Parentesco e gênero - Françoise Héritier - Incesto pgs 95-124

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Parentesco e gênero - Françoise Héritier - Incesto pgs 95-124
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PARENTESCO
"
ginais locais; é o que lhe confere um papel de primeiro plano no estudo de certos grupos sociais
colocados também em espaços, tempos e regiões bastante diversas entre si (cf. rempo/temporalidade, regido), onde muitas vezes festas, cerimoniais, lutos, vestuário, inimizades e formas de
c~laboraçAo \cf. fesr~, cerimonial, iniciaçdo, luto, puro/impuro, poder) encontram um código de
leitura própno no sistema de parentesco que regula por detrás de uma máscara a circulação
de bens e homens no interior de uma sociedade.
FAMíLIA
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I
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Todos sabem, ou julgam saber, o que é a família. Ela inscreve-se tão
fortemente na nossa práúca quotidiana que surge implicitamente a cada um
de nós como um facto natural e, por extensão, como um facto universal.
De resto, neste caso concreto, a crença popular no fundamento naturalmente
universal da família não remete para uma entidade abstracta susceptível de
tomar formas variáveis no tempo e no espaço, mas de maneira muito precisa para um modo de organização que nos é familiar enquanto membros
da civilização ocidental, e cujos traços mais significativos são a família conjugal baseada na união socialmente reconhecida de um homem e de uma
mulher, a monogamia, a residência virilocal, um certo reconhecimento da
filiação e da tranSmissão de nome atr8.vésdo homem, a autoridade niasculina.
Se actualmente é visível _ graças li curiosidade intelectual, à atrllcção do
exotismo e à implantaçãOdos meios tnodermos de conhecimento - llue existem algures usos diferentes dos nossOs, estes são considerados ou como marcas de um mundo selvagem ou como vestígios arcaicos e, de qualqúer modo,
como aberrações relaúvamente a uma norma. Se existe uma marca cultural
verdadeiramente universal, esta é sem dúvida a certeza etnocêntrica partilhada por todos os membros de um grupo humano de que as suas instituições são leis da natureza, consequentemente quase automáticas, e que de
certo modo não podem existir outras. A nossa civilização não pode escapar
com facilidade a esta regra, dado que cobre uma larga parte do mundo,
engloba milhões de indivíduos e que, levada pelo seu próprio peso, pela
força das armas, da religiãO e do comércio, soube impor as suas certezas
aos povos sobre os quais se estendeu a sua sombra.
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É preciso reconhecer que, no q\'le respeita à família, entendid~ antes de
mais como a união mais ou menos duradoura e socialmente ap~ovada de
um homem, de uma mulher e dos seus filhos [Lévi-Strauss 1956), a crença
de que se trata de um facto natural impõe-se tanto mais que esta unidade
social parecer ser, de facto, um fenómeno praticamente universal. Encontra-se tanto nos povos mais «desenvolvidos••como nos mais «primitivos»: assim
_ observa Lowie [1948) _, os grupos veda do Ceilão "ocupam muitas vezes
o mesmo abrigo cavado na rocha, mas cada família elementar utiliza estritamente uma parte do abrigo, como se estivesse separada das outras por uma
espécie de barreira visível»; essa é a unidade de base das famílias poli-
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gamas em que diversas unidades deste tipo partilham do mesmo cônjuge,
e das famílias alargadas em que tais células familiares coexistem, numa residência comum, ao longo de várias gerações.
Todavia, há exemplos de sociedades altamente elaboradas onde estas associações quase-permanentes de um homem e de uma mulher não existem.
~ o caso dos famosos Nayar da costa do Malabar na lndia. O estilo de vida
guerreira dos homens proibia-lhes fundar uma família. As mulheres - ainda
que casadas nominalmente - tinham os amantes que queriam, e os fIlhos
nascidos destas uniões temporárias pel1el1ciamà linhagem materna. A autoridade e 11 gestão das terras estavam n/ls mãos não já do marido evanescente, mas dos homens da linhagem materna, irmãos das mulheres, eles próprios guerreiros e amantes ocasionais ,das mulheres das outras linhagens;
a terra era, pois, cultivada pelos memb~os de uma casta inferior. Todavia,
este tipo ~e grupo constitui em si mesDl~uma família, se bem que não reconheça o modelo conjugal; chamar-lhe-emos por comodidade família matricêntrica. Esta é a expressão de uma form~ extrema de diferenciação dos estatutos e dQs papéis masculinos e feminiQ~s. Outros exemplos desta situação
podem sell'fornecidos na nossa própria ~iedade, mesmo que sob uma forma
embrionária e não socialmente reconhedda.
Deste Plodo, se a união conjugal est~vel não existe em toda a parte, ela
não pode' ser uma exigência natural. E,. na verdade, fora da relação física
de gestaç~l); parto e aleitamento (e isto llpenas nas sociedades em que o aleitamento IIrtificial não existe), que une ~I mãe aos seus fIlhos, nada é natural, necessário, biologicamente fundadQ, na instituição familiar.
Assim, IItéo pr6prio elo biol6gico mã~/mhos nem sempre tem como resultado que li mãe tenha o encargo de educar os fIlhos. Entre os lndios Tupi-Kawahib do Brasil (Lévi-Strauss 1956], onde um homem pode casar quer
com várias irmãs quer até com uma' mãe e com as filhas que esta tiver tido
de um outro homem, os fIlhos são educlldos pelo conjunto das co-esposas,
sem que cada uma delas se preocupe de modo particular com os seus pr6prios filhos. Entre os Mossi do Alto VolW [Pageard 1969], nas grandes famílias poligípeas, estabelece-se, ap6s o desmamar, uma repartição dos fIlhos
entre as d~erentes co-esposas: mesmo llquelas que são estéreis ou que perderam os Seus filhos devem educar crianças que não são suas, que elas amam
como se fossem suas e que não conhecem outra mãe senão ela antes da sua
entrada na idade adulta; s6 nesse instante é que lhes dão a conhecer o elo
biol6gico que as une a uma outra mulher do pai.
Para ilustrar a artificialidade fundamental desta instituição, representaria
pela célula social fundada na união conjugal - na multiplicidade das respostas culturalmente dadas às necessidades e aos desejos fundamentais do
indivíduo e da espécie (desejo sexual, desejo de reprodução, necessidade de
manter e de educar os fIlhos, em particular) -, recordaremos, pois, algumas daquelas que nos parecem ir de maneira radical contra a evidência do
bom senso, a coisa que no mundo é considerada, a par da família, como
universalmente partilhada.
Assim, parece absolutamente evidente que os membros de uma união
conjugal sejam de sexo diferente, que esta união não se estabeleça senão
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entre vivos, que o genitor dos filhos seja normalmente o pai no quadro da
união conjugal e, finalmente, que a família conjugal (pai, mãe, fllhos) cons- .
titua a unidade residencial e econ6mica elementar através da qual passam
a educação e a herança. Ora, a experiência etnol6gica demonstra que nenhum
destes princípios é universalmente aceite.
Em çertas populações africanas existe um casamento legal entre mulheres.
~ o CllSPdos Nuer sudaneses, patrilineares (o reconhecimento da flliaçito
passa clfclusivamente pelos ho~ens) em que a fJ1ha ne~ sequer é considerada coJilOpertencendo verdaderramente ao grupo do pat (ela é uma unrelated person, segundo a terminologia de Evans-Pritchard), salvo se for estéril:
neste caso - de que ela dá provas depois de longos anos de casamento
ordinário - é considerada e conta como um homem da sua linhagem de
origem. O casamento legal entre os Nuer é sancionado pelo pagamento de
um dota em gado ou «preço da noivllll, efectuado pelo marido ou pela família do marido aos parentes do lado do pai da esposa que o dividem entre
si. A mjJlher estéril recebe deste modo, como «tio» paterno, uma parte d~s
dotes recebida pelas suas sobrinhas, as filhas dos seus irmãos. Com este capItal ela pode por seu turno pagar o «preço da noiva» por uma jovem com
qu~m ela casa legalmente e por quem ela cumpre os rituais oficiai~ do casamento. Em seguida, será ela a escolher um homem, um estrangerro pobre,
geralmente um dinka, para coabitar com ela e gerar fllhos. Este homem
não é mais do que o criado da mulher-esposo e cumpre por sua vez as tarefas habituais de um criado. Os fllhos que nascem desta «união da sombra»
são os da mulher-esposo: chamam-lhe «pai»e ela transmite-lhes o seu nome
e os seus bens. A sua esposa chama-lhe «meu marido», deve-lhe respeito
e obediência e serve-a como serviria um verdadeiro marido. Ela pr6pria administra a sua casa e o seu gado, distribui as tarefas e fiscaliza a sua execução,
como um homem o faria. ~ ainda ela quem fornece aos filhos o gado neces·
sário ao casamento deles. No casamento das suas filhas, recebe a título de
«pai» o gado do dote delas e entrega por cada uma delas, ao genitor natural a vaca que constitui o preço (diferido) da sua procriação. O genitor não
de:empenha qualquer papel além daquele para o qual foi requerido e não
obtém deste papel de companheiro sexual-cobridor qualquer satisfação material moral ou afectiva ligada ao mesmo papel efectuado no âmbito do casamerito. Neste caso, evidentemente, a mulher-esposo é apenas um substituto
do homem porque é estéril, e este casamento legal permanece totalmente
dentro dos cânones da ideologia masculina.
Entre os Ioruba (Ekiti e Yagha) da Nigéria, é uma mulher rica, uma
comerciante, e não uma mulher estéril, que pode legitimamente desposar
outras mulheres e ter, através do mesmo processo de substituição, descendentes que são seus ou obter um benefício de tipo capitalista. Uma comer·
ciante rica casa-se legalmente através do pagamento do dote com uma ou
com várias raparigas, virgens de preferência, e envia-as a fazer comércio nas
aldeias vizinhas. Elas têm toda a liberdade para se unirem, sem pagamento
de dote, com quem quiserem, mas devem prevenir a sua mulher-esposo.
Quando têm fllhos e estes chegam à idade de cinco ou seis anos, a mulher-esposo apresenta-se perante os genitores e reclama-lhes os filhos que são legal-
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mente dela, bem como as esposas. Frequentemente, o homem enganado
aceita pagar uma compensação financeira para poder ao menos conservar
os seus fllhos. Estes tipo de união, no qual os fllhos pertencem à mulher-esposo legal, ou lhe trazem beneficio, é decalcado do modelo praticado pelos
comerciantes muçulmanos de sexo masculino, que enviam as suas próprias
esposas operar como reprodutoras, de fllhos ou de capital, em populações
vizinhas animistas. ~ absolutamente de excluir nestas uniões - que têm por
objectivo quer a constituição de uma fam1lia normal (caso dos Nuer), quer
a frutificação de um capital (caso dos Yoruba) - uma qualquer forma de
homossexualidade feminina. Em contrapartida, existem uniões homossexuais
masculinas entre os Navaho e os Zuni, com repartição de tarefas segundo
o modelo corrente.
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Tão frequente como o casamento entre vivos, o casamento-jantasmd legal
(sempre entre os Nuer) sÓ'pode dizer respeito a um morto sem descehdência. Deste modo se cria uma fanúlia cujos protagonistas são o morto~ que
é o marido legal, a mulher desposada em nome do morto por um dos seus
parentes, o marido substituto e os fllhos que nascerem desta união. Estas
crianças são socialmente e legalmente as do morto,' pelo simples faào de
o companheiro sexual da mulher ter retirado do gado do defunto o imontante do dote que pagou o seu nome. Um homem pode desposar mu~heres
em nome de um tio paterno, de um irmão, e até mesmo de uma irmã estéril, falecidos sem fllhos. A viúva de um homem morto sem descendência
- se não puder ela própria conceber para ele frutos de um cunhado em
união levirática - pode igualmente casar com uma mulher em norbe do
marido. Contrariamente ao caso precedente, o pai dos fllhos é desta vez o
marido morto e não ela. Os fllhos têm conhecimento do seu estatuto de
fllhos do morto e traçam a sua genealogia a partir desse pai; consoaIhe os
casos, consideram o seu genitor (e tratam-no) ou como um tio paterbo ou
como um irmão da mãe. A genealogia familiar não tem, pois, nada que ver
com a geração biológica, e isso tanto mais que o marido substituto pode
por sua vez morrer sem progenitura, se não tiver tido os meios de dotar
uma esposa por sua conta: essa progenitura própria ser-lhe-á asseguradaeventualmente por um irmão mais novo ou por um sobrinho (e talvez," aliás
por um fllho que ele tivesse gerado em nome do seu irmão!).
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O exemplo destas fam1lias-fantasma mostra-nos que nem o sexo, nem a
i~entidade dos membros nem a paternidade fisiológica têm importârida por
SI mesmo. Tal como no adágio romano (<<is
est pater quem nuptiae demonstrant»), o que conta é a legalidade do casamento, demonstrada com apagamento do «preço da noiva,,; e isto é um traço não natural mas entinentemente cultural e social.
A recusa da importância da paternidade fisiológica encontra-se igualmente
nos Tibetanos, que praticam o casamento poliândrico. Quando o mais velho
de vdrios irmãos desposou legalmente uma mulher, esta casa sucessivamente
com cada um dos irmãos do marido a intervalos regulares de um ano. Os
homens praticam o comércio a longa distdncia e organiznm-se de m/mcira
a nunca se encontrar mais dd que um marido em cala. 01 filhoR s40 atri·
buídol ao mail velho: chamam-lhe «pai. e chamam «tio. 101 outrol marldoR
,
?
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da mãe. Os irmãos co-maridos são considerados como uma única e mesma
carne, e é por esta razão que este tipo de casamento pode ser considerado
como uma simples variante da família monogâmica; os contratantes, de qualquer modo, não se preocupam com a realidade da sua paternidade indivi·
dual, em benefício da sua paternidade comum. Um ponto importante: a propriedade familiar, gerida pela esposa comum que reina como patroa na sua
casa, é sempre transmitida colectivamente aos fllhos.
Passemos agora a situações aparentemente menos estranhas. Nas sociedades matrilineares a filiação é contada e reconhecida pelas mulheres, mas
o principio de residência pode variar segundo as sociedades: umas vezes são
os homens que se deslocam para irem viver com as suas esposas e' a parentela uterina feminina destas últimas; outras, são as mulheres que se deslocam para irem viver junto dos seus 'maridos (o grupo matrilinear, enquanto
unidade residencial, é neste caso cônstituído pelos homens). Em' todos os
casos, a autoridade primordial e a transmissão da herança não se exercem
de pai para fllho, mas de tio matenlo para os filhos da irmã. Um grupo de
fdiação matrimonial, linhagem ou clÁ- ou seja, um conjunto de ihdivíduos
que descende J)õi- -parte das mulherts de uma mesma antepassada- possui
bens que não podem ser transmitid,t>spara fora do grupo: ora, um homem
e o seu flIho pertencem a grupos distintos de filiação, porque o tl1ho descende do gupo matrilinear da sua mãe ao qual pertence também o irmão
da mãe. Neste caso, a fam1lia conjugal existe apesar de tudo, mlls é o tio
materno, e não o pai, quem manda e é temido: é ele quem detém plenos
poderes sobre os seus sobrinhos, recolhe o fruto do trabalho deles, providencia
o seu estabelecimento.
(anúlia conjugal nem sequer é, por vezes,
neste contexto,
uma unidade Esta
residencial.
Entre os Senufo da Costa do. MlU'frm- matrilineares e poligâmicos cada que
um dos
cônjuges
permanece
~pós doméstica
o casamento
sua fam.i1iade
gem
é então
a verdadeira
unidade
de na
produção.
Ao cairorida
noite, os maridos vão ter com cadrt uma (uma por dia) das suas diferentes
mulheres que cozinham para eles é lhes prestam os serviços ordinários do
casamento, mas' não residem nunJa de maneira permanente clÍm uma de
entre elas nem com os fllhos que delas tiverem tido. Esta institui~ão é conhe·
cida pelo nome de visiting husband ~maridovisitador'. Também aqui se trata
de uma forma de família matricêJ1uica, mas diferente da praúéada pelos
Nayar, dado que, entre os Senufor !l noção de par conjugal existe, mesmo
que o par não corresponda a uma funidade residencial ou económica e não
opere em conjunto na educação e criação dos seus próprios fllhos, e também porque o marido é o único p~rceiro sexualmente autorizado da esposa
e é o pai dos seus flIhos.
,.
Concluiremos, pois, de maneini l1parentemente paradoxal, qUe a família
é certamente um dado universal, lhas apenas no sentido de que não existe
nenhuma sociedade desprovida de uma instituição que desempenHe em toda
a parte as mesmas funções: unidade econóIDÍcade produção e consl.uno, lugar
privilegiado do exercício da sexualidade entre parceiros autorizatlos, lugar
da reproduçllo biológica, da criação e da socialização dos fJ.lhos. Neste
Ambito, ela obedece sempre às mesmas leis: existência de um estatuto matri-
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FAMIUA
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monial legal que autoriza o exercício da sexualidade entre pelo menos dois
membros da família (ou que prevê os meios de a isso suprir), proibição do
incesto (relação sexual ou casamento), divisão do trabalho segundo os sexos.
No entanto, mesmo que o modo conjugal monogâmico, com residência
comum dos cônjuges, seja o mais difundido, a extrema variedade das regras
que contribuem para o estabelecimento da família, para a sua composição
e para a sua sobrevivência, demonstra que esta não é - nas suas modalidades particulares - um facto natural, mas, bem pelo contrário, um fen6meno
altamente artificial, construído, um fer)6meno cultural portanto.
Mas então, porquê a família? Que prop6sito se~e .e1a para ser u~versal, qualquer que seja a forma segundo a qual a mstltuíram as múltiplas
sociedades do mundo, actuais ou passa4as? A resposta a estas interrogações
passa pelll resposta a uma questão mai~ geral, e da razão de ser das leis
que se encontram em toda a parte associadas ao estabelecimento da família:
a forma legal do casamento, a proibiçãd do incesto, a repartição sexual das
tarefas. Também não se pode dizer destas leis que elas sejam fundadas a
partir de exigências naturais. Deste modo, a qualidade de consanguíneos
interditos Pela proibição do incesto é extrçmamente variável segundo as sociedades; quanto às tarefas, as que nos parecem mais femininas (a costura,
por exemrlo, tomada no seu s~ntido ~gar, e não como criação da moda)
podem ser 'noutro lugar as maIS masculinas (são os homens que talham o
vestuário e 'o cosem nos países da Afr~ca Ocidental). Mas o que conta e
levanta problemas, se bem que elas não sejam fundadas in natura, isto é,
estritamente em realidades de ordem fisiol6gica, o que conta e constitui problema é a universalidade da sua aplicação.
Todas as sociedades estabelecem uma diferença entre um tipo de união
legal, sancionado juridicamente de uma maneira ou de outra - ou seja, o
casamento -, e relações sexuais de ocasião, quer estas sejam admitidas e até
prescritas antes do casamento, toleradas ou condenadas depois dele; ou mesmo
entre o casamento e o concubinato, união estável mas de natureza diferente
do casamento. Não existe, evidentemente, nenhuma razão biol6gica para tudo
isto. A única necessidade biol6gica que comporta relações de longa duração
entre dois indivíduos é a maternidade, ou seja, o par mãe/fIlho. Nos Primatas, sobretudo nos chimpanzés, encontram-se estas soéiedades matricêntri-
em função de uma certa repartição das tarefas entre os sexos. Numerosos
exemplos etnol6gicos demonstram que esta repartição usual não é baseada
em imperativos fisiológicos (Gough 1975; Uvi-Strauss 1956]. Entre os Pri·
matas, cada sexo subvém normalmente à sua pr6pria subsistência, e as
fêmeas podem combater quando não têm de ocupar-se da sua prole. Esta
repartição decorre, pois, de uma ordem arbitrária cuja única explicação é
a de ter como efeito tornar os dois sexos dependentes um do outro e, por-
cas, que agrupam não apenas uma mãe e um fIlho, mas uma mãe e o.sseus
fIlhos, na medida em que são precisos sete a doze anos para que os Jovens
atinjam a maturidade e a autonomia sexual e de subsistência [Gough 1975;
Reynolds 1968; Sahlins 1959]. A presença do pai, de um homem, ao lado
da mãe e da criança, a afeição do pai pela progenitura não são factos de natureza, tal como o não é a obrigação de uma relação sexual estável entre parceiros associados para toda a vida. Todavia, a união conjugal estável e publicamente reconhecida é atestada em toda a parte, mesmo nas sociedades que
eram supostas desconhecer o papel fisiológicodo homem na procriação (como
em Bellona, nas ilhas de Salomão [Monberg 1975]), mas que estabeleciam
através do casamento a paternidade social.
Se examinarmos todas as formas conhecidas de casamento, o elemento
comum parece residir na prestação de serviços mútuos entre os cônjuges
que lhe era necessário escolher entre famílias b~ológicas isoladas e. justapostas como unidades fechadas, perpetuando-se a SImesmas, submergldas pelos
seus terrores 6dios e ignorâncias, e .. , a instituição sistemática das cadeias
.
de intercasamentos que permitem edificar uma sociedade humana autêntica
a partir da base artificial dos laços de afInidade, a despeito da influência
isoladora da consanguinidade e até contra ela [Lévi-Strauss 1956].
De facto todos os grupos consanguíneos arcaicos parecem ter resolvido
da mesma ~aneira o problema da coexistência com os seus vizinhos, pondo
, em prática numerosos recursos (pelo que se pode pensar com pertinência
terem sido concebidos ao mesmo tempo que o aparato simb6lico da linguagem tomava forma):
tanto, levar os seus representantes a associações d~adouras entre indivíduos li uma espécie de contrato de sustento, ou seja, ao casamento, para
que ;les possam sobreviver sem terem de entregar-se às actividades do sexo
oposto.
A este contrato de sustento entre parceiros dotados de capacidades culturalmente diferentes e complementares, vem juntar-se a regulamentação das
prestações sexuais, que faz do casamento o lugar privilegiado. da reprodução biol6gica. Mas a associação destas duas ordens de necessidade (o sustento mútuo e a relação sexual) também não nasce de qualquer imposição
natural. Murdock sublinha [1949, capo I] a existência de relações entre
homem e mulher que fazem intervir uma divisão de trabalho sem gratificação sexual: entre irmão e irmã, entre senhor e serva, ou entre paU:ãoe .secretária. A priori, nada - pelo menos nenhuma razão de ordem fiSl~16glcao~
biológica - impediria também que este tipo de contrato de um upo partIcular que implica o sustento mútuo e a relação sexual se passasse entre consanguíneos provenientes do mesmo grupo. Deste modo~ ~ partir de. agregados humanos matricêntricos (segundo o modelo familiar dos Prunatas),
associações matrimOlrlaisque implicam o sustento mútuo, o comércio sexual,
a produção e criação dos fIlhos poder-se-iam organizar entre parentes: mãe
e ftlho irmão e irmã, pai e ftlho. A humanidade estaria, deste modo,
povoad~ de grupos consanguíneos fechados sobre si próprios~ ~ugar da sua
própria reprodução biol6gica, hostis por defInição aos seus VIZinhOS~redadores: quando os parceiros sexuais não existissem em número sufiCiente,
seria necessário obtê-los pela força nos outros grupos (para falar apenas deste
tipo de predação). Daqui decorreria que nenhuma forma estável de sociedade
seria poss(vel. Parece que a humanidade terá compreendido bastante cedo
,
I) uma regulamentação das relações sexuais faz do seu exercic~od.entro
do casamento uma coisa diferente da pura satisfação de mstlDtos;
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2) um princípio de fl1iaçãodivide os consanguíneos, designados por termos que definem a sua posição e o seu papel, em diversos grupos
e classifica-os em duas séries: os casáveis e os não-casáveis. Deste
modo, por exemplo, a filha da irmã de um homem pode pertencer
ao mesmo grupo de fl1iação que ele (trata-se neste caso de fl1iação
matrilinear) e ser-lhe ipso facto proibida em casamento; mas, num sistema de filiação patrilinear, ela pertence a um outro grupo (nomea1
damente
ao do seu
e, se bem que consanguínea, é-lhe em certos
casos
permitida
empai)
casamento;
3) adoproclamação
de um aprincípio
de aliança,toda
que aseunião
baseiacom
na pro;biçãO
incesto, segundo
qual é incestuosa
patentes
não-casáveis, em primeiro lugar com membros do grupo segundo a
regra de fl1iação. Este princípio de aliança proíbe que grupos biológicos consanguíneos se fechem sobre si próprios e obriga os seus membros a ir procurar parceiros no exterior, no conjunto dos consanguíneos casáveis ou dos não-consanguíneos. Em certos casos, tal prihcípio
pode mesmo orientar de maneira específica as escolhas possíveíll para
qualquer indivíduo. Assim, as unidades consanguíneas encontram-se
estreitamente dependentes umas das outras no que respeita à sua
sobrevivência, através da regulamentação da troca dos parteiros
sexuais, atribuindo a regra de fl1iaçãoo seu lugar aos filhos ser:t;lpossibilidade de contestação.
Mas tudo isto não basta; para que a aliança entre ~~ grupos tenha' um
sentido, ~ necessário que as relações entre os parceiros sejam as maill estáveis possíveis. Que significaria de facto a relação de aliança efectuadaentre
grupos através da aproximação de dois indivíduos, se essa relação fosse
quebrada imediatamente depois do contrato e o substituíssem por outro?
A repartição sexual das tarefas intervém neste ponto, tornando dependentes uns dos outros e complementares não já os grupos mas os próprioll indivíduos, os parceiros sexuais. No âmbito da relação individual surgem então
prestações e serviços diversos de simples comércio sexual. Homens e ,mulheres são impelidos pelas suas respectivas incapacidades artificialmenté estabelecidas a associaçõesduradouras baseadas num contrato de sustento mútuo,
contrato a que só falta ser sancionado por uma instituição jurídica que estabeleça a sua legalidade: o casamento.
As modalidades da regulamentação, contratual do casamento sãdextremamente variáveis conforme as sociedades, como já vimos. Mas inlplicam
sempre, simultaneamente, métodos de classificação dos parentes biQlógicos
(segundo as linhas de reconhecimento da filiação) em casáveis e en1 não-casáveis, e regras precisas sobre a escolha do cônjuge, quer esta~ tegras
designem expressamente o tipo de parceiro que convém desposar, quer elas
proíbam conjuntos globais e consanguíneos. Para este objectivo, a noção de
incesto é fundamental e a sua definição ultrapassa largamente, em nhmerosas sociedades, aquela que é a nossa.
Daqui deriva que, em qualquer sociedade, o contrato de aliança entre
grupos de consanguinidades regidos por uma regra de filiação constitui. o
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fundamento mínimo de uma sociedade estável; o casamento é o instrumento
deste contrato de aliança, as mulheres, as reprodutoras, constituem o material. Concebida desta maneira, a instituição familiar, que exige incessantemente a cooperação de grupos distintos de consanguinidade para reconstituir uma geração após outra (duas famaias devem cooperar para poderem
fundar uma terceira), renova indefinidamente o contrato social. A fam!lia
é o que permite à sociedade existir, funcionar, reproduzir-se. Ela fá-Io, de certo
modo, de maneira implícita: através da sua própria existência, ela é disso
a simples transcrição concreta elementar.
Deveremos concluir, pois, que a famaia - universal e aparentemente
necessária à construção e à manutenção da vida em sociedade - é por esta
mesma razão uma instituição que não pode desaparecer? Como 'entender
então o tão actual tema da famaia em crise?
Procedamos em primeiro lugar a uma extensão da palavra 'fatn11ia', já
não entendida como uma unidade, geralmente residencial, formada por um
homem e uma mulher cuja união é Socialmente aprovada com os seus filhos,
mas sim como o «conjunto das pessOasdo mesmo sangue» (Littré).Já vimos
que regras de filiação em número finito (as mais correntes são as modalidades patrilinear, matrilinear, bilinear e cognáticafmdiferenciada)têm por objectivo dividir e classificar os parentes e~ grupos distintos, classificaçãde divisão
que estabelecem para um dado indivíduo a gama dos seus direitos e das
suas obrigações. relativamente aos 'seus consanguíneos. Em qualquer dos
casos, o reconhecimento do parentclsco faz·se por meio da genealogia, real
ou fictícia. O reconhecimento da pUra relação genealógica de cortsanguinidade existe sempre, a despeito dos .feitos da classificação segundo as regras
de filiação.
'
Na sociedade ocidental, cognátida, onde todos os laços são reconhecidos
como equivalentes através dos antepassados dos dois sexos, onde, portanto,
não se encontra o equivalente dos grupos estáveis unilineares, se :bem que
exista, no entanto, uma notável imIkrtância patrilinear (transmissão do apelido, muitas vezes da herança fundiária, patrivirilocalidade acentuada no meio
rural, etc.), esta famaia construída genealogicamente, ou parentela, coexiste
fortemente com a fam11iaconjugal. Os seus limites variam, mas ela inclui
em primeiro lugar os pais e os avós do casal, em seguida os seus colaterais,
bem como os cônjuges desses colal~rais (tios e tias, irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas, etc.).
Laços de consanguinidade e laçp~ de aliança existem em todas as sociedades humanas, mas o que é importante perceber é a relação entré os diversos níveis de fidelidade que eles e:ldgem aos seus contratantes, segundo os
tipos de sociedade em que se martifestam.
A análise das diferentes formas, de sociedade humana mostra que consanguinidade e aliança exogâmica, listo é, realizada fora do grupo de con·
sanguinidade segundo o modo como ele se defme pelas regras de filiação,
apontam necessariamente para direcções diferentes (Schneider). Partiremos
do princípio que, onde a tónica retai na importância do laço conjugal e da
solidariedade entre os esposos, din1inui a importância dos laços da consanguinidade: em caso de conflito, a solidariedade conjugal sobrepor-se-á à soli-
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dariedade parentaI. Inversamente, onde a tónica é posta sobre o primado
da consanguinidade, limites específicos são atribuídos aos direitos e obrigações conjugais: em caso de conflito, a solidariedade do sangue sobrepor-se-á à solidariedade conjugal, a ponto por vezes de a romper totalmente.
O exercício destas solidariedades é diferente segundo os sexos e os tipos
de organização social.
Uma das fórmulas sociais mais consl;guidas - pelo facto de veicular as
mais fracas ambiguidades possíveis - é aquela que se baseia no princípio
da fIliação patrilinear acompanhada d" patrivirilocalidade. A pertença ao
grupo só é transmissível através dos hoipens; as fIlhas nascidas dos homens
do grupo pertencem a esse grupo, mas n~o as crianças nascidas destas fIlhas.
