Parentesco e gênero - Françoise Héritier - Incesto pgs 95-124
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Parentesco e gênero - Françoise Héritier - Incesto pgs 95-124
80 PARENTESCO " ginais locais; é o que lhe confere um papel de primeiro plano no estudo de certos grupos sociais colocados também em espaços, tempos e regiões bastante diversas entre si (cf. rempo/temporalidade, regido), onde muitas vezes festas, cerimoniais, lutos, vestuário, inimizades e formas de c~laboraçAo \cf. fesr~, cerimonial, iniciaçdo, luto, puro/impuro, poder) encontram um código de leitura própno no sistema de parentesco que regula por detrás de uma máscara a circulação de bens e homens no interior de uma sociedade. FAMíLIA \ \ I \ \ Todos sabem, ou julgam saber, o que é a família. Ela inscreve-se tão fortemente na nossa práúca quotidiana que surge implicitamente a cada um de nós como um facto natural e, por extensão, como um facto universal. De resto, neste caso concreto, a crença popular no fundamento naturalmente universal da família não remete para uma entidade abstracta susceptível de tomar formas variáveis no tempo e no espaço, mas de maneira muito precisa para um modo de organização que nos é familiar enquanto membros da civilização ocidental, e cujos traços mais significativos são a família conjugal baseada na união socialmente reconhecida de um homem e de uma mulher, a monogamia, a residência virilocal, um certo reconhecimento da filiação e da tranSmissão de nome atr8.vésdo homem, a autoridade niasculina. Se actualmente é visível _ graças li curiosidade intelectual, à atrllcção do exotismo e à implantaçãOdos meios tnodermos de conhecimento - llue existem algures usos diferentes dos nossOs, estes são considerados ou como marcas de um mundo selvagem ou como vestígios arcaicos e, de qualqúer modo, como aberrações relaúvamente a uma norma. Se existe uma marca cultural verdadeiramente universal, esta é sem dúvida a certeza etnocêntrica partilhada por todos os membros de um grupo humano de que as suas instituições são leis da natureza, consequentemente quase automáticas, e que de certo modo não podem existir outras. A nossa civilização não pode escapar com facilidade a esta regra, dado que cobre uma larga parte do mundo, engloba milhões de indivíduos e que, levada pelo seu próprio peso, pela força das armas, da religiãO e do comércio, soube impor as suas certezas aos povos sobre os quais se estendeu a sua sombra. . É preciso reconhecer que, no q\'le respeita à família, entendid~ antes de mais como a união mais ou menos duradoura e socialmente ap~ovada de um homem, de uma mulher e dos seus filhos [Lévi-Strauss 1956), a crença de que se trata de um facto natural impõe-se tanto mais que esta unidade social parecer ser, de facto, um fenómeno praticamente universal. Encontra-se tanto nos povos mais «desenvolvidos••como nos mais «primitivos»: assim _ observa Lowie [1948) _, os grupos veda do Ceilão "ocupam muitas vezes o mesmo abrigo cavado na rocha, mas cada família elementar utiliza estritamente uma parte do abrigo, como se estivesse separada das outras por uma espécie de barreira visível»; essa é a unidade de base das famílias poli- FAMILIA 82 gamas em que diversas unidades deste tipo partilham do mesmo cônjuge, e das famílias alargadas em que tais células familiares coexistem, numa residência comum, ao longo de várias gerações. Todavia, há exemplos de sociedades altamente elaboradas onde estas associações quase-permanentes de um homem e de uma mulher não existem. ~ o caso dos famosos Nayar da costa do Malabar na lndia. O estilo de vida guerreira dos homens proibia-lhes fundar uma família. As mulheres - ainda que casadas nominalmente - tinham os amantes que queriam, e os fIlhos nascidos destas uniões temporárias pel1el1ciamà linhagem materna. A autoridade e 11 gestão das terras estavam n/ls mãos não já do marido evanescente, mas dos homens da linhagem materna, irmãos das mulheres, eles próprios guerreiros e amantes ocasionais ,das mulheres das outras linhagens; a terra era, pois, cultivada pelos memb~os de uma casta inferior. Todavia, este tipo ~e grupo constitui em si mesDl~uma família, se bem que não reconheça o modelo conjugal; chamar-lhe-emos por comodidade família matricêntrica. Esta é a expressão de uma form~ extrema de diferenciação dos estatutos e dQs papéis masculinos e feminiQ~s. Outros exemplos desta situação podem sell'fornecidos na nossa própria ~iedade, mesmo que sob uma forma embrionária e não socialmente reconhedda. Deste Plodo, se a união conjugal est~vel não existe em toda a parte, ela não pode' ser uma exigência natural. E,. na verdade, fora da relação física de gestaç~l); parto e aleitamento (e isto llpenas nas sociedades em que o aleitamento IIrtificial não existe), que une ~I mãe aos seus fIlhos, nada é natural, necessário, biologicamente fundadQ, na instituição familiar. Assim, IItéo pr6prio elo biol6gico mã~/mhos nem sempre tem como resultado que li mãe tenha o encargo de educar os fIlhos. Entre os lndios Tupi-Kawahib do Brasil (Lévi-Strauss 1956], onde um homem pode casar quer com várias irmãs quer até com uma' mãe e com as filhas que esta tiver tido de um outro homem, os fIlhos são educlldos pelo conjunto das co-esposas, sem que cada uma delas se preocupe de modo particular com os seus pr6prios filhos. Entre os Mossi do Alto VolW [Pageard 1969], nas grandes famílias poligípeas, estabelece-se, ap6s o desmamar, uma repartição dos fIlhos entre as d~erentes co-esposas: mesmo llquelas que são estéreis ou que perderam os Seus filhos devem educar crianças que não são suas, que elas amam como se fossem suas e que não conhecem outra mãe senão ela antes da sua entrada na idade adulta; s6 nesse instante é que lhes dão a conhecer o elo biol6gico que as une a uma outra mulher do pai. Para ilustrar a artificialidade fundamental desta instituição, representaria pela célula social fundada na união conjugal - na multiplicidade das respostas culturalmente dadas às necessidades e aos desejos fundamentais do indivíduo e da espécie (desejo sexual, desejo de reprodução, necessidade de manter e de educar os fIlhos, em particular) -, recordaremos, pois, algumas daquelas que nos parecem ir de maneira radical contra a evidência do bom senso, a coisa que no mundo é considerada, a par da família, como universalmente partilhada. Assim, parece absolutamente evidente que os membros de uma união conjugal sejam de sexo diferente, que esta união não se estabeleça senão 83 FAMILIA entre vivos, que o genitor dos filhos seja normalmente o pai no quadro da união conjugal e, finalmente, que a família conjugal (pai, mãe, fllhos) cons- . titua a unidade residencial e econ6mica elementar através da qual passam a educação e a herança. Ora, a experiência etnol6gica demonstra que nenhum destes princípios é universalmente aceite. Em çertas populações africanas existe um casamento legal entre mulheres. ~ o CllSPdos Nuer sudaneses, patrilineares (o reconhecimento da flliaçito passa clfclusivamente pelos ho~ens) em que a fJ1ha ne~ sequer é considerada coJilOpertencendo verdaderramente ao grupo do pat (ela é uma unrelated person, segundo a terminologia de Evans-Pritchard), salvo se for estéril: neste caso - de que ela dá provas depois de longos anos de casamento ordinário - é considerada e conta como um homem da sua linhagem de origem. O casamento legal entre os Nuer é sancionado pelo pagamento de um dota em gado ou «preço da noivllll, efectuado pelo marido ou pela família do marido aos parentes do lado do pai da esposa que o dividem entre si. A mjJlher estéril recebe deste modo, como «tio» paterno, uma parte d~s dotes recebida pelas suas sobrinhas, as filhas dos seus irmãos. Com este capItal ela pode por seu turno pagar o «preço da noiva» por uma jovem com qu~m ela casa legalmente e por quem ela cumpre os rituais oficiai~ do casamento. Em seguida, será ela a escolher um homem, um estrangerro pobre, geralmente um dinka, para coabitar com ela e gerar fllhos. Este homem não é mais do que o criado da mulher-esposo e cumpre por sua vez as tarefas habituais de um criado. Os fllhos que nascem desta «união da sombra» são os da mulher-esposo: chamam-lhe «pai»e ela transmite-lhes o seu nome e os seus bens. A sua esposa chama-lhe «meu marido», deve-lhe respeito e obediência e serve-a como serviria um verdadeiro marido. Ela pr6pria administra a sua casa e o seu gado, distribui as tarefas e fiscaliza a sua execução, como um homem o faria. ~ ainda ela quem fornece aos filhos o gado neces· sário ao casamento deles. No casamento das suas filhas, recebe a título de «pai» o gado do dote delas e entrega por cada uma delas, ao genitor natural a vaca que constitui o preço (diferido) da sua procriação. O genitor não de:empenha qualquer papel além daquele para o qual foi requerido e não obtém deste papel de companheiro sexual-cobridor qualquer satisfação material moral ou afectiva ligada ao mesmo papel efectuado no âmbito do casamerito. Neste caso, evidentemente, a mulher-esposo é apenas um substituto do homem porque é estéril, e este casamento legal permanece totalmente dentro dos cânones da ideologia masculina. Entre os Ioruba (Ekiti e Yagha) da Nigéria, é uma mulher rica, uma comerciante, e não uma mulher estéril, que pode legitimamente desposar outras mulheres e ter, através do mesmo processo de substituição, descendentes que são seus ou obter um benefício de tipo capitalista. Uma comer· ciante rica casa-se legalmente através do pagamento do dote com uma ou com várias raparigas, virgens de preferência, e envia-as a fazer comércio nas aldeias vizinhas. Elas têm toda a liberdade para se unirem, sem pagamento de dote, com quem quiserem, mas devem prevenir a sua mulher-esposo. Quando têm fllhos e estes chegam à idade de cinco ou seis anos, a mulher-esposo apresenta-se perante os genitores e reclama-lhes os filhos que são legal- FAMILIA 85 84 mente dela, bem como as esposas. Frequentemente, o homem enganado aceita pagar uma compensação financeira para poder ao menos conservar os seus fllhos. Estes tipo de união, no qual os fllhos pertencem à mulher-esposo legal, ou lhe trazem beneficio, é decalcado do modelo praticado pelos comerciantes muçulmanos de sexo masculino, que enviam as suas próprias esposas operar como reprodutoras, de fllhos ou de capital, em populações vizinhas animistas. ~ absolutamente de excluir nestas uniões - que têm por objectivo quer a constituição de uma fam1lia normal (caso dos Nuer), quer a frutificação de um capital (caso dos Yoruba) - uma qualquer forma de homossexualidade feminina. Em contrapartida, existem uniões homossexuais masculinas entre os Navaho e os Zuni, com repartição de tarefas segundo o modelo corrente. I Tão frequente como o casamento entre vivos, o casamento-jantasmd legal (sempre entre os Nuer) sÓ'pode dizer respeito a um morto sem descehdência. Deste modo se cria uma fanúlia cujos protagonistas são o morto~ que é o marido legal, a mulher desposada em nome do morto por um dos seus parentes, o marido substituto e os fllhos que nascerem desta união. Estas crianças são socialmente e legalmente as do morto,' pelo simples faào de o companheiro sexual da mulher ter retirado do gado do defunto o imontante do dote que pagou o seu nome. Um homem pode desposar mu~heres em nome de um tio paterno, de um irmão, e até mesmo de uma irmã estéril, falecidos sem fllhos. A viúva de um homem morto sem descendência - se não puder ela própria conceber para ele frutos de um cunhado em união levirática - pode igualmente casar com uma mulher em norbe do marido. Contrariamente ao caso precedente, o pai dos fllhos é desta vez o marido morto e não ela. Os fllhos têm conhecimento do seu estatuto de fllhos do morto e traçam a sua genealogia a partir desse pai; consoaIhe os casos, consideram o seu genitor (e tratam-no) ou como um tio paterbo ou como um irmão da mãe. A genealogia familiar não tem, pois, nada que ver com a geração biológica, e isso tanto mais que o marido substituto pode por sua vez morrer sem progenitura, se não tiver tido os meios de dotar uma esposa por sua conta: essa progenitura própria ser-lhe-á asseguradaeventualmente por um irmão mais novo ou por um sobrinho (e talvez," aliás por um fllho que ele tivesse gerado em nome do seu irmão!). I O exemplo destas fam1lias-fantasma mostra-nos que nem o sexo, nem a i~entidade dos membros nem a paternidade fisiológica têm importârida por SI mesmo. Tal como no adágio romano (<<is est pater quem nuptiae demonstrant»), o que conta é a legalidade do casamento, demonstrada com apagamento do «preço da noiva,,; e isto é um traço não natural mas entinentemente cultural e social. A recusa da importância da paternidade fisiológica encontra-se igualmente nos Tibetanos, que praticam o casamento poliândrico. Quando o mais velho de vdrios irmãos desposou legalmente uma mulher, esta casa sucessivamente com cada um dos irmãos do marido a intervalos regulares de um ano. Os homens praticam o comércio a longa distdncia e organiznm-se de m/mcira a nunca se encontrar mais dd que um marido em cala. 01 filhoR s40 atri· buídol ao mail velho: chamam-lhe «pai. e chamam «tio. 101 outrol marldoR , ? FAMILlA da mãe. Os irmãos co-maridos são considerados como uma única e mesma carne, e é por esta razão que este tipo de casamento pode ser considerado como uma simples variante da família monogâmica; os contratantes, de qualquer modo, não se preocupam com a realidade da sua paternidade indivi· dual, em benefício da sua paternidade comum. Um ponto importante: a propriedade familiar, gerida pela esposa comum que reina como patroa na sua casa, é sempre transmitida colectivamente aos fllhos. Passemos agora a situações aparentemente menos estranhas. Nas sociedades matrilineares a filiação é contada e reconhecida pelas mulheres, mas o principio de residência pode variar segundo as sociedades: umas vezes são os homens que se deslocam para irem viver com as suas esposas e' a parentela uterina feminina destas últimas; outras, são as mulheres que se deslocam para irem viver junto dos seus 'maridos (o grupo matrilinear, enquanto unidade residencial, é neste caso cônstituído pelos homens). Em' todos os casos, a autoridade primordial e a transmissão da herança não se exercem de pai para fllho, mas de tio matenlo para os filhos da irmã. Um grupo de fdiação matrimonial, linhagem ou clÁ- ou seja, um conjunto de ihdivíduos que descende J)õi- -parte das mulherts de uma mesma antepassada- possui bens que não podem ser transmitid,t>spara fora do grupo: ora, um homem e o seu flIho pertencem a grupos distintos de filiação, porque o tl1ho descende do gupo matrilinear da sua mãe ao qual pertence também o irmão da mãe. Neste caso, a fam1lia conjugal existe apesar de tudo, mlls é o tio materno, e não o pai, quem manda e é temido: é ele quem detém plenos poderes sobre os seus sobrinhos, recolhe o fruto do trabalho deles, providencia o seu estabelecimento. (anúlia conjugal nem sequer é, por vezes, neste contexto, uma unidade Esta residencial. Entre os Senufo da Costa do. MlU'frm- matrilineares e poligâmicos cada que um dos cônjuges permanece ~pós doméstica o casamento sua fam.i1iade gem é então a verdadeira unidade de na produção. Ao cairorida noite, os maridos vão ter com cadrt uma (uma por dia) das suas diferentes mulheres que cozinham para eles é lhes prestam os serviços ordinários do casamento, mas' não residem nunJa de maneira permanente clÍm uma de entre elas nem com os fllhos que delas tiverem tido. Esta institui~ão é conhe· cida pelo nome de visiting husband ~maridovisitador'. Também aqui se trata de uma forma de família matricêJ1uica, mas diferente da praúéada pelos Nayar, dado que, entre os Senufor !l noção de par conjugal existe, mesmo que o par não corresponda a uma funidade residencial ou económica e não opere em conjunto na educação e criação dos seus próprios fllhos, e também porque o marido é o único p~rceiro sexualmente autorizado da esposa e é o pai dos seus flIhos. ,. Concluiremos, pois, de maneini l1parentemente paradoxal, qUe a família é certamente um dado universal, lhas apenas no sentido de que não existe nenhuma sociedade desprovida de uma instituição que desempenHe em toda a parte as mesmas funções: unidade econóIDÍcade produção e consl.uno, lugar privilegiado do exercício da sexualidade entre parceiros autorizatlos, lugar da reproduçllo biológica, da criação e da socialização dos fJ.lhos. Neste Ambito, ela obedece sempre às mesmas leis: existência de um estatuto matri- FAMILIA 86 FAMIUA 87 monial legal que autoriza o exercício da sexualidade entre pelo menos dois membros da família (ou que prevê os meios de a isso suprir), proibição do incesto (relação sexual ou casamento), divisão do trabalho segundo os sexos. No entanto, mesmo que o modo conjugal monogâmico, com residência comum dos cônjuges, seja o mais difundido, a extrema variedade das regras que contribuem para o estabelecimento da família, para a sua composição e para a sua sobrevivência, demonstra que esta não é - nas suas modalidades particulares - um facto natural, mas, bem pelo contrário, um fen6meno altamente artificial, construído, um fer)6meno cultural portanto. Mas então, porquê a família? Que prop6sito se~e .e1a para ser u~versal, qualquer que seja a forma segundo a qual a mstltuíram as múltiplas sociedades do mundo, actuais ou passa4as? A resposta a estas interrogações passa pelll resposta a uma questão mai~ geral, e da razão de ser das leis que se encontram em toda a parte associadas ao estabelecimento da família: a forma legal do casamento, a proibiçãd do incesto, a repartição sexual das tarefas. Também não se pode dizer destas leis que elas sejam fundadas a partir de exigências naturais. Deste modo, a qualidade de consanguíneos interditos Pela proibição do incesto é extrçmamente variável segundo as sociedades; quanto às tarefas, as que nos parecem mais femininas (a costura, por exemrlo, tomada no seu s~ntido ~gar, e não como criação da moda) podem ser 'noutro lugar as maIS masculinas (são os homens que talham o vestuário e 'o cosem nos países da Afr~ca Ocidental). Mas o que conta e levanta problemas, se bem que elas não sejam fundadas in natura, isto é, estritamente em realidades de ordem fisiol6gica, o que conta e constitui problema é a universalidade da sua aplicação. Todas as sociedades estabelecem uma diferença entre um tipo de união legal, sancionado juridicamente de uma maneira ou de outra - ou seja, o casamento -, e relações sexuais de ocasião, quer estas sejam admitidas e até prescritas antes do casamento, toleradas ou condenadas depois dele; ou mesmo entre o casamento e o concubinato, união estável mas de natureza diferente do casamento. Não existe, evidentemente, nenhuma razão biol6gica para tudo isto. A única necessidade biol6gica que comporta relações de longa duração entre dois indivíduos é a maternidade, ou seja, o par mãe/fIlho. Nos Primatas, sobretudo nos chimpanzés, encontram-se estas soéiedades matricêntri- em função de uma certa repartição das tarefas entre os sexos. Numerosos exemplos etnol6gicos demonstram que esta repartição usual não é baseada em imperativos fisiológicos (Gough 1975; Uvi-Strauss 1956]. Entre os Pri· matas, cada sexo subvém normalmente à sua pr6pria subsistência, e as fêmeas podem combater quando não têm de ocupar-se da sua prole. Esta repartição decorre, pois, de uma ordem arbitrária cuja única explicação é a de ter como efeito tornar os dois sexos dependentes um do outro e, por- cas, que agrupam não apenas uma mãe e um fIlho, mas uma mãe e o.sseus fIlhos, na medida em que são precisos sete a doze anos para que os Jovens atinjam a maturidade e a autonomia sexual e de subsistência [Gough 1975; Reynolds 1968; Sahlins 1959]. A presença do pai, de um homem, ao lado da mãe e da criança, a afeição do pai pela progenitura não são factos de natureza, tal como o não é a obrigação de uma relação sexual estável entre parceiros associados para toda a vida. Todavia, a união conjugal estável e publicamente reconhecida é atestada em toda a parte, mesmo nas sociedades que eram supostas desconhecer o papel fisiológicodo homem na procriação (como em Bellona, nas ilhas de Salomão [Monberg 1975]), mas que estabeleciam através do casamento a paternidade social. Se examinarmos todas as formas conhecidas de casamento, o elemento comum parece residir na prestação de serviços mútuos entre os cônjuges que lhe era necessário escolher entre famílias b~ológicas isoladas e. justapostas como unidades fechadas, perpetuando-se a SImesmas, submergldas pelos seus terrores 6dios e ignorâncias, e .. , a instituição sistemática das cadeias . de intercasamentos que permitem edificar uma sociedade humana autêntica a partir da base artificial dos laços de afInidade, a despeito da influência isoladora da consanguinidade e até contra ela [Lévi-Strauss 1956]. De facto todos os grupos consanguíneos arcaicos parecem ter resolvido da mesma ~aneira o problema da coexistência com os seus vizinhos, pondo , em prática numerosos recursos (pelo que se pode pensar com pertinência terem sido concebidos ao mesmo tempo que o aparato simb6lico da linguagem tomava forma): tanto, levar os seus representantes a associações d~adouras entre indivíduos li uma espécie de contrato de sustento, ou seja, ao casamento, para que ;les possam sobreviver sem terem de entregar-se às actividades do sexo oposto. A este contrato de sustento entre parceiros dotados de capacidades culturalmente diferentes e complementares, vem juntar-se a regulamentação das prestações sexuais, que faz do casamento o lugar privilegiado. da reprodução biol6gica. Mas a associação destas duas ordens de necessidade (o sustento mútuo e a relação sexual) também não nasce de qualquer imposição natural. Murdock sublinha [1949, capo I] a existência de relações entre homem e mulher que fazem intervir uma divisão de trabalho sem gratificação sexual: entre irmão e irmã, entre senhor e serva, ou entre paU:ãoe .secretária. A priori, nada - pelo menos nenhuma razão de ordem fiSl~16glcao~ biológica - impediria também que este tipo de contrato de um upo partIcular que implica o sustento mútuo e a relação sexual se passasse entre consanguíneos provenientes do mesmo grupo. Deste modo~ ~ partir de. agregados humanos matricêntricos (segundo o modelo familiar dos Prunatas), associações matrimOlrlaisque implicam o sustento mútuo, o comércio sexual, a produção e criação dos fIlhos poder-se-iam organizar entre parentes: mãe e ftlho irmão e irmã, pai e ftlho. A humanidade estaria, deste modo, povoad~ de grupos consanguíneos fechados sobre si próprios~ ~ugar da sua própria reprodução biol6gica, hostis por defInição aos seus VIZinhOS~redadores: quando os parceiros sexuais não existissem em número sufiCiente, seria necessário obtê-los pela força nos outros grupos (para falar apenas deste tipo de predação). Daqui decorreria que nenhuma forma estável de sociedade seria poss(vel. Parece que a humanidade terá compreendido bastante cedo , I) uma regulamentação das relações sexuais faz do seu exercic~od.entro do casamento uma coisa diferente da pura satisfação de mstlDtos; FAMILIA 88 2) um princípio de fl1iaçãodivide os consanguíneos, designados por termos que definem a sua posição e o seu papel, em diversos grupos e classifica-os em duas séries: os casáveis e os não-casáveis. Deste modo, por exemplo, a filha da irmã de um homem pode pertencer ao mesmo grupo de fl1iação que ele (trata-se neste caso de fl1iação matrilinear) e ser-lhe ipso facto proibida em casamento; mas, num sistema de filiação patrilinear, ela pertence a um outro grupo (nomea1 damente ao do seu e, se bem que consanguínea, é-lhe em certos casos permitida empai) casamento; 3) adoproclamação de um aprincípio de aliança,toda que aseunião baseiacom na pro;biçãO incesto, segundo qual é incestuosa patentes não-casáveis, em primeiro lugar com membros do grupo segundo a regra de fl1iação. Este princípio de aliança proíbe que grupos biológicos consanguíneos se fechem sobre si próprios e obriga os seus membros a ir procurar parceiros no exterior, no conjunto dos consanguíneos casáveis ou dos não-consanguíneos. Em certos casos, tal prihcípio pode mesmo orientar de maneira específica as escolhas possíveíll para qualquer indivíduo. Assim, as unidades consanguíneas encontram-se estreitamente dependentes umas das outras no que respeita à sua sobrevivência, através da regulamentação da troca dos parteiros sexuais, atribuindo a regra de fl1iaçãoo seu lugar aos filhos ser:t;lpossibilidade de contestação. Mas tudo isto não basta; para que a aliança entre ~~ grupos tenha' um sentido, ~ necessário que as relações entre os parceiros sejam as maill estáveis possíveis. Que significaria de facto a relação de aliança efectuadaentre grupos através da aproximação de dois indivíduos, se essa relação fosse quebrada imediatamente depois do contrato e o substituíssem por outro? A repartição sexual das tarefas intervém neste ponto, tornando dependentes uns dos outros e complementares não já os grupos mas os próprioll indivíduos, os parceiros sexuais. No âmbito da relação individual surgem então prestações e serviços diversos de simples comércio sexual. Homens e ,mulheres são impelidos pelas suas respectivas incapacidades artificialmenté estabelecidas a associaçõesduradouras baseadas num contrato de sustento mútuo, contrato a que só falta ser sancionado por uma instituição jurídica que estabeleça a sua legalidade: o casamento. As modalidades da regulamentação, contratual do casamento sãdextremamente variáveis conforme as sociedades, como já vimos. Mas inlplicam sempre, simultaneamente, métodos de classificação dos parentes biQlógicos (segundo as linhas de reconhecimento da filiação) em casáveis e en1 não-casáveis, e regras precisas sobre a escolha do cônjuge, quer esta~ tegras designem expressamente o tipo de parceiro que convém desposar, quer elas proíbam conjuntos globais e consanguíneos. Para este objectivo, a noção de incesto é fundamental e a sua definição ultrapassa largamente, em nhmerosas sociedades, aquela que é a nossa. Daqui deriva que, em qualquer sociedade, o contrato de aliança entre grupos de consanguinidades regidos por uma regra de filiação constitui. o I, 89 FAMILIA fundamento mínimo de uma sociedade estável; o casamento é o instrumento deste contrato de aliança, as mulheres, as reprodutoras, constituem o material. Concebida desta maneira, a instituição familiar, que exige incessantemente a cooperação de grupos distintos de consanguinidade para reconstituir uma geração após outra (duas famaias devem cooperar para poderem fundar uma terceira), renova indefinidamente o contrato social. A fam!lia é o que permite à sociedade existir, funcionar, reproduzir-se. Ela fá-Io, de certo modo, de maneira implícita: através da sua própria existência, ela é disso a simples transcrição concreta elementar. Deveremos concluir, pois, que a famaia - universal e aparentemente necessária à construção e à manutenção da vida em sociedade - é por esta mesma razão uma instituição que não pode desaparecer? Como 'entender então o tão actual tema da famaia em crise? Procedamos em primeiro lugar a uma extensão da palavra 'fatn11ia', já não entendida como uma unidade, geralmente residencial, formada por um homem e uma mulher cuja união é Socialmente aprovada com os seus filhos, mas sim como o «conjunto das pessOasdo mesmo sangue» (Littré).Já vimos que regras de filiação em número finito (as mais correntes são as modalidades patrilinear, matrilinear, bilinear e cognáticafmdiferenciada)têm por objectivo dividir e classificar os parentes e~ grupos distintos, classificaçãde divisão que estabelecem para um dado indivíduo a gama dos seus direitos e das suas obrigações. relativamente aos 'seus consanguíneos. Em qualquer dos casos, o reconhecimento do parentclsco faz·se por meio da genealogia, real ou fictícia. O reconhecimento da pUra relação genealógica de cortsanguinidade existe sempre, a despeito dos .feitos da classificação segundo as regras de filiação. ' Na sociedade ocidental, cognátida, onde todos os laços são reconhecidos como equivalentes através dos antepassados dos dois sexos, onde, portanto, não se encontra o equivalente dos grupos estáveis unilineares, se :bem que exista, no entanto, uma notável imIkrtância patrilinear (transmissão do apelido, muitas vezes da herança fundiária, patrivirilocalidade acentuada no meio rural, etc.), esta famaia construída genealogicamente, ou parentela, coexiste fortemente com a fam11iaconjugal. Os seus limites variam, mas ela inclui em primeiro lugar os pais e os avós do casal, em seguida os seus colaterais, bem como os cônjuges desses colal~rais (tios e tias, irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas, etc.). Laços de consanguinidade e laçp~ de aliança existem em todas as sociedades humanas, mas o que é importante perceber é a relação entré os diversos níveis de fidelidade que eles e:ldgem aos seus contratantes, segundo os tipos de sociedade em que se martifestam. A análise das diferentes formas, de sociedade humana mostra que consanguinidade e aliança exogâmica, listo é, realizada fora do grupo de con· sanguinidade segundo o modo como ele se defme pelas regras de filiação, apontam necessariamente para direcções diferentes (Schneider). Partiremos do princípio que, onde a tónica retai na importância do laço conjugal e da solidariedade entre os esposos, din1inui a importância dos laços da consanguinidade: em caso de conflito, a solidariedade conjugal sobrepor-se-á à soli- FAMILlA 90 dariedade parentaI. Inversamente, onde a tónica é posta sobre o primado da consanguinidade, limites específicos são atribuídos aos direitos e obrigações conjugais: em caso de conflito, a solidariedade do sangue sobrepor-se-á à solidariedade conjugal, a ponto por vezes de a romper totalmente. O exercício destas solidariedades é diferente segundo os sexos e os tipos de organização social. Uma das fórmulas sociais mais consl;guidas - pelo facto de veicular as mais fracas ambiguidades possíveis - é aquela que se baseia no princípio da fIliação patrilinear acompanhada d" patrivirilocalidade. A pertença ao grupo só é transmissível através dos hoipens; as fIlhas nascidas dos homens do grupo pertencem a esse grupo, mas n~o as crianças nascidas destas fIlhas. O modo 4e filiação patrilinear, que só reConhece, portanto, os machos como vectores 4a flliação, é normalmente acofIlpanhado de uma forte autoridade do homerp sobre a mulher, enquanto J~ai, irmão ou marido, e até mesmo filho (se bemdos quesistemas - acrescente-se - o, poder masculino não seja específico unicamente patrilineares). tral fórmula é também seguida por grupos rellidenciais organizados em torpo dos consanguíneos machos que vivem eIllconjunto e muitas vezes tr,balham juntos numa propriedade comum: (l corolário é a obrigação por parte das esposas de abandonarem - tanto no sentido geográfico como no s.cntidoestatutário do termo - a sua família de origem para residirem na do ,eu cônjuge. O predonúnio da masculinidade faz com que as fIlhas, que devem ir viver para outro lugar e procriar algures fllhos que não pertencerão à família de origem da sua mãe, não passem nesta óptica de membros de segunda categoria para o seu grupo de origem: não é de facto através delas que ele se perpetua. Os grupos patrilineares, dada a obrigação da exogamia, não têm qualquer interesse em manter uma forma de controlo da linhagem sobre as suas fllhas depois do casamento destas, uma vez que, reciprocamente, não têm interesse em que os outros grupos, que lhes fornecem as