Editorial Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar
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Editorial Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar
Mahfoud, M. e Massimi, M. (2004) Editorial: Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar. Memorandum, 7, 1-4. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos7/editorial7po.htm 1 Editorial Memorandum: memória e história em psicologia Número 7 Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar Temos a satisfação de apresentar o número 7 de Memorandum. Em primeiro lugar, propõem-se algumas contribuições referentes à abordagem fenomenológica em psicologia. Fenomenologia como proposta de um universo interpretativo da "interioridade": compreender o mundo da práxis para chegar às operações humanas que o torna possível, é o conteúdo da resenha O Universo na consciência de Bianca Maria d'Ippolito, acerca do novo livro de Angela Ales Bello. Já Patrizia Manganaro delineia a história do movimento fenomenológico na Bélgica e Holanda no artigo Desenvolvimentos da fenomenologia nos Países Baixos. Com efeito, Husserl e seus discípulos desenvolvem análises que se referem às formas viventes - psique, corpo próprio -, à natureza material, ao espaço-tempo e às formas culturais como ciência, Estado, comunidade, experiências religiosas, de forma tal que vem a ligar a psicologia com as áreas da filosofia, da história, da religião, da antropologia e das ciências sociais. Em segundo lugar, aborda-se o tema sempre atual das distinções e relações entre memória individual e coletiva. O artigo Memória Individual e Memória Social / Coletiva: considerações à luz da Psicologia Social, de Solange Epelboim, propõe um confronto das versões psicológica e sociológica do problemática. Em terceiro lugar, entra-se no tema da história, nas diversas facetas de história das culturas, história da psicologia e das idéias psicológicas presentes em várias expressões culturais, tais como a literatura, a teologia, a espiritualidade, a filosofia, a medicina, etc, em diversos contextos geográficos, tais como o Ocidente, o Oriente, o Brasil e a América Latina. Um primeiro grupo de artigos que aborda a história das idéias psicológicas e as interfaces com a história cultural, a história da arte, a história da espiritualidade e a literatura: Primeiras noções da psique: das concepções animistas às primeiras concepções hierarquizadas em antigas civilizações, de William B. Gomes; Um bibliotecário em sua biblioteca: Cassiodoro e os leitores ideais na Idade Média de Giulia Crippa; Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII), de Paulo Roberto de And rada Pacheco; Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467-1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623) de Paulo José Carvalho da Silva; São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração na Época Moderna de Adalgisa Arantes Campos; Representações do conceito de inconsciente na obra de Machado de Assis de Sávio Passafaro Peres e Marina Massimi. Um segundo grupo de artigos discute temas referentes à institucionalização da psicologia científica no Brasil e na América Latina: O curso de medicina no Brasil no século XIX - contribuições à constituição da Psicologia de Ana Maria Jacó-Vilela, Cristiane Ferreira Esch, Daniela Albrecht Marques Coelho, Marcelo Santos Rezende; Origem e relevância de um laboratório de psicologia no Brasil na década de 1950 de Elizabeth de Melo Bomfim e Maria Teresa Antunes Albergaria; Comienzos de la Memorandum, Out/2004. Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/editorial07.htm Mahfoud, M. e Massimi, M. (2004) Editorial: Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar. Memorandum, 7, 1-4. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos7/editorial7po.htm 2 profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de Córdoba y el movimiento neoescolástico de María Andrea Piñeda. Por fim, não podíamos deixar de dedicar um espaço à memória de Profa. Dr.a Carolina Martuscelli Bori, cuja presença permanecerá sempre fecunda referência para os psicólogos brasileiros, pela sua capacidade de ser educadora e construtora da psicologia no Brasil - como ciência e como profissão -, sempre atenta ao processo histórico e visando um horizonte amplo. A importância para os estudos psicológicos da história das culturas e também da história da filosofia, deve-se ao fato de que estas trazem as perguntas básicas acerca das relações entre universo, corpo, psique e espírito. Conforme afirma François Dosse (2004), a história documenta o fato de que em seu agir e dizer o ser humano é portador de sentidos que as ciências humanas são convocadas a desvendar. Por isto, instaura-se uma relação profunda entre a psicologia e as demais ciências humanas, a filosofia e a história das culturas. Por sua vez, o estudo das culturas, ao longo do tempo, é possibilitado pela permanência, preservação e disponibilização de suas fontes escritas em forma de textos, conservados em arquivos e bibliotecas. As fontes iconográficas também constituem-se em material rico para uma historia cultural. Coloca-se neste nível a questão do mapeamento e da preservação das fontes históricas - enquanto recursos para o conhecimento histórico e psicológico. O que procuramos -enquanto psicólogos - nestes documentos da antiguidade? Modalidades diversas de entender e usar a experiência - conceito fundamental em psicologia. A literatura, por exemplo, possui uma modalidade própria de abordar a experiência; da mesma forma, o universo da espiritualidade e da teologia. Estas modalidades, por sua vez, fundamentam diversas formas de cuidado psicológico e diversos tipos de recursos terapêuticos. As relações entre psicologia, história e cultura não dizem respeito apenas aos conhecimentos psicológicos anteriores ao advento da psicologia científica. Inclusive os inícios da psicologia como ciência moderna dependem de várias influências culturais (da medicina, da filosofia, das ciências naturais) e de diversos sujeitos culturais (médicos, filósofos, grupos religiosos, cientistas). A psicologia científica, ela também, é um empreendimento cultural, sendo um determinado contexto cultural responsável pelas condições de sua possibilidade. Miguel Mahfoud Marina Massimi Editores Outubro de 2004. Dosse, F. (2004). História e Ciências Sociais.(F. Abreu, Trad.). Bauru: EDUSC. (Publicação original de 2004). Memorandum, Out/2004. Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/editorial07.htm Mahfoud, M. e Massimi, M. (2004) Editorial: Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar. Memorandum, 7, 1-4. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos7/editorial7po.htm 3 Editorial Memorandum: memory and history in psychology Number 7 World, history and culture: senses to be disclosed It is a pleasure for us to present the seventh number of Memorandum. First of all, the present number features some contributions regarding the phenomenological approach in psychology. Phenomenology as a proposal of an interpretative universe of "interiority": to understand the world of praxis to reach the human operations that make it possible, is the content of the review The Universe in the consciousness by Bianca Maria d'Ippolito, about the new book of Angela Ales Bello. Patrizia Manganaro delineates the history of the phenomenological movement in Belgium and the Netherlands in the article The development of phenomenology in the Low Countries. In fact, Husserl and his disciples develop analysis regarding the living forms- psyque, one's own body -, material nature, space-time and cultural forms such as science, State, community, religious experiences, in a way that links psychology with the areas of philosophy, history, religion, anthropology and social sciences. In second place, it is approached the always contemporary theme of the distinctions and relationships between individual and collective memory. The article Individual Memory and Social / Collective Memory: considerations in the light of Social Psychology, by Solange Epelboim, proposes a confrontation between the psychological and sociological versions of the confrontation of the psychological and sociological versions of the issue. In third place, we enter into the domain of history, in the many facets of the history of cultures, history of psychology and of the psychological ideas present in diverse cultural expressions, such as literature, theology, spirituality, philosophy, medicine, etc, in