O modo 4e filiação patrilinear, que só reConhece, portanto, os machos como
vectores 4a flliação, é normalmente acofIlpanhado de uma forte autoridade
do homerp sobre a mulher, enquanto J~ai, irmão ou marido, e até mesmo
filho (se bemdos
quesistemas
- acrescente-se
- o, poder
masculino
não seja
específico
unicamente
patrilineares).
tral fórmula
é também
seguida
por
grupos rellidenciais organizados em torpo dos consanguíneos machos que
vivem eIllconjunto e muitas vezes tr,balham juntos numa propriedade
comum: (l corolário é a obrigação por parte das esposas de abandonarem
- tanto no sentido geográfico como no s.cntidoestatutário do termo - a sua
família de origem para residirem na do ,eu cônjuge. O predonúnio da masculinidade faz com que as fIlhas, que devem ir viver para outro lugar e procriar algures fllhos que não pertencerão à família de origem da sua mãe,
não passem nesta óptica de membros de segunda categoria para o seu grupo
de origem: não é de facto através delas que ele se perpetua. Os grupos patrilineares, dada a obrigação da exogamia, não têm qualquer interesse em manter uma forma de controlo da linhagem sobre as suas fllhas depois do casamento destas, uma vez que, reciprocamente, não têm interesse em que os
outros grupos, que lhes fornecem as esposas reprodutoras ao mesmo tempo
que uma força de trabalho, exerçam esse mesmo controlo sobre as suas próprias fllhas. É, pois, geralmente nas sociedades patrilineares que se encontram formas matrimoniais rigorosas que visam a estabilidade da união através da opressão das mulheres; estas encontram muito dificilmente apoio junto
dos parentes, ou seja, junto do pai e dos seus consanguíneos machos do
mesmo grupo, em caso de crise conjugal, especialmente se o casamento delas
foi objecto de transacções de dotes pagos pela família do marido que seria
necessário devolver em casos de divórcio. Enquanto para o marido os laços
de flliação e de solidariedade de linhagem permanecem sempre prioritários,
uma vez que ele vive no seio da sua família, as esposas desligadas das suas
próprias famílias constituem outras tantas peças soltas que só conseguem
estabelecer intensos laços afectivos com a sua própria progenitora e, sobretudo, com as suas fllhas. E tais laços acentuam ainda mais, se é que isso
é possível, a sua dependência relativamente aos maridos, dado que em caso
de divórcio os fllhos pertencem, sem qualquer hipótese de recurso, ao pai
e à sua linhagem.
Este ponto - a solidariedade afectiva e já não estatutária (uma vez que
esta não é parte constitutiva do sistema, se bem que dele derive) que une
91
FAM!LIA
entre elas as mães e as flIhas e mais geralmente as mulheres que partilham
os mesmos laços de consanguinidade uterina - parece-nos particularmente
importante. A sociedade ocidental não é patrilinear, apesar de durante séculos
ter funcionado de maneira muito próxima da que acima foi descrita. No
entanto, ainda hoje se encontram vestígios desta solidariedade afectiva entre
mulheres detectada em várias áreas, incluindo a das escolhas matrimoniais
secundárias [Héritier 1977]. Ao falar do apoio dado pelos pais aos jovens
casais, Agnés Pitrou nota [1975] que eles atribuem no entanto um lugar
privilegiado à casa das suas fIlhas e não à dos seus fJ1hos. O que aqui é
pertinepte é que a ajuda - em sentido estrito - é sobretudo uma ajuda
feminina: os serviços esperados e dispensados consistem especialmente numa
substituição pontual da mãe pela avó em caso de necessidade nos encargos
da maternidade, e não numa ajuda propriamente concedida pelos pais.
É também aqui que se vêem despontar na nossa sociedade os efeitos desta
sol~dar~edade~ãe/fJ1ha, e mais geralmente entre mulheres consanguíneas,
solidarIedade mdependente da solidariedade de linhagem na óptica patrilinear, que é ao mesmo tempo uma das válvulas de segurança do sistema
familiar e conjugal (enquanto estas relações não entrarem em competição
com o exercício da aut.oridade masculina não são consideradas perigosas),
mas talvez também o bicho na fruta. Levado às últimas consequências, este
tipo de solidariedade totalmente diferente dos outros (solidariedade consanguínea, solidariedade conjugal de que atrás falámos) pode ser o motor de
uma mudança radical dos modos de pensamento e de vida, da organização
social e do tipo de sociedade.
É ~ossível, como "pensa Kath1een Gough [1975], que a família conjugal,
essencial no dealbar da humanidade para a constituição da sociedade e da
cultura, não possa sobreviver verdadeiramente na civilização industrial. Com
efeito, é verosímil que, nas sociedades ocidentais caracterizadas pelas suas
grandes dimensões, pela importância do modo de vida urbano, pelo regime
capitalista de produção e pela competição profissional e omnipotência do
Estado e da administração, o abandono de certos traços característicos da
instituição familiar - considerados como embaraçosos ou menores - esteja
na origem das tensões actuais no interior da família. A tomada de consciência da alienação feminina realizou-se com a entrada das mulheres no jogo
da produção e da rendabilidade económica, devido às necessidades da economia de mercado, e a sua saída, por este motivo, do puro campo doméstico onde estavam tradicionalmente confmadas pela divisão sexual das tare.
fas. A desaparição da noção de residência comum da linhagem num
determinado território, uma vez que esta é incompatível com um desenvolvimento económico intenso, fez com que deixasse de existir harmonia entre
a sociedade e a família, a ponto de se chegar a falar desta última, consanguínea ou conjugal, como de um refúgio contra a sociedade para os indivíduos
apanhados por um mundo indiferente ou hostil. As sociedades tradicionais
patrilineares (e aqui, estou sobretudo a referir-me a modelos da África Ocidental) não permitiam esta antinomia. As linhagens patrilineares - que agrupam famílias conjugais, monogâmicas ou poligíneas - constituíam outras tantas unidades residenciais dotadas de um territ6rio de cultura pr6prio, de uma
FAMILIA
92
organização hierárquica que as colocava sob a tutela de um decano, de uma
organização comunitária do trabalho e do consumo dos bens produzidos.
Mas, colocado no interior destas dependências respeitantes à sua linhagem,
o indivíduo também era apanhado numa rede complexa e apertada de obrigaçOes de aldeia que uniam entre si as linhagens e de que ele conhecia as
regras desde a infância. A separação estrita do que releva da competência
da linhagem e do que releva da competência da aldeia, a repartição dqs cargos colectivos entre linhagens, a organização eventual das classes de idade
que atribuem durante toda a vida ao indivíduo outras tantas tarefas, papéis
e estatutos diversos consoante os níveis que elas tiverem, os circuitos complexos de trocas matrimoniais, o encargo pela colectividade dos cohflitos
intralinhagens e os rituais religiosos ou profanos eram outros tantos inodos
requintados de articulação entre o domínio do poder familiar e a necessidade conjunta de uma vida social tão harmoniosa quanto possível. I Estas
sociedades, embora não sendo um paraíso -lógicas consigo mesmas-,
tinham montado um sistema equilibrado entre as imposições da vida doméstica (regulamentada pela consanguinidade) e as imposições da vidil social
(regulamentada pela coexistência de grupos consanguíneos); inversâmente,
as nossas sociedades conservaram os princípios que eram úteis ao seU desenvolvimento, ou que não-eram contraditórios em relação aos imperativos deste
desenvolvimento, ao mesmo tempo que suprimiram ou utilizaram aO contrário os aspectos corolários do conjunto da instituição familiar cohsiderados inúteis ou incómodos. É na ignorância e na rejeição da lógica ihterna
das articulações, cuja complexidade na criação da instituiÇão familiar já
demonstrámos, que é necessário procurar efectivamente as razões da crise
da família e, a partir desta, a da civilização.
A partir deste momento, pode conceber-se como possível, anunc~ pelos
sinais de recusa do casamento e pela permanência das solidariedadels afectivas consanguíneas femininas, a aparição de famílias matricêntricas, nas quais
os fllhos nascem de parceiros regulares ou ocasionais da mãe, e onde se
regista a ausência de residência comum com os genitores, de qualquer casamento estável e legal e de troca consentida entre grupos. No entanto, 6 difícil
ir às últimas consequências possíveis de uma mudança radical das ifl.stituições. É difícil, por exemplo, prever as regras de residência, especialmente
para os homens reduzidos aos estatutos de mho ou de irmão, amputados
do estatuto de marido e talvez de pai. Seja como for, pode encarar-~e a passagem a formas mais ou menos instilpcionalizadas de miação mattilinear.
Tal situação não implicaria necessariamente uma mudança da relaçã6 de forças entre os sexos: nas sociedades matrilineares, são os homens ehquanto
irmãos que detêm a autoridade sobre as suas irmãs e os filhos das suas irmãs.
Para que esta relação de forças fosse nitidamente modillcada, serianecessário suprimir o contrato mútuo de sustento baseado na repartição seXual das
tarefas. Que haveria de diferente na relação dos sexos se (para perlnanecer
na terminologia convencional), em vez de «alimentar» os seus fIlhos, o
homem alimentasse os seus sobrinhos, se, em vez de sustentar no plano
doméstico um marido, a mulher sustentasse um irmão? De facto, o modelo
de família matricêntrica, onde os parceiros sexuais regulares ou ocasionais
93
FAMILlA
não residem definitivamente na unidade doméstica, conheceu alguns casos
de actualização, como vimos atrás, mas respeitando sempre o princípio da
divisão sexual das tarefas e o da preponderância do sexo masculino. O desaparecimento do laço legal do matrimónio e o da repartição sexual das tarefas implicaria, pois, também que a sociedade reconhecesse, não em termos
de «valores»ou de moral, mas em termos de interesse, a igualdade dos sexos,
por um lado, e, por outro, que a rltProdução e a socialização das crianças
são actividades primordiais tal comO'a produção. Desde modo, tornar-se-ia
impensável e, por consequência, impossível que todo o peso da reprodução
recaísse exclusivamente sobre as mulheres e se transformasse na sua desvantagem social. Para se chegar a istp, seria necessário uma alteraçlo considerável do sistema de valores e, portanto, do sistema educativo act6al. Isto
implicaria o desaparecimento de noções aceites como «naturais» e, em primeiro lugar, daquela que coloca à cabeça o instinto maternal ligado automaticamente
instinto sexual,
à gestação
que leva eà ao
reproduç'ão
parto fiosdafllhos.
espécie,
Possivelmente,
e o instinto, enquanto
que leva oà
protecção dos jovens, são fenómenoll naturais para ambos os sexos, o instinto maternal - no sentido em que esta expressão é utilizada geralmente
para justificar a servidão das mulheh:s, e apenas delas, à progenitura - é
um fenómeno adquirido, inculcadollas mulheres através da educação que
Ihes é contiríuamente dispensada e através dos modelos de realização pessoal
que lhespara
são as
propostos.
Esse
in,stinto
é apenas dos
a justiflcação
pferecida
às mulheres
manter nas
tarefas
de educação
fllhos e, por
consequência, nas tarefas da vida doméSlica, e tudo isto com o consentimento
delas, dado que não há condicionainento mais conseguido do cjtie aquele
em que o submetido reivindica ele próprio os fundamentos da sua sujeição.
Enquanto as mulheres deram à luz fIlhos ao longo de toda a sua v;ida gerativa e tiveram uma esperança de vida que POl,ICO
ultrapassava esseperíodo,
a noção do instinto maternal e da dtpendência que dele resulta por predisposição natural para as diversas tart(as da maternidade tinham ntcessariamente um efeito poderoso. Na socie'd~deocidental, com o controlo dos nascimentos e o prolongamento da dJ~ação de vida, esta noção ji'l1ão pode
ter o mesmo efeito de sujeição completa e permanente das mlilheres.
Modiflcar os termos da flliação (e com isto modificar o estatuto da propriedade e da herança), modiflcar a' relação de poder entre os sexOs, suprimir
a r~partição
sexual das
tarefasl
assacar
a toda a soci~dade
d encargo
econÓffilCO
da reprodução
e da
produção,
transformar
radIcalmente
as formas de educação das crianças, ate~tar contra as ideias vigentes ele toda a
espécie que fundamentam na naturerza as desigualdades: são estas as condições da morte da família na sua fOnDaactual. Nada disto é impossível, e já
muitas alterações se estão a verificar. Resta no entanto saber quais são os
modelos de realização individual que podem ser rnventados e propostos como
susceptíveis de justificar a vida de cada um. [F. H.].
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FAMILlA
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o ~ cenamente
um dos lugares.comuns (cf. lugar-comum) mais divulgados a pretensa natura·
lidade da famOia (cf. natureza/cultura), que se pretende baseada em necessidades naturais (cf.
necessidade) da reprodUfão da espúie (cf. nascimenlo), da manutenção e educação da prole, e da
sexualidade (cf. amor, eros). De tal conjunto de necessidades naturais decorreria o casamenlo
como célula fundamental da sociedade, e base da sua eSlrutura. Deste ponto de vista a fam1lia
constitui o supone original da comunidade, o lugar no qual estio estabelecidos, deflIÚdos quase
de uma vez para sempre, todos os papéis (cf. papeVeslalulo, poder/aUloridade): no 4mbito da
própria fam1lia, na área do grupo conjugal alargado (d. parentesco), por extensllo na esfera geral
das relações homem/mulher (cf. masculino/feminino),
e fmalmente, enquanto simbolo total, rela·
tivamente ao modo de conceber o passado (cf. antigo/moderno), o presente e o futuro (d. gerações).
Na realidade, parece que o consenso ocidental (cf. emocentrismos), e não apenas ooi~ental,
terá feito de uma escolha um facto natural. Até o traço mais divulgado, a proibição do Inceslo,
mais do que uma proibição de natureza biol6gica, constitui um modo de evitar o fechamento
de qualquer grupo sobre si próprio (cf. exclusão/inlegração) e de contrair laços de alianç~ (cf.
economia, Irabalho, público/privado,
lroca). De resto, em mais de um caso, eIll; cenas socleda·
des, parece que até a f6rmula monogâmica homem/mulher seja passível de mterpretações e
de aplicações diversas.
'.
Desta f6rmula geral, mas não Ilnica na sua tipologia, do casamento monogAmico exAgA.
mico (cf. endogamia/exogamia)
e das regras estabelecidas para a escolha do cônjuge, emergem
solidariedades e afectos a que as Iradiçtles atribuíram uma rigidez, especialmente em relaçAo
A mulher, tomando como elemento natural da civilização aquilo que apenas se configura como
1111I1
enlre 18 escolhas possíveis.
. .
TodAvia, a própria crise da família (cf. repressão), a erosllo que está a sofrer a par ~a ms~.
IlIj~Atl(d'. illlliluittles) do casamento que é a sua forma legal (cf. direito, no~),
a pr6p~ v~e.1•• 1. ,Ir in'litlliçlles que caracteriza antropologicamente o problema da famOia nas várias socle·
.1•• 1, ••••
illtlVlçlles trazidas actualmente pela indllstria na área das relações humanas e,
•••••• III>.lIIrllle entre homem e mulher, constituem outros tantos elementos para faze~m. d~1'1'"'' •• ,. rrl.çAo das formas habituais; e, também, para libenarem a mulher da dlScnmlnaI"" ,I. '1"' ria ~ ohjecto em nome da .natureza. e da .civilizaçlo •.
INCESTO
«Aqui jazem filha e pai, irmã e irmão, mulher e
marido, e no entanto silo apenas dois corpos.'
[Margarida de Navarra, Heplameron).
o incesto, tal como foi admiravelmente definido por Littré, é uma «união
ilícita entre pessoas que são parentes ou afms no grau proibido pelas leis".
O antropólogo Reo Fortune [1932] retoma mais ou menos em termos análogos a mesma definição, substituindo no entanto o termo 'união' pela locução 'relação sexual': defInição mais precisa e circunscrita, fruto de uma reflexão. A própria noção de relação sexual implica a ideia de um comércio carnal
entre dois parceiros de sexo diferente. Aliás, o incesto é exactamente percebido neste sentido quer na linguagem popular quer na erudita; a «união ilícita", de conteúdo totalmente neutro, é entendida como comércio carnal ilícito entre pessoas aparentadas no grau proibido pelas leis ou pelos hábitos
sociais.
A escolha destes termos por parte de Fortune não é fruto do acaso, na
medida em que o pensamento antropológico estabeleceu desde sempre uma
ligação directa entre a proibição do incesto e a lei exogâmica, que orienta
para o exterior a escolha do cônjuge. A proibição do incesto, que a priori
diz respeito a todas as relações sexuais em níveis ou situações proibidas,
e não apenas ao casamento, serve todavia para distinguir, no seio do círculo vizinho e em particular no grupo dos consangufueos, entre aqueles que
se podem escolher como parceiros sexuais em sentido lato, e como cônjuges em sentido restrito, e aqueles que não se podem escolher como tais.
Desta assimilação de facto com a aliança que deriva do casamento resulta
imediatamente que o incesto é percebido como um comércio carnal ilícito
entre parceiros de sexo diferente. Mas veremos se se trata única e exclusivamente disto.
Trabalhos antropológicos recentes [Needham 1971; Schneider 1976]
negam à· proibição do incesto, no sentido acima considerado, toda e qualquer pertinência como facto científico único ao qual se poderia aplicar uma
teoria geral, dada a extrema heterogeneidade e variabilidade dos factos que
se podem reunir sob este tema. Para citar alguns, verifica-se que as situações de parentes abrangidas pela proibição do incesto são muito diferentes
segundo as sociedades em que se encontra esta proibição. O incesto não
suscita sempre e em toda a parte reflexos intensos de repulsa ou de horror;
a punição social do incesto vai da simples troça à morte; nem em todas as
sociedades se encontram proibições nitidamente afIrmadas e regulamentadas; num certo número de sociedades bem conhecidas (Egipto antigo, Havai,
96
INCESTO
reinos bantus) as uniões incestuosas são procuradas no seio da classe dirigente, e ainda em maior escala (para o Egipto ptolomaico, por exemplo)
no seio do grupo dos funcionários, artesãos e comerciantes urbanos. Poderíamos enfim citar alguns exemplos de sociedades, as quais, longe de conhe.
cerem a proibição do incesto, fariam das uniões incestuosas a sua regra: serIa
nomeadamente o caso da antiga Pérsia [Slotkin 1947, 1949; Goodenough
,
1949].
,
.
Todavia, a experiência etnológica mostra que existe unive~almente, se
não uma autêntica proibição do incesto, pelo menos uma tendênc18Pllfa regulamentar, de uma maneira ou de outra, as relações sexuais entre [larentes
chegados. Esta simples constatação permite-nos considerar o conjuhto dos
factos registados sob a entrada «incesto» como constituindo uma classe. Em
vez de se negar a estes factos qualquer pertinência, seria oportuno saber
se existe, a qualquer nível, um tipo de abordagem do fenómeno da. proibição do incesto que explicasse a variabilidade das suas manifestações *gundo
as sociedades, os seus aspectos contraditórios (como nos casos .de .ihversão
nas famílias reinantes) e ainda - por que não? - a sua ausênc18, se é verdade que se têm provas da existência de sociedades de uma total rromiscuidade sexual. No exemplo da antiga Pérsia, relatado por Slotkin, parece
que o casamento por excelência seria o de um homem. ~om a própria ~l1.ha,
e de uma mulher com o próprio fllho. Goodenough CrItica as fontes utihzadas (pós-zoroástricas) e também a terminologia: os termos traduzidos por
'fllho' e 'fllha' reenviam expressamente a fllhos pelo sangue ou antes a fllhos
de tipo classiflcatório? Acrescentemos a isto que este casamento por excelência não poderia constituir a regra, na medida em que é, por definição,
um casamento secundário, dado que ocorre sempre que um hOIÍlem case
com uma mulher que não seja sua fllha para dela poder ter uma fllha que
será posteriormente sua mulher.
,
Numerosas teorias foram elaboradas para explicar a existência dll proibição do incesto (este termo é aqui utilizado em substituição e ~o seq.tid~ de
regulamentação das relações sexuais entre parentes), esse fonrudável mlstério disse Lévi-Strauss [1947], para o pensamento antropológico. Podemos
pe:reitamente - à semelhança do que fez Bischof [1975] - class~cá-las e~u:e
as teorias que se interrogam sobre a causa final - por que enste a prOlblção do- incesto?
âmbitos
qual aresponder
sua utilidade
para a4a~
I,lumanidade?
ou entãoque
entre
as queserve?
se propõem
à questão
causas
eficientes: quais são os mecanismos \>iológicos, psicológicos ou sociológicos
que agem de forma a que a proibição seja respeitada?
, ':
Na Europa, a crença popular concilia-se com a teoria fmal qiológica
segundo a qual a proibição do incesto se explica com o perigo, desde sempre reconhecido, de um aumento provável de caracteres homozigóti~os, e em
especial dos caracteres recessivos perigosos, quando se verificam uniões entre
consanguíneos: atraso no crescimento, baixa estatura, fertilidade reduzida,
fraca imunidade e também menos esperança de vida seriam caracteres
observados experimentalmente nos animais (repare-se que não se trata de
taras nem de monstruosidades). A esta teoria podem ser levantadas várias
objecções. Tendo em conta que os casos de verdadeira desvantagem genéI
97
INCESTO
tica não são observáveis em larga escala, apresentam caracteres pouco espe·
culadores e não são observáveis ou demonstráveis senão através de requintadas análises de laboratório, como poderiam os grupos primitivos alarmar-se perante perigos tão pouco manifestos a ponto de ediflcarem, todos,
a mesma proibição com o objectivo de defenderem a sua sobrevivência? Além
disso, a união entre consanguíneos não implica apenas o aparecimento de
caracteres recessivos nefastos; também são consolidados eventuais caracteres positivos para a espécie. Por outro lado, a selecção natural leva em geral
ao desaparecimento do carácter perigoso, o qual, de recessivo, passou a manifesto com o efeito de fazer desaparecer os seus portadores. É efectivamente
isto que se pretende na selecção voluntária de espécies puras animais ou
vegetais. Enfim, numerosas sociedades humanas praticam regularmente (até
mais de 30 por cento dos casamentos, por exemplo) uniões entre consanguíneos, as quais seriam por nós consideradas incestuosas, como é o caso,
por exemplo, do casamento preferencial com a fllha do irmão da mãe. Se
se tivessem feito sentir efeitos perigosos para a sobrevivência do grupo,
parece-nos razoável supor que essas Sociedades teriam há muito renunciado
a uma prática tão deletéria.
!
As teorias fundamentadas nas cau$as eficientes biológicas giram em tomo
da ideia de que existiria, no homem, um horror instintivo e natural pelo
incesto. A proibição representaria, pois, uma simples ritualização cultural
desta aversão inata. Na sua forma mais popular, esta ideia corresponde à
«voz do sangue», enquanto na mais elaborada [Westermarck 1889], e nada
negligenciável, trata-se de uma repulsa sexual que se desenvolve entre indivíduos que viveram em estreita rela~ão durante a infância ou que convivem
lado a lado num contexto familiar de!longa duração. A isto pode contrapor-se (Fortune) que, se irmãos e irmãs fossem encorajados durante a infância
à familiaridade sexual, não existiam provas para aflrmar que Urnll aversão
sexual se desenvolveria posteriormenie entre eles. Na verdade, eles são encorajados a evitar-se desde a infância; em certas sociedades, trata-s4 mesmo
de evitarem-se totalmente a nível físiço, o que deveria levar à atracção sexual
nos próprios termos da teoria de Wéstermarck. De qualquer form~, apela-se extrair
se
à realidade
a teoria
de uma
de uma
relação
aversão
familiar
sexual
culturalmente
natural no não
seio sexual,
da faniília.
'para daí
Por seu lado, em Totemism andHxogamy (1910) Frazer, retomado por
Freud [1912-13], fornece um argumento notável contra esta teoria: «Não
se compreende bem porque é que um instinto humano profundamente enraizado teria necessidade de ser reforçàdo por uma lei. Não existem leis ordenando ao homem que coma ou que. beba ou que proíbam de pôr as mãos
no fogo. .. o que a própria naturezdproíbe e castiga não tem necessidade
de ser proibido e castigado pela lei. ~or isso, em vez de deduzirmosl da proibição legal do incesto que existe uma aversão natural pelo incesto, ..deveríamos antes concluir que há um instmto natural que leva ao incesto» (trad.
it. pp. 127-28). Para Freud, aliás, a ej(periência psicanalítica mostraria pelo
contrário uma tendência natural para o desejo incestuoso no seio da família. Todavia, estudos recentes sobre 1\ educação das crianças nos kibbutz [cf.
Bischof 1975] tenderiam a demonstrar o oposto da teoria freudiana,
INCESTO
98
ou seja, que depois de uma fase de expressão de uma livre sexualidade no
período edipista se desenvolveria por seu turno durante a puberdade a aversão pelo incesto, devido à familiaridade de uma educação fraternal.
Não é possível expor a totalidade das teorias sociol6gicas finalistas que
foram elaboradas para explicar a proibição do incesto. Façamos uma rápida
mudança de perspectiva: o pai opõe-se ao desejo incestuoso dos fIlhos pela
mãe (Freud); para manter a hierarquill entre as diferentes gerações e a disciplina necessária à coesão familiar, importa eliminar as práticas incestuosas
no seio da família porque elas dão origem a ciúmes e competição, em lugar
da autor~dade e da cooperação [Seligman 1950]. O incesto tornou-se naturalmente_difícil, se não impossível, devido às condições demográficas desfavoráveis pos prim6rdios da humanidade,l as quais faziam com que, por exemplo, houvesse poucas probabilidades dp uma mulher ser ainda viva e figurar
entre as possíveis parceiras do seu pr6pqo filho quando este atingisse a maturidade sexual [Slater 1959], etc.
.
A ún~ca teoria finalista sociol6gica ~ue não pode, a nosso ver, ser refutada, é aquela que é elaborada por Léyi-Strauss nas Structures élémentaires
de Ia parenté, depois dos trabalhos de Tyfor e Fortune. ,<ComoTylor demonstrou há q:rca de um século, a explicação,última é provavelmente que a humanidade muito cedo se apercebeu de qQ~, para poder libertar-se de uma luta
selvagem-pela existência, deveria escolher muito simplesmente entre "o casar-se fora, pu ser-se morto fora I'. A altefnativa era entre famílias biol6gicas
isoladas e justapostas como unidades fechadas, perpetuando-se por si pr6prias, submersas pelos seus medos, 6dios e ignorâncias, e a instituição sistemática, graças à proibição do incesto, de laços intermatrimoniais entre elas,
permitindo assim construir uma sociedáde humana autêntica sobre a base
artificial dos laços de afinidade, a despeito da influência isoladora da consanguinidade, e mesmo contra ela» [Lévi-Strauss 1956, trad. it. p. 168].
Assim, s6 a proibição do incesto, esse passo dialéctico que transpõe o limiar
natureza/cultura, permite sair dos pequenos grupos consanguíneos fechados
sobre si mesmos e construir uma sociedade viável. As mulheres, tal como
a linguagem, funcionam então como objectos de troca recíproca entre os
homens, e «a proibição do incesto deixa de ser tanto uma regra que proíbe
o casamento com a mãe, a irmã ou a filha, passando a ser mais uma regra
que obriga a dar a outrem mãe, irmã ou fIlha» [Lévi-Strauss 1947, trad.
it. p. 617].
Os Arapesh não compreendiam o sentido das perguntas que Margaret
Mead lhes fazia a prop6sito do possível incesto com a irmã. Parecia-14es
evidente a estupidez da façanha: «Então não compreendes que, se te casares com a irmã de outro homem, e outro homem se casar com a tua irmã,
terás pelo menos dois cunhados, e que se te casares com a tua pr6pria irmã
não terás nenhum? E com quem é que irás caçar? Com quem é que farás
plantações? Quem é que visitarás?» [ibid., p. 621]. Não se pode explicar de
modo mais vivo o interesse do trabalho de socialização que consiste em dar
a outrem a pr6pria irmã e em receber de outrem a pr6pria esposa. Segundo
diferentes modalidades é, portanto, necessário proibir a apropriação sexual
das mulheres de determinado grupo pelos membros masculinos do mesmo
99
INCESTO
grupo, definido segundo regras específicas, por fol'lÍla a tomá-Ias disponíveis para a troca. É portanto incestuosa qualquer união com parceiros consanguíneos, segundo a definição local de consanguinidade.
Posto isto - partindo do mesmo quesito do próprio Lévi-Strauss (procurar as causas profundas e omnipresentes que fazem com que em todas
as sociedades e em todas as épocas exista uma regulamentação das relações
entre os sexos) e aceitando a necessidade da troca como fundamento de qualquer spciedade -, parece não ser contradit6rio considerar, intimamente
ligado ao aspecto finalista, um sistema de explicação ideol6gica (causa eficiente?) que apresentaria o incesto e a sua proibição como intimamente ligados, em cada cultura, a conjuntos totais de representações respeitantes à
pessoa, ao mundo, à organização social e às múltiplas inter-relações entre
estes três universos. Se ao instaurar a ordem social a proibição do incesto
é a cultura, ela toma-se ipso facto e simultaneamente objecto de representação; se esta proibição tem uma finalidade universal apesar das diferentes
modalidades de realização, por que não obedeceria também a sua representação a grandes esquemas universais de organização?
Gostaríamos agora de tentar - mediante o exame escrupuloso deste
aspecto olvidado da proibição do incesto, ou seja, a sequela de representações que o acompanha por toda a parte - elaborar uma teoria etnol6gica
que complete a teoria finalista de Lévi-Strauss e de fornecer uma explicação que dê conta de forma totalizante da variedade contradit6ria dos factos
observados, seja dos casos negativos seja dos positivos, e de oferecer ainda
uma definição do incesto que possa compreender o conjunto das definições
elaboradas por diversos povos.
Tomando Les structures élémentaires de Ia parenté [1947] como ponto de
partida de uma reflexão possível, far-se-ão duas observações. Lévi.Strauss
centrou a sua demonstração no funcionamento das estruturas elementares
do parentesco que apresentam a vantagem de evidenciar a reciprocidade na
troca restrita ou na generalizada segundo modelos cuja estrutura de conjunto é facilmente demonstrável. Por outro lado, o autor refere-se à existência da regra como «a própria essência da proibição do incesto» (trad. it.
p. 75); todavia, se para demonstrar as pr6prias teses se baseia em argumentos específicos respeitantes às representações simb6licas que acompanham
a regra em todos os lugares, partindo destes temas parciais, ele não tenta
pôr em evidência uma sistemática ideol6gica que poderia ser, tal como a
própria regra, universal. Neste ponto específico, a questão posta será a
seguinte: será lícito postular a existência de um fio condutor, discernível
no seio de todos os discursos simb6licos sobre o incesto, que por um lado
explicaria os factos e as crenças diversas citadas pelo pr6prio Lévi-Strauss,
e por outro permitiria estabelecer, sintacticamente, o profundo parentesco
que existe entre eles para lá da sua evidente heterogeneidade? Assim, Lévi-Strauss menciona, entre outros factos, a crença existente em Madagáscar
de que há uma relação incestuosa entre os cônjuges quando um casal é estéril
[ibid., p. 48]; a crença dos Navajos [p. 85] num quarto mundo do qual os
sexos são separados e os "monstros são fruto da masturbação à qual cada
sexo se encontra reduzido; a afirmação de um grupo siberiano segundo
INCESTO
100
a qual os casamentos partrilineares fazem as águas tornar às suas fontes;
o risco de cegueira ou de mutismo que o olhar do pai aleuta faz pesar sobre
a sua pr6pria filha no momento do seu primeiro fluxo menstrual [p. 63];
o desencadear da trovoada e da tempestade nos povos da Malásia por um
conjunto de actos heter6clitos que compreendem o incesto, os discursos UTeflectidos, os jogos barulhentos, a imitação dos gritos das aves, etc. [p. 633].
Ora se Lévi-Strauss analisll este conjunto de proibições malaias e lhe~ consigna um denominador comum (o abuso da linguagem: "As pr6prias mulheres são tratadas como signos, dos quais se abusa quando não se lhes dá a
utilização destinada aos signos, que é a de serem comunicados» [pp. 63+35]),
poremos uma questão diferente: porque é que o abuso que constitui o incesto
tem o poder de desencadear uma tempestade na Malásia e o que é qu~ esta
crença tem a ver com a crença malgaxe na esterilidade dos casais incestuosos, e, mais em geral, com o conjunto dos factos relevantes associatlos à
relação incestuosa em diferentes sociedades?
Será dada uma resposta a esta questão, mas deve ficar claro que neste
momento não se pretende dar a única resposta possível, mas sim cl1amar
a atenção para estes problemas e suscitar possíveis análises a partir de qutros
documentos segundo as mesmas linhas de pesquisa. De facto, o 101lg0e
árduo traoalho que consistiria em isolar em cada sociedade conhecida os tra"
ços pertinentes da estrutura social, o corpus das situações reprovadas ou proibidas, o das crenças e das representações relativas a estas situações, ll~ suas
consequências e às sanções que comportam, esse trabalho não foi feito de
uma fortna sistemática. As hipóteses de base nasceram do meu conhecimento
pessoal dos Samo do Alto Volta e foram corroboradas por comparaç~s com
factos tirados ao acaso de outras descrições etnográficas.
