Canclini estão sempre emolduradas por uma
perspectiva de recusa das visões economicista da globalização (o mercado
determina as mentes) e antropologicista (as mentes determinam o mercado).
Seu método peculiar continua intacto: desvendar o entre, a coisa que transita
entre dois mundos. No caso deste livro, desvendar o entre mercado e cultura,
o entre global e local, o entre imaginário e concreto, o entre identidade
nacional e a identidade nômade, o entre cultura midiática e ação política.
O QUE SE DIZ E O QUE DIZER DA GLOBALIZAÇÃO?
Esse método é limitado por um outro emolduramento: a
globalização provoca uma entre-cultura — localizada entre a fragmentação
e a homogeneização do mundo. “O que se costuma chamar de globalização
apresenta-se como um conjunto de processos de homogeneização e, ao
mesmo tempo, de fragmentação articulada do mundo que reordenam as
diferenças e as desigualdades sem suprimi-las” (p.44-5). Uma outra coisa
importante: a datação da globalização é recente, pós-guerra, pós-tecnologias
da automação, dos satélites, dos trens de alta velocidade, do transporte
aéreo, dos blocos supranacionais, do cassino financeiro da moeda
desterritorializada e da cibercultura. O resto é conversa fiada: caravelas,
absolutismo, imperialismo...
Antes de chegar a essa definição, o antropólogo vai desarmando
algumas narrativas sobre a globalização, algumas chamando até de falsas.
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Fábio Malini - A mimética globalização
Canclini, de alguma forma, vai induzindo o leitor a se filiar a uma idéia nas
entre-linhas: a globalização antes de ato, é relato.
E o primeiro relato a desarmar é aquele pautado na encruzilhadacomportamental “globalizar-se ou defender a identidade local”. Essa
indefinição cultural acabaria por construir um esquema de interpretação
teórico baseado no maniqueísmo binário. Canclini então evoca seu método:
é preciso analisar como o global entra e sai na cultura local, e vice-versa. “Há
que elaborar construções logicamente consistentes, que possam ser
contrastadas com as maneiras como o global ‘estaciona’ em cada cultura e
com os modos como o local se reestrutura para sobreviver, e talvez tirar
algum proveito das trocas que se globalizam” (p.33). Atenção porque o
objetivo de Canclini não seria identificar a fusão glocal. Ao contrário, é
sempre investigar o mimetismo cultural (logo, algo temporário, já que o
mimético ocorre no sabor do momento, ora de perigo, ora de ataque, ora de
oportunismo). Assim, Canclini quer investigar o momento em que o global
se mimetiza de local como forma de vampirizar a diferença, ou quando a
peculiaridade local se mimetiza de global como forma de resistir, de criar ou
de se expandir.
Exemplos destes mimetismos culturais são fartos no seu livro.
Curioso o exemplo do restaurante Taquería Goiaz, em San Francisco/EUA
— uma reunião de mexicanos com brasileiros goianos que evidencia as
diversas formas em que o local se transveste de global como alternativa de
sobrevivência. Ou o contrário, quando as músicas cantadas em “latinoamericano” são mimetizadas e viram world music, fazendo com que toda
diferença se homogeneíze e ganhe um rótulo que mais as marginaliza que as
divulga. Tal operação mantém as coisas onde elas estão: nós aqui, eles lá.
Dois outros relatos muito ditos - e que nosso autor avacalha –
é, primeiro, a tese da esquerda ortodoxa que vê na globalização única e
exclusivamente um dispositivo neoliberal. E, segundo, a tese pós-moderna
que o saber universal deve dar lugar às múltiplas narrativas. Duas teses que
engessam qualquer possibilidade de pensar um know-global, restando se
amargurar no no-global. É um deleite como Canclini desarma essas bombas:
“pensar a globalização exige superar essas duas posturas: tanto a que faz da
globalização um paradigma único e irreversível, e a que resta importância à
sua incoerência e ao fato de não integrar a todos. Antes parece
metodologicamente necessário, diante das tendências que homogeneízam
partes dos mercados materiais e simbólicos, investigar o que representa
aquilo que a globalização exclui para se constituir” (p.44).
