Do imaginário esportivo ao mito olímpico contemporâneo
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Do imaginário esportivo ao mito olímpico contemporâneo
Do imaginário esportivo ao mito olímpico contemporâneo: contribuições do Grupo de Estudos Olímpicos da Universidade de São Paulo (USP) Katia Rubio | [email protected] Grupo de Estudos Olímpicos (GEO) Centro de Estudos Socioculturais do Movimento Humano (CESCMH) Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo 0 | Abstract The Olympic Studies group of the Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo has been characterized by frequent academic production based on Human Sciences theories. The condition of a multidisciplinary group – professionals and students of psychology, physical education and sport, medicine, sociology, philosophy, history and pedagogy – has contributed to the diversity of themes and theoretical approaches adopted for the understanding of today’s Olympic and sports phenomena. The group started in 2001 and has 25 members. The Olympic Studies group of USP has adopted the following strategy throughout its development: to create sub-groups according to themes to | 660 make the discussion of more specific subjects easier and make the verticalization of both individual and group production viable. In 2006, the sub-groups were working with the following themes: today’s sports imaginary, the athlete and the myth of the hero; the social function of defeat in today’s sport; the professionalization of the athlete and of the sports spectacle; arête, ethics and fair play; and memory and history of the Brazilian Olympic medalists. Desde que foi criado, o Grupo de Estudos Olímpicos do Centro de Estudos Socioculturais do Movimento Humano, do Departamento de Pedagogia do Movimento do Corpo Humano, da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, tem se caracterizado por uma constante produção nos Estudos Olímpicos, pautada no referencial teórico das Ciências Humanas. A condição de um grupo multidisciplinar – profissionais já formados e estudantes de Psicologia, Educação Física e Esporte, Medicina, Sociologia, Filosofia, História e Pedagogia – têm contribuído sobremaneira para a diversidade dos temas estudados e das abordagens teóricas adotadas para o entendimento dos fenômenos olímpico e esportivo contemporâneos. Tendo completado 5 anos de credenciamento junto à base Lattes (CNPq), o grupo conta com aproximadamente 25 membros e já produziu alguns livros, dissertações e teses, vários capítulos em coletâneas e dezenas de artigos em periódicos e trabalhos acadêmicos em congressos nacionais e internacionais, permitindo uma troca constante com nossos 661 | pares acadêmicos e instigando uma constante inquietação sobre as questões que norteiam e rodeiam os Estudo Olímpicos na atualidade. Diante do crescente aumento do número de participantes o grupo adotou como estratégia criar sub-grupos temáticos para facilitar a discussão de temas mais específicos e viabilizar a verticalização da produção individual e coletiva. A seguir são apresentados alguns dos grandes temas que norteiam a produção do grupo até esse momento. 1 | O imaginário esportivo contemporâneo Foi essa linha de pesquisa que marcou a origem do grupo. Os estudos realizados a partir dessa temática utilizaram-se do referencial teórico da antropologia, da sociologia, da mitologia e da psicologia. Tido como um dos fenômenos sociais mais expressivos desse século, o esporte tem representado um papel denunciador de questões econômicas, sociais, políticas e étnicas, capaz de apresentar as mais variadas facetas de sociedades e indivíduos que protagonizam ou organizam o espetáculo esportivo. Tendo sua origem associada ao reconhecimento e usufruto da cidadania, o esporte reproduz ao longo de sua história, e da humanidade, valores e padrões culturais indicadores do momento vivido. Reconhecido como uma forma elementar de socialização até uma variedade profissional, o esporte é identificado por | 662 elementos como força, superação de limites, vitória a qualquer preço e supremacia enquanto valores próprios, tornando-se mais um reflexo e produto de um imaginário conceituado como heróico. Transformado ao longo do século XX em espetáculo pelos meios de comunicação de massa e pelos interesses das grandes corporações multinacionais, o esporte que tinha, a partir de sua organização no final do século XIX, a prática amadora e o fair play como elementos fundamentais daquilo que se denominou olimpismo e se propunha a promover a harmonia internacional, viu essa condição ser profundamente alterada por diversos fatores alheios aos princípios olímpicos. A forma como a sociedade tem se organizado tende a valorizar o vencedor, impondo um padrão de comportamento que privilegia o mais forte, o mais habilidoso. Aqueles que alcançam o primeiro lugar ou a vitória são enaltecidos, utilizados como