Untitled - Consulado General de Venezuela en Recife
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Consulado Geral da República Bolivariana da Venezuela em Recife O LIVRO AZUL HUGO CHÁVE Z F RÍAS Recife, 2014 Consulado Geral da República Bolivariana da Venezuela em Recife Avenida Conselheiro Aguiar, 597 • Boa Viagem Recife/PE • CEP 51011-031 Telefone: (81) 31318150 site: recife.consulado.gob.ve Cônsul Geral: Carmen Teresa Navas Reyes Tradução ao Português: Mércia Paulino Revisão: Henrique Marinho e Sofia Leal Batista Ilustração da capa: Ivanilson Mendonça Foto da Ilustração: Adriana Noya Arte da Capa: Zasha Greige Produção Gráfica Bagaço Design Ltda.* Lot Estrada de Tabatinga, 336 • Tabatinga Igarassu/PE • CEP 53605-810 Telefax: (81) 3205.0132 / 3205.0133 e-mail: [email protected] www.bagaco.com.br * Endereço para correspondência: Rua Luiz Guimarães, 263. Poço da Panela, Recife-PE • CEP 52061-160 C4471 Chávez Frías, Hugo, 1954-2013 O livro Azul / Hugo Chávez Frías ; prefácio Carmén Teresa Navas Reyes ; apresentação Pedro Rafael Lapa – Recife : Bagaço, 2014. 88p. 1. BOLÍVIA – IDEOLOGIAS POLÍTICAS. 2. RODRÍGUEZ, SIMÓN, 1771-1854. 3. BOLÍVAR, SIMÓN, 1783-1830. 4. ZAMORA, EZEQUIEL, 1817-1860. 5. CIÊNCIA POLÍTICA – FILOSOFIA. 6. ESTADO E INDIVÍDUO. I. Reyes, Carmen Teresa Navas. II. Lapa, Pedro Rafael. III. Título. PeR – BPE 14-139 ISBN: 978-85-8165-137-8 Impresso no Brasil – 2014 CDU 32 CDD 320.5 Prefácio Carmen Teresa Navas Reyes* É com muito orgulho que o Consulado Geral da Venezuela em Recife faz a edição em língua portuguesa do Libro Azul do Presidente Hugo Chávez. Com este fato, queremos render lugar a uma homenagem ao Presidente Hugo Chávez como continuador dos ideais de Simón Bolívar, Simón Rodríguez, Ezequiel Zamora e também de Abreu e Lima. Esta edição do Livro Azul vem a rememorar quem foi o pernambucano José Inácio de Abreu e Lima, primeiro redator do jornal patriota “Correo del Orinoco”, que teve a tarefa de informar a verdade da Venezuela revolucionária do século XIX ante os intentos de censura da época, e com sua palavra escrita defender a memória de Bolívar. Finalmente, fazer este lançamento em língua portuguesa com intelectuais, artistas, e trabalhadoras e trabalhadores de Pernambuco é nossa forma de estreitar ainda mais os laços que unem nossos povos há 200 anos. Queremos, portanto, agradecer a magnífica acolhida a nossa ideia expressada no trabalho e nos aportes de quem participou do nascimento do Livro Azul em Recife. * Cônsul Geral do Consulado Geral da Venezuela em Recife. Sumário 7Apresentação Pedro Rafael Lapa 16Introdução Nicolás Maduro Moros 31 O LIVRO AZUL 33Pensamentos 35Preliminar 37 A Árvore das Três Raízes 39 O Sistema EBR 41 Primeira Raiz: Raiz Robinsoniana 43 Segunda Raiz: Raiz Bolivariana 45 Terceira Raiz: Raiz Zamorana 49 O Projeto Nacional Simón Bolívar 53 A Utopia Concreta Robinsoniana 56 A Situação-Objetivo 57 O Modo de Vida Solidário 59 O Modelo da Sociedade Original 61 O Sistema Social 61 1. O Estado 63 2. Os Poderes do Estado 65 O Poder Eleitoral 67 O Poder Moral 70 O Sistema de Governo 72 A Democracia Popular Bolivariana 75 O Sistema Ideológico EBR 77 Propósito Fundamental: Modelo de Sociedade 83 A Revolução como meio para alcançar o novo modelo de sociedade Apresentação Pedro Rafael Lapa* Ao escrever o Livro Azul em 1991, o Comandante Hugo Chávez, que havia acabado de concluir o Mestrado em Ciência Política, descreveu de forma original a história da filosofia política venezuelana, demonstrando que existe um Modelo Ideológico Original e que esse Sistema de Ideias e Valores está impregnado no subconsciente do povo venezuelano. Respeitando a estrutura do Livro, dividiremos a apresentação em três partes. Primeira, a Árvore das Três Raízes; segunda, o Projeto Nacional de Simón Bolívar; e terceira, o Sistema Ideológico, que a exemplo das Raízes reúne as concepções políticas de Simón Rodríguez, Simón Bolívar e Ezequiel Zamora. A Árvore das Três Raízes Na primeira parte do livro o Comandante Hugo Chávez oferece uma magistral síntese a respeito da filosofia política orientadora da luta pela independência. A primeira raiz, mais profunda, diz respeito ao Modelo Ideológico que emergiu do pensamento e da práxis de Simón Rodríguez e que se desdobrou em um Projeto de Sociedade baseado na educação popular, instituições e governo originais. * Formação em Economia Política, e atuação profissional voltada para a supervisão, gestão e análise do capital financeiro. H U G O C H ÁV EZ FR Í A S 9 A segunda raiz diz respeito ao Modelo Ideológico que teve por base a primeira raiz e emergiu do pensamento e da práxis de Simón Bolívar, caracterizado como um modelo de maior dimensão e projeção histórica e geográfica. A exemplo do primeiro, o Modelo Bolivariano tem a marca da originalidade quando afirma que o povo venezuelano é mais um composto de África e América do que uma emancipação europeia, e defende a construção da justiça baseada em um código de leis venezuelanas, distinto das relíquias de todos os despotismos, antigos e modernos. A terceira raiz nutre o Modelo Ideológico ao conformar uma síntese filosófica orientadora, quando Ezequiel Zamora liderou uma insurreição campesina com o lema “terra e homens livres, eleição popular e horror à oligarquia”. Dessa forma deu sequência à luta em busca das grandes conquistas que foram lema da independência, que são a essência de uma república concreta e genuína e que para tanto precisa ser soberana, formada de homens livres, e regida por valores e normas inspiradas na justiça. A partir do esboço das raízes históricas da filosofia política venezuelana, faremos a seguir alguns registros com o objetivo de destacar a sua importância e descrever o contexto no qual foram concebidas. O primeiro registro diz respeito ao entendimento do Comandante Hugo Chávez de que o conteúdo dessas raízes políticas está presente no subconsciente do povo venezuelano na forma de um Sistema de Ideias e Valores que orienta suas lutas para construir uma “Sociedade Verdadeira”. A esse propósito merece referência o testemunho de uma brasileira a respeito de uma longa 10 O L IVRO AZUL viagem que fez à Venezuela recentemente. Segundo ela, o que lhe causou impressão mais forte foi constatar que um roteiro frequente nas brincadeiras das crianças é a luta pela independência e que elas disputam quem vai fazer o papel de Bolívar. Além de demonstrar a presença do “Libertador” no subconsciente do povo venezuelano, esse relato reforça a observação de José Martí, outro grande protagonista das lutas pela independência no Caribe e América Latina, de que, mesmo depois da sua partida, “Bolívar ainda tem muito a fazer pela América”. O segundo registro diz respeito ao processo de observação e práxis que levou Simón Rodríguez e Simón Bolívar a perceberem que a América era original. Por essa razão os projetos de nação requeriam modelos de instituições e governo originais (anticolonial). Esse olhar atento antecipou, em mais de um século, a abordagem sociológica que defende que as concepções sociológicas eurocêntricas não dão conta de entender a realidade latinoamericana (Aníbal Quijano). Eles foram também atentos para perceber que a luta pela independência se dava em um período de transição (visão de época) na qual emergiu a “civilização liberal”, que perdurou até a crise de 1929. Impressiona a lucidez de perceberem que a luta pela independência estava inserida em uma luta mundial entre progressistas e conservadores. Não se tratava apenas da separação da Espanha, mas do ponto de partida para organizar, de novas formas, a Sociedade e o Estado. Além disso, deve-se lembrar que a luta pela independência se dava em um período no qual a economia política da Venezuela se caracterizava pela escravatura, latifúndio e agricultura primitiva. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 11 Completavam esse cenário cidades pouco desenvolvidas e o comércio local limitado. Por essa razão a independência compreendia duas revoluções a um só tempo. A política e a econômica. As anotações contidas nessa primeira parte da apresentação têm por objetivo dar pistas e estimular o leitor a identificar os elementos determinantes do Modelo Teórico Político que deu rumo à luta pela independência da Venezuela e que renasceu no final do século XX. Essas anotações se referem à primeira metade do século XIX, período no qual o Comandante Hugo Chávez identifica as raízes históricas desse modelo, as quais se confundem com a vida e atuação de Simón Rodríguez (1771 - 1854), Simón Bolívar (1783 - 1830) e Ezequiel Zamora (1817 - 1860). O Projeto Nacional Simón Bolívar Na segunda parte do Livro Azul o Comandante Hugo Chávez desloca seu olhar dos elementos determinantes do pensamento que constituem as raízes históricas da filosofia política venezuelana para o Projeto Nacional tributário dessas raízes, cujos primeiros vestígios estão contidos no Congresso de Angostura (1819) e Sociedades Americanas (1842), textos exaustivamente citados. Na narrativa do Comandante Hugo Chávez, as raízes revelam os elementos orientadores do pensamento, e o Projeto revela a estrutura necessária e os movimentos para construir a Sociedade Pretendida. Nessa parte do Livro pode-se perceber com muita clareza a combinação da sua sólida formação em História, Filosofia, Sociologia e Ciência Política, com a sua formação militar, que lhe permitiu 12 O L IVRO AZUL descrever com precisão os componentes estruturais do Projeto e as estratégias para criar uma Sociedade Nova. No texto encontram-se expressões como “conhecimento da realidade”, “objetivos estratégicos”, “horizonte temporal definido para alcançar objetivos” e “racionalidade”. A familiaridade demonstrada no manuseio desses conceitos revela a habilidade com o fazer político, que compreende fazer acontecer as decisões que afetam a Sociedade. A propósito dessa racionalidade, o Comandante Hugo Chávez foi muito didático ao relacionar o conceito com a divisão de poder no âmbito do Estado, que se constitui elemento assegurador da coordenação e eficácia operacional; e também relacionar o conceito com a divisão de poder entre a Sociedade e o Estado, que se constitui por sua vez elemento assegurador da prevalência do Sistema de Ideias e Valores que orienta a Sociedade (racionalidade axiológica). Projeto Nacional Renascido Na segunda e terceira parte do Livro Azul, que tratam respectivamente do Projeto Nacional Simón Bolívar e do Sistema Ideológico, o Comandante Hugo Chávez faz uma narrativa rigorosamente didática centrada na concepção de um Modelo de Sociedade cuja construção envolve três campos de determinação. O econômico, que reflete as condições de vida e de trabalho; o ideológico, que se refere ao Sistema de Ideias e Valores; e o político, que envolve o Sistema de Decisões Econômicas e Políticas. Como se trata de uma narrativa de um projeto, uma expressão muito presente é “transformação”. Por essa razão pode-se observar um deslocamento H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 13 da narrativa no tempo. Enquanto no início o olhar estava dirigido para a primeira metade do século XIX, aos poucos o olhar se volta para um novo tempo. Nesse ponto indaga-se o que levou o Comandante Hugo Chávez a escrever o Livro Azul? Encontra-se a resposta no início do Livro quando ele afirma que o Projeto Nacional renasceu no final do século XX, porque aquele Projeto tinha um encontro pendente com a história. Ao assumir o papel de provocar esse encontro ele não só liderou o processo que fez o Projeto Nacional renascer, como suas concepções fizeram com que esse Projeto adquirisse dimensões filosóficas novas e geopolíticas mais amplas. No plano filosófico é notável a inclusão do Poder Popular na Constituição. Nas palavras do Comandante Hugo Chávez, esse dispositivo constitucional foi concebido de maneira a abrir com amplitude ilimitada os espaços necessários para que o povo obtenha o controle do poder para tomar as decisões que afetam a sua vida cotidiana e seu destino histórico, e ele foi incansável no empenho para fazer a passagem do que Simón Bolívar entendia como “utopia concreta” para a construção do Socialismo