different geographical contexts, such as the Western and Eastern worlds, Brazil and Latin America. A first group of articles that approach the history of the psychological ideas and the interfaces with cultural history, art history, the history of spirituality and literature: World and psyche conceptions on the ancient civilizations: China, India and Egypt, by William B. Gomes; A librarian in his library: Cassiodorus and the ideal reader in the Middle Age by Giulia Crippa; Experience as factor of knowledge in the philosophical-psychology Aristotelic-Thomist of the Society of Jesus (16th and 17th centuries), by Paulo Roberto de Andrada Pacheco; A single regimen for body and soul: Luigi Cornaro (1467-1566) and Leonard Lessius (1554-1623) treatises by Paulo José Carvalho da Silva; Saint Micheal, The Souls of Purgatory and the scales: Iconography and veneration in the Modern Epoch by Adalgisa Arantes Campos; Representations of the concept of unconscious in the workmanship of Machado de Assis by Sávio Passafaro Peres and Marina Massimi. A second group of articles discusses themes that refer to the institutionalization of scientific psychology in Brazil and Latin America: Brazilian medicine courses in the 19th century: contributions toward Psychology by Ana Maria Jacó-Vilela, Cristiane Ferreira Esch, Daniela Albrecht Marques Coelho, Marcelo Santos Rezende; Origin and social relevance of a laboratory of psychology in Brazil in the 1950's by Elizabeth de Melo Bomfim and Maria Teresa Antunes Albergaria; Beginnings of Memorandum, Out/2004. Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/editorial07.htm Mahfoud, M. e Massimi, M. (2004) Editorial: Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar. Memorandum, 7, 1-4. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos7/editorial7po.htm 4 professionalization of Psychology in Argentina, the National University of Cordoba and neoscholasticism by María Andrea Piñeda. At last, we dedicate a space to the memory of Professor Carolina Martuscelli Bori, whose presence will remain, forever, as a fecund reference for the Brazilian psychologists, due to her capacity of being an educator and builder of psychology in Brazil - bath as a science and as a profession -, always alert to the historical process and aiming at a vast horizon. The importance of the history of cultures to the psychological studies and also to the history of philosophy, is due to the fact that they bring up the basic questions regarding the relationships between universe, body, psyque and spirit. According to François Dosse (2004), history documents the fact that the human being, through his acts and speeches, is a messenger of senses that the human sciences are called to disclose. Therefore, it is established a profound relationship between psychology and the other human sciences, philosophy and the history of cultures. In its turn, the study of cultures, in time, is made possible by the permanence, preservation and availability of written sources in form of texts, preserved in archives and libraries. The iconographical sources also constitute a rich material for cultural history. It is at this level that is posed the question regarding mapping and preservation of historical sources - as resources for historical and psychological knowledge. What are we - as psychologists - looking for in these ancient documents? Diverse modalities of understanding and using experience - a founding concept in psychology. Literature, for example, possesses a particular modality of approaching experience; as does the universe of spirituality and theology. These modalities, in their turn, form the basis of many forms of psychological care and diverse types of therapeutical resources. The relationships between psychology, history and culture do not concern only the psychological knowledge that preceded the advent of scientific psychology. In fact, the beginnings of psychology as a modern science depended on many cultural influences (of medicine, of philosophy, of natural sciences) and of diverse cultural subjects (medical doctors, philosophers, religious groups, scientists). Scientific psychology, in itself, is a cultural entreprise, whose very possibility of being is determined by a cultural context. Miguel Mahfoud Marina Massimi Editors October of 2004. Dosse, F. (2004). História e Ciências Sociais.(F. Abreu, Trad.). Bauru: EDUSC. (Publicação original de 2004). Memorandum, Out/2004. Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/editorial07.htm Mahfoud, M. e Massimi, M. (2004) Editorial: Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar. Memorandum, 7, 1-4. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos7/editorial7po.htm 5 Editorial Board Edito rs Miguel Mahfoud Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Marina Massimi Universidade de São Paulo Brasil Ad Hoc Consultants of Memorandum 6 Ana Silvia Volpi Scott Universidade Estadual de Campinas Brasil André Luís Masiero Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Brasil Biagio D'Angelo Pontificia Universidad Católica del Perú Universidad Católica Sedes Sapientiae Perú Carlos Alberto Filgueiras Universidade Federal do Rio de Janeiro Brasil Dante Gallian Universidade Federal de São Paulo Brasil José Paulo Giovanetti Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Luís Miguel Carolino Universidade de Évora Portugal Raquel Martins de Assis Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Roberto Sagawa Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" Brasil Advisory Board Adalgisa Arantes Campos Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Alcir Pécora Universidade de Campinas Brasil Angela Ales Bello Pontificia Universitas Lateranensis Italia Aníbal Fornari Universidad Católica de Santa Fé Universidade Católica de La Plata Argentina Anna Unali Università La Sapienza Italia Antonella Romano École des Hautes Études en Sciences Sociales France Memorandum, Out/2004. Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/editorial07.htm Mahfoud, M. e Massimi, M. (2004) Editorial: Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar. Memorandum, 7, 1-4. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos7/editorial7po.htm 6 Belmira Bueno Universidade de São Paulo Brasil Caio Boschi Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Brasil Celso Sá Universidade Estadual do Rio de Janeiro Brasil Danilo Zardin Università Cattolica Sacro Cuore Italia Ecléa Bosi Universidade de São Paulo Brasil Francesco Botturi Università Cattolica Sacro Cuore Italia Franco Buzzi Università Cattolica del Sacro Cuore Italia Gilberto Safra Universidade de São Paulo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Brasil Helio Carpintero Universidad Complutense España Hugo Klappenbach Universidad San Luis Argentina Isaías Pessotti Universidade de São Paulo Brasil Janice Theodoro da Silva Universidade de São Paulo Brasil José Carlos Sebe B. Meihy Universidade de São Paulo Brasil Luís Carlos Villalta Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Luiz Jean Lauand Universidade de São Paulo Brasil Maria Armezzani Università degli Studi di Padova Italia Maria do Carmo Guedes Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Brasil Maria Efigênia Lage de Resende Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Maria Fernanda Diniz Teixeira Enes Universidade Nova de Lisboa Portugal Martine Ruchat Université de Genève Suiss Michel Marie Le Ven Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Memorandum, Out/2004. Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/editorial07.htm Mahfoud, M. e Massimi, M. (2004) Editorial: Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar. Memorandum, 7, 1-4. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos7/editorial7po.htm 7 Monique Augras Universidade Católica do Rio de Janeiro Brasil Olga Rofrigues de Moraes von Simson Universidade de Campinas Brasil Pedro Morande Universidad Católica de Chile Chile Pierre-Antoine Fabre École des Hautes Études en Sciences Sociales France Regina Helena de Freitas Campos Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Sadi Marhaba Università degli Studi di Padova Italia William Gomes Universidade Federal do Rio Grande do Sul Brasil Board of editorial consultants Adone Agnolin Universidade de São Paulo Brasil Ana Maria Jacó Vilela Universidade Estadual do Rio de Janeiro Brasil André Cavazotti Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Arno Engelmann Universidade de São Paulo Brasil Bernadette Majorana Università degli Studi di Bergamo Itália César Ades Universidade de São Paulo Brasil Davide Bigalli Università degli Studi di Milano Itália Deise Mancebo Universidade Estadual do Rio de Janeiro Brasil Edoardo Bressan Università degli Studi di Milano Itália Eugénio dos Santos Universidade do Porto Portugal Giovanna Zanlonghi Università Cattolica del Sacro Cuore Italia José Francisco Miguel Henriques Bairrão Universidade de São Paulo Brasil Marcos Vieira da Silva Universidade Federal de São João del Rei Brasil Memorandum, Out/2004. Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/editorial07.htm Mahfoud, M. e Massimi, M. (2004) Editorial: Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar. Memorandum, 7, 1-4. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos7/editorial7po.htm 8 Maria Luisa Sandoval Schmidt Universidade de São Paulo Brasil Marisa Todeschan D. S. Baptista Universidade de São Marcos Brasil Mitsuko Aparecida Makino Antunes Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Brasil Nádia Rocha Universidade Federal da Bahia Brasil Rachel Nunes da Cunha Universidade de Brasília Brasil Raul Albino Pacheco Filho Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Brasil Vanessa Almeida Barros Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Supported by * LAPS - Laboratório de Análise de Processos em Subjetividade. Programa de Pós Graduação em Psicologia - UFMG * Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas FaFiCH - UFMG * Núcleo de Epistemologia e História das Ciências Miguel Rolando Covian USP/Ribeirão Preto * Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras - USP/Ribeirão Preto * Biblioteca Prof. Antônio Luiz Paixão - FaFiCH - UFMG The electronic scholarly journal Memorandum is an initiative of the Research Group "Estudos em Psicologia e Ciências Humanas: História e Memória", linked to Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/UFMG and to Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/USP. Memorandum, Out/2004. Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/editorial07.htm D'Ippolito, B. M. (2004). O universo na consciência. Memorandum, 7, 5-7. Retirado em / / World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/ dippolito01.htm 5 Resenha O universo na consciência The universe in the consciousness Bianca Maria D'Ippolito Università degli Studi di Salerno Itália Ales Bello, Angela (2003). L'universo nella coscienza: introduzione alla fenomenologia di Edmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius. Pisa: ETS. Com o título "O universo na consciência: introdução à fenomenologia de Edmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius" Angela Ales Bello anuncia, em seu recente trabalho, um programa bem determinado e ousado. É conhecido que Stein e Conrad-Martius figuram dentre as primeiras discípulas de Husserl, no Grupo de Göttingen, mas não é óbvia a inserção delas no universo interpretativo da "interioridade". Que se acentue o "universo" já é um passo decisivo no que se refere ao próprio Husserl: retira de sua obra o atributo de "consciencialismo". (1) Para Ales Bello, trata-se de mundo - ou melhor, de universo - porque Husserl desenvolve análises que levam às formas viventes - psique, corpo próprio -, à natureza material, ao espaço-tempo e às formas culturais como ciência, estado, comunidade. Enfim, até o que não está incluído do nestas "formações" - o pensamento de Deus - está presente na consciência numa modalidade própria. O modo com que a Autora aborda o amplo e complexo corpus husserliano é original: o que procura não é tanto lançar luzes sobre as teses do filósofo da Moravia, quanto, em primeiro lugar, seguir os movimentos de seu pensamento. O fio condutor, que delineia o espaço mais abrangente, refere-se à (auto)colocação de Husserl: para a Autora "sua proposta de pesquisa está dentro e fora da cultura ocidental" (p. 8), reconhecendo e atuando em três direções: como investigação epistemológica sobre a configuração do saber, como ideal comunitário da pesquisa e como "monadologia" - reconhecendo o direito da singularidade e da intersubjetividade conjuntamente. E o termo leibniziano conduz à idéia de um universo interior, a uma pluralidade tecida em um vínculo essencial. Angela Ales Bello segue e ilumina os itinerários husserlianos, atenta à concepção que o próprio Husserl tem deles e às interrogações que surgem. Husserl se refere a Descartes e a Kant, mas "corrigindo" (o que ele acredita ser) a "negação" cartesiana do mundo, e reformando a estética transcendental. À dúvida sobre a existência do mundo ele contrapõe a "suspensão" da tese do mundo - que equivale a fazer emergir o possível, a riqueza dos predicados essenciais que cada "fato" possui. No ato da "visão da essência" emerge o valor intencional da consciência, mas esta não reabsorve o "teor" do objeto. Ales Bello sublinha a peculiaridade de uma consciência que não se põe fichtianamente: "Estando implicada uma atividade do sujeito, ela é a resposta a uma solicitação, a um apelo. (...) O dado solicita ser compreendido, coloca uma pergunta, revela-se problemático e pretende uma atenção à sua problemática" (p.21). Ao mesmo tempo, a desaprovação da via cartesiana se evidencia na falta de desenvolvimento do tema "cogito" na pura identidade vazia de conteúdo. Pelo contrário - observa Ales Bello -, para Husserl trata-se de um campo de trabalho, imenso; então trata-se de "ajustar a ferramenta e sondar o terreno" (p.36). E eis o trabalho de Husserl: "indagar quase maniacamente o terreno, de novo e sempre de novo" (p.36). Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/dippolito01.htm D'Ippolito, B. M. (2004). O universo na consciência. Memorandum, 7, 5-7. Retirado em / / World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/ dippolito01.htm 6 O que Husserl busca na escavação laboriosa, no assíduo trabalho de retirar a crosta sedimentada, de quebrar o gelo do esquecimento que encerra o calor do sentido? "O objetivo - explica a Autora - é compreender profundamente este mundo da práxis para chegar às operações humanas - e divinas? - que o torna possível" (p.37). Assim a nova "estética transcendental" manifesta, também na via kantiana, a dupla postura de Husserl: "às vezes dentro e outras vezes fora da tradição filosófica ocidental" (p.52). A "mania" husserliana consiste no intento de ir mais a fundo no desnudamento das operações subjetivas - porque cada formação de sentido contém a insídia do "fato", deve ser sempre novamente examinada nas suas fibras intencionais. Trata-se de um movimento amiúde tomado - erroneamente - como tentativa de atingir uma origem realisticamente última. Oportuna é, portanto, a observação de Ales Bello: "Na realidade, a análise da ‘vida' não deve se manter no nível 'natural'; vorwissenschaftlich e vortheoretisch não indicam um modo para remeter-se a uma vida natural ingenuamente considerada" (Idem). O "pré" indica - poderíamos dizer - a estrutura interna que remete, esta pertencente aos tecidos "constituídos" - cujo "sentido" revela uma espessura a ser sempre interrogada. É a riqueza de sentido de cada experiência que se anuncia no experiente - e cada experiente pode, como átomo na fusão nuclear, multiplicar-se no reino do infinitésimo. A ampliação do "campo de trabalho" sobre o eu leva - segundo Ales Bello - a uma superação interna que Husserl apresenta na passagem intersubjetiva, na duplicação dos atos fundamentais: "a percepção, a lembrança e a empatia. Há uma profunda conexão entre eles e há uma quase progressiva extensão de suas afinidadesdiferenças" (p.71). O eu se espelha em um universo de duplicações: o passado, o outro e o termo dos "fluxos mais profundos", o divino. Na análise atenta da Autora o percurso husserliano, todavia, aparece como repleto de enigmas. Se o caminho regressivo exige que se dinstinga "o que é dado do que é cosntruído", como poderemos ter certeza sobre a pureza operativa? Segundo a aguda observação de Ales Bello permanece "o risco de 'construir' mesmo na indagação regressiva" (p.57). Novamente emerge uma tensão radical na retomada e no confronto com a tradição ocidental. Revelando o que esta última ignorara ou acobertara - o "pressuposto" - Husserl não propõe um único caminho, mas abre um problema: sendo impensável a volta a um mítico passado pré-científico, tratase então de "aceitar a ineliminabilidade radical do processo de 'mecanização' " (p.65) e "o método é, então, já uma