exemplo para os perdedores (termo que, aliás, é utilizado entre os mais competitivos como um adjetivo dos mais desmoralizantes) e contribuem para a perpetuação de um tipo de conduta. Se para a sociedade como um todo esse imaginário heróico tem servido como parâmetro para justificar atitudes competitivas, no esporte essa referência ganha força redobrada pela relação direta competição-vitória. Essa linha de pesquisa tem buscado compreender a constituição do imaginário esportivo contemporâneo, não apenas do ponto de vista dos atores sociais que dramatizam o espetáculo esportivo, mas também a partir da análise das instituições e do momento histórico em que são 663 | protagonizados os fatos mais relevantes da trajetória olímpica. Parte dos trabalhos produzidos nessa perspectiva busca descobrir os mitemas que constelam esse universo na atualidade, em diferentes níveis da prática esportiva. 2 | O atleta e o mito do herói Essa linha de pesquisa é um desdobramento da anterior, mas por utilizar o referencial mítico-hermenêutico ganhou autonomia dentro do grupo. Caracteriza-se basicamente por uma imersão no mundo da subjetividade e da formação da identidade dos protagonistas do espetáculo esportivo contemporâneo em uma perspectiva que aproxima a psicologia social da sociologia do esporte. Sabe-se que a associação entre o atleta e o mito do herói remonta tempos imemoriais. A partir do início da atividade esportiva e competitiva regular a condição heróica do atleta é reforçada pelo argumento de que um atleta vencedor é aquele que ganha torneios e se consagra com medalhas. O atleta de alto rendimento na atualidade tem sido transformado em uma espécie de herói onde quadras, campos, piscinas e pistas assemelham-se a campos de batalhas em dias de grandes competições. O significado que a prática esportiva adquire ao longo do período competitivo, ou profissional, pode influenciar diretamente os rumos da vida futura do atleta. Se por um lado a condição de atleta diferenciou-o de uma grande parcela da população, permitindo que gozasse de privilégios reservados a poucos, por outro essa mesma condição o fez amargar isolamento e distanciamento de | 664 situações vividas por semelhantes. E essa é uma das condições vividas pelo herói arquetípico. Se enquanto figura arquetípica o herói vem representar o mortal que transcendendo essa sua condição aproxima-se dos deuses em razão de um grande feito, nos dias atuais temos no atleta de alto rendimento uma espécie de herói capaz de protagonizar a realização de grandes feitos cada vez mais raros em outros settings. Não é apenas a disputa que faz o atleta identificar-se com o herói. Depois de conquistada a condição de bem sucedido, ele é projetado para a condição daqueles indivíduos que adquirem fama e status e se tornam a referência presente da modalidade, condição que em certa medida favorece a duração e a permanência na história da modalidade e no imaginário esportivo. O período de afastamento ou recolhimento possivelmente assume a forma de gozo, o desfrute por tudo aquilo que ele conquistou e proporcionou para o público durante longos anos de dedicação e glória. A necessidade do desfrute ocorre independentemente dos marcos dessa trajetória, tenham sido eles satisfatórios e positivos iluminados pelo reconhecimento e apoio, ou relembrados pelas arbitrariedades e desmandos cometidos independente da dedicação e dos resultados alcançados por ele. Essa diversidade de reações tem levado diversos autores a estudarem o atleta enquanto herói para a sociedade à qual ele pertence, buscando inclusive estabelecer uma taxonomia para identificá-lo, apontando como elementos constitutivos desse ‘personagem’ a capacidade de vencer e de satisfazer 665 | as necessidades do grupo, performances extraordinárias, aceitação social e espírito de independência. 3 | A função social da derrota no esporte contemporâneo Diante das necessidades impostas aos atletas de alto rendimento na atualidade a superação se tornou um princípio e um termo recorrente entre aqueles que conseguiram chegar entre os mais destacados, os vencedores. Esses atletas se referem em grande parte de seus discursos à importância de terem persistido, perseverado e buscado caminhos alternativos às dificuldades impostas ao longo da carreira para construir uma trajetória vitoriosa. Na estrutura do esporte contemporâneo observa-se a reprodução do modelo liberal que privilegia a vitória, embora sejam premiados os três primeiros colocados em grande parte de campeonatos e torneios. Isso leva muitas vezes o ganhador da medalha de prata e de bronze, segundo e terceiro colocados, respectivamente, a se sentir um derrotado, negando muitas vezes um feito digno de registro e de nota. Os desdobramentos da derrota para o indivíduo e para a sociedade são pouco estudados e pesquisados, o que contribui para uma atitude de negação em relação a essa situação