do Século XXI. No plano geopolítico, também é notável o protagonismo do Comandante Hugo Chávez na ampliação e objetivação do conceito de “Pátria Grande”, que se expressa através da criação e dos reflexos da atuação da Aliança Bolivariana Para os Povos de Nossa América – ALBA, União das Nações Sul Americanas – UNASUL, e Comunidade dos Estados Latino Americanos e Caribenhos – CELAC. Para oferecer ao leitor do Livro Azul um paralelo entre a dimensão geopolítica que Simón Bolívar 14 O L IVRO AZUL e o Comandante Hugo Chávez deram ao conceito de “Pátria Grande”, é importante que sejam feitos alguns registros que revelam a sua construção objetiva. O ciclo liderado por Simón Bolívar envolveu, em 1819, a entrada em Bogotá, libertação da Nova Granada, e criação da República da Colômbia, que compreendia os atuais Estados da Venezuela, Colômbia, Equador e Panamá; em 1821, a entrada em Caracas e libertação da Venezuela; em 1822, a entrada em Quito, incorporação da Província de Guayaquil à Colômbia, e conferência de Simón Bolívar com San Martin, que, em 1817, liderou a entrada em Santiago, e libertação do Chile, e que, em 1821, havia proclamado a independência do Peru; em 1824, a entrada em Lima e libertação do Peru; e, em 1825, a entrada em La Paz e criação da República da Bolívia. O ciclo liderado pelo Comandante Hugo Chávez pode ser caracterizado por alguns episódios marcantes. Em 2004, foi assinado Acordo para estabelecer Aliança Estratégica Brasil/Venezuela, seguido de sistemáticos encontros presidenciais que possibilitaram significativos avanços nas relações entre os dois países, destacando-se em particular a integração produtiva envolvendo a Faixa do Orinoco e a Região Norte do Brasil; em 2005, foi criada a PETROCARIBE, que se transformou em importante instrumento de cooperação, possibilitando o estreitamento e fortalecimento dos laços da América Latina com o Caribe; em 2006, foi assinado Acordo para estabelecer Aliança Estratégica Argentina/ Venezuela, que possibilitou uma nova conferência entre os dois países, protagonizada agora por Hugo Chávez e Néstor Kirchner, destacando-se que a Venezuela se apresentou como emprestador de última H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 15 instância para a Argentina, que com isso se libertou do FMI, rompeu com a orientação neoliberal e iniciou a reconstrução de uma Sociedade e Estado devastados; em 2008, se repetiu a solidariedade da Grande Colômbia, quando a Venezuela se solidarizou com o Equador diante da ameaça militar da Colômbia, patrocinada pelos Estados Unidos, que mantém naquele País nove bases militares; em 2010 foi criada a Comunidade dos Estados Latino Americanos e Caribenhos – CELAC; e em 2012, a Venezuela ingressou no MERCOSUL. Enquanto no contexto do primeiro ciclo o elemento central foi a luta pela independência, no segundo ciclo o elemento central é a luta pela soberania, e nela a questão da integração regional constitui um elemento decisivo. A adesão ao conceito de “Pátria Grande” faz com que o princípio orientador das relações internacionais deixe de ser a integração subordinada, que institui uma relação de dependência, e passe a ser uma relação baseada na cooperação e na solidariedade, que torna possível criar um espaço regional que seja uma zona de paz, democrático e com justiça social. A partir da combinação do Projeto Nacional Renascido com a construção objetiva do conceito de “Pátria Grande”, pode-se enxergar que emergia a quarta raiz do Sistema de Ideias e Valores que orienta o Projeto Nacional Renascido. A exemplo do início da apresentação, quando foram apresentadas algumas considerações para contextualizar a luta pela independência, é necessário fazer alguns registros a respeito do período no qual o Projeto Nacional renasce. O primeiro registro diz respeito ao fato de que, a exemplo do que ocorreu na luta pela independência, a Venezuela enfrenta agora a luta pela 16 O L IVRO AZUL soberania. Atualizando a expressão de Ezequiel Zamora, “horror ao império e à oligarquia”. O segundo registro diz respeito à lucidez do Comandante Hugo Chávez, que, a exemplo de Simón Rodríguez e Simón Bolívar, foi atento para perceber que a luta pela soberania e o Projeto Nacional Renascido está se dando em um período de transição (visão de época) na qual a “civilização neoliberal” está submergindo. Por essa razão a maneira mais adequada de concluir essa apresentação é recorrer às palavras de José Martí, para afirmar que mesmo depois da sua partida o “Comandante Hugo Chávez ainda tem muito a fazer pela América”. Nas palavras do Presidente Nicolás Maduro, o Livro Azul é uma raiz do Projeto Nacional Renascido e que se encontra em desenvolvimento, e por essa razão todo venezuelano deve conhecê-lo, e sua edição em português permite que um público maior tenha acesso a uma fonte preciosa para entender a natureza e as perspectivas do processo em curso na Venezuela, América Latina e Caribe. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 17 Introdução Nicolás Maduro Moros* I Através das páginas do Livro Azul, ao relê-las com a atenção que merecem, notamos imediatamente a presença do pensador Hugo Chávez: um pensador inteiramente livre e totalmente comprometido; um pensador em guerra contra qualquer forma de dogmatismo. O Livro Azul demonstra uma poderosa convicção do Comandante durante toda a sua vida: pensar antes de agir; gerar pensamento libertador para iluminar os caminhos da ação fértil. Ao trazer à tona o pensamento do Gigante, o Livro Azul, em sua primeira etapa, mostra que suas ideias já adquirem uma realização singular. São princípios que nasceram no meio da batalha histórica do nosso Povo, intimamente ligada à história do MBR-200**. A propósito, e perdoe a digressão, acredito que chegou a hora de estudar a fundo o MBR-200 e o papel decisivo que desempenhou na história contemporânea da Venezuela. Estimo que seja um desafio para jovens historiadores e historiadoras, para quem nas alas militares se incorporaram a ele e para aqueles que o acompanharam desde o mundo civil. Com sua decisiva importância histórica, para corroborá-lo, ali está o 4 de fevereiro de 1992, seu * Presidente da República Bolivariana da Venezuela. ** Movimento Bolivariano Revolucionário 200. 18 O L IVRO AZUL desenvolvimento histórico tem que ser muito mais conhecido por nosso Povo. Se quisermos saber de onde viemos, é preciso entender o papel desempenhado pelo MBR-200 como um poderoso fator desencadeante para nossa Revolução Bolivariana. Ao aproximar-nos do pensamento e da obra do Comandante Hugo Chávez, advertimos que tudo quanto realizou respondia a uma dupla condição histórica: contar com um propósito claro e ter uma profunda consciência das suas consequências no tempo. O Livro Azul não é uma exceção, também aqui o descobrimos aprofundando-se na história para traçar-nos o horizonte filosófico e político que imaginava para o país ao qual condensou no Projeto Nacional Simón Bolívar. Como poucas vezes na história venezuelana, um homem concebeu as bases de um sistema político, econômico e social, e teve o cuidado de fazê-lo historicamente. E Chávez, desde o primeiro momento quando advertiu que para sempre dedicaria por inteiro sua vida à ressurreição da Pátria, sabia que um novo projeto histórico digno do nome devia partir do substrato ético e ideológico da inacabada e herdada luta. Somente resgatando o caráter afirmativo da venezuelanidade, como disse Augusto Mijares, e lutando incansavelmente para a vitória final de todas as batalhas do nosso passado, poderemos ter a real e verdadeira Pátria. Tínhamos nos convertido, ao longo do século XX, em um Povo órfão de nosso passado glorioso, de tal sorte que perdemos toda a forma de reconhecimento. E isso Chávez reconheceu com soberana clareza, e nos fez saber a plenitude no Livro Azul. Poderíamos dizer que no coração de Hugo Chávez, quando escrevia estas páginas, pulsava a H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 19 mesma vigilância de Don Mario Briceño Iragorry quando lembrou-nos com dor: “Distanciados de seguir uma lógica viva em nós mesmos, quero dizer, em nosso próprio passado nacional, a substância moral de nosso ser social, sofremos com uma ausência de perfis decisivos. Como corolário, não alcançamos a definição de ‘povo histórico’ que é necessário para forjar a nacionalidade”.(1) Chávez considerou frutuosa a realização dessa lógica viva. De um projeto com raízes próprias e respondendo à situação sociopolítica da Venezuela nos finais do século passado, o objetivo transcendente era promover, mais uma vez, o nascimento do povo histórico, o verdadeiro e esquecido, o que muitas vezes lhe foi negado a sua essência e a sua razão: o Povo que o Gigante fez renascer das cinzas para que pudesse se tornar Revolução, Pátria, Nação ardente em uma chama sagrada. Hoje encarnamos plenamente a categoria de povo histórico, e viemos realizando, coletivamente, o processo mais bonito de forja da nacionalidade. E perdoe a repetição: hoje temos a Pátria como nunca antes em nossa história. II “Nossas leis são funestas relíquias de todos os despotismos antigos e modernos, que este edifício monstruoso derruba-se, caia e, afastando as suas ruínas, levantemos o templo à justiça e, sob os auspícios da sua sagrada inspiração, ditemos um código de leis venezuelanas.”(2) 1 Briceño – Iragorry, Mario (1952). Mensaje sin destino y otros ensayos. Biblioteca Ayacucho. Caracas, 1988, p. 75. 2 Bolívar, Simón. Discurso de Angostura. 15 de febrero de 1819. 20 O L IVRO AZUL São as palavras do Pai Bolívar que nunca deixaram de pendular na mente do jovem oficial Hugo Chávez. O Libertador estava transmitindo um mandado: era inadiável socavar completamente a estrutura desmoronada de toda uma sociedade que clamava há décadas por uma transformação real e verdadeira. Implícita estava a visão do Comandante de que o Povo venezuelano deveria sobressair-se para fazer o seu destino, o seu azimute histórico. E isso dentro de uma estratégia de transformação que abrangia tanto o nível fenomenal como o geno-situacional, enfrentando e confrontando a profunda contingência histórica e suas derivações, enquanto abordavam-se integralmente, de acordo com a estratégia delineada por nosso Chávez. Neste sentido, O Livro Azul fez-se de bitácula, e tem sido e é uma sólida referência que refuta aqueles que insistiram e seguem insistindo que nosso Gigante nunca teve rumo certo ou, uma vez, criado o Governo, em 1998, traiu suas propostas iniciais, similar ao projeto nacional exposto a todos os venezuelanos até no último recanto do nosso território, assim que saiu da prisão e até o dia em que foi eleito Presidente pela primeira vez. Convencido e ciente, desde muito antes de 4 de fevereiro de 1992, da necessidade histórica e política de uma convocação nacional para uma Assembleia Constituinte, caso a revolta triunfara. Não em vão, com o passar do tempo, esta foi sua única proposta eleitoral em 1998 e a primeira decisão tomada após ser investido com a primeira magistratura nacional. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 21 III Para o filósofo Juan David García Bacca, grande estudioso do pensamento robinsoniano, frequentemente citado por Chávez, definir consiste em fazer destacar o original que as coisas têm (diferença específica) sobre o fundo comum (gênero próximo) de uma realidade, única maneira de determinar o que essa mesma coisa está sendo. “Mutatis mutandis”, mudando o que tinha que mudar, algo semelhante se apresentava na sociedade venezuelana, no momento em que estas páginas foram escritas: a crise terminal anunciava um desfecho heroico, visto a coragem mostrada e demonstrada pelo nosso Povo naquele 27 de fevereiro de 1989, ao colocar contra o muro tanto a tese neoliberal quanto a tão apregoada “morte das ideologias”. Retratava fielmente O Livro Azul não só o que em corpo e alma vivia e sofria a sociedade venezuelana, o que, então, estava acontecendo, senão que pintaria por igual um transfinito mundo de possibilidades o qual permaneceria aberto no futuro, para citá-lo também com García Bacca, agarrando este a mão do mestre Simón Rodríguez e sua lapidada frase “inventamos ou erramos”, ou seja, o original como um ponto nodal das repúblicas a construir. Garcia Bacca diz: “É, pois, a transfinitude, um tipo originalíssimo de invenção, originalíssimo por sequela de invenções”.