Devem no entanto sublinhar-se dois pontos atinentes ao método d~ trabalho adoptado. O primeiro consiste no interesse incidente sobre a sEde de
actos que diferentes populações designam com um termo idêntico, àquele
que se refere ao que n6s chamamos nortnalmente incesto: assim, certas formas de adultério entre familiares, ou as relações sexuais perpetuadas por
dois consanguíneos pr6ximos (pai/fIlho, mãe/fIlha, irmão/irmão, irmi/irmã)
com o mesmo parceiro. Assim, Evans-Pritchard [1949] descreve uma situação de exemplar complexidade passada junto dos Nuer: antes do máis, são
incestuosas (rual) as relações com a irmã da esposa, e o casamento cóm esta
não é possível senão depois da morte da mulher, e s6 no caso de esta morrer troca
sem deixar
fIlhos.
situação
emproibição
termos~sOciais
de
de gado,
masEvans-Pritchard
também porqueanalisa
~la fazesta
parte
de uma
mais
geral, segundo a qual um homem não pode manter ao mesmo tempo relações sexuais com duas niulheres consanguíneas. Do mesmo modo, um
homem não pode ter relações sexuais com a mulher de um parente próximo enquanto este for vivo, pois isto incide sobre a proibição mais Igerll1
que impede dois parentes próximos de terem relações com a mesma mulher.
No entanto, esta regra rígida não se aplica, de fortna aparentemente surpreendente, a certos agnatos entre os mais próximos; por exemplo, as mulheres dos meio-irmãos do pai, dos meio-irmãos, dos primos paralelos patrilaterais,daqueles a quem os Nuer chamam bulls, são parceiros lícitos para um
INCESTO
101
homem, já que, recebida em troca do gado da linhagem, a mulher de um
buli é a mulher de todos [ibid., p. 100]. Do mesmo modo, dois agnatos,
dois membros de uma mesma linhagem, podem cortejar e conviver com a
mesma mulher, o que é proibido a dois cognatos: Evans-Pritchard sublinha
que estes agnatos têm a mesma identidade de linhagem They have a lineage
identity»), o que não se verifica no caso de um tio materno e seu sobrinho.
No entanto, as esposas de outros agnatos são atingidas pela proibição: o adultério com uma esposa do pai diferente da mãe é particularmente chocante
na medida em que o pai tem relaçÕes sexuais com as suas duas l!sposas e
(<<
transmite
assim
à mãetão-pouco
algo do contacto
sexual do
fIlhoesposas,
com a na
c\l-esposa.
Dois irmãos
gertnanos
podem partilhar
as suas
medida
em que essas relações parecem implicar sexualmente de alguma fo~ma a sua
mãe comum. Para Evans-Pritchard, o conjunto destas regras tem como função impedir a confusão entre as diferentes categorias de parentescll; assim,
se um homem não se pode casar corp.a irmã da sua falecida mulher, tendo-lhe esta deixado fIlhos, é porque a irmã da mulher, para os fIlhos, seria
também a mulher do pai, confusão de estatutos inconcebível para Um Nuer.
Veremos que é possível uma outra e:txplicação.Apercebemo-nos e~tretanto,
através deste exemplo bem conhecido, da complexidade da categoria traduzida pelo tertno 'incesto', estendida 'a estes diferentes tipos de rela~ões ilícitas. Poderíamos descrever situações análogas relativamente aos Gusü '[Le Vine
1959], aos Baulé [Etienne 1972; 1975], aos Ashanti [Goody 1956] ~os Mossi
[Pageard 1969], aos Samo [Héritid 1976], e ainda a muitos outros.
O segundo ponto respeitante ao ~étodo adoptado é que foram consideradas como fortnas intimamente ligádas a estas diferentes formas de adultério entre cônjuges ou de relações s~xuais ilíci~as entre ~ndivíduos ~,~ãOaparentados - fortnas que acabámos: de exammar - nao s6 as: liltuações,
representações e crenças que dizem :respeito ao incesto, mas tamb~in as que
se relacionam com a menstruação, cpm as relações sexuais com filhas impúberes, com mulheres menstruadas ou em período de lactação, corb as relações que existem entre os humores (esperma, sangue, leite) elj.$ funções
do corpo. Esta atitude é válida, na, medida em que essas configUrações se
relacionam com a sexualidade, são aPercebidas, através do discurso dos informadores, como correlacionadas e são geralmente evocadas em conjunto, de
uma maneira ou de outra, nos relatórios antropológicos.
'
No seu célebre artigo de 1897, Durkheim explica assim a proibição do
incesto como sendo uma espéCiede~\Ibproduto da regra exogâmicll, ela própria fundamentada no horror religioso do sangue menstrual. Este hdrror faria
parte da categoria mais geral do ho.ttor pelo sangue, por sua vez originada
pela crença na consubstancialidade,'dos membros do clã com o seu totem.
No seu conjunto, o argumento foi, 10ngamente debatido, mas Durkheim,
com admirável argúcia, realçou al~
pontos muito interessantes, aos quais
será necessário voltarmos, e sobretúdo faz um inventário dos factl)s e cren·
ças relativos ao sangue e à menstniação, à cura medicinal e ao pbder. Ele
indica as estritas semelhanças que existem entre as proibições relativas às
mulheres durante a menstruação ou o parto - proibições explicadas pelo
terror e pela repulsa que suscitam as impurezas por elas expulsas - e as
INCESTO
102
que se referem à vida quotidiana dos soberanos mais sagrados, mesmo
quando nada neles pode suscitar em outrem as mesmas repulsões. Estas duas
situações extremas de repugnância e de veneração encontram-se, para Durkheim, associadas, porquanto se traduzem ambas pelo tabu. Assim, um pouco
por todo o mundo, sob formas ligeiramente diferentes, em várias populações, as raparigas são hermeticamente isoladas durante as suas primeiras
menstruações e mantidas longe não só· do contacto com os homens, mas
também do contacto com a terra e com o sol, que teria «uma atracção especial» [Durkheim 1897, p. 42] para esta, jovens mortais. Em certos casos,
esta reclusão pode durar vários anos. As mulheres que se encontram no
período menstrual e as parturientes s~o normalmente também objecto de
proibiçõe~ que se explicam pela influên~ia nefasta que elas exercem à sua
volta. Mas «esta mesma regra que proíjJe a jovem, atingida a puberdade,
de tocar o solo ou de se expor aos raiOs solares, aplica-se também a reis
e sacerdo~es venerados. O mikado, no ~apão, não deve calcar o solo com
os seus prÓprios pés: caso contrário, incorreria na degradação; além disso,
não deve permitir que os raios solares cheguem perto dele, nem expor a
sua cabeça ao ar livre. Na Colõmbia, o herdeiro do trono de Bogotá deve,
a partir dos dezasseis anos, viver num j:luarto escuro onde o sol não penetre. No Peru, o príncipe destinado a· tornar-se um inca tinha de jejuar
durante ~m mês sem ver a luz» [ibid'l p. 56].
Já se pôs anteriormente a questão de saber o que poderiam ter em comum
certas sanções sobrenaturais do incesto, como nos exemplos de esterilidade
e do desencadear da tempestade presentes em diversos lugares. Em ambos
os casos e de idêntico modo é o conteúdo das proibições, e não a proibição
em si, que põe o problema: porque é que a rapariga menstruada, tal como
os soberanos japoneses ou incas, ou ainda o senhor samo da chuva, não
podem ser levianamente postos em presença do sol?
Se considerarmos a cura médica, Durkheim mostra que o sangue feminino que corre, porquanto seja perigoso - principalmente o das primeiras
menstruações ou do parto de uma primípara -, é também dotado de propriedades curativas excepcionais. Este factor é comprovado na própria Europa
até à Idade Média. Mas a lista das doenças curadas através de unções na
pele feitas com este sangue não é de somenos importância: furúnculos, sarna,
usagre, febre do leite, inflamação das glândulas salivares, lepra. A inflamação das glândulas salivares, para nos atermos apenas a esta, compreende também as escrófulas ou alporcas que os reis de França curavam por imposi,rão
das mães (reencontramos, pois, a relação entre sangue menstrual e sagrado,
já não nas proibições que eles fazem nascer, mas nas suas qualidades profundas), «humores frios», afirma Littré, nascidos, segundo Ambroise Paré,
de um «abcesso corrompido e podre». Mais do que designar as crostas lácteas, o usagre designa uma espécie de alporcas cavalares. Mas porque é que
são justamente as doenças de pele, quentes, frias, ressumbrantes ou secas,
que são curadas pelo sangue menstrual?
Em Ponape, pensa-se que os indivíduos que cometeram incesto apresentam sinais físicos de esgotamento, nomeadamente olheiras muito carregadas
[Fischer e Ward 1976]. Para os Bobo, a relação sexual com uma fllha impúbere
INCESTO
103
implica uma debilidade particular do parceiro masculino e a perda da sua
virilidade. Em Mount Hagen o sangue menstrual é conhecido como desfavorável à «gordura» masculina (o mesmo termo designa o sémen do homem).
Se um homem o ingere, através do pénis ou na sua alimentação, «a sua pele
perderá a "gordura", tornar-se-á seca, e o corpo macilento» [Strathern 1971,
p. 162]. Para os Bobo, como em Ponape, o incesto implica a seca, já não
a seca metafórica do corpo ou dos humores, mas a seca meteorológica:
acredita-se que a chuva deixará de cair no país bobo se os parceiros de um
casal Úlcestuosoou os seus filhos forem sepultados após a morte. Em Ponape,
uma seca que se fez sentir em 1971 sobre uma ilha do distrito foi atribuída
a uma maldição sobrenatural, consequência directa das práticas incestuosas
da população que vivia naquela ilha. Para os Palawan das Filipinas [Macdonald 1977], consequência [do incesto] mais vulgarmente aceite é a destruição das colheitas - nomeadamente de arroz - após uma chuva ou um
calor excessivo», com consequentes inundações ou secas. Em nota [ibid.,
p. 103], Macdonald acrescenta que, segundo vários informadores, tanto um
incesto com a mãe provoca um excesso de chuva, quanto aquele que é perpetrado com a irmã provocaria um excesso de calor, enquanto qualquer tipo
de incesto provoca indiferentemente dilúvio ou canícula. Para os Kaguru
matrilineares, a proibição mais rigorosa diz respeito às relações sexuais entre
membros do mesmo matriclã; segue-se depois a proibição que concerne as
relações entre indivíduos cujos pais pertencem ao mesmo matriclã (eles estão
em posição simétrica em relação aos membros desse clã). Mas o delito mais
comum, mahasa, consiste em infringir a norma que estabelece que dois
irmãos de clã não devem casar com duas irmãs de um outro clã, e ainda
que um homem não deve seduzir ou cortejar duas irmãs, sejam elas celibatárias ou não. Não se trata portanto de um adultério banal, uma vez que,
tal como para os Nuer, os parceiros podem ser os três celibatários. Segundo
Beidelman, esta variedade particular de incesto é considerada deste modo,
pois ameaça a solidariedade dos grupos matrilineares, instaurando uma competição entre as mulheres pelo afecto ou fidelidade dos amantes ou eventuais maridos. Independentemente da verosimilhança desta explicação de teor
funcionalista, o que parece importante sublinhar é que a sanção sobrenatu·
ral de todas as variedades de incesto, mahasa inclusive, se aplica às mulhe·
res, «impuras», que se encontram ameaçadas pela esterilidade ou de terem
uma progenitura anormal, e aos seus consanguíneos de matriclã. O sangue
dos consanguíneos, segundo Beidelman, é estragado, aquecido, possível fonte
de doença e de esterilidade; isto pode mesmo chegar a atingir os rebanhos,
ou as colheitas, sendo assim a própria terra aquecida e estragada [cf. Need·
ham 1971]. O simples facto de se saltar por cima de um parceiro sexualmente proibido, quando este se encontra sentado de pernas estendidas ou
deitado, se não tem efeitos desastrosos para o grupo, tem-nos para os próprios indivíduos, provocando o aparecimento de úlceras na superfície do
corpo. Para os Muria, no gotul, uma rapariga culpada de um incesto, seguido
de gravidez com um rapaz pertencente ao mesmo clã do que ela, é por isso
punida com uma «abundante hemorragia» [Elwin 1959, p. 230]. As mulhe«a
INCESTO
104
res culpadas de adultério comprometem, por sua vez, a colheita do ano;
os seus corpos e os dos seus parceiros «cobrem-se de chagas e de inchações
e uma hidropisia condu-Ias a uma morte miserável» (ibid., p. 391].
Quer se trate, pois, das consequências directas inscritas nos corpos dos
culpados e nas suas funções biol6gicas, ou de perturbações da natureza e
dos ecossistemas, poderíamos prosseguir infindavelmente este inventário etnográfico das sanções imediatas do incesto, pormenores citados geralmente de
passagem que remetem todos às mesmas interrogações: a do sentido, a das
relações de sentido que subtendem as relações sociais, a da inscrição (talvez) das relações de sentido numa 16gica universal.
É aqui postulado que as diversas crenças relativas ao incesto, enumeradas ou' não neste artigo, não devem ser consideradas como superstições absurdas, privadas de todo e qualquer outro interesse que' não o de sublinhar
triunfantemente, devido à sua própria insensatez, a necessidade da tegra
social; que as crenças simbólicas de todos os grupos humanos relativás ao
incesto, aos seus efeitos, às suas sanções, se encontram ligadas às crenças
relativas às relações entre os sexos, à organização e ao funcionamento biol6gico e, muito verosimilmente, a outros sectores de representações, tais como
a relação dos elementos, a organização e o funcionamento do mundo; que
qualquer corpus étnico de representações, relativo à· organização do corpo,
do mundo, da sociedade e às suas múltiplas inter-relações, se refere a certas leis fundamentais, universais e subjacentes a um grande esquema universal de organização, geralmente implícito, mas do qual encontraremos por
vezes fragmentos de explicitação crua nos discursos dos informadores referidos pela etnologia.
Não se trata de pretender demonstrar estes três pontos de forma pormenorizada, mas talvez não seja demasiado absurdo mostrar nas suas grandes
linhas o percurso de um raciocínio.
Para o fazer, partiremos dos sistemas semicomplexos de aliança, isto é,
dos sistemas ditos crow-omaha, e de certas particularidades das proibições
matrimoniais que aqui se encontram. Referir-nos-emos mais particu1arn\ente
ao exemplo dos Samo do Alto Volta, exemplo que provém dos sistbmas
omaha [Héritier 1976]. A partir de uma análise sucinta destas particularidades, tentaremos demonstrar que elas se referem a um simbolismo elementar do idêntico e do diferente. Tentaremos em seguida demonstrar que!,este
simbolismo elementar do idêntico e do diferente é universal, quaisqub· que
sejam
os aspectos
particulares~sob
os cada
quaispovo,
ela é cujas
encaradal
pelos
diferentes
povos, eexteriores
variável segundo
o génio de
combinações permitem o desenrolar do fio coerente dos discursos simbólicos sobre
o incesto.
É sabido que os sistemas omaha se caracterizam por conjuntos dei proibições matrimoniais mais ou menos vastas que variam entre dois e quatro
clãs ou linhagens patrilineares proibidas. Para os Samo, existem quatro: as
linhagens de Ego, da sua mãe, da mãe do seu pai, e da mãe da sua mãe.
A regra de proibição fala em nome de um Ego masculino e em termos de
105
INCESTO
linhagem, ou seja, de filiação agnatícia: é proibida toda e qualquer união de
Ego com membros femininos dos seus grupos aganatícios, qualquer que seja
o seu grau real de consanguinidade com Ego.
Em seguida enunciam-se proibições, que não fazem necessariamente
recurso à lei exogâmica entendida nos seguintes termos de linhagem: 1) extenção da proibição a todos os consanguíneos agnatícios durante três gerações,
dado que o antepassado comum às uniões proibidas é posto na geração +4;
2) extensão da proibição aos afros. Voltaremos mais adiante ao primeiro ponto;
debrucemo-nos agora sobre o segurldo.
É proibido um homem escolher uma esposa nas linhagens nas quais um
«pai» (um homem da sua linhagem; pertencente à geração do seu pai) ou
um «irmão» (um homem da sua linhagem, da sua pr6pria geração) tenham
já escolhido uma esposa. Simetricamente, é portanto impossível uma mulher
casar-se numa linhagem na qual u~a «irmã» (mulher da sua linhagem, da
sua geração) ou uma «irmã do pai» (mulher da sua linhagem, da geração
do seu pai) se tenham já casado. Por extensão, isto implica também (regra
explicitamente formulada pelos Samo) a proibição de toda e qualquer relação sexual adúltera com a mulher de um agnato durante a vida deste, sendo
o levirato não apenas possível mas ~esejável, uma vez que a mul~er dada
em casamento a uma linhagem constitui um bem da linhagem. Esta relação
adulterina tem o nesmo nome (dyilibra) que a relação incestuosa entre consanguíneos verdadeiros. Sempre por extensão da regra segundo a qual dois
agnatos não devem cortejar nem casar no mesmo lugar, é proibido com mais
razão
homem
casar ou mas
simplesqlente
conviver
com parente
uma «irmã»
da sua
esposa,umirmã
de linhagem,
também com
qualquer
pertencente
às linhagens da mãe, mãe do pai, e' mãe da mãe da sua esposa. Simetricamente, isto implica que duas parentes cuja relação geneal6gica podê ser descrita e, com mais razão, duas irmãs ,não s6 não podem casar com.,o mesmo
homem, como ainda não devem ter relações sexuais com ele. A mtllher que
venha a saber que o seu marido con'J'Íveclandestinamente com unUl parente
sua, deixa-o. Estamos em graus divl!rsos, ao nível das sanções e das consequências, no domínio do dyilibra (iJnpudência). Estes factos lembtam, claramente, factos análogos citados atlflis, no caso dos Nuer ou dos Kaguru.
Mas gostaríamos de insistir sobre unl ponto: o princípio da não-reduplicação
da união, que parece tão evidente nl\s',regras samo e que seria típi~~ dos sistemas semicomplexos de aliança [Lé\71-Strauss1947], não esgota tO,doo significado destes factos, pois não se trata apenas de aliança proibida, mas também simplesmente de relações sexudill proibidas: a c6pula com os,parentes
da esposa como com as esposas dos agnatos vivos é proibida tal como o casamento. Independentemente das expUcaçõesque possam ser dadas recorrendo
à recusa da competição afectiva (Baidelman), ou à preocupação de não misturar indevidamente as categorias de parentesco (Evans-Pritchard), parece
- considerando o conjunto destas ~roibições e o que sobre elas tlizem os
pr6prios informadores, sem tentar r,duzi-los ao nosso ponto de vista - que
somos induzidos a propor uma segunda definição do incesto. Já não se
trata da relação que une dois consarlguíneos de sexo diferente numa relação
sexual proibida, mas da relação que une dois consanguíneos do mesmo sexo
INCESTO
106
que partilham um mesmo parceiro sexual. Os consanguíneos do mesmo sexo,
na relação de irmão/irmão, irmã/irmã, pai/filho, mãe/filha, são os que se
encontram em posição incestuosa por via do seu parceiro comum e que lhe
suportam os perigos. No mahasa dos Kaguru, os perigos de esterilidade e
de doença por inflamações visam as duas mulheres consanguíneas implicadas na relação comum com um mesmo homem e as suas consanguíneas de
matriclã. Entre os Samo, quando urna mulher casada vem a saber que o
marido tem relações sexuais com urna dllSsuas primas, afasta-se com medo
e encolerizada contra o marido e a parente que a fazem correr riscos. Entre
os Gusii, «quando dois homens do mesmo clã tiveram relações com a mesma
mulher casada, quer ela seja mulher de um, deles quer não, pensa-se que a visita
de um ao outro quando este último se epcontra doente tem por consequência directa a morte do doente» [LeVine 1959, p. 972], o que tem alguma
importância nas relações quotidianas entre irmãos, meio-irmãos e primos.
Neste caso também não se trata nem dq:incesto nem de adultério propriamente ditos, mas do simples encontro num mesmo objecto sexual de dois
consanguírteos situados numa relação, Rue não é indiferente, de germanidade ou de geração. Entre os Baulé [Etienne 1972; 1975], são radicalmente
proibidos li poliginia sororal e o sor6rio e ainda as relações sexuais de um
homem com duas irmãs ou duas primas uterinas. Acaso isto venha a ser
do conhecimento geral, «as duas raparigas são obrigadas a submeter-se aos
mesmos rituais que sancionam o incesto entre urna prima e um primo uterinos. São elas que dessecam o cabrito ou o carneiro; são elas que se ferem
nuas com as duas partes do animal, 840 elas que são objecto de chacota
da assistência, é a elas, enfim, que é administrado o sacramento da purificação. O rapaz não é de modo algum implicado nestas cerim6nias» [Etienne
1972, p. 41]. Pierre Etienne, tanto qUlUltosabemos, foi o primeiro antrop610goque põs a hipótese do incesto como «relação entre pessoas do mesmo
sexo que usufruíram do mesmo objecto de satisfação sexual» [ibid., p. 106].
Ele procura a explicação para isto não corno tessela de um mosaico ideológico que transcende o quadro local, mas na estrutura das relações entre
sexualidade feminina e sexualidade masculina, o que não deve ser posto de
parte apesar de esta via ter sido negligenciada no presente artigo. Entre os
Antemoro do baixo vale do Faraony [segundo Dubois, citado in Etienne
1972] o ritual da fafy intervém para sancionar certos casos de incesto: este
tem por efeito quer o cancelamento da relação de parentesco para dar l~ar
à relação sexual quer, inversamente, o cancelamento da relação sexual para
dar lugar à relação de parentesco. Dubois mostra que existe urna relação
incestuosa entre consanguíneos do mesmo sexo que têm ou tiveram um
mesmo parceiro sexual, mas estes consanguíneos do mesmo sexo encontram-se, neste caso malgaxe, numa relação não de germanidade, corno no caso
baulé, mas de geração. Assim, se um homem tem relações sexuais com a
filha da sua esposa, a filha com este acto destr6i aquilo que fazia mãe a
sua mãe e coloca-a em situação de impureza. A fafy, aspersão purificadora
de sangue executada pela filha sobre " corpo da mãe, tem por objectivo
renovar a relação mãe/filha suprimindo o efeito das relações sexuais.
107
INCESTO
Mas a relação incestuosa que convém suprimir para restabelecer os a~tigos
laços é a de mãe e fllha, e não a verificada entre a fllha e o marido da mãe.
Nas nossas próprias sociedades ocidentais, certos factos abonam a favor
da hipótese segundo a qual esta segunda variante do incesto não é estranha
às nossas mentalidades. Parece-nos entrever isto na definição dada por Littré. Nas confissões registadas pelo inquisidor Pierre Fournier a Montaillou
[Le Roy Ladurie 1975] aparece por diversas vezes, a páginas 55-56, 162-63,
182, 198-99, a hist6ria de um homem que persegue urna mulher que acontece ser a amante, não a esposa, de um dos seus primos germanos, e que
renuncta ao alvo das suas perseguições quando a mulher o põe ao corrente
da situllÇão particular em que ela se encontra «(tu não deves tocar carnalmente O corpo de um primo germano nem mesmo através do corpo interposto de um amante comum, pois aquele já te toca naturalmente» (trad.
it. pp. 198-99)). Do mesmo modo, se procurarmos atentamente os motivos
pelos quais se considera corno incestuosa a relação entre um padrasto e a
fllha da· sua mulher, ou entre um homem e a irmã da sua mulher (foi ainda
recentemente um dos casos jUrídicosde incesto na Inglaterra), seremos obrigados a admitir a validade desta interpretação ou, pelo menos, a não recusá-Ia
sem um exame mais aprofundado. E exactamente porque é que Fedra é a
tragédia do incesto por excelência? Dizer que a relação sexual com parentes
por afinidade é um incesto porque estes, mediante o casamento, se situam
no mesmo quadro conceptual dos consanguíneos - e então a relação sexual
com os parentes por afinidade constitui um factor de distúrbio e de confusão dos papéis - é urna justificação, não urna causa. De resto não é certo
que, na ausência de casamento juridicamente consagrado, a consciência popular não considere incestuosa a relação sexual entre um homem e a fllha da
sua companheira.
Devemos ainda sublinhar que esta interpretação é perfeitamente conveniente para explicar as razões pelas quais certas formas de adultério, nomeadamente com as esposas de parentes, são consideradas, denominadas e tra, tadas corno incestuosas por numerosas populações, e até mesmo por vezes
corno um incesto dos mais detestáveis. Ela é adequada igualmente para dar
conta, de urna maneira rápida e simples, da homologia de natureza entre
diversas formas de relações sexuais adulterinas proibidas. Goody [1956], contrariamente às teses de Evans-Pritchard e de Malinowski, separa totalmente
o incesto da exogamia. Ele torna corno prova o facto de a lei da exogarnia
não poder de modo algum explicar que o adultério com as esposas dos consanguíneos de linhagem seja designado e tratado corno incesto, uma vez que,
por definição, as esposas destes consanguíneos entram necessariamente na
categoria geral das esposas permitidas. Ele estabelece corno consequência
urna tipologia dos delitos sexuais para dar conta dos factos observados junto
de diversas populações africanas: 1) relações com um membro do próprio
grupo de flliação, ou incesto; 2) relação com a esposa de um membro do
grupo, ou adultério consanguíneo; 3) relações com urna mulher casada, fora
do grupo, simples adultério. Mas isto não lhe permite, a bem dizer, justificar absolutamente as utilizações terminol6gicas locais nem situar de forma
INCESTO
108
segura as relações adulterinas com a mlle ou a irmll da esposa. Se considerarmos o que os informadores ashanti metem na mesma categoria atwebenesie (segundo Rattray [cf. Goody 1956, p. 305], adultério com a mulher de
um irmlIo, de um fIlho, com a mãe da mulher, a mulher de um tio, a mulher
de um companheiro de fekuo, a mulher de um companheiro de uma associação, a mulher do próprio escravo, a mulher do pai que não a mãe, a irmlI
da esposa, seja ela celibatária ou casada), verificaremos efectivamente que
uns são adúlteros com as esposas dos membros do grupo (em sentido lato,
aliás: matriclã, abusua, ou patriclã, ntoro; e ainda metonímico: esposa de
um consanguíneo, por classe de idade, ou de um escravo), enquanto outros
(com a mãe ou a irmã da esposa) ocorrem fora do grupo. Mas, do nosso
ponto de vista, os informadores ashanti designam muito logicamente com
o mes~o no
no~e
a~uelas
relações~
preocuparem
com «adulténos»
a difer~nça Ulcestentre
adulténo
mtenor
ou no
extenorsem
do se
grupo,
porque estes
tuosos re:netem explicitamente para a mesma situação formal, a do incesto
do segundo tipo. Num caso, o incesto existe entre dois consanguíneos' masculinos, verdadeiros ou assimilados, que partilham a mesma parceira s'exual
(pai/fJ1ho, irmão/irmão, tio/sobrinho, sendo a relação senhor/escravo uma
relação de paternidade; a relação de camaradagem, uma relação de fraternidade); no outro, o incesto subsiste entre duas consanguíneas femininas que
partilham entre si o mesmo parceiro sexual (mlle/fJ1ha, irmã/irmão):
Este último incesto tem um ponto fundamental em comum com o incesto
j
do
primeiro
na medida
em que
é, tal como
fundamentado
na
oposição
entretipo,
idêntico
e diferente.
Poderíamos,
pois,este,
encarar
as duas V$rÍantes do incesto como as duas ramificações possíveis do mesmo substratbideol6gico. Mas, primeiro, devemos voltar à extensão das proibições o~ha a
todos os consanguíneos cognáticos durante três gerações, extensão está que
mais acima tínhamos deixado provisoriamente de parte.
'
São assim proibidos, para um Ego masculino samo, não s6 o casllrnento
com mulheres que pertençam por nascimento através da ftliação agnatícia
às. suas linhagens proibidas, como ainda qualquer casamento com parentes
cognáticos até ao sexto grau (segundo o modo consuetudinário de cálculo,
quaisquer que sejam as suas linhagens patrilineares de pertença). É-lhe por
exemplo impossível casar com a filha da prima paralela matrilinear dJl sua
mãe. (Duas primas encontram-se em situação paralela quando nascom seja
de dois irmãos seja de duas irmãs; e eÍD situação cruzada quando Mscem
respectivamente de um irmão e de uma irmã).
;
r
.
Esta configuração
não os
é uma
particularidade
dos eSarllq;
ela
encontra-se
também entre
Mossi,
no Alto Volta,específica
entre os Bete
o~ Baulé
na Costa do Marfim, entre os Mkao Mgobendi nos Camarões, etc. todavia, na maior parte destes povos é possível que, quando a relação incestuosa é descoberta post facrum e se por acaso não existem outros parceiros
possíveis, o casamento seja válido ou permitido, sob condição de se efectuar um ritual que tenha como objectivo cortar o parentesco existente entre
INCESTO
109
Area
de consanguinidade
cognatícia·
Quatro linhagens· proibidas,
ftliação apenas por m masculina
sem limitalfão
Gerações
proibidas
sem limitação
do número
de linhagens
de profundidade gFneracional
marido e mulher, e obrigar os cônjdges a envergar durante toda ,aIvida um
bracelete especial que lembre aos outros e a eles pr6prios a particularidade da
sua união. Isto s6 é possível, evidentemente, para um certo númerd de posições de consanguinidade, aquelas qu:esão consideradas como as mais distantes, em função da maneira pela qual:é hierarquizado o campo do pàrentesco
por parte daqueles que o vivem. Acrescentemos que esta extensão se deveria
encontrar
necessariamente
em todas/as
sociedades
de terminOlogia.e
sistema
matrimonial
de proibições omaha,
sempre
que seja proibido
o casamento
com
a prima paralela matrilateral (isto é,; a fIlha da irmã da mãe). Se I:$ta prima
é interdita, a razão de ser disto encoIltra-se no facto de ela pertencer 'por filiação patrilateral a uma linhagem que lpe é proibida. Eis a explicaçãd que a este
propósito nos é fornecido pelos Sam<l:estas duas primas encontr~",se ambas
como as mesmas sobrinhas uterinaseln relação aos tios maternos" :Eles são,
pois, proibidos entre si como parcefros no casamento e nas relações sexuais,
porque têm em comum a mesma liJ1hagemmaterna e ocupam, pdr isso, as
mesmas posições em relação aos membros desta linhagem.
.
Se admitirmos, como princípio ~e uma ordem geral, que qua1quer sistema social particular tem um dever de coerência interna, por forma a permitir a aprendizagem do sistema ppt parte daqueles que devem praticá-lo
e reproduzi-lo, então deve admitir-se que, se os exemplos omaha conhecidos mostram a proibição da união 'entre os fJ1hosdas irmãs, este simples
facto implica que a noção de partilhar uma mesma linhagem materna é um
critério pertinente do modo pelo quál são elaboradas as proibições (segue-se que estas não se devem única e'exclusivamente ao princípio da miação
unilinear). Por extensão, quando existem mais de duas linhagens {lU sublinhagens proibidas, este mesmo pridcrpio deve ser aplicado ao conjunto dos
consanguíneos cognáticos, isto é, ligados a estas linhagens proibidas por intermédio das mulheres, segundo percursos genealógicos defmíveis no espaço
de três gerações. Neste caso tratar-se-á ·de consanguíneos cognáticos com
a av6 ou a bisav6 em comum.