esposas reprodutoras ao mesmo tempo que uma força de trabalho, exerçam esse mesmo controlo sobre as suas próprias fllhas. É, pois, geralmente nas sociedades patrilineares que se encontram formas matrimoniais rigorosas que visam a estabilidade da união através da opressão das mulheres; estas encontram muito dificilmente apoio junto dos parentes, ou seja, junto do pai e dos seus consanguíneos machos do mesmo grupo, em caso de crise conjugal, especialmente se o casamento delas foi objecto de transacções de dotes pagos pela família do marido que seria necessário devolver em casos de divórcio. Enquanto para o marido os laços de flliação e de solidariedade de linhagem permanecem sempre prioritários, uma vez que ele vive no seio da sua família, as esposas desligadas das suas próprias famílias constituem outras tantas peças soltas que só conseguem estabelecer intensos laços afectivos com a sua própria progenitora e, sobretudo, com as suas fllhas. E tais laços acentuam ainda mais, se é que isso é possível, a sua dependência relativamente aos maridos, dado que em caso de divórcio os fllhos pertencem, sem qualquer hipótese de recurso, ao pai e à sua linhagem. Este ponto - a solidariedade afectiva e já não estatutária (uma vez que esta não é parte constitutiva do sistema, se bem que dele derive) que une 91 FAM!LIA entre elas as mães e as flIhas e mais geralmente as mulheres que partilham os mesmos laços de consanguinidade uterina - parece-nos particularmente importante. A sociedade ocidental não é patrilinear, apesar de durante séculos ter funcionado de maneira muito próxima da que acima foi descrita. No entanto, ainda hoje se encontram vestígios desta solidariedade afectiva entre mulheres detectada em várias áreas, incluindo a das escolhas matrimoniais secundárias [Héritier 1977]. Ao falar do apoio dado pelos pais aos jovens casais, Agnés Pitrou nota [1975] que eles atribuem no entanto um lugar privilegiado à casa das suas fIlhas e não à dos seus fJ1hos. O que aqui é pertinepte é que a ajuda - em sentido estrito - é sobretudo uma ajuda feminina: os serviços esperados e dispensados consistem especialmente numa substituição pontual da mãe pela avó em caso de necessidade nos encargos da maternidade, e não numa ajuda propriamente concedida pelos pais. É também aqui que se vêem despontar na nossa sociedade os efeitos desta sol~dar~edade~ãe/fJ1ha, e mais geralmente entre mulheres consanguíneas, solidarIedade mdependente da solidariedade de linhagem na óptica patrilinear, que é ao mesmo tempo uma das válvulas de segurança do sistema familiar e conjugal (enquanto estas relações não entrarem em competição com o exercício da aut.oridade masculina não são consideradas perigosas), mas talvez também o bicho na fruta. Levado às últimas consequências, este tipo de solidariedade totalmente diferente dos outros (solidariedade consanguínea, solidariedade conjugal de que atrás falámos) pode ser o motor de uma mudança radical dos modos de pensamento e de vida, da organização social e do tipo de sociedade. É ~ossível, como "pensa Kath1een Gough [1975], que a família conjugal, essencial no dealbar da humanidade para a constituição da sociedade e da cultura, não possa sobreviver verdadeiramente na civilização industrial. Com efeito, é verosímil que, nas sociedades ocidentais caracterizadas pelas suas grandes dimensões, pela importância do modo de vida urbano, pelo regime capitalista de produção e pela competição profissional e omnipotência do Estado e da administração, o abandono de certos traços característicos da instituição familiar - considerados como embaraçosos ou menores - esteja na origem das tensões actuais no interior da família. A tomada de consciência da alienação feminina realizou-se com a entrada das mulheres no jogo da produção e da rendabilidade económica, devido às necessidades da economia de mercado, e a sua saída, por este motivo, do puro campo doméstico onde estavam tradicionalmente confmadas pela divisão sexual das tare. fas. A desaparição da noção de residência comum da linhagem num determinado território, uma vez que esta é incompatível com um desenvolvimento económico intenso, fez com que deixasse de existir harmonia entre a sociedade e a família, a ponto de se chegar a falar desta última, consanguínea ou conjugal, como de um refúgio contra a sociedade para os indivíduos apanhados por um mundo indiferente ou hostil. As sociedades tradicionais patrilineares (e aqui, estou sobretudo a referir-me a modelos da África Ocidental) não permitiam esta antinomia. As linhagens patrilineares - que agrupam famílias conjugais, monogâmicas ou poligíneas - constituíam outras tantas unidades residenciais dotadas de um territ6rio de cultura pr6prio, de uma FAMILIA 92 organização hierárquica que as colocava sob a tutela de um decano, de uma organização comunitária do trabalho e do consumo dos bens produzidos. Mas, colocado no interior destas dependências respeitantes à sua linhagem, o indivíduo também era apanhado numa rede complexa e apertada de obrigaçOes de aldeia que uniam entre si as linhagens e de que ele conhecia as regras desde a infância. A separação estrita do que releva da competência da linhagem e do que releva da competência da aldeia, a repartição dqs cargos colectivos entre linhagens, a organização eventual das classes de idade que atribuem durante toda a vida ao indivíduo outras tantas tarefas, papéis e estatutos diversos consoante os níveis que elas tiverem, os circuitos complexos de trocas matrimoniais, o encargo pela colectividade dos cohflitos intralinhagens e os rituais religiosos ou profanos eram outros tantos inodos requintados de articulação entre o domínio do poder familiar e a necessidade conjunta de uma vida social tão harmoniosa quanto possível. I Estas sociedades, embora não sendo um paraíso -lógicas consigo mesmas-, tinham montado um sistema equilibrado entre as imposições da vida doméstica (regulamentada pela consanguinidade) e as imposições da vidil social (regulamentada pela coexistência de grupos consanguíneos); inversâmente, as nossas sociedades conservaram os princípios que eram úteis ao seU desenvolvimento, ou que não-eram contraditórios em relação aos imperativos deste desenvolvimento, ao mesmo tempo que suprimiram ou utilizaram aO contrário os aspectos corolários do conjunto da instituição familiar cohsiderados inúteis ou incómodos. É na ignorância e na rejeição da lógica ihterna das articulações, cuja complexidade na criação da instituiÇão familiar já demonstrámos, que é necessário procurar efectivamente as razões da crise da família e, a partir desta, a da civilização. A partir deste momento, pode conceber-se como possível, anunc~ pelos sinais de recusa do casamento e pela permanência das solidariedadels afectivas consanguíneas femininas, a aparição de famílias matricêntricas, nas quais os fllhos nascem de parceiros regulares ou ocasionais da mãe, e onde se regista a ausência de residência comum com os genitores, de qualquer casamento estável e legal e de troca consentida entre grupos. No entanto, 6 difícil ir às últimas consequências possíveis de uma mudança radical das ifl.stituições. É difícil, por exemplo, prever as regras de residência, especialmente para os homens reduzidos aos estatutos de mho ou de irmão, amputados do estatuto de marido e talvez de pai. Seja como for, pode encarar-~e a passagem a formas mais ou menos instilpcionalizadas de miação mattilinear. Tal situação não implicaria necessariamente uma mudança da relaçã6 de forças entre os sexos: nas sociedades matrilineares, são os homens ehquanto irmãos que detêm a autoridade sobre as suas irmãs e os filhos das suas irmãs. Para que esta relação de forças fosse nitidamente modillcada, serianecessário suprimir o contrato mútuo de sustento baseado na repartição seXual das tarefas. Que haveria de diferente na relação dos sexos se (para perlnanecer na terminologia convencional), em vez de «alimentar» os seus fIlhos, o homem alimentasse os seus sobrinhos, se, em vez de sustentar no plano doméstico um marido, a mulher sustentasse um irmão? De facto, o modelo de família matricêntrica, onde os parceiros sexuais regulares ou ocasionais 93 FAMILlA não residem definitivamente na unidade doméstica, conheceu alguns casos de actualização, como vimos atrás, mas respeitando sempre o princípio da divisão sexual das tarefas e o da preponderância do sexo masculino. O desaparecimento do laço legal do matrimónio e o da repartição sexual das tarefas implicaria, pois, também que a sociedade reconhecesse, não em termos de «valores»ou de moral, mas em termos de interesse, a igualdade dos sexos, por um lado, e, por outro, que a rltProdução e a socialização das crianças são actividades primordiais tal comO'a produção. Desde modo, tornar-se-ia impensável e, por consequência, impossível que todo o peso da reprodução recaísse exclusivamente sobre as mulheres e se transformasse na sua desvantagem social. Para se chegar a istp, seria necessário uma alteraçlo considerável do sistema de valores e, portanto, do sistema educativo act6al. Isto implicaria o desaparecimento de noções aceites como «naturais» e, em primeiro lugar, daquela que coloca à cabeça o instinto maternal ligado automaticamente instinto sexual, à gestação que leva eà ao reproduç'ão parto fiosdafllhos. espécie, Possivelmente, e o instinto, enquanto que leva oà protecção dos jovens, são fenómenoll naturais para ambos os sexos, o instinto maternal - no sentido em que esta expressão é utilizada geralmente para justificar a servidão das mulheh:s, e apenas delas, à progenitura - é um fenómeno adquirido, inculcadollas mulheres através da educação que Ihes é contiríuamente dispensada e através dos modelos de realização pessoal que lhespara são as propostos. Esse in,stinto é apenas dos a justiflcação pferecida às mulheres manter nas tarefas de educação fllhos e, por consequência, nas tarefas da vida doméSlica, e tudo isto com o consentimento delas, dado que não há condicionainento mais conseguido do cjtie aquele em que o submetido reivindica ele próprio os fundamentos da sua sujeição. Enquanto as mulheres deram à luz fIlhos ao longo de toda a sua v;ida gerativa e tiveram uma esperança de vida que POl,ICO ultrapassava esseperíodo, a noção do instinto maternal e da dtpendência que dele resulta por predisposição natural para as diversas tart(as da maternidade tinham ntcessariamente um efeito poderoso. Na socie'd~deocidental, com o controlo dos nascimentos e o prolongamento da dJ~ação de vida, esta noção ji'l1ão pode ter o mesmo efeito de sujeição completa e permanente das mlilheres. Modiflcar os termos da flliação (e com isto modificar o estatuto da propriedade e da herança), modiflcar a' relação de poder entre os sexOs, suprimir a r~partição sexual das tarefasl assacar a toda a soci~dade d encargo econÓffilCO da reprodução e da produção, transformar radIcalmente as formas de educação das crianças, ate~tar contra as ideias vigentes ele toda a espécie que fundamentam na naturerza as desigualdades: são estas as condições da morte da família na sua fOnDaactual. Nada disto é impossível, e já muitas alterações se estão a verificar. Resta no entanto saber quais são os modelos de realização individual que podem ser rnventados e propostos como susceptíveis de justificar a vida de cada um. [F. H.]. Gough, K. 1975 The Origin of the Family, in R. R. Reiter (org.), Toward an Anlhropology of Women, Monthly Review Press, New York. 94 FAMILlA Héritier, F. 1977 L 'idenuli samo, in L' ldenliti. Siminaire dirigi par Claude Um-SlraUSS, . Grasset, Pans, pp.51-80. Uvi-Strauss, C. 1956 17Ie Family, in H. L. Shapiro (org.), Man, Culture and Society, Oxford UIÚversity Press, New York, pp. 5-29 (trad. it. in C. Uvi-Strauss, Raua e sloria e allri slUdi di antropologia, Einaudi, Torino 19777, pp. 145-77). Lowie, R. H. 1948 Social Organizalion, Rinehan, New York. Monberg, T. 1975 Fathers were nol genilors, in .Man., X, pp. 34-40. Murdock, G. P. 1949 Social Slructure, Macrnillan, New York (trad. it. Etas Kompass, Milano, 1971). Pageard, R. 1969 Le droil privi des Mossi. Tradilion el ifIolulion, CNRS, Paris. Pitrou, A. 1975 A l'ombre des grand parenlS, in «Autremento, m, pp. 104-12. Reynolds. V. 1968 Kinship and lhe family in monkeys, apes and man, in oMan., 11, pp. 209-23. SahIins, M. ' 1959 17Iesociallife ofmonkeys, apes and primilive man, in I. N. Spuhler (org.), 17Ie Evolurion of Man 's Capacity for Culture: Six Essays, Wayne State UIÚversity Press, Detroit, pp. 54-73. o ~ cenamente um dos lugares.comuns (cf. lugar-comum) mais divulgados a pretensa natura· lidade da famOia (cf. natureza/cultura), que se pretende baseada em necessidades naturais (cf. necessidade) da reprodUfão da espúie (cf. nascimenlo), da manutenção e educação da prole, e da sexualidade (cf. amor, eros). De tal conjunto de necessidades naturais decorreria o casamenlo como célula fundamental da sociedade, e base da sua eSlrutura. Deste ponto de vista a fam1lia constitui o supone original da comunidade, o lugar no qual estio estabelecidos, deflIÚdos quase de uma vez para sempre, todos os papéis (cf. papeVeslalulo, poder/aUloridade): no 4mbito da própria fam1lia, na área do grupo conjugal alargado (d. parentesco), por extensllo na esfera geral das relações homem/mulher (cf. masculino/feminino), e fmalmente, enquanto simbolo total, rela· tivamente ao modo de conceber o passado (cf. antigo/moderno), o presente e o futuro (d. gerações). Na realidade, parece que o consenso ocidental (cf. emocentrismos), e não apenas ooi~ental, terá feito de uma escolha um facto natural. Até o traço mais divulgado, a proibição do Inceslo, mais do que uma proibição de natureza biol6gica, constitui um modo de evitar o fechamento de qualquer grupo sobre si próprio (cf. exclusão/inlegração) e de contrair laços de alianç~ (cf. economia, Irabalho, público/privado, lroca). De resto, em mais de um caso, eIll; cenas socleda· des, parece que até a f6rmula monogâmica homem/mulher seja passível de mterpretações e de aplicações diversas. '. Desta f6rmula geral, mas não Ilnica na sua tipologia, do casamento monogAmico exAgA. mico (cf. endogamia/exogamia) e das regras estabelecidas para a escolha do cônjuge, emergem solidariedades e afectos a que as Iradiçtles atribuíram uma rigidez, especialmente em relaçAo A mulher, tomando como elemento natural da civilização aquilo que apenas se configura como 1111I1 enlre 18 escolhas possíveis. . . TodAvia, a própria crise da família (cf. repressão), a erosllo que está a sofrer a par ~a ms~. IlIj~Atl(d'. illlliluittles) do casamento que é a sua forma legal (cf. direito, no~), a pr6p~ v~e.1•• 1. ,Ir in'litlliçlles que caracteriza antropologicamente o problema da famOia nas várias socle· .1•• 1, •••• illtlVlçlles trazidas actualmente pela indllstria na área das relações humanas e, •••••• III>.lIIrllle entre homem e mulher, constituem outros tantos elementos para faze~m. d~1'1'"'' •• ,. rrl.çAo das formas habituais; e, também, para libenarem a mulher da dlScnmlnaI"" ,I. '1"' ria ~ ohjecto em nome da .natureza. e da .civilizaçlo •. INCESTO «Aqui jazem filha e pai, irmã e irmão, mulher e marido, e no entanto silo apenas dois corpos.' [Margarida de Navarra, Heplameron). o incesto, tal como foi admiravelmente definido por Littré, é uma «união ilícita entre pessoas que são parentes ou afms no grau proibido pelas leis". O antropólogo Reo Fortune [1932] retoma mais ou menos em termos análogos a mesma definição, substituindo no entanto o termo 'união' pela locução 'relação sexual': defInição mais precisa e circunscrita, fruto de uma reflexão. A própria noção de relação sexual implica a ideia de um comércio carnal entre dois parceiros de sexo diferente. Aliás, o incesto é exactamente percebido neste sentido quer na linguagem popular quer na erudita; a «união ilícita", de conteúdo totalmente neutro, é entendida como comércio carnal ilícito entre pessoas aparentadas no grau proibido pelas leis ou pelos hábitos sociais. A escolha destes termos por parte de Fortune não é fruto do acaso, na medida em que o pensamento antropológico estabeleceu desde sempre uma ligação directa entre a proibição do incesto e a lei exogâmica, que orienta para o exterior a escolha do cônjuge. A proibição do incesto, que a priori diz respeito a todas as relações sexuais em níveis ou situações proibidas, e não apenas ao casamento, serve todavia para distinguir, no seio do círculo vizinho e em particular no grupo dos consangufueos, entre aqueles que se podem escolher como parceiros sexuais em sentido lato, e como cônjuges em sentido restrito, e aqueles que não se podem escolher como tais. Desta assimilação de facto com a aliança que deriva do casamento resulta imediatamente que o incesto é percebido como um comércio carnal ilícito entre parceiros de sexo diferente. Mas veremos se se trata única e exclusivamente disto. Trabalhos antropológicos recentes [Needham 1971; Schneider 1976] negam à· proibição do incesto, no sentido acima considerado, toda e qualquer pertinência como facto científico único ao qual se poderia aplicar uma teoria geral, dada a extrema heterogeneidade e variabilidade dos factos que se podem reunir sob este tema. Para citar alguns, verifica-se que as situações de parentes abrangidas pela proibição do incesto são muito diferentes segundo as sociedades em que se encontra esta proibição. O incesto não suscita sempre e em toda a parte reflexos intensos de repulsa ou de horror; a punição social do incesto vai da simples troça à morte; nem em todas as sociedades se encontram proibições nitidamente afIrmadas e regulamentadas; num certo número de sociedades bem conhecidas (Egipto antigo, Havai, 96 INCESTO reinos bantus) as uniões incestuosas são procuradas no seio da classe dirigente, e ainda em maior escala (para o Egipto ptolomaico, por exemplo) no seio do grupo dos funcionários, artesãos e comerciantes urbanos. Poderíamos enfim citar alguns exemplos de sociedades, as quais, longe de conhe. cerem a proibição do incesto, fariam das uniões incestuosas a sua regra: serIa nomeadamente o caso da antiga Pérsia [Slotkin 1947, 1949; Goodenough , 1949]. , . Todavia, a experiência etnológica mostra que existe unive~almente, se não uma autêntica proibição do incesto, pelo menos uma tendênc18Pllfa regulamentar, de uma maneira ou de outra, as relações sexuais entre [larentes chegados. Esta simples constatação permite-nos considerar o conjuhto dos factos registados sob a entrada «incesto» como constituindo uma classe. Em vez de se negar a estes factos qualquer pertinência, seria oportuno saber se existe, a qualquer nível, um tipo de abordagem do fenómeno da. proibição do incesto que explicasse a variabilidade das suas manifestações *gundo as sociedades, os seus aspectos contraditórios (como nos casos .de .ihversão nas famílias reinantes) e ainda - por que não? - a sua ausênc18, se é verdade que se têm provas da existência de sociedades de uma total rromiscuidade sexual. No exemplo da antiga Pérsia, relatado por Slotkin, parece que o casamento por excelência seria o de um homem. ~om a própria ~l1.ha, e de uma mulher com o próprio fllho. Goodenough CrItica as fontes utihzadas (pós-zoroástricas) e também a terminologia: os termos traduzidos por 'fllho' e 'fllha' reenviam expressamente a fllhos pelo sangue ou antes a fllhos de tipo classiflcatório? Acrescentemos a isto que este casamento por excelência não poderia constituir a regra, na medida em que é, por definição, um casamento secundário, dado que ocorre sempre que um hOIÍlem case com uma mulher que não seja sua fllha para dela poder ter uma fllha que será posteriormente sua mulher. , Numerosas teorias foram elaboradas para explicar a existência dll proibição do incesto (este termo é aqui utilizado em substituição e ~o seq.tid~ de regulamentação das relações sexuais entre parentes), esse fonrudável mlstério disse Lévi-Strauss [1947], para o pensamento antropológico. Podemos pe:reitamente - à semelhança do que fez Bischof [1975] - class~cá-las e~u:e as teorias que se interrogam sobre a causa final - por que enste a prOlblção do- incesto? âmbitos qual aresponder sua utilidade para a4a~ I,lumanidade? ou entãoque entre as queserve? se propõem à questão causas eficientes: quais são os mecanismos \>iológicos, psicológicos ou sociológicos que agem de forma a que a proibição seja respeitada? , ': Na Europa, a crença popular concilia-se com a teoria fmal qiológica segundo a qual a proibição do incesto se explica com o perigo, desde sempre reconhecido, de um aumento provável de caracteres homozigóti~os, e em especial dos caracteres recessivos perigosos, quando se verificam uniões entre consanguíneos: atraso no crescimento, baixa estatura, fertilidade reduzida, fraca imunidade e também menos esperança de vida seriam caracteres observados experimentalmente nos animais (repare-se que não se trata de taras nem de monstruosidades). A esta teoria podem ser levantadas várias objecções. Tendo em conta que os casos de verdadeira desvantagem genéI 97 INCESTO tica não são observáveis em larga escala, apresentam caracteres pouco espe· culadores e não são observáveis ou demonstráveis senão através de requintadas análises de laboratório, como poderiam os grupos primitivos alarmar-se perante perigos tão pouco manifestos a ponto de ediflcarem, todos, a mesma proibição com o objectivo de defenderem a sua sobrevivência? Além disso, a união entre consanguíneos não implica apenas o aparecimento de caracteres recessivos nefastos; também são consolidados eventuais caracteres positivos para a espécie. Por outro lado, a selecção natural leva em geral ao desaparecimento do carácter perigoso, o qual, de recessivo, passou a manifesto com o efeito de fazer desaparecer os seus portadores. É efectivamente isto que se pretende na selecção voluntária de espécies puras animais ou vegetais. Enfim, numerosas sociedades humanas praticam regularmente (até mais de 30 por cento dos casamentos, por exemplo) uniões entre consanguíneos, as quais seriam por nós consideradas incestuosas, como é o caso, por exemplo, do casamento preferencial com a fllha do irmão da mãe. Se se tivessem feito sentir efeitos perigosos para a sobrevivência do grupo, parece-nos razoável supor que essas Sociedades teriam há muito renunciado a uma prática tão deletéria. ! As teorias fundamentadas nas cau$as eficientes biológicas giram em tomo da ideia de que existiria, no homem, um horror instintivo e natural pelo incesto. A proibição representaria, pois, uma simples ritualização cultural desta aversão inata. Na sua forma mais popular, esta ideia corresponde à «voz do sangue», enquanto na mais elaborada [Westermarck 1889], e nada negligenciável, trata-se de uma repulsa sexual que se desenvolve entre indivíduos que viveram em estreita rela~ão durante a infância ou que convivem lado a lado num contexto familiar de!longa duração. A isto pode contrapor-se (Fortune) que, se irmãos e irmãs fossem encorajados durante a infância à familiaridade sexual, não existiam provas para aflrmar que Urnll aversão sexual se desenvolveria posteriormenie entre eles. Na verdade, eles são encorajados a evitar-se desde a infância; em certas sociedades, trata-s4 mesmo de evitarem-se totalmente a nível físiço, o que deveria levar à atracção sexual nos próprios termos da teoria de Wéstermarck. De qualquer form~, apela-se extrair se à realidade a teoria de uma de uma relação aversão familiar sexual culturalmente natural no não seio sexual, da faniília. 'para daí Por seu lado, em Totemism andHxogamy (1910) Frazer, retomado por Freud [1912-13], fornece um argumento notável contra esta teoria: «Não se compreende bem porque é que um instinto humano profundamente enraizado teria necessidade de ser reforçàdo por uma lei. Não existem leis ordenando ao homem que coma ou que. beba ou que proíbam de pôr as mãos no fogo. .. o que a própria naturezdproíbe e castiga não tem necessidade de ser proibido e castigado pela lei. ~or isso, em vez de deduzirmosl da proibição legal do incesto que existe uma aversão natural pelo incesto, ..deveríamos antes concluir que há um instmto natural que leva ao incesto» (trad. it. pp. 127-28). Para Freud, aliás, a ej(periência psicanalítica mostraria pelo contrário uma tendência natural para o desejo incestuoso no seio da família. Todavia, estudos recentes sobre 1\ educação das crianças nos kibbutz [cf. Bischof 1975] tenderiam a demonstrar o oposto da teoria freudiana, INCESTO 98 ou seja, que depois de uma fase de expressão de uma livre sexualidade no período edipista se desenvolveria por seu turno durante a puberdade a aversão pelo incesto, devido à familiaridade de uma educação fraternal. Não é possível expor a totalidade das teorias sociol6gicas finalistas que foram elaboradas para explicar a proibição do incesto. Façamos uma rápida mudança de perspectiva: o pai opõe-se ao desejo incestuoso dos fIlhos pela mãe (Freud); para manter a hierarquill entre as diferentes gerações e a disciplina necessária à coesão familiar, importa eliminar as práticas incestuosas no seio da família porque elas dão origem a ciúmes e competição, em lugar da autor~dade e da cooperação [Seligman 1950]. O incesto tornou-se naturalmente_difícil, se não impossível, devido às condições demográficas desfavoráveis pos prim6rdios da humanidade,l as quais faziam com que, por exemplo, houvesse poucas probabilidades dp uma mulher ser ainda viva e figurar entre as possíveis parceiras do seu pr6pqo filho quando este atingisse a maturidade sexual [Slater 1959], etc. . A ún~ca teoria finalista sociol6gica ~ue não pode, a nosso ver, ser refutada, é aquela que é elaborada por Léyi-Strauss nas Structures élémentaires de Ia parenté, depois dos trabalhos de Tyfor e Fortune. ,<ComoTylor demonstrou há q:rca de um século, a explicação,última é provavelmente que a humanidade muito cedo se apercebeu de qQ~, para poder libertar-se de uma luta selvagem-pela existência, deveria escolher muito simplesmente entre "o casar-se fora, pu ser-se morto fora I'. A altefnativa era entre famílias biol6gicas isoladas e justapostas como unidades fechadas, perpetuando-se por si pr6prias, submersas pelos seus medos, 6dios e ignorâncias, e a instituição sistemática, graças à proibição do incesto, de laços intermatrimoniais entre elas, permitindo assim construir uma sociedáde humana autêntica sobre a base artificial dos laços de afinidade, a despeito da influência isoladora da consanguinidade, e mesmo contra ela» [Lévi-Strauss 1956, trad. it. p. 168]. Assim, s6 a proibição do incesto, esse passo dialéctico que transpõe o limiar natureza/cultura, permite sair dos pequenos grupos consanguíneos fechados sobre si mesmos e construir uma sociedade viável. As mulheres, tal como a linguagem, funcionam então como objectos de troca recíproca entre os homens, e «a proibição do incesto deixa de ser tanto uma regra que proíbe o casamento com a mãe, a irmã ou a filha, passando a ser mais uma regra que obriga a dar a outrem mãe, irmã ou fIlha» [Lévi-Strauss 1947, trad. it. p. 617]. Os Arapesh não compreendiam o sentido das perguntas que Margaret Mead lhes fazia a prop6sito do possível incesto com a irmã. Parecia-14es evidente a estupidez da façanha: «Então não compreendes que, se te casares com a irmã de outro homem, e outro homem se casar com a tua irmã, terás pelo menos dois cunhados, e que se te casares com a tua pr6pria irmã não terás nenhum? E com quem é que irás caçar? Com quem é que farás plantações? Quem é que visitarás?» [ibid., p. 621]. Não se pode explicar de modo mais vivo o interesse do trabalho de socialização que consiste em dar a outrem a pr6pria irmã e em receber de outrem a pr6pria esposa. Segundo diferentes modalidades é, portanto, necessário proibir a apropriação sexual das mulheres de determinado grupo pelos membros masculinos do mesmo 99 INCESTO grupo, definido segundo regras específicas, por fol'lÍla a tomá-Ias disponíveis para a troca. É portanto incestuosa qualquer união com parceiros consanguíneos, segundo a definição local de consanguinidade. Posto isto - partindo do mesmo quesito do próprio Lévi-Strauss (procurar as causas profundas e omnipresentes que fazem com que em todas as sociedades e em todas as épocas exista uma regulamentação das relações entre os sexos) e aceitando a necessidade da troca como fundamento de qualquer spciedade -, parece não ser contradit6rio considerar, intimamente ligado ao aspecto finalista, um sistema de explicação ideol6gica (causa eficiente?) que apresentaria o incesto e a sua proibição como intimamente ligados, em cada cultura, a conjuntos totais de representações respeitantes à pessoa, ao mundo, à organização social e às múltiplas inter-relações entre estes três universos. Se ao instaurar a ordem social a proibição do incesto é a cultura, ela toma-se ipso facto e simultaneamente objecto de representação; se esta proibição tem uma finalidade universal apesar das diferentes modalidades de realização, por que não obedeceria também a sua representação a grandes esquemas universais de organização? Gostaríamos agora de tentar - mediante o exame escrupuloso deste aspecto olvidado da proibição do incesto, ou seja, a sequela de representações que o acompanha por toda a parte - elaborar uma teoria etnol6gica que complete a teoria finalista de Lévi-Strauss e de fornecer uma explicação que dê conta de forma totalizante da variedade contradit6ria dos factos observados, seja dos casos negativos seja dos positivos, e de oferecer ainda uma definição do incesto que possa compreender o conjunto das definições elaboradas por diversos povos. Tomando Les structures élémentaires de Ia parenté [1947] como ponto de partida de uma reflexão possível, far-se-ão duas observações. Lévi.Strauss centrou a sua demonstração no funcionamento das estruturas elementares do parentesco que apresentam a vantagem de evidenciar a reciprocidade na troca restrita ou na generalizada segundo modelos cuja estrutura de conjunto é facilmente demonstrável. Por outro lado, o autor refere-se à existência da regra como «a própria essência da proibição do incesto» (trad. it. p. 75); todavia, se para demonstrar as pr6prias teses se baseia em argumentos específicos respeitantes às representações simb6licas que acompanham a regra em todos os lugares, partindo destes temas parciais, ele não tenta pôr em evidência uma sistemática ideol6gica que poderia ser, tal como a própria regra, universal. Neste ponto específico, a questão posta será a seguinte: será lícito postular a existência de um fio condutor, discernível no seio de todos os discursos simb6licos sobre o incesto, que por um lado explicaria os factos e as crenças diversas citadas pelo pr6prio Lévi-Strauss, e por outro permitiria estabelecer, sintacticamente, o profundo parentesco que existe entre eles para lá da sua evidente heterogeneidade? Assim, Lévi-Strauss menciona, entre outros factos, a crença existente em Madagáscar de que há uma relação incestuosa entre os cônjuges quando um casal é estéril [ibid., p. 48]; a crença dos Navajos [p. 85] num quarto mundo do qual os sexos são separados e os "monstros são fruto da masturbação à qual cada sexo se encontra reduzido; a afirmação de um grupo siberiano segundo INCESTO 100 a qual os casamentos partrilineares fazem as águas tornar às suas fontes; o risco de cegueira ou de mutismo que o olhar do pai aleuta faz pesar sobre a sua pr6pria filha no momento do seu primeiro fluxo menstrual [p. 63]; o desencadear da trovoada e da tempestade nos povos da Malásia por um conjunto de actos heter6clitos que compreendem o incesto, os