A forma cancliniana de revê a globalização é norteada a partir
de uma análise subjetiva, que expõe como a globalização é feita por “gente”
e que gera conseqüências em “gente”:
“Se neste trabalho se dará um grande espaço às narrativas e
metáforas não é só por esse caráter fugidio, como algo móvel,
da globalização. É também porque, para tratar dos processos
globalizadores, deve-se falar, sobretudo, de gente que migra ou
viaja, que não vive onde nasceu, que troca bens e mensagens
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.140-143
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com pessoas distantes, que assiste a cinema e televisão de
outros países ou conta história em grupo sobre o país que
deixou. Gente que se reúne para celebrar alguma coisa distante
ou que se comunica por correio eletrônico com outras pessoas
que não sabe quando irá rever. De certo modo, sua vida está em
outro lugar. [...] A globalização sem a interculturalidade é um
‘OCNI’, um objeto cultural não-identificado” (p.46).
A PRODUÇÃO DO OUTRO NA GLOBALIZAÇÃO
Essa interculturalidade que se apresenta como parte constituinte
da globalização será a artimanha do autor para criar um distanciamento da
perspectiva que fixa a identidade como núcleo da cultura. Na verdade, desde
“Consumidores e Cidadãos”, Canclini já havia aberto essa brecha, ao falar
de um novo tipo de “identidade” — a sócio-comunicacional, ou seja, uma
comunhão que se dá entre os homens, mas não mais pela terra e pela língua,
mas pelo consumo e pelas trocas globais. Mas, em Globalização Imaginada,
o autor avança ao criticar o uso político da identidade, que a restringe: algo
que é local, homogêneo e puro. Em resposta afirma que “a identidade é,
hoje, para milhões de pessoas, uma co-produção internacional”.
A compreensão da globalização passa, portanto, por reler o
que nós somos. Essa atividade nos conduz a uma indagação: seria o EU, na
globalização, uma identidade unívoca ou atravessada por uma “multiplicidade
de gente”? Para tentar solucionar isto, no âmbito particular, talvez, como
afirmara o presidente Lula (na ocasião da reunião da cúpula do Mercosul,
em novembro de 2003), precisaríamos definir “o que somos, o que temos e
o que queremos” no mundo globalizado. Mas fazer essa autodefinição não
através da perspectiva binária do EU versus o Outro, mas na perspectiva da
hibridação, atesta Canclini, citando Stuart Hall: “Não se pode dizer onde
acabam os britânicos e onde começam a colônia, onde acabam os espanhóis
e onde começam os latino-americanos, onde começam os latino-americanos
e onde, os indígenas. Nenhum desses grupos permanece mais dentro de
seus limites. [...] Quando dizemos ‘fronteiras’ pensamos, sobretudo, nas
coisas que passam através delas” (p.114).
Portanto, a hibridação – a intercultura, o entre – é um dado que
faz emergir uma cidadania multiforme que infelizmente não é traduzida na
esfera do direito e, conseqüentemente, na prática das políticas públicas. A
esses cidadãos multiformes restam o afogamento no Mediterrâneo, os
tubarões nos mares cubanos, os muros da fronteira de Tijuana ou a expulsão
da Europa por não ter cidadania européia.
O discurso de Canclini é o discurso desse Outro discriminado que
não se vê como pólo dialético do EU (norte-americano, europeu etc). Ao contrário,
tenta recompor o discurso latino-americano para dar a essa gente um discurso
que legitima a sua possibilidade (ou liberdade) de circular, já que circular é hoje
uma condição para poder produzir, criar, inventar o novo.
A primeira operação de recomposição é desmitificar o EU latinoamericano — tarefas inscritas neste livro que deixo para o leitor identificar e
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Fábio Malini - A mimética globalização
saborear, no capítulo em que fala da América Latina entre Estados Unidos e
Europa. Ao desmitificar esse EU, Canclini compõem um “ser latino-americano
hifenizado”, que se associa ao Outro, através de redes sociais e comunicacionais,
como estratégia de criação e resistência. “Muitas vezes, a necessidade de somar
forças nas comunicações, no trabalho e para apresentar-se diante dos outros (os
norte-americanos) transforma dois ou três grupos étnicos em ‘mexicanos’. Até se
inventam comunidades brasileiro-mexicanas, cubano-porto-riquenhas, argentinouruguaias. Aqui os hífens importam, sim: designam a integração nova e precária
para além da inércia identitária nacional” (p.112).