INCESTO
111
110
No entanto, verifica-se [Héritier 1976] que os Samo escolhem de preferência o cônjuge na quinta geração (sendo a primeira aquela na qual se situa
o antepassado masculino comum às duas linhagens de descendência); não
entre o conjunto dos primos propriamente cognáticos do oitavo grau, isto
é, de todos aqueles que descendem de duas irmãs, filhas do antepassado
comum (existem ao todo dezasseis casos de combinações possíveis para um
Ego masculino, e naturalmente outro tanto para um Ego feminino), mas,
e de forma· muito significativa, entre primos ligados através das mulheres
a uma das linhagens patrilineares proibidas de Ego, a começar por aqueles
que se encontram ligados à sua própria linhagem paterna (quatro combinações possíveis para um Ego masculino: Fa Fo Fo IPPP, Fa Fa Fo IPPP,
Fa Fo Fa IPP, Fa Fa Fa IPPP (Fa=Filha, Fo=Filho, I=Irmã, P=Pai),
e ainda às que se encontram ligadas à linhagem paterna da própria mãe,
etc. É, pois, evidente que a extensão da proibição aos consanguíneos cognáticos até três gerações não é necessária ao bom andamento de um sistema
que funcionará de preferência com o encerramento a todas as cinco gerações, uma vez que não são os primos puramente cognáticos do oitavo grau
que se casam entre si. Pelo contrário, o encerramento à quinta geração pode
ser descrito tendo unicamente em conta o facto de que as regras das proibições relativas às linhagens são levantadas ao cabo de três gerações, sob condição de haver perfeita simetria entre a situação do Ego masculino e a do
Ego feminino.
Qual é então o motivo recôndito desta extensão aparentemente inútil das
proibições relativas aos parentes cognáticos, ou seja, àqueles que se limitam
a ter em comum as mesmas linhagens maternas ou da avó, e isto até à terceira geração?
A verdade é que passa através dos indivíduos «qualquer coisa" que nlo
desaparece por intermédio dos homens e que leva três gerações para diluir, -se e perder-se no momento em que, por intermédio das mulheres (cf. infra,
p. 118), pelo menos uma vez, passa qualquer coisa que proíbe a união entre
os seus portadores enquanto a sua diluição não for completamente realizada.
No século Xl, segundo o direito canónico, era necessário que sete gerações
tivessem decorrido antes que, passando através dos homens ou das mulheres (o sistema é cognático e não patrilinear como o anterior), se extinguisse
definitivamente esta afinidade entre diferentes ramos provenientes de um
mesmo antepassado, que Pier Damiani, Padre da Igreja, chama «o odor" do
1
INCESTO
parentesco: ,<Aprópria natureza provê a que o amor fraterno se reconheça
até ao sexto grau de parentesco nas entranhas humanas e exale como que
o odor da comunidade natural que existe entre parentes". Para além da
sétima geração, «quando a família baseada no parentesco vem a faltar, ao
mesmo tempo que as palavras para a designar, a lei do casamento aparece
imediatamente e restabelece os direitos do antigo amor entre homens novos"
[citado in Migne, Patrologia latina, CXLV, cols. 191-208].
Consideremos um outro testemunho. Para os Samo, o primogénito de
uma mulher não é o mho do marido legítimo da mãe, que é o pai social,
mas o mho de um amante oficialmente reconhecido; a criança nascida nestas condições deve sempre ignorar a identidade do seu genitor. As proibições matrimoniais que lhe são impostas são as provenientes da mãe e do
pai social, o que se coaduna com o princípio durkheimiano segundo o qual
qualquer repressão do incesto pressupõe relações de parentesco reconheci·
das e organizadas pela própria sociedade. No entanto, se um homem deseja
casar-se (ou frequentar como amante oficial) com uma rapariga que nenhuma
proibição matrimonial, de uma parte ou de outra, separa dele, mas que seja
na verdade sua meia-irmã agnática pelo sangue - quer se trate de uma rapariga que o amante da sua mãe, o seu genitor, gerou no interior do casamento ou não com uma outra mulher, ou de uma rapariga que o próprio
pai gerou enquanto amante em benefício de um outro homem - então dá·
·se-lhe a conhecer, e neste caso apenas, o laço biológico que os une. É evidente que isto levanta um problema: se é, como parece, apenas o laço social
que predomina nas exclusões matrimoniais e que conta para o reconhecimento do parentesco; porquê impedir este casamento que só é consanguínco de uma maneira biológica? Não pode ser senão por causa daquela «qualquer coisa" que se estabelece entre os indivíduos através da miação e da
qual um escrúpulo, a sombra de uma dúvida, reconhece a presença no simples conceber: é a isto que chamamos a noção de idêntico.
Duas coisas idênticas possuem uma mesma definição e características
comuns. Por exemplo, dois primos paralelos matrilaterais têm como carac. terísticacomum a de estarem na mesma situação em relação à sua linhagem
materna; do ponto de vista desta linhagem, eles são idênticos. O filho da
minha mãe sou eu, característica que partilho com os meus irmãos. Os critérios que servem para separar o idêntico do diferente variam naturalmente
segundo as sociedades, e cada cultura constrói para si própria a este propósito o seu próprio sistema simbólico. Para além disso, existem certamente
gradações, específicas de cada cultura, nas defInições da identidade e da diferença. Uma vez admitido isto, é possível sublinhar alguns pontos constantes, cuja observação é de resto muito banal, uma vez que eles giram em
torno da identidade ou da diferença de sexo e das relações paralelas ou cruzadas que se instauram, seja por filiação seja por colateralidade.
Na colateralidade é uma lei geral, como Lévi-Strauss faz notar [1974],
«a ideia de que a relação irmão/irmã é idêntica à relação irmã/irmão, mas
que uma e outra diferem da relação irmão/irmão e da relação irmã/irmã, que
INCESTO
113
1I2
por sua vez são semelhantes entre si» (trad. it. p. 194). É este o principio, bem
conhecido depois das observações de Radcliffe-Brown, da identidade dos germanos do mesmo sexo. O idêntico mais forte é o do gémeo do mesmo sexo,
e em seguida, no âmbito dos germanos (irmãos e irmãs com pelo menos um
genitor comum), o germano do mesmo sexo; no âmbito dos primos, o paralelo
\I elementar
do mesmo da
sexo,
diversidade,
etc. Com atoca-se
negação
verosimilmente
impossível da no
diferença
nó da reflexão
dos sexos,
dosmarca
gruI pos humanos sobre si mesmos, a partir da qual se constitui qualquer organização social e qualquer ideologia. Isto parece evidente a partir do momento em
que consideramos algumas ausências curiosas no leque das possibilidades lógicas
das organizações de parentesco. Assim, se nos referirmos aos critérios de determinação dos grandes tipos de estruturas terminológicas fundamentadas na denominação dos germanos e dos primos, apercebemo-nos de que falta uma, e uma
só, posdbilidade lógica. Encontram-se satisfeitas, e mesmo abundantemente
pela quarta de entre elas, as configurações lógicas seguintes:
I'
Paralelos = cruzados = germanos havaianos
Paralelos'" cruzados'" germanos sudaneses
[Paralelos = cruzados] '" germanos esquimós
[Paralelos=germanos] "'cruzados iroqueses, crow, omaha,
mas não parece que se possa citar o exemplo da realização de uma estru-
=germanos]
"'paralelos.
I tura
terminológica
de conjunto concebida sobre a . equação [cruzados=
1
ela mesma o paralelismo das situações; estes dois traços são universalmente
A noção como
de idêntico
na comunidade de sexo, que engendra
percebidos
sendo concentra-se
da mesma natureza.
Quando é o conceber que é privilegiado, e não a relação de germanidade, para a determinação do idêntico, a comunidade de sexo continua ainda
a ser o critério fundamental: as relações mãe/fllha e/ou pai/fllho são concebidas por algumas sociedades particulares como suportes privilegiàdos da
identidade, relativamente às relações cruzadas pai/fJ1ha,mãe/filho. Verificam-se também a este nível algumas ausências curiosas no campo das possibilidades lógicas dos modos elementares de flliação. Needham [1971] ehumera
seis, das quais quatro têm actualizações garantidas:
m
f
(m
-+
-+
-+
m
f
m)+(f
m/f
-+
patrilinearidade
matrilinearidade
-+
f)
m/f
pilinearidade, combinação dos modos
precedentes na definição de cada estatuto
sistema cognático,
mas as duas últimas
(m -+ f) + (f -+ m)
(m -+ m) // (f -+ f)
sistema alternado
sistema paralelo
não poderiam provavelmente servir de princípios de transmissão e de integração regulares exclusivas, embora se possam assinalar algumas aproxima-
I
INCESTO
ções raras e incertas. O sistema paralelo, apesar de pouco cómodo, é em
contrapartida seguramente mais viável do que o sistema alternado, no qual
os direitos e os estatutos se transmitiam apenas de macho a fêmea e de fêmea
a macho.
É evidente que, como já foi dito anteriormente, concatenações diversas
e complexas da noção de idêntico existem conforme as populações; concatenações ideológicas que estão no próprio coração das escolhas paradigmáticas estabelecidas por cada sociedade na constituição da sua organização social,
em sentido lato. Mas o interesse global da ausência de realização (ou a representação muito débil) de fórmulas que existem logicamente e com as quais
nos poderíamos divertir a tentar inventar as regras de funcionamento, é simplesmente o de demonstrar, se nece$sário, que os grupos humanos pensaram todos segundo as mesmas grandes linhas as suas categorias de idêntico
e de diferente, pelo menos de forma negativa: não há exemplo no qual a
noção de idêntico, como categoria ideológica global, tenha sido construída
sobre o primado absoluto da similitude dos parentes cruzados.
Poderíamos preparar um inventário de resumos etnográficos que pusessem em relevo, de forma mais ou menos directamente ligada à proibição
do incesto, a noção de idêntico. De qualquer modo, a questão é levantada
muito frequentemente, pelo menos de uma maneira incidental e Justificativa. Existem no entanto textos nos quais a noção de idêntico, em relação
à proibição do incesto, é examinada de forma mais explícita nas sUas relações com as representações da pessda e em particular com as que I se referem à constituição do indivíduo e aO$contributos respectivos dos genitores.
Huntington [1978] mostra assim as ratões pelas quais, para os Bara de Madagáscar, o incesto mais abominado nã6 é aquele que une germanos ou outros
parentes primários, mas especificame~te os filhos de irmãs e por vátias gerações; isto porque provêm do «mesmo coração», da «mesma matriz», do
«mesmo estômago». Os meio-irmãos 'lIgnáticos, embora pertençam 1mesma
linhagem, são apenas considerados como «quase-irmãos».A sua proximidade
é mais social do que verdadeiramente ,íntima. Os fIlhos dos dois irmãos poderão, portanto, casar-se se executarem o ritual apropriado. Quanto ao casamento preferido, será o dos primos cruzados. Vê-se bem neste casd,a forma
pela qual uma sociedade constrói a sua própria gradação do idêntico, encarada como comunidade paralela de se~o, seja colateral, como neste ckso específico, seja por fIliação. Esta construção está necessariamente de acordo com
os traços elementares da organização ,social (filiação, casamento, poder, etc.).
Em Tokelau [Huntsman e Hooper 1975], os germanos completos são concebidos como seres idênticos (tutuha 'os mesmos') e esta identidade comporta atitudes diferentes segundo os seus expoentes sejam do mesmo sexo
ou de sexo diferente. A separação entre irmão e irmã em domínios tão delicados como a partilha da mesma residência, a alimentação em comum ou
a brincadeira de ordem sexual é completa.
Isto conduz-nos ao ponto seguinte: a proibição do incesto em geral não
tem necessidade de ser decretada como regra social senão a partir do
momento em que o principio do idêntico deixa de ser tão fortemente estru-
INCESTO
114
turado, ou seja, normalmente quando são postos em relação consanguíneos
de sexo diferente, dado que a mais forte estruturação do idêntico passa ao
primeiro lugar, em virtude da comunidade de sexo. Isto é verdadeiro no
caso do incesto do primeiro tipo e é evidente em si mesmo, se tivermos
em conta a definição heterossexual clássica do incesto. No entanto, no caso
I do incesto do segundo tipo já aqui analisado, a proibiçãO incide sobre a rela"ção homossexual entre consanguíneos, Il1ediatizadaatravés do mesmo objecto
\ sexual. Debrucemo-nos sobre este pOllto.
Na teoria etnol6gica, como na prátiça corrente, nossa ou de outras sociedades, o ip.cesto parece dizer respeito; em primeiro lugar, às relações heterossexuais; e em seguida às relações he~~rossexuaisque comportam um risco
de fecundação. Assim, no direito franc~s, a violação refere-se apenas à relação forçada por via vaginal; o incesto enquanto tal s6 é susceptível de punição como circunstância agravante da violação de um menor: consequentemente, trata-se apenas da penetração heterossexual através da qu~ é
concebível, se a idade o permitir, um fruto da união. Margaret Mead tinha
claramente visto este aspecto da questão: «A ênfase que se pôs sempre na
relação existente entre a proibição do incesto e a regulamentação do casamento teve como resultado o facto de se negligenciar sempre o incesto
homossexual» [1968, p. 118].
Não estamos em condições de discutir de forma aprofundada a realidade
do desejo homossexual incestuoso em termos psicanalíticos, a frequência da
realização deste desejo quer se trate de jogos, de carícias ou de uma relação
completa. Barry e Johnson [1958] dizem ter tido conhecimento nas suas pesquisas de um certo número de casos de incesto mãe/filha e av6/neta. Maisch
[1970, p. 186] disse ter antes tido conhecimento na sua amostragem de incestos homossexuais pai/filho, avô/neto. Mas é conveniente sublinhar duas coisas: em primeiro lugar, que a possibilidade existe, que é conhecida, e que
casos individuais se encontram registados; em seguida, e principalmente,
que existem casos evidentes e socialmente reconhecidos de homossexualidade consanguínea absolutamente lícita entre determinado tipo de parentes. Se eles existem entre um certo tipo de parentes, e não entre todos
indiferentemente, é porque, para os outros, aqueles para os quais a homossexualidade não é permitida, é levantada uma barreira sobre cuja natureza
nos devemos interrogar.
De facto, Lévi-Strauss refere que entre os Nambikwara o cunhado potencial de um homem é o primo cruzado com o qual, «desde adolescente, se
entrega a jogos homossexuais, dos quais permanecerão sempre traços no comportamento mutuamente afectuoso dos adultos». E acrescenta: «Os irmãos
são parentes entre si, mas são-no pela sua semelhança ... os cunhados pelo
contrário são solidários entre si e possuem uma eficácia funcional em relação uns aos outros. . . desempenham o papel do outro sexo nos jogos er6ticos da infância» [1947, trad. it. p. 620].
Que significa tudo isto? Neste texto, Lévi-Strauss nada diz acerca do
estatuto dos primos paralelos; ele precisa que os irmãos são pr6ximos «pela
sua semelhança» e não faz alusão a possíveis jogos homossexuais entre eles.
115
INCESTO
Convém acrescentar que, interrogado sobre este ponto, Lévi-Strauss confll'mou a hip6tese segundo a qual os primos paralelos têm o mesmo estatuto
que os germanos e a impossibilidade de qualquer tipo de relaçllo de tipo
homossexual entre si. Pelo contrário, os cunhados/primos cruzados silo soli·
dários e sexualmente pr6ximos uns dos outros, antes do casamento de um
com a irmã do outro. Os·jogos homossexuais parecem ser-Ihes reservados.
Isto significa portanto, vulgarmente falando, que nesta sociedade os indivíduos observam uma proibição do incesto homossexual e heterossexual entre
I
indivíQuos concebidos como idênticos (Lévi-Strauss diz «semelhantes»),
, a saber, os primos paralelos e os germanos (irmãos e irmãs), e abandonam-se em contrapartida, em temporalidades diferentes, ao jogo homossexual
ou à aliança matrimonial com parceiros considerados como diferentes,
a saber, os primos cruzados. Nesta sociedade, o critério mais forte do idêntico não passa pela comunidade de sexo, mas pelo carácter paralelo das relações de parentesco oposto ao carácter cruzado.
Consideremos um outro exemplo de Schneider, aqui citado por extenso:
«Os Etoro da Nova Guiné crêem que o sémen é necessário para o crescimento normal e a manutenção dos rapazes: aquele é-lhes, consequentemente,
directamente ministrado, por via oral, tantas vezes quanto pareça ser necessário. O inseminador ideal é o marido da irmã do pai do rapaz, mas outros
homens de uma certa idade também podem cumprir perfeitamente esta função. Kelli declara que as definições do incesto e as proibições ma~rimoniais
são isomorfas às proibições que incidem sobre a inseminação dos rapazes,
com a diferença que num caso se trata de pares de parentes dos dois sexos,
e no outro de pares do mesmo sexo. Schieffelin relata a mesma crença entre
os Kaluli da Nova Guiné. Ele indica que o inseminador escolhido pelo pai
é um homem com o qual geralmente é aparentado (talvez o marido da irmã,
embora isto não seja claro) ou um homem mais velho com o qual não tem
laços de parentesco. Em ambos os casos, quer para os Etoro quer para os
Kaluli, uma relação deste género entre pai e fl1ho ou entre irmãos é considerada incestuosa e é proibida» [1976, p. 151].
Que o marido da irmã do pai seja primo çruzado ou não, este exemplo
mostra claramente a homologia da estrutura das proibições homossexuais
e heterossexuais. Por outro lado resultam, do exemplo precedente, duas coi: sas: que pode existir um certo tipo lícito de relações homossexuais; que o
critério mais forte do idêntico é agora deslocado da comunidade de sexo
para o carácter paralelo da relação de parentesco, quer em filiação quer em
, colateralidade.
,
Bastaria reter apenas estes dois exemplos precisos na literatura antropo16gicacomo prova da pertinência das noções de idêntico e de diferente para
compreender as proibições do incesto. Estas noções variam claramente em
compreensão, em amplitude e em intensidade segundo a forma pela qual
a relação entre os sexos, em particular no seu papel respectivo quando do
gerador de um novo indivíduo, é encarada por cada sociedade. Parece no
entanto que, para além destas variações, a visão simbólica do idêntico
apresenta-se por toda a parte e sempre segundo a mesma simplicíssima coni
INCESTO
116
catenação estrutural, em todos os domínios onde esta simb6lica é utilizada
de maneira evidente, por exemplo, nas curas medicinais ou na escolha do
cônjuge. Não existe escolha, na realidade, senão entre duas possibilidades
segundo os resultados, bons ou maus, que elas são supostas produzir: ou
I de
se procurará
justapor ou
o cúmulo
de combinar
do idêntico
elementos
(o que
diferentes),
implica como
ou então
corolário
o cúmulo
a recusa
do
idêntico será proibido (com a consequente procura sistemática de justaposiI ção ou combinação de elementos diferentes). No que concerne a escolha do
cônjuge, não é raro que estas escolhas sejam acompanhadas por considerações de ordem genética, como é o caso dos Mkao que concebem a mistura
de sangues idênticos - no todo ou em parte - como um incesto que provoca a fraqueza e a morte. Em contrapartida, a mistura de sangues diferentes traz a força e a vida [Copet 1977]. Encontramos considerações semelhantes na nossa pr6pria cultura.
I
\ idêntico
As regras
tal como
que ele
proíbem
é concebido
o incesto,
por cada
que sociedade
proíbem em
(segundo
suma omodelos
cúmulocujo
do
recenseamento seria conveniente estabelecer, ou pelo menos das suas principais configurações), não têm necessidade de ser explicitamente proclamadas a não ser quando a noção de idêntico vacila nas fronteiras com a diferença, isto é, quando a diferença dos sexos intervém no interior de uma
relação paralela de consanguinidade (em colateralidade ou em filiação) como é o caso mais frequente - e quando a dicotomia paralelo/cruzado intervém no interior da comunidade de sexo - como é o caso dos Nambikwara,
dos Etoro ou dos Kaluli. Corre-se então um risco devido ao cúmulo do idêntico, e isto tanto para os indivíduos como para as sociedades. Quanto ao
resto, regra alguma é necessária para especificar ao homem: tu não copularás com o teu filho nem como o teu irmão nem (como para os Nambikwara) com o teu primo paralelo, mas apenas com o teu primo cruzado. São
coisas que se resolvem aparentemente por si próprias no Supereu Social
(repare-se neste ponto no grande mutismo dos textos sobre uma possível
homossexualidade incestuosa feminina). Tudo se passa como se a ordem do
idêntico e do diferente, através da comunidade de sexo e do paralelismo
que se lhe segue, adquirisse todo o seu sentido na orientação da sexualidade para o outro sexo segundo os fms da espécie e a regulamentação desta
orientação segundo os fins da construção social.
A procura ou a recusa do cúmulo do idêntico explicam-se através de
alguns traços formais.
Idêntico e diferente, enquanto categorias polarizadas, são noçõe~ que
implicam conjuntos de caracteres contrastados que se apresentam I sob a
forma de categorias dualistas, de pares de axiomas contrários, tais tomo
direita/esquerda, claro/escuro, macho/fêmea, superior/inferior, altoibaixo,
quente/frio, seco/húmido, etc., implicando, talvez, por outro lado, uma
ordem segundo p610s negativo e positivo.
A esta bipolarização corresponde. um equilíbrio entre duas ideias qUe se
encontram mais ou menos expressas em todas as sociedades, eventualmente
sob formas atenuadas, profundamente submersas em crenças isoladas (assim,
117
INCESTO
na nossa sociedade, recomendava-se outrora às raparigas que não mergulhassem as mãos ou os pés em água fria durante os ciclos menstruais, para
evitar fazer refluir o sangue no corpo; as mulheres que estão com a menstruação são supostas deslaçar a maionese, o creme inglês, as emulsões, etc.):
1) em primeiro lugar, em algumas condições, os contrários atraem-se e nou, tras repelem-se; 2) em segundo lugar, um bom equilíbrio dos cohtrários é
necessário para a harmonia do mundo, do individuo, da ordem social. Para
o pensamento grego, que se aperfeiçoou especialmente na questão do equilíbrio dos elementos [Lloyd 1964],á maior perfeição visa a combihação em
justas proporções da maior parte possível dos contrários. Em conttapartida,
, o cúmulo do idêntico provoca sempre uma perda de equilíbrio, um excesso.
Este excesso pode ser procurado, pOr exemplo, em certas curas medicinais,
ou em rituais de inversão, ou em condutas de inversão pr6prias de aristocratas ou de soberanos em diversas partes do mundo (as princesas shilluk,
que têm uniões livres com os seus parentes, inclusive com os meio-irmãos
agnáticos, devem ser estéreis, como ás mulheres do clã aristocrático dos Vungara junto dos Zande, entre outras êoisas com fama de serem lésbil:as, como
as princesas nyoro, etc. [Heusch 1958]).
Chegamos assim ao último ponto fundamental do raciocínio, a saber,
a pertinência do sistema global de i\epresentações das sociedades, ordenada
segundo os cânones desta lógica muito geral cujas grandes linhas acabam
de ser expostas, para compreendermos a instituição da proibição do incesto.
Este prop6sito será ilustrado pela análise sucinta do sistema de representações samo [Héritier 1973; 1978], r1?-aspoderia igualmente sê-Io por outros
materiais etnográficos. É evidente que o conteúdo, a definição e a sistematização específicas dos traços ideol6gicos pertinentes dos Samo não são necessariamente os mesmos alhures; mas a 16gica geral, baseada nasrctlações do
idêntico e do diferente tal como acabam de ser expostas, é-o por:hipótese.
Para os Samo, a categoria dualista central, relevável na linguagem vulgar, nos discursos, nos mitos, nos"rituais, é a do calor e do frio, com os
seus corolários do seco e do húmido. (Eventualmente, pode diZer-se que,
a julgar pela abundância da literatura que aborda este assunto,·' se trata de
uma categoria igualmente eminente' no pensamento de muitos outros povos;
assim, descobre-se facilmente a sua pertinência na nossa cultura se se fizer
não s6 a análise do discurso comum, presente ou passado, mas também do
discurso erudito dos médicos e dos Ihigienistas dos séculos XVIII e XIX sobre
o sexo, o corpo e a doença). ProvQc'llro encontro de dois caracteres quentes (pôr quente sobre quente) tem como efeito a seca; pôr frio kobre frio
tem como efeito o desencadear dos Ullxos, de água (chuvas torrenciais, inundações), de sangue (hemorragias), de humores (disenteria). Os efeitos desses cúmulos do idêntico, seja qual for o registo em que se verifiquetn, fazem-se sentir num outro dos registos fueteorológicos, biológico ou social. Um
delito social - como a sepultura do corpo de um zama (pária conhecido
como necrófllo), que é pôr quente sobre quente [Héritier 1979] .,...tem consequências meteorológicas, impede a chuva de cair: os três registos estão
intimamente ligados.
INCESTO
118
o homem pertence à categoria do quente, porque produz, permanentemente, com a transformação interna das suas «águas do corpo» localizadas
na medula óssea e nas articulações, o esperma, elemento considerado extremamente quente porque forma particularmente condensada do sangue que
veicula o calor do corpo [Héritier 1977]. A introdução do esperma no útero
feminino fornece a necessária quantidade de sangue à criança, rapaz ou rapariga; o sangue da mãe, por seu lado, sc:rve para a constituição do corpo
da criança. Assim, o pai deverá continuar a ter relações sexuais com a mulher
grávida até ao sexto mês de gravidez, poijco mais ou menos [Héritier 1978],
para que a criança seja perfeitamente fQrnecida de sangue. Se as relações
continuam depois desta data, a criança forre o risco de sobreaquecimento
no útero. Que o sémen veicula o sangu~ ou que é uma forma particularmente depuradora e concentrada de sang'Ue,é também uma crença popular
entre nós: falar de mistura de sangues á propósito da união de um homem
e de uma mulher não implicará, com efeito, que o sémen masculino tem
o poder de' canalizar o sangue?
.
A mulhér pertence à categoria do frip, principalmente porque não produz sangue ela mesma: com a transformllção das suas «águas do corpo», ela
produz leif~, que pertence também à cllfegoria do quente, como o sémen.
Leite e sémen são nesse sentido equivalentes. Além disso, ela perde periodicamente,o'seu sangue, e, uma vez cas~f;ia,aquele que o seu marido introduz nela, quando ambos não servem para fazer uma criança. Mas a mulher
está em situação quente durante a infância no seu estado impúbere, durante
as gravidezes e depois da menopausa.
Estas concepções sobre as características dos fluidos vitais explicam a proibição referente às relações sexuais depois do parto. O leite, homólogo do
esperma, é quente como este. A introdução do esperma no útero de uma
mulher que amamenta equivale a meter quente sobre quente. Isto tem como
efeito esgotar (secar) o leite, e também esgotar a capacidade viril de produzir do esperma, ou de estragar o leite. Diz-se que os bebés rejeitam o leite
da mãe em dois casos: quando esta teve uma relação sexual com o marido,
ou quando se encontra novamente no período menstrual, apesar de amamentar (as menstruações podem reaparecer seis meses depois). Assim, esta
proibição que em princípio visa a protecção da criança no seio, visa também a protecção das capacidades viris do marido. Os Mossi [Pageard 1969,
p. 128] acreditam que uma gota de leite da mãe que caísse sobre o sCfo
do fúho destruiria irremediavelmente a sua virilidade.
Já vimos que a mulher, à qual é explicitamente associado o carácter frio
(e húmido; o homem é quente e seco), pertence de facto à categoria do
quente durante vários e talvez os mais longos períodos da sua vida. Ela é
dotada de um calor próprio, que perde regularmente com os ciclos menstruais, que lhe vem do seu pai elou da sua pertença de linhagem (existem
algumas hesitações sobre este ponto), calor idêntico em natureza e qualidade àquele que possuem os seus irmãos. Quando ela concebe um fúho,
é o sangue que recebeu do seu pai que se tornará no corpo e nos órgãos
do bebé, o qual por sua vez receberá a sua dotação de nascimento em san-
119
INCESTO
gue, calor e vida do seu próprio pai. Mas são as «águas das articulações»
que os fúhos recebem dela que recriam de maneira permanente o sangue
nos machos e o leite nas fêmeas. Serão, pois, necessárias três gerações (ef.
supra, p. 109) para que desapareça na sua descendência cruzada com outros
troncos este sinal particular de linhagem que os seus irmãos transmitem integralmente em patrifúiação. A contradição inerente à noção de idêntico é que
o carácter de idêntico se transmite de maneira igual por geração elou miação, mas que necessita em seguida de se diferenciar segundo o sexo. Na
realidade, todas, ou quase todas, as sociedades têm velhos fantasmas partenogenéticos.
Par~ os Samo, tal como em Madagáscar, a união incestuosa é uma união
estéril. Quando um casal não tem fIlhos, os adivinhos consultados descobrem frequentemente uma relação consanguínea esquecida entre os cônjuges, descoberta essa que autoriza uma ruptura válida da união, caso esta
seja legítima. É uma união estéril, devido à acumulação de dois calores idênticos que causam a consumpção, a secura dos fluidos vitais. O incesto aquece,
dyi/ibra a lu/an ma. De igual modo, a copulação com uma rapariga impúbere, que ainda não perdeu nada do seu calor primeiro, é perigosa porquanto
faça correr a um e outro dos dois parceiros o risco de dessecação dos seus
fluidos vitais, da sua substância, podendo provocar a morte. Segundo a
mesma lógica, ter ainda relações sexuais regulares, para uma mulher com
a menopausa, significa acumular calor sobre calor sem haver a possibilidade
de «refrescar-se» regularmente com os ciclos menstruais ou brutalmente no
momento do parto (as parturientes são aquecidas com banhos quentes e um
fogo permanente) e consequentemente correm ainda um grande risco de
serem acusadas de feitiçaria. A mulher que está com os ciclos menstruais
está a perder o seu calor e atrai para si o calor exterior; ela estragará a cozedura do veneno (elemento quente) se por acaso passar próximo do lugar
onde os homens o preparam em silêncio, às escondidas, no mato: ela absorve
este calor. Para a mulher grávida, pelo contrário, a acumulação de calor
provocada nela pela sua passagem fortuita próximo do local de fabrico do
veneno fá-Ia imediatamente abortar.
,Existem pois «curto-circuitos»devidos à presença simultânea de dois idên-'
ticos, e isto não apenas no domínio sexual. Assim, os cabelos do senhor
da chuva (/amutyiri) e a sua cabeça têm a obrigação de fazer vir a chuva.
O' senhor da chuva é um personagem extremamente marcado pelo sinal do
quente, e o seu calor está particularmente concentrado nos cabelos. O quente
atrai o frio e o húmido; portanto a cabeça cabeluda do /amutyiri deve con·
ter a carga de calor necessário à vinda da chuva em quantidade suficiente
[Héritier 1973]. Mas se os seus cabelos, que são cortados apenas uma vez
por ano, tocam por acaso a terra nua, que é quente e masculina, isto produz curto-circuito que provoca a seca, os ventos quentes portadores de epidemias, a falta de germinação das gramíneas, etc. Assim o /amutyiri dos lon·
gos cabelos caminha com precaução, pelo menos nas ocasiões cerimoniosas,
senta-se à parte em esteiras de palha, e durante a juventude (ele é escolhido
INCESTO
121
120
antes do nascimento) e a adolescência não pode lutar, como fazem tradicionalmente os rapazes e os jovens em geral. Em certas aldeias, ele não pode
sair de dia ou de cabeça descoberta; evita pois o contacto com os raios solares, tal como o mikado e outros príncipes nos exemplos referidos por Durkheim. Poder-se-á sugerir que ele, como estes, se encontra fortemente marcado pelo sinal do quente? E que, se expusessem a cabeça nua ao sol, se
seguiriam indubitavelmente catástrofes de secas sobre o povo deles?
e, I
A noção det~u!!O:~ci~c~ít()}implica
também a decontági(), que encontramos em Durkheim [1897]: «As propriedades de um ser propagam-se contagiosamente sobretudo quando são de uma certa intensidade» e «n6s,deixamos algo de n6s pr6prios por onde quer que passemos». Assim, um lidmem
não pode descer a um poço, ou seja, ao seio da terra quente, quando a sua
mulher está grávida: ele fá-Ia-ia, por contágio, abortar. Em contrapartida,
o homem que morre durante uma gravidez da mulher, ou seja, durahte o
período em que ela retém particularmente o calor, tem, por contágio~ todas
as características altamente perigosas das mulheres mortas durante a gravidez ou de parto: ele será sepultado entre elas, a sua casa será destruída,
os seus bens confiscados em benefício dos coveiros especiais, que ~lio os
únicos que tocam nestes cadáveres maléficos.