discursos UTeflectidos, os jogos barulhentos, a imitação dos gritos das aves, etc. [p. 633]. Ora se Lévi-Strauss analisll este conjunto de proibições malaias e lhe~ consigna um denominador comum (o abuso da linguagem: "As pr6prias mulheres são tratadas como signos, dos quais se abusa quando não se lhes dá a utilização destinada aos signos, que é a de serem comunicados» [pp. 63+35]), poremos uma questão diferente: porque é que o abuso que constitui o incesto tem o poder de desencadear uma tempestade na Malásia e o que é qu~ esta crença tem a ver com a crença malgaxe na esterilidade dos casais incestuosos, e, mais em geral, com o conjunto dos factos relevantes associatlos à relação incestuosa em diferentes sociedades? Será dada uma resposta a esta questão, mas deve ficar claro que neste momento não se pretende dar a única resposta possível, mas sim cl1amar a atenção para estes problemas e suscitar possíveis análises a partir de qutros documentos segundo as mesmas linhas de pesquisa. De facto, o 101lg0e árduo traoalho que consistiria em isolar em cada sociedade conhecida os tra" ços pertinentes da estrutura social, o corpus das situações reprovadas ou proibidas, o das crenças e das representações relativas a estas situações, ll~ suas consequências e às sanções que comportam, esse trabalho não foi feito de uma fortna sistemática. As hipóteses de base nasceram do meu conhecimento pessoal dos Samo do Alto Volta e foram corroboradas por comparaç~s com factos tirados ao acaso de outras descrições etnográficas. Devem no entanto sublinhar-se dois pontos atinentes ao método d~ trabalho adoptado. O primeiro consiste no interesse incidente sobre a sEde de actos que diferentes populações designam com um termo idêntico, àquele que se refere ao que n6s chamamos nortnalmente incesto: assim, certas formas de adultério entre familiares, ou as relações sexuais perpetuadas por dois consanguíneos pr6ximos (pai/fIlho, mãe/fIlha, irmão/irmão, irmi/irmã) com o mesmo parceiro. Assim, Evans-Pritchard [1949] descreve uma situação de exemplar complexidade passada junto dos Nuer: antes do máis, são incestuosas (rual) as relações com a irmã da esposa, e o casamento cóm esta não é possível senão depois da morte da mulher, e s6 no caso de esta morrer troca sem deixar fIlhos. situação emproibição termos~sOciais de de gado, masEvans-Pritchard também porqueanalisa ~la fazesta parte de uma mais geral, segundo a qual um homem não pode manter ao mesmo tempo relações sexuais com duas niulheres consanguíneas. Do mesmo modo, um homem não pode ter relações sexuais com a mulher de um parente próximo enquanto este for vivo, pois isto incide sobre a proibição mais Igerll1 que impede dois parentes próximos de terem relações com a mesma mulher. No entanto, esta regra rígida não se aplica, de fortna aparentemente surpreendente, a certos agnatos entre os mais próximos; por exemplo, as mulheres dos meio-irmãos do pai, dos meio-irmãos, dos primos paralelos patrilaterais,daqueles a quem os Nuer chamam bulls, são parceiros lícitos para um INCESTO 101 homem, já que, recebida em troca do gado da linhagem, a mulher de um buli é a mulher de todos [ibid., p. 100]. Do mesmo modo, dois agnatos, dois membros de uma mesma linhagem, podem cortejar e conviver com a mesma mulher, o que é proibido a dois cognatos: Evans-Pritchard sublinha que estes agnatos têm a mesma identidade de linhagem They have a lineage identity»), o que não se verifica no caso de um tio materno e seu sobrinho. No entanto, as esposas de outros agnatos são atingidas pela proibição: o adultério com uma esposa do pai diferente da mãe é particularmente chocante na medida em que o pai tem relaçÕes sexuais com as suas duas l!sposas e (<< transmite assim à mãetão-pouco algo do contacto sexual do fIlhoesposas, com a na c\l-esposa. Dois irmãos gertnanos podem partilhar as suas medida em que essas relações parecem implicar sexualmente de alguma fo~ma a sua mãe comum. Para Evans-Pritchard, o conjunto destas regras tem como função impedir a confusão entre as diferentes categorias de parentescll; assim, se um homem não se pode casar corp.a irmã da sua falecida mulher, tendo-lhe esta deixado fIlhos, é porque a irmã da mulher, para os fIlhos, seria também a mulher do pai, confusão de estatutos inconcebível para Um Nuer. Veremos que é possível uma outra e:txplicação.Apercebemo-nos e~tretanto, através deste exemplo bem conhecido, da complexidade da categoria traduzida pelo tertno 'incesto', estendida 'a estes diferentes tipos de rela~ões ilícitas. Poderíamos descrever situações análogas relativamente aos Gusü '[Le Vine 1959], aos Baulé [Etienne 1972; 1975], aos Ashanti [Goody 1956] ~os Mossi [Pageard 1969], aos Samo [Héritid 1976], e ainda a muitos outros. O segundo ponto respeitante ao ~étodo adoptado é que foram consideradas como fortnas intimamente ligádas a estas diferentes formas de adultério entre cônjuges ou de relações s~xuais ilíci~as entre ~ndivíduos ~,~ãOaparentados - fortnas que acabámos: de exammar - nao s6 as: liltuações, representações e crenças que dizem :respeito ao incesto, mas tamb~in as que se relacionam com a menstruação, cpm as relações sexuais com filhas impúberes, com mulheres menstruadas ou em período de lactação, corb as relações que existem entre os humores (esperma, sangue, leite) elj.$ funções do corpo. Esta atitude é válida, na, medida em que essas configUrações se relacionam com a sexualidade, são aPercebidas, através do discurso dos informadores, como correlacionadas e são geralmente evocadas em conjunto, de uma maneira ou de outra, nos relatórios antropológicos. ' No seu célebre artigo de 1897, Durkheim explica assim a proibição do incesto como sendo uma espéCiede~\Ibproduto da regra exogâmicll, ela própria fundamentada no horror religioso do sangue menstrual. Este hdrror faria parte da categoria mais geral do ho.ttor pelo sangue, por sua vez originada pela crença na consubstancialidade,'dos membros do clã com o seu totem. No seu conjunto, o argumento foi, 10ngamente debatido, mas Durkheim, com admirável argúcia, realçou al~ pontos muito interessantes, aos quais será necessário voltarmos, e sobretúdo faz um inventário dos factl)s e cren· ças relativos ao sangue e à menstniação, à cura medicinal e ao pbder. Ele indica as estritas semelhanças que existem entre as proibições relativas às mulheres durante a menstruação ou o parto - proibições explicadas pelo terror e pela repulsa que suscitam as impurezas por elas expulsas - e as INCESTO 102 que se referem à vida quotidiana dos soberanos mais sagrados, mesmo quando nada neles pode suscitar em outrem as mesmas repulsões. Estas duas situações extremas de repugnância e de veneração encontram-se, para Durkheim, associadas, porquanto se traduzem ambas pelo tabu. Assim, um pouco por todo o mundo, sob formas ligeiramente diferentes, em várias populações, as raparigas são hermeticamente isoladas durante as suas primeiras menstruações e mantidas longe não só· do contacto com os homens, mas também do contacto com a terra e com o sol, que teria «uma atracção especial» [Durkheim 1897, p. 42] para esta, jovens mortais. Em certos casos, esta reclusão pode durar vários anos. As mulheres que se encontram no período menstrual e as parturientes s~o normalmente também objecto de proibiçõe~ que se explicam pela influên~ia nefasta que elas exercem à sua volta. Mas «esta mesma regra que proíjJe a jovem, atingida a puberdade, de tocar o solo ou de se expor aos raiOs solares, aplica-se também a reis e sacerdo~es venerados. O mikado, no ~apão, não deve calcar o solo com os seus prÓprios pés: caso contrário, incorreria na degradação; além disso, não deve permitir que os raios solares cheguem perto dele, nem expor a sua cabeça ao ar livre. Na Colõmbia, o herdeiro do trono de Bogotá deve, a partir dos dezasseis anos, viver num j:luarto escuro onde o sol não penetre. No Peru, o príncipe destinado a· tornar-se um inca tinha de jejuar durante ~m mês sem ver a luz» [ibid'l p. 56]. Já se pôs anteriormente a questão de saber o que poderiam ter em comum certas sanções sobrenaturais do incesto, como nos exemplos de esterilidade e do desencadear da tempestade presentes em diversos lugares. Em ambos os casos e de idêntico modo é o conteúdo das proibições, e não a proibição em si, que põe o problema: porque é que a rapariga menstruada, tal como os soberanos japoneses ou incas, ou ainda o senhor samo da chuva, não podem ser levianamente postos em presença do sol? Se considerarmos a cura médica, Durkheim mostra que o sangue feminino que corre, porquanto seja perigoso - principalmente o das primeiras menstruações ou do parto de uma primípara -, é também dotado de propriedades curativas excepcionais. Este factor é comprovado na própria Europa até à Idade Média. Mas a lista das doenças curadas através de unções na pele feitas com este sangue não é de somenos importância: furúnculos, sarna, usagre, febre do leite, inflamação das glândulas salivares, lepra. A inflamação das glândulas salivares, para nos atermos apenas a esta, compreende também as escrófulas ou alporcas que os reis de França curavam por imposi,rão das mães (reencontramos, pois, a relação entre sangue menstrual e sagrado, já não nas proibições que eles fazem nascer, mas nas suas qualidades profundas), «humores frios», afirma Littré, nascidos, segundo Ambroise Paré, de um «abcesso corrompido e podre». Mais do que designar as crostas lácteas, o usagre designa uma espécie de alporcas cavalares. Mas porque é que são justamente as doenças de pele, quentes, frias, ressumbrantes ou secas, que são curadas pelo sangue menstrual? Em Ponape, pensa-se que os indivíduos que cometeram incesto apresentam sinais físicos de esgotamento, nomeadamente olheiras muito carregadas [Fischer e Ward 1976]. Para os Bobo, a relação sexual com uma fllha impúbere INCESTO 103 implica uma debilidade particular do parceiro masculino e a perda da sua virilidade. Em Mount Hagen o sangue menstrual é conhecido como desfavorável à «gordura» masculina (o mesmo termo designa o sémen do homem). Se um homem o ingere, através do pénis ou na sua alimentação, «a sua pele perderá a "gordura", tornar-se-á seca, e o corpo macilento» [Strathern 1971, p. 162]. Para os Bobo, como em Ponape, o incesto implica a seca, já não a seca metafórica do corpo ou dos humores, mas a seca meteorológica: acredita-se que a chuva deixará de cair no país bobo se os parceiros de um casal Úlcestuosoou os seus filhos forem sepultados após a morte. Em Ponape, uma seca que se fez sentir em 1971 sobre uma ilha do distrito foi atribuída a uma maldição sobrenatural, consequência directa das práticas incestuosas da população que vivia naquela ilha. Para os Palawan das Filipinas [Macdonald 1977], consequência [do incesto] mais vulgarmente aceite é a destruição das colheitas - nomeadamente de arroz - após uma chuva ou um calor excessivo», com consequentes inundações ou secas. Em nota [ibid., p. 103], Macdonald acrescenta que, segundo vários informadores, tanto um incesto com a mãe provoca um excesso de chuva, quanto aquele que é perpetrado com a irmã provocaria um excesso de calor, enquanto qualquer tipo de incesto provoca indiferentemente dilúvio ou canícula. Para os Kaguru matrilineares, a proibição mais rigorosa diz respeito às relações sexuais entre membros do mesmo matriclã; segue-se depois a proibição que concerne as relações entre indivíduos cujos pais pertencem ao mesmo matriclã (eles estão em posição simétrica em relação aos membros desse clã). Mas o delito mais comum, mahasa, consiste em infringir a norma que estabelece que dois irmãos de clã não devem casar com duas irmãs de um outro clã, e ainda que um homem não deve seduzir ou cortejar duas irmãs, sejam elas celibatárias ou não. Não se trata portanto de um adultério banal, uma vez que, tal como para os Nuer, os parceiros podem ser os três celibatários. Segundo Beidelman, esta variedade particular de incesto é considerada deste modo, pois ameaça a solidariedade dos grupos matrilineares, instaurando uma competição entre as mulheres pelo afecto ou fidelidade dos amantes ou eventuais maridos. Independentemente da verosimilhança desta explicação de teor funcionalista, o que parece importante sublinhar é que a sanção sobrenatu· ral de todas as variedades de incesto, mahasa inclusive, se aplica às mulhe· res, «impuras», que se encontram ameaçadas pela esterilidade ou de terem uma progenitura anormal, e aos seus consanguíneos de matriclã. O sangue dos consanguíneos, segundo Beidelman, é estragado, aquecido, possível fonte de doença e de esterilidade; isto pode mesmo chegar a atingir os rebanhos, ou as colheitas, sendo assim a própria terra aquecida e estragada [cf. Need· ham 1971]. O simples facto de se saltar por cima de um parceiro sexualmente proibido, quando este se encontra sentado de pernas estendidas ou deitado, se não tem efeitos desastrosos para o grupo, tem-nos para os próprios indivíduos, provocando o aparecimento de úlceras na superfície do corpo. Para os Muria, no gotul, uma rapariga culpada de um incesto, seguido de gravidez com um rapaz pertencente ao mesmo clã do que ela, é por isso punida com uma «abundante hemorragia» [Elwin 1959, p. 230]. As mulhe«a INCESTO 104 res culpadas de adultério comprometem, por sua vez, a colheita do ano; os seus corpos e os dos seus parceiros «cobrem-se de chagas e de inchações e uma hidropisia condu-Ias a uma morte miserável» (ibid., p. 391]. Quer se trate, pois, das consequências directas inscritas nos corpos dos culpados e nas suas funções biol6gicas, ou de perturbações da natureza e dos ecossistemas, poderíamos prosseguir infindavelmente este inventário etnográfico das sanções imediatas do incesto, pormenores citados geralmente de passagem que remetem todos às mesmas interrogações: a do sentido, a das relações de sentido que subtendem as relações sociais, a da inscrição (talvez) das relações de sentido numa 16gica universal. É aqui postulado que as diversas crenças relativas ao incesto, enumeradas ou' não neste artigo, não devem ser consideradas como superstições absurdas, privadas de todo e qualquer outro interesse que' não o de sublinhar triunfantemente, devido à sua própria insensatez, a necessidade da tegra social; que as crenças simbólicas de todos os grupos humanos relativás ao incesto, aos seus efeitos, às suas sanções, se encontram ligadas às crenças relativas às relações entre os sexos, à organização e ao funcionamento biol6gico e, muito verosimilmente, a outros sectores de representações, tais como a relação dos elementos, a organização e o funcionamento do mundo; que qualquer corpus étnico de representações, relativo à· organização do corpo, do mundo, da sociedade e às suas múltiplas inter-relações, se refere a certas leis fundamentais, universais e subjacentes a um grande esquema universal de organização, geralmente implícito, mas do qual encontraremos por vezes fragmentos de explicitação crua nos discursos dos informadores referidos pela etnologia. Não se trata de pretender demonstrar estes três pontos de forma pormenorizada, mas talvez não seja demasiado absurdo mostrar nas suas grandes linhas o percurso de um raciocínio. Para o fazer, partiremos dos sistemas semicomplexos de aliança, isto é, dos sistemas ditos crow-omaha, e de certas particularidades das proibições matrimoniais que aqui se encontram. Referir-nos-emos mais particu1arn\ente ao exemplo dos Samo do Alto Volta, exemplo que provém dos sistbmas omaha [Héritier 1976]. A partir de uma análise sucinta destas particularidades, tentaremos demonstrar que elas se referem a um simbolismo elementar do idêntico e do diferente. Tentaremos em seguida demonstrar que!,este simbolismo elementar do idêntico e do diferente é universal, quaisqub· que sejam os aspectos particulares~sob os cada quaispovo, ela é cujas encaradal pelos diferentes povos, eexteriores variável segundo o génio de combinações permitem o desenrolar do fio coerente dos discursos simbólicos sobre o incesto. É sabido que os sistemas omaha se caracterizam por conjuntos dei proibições matrimoniais mais ou menos vastas que variam entre dois e quatro clãs ou linhagens patrilineares proibidas. Para os Samo, existem quatro: as linhagens de Ego, da sua mãe, da mãe do seu pai, e da mãe da sua mãe. A regra de proibição fala em nome de um Ego masculino e em termos de 105 INCESTO linhagem, ou seja, de filiação agnatícia: é proibida toda e qualquer união de Ego com membros femininos dos seus grupos aganatícios, qualquer que seja o seu grau real de consanguinidade com Ego. Em seguida enunciam-se proibições, que não fazem necessariamente recurso à lei exogâmica entendida nos seguintes termos de linhagem: 1) extenção da proibição a todos os consanguíneos agnatícios durante três gerações, dado que o antepassado comum às uniões proibidas é posto na geração +4; 2) extensão da proibição aos afros. Voltaremos mais adiante ao primeiro ponto; debrucemo-nos agora sobre o segurldo. É proibido um homem escolher uma esposa nas linhagens nas quais um «pai» (um homem da sua linhagem; pertencente à geração do seu pai) ou um «irmão» (um homem da sua linhagem, da sua pr6pria geração) tenham já escolhido uma esposa. Simetricamente, é portanto impossível uma mulher casar-se numa linhagem na qual u~a «irmã» (mulher da sua linhagem, da sua geração) ou uma «irmã do pai» (mulher da sua linhagem, da geração do seu pai) se tenham já casado. Por extensão, isto implica também (regra explicitamente formulada pelos Samo) a proibição de toda e qualquer relação sexual adúltera com a mulher de um agnato durante a vida deste, sendo o levirato não apenas possível mas ~esejável, uma vez que a mul~er dada em casamento a uma linhagem constitui um bem da linhagem. Esta relação adulterina tem o nesmo nome (dyilibra) que a relação incestuosa entre consanguíneos verdadeiros. Sempre por extensão da regra segundo a qual dois agnatos não devem cortejar nem casar no mesmo lugar, é proibido com mais razão homem casar ou mas simplesqlente conviver com parente uma «irmã» da sua esposa,umirmã de linhagem, também com qualquer pertencente às linhagens da mãe, mãe do pai, e' mãe da mãe da sua esposa. Simetricamente, isto implica que duas parentes cuja relação geneal6gica podê ser descrita e, com mais razão, duas irmãs ,não s6 não podem casar com.,o mesmo homem, como ainda não devem ter relações sexuais com ele. A mtllher que venha a saber que o seu marido con'J'Íveclandestinamente com unUl parente sua, deixa-o. Estamos em graus divl!rsos, ao nível das sanções e das consequências, no domínio do dyilibra (iJnpudência). Estes factos lembtam, claramente, factos análogos citados atlflis, no caso dos Nuer ou dos Kaguru. Mas gostaríamos de insistir sobre unl ponto: o princípio da não-reduplicação da união, que parece tão evidente nl\s',regras samo e que seria típi~~ dos sistemas semicomplexos de aliança [Lé\71-Strauss1947], não esgota tO,doo significado destes factos, pois não se trata apenas de aliança proibida, mas também simplesmente de relações sexudill proibidas: a c6pula com os,parentes da esposa como com as esposas dos agnatos vivos é proibida tal como o casamento. Independentemente das expUcaçõesque possam ser dadas recorrendo à recusa da competição afectiva (Baidelman), ou à preocupação de não misturar indevidamente as categorias de parentesco (Evans-Pritchard), parece - considerando o conjunto destas ~roibições e o que sobre elas tlizem os pr6prios informadores, sem tentar r,duzi-los ao nosso ponto de vista - que somos induzidos a propor uma segunda definição do incesto. Já não se trata da relação que une dois consarlguíneos de sexo diferente numa relação sexual proibida, mas da relação que une dois consanguíneos do mesmo sexo INCESTO 106 que partilham um mesmo parceiro sexual. Os consanguíneos do mesmo sexo, na relação de irmão/irmão, irmã/irmã, pai/filho, mãe/filha, são os que se encontram em posição incestuosa por via do seu parceiro comum e que lhe suportam os perigos. No mahasa dos Kaguru, os perigos de esterilidade e de doença por inflamações visam as duas mulheres consanguíneas implicadas na relação comum com um mesmo homem e as suas consanguíneas de matriclã. Entre os Samo, quando urna mulher casada vem a saber que o marido tem relações sexuais com urna dllSsuas primas, afasta-se com medo e encolerizada contra o marido e a parente que a fazem correr riscos. Entre os Gusii, «quando dois homens do mesmo clã tiveram relações com a mesma mulher casada, quer ela seja mulher de um, deles quer não, pensa-se que a visita de um ao outro quando este último se epcontra doente tem por consequência directa a morte do doente» [LeVine 1959, p. 972], o que tem alguma importância nas relações quotidianas entre irmãos, meio-irmãos e primos. Neste caso também não se trata nem dq:incesto nem de adultério propriamente ditos, mas do simples encontro num mesmo objecto sexual de dois consanguírteos situados numa relação, Rue não é indiferente, de germanidade ou de geração. Entre os Baulé [Etienne 1972; 1975], são radicalmente proibidos li poliginia sororal e o sor6rio e ainda as relações sexuais de um homem com duas irmãs ou duas primas uterinas. Acaso isto venha a ser do conhecimento geral, «as duas raparigas são obrigadas a submeter-se aos mesmos rituais que sancionam o incesto entre urna prima e um primo uterinos. São elas que dessecam o cabrito ou o carneiro; são elas que se ferem nuas com as duas partes do animal, 840 elas que são objecto de chacota da assistência, é a elas, enfim, que é administrado o sacramento da purificação. O rapaz não é de modo algum implicado nestas cerim6nias» [Etienne 1972, p. 41]. Pierre Etienne, tanto qUlUltosabemos, foi o primeiro antrop610goque põs a hipótese do incesto como «relação entre pessoas do mesmo sexo que usufruíram do mesmo objecto de satisfação sexual» [ibid., p. 106]. Ele procura a explicação para isto não corno tessela de um mosaico ideológico que transcende o quadro local, mas na estrutura das relações entre sexualidade feminina e sexualidade masculina, o que não deve ser posto de parte apesar de esta via ter sido negligenciada no presente artigo. Entre os Antemoro do baixo vale do Faraony [segundo Dubois, citado in Etienne 1972] o ritual da fafy intervém para sancionar certos casos de incesto: este tem por efeito quer o cancelamento da relação de parentesco para dar l~ar à relação sexual quer, inversamente, o cancelamento da relação sexual para dar lugar à relação de parentesco. Dubois mostra que existe urna relação incestuosa entre consanguíneos do mesmo sexo que têm ou tiveram um mesmo parceiro sexual, mas estes consanguíneos do mesmo sexo encontram-se, neste caso malgaxe, numa relação não de germanidade, corno no caso baulé, mas de geração. Assim, se um homem tem relações sexuais com a filha da sua esposa, a filha com este acto destr6i aquilo que fazia mãe a sua mãe e coloca-a em situação de impureza. A fafy, aspersão purificadora de sangue executada pela filha sobre " corpo da mãe, tem por objectivo renovar a relação mãe/filha suprimindo o efeito das relações sexuais. 107 INCESTO Mas a relação incestuosa que convém suprimir para restabelecer os a~tigos laços é a de mãe e fllha, e não a verificada entre a fllha e o marido da mãe. Nas nossas próprias sociedades ocidentais, certos factos abonam a favor da hipótese segundo a qual esta segunda variante do incesto não é estranha às nossas mentalidades. Parece-nos entrever isto na definição dada por Littré. Nas confissões registadas pelo inquisidor Pierre Fournier a Montaillou [Le Roy Ladurie 1975] aparece por diversas vezes, a páginas 55-56, 162-63, 182, 198-99, a hist6ria de um homem que persegue urna mulher que acontece ser a amante, não a esposa, de um dos seus primos germanos, e que renuncta ao alvo das suas perseguições quando a mulher o põe ao corrente da situllÇão particular em que ela se encontra «(tu não deves tocar carnalmente O corpo de um primo germano nem mesmo através do corpo interposto de um amante comum, pois aquele já te toca naturalmente» (trad. it. pp. 198-99)). Do mesmo modo, se procurarmos atentamente os motivos pelos quais se considera corno incestuosa a relação entre um padrasto e a fllha da· sua mulher, ou entre um homem e a irmã da sua mulher (foi ainda recentemente um dos casos jUrídicosde incesto na Inglaterra), seremos obrigados a admitir a validade desta interpretação ou, pelo menos, a não recusá-Ia sem um exame mais aprofundado. E exactamente porque é que Fedra é a tragédia do incesto por excelência? Dizer que a relação sexual com parentes por afinidade é um incesto porque estes, mediante o casamento, se situam no mesmo quadro conceptual dos consanguíneos - e então a relação sexual com os parentes por afinidade constitui um factor de distúrbio e de confusão dos papéis - é urna justificação, não urna causa. De resto não é certo que, na ausência de casamento juridicamente consagrado, a consciência popular não considere incestuosa a relação sexual entre um homem e a fllha da sua companheira. Devemos ainda sublinhar que esta interpretação é perfeitamente conveniente para explicar as razões pelas quais certas formas de adultério, nomeadamente com as esposas de parentes, são consideradas, denominadas e tra, tadas corno incestuosas por numerosas populações, e até mesmo por vezes corno um incesto dos mais detestáveis. Ela é adequada igualmente para dar conta, de urna maneira rápida e simples, da homologia de natureza entre diversas formas de relações sexuais adulterinas proibidas. Goody [1956], contrariamente às teses de Evans-Pritchard e de Malinowski, separa totalmente o incesto da exogamia. Ele torna corno prova o facto de a lei da exogarnia não poder de modo algum explicar que o adultério com as esposas dos consanguíneos de linhagem seja designado e tratado corno incesto, uma vez que, por definição, as esposas destes consanguíneos entram necessariamente na categoria geral das esposas permitidas. Ele estabelece corno consequência urna tipologia dos delitos sexuais para dar conta dos factos observados junto de diversas populações africanas: 1) relações com um membro do próprio grupo de flliação, ou incesto; 2) relação com a esposa de um membro do grupo, ou adultério consanguíneo; 3) relações com urna mulher casada, fora do grupo, simples adultério. Mas isto não lhe permite, a bem dizer, justificar absolutamente as utilizações terminol6gicas locais nem situar de forma INCESTO 108 segura as relações adulterinas com a mlle ou a irmll da esposa. Se considerarmos o que os informadores ashanti metem na mesma categoria atwebenesie (segundo Rattray [cf. Goody 1956, p. 305], adultério com a mulher de um irmlIo, de um fIlho, com a mãe da mulher, a mulher de um tio, a mulher de um companheiro de fekuo, a mulher de um companheiro de uma associação, a mulher do próprio escravo, a mulher do pai que não a mãe, a irmlI da esposa, seja ela celibatária ou casada), verificaremos efectivamente que uns são adúlteros com as esposas dos membros do grupo (em sentido lato, aliás: matriclã, abusua, ou patriclã, ntoro; e ainda metonímico: esposa de um consanguíneo, por classe de idade, ou de um escravo), enquanto outros (com a mãe ou a irmã da esposa) ocorrem fora do grupo. Mas, do nosso ponto de vista, os informadores ashanti designam muito logicamente com o mes~o no no~e a~uelas relações~ preocuparem com «adulténos» a difer~nça Ulcestentre adulténo mtenor ou no extenorsem do se grupo, porque estes tuosos re:netem explicitamente para a mesma situação formal, a do incesto do segundo tipo. Num caso, o incesto existe entre dois consanguíneos' masculinos, verdadeiros ou assimilados, que partilham a mesma parceira s'exual (pai/fJ1ho, irmão/irmão, tio/sobrinho, sendo a relação senhor/escravo uma relação de paternidade; a relação de camaradagem, uma relação de fraternidade); no outro, o incesto subsiste entre duas consanguíneas femininas que partilham entre si o mesmo parceiro sexual (mlle/fJ1ha, irmã/irmão): Este último incesto tem um ponto fundamental em comum com o incesto j do primeiro na medida em que é, tal como fundamentado na oposição entretipo, idêntico e diferente. Poderíamos, pois,este, encarar as duas V$rÍantes do incesto como as duas ramificações possíveis do mesmo substratbideol6gico. Mas, primeiro, devemos voltar à extensão das proibições o~ha a todos os consanguíneos cognáticos durante três gerações, extensão está que mais acima tínhamos deixado provisoriamente de parte. ' São assim proibidos, para um Ego masculino samo, não s6 o casllrnento com mulheres que pertençam por nascimento através da ftliação agnatícia às. suas linhagens proibidas, como ainda qualquer casamento com parentes cognáticos até ao sexto grau (segundo o modo consuetudinário de cálculo, quaisquer que sejam as suas linhagens patrilineares de pertença). É-lhe por exemplo impossível casar com a filha da prima paralela matrilinear dJl sua mãe. (Duas primas encontram-se em situação paralela quando nascom seja de dois irmãos seja de duas irmãs; e eÍD situação cruzada quando Mscem respectivamente de um irmão e de uma irmã). ; r . Esta configuração não os é uma particularidade dos eSarllq; ela encontra-se também entre Mossi, no Alto Volta,específica entre os Bete o~ Baulé na Costa do Marfim, entre os Mkao Mgobendi nos Camarões, etc. todavia, na maior parte destes povos é possível que, quando a relação incestuosa é descoberta post facrum e se por acaso não existem outros parceiros possíveis, o casamento seja válido ou permitido, sob condição de se efectuar um ritual que tenha como objectivo cortar o parentesco existente entre INCESTO 109 Area de consanguinidade cognatícia· Quatro linhagens· proibidas, ftliação apenas por m masculina sem limitalfão Gerações proibidas sem limitação do número de linhagens de profundidade gFneracional marido e mulher, e obrigar os cônjdges a envergar durante toda ,aIvida um bracelete especial que lembre aos outros e a eles pr6prios a particularidade da sua união. Isto s6 é possível, evidentemente, para um certo númerd de posições de consanguinidade, aquelas qu:esão consideradas como as mais distantes, em função da maneira pela qual:é hierarquizado o campo do pàrentesco por parte daqueles que o vivem. Acrescentemos que esta extensão se deveria encontrar necessariamente em todas/as sociedades de terminOlogia.e sistema matrimonial de proibições omaha, sempre que seja proibido o casamento com a prima paralela matrilateral (isto é,; a fIlha da irmã da mãe). Se I:$ta prima é interdita, a razão de ser disto encoIltra-se no facto de ela pertencer 'por filiação patrilateral a uma linhagem que lpe é proibida. Eis a explicaçãd que a este propósito nos é fornecido pelos Sam<l:estas duas primas encontr~",se ambas como as mesmas sobrinhas uterinaseln relação aos tios maternos" :Eles são, pois, proibidos entre si como parcefros no casamento e nas relações sexuais, porque têm em comum a mesma liJ1hagemmaterna e ocupam, pdr isso, as mesmas posições em relação aos membros desta linhagem. . Se admitirmos, como princípio ~e uma ordem geral, que qua1quer sistema social particular tem um dever de coerência interna, por forma a permitir a aprendizagem do sistema ppt parte daqueles que devem praticá-lo e reproduzi-lo, então deve admitir-se que, se os exemplos omaha conhecidos mostram a proibição da união 'entre os fJ1hosdas irmãs, este simples facto implica que a noção de partilhar uma mesma linhagem materna é um critério pertinente do modo pelo quál são elaboradas as proibições (segue-se que estas não se devem única e'exclusivamente ao princípio da miação unilinear). Por