racionalização?" (p.66). O problema colocado pela Autora representa a inquietação própria da consciência européia nos perigosos cimos da modernidade: o cogito, voltando-se a si mesmo, chega à vertigem de um "profundo" inexaurível, e o fundamentum inconcussum torna-se, por sua vez, enigma. Se nos abstivermos - no sentido fenomenológico - de reificar os "inícios" poderemos escolher "uma dimensão 'sapiencial', enquanto conquista e reconquista os elementos originários que estão no fundo de toda cultura". Neste caso, apresenta-se a ardilosa questão: "Há vivências orignárias ou precategoriais também para nós, homens da civilização ocidental avançada? Ou estamos condenados a nos mover inteiramente em uma dimensão categorial?" (p.69). A resposta se coaduna com a exploração: o "universo na consciência", o finito-infinito da re-memorização, que em filosofia corresponde aos infinitos matemáticos. No trabalho de Angela Ales Bello encontramos as discípulas de Husserl - E. Stein e H. Conrad-Martius - em uma unidade temática. A tese é clara: também para elas deve valer a dupla presente no título: universo - consciência. Para Stein, trata-se de retomar e reinterpretar a correlação husserliana, reconhecendo seus momentos "por um lado em uma natureza física absolutamente existente, por outro lado em uma subjetividade com determinadas estruturas" (p.117). O enraizamento da essência na substância acontece sob o signo de Tomás - e em polêmica com Heidegger em sua concepção de Dasein "lançado" na existência (cf. p.121 ss). Stein percorre, então, um caminho que a conduz a desenvolver de modo original a correlação husserliana poético-noemática no sentido das grandes realidades: Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/dippolito01.htm D'Ippolito, B. M. (2004). O universo na consciência. Memorandum, 7, 5-7. Retirado em / / World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/ dippolito01.htm 7 natureza, Deus, os anjos, mas também massa, comunidade, sociedade, Estado. São endiades ideais-reais. Mas seu mais belo trabalho é sobre a alma, entendida como um território vasto e ao mesmo tempo profundo, tudo a ser explorado, nos seus núcleos essenciaissubstanciais: alma, corpo, espírito. Novamente - como Husserl em relação a Descartes, assim também Stein "contra" e a favor de Husserl - "o que interessa (...) é o contraste superfície-profundidade" (p.135). E mais uma vez, como Husserl, Ales Bello com sutileza evidencia como é acidentado o caminho, como é "solevado" o terreno: tudo tem a ver com o homem "este ser estranhamente discorde" (p.138). O realismo, aqui, não tem uma função de assegurar, pacificar; pelo contrário, evocam-se as "forças do profundo" cuja potência é ímpar com relação à consciência. Para Ales Bello a obras de Conrad-Martius restitui, enfim, à pesquisa fenomenologia, a sua implícita dimensão cosmológica (cf. p.184 ss) uma vez que re-emerge também a "natureza", com sua dignidade autônoma, real-ideal. Para ela, "o cômpito da ontologia é a descoberta da constituição fundamental do que é determinante para o mundo real em todas as suas configurações" (p.192). Como deve ser lido o retorno de uma natureza "autônoma", depois do idealismo? Para Ales Bello o seu sentido reside na importância dada à nova física e à nova biologia e, sendo o espírito científico, em última análise, um espírito realista, pode-se afirmar que é justamente a nova cientificidade das ciências experimentais que reforçam a polêmica antiidealista de Conrad-Martius e que dá a conotação original à sua posição (p.206). A este ponto, o círculo se abre novamente: Conrad-Martius retoma o tema ciênciafilosofia, do qual Husserl tomara impulso: o "solevado" caminho. Nota (1) tradução de Miguel Mahfoud do original em italiano. Nota sobre a autora Bianca Maria d'Ippolito é doutora em Filosofia, professora da Faculdade de Letras e Filosofia da Università degli Studi di Salerno, Itália. Contatos: Dipartimento di Filosofia - UniSa , Via Ponte Don Melillo, 84084 Fisciano (Salerno) - Itália. Data de recebimento: 23/06/2004 Data de aceite: 13/10/2004 Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/dippolito01.htm Manganaro, P. (2004). Desenvolvimentos da fenomenología nos Países Baixos. Memorándum, 7, 8-17. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.ritm 8 Desenvolvimentos da fenomenología nos Países Baixos The development of phenomenology in the Low Countries Patrizia Manganaro Pontificia Universitá Lateranense Italia Resumo O trabalho descreve o desenvolvimento da fenomenología na Bélgica e Holanda delineando os principáis centros de investigagao, seus importantes intelectuais atuantes e as temáticas ali pesquisadas. No que diz respeito á Bélgica, descreve a fundagao do Husserl-Archief em Lovaina, suas edigoes críticas da obra husserliana, apontando diretores e especialistas responsáveis pelo trabalho. Relata a atividade do Centre de Recherches phénoménologiques, junto á Facultes Universitaires Saint Louis de Bruxelas. Quanto á Holanda, o ponto de partida para os estudos fenomenológicos foram as conferencias proferidas em 1928 por Edmund Husserl sobre a psicología fenomenológica. Além do debate entre psicología e fenomenología - um dos grandes polos de interesse da Escola de Utrecht - a segunda ocupa, naquela regiao, um papel de destaque em diversas áreas do saber como, por exemplo, na pedagogía. Palavras-chave: historia da fenomenología; psicología fenomenológica; Arquivo Husserl; Escola de Utrecht Abstract The study describes the development of phenomenology in Belgium and the Netherlands, underlining the main centers of investigation, their most prominent intellectuals and the principal themes which were approached. Regarding Belgium, the study describes the foundation of the Husserl-Archief in Leuven, the publication of the critical editions of works by Husserl, pointing out the directors and specialists responsible for the publication. It is also reported the activities of the Centre de Recherches phénoménologiques of the Facultes Universitaires Saint Louis in Brussels. Regarding the Netherlands, the starting point for the phenomenological studies were the conferences given in 1928 by Edmund Husserl about phenomenological psychology. Besides the debate between psychology and phenomenology - one of the main poles of interest - the latter occupies, in that región, a prominent role in many áreas of knowledge, as, for instance, pedagogy. Keywords: history of phenomenology; Husserl Archive; phenomenological psychology; School of Utrecht 1. O Arquivo Husserl de Lovaina e a fenomenología na Bélgica e Holanda 1.1. Devemos (1) a Léon Noel (1910), professor na Universidade de Lovaina, a primeira resenha em francés de Investigagoes Lógicas de Husserl, na qual manifesta apresso á crítica husserliana ao psicologismo, considerando-a um realismo epistemológico substancialmente alinhado com as posigoes do neotomismo. Nos anos seguintes, Noel promove numerosos estudos de filosofía fenomenológica, tendo um papel determinante na fundagao do Husserl-Archief, em Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.htm Manganaro, P. (2004). Desenvolvimentos da fenomenología nos Países Baixos. Memorándum, 7, 8-17. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.ritm 9 1939 em Lovaina (cf. van Breda, 1959). A partir desta dada a Fundagao recolhe o inteiro Nachlass husserliano: cerca de quarenta mil páginas escritas em caracteres estenográficos e mais de dez mil datilografadas, posteriormente transcritas e compiladas sistemáticamente por alguns assistentes de Husserl. O Arquivo possui, além disso, a biblioteca pessoal do grande fenomenólogo, preciosa para identificar as fontes de seu pensamento. A Fundagao se ocupou com grande competencia e atengao da transcrigao dos textos e de suas edigoes críticas publicadas na Husserliana - Edmund Husserl Gesammelte Weerke. Somam numerosos volumes, editados em colaboragao com Centros em toda a Europa: tradugoes em inglés confluem ñas Edmundo Husserl Collected Works; a importante serie Husserl-Dokumente; e teve inicio urna nova Colegao - Materialen - com a tarefa específica de providenciar a transcrigao dos manuscritos de conferencias e cursos ainda nao incluidos na Husserliana. Em proficua interagao com o Centre d'Etudes Phénoménologiques da Universidade de Lovaina a Nova, a Fundagao publicou também significativas contribuigoes de filosofía fenomenológica de autores como E. Fink, R. Ingarden, E. Lévinas, J. Patocka. Os mais de cento e cinqüenta