(3) Daí a gênese de uma Revolução Bolivariana única e inédita e, por sequela, os originalíssimos processos constituintes e instituintes que não só deram à luz uma Carta Magna muito original, mas que tais processos seguem definindo e 3 García Bacca, Juan David. Infinito transfinito finito. Anthropos, Editorial del Hombre. Barcelona-España, 1984, p. 159. 22 O L IVRO AZUL transformando a realidade venezuelana na mesma medida em que nossos homens e mulheres se vão reapropriando, com felicidade, da mesma. Uma das maneiras de tornar essa reapropriação eficaz tem sido a constante convocatória ao Povo Legislador, conceito este robinsoniano, para que o Povo possa dar a si mesmo um Código de Leis Venezuelanas, como solicitou Bolívar em Angostura. A “Ley Habilitante”* contra a corrupção e a “Ley Habilitante” para arrumar as regras do jogo econômico nos colocam diante da inevitável exigência de legislar também sobre novos códigos morais; dão-nos a certeza de que esse mesmo Povo Legislador, agora mais que nunca, está nas ruas mobilizado; é o Povo Legislador como expressão viva e eficaz do Poder Popular, Participativo e Protagonista da sociedade original a que aspiramos. IV No Livro Azul, Chávez estuda a realidade nacional com paixão: paixão pátria e bolivariana que carrega em si um enorme fardo de ansiedade e, ao mesmo tempo, de esperança. Para Chávez, nesta fase em que seu pensamento começa a ser definido, o trânsito e a transição do país sofredor e oprimido pelo regime “puntofijista”, gerador de angústia, até o país desejado e liberto, passa, necessariamente, pelo país insurgente, sublevado. Em sua visão, ao lado do país insurgente e do Povo rebelde, devem estar os militares para cumprir o mandado do Libertador de empunhar suas espadas em defesa das garantias sociais, dos direitos das grandes maiorias. * Nota do tradutor: recurso constitucional que permite o presidente de legislar em matéria específica. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 23 O Chávez, que escreve O Livro Azul, em 1991, podemos vê-lo à luz destas palavras de Michel Foucault: “É a conexão entre o desejo e a realidade (e não sua retirada em direção às formas de representação), o que possui força revolucionária”.(4) Como pensador, condutor militar e líder político, Chávez busca incessantemente a frutuosa ligação entre o desejo e a realidade, que, aliás, a esquerda havia renunciado fazer naquela época. É a partir daí que O Livro Azul mantém intacta a força revolucionária que o gera e o projeta. Neste sentido, devemos estar atentos e vigilantes a fim de que nunca se perca a conexão entre o desejo coletivo, popular, e a realidade venezuelana: nosso Povo tem todo o direito de reivindicar a quem trabalha no governo, quando percebe a desconexão da nossa parte. Hoje, ter a verdadeira força revolucionária para acelerar a transição para o socialismo significa ter a capacidade para ouvir a interpelação popular: eis aí a chave para a necessária e indispensável alavancagem diária. Somos e nos sentimos chavistas, temos feito do Plano da Pátria 2013-2019 nossa carta de navegação, não estamos aqui para manter e gerenciar o poder, mas para continuar a fazer uma revolução: uma revolução que tem como base fundamental a prática do poder obediencial, o exercício de governar obedecendo; é a feliz realidade das comunidades no leme, do Povo legislando, do Povo Presidente, do poder Popular que não é gerenciado por ninguém, senão pelo próprio Povo Soberano enquanto Poder Constituinte e Instituinte. Se para José Carlos Mariátegui o objetivo de um projeto de libertação nacional em sua terra 4 Foucault, Michel, “El Anti-Edipo: Una introducción a la vida no-fascista”. En Cuadernos de Marcha (nº 38, Tercera Época). 1988. PP. 57-61. 24 O L IVRO AZUL baseou-se no princípio de “peruanizar” ao Peru, é possível verificar em Chávez do Livro Azul um objetivo semelhante, ou seja, “venezuelanizar” a Venezuela. Tal objetivo transcendente responde a criação da Árvore das Três Raízes, enquanto a audaz reinvindicação e fecunda assunção de uma memória histórica libertadora, plena de contemporaneidade e “prenhe” de futuro. V Citaremos por extenso o Comandante. Ouçamos sua voz esclarecendo o panorama e traçando o verdadeiro caminho para a libertação nacional, em direção à nossa definitiva Independência: “Qual a razão pela qual estamos aqui e agora anunciando e promovendo alterações profundas ao começar a última década deste século ‘perdido’? Poderíamos enunciar uma infinidade de causas, pequenas e grandes, passadas e presentes, estruturais e conjunturais, para expor aos homens deste tempo tal razão. No entanto, todas as que aqui puderam ser assinaladas seriam tributárias de uma mesma corrente, cujo leito vem de muito longe, e aparece e desaparece de maneira intermitente nas curvas e nas voltas, quase sempre escuras, da história nacional. Existe então, compatriotas, apenas uma e poderosa razão: o projeto de Simón Rodríguez, O Mestre; Simón Bolívar, O Líder; e Ezequiel Zamora, o General do Povo Soberano; referência verdadeiramente válida e pertinente com o caráter sócio-histórico do ser venezuelano, que clama novamente por um espaço para ser plantado na alma nacional e conduzir o seu caminho até a primeira metade do século XXI. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 25 O clamor é incontível pelos caminhos da Venezuela. Aproxima-se, torna-se um torrente e se confunde na comoção do povo venezuelano. Este projeto renascido dos escombros e ergue-se agora, no final do século XX, apoiado em um modelo teórico-político que condensa os elementos conceituais determinantes do pensamento desses três ilustres venezuelanos, o qual será conhecido mais adiante como sistema EBR, A Árvore das Três Raízes: E, de Ezequiel Zamora; B, de Bolívar e R, de Robinson. Tal projeto, sempre derrotado, até agora, tem um encontro pendente com a vitória. Nós, simplesmente, vamos provocar o dito encontro inevitável.”(5) Ao reler atentamente estas palavras, quero lembrar algo que já disse: A muitos de nós, seus filhos e filhas, seus colaboradores e colaboradoras, Chávez nos tirou da alienação exógena que, infelizmente, marcou parte da história da esquerda venezuelana, e que distanciou, irremediavelmente, o pulsar e o sentir do Povo. Chávez foi um autêntico mestre, um inigualável pedagogo quando se trata de nos mostrar a necessidade urgente e indispensável de fazer corpo e consciência da nossa história, de nos fazer sentir e saber que somos herdeiros e herdeiras, continuadores e continuadoras de todas as nossas lutas. Graças a seus ensinamentos, o Libertador, o Mestre e o General do Povo Soberano se tornaram nossos grandes exemplares contemporâneos; os colocou, literalmente, a batalhar conosco em nosso tempo. Chávez nos colocou na realidade e, para isso, nos abriu os caminhos perdidos da memória histórica, da sua potência e do seu potencial e de sua potencialidade; convocou-nos a buscar e encontrar os códigos que nos dão razão e sentido como venezuelanos e venezuelanas. 5PÁG. 37 e 38 desta mesma edição do Livro Azul. 26 O L IVRO AZUL Chávez resgatou nossas fontes originárias: Simón Rodríguez, Simón Bolívar e Ezequiel Zamora, as três raízes e as três estratégias para a refundação da República. VI Ao recorrer novamente às páginas do Livro Azul, voltei a confirmar uma certeza: Chávez não é só o maior reivindicador de Bolívar, mas também o é da figura e do pensamento de Simón Rodríguez. Quão prodigiosa maneira temos de descobrir o valor fundamental das ideias de Robinson, de revelar-nos a importância decisiva do original robinsoniano. Para Chávez, Robinson não é o inspirado, mas o que inspira através da utopia concreta que se projeta no seu pensamento. É por isso que o Comandante reivindica ao Robinson audaz, ao Robinson revolucionário, ao Robinson descolonizador das consciências, das mentalidades, ao Robinson que nos apresentou o ineludível dilema existencial e político de inventar ou errar, ao Robinson que deu toda a ênfase à necessidade imperiosa de criar uma maneira de governar-nos que parasse de olhar nos espelhos importados para começar a ver-nos em nós mesmos. Na realidade, e em verdade, Chávez extraiu toda a potência emancipadora do seu pensamento. Robinson encarna em Chávez quando diz, por exemplo: “Os homens não estão na sociedade para decidirem quem tem necessidades, nem para aconselharem-se como remediá-las, nem para exortar-se a ter paciência, mas para consultarem-se sobre os meios de satisfazer seus desejos, porque não satisfazê-los é padecer”.(6) 6 Rodríguez, Simón (1828). Sociedades Americanas. Biblioteca Ayacucho. Caracas, 1990, p. 71. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 27 Trata-se, então, de um Robinson que pensa a Revolução desde o desejo, desde os desejos, e isto faz com que o Chávez que o segue, que se inspira nele, afaste-se de qualquer tentação dogmática, de qualquer forma de dogmatismo. Quero atrever-me a formular livremente uma intuição: em muitos e variados sentidos, Robinson é para nós muito mais importante que Carlos Marx, e o é porque ele pensou desde nossa realidade, enraizando seu pensamento, assimilando todas as ideias que havia para assimilar da Europa, porém pensando desde pressupostos nossos americanos, não europeus, tendo a coragem de formular ideias próprias, descolonizando-se na hora de forjar conceitos, descolonizando-nos no pensar e no fazer. Não em vão, o Mestre dos Mestres da Grande Pátria escreveu estas linhas que ainda nos desafiam, nos provocam: “Mais consideramos entender a um índio que a Ovídio”.(7) Aqueles que só entendem a Ovídio, e não se importam em entender a um índio, têm o colonialismo na mente e atuarão, consequentemente, sem o menor sentimento de pertencimento. Isto é o que acontece com a colonizada oposição venezuelana: o colonialismo mental faz com que eles desprezem o nosso Povo e isso significa desapreciar a Pátria que os viu nascer, a Pátria que não sentem, que não amam. O Livro Azul se inscreve única e totalmente na corrente histórica, filosófica e política do bolivarianismo contemporâneo: trata-se de um bolivarianismo para o século XXI, segundo a feliz expressão do mesmo Comandante. Certamente, no Libertador 7 Rodríguez, Simón (1845). “Consejos de amigo dados al Colegio Latacunga”. En obras completas, tomo II. Ediciones de La Presidencia de La República. Caracas, 2001, p. 35. 28 O L IVRO AZUL nos encontramos todas e todos; Bolívar nos dá sentido e nos interpela; seu pensamento é um convite permanentemente aberto para repensar tudo. Então: de Bolívar viemos e a Bolívar vamos. Esta revolução não teria sido a mesma e, além disso, não seria possível, se não fosse Bolivariana. Chávez entende a ideologia bolivariana de liberdade, igualdade e justiça como primordial sustento para encarnar uma ética republicana que responderia aos desafios do nosso tempo. Uma ética republicana no sentido mais rigoroso, ou seja, nada está acima do bem comum, do bem-estar coletivo, da suprema felicidade social. É o Libertador, mostrando-nos o rumo certo da arte de governar: “...Eu sempre sobreponho a comunidade aos indivíduos”.(8) O oposto foi o que fizeram as classes dominantes desde 1830: sobrepor o mais feroz individualismo e exercer o poder contra qualquer possibilidade de realização comunitária. O projeto da oligarquia não foi outro que constituir uma “Nação”, entre aspas, sim, sem Povo, e manter a Venezuela em sua condição de colônia. E com o surgimento do ouro preto nos reduzido a ser uma colônia petroleira “yanqui”: uma extensão territorial sem liberdade, sem soberania, sem independência. De todo ponto de vista a ressurreição do bolivarianismo foi necessária para que ressuscitasse a consciência do Povo venezuelano e, assim, se recuperasse o bem dos bens, o bem que nos permite alcançar a todos os outros bens: a Independência. Chávez sempre estará ao lado de Bolívar na gesta independentista que retomamos coletivamente no século XXI e que ainda não foi concluída. 