I
a díspar série dos fen6menos citados no início deste artigo segundo as obserfordea natureza
dos seus
Algures,
terraexcesso
pode ser
o quente
\ qual
vações
Lévi-Strauss:
eles efeitos.
explicam-se
por aum
de fria,
idêntico,
seja
sobre quente provocar inundações e não a seca, uma outra categoria dualista ocupar o lugar proeminente que o calor e o frio têm para bs Samo,
mas isso em nada afectaria, parece-nos, a 16gicade conjunto que àcabamos
l de descrever.
'
Ele permite também compreender a utilização do sangue menstrual ou
do sangue do parto (e sobretudo dot>timeiro sangue!) em certas curas medicinais: este sangue frio atrai os humores frios das escr6fulas; antÍtético do
leite, ele estanca a sua difusão; seca os fluxos de destilação dos furúnculos
ou dos abcessos provocados por inflamações.
O sol exerce uma atracção partÍl;ular sobre as jovens mortais que estão
menstruadas, e convém que elas se protejam dele (como algures convém
que se protejam da água fria), seja porque a excessiva força de attacção do
calor solar pode fazê-Ias sofrer de Uma hemorragia contínua, seja porque
essa mesma força, concebida como r~pulsiva, impede o seu sangue de correr.
A masturbação é um cúmulo do idêntico, talvez o mais perfeito'de todos.
Na Europa, na crença popular (I: mesmo no discurso médico até ao
século
XIX), ela
a provoca
masturbação
definhar ecompletamente
emagrecer os anormo!
rapazinP0s.
Para
os
Navaho
uma faz
fecundidade
(nascem
monstros), semelhante àquela que ás crenças populares francesas atribuem
às uniões consanguíneas e, com rqllis razão, ao incesto.
f
que deve ser compreendida a correlação incestuosa de dois consangUíneos
do mesmo parceiro
sexual,
tipo. Isto
tamI através
É verosimilmente
através
destaso incesto
noções do
de· segundo
curto-circuito
e depode
contágio
bém permitir-nos compreender algumas anomalias já aqui assinaladas dtl passagem. Se um homem samo mantém relações sexuais com uma «Íl1tJ.ã»ou
uma parente consanguínea da sua esposa, ou com a mulher do ÍrqlãO da
sua esposa (duplo curto-circuito), esta última abandona-o imediatam~qte se
vem a saber do caso e não volta senão quando todos os procedimerttos de
reintegração forem feitos. Não se trata portanto da expressão de umareprovação moral, mas de uma questão de risco, pois ela é posta em cdntacto
carnal com a sua pr6pria substância, a que partilha com a sua pllrente,
e de forma igualmente perigosa, embora por intermédio de duas mediações
sexuals, com o seu irmão. Assim, para os Nuer, s6 a maior identidade~ a dos
homens consanguíneos agnáticos, é concebida como uma perfeita troca. Um
é igual ao outro. Não há portanto mal algum em ter-se relações sexu,!! com
a mulher de um bull. No entanto, uma proibição pesa sobre a rela~o do
filho com a mulher do pai ou com a mulher do irmão. Neste caso, Wr con·
t
tágio, trata-se de um incesto do primeiro,tipo por razões que os Nuer dfPõem
perfeitamente através do relat6rio do seu etn6grafo: o fJ.lhoé posto em contacto carnal com a mãe, caso tenha relações sexuais com uma outra tnulher
do pai, uma vez que o pai se une carnalmente com ambas as espos~s e dá
à mãe algo da substância do fJ.lho. Se, nos Nambicuara, a relação dos primos cruzados cessa depois do seu casamento recíproco com a irmã do outro,
isso passa-se apenas para que não haja confusão dos papéis sociais e também porque cada irmão seria assim posto em contacto carnal, por contágio,
com a pr6pria irmã.
É nos termos desta problemática, entendida no sentido das articulações
16gicas que existem entre diferentes processos, que podemos compreender
INCESTO
Se para
os Ashanti,
Rattrayentre
[cf. Goody
1956],
a violaçãp
uma
mulher
casada
no matosegundo
é classificada
as ofensas
sexuais
mais de
graves,
daquelas que, julgadas a nível trillllÍ, implicam a morte do culpado, isto
sucede porque - pomos como hipÓtese - é um acto quente cometido em
zona quente (o mato é quente; a ald~ia é fria), e as suas consequancias climatol6gicas e epidemiol6gicas implic;am uma desgraça para o país inteiro.
É um crime contra o grupo e não coNra uma mulher nem contra um homem
lesado nos seus direitos nem mesmo.,contra a instituição social do casamento,
dado que, para que a violação seja assim punida, é necessário que tenha
sido cometida no mato.
'
.
A visão simb6lica do incesto, q*' assenta em pilares s6lidos do idêntico
'I
e do diferente, geneal6gica;
não está necessariamente
ligada com
consanguiJ1idadereal,
propriamente
supõe pelo contrário
umaa relação
l6glaa, sintáctica, que une entre si diversas ordans de representações: as representações
das pessoas e das suas partes, as representações genéticas das trllnsformações verticais ou horizontais que se oPeram entre indivíduos por via de miação ou de contágio, as representações da relação dos sexos e do mundo do
parentesco, mas também as representações do mundo natural e da ordem
social nas suas relações íntimas c~I\1 o homem biol6gico. Essa relação é
baseada na troca e no movimento otgânico dos fluxos, que se deve regular.
Portanto, o facto de se ter tentado: explicar o incesto pela manipWação do
simbólico não nos parece ser uma interpretação contradit6ria com a demonstração de Lévi-Strauss. Regulamentando as trocas de cada ordem, trata-se
sempre de construir a sociedade. [F. H,].
INCESTO
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o Entre os resultados mais relevantes da antropologia figura a análise da estrutura da famflia,
cuja base assenta na proibição do incesto, regra já universalmente aceite entre todas as sociedades (cf. sociedade), sejam elas de natureza tradicional (cf. selvagemlbárbaro/civiliBado) ou modernas, isto é, daquela parte do mundo que atravessou a revoluçdo industrial (cf. indústria). Todavia, embora já ninguém conteste esta lumna fundamental, esteja ela inscrita no costume ou num
código de leis (cf. lei, direilo), o debate permanece em aberto no que concerne o sistema e
a lógica a que deve aludir (cf. crenças) a origem desta forma de postulado social. Numerosos
estudiosos atribuíram - e atribuem ainda - a razão da proibição do incesto a um Arnbito estri.
tamente biológico: uma endogarnia (cf. endogamialexogamia)
praticada entre os membros consanguíneos provocaria (cf. hereditariedade, gene, genótipolfenótipo) o empobrecimento das carac-
INCESTO
124
terísticas gen~ticaa e a transmissAo dos caracteres negativos. Outros associaram essa norma com
a necessidade de socialiJIaçtJo inerente a cada grupo, para o qual s6 atrav~s desta proibição pode
ser praticada a troca das mulheres (cf. mulher, homem/mulher) que estende a série das relações
para uma área mais vasta, e isto para tomar possível a criação da sociedade. No entanto deve
dizer-se que semelhante proibição diz respeito não s6 ao domínio matrimonial, mas também
ao da sexualidade. Aqui os factores biológicos e a subdivisão dos grupos (eC. parentesco) muitas
vezes não coincidem, repondo assim o problema da natureza do incesto. Uma soluçlo consiste
em aludir ao sistema geral dos conhecimentos (cf. conhecimento) que é representado quase por
toda a parte por um modelo do tipo idêntico/diferente (eC. identidade/diferença), no qual o idêntico
representa') domínio proibido e o diferente o domínio lícito. O que varia ~ o valor (cf. 'Valores), o significado (cf. sentido/significado), o simbolismo atribufdo por cada cultura (eC. cultura/culturas, emocenlrismos, natureza/cultura)
aos termos idêntico e diferente, enquanto análogo permanece o sentido, cuja constante presença se põe como uma das mais importantes chaves para
penetrar nas linguagens (cf. linguagem) e na história do homem (cf. masculino/feminino).
ENDOGAMIAIEXOGAMIA
Não é assim tão fácil tratar da endogamia e da exogamia enquanto noções
portadoras de uma defInição. De facto, trata-se de conceitos duplamente relativos, por um lado, porque não podem ser evocados isoladamente (em tal
caso seriam destituídos de sentido) e, por outro, porque, mesmo tendo em
conta esta relatividade, não remetem (pelo menos no estado actual dos nossos conhecimentos cuja imprecisão impede que se estabeleça um acordo entre
todos os que utilizam a terminologia científica) para situações simples cuja
compreensão estaria coberta pelo próprio termo.
Voltemos ao primeiro ponto, sobre o qual nos devemos deter. Endogamia e exogamia não podem ser evocadas isoladamente: procurar o cônjuge
<<fiO
interior» ou «no exterior» implica imediatamente que sejam defInidas
a identidade e o conteúdo do grupo no interior ou no exterior do qual é
escolhido o cônjuge. Em poucas palavras, somos remetidos para uma defInição que pode ser dada em diferentes termos, os quais podem ser considerados separadamente ou em conjunto.
.
Antes de mais, endogamia/exogamia podem ser considerados em termos
de parentesco. Encontramos então, desde o início, a necessidade de uma
análise do papel da proibição do incesto. Segue-se a análise da noção de
miação, conforme a regra de miação que defIne os grupos é un.ilinear (ou
seja, a transmissão de pertença ao grupo é feita unicamente por intermédio
dos homens - filiação patrilinear - ou por intermédio exclusivo das mulheres - miação matrilinear - de tal modo que os indivíduos provenientes de
um grupo assim defInido - linhagem ou clã - possuem em comum pelo
menos um mesmo conjunto de parentes, que não se podem geralmente casar,
que são os membros do grupo), bilinear (os indivíduos pertencem simultaneamente a dois grupos, defInidos um pela fl1iação patrilinear, e o outro
pela miação matrilinear), ou cognáticalindiferenciada (todas as linhas de descendência que implicam homens e mulheres ao longo das cadeias de sucessão são reconhecidas com os mesmos direitos, dando lugar deste modo a
conjuntos flutuantes ou parentelas, variáveis para cada indivíduo, em função· doconhedmento e da prática mais ou menos directos que ele possui
dos seus diversos consanguíneos). É evidente que a noção de exogamia não
indica a mesma coisa conforme estamos em presença de sociedades de grupos unilineares constituídos a maior parte das vezes com base na residên-
l27
126
ENDOGAMlAIEXOGAMlA
cia, com um aparelho jurídico-social que os torne facilmente identificáveis,
ou sociedades em que os grupos de parentesco (parentelas flutuantes) são
constituídos de modo indiferenciado.
Por I1ltimo, devemos ter em conta as regras de casamento em função
de três casos de figuras possíveis, consoante:
1) A escolha do cônjuge seja orientada pela regra social para um grupo
particular (é o que acontece com as organizações sociais dualistas) ou para
uma categoria particular de parentes, por exemplo, a filha do irmão da mãe:
MBd (as transcrições que se seguem leguem o sistema inglês: M =mother,
B-brother
S=sister, s=son, d=dauglteer, H=husband, W=wife. No nosso
caso: MBd =mother's brother's daught«r). Tal filha pode ser real ou classificatória, em que por classificat6ria se entende que qualquer fllha da mesma
categoria, designada pelo mesmo termoj pertence ao grupo do irmão da mãe.
Assim num sistema patrilinear, a moa do fIlho do irmão do. pai da mãe
é indicada como MFBsd. A representação gráfica * é a segumte:
,
o
Ego
Ego
MBd
MFBsd
Em ambos os casos estamos perante aquilo a que Lévi-Strauss chamou
as «estruturas elementares» de parentesco, elementares porque permitem
«determinar imediatamente o círculo dos parentes e o dos aliados» (1947,
trad. it. p. 11].
2) Esta escolha seja apenas limitada por proibições, mínimas ou não, do
incesto que incidem sobre graus interditos de parentesco, ou seja, sobre indivíduos que ocupam posições geneal6gicas defmidas. É o caso, nas nossas
próprias sociedades ocidentais, da mãe, da fllha, da irmã, em confronto com
um Ego masculino, mas também, no direito canónico, dos primos direitos
e mesmo, até ao início do nosso século, dos fllhos descendentes de primos
direitos e além disso um certo número de parentes por aliança (<<Ego»é o
termo de referência em relação ao qual se constroem todos os sistemas de
i
I
I
denominação. Uma longa tradição etnol6gica fez de ~go. um ser ma_s~lllino;
ver-se-á como este estratagema etnológico não é indiferente à compreensão
dos factos sociais). Neste caso, falaremos de «estruturas complexas» de parentesco, na medida em que a escolha do cônjuge parece obedecer a considerações de ordem estatística e já não normativa.
3) Esta escolha, finalmente, seja limitada por proibições que incidem não
sobre indivíduos definidos genealogicamente pela sua posição em termos de
graus de parentesco, mas sobre grupos na sua totalidade, enquanto linhagens ou clãs definidos por uma regra de flliação, sendo autorizados a priori
• Neste esquema bem como nos seguintes
ro • relaçAo de fraternidade,
1=
=
o significado
relaçAo de geraçAo,
dos símbolos é o seguinte: .4 = homem, O = mulher
= reJaçAode afinidade, casamento.
t
aNDOGAMIAIEXOGAMIA
os grupos não proibidos: é o caso dos sistemas ditos crow-omaha (do nome
das tribos índias em que foram identificados; uns - sistemas crowencontram-se geralmente nas sociedades matrilineares; os outros - sistemas
omaha -, nas sociedades patrilineares). O número de grupos proibidos pode
variar segundo as sociedades que têm este tipo de sistema de parentesco
e de aliança. Num caso amaha africano, o dos Samo do Alto Volta, são proibidas as linhagens patrilineares de Ego - portanto, do seu pai -, da mãe,
da mãe do pai e da mãe da mãe. Para além disso, são proibidas todas as
linha~ens em que um «irmão» ou um «pai», reais ou classificat6rios, isto
é, qu~quer consanguíneo pertencente à mesma linhagem do Ego masculino
- da pr6pria geração ou da geração imediatamente superior à própria -,
tenha 'já tomado um cônjuge. Finalmente, são sempre proibidas a um homem
as linhagens das mulheres anteriormente desposadas, bem como as das suas
mães, mães de pai e mães de mãe. O resultado aparente é, pois, uma forte
exogamia, fora do campo da consanguinidade e da aliança, que pertence ao
mesmo modelo estatístico de realização, presente nas estruturas complexas
de parentesco e de aliança.
A definição pode ser feita também em termos de residência, em primeiro
lugar porque as regras que fixam a escolha de residência para o casal que
acaba de casar não estão numa relação indiferente com as regras de miação
e de aliança, mas também porque existem numerosos casos em que a residência partilhada introduz entre indivíduos não aparentados uma relação de
parentesco particular, ou parentela de vizinhança, cujos efeitos exogâmicos
podem ser tanto ou por vezes mais constritivos que os laços de sangue. Titiev
[1943] cita Granet e,o exemplo da exogamia chinesa de aldeia, onde a relação entre os membros de uma mesma aldeia acabava por ser uma relação
mais estreita do que se ela fosse simplesmente baseada nos laços de sangue.
Inversamente, a aldeia pode ser uma unidade endogâmica, tanto mais fechada
quanto maior for o isolamento geográfico.
Enfim, a defmição pode formulu-se em termos de estatuto, e, portanto,
de ideologia: a etnia, a casta, a religião, o lugar na hierarquia social, a profissão, a riqueza ...
Para muitos grupos étnicos, a designação dos membros do grupo é feita
com um termo que quer simplesmente dizer 'os homens', o que implica
que os estrangeiros à etnia são de uma essência não humana: animal, fantasmática, monstruosa. Unir-se a eles é do domínio do impensável. No sistema das castas, na índia, ninguém pode casar fora de casta sem descer
na escala social. Por outro lado, pode acontecer que casta, grupo de parentesco e grupo residencial estejam misturados. Sem que se possa propriamente
falar de castas, existem, em particular, na Africa Ocidental, grupos «profissionais» frequentemente endogâmicos: os ferreiros, os feiticeiros, ou grupos
cuja endogamia forçada é a consequência de um afastamento que resulta
de uma falta de ordem sexual cometida por vezes pelos próprios indivíduos,
mas cuja mancha, e consequente opr6brio, é a maioria das vezes herdada
por nascimento ou contraída por contacto sexual. É o caso dos Mossi yaghlentise, supostos culpados de bestialidade, ou dos Samo zama, imputados
de necrofilia.
ENDOGAMIAIEXOGAMIA
128
129
A religiAotambém desempenha o seu papel: para um mormon, é preferível
casar com a própria filha do que dá-Ia em casamento a alguém que não partilha a verdadeira fé. Sutter [cf. Sutter e Tabah 1951) cita o caso de Orthez,
uma aldeia protestante no interior de um país uniformemente católico, rigorosamente endogâmica desde a Reforma, de tal modo que a existência de um
gene causador de epilepsia, e que atingiu quase todas as farnflias, fez com que
o termo 'epiléptico' passasse a ser, na região, sinónimo de protestante.
Em termos de hierarquia social, podemos encontrar duas situações radicalmente diferentes. Lévi-Strauss distingue a este respeito entre endogamia
I «verdadeira•• e endogamia «funcional••. A primeira «é tanto mais marcada
quanto a classe social que a pratica, ocupa um nível mais elevado: assim
no antigo Peru, nas ilhas Havai, em certas tribos africanas•• [1947, trad. it.
p. 95). Contrariamente, trata-se de endogamia funcional sempre que! 11 relaçAo está invertida, quando «a endogamia aparente diminui à medida que
se eleva na hierarquia •• [ibid.). Ele cita o caso dos Kenyah e dos Kayan de
Boméu que estão divididos em três classes hierarquizadas e normalmente
endogâmicas: todavia, a classe superior deve praticar a exogamia de IIldeia.
,<Comotambém na Nova Zelãndia e na Birmânia, a exogamia defme-se, pois,
no topo da hierarquia social: ela é função da obrigação das famílias feudais
de manterem e alargarem as suas alianças. A endogamia das classes.ihferiores é uma endogamia de indiferença e não de discriminação•• [ibid.)'.
Com esta distinção, proposta por Lévi-Strauss, entre endogamia verdadeira e endogamia funcional, tocamos um ponto muito importante. A.endogamia ,<verdadeira••tem uma formulação positiva em função dos dados culturais: é a impossibilidade, que raia o impensável, sentida por todos, de
procurar um cônjuge fora de um conjunto cujos limites são definidos por
caracteres concretos, variáveis segundo os grupos: aqui, o estrangeiro não-humano; ali, o bárbaro que não pratica a mesma religião; acolá, o excluído,
cujo simples contacto sexual implica desonra para outrem e exclusão do
grupo; além, o inferior para quem toda e qualquer aproximação llignifica
rebaixamento; aqui, o habitante de uma região vizinha e cujos homens têm
fama de ladrões e as mulheres de infiéis; ali, o órfão sem família chegada
que o sustente ... Encontram-se, como se vê, um certo número de tritérios
ENDOGAMIAIEXOGAMIA
a própria irmã significa não querer cunhados ••, responde o informador arapesh a Margaret Mead que o interroga sobre a possibilidade de uma união
com a irmã: «E então, com quem irei à caça? Com quem cultivarei a horta?
: Quem visitarei?•• [1935, trad. it. p. 109) .•• A exogamia ... afirma a existên, cia social de outrem e só proíbe o casamento endogâmico para introduzir,
e prescrever, o casamento com um oUtro grupo diferente da família biológica; e não decerto porque um perigo biológico esteja ligado ao casamento
consanguíneo, mas sim porque de um casamento exogâmico resulta um benefício social••[Lévi-Strauss 1947, trad. it. p. 616). Deste modo, não se podem
considerar exogamia e endogamia como duas instituições totalmente simétricas: isto s6 é válido para a exogal1lia e a endogamia ••funcional••que lhe
corresponde. Existe, evidentemente, uma distinção entre proibição do incesto
e regra exogâmica propriamente dita. Várias vezes se observou que as relações incestuosas eram por vezes toleradas no interior da linhagem se se verificassem
entre primos afastados, desde que fossem discretas e sem frutos
.
amda que, no entanto, o casamento lhes fosse vedado pelas normaS locais.
Mas é importante notar que o casamento obedece a finalidades que .não são
apenas da ordem das gratificações sentimentais e sexuais. O que conta é
~ue o casamento, enquanto fundador de laços entre grupos diferentes, enquanto
mstaurador de relações de ordem eltonómica, de ordem geneal6gica e de
ordem social entre indivíduos e faIItilias, é proibido entre parceiros cujo
incesto no interior do grupo é, no ~ntanto, tolerado.
O modelo mais puro desta endog~mia funcional, reverso da regra exogâmica e que é o único a pertencer verdadeiramente ao domínio do parentesco, é o casamento entre primos cnlzados. Em relação a Ego diferenciam-se os prj!ll()s~germanos (primos em primeiro grau segundo o direito
canónico) em primos paralelos e prirhos cruzados. São paralelos os primos
nascidos de um conjunto de germanos (siblings) do mesmo sexo, ou seja,
os fIlhos de dois irmãos ou os filhos de duas irmãs; são cruzados entre si
os primos nascidos respectivamente de um irmão e de uma irmã:
'
+
§
Á
«princípio inerte de Cruzados
limitação•• [ibid., p. 99).
\' examinados
A endoganlla
verdadeira
é apenas,
para
Lévi-Stral.tss,
um
Quanto àacima.
endogamia
funcional,
é o inverso
da regra
exogâmica.
À proiÁ
biçãO do incesto não deve ser encarada como tendo um carácter pu,rámente
negativo. Para um homem, o facto de' se abster do acesso às mulheres que
lhe estão próximas pelo sangue tem como contrapartida, ao mesmo tempo,
a obrigação de cedê-Ias a outros homens e o direito de reivindicar para si
o acesso às mulheres que os outros se proíbem. «A proibição equivale' a uma
obrigação, e a renúncia abre o caminho a uma reivindicação•• [ibid.J p. 98).
Portanto, ela equivale à instauração de um sistema de troca entre os grupos, tomando possível li vida em sociedade, suprimindo o fechamento hostil dos grupos sanguíneos sobre si próprios e alargando, sob todos os pontos de vista, as relações entre os grupos. Neste sentido, a proibição do incesto
funda a sociedade humana. ,<Como?Desposar a própria irmã?! ... Casar com
Á
6
6
166
+
f
Paralelos
Paralelos
Cruzados
Ego
;";este tipo de casamento, a categori:t dos primos cruzados não é, propriamente falando, uma categoria endo~ca:
não são parentes que devem contrair aliança mas os primeiros no gr~nde conjunto dos consanguíneos (no
puro sentido geneal6gico do termo) 'que são cônjuges possíveis sendo os
, primos paralelos, por seu turno, assimilados aos irmãos e às ir~âS e, por
" essa mesma razão, impossibilitados dJ. casar entre si. Os primos cruzados são
então considerados mais como aliados do que como consanguíneos. A terminologia reforça a maior parte das vezes esta distinção entre primos paralelos e cruzados, designando os primeiros pelos termos utilizados para desig-
130
ENDOGAMIAlEXOGAMIA
nar os irmãos e as irmãs, e os segundos pelos termos de esposo e esposa;
de igual modo, o irmão da mãe, pai de uma esposa potencial para um
homem (o fllho da sua irmã), pode ser designado por este com o termo
normalmente aplicado ao pai da esposa, mesmo na ausência de casamento
entre os primos, sendo a irmã do pai inversamente designada po~ uma
mulher (a filha do seu irmão) como termo aplicado à mãe do mando.
Vejamos, para melhor compreender o que se passa quando este mod~lo
mais simples da endogamia funcional d acompanhado de uma troca restnta
entre grupos, quando a sociedade funciona com base numa organização dualista isto é com um sistema de metaClj:stal que é impossível escolher cônjuge' dentrd da metade a que se pertenfe e, inversamente, obrigat6rio ~sc~lher o cQnjuge na outra metade. Tom,~os o caso em que a regra de fihaçao
é patrilinear (pertence-se de nascença ,ao grupo do pai) e a regra de residência é patriviril~cal (os novos casais esta.bel:cem a sua residência perto
ou em ca,sa do pai do esposo). Irmãos e irmas que pertencem à mesma
metade (A) escolhem, pois, os seus côpjuges respectivos na mesma metade
(B), donde, pelas leis de filiação patrilinear e de residência virilocal, os fllhos
de dois irmãos ou os fllhos de duas irmãs (isto é, os primos paralelos) pertencem à mesma metade e não podem, portanto, casar entre si, enquanto
os fllho~de um irmão e de uma irmã (os primos cruzados) pertencem a
metades diferentes e se tomam por essa razão cônjuges possíveis. Na estratégia da aliança eles são até os primeiros cônjuges possíveis, os cônjuges
preferidos. Observe-se que com uma troca de irmãs (que é a primeira forma
de troca restrita: dois conjuntos formados por um irmão e por uma irmã
casam entre si para formar dois casais) os casamentos preferenciais subse-
quentes entre primos cruzados efectuam-se entre primos duplamente cruzados ou primos cruzados bilaterais: a filha do irmão da mãe, com quem um
homem casa, é ao mesmo tempo a filha da irmã do pai.
r6
.\1- i r1
que
à metade B
Indivíduos
T
pertenoem
à metade A
Indivíduos
pertencem
lB
Haveria muito a dizer sobre as razões de ordem simb6lica que, em minha
opinião, explicam a distinção entre primos paralelos e primos cruzados, fundando e reforçando assim o papel social da proibição do incesto e da ins-
13l
ENDOGAMIAIEXOGAMIA
tauração das regras exogâmicas que impõem que se escolha o cônjuge fora do
campo do parentesco culturalmente definido por cada grupo humano. Pode
observar-se, todavia, que, em numerosos grupos humanos, os fllhos de dois
irmãos e os de duas irmãs podem ser encarados, por razões que dizem respeito
às representações que neles se ligam com a procriação, como sendo totalmente
inseparáveis e permutáveis, a ponto de um ser igual ao outro. Entre o~ Samo
do Alto Volta, eles são considerados como sendo «li mesma coisa))(g '1';) 'um').
Entre os Bara de Madagáscar, descritos por Huntington [1978], a forma mais
detest~da de incesto e de união totalmente impossível não diz respeito unicamente aos irmãos e irmãs e outros consanguíneos de nível primário (mãe/filho;
pai/fllha), mas também aos ftlhos das irmãs, primos paralelos matrilineares
durante várias gerações (ou seja, não apenas os primos germanos, nascidos de
duas irmãs, mas também os nascidos de dois primos germanos paralelos matrilineares, etc.), porque eles nasceram da mesma matriz e formam uma s6 carne.
O casamento entre primos paralelos patrilineares, concebido como absurdo,
é possível, no entanto, em casos extremos, desde que um ritual especial seja
efectuado a fun de fazer desaparecer o parentesco. Em contrapartida, o casamento entre primos cruzados é o casamento preferencial, na ausência de qualquer organização dualista.
Até aqui considerámos as noções de endogamia e de exogamia numa perspectiva estritamente antropol6gica. Todavia, é necessário considerar a definição destes termos numa perspectiva genética. Recordaremos rapidamente,
retomando a expressão de Schreider, que o «horror instintivo ao incesto tem
tão pouco fundamento como o horror ao vazio)) [1978, p. 548]. Efectivamente, os genetistasdevem efectuar laboriosos cálculos para determinar os
efeitos negativos ou positivos dos casamentos consanguíneos e dos casamentos
não-consanguíneos: as vantagens da hibridação não são mais evidentes que
as desvantagens imputadas às uniões consanguíneas. Donde se conclui que
não é a observação repetida, feita pelas populações primitivas, dos efeitos
desastrosos das uniões consanguíneas que pôde ter dado lugar à proibição
do incesto nem à regra da exogamia.
De um ponto de vista genético, o que conta seria mais o número de fllhos,
portadores de diversas configurações genéticas, gerados pelos casais, do que
a identidade dos cônjuges (o facto de casar com uma irmã, uma prima ou uma
estrangeira tem pouca incidência genética). Se, segundo Sutter [cf. Sutter e
Tabah 1951], 25 por cento dos pais dão 50 por cento dos fllhos na primeira
geração (tendo, portanto, os 75 por cento de restantes pais gerado os 60 por
cento dos restantes ftlhos nascidos, segundo esta hip6tese), na terceira geração
73 por cento da população provêm do quarto inicial, e na quarta geração este
número passa a 89 por cento. Este facto sublinha a importância da fecundidade diferencial, que faz com que um mesmo carácter genético possa estender-se
a toda uma população mesmo sem casamentos consanguíneos.
Partindo da hip6tese genética da panmixia (população fechada às trocas
migrat6rias, com casamentos efectuados ao acaso sem qualquer proibição,
e sendo suposto que o comportamento da fecundidade seja idêntico para
todos os grupos), corrigindo-a para o homem através de cinco variáveis que
têm em conta a fecundidade diferencial de que acabámos de falar, a proba-
133
ENDOGAMIAIEXOGAMIA
ENDOGAMIAIEXOGAMIA
132
defInidos» [1958, p;-497]. E é no interior destes conjuntos de populações
parciais que funcionam as regras antropol6gicas defInidas pela análise do
parentesco.
Passemos agora ao segundo aspecto da relatividade dos conceitos de endogamia/exogamia a que se aludiu no início deste texto. Para tal, tomemos
alguns exemplos. O primeiro refere-se aos sistemas crow-omaha, defInidos
por uma regra de flliação unilateral e por proibições matrimoniais que incidem sobre grupos (linhagens ou clãli), mais ou menos numerosos. consoante
bilidade de uniões consanguíneas, o problema da selecção por atracção, as
mutações, a quantidade e os limites da população, os genetistas conseguiram, segundo Dahlberg [1948], chegar à noção de 'isolado' isto é a zona
de «lnterC'lsamento»no
.
' pode, enconinterior da qual um indivíduo qualquer
trar um cônjuge. O cálculo é efectuado segundo a frequência dos casamentos entre primos germanos (nas populações ocidentais, de tipo cognático/indiferenciado). A hip6tese de Dahlberg para medir o isolado neste tipo de
casamento é a de que, quando a escolha do cônjuge é limitada pelo fraco
número de indivíduos casáveis, se deve esperar uma certa proporção de casamentos entre primos, desde que este tipo de união seja realizado por açaso.
Sutter [1958] preferiu efectuar este cálculo sobre os casamentos entre pri.
mos nascidos de germanos, partindo do princípio que eles têm mais hi~6teses d~ ser efect~ados ao acaso do que o casamento entre primos germanos
proprIamente ditos, e tendo em conta a dimensão média da família. Se o
nú.mero médio de fll.hos ~ dois, um indivíduo tem dois tios ou tias, q\1atro
prImOSgermanos, seis prImOSde grau desigual e oito nascidos de gerrltanos.