extensão, quando existem mais de duas linhagens {lU sublinhagens proibidas, este mesmo pridcrpio deve ser aplicado ao conjunto dos consanguíneos cognáticos, isto é, ligados a estas linhagens proibidas por intermédio das mulheres, segundo percursos genealógicos defmíveis no espaço de três gerações. Neste caso tratar-se-á ·de consanguíneos cognáticos com a av6 ou a bisav6 em comum. INCESTO 111 110 No entanto, verifica-se [Héritier 1976] que os Samo escolhem de preferência o cônjuge na quinta geração (sendo a primeira aquela na qual se situa o antepassado masculino comum às duas linhagens de descendência); não entre o conjunto dos primos propriamente cognáticos do oitavo grau, isto é, de todos aqueles que descendem de duas irmãs, filhas do antepassado comum (existem ao todo dezasseis casos de combinações possíveis para um Ego masculino, e naturalmente outro tanto para um Ego feminino), mas, e de forma· muito significativa, entre primos ligados através das mulheres a uma das linhagens patrilineares proibidas de Ego, a começar por aqueles que se encontram ligados à sua própria linhagem paterna (quatro combinações possíveis para um Ego masculino: Fa Fo Fo IPPP, Fa Fa Fo IPPP, Fa Fo Fa IPP, Fa Fa Fa IPPP (Fa=Filha, Fo=Filho, I=Irmã, P=Pai), e ainda às que se encontram ligadas à linhagem paterna da própria mãe, etc. É, pois, evidente que a extensão da proibição aos consanguíneos cognáticos até três gerações não é necessária ao bom andamento de um sistema que funcionará de preferência com o encerramento a todas as cinco gerações, uma vez que não são os primos puramente cognáticos do oitavo grau que se casam entre si. Pelo contrário, o encerramento à quinta geração pode ser descrito tendo unicamente em conta o facto de que as regras das proibições relativas às linhagens são levantadas ao cabo de três gerações, sob condição de haver perfeita simetria entre a situação do Ego masculino e a do Ego feminino. Qual é então o motivo recôndito desta extensão aparentemente inútil das proibições relativas aos parentes cognáticos, ou seja, àqueles que se limitam a ter em comum as mesmas linhagens maternas ou da avó, e isto até à terceira geração? A verdade é que passa através dos indivíduos «qualquer coisa" que nlo desaparece por intermédio dos homens e que leva três gerações para diluir, -se e perder-se no momento em que, por intermédio das mulheres (cf. infra, p. 118), pelo menos uma vez, passa qualquer coisa que proíbe a união entre os seus portadores enquanto a sua diluição não for completamente realizada. No século Xl, segundo o direito canónico, era necessário que sete gerações tivessem decorrido antes que, passando através dos homens ou das mulheres (o sistema é cognático e não patrilinear como o anterior), se extinguisse definitivamente esta afinidade entre diferentes ramos provenientes de um mesmo antepassado, que Pier Damiani, Padre da Igreja, chama «o odor" do 1 INCESTO parentesco: ,<Aprópria natureza provê a que o amor fraterno se reconheça até ao sexto grau de parentesco nas entranhas humanas e exale como que o odor da comunidade natural que existe entre parentes". Para além da sétima geração, «quando a família baseada no parentesco vem a faltar, ao mesmo tempo que as palavras para a designar, a lei do casamento aparece imediatamente e restabelece os direitos do antigo amor entre homens novos" [citado in Migne, Patrologia latina, CXLV, cols. 191-208]. Consideremos um outro testemunho. Para os Samo, o primogénito de uma mulher não é o mho do marido legítimo da mãe, que é o pai social, mas o mho de um amante oficialmente reconhecido; a criança nascida nestas condições deve sempre ignorar a identidade do seu genitor. As proibições matrimoniais que lhe são impostas são as provenientes da mãe e do pai social, o que se coaduna com o princípio durkheimiano segundo o qual qualquer repressão do incesto pressupõe relações de parentesco reconheci· das e organizadas pela própria sociedade. No entanto, se um homem deseja casar-se (ou frequentar como amante oficial) com uma rapariga que nenhuma proibição matrimonial, de uma parte ou de outra, separa dele, mas que seja na verdade sua meia-irmã agnática pelo sangue - quer se trate de uma rapariga que o amante da sua mãe, o seu genitor, gerou no interior do casamento ou não com uma outra mulher, ou de uma rapariga que o próprio pai gerou enquanto amante em benefício de um outro homem - então dá· ·se-lhe a conhecer, e neste caso apenas, o laço biológico que os une. É evidente que isto levanta um problema: se é, como parece, apenas o laço social que predomina nas exclusões matrimoniais e que conta para o reconhecimento do parentesco; porquê impedir este casamento que só é consanguínco de uma maneira biológica? Não pode ser senão por causa daquela «qualquer coisa" que se estabelece entre os indivíduos através da miação e da qual um escrúpulo, a sombra de uma dúvida, reconhece a presença no simples conceber: é a isto que chamamos a noção de idêntico. Duas coisas idênticas possuem uma mesma definição e características comuns. Por exemplo, dois primos paralelos matrilaterais têm como carac. terísticacomum a de estarem na mesma situação em relação à sua linhagem materna; do ponto de vista desta linhagem, eles são idênticos. O filho da minha mãe sou eu, característica que partilho com os meus irmãos. Os critérios que servem para separar o idêntico do diferente variam naturalmente segundo as sociedades, e cada cultura constrói para si própria a este propósito o seu próprio sistema simbólico. Para além disso, existem certamente gradações, específicas de cada cultura, nas defInições da identidade e da diferença. Uma vez admitido isto, é possível sublinhar alguns pontos constantes, cuja observação é de resto muito banal, uma vez que eles giram em torno da identidade ou da diferença de sexo e das relações paralelas ou cruzadas que se instauram, seja por filiação seja por colateralidade. Na colateralidade é uma lei geral, como Lévi-Strauss faz notar [1974], «a ideia de que a relação irmão/irmã é idêntica à relação irmã/irmão, mas que uma e outra diferem da relação irmão/irmão e da relação irmã/irmã, que INCESTO 113 1I2 por sua vez são semelhantes entre si» (trad. it. p. 194). É este o principio, bem conhecido depois das observações de Radcliffe-Brown, da identidade dos germanos do mesmo sexo. O idêntico mais forte é o do gémeo do mesmo sexo, e em seguida, no âmbito dos germanos (irmãos e irmãs com pelo menos um genitor comum), o germano do mesmo sexo; no âmbito dos primos, o paralelo \I elementar do mesmo da sexo, diversidade, etc. Com atoca-se negação verosimilmente impossível da no diferença nó da reflexão dos sexos, dosmarca gruI pos humanos sobre si mesmos, a partir da qual se constitui qualquer organização social e qualquer ideologia. Isto parece evidente a partir do momento em que consideramos algumas ausências curiosas no leque das possibilidades lógicas das organizações de parentesco. Assim, se nos referirmos aos critérios de determinação dos grandes tipos de estruturas terminológicas fundamentadas na denominação dos germanos e dos primos, apercebemo-nos de que falta uma, e uma só, posdbilidade lógica. Encontram-se satisfeitas, e mesmo abundantemente pela quarta de entre elas, as configurações lógicas seguintes: I' Paralelos = cruzados = germanos havaianos Paralelos'" cruzados'" germanos sudaneses [Paralelos = cruzados] '" germanos esquimós [Paralelos=germanos] "'cruzados iroqueses, crow, omaha, mas não parece que se possa citar o exemplo da realização de uma estru- =germanos] "'paralelos. I tura terminológica de conjunto concebida sobre a . equação [cruzados= 1 ela mesma o paralelismo das situações; estes dois traços são universalmente A noção como de idêntico na comunidade de sexo, que engendra percebidos sendo concentra-se da mesma natureza. Quando é o conceber que é privilegiado, e não a relação de germanidade, para a determinação do idêntico, a comunidade de sexo continua ainda a ser o critério fundamental: as relações mãe/fllha e/ou pai/fllho são concebidas por algumas sociedades particulares como suportes privilegiàdos da identidade, relativamente às relações cruzadas pai/fJ1ha,mãe/filho. Verificam-se também a este nível algumas ausências curiosas no campo das possibilidades lógicas dos modos elementares de flliação. Needham [1971] ehumera seis, das quais quatro têm actualizações garantidas: m f (m -+ -+ -+ m f m)+(f m/f -+ patrilinearidade matrilinearidade -+ f) m/f pilinearidade, combinação dos modos precedentes na definição de cada estatuto sistema cognático, mas as duas últimas (m -+ f) + (f -+ m) (m -+ m) // (f -+ f) sistema alternado sistema paralelo não poderiam provavelmente servir de princípios de transmissão e de integração regulares exclusivas, embora se possam assinalar algumas aproxima- I INCESTO ções raras e incertas. O sistema paralelo, apesar de pouco cómodo, é em contrapartida seguramente mais viável do que o sistema alternado, no qual os direitos e os estatutos se transmitiam apenas de macho a fêmea e de fêmea a macho. É evidente que, como já foi dito anteriormente, concatenações diversas e complexas da noção de idêntico existem conforme as populações; concatenações ideológicas que estão no próprio coração das escolhas paradigmáticas estabelecidas por cada sociedade na constituição da sua organização social, em sentido lato. Mas o interesse global da ausência de realização (ou a representação muito débil) de fórmulas que existem logicamente e com as quais nos poderíamos divertir a tentar inventar as regras de funcionamento, é simplesmente o de demonstrar, se nece$sário, que os grupos humanos pensaram todos segundo as mesmas grandes linhas as suas categorias de idêntico e de diferente, pelo menos de forma negativa: não há exemplo no qual a noção de idêntico, como categoria ideológica global, tenha sido construída sobre o primado absoluto da similitude dos parentes cruzados. Poderíamos preparar um inventário de resumos etnográficos que pusessem em relevo, de forma mais ou menos directamente ligada à proibição do incesto, a noção de idêntico. De qualquer modo, a questão é levantada muito frequentemente, pelo menos de uma maneira incidental e Justificativa. Existem no entanto textos nos quais a noção de idêntico, em relação à proibição do incesto, é examinada de forma mais explícita nas sUas relações com as representações da pessda e em particular com as que I se referem à constituição do indivíduo e aO$contributos respectivos dos genitores. Huntington [1978] mostra assim as ratões pelas quais, para os Bara de Madagáscar, o incesto mais abominado nã6 é aquele que une germanos ou outros parentes primários, mas especificame~te os filhos de irmãs e por vátias gerações; isto porque provêm do «mesmo coração», da «mesma matriz», do «mesmo estômago». Os meio-irmãos 'lIgnáticos, embora pertençam 1mesma linhagem, são apenas considerados como «quase-irmãos».A sua proximidade é mais social do que verdadeiramente ,íntima. Os fIlhos dos dois irmãos poderão, portanto, casar-se se executarem o ritual apropriado. Quanto ao casamento preferido, será o dos primos cruzados. Vê-se bem neste casd,a forma pela qual uma sociedade constrói a sua própria gradação do idêntico, encarada como comunidade paralela de se~o, seja colateral, como neste ckso específico, seja por fIliação. Esta construção está necessariamente de acordo com os traços elementares da organização ,social (filiação, casamento, poder, etc.). Em Tokelau [Huntsman e Hooper 1975], os germanos completos são concebidos como seres idênticos (tutuha 'os mesmos') e esta identidade comporta atitudes diferentes segundo os seus expoentes sejam do mesmo sexo ou de sexo diferente. A separação entre irmão e irmã em domínios tão delicados como a partilha da mesma residência, a alimentação em comum ou a brincadeira de ordem sexual é completa. Isto conduz-nos ao ponto seguinte: a proibição do incesto em geral não tem necessidade de ser decretada como regra social senão a partir do momento em que o principio do idêntico deixa de ser tão fortemente estru- INCESTO 114 turado, ou seja, normalmente quando são postos em relação consanguíneos de sexo diferente, dado que a mais forte estruturação do idêntico passa ao primeiro lugar, em virtude da comunidade de sexo. Isto é verdadeiro no caso do incesto do primeiro tipo e é evidente em si mesmo, se tivermos em conta a definição heterossexual clássica do incesto. No entanto, no caso I do incesto do segundo tipo já aqui analisado, a proibiçãO incide sobre a rela"ção homossexual entre consanguíneos, Il1ediatizadaatravés do mesmo objecto \ sexual. Debrucemo-nos sobre este pOllto. Na teoria etnol6gica, como na prátiça corrente, nossa ou de outras sociedades, o ip.cesto parece dizer respeito; em primeiro lugar, às relações heterossexuais; e em seguida às relações he~~rossexuaisque comportam um risco de fecundação. Assim, no direito franc~s, a violação refere-se apenas à relação forçada por via vaginal; o incesto enquanto tal s6 é susceptível de punição como circunstância agravante da violação de um menor: consequentemente, trata-se apenas da penetração heterossexual através da qu~ é concebível, se a idade o permitir, um fruto da união. Margaret Mead tinha claramente visto este aspecto da questão: «A ênfase que se pôs sempre na relação existente entre a proibição do incesto e a regulamentação do casamento teve como resultado o facto de se negligenciar sempre o incesto homossexual» [1968, p. 118]. Não estamos em condições de discutir de forma aprofundada a realidade do desejo homossexual incestuoso em termos psicanalíticos, a frequência da realização deste desejo quer se trate de jogos, de carícias ou de uma relação completa. Barry e Johnson [1958] dizem ter tido conhecimento nas suas pesquisas de um certo número de casos de incesto mãe/filha e av6/neta. Maisch [1970, p. 186] disse ter antes tido conhecimento na sua amostragem de incestos homossexuais pai/filho, avô/neto. Mas é conveniente sublinhar duas coisas: em primeiro lugar, que a possibilidade existe, que é conhecida, e que casos individuais se encontram registados; em seguida, e principalmente, que existem casos evidentes e socialmente reconhecidos de homossexualidade consanguínea absolutamente lícita entre determinado tipo de parentes. Se eles existem entre um certo tipo de parentes, e não entre todos indiferentemente, é porque, para os outros, aqueles para os quais a homossexualidade não é permitida, é levantada uma barreira sobre cuja natureza nos devemos interrogar. De facto, Lévi-Strauss refere que entre os Nambikwara o cunhado potencial de um homem é o primo cruzado com o qual, «desde adolescente, se entrega a jogos homossexuais, dos quais permanecerão sempre traços no comportamento mutuamente afectuoso dos adultos». E acrescenta: «Os irmãos são parentes entre si, mas são-no pela sua semelhança ... os cunhados pelo contrário são solidários entre si e possuem uma eficácia funcional em relação uns aos outros. . . desempenham o papel do outro sexo nos jogos er6ticos da infância» [1947, trad. it. p. 620]. Que significa tudo isto? Neste texto, Lévi-Strauss nada diz acerca do estatuto dos primos paralelos; ele precisa que os irmãos são pr6ximos «pela sua semelhança» e não faz alusão a possíveis jogos homossexuais entre eles. 115 INCESTO Convém acrescentar que, interrogado sobre este ponto, Lévi-Strauss confll'mou a hip6tese segundo a qual os primos paralelos têm o mesmo estatuto que os germanos e a impossibilidade de qualquer tipo de relaçllo de tipo homossexual entre si. Pelo contrário, os cunhados/primos cruzados silo soli· dários e sexualmente pr6ximos uns dos outros, antes do casamento de um com a irmã do outro. Os·jogos homossexuais parecem ser-Ihes reservados. Isto significa portanto, vulgarmente falando, que nesta sociedade os indivíduos observam uma proibição do incesto homossexual e heterossexual entre I indivíQuos concebidos como idênticos (Lévi-Strauss diz «semelhantes»), , a saber, os primos paralelos e os germanos (irmãos e irmãs), e abandonam-se em contrapartida, em temporalidades diferentes, ao jogo homossexual ou à aliança matrimonial com parceiros considerados como diferentes, a saber, os primos cruzados. Nesta sociedade, o critério mais forte do idêntico não passa pela comunidade de sexo, mas pelo carácter paralelo das relações de parentesco oposto ao carácter cruzado. Consideremos um outro exemplo de Schneider, aqui citado por extenso: «Os Etoro da Nova Guiné crêem que o sémen é necessário para o crescimento normal e a manutenção dos rapazes: aquele é-lhes, consequentemente, directamente ministrado, por via oral, tantas vezes quanto pareça ser necessário. O inseminador ideal é o marido da irmã do pai do rapaz, mas outros homens de uma certa idade também podem cumprir perfeitamente esta função. Kelli declara que as definições do incesto e as proibições ma~rimoniais são isomorfas às proibições que incidem sobre a inseminação dos rapazes, com a diferença que num caso se trata de pares de parentes dos dois sexos, e no outro de pares do mesmo sexo. Schieffelin relata a mesma crença entre os Kaluli da Nova Guiné. Ele indica que o inseminador escolhido pelo pai é um homem com o qual geralmente é aparentado (talvez o marido da irmã, embora isto não seja claro) ou um homem mais velho com o qual não tem laços de parentesco. Em ambos os casos, quer para os Etoro quer para os Kaluli, uma relação deste género entre pai e fl1ho ou entre irmãos é considerada incestuosa e é proibida» [1976, p. 151]. Que o marido da irmã do pai seja primo çruzado ou não, este exemplo mostra claramente a homologia da estrutura das proibições homossexuais e heterossexuais. Por outro lado resultam, do exemplo precedente, duas coi: sas: que pode existir um certo tipo lícito de relações homossexuais; que o critério mais forte do idêntico é agora deslocado da comunidade de sexo para o carácter paralelo da relação de parentesco, quer em filiação quer em , colateralidade. , Bastaria reter apenas estes dois exemplos precisos na literatura antropo16gicacomo prova da pertinência das noções de idêntico e de diferente para compreender as proibições do incesto. Estas noções variam claramente em compreensão, em amplitude e em intensidade segundo a forma pela qual a relação entre os sexos, em particular no seu papel respectivo quando do gerador de um novo indivíduo, é encarada por cada sociedade. Parece no entanto que, para além destas variações, a visão simbólica do idêntico apresenta-se por toda a parte e sempre segundo a mesma simplicíssima coni INCESTO 116 catenação estrutural, em todos os domínios onde esta simb6lica é utilizada de maneira evidente, por exemplo, nas curas medicinais ou na escolha do cônjuge. Não existe escolha, na realidade, senão entre duas possibilidades segundo os resultados, bons ou maus, que elas são supostas produzir: ou I de se procurará justapor ou o cúmulo de combinar do idêntico elementos (o que diferentes), implica como ou então corolário o cúmulo a recusa do idêntico será proibido (com a consequente procura sistemática de justaposiI ção ou combinação de elementos diferentes). No que concerne a escolha do cônjuge, não é raro que estas escolhas sejam acompanhadas por considerações de ordem genética, como é o caso dos Mkao que concebem a mistura de sangues idênticos - no todo ou em parte - como um incesto que provoca a fraqueza e a morte. Em contrapartida, a mistura de sangues diferentes traz a força e a vida [Copet 1977]. Encontramos considerações semelhantes na nossa pr6pria cultura. I \ idêntico As regras tal como que ele proíbem é concebido o incesto, por cada que sociedade proíbem em (segundo suma omodelos cúmulocujo do recenseamento seria conveniente estabelecer, ou pelo menos das suas principais configurações), não têm necessidade de ser explicitamente proclamadas a não ser quando a noção de idêntico vacila nas fronteiras com a diferença, isto é, quando a diferença dos sexos intervém no interior de uma relação paralela de consanguinidade (em colateralidade ou em filiação) como é o caso mais frequente - e quando a dicotomia paralelo/cruzado intervém no interior da comunidade de sexo - como é o caso dos Nambikwara, dos Etoro ou dos Kaluli. Corre-se então um risco devido ao cúmulo do idêntico, e isto tanto para os indivíduos como para as sociedades. Quanto ao resto, regra alguma é necessária para especificar ao homem: tu não copularás com o teu filho nem como o teu irmão nem (como para os Nambikwara) com o teu primo paralelo, mas apenas com o teu primo cruzado. São coisas que se resolvem aparentemente por si próprias no Supereu Social (repare-se neste ponto no grande mutismo dos textos sobre uma possível homossexualidade incestuosa feminina). Tudo se passa como se a ordem do idêntico e do diferente, através da comunidade de sexo e do paralelismo que se lhe segue, adquirisse todo o seu sentido na orientação da sexualidade para o outro sexo segundo os fms da espécie e a regulamentação desta orientação segundo os fins da construção social. A procura ou a recusa do cúmulo do idêntico explicam-se através de alguns traços formais. Idêntico e diferente, enquanto categorias polarizadas, são noçõe~ que implicam conjuntos de caracteres contrastados que se apresentam I sob a forma de categorias dualistas, de pares de axiomas contrários, tais tomo direita/esquerda, claro/escuro, macho/fêmea, superior/inferior, altoibaixo, quente/frio, seco/húmido, etc., implicando, talvez, por outro lado, uma ordem segundo p610s negativo e positivo. A esta bipolarização corresponde. um equilíbrio entre duas ideias qUe se encontram mais ou menos expressas em todas as sociedades, eventualmente sob formas atenuadas, profundamente submersas em crenças isoladas (assim, 117 INCESTO na nossa sociedade, recomendava-se outrora às raparigas que não mergulhassem as mãos ou os pés em água fria durante os ciclos menstruais, para evitar fazer refluir o sangue no corpo; as mulheres que estão com a menstruação são supostas deslaçar a maionese, o creme inglês, as emulsões, etc.): 1) em primeiro lugar, em algumas condições, os contrários atraem-se e nou, tras repelem-se; 2) em segundo lugar, um bom equilíbrio dos cohtrários é necessário para a harmonia do mundo, do individuo, da ordem social. Para o pensamento grego, que se aperfeiçoou especialmente na questão do equilíbrio dos elementos [Lloyd 1964],á maior perfeição visa a combihação em justas proporções da maior parte possível dos contrários. Em conttapartida, , o cúmulo do idêntico provoca sempre uma perda de equilíbrio, um excesso. Este excesso pode ser procurado, pOr exemplo, em certas curas medicinais, ou em rituais de inversão, ou em condutas de inversão pr6prias de aristocratas ou de soberanos em diversas partes do mundo (as princesas shilluk, que têm uniões livres com os seus parentes, inclusive com os meio-irmãos agnáticos, devem ser estéreis, como ás mulheres do clã aristocrático dos Vungara junto dos Zande, entre outras êoisas com fama de serem lésbil:as, como as princesas nyoro, etc. [Heusch 1958]). Chegamos assim ao último ponto fundamental do raciocínio, a saber, a pertinência do sistema global de i\epresentações das sociedades, ordenada segundo os cânones desta lógica muito geral cujas grandes linhas acabam de ser expostas, para compreendermos a instituição da proibição do incesto. Este prop6sito será ilustrado pela análise sucinta do sistema de representações samo [Héritier 1973; 1978], r1?-aspoderia igualmente sê-Io por outros materiais etnográficos. É evidente que o conteúdo, a definição e a sistematização específicas dos traços ideol6gicos pertinentes dos Samo não são necessariamente os mesmos alhures; mas a 16gica geral, baseada nasrctlações do idêntico e do diferente tal como acabam de ser expostas, é-o por:hipótese. Para os Samo, a categoria dualista central, relevável na linguagem vulgar, nos discursos, nos mitos, nos"rituais, é a do calor e do frio, com os seus corolários do seco e do húmido. (Eventualmente, pode diZer-se que, a julgar pela abundância da literatura que aborda este assunto,·' se trata de uma categoria igualmente eminente' no pensamento de muitos outros povos; assim, descobre-se facilmente a sua pertinência na nossa cultura se se fizer não s6 a análise do discurso comum, presente ou passado, mas também do discurso erudito dos médicos e dos Ihigienistas dos séculos XVIII e XIX sobre o sexo, o corpo e a doença). ProvQc'llro encontro de dois caracteres quentes (pôr quente sobre quente) tem como efeito a seca; pôr frio kobre frio tem como efeito o desencadear dos Ullxos, de água (chuvas torrenciais, inundações), de sangue (hemorragias), de humores (disenteria). Os efeitos desses cúmulos do idêntico, seja qual for o registo em que se verifiquetn, fazem-se sentir num outro dos registos fueteorológicos, biológico ou social. Um delito social - como a sepultura do corpo de um zama (pária conhecido como necrófllo), que é pôr quente sobre quente [Héritier 1979] .,...tem consequências meteorológicas, impede a chuva de cair: os três registos estão intimamente ligados. INCESTO 118 o homem pertence à categoria do quente, porque produz, permanentemente, com a transformação interna das suas «águas do corpo» localizadas na medula óssea e nas articulações, o esperma, elemento considerado extremamente quente porque forma particularmente condensada do sangue que veicula o calor do corpo [Héritier 1977]. A introdução do esperma no útero feminino fornece a necessária quantidade de sangue à criança, rapaz ou rapariga; o sangue da mãe, por seu lado, sc:rve para a constituição do corpo da criança. Assim, o pai deverá continuar a ter relações sexuais com a mulher grávida até ao sexto mês de gravidez, poijco mais ou menos [Héritier 1978], para que a criança seja perfeitamente fQrnecida de sangue. Se as relações continuam depois desta data, a criança forre o risco de sobreaquecimento no útero. Que o sémen veicula o sangu~ ou que é uma forma particularmente depuradora e concentrada de sang'Ue,é também uma crença popular entre nós: falar de mistura de sangues á propósito da união de um homem e de uma mulher não implicará, com efeito, que o sémen masculino tem o poder de' canalizar o sangue? . A mulhér pertence à categoria do frip, principalmente porque não produz sangue ela mesma: com a transformllção das suas «águas do corpo», ela produz leif~, que pertence também à cllfegoria do quente, como o sémen. Leite e sémen são nesse sentido equivalentes. Além disso, ela perde periodicamente,o'seu sangue, e, uma vez cas~f;ia,aquele que o seu marido introduz nela, quando ambos não servem para fazer uma criança. Mas a mulher está em situação quente durante a infância no seu estado impúbere, durante as gravidezes e depois da menopausa. Estas concepções sobre as características dos fluidos vitais explicam a proibição referente às relações sexuais depois do parto. O leite, homólogo do esperma, é quente como este. A introdução do esperma no útero de uma mulher que amamenta equivale a meter quente sobre quente. Isto tem como efeito esgotar (secar) o leite, e também esgotar a capacidade viril de produzir do esperma, ou de estragar o leite. Diz-se que os bebés rejeitam o leite da mãe em dois casos: quando esta teve uma relação sexual com o marido, ou quando se encontra novamente no período menstrual, apesar de amamentar (as menstruações podem reaparecer seis meses depois). Assim, esta proibição que em princípio visa a protecção da criança no seio, visa também a protecção das capacidades viris do marido. Os Mossi [Pageard 1969, p. 128] acreditam que uma gota de leite da mãe que caísse sobre o sCfo do fúho destruiria irremediavelmente a sua virilidade. Já vimos que a mulher, à qual é explicitamente associado o carácter frio (e húmido; o homem é quente e seco), pertence de facto à categoria do quente durante vários e talvez os mais longos períodos da sua vida. Ela é dotada de um calor próprio, que perde regularmente com os ciclos menstruais, que lhe vem do seu pai elou da sua pertença de linhagem (existem algumas hesitações sobre este ponto), calor idêntico em natureza e qualidade àquele que possuem os seus irmãos. Quando ela concebe um fúho, é o sangue que recebeu do seu pai que se tornará no corpo e nos órgãos do bebé, o qual por sua vez receberá a sua dotação de nascimento em san- 119 INCESTO gue, calor e vida do seu próprio pai. Mas são as «águas das articulações» que os fúhos recebem dela que recriam de maneira permanente o sangue nos machos e o leite nas fêmeas. Serão, pois, necessárias três gerações (ef. supra, p. 109) para que desapareça na sua descendência cruzada com outros troncos este sinal particular de linhagem que os seus irmãos transmitem integralmente em patrifúiação. A contradição inerente à noção de idêntico é que o carácter de idêntico se transmite de maneira igual por geração elou miação, mas que necessita em seguida de se diferenciar segundo o sexo. Na realidade, todas, ou quase todas, as sociedades têm velhos fantasmas partenogenéticos. Par~ os Samo, tal como em Madagáscar, a união incestuosa é uma união estéril. Quando um casal não tem fIlhos, os adivinhos consultados descobrem frequentemente uma relação consanguínea esquecida entre os cônjuges, descoberta essa que autoriza uma ruptura válida da união, caso esta seja legítima. É uma união estéril, devido à acumulação de dois calores idênticos que causam a consumpção, a secura dos fluidos vitais. O incesto aquece, dyi/ibra a lu/an ma. De igual modo, a copulação com uma rapariga impúbere, que ainda não perdeu nada do seu calor primeiro, é perigosa porquanto faça correr a um e outro dos dois parceiros o risco de dessecação dos seus fluidos vitais, da sua substância, podendo provocar a morte. Segundo a mesma lógica, ter ainda relações sexuais regulares, para uma mulher com a menopausa, significa acumular calor sobre calor sem haver a possibilidade de «refrescar-se» regularmente com os ciclos menstruais ou brutalmente no momento do parto (as parturientes são aquecidas com banhos quentes e um fogo permanente) e consequentemente correm ainda um grande risco de serem acusadas de feitiçaria. A mulher que está com os ciclos menstruais está a perder o seu calor e atrai para si o calor exterior; ela estragará a cozedura do veneno (elemento quente) se por acaso passar próximo do lugar onde os homens o preparam em silêncio, às escondidas, no mato: ela absorve este calor. Para a mulher grávida, pelo contrário, a acumulação de calor provocada nela pela sua passagem fortuita próximo do local de fabrico do veneno fá-Ia imediatamente abortar. ,Existem pois «curto-circuitos»devidos à presença simultânea de dois idên-' ticos, e isto não apenas no domínio sexual. Assim, os cabelos do senhor da chuva (/amutyiri) e a sua cabeça têm a obrigação de fazer vir a chuva. O' senhor da chuva é um personagem extremamente marcado pelo sinal do quente, e o seu calor está particularmente concentrado nos cabelos. O quente atrai o frio e o húmido; portanto a cabeça cabeluda do /amutyiri deve con· ter a carga de calor necessário à vinda da chuva em quantidade suficiente [Héritier 1973]. Mas se os seus cabelos, que são cortados apenas uma vez por ano, tocam por acaso a terra nua, que é quente e masculina, isto produz curto-circuito que provoca a seca, os ventos quentes portadores de epidemias, a falta de germinação das gramíneas, etc. Assim o /amutyiri dos lon· gos cabelos caminha com precaução, pelo menos nas ocasiões cerimoniosas, senta-se à parte em esteiras de palha, e durante a juventude (ele é escolhido INCESTO 121 120 antes do nascimento) e a adolescência não pode lutar, como fazem tradicionalmente os rapazes e os jovens em geral. Em certas aldeias, ele não pode sair de dia ou de cabeça descoberta; evita pois o contacto com os raios solares, tal como o mikado e outros príncipes nos exemplos referidos por Durkheim. Poder-se-á sugerir que ele, como estes, se encontra fortemente marcado pelo sinal do quente? E que, se expusessem a cabeça nua ao sol, se seguiriam indubitavelmente catástrofes de secas sobre o povo deles? e, I A noção det~u!!O:~ci~c~ít()}implica também a decontági(), que encontramos em Durkheim [1897]: «As propriedades de um ser propagam-se contagiosamente sobretudo quando são de uma certa intensidade» e «n6s,deixamos algo de n6s pr6prios por onde quer que passemos». Assim, um lidmem não pode descer a um poço, ou seja, ao seio da terra quente, quando a sua mulher está grávida: ele fá-Ia-ia, por contágio, abortar. Em contrapartida, o homem que morre durante uma gravidez da mulher, ou seja, durahte o período em que ela retém particularmente o calor, tem, por contágio~ todas as características altamente perigosas das mulheres mortas durante a gravidez ou de parto: ele será sepultado entre elas, a sua casa será destruída, os seus bens confiscados em benefício dos coveiros especiais, que ~lio os únicos que tocam nestes cadáveres maléficos. I a díspar série dos fen6menos citados no início deste artigo segundo as obserfordea natureza dos seus Algures, terraexcesso pode ser o quente \ qual vações Lévi-Strauss: eles efeitos. explicam-se por aum de fria, idêntico, seja sobre quente provocar inundações e não a seca, uma outra categoria dualista ocupar o lugar proeminente que o calor e o frio têm para bs Samo, mas isso em nada afectaria, parece-nos, a 16gicade conjunto que àcabamos l de descrever. ' Ele permite também compreender a utilização do sangue menstrual ou do sangue do parto (e sobretudo dot>timeiro sangue!) em certas curas medicinais: este sangue frio atrai os humores frios das escr6fulas; antÍtético do leite, ele estanca a sua difusão; seca os fluxos de destilação dos furúnculos ou dos abcessos provocados por inflamações. O sol exerce uma atracção partÍl;ular sobre as jovens mortais que estão menstruadas, e convém que elas se protejam dele (como algures convém que se protejam da água fria), seja porque a excessiva força de attacção do calor solar pode fazê-Ias sofrer de Uma hemorragia contínua, seja porque essa mesma força, concebida como r~pulsiva, impede o seu sangue de correr. A masturbação é um cúmulo do idêntico, talvez o mais perfeito'de todos. Na Europa, na crença popular (I: mesmo no discurso médico até ao século XIX), ela a provoca masturbação definhar ecompletamente emagrecer os anormo! rapazinP0s. Para os Navaho uma faz fecundidade (nascem monstros), semelhante àquela que ás crenças populares francesas atribuem às uniões consanguíneas e, com rqllis razão, ao incesto. f que deve ser compreendida a correlação incestuosa de dois consangUíneos do mesmo parceiro sexual, tipo. Isto tamI através É verosimilmente através destaso incesto noções do de· segundo curto-circuito e depode contágio bém permitir-nos compreender algumas anomalias já aqui assinaladas dtl passagem. Se um homem samo mantém relações sexuais com uma «Íl1tJ.