A POLÍTICA CULTURAL DA GLOBALIZAÇÃO
A terceira parte do livro é o resultado do trabalho de Canclini
para organismos internacionais que pensam a política cultural para os
excluídos. Desse trabalho, Canclini pôde sistematizar algumas premissas
para a produção de políticas para os cidadãos em globalização, aqueles de
cidadania multiforme e “interculturados”.
É uma parte que não inova em relação aos desejos dos intelectuais
ligados aos estudos culturais: fundos para a cultura, criação de espaços
audiovisuais regionais, organização dos intercâmbios comerciais,
desconcentração da informação das agências internacionais, o Estado investir
na ampliação da oferta e da circulação da cultura, inserção na pauta de
negociação dos acordos de livre comércio dos blocos supranacionais o acesso
e o intercâmbio de serviços e bens culturais que estimulem o reconhecimento
da diferença cultural etc.
Não há conclusão neste livro, só há a proposição de premissas
para as políticas culturais. Se houvesse, talvez seria o fato de: “atenção,
meus leitores, o conceito de identidade deve vir a ser abandonado ou talvez
reinventado através do conceito de híbrido”. A identidade desvanece. E não
por conta de um Deus malvado, mas porque os homens querem romper uma
certa globalização que ainda é só imaginação. E ao lutar a favor da possibilidade
de circular, de ser livre, os homens reinventam a cultura, ora determinada,
num passado recente, pelas esquizofrenias nacionais. Agora, lembra Canclini:
“um dos pontos-chave que definem o caráter – opressivo ou libertador – da
globalização é o fato de ela permitir, ou não, a imaginação sobre várias
identidades, flexíveis, modulares, por vezes superpostas, e ao mesmo tempo
criar condições para que se possa imaginar como legítimas e combináveis,
não apenas competitivas ou ameaçadoras, as identidades, ou melhor, as
culturas dos outros” (p.116).
FÁBIO MALINI é doutorando em Comunicação do Programa de Pós-Graduação da Escola de
Comunicação da UFRJ.
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.140-143
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resumos - abstracts
Sobre nossa paixão indicial de cada dia: entre o realityshow e a
imagem delatora
ANDACHT, Fernando.
Resumo: O texto constrói uma análise a partir da comparação entre dois produtos
televisivos de grande repercussão no mundo globalizado: um programa televisivo de
reality show de grande audiência em vários países, o Big Brother, e a cobertura
jornalística da catástrofe do 11 de setembro, ocorrida em Nova York. Este artigo
analisa esses produtos à luz da semiótica, especialmente através de alguns conceitos
empregados por Charles S. Peirce.
Palavras-chave: mídia, reality show; signos, teoria da comunicação
Of our adumbrative passion of each day: between the reality show
and the informer image
ANDACHT, Fernando.
Abstract: This text builds an analysis by comparing two products of television with
great repercussion in the globalized world: a reality show with large audiences in
many countries, Big Brother, and the news coverage of September 11th in New York.
That article analyse these products under the óptica of semiotic, particulary through
of some concepts applied by Charles S. Peirce.
Keywords: media, reality show, signs, comunication theory
À procura da batida perfeita: a importância do gênero musical para
a análise da música popular massiva
JANOTTI Jr., Jeder S.
Resumo: Levando-se em consideração a importância dos gêneros musicais
nos processos de audição da música popular massiva, o artigo é dividido em
duas seções: a primeira procura definir os gêneros musicais em suas relações
com o consumo musical e a performance. Na segunda seção, seguindo o
percurso analítico esboçado anteriormente, foi efetuada a análise da canção
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.145-149
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“Vai Vendo”, gravada pelo músico carioca Marcelo D2 no CD “À Procura da
Batida Perfeita”.
Palavras-chave: música, comunicação, consumo e performance
In search of the perfect beat: the importance of musical genre to the
analysis of popular mass music
JANOTTI Jr., Jeder S.