volumes que vieram á luz ilustram a extraordinaria vitalidade do método fenomenológico. Constante e progressivamente, a Fundagao torna-se um ponto de apoio para estudos altamente especializados e ponto de encontró entre pesquisadores provenientes de todo o mundo. Para satisfazer os rigorosos criterios epistemológicos e metodológicos que desde o inicio tém caracterizado o trabalho da Fundagao, seus varios diretores - H. L. van Breda, S. IJsseling, R. Bernet - requisitaram a colaboragao de especialistas da Alemanha, Bélgica, Holanda e Suíga. Os primeiros fenomenólogos chamados foram os últimos assistentes de Husserl, Eugene Fink e Ludwig Landgrebe, que por alguns meses transcreveram duas mil e oitocentas páginas dos textos do Mestre, antes de serem expulsos devido á ocupagao nazista da Bélgica (1940). Desde entao, urna ininterrupta cadeia de especialista continua o trabalho dessas duas eminentes personalidades, permitindo o incremento das contribuigoes editoriais, históricoteoréticas e críticas. Depois da II Guerra Mundial, Walter e Marly Biemel sucederam a Fink e Landgrebe como Associados do Arquivo Husserl. Com a morte de van Breda a diregao do Arquivo passou primeiramente a Samuel IJsseling e em seguida a Rudolph Bernet. Com a Anschluss de 1938, Stephan Strasser vé-se forgado a fugir da Austria, refugiando-se na Bélgica. Van Breda o hospeda no Arquivo Husserl de Lovaina: no arco de dois anos e com a constante ajuda da esposa, Strasser conseguiu converter para redagao ordinaria cerca de vinte mil páginas de textos estenografados, o que foi determinante para o trabalho editorial. A partir de 1949 ele ocupa a cátedra de Psicología Filosófica e Antropología da Universidade de Nijmegen: seu trabalho é dedicado á psicología e as ciencias humanas, tomadas desde urna perspectiva específicamente teorético-metafísica (cf. Strasser, 1950, 1962, 1985) (2). A intengao principal de sua reflexao sobre a alma é a de manter unidas duas diversas abordagens: o método fenomenológico considerado como urna moldura eidética necessária para cada sucessiva pesquisa empírica, por um lado; e por outro, a posigao neo-tomista que considera a fenomenología como um método de metafísica do ser. Strasser busca de um terreno comum satisfaga as exigencias de objetividade científica e de urna vida auténtica, plena de sentido. Docente em Lovaina a partir de 1946, Alphonse de Waelhens representa urna das principáis fontes da tradigao fenomenológica na Bélgica. Publicou comentarios origináis sobre a filosofía de Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty e Gadamer (cf. de Waelhens, 1965, 1967) mas sua contribuigao mais relevante refere-se á atribuigao de significado pela psicanálise (cf. de Waelhens, 1972) (3). Ele argumenta que a auto-consciéncia e a experiencia do ser humano apresentam limites e que, desde um ponto de vista antropológico, a filosofía e a ciencia estao em relagao Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.htm Manganaro, P. (2004). Desenvolvimentos da fenomenología nos Países Baixos. Memorándum, 7, \Q 8-17. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.ritm hierárquica, ainda que recíproca: para chegar a urna compreensao mais lúcida da existencia humana, urna precisa da outra. O mesmo pode-se dizer a propósito da relagao entre filosofía e psicanálise, sendo necessária urna re-interpretagao do inconsciente sobre base específicamente fenomenológica. De Waelhens investigou as estruturas fundamentáis do ser humano e os problemas-chave da psicología fenomenológica: a relagao mente-corpo, a questao da subjetividade, a linguagem, a historicidade-existencialidade, a intersubjetividade, a doenga, a saúde, o inconsciente. O ápice de sua reflexao está contido no livro La Psychose (de 1972): urna interpretagao das interrogagoes psicopatológicas básicas a partir das concepgoes típicas do psicanalista francés Jacques Lacan. Já em 1967 ele fundara o Centre d'anthropologie, dirigido até 1994 por Gh. Florival e depois por M. Dupuis. Este último, além das tradugoes de alguns textos de Ludwig Binswanger e de Edith Stein, dedicou grande parte de seu trabalho ao estudo do pensamento de Emmanuel Lévinas, aos temas inerentes á psicopatologia fenomenológica e á vivencia empática. Ulterior impulso aos estudos de psicología fenomenológica foi dado por G. Thinés (1968, 1977, 1991), trabalhando em estreita colaboragao com de Waelhens e com 0 psiquiatra J. Schotte para formular urna rigorosa crítica á postura reducionista na antropología e na psicología. Depois da especializagao em filosofía, Thinés dedica sua pesquisa científica á etologia, á psicología e á filosofía fenomenológica. Em psicología, seus mestres foram A. Michotte (a quem substituí na cátedra de Lovaina em 1956), célebre por seus estudos sobre percepgao da causalidade, e F J J . Buytendijk (1952, 1952a), ao qual em 1961 substituí na cátedra da Universidade de Nijmegen. Com A. Giorgi, Thinés fundou, em 1970, o Journal of Phenomenological Psychology, publicagao que contribuiu largamente á difusao e ao desenvolvimento da chamada third forcé da psicología nos Estados Unidos da América (4). Todo o trabalho de Thinés consiste em demonstrar a possibilidade e a legitimidade de urna psicología científica fundamentada na clarificagao apropriada de seus conceitos básicos sem, todavía, cair no absurdo de urna "psicología sem subjetividade", que negaría a central categoría do sentido. Também a obra do belga Antoine Vergote visa estender a discussao sobre a relagao entre fenomenología e psicanálise. Depois das graduagoes em teología e filosofía, Vergote se especializa em psicología e psicanálise, tornando-se membro da Ecole Freudienne de París. Segundo o seu juízo, teología e psicanálise nao sao estranhas urna á outra, apresentando ¡números pontos de contato e temas comuns: o desejo, a vida, a morte, a corporeidade, o pai, a relagao intersubjetiva. Na perspectiva fenomenológica, a teología vem a ser conotada como arqueología dos dados cristaos, investigagao essencial sobre a estrutura constitutiva do ser humano e sobre as implicagoes culturáis dos valores cristaos; enquanto que o exame psicanalítico do inconsciente oferece precioso material de reflexao explorando a estrutura elementar, primitiva, do ser humano. A obra de Vergote tende a integrar proficuamente a transcendencia horizontal com a vertical, mostrando como o ser humano, egocéntrico, se abre a urna experiencia de Deus como Outro em relagao a si. (Cf. Vergote 1974, 1983, 1996, 1997). A atividade do Centro de recherches phénoménologiques - fundado em 1992 e dirigido por R. Brisart junto á Facultes Universitaires Saint Louis de Bruxelas - é um importante testemunho da atual vitalidade académica e institucional da fenomenología na Bélgica, em diálogo e colaboragao com a Universidade de Rennes 1 e com o Arquivo Husserl de Paris. O Centro organiza congressos e conferencias anuais e desde 1994 publica as Recherches husserliennes, revista que recebe contribuigoes de respeitáveis estudiosos internacionais. A partir de 1988 Brisart promoveu um programa de pesquisa que reconstrói o pensamento de Husserl dos anos 1887-1901 e esclarece a relagao do grande fenomenólogo com o pensamento austríaco (Brentano, Bolzano e Mach). Essa pesquisa programática tem despertado grande interesse na Franga, Alemanha e países anglo-saxoes, construindo urna Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.htm Manganaro, P. (2004). Desenvolvimentos da fenomenología nos Países Baixos. Memorándum, 7, \\ 8-17. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.ritm ponte entre os filósofos de tradigao analítica e o contexto mais marcadamente continental, que viu o nascimento e incremento da fenomenología. 