8 Bolívar, Simón. En carta al general Antonio José de Sucre desde Bogotá, El 28 de octubre de 1828. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 29 Da mesma forma, Ezequiel Zamora encontra em Chávez o seu grande reivindicador histórico. Seguindo a trilha deixada pelo mestre Federico Brito Figueroa do tempo de Ezequiel Zamora, Chávez traz ao General do Povo Soberano, no presente, a continuidade ao combate social, a luta pela igualdade, por um país real e, verdadeiramente, de iguais. Inclusive, nesta fase de seu pensamento, Chávez analisa e projeta o Estado nacional da raiz zamorana: sua proposta daquele tempo era a de um Estado federal zamorano. Finalmente, Zamora encarna Chávez com radicalismo: Zamora é uma direção à raiz do conflito social que nos determina desde 1830, é uma direção, a fundo, contra a injustiça, a exclusão e a desigualdade; é um retorno à nossa identidade original, tendo como base fundamental a unidade cívico-militar ou, se preferir, o Povo em Armas. Chávez traz ao presente o espírito zamorano, de acordo com o que entenderíamos sobre a continuidade da luta entre os pobres e os oligarcas que se apropriaram do poder, acumulando os mais grosseiros privilégios. Zamora é a luta social que não termina: a batalha pela igualdade. VII Hoje enfrentamos o desafio de definir e esculpir na matéria concreta de nossa sociedade, o modo solidário de existir, tal e como nosso Robinson imaginou para nossas repúblicas: “Não é cada um fazer o seu negócio, e perde aquele que não esteja em alerta; mas, em cada um pensar em todos, para que todos pensem nele. Os homens não 30 O L IVRO AZUL estão no mundo para se destruir entre si, mas para ajudar-se”.(9) De modo que não estamos esculpindo de qualquer maneira: estamos partindo da alma de nossa sociedade, do âmago de cada uma e de cada um de nós, em perfeita integração com o corpo social, para construir sobre bases sólidas um real e verdadeiro Poder Moral. Esta é a batalha mais exigente que temos que travar no presente: isso explica as respostas que como Governo Bolivariano estamos dando conjuntamente com nosso Povo à atual guerra econômica declarada à nossa Pátria feita por fatores estrangeiros, em conspiração com fatores apátridas, estamos e continuaremos respondendo contundentemente a tantos abusos, tantos atropelos e tantos crimes contra um Povo que deseja viver em paz. Devemos agir das profundezas da nossa subjetividade, mas em íntima consonância, até formar uma multiplicidade de acordes com os sentimentos dos outros: não nos é permitida outra opção. Não em vão, diante de uma nova guerra contra a nossa Nação, nossas respostas têm sido altamente originais e isso demonstra que vamos conjurá-la: somos um Povo que nasceu para vencer e venceremos. Seguiremos o caminho de inventar e inventar-nos para salvar e preservar a preciosa e fecunda vida de nossa República Bolivariana e Chavista, esboçada e brilhantemente projetada pelo Gigante nas páginas do Livro Azul. 9 Rodríguez, Simón (1828). “Sociedades Americanas”. Obras completas, tomo II. Ediciones de la Presidencia de la República. Caracas, 2001, p. 326. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 31 VIII Sei que deixei de fora muitas coisas no processo de escrever estas páginas, as mesmas se têm estendido muito, e prefiro parar por aqui. Confio que nosso Povo irá encontrar muitas ideias férteis quando lerem e relerem O Livro Azul, para continuar alargando os caminhos da filosofia popular que abriu para a Revolução Bolivariana. Na realidade, estas páginas continuam escrevendo-se na realidade venezuelana. Aqui brilha com luz própria o projeto originário do Comandante, o projeto que nos constitui e ao que sempre devemos voltar, do qual sempre devemos nos alimentar. 32 O L IVRO AZUL O LIVRO AZUL Pensamentos “Onde iremos encontrar modelos? A América espanhola é original. Originais devem ser suas instituições e governo. E originais, os meios de fundar umas e outro. Ou inventamos ou erramos”. “A América não deve imitar servilmente, mas ser original.” Rodríguez, Simón “Você formou meu coração para a liberdade, para a justiça, para o grande, para o belo. Segui o caminho que você me indicou.” Bolívar, Simón Pativilca, 19 de janeiro de 1824 Ao Senhor Simón Rodríguez “A razão que sustentamos não é outra senão a verdadeira causa dos povos, a República genuína, a Federação que deve ser premiada com o triunfo dos princípios e a derrubada consequente da tirania. Viva a Federação! Viva a verdadeira República! Viva e para sempre, a memória dos patriotas de nossa independência, dos homens de 5 de julho 1811, os que na Ata gloriosa disseram aos povos: Federação! Que se cumpra, pois, depois de tantos anos”. Zamora, Ezequiel 23 de fevereiro de 1859 H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 35 Preliminar Vivemos, efetivamente, em uma era em que as ideologias parecem extinguir-se. O “fim da ideologia”, assim a designam os não poucos estudiosos da época. O fenômeno assume maiores proporções na América, particularmente na Venezuela, onde a grande maioria dos partidos políticos, originados paralelamente ao processo de industrialização, derivou-se em organizações populistas, completamente vazias de conteúdo ideológico. Por outro lado, tem sido persistente a tendência, em nossos pensadores contemporâneos, de buscar modelos em outras latitudes para importá-los e implementá-los em nossas sociedades. Enquanto isso, nosso povo vem se distanciando cada vez mais de suas raízes históricas, onde certamente se encontram as chaves para decifrar o terrível enigma que nos mantém em um ir e vir através do abismo da história, já às portas do século XXI. As ideologias são instrumentos de navegação para surcar os tempos e os espaços, dando-lhes indicações precisas para as sociedades e as nações. E é, precisamente, neste quadro desideologizado, e com o propósito de encontrar recursos válidos para que o nosso povo avance pelo intrincado e complexo mapa do futuro que ousamos invocar um modelo ideológico autóctone e enraizado no mais profundo da nossa origem, e no subconsciente histórico do ser nacional. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 37 No núcleo do pensamento de Simón Rodríguez se encontra a semente de um projeto de sociedade baseado na educação popular e na criatividade. Simón Rodríguez concebe a ideia concreta da República e esculpe as formas do Estado Nacional e as linhas geo-históricas da sua projeção no tempo. 38 O L IVRO AZUL A Árvore das Três Raízes Qual a razão pela qual estamos aqui e agora anunciando e promovendo alterações profundas ao começo da última década deste século “perdido”? Poderíamos enunciar uma infinidade de causas, pequenas e grandes, passadas e presentes, estruturais e conjunturais, para expor aos homens deste tempo tal razão. No entanto, todas as que aqui puderem ser assinaladas seriam tributárias de uma mesma corrente, cujo leito vem de muito longe, e aparece e desaparece de maneira intermitente nas curvas e nas voltas, quase sempre escuras, da história nacional. Existe então, compatriotas, apenas uma e poderosa razão: o projeto de Simón Rodríguez, O Professor; Simón Bolívar, O Líder; e Ezequiel Zamora, o General do Povo Soberano, referência verdadeiramente válida e pertinente com o caráter sócio-histórico do ser venezuelano, que clama novamente pelo espaço a ser plantado na alma nacional e ao conduzir sua marcha ao encontro do século XXI. O clamor é incontível pelos caminhos da Venezuela. Aproxima-se, torna-se um torrente e se confunde na comoção do povo venezuelano. Este projeto renascido dos escombros e ergue-se agora, no final do século XX, apoiado em um modelo teórico-político que condensa os elementos conceituais determinantes do pensamento desses três ilustres venezuelanos, o qual será conhecido H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 39 mais adiante como sistema EBR, A Árvore das Três Raízes: E, de Ezequiel Zamora; B, de Bolívar e R, de Robinson. Tal projeto, sempre derrotado, até agora, tem um encontro pendente com a vitória. Nós, simplesmente, vamos provocar o dito encontro inevitável. 40 O L IVRO AZUL O Sistema EBR Primeira Raiz: Raiz Robinsoniana “A história da América Latina o deixou de lado. Desse exílio, esquecido, da intenção ou do erro sobre as perspectivas, trazemos este Simón Rodríguez, o que a história apenas consente em legitimar como preceptor de Simón Bolívar”. “Aparece-nos em uma indumentária de transeunte de vários mundos, velho observador das revoluções do século. Apresenta-se com seus traços de desajustado e diferente, lúcido e extravagante, filósofo, visionário e informador; reiterador de perguntas completas: inventor discrepante e planejador, para depois de amanhã trabalhar seu projeto na fundação das pátrias “criollas”, acompanhando-as com reflexões do dia, para o dia seguinte. É o futuro que carrega em seus ombros de solitário impaciente”. “Sua vida é andarilha, prazerosa, controversa, excedida em gastos de energia. Sabe rir bem. Sabe fazer pretextos ao riso. Sabe fugir do engano. Sua alegria não é ocasional. Era seu método de viver e ensinar.” (Dardo Cuneo) Na história da filosofia política venezuelana há um modelo teórico primogênito, o qual chamaremos de “robinsoniano” que surgiu do pensamento e da práxis daquele compatriota, que mudou seu nome de origem Simón Rodríguez para Samuel Robinson. O modelo Robinsoniano foi construído em um espaço de pouco mais de meio século, desde H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 43 a época da juventude de Robinson, quando o professor das crianças caraquenhas “escreve em 1794 suas reflexões sobre os defeitos que viciam a Escola das Primeiras Letras de Caracas e os meios para alcançar a sua transformação em ‘um novo estabelecimento’, até a sua própria velhice, na ocasião, em 1851, publica seus Conselhos de Amigo, entregues ao Colégio de Lacatunga”. O modelo se fundamenta em um sistema de ideias que pode ser perfeitamente emoldurado dentro de uma profunda disjuntiva existencial, na qual se deslinda claramente uma dicotomia em um movimento arrasador: “inventamos ou erramos”. Como todo sistema ideológico, o modelo está integrado em um conjunto de elementos conceituais fortemente interligados entre si, os quais constituem a estrutura sistemática Robinsoniana. O estudo do modelo, desde sua gênese até o seu desenvolvimento, demonstra que tal estrutura permanece inalterável e obedece à mesma disjuntiva de inventar novas instituições para as emergentes repúblicas latino-americanas ou de errar no caminho, caindo no simplismo de copiar modelos de outros tempos, outras atitudes, outros homens. Ou seja, se não inventamos, caímos fatalmente no erro. Em Sociedades Americanas (1842), Simón Rodríguez é responsável por delinear a alternativa: “Onde iremos encontrar modelos? A América espanhola é original. Originais devem ser suas instituições e governo. E originais, os meios de fundar umas e outro. Ou inventamos ou erramos”. É neste modelo que se insere a raiz mais profunda do Sistema EBR, precisamente, no R da raiz Robinsoniana. 44 O L IVRO AZUL Segunda Raiz: Raiz Bolivariana “Assim está Bolívar no céu da América, ainda sentado no rochedo da criação, com o inca ao lado e o feixe de bandeiras nos pés; assim está ele, calçadas ainda as botas de campanha, porque o que ele não deixou feito, sem fazer está ainda hoje: porque Bolívar ainda tem muita coisa a fazer na América”. (José Martí) O modelo Robinsoniano transcende, no entanto, o personagem, o mestre, para gerar e servir como uma base para outras dimensões superiores, não no filosófico, mas na sua projeção histórica e geográfica: O Modelo Bolivariano. Este se impulsiona sobre aquele e semeia em um vasto território a mesma semente dicotômica: inventar uma nova sociedade na América Espanhola ou errar; no sentido de copiar os modelos antigos, impertinentes para o nosso palco. Os elementos conceituais que formam o Modelo Bolivariano são mais complicados, mas não significa que seja impossível identificar uma estrutura perfeitamente homóloga com o modelo robinsoniano. Ambos são produtos de uma época e resultam de um processo de observação e práxis sobre uma mesma situação fenomênica. Simón Bolívar, “O Líder”, escreve a sua doutrina na dicotomia robinsoniana, de maneira reiterativa, desde seus primeiros discursos em 1811, quando ele diz: “que os grandes projetos devem ser preparados com calma. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 45 Trezentos anos de calma não são suficientes? Coloquemos, sem temor, a pedra angular da liberdade americana. Vacilar é perder-se”. Em seu Discurso no Congresso de Angostura, em 15 de fevereiro de 1819, ressalta: “Tenha em mente que o nosso povo não é europeu nem americano do norte, que é mais um composto de África e América, que uma emanação da Europa”. Mais adiante continua delineando o elemento central da estrutura conceitual do modelo: “Nossas leis são funestas relíquias de todos os despotismos antigos e modernos, que este edifício monstruoso derruba-se, caia e, dividindo as suas ruínas, levantemos o templo à justiça e, sob os auspícios da sua sagrada inspiração, ditemos um código de leis venezuelanas”. Esta é a segunda raiz, por cujo ápice libertário se alimenta o Sistema EBR: o B da vertente Bolivariana. 46 O L IVRO AZUL Terceira Raiz: Raiz Zamorana “Ouçam todos! Alcem as bandeiras! Que soe o tambor e tragam pelas rédeas um potro de pólvora e tempestade porque Ezequiel Zamora já acorda! E que venha o coro dos ventos! E o amanhecer! Porque Ezequiel Zamora já acompanha as pessoas e há uma tempestade na estrada!” (César Rengifo) É o modelo que completa a trilogia ideológica do projeto político que agora ressurge das entranhas da história nacional. Está moldado por uma síntese filosófica orientadora, aquela que abalou a oligarquia conservadora, quando Ezequiel Zamora, “O General do Povo Soberano”, lançou suas respeitáveis consignas federais: “Terra e homens livres”. “Eleição Popular”. “Horror à oligarquia”. Aqui está a terceira vertente ideológica que nutre nosso projeto político: A Raiz Zamorana, localizada em um tempo histórico mais próximo do presente e simbolicamente incorporada ao componente sistemático, com a vogal E daquele terrível nome: Ezequiel. A inspiração do general Zamora vem das mesmas raízes: Robinsoniana e Bolivariana. Seu discurso leva o mesmo carimbo do grande dilema H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 47 existencial. Inventou os mecanismos da insurreição camponesa de 1846, para errar e reinventar a maneira de liderar a Revolução em 1858. Em 1846 convida a seus companheiros a: Seguir em frente com uma imperiosa necessidade, para remover o jugo da vergonhosa oligarquia e para que se oponham a quem se opuser, e custe o que custar, vamos finalmente conseguir as grandes conquistas que foram o lema da independência. Zamora inventou o Estado Federal de Barinas, lançando, em 21 de maio de 1859, uma proclamação inflamatória: Sobre as ruínas da ditadura que, no último 5 de março, nos impôs Julián Castro, com a envelhecida oligarquia, levantareis o Governo Federal, que garante para sempre a liberdade, igualdade e fraternidade, dogma da República genuína. Os elementos conceituais do modelo ideológico zamorano mantêm estreita relação com a invenção robinsoniana e a grandeza da visão geopolítica do modelo bolivariano. Tais elementos são refletidos no grande número de documentos produzidos pelo General do Povo Soberano. Vejamos como mostra o Protesto aos cidadãos cônsules estrangeiros residentes em Porto Nutrias, em 9 de junho de 1859: A província de Barinas, fazendo uso de sua soberania radical, se separou do governo central e estabeleceu seu Estado Federal para governar-se por suas próprias leis, enquanto se reunia a convenção popular das províncias unidas de Venezuela. O Estado de Barinas não pode deixar de ser reconhecido como membro da 48 O L IVRO AZUL sociedade das nações, pois se governa por leis positivas emanadas dele mesmo e estabeleceu as autoridades que dirigem seus membros e os representam. Continuou inventando, ao ordenar a aplicação de medidas destinadas a favorecer as maiorias necessitadas: 1. Cinco léguas de terras marítimas, e pelos quatro pontos cardeais, para uso comum de cada povoado, vila ou vilarejo. 2. A eliminação do sistema de arrendamento de terra para fins agrícolas ou pecuários. 3. Fixar os salários dos trabalhadores, em conformidade com o trabalho. 4. Que os mestres dos rebanhos embutam dez vacas paridas de forma permanente nas terras comuns para fornecer, diariamente e gratuitamente, uma garrafa de leite para as famílias pobres. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 49 O Projeto Nacional Simón Bolívar O projeto está concebido como uma série encadeada de situações dentro de um processo evolutivo profundamente transformador. Chamemos de situação inicial a terrível realidade na qual caiu a Nação venezuelana atual, marcada por uma crise histórica sem precedentes, difundida em todos os componentes estruturais: »» Subestrutura econômico-social. »» Subestrutura político-jurídica. »» Subestrutura ideológica. Esta crise estrutural se reflete diariamente em todas as ordens do nível fenomenal da situação: social, econômico, político, militar, religioso, moral, ambiental, tecnológico, etc. A estratégia de transformação do projeto deve, portanto, abranger tanto o nível fenomenal como o genosituasional, enfrentando todos os componentes da situação, vistos de uma maneira integral. Chamemos, agora, de objetivo estratégico a futura situação da realidade nacional, a que será resultado do processo histórico, de transformação global, em que as formas estruturais serão totalmente diferentes das prevalecentes na situação inicial. O objetivo estratégico é a aspiração concebível, alcançável dentro de um horizonte de tempo definido. O Projeto Nacional Simón Bolívar propõe a fixação de um horizonte de tempo máximo de vinte anos, a partir do começo das ações transformadoras H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 53 da situação inicial, para que os atores e as ações situem-se no objetivo estratégico. No entanto, o projeto admite a existência de uma região possível que transcende o horizonte máximo definido, ou seja, situada para além do objetivo estratégico e que constitui o processo da “razão total”. Denominaremos esta região-cenário como a utopia concreta robinsoniana. “Utopia concreta” porque é a parte do sonho que pode ser trazida à realidade, alcançável à vista das leis de transformação situacional. E “robinsoniana” porque isso já foi vislumbrado pelo mestre Simón Rodríguez nos seus escritos em meados do século passado: “não é sonho, nem delírio, senão filosofia, nem o lugar onde isto se realize vai ser imaginário, como o que figurou Tomás Moro; sua utopia será, de fato, a América”.(1) 1 Rodríguez, Simón. Sociedades Americanas. 54 O L IVRO AZUL A Utopia Concreta Robinsoniana O homem, esse ser de nervos, sangue e razão, deve transcender os limites de suas próprias misérias individuais e localizar-se no âmbito fértil das relações sociais solidárias, e com profundas doses de racionalidade, tais como o mestre Simón Rodríguez salientou em “Sociedades Americanas” (1842), consequente com o pensamento mais avançado do seu tempo, e ainda existentes entre nós: “As sociedades tendem a um modo de existir muito diferente do que tinham e do que se destina a ter. Os homens dos últimos tempos querem governar pela razão que é a autoridade natural. A Razão é a figura abstrata do pensar”.(2) O mestre define em suas profundas reflexões “o fim da sociedade”, com uma visão teleológica profundamente humanista: “Os homens não estão na sociedade para decidirem quem tem necessidades, nem para aconselharem-se como remediá-las, nem para exortar-se a ter paciência, mas para consultarem-se sobre os meios de satisfazer seus desejos, porque não satisfazê-los é padecer”. Aqui estão as linhas fundamentais da utopia concreta robinsoniana, no âmbito de uma sociedade solidária, onde o ser humano seja o elemento fundamental com uma transcendência social já designada. 2 Rodríguez, Simón. Inventamos ou erramos. p. 128-129. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 55 Aprofundando o pensamento do mestre, tentamos assinalar um nível mais além do objetivo estratégico do Projeto Nacional Simón Bolívar, um nível onde se encontra a razão de ser para o processo: um estágio superior da sociedade em que os seres humanos podem “consultar sobre os meios de satisfazer seus desejos” e evitar o sofrimento individual e social. Tal situação não pode imaginar-se fora do âmbito de uma sociedade profundamente democrática e solidária. Foquemos com mais precisão os conceitos do mestre para definir com a máxima clareza possível a utopia concreta robinsoniana: a. A ideia de consultar-se é completamente democrática, com uma concepção profundamente participativa do termo: “Para tratar de seu bem-estar, não devem perder consultores, nem meios de se consultar; cada homem excluído do conselho é menos um voto e um prejuízo, porque se deve pensar nele para que não se ofenda, e por ele quando o necessitam”.(3) b. O propósito supremo da sociedade é “satisfazer os desejos” dos homens, mas com a condição de consulta prévia e geral sobre os meios de se chegar a esse fim. Aprofundando no conceito, consideremos que a ação de satisfazer implica “pagar inteiramente o que deve ser” e o desejo vem por um movimento acelerado da vontade até o conhecimento, posse ou fruição de uma coisa. E a vontade encontra-se “no poder da alma, que se move para fazer ou não fazer uma coisa”.(4) 3 Transcrição textual do escrito de Simón Rodríguez. 4 Ibidem, p. 130. 56 O L IVRO AZUL Quer dizer, a sociedade existe para abrir aos homens a via para a liberação das suas forças internas, de uma forma tal que flua do meramente individual, para melhorar a sua capacidade de pensar, de inventar e de criar os seus próprios modos de existir, em interação constante e solidária com os seus semelhantes. O desenvolvimento de sua capacidade criativa lhe permitirá, nessa fase futura da sociedade, compreender-se a si mesmo e dinamizar sua própria cultura, com que se assenta nos terrenos da racionalidade, em busca do fim existencial. A utopia concreta robinsoniana constitui o cenário mais distante, na perspectiva da trajetória estratégica da transformação. Por esta razão, seus contornos e seus componentes situacionais apenas podem ser vislumbrados, estendendo-se a projeção para além do horizonte. Conforme o projeto avança em direção à situação-objetivo e os planos vão se transformando em história, a utopia concreta poderá ser definida com maior clareza, como produto da visão dos atores e a eficácia das ações. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 57 A Situação-Objetivo O modelo de sociedade “original” e o modo de vida “solidário”. O Projeto Nacional Simón Bolívar visualiza a situação-objetivo de longo prazo, em um horizonte máximo de vinte anos, que exige usar estratégia micropolítica de transformação. A situação-objetivo constitui ao mesmo tempo uma realidade global, um cenário integral: o modelo de sociedade original e o modo de vida solidário, para os quais se orientará o esforço nacional. “Original” foi o termo usado pelo mestre Simón Rodríguez para definir o modelo da sociedade que deve perseguir a América Latina: “Onde iremos encontrar modelos? A América espanhola é original. Originais devem ser suas instituições e seu governo. E originais, os meios de fundar umas e outro. Ou inventamos ou erramos”.(5) E, solidário, porque O Mestre, dessa maneira, conceitualizava o modo de vida dos homens na sociedade. Vejamos a exatidão do seu projeto: “não é cada um fazer o seu negócio, e perde aquele que não esteja em alerta; mas, em cada um pensar em todos, para que todos pensem nele. Os homens não estão no mundo para destruir-se entre si, mas para ajudar-se”.(6) 5 Rodríguez, Simón. Luzes e Virtudes Sociais. 6 Rodríguez, Simón. Ob. Cit, p. 132. 58 O L IVRO AZUL O Modo de Vida Solidário “Modo de vida são as tendências sociais profundas e persistentes que permitem classificar eventos diários e dar-lhes um sentido”.(7) “Estudar o modo de vida significa fazer menção à sociologia da família, da educação do consumo do tempo livre, da cultura e do trabalho”.