tanto de atletas como de profissionais que atuam no universo esportivo. O objetivo desta investigação foi estudar a vivência e a representação da derrota entre atletas brasileiros ganhadores de medalhas olímpicas e as repercussões desse processo no | 666 imaginário esportivo contemporâneo. Como objetivos específicos, apontamos as várias representações da derrota em diferentes culturas e momentos históricos e o que ela representa no contexto contemporâneo; como os atletas brasileiros, especificamente vivem e convivem com as expectativas da vitória e a realidade da derrota e o que isso significa para sua vida e carreira; como se apresenta essa questão dentro da cultura de cada modalidade, entendendo que cada atividade social gera e requer seu próprio universo distinto de significados e práticas. 4 | A profissionalização do atleta e do espetáculo esportivo O esporte é uma prática cultural associada diretamente ao lazer e ao uso do tempo livre. Entretanto, diante das transformações ocorridas com esse fenômeno nos últimos 30 anos, tendo o amadorismo, um dos pilares fundamentais do Olimpismo, sido suplantado pelo profissionalismo, uma nova condição de exercício profissional é apresentada àqueles que possuem habilidades físicas específicas e optaram pela prática esportiva como profissão. A televisão transformou a audiência do esporte em todo o mundo, e na medida em que começou a perder a capacidade de subsistir enquanto espetáculo ao vivo, tornou-se dependente de patrocínios gerados pela abrangência das transmissões televisivas. Essa situação provocou o incremento do profissionalismo no esporte, tanto no que se refere à possessão do espetáculo pela televisão como em relação àquele que protagoniza o espetáculo, o atleta. 667 | É a partir desse momento que os dois elementos fundantes do esporte moderno, o amadorismo e o fair play passaram a sofrer seu grande revés. Considerados a base do Olimpismo, esses conceitos foram norteadores do esporte ao longo do século XX até aproximadamente os anos 1970, quando a relação causal dinheiro e desempenho esportivo passaram a compor uma dupla inseparável, levando o esporte a se tornar uma carreira profissional e uma opção de vida para crianças e jovens possuidores de um nível de habilidade desejada para o desempenho esportivo. Apesar do pragmatismo observado na relação esportemídia-patrocinador, há ainda outros elementos implicados na escolha do esporte competitivo como atividade profissional tão determinantes, que já não seria possível dizer que apenas os lucros obtidos com essa prática seriam capazes de motivar um atleta a permanecer na carreira. Existem vários aspectos que compõem esse universo, responsáveis por caracterizar tanto o fenômeno como o protagonista do espetáculo. As expectativas geradas em torno da prática esportiva levam a determinados padrões de comportamento que irão, de certa forma, influenciar, e por vezes determinar, a conduta daqueles que escolheram o esporte como profissão e opção de vida. A partir do início da atividade esportiva e competitiva regular essa condição é reforçada pelo argumento de que atleta vencedor é aquele que ganha torneios e se consagra com medalhas. A interpretação dessa situação aponta para uma | 668 inclinação desses atletas para a luta, e conseqüentemente à agonística. Apesar de uma disposição individual inicial para a prática esportiva que pode levar à profissionalização, é possível perceber, ao longo a trajetória de vários atletas, a influência exercida por elementos externos, como por exemplo a história de vida de outros esportistas e a exposição sistemática pela mídia de carreiras e situações vitoriosas, interferindo diretamente na construção do conceito de vencedor e na constituição do imaginário e do repertório esportivo, onde o derrotado é premiado com o consolo. Indicações como essas apontam que a carreira de um atleta não é fruto apenas de uma disposição e talento individuais, da afirmação de uma vontade latente ou da determinação em perseguir objetivos. Fatores externos como a influência parental, políticas institucionais e papel dos formadores podem influenciar e mesmo determinar a transformação de um aspirante em atleta. Nessa linha de pesquisa, tem-se buscado discutir como se dá a construção da identidade do atleta profissional e do esporte moderno, bem como as diversas representações do espetáculo esportivo e a assimilação do profissionalismo dentro desse contexto. 