ã»ou uma parente consanguínea da sua esposa, ou com a mulher do ÍrqlãO da sua esposa (duplo curto-circuito), esta última abandona-o imediatam~qte se vem a saber do caso e não volta senão quando todos os procedimerttos de reintegração forem feitos. Não se trata portanto da expressão de umareprovação moral, mas de uma questão de risco, pois ela é posta em cdntacto carnal com a sua pr6pria substância, a que partilha com a sua pllrente, e de forma igualmente perigosa, embora por intermédio de duas mediações sexuals, com o seu irmão. Assim, para os Nuer, s6 a maior identidade~ a dos homens consanguíneos agnáticos, é concebida como uma perfeita troca. Um é igual ao outro. Não há portanto mal algum em ter-se relações sexu,!! com a mulher de um bull. No entanto, uma proibição pesa sobre a rela~o do filho com a mulher do pai ou com a mulher do irmão. Neste caso, Wr con· t tágio, trata-se de um incesto do primeiro,tipo por razões que os Nuer dfPõem perfeitamente através do relat6rio do seu etn6grafo: o fJ.lhoé posto em contacto carnal com a mãe, caso tenha relações sexuais com uma outra tnulher do pai, uma vez que o pai se une carnalmente com ambas as espos~s e dá à mãe algo da substância do fJ.lho. Se, nos Nambicuara, a relação dos primos cruzados cessa depois do seu casamento recíproco com a irmã do outro, isso passa-se apenas para que não haja confusão dos papéis sociais e também porque cada irmão seria assim posto em contacto carnal, por contágio, com a pr6pria irmã. É nos termos desta problemática, entendida no sentido das articulações 16gicas que existem entre diferentes processos, que podemos compreender INCESTO Se para os Ashanti, Rattrayentre [cf. Goody 1956], a violaçãp uma mulher casada no matosegundo é classificada as ofensas sexuais mais de graves, daquelas que, julgadas a nível trillllÍ, implicam a morte do culpado, isto sucede porque - pomos como hipÓtese - é um acto quente cometido em zona quente (o mato é quente; a ald~ia é fria), e as suas consequancias climatol6gicas e epidemiol6gicas implic;am uma desgraça para o país inteiro. É um crime contra o grupo e não coNra uma mulher nem contra um homem lesado nos seus direitos nem mesmo.,contra a instituição social do casamento, dado que, para que a violação seja assim punida, é necessário que tenha sido cometida no mato. ' . A visão simb6lica do incesto, q*' assenta em pilares s6lidos do idêntico 'I e do diferente, geneal6gica; não está necessariamente ligada com consanguiJ1idadereal, propriamente supõe pelo contrário umaa relação l6glaa, sintáctica, que une entre si diversas ordans de representações: as representações das pessoas e das suas partes, as representações genéticas das trllnsformações verticais ou horizontais que se oPeram entre indivíduos por via de miação ou de contágio, as representações da relação dos sexos e do mundo do parentesco, mas também as representações do mundo natural e da ordem social nas suas relações íntimas c~I\1 o homem biol6gico. Essa relação é baseada na troca e no movimento otgânico dos fluxos, que se deve regular. Portanto, o facto de se ter tentado: explicar o incesto pela manipWação do simbólico não nos parece ser uma interpretação contradit6ria com a demonstração de Lévi-Strauss. Regulamentando as trocas de cada ordem, trata-se sempre de construir a sociedade. [F. 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Ruzzoli, Milano o Entre os resultados mais relevantes da antropologia figura a análise da estrutura da famflia, cuja base assenta na proibição do incesto, regra já universalmente aceite entre todas as sociedades (cf. sociedade), sejam elas de natureza tradicional (cf. selvagemlbárbaro/civiliBado) ou modernas, isto é, daquela parte do mundo que atravessou a revoluçdo industrial (cf. indústria). Todavia, embora já ninguém conteste esta lumna fundamental, esteja ela inscrita no costume ou num código de leis (cf. lei, direilo), o debate permanece em aberto no que concerne o sistema e a lógica a que deve aludir (cf. crenças) a origem desta forma de postulado social. Numerosos estudiosos atribuíram - e atribuem ainda - a razão da proibição do incesto a um Arnbito estri. tamente biológico: uma endogarnia (cf. endogamialexogamia) praticada entre os membros consanguíneos provocaria (cf. hereditariedade, gene, genótipolfenótipo) o empobrecimento das carac- INCESTO 124 terísticas gen~ticaa e a transmissAo dos caracteres negativos. Outros associaram essa norma com a necessidade de socialiJIaçtJo inerente a cada grupo, para o qual s6 atrav~s desta proibição pode ser praticada a troca das mulheres (cf. mulher, homem/mulher) que estende a série das relações para uma área mais vasta, e isto para tomar possível a criação da sociedade. No entanto deve dizer-se que semelhante proibição diz respeito não s6 ao domínio matrimonial, mas também ao da sexualidade. Aqui os factores biológicos e a subdivisão dos grupos (eC. parentesco) muitas vezes não coincidem, repondo assim o problema da natureza do incesto. Uma soluçlo consiste em aludir ao sistema geral dos conhecimentos (cf. conhecimento) que é representado quase por toda a parte por um modelo do tipo idêntico/diferente (eC. identidade/diferença), no qual o idêntico representa') domínio proibido e o diferente o domínio lícito. O que varia ~ o valor (cf. 'Valores), o significado (cf. sentido/significado), o simbolismo atribufdo por cada cultura (eC. cultura/culturas, emocenlrismos, natureza/cultura) aos termos idêntico e diferente, enquanto análogo permanece o sentido, cuja constante presença se põe como uma das mais importantes chaves para penetrar nas linguagens (cf. linguagem) e na história do homem (cf. masculino/feminino). ENDOGAMIAIEXOGAMIA Não é assim tão fácil tratar da endogamia e da exogamia enquanto noções portadoras de uma defInição. De facto, trata-se de conceitos duplamente relativos, por um lado, porque não podem ser evocados isoladamente (em tal caso seriam destituídos de sentido) e, por outro, porque, mesmo tendo em conta esta relatividade, não remetem (pelo menos no estado actual dos nossos conhecimentos cuja imprecisão impede que se estabeleça um acordo entre todos os que utilizam a terminologia científica) para situações simples cuja compreensão estaria coberta pelo próprio termo. Voltemos ao primeiro ponto, sobre o qual nos devemos deter. Endogamia e exogamia não podem ser evocadas isoladamente: procurar o cônjuge <<fiO interior» ou «no exterior» implica imediatamente que sejam defInidas a identidade e o conteúdo do grupo no interior ou no exterior do qual é escolhido o cônjuge. Em poucas palavras, somos remetidos para uma defInição que pode ser dada em diferentes termos, os quais podem ser considerados separadamente ou em conjunto. . Antes de mais, endogamia/exogamia podem ser considerados em termos de parentesco. Encontramos então, desde o início, a necessidade de uma análise do papel da proibição do incesto. Segue-se a análise da noção de miação, conforme a regra de miação que defIne os grupos é un.ilinear (ou seja, a transmissão de pertença ao grupo é feita unicamente por intermédio dos homens - filiação patrilinear - ou por intermédio exclusivo das mulheres - miação matrilinear - de tal modo que os indivíduos provenientes de um grupo assim defInido - linhagem ou clã - possuem em comum pelo menos um mesmo conjunto de parentes, que não se podem geralmente casar, que são os membros do grupo), bilinear (os indivíduos pertencem simultaneamente a dois grupos, defInidos um pela fl1iação patrilinear, e o outro pela miação matrilinear), ou cognáticalindiferenciada (todas as linhas de descendência que implicam homens e mulheres ao longo das cadeias de sucessão são reconhecidas com os mesmos direitos, dando lugar deste modo a conjuntos flutuantes ou parentelas, variáveis para cada indivíduo, em função· doconhedmento e da prática mais ou menos directos que ele possui dos seus diversos consanguíneos). É evidente que a noção de exogamia não indica a mesma coisa conforme estamos em presença de sociedades de grupos unilineares constituídos a maior parte das vezes com base na residên- l27 126 ENDOGAMlAIEXOGAMlA cia, com um aparelho jurídico-social que os torne facilmente identificáveis, ou sociedades em que os grupos de parentesco (parentelas flutuantes) são constituídos de modo indiferenciado. Por I1ltimo, devemos ter em conta as regras de casamento em função de três casos de figuras possíveis, consoante: 1) A escolha do cônjuge seja orientada pela regra social para um grupo particular (é o que acontece com as organizações sociais dualistas) ou para uma categoria particular de parentes, por exemplo, a filha do irmão da mãe: MBd (as transcrições que se seguem leguem o sistema inglês: M =mother, B-brother S=sister, s=son, d=dauglteer, H=husband, W=wife. No nosso caso: MBd =mother's brother's daught«r). Tal filha pode ser real ou classificatória, em que por classificat6ria se entende que qualquer fllha da mesma categoria, designada pelo mesmo termoj pertence ao grupo do irmão da mãe. Assim num sistema patrilinear, a moa do fIlho do irmão do. pai da mãe é indicada como MFBsd. A representação gráfica * é a segumte: , o Ego Ego MBd MFBsd Em ambos os casos estamos perante aquilo a que Lévi-Strauss chamou as «estruturas elementares» de parentesco, elementares porque permitem «determinar imediatamente o círculo dos parentes e o dos aliados» (1947, trad. it. p. 11]. 2) Esta escolha seja apenas limitada por proibições, mínimas ou não, do incesto que incidem sobre graus interditos de parentesco, ou seja, sobre indivíduos que ocupam posições geneal6gicas defmidas. É o caso, nas nossas próprias sociedades ocidentais, da mãe, da fllha, da irmã, em confronto com um Ego masculino, mas também, no direito canónico, dos primos direitos e mesmo, até ao início do nosso século, dos fllhos descendentes de primos direitos e além disso um certo número de parentes por aliança (<<Ego»é o termo de referência em relação ao qual se constroem todos os sistemas de i I I denominação. Uma longa tradição etnol6gica fez de ~go. um ser ma_s~lllino; ver-se-á como este estratagema etnológico não é indiferente à compreensão dos factos sociais). Neste caso, falaremos de «estruturas complexas» de parentesco, na medida em que a escolha do cônjuge parece obedecer a considerações de ordem estatística e já não normativa. 3) Esta escolha, finalmente, seja limitada por proibições que incidem não sobre indivíduos definidos genealogicamente pela sua posição em termos de graus de parentesco, mas sobre grupos na sua totalidade, enquanto linhagens ou clãs definidos por uma regra de flliação, sendo autorizados a priori • Neste esquema bem como nos seguintes ro • relaçAo de fraternidade, 1= = o significado relaçAo de geraçAo, dos símbolos é o seguinte: .4 = homem, O = mulher = reJaçAode afinidade, casamento. t aNDOGAMIAIEXOGAMIA os grupos não proibidos: é o caso dos sistemas ditos crow-omaha (do nome das tribos índias em que foram identificados; uns - sistemas crowencontram-se geralmente nas sociedades matrilineares; os outros - sistemas omaha -, nas sociedades patrilineares). O número de grupos proibidos pode variar segundo as sociedades que têm este tipo de sistema de parentesco e de aliança. Num caso amaha africano, o dos Samo do Alto Volta, são proibidas as linhagens patrilineares de Ego - portanto, do seu pai -, da mãe, da mãe do pai e da mãe da mãe. Para além disso, são proibidas todas as linha~ens em que um «irmão» ou um «pai», reais ou classificat6rios, isto é, qu~quer consanguíneo pertencente à mesma linhagem do Ego masculino - da pr6pria geração ou da geração imediatamente superior à própria -, tenha 'já tomado um cônjuge. Finalmente, são sempre proibidas a um homem as linhagens das mulheres anteriormente desposadas, bem como as das suas mães, mães de pai e mães de mãe. O resultado aparente é, pois, uma forte exogamia, fora do campo da consanguinidade e da aliança, que pertence ao mesmo modelo estatístico de realização, presente nas estruturas complexas de parentesco e de aliança. A definição pode ser feita também em termos de residência, em primeiro lugar porque as regras que fixam a escolha de residência para o casal que acaba de casar não estão numa relação indiferente com as regras de miação e de aliança, mas também porque existem numerosos casos em que a residência partilhada introduz entre indivíduos não aparentados uma relação de parentesco particular, ou parentela de vizinhança, cujos efeitos exogâmicos podem ser tanto ou por vezes mais constritivos que os laços de sangue. Titiev [1943] cita Granet e,o exemplo da exogamia chinesa de aldeia, onde a relação entre os membros de uma mesma aldeia acabava por ser uma relação mais estreita do que se ela fosse simplesmente baseada nos laços de sangue. Inversamente, a aldeia pode ser uma unidade endogâmica, tanto mais fechada quanto maior for o isolamento geográfico. Enfim, a defmição pode formulu-se em termos de estatuto, e, portanto, de ideologia: a etnia, a casta, a religião, o lugar na hierarquia social, a profissão, a riqueza ... Para muitos grupos étnicos, a designação dos membros do grupo é feita com um termo que quer simplesmente dizer 'os homens', o que implica que os estrangeiros à etnia são de uma essência não humana: animal, fantasmática, monstruosa. Unir-se a eles é do domínio do impensável. No sistema das castas, na índia, ninguém pode casar fora de casta sem descer na escala social. Por outro lado, pode acontecer que casta, grupo de parentesco e grupo residencial estejam misturados. Sem que se possa propriamente falar de castas, existem, em particular, na Africa Ocidental, grupos «profissionais» frequentemente endogâmicos: os ferreiros, os feiticeiros, ou grupos cuja endogamia forçada é a consequência de um afastamento que resulta de uma falta de ordem sexual cometida por vezes pelos próprios indivíduos, mas cuja mancha, e consequente opr6brio, é a maioria das vezes herdada por nascimento ou contraída por contacto sexual. É o caso dos Mossi yaghlentise, supostos culpados de bestialidade, ou dos Samo zama, imputados de necrofilia. ENDOGAMIAIEXOGAMIA 128 129 A religiAotambém desempenha o seu papel: para um mormon, é preferível casar com a própria filha do que dá-Ia em casamento a alguém que não partilha a verdadeira fé. Sutter [cf. Sutter e Tabah 1951) cita o caso de Orthez, uma aldeia protestante no interior de um país uniformemente católico, rigorosamente endogâmica desde a Reforma, de tal modo que a existência de um gene causador de epilepsia, e que atingiu quase todas as farnflias, fez com que o termo 'epiléptico' passasse a ser, na região, sinónimo de protestante. Em termos de hierarquia social, podemos encontrar duas situações radicalmente diferentes. Lévi-Strauss distingue a este respeito entre endogamia I «verdadeira•• e endogamia «funcional••. A primeira «é tanto mais marcada quanto a classe social que a pratica, ocupa um nível mais elevado: assim no antigo Peru, nas ilhas Havai, em certas tribos africanas•• [1947, trad. it. p. 95). Contrariamente, trata-se de endogamia funcional sempre que! 11 relaçAo está invertida, quando «a endogamia aparente diminui à medida que se eleva na hierarquia •• [ibid.). Ele cita o caso dos Kenyah e dos Kayan de Boméu que estão divididos em três classes hierarquizadas e normalmente endogâmicas: todavia, a classe superior deve praticar a exogamia de IIldeia. ,<Comotambém na Nova Zelãndia e na Birmânia, a exogamia defme-se, pois, no topo da hierarquia social: ela é função da obrigação das famílias feudais de manterem e alargarem as suas alianças. A endogamia das classes.ihferiores é uma endogamia de indiferença e não de discriminação•• [ibid.)'. Com esta distinção, proposta por Lévi-Strauss, entre endogamia verdadeira e endogamia funcional, tocamos um ponto muito importante. A.endogamia ,<verdadeira••tem uma formulação positiva em função dos dados culturais: é a impossibilidade, que raia o impensável, sentida por todos, de procurar um cônjuge fora de um conjunto cujos limites são definidos por caracteres concretos, variáveis segundo os grupos: aqui, o estrangeiro não-humano; ali, o bárbaro que não pratica a mesma religião; acolá, o excluído, cujo simples contacto sexual implica desonra para outrem e exclusão do grupo; além, o inferior para quem toda e qualquer aproximação llignifica rebaixamento; aqui, o habitante de uma região vizinha e cujos homens têm fama de ladrões e as mulheres de infiéis; ali, o órfão sem família chegada que o sustente ... Encontram-se, como se vê, um certo número de tritérios ENDOGAMIAIEXOGAMIA a própria irmã significa não querer cunhados ••, responde o informador arapesh a Margaret Mead que o interroga sobre a possibilidade de uma união com a irmã: «E então, com quem irei à caça? Com quem cultivarei a horta? : Quem visitarei?•• [1935, trad. it. p. 109) .•• A exogamia ... afirma a existên, cia social de outrem e só proíbe o casamento endogâmico para introduzir, e prescrever, o casamento com um oUtro grupo diferente da família biológica; e não decerto porque um perigo biológico esteja ligado ao casamento consanguíneo, mas sim porque de um casamento exogâmico resulta um benefício social••[Lévi-Strauss 1947, trad. it. p. 616). Deste modo, não se podem considerar exogamia e endogamia como duas instituições totalmente simétricas: isto s6 é válido para a exogal1lia e a endogamia ••funcional••que lhe corresponde. Existe, evidentemente, uma distinção entre proibição do incesto e regra exogâmica propriamente dita. Várias vezes se observou que as relações incestuosas eram por vezes toleradas no interior da linhagem se se verificassem entre primos afastados, desde que fossem discretas e sem frutos . amda que, no entanto, o casamento lhes fosse vedado pelas normaS locais. Mas é importante notar que o casamento obedece a finalidades que .não são apenas da ordem das gratificações sentimentais e sexuais. O que conta é ~ue o casamento, enquanto fundador de laços entre grupos diferentes, enquanto mstaurador de relações de ordem eltonómica, de ordem geneal6gica e de ordem social entre indivíduos e faIItilias, é proibido entre parceiros cujo incesto no interior do grupo é, no ~ntanto, tolerado. O modelo mais puro desta endog~mia funcional, reverso da regra exogâmica e que é o único a pertencer verdadeiramente ao domínio do parentesco, é o casamento entre primos cnlzados. Em relação a Ego diferenciam-se os prj!ll()s~germanos (primos em primeiro grau segundo o direito canónico) em primos paralelos e prirhos cruzados. São paralelos os primos nascidos de um conjunto de germanos (siblings) do mesmo sexo, ou seja, os fIlhos de dois irmãos ou os filhos de duas irmãs; são cruzados entre si os primos nascidos respectivamente de um irmão e de uma irmã: ' + § Á «princípio inerte de Cruzados limitação•• [ibid., p. 99). \' examinados A endoganlla verdadeira é apenas, para Lévi-Stral.tss, um Quanto àacima. endogamia funcional, é o inverso da regra exogâmica. À proiÁ biçãO do incesto não deve ser encarada como tendo um carácter pu,rámente negativo. Para um homem, o facto de' se abster do acesso às mulheres que lhe estão próximas pelo sangue tem como contrapartida, ao mesmo tempo, a obrigação de cedê-Ias a outros homens e o direito de reivindicar para si o acesso às mulheres que os outros se proíbem. «A proibição equivale' a uma obrigação, e a renúncia abre o caminho a uma reivindicação•• [ibid.J p. 98). Portanto, ela equivale à instauração de um sistema de troca entre os grupos, tomando possível li vida em sociedade, suprimindo o fechamento hostil dos grupos sanguíneos sobre si próprios e alargando, sob todos os pontos de vista, as relações entre os grupos. Neste sentido, a proibição do incesto funda a sociedade humana. ,<Como?Desposar a própria irmã?! ... Casar com Á 6 6 166 + f Paralelos Paralelos Cruzados Ego ;";este tipo de casamento, a categori:t dos primos cruzados não é, propriamente falando, uma categoria endo~ca: não são parentes que devem contrair aliança mas os primeiros no gr~nde conjunto dos consanguíneos (no puro sentido geneal6gico do termo) 'que são cônjuges possíveis sendo os , primos paralelos, por seu turno, assimilados aos irmãos e às ir~âS e, por " essa mesma razão, impossibilitados dJ. casar entre si. Os primos cruzados são então considerados mais como aliados do que como consanguíneos. A terminologia reforça a maior parte das vezes esta distinção entre primos paralelos e cruzados, designando os primeiros pelos termos utilizados para desig- 130 ENDOGAMIAlEXOGAMIA nar os irmãos e as irmãs, e os segundos pelos termos de esposo e esposa; de igual modo, o irmão da mãe, pai de uma esposa potencial para um homem (o fllho da sua irmã), pode ser designado por este com o termo normalmente aplicado ao pai da esposa, mesmo na ausência de casamento entre os primos, sendo a irmã do pai inversamente designada po~ uma mulher (a filha do seu irmão) como termo aplicado à mãe do mando. Vejamos, para melhor compreender o que se passa quando este mod~lo mais simples da endogamia funcional d acompanhado de uma troca restnta entre grupos, quando a sociedade funciona com base numa organização dualista isto é com um sistema de metaClj:stal que é impossível escolher cônjuge' dentrd da metade a que se pertenfe e, inversamente, obrigat6rio ~sc~lher o cQnjuge na outra metade. Tom,~os o caso em que a regra de fihaçao é patrilinear (pertence-se de nascença ,ao grupo do pai) e a regra de residência é patriviril~cal (os novos casais esta.bel:cem a sua residência perto ou em ca,sa do pai do esposo). Irmãos e irmas que pertencem à mesma metade (A) escolhem, pois, os seus côpjuges respectivos na mesma metade (B), donde, pelas leis de filiação patrilinear e de residência virilocal, os fllhos de dois irmãos ou os fllhos de duas irmãs (isto é, os primos paralelos) pertencem à mesma metade e não podem, portanto, casar entre si, enquanto os fllho~de um irmão e de uma irmã (os primos cruzados) pertencem a metades diferentes e se tomam por essa razão cônjuges possíveis. Na estratégia da aliança eles são até os primeiros cônjuges possíveis, os cônjuges preferidos. Observe-se que com uma troca de irmãs (que é a primeira forma de troca restrita: dois conjuntos formados por um irmão e por uma irmã casam entre si para formar dois casais) os casamentos preferenciais subse- quentes entre primos cruzados efectuam-se entre primos duplamente cruzados ou primos cruzados bilaterais: a filha do irmão da mãe, com quem um homem casa, é ao mesmo tempo a filha da irmã do pai. r6 .\1- i r1 que à metade B Indivíduos T pertenoem à metade A Indivíduos pertencem lB Haveria muito a dizer sobre as razões de ordem simb6lica que, em minha opinião, explicam a distinção entre primos paralelos e primos cruzados, fundando e reforçando assim o papel social da proibição do incesto e da ins- 13l ENDOGAMIAIEXOGAMIA tauração das regras exogâmicas que impõem que se escolha o cônjuge fora do campo do parentesco culturalmente definido por cada grupo humano. Pode observar-se, todavia, que, em numerosos grupos humanos, os fllhos de dois irmãos e os de duas irmãs podem ser encarados, por razões que dizem respeito às representações que neles se ligam com a procriação, como sendo totalmente inseparáveis e permutáveis, a ponto de um ser igual ao outro. Entre o~ Samo do Alto Volta, eles são considerados como sendo «li mesma coisa))(g '1';) 'um'). Entre os Bara de Madagáscar, descritos por Huntington [1978], a forma mais detest~da de incesto e de união totalmente impossível não diz respeito unicamente aos irmãos e irmãs e outros consanguíneos de nível primário (mãe/filho; pai/fllha), mas também aos ftlhos das irmãs, primos paralelos matrilineares durante várias gerações (ou seja, não apenas os primos germanos, nascidos de duas irmãs, mas também os nascidos de dois primos germanos paralelos matrilineares, etc.), porque eles nasceram da mesma matriz e formam uma s6 carne. O casamento entre primos paralelos patrilineares, concebido como absurdo, é possível, no entanto, em casos extremos, desde que um ritual especial seja efectuado a fun de fazer desaparecer o parentesco. Em contrapartida, o casamento entre primos cruzados é o casamento preferencial, na ausência de qualquer organização dualista. Até aqui considerámos as noções de endogamia e de exogamia numa perspectiva estritamente antropol6gica. Todavia, é necessário considerar a definição destes termos numa perspectiva genética. Recordaremos rapidamente, retomando a expressão de Schreider, que o «horror instintivo ao incesto tem tão pouco fundamento como o horror ao vazio)) [1978, p. 548]. Efectivamente, os genetistasdevem efectuar laboriosos cálculos para determinar os efeitos negativos ou positivos dos casamentos consanguíneos e dos casamentos não-consanguíneos: as vantagens da hibridação não são mais evidentes que as desvantagens imputadas às uniões consanguíneas. Donde se conclui que não é a observação repetida, feita pelas populações primitivas, dos efeitos desastrosos das uniões consanguíneas que pôde ter dado lugar à proibição do incesto nem à regra da exogamia. De um ponto de vista genético, o que conta seria mais o número de fllhos, portadores de diversas configurações genéticas, gerados pelos casais, do que a identidade dos cônjuges (o facto de casar com uma irmã, uma prima ou uma estrangeira tem pouca incidência genética). Se, segundo Sutter [cf. Sutter e Tabah 1951], 25 por cento dos pais dão 50 por cento dos fllhos na primeira geração (tendo, portanto, os 75 por cento de restantes pais gerado os 60 por cento dos restantes ftlhos nascidos, segundo esta hip6tese), na terceira geração 73 por cento da população provêm do quarto inicial, e na quarta geração este número passa a 89 por cento. Este facto sublinha a importância da fecundidade diferencial, que faz com que um mesmo carácter genético possa estender-se a toda uma população mesmo sem casamentos consanguíneos. Partindo da hip6tese genética da panmixia (população fechada às trocas migrat6rias, com casamentos efectuados ao acaso sem qualquer proibição, e sendo suposto que o comportamento da fecundidade seja idêntico para todos os grupos), corrigindo-a para o homem através de cinco variáveis que têm em conta a fecundidade diferencial de que acabámos de falar, a proba- 133 ENDOGAMIAIEXOGAMIA ENDOGAMIAIEXOGAMIA 132 defInidos» [1958, p;-497]. E é no interior destes conjuntos de populações parciais que funcionam as regras antropol6gicas defInidas pela análise do parentesco. Passemos agora ao segundo aspecto da relatividade dos conceitos de endogamia/exogamia a que se aludiu no início deste texto. Para tal, tomemos alguns exemplos. O primeiro refere-se aos sistemas crow-omaha, defInidos por uma regra de flliação unilateral e por proibições matrimoniais que incidem sobre grupos (linhagens ou clãli), mais ou menos numerosos. consoante bilidade de uniões consanguíneas, o problema da selecção por atracção, as mutações, a quantidade e os limites da população, os genetistas conseguiram, segundo Dahlberg [1948], chegar à noção de 'isolado' isto é a zona de «lnterC'lsamento»no . ' pode, enconinterior da qual um indivíduo qualquer trar um cônjuge. O cálculo é efectuado segundo a frequência dos casamentos entre primos germanos (nas populações ocidentais, de tipo cognático/indiferenciado). A hip6tese de Dahlberg para medir o isolado neste tipo de casamento é a de que, quando a escolha do cônjuge é limitada pelo fraco número de indivíduos casáveis, se deve esperar uma certa proporção de casamentos entre primos, desde que este tipo de união seja realizado por açaso. Sutter [1958] preferiu efectuar este cálculo sobre os casamentos entre pri. mos nascidos de germanos, partindo do princípio que eles têm mais hi~6teses d~ ser efect~ados ao acaso do que o casamento entre primos germanos proprIamente ditos, e tendo em conta a dimensão média da família. Se o nú.mero médio de fll.hos ~ dois, um indivíduo tem dois tios ou tias, q\1atro prImOSgermanos, seis prImOSde grau desigual e oito nascidos de gerrltanos. ~e o número médio. é de sete fllhos por casal, estes números passam respectIvamente a doze, OItenta e quatro, trezentos e quarenta e seis e quinhentos e oitenta e oito, dos quais metade deve ser eliminada (do mesmo sexo) bem como uma outra parte (devido à excessiva diferença de idades). ' As variações da dimensão do isolado em França vão de 520 (Pl1y-de-Dôme) a 4580 (Allier). Mas o que é importante notar é que as regiões que possuem um grande ~entro urbano apresentam isolados relativamente p~quenos: é o caso da região do Sena (com Paris) com isolados de um tamanho médio de 930 indivíduos, do·R6dano (com Lião) com isolados de um tamanho médio de 740 indivíduos, etc. No departamento do Sena, a frequência dos casamentos consanguíneos é maior do que nos departamentos rurais' vizi. nhos, e esta frequência é tanto mais considerável quanto as família$ ~êm inversamente, tendência para ser mais pequenas. Damos conta de que est; género de cálculo contradiz as ideias geralmente aceites sobre a abertura máxima da. escolha do cônjuge com exogamia consanguínea nas regiõeSlIIrbanas cOm sistema de parentesco cognático/indiferenciado. I Deste tipo de cálculo passa-se, com Livi [1949], ao cálculo do etectivo necessário e suficiente para assegurar a manutenção biol6gica. O fi?