(8) E também: “O modo de vida é, em suma, a sociedade tal como ela é vivida concretamente”.(9) A definição do modo de vida é uma tarefa sumamente complexa. O Projeto Nacional Simón Bolívar enfrenta a proposta em um nível de alta generalização, com a intenção de abrir o compasso para a participação da sociedade civil venezuelana no difícil processo de definição e construção do modo de vida solidário. O modo de vida solidário é o produto social resultante do modelo de sociedade original, e em sua construção devem-se centrar três amplos campos de condições determinantes: 7 Naumont, H. 8 Duplex, Marc Maurice y Dolomenie, y Pichón P. 9 Fournier, J. e Questiaux, p. 41. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 59 1. Determinações econômicas (condições de vida e de trabalho). 2. Determinações Ideológicas (sistema de normas socioculturais). 3. Determinações Políticas (sistema de decisão econômico-político).(10) 10 Tomamos como embasamento teórico as explicações de E. Maurice, D. Delomenie, Picón, em: Trabalho, Modo de Vida, citado por Víctor Córdova, em: O Modo de Vida, p. 17. 60 O L IVRO AZUL O Modelo da Sociedade Original A estrutura do modelo é determinada por elementos situacionais e pela interação entre eles. Os elementos situacionais de caráter estratégico que interagem para definir o modelo de sociedade dentro de uma concepção global, são os seguintes: a. O sistema social. b. A cultura. c. Os fatores individuais. O sistema social, mesmo que ele sustente uma alta carga determinante para o modelo de sociedade, não abrange todo o seu espectro. Basicamente, ele está conformado pela estrutura econômico-social e pela estrutura político-jurídica. Além do sistema social, existe a cultura como um elemento estratégico do modelo de sociedade, compreendida dentro de um nível de conceituação extremamente dinâmico, que transcende a mera noção de patrimonial inventiva e cognitiva, até abranger a estrutura ideológica do corpo social. E em uma visão mais ampla e profunda, ainda, o Projeto Nacional Simón Bolívar atribui à cultura um papel predominantemente transformador e revolucionário, através da promoção e do livre desenvolvimento da criatividade, recolhida da dicotomia existencial robinsoniana: “Inventamos ou erramos”. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 61 O indivíduo é resultado da interação entre os dois componentes situacionais designados, processo no qual a estrutura social determina em alto grau os caracteres individuais. O indivíduo como ator social exerce, no entanto, a influência de importância variável no sistema social. O modelo de sociedade original deve aumentar a capacidade e a sua relativa autonomia criativa dentro da situação. Dentro da base teórica anterior, o Projeto Nacional Simón Bolívar aborda o modelo de sociedade original, com um enfoque global definido pela interação do sistema social da cultura e dos fatores individuais, visualizando em perspectiva a situação-objetivo do processo de transformação para um nível de princípios, no qual serão definidos os critérios gerais que compõem cada elemento estratégico do modelo, ou seja, o sistema social, a cultura e os fatores individuais. 62 O L IVRO AZUL O Sistema Social A estrutura político-jurídica Todas as forças contidas e atuantes na sociedade formam o poder social. Agora, o Poder Social se transforma, através da Constituição, em Poder do Estado. Portanto, a Constituição ocupa a primeira classe na ordem dos elementos estruturais, político-jurídicos de um Estado concreto. A Constituição Nacional do modelo de sociedade original deve ser pertinente e perfeitamente compatível com os outros demais componentes da estrutura estatal e social, especialmente na ordem econômica, social, cultural e geopolítica. Isto só poderá se conseguir a partir de uma Assembleia Nacional Constituinte de caráter plenipotenciário, a qual deve elaborar a Carta Magna na situação eventual, no âmbito de uma profunda participação da sociedade civil, através de vários mecanismos de democracia direta. 1. O Estado “O Estado Federal responde a várias necessidades”: “Em primeiro lugar, torna-se possível a organização política, racional de grandes espaços sob a suposição de relações de paridade entre as partes componentes”. “Pode responder também a um princípio de organização estatal que tenha como objeto a máxima autonomia dos componentes, seja por motivos de índole técnicas (melhor desempenho da organização), seja por motivos de índole axiológicas, como o reconhecimento e o respeito a entidades de âmbito local e como H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 63 uma via para a realização do ideal da liberdade, que do plano da pessoa individual, agora muda para a personalidade coletiva, embora não constituam nações culturais”.(11) As necessidades geopolíticas internas da Venezuela do século XX exigiam uma equilibrada e policêntrica arquitetura do poder. O Estado funciona como uma “unidade de poder”. Unidade que não deve ser confundida com a concentração. E “poder” que precisa ser exercido de maneira harmônica e bem distribuído em todo o território nacional. O Estado Federal, que assim se constituía, receberá o nome de Estado Federal Zamorano, em homenagem ao General do Povo Soberano, Ezequiel Zamora, cujo projeto de Federação foi deturpado por aqueles que traíram os princípios da Revolução Federal. O Estado Federal Zamorano terá a seguinte estrutura jurídica: 1. A Constituição Nacional, soberana por si só e a norma fundamental das constituições dos Estados-Membros. 2. As normas jurídicas de âmbito e competência federal. 3. As Constituições dos Estados que compõem a Federação, limitadas e enquadradas pela Constituição Nacional. A unidade total, independente e soberana da Nação, residirá na síntese dialética dos âmbitos nacional e estatal. Ou seja, o todo transcende a simples soma das partes. 11 García-Pelayo, Manuel. Direito Constitucional Comparado. p.p. 216217. Alianza Editorial, Madrid, 1984. 64 O L IVRO AZUL 2. Os Poderes do Estado “O pior inimigo da liberdade, disse Montesquieu, é o poder, já que é uma experiência eterna que o homem que o tem tende ao seu abuso; mas, como o poder é necessário, há apenas um meio para garantir a liberdade, a saber: encontrar uma disposição em que o poder detenha o poder, e isso só pode ser feito de acordo com sua divisão”.(12) A divisão dos poderes do Estado se encontra dentro de um processo de racionalização de dupla vertente: a. A Racionalidade técnica, a qual fornece os componentes, e as ações do Estado, um alto nível de coordenação e eficiência operacional. b. A Racionalidade axiológica, ou seja, a busca consciente de um coerente sistema de valores. O Projeto Nacional Simón Bolívar reúne a doutrina da divisão dos poderes do conceito bolivariano do Estado e da sociedade: “E, então, haverá um equilíbrio e não um choque que concebe o progresso do Estado, e não haverá essa complicação que bloqueia, em vez de vincular, a sociedade”.(13) Com efeito, a divisão harmoniosa dos poderes é um meio essencial para garantir a “suprema liberdade social”. 12 Ob. cit. p. 155. 13 Bolívar, Simón. Discurso de Angostura, 15 de fevereiro de 1819. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 65 A raiz do projeto bolivariano faz renascer a estrutura proposta pelo libertador, em Angostura (1819) e na Bolívia (1826). De tal forma que o Estado Federal Zamorano consistirá de cinco poderes públicos: 1. Poder Executivo 2. Poder Legislativo 3. Poder Judicial 4. Poder Eleitoral 5. Poder Moral A definição das estruturas e atribuições de cada um dos poderes será produto das deliberações que conduzirá, em sintonia com a Nação, a Assembleia Nacional Constituinte durante a etapa de transição. O Movimento Bolivariano Revolucionário-200 propõe, para abrir a discussão histórica, alguns elementos que poderiam formar linhas ou quadros amplos de definição dos poderes Eleitoral e Moral, retirados do conceito bolivariano do Estado. 66 O L IVRO AZUL O Poder Eleitoral “O [Poder] Eleitoral recebeu faculdades que não lhe estavam designadas em outros governos que se estimam entre os mais liberais. Essas atribuições se aproximam em grande parte as do sistema federal. Parece-me não apenas conveniente e útil, mas também fácil, conceder aos representantes imediatos do povo os privilégios que mais desejam os cidadãos de cada departamento, província ou “cantón”. Nenhum objeto é mais importante para um cidadão que a eleição dos seus legisladores, magistrados, juízes e pastores. Os Colégios Eleitorais de cada província representam as necessidades e os interesses delas e servem para queixar-se das violações das leis e dos abusos dos magistrados. Atrever-me-ia dizer com alguma precisão que esta representação participará dos direitos dos quais gozam os governos individuais dos Estados Federados. Desta forma, se tem colocado novo peso à balança contra o Executivo e o governo adquiriu mais garantias, mais popularidade e novos títulos, para que se sobressaia entre os mais democráticos”.(14) O Poder Eleitoral do Estado Federal será o componente político-jurídico que permita aos cidadãos serem autênticos depositários da soberania, cujo exercício estará realmente nas mãos do povo. O Poder Eleitoral será estendido para todo o sistema sociopolítico da Nação, estabelecendo os canais para uma verdadeira distribuição policêntrica do poder, movendo as forças até a periferia e aumentando a capacidade de decisão e a autonomia nas comunidades e nos municípios. 14 Bolívar, Simón. Mensagem ao Congresso Constituinte de Bolívia, 25 de maio de 1826. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 67 O Poder Eleitoral será exercido pelos cidadãos de forma direta, através das Assembleias Eleitorais, das quais participarão livremente todos os venezuelanos em idade eleitoral (eleitores). A Assembleia Eleitoral Municipal elegerá os membros do Conselho Eleitoral do município, em número proporcional ao da população do mesmo. Os Conselhos Eleitorais de cada município se congregarão para formar o Conselho Eleitoral do Estado. O Conselho Eleitoral de cada Estado elegerá seus representantes ao Conselho Federal Eleitoral, organismo que terá competência nacional. Os cidadãos que integrem os diferentes conselhos eleitorais serão total e absolutamente independentes dos partidos políticos. Os conselhos eleitorais terão a responsabilidade inerente aos processos eleitorais, tanto locais, como estaduais e nacional. Ao mesmo tempo, monitorarão, constantemente, o desempenho dos funcionários eleitos pelo povo e poderão iniciar, promover e decidir consultas populares diretas (referendos, plebiscitos, etc) para revogar ou aprovar cargos e/ou atos públicos locais e/ou nacionais, de acordo com a sua jurisdição. O Poder Eleitoral permitirá a todos os eleitores venezuelanos escolherem os funcionários públicos do poder executivo, legislativo, judiciário e moral, desde o nível local ao nacional. Esta escolha deve ser uninominal, universal, direta e secreta. 68 O L IVRO AZUL O Poder Moral “Constituamos este areópago para que valha sobre a educação das crianças, sobre a instrução racional; para que purifique o que está corrompido na República; que acuse a ingratidão, o egoísmo, a frieza do amor à Pátria, o ócio, a negligência dos cidadãos, que julgue os crimes de corrupção, os exemplos perniciosos; devemos corrigir os costumes com sanções morais, como as leis punem as infrações com penas aflitivas, e não apenas o que choca contra ela, mas também o que a ludibria, não apenas o que a ataca, mas também o que a enfraquece, não apenas o que viola a Constituição, mas também o que viola o respeito público”. “Meditando sobre a maneira eficaz de regenerar o caráter e os costumes que a tirania e a guerra nos tem dado, senti a audácia de inventar um poder Moral, retirado do fundo da escura antiguidade e daquelas esquecidas leis que mantiveram algum tempo a virtude entre os gregos e os romanos. Bem pode ser considerado como um delírio sincero, mas não é impossível, e eu me lisonjeio, que não zombareis inteiramente de um pensamento que, reforçado pela experiência e pelas luzes, pode tornar-se muito eficaz”.