~e o número médio. é de sete fllhos por casal, estes números passam respectIvamente a doze, OItenta e quatro, trezentos e quarenta e seis e quinhentos
e oitenta e oito, dos quais metade deve ser eliminada (do mesmo sexo) bem
como uma outra parte (devido à excessiva diferença de idades).
'
As variações da dimensão do isolado em França vão de 520 (Pl1y-de-Dôme) a 4580 (Allier). Mas o que é importante notar é que as regiões que
possuem um grande ~entro urbano apresentam isolados relativamente p~quenos: é o caso da região do Sena (com Paris) com isolados de um tamanho
médio de 930 indivíduos, do·R6dano (com Lião) com isolados de um tamanho médio de 740 indivíduos, etc. No departamento do Sena, a frequência
dos casamentos consanguíneos é maior do que nos departamentos rurais' vizi.
nhos, e esta frequência é tanto mais considerável quanto as família$ ~êm
inversamente, tendência para ser mais pequenas. Damos conta de que est;
género de cálculo contradiz as ideias geralmente aceites sobre a abertura
máxima da. escolha do cônjuge com exogamia consanguínea nas regiõeSlIIrbanas cOm sistema de parentesco cognático/indiferenciado.
I
Deste tipo de cálculo passa-se, com Livi [1949], ao cálculo do etectivo
necessário e suficiente para assegurar a manutenção biol6gica. O fi?ínimo
viável pare~e si.tuar-se à volta das 500 pessoas. Entre 300 e 500 produz-se
um. desequilíbno que pode levar quer à estabilidade do grupo quer' à sua
extlnçllo. Mas este cálculo implica a monogamia e um total fechamento ao
exterior; grupos humanos inferiores em quantidade podem sobreviver r~orrendo à poligamia, a uniões muito diversas do ponto de vista das i~ades
\ à promiscuidade (ritual ou não, em determinados períodos) a escolhas d;
consanguinidade pr6xima.
'
Segundo Wright [1946], as populações apresentam uma distribuição con~nua nu~ grande ~s~aç~, e ?s .casamentos s6 são possíveis em imediações
clrcunscntas por distanCias lImitadas, de maneira que os indivíduos mais
distanciados uns dos outros não têm praticamente nenhuma hip6tese de se
casarem entre eles.
Conclui-se, com Sutter, que «a população de uma nação está dividida
em populações parciais, em permanente transformação, e com contornos mal
as.populaçõ~s que praticam este tip~ de sistema de parentesco e de aliança.
Dissemos aCImaque o resultado aparente deste tipo de sistema era ufua repartição altamente probabilística da escôlha do cônjuge, reenviada o ntais longe
possível, da qual emergia um modelo estatístico, do género do que se julga
entrever para os sistemas complexOll,e não um modelo de tipo mecânico,
como nas estruturas elementares. Um sistema crow-omaha, proPliiamente,
deveria ser exogâmico, em termos de grupos de parentesco, todavia quando
as unidades residenciais (a aldeia) sAode pequenas dimensões, comportam
poucos grupos de parentesco diferqnciado, exogâmico, em termos de residência. É esta aliás a sua defIniçãOIgeralmente aceite.
Ora, de um trabalho que realiz~i minuCiosamente junto doS Samo do
Alto Volta (patrilineares como no sistema omaha), a partir de genealogias
elaboradas em três aldeias que constituem praticamente um isolado - definido como aquele conjunto de pop\1lação de fronteiras incertas 116 interior
das quais se circunscreve a escolha 'do cônjuge -, genealogias tratadas por
computador em função de hipóteses de pesquisa particulares, conclui-se o que à primeira vista pode ser cb~siderado como um escândalo para o
espírito - que não s6 existe uma fbrtíssima endogamia de aldeia '(no interior do isolado ~ormado pelas três ltldeias), que vai de 60 a 80 pj>r cento,
também
sistemas
de trocas
vegulares
duas linhagens
(dolinhatipo
,I como
da troca
restrita),
retomados
num sistema
de entre
troca generalizada
entre
gens. Encontra-se também, em prdporções que não podem ser devidas ao
acaso, um grande número de uniõc;s consanguíneas em cada qu~tro gerações (isto é.' entre primos nascidos( de fllhos de germanos). Encontramos,
portanto, SImultaneamente, uma espécie de modelo mecânico que emerge
das estruturas elementares, uma endogamia no parentesco consanguíneo relativamente afastado e uma endogantia de aldeia.
.:
O .primeiro pon~o.(modelo mec~nico de troca) é tornado pqsllível pela
combInação das prOIbições - algumas das quais se anulam em vez de terem
um efeito cumulativo - da poligamia'e de um aspecto desconhecidb do proble~a da simetria entre homens e dtulheres. De facto, entendeu·se sempre,
na lIteratura antropol6gica, que as regras de proibição se aplicavam igualmente aos dois sexos. Lévi-Strauss escreve [1947, trad. it. p.' 30] que
«a maneira mais c6moda de defInir 'um sistema crow-omaha é aquela que
diz que, sempre que se escolhe umal linha para obter dela um cônjuge, todos
os seus membros se encontram automaticamente excluídos do número dos
cônjuges disponíveis para a linha de referência, e isto ao longo de várias
gerações». Ele faz notar ainda que (<li regra é válida para os dois sexbs» [ibid.,
p. 29]. É verdade que os relat6rios dos etn6grafos, que neste aspecto seguem o critério sempre androcêntrico utilizado pelos pr6prios informadores,
i
I
ENDOGAMIAIEXOGAMIA
tence apenas à linhagem da mãe do pai do pai da sua: mulher, que não está
proibida.
Assim, estes regimes omaha seriam realmente exogâmicos no sentido em
que regras de proibição interditam a escolha de um cônjuge num certo mimero
de grupos, mas a estratégia pr6pria à aliança, que implica o jogo sobre as
regras, a poliginia e a simetria diferencial entre conjuntos unissexuados e conjuntos bissexuados de consanguíneos acarretam de facto a endogamia local,
com um sistema de trocas regulares entre linhagens; do mesmo modo,
o retorno imediato da escolha do cônjuge entre os consanguíneos (com incidência nos mais pr6ximos daqueles que são permitidos), uma vez que deixem de funcionar as regras de proibição de linhagem, acarreta uma endogamia c:onsanguínea. A única diferença com os sistemas elementares é que esta
endoglUDiapreferencial se efectua com primos afastados e não com primos
chegaqos, estando estes, no intervalo de três gerações, reservados a outrem,
no jogp da aliança restrita entre linhagens que permitam a endogamia local.
Vemos, deste modo, dilufrem-se as noções de endogamia e de exogamia.
A pr6pria noção de linhagem resiste dificilmente à análise, enquanto unidade totalmente pertinente ao nível da aliança. Permanece pertinente a muitos outros níveis: político, econ6mico, residencial, ritual, e até também como
princípio de ordem e de simplificação, dado que a regra de ftliação unilinear opera entre todos os consanguíneos cognáticos separações que têm por
objectivo ordenar e hierarquizar estes consanguíneos em relação a Ego. Todavia, no plano da aliança e da exogamia de grupo (linhagem ou clã), implícita no sistema das proibições crow-omaha, ela deixa de o ser na medida
em que na prática são proibidos (e, aqui, estamos a referir-nos não apenas
permitem esta conclusão. Mas o que se verifica na realidade é que, se existe
realmente uma simetria entre homens e mulheres, esta não funciona senão
num sentido muito especial: se dois irmãos não podem escolher uma esposa
na mesma linhagem, isto implica ipso facto que duas irmãs não podem escolher um marido na mesma linhagem; se um pai e um filho não podem casar
dentro da mesma linhagem, isto tem como consequência que a irmã de um
homem e a filha deste homem não podelTIcasar dentro da mesma linhagem.
Esta simetria entre irmãos, que implica por outro lado uma simetria entre
irmãs, não implica logicamente uma sim~tria de proibição de aliança no interior de um mesmo grupo de filiação entre um irmão e a sua irmã. Do mesmo
modo, a simetria entre o pai e o fIlho, que comporta por outro lado uma simetria entre irmã do pai e ftlha do irmão, hão implica logicamente uma simetria
das proibições de aliança, no interior d'o'mesmo grupo de filiação, entre um
pai e a S4a filha, entre uma tia paterna e o filho do seu irmão.
o
~ ~
I
i1 0-'1=
b
A
B
B
B
~
CAI
A
I
Assim, um homem A, em regime poligâmico, que recebeu uma mulher
de um grupo B e uma mulher de um grupo C (não podendo estas duas
mulheres ser aparentadas), pode «restituir» ao grupo B, na geração seguinte,
a filha que ele tiver tido da sua esposa C (ou uma filha de um dos seus
irmãos cujas esposas não podem ser nem B nem C), sem infringir qualquer
proibição.
.
Nota-se igualmente, como se disse, uma frequência particularmente elevada do casamento entre consanguíneolj na quarta geração. Com efeito, as
regras de proibição incidem nas linhagens de Ego, de sua mãe, da mãe
do pai e da mãe da mãe: não sobre outras. Encontrar-se-ão, pois, uniões
preferenciais do tipo representado,. em que Ego masculino casa com uma
bisneta da irmã do seu .bisavô (FFFSssd). A esposa em questão não pertence, dada a regra de filiação, à linhagem de Ego; Ego, o marido, per-
ENDOGAMiAlEXOGAMllA
135
134
) ao
caso dos Samo
mas também
a outros
sistemas
africanos
de tipo omaha
recentemente
estudados,
tais como
os Mossi,
os Baulé,
os Minianka,
etc.)
não s6 os primos que pertencem por ftliação patrilinear às linhagens proibi-
( li
se unem a estas mesmas linhagens por intermédio de mulheres, sem lhes
pertencerem. Deste modo, Ego masculino não pode casar com FMBdd:
das (F, M, FM, MM), mas também todos os consanguíneos cognáticos que
\
\\\
-~
T I/ T
Ego
I'!
Ego
PFFSssd
FAlBdd
do pai
Ego; inversamente,
paralinhagem
esta esposa
impossível,
pertence
ora
estadepertence
apenas a uma
aliada
( ) da Ego
linhagem
da apemãe
nas a uma linhagem aliada da de sua mãe. De certo modo, podemos dizer
que estes sistemas que falam em termos de grupos agem como se tivessem
em consideração não s6 os grupos, mas também os graus geneal6gicos de
parentesco, como fazem os sistemas cognáticos/indiferenciados.
ENlJUljilMJillJiXOGAMIA
136
Tomemos um segundo exemplo numa sociedade de tipo cognático/indiferenciado, como é a nossa. No século XI, um Padre da Igreja, Pier DanUa:ni,
escreveu um texto para lutar contra uma heresia nascente, que consistia em
interpretar em termos novos a regra can6nica que regulamentava a aliança
na época: a proibição incidia então sobre todos os consanguíneos cognáticos, isto é, unidos entre si por intermédio indiferentemente de homens e
de mulheres, até à sétima geração a partir de um antepassado comum.
A heresia consistia em interpretar este número não em termos de gerações,
mas em termos de graus contados nas duas linhas de procriação: quatro de
um lado e três de outro. Do nosso ponto de vista é importante observar
duas coisas: 1) esta exogamia consanguínea absoluta fora da parentela devia
duplicar-se através de alianças preferenciais entre consanguíneos na oitava
ENDOGAMIAIEXOGAMIA
137
da importância do sexo': ••faz-se» um herdeiro em cada oustal - rapaz ou
rapariga -, escolhendo o mais capaz de gerir os bens. É encargo dos pais
ou do herdeiro dotar os irmãos e irmãs excluídos do patrim6nio. O que
importa é que dois herdeiros não se casem entre si (deste modo chegar-se-ia rapidamente a concentrações de riqueza incompatíveis com a vida social):
um herdeiro (masculino ou feminino) casa com uma filha (ou um fllho) mais
nova que lhe traz um dote. Por outro lado, a análise das uniões cbnsanguíneas realizadas com autorização eclesiástica mostra que as alianças no exterior não correspondem a uma necessidade, mas a uma escolha: l:le facto,
nenhum casamento consanguíneo se produz no interior de uma linhagem
patrimoIlial (linhagem fundada na transmissão do patrim6nio). Em contrapartida, os casamentos consanguíneos praticam-se entre filhos mais novos
excluídos do patrim6nio e com dotes insuficientes para poderem casar com
um herdeiro; geralmente, a autoriZaçãO é-lhes concedida ••por motivo de
pobreza». Os herdeiros das linhagens patrimoniais não transgridem as proibições can6nicas, porque a l6gica do sistema matrimonial prat~cado em
Gévaudan assenta numa circulação i'de bens entre linhagens: a eildogamia
patrimonial impede que esta circulltção se faça. Os fllhos mais novos têm
um comportamento muito mais endogâmico, territorialmente falatldo, mas
também em termos de consanguinid~de, do que os herdeiros par~ quem o
raio da aliança é o cantão e não a aldeia. No entanto, observa Lamaison,
quando se estabeleceram laços matrimoniais durante várias gerações, entre
os diferentes grandes oustal, as famílias preferiram efectivamente atiar-se no
exterior durante uma ou duas gerações antes de renovarem em seguida as
alianças no interior do seu antigo cIrculo. Em suma, a partir do momento
em que as considerações geneal6gicas ligadas às proibições can6niças intervêm simultaneamente com tudo aquilo que diz respeito ao património,
o número de oustals imediatamente vizinhos, com os quais um proposant (um
herdeiro) se pode unir, diminui consideravelmente e incita à expgamia.
Vemos, pois, praticar-se aqui urná estratégia da aliança que tem por objectivo uma exogamia local concebida fm termos de patrim6nio, mas para os
indivíduos portadores desse patrim611Íounicamente, e que as proi~ições não
fazem senão favorecer. Como é que se podem definir neste caSOjao nível
dos grupos familiares e não apenas dos indivíduos, os termos de ehdogamia
e exogamia, no entanto liberalmente utilizados?
';
Um exemplo, em certa medida oposto, é o das sociedades lawnares da
baixa Costa do Marfim, em particul~r. a sociedade aladiana [Augé 1,969], em
que a endogamia de linhagem, mais ek(lctamentea pseudo-endogamia de linhagem, é um luxo reservado aos ricos e aos fortes, isto é, aos representantes
eminentes das linhagens mais podellosas. Neste caso, a estratégia social vai
ao ponto de metaforizar o jogo das' alianças consanguíneas. Normalmente,
existe um sistema de troca generalizaqo (casamento com a prima cruzada matrilateral) que, com acomodações e vuiantes, parece satisfazer no conjunto a
troca entre linhagens nó âmbito de uma forte endogamia aldeã. Mas a intensificação do comércio com os Europeus no século XIX, essencialmehte o tráfico de 61eode palma - que implicava a mobilizaçãode uma considerável quantidade de mão-de-obra -, criou problemas específicos aos chefes das gran,i
geração. Pier Damiani escreve: «Quando a família fundada no parentesco'
desaparece, ao mesmo tempo que as palavras para designar este, a ~ei do
casamento surge imediatamente e restabelece os direitos do antigo amol' entre
aqueles de que se tinha apoderado, o casamento lança imediatamente li sua
) garra
os homens
novos. .. Lá,
pois,
falta a[De
mão
do parentesco,
reunia
para reconduzir
aquele
queonde
se afasta»
parentelae
gradibus, que
in Migne,
Patrologia latina, CXLV,col. 182]. Existia portanto aí também uma endogamia consanguínea diferida. 2) Se bem que não tenhamos os meiollpara
verificar esta hipótese (na ausência de estado civil), e tendo em conta a acentuação patrilinear/patrilocal da nossa sociedade, é quase certo que eram lembradas mais facilmente as relações de consanguinidade que diziam ~obretudo respeito aos homens do que as que diziam respeito às mulheres., Por
outras palavras, pode presumir-se, de maneira correlativa e inversa do que
dissemos relativamente aos sistemas crow-omaha, que no caso em que a riliação é indiferenciada, as falhas da memória humana deveriam fazersllrgir
linhas privilegiadas de flliaçllo, de tal m~neira que esta exogamia, calçulada
em termos de graus, devia ter tendência para se confundir com uma exogamia de grupos baseados em residências ou em patrim6nios comuns ..
A noção de patrim6nio torna-se central no estudo que Lamaison t llJ77]
dirigiu sobre a aliança no Gévaudan do século XVII. Naquela época, as
proibições iam até aos primos nascidos de germanos incluídos. Mos~,a ele
que o importante é manter a integridade do patrim6nio, dos bens, db oustal, e até aumentar a riqueza (aliás, muito relativa) com os dotes trnúdos
pelos cônjuges. Neste aspecto, este imperativo leva a uma negação parcial
ENDOGAMIAIEXOGAMIA
138
des linhagens de comerciantes, sobretudo por causa do sistema de flliação
e de residência. De facto, os Aladianos eram matrilineares e patrivirilocais:
se a herança ou a sucessão se fazia em linha uterina, a força de trabalho
era constituída pelos fIlhos dos homens da matrilinhagem residentes na corte
do seu pai e encarregados até uma idade tardia de uma quantidade de tarefas cujo produto, quando se transformava em tesouro herdável (produto do
tráfico no século XIX, mais tarde, produto das plantações), não lhes era a
maior parte das vezes destinado, uma vez que era transmitido pela linha
uterina. As tensões nascidas deste deseq'tilíbrio (porque nem todas as linhagens tinham o mesmo peso) parecem eSt~r na base da prática de uniões com
mulheres çativas ou com mulheres estr~ngeiras nascidas de etnias patrilineares, o que permitiu aos representantelldas linhagens de comerciantes constituir pod~rosas unidades integradas oJiqe pareciam reconciliar-se, não sem
criar profl.lndas discriminações internas; ÍI. regra de fIliação e a regra de residência. Casar com uma cativa é, de faQto, para um aladiano (a quem ela
chama «p~i»), casar com uma mulher sem linhagem, o equivalente de uma
irmã, pelo facto de ela pertencer de direito à linhagem do seu comprador:
os fllhos rtascidos desta união são simultaneamente, pelas obrigações que
lhes são impostas, «filhos» e «sobrinhos uterinos». A este propósito muitas
combinaçõc::seram possíveis: dádiva de prisioneiras a diversos dependentes,
uniões com descendentes de prisioneiras, uniões entre cativos ou entre descendentes de cativos e até uniões entre mulheres livres da linhagem e homens
cativos ...
A exigência de constituir um grupq numeroso e autónomo encontrou
assim uma resposta numa particular política de fortalecimento da linhagem,
que podemos considerar como o cúmulo da estratégia em matéria de endogamia: se tomarmos como referência a noção de linhagem, podemos deste
modo opor a um primeiro pólo - o da consanguinidade verdadeira e da
endogamia perfeita que, como no caso da sociedade árabe (onde o casamento
preferido se faz com a fllha do irmão do pai, prima paralela patrilateral),
parecem indicar o desaparecimento da noção de linhagem - o pólo da falsa
consanguinidade que preside à constituição de linhagens fortes entendidas
como grupos plenamente orgânicos do ponto de vista social, económico e
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e da estrutura elementar dos grupos sociais (cf. família), tem estado sempre associado a regras
(cf. c6digo), entre as quais a mais divulgada e importante é certamente a proibição do inceslo.
A .troca das mulheres que se instaurou entre os grupos para facilitar o casamento constitui
indubitavclmente um dos momentos mais relevantes na formação da sociedatk (cf. mulher, homem,
homem/mulher).
A tendência para a exogamia que é aquela que geralmente prevalece não se
efectua todavia num sentido estritamente biológico. Antes de mais, o cálculo das possíveis combinaçOCs permitidas no interior do grupo (cf. comunidade) sofre variaçOCs segundo o sistema
de parentesco vigente (cf. puro/impuro, sexualidade, 10lem, amar); com efeito, esse não surge de
modo algum regulamentado de uma vez por todas com leis e normas rígidas (cf. direito, lei,
norma, costume). Mas, sobretudo, as regras matrimoniais, longe de serem uma análise dos laços
entre gerações, estão muito particularmente sujeitas ao modo de constituição do grupo conside.
rado (cf. casla, classes, iniciaçào, exclusào/integraçào, educaçào, discriminaçào, etnocentrismos), aos
seus valores (cf. cultura/culluras, religido, vida/mane, cosmologias), aos seus mitos e temores (cf.
milo/rilo, angústia/culpa, pecado, ética, caslraçào e complexo), ao seu modo de estabelecer relações com outros grupos (cf. conflito, guerra, festa, migraçào), quer no campo político quer no
campo religioso e económico (cf. economia, comércio, troca, reciprocidadelredislribuiçào).
141
CASAMENTO
Começaremos por uma constatação que poderá surpreender o leitor: no
Código Civil Francês de 1905 não existe uma deftnição jurídica dd casamento, mas apenas uma lista das condições fortnais da sua existência e da
sua vitalidade:
I) implica a existência em comum dos cônjuges que deve durar normalmente toda a vida, com união física sexual (se bem que as relações sexuais
no casamento s6 sejam, de facto, previstas na lei negativamente: recusá-Ias
torna legítimo o pedido de div6rcio de um dos cônjuges; o adultério é proibido);
2) não pode ocorrer senão entre pessoas de sexo diferente, que tertham
atingido uma idade mínima de capacidade física;
3) deve obedecer a um certo número de interditos: o Código faz o irlventário das situações de consanguinidade e de aliança em que a união entre
os indivíduos é considerada como incestuosa e, portanto, proibida ou ,utorizada com certas condições (deste modo, poder-se-á conceder uma adtorização de casamento entre sogro e nora quando o casamento que criava a
aliança tiver sido dissolvido por morte do esposo, mas não quando foi dissolvido por div6rcio);
4) deve obedecer a concepções culturais específicas: assim, ninguém Pode
casar se já tiver contraído matrim6nio e se essa união não tiver sidodissolI
vida por morte ou por divórcio; a monogamia é, de facto, a única fOrma
reconhecida de casamento na sociedade francesa (e mais geralmente nas ~ociedades de direito ocidental);
5) o casamento é considerado não existente se faltar o consentimento
expresso publicamente pelos cônjuges 1]0 momento da cerim6nia dd ~asamento (o desaparecimento posterior do consentimento não dá direito ao
div6rcio, no C6digo de 1804);
6) por último, este consentimento deve ser recebido por um rePresentante oftcial do Estado e inscrito nos registos de estado civil.
Deste modo, sabemos o que torna existente o casamento, mas não sabemos o que ele seja. Esta ausência de deftnição não é visivelmente uma dmissão involuntária. O legislador confrontou-se, sem dúvida alguma, tom a
grande dificuldade de analisar objectivamente a instituiçllo do casamcnto c
de lhe dar uma definição geral, embora nem sequer se procurasse dar aqui
CASAMENTO
(no C6digo Francês) uma deftnição universalmente aceitável. Esta diftculdade
de ordem intelectual é a mesma com que se confronta a antropologia, em que
a deftnição da instituição social que é o casamento conduz geralmente a explicações de funcionalidade e de ftnalidade, sobre a sua razão de ser, sobre o que
«faz»,cuja principal característica é a tautologia. Como escreve excelentemente
: Riviere [1971], se a função do casamento é legitimar a descendência, a legitimidade da descendência depende, pois, do casamento. Uma coisa não existe
, sem a outra, donde um raciocínio puramente circular.
A deftnição mais conhecida de casamento é, de facto, a da sexta edição
de Notes and Queries in Anthropology (1951), manual básico dos etn610gos
de campo que declara: «O casamento é uma união entre um homem e uma
mulher realizada de tal modo que os fllhos que a mulher dá à luz são reconhecidos como sendo os ftlhos legítimos dos dois cônjuges». Independentemente da crítica fundamental acima expressa, esta deftnição não resiste à
análise de um certo número de ractos etnográftcos. Como demonstrou
Edmund Leach [1951], se nos cingirmos a esta deftnição, não poderemos
considerar como casamentos - e isso em oposição ao sentimento e à convicção dos seus actores - as uniões contraídas sob o regime chamado da
L«poliandria adélftca», ou seja, aquelas em que uma mulher é a esposa de
um grupo de irmãos, ou a esposa de um homem e dos seus fllhos nascidos
de outra esposa. É verdade que, nll maior parte dos casos conhecidos, os
produtos das diferentes uniões são considerados como sendo fllhos do mais
velho, ou seja, daquele que contraIu a aliança em primeiro lugar. Mas a
relação dos irmãos mais novos com esta mulher do irmão mais \'elho não
é um simples desregramento moral, htna simples tolerância. Por vezes, como
no Tibete, existem tantos rituais dei casamento, a intervalos mais ,ou menos
regulares, quantos os irmãos que possam beneftciar das prestações sexuais
e de outros serviços da esposa comu1D,e s6 beneftciam deles depOis da execução do ritual; cada um deles goza; I>orsua vez, sozinho, a esposa comum
durante períodos determinados, durante os quais os outros irmãos se ausentam,' se bem que as crianças, consideradas, no entanto, fllhas comuns do
grupo de irmãos, tenham um único pai legal, o mais velho do grupo.
A união
com os
irmãos mais
novos,
~ue implica
cooperação
econó~ca,
assistência
mútua,
privilégio
sexual,
controlo
em comum
da educação
dos fllhos,
união que é reconhecida válida peloi'conjunto da sociedade, deve ser ou não
considerada um casamento? Se admitirmos que se trata realmente de um
casamento, então a definição de NtJtes and Queries é insuftciente.
Ela também não se ajusta ao cas<ldos Nuer [Evans-Pritchard 1951], entre
os quais, como já vimos (cf. os artigos «Família» e «Incesto»), uma mulher
estéril, que dispõe de riquezas em glÍdo, pode desposar, a título de I<marido»,
outras mulheres que a servem e a ,honram, e que lhe dão, através de um
genitor-servidor interposto, fllhos de:que ela é o pai reconhecido, e que recebem dela, como pai, a sua legitimidade, o seu estatuto social e o seu direito
à herança na linhagem patrilinear.,
A definição de Notes afld Querie~não se ajusta também ao célebre caso
dos Nayar matrilineares (Gough), dnde cada mulher tem um marido escolhido numa linhagem regularmenté associada à sua para fornecer parcei-
CASAMENTO
143
142
ros matrimoniais, mas não vive com ele; pode ter quantos amantes quiser,
que as crianças que nascerem pertencem unicamente ao grupo matrilinear
da mãe. No entanto, Gough afirma, pelo menos no seu mais recente artigo
sobre o problema [1959], em que rebate as críticas de Leach, que a noção
de paternidade não está ausente e que o casamento ritual tem por objectivo
fundamentar a legitimidade das criança~.
O exemplo nayar ensina-nos que, mesmo onde a instituição parece ausente
(não existência de residência comum por parte dos cônjuges, de privilégio
sexual, de cooperação económica, de cpoperação do casal na educação dos
filhos, e tratando-se de famflias matriaentradas, etc.), ela está no entanto
presente sob um aspecto que desconhecllmos na nossa cultura: o estabelecimento de laços de aliança duradouros, regulares, renovados e instaurados
entre linhagens, entre grupos sociais. Os ,casamentos entre homens e mulheres perten!=entes,cada um pelo seu lado, 1I0Sgrupos em condições de aliança
matrimonial são de facto os suportes f~ctuais desta aliança, mas isso não
implica na9a daquilo que costumamos englobar na noção de casamento.
O exemplo nayar mostra também que a aliança entre grupos passa necessariamente por uma união legal entre indivíduos de um e de outro sexo. Poderia ela ter. outras expressões?
Como faz notar Riviere, a única característica universal do casamento
é a de que as unidades que o compõem são homens e mulheres. A categoria do sexo é a primeira, em todas as acepções do termo, entre todas as
distinções sociais, e o casamento pode ser examinado antes de tudo como
uma das relações possíveis entre os elementos fundamentais da estrutura
social, isto é, os homens e as mulheres. O problema será então o de saber
o que faz com que esta relação particular (possível entre outras, mas quantas outras?) tenha conhecido a fortuna que se sabe, uma vez que não existem sociedades que sejam integralmente desprovidas desta instituição (cf.
o exemplo nayar). Em todo o caso, o exemplo nuer mostra-nos, por seu
lado, que a representação dos papéis masculinos e femininos tem mais importância do que o sexo real dos indivíduos. "O casamento entre mulheres"
dos Nuer (como é costume chamar-lhe) não é nunca um casamento de
mulheres, mas sim um casamento contraído por uma mulher que desempenha um papel de homem com o consentimento do seu meio social, dados
os aspectos simbólicos particulares que revestem as categorias do masculino
e do feminino. Uma mulher estéril, apesar da evidência do sexo, é socialmente um homem.'
"I
O exemplo da poliandria adélfica demonstra-nos, se atentarmos nas análises de Leach, que as noções de privilégio sexual reservado a um só parceiro e de legitimaçào das crianças por parte de um único homem, que detém
sozinho o estatuto de marido e de pai, podem ser aspectos secundários da
instituição matrimonial - como também era o caso do exemplo nayar -,
a partir do momento em que outras exigências passam para primeiro plano.
Numa sociedade onde as mulheres transmitem riquezas tal como os homens,
mas em que o ideal é conservar intacta a propriedade fundiária que é apenas transmissível aos herdeiros machos, é evidente que, se os irmãos tivessem cada um as suas próprias esposas, transmitiriam as suas próprias rique-
I
CASAMENTO
zas aos seus ftlhos e não aos sobrinhos (ftlhos dos irmãos do marido); os
grupos de primos teriam assim interesses económicos diferentes; existiriam
grandes hipóteses de que o património fundiário não ficasse intacto a longo
prazo. Mas ao partilharem uma esposa comum, dona da casa, os únicos herdeiros dos irmãos como das suas esposas são os ftlhos nascidos desta esposa
comuIll. A poliandria deste tipo tem como resultado manter agrupada a propriedade, reforçar a solidariedade dos grupos de co-irmãos e até, ao que
parece, reduzir a zero o ciúme sexual. As narrativas etnográficas mostram,
a queIll quer entendê-Ias, os resultados altamente morais de tais uniões.
Mali este exemplo demonstra-nos também outra coisa. Por que razão apenas a IJC0pósitoda poliandria se põe o problema de saber se a palavra 'casamento' continua a ser adequada, quando se trata de defmir as outras uniões
da esposa comum? A mesma questão não se põe quando se trata de poligamia, entre irmãs ou não (o facto de um homem se casar com diversas mulheres simultaneamente, e em particular com irmãs). A definição de Notes and
Queries aplica-se perfeitamente a este caso: é exactamente da união de um
homem e de uma mulher que se trata - nunca nesta definição se fala da
união exclusiva e, portanto, de monogamia -, de tal modo que os filhos
que a mulher tem são reconhecidos como ftlhos legítimos dos dois cônjuges. Se o problema se põe no caso da poliandria é porque, a menos que
sejam organizadas sucessões suficientemente espaçadas e acompanhadas do
reconhecimento explícito da paternidade biológico-social de cada um dos
maridos (como parece ser o caso dos Toda), existe sempre uma ambiguidade no que respeita à paternidade verdadeira de cada um dos maridos,
e é, pois, necessário admitir a existência de uma noção de paternidade colectiva, estranha às nossas mentalidades, ou a atribuição de cada criança a um
pai social, com o apagamento voluntário dos outros pais possíveis, no interesse superior do grupo: o da permanecer unido.
Não é tão facilmente que se anula a maternidade: a mulher é mãe sem
qualquer contestação possível. Mas, em todos os casos - desaparecimento
dos genitores em proveito de um pai social no interior do grupo de irmãos
ou reinvindação da paternidade legítima tal como ela é demonstrada no casamento legal -, o que é importante é o controlo da fecundidade feminina,
mediante a designação de um marido e de um pai para os filhos. Se o casamento é, estruturalmente, a união de um homem e de uma mulher (ou de
pessoas investidas, uma de um papel masculino e outra de um papel feminino), a diferença biológica dos homens e das mulheres e a evidência da
sua importância respectiva na reprodução dos grupos tem como consequência diferenças fundamentais na sua situação recíproca no interior da relação
conjugal. Dado que a fecundidade das mulheres é uma coisa essencial à
sobrevivência dos grupos, ela será controlada pondo a mulher sob tutela e
confinando-a o mais rapidamente possível ao papel de mãe.