ínimo viável pare~e si.tuar-se à volta das 500 pessoas. Entre 300 e 500 produz-se um. desequilíbno que pode levar quer à estabilidade do grupo quer' à sua extlnçllo. Mas este cálculo implica a monogamia e um total fechamento ao exterior; grupos humanos inferiores em quantidade podem sobreviver r~orrendo à poligamia, a uniões muito diversas do ponto de vista das i~ades \ à promiscuidade (ritual ou não, em determinados períodos) a escolhas d; consanguinidade pr6xima. ' Segundo Wright [1946], as populações apresentam uma distribuição con~nua nu~ grande ~s~aç~, e ?s .casamentos s6 são possíveis em imediações clrcunscntas por distanCias lImitadas, de maneira que os indivíduos mais distanciados uns dos outros não têm praticamente nenhuma hip6tese de se casarem entre eles. Conclui-se, com Sutter, que «a população de uma nação está dividida em populações parciais, em permanente transformação, e com contornos mal as.populaçõ~s que praticam este tip~ de sistema de parentesco e de aliança. Dissemos aCImaque o resultado aparente deste tipo de sistema era ufua repartição altamente probabilística da escôlha do cônjuge, reenviada o ntais longe possível, da qual emergia um modelo estatístico, do género do que se julga entrever para os sistemas complexOll,e não um modelo de tipo mecânico, como nas estruturas elementares. Um sistema crow-omaha, proPliiamente, deveria ser exogâmico, em termos de grupos de parentesco, todavia quando as unidades residenciais (a aldeia) sAode pequenas dimensões, comportam poucos grupos de parentesco diferqnciado, exogâmico, em termos de residência. É esta aliás a sua defIniçãOIgeralmente aceite. Ora, de um trabalho que realiz~i minuCiosamente junto doS Samo do Alto Volta (patrilineares como no sistema omaha), a partir de genealogias elaboradas em três aldeias que constituem praticamente um isolado - definido como aquele conjunto de pop\1lação de fronteiras incertas 116 interior das quais se circunscreve a escolha 'do cônjuge -, genealogias tratadas por computador em função de hipóteses de pesquisa particulares, conclui-se o que à primeira vista pode ser cb~siderado como um escândalo para o espírito - que não s6 existe uma fbrtíssima endogamia de aldeia '(no interior do isolado ~ormado pelas três ltldeias), que vai de 60 a 80 pj>r cento, também sistemas de trocas vegulares duas linhagens (dolinhatipo ,I como da troca restrita), retomados num sistema de entre troca generalizada entre gens. Encontra-se também, em prdporções que não podem ser devidas ao acaso, um grande número de uniõc;s consanguíneas em cada qu~tro gerações (isto é.' entre primos nascidos( de fllhos de germanos). Encontramos, portanto, SImultaneamente, uma espécie de modelo mecânico que emerge das estruturas elementares, uma endogamia no parentesco consanguíneo relativamente afastado e uma endogantia de aldeia. .: O .primeiro pon~o.(modelo mec~nico de troca) é tornado pqsllível pela combInação das prOIbições - algumas das quais se anulam em vez de terem um efeito cumulativo - da poligamia'e de um aspecto desconhecidb do proble~a da simetria entre homens e dtulheres. De facto, entendeu·se sempre, na lIteratura antropol6gica, que as regras de proibição se aplicavam igualmente aos dois sexos. Lévi-Strauss escreve [1947, trad. it. p.' 30] que «a maneira mais c6moda de defInir 'um sistema crow-omaha é aquela que diz que, sempre que se escolhe umal linha para obter dela um cônjuge, todos os seus membros se encontram automaticamente excluídos do número dos cônjuges disponíveis para a linha de referência, e isto ao longo de várias gerações». Ele faz notar ainda que (<li regra é válida para os dois sexbs» [ibid., p. 29]. É verdade que os relat6rios dos etn6grafos, que neste aspecto seguem o critério sempre androcêntrico utilizado pelos pr6prios informadores, i I ENDOGAMIAIEXOGAMIA tence apenas à linhagem da mãe do pai do pai da sua: mulher, que não está proibida. Assim, estes regimes omaha seriam realmente exogâmicos no sentido em que regras de proibição interditam a escolha de um cônjuge num certo mimero de grupos, mas a estratégia pr6pria à aliança, que implica o jogo sobre as regras, a poliginia e a simetria diferencial entre conjuntos unissexuados e conjuntos bissexuados de consanguíneos acarretam de facto a endogamia local, com um sistema de trocas regulares entre linhagens; do mesmo modo, o retorno imediato da escolha do cônjuge entre os consanguíneos (com incidência nos mais pr6ximos daqueles que são permitidos), uma vez que deixem de funcionar as regras de proibição de linhagem, acarreta uma endogamia c:onsanguínea. A única diferença com os sistemas elementares é que esta endoglUDiapreferencial se efectua com primos afastados e não com primos chegaqos, estando estes, no intervalo de três gerações, reservados a outrem, no jogp da aliança restrita entre linhagens que permitam a endogamia local. Vemos, deste modo, dilufrem-se as noções de endogamia e de exogamia. A pr6pria noção de linhagem resiste dificilmente à análise, enquanto unidade totalmente pertinente ao nível da aliança. Permanece pertinente a muitos outros níveis: político, econ6mico, residencial, ritual, e até também como princípio de ordem e de simplificação, dado que a regra de ftliação unilinear opera entre todos os consanguíneos cognáticos separações que têm por objectivo ordenar e hierarquizar estes consanguíneos em relação a Ego. Todavia, no plano da aliança e da exogamia de grupo (linhagem ou clã), implícita no sistema das proibições crow-omaha, ela deixa de o ser na medida em que na prática são proibidos (e, aqui, estamos a referir-nos não apenas permitem esta conclusão. Mas o que se verifica na realidade é que, se existe realmente uma simetria entre homens e mulheres, esta não funciona senão num sentido muito especial: se dois irmãos não podem escolher uma esposa na mesma linhagem, isto implica ipso facto que duas irmãs não podem escolher um marido na mesma linhagem; se um pai e um filho não podem casar dentro da mesma linhagem, isto tem como consequência que a irmã de um homem e a filha deste homem não podelTIcasar dentro da mesma linhagem. Esta simetria entre irmãos, que implica por outro lado uma simetria entre irmãs, não implica logicamente uma sim~tria de proibição de aliança no interior de um mesmo grupo de filiação entre um irmão e a sua irmã. Do mesmo modo, a simetria entre o pai e o fIlho, que comporta por outro lado uma simetria entre irmã do pai e ftlha do irmão, hão implica logicamente uma simetria das proibições de aliança, no interior d'o'mesmo grupo de filiação, entre um pai e a S4a filha, entre uma tia paterna e o filho do seu irmão. o ~ ~ I i1 0-'1= b A B B B ~ CAI A I Assim, um homem A, em regime poligâmico, que recebeu uma mulher de um grupo B e uma mulher de um grupo C (não podendo estas duas mulheres ser aparentadas), pode «restituir» ao grupo B, na geração seguinte, a filha que ele tiver tido da sua esposa C (ou uma filha de um dos seus irmãos cujas esposas não podem ser nem B nem C), sem infringir qualquer proibição. . Nota-se igualmente, como se disse, uma frequência particularmente elevada do casamento entre consanguíneolj na quarta geração. Com efeito, as regras de proibição incidem nas linhagens de Ego, de sua mãe, da mãe do pai e da mãe da mãe: não sobre outras. Encontrar-se-ão, pois, uniões preferenciais do tipo representado,. em que Ego masculino casa com uma bisneta da irmã do seu .bisavô (FFFSssd). A esposa em questão não pertence, dada a regra de filiação, à linhagem de Ego; Ego, o marido, per- ENDOGAMiAlEXOGAMllA 135 134 ) ao caso dos Samo mas também a outros sistemas africanos de tipo omaha recentemente estudados, tais como os Mossi, os Baulé, os Minianka, etc.) não s6 os primos que pertencem por ftliação patrilinear às linhagens proibi- ( li se unem a estas mesmas linhagens por intermédio de mulheres, sem lhes pertencerem. Deste modo, Ego masculino não pode casar com FMBdd: das (F, M, FM, MM), mas também todos os consanguíneos cognáticos que \ \\\ -~ T I/ T Ego I'! Ego PFFSssd FAlBdd do pai Ego; inversamente, paralinhagem esta esposa impossível, pertence ora estadepertence apenas a uma aliada ( ) da Ego linhagem da apemãe nas a uma linhagem aliada da de sua mãe. De certo modo, podemos dizer que estes sistemas que falam em termos de grupos agem como se tivessem em consideração não s6 os grupos, mas também os graus geneal6gicos de parentesco, como fazem os sistemas cognáticos/indiferenciados. ENlJUljilMJillJiXOGAMIA 136 Tomemos um segundo exemplo numa sociedade de tipo cognático/indiferenciado, como é a nossa. No século XI, um Padre da Igreja, Pier DanUa:ni, escreveu um texto para lutar contra uma heresia nascente, que consistia em interpretar em termos novos a regra can6nica que regulamentava a aliança na época: a proibição incidia então sobre todos os consanguíneos cognáticos, isto é, unidos entre si por intermédio indiferentemente de homens e de mulheres, até à sétima geração a partir de um antepassado comum. A heresia consistia em interpretar este número não em termos de gerações, mas em termos de graus contados nas duas linhas de procriação: quatro de um lado e três de outro. Do nosso ponto de vista é importante observar duas coisas: 1) esta exogamia consanguínea absoluta fora da parentela devia duplicar-se através de alianças preferenciais entre consanguíneos na oitava ENDOGAMIAIEXOGAMIA 137 da importância do sexo': ••faz-se» um herdeiro em cada oustal - rapaz ou rapariga -, escolhendo o mais capaz de gerir os bens. É encargo dos pais ou do herdeiro dotar os irmãos e irmãs excluídos do patrim6nio. O que importa é que dois herdeiros não se casem entre si (deste modo chegar-se-ia rapidamente a concentrações de riqueza incompatíveis com a vida social): um herdeiro (masculino ou feminino) casa com uma filha (ou um fllho) mais nova que lhe traz um dote. Por outro lado, a análise das uniões cbnsanguíneas realizadas com autorização eclesiástica mostra que as alianças no exterior não correspondem a uma necessidade, mas a uma escolha: l:le facto, nenhum casamento consanguíneo se produz no interior de uma linhagem patrimoIlial (linhagem fundada na transmissão do patrim6nio). Em contrapartida, os casamentos consanguíneos praticam-se entre filhos mais novos excluídos do patrim6nio e com dotes insuficientes para poderem casar com um herdeiro; geralmente, a autoriZaçãO é-lhes concedida ••por motivo de pobreza». Os herdeiros das linhagens patrimoniais não transgridem as proibições can6nicas, porque a l6gica do sistema matrimonial prat~cado em Gévaudan assenta numa circulação i'de bens entre linhagens: a eildogamia patrimonial impede que esta circulltção se faça. Os fllhos mais novos têm um comportamento muito mais endogâmico, territorialmente falatldo, mas também em termos de consanguinid~de, do que os herdeiros par~ quem o raio da aliança é o cantão e não a aldeia. No entanto, observa Lamaison, quando se estabeleceram laços matrimoniais durante várias gerações, entre os diferentes grandes oustal, as famílias preferiram efectivamente atiar-se no exterior durante uma ou duas gerações antes de renovarem em seguida as alianças no interior do seu antigo cIrculo. Em suma, a partir do momento em que as considerações geneal6gicas ligadas às proibições can6niças intervêm simultaneamente com tudo aquilo que diz respeito ao património, o número de oustals imediatamente vizinhos, com os quais um proposant (um herdeiro) se pode unir, diminui consideravelmente e incita à expgamia. Vemos, pois, praticar-se aqui urná estratégia da aliança que tem por objectivo uma exogamia local concebida fm termos de patrim6nio, mas para os indivíduos portadores desse patrim611Íounicamente, e que as proi~ições não fazem senão favorecer. Como é que se podem definir neste caSOjao nível dos grupos familiares e não apenas dos indivíduos, os termos de ehdogamia e exogamia, no entanto liberalmente utilizados? '; Um exemplo, em certa medida oposto, é o das sociedades lawnares da baixa Costa do Marfim, em particul~r. a sociedade aladiana [Augé 1,969], em que a endogamia de linhagem, mais ek(lctamentea pseudo-endogamia de linhagem, é um luxo reservado aos ricos e aos fortes, isto é, aos representantes eminentes das linhagens mais podellosas. Neste caso, a estratégia social vai ao ponto de metaforizar o jogo das' alianças consanguíneas. Normalmente, existe um sistema de troca generalizaqo (casamento com a prima cruzada matrilateral) que, com acomodações e vuiantes, parece satisfazer no conjunto a troca entre linhagens nó âmbito de uma forte endogamia aldeã. Mas a intensificação do comércio com os Europeus no século XIX, essencialmehte o tráfico de 61eode palma - que implicava a mobilizaçãode uma considerável quantidade de mão-de-obra -, criou problemas específicos aos chefes das gran,i geração. Pier Damiani escreve: «Quando a família fundada no parentesco' desaparece, ao mesmo tempo que as palavras para designar este, a ~ei do casamento surge imediatamente e restabelece os direitos do antigo amol' entre aqueles de que se tinha apoderado, o casamento lança imediatamente li sua ) garra os homens novos. .. Lá, pois, falta a[De mão do parentesco, reunia para reconduzir aquele queonde se afasta» parentelae gradibus, que in Migne, Patrologia latina, CXLV,col. 182]. Existia portanto aí também uma endogamia consanguínea diferida. 2) Se bem que não tenhamos os meiollpara verificar esta hipótese (na ausência de estado civil), e tendo em conta a acentuação patrilinear/patrilocal da nossa sociedade, é quase certo que eram lembradas mais facilmente as relações de consanguinidade que diziam ~obretudo respeito aos homens do que as que diziam respeito às mulheres., Por outras palavras, pode presumir-se, de maneira correlativa e inversa do que dissemos relativamente aos sistemas crow-omaha, que no caso em que a riliação é indiferenciada, as falhas da memória humana deveriam fazersllrgir linhas privilegiadas de flliaçllo, de tal m~neira que esta exogamia, calçulada em termos de graus, devia ter tendência para se confundir com uma exogamia de grupos baseados em residências ou em patrim6nios comuns .. A noção de patrim6nio torna-se central no estudo que Lamaison t llJ77] dirigiu sobre a aliança no Gévaudan do século XVII. Naquela época, as proibições iam até aos primos nascidos de germanos incluídos. Mos~,a ele que o importante é manter a integridade do patrim6nio, dos bens, db oustal, e até aumentar a riqueza (aliás, muito relativa) com os dotes trnúdos pelos cônjuges. Neste aspecto, este imperativo leva a uma negação parcial ENDOGAMIAIEXOGAMIA 138 des linhagens de comerciantes, sobretudo por causa do sistema de flliação e de residência. De facto, os Aladianos eram matrilineares e patrivirilocais: se a herança ou a sucessão se fazia em linha uterina, a força de trabalho era constituída pelos fIlhos dos homens da matrilinhagem residentes na corte do seu pai e encarregados até uma idade tardia de uma quantidade de tarefas cujo produto, quando se transformava em tesouro herdável (produto do tráfico no século XIX, mais tarde, produto das plantações), não lhes era a maior parte das vezes destinado, uma vez que era transmitido pela linha uterina. As tensões nascidas deste deseq'tilíbrio (porque nem todas as linhagens tinham o mesmo peso) parecem eSt~r na base da prática de uniões com mulheres çativas ou com mulheres estr~ngeiras nascidas de etnias patrilineares, o que permitiu aos representantelldas linhagens de comerciantes constituir pod~rosas unidades integradas oJiqe pareciam reconciliar-se, não sem criar profl.lndas discriminações internas; ÍI. regra de fIliação e a regra de residência. Casar com uma cativa é, de faQto, para um aladiano (a quem ela chama «p~i»), casar com uma mulher sem linhagem, o equivalente de uma irmã, pelo facto de ela pertencer de direito à linhagem do seu comprador: os fllhos rtascidos desta união são simultaneamente, pelas obrigações que lhes são impostas, «filhos» e «sobrinhos uterinos». A este propósito muitas combinaçõc::seram possíveis: dádiva de prisioneiras a diversos dependentes, uniões com descendentes de prisioneiras, uniões entre cativos ou entre descendentes de cativos e até uniões entre mulheres livres da linhagem e homens cativos ... A exigência de constituir um grupq numeroso e autónomo encontrou assim uma resposta numa particular política de fortalecimento da linhagem, que podemos considerar como o cúmulo da estratégia em matéria de endogamia: se tomarmos como referência a noção de linhagem, podemos deste modo opor a um primeiro pólo - o da consanguinidade verdadeira e da endogamia perfeita que, como no caso da sociedade árabe (onde o casamento preferido se faz com a fllha do irmão do pai, prima paralela patrilateral), parecem indicar o desaparecimento da noção de linhagem - o pólo da falsa consanguinidade que preside à constituição de linhagens fortes entendidas como grupos plenamente orgânicos do ponto de vista social, económico e político. [F. H.]. 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A .troca das mulheres que se instaurou entre os grupos para facilitar o casamento constitui indubitavclmente um dos momentos mais relevantes na formação da sociedatk (cf. mulher, homem, homem/mulher). A tendência para a exogamia que é aquela que geralmente prevalece não se efectua todavia num sentido estritamente biológico. Antes de mais, o cálculo das possíveis combinaçOCs permitidas no interior do grupo (cf. comunidade) sofre variaçOCs segundo o sistema de parentesco vigente (cf. puro/impuro, sexualidade, 10lem, amar); com efeito, esse não surge de modo algum regulamentado de uma vez por todas com leis e normas rígidas (cf. direito, lei, norma, costume). Mas, sobretudo, as regras matrimoniais, longe de serem uma análise dos laços entre gerações, estão muito particularmente sujeitas ao modo de constituição do grupo conside. rado (cf. casla, classes, iniciaçào, exclusào/integraçào, educaçào, discriminaçào, etnocentrismos), aos seus valores (cf. cultura/culluras, religido, vida/mane, cosmologias), aos seus mitos e temores (cf. milo/rilo, angústia/culpa, pecado, ética, caslraçào e complexo), ao seu modo de estabelecer relações com outros grupos (cf. conflito, guerra, festa, migraçào), quer no campo político quer no campo religioso e económico (cf. economia, comércio, troca, reciprocidadelredislribuiçào). 141 CASAMENTO Começaremos por uma constatação que poderá surpreender o leitor: no Código Civil Francês de 1905 não existe uma deftnição jurídica dd casamento, mas apenas uma lista das condições fortnais da sua existência e da sua vitalidade: I) implica a existência em comum dos cônjuges que deve durar normalmente toda a vida, com união física sexual (se bem que as relações sexuais no casamento s6 sejam, de facto, previstas na lei negativamente: recusá-Ias torna legítimo o pedido de div6rcio de um dos cônjuges; o adultério é proibido); 2) não pode ocorrer senão entre pessoas de sexo diferente, que tertham atingido uma idade mínima de capacidade física; 3) deve obedecer a um certo número de interditos: o Código faz o irlventário das situações de consanguinidade e de aliança em que a união entre os indivíduos é considerada como incestuosa e, portanto, proibida ou ,utorizada com certas condições (deste modo, poder-se-á conceder uma adtorização de casamento entre sogro e nora quando o casamento que criava a aliança tiver sido dissolvido por morte do esposo, mas não quando foi dissolvido por div6rcio); 4) deve obedecer a concepções culturais específicas: assim, ninguém Pode casar se já tiver contraído matrim6nio e se essa união não tiver sidodissolI vida por morte ou por divórcio; a monogamia é, de facto, a única fOrma reconhecida de casamento na sociedade francesa (e mais geralmente nas ~ociedades de direito ocidental); 5) o casamento é considerado não existente se faltar o consentimento expresso publicamente pelos cônjuges 1]0 momento da cerim6nia dd ~asamento (o desaparecimento posterior do consentimento não dá direito ao div6rcio, no C6digo de 1804); 6) por último, este consentimento deve ser recebido por um rePresentante oftcial do Estado e inscrito nos registos de estado civil. Deste modo, sabemos o que torna existente o casamento, mas não sabemos o que ele seja. Esta ausência de deftnição não é visivelmente uma dmissão involuntária. O legislador confrontou-se, sem dúvida alguma, tom a grande dificuldade de analisar objectivamente a instituiçllo do casamcnto c de lhe dar uma definição geral, embora nem sequer se procurasse dar aqui CASAMENTO (no C6digo Francês) uma deftnição universalmente aceitável. Esta diftculdade de ordem intelectual é a mesma com que se confronta a antropologia, em que a deftnição da instituição social que é o casamento conduz geralmente a explicações de funcionalidade e de ftnalidade, sobre a sua razão de ser, sobre o que «faz»,cuja principal característica é a tautologia. Como escreve excelentemente : Riviere [1971], se a função do casamento é legitimar a descendência, a legitimidade da descendência depende, pois, do casamento. Uma coisa não existe , sem a outra, donde um raciocínio puramente circular. A deftnição mais conhecida de casamento é, de facto, a da sexta edição de Notes and Queries in Anthropology (1951), manual básico dos etn610gos de campo que declara: «O casamento é uma união entre um homem e uma mulher realizada de tal modo que os fllhos que a mulher dá à luz são reconhecidos como sendo os ftlhos legítimos dos dois cônjuges». Independentemente da crítica fundamental acima expressa, esta deftnição não resiste à análise de um certo número de ractos etnográftcos. Como demonstrou Edmund Leach [1951], se nos cingirmos a esta deftnição, não poderemos considerar como casamentos - e isso em oposição ao sentimento e à convicção dos seus actores - as uniões contraídas sob o regime chamado da L«poliandria adélftca», ou seja, aquelas em que uma mulher é a esposa de um grupo de irmãos, ou a esposa de um homem e dos seus fllhos nascidos de outra esposa. É verdade que, nll maior parte dos casos conhecidos, os produtos das diferentes uniões são considerados como sendo fllhos do mais velho, ou seja, daquele que contraIu a aliança em primeiro lugar. Mas a relação dos irmãos mais novos com esta mulher do irmão mais \'elho não é um simples desregramento moral, htna simples tolerância. Por vezes, como no Tibete, existem tantos rituais dei casamento, a intervalos mais ,ou menos regulares, quantos os irmãos que possam beneftciar das prestações sexuais e de outros serviços da esposa comu1D,e s6 beneftciam deles depOis da execução do ritual; cada um deles goza; I>orsua vez, sozinho, a esposa comum durante períodos determinados, durante os quais os outros irmãos se ausentam,' se bem que as crianças, consideradas, no entanto, fllhas comuns do grupo de irmãos, tenham um único pai legal, o mais velho do grupo. A união com os irmãos mais novos, ~ue implica cooperação econó~ca, assistência mútua, privilégio sexual, controlo em comum da educação dos fllhos, união que é reconhecida válida peloi'conjunto da sociedade, deve ser ou não considerada um casamento? Se admitirmos que se trata realmente de um casamento, então a definição de NtJtes and Queries é insuftciente. Ela também não se ajusta ao cas<ldos Nuer [Evans-Pritchard 1951], entre os quais, como já vimos (cf. os artigos «Família» e «Incesto»), uma mulher estéril, que dispõe de riquezas em glÍdo, pode desposar, a título de I<marido», outras mulheres que a servem e a ,honram, e que lhe dão, através de um genitor-servidor interposto, fllhos de:que ela é o pai reconhecido, e que recebem dela, como pai, a sua legitimidade, o seu estatuto social e o seu direito à herança na linhagem patrilinear., A definição de Notes afld Querie~não se ajusta também ao célebre caso dos Nayar matrilineares (Gough), dnde cada mulher tem um marido escolhido numa linhagem regularmenté associada à sua para fornecer parcei- CASAMENTO 143 142 ros matrimoniais, mas não vive com ele; pode ter quantos amantes quiser, que as crianças que nascerem pertencem unicamente ao grupo matrilinear da mãe. No entanto, Gough afirma, pelo menos no seu mais recente artigo sobre o problema [1959], em que rebate as críticas de Leach, que a noção de paternidade não está ausente e que o casamento ritual tem por objectivo fundamentar a legitimidade das criança~. O exemplo nayar ensina-nos que, mesmo onde a instituição parece ausente (não existência de residência comum por parte dos cônjuges, de privilégio sexual, de cooperação económica, de cpoperação do casal na educação dos filhos, e tratando-se de famflias matriaentradas, etc.), ela está no entanto presente sob um aspecto que desconhecllmos na nossa cultura: o estabelecimento de laços de aliança duradouros, regulares, renovados e instaurados entre linhagens, entre grupos sociais. Os ,casamentos entre homens e mulheres perten!=entes,cada um pelo seu lado, 1I0Sgrupos em condições de aliança matrimonial são de facto os suportes f~ctuais desta aliança, mas isso não implica na9a daquilo que costumamos englobar na noção de casamento. O exemplo nayar mostra também que a aliança entre grupos passa necessariamente por uma união legal entre indivíduos de um e de outro sexo. Poderia ela ter. outras expressões? Como faz notar Riviere, a única característica universal do casamento é a de que as unidades que o compõem são homens e mulheres. A categoria do sexo é a primeira, em todas as acepções do termo, entre todas as distinções sociais, e o casamento pode ser examinado antes de tudo como uma das relações possíveis entre os elementos fundamentais da estrutura social, isto é, os homens e as mulheres. O problema será então o de saber o que faz com que esta relação particular (possível entre outras, mas quantas outras?) tenha conhecido a fortuna que se sabe, uma vez que não existem sociedades que sejam integralmente desprovidas desta instituição (cf. o exemplo nayar). Em todo o caso, o exemplo nuer mostra-nos, por seu lado, que a representação dos papéis masculinos e femininos tem mais importância do que o sexo real dos indivíduos. "O casamento entre mulheres" dos Nuer (como é costume chamar-lhe) não é nunca um casamento de mulheres, mas sim um casamento contraído por uma mulher que desempenha um papel de homem com o consentimento do seu meio social, dados os aspectos simbólicos particulares que revestem as categorias do masculino e do feminino. Uma mulher estéril, apesar da evidência do sexo, é socialmente um homem.' "I O exemplo da poliandria adélfica demonstra-nos, se atentarmos nas análises de Leach, que as noções de privilégio sexual reservado a um só parceiro e de legitimaçào das crianças por parte de um único homem, que detém sozinho o estatuto de marido e de pai, podem ser aspectos secundários da instituição matrimonial - como também era o caso do exemplo nayar -, a partir do momento em que outras exigências passam para primeiro plano. Numa sociedade onde as mulheres transmitem riquezas tal como os homens, mas em que o ideal é conservar intacta a propriedade fundiária que é apenas transmissível aos herdeiros machos, é evidente que, se os irmãos tivessem cada um as suas próprias esposas, transmitiriam as suas próprias rique- I CASAMENTO zas aos seus ftlhos e não aos sobrinhos (ftlhos dos irmãos do marido); os grupos de primos teriam assim interesses económicos diferentes; existiriam grandes hipóteses de que o património fundiário não ficasse intacto a longo prazo. Mas ao partilharem uma esposa comum, dona da casa, os únicos herdeiros dos irmãos como das suas esposas são os ftlhos nascidos desta esposa comuIll. A poliandria deste tipo tem como resultado manter agrupada a propriedade, reforçar a solidariedade dos grupos de co-irmãos e até, ao que parece, reduzir a zero o ciúme sexual. As narrativas etnográficas mostram, a queIll quer entendê-Ias, os resultados altamente morais de tais uniões. Mali este exemplo demonstra-nos também outra coisa. Por que razão apenas a IJC0pósitoda poliandria se põe o problema de saber se a palavra 'casamento' continua a ser adequada, quando se trata de defmir as outras uniões da esposa comum? A mesma questão não se põe quando se trata de poligamia, entre irmãs ou não (o facto de um homem se casar com diversas mulheres simultaneamente, e em particular com irmãs). A definição de Notes and Queries aplica-se perfeitamente a este caso: é exactamente da união de um homem e de uma mulher que se trata - nunca nesta definição se fala da união exclusiva e, portanto, de monogamia -, de tal modo que os filhos que a mulher tem são reconhecidos como ftlhos legítimos dos dois cônjuges. Se o problema se põe no caso da poliandria é porque, a menos que sejam organizadas sucessões suficientemente espaçadas e acompanhadas do reconhecimento explícito da paternidade biológico-social de cada um dos maridos (como parece ser o caso dos Toda), existe sempre uma ambiguidade no que respeita à paternidade verdadeira de cada um dos maridos, e é, pois, necessário admitir a existência de uma noção de paternidade colectiva, estranha às nossas mentalidades, ou a atribuição de cada criança a um pai social, com o apagamento voluntário dos outros pais possíveis, no interesse superior do grupo: o da permanecer unido. Não é tão facilmente que se anula a maternidade: a mulher é mãe sem qualquer contestação possível. Mas, em todos os casos - desaparecimento dos genitores em proveito de um pai social no interior do grupo de irmãos ou reinvindação da paternidade legítima tal como ela é demonstrada no casamento legal -, o que é importante é o controlo da fecundidade feminina, mediante a designação de um marido e de um pai para os filhos. Se o casamento é, estruturalmente, a união de um homem e de uma mulher (ou de pessoas investidas, uma de um papel masculino e outra de um papel feminino), a diferença biológica dos homens e das mulheres e a evidência da sua importância respectiva na reprodução dos grupos tem como consequência diferenças fundamentais na sua situação recíproca no interior da relação conjugal. Dado que a fecundidade das mulheres é uma coisa essencial à sobrevivência dos grupos, ela será controlada pondo a mulher sob tutela e confinando-a o mais rapidamente possível ao papel de mãe. Emile Benveniste, numa extraordinária análise do vocabulário indo-europeu sobre o parentesco [1969, em particular livro 11, capo IV], deu-nos um exemplo concludente. Ele demonstra que não existe propriamente um termo indo-europeu para dizer «casamento", termo que é aliás de criação recente. Já AristóteIes o dizia: "Falta um termo exacto para indicar a CASAMENTO 145 CASAMENTO 144 graças à proibição do incesto, de vínculos intermatrimoniais entre elas, permitindo edificar assim a construção, passando pelos laços artificiais do parentesco, de uma verdadeira sociedade humana» [Lévi-Strauss 1956, trad. i1. p. 168]. As componentes fundamentais de qualquer organização social são os homens e as mulheres que a constituem, e são as mulheres que fazem filhos. A aliança entre grupos, entre famflias consanguíneas, só pode fazer-se através da oferta da única riqueza, isto é, a capacidade de reprodução, ou seja, pela troca das mulheres. Cada grupo humano dá aos outros e recebe dos outros hipóteses de sobrevivência. Todas as unidades se encontram estreitamente dependentes umas das outras para a sua reprodução, através da troca de parceiros sexuais, existindo, pois, uma regra de fIliação que confere às crianças o seu lugar sem contestação possível. Mas não é suficiente. A fim de que a aliança entre os grupos tenha um sentido, é necessário que as relações entre os parceiros sejam o mais estáveis possível. Que significaria a relação de aliança concluída entre grupos através da união de dois indivíduos, se esta devesse ser rapidamente rompida? relação entre um homem e uma mulhere» [Po/(tica, 1253b, 10-11]. Para além disso, demonstra ainda que as expressões antigas que encontramos diferem segundo o sexo: termos verbais para o homem, nominais para a mulher. Os termos verbais utilizados para o homem têm como raiz verbal wedh que quer dizer 'conduzir uma mulher a casa'. Ao lado destes verbos encontram-se aqueles que indicam a função do pai da rapariga, sobre a raiz verbal «dar». Assim, pois, o esposo conduz para casa dele a jovem que o pai dela lhe deu: negócio entre homens com um objectivo preciso. Com efeito, não existe nenhum verbo que indique o facto de uma mulher I se casar. 