5 | Areté, ética e fair play Considerando a afirmação de que o esporte, em diferentes momentos históricos, reflete a forma como a sociedade vem se organizando, espelhando as diferenças entre Estados, 669 | povos e classes sociais, os valores morais manifestos em regras formalizadas e/ou internalizadas podem ser considerados um indicador desse processo. Por isso tem se constituído como um campo privilegiado de intervenção e estudo, não apenas em seus aspectos específicos de prática, mas também do ponto de vista educativo e sociocultural. Uma das justificativas para o usufruto dessa condição é o fato de o esporte congregar valores de sua gênese como o elemento integrador mente-corpo e a função pedagógica praticada na paidéia, e também se adequar à cultura contemporânea valorizando a competição e a vitória. Uma das intenções de Pierre de Coubertin ao recriar os Jogos Olímpicos na Era Moderna era através do fair play reviver a seu modo o espírito da areté grega. Conceituada como um valor moral, inicialmente de origem nobre e posteriormente utilizada como um método pedagógico para as crianças, a areté tem sido motivo de discussão entre pedagogos e demais profissionais envolvidos com educação. Na paidéia, a areté era tida como um valor moral próprio das pessoas com firmeza de caráter, nobreza de espírito e merecedores da honra de serem virtuosos. Uma das traduções do termo areté é o próprio conceito de virtude. A virtude que a areté comporta podia ser entendida no plano da política, da alma, do físico, do esporte e de outros planos da condição humana. O objetivo desta linha de trabalho é caracterizar as influências da areté grega na prática esportiva da | 670 Antigüidade, seu correspondente no Movimento Olímpico Contemporâneo e de que maneira o fair play colabora na manutenção desse conceito na atualidade. O fair-play presume uma formação ética e moral daquele que pratica esporte e se relaciona com os demais atletas na competição, e que este atleta não fará uso de outros meios que não a própria capacidade para superar os oponentes. Nessas condições, não há espaço para formas ilícitas que objetivem a vitória, suborno ou uso de substâncias que aumentem o desempenho. Diante disso, a relação entre areté e fair play parece indissociável, sugerindo que valores morais permeiam as relações humanas, de maneira geral, e as esportivas de forma particular, e na medida de sua incorporação, os meios externos parecem menos necessários e menos efetivos. 6 | Memória e história dos medalhistas olímpicos brasileiros O projeto surgiu após o contato com a história de vida de alguns atletas de onde se percebeu a importância de reconstituir a história do esporte brasileiro a partir da trajetória daqueles que conseguiram imprimir seu nome nos anais do esporte nacional, e internacional, após ganhar uma medalha olímpica. Sendo assim, o início dessa odisséia remonta o ano de 1920, quando pela primeira vez um grupo de destemidos brasileiros partiu rumo a Antuérpia, superando uma viagem de quase 30 dias, o clima pós-guerra e as condições pouco favoráveis de alojamento e competição. Apesar de todas 671 | essas particularidades da época e a circunscrição da prática esportiva a um reduzido grupo da população foram trazidas para o Brasil as três primeiras medalhas olímpicas de sua história. Ainda que atletas brasileiros voltassem a subir num pódio apenas nos Jogos de 1948, em Londres, o Brasil esteve representado em todas as edições dos Jogos Olímpicos ao longo do século XX desde 1920, exceto em Amsterdã, no ano de 1928. Entende-se que apresentar um pouco dessa história e das histórias dos atletas capazes de realizar grandes feitos em Jogos Olímpicos é uma forma de manter viva a memória do esporte brasileiro e de incentivar as futuras gerações a prestigiar e participar dessas realizações sempre cercadas de muito trabalho e superação. Por meio dessas histórias é possível atentar para as transformações ocorridas no ideário olímpico ao longo do século XX e os desdobramentos desse movimento na organização e manifestação do esporte brasileiro. O fio condutor para refletir sobre tais questões são as concepções de relações de poder elaboradas a partir da instituição imaginária da sociedade e as diferenças e identidades no sentido em que são problematizadas e elaboradas por teóricos dos Estudos Culturais. O instrumento de investigação utilizado nessa pesquisa foi a história de vida tida como uma forma particular de história oral que capta e organiza a memória, que interessa ao pesquisador por aprender valores que transcendem o caráter individual do que é transmitido e que se insere na cultura do grupo social ao qual o sujeito que narra pertence. | 672 Esse projeto contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. 7 | Publicações do Geo-USP Os principais trabalhos realizados pelo Grupo de Estudos Olímpicos do Centro de Estudos Socioculturais do Movimento Humano Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo até a presente data, são apresentados a seguir nas referências, seguindo a seqüência de livros com autoria individual, livros organizados, capítulos de livros e artigos publicados em revistas nacionais e internacionais 8 | Referências RUBIO, K. Medalhistas Olímpicos Brasileiros: memórias, histórias e imaginário. 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