Emile Benveniste, numa extraordinária análise do vocabulário indo-europeu sobre o parentesco [1969, em particular livro 11, capo IV], deu-nos um exemplo concludente. Ele demonstra que não existe propriamente
um termo indo-europeu para dizer «casamento", termo que é aliás de criação recente. Já AristóteIes o dizia: "Falta um termo exacto para indicar a
CASAMENTO
145
CASAMENTO
144
graças à proibição do incesto, de vínculos intermatrimoniais entre elas, permitindo edificar assim a construção, passando pelos laços artificiais do parentesco, de uma verdadeira sociedade humana» [Lévi-Strauss 1956, trad. i1.
p. 168].
As componentes fundamentais de qualquer organização social são os
homens e as mulheres que a constituem, e são as mulheres que fazem filhos.
A aliança entre grupos, entre famflias consanguíneas, só pode fazer-se através da oferta da única riqueza, isto é, a capacidade de reprodução, ou seja,
pela troca das mulheres. Cada grupo humano dá aos outros e recebe dos
outros hipóteses de sobrevivência. Todas as unidades se encontram estreitamente dependentes umas das outras para a sua reprodução, através da troca
de parceiros sexuais, existindo, pois, uma regra de fIliação que confere às
crianças o seu lugar sem contestação possível.
Mas não é suficiente. A fim de que a aliança entre os grupos tenha um
sentido, é necessário que as relações entre os parceiros sejam o mais estáveis
possível. Que significaria a relação de aliança concluída entre grupos através
da união de dois indivíduos, se esta devesse ser rapidamente rompida?
relação entre um homem e uma mulhere» [Po/(tica, 1253b, 10-11]. Para além
disso, demonstra ainda que as expressões antigas que encontramos diferem
segundo o sexo: termos verbais para o homem, nominais para a mulher.
Os termos verbais utilizados para o homem têm como raiz verbal wedh
que quer dizer 'conduzir uma mulher a casa'. Ao lado destes verbos
encontram-se aqueles que indicam a função do pai da rapariga, sobre a raiz
verbal «dar». Assim, pois, o esposo conduz para casa dele a jovem que o
pai dela lhe deu: negócio entre homens com um objectivo preciso.
Com efeito, não existe nenhum verbo que indique o facto de uma mulher
I se casar.
1
Como diz Benveniste, «esta situação lexical negativa, a ausência
de um
verbo
próprio,
indica que
a jovem
Não realiza
um
acto,
muda
de condição»
[1969,
trad.~oit. se
p. casa,
185],é ocasada.
que também
está
expresso nos termos nominais que se encontram quer no indo-iraniano quer
no latim. Assim, em latim, matrimonium significa literalmente «condição legal
de mater», ou seja, de mãe, segundo o valor jurídico de todos os derivados
em -monium. «Portanto, matrimonium define a condição à qual a jovem tem
acesso: a de mater (familias). É isso que significa para ela o casamento, não
um acto mas um destino; ela é dada e levada ... in matrimonium» [ibid.,
p. 186], isto é, para tornar-se mãe em casa de um homem que não é o seu
pai.
Não se deve julgar que isto é específico da ideologia indo-europeia.
Evans-Pritchard [1948], ao analisar as cerimónias do casamento nuet, que
duram muito tempo, dado que a realização definitiva do casamento não é
a união carnal mas o nascimento da criança, demonstra que é apenas quando
a esposa vem depor o seu bebé. no pátio do sogro (até aí ela viveu em casa
dos pais dela) que é considerada mulher e que vai viver defmitivamente com
o marido. Evans-Pritchard acrescenta que ela vai para casa do marido (e dos
sogros), não enquanto esposa mas enquanto mãe cujos seios alimentaram
uma criança da linhagem deles.
Entre os Samo do Alto Volta, tal como no indo-europeu, os termos
variam segundo designam o acto de tomar uma mulher ou de entrar numa
casa como esposa. Uma esposa não se torna mulher, isto é, não está completamente realizada, senão quando nasce o primeiro fIlho; antes, é sempre
uma rapariga, suru. Uma mulher estéril será considerada durante toda a sua
vida uma rapariga e não uma mulher. Em contrapartida, toda a esposa'legítima já é mãe quando se junta ao seu marido, que é o pai social de uma
criança de que ele nAo é o genitor [H~ritier 1978].
Torna-se, portanto, evidente que o casamento enquanto imagem,.possível da relação entre os sexos, mas imagem universalmente adoptadíl, tem
por funçAo assegurar de maneira controlada a reprodução dos grupoa. Mas
de que grupos se trata? «Como Tylor mostrou há quase um século, a.explicação última é a de que provavelmente a humanidade compreendeu muito
cedo que, para se libertar de uma luta selvagem pela existência, era obri.
gada a uma escolha muito simples: ou casar fora ou ser morto fora. A altenativa era escolher entre famílias biológicas vivendo ente si e destinadas a
permanecer como unidades fechadas, perpetuando-se a si mesmas, submergidas pelos seus modos, ódios e ignorâncias, e a sistemática instauração,
objecto tornar dependentes e complementares não já os grupos mas os pró\ prios
A repartição
sexual
tarefas,
corolário neste
sentido
da exogamia,
por
indivíduos.
Na de
relação
homem/mulher
surgem
outras
prestaçõestem
de serviços para além do simples comércio sexual. Homens e mulheres são, deste
duradouras baseadas num coiltrato de manutenção mútuo que só falta
Iciações
modo,
levados por
por uma
incapacidades
a diar
li sua assolegaser sancionado
instituição attificialmente
jurídica e ritualestabelecidas
que estabeleça
lidade. Temos assim o casamento, t:nlve mestra de qualquer organiza~ãosocial,
na medida em que articula entre si elementos tão fundamentais comb a necessidade de exogamia para construir. Uma sociedade viável, a proibição do
incesto, a repartição sexual das tarefàs. Compreender-se-á, assim, que o casamento não possa ser, nem seja nurlca, totalmente deixado ao acaso e que,
pelo contrário, a escolha do cônjuge' seja objecto de regras precisas, que formam o âmago de qualquer estudo sobre o parentesco. [F. H.).
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Marriage:
A Reassessment,
Kinship
.(
and Marriage,
HOMEM/MULHER
o Geralmente o casamento é considerado como a união permanente entre dois parceiros de
que é recosexo diferente (cf. sexualidade, mulher, homem, homem/mulher, masculino/feminino)
nhecida e legalizada pela sociedade, seja no acto que a defme, seja pelas consequências que
dela derivam, sobretudo no que diz respeito à prole. Se, por um lado, é verdade que não
existem sociedades sem tal instituição (cf. instilUiç.w), por outro, verifica-se simultaneamente
uma grande dificuldade em dar uma defmição que ultrapasse a descrição do casamento. Quer
a união de dois parceiros quer a simples legalização dos filhos não parecem, de facto, determinantes. O amor ou o prazer não representam o motivo dominante da união a não ser a nível
individual. De resto, a própria identidade dos cônjuges está longe de ser unív0C3; estudos etnográficos most,am casos de mulheres com funções de «marido., enquanto do ponto de vista
dos filhos m~itas vezes a paternidade em algumas populações (cf. população) é mais um facto
social do que biológico. O próprio estatuto de mulher não é tanto determinado pela relação
sexual com o cônjuge como pela sua possibilidade de tornar-se mãe: é a própria palavra matrimónio (função de mater) a revelá-Io. Portanto, parece que na raiz esteja o controlo da fecundidade feminina mais do que a estabilidade da relação e a legalização dos filhos; problema não
individual, mas de grupo que tende a individualizar as regras (cf. norma) para a própria continuidade medwue a inserção da fecundidade natural num sistema de controlo (cf. controlo social).
Neste âmbito, guerra ou troca constituíram a escolha perante a qual se encontrou a fam{lía
alargada, que se traduziu em endogamialexogamia. Daí todas as regras de parentesco (cf. incesto)
concebidas para tornar mais certa e estável a relação matrimonial em todas as suas manifestações (cf. nascimento, morte, luto, jogo).
1.
As relações entre os sexos e o problema da dominação masculina
Durante muito. tempo as desigualdades sociais que se verificam em múl·
tiplas sociedades entre o estatuto dos homens e o das mulheres foram objecto
de reflexões e de críticas por parte de minorias. Estas minorias, que nas
sociedades europeias pertenciam ou às classes médias ou a uma vanguarda
do movimento operário, oscilaram entre duas interpretações opostas sobre
o facto da dominação masculina. Para uns - e neles se reconhece a posição
passada e ainda actual de certas correntes feministas - a dominação dos
homens na vida social era considerada como a mais importante das formas
de opressão e, por consequência, devia ser prioritariamente combatida. Para
outros a dominação masculina surgia, ao contrário, como a forma menos
importante de opressão social que teria a sua solução após se terem ganho
outras lutas contra a exploração de classe, o imperialismo e o racismo.
Actualmente nas nossas sociedades parece ter-se operado uma grande
mudança. Por um lado, o problema da. luta contra as desigualdades entre
os sexos é posto publicamente e, retomado por vastas organizações de massas e não por grupúsculos, é já objecto da criação de aparelhos burocráticos
para resolvê-Io, sendo exemplo disso em França o ex-Ministério da Condição Feminina. Por outro lado, parece que se foi impondo pouco a pouco
a ideia de que é necessário distinguir cuidadosamente os diferentes tipos
de opressão e de exploração que existem nas nossas sociedades. Sem negar
que a dominação masculina esteja ligada às relações de classe e às formas
de opressão que estas comportam, torna-se cada vez mais evidente que é
necessário distinguir claramente a natureza, a antiguidade, a origem e o modo
de evolução específico das formas de dominação entre classes, entre nações,
entre raças, entre sexos, a fim de compreender as suas articulações e efeitos
reais no funcionamento da nossa própria sociedade. Torna-se também evidente que a desigualdade entre os sexos não é unicamente produto da sociedade capitalista, e que esta contradiçAo existe noutras sociedades e é talvez
muito mais antiga que as sociedades de classe.
Para analisá-Iaé, pois, necessário recorrer aos dados comparados da antropologia e da história. Sobre a história diremos bem pouco, deixando a outros
a tarefa de o fazerem. Digamos apenas que existe também uma maneira
HOMEM/MULHER
148
antropol6gica de ler a hist6ria, da qual daremos rapidamente um exemplo.
Na Grécia antiga, e em particular na Atenas clássica, possuir a terra da
Cidade (polis), sacrificar aos deuses, defender com as armas na mão o solo
pátrio, exercer a magistratura e os outros cargos são acima de tudo privilégios masculinos. Para um grego, ser plenamente homem significa, em primeiro lugar, ser homem e não mulher, ser livre e não escravo nem meteco.
A mulher grega, livre, está vinculada pelos laços do casamento à familia
do seu senhor e esposo, de quem ela dirige em parte a economia doméstica. senhor dispõe a seu heI-prazer das suas escravas femininas em matéria
sexual. Arist6teles define aliás claramente estas relações de sujeição quando
escreve na Po/(tica: ••Os elementos primitivos e indecomponíveis da família
são o senhor e o escravo, o marido e a mulher, o pai e os fIlhos» [1253b,
6-7], e acrescenta: ••Hesíodo teve razão ao dizer no seu poema: "Na sua
essência a casa é a mulher e o boi que lavra", porque para os pobres o
boi substitui o escravo» [ibid., 1252b, 10-12]. Adivinha-se aqui a relação
entre estrutura da família e estrutura do modo de produção, bem como os
fundamentos de uma dupla sujeição da mulher, por um lado na cidade, por
outro, na fami1ia. É evidente que a sociedade grega era uma sociedade de
classes e ainda por cima de tipo patrilinear como a nossa. Mas o mesmo
não se pode dizer do resto da Europa ãiítiga e devemos lembrar-nos do
espanto de Tácito quando, enviado em missão junto dos Britânios e dos
Germanos, descobriu que as mulheres participavam no conselho dos guerreiros. Igualmente espantados ficarão, dezasseis séculos J;J13Ís
tarde, os Ingleses e os Franceses ao penetrarem nas florestas americanas e ao descobrirem
que entre os Iroqueses e os Hurões eram as mulheres que nomeavatn os
Estados Unidos referida por Irene Lezine. A um grupo de estudantes ame·
ricanos foram a~resentados bebés dos dois sexos uma vez vestidos de raparigas e outra de rapazes. Foi pedido aos estudantes que comentasse~ o com·
portamento dos bebés. Ora quando um deles chorava, os comentárIos eram
do seguinte estilo: se o bebé estava vestido de rapaz, as lágrimas eram um
sinal da sua fúria, a prova de como um rapaz age sobre o mundo; se. o
bebé estava vestido de rapariga, as lágrimas eram sinal de que alguma COisa
°
não estava bem, que ela choramingava, etc. Fácil seria percorrer os co~portamentos simbólicos que todos os dias atestam a do~nação mascuh~a
e contribuem para a sua divulgação. Mas que se passa, hOJe,nas outras socIedades?
3.
de seiscentas línguas ou dialectos que devem ser falados cada um, n~
mínimo, por dois grupos. Para a África Negra, propõe-se o número aproxImado de duas mil línguas ou diall:ctos. Ora os antrop610gos estudaram até
agora cerca de setecentas ou oitocentas sociedades, menos de um décimo
do número global que propomos. :Os dados sobre oitocentas e noventa destas sociedades estão hoje organizados num vasto ficheiro, os Human Area
Files, no qual se encontram, para cada população, as informações sobre as
relações homem-mulher, a divisão do trabalho, as relações de parentesco,
os mitos. Mas existem menos de einquenta monografias sérias que tenham
°
problema que inevitavelmente se põe é o de saber se a subordi\'lação
das mulheres aos homens existe actualmente em todas as sociedades: e se
sempre existiu.
exemplo dos Germanos e dos Iroqueses permitiria duvidar disso. Vamos responder a esta questão de um ponto de vista antropol6gico e a partir de materiais e de discussões antropol6gicas.
°
especificamente por objecto a an~ise das rel~ções ho~em-mul.her. É, ~?is,
a partir desta informação que se vão orgamzando hOJe em dia as analises
e os debates dos antrop610gos.
As três dimensões da dominaçdo masculina e do sexismo
Em primeiro lugar, o que é que se entende por subordinação feniihina?
Trata·se de uma realidade social de três dimensões: econ6mica, política, simb6lica. No plano econ6mico, basta olhar' à nossa volta para verificarmo~ que
na nossa sociedade as mulheres não têm acesso às mesmas profissões que
os homens ou nunca vão tão longe quanto os homens na mesma prdfissão.
No plano político, as mulheres que em França foram um pouco rriais de
metade da nação constituem menos de 10 por cento dos representantes do
país na Assembleia Nacional. Finalmente, no plano simbólico, todos os dias
os mas! media opõem as imagens contrastantes do homem e da mulher, do
homem-sujeito e da mulher-objecto, tal como desde a mais tenra idade se
aprendem estere6tipos que imediatamente estruturam a percepção da reali.dade social. Lembramos, a este prop6sito, uma experiência realizada nos
Uma visão ••mundial» do problema
Antes de mais, quantas sociedades existem hoje à superfície do globo?
Ninguém conhece o número aproximado. Por sociedade entende-se um grupo
local que reconhece em si mesmo. uma identidade, uma hist6ria, uma cul·
tura específica distintas, ou seja, opostas às dos seus vizinhos. Propõe-se
um número, mais de dez mil, a partir de informações obtidas sobre o número
de línguas faladas em África, na Ásia, etc. Pensa-se, por exemplo, que na
Nova Guiné, onde vivem três milhões de habitantes, foram recenseadas cerca
sachem.
2.
HOMEM/MULlIliR
149
4.
J.
Etnocentrismo e androcentHsmo
Esta pobreza de informação é a primeira limitação a pesa~ em tod~s
os debates. A segunda é o facto ,de estas informações terem SIdo recol~ldas por Ocidentais, e a maior parte das vezes por homens. Elas são, pOiS,
parcialmente etnocêntricas e na sua maioria androcêntricas. Todavia, é
entre os antropólogos, e pelo facto de esta profissão comportar desde o
início muitas mulheres, que encontramos os primeiros grandes estudos feitos por mulheres sobre as relações homem-mulher. Para além de alguns
nomes célebres: Margaret Mead, ~uth Benedict, citaremos outros - Phillis
Kaberry, Eleanor Leacock, etc. - menos conhecidas do grande público.
HOMEM/MULHER
ISO
Os antropólogos homens trabalham como homens e muitas vezes anotam
nos seus blocos o que poderia ser encarado como uma visão masculina da
sociedade que estudaram. Mas as pr6prias antrop610gas são muitas vezes
., tratadas como homens e também elas participam de uma visão androcên~jtrica da sociedade que estão a estudar. ~ Ilssimque Eleanor Leacock, fazendo
1938), construiu duas montagens que anresentavam a mesma sociedade desrita por um mesmo autor, quer como liominada pelas mulheres, quer como
~ma
colagem
citaçõesPor
do outro
livro lado,!
de ~uth
Landes, que
Thea Ojibwa
Woman
dominada
pelosdehomens.
demonstrou
autora oscilava
inconscientemente entre um ponto de vlsta masculino e um ponto de vista
feminino, e que, no que dizia respeito 'ao livro de Ruth Landes, a tarefa
de estabelecer a relação real existente entl:e os índios do Canadá estava ainda
em {arte
por fazer.
, no entanto,
o etnocentrismo a foi1te mais importante de deformações,
etnocentrismo que se resume no essenc,al à impossibilidade de um ocidental compr~ender o funcionamento de sociedades sem classes, isto é, as formas de igp'a1dadesocial desconhecidas entre n6s. Certas antropólogas, como
Eleanor Leacock, June Nash, etc., esforçam-se por fazer compreender aos
seus colegas e ao público o que pode s~l' a situação das mulheres em certas
sociedade~: Em geral, referem-se a dois: tipos de sociedades: sociedades de
caçadores-recolectores (Bosquímanos da África do Sul, Pigmeus do Zaire,
índios Montagnai do Canadá) e socieda4es hortícolas de organização matrilinear (Hurões, Iroqueses e outros grllPos matrilineares da costa leste e
sudeste da América do Norte, ou aquilQ a que se costuma chamar a cintura
matriline~r da África, zona que corta transversalmente a África Central).
5.
A autonomia das mulheres índias montagnai
Eleanor Leacock, que viveu entre os Montagnai Naskapi do Canadá, verificou a enorme autonomia de que gozavam aind3 em 1953 as mulheres
daquela sociedade. Ora, por sorte, ela pôde comparar as suas observações
com o que tinha visto e anotado; em 1633, um jesuíta francês, Paul Le
Jeune, que tinha passado um Inverno com os Montagnai a fim de os converter e, posteriormente, dado conta da sua missão à ordem dos Jesuítas,
em Paris. Le ]eune tinha ficado surpreendido com o facto de as crianças
não parecerem obedecer aos pais, as mulheres aos maridos e os grupof; a
um chefe. Segundo ele, estes índios seriam mais facilmente convertidos ao
cristianismo e pacificados se fosse possível impor-Ihes a atitude submissa
das mulheres francesas para com os maridos ou dos súbditos do reino para
com o rei de França.
Leacock procurou as razões desta autonomia tão grande das mulheres
montagnai e verificou em primeiro lugar que, no âmbito da divisão do trabalho, cada sexo assume as suas tarefas e toma as suas decisões sem que
o outro o controle. Por outro lado, mais profundamente, nesta economia
de caça-colheita, não existia uma verdadeira separação entre economia doméstka e qualquer economia social. O trabalho das mulheres não surgia como
HOMEM/MULHER
1S1
uma actividade privada, de segundo plano, doméstica. As mulheres tomavam parte activa nas discussões colectivas para decidir deslocar o acampamento, fazer a guerra, combinar um casamento, etc.; divorciavam-se facilmente, levando consigo ou não os fIlhos. Estes não estavam unicamente a
cargo da mãe: as outras mulheres do grupo ocupavam-se deles e os homens
também, se bem que menos frequentemente. A vida social não estava, por
conseguinte, centrada na famaia nuclear em que a mulher se consagra a
tarefas domésticas e à criação exclusiva dos fIlhos. De modo geral, reinava
naqqela sociedade uma vontade de igualdade entre os indivíduos, e cada
um, I ~omem ou mulher, que tentasse impor aos outros a sua vontade era
submetido a zombaria pública, à crítica, muitas vezes obscena, e ridicularizado. Não existia um chefe, mas, nas relações com outros grupos, um
homel1l servia de porta-voz - o melhor orador, o homem mais calmo. Se
bem que, segundo a minha opinião, este quadro não prove a ausência de
dominação masculina, sugere no entanto uma autonomia feminina bastante
superior à que podemos verificar na nossa sociedade.
6.
As sociedades «matrilineares»
As sociedades matrilineares hortícolas da América do Norte - como por
exemplo, os Iroqueses, vizinhos e inimigos dos Montagnai Naskapi - constituem o segundo exemplo privilegiado por Eleanor Leacock (e isto continuando a tradição de Morgan e de Engels). Foi este exemplo que alimentou o mito de um matriarcado, de um poder dominante das mulheres na
sociedade.
Recorde-se antes de mais a grande diferença que existe entre sociedades
patrilineares e sociedades matrilineares. Nas primeiras a fl1iaçãoé contada
através dos homens e passa de pai para fl1ho; .a mulher está submetida ao
marido que tem autoridade sobre os seus fl1hos. Nas segundas a fl1iação
passa de mãe para fIlha; é nisto que reside a prova de um matriarcado, da
dominação do poder feminino? Os antropólogos há muito que debateram
este problema, e todos, ou quase todos, responderam negativamente. Parece,
com efeito, que nas sociedades matrilineares, a mulher está igualmente subordinada ao homem, mas não o está ao seu marido ou ao seu pai, mas sim
ao seu irmão e ao irmão da mãe, que têm autoridade sobre ela e sobre os
fl1hos dela. Estes não pertencem ao seu pai, mas à linhagem da mãe e
encontram-se sob a autoridade dos tios maternos. O que parece inegável
é que a subordinação das mulheres aos homens é muito diferente nas sociedades matrilineares e menos dura em geral do que nas sociedades patrilineares. Numa sociedade matrilinear uma mulher está submetida a duas autoridades: à do irmão e à do irmão da mãe por um lado, à da mãe e à das
irmãs da mãe por outro, enquanto numa sociedade patrilinear a mulher está
submetida primeiramente à autoridade do pai, e posteriormente à do marido.
Para voltar ao exemplo dos Iroqueses e dos Hurões, vejamos o que rela·
taram os observadores do século XVI: a sua subsistência assentava na agricultura e na caça, na pesca e nas colheitas. As mulheres ocupavam-se das
HOMEM/MULHER
152
colheitas e da agricultura, os homens da caça, da pesca e da guerra. A sociedade estava dividida em clãs matrilineares e os clãs em linhagens que viviam
em compridas casas, cada uma das quais sob a autoridade das mulheres idosas da linhagem. As mulheres participavam no conselho do seu clã e elegiam um chefe que era um homem, um dos seus irmãos. Desde o conselho
de clã até ao conselho da tribo, presidido pelo grande sachem, as mulheres
estavam presentes, pelo menos as matronas, em todos os níveis do poder.
Era através das mulheres que se transmitiam os direitos sobre as terras de
cultura, e estas terras eram cultivadas colectivamente pelas mulheres sob
a autoridade das matronas. Estas controlavam a redistribuição dos produtos
agrícolas que estavam armazenados nas reservas situadas em cada extremidade das grandes casas; as mulheres podiam mesmo impedir o início de uma
guerra ou a sua continuação recusando-se a fornecer aos guerreiros os víveres necessários. As jovens escolhiam os seus amantes e uma vez casadas
tinham a possibilidade de se divorciar. Este é, portanto, um outro exemplo
de sociedade onde as mulheres gozavam de um prestígio e de um poder
público inimagináveis nas nossas sociedades ocidentais.
É importante lembrar que esta sociedade se transformou rápida e profundamente com o impacto da colonização europeia. No século XVI os Iroqueses sujeitaram-se cada vez mais ao interesse dos Brancos pela caça ao
castor. Depois, quando a sua caça se esgotou, serviram de intermediários
entre a feitoria dos Brancos e as tribos do interior. Aliaram-se aos Ingleses
e lutaram contra os Hurões e os Montagnai, que se tinham aliado aos Franceses. Pouco a pouco acumularam novas formas de riqueza, ligadas ao comér~
cio de peles, riqueza que permanecia nas mãos dos homens e que era acompanhada de um desenvolvimento do individualismo económico e político.
A guerra, para servir os Ingleses, reforçou a autoridade dos homens em proporções desconhecidas até então. Progressivamente, as regras de reciprocidade e de partilha desgastaram-se, a organização colectiva em compridas casas
desapareceu e já não existia quando Morgan, em 1851, consagrou um estudo
aos Iroqueses. Este exemplo mostra como o quadro histórico das relações
homem-mulher se tornou cada vez mais confuso desde que, no século XVI,
começou a expansão colonial dos povos europeus e dos seus sistemas económicos e sociais.
7.
Colonialismo, economia mercantil, trabalho assalariado e estatuto respectivo dos sexos
No seu conjunto, as sociedades matrilineares decompuseram-se ,muito
mais rapidamente do que as sociedades patrilineares, e as organizaçõés fluidas, igualitárias, sem poder central resistiram menos ao choque do que ~ciedades hierarquizadas. Em Africa, por exemplo, a economia de plantàç~o e,
O desenvol\timento das minas fIzeram apelo prioritariamente à mão-de~obra
masculina e ao trabalho assalariado. Pouco a pouco, a economia tradicional desapareceu, ou pelo menos centrou-se na família nuclear, que por sua
vez assentava no trabalho dos homens e no seu salário. Uma nova depen-
HOMEM/MULHER
153
dência das mulheres em relação aos homens e dos ftlhos em relação à mãe
ocorreu no contexto da destruição dos laços económicos recíprocos no interior das linhagens ou entre os clãs, bem como no âmbito da perda das posições públicas ou de prestígio das mulheres na sociedade.
É aliás a própria Eleanor Leacock quem demonstra que do século XVI
ao século XVII os Montagnai passaram de uma estrutura matrilocal para uma
estrutura patrilocal, sob o efeito do desenvolvimento da economia de caça
com armadilha e do comércio de peles que estavam quase exclusivamente
nas mãos dos homens. No século XVII, estes índios viviam em grupos fluidos, praticando sobretudo a caça colectiva ao caribu, caça na qual coopera:' vam homens e mulheres. As relações de parentesco eram indiferenciadas,
r
de tipo cognático, no entanto, com uma inflexão matrilocal. Os grupos eram
unidades exogâmicas. Actualmente, são endógamos e patrilocais. Os homens
possuem a título individual direitos sobre as proporções de território comum
onde colocam as suas armadilhas e transmitem estes direitos aos seus ftIhos.
As famílias vivem cada vez menos da caça e da colheita de subsistência,
mas dependem das trocas com os e.rttrepostos comerciais dos Brancos, onde
compram as espingardas, as munições, as armadilhas, o toucinho, a farinha
para o Inverno, deixando nessa estação do ano os ftIhos quer na escola quer
na missão que existe ao lado da feitoria. O quadro histórico é, pois, confuso. Cada dia que passa é mais difícil reconstituir a situação das relações
entre homens e mulheres no período pré-colonial. Todavia, a evolução no
decurso dos últimos séculos e a confusão que esta produz parece sugerir
- segundo Leacock - uma lei da e\tolução cujo efeito teria começado a operar milénios antes do nascimento ~o capitalismo.
8.
Uma visão global da evolução histórica das relações entre· os sexos
Para Eleanor Leacock, a produção para a troca, a ruptura das solidariedades locais, os coní'litos de interesses entre os grupos ou entre as sociedades são factores que, muito antes do capitalismo, foram a pouco e pouco
reforçando a posição social dos homens. Partindo das análises de Judith
Brown, ela dá como prova a contrario o facto de entre os Bembaj.·~ociedade
matrilinear de Africa, as mulheres terem um 'estatuto ínfImo comparado com
o das mulheres iroquesas. Mas os Be'tnba estão organizados hierarquicamente:
no vértice uma aristocracia domina 'as pessoas comuns, e as unidades familiares locais produzem riquezas qué ;se concentram nas mãos dessa aristocracia. As dádivas de alimentos, longe de aumentarem o prestígio das mulheres, aumentam o dos seus maridos, !,e uma parte do produto é redistribuído
segundo relações de classe e não segundo relações entre grupos de parentesco ou entre sexos. Leacock prop/'ie, pois, uma visão de conjunto da evolução histórica. Tomando os índios Naskapi como modelo dos caçadores.-r~colectores primitivos, imagina lIma evolução que levaria .sociedades
igualitárias, onde homens e mulheres partilhassem os mesmos estatutos de
autoridade pública e dispusessem da sua autonomia, a múltiplas formas de
sociedades de classe em que, poucó a pouco, através da decomposição dos
HOMEM/MULHER
154
laços comunitários, emergem hierarquias que favorecem o poder masculino.
Uma dessas linhas de evolução é a nossa, que reforça sem cessar a apropriação privada da terra e dos meios de produção; é neste contexto que se
impõe e se consolida a família monogâmica. Leacock retoma, pois, por sua
vez, a tese de Engels que liga a degradação dos estatutos da mulher ao aparecimento das desigualdades de classe, e que une a dominação da famaia
monogâmica à dominação da propriedade privada.
9.
C'
Elogios e reservas
Estas análises e esta conclusão geral suscitam críticas, mas também elogios, porque estamos perante um dos ellforços mais conseguidos e mais convincentes para evidenciar a imensa vaqação dos factos de dominação masculina. Eleanor Leacock insiste em' exemplos, que apresentam uma
quase-igllaldade entre os sexos, descoJlhecida nas nossas sociedades, e que
contrastam violentamente com os casos extremos de subordinação feminina,
de quase-escravatura, que conhecemos; pmlheres encerradas no harém, entre
os Muçulmanos, mulheres encarceradl\s com os pés enfaixados, incapazes
de trabalhar, junto dos mandarins da China. A sua análise força-nos igualmente a imaginar o que representa a autonomia feminina, individual e colectiva, e a irmos procurar em toda a parte onde seja possível outras provas,
outros índices desta autonomia; ela pede que nos não precipitemos sobre
casos deslumbrantes de dominação masculina sem nos interrogarmos sobre
a realidade do que realmente se passa. As mulheres podem ter um poder
que não é facilmente visível a um ocidental habituado ao androcentrismo.
Todavia, algumas críticas se impõem, porque, apesar da pobreza dos nossos conhecimentos hist6ricos e antropol6gicos, da pequenez da amostra observada, do etnocentrismo e do androcentrismo das informações recolhidas, de
momento parece razoável supor que até 7~tão. os homens dominaram, em
última ap.álise, o poder. Esta f6rmulasignifica que não existe apenas um
poder na sociedade, mas vários; que as mulheres o têm, mas que em última
instância são os homens que se encontram no vértice da hierarquia dos
poderes.
10.
A história «imaginada»,
a escolha do ponto de partida
Na realidade, para estabelecer o ponto de partida imaginário, Eleanor
Leacock, tal como Richard Lee e outros, parte do exemplo dos caçadores
naskapi, bosquímanos ou pigmeus. Todos deixam cuidadosamente de lado
o caso dos aborígenes australianos onde parece demonstrado que os homens
dominavam as mulheres, possuíam o essencial dos ritos religiosos de fertilidade das plantas e dos animais e das pr6prias mulheres, e onde os direitos
sobre o territ6rio se transmitiam de geração em geração através dos homens.