Abstract: Based on recognition of the importance of musical genres in the consumption
practices surrounding popular music, this article is divided into two sections. The
first seeks to define musical genres in terms of their relationship to the consumption
and performance of music. The second section will extend this method through an
analysis of the song “Vai Vendo,” recorded by Marcelo D2 of Rio Janeiro on the CD
“A Procura de Batida Perfeita.”
Keywords: music, communication, consumption and performance
Notas para se pensar as relações entre Música e Tecnologias da
Comunicação
SÁ, Simone Pereira de e MARCHI, Leonardo de.
Resumo: O artigo apresenta reflexões decorrentes da pesquisa Música Eletrônica,
Tecnologias da Comunicação e dinâmicas identitárias, realizando um sucinto
mapeamento da produção acadêmica sobre os temas da cibercultura e da música
popular brasileira. Dessa forma, pretende-se contextualizar de maneira geral a
abordagem aplicada à música eletrônica e suas relações com as mídias e a indústria
cultural.
Palavras-chave: música eletrônica, indústria cultural, MPB, novas tecnologias da
comunicação, cibercultura.
Notes for questioning the relationship between Music and
Communication Technologies
SÁ, Simone Pereira de e MARCHI, Leonardo de.
Abstract: The essay focuses on questions related to the academic research Electronic
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Resumos - Abstracts
Music, Tecnologies of Communication and identity dynamics. An effort has been
made to draw a sketch of the academic debates to which that work is directly
connected, that is, the new technologies of communication and brazilian popular
music. In doing so, the purpose here is to contextualize, actually in a general way, the
approach applyed to the electronic music and its relations to the medias and cultural
industry.
Keywords: electronic music, cultural industry, MPB (popular brazilian music), new
communication technologies, cyberculture
Funk carioca: entre a condenação e a aclamação na mídia
FREIRE Fo., João e HERSCHMANN, Micael.
Resumo: A partir do exame de crônicas e reportagens publicadas na grande
imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, a partir de 1992, procurou-se nesse
artigo analisar as representações glamourizadoras e demonizadoras que estão
associadas ao funk carioca, isto é, buscou-se repensar o tratamento mediático
dado ao funk carioca, freqüentemente associado não só ao entretenimento e ao
lazer de jovens das principais cidades brasileiras, mas também: a gangues e
organizações criminosas, denúncias de relações sexuais anônimas nos bailes,
alienação, danças, letras e gírias de mau gosto, pornográficas e machistas.
Palavras-chave: comunicação, música, pânico moral, violência
Funk carioca: between condemnation and acclamation in the media
FREIRE Fo., João e HERSCHMANN, Micael.
Abstract: Based on the study of chronicles and news reports published by the
“big” press of Rio de Janeiro and São Paulo since 1992, this article seeks to
analyse the glamourous and demoniac representations associated with the funk
music of Rio de Janeiro. It intends to rethink the mediatic view of the funk of
Rio de Janeiro, frequently connected not only to the entertainment and leisure of
young people of the main brazilian cities but also: to gangs and criminal
organizations, expositions of anonimous sexual relations in funk parties, alienation,
dance, lyrics and slang of bad taste, pornography and male superiority.
Keywords: communication, music, moral panic, violence
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.145-149
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Periferia eletrônica: Clubbers e cybermanos na cidade de São Paulo
SABÓIA, Ricardo.
Resumo: O artigo discute questões emergentes na análise dos agrupamentos urbanos
juvenis contemporâneos articulados essencialmente no consumo de gêneros musicais.
Analisando especificamente a cultura club e os clubbers e cybermanos dos bairros da
periferia da cidade de São Paulo, aborda as relações de sociabilidade e as formas de
identificação e reconhecimento construídas na vivência dessa expressão cultural.
Palavras-chave: música; subcultura; clubber; cybermano
Clubbers and cyberbuddies in the city of São Paulo
SABÓIA, Ricardo.
Abstract: The article proposes the discussion of emergent questions in the analysis
of the urban contemporary youthful groups in relation to the consumption of musical
genres. While analyzing specifically the club culture and its clubbers and cybermanos
from the poor neighborhoods of the city of São Paulo it shows the relations of sociability
and forms of identification and recognition built upon the experience of this cultural
expression.