1 Como diz Benveniste, «esta situação lexical negativa, a ausência de um verbo próprio, indica que a jovem Não realiza um acto, muda de condição» [1969, trad.~oit. se p. casa, 185],é ocasada. que também está expresso nos termos nominais que se encontram quer no indo-iraniano quer no latim. Assim, em latim, matrimonium significa literalmente «condição legal de mater», ou seja, de mãe, segundo o valor jurídico de todos os derivados em -monium. «Portanto, matrimonium define a condição à qual a jovem tem acesso: a de mater (familias). É isso que significa para ela o casamento, não um acto mas um destino; ela é dada e levada ... in matrimonium» [ibid., p. 186], isto é, para tornar-se mãe em casa de um homem que não é o seu pai. Não se deve julgar que isto é específico da ideologia indo-europeia. Evans-Pritchard [1948], ao analisar as cerimónias do casamento nuet, que duram muito tempo, dado que a realização definitiva do casamento não é a união carnal mas o nascimento da criança, demonstra que é apenas quando a esposa vem depor o seu bebé. no pátio do sogro (até aí ela viveu em casa dos pais dela) que é considerada mulher e que vai viver defmitivamente com o marido. Evans-Pritchard acrescenta que ela vai para casa do marido (e dos sogros), não enquanto esposa mas enquanto mãe cujos seios alimentaram uma criança da linhagem deles. Entre os Samo do Alto Volta, tal como no indo-europeu, os termos variam segundo designam o acto de tomar uma mulher ou de entrar numa casa como esposa. Uma esposa não se torna mulher, isto é, não está completamente realizada, senão quando nasce o primeiro fIlho; antes, é sempre uma rapariga, suru. Uma mulher estéril será considerada durante toda a sua vida uma rapariga e não uma mulher. Em contrapartida, toda a esposa'legítima já é mãe quando se junta ao seu marido, que é o pai social de uma criança de que ele nAo é o genitor [H~ritier 1978]. Torna-se, portanto, evidente que o casamento enquanto imagem,.possível da relação entre os sexos, mas imagem universalmente adoptadíl, tem por funçAo assegurar de maneira controlada a reprodução dos grupoa. Mas de que grupos se trata? «Como Tylor mostrou há quase um século, a.explicação última é a de que provavelmente a humanidade compreendeu muito cedo que, para se libertar de uma luta selvagem pela existência, era obri. gada a uma escolha muito simples: ou casar fora ou ser morto fora. A altenativa era escolher entre famílias biológicas vivendo ente si e destinadas a permanecer como unidades fechadas, perpetuando-se a si mesmas, submergidas pelos seus modos, ódios e ignorâncias, e a sistemática instauração, objecto tornar dependentes e complementares não já os grupos mas os pró\ prios A repartição sexual tarefas, corolário neste sentido da exogamia, por indivíduos. Na de relação homem/mulher surgem outras prestaçõestem de serviços para além do simples comércio sexual. Homens e mulheres são, deste duradouras baseadas num coiltrato de manutenção mútuo que só falta Iciações modo, levados por por uma incapacidades a diar li sua assolegaser sancionado instituição attificialmente jurídica e ritualestabelecidas que estabeleça lidade. Temos assim o casamento, t:nlve mestra de qualquer organiza~ãosocial, na medida em que articula entre si elementos tão fundamentais comb a necessidade de exogamia para construir. Uma sociedade viável, a proibição do incesto, a repartição sexual das tarefàs. Compreender-se-á, assim, que o casamento não possa ser, nem seja nurlca, totalmente deixado ao acaso e que, pelo contrário, a escolha do cônjuge' seja objecto de regras precisas, que formam o âmago de qualquer estudo sobre o parentesco. [F. H.). Benveniste, E. des insrirurions indo~kropéennes, I. Economie, paremé, soeiéré, Minuil, Paris (lrad. il. Einaudi, Torino 1.976). Evans·Pritehard, E. E. 1948 Nuer mamage ceremonies, in .Arrleu», XVIII, pp. 29-40. 1951 Kinship and Marriage among rhelVuer, Clarendon Press, Oxford. Gough, K. 1959 The Nayars and rhe definirion of 1Ifamage, in .Journal of lhe Rllyal Anthropological Instilule», LXXXIX, pp. 23-34. Héritier, F. 1969 1978 Le vocabulaire Fécondiré e/ s/érili/é. La traducrion de ces norions dans le champ idéologique au srade in E. Sullernl (org), l,e FIlir [émi1lill, Fuyard, Paris, pp. 387-96. 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Se, por um lado, é verdade que não existem sociedades sem tal instituição (cf. instilUiç.w), por outro, verifica-se simultaneamente uma grande dificuldade em dar uma defmição que ultrapasse a descrição do casamento. Quer a união de dois parceiros quer a simples legalização dos filhos não parecem, de facto, determinantes. O amor ou o prazer não representam o motivo dominante da união a não ser a nível individual. De resto, a própria identidade dos cônjuges está longe de ser unív0C3; estudos etnográficos most,am casos de mulheres com funções de «marido., enquanto do ponto de vista dos filhos m~itas vezes a paternidade em algumas populações (cf. população) é mais um facto social do que biológico. O próprio estatuto de mulher não é tanto determinado pela relação sexual com o cônjuge como pela sua possibilidade de tornar-se mãe: é a própria palavra matrimónio (função de mater) a revelá-Io. Portanto, parece que na raiz esteja o controlo da fecundidade feminina mais do que a estabilidade da relação e a legalização dos filhos; problema não individual, mas de grupo que tende a individualizar as regras (cf. norma) para a própria continuidade medwue a inserção da fecundidade natural num sistema de controlo (cf. controlo social). Neste âmbito, guerra ou troca constituíram a escolha perante a qual se encontrou a fam{lía alargada, que se traduziu em endogamialexogamia. Daí todas as regras de parentesco (cf. incesto) concebidas para tornar mais certa e estável a relação matrimonial em todas as suas manifestações (cf. nascimento, morte, luto, jogo). 1. As relações entre os sexos e o problema da dominação masculina Durante muito. tempo as desigualdades sociais que se verificam em múl· tiplas sociedades entre o estatuto dos homens e o das mulheres foram objecto de reflexões e de críticas por parte de minorias. Estas minorias, que nas sociedades europeias pertenciam ou às classes médias ou a uma vanguarda do movimento operário, oscilaram entre duas interpretações opostas sobre o facto da dominação masculina. Para uns - e neles se reconhece a posição passada e ainda actual de certas correntes feministas - a dominação dos homens na vida social era considerada como a mais importante das formas de opressão e, por consequência, devia ser prioritariamente combatida. Para outros a dominação masculina surgia, ao contrário, como a forma menos importante de opressão social que teria a sua solução após se terem ganho outras lutas contra a exploração de classe, o imperialismo e o racismo. Actualmente nas nossas sociedades parece ter-se operado uma grande mudança. Por um lado, o problema da. luta contra as desigualdades entre os sexos é posto publicamente e, retomado por vastas organizações de massas e não por grupúsculos, é já objecto da criação de aparelhos burocráticos para resolvê-Io, sendo exemplo disso em França o ex-Ministério da Condição Feminina. Por outro lado, parece que se foi impondo pouco a pouco a ideia de que é necessário distinguir cuidadosamente os diferentes tipos de opressão e de exploração que existem nas nossas sociedades. Sem negar que a dominação masculina esteja ligada às relações de classe e às formas de opressão que estas comportam, torna-se cada vez mais evidente que é necessário distinguir claramente a natureza, a antiguidade, a origem e o modo de evolução específico das formas de dominação entre classes, entre nações, entre raças, entre sexos, a fim de compreender as suas articulações e efeitos reais no funcionamento da nossa própria sociedade. Torna-se também evidente que a desigualdade entre os sexos não é unicamente produto da sociedade capitalista, e que esta contradiçAo existe noutras sociedades e é talvez muito mais antiga que as sociedades de classe. Para analisá-Iaé, pois, necessário recorrer aos dados comparados da antropologia e da história. Sobre a história diremos bem pouco, deixando a outros a tarefa de o fazerem. Digamos apenas que existe também uma maneira HOMEM/MULHER 148 antropol6gica de ler a hist6ria, da qual daremos rapidamente um exemplo. Na Grécia antiga, e em particular na Atenas clássica, possuir a terra da Cidade (polis), sacrificar aos deuses, defender com as armas na mão o solo pátrio, exercer a magistratura e os outros cargos são acima de tudo privilégios masculinos. Para um grego, ser plenamente homem significa, em primeiro lugar, ser homem e não mulher, ser livre e não escravo nem meteco. A mulher grega, livre, está vinculada pelos laços do casamento à familia do seu senhor e esposo, de quem ela dirige em parte a economia doméstica. senhor dispõe a seu heI-prazer das suas escravas femininas em matéria sexual. Arist6teles define aliás claramente estas relações de sujeição quando escreve na Po/(tica: ••Os elementos primitivos e indecomponíveis da família são o senhor e o escravo, o marido e a mulher, o pai e os fIlhos» [1253b, 6-7], e acrescenta: ••Hesíodo teve razão ao dizer no seu poema: "Na sua essência a casa é a mulher e o boi que lavra", porque para os pobres o boi substitui o escravo» [ibid., 1252b, 10-12]. Adivinha-se aqui a relação entre estrutura da família e estrutura do modo de produção, bem como os fundamentos de uma dupla sujeição da mulher, por um lado na cidade, por outro, na fami1ia. É evidente que a sociedade grega era uma sociedade de classes e ainda por cima de tipo patrilinear como a nossa. Mas o mesmo não se pode dizer do resto da Europa ãiítiga e devemos lembrar-nos do espanto de Tácito quando, enviado em missão junto dos Britânios e dos Germanos, descobriu que as mulheres participavam no conselho dos guerreiros. Igualmente espantados ficarão, dezasseis séculos J;J13Ís tarde, os Ingleses e os Franceses ao penetrarem nas florestas americanas e ao descobrirem que entre os Iroqueses e os Hurões eram as mulheres que nomeavatn os Estados Unidos referida por Irene Lezine. A um grupo de estudantes ame· ricanos foram a~resentados bebés dos dois sexos uma vez vestidos de raparigas e outra de rapazes. Foi pedido aos estudantes que comentasse~ o com· portamento dos bebés. Ora quando um deles chorava, os comentárIos eram do seguinte estilo: se o bebé estava vestido de rapaz, as lágrimas eram um sinal da sua fúria, a prova de como um rapaz age sobre o mundo; se. o bebé estava vestido de rapariga, as lágrimas eram sinal de que alguma COisa ° não estava bem, que ela choramingava, etc. Fácil seria percorrer os co~portamentos simbólicos que todos os dias atestam a do~nação mascuh~a e contribuem para a sua divulgação. Mas que se passa, hOJe,nas outras socIedades? 3. de seiscentas línguas ou dialectos que devem ser falados cada um, n~ mínimo, por dois grupos. Para a África Negra, propõe-se o número aproxImado de duas mil línguas ou diall:ctos. Ora os antrop610gos estudaram até agora cerca de setecentas ou oitocentas sociedades, menos de um décimo do número global que propomos. :Os dados sobre oitocentas e noventa destas sociedades estão hoje organizados num vasto ficheiro, os Human Area Files, no qual se encontram, para cada população, as informações sobre as relações homem-mulher, a divisão do trabalho, as relações de parentesco, os mitos. Mas existem menos de einquenta monografias sérias que tenham ° problema que inevitavelmente se põe é o de saber se a subordi\'lação das mulheres aos homens existe actualmente em todas as sociedades: e se sempre existiu. exemplo dos Germanos e dos Iroqueses permitiria duvidar disso. Vamos responder a esta questão de um ponto de vista antropol6gico e a partir de materiais e de discussões antropol6gicas. ° especificamente por objecto a an~ise das rel~ções ho~em-mul.her. É, ~?is, a partir desta informação que se vão orgamzando hOJe em dia as analises e os debates dos antrop610gos. As três dimensões da dominaçdo masculina e do sexismo Em primeiro lugar, o que é que se entende por subordinação feniihina? Trata·se de uma realidade social de três dimensões: econ6mica, política, simb6lica. No plano econ6mico, basta olhar' à nossa volta para verificarmo~ que na nossa sociedade as mulheres não têm acesso às mesmas profissões que os homens ou nunca vão tão longe quanto os homens na mesma prdfissão. No plano político, as mulheres que em França foram um pouco rriais de metade da nação constituem menos de 10 por cento dos representantes do país na Assembleia Nacional. Finalmente, no plano simbólico, todos os dias os mas! media opõem as imagens contrastantes do homem e da mulher, do homem-sujeito e da mulher-objecto, tal como desde a mais tenra idade se aprendem estere6tipos que imediatamente estruturam a percepção da reali.dade social. Lembramos, a este prop6sito, uma experiência realizada nos Uma visão ••mundial» do problema Antes de mais, quantas sociedades existem hoje à superfície do globo? Ninguém conhece o número aproximado. Por sociedade entende-se um grupo local que reconhece em si mesmo. uma identidade, uma hist6ria, uma cul· tura específica distintas, ou seja, opostas às dos seus vizinhos. Propõe-se um número, mais de dez mil, a partir de informações obtidas sobre o número de línguas faladas em África, na Ásia, etc. Pensa-se, por exemplo, que na Nova Guiné, onde vivem três milhões de habitantes, foram recenseadas cerca sachem. 2. HOMEM/MULlIliR 149 4. J. Etnocentrismo e androcentHsmo Esta pobreza de informação é a primeira limitação a pesa~ em tod~s os debates. A segunda é o facto ,de estas informações terem SIdo recol~ldas por Ocidentais, e a maior parte das vezes por homens. Elas são, pOiS, parcialmente etnocêntricas e na sua maioria androcêntricas. Todavia, é entre os antropólogos, e pelo facto de esta profissão comportar desde o início muitas mulheres, que encontramos os primeiros grandes estudos feitos por mulheres sobre as relações homem-mulher. Para além de alguns nomes célebres: Margaret Mead, ~uth Benedict, citaremos outros - Phillis Kaberry, Eleanor Leacock, etc. - menos conhecidas do grande público. HOMEM/MULHER ISO Os antropólogos homens trabalham como homens e muitas vezes anotam nos seus blocos o que poderia ser encarado como uma visão masculina da sociedade que estudaram. Mas as pr6prias antrop610gas são muitas vezes ., tratadas como homens e também elas participam de uma visão androcên~jtrica da sociedade que estão a estudar. ~ Ilssimque Eleanor Leacock, fazendo 1938), construiu duas montagens que anresentavam a mesma sociedade desrita por um mesmo autor, quer como liominada pelas mulheres, quer como ~ma colagem citaçõesPor do outro livro lado,! de ~uth Landes, que Thea Ojibwa Woman dominada pelosdehomens. demonstrou autora oscilava inconscientemente entre um ponto de vlsta masculino e um ponto de vista feminino, e que, no que dizia respeito 'ao livro de Ruth Landes, a tarefa de estabelecer a relação real existente entl:e os índios do Canadá estava ainda em {arte por fazer. , no entanto, o etnocentrismo a foi1te mais importante de deformações, etnocentrismo que se resume no essenc,al à impossibilidade de um ocidental compr~ender o funcionamento de sociedades sem classes, isto é, as formas de igp'a1dadesocial desconhecidas entre n6s. Certas antropólogas, como Eleanor Leacock, June Nash, etc., esforçam-se por fazer compreender aos seus colegas e ao público o que pode s~l' a situação das mulheres em certas sociedade~: Em geral, referem-se a dois: tipos de sociedades: sociedades de caçadores-recolectores (Bosquímanos da África do Sul, Pigmeus do Zaire, índios Montagnai do Canadá) e socieda4es hortícolas de organização matrilinear (Hurões, Iroqueses e outros grllPos matrilineares da costa leste e sudeste da América do Norte, ou aquilQ a que se costuma chamar a cintura matriline~r da África, zona que corta transversalmente a África Central). 5. A autonomia das mulheres índias montagnai Eleanor Leacock, que viveu entre os Montagnai Naskapi do Canadá, verificou a enorme autonomia de que gozavam aind3 em 1953 as mulheres daquela sociedade. Ora, por sorte, ela pôde comparar as suas observações com o que tinha visto e anotado; em 1633, um jesuíta francês, Paul Le Jeune, que tinha passado um Inverno com os Montagnai a fim de os converter e, posteriormente, dado conta da sua missão à ordem dos Jesuítas, em Paris. Le ]eune tinha ficado surpreendido com o facto de as crianças não parecerem obedecer aos pais, as mulheres aos maridos e os grupof; a um chefe. Segundo ele, estes índios seriam mais facilmente convertidos ao cristianismo e pacificados se fosse possível impor-Ihes a atitude submissa das mulheres francesas para com os maridos ou dos súbditos do reino para com o rei de França. Leacock procurou as razões desta autonomia tão grande das mulheres montagnai e verificou em primeiro lugar que, no âmbito da divisão do trabalho, cada sexo assume as suas tarefas e toma as suas decisões sem que o outro o controle. Por outro lado, mais profundamente, nesta economia de caça-colheita, não existia uma verdadeira separação entre economia doméstka e qualquer economia social. O trabalho das mulheres não surgia como HOMEM/MULHER 1S1 uma actividade privada, de segundo plano, doméstica. As mulheres tomavam parte activa nas discussões colectivas para decidir deslocar o acampamento, fazer a guerra, combinar um casamento, etc.; divorciavam-se facilmente, levando consigo ou não os fIlhos. Estes não estavam unicamente a cargo da mãe: as outras mulheres do grupo ocupavam-se deles e os homens também, se bem que menos frequentemente. A vida social não estava, por conseguinte, centrada na famaia nuclear em que a mulher se consagra a tarefas domésticas e à criação exclusiva dos fIlhos. De modo geral, reinava naqqela sociedade uma vontade de igualdade entre os indivíduos, e cada um, I ~omem ou mulher, que tentasse impor aos outros a sua vontade era submetido a zombaria pública, à crítica, muitas vezes obscena, e ridicularizado. Não existia um chefe, mas, nas relações com outros grupos, um homel1l servia de porta-voz - o melhor orador, o homem mais calmo. Se bem que, segundo a minha opinião, este quadro não prove a ausência de dominação masculina, sugere no entanto uma autonomia feminina bastante superior à que podemos verificar na nossa sociedade. 6. As sociedades «matrilineares» As sociedades matrilineares hortícolas da América do Norte - como por exemplo, os Iroqueses, vizinhos e inimigos dos Montagnai Naskapi - constituem o segundo exemplo privilegiado por Eleanor Leacock (e isto continuando a tradição de Morgan e de Engels). Foi este exemplo que alimentou o mito de um matriarcado, de um poder dominante das mulheres na sociedade. Recorde-se antes de mais a grande diferença que existe entre sociedades patrilineares e sociedades matrilineares. Nas primeiras a fl1iaçãoé contada através dos homens e passa de pai para fl1ho; .a mulher está submetida ao marido que tem autoridade sobre os seus fl1hos. Nas segundas a fl1iação passa de mãe para fIlha; é nisto que reside a prova de um matriarcado, da dominação do poder feminino? Os antropólogos há muito que debateram este problema, e todos, ou quase todos, responderam negativamente. Parece, com efeito, que nas sociedades matrilineares, a mulher está igualmente subordinada ao homem, mas não o está ao seu marido ou ao seu pai, mas sim ao seu irmão e ao irmão da mãe, que têm autoridade sobre ela e sobre os fl1hos dela. Estes não pertencem ao seu pai, mas à linhagem da mãe e encontram-se sob a autoridade dos tios maternos. O que parece inegável é que a subordinação das mulheres aos homens é muito diferente nas sociedades matrilineares e menos dura em geral do que nas sociedades patrilineares. Numa sociedade matrilinear uma mulher está submetida a duas autoridades: à do irmão e à do irmão da mãe por um lado, à da mãe e à das irmãs da mãe por outro, enquanto numa sociedade patrilinear a mulher está submetida primeiramente à autoridade do pai, e posteriormente à do marido. Para voltar ao exemplo dos Iroqueses e dos Hurões, vejamos o que rela· taram os observadores do século XVI: a sua subsistência assentava na agricultura e na caça, na pesca e nas colheitas. As mulheres ocupavam-se das HOMEM/MULHER 152 colheitas e da agricultura, os homens da caça, da pesca e da guerra. A sociedade estava dividida em clãs matrilineares e os clãs em linhagens que viviam em compridas casas, cada uma das quais sob a autoridade das mulheres idosas da linhagem. As mulheres participavam no conselho do seu clã e elegiam um chefe que era um homem, um dos seus irmãos. Desde o conselho de clã até ao conselho da tribo, presidido pelo grande sachem, as mulheres estavam presentes, pelo menos as matronas, em todos os níveis do poder. Era através das mulheres que se transmitiam os direitos sobre as terras de cultura, e estas terras eram cultivadas colectivamente pelas mulheres sob a autoridade das matronas. Estas controlavam a redistribuição dos produtos agrícolas que estavam armazenados nas reservas situadas em cada extremidade das grandes casas; as mulheres podiam mesmo impedir o início de uma guerra ou a sua continuação recusando-se a fornecer aos guerreiros os víveres necessários. As jovens escolhiam os seus amantes e uma vez casadas tinham a possibilidade de se divorciar. Este é, portanto, um outro exemplo de sociedade onde as mulheres gozavam de um prestígio e de um poder público inimagináveis nas nossas sociedades ocidentais. É importante lembrar que esta sociedade se transformou rápida e profundamente com o impacto da colonização europeia. No século XVI os Iroqueses sujeitaram-se cada vez mais ao interesse dos Brancos pela caça ao castor. Depois, quando a sua caça se esgotou, serviram de intermediários entre a feitoria dos Brancos e as tribos do interior. Aliaram-se aos Ingleses e lutaram contra os Hurões e os Montagnai, que se tinham aliado aos Franceses. Pouco a pouco acumularam novas formas de riqueza, ligadas ao comér~ cio de peles, riqueza que permanecia nas mãos dos homens e que era acompanhada de um desenvolvimento do individualismo económico e político. A guerra, para servir os Ingleses, reforçou a autoridade dos homens em proporções desconhecidas até então. Progressivamente, as regras de reciprocidade e de partilha desgastaram-se, a organização colectiva em compridas casas desapareceu e já não existia quando Morgan, em 1851, consagrou um estudo aos Iroqueses. Este exemplo mostra como o quadro histórico das relações homem-mulher se tornou cada vez mais confuso desde que, no século XVI, começou a expansão colonial dos povos europeus e dos seus sistemas económicos e sociais. 7. Colonialismo, economia mercantil, trabalho assalariado e estatuto respectivo dos sexos No seu conjunto, as sociedades matrilineares decompuseram-se ,muito mais rapidamente do que as sociedades patrilineares, e as organizaçõés fluidas, igualitárias, sem poder central resistiram menos ao choque do que ~ciedades hierarquizadas. Em Africa, por exemplo, a economia de plantàç~o e, O desenvol\timento das minas fIzeram apelo prioritariamente à mão-de~obra masculina e ao trabalho assalariado. Pouco a pouco, a economia tradicional desapareceu, ou pelo menos centrou-se na família nuclear, que por sua vez assentava no trabalho dos homens e no seu salário. Uma nova depen- HOMEM/MULHER 153 dência das mulheres em relação aos homens e dos ftlhos em relação à mãe ocorreu no contexto da destruição dos laços económicos recíprocos no interior das linhagens ou entre os clãs, bem como no âmbito da perda das posições públicas ou de prestígio das mulheres na sociedade. É aliás a própria Eleanor Leacock quem demonstra que do século XVI ao século XVII os Montagnai passaram de uma estrutura matrilocal para uma estrutura patrilocal, sob o efeito do desenvolvimento da economia de caça com armadilha e do comércio de peles que estavam quase exclusivamente nas mãos dos homens. No século XVII, estes índios viviam em grupos fluidos, praticando sobretudo a caça colectiva ao caribu, caça na qual coopera:' vam homens e mulheres. As relações de parentesco eram indiferenciadas, r de tipo cognático, no entanto, com uma inflexão matrilocal. Os grupos eram unidades exogâmicas. Actualmente, são endógamos e patrilocais. Os homens possuem a título individual direitos sobre as proporções de território comum onde colocam as suas armadilhas e transmitem estes direitos aos seus ftIhos. As famílias vivem cada vez menos da caça e da colheita de subsistência, mas dependem das trocas com os e.rttrepostos comerciais dos Brancos, onde compram as espingardas, as munições, as armadilhas, o toucinho, a farinha para o Inverno, deixando nessa estação do ano os ftIhos quer na escola quer na missão que existe ao lado da feitoria. O quadro histórico é, pois, confuso. Cada dia que passa é mais difícil reconstituir a situação das relações entre homens e mulheres no período pré-colonial. Todavia, a evolução no decurso dos últimos séculos e a confusão que esta produz parece sugerir - segundo Leacock - uma lei da e\tolução cujo efeito teria começado a operar milénios antes do nascimento ~o capitalismo. 8. Uma visão global da evolução histórica das relações entre· os sexos Para Eleanor Leacock, a produção para a troca, a ruptura das solidariedades locais, os coní'litos de interesses entre os grupos ou entre as sociedades são factores que, muito antes do capitalismo, foram a pouco e pouco reforçando a posição social dos homens. Partindo das análises de Judith Brown, ela dá como prova a contrario o facto de entre os Bembaj.·~ociedade matrilinear de Africa, as mulheres terem um 'estatuto ínfImo comparado com o das mulheres iroquesas. Mas os Be'tnba estão organizados hierarquicamente: no vértice uma aristocracia domina 'as pessoas comuns, e as unidades familiares locais produzem riquezas qué ;se concentram nas mãos dessa aristocracia. As dádivas de alimentos, longe de aumentarem o prestígio das mulheres, aumentam o dos seus maridos, !,e uma parte do produto é redistribuído segundo relações de classe e não segundo relações entre grupos de parentesco ou entre sexos. Leacock prop/'ie, pois, uma visão de conjunto da evolução histórica. Tomando os índios Naskapi como modelo dos caçadores.-r~colectores primitivos, imagina lIma evolução que levaria .sociedades igualitárias, onde homens e mulheres partilhassem os mesmos estatutos de autoridade pública e dispusessem da sua autonomia, a múltiplas formas de sociedades de classe em que, poucó a pouco, através da decomposição dos HOMEM/MULHER 154 laços comunitários, emergem hierarquias que favorecem o poder masculino. Uma dessas linhas de evolução é a nossa, que reforça sem cessar a apropriação privada da terra e dos meios de produção; é neste contexto que se impõe e se consolida a família monogâmica. Leacock retoma, pois, por sua vez, a tese de Engels que liga a degradação dos estatutos da mulher ao aparecimento das desigualdades de classe, e que une a dominação da famaia monogâmica à dominação da propriedade privada. 9. C' Elogios e reservas Estas análises e esta conclusão geral suscitam críticas, mas também elogios, porque estamos perante um dos ellforços mais conseguidos e mais convincentes para evidenciar a imensa vaqação dos factos de dominação masculina. Eleanor Leacock insiste em' exemplos, que apresentam uma quase-igllaldade entre os sexos, descoJlhecida nas nossas sociedades, e que contrastam violentamente com os casos extremos de subordinação feminina, de quase-escravatura, que conhecemos; pmlheres encerradas no harém, entre os Muçulmanos, mulheres encarceradl\s com os pés enfaixados, incapazes de trabalhar, junto dos mandarins da China. A sua análise força-nos igualmente a imaginar o que representa a autonomia feminina, individual e colectiva, e a irmos procurar em toda a parte onde seja possível outras provas, outros índices desta autonomia; ela pede que nos não precipitemos sobre casos deslumbrantes de dominação masculina sem nos interrogarmos sobre a realidade do que realmente se passa. As mulheres podem ter um poder que não é facilmente visível a um ocidental habituado ao androcentrismo. Todavia, algumas críticas se impõem, porque, apesar da pobreza dos nossos conhecimentos hist6ricos e antropol6gicos, da pequenez da amostra observada, do etnocentrismo e do androcentrismo das informações recolhidas, de momento parece razoável supor que até 7~tão. os homens dominaram, em última ap.álise, o poder. Esta f6rmulasignifica que não existe apenas um poder na sociedade, mas vários; que as mulheres o têm, mas que em última instância são os homens que se encontram no vértice da hierarquia dos poderes. 