Mesmo se o modelo de Radcliffe-Brown de grupos patrilineares e matrilocais fundados na exploração da natureza é hoje fortemente contestado,
m
,
' HOMEM/MULHER
a inflexão patrilinear e a dominação masculina 1000 são realidades coniest81'
das pelos antropólogos. Para além disso, se deixarmos a Austrália e nos vol·
tarmos para outras sociedades de caçadores, descobrimos casos incontestados de sociedades patrilineares e patrilocais, como os Ona da Terra do Fogo
e os seus vizinhos, os Alakaluf, actualmente desaparecidos. Ninguém comparou até esse momento, sistematicamente, no que respeita às relações
homem-mulher, a situação que existia ou existe ainda na trintena de sociedades de caçadores-recolectores que conseguiu sobreviver. Nada permite afIrmar que estas sociedades, umas manifestamente patrilineares, outras manifestamente não-lineares, outras, por fim, como os Bushongo, apresentando
traços de sistemas complexos crow-omaha que se encontram nos agricultores, pertencem a uma mesmo tipo e que correspondem a um mesmo modo
de produção «cinegético», como afirma Meillassoux. Também nada permite
negar a existência nessas sociedades de verdadeiros laços de parentesco· e
afirmar que o parentesco seja a superstrutura de um modo de produção
doméstico que se desencadeia com os desenvolvimentos da agricultura e da
criação de gado e que se manteve até aos nossos dias. Imaginar - como
fez Marshall Sahlins e, depois dele, Meillassoux - a existêricia de um modo
de produção «doméstico» que sobrevivesse nas profundezas das sociedades
agrícolas e de criação de gado, quer elas fossem ou não de classes, é uma
hiPótese que não resiste à análise. Este ponto é de importância te6rica fundamental e merece que nele nos detenhamos.
Se é verdade - o que é contestado por poucos antrop610gos - que a
composição dos grupos de caçadores-recolectores é a de indivíduos ligados
por relações de parentesco, relações que servem de quadro à organização
da caça e da colheita, à redistribuição dos produtos, à reciprocidade de acesso
aos recursos, neste caso, quando se verifIca entre os caçadores-recolectores
a existência de vários sistemas de parentesco, de 16gicas diferentes, unili·
neares ou cognáticas, deve supor-se a existência de vários sistemas econ6micos e sociais nas ditas sociedades, a menos que se possa demonstrar que
estes sistemas pertencem a um mesmo tipo. Será então necessário explicar
esta diferença e partir dela para imaginar diversas linhas de evolução da
humanidade com o aparecimento da agricultura e da criação de gado.
Segundo ponto importantíssimo: concentrando a atenção sobre a família, como quadro das actividades econ6micas, esquecem-se as relações de
parentesco que produzem a estrutura dessa família. Ora as relações de parentesco podem funcionar directamente como relações de produção se através
delas a sociedade controlar os recursos e organizar a exploração da natureza
e a redistribuição dos produtos do trabalho. Mas esta situação não é geral.
Muitas vezes, e sobretudo na sociedade de classes, as relações de produção
existem, pelo menos em parte, fora e para além das relações de parentesco.
Mas ao mesmo tempo a família, se ela for a unidade de produção e de consumo directo, está submetida à sua estrutura e às relações de parentesco
e às relações de produção. É, pois, impossível substantivar, remcar como
uma espécie social homogénea e invariável, um modo de produção doméstico. Uma das consequências modernas deste raciocínio é que, nos países
socialistas, apesar da transformação das relações de produção, a subordina-
•
HOMEM/MULHER
156
çllo da mulher pode manter-se por bastante .temp? na medida em. que continua a existir paralelamente a uma economia social uma econorma doméstica largamente a cargo das mulheres. Não é o modo de produção doméstico que continua, é a divisão da economia e da sociedade em várias esferas,
das quais a mais estreita está reservada às mulheres, que a ela estão confinadas.
lI.
Um facto universal cujas formas foram e são extremamente variáveis
Vamos, pois, propor que se aceite provisoriamente a hip6tese de que,
em todas as sociedades, mesmo as mais igualitárias, uma hierarquia de poderes exista, pertencendo estes últimos aos homens. Trata-se de uma generalização que em si mesma tem uma grande probabilidade. Neste caso, é preciso, também provisoriamente, dar uma explicação que dê conta de duas
coisas em simultâneo: a suposta universalidade da dominação masctdina e
a imensa variação verificada quanto ao conteúdo desta dominação, desde a
quase-igualdade dos sexos entre os Montagnai e os Hurões, até à quase-escravatura nos haréns da Arábia Saudita. À partida, pode pensar-se que
explicar tudo através de uma s6 causa é nã? e~plicar nada: várias cau~as
se combinam hierarquicamente para prodUZir simultaneamente este efeito
geral da dominação masculina e a variação das formas desta dominação.
12.
As origens da dominação masculina
Qual é então a explicação provis6ria que se propõe? Com efeito, ê. necessário partir, para imaginar as origens da desigualdade, do modo de VIdados
caçadores-recolectores, uma vez que a humanidade viveu 99 por cento da
sua evolução nesse quadro econ6mico e social. O homem selvageni transforma pouco a natureza, dependendo dos recursos vegetais e animais que
a natureza selvagem reproduz espontaneamente. É possível imaginar que este
modo de vida valorizavll socialmente a mobilidade individual e colectiva.
13.
Reprodução da vida e divisão do trabalho
4
Ora, devido à sua função reprodutora, a mulher é menos m6vel db que
o homem: está grávida, pare e amamenta as crianças durante muito ,tempo,
porque antes da «invenção» da criação de gado e da agricultura, não' t!xi~t~a
substituto para o leite materno. Desde então parece possível que untá diVIsão das tarefas se tenha imposto nas sociedades de caçadores: aos ~omens
a caça aos grandes animais e a guerra, às mulheres a caça dos animais pequenos a colheita e a cozinha quotidiana. Parece também provável que um
sist;ma de valores diferentes se tenha ligado a estas tarefas, valorizando mais
as dos homens, na medida em que elas implicavam mais riscos de perda
de vida ou maior gl6ria em tirá-Ia. Inversamente, a colheita é uma actividade
157
HOMEM/MULHER
que os dois sexos podem exercer. Seria etnocêntrico e falso imaginar os caçadores primitivos como Nemrods modernos que se vangloriassem dos seus
troféus de caça. Em toda a parte se verificou uma atitude de amizade e de
respeito dos homens primitivos para com os animais caçados e que m~ta~
proporcionalmente às suas necessidades. Em toda a parte se encontra a Ide~a
de um contrato, de uma associação amigável entre homens, plantas e ammais de tal modo que o homem se' sente ameaçado de penúria e de fome
se m~tar sem precaução, se explorar Osrecursos sem cuidado. Os mitos co~tam infatigavelmente a hist6ria de qasamentos entre os homens e os ammais de contratos entre o senhor di>sanimais e o homem. São estas relações 'de «amizade respeitosa» que se encontram nos ritos ~as sdci~~ades
agrícolas e pastoris quando estas se preocupam em reprodUZir a fertilidade
dos seus campos e dos seus animais.
Esta divisão do trabalho entre os sexos não é, portanto, o resultado directo
de imposições naturais; é o efeito sintético combinado dos limites das forças produtivas, intelectuais e materiais, de que estas sociedades dispunha~
para explorar os recursos da natureza circundante, e da dispersão l: da rar~dade relativa destes recursos. Apes~ da diversidade das adaptações locaiS
do homem, na floresta, no deserto, no litoral marítimo, há um resultado
comum, ligado aos limites dos meio$ de acção do homem sobre a natureza,
e este resultado é uma divisão do ltabalho que faz ocupar aos homens o
primeiro lugar no processo de prodlÍção material. Certos .antrop610~os~nvocam os exemplos das sociedades onde as mulheres contrIbuem em,malS d,e
60 por cento para a subsistência do $rupo com os produtos das sulls colheitas. No entanto, isto é esquecer que:o que pesa mais na organizaçll,oecon6mica das sociedades não é a divisão do trabalho na subsistência, mas as formas sociais do controlo dos recursos ~ do produto, ou seja, as relações sociais
de produção. Ora a precariedade n~~ativados recursos impunha formas de
apropriação comum que concediam direitos iguais aos indivíduos membros
do grupo. O problema reside, pois, em compreender como os homens podem
representar estes direitos comuns e!Ji maior medida do que astnulheres.
14.
Poderes dos homens, poderk
das mulheres
O problema está em compreender por que razão os homens que ocupam um lugar mais valorizado no processo material da vida dclminam as
mulheres que ocupam um lugar eXOepcionalno processo de reprodução da
vida. Aqui devemos voltar atrás e leIÍlbrar que, nas formas de pensamento
simb6licas que legitimam a dominação masculina, o que é posto em primeiro plano é o controlo por parte dos homens das mulheres fecundas, da
fecundidade feminina. Não é desprovido de interesse voltar ao exemplo dos
Hurões e dos Iroqueses e interrogarmo-nos porque é que as mulheres que
elegem os chefes e têm a maior autoridade social são matronas, isto é, mulheres idosas, que já atingiram a menopausa. Em todas as sociedades, as mulheres estéreis - seja porque já não podem ter fllhos, seja porque não os podem
ter -, gozam de um estatuto especial, inferior ou superior ao comum das
HOMEM/MULHER
158
mulheres que são fecundas. A maior parte das vezes, verifica-se que as
mulheres que partilham de certa maneira o estatuto dos homens são aquelas que estão excluídas da função de reprodução.
15.
O controlo das mulheres como produção da principal força produtiva:
o pr6prio homem
Os homens, que dominam o processo de produção material e que têm
o monopólio dos conhecimentos complexos da caça e da utilização da violência armada, controlam as mulheres pão tanto enquanto produtoras, mas
enquanto reprodutoras da vida que pçolonga o grupo. Pode perguntar-se
se o facto de, durante milhares de anos, e no interior dos modos de subsistência e dos sistemas económicos (moqos de produção) mais diversos, o trabalho vivo, a força de trabalho directamente utilizável, ter prevalecido sobre
o trabalho passado, a força de trabalhq acumulada, esse tal facto não estará
na origem de dois factos sociais fundamentais: por um lado, as relações de
parentesco, que em toda a parte são li forma social de reprodução da vida,
funcionarem no todo ou em parte como relações de produção; por outro,
as mulheres estarem, no âmbito dessas relações, subordinadas aos homens.
É necessário, pois, interrogarmo-nos sobre realidades mais profundas, sobre
o facto de o homem não viver apenas em sociedade, o que é banal e sem
qualquer interesse, mas ser obrigado a produzir sociedade, a produzir-se como
ser social.
16.
0.1 frmdaml'll/M
da proibição
do i/lcl.'s/o
C"\'X'l\-S('nt'sl(' l'"nlo 1\ q\\('stA" dl\ l'l'\)ibiçAodo incesto, da exogamia
c da nalurczu gcml Jus relaçôcs dc parcntcsco, porquc o problemn do incesto
tem qualquer coisa a ver com o estatuto comparado do homem e da mulher.
É possível imaginar que a humanidade primitiva tenha praticado o incesto
em vez de o proibir: cada grupo teria então contado com as suas próprias
forças para reproduzir a vida e sobreviver no seu território. O resultado teria
sido o isolamento progressivo de cada grupo que se teria tornado sozinho
a sociedade, e ao isolar-se teria acumulado todos os riscos do seu próprio
desaparecimento e, com isso, do desaparecimento da sociedade. O tab'b do
incesto estabelece uma proibição e obriga à aliança. Desde Lévi-Strauss que
se aceita geralmente a ideia de que o contrário do incesto é a exogamia e
a circulação de mulheres entre os grupos, se não entre os homens. Certos
antropólogos insurgem-se contra a expressão «troca das mulheres» entre os
homens porque denunciam uma visão etnocêntrica na qual se projectam as
representações e a lógica da nossa sociedade mercantil e de lucro. Seja como
for, e reconhecendo que Lévi-Strauss nunca fez a teoria das razões pelas quais
os homens representariam o seu próprio grupo e por consequência os interesses da sociedade, pode admitir-se que em todas as sociedades existe uma
159
HOMEM/MULHER
proibição do casamento entre certas mulheres e certos homens. Bem entendido, para os próprios intervenientes, esta proibição tem a sua origem em
princípios morais ou fl1osóficos, de origem natural ou sobrenatural.
Sem negar que princípios éticos, como o tabu do incesto, actuem realmente sobre a vontade dos indivíduos e dos grupos, pode procurar-se a origem para além das razões que os próprios primitivos nos apresentam nos
seus mitos e na sua fl1osofia. Ora, o que é que se troca quando se «trocam»
as mulheres? Trocam-se menos produtores do que reprodutores menos uma
ajuda para sobreviver hoje do que um meio de existir ainda am~nhã. É certo
que por vezes a mulher que se recebe pode trabalhar melhor do que a mulher
que se cedeu, e a inversa também é possível, mas de qualquer modo uma
e outra desempenharão tarefas idênticas, no quadro da divisão sexual do
trabalho que reina na sua sociedade.
De facto, o que um grupo dá a outro ao «dar-lhe» uma mulher é outra
coisa: é a possibilidade de ter uma descendência, um futuro, sobre os quais
ele cede parte ou a totalidade dos seus direitos. Cada grupo recebe, pois,
dos outros uma parte das condições do seu futuro, mas os outros por sua
vez devem-lhe o seu próprio futuro. Parece, portanto, que, para além da
consciência social e das suas representações, o que funda a exogamia - e
o tabu do incesto que é dela uma componente e uma condição subjectiva
simultaneamente - é a impossibilidade de as sociedades se reproduzirem
duradouramente em estado de isolamento, sem cooperação pernianente; é ao
mesmo tempo a prioridade,
que permanece ainda em muitas sociedades do
.
presente, do que VIve, sobre o passado, sobre as forças produtivas acumuladas anteriormente.
'
Ao comparar as sociedades de caçadores-recolectores, parece que a própria natureza dos meios de intervenção sobre a natureza de que elas dispõem as obriga a dividir-se em grupos locais distintos e afastados uns dos
outros que exploram a maior parte do tempo separadamente partes do território. Mas estas sociedades são obrigadas de forma premente a ultrapassar
esta separação e a organizar formas variadas de cooperação. Qualquer que
seja a forma dos «processosde trabalho», caça individual ou colectiva, colheita
individual, etc., estas sociedades são obrigadas a garantir aos seus membros
e aos grupos que as compõem um acesso recíproco à natureza e aos seus
produtos, a partilhar, a redistribuir entre todos os recursos que cada indivíduo ou cada grupo póde obter no domínio comum.
Deste modo, na sua essência e no seu fundamento Ultimo, a dependência recíproca dos indivíduos e dos grupos não é um facto de origem moral
nem evidentemente de origem sobrenatural, é um facto social simultaneamente material e impessoal. E, no entanto, a reciprocidade e as obrigações
assumem sempre a forma de obrigações e de relações pessoais.
Se ligarmos a estas diversas análises, por um lado, a divisão das tarefas
materiais entre os sexos e a valorização relativa dos trabalhos masculinos,
por outro, a prioridade da vida e da força de trabalho viva sobre o passado
e o trabalho acumulado e, finalmente, a impossibilidade geral em reproduzir-se no isolamento e no incesto, podemos formular a hipótese segundo a qual
160
HOMhJll/Jl'lULlIER
161
o tabu do incesto e a organização geral das relações de parentesco em volta
desta proibição respondem a estas diversas obrigações de ordem material
e impessoal, mas modificando-Ihes completamente o carácter.
Porque, e isto é fundamental, a troca das mulheres e a cedência recíproca de direitos aos seus descendentes abrem um campo de obrigações pessoais entre os grupos e entre os indivíduos. Ora, estas obrigações pessoais
são ao mesmo tempo obrigações morais, uma vez que nascem de actos colectivos e individuais de troca: impõem direitos e deveres individuais oucolectivos. E é através desta rede que se cumpre a necessidade material, impes~oalpara os grupos e os indivíduos, de cooperar para sobreviver, de partilhar
recursos comuns obtidos, todavia, através de esforços particulares, e de
garantir o acesso recíproco a estes recursos comuns. Vemos como é ~r~ciso
compreender a importância das relações de parentesco nas sociedades primitivas. Elas funcionam ao mesmo tempo como os canais objectivos e as
origens e motivações subjectivas da entreajuda, da partilha entre os grupos
locais e entre eles, e também como condição de acesso recíproco dds grupos aos recursos comuns. Mas toda a gente sabe que, se as relações de parentesco são muitas vezes, nas sociedades primitivas ou nos estratos camponeses das sociedades de classe, condições sociais de produção e de entreajuda,
18.
Múltiplos fundamentos
Uma contradição mais antiga que a das próprias classes e que se tranforma com o seu aparecimento
As contradições entre os sexos são seguramente mais antigas que as contradições entre as classes e não as originaram. As classes formaram-se a partir
de hierarquias entre grupos sociais·que eram grupos de parentesco «totalmente equipados» de homens e de mulheres. Mas se as contradições entre
os sexos
. não originaram as contradições entre as classes desenvolveram-se
conJuntamente, sem por essa razão se confundirem, mas favorecendo-se
mutuamente. Na sociedade feudal, por exemplo, um plebeu ainda que livre
'
de disp?r de si próprio não podia geralmente desposar, nem sequer tocar,
uma anstocrata. E esta gozava de um estatuto social muito mais elevado
que o de um plebeu e, a fortiori, qt\e o de uma mulher do povo. Pelo contrário, um nobre, enquanto tal, tinha direitos sobre as mulheres dos seus
súbditos, direitos que vinham a somar-se aos que ele possuía sobre as mulheres da sua própria linhagem, cujo aasamento era um elemento decisivo da
sua estratégia para conservar o podl:r e aumentar as suas riquezas. Witold
Kula demonstrou, por exemplo, que os senhores polacos do século XVIII
intervinham directamente no casamento dos seus componeses, obrigando-os a casar com mulheres dos seus 4qmínios, obrigando as viúvas ~m idade
são
tambéme uma
barreira,
dado que a acaba
solidariedade,
se se defmeacaba,
e se qtodula
em termos
em graus
de parentesco,
onde o parentesco
E esta
solidariedade não é apenas material, é também política, religiosa, ideológica.
Para além, começa não já o universo do dom e da partilha mútua, das garantias recíprocas, mas o universo da incursão, do roubo, 'da guerra, da expropriação.
17.
HOMEM/MULHER
..
d~ trabalhar a voltarem a casar o mai,s rapidamente possível para fazer funCIonarplenamente a exploração agrílllolaque implicava a cooperaçl1ddos dois
sexos na produção. Cada vez mais a contradição entre os sexo!!'se transforma segundo a natureza das cont,radições entre as classes, e at~ entre as
raças: basta lembrar o tratamento 4ue os plantadores brancos da América
reservavam aos seus escravos negros, machos ou fêmeas.
Eis-nos de volta ao nosso ponto de partida e às lutas actuais para abolir
nas nossas sociedades as desigualdad~s sociais entre os sexos. O conhecimento
das sociedades antigas ou diferentes das nossas está longe de ser suficiente
para poder fornecer um quadro objectivo das múltiplas condições femininas
que existiram ou que existem ainda e para reconstruir o essencial 'das causas
do aparecimento da desigualdade etltre os sexos nas sociedades ~em classes
da dominação masculina
Procurámos mostrar que existem várias razões que, combinando-se entre
si, determinam em múltiplas sociedades a dominação, em última' análise,
masculina. Estas causas podem variar, e estas variações deveriam poder dar
conta das variações imensas do estatuto da mulher na sociedade de hoje e
de ontem. É uma investigação ainda em aberto; todavia, a hip6tese geral
de Engels, retomada hoje por Eleanor Leacock e por correntes feministas
não marxistas, parece conservar um valor global: a ideia de que novall capacidades de exploração da natureza trouxeram possibilidades de acuniulação
diferencial de riqueza e com elas oposições de interesses entre os grupos,
entre os indivíduos, que aboliram a pouco e pouco as estruturas sociais mais
igualitárias onde a oposição entre uma esfera de interesses públicos e de
interesses privados não existia ou não existia da mesma maneira. Em suma,
a ideia de que os processos que provocaram a formação lenta ou rápida de
hierarquias sociais estabilizadas, de classe e de poderes de Estado em geral,
desvalorizaram o estatuto feminino.
e. da sua permanência nas sociedadt~ de classes. No entanto, é claramente
VIsível que as razões profundas nãq residem em qualquer conspitação dos
h0':llens contra as mulheres, mas tafinão pode constituir uma boa razão para
se Ignorarem as responsabilidades dos homens na conservação e usúfruto das
vantagens de que gozam. Mais uma vez, é necessário encarar os sistemas ideol6gicos com que deparamos nas sociedades sem classes e de classes.
19.
Violência, desvalorização e legitimaçoes ideológicas
Em toda a parte se encontram representações que opõem o homem e
a mulher como o seco e o húmido, o alto e o baixo o puro e o impuro
"
etc., como difierenças não apenas complementares mas hierárquicas.
Assiste-se
a uma espécie de lógica de desvalorização das tarefas femininas e de sobre-
1\
HOMEM/MULHER
162
HOMEM/MULHER
valorização das actividades masculinas. Alguns antropólogos evidenciaram
o carácter arbitrário, aparente, das legitimações da dominação masculina.
Numa dada sociedade a tecelagem surge como apanágio das mulheres e
inconveniente para os homens; numa outra é o contrário, e a tecelagem é
então exclusivamente reservada aos homens, a cerâmica às mulheres. Mas
o que é idêntico na lógica destas reprrsentações é o facto de tudo quanto
o homem faz ser sempre sobrevalorizl1do em relação ao que a mulher faz.
Trata-se de saber se este trabalho de dlscriminação simbólica não tem qualquer coisa a ver com a violência qu~ exercida sobre as mulheres e com
a afirmação muitas vezes feita de que ~ar a vida não vale tanto como caçar,
fazer a guerra, arriscar a vida e matar .. Há toda uma função das representações simbólicas que parece destinada ~.compensar os homens pelo facto de
não serem eles a pôr no mundo novas vidas, uma vez que isso está reservado às mulheres. Podemos interrogar-nos se a análise de Freud - que atribuiu às mulheres o desejo de um pénis, que as imagina deste modo definidas, por natureza, através de uma falta, a falta do que os homens possuem,
do que eles são, falta que nunca poderá ser satisfeita - não é no fundo
mente de ter direito à palavra ou que consentisse muda todas as opressões
económicas, políticas e ideológicas que ela suporta. É necessário, pois, avançar a idcia de que não é a sexualidade que age como um fantasma na sociedade, mas antes a sociedade que, como um fantasma, age na sexualidade,
no corpo. As diferenças entre os corpos que nascem de sexo diferente são
constantemente solicitadas a testemunhar relações sociais e realidades que
nada têm a ver com a sexualidade. Não apenas a testemunhar qualquer coisa,
mas te~temunhar em favor de qualquer coisa, ou seja, a legitimar.
É p'ossível imaginar que as transformações actuais das nossas sociedades, as lutas contra as relações de opressão, de classe, de raça, de sexo,
cessarão gradualmente de investir a sexualidade de tudo quanto ela está
encarregada de dizer e de legitimar; porque a sexualidade não é o sexo,
e pode pensar-se que virá um dia em que a diferença dos sexos não deverá
mais alienar-se, tendo de testemunhar qualquer coisa além de si própria.
homens que vivem esta falta, a falta da capacidade criadora da vida que
Nesta análise, enfim, deixámos de lado um aspecto essencial, porque é
falso e perigoso acreditar que em todas as sociedades onde reina a dominação masculina não existe ou não tenha existido a resistência feminina. Por
toda a parte, o observador verifica formas individuais e colectivas de resistência que não são devidas à difusão da Declaração dos Direitos do Homem
por parte dos países ocidentais. Recusa de cozinhar, recusa de fazer amor,
divórcio, oposição .,....seja física, seja com o assassínio - à autoridade e à
violência masculina são formas habituais de resistência que se podem observar
no mundo. Mas não se trata de uma oposição estática, uma vez que a oposição feminina implica sempre formas variadas de repressão masculina.
Todavia, o segundo aspecto essencial a evidenciar é que muitas vezes
na sua oposição as mulheres não contrapõem um modelo próprio da sociedade. Obviamente, quando recusam cozinhar, fazer amor ou se divorciam,
elas consideram que têm motivos e apresentam-nos, mas entre uma apresentação que sustenta uma oposição e uma apresentação que propõe uma
mudança radical da organização social vai uma enorme distância. Parafraseando Marx, podemos dizer que na maior parte das sociedades as
ideias do sexo dominante são as ideias dominantes, associadas e misturadas
com as ideias da classe dominante. Actualmente, nas nossas sociedades,
desenvolve-se uma luta para abolir simultaneamente as relações de dominação de classe e de sexo, sem esperar que a abolição das classes preceda a
outra.
t
':.1
163
I as
essencialmente
etnocêntrica,
uma
que da
em Nova
numerosas
sãoque
os
mulheres têm.
É assim que
os vez
Baruya
Guiné sociedades
reconhecem
as mulheres outrora inventaram OS arcos que hoje em dia não têm o direito
de utilizar; elas inventaram igualmente as flautas, meios de comunicação com
os espíritos, flautas essas que actualmente lhes são proibidas ver ou tocar,
sob pena de morte. Mas as mulheres não utilizavam o arco no bom sentido
e matavam demasiada caça e demasiada gente. Os homens apoderaram-se
então do arco, voltaram-no na boa direcção e desde então a guerra e a vida
estão bem reguladas; mata-se como deve ser e o que deve ser. Nesta mitologia são expressas a ideia de uma criatividade superior das mulheres e a
ideia de que a ordem social implica que sobre elas se exerça uma .violência,
que as mulheres sejam subordinadas. Poder-se-ia obviamente imaginar que
isto é o eco no pensamento de um estado ultrapassado de matriarcado, de
poder das mulheres; mas o que diz o mito é que ontem o poder das mulheres tinha gerado a desordem e que hoje e amanhã a ordem social deve assentar na dominação de uma parte da sociedade por parte da outra, dominação
que comporta a violência, física e simbólica. !
C}'f.J, .. ~q-·
20.
A «linguagem» do corpo
É nesta perspectiva, em nossa opinião, que se deveriam analisar as linguagens do corpo e a maneira como as sociedades vivem e sofrem os seus
corpos. Não é por acaso que o sangue menstrual que as mulheres têm sem
que o tenham desejado desempenha muitas vezes a função de dizer perante
todos que as mulheres só têm o que merecem, isto é, são vítimas sem inorealiza-se totalmente o trabalho ideológico, porque bastaria a uma mulher
ver o sangue
escorrer
entre as
per.nas do
paracorpo
que ela
deixasse
definitiva\ cência.
Em última
análise,
na suas
linguagem
e dos
seus fantasmas,
21.
22.
Dominação masculina e resistência feminina
Para um futuro sem modelo
Pode imaginar-se que a sociedade que surgirá lentamente desta luta não
será a reprodução de nenhum modelo: nem das sociedades primitivas e igualitárias nem das sociedades onde as mulheres teriam tido mais poder do
HOMEM/MULHER
164
que os homens. ~ para relações sociais sem referência no passado que nos
orientamos. Isto projecta uma luz sobre os debates actuais e sobre o alcance
das investigaçOesque os antropólogos devem prosseguir com os historiadores para reconstituir as razões e as formas objectivas das relaçOes entre as
classes e entre os sexos, dado que o futuro não é nunca totalmente a reprodução do passado, e aquilo que encontramos no passado não terá nunca a
capacidade de evitar ou de autorizar inteiramente o futuro. [M. G.J.
o Se é verdade que as relações de parentesco podem funcionar directamente como relações
de produção (cf. modo de produção), tomando possível o controlo dos recursos, a organização
da exploração da nalUreza e a redistribuição (cf. produçdoldistribuição) dos produtos do trabalho,
deve antes de mais dizer-se que esta não é uma situaçilo geral e que as relações de produçAo,
sobretudo nas sociedades (cf. sociedade) de classes (cf. classes), apresentam-se e funcionam para
além das ~
de parentesco. A famflia, quando é unidade de produçilo e de ccmsumodirecto,
está submeuda a ambos os tipos de relação, até nos países socialistas nos quais a subordinaçAo
das mulheres aos homens subsiste, porque a economia doméstica continua a estar a cargo das
mulheres.
Para além.destas observações existe um princípio «IIlIturaJ"(cf. masculino/feminino, nalUreza/cullUra), em que a fertilidade das mulheres (cf. sexualidade, nascimento), garantia da sobrevivência
da espécie e do grupo, é um fenómeno central da relação homem/mulher, obtido ~través do
mecanismo das -proibições» e das discriminações (cf. discriminaçdo): basta pensar na proibiçAo
do incesto e no falso matriarcado das sociedades matrilineares. A subordinaçAo das mulheres
existe assim a três níveis: económica (cf. economia, reciprocidade/redistribuição,
troca), simbólica
(cf. anthropos, símbolo), mas também polftica (cf. também ideologia,seroo/senhor,
exclusda/integração), que assumem aspectos e formas do todo particulares nas sociedades consideradas «primitivas» (cf. caça/colecta, primitivo, selvagem/bárbarolcivilizado)
que no entanto elaboraram for.
mas de igualdade por nós desconhecidas.
MULHER
Dicionários e enciclopédias defmem alternadamente a mulher como fêmea
do homem (Diderot, Tommaseo) ou, remontando à origem etimológica do
termo, como senhora da casa (Larousse, Treccani). Ambas as defmiçOes,apesar de aparentemente diferentes - incidindo a primeira sobre o aspecto naturalista, a segunda sobre a função historicamente determinada do sexo feminino -, consideram a mulher como uma entidade destituída de características
próprias, unicamente defrnível em relação a outrem. Na Encyclopaedia Britannica, que não propõe uma defmição precisa de mulher, a entrada women
é seguida da especificação «education of», a de man de «evolution of»:
o homem apresenta uma autonomia própria em evolução; a mulher é objecto
de uma operação que remete para outros. Mesmo tendo em conta o facto
de que, quando se fala de homem, se fala quer de homem quer de mulher,
é todavia impensável, na nossa cultura, uma definição de homem como o
macho da mulher, o que já nos diz alguma coisa sobre a possibilidade de
existir uma reciprocidade entre os dois pólos.
Esta oscilação entre definições aparentemente diversas parece, de facto,
resumir o que a mulher tem sido considerada: fêmea do homem ou senhora
da casa, ela resulta nalguma coisa para aquém ou para além do humano,
de tal modo que a sua história existe ou enquanto história do homem que
a engloba como objecto do seu desejo ou do seu poder, ou enquanto história da «casa»,como único objecto sobre o qual ela tem exercido a sua parte
de poder e tem exprimido uma margem de desejo subjectivo. Mas a mulher,
antes de ser a fêmea do homem ou a senhora da casa, é o ser humano fêmea,
que existe para lá das funções que lhe são reconhecidas: a sua diferença
natural em relação ao homem é tão autónoma como a diferença natural do
homem em relação a ela. As definições que a consideram em termos parciais relacionando-a com outro são definições historicamente determinadas,
na medida em que são ilações de uma história na qual a mulher teve um
papel subalterno, relativo ao sujeito da sua subalternidade.
A mulher nunca foi e nunca se considerou um sujeito histórico social,
e é isto que torna difícil e quase impossível uma pesquisa antropológica que
tente reconstituir as etapas da evolução da sua presença no mundo. Que
história se poderá retraçar da fêmea do homem senão a do homem na qual
a sua esteve sempre englobada? Que aspectos específicos individualizar nesta