(15) O poder Moral, juntamente com o Eleitoral, configura a instância constitucional de um quarto poder “Neutral”. Doutrina anunciada por Benjamin Constant (Pouviour Neutre). Este Poder Neutro, no Estado Federal Zamorano, proporcionará níveis adequados de 15 Bolívar, Simón. Discurso de Angostura, 15 de fevereiro de 1819. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 69 racionalidade técnica para os poderes clássicos, garantindo seu justo desempenho e bem-sucedida atuação no movimento da sociedade em direção a seus objetivos. Desta maneira, a estrutura político-jurídica mantém seu equilíbrio interno e proporciona estabilidade ao sistema social. O Poder Moral terá como missão fundamental assegurar o bom funcionamento do estado de direito, onde a lei e a razão são impostas como princípios fundamentais na relação entre os indivíduos, a sociedade e o Estado. O Poder Moral funcionará como uma garantia de direito e contará para isso com os mecanismos necessários para cumprir suas funções de supervisão, cuidados, amparo, defesa e salvaguarda dos direitos individuais e sociais e do patrimônio público. Os componentes estruturais do Poder Moral serão: a. A Promotoria Federal da República b. A Procuradoria Federal da República c. A Controladoria Federal da República Cada um destes órgãos terá suas respectivas instâncias regionais (estaduais e municipais), que serão autônomas na sua organização e funções, reguladas pelas respectivas constituições estaduais. Os altos funcionários nacionais, estaduais e municipais dos organismos que compõem o Poder Moral serão eleitos de maneira uninominal, universal, direta e secreta pelos eleitores venezuelanos, segundo sejam estabelecidas pelas respectivas constituições e leis eleitorais. O fiscal federal, o procurador federal e o controlador federal constituirão o Conselho Moral da Nação, totalmente independente dos demais 70 O L IVRO AZUL órgãos do Poder Público e com a missão constitucional de supervisionar e facilitar o funcionamento adequado dos demais poderes. Em cada Estado da República, funcionará o Conselho Moral Estatal e em cada município, o Conselho Moral Municipal, constituído pelo promotor, pelo procurador e pelo controlador de cada instância correspondente. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 71 O Sistema de Governo A democracia participativa e “protagónica” “A política se ocupa com a questão clássica de Harold Lasswell: ‘Quem recebe o quê, quando, como?’. O governo se ocupa com a questão: ‘Quem controla o quê, quando e como?’”. (Karl Deutcsch) À política corresponde a definição de objetivos e propósitos da sociedade. Ao governo corresponde a formulação de políticas, ou seja, tomar decisões que afetam a sociedade. Portanto, o sistema de governo deve contar com mecanismos, caminhos, organismos e procedimentos para permitir que as maiorias nacionais exerçam o controle, a participação e a protagonização no processo de tomada de decisões políticas. E não só as maiorias; mas também, da mesma forma, as minorias, que constituem precisamente uma característica inseparável de uma sociedade democrática. O modelo da sociedade original da Venezuela do século XXI está concebido com o critério de um sistema de governo que abra com amplitude ilimitada os espaços necessários, onde os povos, a massa popular, se desdobrem criativa e eficazmente e obtenham o controle do poder para tomar as decisões que afetam suas vidas diárias e seu destino histórico. Trata-se, então, de um verdadeiro e autêntico sistema democrático, cujas instituições e procedimentos transcendam amplamente a menos-valia 72 O L IVRO AZUL e o estado de sobrevivência o que os governos populistas conduziram a democracia na América Latina. “Todo o Poder para o povo” é uma consigna perfeitamente válida que deve orientar o processo democratizador para a sociedade projetada no horizonte. Desde esta perspectiva, a chamada “democracia representativa” não tem sido mais do que um artifício através do qual tem se dominado os nossos povos. Já observava o libertador: “pelo engano nos tem dominado mais do que pela força”. O Projeto Nacional de Simón Bolívar deve romper os limites da farsa representativa, para avançar em direção à conquista de novos espaços participativos em uma primeira fase do seu desenvolvimento. Mas o objetivo estratégico deve ser a democracia popular bolivariana como sistema de governo. E ainda mais, como uma expressão da vida econômica, social e cultural do modelo de sociedade original robinsoniano. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 73 A Democracia Popular Bolivariana Protagonismo e Autogoverno Do ponto de vista das democracias formais, regidas pelos governos populistas, a participação tem sido ideologizada e utilizada por setores dominantes como isca, depois perdem o rumo nos esforços da intenção transformadora. Com efeito, os governos e os partidos populistas pregam a participação com o conceito de “propina”, de tal forma que a condenam a ser o fim em si mesma, com limites tão estreitos e rígidos que impedem a sociedade civil de intervir na tomada de decisões políticas, “quem recebe o quê, quando, como”. Como resultado, as pessoas não podem participar do desenho e/ou do discernimento dos planos e projetos que definem a sua marcha histórica. Assim, os nossos povos têm sido condenados a “participar” da sua própria destruição, da gestão da sua miséria crescente, do “controle” das fomes e das doenças que afligem quase 300 milhões de latino-americanos. Participaram cavando o túmulo histórico em que os setores dominantes pretendem enterrar as esperanças da “América Morena”. A democracia popular bolivariana rompe com este esquema de engano e vassalagem, para transportar os limites da ação para o nível de protagonização na tomada de decisões. O protagonismo, assinala Víctor Martín, “implica uma liberdade e uma capacidade mais forte e autônoma em relação à mudança, inclusive, as 74 O L IVRO AZUL mesmas regras iniciais”. Ou seja, o povo como depositário concreto da soberania deve manter a sua força potencial pronta para ser empregada a qualquer momento e em qualquer segmento do tecido político, para reparar danos a tempo, para reforçar algum desajuste ou para produzir transformações que permitam o avanço do corpo social na direção estratégica autoimposta. Para isso, o sistema político deve organizar os canais necessários, tanto a locais como regionais e nacional. Canais, através dos quais, corra o poder popular protagônico. Neste sentido, as comunidades, as favelas, os povoados e as cidades devem contar com os mecanismos e o poder para ser governado por um sistema de autogoverno que lhe permitam decidir sobre seus assuntos internos por si mesmos, através de processos e estruturas geradas no seu próprio seio. Quer dizer, o povo deve contar com canais de informação suficientes e órgãos de decisão no interior de sua anatomia, que lhes permita selecionar suas metas ou objetivos, corrigir o rumo até eles, quando estiver desviado e, finalmente, produzir as mudanças na sua composição interna, à medida que estas sejam solicitadas pelos processos históricos. A democracia popular bolivariana nascerá nas comunidades, e a sua seiva beneficiadora se estenderá por todo o corpo social da Nação, para nutrir com seu vigor igualitário, libertário e solidário o Estado Federal Zamorano. E a sua folhagem abrangerá as estruturas do modelo de sociedade robinsoniano. Será o novo tempo venezuelano, sob o signo da árvore das três raízes. Já se anuncia com força no horizonte do século XXI venezuelano e latino-americano. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 75 O Sistema Ideológico EBR Propósito Fundamental: Modelo de Sociedade “Voando através dos próximos tempos, minha imaginação se fixa nos séculos futuros, e observando de lá, com admiração e espanto, a prosperidade, o esplendor, a vida que tem recebido esta vasta região, me sinto arrebatado e me parece que já a vejo no coração do universo, estendendo-se sobre suas dilatadas costas, entre esses oceanos, que a natureza tinha separado, e que nossa pátria reúne com os prolongados e os largos canais. Já a vejo servir de laço, de centro, de empório para a família humana; já a vejo enviando a todos os recintos da Terra os tesouros que abrirão suas montanhas de prata e de ouro; já a vejo distribuindo por suas divinas plantas a saúde e a vida aos homens doentes do antigo Universo. Já a vejo comunicando seus preciosos segredos aos sábios que ignoram quão superiores é a soma das luzes à soma das riquezas, que tem concedido a natureza. Já a vejo sentada sobre o trono da liberdade, empunhando o cetro de Justiça, coroada pela glória, mostrar ao velho mundo a majestade do mundo moderno”. (Bolívar, Simón.) Discurso no Congresso de Angostura, 15 de fevereiro de 1819. O pensamento bolivariano ocupa um lugar relevante, uma visão teleológica, ou seja, de longo alcance, cujo foco transcende o tempo e situa-se no H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 79 objetivo final de conquistar um modelo diferente do modelo da sociedade existente. Bolívar fala dos “próximos tempos”, “dos séculos futuros”. Joga com o tempo e coloca no outro polo da sua visão o “universo antigo”, o “velho mundo”. Aqui está o primeiro vestígio de um Projeto Nacional venezuelano. Bolívar baseia-se na realidade que o rodeia (velho mundo) e desenha em um horizonte distante a imagem da situação futura ou sociedade desejada: “prosperidade, esplendor, empório da família humana”; uma sociedade onde reine “a liberdade, a justiça, a glória, a majestade”. Esta visão se transforma em elemento filosófico comum, também presente no pensamento de Rodríguez, em torno do qual se vai moldando o sistema ideológico e robinsoniano. O mestre esboça nas Sociedades Americanas (1842) a terrível realidade prevalecente: “Imaginemo-nos assistindo, de uma altura, a sociedade em que vivemos: Não saberemos por onde começar a observar. O tempo fugirá de nós, enquanto escolhemos entre os elementos que destacam, os que se destacam mais, e todos se realçam ao mesmo tempo, porque tudo é exterioridade – uma confiança geral afeta todas as classes — umas a outras se temem, sem poder determinar a causa, que não é outra senão o egoísmo, próprio da ignorância em que permanecem milhões de homens, pela falsa ideia que têm da sociedade os poucos que a sorte tem colocado para governá-la”.(16) Como Bolívar, Rodríguez lança aos homens do seu tempo a ideia clara de um Projeto Nacional, 16 Rodríguez, Simón. Sociedades Americanas. 80 O L IVRO AZUL através do qual as sociedades deveriam alcançar os mais elevados estágios da vida: “O mérito dos projetos está na previsão. Onde não há nenhuma previsão, não há mérito”.(17) A compatibilidade do seu projeto com a ideia bolivariana é apontada pelo próprio quando ele mostra com lucidez a política transformadora: “Napoleão queria governar a humanidade, Bolívar queria que se governar-se por si, e eu quero que aprendam a governarem-se a si mesmos”.(18) Na sociedade futura, O Mestre constrói, ao lado do conceito bolivariano, a ideia política do autogoverno, colocando a aprendizagem como um veículo para alcançá-lo, através do seu Projeto de Educação Popular: “Não nos alucinemos: Sem educação popular, não haverá verdadeira sociedade”.(19) E com sua visão de construtor, Rodríguez modela amplamente as sociedades americanas e a sua razão de ser: “Os homens não estão na sociedade para decidirem que tem necessidades, nem para aconselharem-se como remediá-las, nem para exortarem a ter paciência, mas para consultarem-se sobre os meios de satisfazer seus desejos, porque não satisfazê-los é padecer”.(20) Vai muito mais, além disso, no entanto, a projeção do seu pensamento, ao atribuir um caráter 17Idem. 18Idem. 19Idem. 20Idem. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 81 profundamente humanista como propósito fundamental da sociedade: “As sociedades tendem a um modo de existir muito diferente do que hão tido e do que se pretendem que tenham. Os homens destes últimos tempos não querem ter amos nem tutores, querem ser donos de suas individualidades, de seus bens e de sua vontade”.