Keywords: music; subculture; clubber; cybermano
Da música pop à música como paisagem
LOPES, Denílson.
Resumo: A partir de um mapeamento da relação música e comunicação, a noção de
paisagem sonora aparece como alternativa ética e estética no seio do cenário da música
eletrônica, exemplificado pela obra de Brian Eno.
Palavras-chave: Pop, música, comunicação, paisagem, ambiente
From pop music to music as landscape
LOPES, Denílson.
Abstract: After mapping the relationship between music and communication, the
notion of sound landscape becomes an ethic and aesthetic alternative in the eletronic
music scene, taking as an example the work of Brian Eno
Keywords: pop, music, communication, landscape, environment
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Resumos - Abstracts
A negociação manguebeat: cultura pop, mídia e periferia no Recife
contemporâneo.
LEÃO, Carolina.
Resumo: O texto discute a formação da cultura pop na periferia recifense, que se
define como discurso social e estético a partir da geração manguebeat, cuja cena
começara a ser desenvolvida por volta de 1991.
Palavras-chave: cultura pop, mídia, manguebeat, periferia
The manguebeat negotiation: pop culture, media and outskirts in
contemporary Recife.
LEÃO, Carolina.
Abstract: This text discusses the building up of the pop culture in the outskirts of
Recife, that is defined as a social and aesthetic discourse since the manguebeat
generation which starts to be developed around 1991.
Keywords: pop culture, media, manguebeat, periphery
ECO-PÓS- v.6, n.2, agosto-dezembro de 2003, pp.145-149
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proposta editorial
Hoje, mais do que nunca, pensar o tempo presente implica a elaboração
de análises que dêem conta, em alguma medida, da amplitude e dinâmica do campo da
comunicação, que vem sendo alterado sensivelmente: as relações dos indivíduos com
o espaço e o tempo; os circuitos de produção, distribuição e consumo; as possibilidades
de interações e agenciamentos afetivos e simbólicos produzidos por diferentes agentes
e segmentos sociais; e os processos e fluxos que vêm atualizando a gestão da
informação e do conhecimento. Em outras palavras, refletir sobre a complexa realidade
atual demanda a construção de interpretações que levem em conta as mudanças em
curso e operem com os processos e circuitos comunicacionais que, cada vez mais,
constituem-se nos alicerces do mundo atual.
Daí a centralidade do campo da comunicação na cultura contemporânea.
Esta é a designação generalista para a intrincada trama de dispositivos técnicos,
representações sociais, fluxos informativos, espaços mentais ou configurações de
consciência que confluem para a constituição de novos estilos de vida que
quotidianamente articulam-se e colocam-se em tensão com o capital transnacional e o
mercado. A mídia, portanto, hipostasia essa forma, ensejando o desenvolvimento de
uma tecnocultura que se impõe como superfície semiótica de um mundo globalizado
e multicultural.
Para a compreensão do fenômeno, de pouco vale o apelo isolado às
disciplinas tradicionais do pensamento social: a realidade, hoje, demanda com urgência
um sistema de inteligibilidade afinado epistemológica e metodologicamente com a
nova dinâmica sociocultural. De modo geral, é isto o que vem buscando a perspectiva
transdisciplinar, adotada desde os começos no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação e Cultura da ECO/UFRJ.
Conseqüentemente, esta publicação está aberta a contribuições de
pesquisadores de diferentes áreas, desde que, mesmo guardadas as suas diferenças
disciplinares ou especializadas, se empenhem em atravessar fronteiras para
experimentar as interfaces do conhecimento. Nossa expectativa é que, assim, os
estudos de comunicação constituam-se num viés, numa perspectiva para a apreensão
dos saberes sobre a vida social em sua dinâmica de transformação e passagem.
Os Editores
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encaminhamento de artigos
Colaborações para a revista podem ser enviadas em disquetes ou por email, em modo attached.