10. A história «imaginada», a escolha do ponto de partida Na realidade, para estabelecer o ponto de partida imaginário, Eleanor Leacock, tal como Richard Lee e outros, parte do exemplo dos caçadores naskapi, bosquímanos ou pigmeus. Todos deixam cuidadosamente de lado o caso dos aborígenes australianos onde parece demonstrado que os homens dominavam as mulheres, possuíam o essencial dos ritos religiosos de fertilidade das plantas e dos animais e das pr6prias mulheres, e onde os direitos sobre o territ6rio se transmitiam de geração em geração através dos homens. Mesmo se o modelo de Radcliffe-Brown de grupos patrilineares e matrilocais fundados na exploração da natureza é hoje fortemente contestado, m , ' HOMEM/MULHER a inflexão patrilinear e a dominação masculina 1000 são realidades coniest81' das pelos antropólogos. Para além disso, se deixarmos a Austrália e nos vol· tarmos para outras sociedades de caçadores, descobrimos casos incontestados de sociedades patrilineares e patrilocais, como os Ona da Terra do Fogo e os seus vizinhos, os Alakaluf, actualmente desaparecidos. Ninguém comparou até esse momento, sistematicamente, no que respeita às relações homem-mulher, a situação que existia ou existe ainda na trintena de sociedades de caçadores-recolectores que conseguiu sobreviver. Nada permite afIrmar que estas sociedades, umas manifestamente patrilineares, outras manifestamente não-lineares, outras, por fim, como os Bushongo, apresentando traços de sistemas complexos crow-omaha que se encontram nos agricultores, pertencem a uma mesmo tipo e que correspondem a um mesmo modo de produção «cinegético», como afirma Meillassoux. Também nada permite negar a existência nessas sociedades de verdadeiros laços de parentesco· e afirmar que o parentesco seja a superstrutura de um modo de produção doméstico que se desencadeia com os desenvolvimentos da agricultura e da criação de gado e que se manteve até aos nossos dias. Imaginar - como fez Marshall Sahlins e, depois dele, Meillassoux - a existêricia de um modo de produção «doméstico» que sobrevivesse nas profundezas das sociedades agrícolas e de criação de gado, quer elas fossem ou não de classes, é uma hiPótese que não resiste à análise. Este ponto é de importância te6rica fundamental e merece que nele nos detenhamos. Se é verdade - o que é contestado por poucos antrop610gos - que a composição dos grupos de caçadores-recolectores é a de indivíduos ligados por relações de parentesco, relações que servem de quadro à organização da caça e da colheita, à redistribuição dos produtos, à reciprocidade de acesso aos recursos, neste caso, quando se verifIca entre os caçadores-recolectores a existência de vários sistemas de parentesco, de 16gicas diferentes, unili· neares ou cognáticas, deve supor-se a existência de vários sistemas econ6micos e sociais nas ditas sociedades, a menos que se possa demonstrar que estes sistemas pertencem a um mesmo tipo. Será então necessário explicar esta diferença e partir dela para imaginar diversas linhas de evolução da humanidade com o aparecimento da agricultura e da criação de gado. Segundo ponto importantíssimo: concentrando a atenção sobre a família, como quadro das actividades econ6micas, esquecem-se as relações de parentesco que produzem a estrutura dessa família. Ora as relações de parentesco podem funcionar directamente como relações de produção se através delas a sociedade controlar os recursos e organizar a exploração da natureza e a redistribuição dos produtos do trabalho. Mas esta situação não é geral. Muitas vezes, e sobretudo na sociedade de classes, as relações de produção existem, pelo menos em parte, fora e para além das relações de parentesco. Mas ao mesmo tempo a família, se ela for a unidade de produção e de consumo directo, está submetida à sua estrutura e às relações de parentesco e às relações de produção. É, pois, impossível substantivar, remcar como uma espécie social homogénea e invariável, um modo de produção doméstico. Uma das consequências modernas deste raciocínio é que, nos países socialistas, apesar da transformação das relações de produção, a subordina- • HOMEM/MULHER 156 çllo da mulher pode manter-se por bastante .temp? na medida em. que continua a existir paralelamente a uma economia social uma econorma doméstica largamente a cargo das mulheres. Não é o modo de produção doméstico que continua, é a divisão da economia e da sociedade em várias esferas, das quais a mais estreita está reservada às mulheres, que a ela estão confinadas. lI. Um facto universal cujas formas foram e são extremamente variáveis Vamos, pois, propor que se aceite provisoriamente a hip6tese de que, em todas as sociedades, mesmo as mais igualitárias, uma hierarquia de poderes exista, pertencendo estes últimos aos homens. Trata-se de uma generalização que em si mesma tem uma grande probabilidade. Neste caso, é preciso, também provisoriamente, dar uma explicação que dê conta de duas coisas em simultâneo: a suposta universalidade da dominação masctdina e a imensa variação verificada quanto ao conteúdo desta dominação, desde a quase-igualdade dos sexos entre os Montagnai e os Hurões, até à quase-escravatura nos haréns da Arábia Saudita. À partida, pode pensar-se que explicar tudo através de uma s6 causa é nã? e~plicar nada: várias cau~as se combinam hierarquicamente para prodUZir simultaneamente este efeito geral da dominação masculina e a variação das formas desta dominação. 12. As origens da dominação masculina Qual é então a explicação provis6ria que se propõe? Com efeito, ê. necessário partir, para imaginar as origens da desigualdade, do modo de VIdados caçadores-recolectores, uma vez que a humanidade viveu 99 por cento da sua evolução nesse quadro econ6mico e social. O homem selvageni transforma pouco a natureza, dependendo dos recursos vegetais e animais que a natureza selvagem reproduz espontaneamente. É possível imaginar que este modo de vida valorizavll socialmente a mobilidade individual e colectiva. 13. Reprodução da vida e divisão do trabalho 4 Ora, devido à sua função reprodutora, a mulher é menos m6vel db que o homem: está grávida, pare e amamenta as crianças durante muito ,tempo, porque antes da «invenção» da criação de gado e da agricultura, não' t!xi~t~a substituto para o leite materno. Desde então parece possível que untá diVIsão das tarefas se tenha imposto nas sociedades de caçadores: aos ~omens a caça aos grandes animais e a guerra, às mulheres a caça dos animais pequenos a colheita e a cozinha quotidiana. Parece também provável que um sist;ma de valores diferentes se tenha ligado a estas tarefas, valorizando mais as dos homens, na medida em que elas implicavam mais riscos de perda de vida ou maior gl6ria em tirá-Ia. Inversamente, a colheita é uma actividade 157 HOMEM/MULHER que os dois sexos podem exercer. Seria etnocêntrico e falso imaginar os caçadores primitivos como Nemrods modernos que se vangloriassem dos seus troféus de caça. Em toda a parte se verificou uma atitude de amizade e de respeito dos homens primitivos para com os animais caçados e que m~ta~ proporcionalmente às suas necessidades. Em toda a parte se encontra a Ide~a de um contrato, de uma associação amigável entre homens, plantas e ammais de tal modo que o homem se' sente ameaçado de penúria e de fome se m~tar sem precaução, se explorar Osrecursos sem cuidado. Os mitos co~tam infatigavelmente a hist6ria de qasamentos entre os homens e os ammais de contratos entre o senhor di>sanimais e o homem. São estas relações 'de «amizade respeitosa» que se encontram nos ritos ~as sdci~~ades agrícolas e pastoris quando estas se preocupam em reprodUZir a fertilidade dos seus campos e dos seus animais. Esta divisão do trabalho entre os sexos não é, portanto, o resultado directo de imposições naturais; é o efeito sintético combinado dos limites das forças produtivas, intelectuais e materiais, de que estas sociedades dispunha~ para explorar os recursos da natureza circundante, e da dispersão l: da rar~dade relativa destes recursos. Apes~ da diversidade das adaptações locaiS do homem, na floresta, no deserto, no litoral marítimo, há um resultado comum, ligado aos limites dos meio$ de acção do homem sobre a natureza, e este resultado é uma divisão do ltabalho que faz ocupar aos homens o primeiro lugar no processo de prodlÍção material. Certos .antrop610~os~nvocam os exemplos das sociedades onde as mulheres contrIbuem em,malS d,e 60 por cento para a subsistência do $rupo com os produtos das sulls colheitas. No entanto, isto é esquecer que:o que pesa mais na organizaçll,oecon6mica das sociedades não é a divisão do trabalho na subsistência, mas as formas sociais do controlo dos recursos ~ do produto, ou seja, as relações sociais de produção. Ora a precariedade n~~ativados recursos impunha formas de apropriação comum que concediam direitos iguais aos indivíduos membros do grupo. O problema reside, pois, em compreender como os homens podem representar estes direitos comuns e!Ji maior medida do que astnulheres. 14. Poderes dos homens, poderk das mulheres O problema está em compreender por que razão os homens que ocupam um lugar mais valorizado no processo material da vida dclminam as mulheres que ocupam um lugar eXOepcionalno processo de reprodução da vida. Aqui devemos voltar atrás e leIÍlbrar que, nas formas de pensamento simb6licas que legitimam a dominação masculina, o que é posto em primeiro plano é o controlo por parte dos homens das mulheres fecundas, da fecundidade feminina. Não é desprovido de interesse voltar ao exemplo dos Hurões e dos Iroqueses e interrogarmo-nos porque é que as mulheres que elegem os chefes e têm a maior autoridade social são matronas, isto é, mulheres idosas, que já atingiram a menopausa. Em todas as sociedades, as mulheres estéreis - seja porque já não podem ter fllhos, seja porque não os podem ter -, gozam de um estatuto especial, inferior ou superior ao comum das HOMEM/MULHER 158 mulheres que são fecundas. A maior parte das vezes, verifica-se que as mulheres que partilham de certa maneira o estatuto dos homens são aquelas que estão excluídas da função de reprodução. 15. O controlo das mulheres como produção da principal força produtiva: o pr6prio homem Os homens, que dominam o processo de produção material e que têm o monopólio dos conhecimentos complexos da caça e da utilização da violência armada, controlam as mulheres pão tanto enquanto produtoras, mas enquanto reprodutoras da vida que pçolonga o grupo. Pode perguntar-se se o facto de, durante milhares de anos, e no interior dos modos de subsistência e dos sistemas económicos (moqos de produção) mais diversos, o trabalho vivo, a força de trabalho directamente utilizável, ter prevalecido sobre o trabalho passado, a força de trabalhq acumulada, esse tal facto não estará na origem de dois factos sociais fundamentais: por um lado, as relações de parentesco, que em toda a parte são li forma social de reprodução da vida, funcionarem no todo ou em parte como relações de produção; por outro, as mulheres estarem, no âmbito dessas relações, subordinadas aos homens. É necessário, pois, interrogarmo-nos sobre realidades mais profundas, sobre o facto de o homem não viver apenas em sociedade, o que é banal e sem qualquer interesse, mas ser obrigado a produzir sociedade, a produzir-se como ser social. 16. 0.1 frmdaml'll/M da proibição do i/lcl.'s/o C"\'X'l\-S('nt'sl(' l'"nlo 1\ q\\('stA" dl\ l'l'\)ibiçAodo incesto, da exogamia c da nalurczu gcml Jus relaçôcs dc parcntcsco, porquc o problemn do incesto tem qualquer coisa a ver com o estatuto comparado do homem e da mulher. É possível imaginar que a humanidade primitiva tenha praticado o incesto em vez de o proibir: cada grupo teria então contado com as suas próprias forças para reproduzir a vida e sobreviver no seu território. O resultado teria sido o isolamento progressivo de cada grupo que se teria tornado sozinho a sociedade, e ao isolar-se teria acumulado todos os riscos do seu próprio desaparecimento e, com isso, do desaparecimento da sociedade. O tab'b do incesto estabelece uma proibição e obriga à aliança. Desde Lévi-Strauss que se aceita geralmente a ideia de que o contrário do incesto é a exogamia e a circulação de mulheres entre os grupos, se não entre os homens. Certos antropólogos insurgem-se contra a expressão «troca das mulheres» entre os homens porque denunciam uma visão etnocêntrica na qual se projectam as representações e a lógica da nossa sociedade mercantil e de lucro. Seja como for, e reconhecendo que Lévi-Strauss nunca fez a teoria das razões pelas quais os homens representariam o seu próprio grupo e por consequência os interesses da sociedade, pode admitir-se que em todas as sociedades existe uma 159 HOMEM/MULHER proibição do casamento entre certas mulheres e certos homens. Bem entendido, para os próprios intervenientes, esta proibição tem a sua origem em princípios morais ou fl1osóficos, de origem natural ou sobrenatural. Sem negar que princípios éticos, como o tabu do incesto, actuem realmente sobre a vontade dos indivíduos e dos grupos, pode procurar-se a origem para além das razões que os próprios primitivos nos apresentam nos seus mitos e na sua fl1osofia. Ora, o que é que se troca quando se «trocam» as mulheres? Trocam-se menos produtores do que reprodutores menos uma ajuda para sobreviver hoje do que um meio de existir ainda am~nhã. É certo que por vezes a mulher que se recebe pode trabalhar melhor do que a mulher que se cedeu, e a inversa também é possível, mas de qualquer modo uma e outra desempenharão tarefas idênticas, no quadro da divisão sexual do trabalho que reina na sua sociedade. De facto, o que um grupo dá a outro ao «dar-lhe» uma mulher é outra coisa: é a possibilidade de ter uma descendência, um futuro, sobre os quais ele cede parte ou a totalidade dos seus direitos. Cada grupo recebe, pois, dos outros uma parte das condições do seu futuro, mas os outros por sua vez devem-lhe o seu próprio futuro. Parece, portanto, que, para além da consciência social e das suas representações, o que funda a exogamia - e o tabu do incesto que é dela uma componente e uma condição subjectiva simultaneamente - é a impossibilidade de as sociedades se reproduzirem duradouramente em estado de isolamento, sem cooperação pernianente; é ao mesmo tempo a prioridade, que permanece ainda em muitas sociedades do . presente, do que VIve, sobre o passado, sobre as forças produtivas acumuladas anteriormente. ' Ao comparar as sociedades de caçadores-recolectores, parece que a própria natureza dos meios de intervenção sobre a natureza de que elas dispõem as obriga a dividir-se em grupos locais distintos e afastados uns dos outros que exploram a maior parte do tempo separadamente partes do território. Mas estas sociedades são obrigadas de forma premente a ultrapassar esta separação e a organizar formas variadas de cooperação. Qualquer que seja a forma dos «processosde trabalho», caça individual ou colectiva, colheita individual, etc., estas sociedades são obrigadas a garantir aos seus membros e aos grupos que as compõem um acesso recíproco à natureza e aos seus produtos, a partilhar, a redistribuir entre todos os recursos que cada indivíduo ou cada grupo póde obter no domínio comum. Deste modo, na sua essência e no seu fundamento Ultimo, a dependência recíproca dos indivíduos e dos grupos não é um facto de origem moral nem evidentemente de origem sobrenatural, é um facto social simultaneamente material e impessoal. E, no entanto, a reciprocidade e as obrigações assumem sempre a forma de obrigações e de relações pessoais. Se ligarmos a estas diversas análises, por um lado, a divisão das tarefas materiais entre os sexos e a valorização relativa dos trabalhos masculinos, por outro, a prioridade da vida e da força de trabalho viva sobre o passado e o trabalho acumulado e, finalmente, a impossibilidade geral em reproduzir-se no isolamento e no incesto, podemos formular a hipótese segundo a qual 160 HOMhJll/Jl'lULlIER 161 o tabu do incesto e a organização geral das relações de parentesco em volta desta proibição respondem a estas diversas obrigações de ordem material e impessoal, mas modificando-Ihes completamente o carácter. Porque, e isto é fundamental, a troca das mulheres e a cedência recíproca de direitos aos seus descendentes abrem um campo de obrigações pessoais entre os grupos e entre os indivíduos. Ora, estas obrigações pessoais são ao mesmo tempo obrigações morais, uma vez que nascem de actos colectivos e individuais de troca: impõem direitos e deveres individuais oucolectivos. E é através desta rede que se cumpre a necessidade material, impes~oalpara os grupos e os indivíduos, de cooperar para sobreviver, de partilhar recursos comuns obtidos, todavia, através de esforços particulares, e de garantir o acesso recíproco a estes recursos comuns. Vemos como é ~r~ciso compreender a importância das relações de parentesco nas sociedades primitivas. Elas funcionam ao mesmo tempo como os canais objectivos e as origens e motivações subjectivas da entreajuda, da partilha entre os grupos locais e entre eles, e também como condição de acesso recíproco dds grupos aos recursos comuns. Mas toda a gente sabe que, se as relações de parentesco são muitas vezes, nas sociedades primitivas ou nos estratos camponeses das sociedades de classe, condições sociais de produção e de entreajuda, 18. Múltiplos fundamentos Uma contradição mais antiga que a das próprias classes e que se tranforma com o seu aparecimento As contradições entre os sexos são seguramente mais antigas que as contradições entre as classes e não as originaram. As classes formaram-se a partir de hierarquias entre grupos sociais·que eram grupos de parentesco «totalmente equipados» de homens e de mulheres. Mas se as contradições entre os sexos . não originaram as contradições entre as classes desenvolveram-se conJuntamente, sem por essa razão se confundirem, mas favorecendo-se mutuamente. Na sociedade feudal, por exemplo, um plebeu ainda que livre ' de disp?r de si próprio não podia geralmente desposar, nem sequer tocar, uma anstocrata. E esta gozava de um estatuto social muito mais elevado que o de um plebeu e, a fortiori, qt\e o de uma mulher do povo. Pelo contrário, um nobre, enquanto tal, tinha direitos sobre as mulheres dos seus súbditos, direitos que vinham a somar-se aos que ele possuía sobre as mulheres da sua própria linhagem, cujo aasamento era um elemento decisivo da sua estratégia para conservar o podl:r e aumentar as suas riquezas. Witold Kula demonstrou, por exemplo, que os senhores polacos do século XVIII intervinham directamente no casamento dos seus componeses, obrigando-os a casar com mulheres dos seus 4qmínios, obrigando as viúvas ~m idade são tambéme uma barreira, dado que a acaba solidariedade, se se defmeacaba, e se qtodula em termos em graus de parentesco, onde o parentesco E esta solidariedade não é apenas material, é também política, religiosa, ideológica. Para além, começa não já o universo do dom e da partilha mútua, das garantias recíprocas, mas o universo da incursão, do roubo, 'da guerra, da expropriação. 17. HOMEM/MULHER .. d~ trabalhar a voltarem a casar o mai,s rapidamente possível para fazer funCIonarplenamente a exploração agrílllolaque implicava a cooperaçl1ddos dois sexos na produção. Cada vez mais a contradição entre os sexo!!'se transforma segundo a natureza das cont,radições entre as classes, e at~ entre as raças: basta lembrar o tratamento 4ue os plantadores brancos da América reservavam aos seus escravos negros, machos ou fêmeas. Eis-nos de volta ao nosso ponto de partida e às lutas actuais para abolir nas nossas sociedades as desigualdad~s sociais entre os sexos. O conhecimento das sociedades antigas ou diferentes das nossas está longe de ser suficiente para poder fornecer um quadro objectivo das múltiplas condições femininas que existiram ou que existem ainda e para reconstruir o essencial 'das causas do aparecimento da desigualdade etltre os sexos nas sociedades ~em classes da dominação masculina Procurámos mostrar que existem várias razões que, combinando-se entre si, determinam em múltiplas sociedades a dominação, em última' análise, masculina. Estas causas podem variar, e estas variações deveriam poder dar conta das variações imensas do estatuto da mulher na sociedade de hoje e de ontem. É uma investigação ainda em aberto; todavia, a hip6tese geral de Engels, retomada hoje por Eleanor Leacock e por correntes feministas não marxistas, parece conservar um valor global: a ideia de que novall capacidades de exploração da natureza trouxeram possibilidades de acuniulação diferencial de riqueza e com elas oposições de interesses entre os grupos, entre os indivíduos, que aboliram a pouco e pouco as estruturas sociais mais igualitárias onde a oposição entre uma esfera de interesses públicos e de interesses privados não existia ou não existia da mesma maneira. Em suma, a ideia de que os processos que provocaram a formação lenta ou rápida de hierarquias sociais estabilizadas, de classe e de poderes de Estado em geral, desvalorizaram o estatuto feminino. e. da sua permanência nas sociedadt~ de classes. No entanto, é claramente VIsível que as razões profundas nãq residem em qualquer conspitação dos h0':llens contra as mulheres, mas tafinão pode constituir uma boa razão para se Ignorarem as responsabilidades dos homens na conservação e usúfruto das vantagens de que gozam. Mais uma vez, é necessário encarar os sistemas ideol6gicos com que deparamos nas sociedades sem classes e de classes. 19. Violência, desvalorização e legitimaçoes ideológicas Em toda a parte se encontram representações que opõem o homem e a mulher como o seco e o húmido, o alto e o baixo o puro e o impuro " etc., como difierenças não apenas complementares mas hierárquicas. Assiste-se a uma espécie de lógica de desvalorização das tarefas femininas e de sobre- 1\ HOMEM/MULHER 162 HOMEM/MULHER valorização das actividades masculinas. Alguns antropólogos evidenciaram o carácter arbitrário, aparente, das legitimações da dominação masculina. Numa dada sociedade a tecelagem surge como apanágio das mulheres e inconveniente para os homens; numa outra é o contrário, e a tecelagem é então exclusivamente reservada aos homens, a cerâmica às mulheres. Mas o que é idêntico na lógica destas reprrsentações é o facto de tudo quanto o homem faz ser sempre sobrevalorizl1do em relação ao que a mulher faz. Trata-se de saber se este trabalho de dlscriminação simbólica não tem qualquer coisa a ver com a violência qu~ exercida sobre as mulheres e com a afirmação muitas vezes feita de que ~ar a vida não vale tanto como caçar, fazer a guerra, arriscar a vida e matar .. Há toda uma função das representações simbólicas que parece destinada ~.compensar os homens pelo facto de não serem eles a pôr no mundo novas vidas, uma vez que isso está reservado às mulheres. Podemos interrogar-nos se a análise de Freud - que atribuiu às mulheres o desejo de um pénis, que as imagina deste modo definidas, por natureza, através de uma falta, a falta do que os homens possuem, do que eles são, falta que nunca poderá ser satisfeita - não é no fundo mente de ter direito à palavra ou que consentisse muda todas as opressões económicas, políticas e ideológicas que ela suporta. É necessário, pois, avançar a idcia de que não é a sexualidade que age como um fantasma na sociedade, mas antes a sociedade que, como um fantasma, age na sexualidade, no corpo. As diferenças entre os corpos que nascem de sexo diferente são constantemente solicitadas a testemunhar relações sociais e realidades que nada têm a ver com a sexualidade. Não apenas a testemunhar qualquer coisa, mas te~temunhar em favor de qualquer coisa, ou seja, a legitimar. É p'ossível imaginar que as transformações actuais das nossas sociedades, as lutas contra as relações de opressão, de classe, de raça, de sexo, cessarão gradualmente de investir a sexualidade de tudo quanto ela está encarregada de dizer e de legitimar; porque a sexualidade não é o sexo, e pode pensar-se que virá um dia em que a diferença dos sexos não deverá mais alienar-se, tendo de testemunhar qualquer coisa além de si própria. homens que vivem esta falta, a falta da capacidade criadora da vida que Nesta análise, enfim, deixámos de lado um aspecto essencial, porque é falso e perigoso acreditar que em todas as sociedades onde reina a dominação masculina não existe ou não tenha existido a resistência feminina. Por toda a parte, o observador verifica formas individuais e colectivas de resistência que não são devidas à difusão da Declaração dos Direitos do Homem por parte dos países ocidentais. Recusa de cozinhar, recusa de fazer amor, divórcio, oposição .,....seja física, seja com o assassínio - à autoridade e à violência masculina são formas habituais de resistência que se podem observar no mundo. Mas não se trata de uma oposição estática, uma vez que a oposição feminina implica sempre formas variadas de repressão masculina. Todavia, o segundo aspecto essencial a evidenciar é que muitas vezes na sua oposição as mulheres não contrapõem um modelo próprio da sociedade. Obviamente, quando recusam cozinhar, fazer amor ou se divorciam, elas consideram que têm motivos e apresentam-nos, mas entre uma apresentação que sustenta uma oposição e uma apresentação que propõe uma mudança radical da organização social vai uma enorme distância. Parafraseando Marx, podemos dizer que na maior parte das sociedades as ideias do sexo dominante são as ideias dominantes, associadas e misturadas com as ideias da classe dominante. Actualmente, nas nossas sociedades, desenvolve-se uma luta para abolir simultaneamente as relações de dominação de classe e de sexo, sem esperar que a abolição das classes preceda a outra. t ':.1 163 I as essencialmente etnocêntrica, uma que da em Nova numerosas sãoque os mulheres têm. É assim que os vez Baruya Guiné sociedades reconhecem as mulheres outrora inventaram OS arcos que hoje em dia não têm o direito de utilizar; elas inventaram igualmente as flautas, meios de comunicação com os espíritos, flautas essas que actualmente lhes são proibidas ver ou tocar, sob pena de morte. Mas as mulheres não utilizavam o arco no bom sentido e matavam demasiada caça e demasiada gente. Os homens apoderaram-se então do arco, voltaram-no na boa direcção e desde então a guerra e a vida estão bem reguladas; mata-se como deve ser e o que deve ser. Nesta mitologia são expressas a ideia de uma criatividade superior das mulheres e a ideia de que a ordem social implica que sobre elas se exerça uma .violência, que as mulheres sejam subordinadas. Poder-se-ia obviamente imaginar que isto é o eco no pensamento de um estado ultrapassado de matriarcado, de poder das mulheres; mas o que diz o mito é que ontem o poder das mulheres tinha gerado a desordem e que hoje e amanhã a ordem social deve assentar na dominação de uma parte da sociedade por parte da outra, dominação que comporta a violência, física e simbólica. ! C}'f.J, .. ~q-· 20. A «linguagem» do corpo É nesta perspectiva, em nossa opinião, que se deveriam analisar as linguagens do corpo e a maneira como as sociedades vivem e sofrem os seus corpos. Não é por acaso que o sangue menstrual que as mulheres têm sem que o tenham desejado desempenha muitas vezes a função de dizer perante todos que as mulheres só têm o que merecem, isto é, são vítimas sem inorealiza-se totalmente o trabalho ideológico, porque bastaria a uma mulher ver o sangue escorrer entre as per.nas do paracorpo que ela deixasse definitiva\ cência. Em última análise, na suas linguagem e dos seus fantasmas, 21. 22. Dominação masculina e resistência feminina Para um futuro sem modelo Pode imaginar-se que a sociedade que surgirá lentamente desta luta não será a reprodução de nenhum modelo: nem das sociedades primitivas e igualitárias nem das sociedades onde as mulheres teriam tido mais poder do HOMEM/MULHER 164 que os homens. ~ para relações sociais sem referência no passado que nos orientamos. Isto projecta uma luz sobre os debates actuais e sobre o alcance das investigaçOesque os antropólogos devem prosseguir com os historiadores para reconstituir as razões e as formas objectivas das relaçOes entre as classes e entre os sexos, dado que o futuro não é nunca totalmente a reprodução do passado, e aquilo que encontramos no passado não terá nunca a capacidade de evitar ou de autorizar inteiramente o futuro. [M. G.J. o Se é verdade que as relações de parentesco podem funcionar directamente como relações de produção (cf. modo de produção), tomando possível o controlo dos recursos, a organização da exploração da nalUreza e a redistribuição (cf. produçdoldistribuição) dos produtos do trabalho, deve antes de mais dizer-se que esta não é uma situaçilo geral e que as relações de produçAo, sobretudo nas sociedades (cf. sociedade) de classes (cf. classes), apresentam-se e funcionam para além das ~ de parentesco. A famflia, quando é unidade de produçilo e de ccmsumodirecto, está submeuda a ambos os tipos de relação, até nos países socialistas nos quais a subordinaçAo das mulheres aos homens subsiste, porque a economia doméstica continua a estar a cargo das mulheres. Para além.destas observações existe um princípio «IIlIturaJ"(cf. masculino/feminino, nalUreza/cullUra), em que a fertilidade das mulheres (cf. sexualidade, nascimento), garantia da sobrevivência da espécie e do grupo, é um fenómeno central da relação homem/mulher, obtido ~través do mecanismo das -proibições» e das discriminações (cf. discriminaçdo): basta pensar na proibiçAo do incesto e no falso matriarcado das sociedades matrilineares. A subordinaçAo das mulheres existe assim a três níveis: económica (cf. economia, reciprocidade/redistribuição, troca), simbólica (cf. anthropos, símbolo), mas também polftica (cf. também ideologia,seroo/senhor, exclusda/integração), que assumem aspectos e formas do todo particulares nas sociedades consideradas «primitivas» (cf. caça/colecta, primitivo, selvagem/bárbarolcivilizado) que no entanto elaboraram for. mas de igualdade por nós desconhecidas. MULHER Dicionários e enciclopédias defmem alternadamente a mulher como fêmea do homem (Diderot, Tommaseo) ou, remontando à origem etimológica do termo, como senhora da casa (Larousse, Treccani). Ambas as defmiçOes,apesar de aparentemente diferentes - incidindo a primeira sobre o aspecto naturalista, a segunda sobre a função historicamente determinada do sexo feminino -, consideram a mulher como uma entidade destituída de características próprias, unicamente defrnível em relação a outrem. Na Encyclopaedia Britannica, que não propõe uma defmição precisa de mulher, a entrada women é seguida da especificação «education of», a de man de «evolution of»: o homem apresenta uma autonomia própria em evolução; a mulher é objecto de uma operação que remete para outros. Mesmo tendo em conta o facto de que, quando se fala de homem, se fala quer de homem quer de mulher, é todavia impensável, na nossa cultura, uma definição de homem como o macho da mulher, o que já nos diz alguma coisa sobre a possibilidade de existir uma reciprocidade entre os dois pólos. Esta oscilação entre definições aparentemente diversas parece, de facto, resumir o que a mulher tem sido considerada: fêmea do homem ou senhora da casa, ela resulta nalguma coisa para aquém ou para além do humano, de tal modo que a sua história existe ou enquanto história do homem que a engloba como objecto do seu desejo ou do seu poder, ou enquanto história da «casa»,como único objecto sobre o qual ela tem exercido a sua parte de poder e tem exprimido uma margem de desejo subjectivo. Mas a mulher, antes de ser a fêmea do homem ou a senhora da casa, é o ser humano fêmea, que existe para lá das funções que lhe são reconhecidas: a sua diferença natural em relação ao homem é tão autónoma como a diferença natural do homem em relação a ela. As definições que a consideram em termos parciais relacionando-a com outro são definições historicamente determinadas, na medida em que são ilações de uma história na qual a mulher teve um papel subalterno, relativo ao sujeito da sua subalternidade. A mulher nunca foi e nunca se considerou um sujeito histórico social, e é isto que torna difícil e quase impossível uma pesquisa antropológica que tente reconstituir as etapas da evolução da sua presença no mundo. Que história se poderá retraçar da fêmea do homem senão a do homem na qual a sua esteve sempre englobada? Que aspectos específicos individualizar nesta