(21) Na mesma figuração teleológica de Bolívar, quando ele preconcebe à “vasta região sentada no trono da liberdade, empunhando o cetro”. Ambos pensadores transcendem em grande medida o foco, muito mais recente, segundo o qual um projeto de sociedade deve procurar alvos de “desenvolvimentitas” sujeitos às simples medições econométricas. Bolívar e Rodríguez estabelecem a utopia realizável no âmbito da razão humana, da realização das forças criadoras do homem e da sua cultura: “Concordamos em cultivar as virtudes e os talentos que conduzem à glória; então, seguiremos a marcha majestosa até as grandes prosperidades a que está destinada a América Meridional; então, as ciências e as artes que nasceram no Oriente e têm ilustrado a Europa, voarão à livre Colômbia, que as convidará como um asilo”.(22) “Os homens se reúnem e ajudam-se entre si; mas, “ajudar-se entre si” para adquirir coisas não é um fim social. Ajudar-se entre si para satisfazer-se os meios de adquirir, também não é um fim social. Projetos de riqueza, de preponderância, de 21Idem. 22 Bolívar, Simón. Carta de Jamaica, 1815. 82 O L IVRO AZUL sabedoria, de engrandecimento, qualquer um os forma e os propõe; mas não são projetos sociais. Ilustração! Civilização!”.(23) No pensamento do General do Povo Soberano, Ezequiel Zamora, conflui o mesmo elemento onde se projeta o propósito fundamental do Sistema Ideológico Bolivariano, Robinsoniano e Zamorano. Em maio de 1859, Zamora trata a situação-objetivo do esforço revolucionário: “Levantareis o Governo Federal que assegure para sempre a liberdade, igualdade, fraternidade, dogma da república genuína, que proclamaram os patriarcas da vossa independência.”(24) “E vereis aberta a nova era da federação colombiana; que foram os últimos votos de nosso Libertador, o Grande Bolívar”.(25) Apesar do ritmo ardente da guerra e das inúmeras tarefas e atividades que devia cumprir como líder militar, Zamora não perde o foco estratégico e político do objetivo revolucionário de transformar radicalmente a sociedade. Em junho de1859, de Barinas, assinala: “Tem-se aberto a era do governo próprio deste povo, para que dependa de si mesmo na direção e gestão dos seus próprios interesses, hão merecido a pátria”. 23 Rodríguez, Simón. Sociedades Americanas. 24 Zamona, E. “A los Barineses y Apureños”, 21 de maio de 1859. 25 Palavras ilegíveis, original, p. 36. Carta a Benito Urdaneta. Dada no Quartel General de Barinas, 19 de maio de 1859. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 83 E ao lado de Bolívar e Rodríguez, invoca o tempo como um fator determinante no movimento libertador dos povos: “Mas o tempo que olha o passado, olha para o futuro, e por suas mãos passa o presente, isso os confundirá no abismo da eternidade e só permanecerá na memória da compaixão dos que foram, no movimento destinado por Deus, à regeneração e ao progresso do meu povo”. A trilogia de pensamentos se faz evidente, molda um todo coerente, um componente doutrinário, perfeitamente definido e homogêneo que mostra o objetivo final do Sistema Ideológico EBR: atingir um novo modelo de sociedade (participativa, protagonista e solidária). 84 O L IVRO AZUL A Revolução como meio para alcançar o novo modelo de sociedade Outro elemento comum na estrutura ideológica destes três homens é a sua sólida convicção sobre o processo revolucionário como um passo necessário para conseguir as transformações da velha sociedade. A historiografia tradicional tem sido dominada pela tendência reacionária de apontar Bolívar como um homem pragmático, antes que pensador e ator revolucionário. John Lynch o localiza, por exemplo, dentro do “reformismo”: “Sua política não foi revolucionária. A abolição da escravatura e a distribuição da terra foram medidas reformadoras que teriam mudado, mas não transformou as estruturas existentes”. Em 1811 o jovem coronel ressalta: “Trezentos anos de calma não são suficientes? Coloquemos, sem temor, a pedra fundamental da liberdade americana. Vacilar é perder-se”.(26) A teoria política designa duas ações condicionantes de todo processo revolucionário: o movimento e a mudança de estruturas. A disposição de romper definitivamente com três séculos de dominação e colocar a primeira pedra para a construção do primeiro edifício já leva 26 Discurso pronunciado em 3 de julho de 1811 na Sociedade Patriótica de Caracas. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 85 uma carga significativa de movimento e ação até a realização de profundas transformações estruturais. A partir daí se irá radicalizando, consciente do processo desencadeado e imanente: “É uma estupidez maligna atribuir aos homens públicos as vicissitudes que a ordem das coisas produz nos estados, não estando nas esferas das atribuições de um General ou magistrado conter em um momento de turbulência, de choque e de divergências de opiniões o torrente das paixões humanas que, agitadas pelo movimento das revoluções, aumentam-se por causa da força que as resiste”.(27) E sua filosofia se impregna com os ensinamentos de seu mestre para enquadrar os esforços revolucionários na dicotomia existencial robinsoniana “inventamos ou erramos”, como fórmula para dominar “A irresistível força da natureza”: “Tudo era estrangeiro nesta terra. Religião, leis, costumes, alimentos, roupas, procediam da Europa; nem nada devíamos imitar. Como seres passivos, nosso destino se limitava a levar docilmente o freio que, com violência e rigor, manipulavam os nossos donos. Nivelados às feras selvagens, a irresistível força da natureza não mais tem sido capaz de nos repor na esfera dos homens; e embora ainda fracos na razão, temos dado início aos ensaios da corrida a que somos predestinados”.(28) Desde Kingston, Jamaica, assinala, em 6 de setembro de 1815, a necessidade de levar a “nossa 27 Bolívar, Simón. Manifesto de Carúpano, 7 de setembro de 1814. 28 Bolívar, Simón. Discurso de instalação do Governo das Províncias Unidas de Nova Granada, 23 de janeiro de 1815, Bogotá. 86 O L IVRO AZUL revolução” em direção à transformação das estruturas políticas e jurídicas do “sistema espanhol que está em vigor”: “Finalmente, incertos sobre o nosso futuro destino, e ameaçados pela anarquia, por causa da falta de um governo legítimo, justo e liberal, nos precipitamos no caos da revolução. Se estabeleceram autoridades que substituímos às que acabávamos de depor, encarregados de dirigir o curso da nossa revolução, e de aproveitar a feliz conjuntura em que nos possibilitou fundar um Governo Constitucional, digno deste século e adequado à nossa situação”. Em Angostura (1819) confirma seu conhecimento sobre o processo e seu projeto transformador de estruturas: “Um homem, e um homem como eu! Contra o quê poderia se opor no avanço destas devastações? Em meio a este oceano de problemas, não tenho sido mais que um vil brinquedo do furacão revolucionário, que me arrebatava como uma fraca palha. Por outro lado, sendo vossas funções a criação de um corpo político e, ainda, a criação de uma sociedade inteira rodeada por todos os inconvenientes que apresenta uma situação, a mais singular e difícil, talvez o grito de um cidadão possa advertir a presença de um perigo oculto ou desconhecido”. E na Bolívia (1825), reúne sua angústia vital em uma mensagem de aviso a seus contemporâneos: “Legisladores! Vosso dever vos chama a resistir ao choque de dois inimigos monstruosos que se combatem um ao outro, e ambos se atacarão ao mesmo tempo, H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 87 a tirania e a anarquia formam um imenso oceano de opressão que circunda uma pequena ilha de liberdade, perpetuamente embatidas pela violência das ondas e dos furacões, que a arrastam sem cessar até submergi-la. ‘Olha para o mar que vais navegar com um barco frágil, cujo piloto é tão inexperiente’”.(29) Para propor, seguidamente, linhas estratégicas destinadas à metamorfose estrutural, tanto no âmbito jurídico e político, bem como no econômico e social: “Foram estabelecidas as garantias mais perfeitas: A liberdade civil é a verdadeira liberdade; as demais são nominais, ou de pouca influência no que diz respeito aos cidadãos. Foi garantida a segurança pessoal, que é o fim da sociedade, e da qual emanam as demais. Quanto à propriedade, depende do Código Civil, que vossa sabedoria deveria logo compor para a felicidade dos vossos cidadãos. Foi preservada intacta a Lei das leis – a igualdade –, sem ela perecem todas as garantias, todos os direitos. A ela devemos fazer os sacrifícios. Aos seus pés deixei, coberta de humilhação, a infame escravidão”. No modelo de pensamento de Bolívar, se encaixa o componente robinsoniano do Sistema Ideológico das três raízes. Em 1830, em Arequipa, O Mestre vem em defesa do seu pupilo, incorporando seu pensamento com o mesmo perfil revolucionário: “A América espanhola pedia duas revoluções ao mesmo tempo, a pública e a econômica. As dificuldades que a primeira apresentava eram grandes, o General Bolívar venceu, ensinou e animou a outros a 29 Discurso ante o Congresso Constituinte de Bolívia. 88 O L IVRO AZUL superá-las. Os obstáculos que se opõem à segunda são enormes. O General Bolívar comprometeu-se a removê-los, e alguns indivíduos, em nome dos povos, lhe resistem ao invés de ajudá-lo”.(30) Não há outra maneira, sustenta O Mestre, para construir repúblicas e sociedades, que leve adiante um amplo e avançado processo revolucionário. Entendeu a revolução no sentido lato do termo e a deixou pendente em sua utopia concreta: “Uma revolução política pede uma revolução econômica. Se os americanos querem que a revolução política e que as circunstâncias tragam-lhes bens, façam uma revolução econômica e comecem pelos campos”.(31) Carrega em sua mente, além disso, a ideia do arquiteto social. Em 1850, quando Ezequiel Zamora já andava nos “Llanos” da Venezuela invocando a traída Revolução Bolivariana, o velho Simón escrevia em Lacatunga: “Comecem o edifício social pelas fundações, não pelo telhado, como aconselham os demais: as crianças são as pedras”. Com efeito, já em 1846, Ezequiel Zamora era o líder da insurreição camponesa contra o governo de Carlos Soublette, emergindo como um verdadeiro revolucionário: 30 Rodríguez, Simón. “Defesa de Bolívar” (1830). Em obras completas. Tomo II. Edições da Universidade Simón Rodríguez, 1975. p.206. 31 Rodríguez, Simón. Sociedades Americanas. H U G O C H ÁV EZ FRÍ A S 89 “Como sabemos que vocês estão defendendo a mesma causa que nós, que tem um denodado patriotismo e desejos de tirar a pátria da selvagem e brutal dominação que as possuem os godos oligarcas, apoiados pelo governo faccioso e ladrão de Soublette. Ali diremos com orgulho e bravura: viva a liberdade, viva o povo soberano, eleição popular, horror à oligarquia, terras e homens livres”.(32) Simón Rodríguez invocava a revolução econômica como uma necessidade de um corolário à revolução política liderada por Simón Bolívar. A primeira não chegou nem sequer a começar. As realizações da segunda foram prontamente canceladas pela ação dos governos oligárquicos. Ezequiel Zamora, à frente da massa camponesa, continua o processo revolucionário. Suas ideias engrenam precisamente no sistema filosófico EBR, alimentando com ingredientes sociais a árvore das três raízes: “Companheiros de armas: Tínheis provado com vossa abnegação e sublime heroísmo que só o povo quer o seu bem e é dono de sua sorte, e que de agora em diante, Venezuela não será mais o patrimônio de qualquer família ou pessoa, sendo as maiores recompensas das vitórias alcançadas contra o centralismo, o estabelecimento do Governo Federal que dá todos os bens que emanam da magnífica instituição, embora a Pátria, cheia de munificência, premia os bons e os leais servidores. Assim façamos o próximo esforço que possa ser requerido de nós para deixar cumprida a grande missão que nos foi confiada, e vereis aberta a nova era da Federação Colombiana, que foram os últimos votos do nosso Libertador, o Grande Bolívar”.(33) 32 Zamora, Ezequiel. Estado Maior, 19 de setembro de 1846. 33 Zamora, Ezequiel. Quartel General de Barinas, 19 de maio de 1859. 90 O L IVRO AZUL ISBN 978-85-8165-137-8 9 788581 651378