As colaborações deverão conter:
a) notas de rodapé de acordo com as normas de referência bibliográfica;
b) referências, ao final do texto, apenas das obras mencionadas;
c) um resumo de, no máximo, 250 palavras na língua original do texto,
acompanhado de palavras-chaves;
d) abstract com keywords e résumés com mot-clés
e) breve nota biográfica do autor que indique, se for o caso, onde ensina,
estuda e/ou pesquisa, sua área de atuação e principais publicações;
f) indicação, em nota à parte, caso o texto tenha sido apresentado em
forma de palestra ou comunicação.
As colaborações por e-mail devem ser enviadas para:
[email protected] ou [email protected]
Os disquetes devem ser encaminhados com o respectivo endereço,
telefone, fax e e.mail do autor para:
Revista ECO-PÓS
Escola de Comunicação - Campus da Praia Vermelha – UFRJ
Av. Pasteur 250 (fundos), Urca
Cep 22290-240 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
A Revista ECO-PÓS pode ser adquirida nas versões
impressa e eletrônica através do site da E-papers Editora
(http://www.e-papers.com.br) ou em livrarias selecionadas.
aviso - temática dos próximos números:
. vol. 7, número 1: Televisão: Produção, Programação e Recepção
(entrega dos papers: março de 2004)
. vol. 7, número 2: Comunicação e Estudos Culturais
(entrega dos papers: agosto de 2004)
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números anteriores
v. 5, n. 1, 2002
DOSSIÊ - A (re)invenção do nacional no futebolespetáculo – O jogo bonito: futebol na Inglaterra e no
Brasil dos anos 50 e 60 / Kevin Foster – Cidadania e narrativas
nacionais do futebol argentino contemporâneo / Pablo
Alabarces – A crise do futebol brasileiro: perspectivas para
o século XXI / Ronaldo Helal e Cesar Gordon ENTREVISTASO Império e a Multidão / Michael Hardt e Antonio Negri
PORTFÓLIO - Ensaio fotográfico / Rosângela Rennó
RESENHAS- Imprensa e História no Rio de Janeiro dos anos
50 / Ana Paula Ribeiro – Das estrelas móveis do pensamento
/ Anelise Pacheco RESUMOS
v. 5, n. 2, 2002.
DOSSIÊ - Encenações contemporâneas: cultura,
espetáculo e periferia – Os novos realismos da cultura do
espetáculo / Tatiana Salem Levy e Karl Erik Schøllhammer
– Os sonhos da razão produzem monstros: discurso
espetacular e mito na literatura da cibercultura / Erick
Felinto – Arte e mediação: reflexões sobre violência e
representação / Santiago Villaveces-Izquierdo – Da
periferia industrial à periferia fashion: dois momentos do
cinema brasileiro e a espetacularização da cultura / Angela
Prysthon e Rodrigo Carrero ENTREVISTAS - Uma cidade
em cena – Paulo Lins PORTFÓLIO - Desigualdade –
Concurso Arte e Mídia / Escola de Comunicação
RESENHAS- Ratinho: a crise da TV brasileira e as
reinvenções do popular / Isabel Christina E. Guimarães –
Nós, Ciborgues: a ficção científica como narrativa da
subjetividade homem-máquina / Fátima Cristina R. de
Oliveira RESUMOS
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v. 6, n. 1, 2003.
NOTAS DE CONJUNTURA - O deslocamento do boné /
Antônio Fausto Neto DOSSIÊ - Comunicação e Consumo –
Por que as marcas causam polêmica? / Douglas Holt – Mídia,
consumo cultural e estilo de vida na pós-modernidade /
João Freire Filho – Cultura do consumo, Islã e a política do
estilo de vida / Baris Kiliçbary e Mutlu Binak –
Universalidades e singularidades juvenis / Silvia H. S. Borelli
– Música brega, sociabilidade e identidade na Região Norte
/ José Maria da Silva – A responsabilidade social na ordem
da produção e do consumo / Eduardo Murad ENTREVISTASComunicação e Direitos do Consumidor – Léa Freire
PORTFÓLIO - Adbusters e o movimento do
anticonsumismo – www.adbustres.org RESENHASEconomia da experiência / Marcio M. Rolla – Repensando o
papel das marcas / Daniel Mattos RESUMOS
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