1.2. Respondendo a um explícito convite do filósofo e lingüista Hendrick J. Pos, em 1928 Edmundo Husserl ministrou na Holanda algumas importantes conferencias (Amsterdammer Vortráge) sobre psicología fenomenológica (cf. Husserl, 1928/1962), vindo a influenciar alguns dentre os pesquisadores mais destacados daquela regiao geográfica. A discussao sobre a relagao entre psicología e fenomenología inspirou, com efeito, estudiosos belgas e holandeses nos anos precedentes á II Guerra Mundial, justamente enquanto o panorama filosófico europeu parecía dominado pelo neo-tomismo por um lado e pelo neo-kantismo pelo outro. A isso se acrescentou o específico interesse suscitado pelas pesquisas husserlianas sobre geometría e lógica. Gragas a J. Lameere, professor na Université libre de Bruxelles, em 1939 a recém-nascida Revue Internationale de Philosophie publicou, em seu segundo número, A origem da geometría de Husserl juntamente a contribuigoes de eminentes estudiosos como os já mencionados Fink e Landgrebe. No mesmo ano, o primeiro número de Tijdschrift voor Filosofie publicava "A Draft of a Preface to the Logical Investigations", que possibilitou a difusao, compreensao e desenvolvimento do pensamento de Husserl desde o inicio até Idéias I. Situagao esta muito propicia, entao, para a fundagao do Arquivo Husserl de Lovaina em 1939. A partir de 1950 o editor holandés Martinus Nijhoff publicou as obras do pai da fenomenología na Husserliana, e a Colegao Phaenomenologica ofereceu urna excelente panorámica das aplicagoes e do desenvolvimento ulterior dessa filosofía e de seu método. Mas a historia das relagoes entre a escola fenomenológica e as abordagens filosóficas nos Países Baixos nao ficou limitada aos anos ¡mediatamente anteriores á II Guerra Mundial. Gragas ás suas múltiplas possibilidades de aplicagáo, a filosofía fenomenológica teve um papel significativo em diversas áreas do saber e da pesquisa científica: ciencias humanas e/ou humanísticas como a psicología, a antropología, a pedagogía, a lingüística, encontraram intelectualmente a abordagem fundamental da fenomenología através de seus primeiros movimentos oriundos da Franga. O existencialismo de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Gabriel Marcel, Emmanuel Lévinas e sobretudo a postura fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty, determinaram a cena filosófica na Holanda e na Fiandra, catalisando o interesse sobre temas antropológicos e filosóficos. Emergem, entao, os nomes de Reinout Bakker (1964, 1965), docente de antropología filosófica na Universidade de Groningen; Cornelius A. van Peursen (1956), professor ñas Universidades de Leiden e de Amsterda que estudou particularmente a relagao mente-corpo confrontando-a com a egologia cartesiana e com os desenvolvimentos da filosofía da linguagem comum de Ludwig Wittgenstein, John Austin e Gilbert Ryle - de fato, a obra principal de van Peursen investiga o vínculo copro-alma-espírito, inspirando-se em Merleau-Ponty, critica duramente o solipsismo do sujeito cartesiano e exprime-se em favor de urna visao intersubjetiva -; e, finalmente, Theo de Boer, docente de Antropología Filosófica na Universidade de Amsterda desde 1968, conhecido por ter focalizado a questao metodológica, por ter langado as bases para a fundamentagao de urna psicología crítica e por diversos estudos fenomenológicos específicos (de Boer, 1980, 1989). Dezessete anos depois da redagao desse projeto ele publicou um ensaio em que modificava inteiramente sua perspectiva original, mais aberto ao diálogo com a psicología fenomenológica defendida por Jan Linschoten e com a hipótese interpretativa (de Boer, 1997; Linschoten, 1959, 1964). O estudo de Linschoten sobre William James lángara as bases do intento programático da chamada Escola de Utrecht, e de Boer, com seu livro de 1997, negava que a psicología fosse urna ciencia empírica, avahando seu estatuto hermenéutico. Sua antropología filosófica é dialógica e enfatiza a Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.htm Manganaro, P. (2004). Desenvolvimentos da fenomenología nos Países Baixos. Memorándum, 7, \2 8-17. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.ritm intencionalidade do ser humano, sua unicidade, sua autenticidade; a este respeito, a psicología fenomenológica é explicagao científica das estruturas intencionáis da pessoa humana existencialmente situada. Obviamente, a interpretagao é sempre parcial, incompleta, passível de erro; mas exige orientagao eficaz para as questoes da diferenga e da unicidade, além de um olhar perspicaz sobre o que é e permanece contingente, nao previsível, na psicología do ser humano. 2. A Escola de Utrecht A Escola de Utrecht pode ser legitimamente considerada a original e mais proficua contribuigao holandesa ao debate internacional sobre a fenomenología. Trata-se de urna agregagao bastante variada de psicólogos, psiquiatras, pedagogos, educadores, pediatras, sociólogos, criminologistas, médicos e académicos, todos orientados fenomenologicamente. O inicio oficial da Escola deu-se em 1949, por mérito de Martinus J. Langeveld (1958) que naquela ocasiao convidara Frederik JJ. Buytendijk (1918, 1920) para a Universidade de Utrecht. Ao término da II Gera Mundial o impulso intelectual estava fortemente centrado sobre a pesquisa pedagógica: a sociedade holandesa, de fato, estava preocupada com o futuro de seus jovens após os horrores e tragedias da guerra; assim, o humanismo e o personalismo tornaram-se os conceitos-chave utilizados por intelectuais, sociólogos e membros da Escola de Utrecht. Neste sentido, Henricus C. Rümke (1923, 1952, 1954, 1960, 1967)pode ser considerado o pioneiro entre eles: psiquiatra de orientagao fenomenológica, nos anos 1928-1933 ministrou cursos e conferencias na Universidade de Amsterda e depois consolidou a carreira académica de trinta anos na Universidade de Utrecht (1933-1963). Inicialmente foi professor de psicología, mas a partir de 1936 ocupou a cátedra de psiquiatría. A psiquiatría de Rümke era, na realidade, mais próxima da literatura do que da postura rigorosamente científica médica: utilizando a nogao de "intuigao empática" de Karl Jaspers, ele continuamente completava a dissertagao Phaenomenologie en Klinisch Psychiatrische Studie over het Geluksgevole ("Estudos fenomenológicos e psiquiátricos sobre sentimento de felicidade") de 1923. Sua interpretagao da doenga e da saúde é fortemente inspirada na antropología crista humanista, que enfatiza a importancia da autenticidade, do sentido, da veracidade. Segundo Rümke, a condigao que determina o estado de saúde está em estreita relagao com a capacidade de integragao da pessoa, em urna sociedade que permanece fortemente desagregada e desagregante; contrario ao isolamento do paciente, ele se pronuncia a favor de sua reintegragao na vida civil e social. A propósito da abordagem literaria da Escola de Utrecht, Jan Linschoten sublinha que nao se trata de um mero uso sugestivo e retórico da linguagem, mas de urna abordagem sistemática e metódica do mundo-da-vida: se urna descrigao vivaz, vital, participada, tem a fungao de tornar próxima a realidade descrita, entao o material literario pode ser utilizado como um verdadeiro recurso, como urna preciosa fonte de conhecimento. Segundo Linschoten, todavía, a fenomenología comega onde a novela, o contó e/ou o romance terminam: a clarificagao fenomenológica é urna disciplina filosófica que estuda a esfera pré-reflexiva do mundo-da-vida mas "psicología" é também a disciplina científica que focaliza os fenómenos psicológicos usando métodos quantitativos, experimentáis. Como se vé, nesta área de pesquisa a abordagem fenomenológica nunca cindiu completamente do método empírico ou experimental. A carreira académica do já citado psicólogo Frederik JJ. Buytendjk foi anómala: ele nunca estudou de modo específico aquela disciplina. Completados os estudos de medicina em 1909, dez anos mais tarde foi o promotor de algumas pesquisas sobre comportamento e hábitos de animáis; surpreendentemente, em 1946 obteve a cátedra de psicología teorética na Universidade de Utrecht, onde a partir de 1957 permaneceu como professo emérito. Buytendijk divergía profundamente de Rümke quanto ao ponto de partida da reflexao: nao o doente e sua doenga, mas a pessoa Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.htm Manganaro, P. (2004). Desenvolvimentos da fenomenologia nos Países Baixos. Memorándum, 7, 13 8-17. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.ritm sadia e sua condigao de saúde. Raramente ele se preocupou em fixar por escrito o método de sua pesquisa: a única interessante discussao metodológica encontra-se em Psychologie van der Román (traduzido para o inglés como "Psychology of the Novel", em 1962) em que argumenta que é possível compreender somente aquilo do qual se tem verdadeiro cuidado. Analisando reflexivamente os romances de Dostoevskij, ele fala de "objetividade do amor" e mostra como a literatura pode suscitar relevantes insights para o trabalho de exploragao psicológica. Em seu texto Husserl's Phenomenology and its significance for contemporary psychology (1967) Buytendijk ilustra como o método fenomenológico pode ser aplicado aqueles modelos de existencia que pertencem á praxis do mundo-da-vida: este texto oferece o fundamento para o intento programático da Escola de Utrecht, ainda que diversos e numerosos exemplos de aplicagao do método fenomenológico á psicología e as suas técnicas encontrem-se mais adequadamente compendiados no livro Phenomenological psychology: the Dutch School de Joseph Kockelmans (1987). Também o programa fenomenológico de Buytendijk requer que o conhecimento da existencia humana seja baseado na observagao das situagoes e dos acontecimentos da vida quotidiana, e entao nunca desligado do aspecto específicamente empírico, além de interpretativo. Em geral, muitos intelectuais e estudiosos consideram que os membros da Escola de Urecht tenham sido bons psicólogos mas péssimos filósofos. Segundo Boer, eles pretenderam fundar urna especie de fenomenologia empírica como ciencia rigorosa mas nao tiveram éxito. É digna de nota a feroz crítica do mundo feminino e feminista ao estudo do universo da mulher. (Buytendijk. 1951) Willem J. Pompe (1946, 1968) foi docente de criminología na Universidade de Nijmegen de 1923 a 1928 e na Universidade de Utrecht entre 1928 e 1968. Na sua proposta interpretativa global, a antropología filosófica de base fenomenológica obteve um lugar de destaque: tanto o sistema judiciário moderno - que trata o criminoso como um ser inferior - quanto o sistema judiciário antigo - que o considera responsável de suas agoes assim como os outros seres humanos colocam ¡numeras e complexas interrogagoes; segundo Pompe, o criminoso, considerado como ser autónomo, deve ser inserido na ordem ética vigente na sociedade: eis porque a reconciliagao, a recompensa, a pena, a reparagao, a vinganga e o castigo sao temas que ele indaga minuciosamente. Entre os criminologistas filiados á Escola de Utrecht sao dignos de mengao os nomes de G. Th. Kempe, P.A.H. Baan, J.C. Hudig, R. Rijksen e G.P. Hoefnagels. Quase todos os textos programáticos da Escola foram publicados em colegoes (van den Berb & Linschoten, 1953; van den Berg, 1954) (5), reunindo importantes artigos, ensaios e contribuigoes. Jan Hendrik van den Berg (1946, 1955, 1961, 1964, 1974) completou seu doutorado em 1946 sob orientagao de Rümke, com urna pesquisa sobre a psicose esquizofrénica. Ele estudou na Franga e na Suíga e em 1951 ocupou a cátedra de psicología pastoral da Universidade de Utrecht. Seus textos, traduzidos em diversas línguas, sao urna contribuigao determinante para a formagao intelectual da Escola. Ele propoe o programa de urna psicología existencial ou fenomenológica como urna psicología totalmente nova, com ampias potencialidades, e explica como ela recusa tanto o método da introspecgao quanto a postura reificante: o primeiro porque remete á recusa de estudar o outro estudando si mesmo; a segunda, porque exprime a postura objetivante típica da psicología empírico-naturalista. A psicología fenomenológica ou existencial se ocupa de urna verdadeira experiencia e de urna ¡mediata exploragao da relagao do ser humano com o próprio mundo, fazendo referencia aos eventos ordinarios, quotidianos, da vida. Van den Berg argumenta que o auténtico projeto de urna psicología fenomenológica deve ser contextualizado tendo em consideragao limites da linguagem, do mundo da cultura, dos valores, do espago e do tempo: ele, de fato, nao visa urna abordagem universalmente válida dos fenómenos inerentes do ser humano; sempre consciente de sues limites, ou seja, do fato que seu ponto de Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.htm Manganaro, P. (2004). Desenvolvimentos da fenomenología nos Países Baixos. Memorándum, 7, 14 8-17. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.ritm partida é sempre antropológico, finito, passível de erro e de mudanga. Nessa perspectiva, é fútil falar de urna universal fenomenología da percepgáo, já que seres humanos pertencentes a diversas culturas "véem" diferentemente, "falam" diferentemente, "sentem" diferentemente, e também seus filhos perceberao e verao o mundo sempre e somente no contexto de sua pertenga cultural, lingüística etc. A difusao da psiquiatría antropo-fenomenológica e da análise existencial aprofundou questoes anteriormente deixadas á objetivagáo reificante e, seja como for, nao oportunamente analisadas, quais a atribuigáo de sentido, a corporeidade, o tempo e o espago vividos: os psiquiatras holandeses van den Berg, van den Hoerst e van Hugenholtz mostraram-se particularmente atentos a esse tipo de temática (cf. Langeveld, 1958). Van den Berg é conhecido sobretudo pelo desenvolvimento e aplicagao da abordagem histórico-fenomenológica, que ele denomina metabletical method. Trata-se de um método que aborda seu objeto de pesquisa nao de modo diacrónico - como desenvolvimento dinámico - mas sincrónicamente, ou seja, desde a interior constituigáo de relagoes significativas em diversos acontecimentos da vida no mesmo período de tempo; e mostra como o sentido da própria identidade seja constantemente fragmentado, dividido e determinado por aquilo que provém do exterior. Van den Berg (1989) continuou a realizar estudos fenomenológicos também no campo da criminología. O declínio da Escola de Utrecht foi provocado de fora, com a publicagáo do ensaio de Adriaan D. de Groot intitulado Methodology (1961) de postura empíricoanalítica. O autor tomava distancias da orientagáo fenomenológica, julgando-a nao científica e excessivamente centrada sobre o sujeito: á fenomenología vinha designado um papel menor, secundario, com relagáo á fase empírica da pesquisa, considerada mais concreta, eficaz, "real". A influencia desse texto levou ao afastamento das posigoes humanistas ñas chamadas ciencias do espirito e abriu as portas á crescente influencia do behaviorismo americano na Holanda. A isto se acrescente que a postura fenomenológica sofreu ataques das teorías críticas marxistas oriundas da Alemanha e do pós-estruturalismo francés. A psicología foi perdendo seus fundamentos fenomenológicos na Holanda; mas nao pode dizer o mesmo para outras disciplinas como a pedagogía e a filosofía da educagáo: a Escola de Utrecht continuou a aplicar o método fenomenológico ñas ciencias pedagógicas, e permaneceu particularmente sensível aos temas da subjetividade e da intersubjetividade, á questáo da relagáo entre linguagem, experiencia e comportamento, e á dimensáo textual dos escritos fenomenológicos, conservando o impulso auténticamente humanista também ñas ciencias que se ocupam da saúde do individuo. Referencias bibliográficas Bakker, R. (1964). De geschiedenis van het fenomenologisch denken. 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(2004). Desenvolvimentos da fenomenología nos Países Baixos. Memorándum, 7, \j 8-17. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.ritm Vergote, A. (1974). Interpretation du langage religieux. Paris: Seuil. Vergote, A. (1983). Religión, foi, incroyance: étude pyichologique. Bruxelles: Mardaga. Vergote, A. (1996). Psychologie religieuse. Bruxelles: Charles Dessart. Notas (1) Tradugao de Miguel Mahfoud do original em italiano. (2) A obra Het zielbegrip in de metaphysische en in de empirische psychologie de Strasser (1950) tem tradugao em língua inglesa de 1957: The Soul in Metaphysical and Empirical Psychologiy. Pittsburgh: Duquesne University Press. Sua obra Fenomenologie en empirische menskunde. Bijdrage tot een nieuw ideaal van wetenschappelijkheid de 1962 tem tradugao em língua inglesa de 1963: Phenomenology and the Human Sciences, Pittsburgh: Duquesne University Press. (3) Sua obra La psychose (de Waelhens, 1972) tem tradugao em língua inglesa de 1978: Schizophrenia: a philosophical reflection on Lacan's structuralist interpretation (W. ver Eecke, Trad., Introd., Notes and Bibliog.). Pittsburgh: Duquesne University Press. (4) Urna historia daquela Fundagao pode ser consultada no arigo de A. Giorgi "The origins of the Journal of Phenomenological Psychology and some difficulties in introducing phenomenology into scientific psychology", publicado no Journal of Phenomenological Psychology n.29, volume 2, de 1998. (5) O livro "Persoon en werelld. Bijdragen tot de phaenomenologische psychologie" editado por van den Berg & Linschoten em 1953 tem tradugao para a língua inglesa no mesmo ano com o título "Person and World: contributions to a Phenomenological Psychology" da mesma editora Erven J. Bijleveld da cidade de Utrecht. Nota sobre a autora Patrizia Manganaro é doutora em filosofía, professora de filosofía da linguagem na Pontificia Universirtá Lateranense, Roma, Italia. Contato: [email protected] Data de recebimento: 26/08/2004 Data de aceite: 13/10/2004 Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.htm Epelboin, S. (2004). Memoria individual e memoria social / coletiva: considerares á luz da 18 psicología social. Memorándum, 7, 18-31. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.ritm Memoria individual e memoria social / coletiva: consideracóes á luz da psicología social Individual Memory and Social / Collective Memory: considerations in the light of Social Psychology Solange Epelboim Universidade Estácio de Sá Universidade Católica de Petrópolis Brasil Resumo O artigo visa reunir comentarios sobre a memoria, de modo a contemplar discussoes que se desenrolam nesta esfera. Embora diferentes caracterizagoes sejam indicadas em debates específicos, supoe-se que estes fatores contrastantes apenas reeditem antigás dicotomías. Deste modo, serao apresentadas a seguir consideragoes acerca da memoria enquanto processo básico individual e, depois, enquanto processo de construgao social. Esta distingao parece apontar para necessidade de se retomar o debate sobre memoria episódica e memoria autobiográfica ou cotidiana. Acredita-se que, no que tange á Psicología Social, a questao ora tratada também implique em que sejam estabelecidas diferengas entre as vertentes psicológica e sociológica. O artigo, ao apresentar urna postura mais inclusiva na reflexao sobre posigoes contrastantes, ao enfatizar encontros e diálogos entre diferentes propostas, defende que nao há, necessariamente, apenas urna perspectiva correta, mas diferentes formas de se compreender um mesmo problema. Palavras-Chave: memoria individual; memoria social; memoria coletiva. Abstract This article brings together commentaries concerning memory. Although different characterizations emerge in specific debates, these contrasting factors replay oíd dichotomies. This article will present considerations concerning memory as seen from the point of view of it being a basic, individual process and a process of social construction. This distinction points to the necessity of taking up the debate concerning episodic memory and autobiographical or daily memory. In terms of Social Psychology, it is believed that the above mentioned question also requires that differences between the psychological and sociological perspectives within Social Psychology be established. Since this article defends the adoption of greater integration whilst analyzing contrasting positions, and this can be done by building up a dialogue between the different proposals, it intends to confirm that there is not, necessarily, a single correct perspective, but, rather, different forms of searching foran understanding of the same problem. Keywords: individual memory; social memory; collective memory. Introducao O artigo pretende examinar distingoes que podem ser estabelecidas entre a memoria individual, compreendida enquanto processo psicológico básico, e a memoria social / coletiva, entendida enquanto processo de construgao grupal. Entretanto, faz-se necessário esclarecer que a referida análise nao tem a pretensao de fornecer informagoes exaustivas acerca de tema tao extenso e complexo. Deste Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.htm Epelboin, S. (2004). Memoria individual e memoria social / coletiva: considerares á luz da 19 psicología social. Memorándum, 7, 18-31. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.ritm modo, optou-se pela apresentagao de comentarios, ainda que introdutórios, a fim de contribuir para o desenvolvimento de futuras investigagoes. Com intuito de proporcionar maior compreensao acerca do exame de processos mnemónicos, foram inicialmente expostos comentarios sobre a memoria episódica e a memoria cotidiana. Em um segundo momento, foram apresentadas consideragao acerca das orientagoes psicológica e sociológica em Psicología Social. Por fim, foram examinadas as formas de compreensao da memoria, as quais concedem destaque, respectivamente, a fatores individuáis e coletivos. Cabe explicar que a escolha deste percurso, no que tange ao estudo da memoria, permite a inclusao de antigás questoes preponderantes na Psicología. Deste modo, supoe-se que a distingao entre métodos experimentáis de laboratorio e métodos ecológicos, permita a recuperagao tanto de discussoes sobre procedimentos metodológicos, discussoes desenvolvidas no campo da Psicología, como também, no que se refere á área específica da Psicología Social, do debate entre o caráter básico ou aplicado da mesma. Ainda no que tange á esfera da Psicología Social, acredita-se que a condigao ácima mencionada tenha oferecido subsidios para o gradativo delineamento das orientagoes psicológica e sociológica. Supoe-se que a configuragao destes dominios particulares esteja contribuindo para a compreensao de processos psicológicos, quer vinculados á esfera individual, quer coletiva, através de posigoes extremas e confutantes. Assim, pretende-se estimular a aproximagao entre estes posicionamentos, aproximagao que assuma compromisso com o respeito e a manutengao das diferengas, e nao com o esgotar das mesmas. Conforme mencionaram Neufeld e Stein (2001), houve a tentativa de se entender a memoria, enquanto processo individual, a partir de diferentes perspectivas teóricas. Entre tais posigoes, poder-se-ia citar os modelos espacial, baseado na Teoria dos Esquemas, dos dois processos de recuperagao, da especificidade de codificagao, de reconhecimento e do trago difuso. Entretanto, faz-se necessário esclarecer que a memoria individual foi entendida através do modelo espacial. Davidoff (2001), ao conceder destaque ao modelo espacial, afirmou que sistemas de memoria envolveriam tres procedimentos: reter e codificar, armazenar e recuperar. A retengao implicaria em que todo conteúdo percebido, antes de ser armazenado, devesse primeiro passar pelo processo de codificagao, onde as informagoes seriam preparadas para a estocagem. Durante esse processo poderia haver a tradugao dos conteúdos de urna forma para outra, isto é, em imagens, sons ou idéias que tivessem significado. Após a codificagao da experiencia, a mesma poderia ser armazenada. Entretanto, a autora advertiu que a memoria nao seria equivalente a um chip de computador onde os itens de informagao seriam empuñados automáticamente, á espera do momento em que fossem requisitados. Ao contrario, o depósito parecía revelar um sistema complexo e dinámico que mudava com a experiencia. Por fim, a recuperagao compreenderia a busca e resgate de informagoes estocadas. Ainda no que tange ao armazenamento, Davidoff (2001) comentou que tres tipos de estruturas possibilitariam tal fungao - a memoria sensorial, de curto prazo e de longo prazo. Deste modo, quando a informagao chegasse aos órgaos dos sentidos, a mesma seria retida momentáneamente. Os conteúdos retidos pela memoria sensorial seriam como imagens persistentes e, em geral, desapareceriam em menos de um segundo, a nao ser que fossem transferidos ¡mediatamente para um segundo sistema de memoria, a memoria de curto prazo. Esta seria caracterizada como o centro da consciéncia, como capaz de conter tudo aquilo que sabemos pensamentos, informagoes, experiencias, entre outros fatores. O depósito da memoria de curto prazo abrigaría urna quantidade de dados por tempo limitado (mais ou menos 15 minutos), o qual poderia ser ampliado através da repetigao. Além da fungao de armazenamento, a memoria de curto prazo desempenharia fungoes como um executivo central, inserindo e recuperando conteúdos de um terceiro sistema mais ou menos permanente, a memoria de longo prazo. Para a informagao passar do depósito da memoria de curto prazo para a memoria de longo Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.htm Epelboin, S. (2004). Memoria individual e memoria social / coletiva: considerares á luz da 20 psicología social. Memorándum, 7, 18-31. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.ritm prazo nao bastariam repetigoes, pois seria necessário um tratamento mais profundo, o qual envolvesse maior atengao, reflexao quanto aos significados e aproveitamento dos itens que já se encontravam na memoria de longo prazo, por parte de quem memorizasse. Embora o processamento profundo fosse urna forma de recuperar algo da memoria, a repetigao simples e desatenta poderia ser suficiente para transferir informagoes para o depósito de longo prazo. Embora seja possível classificar a memoria através destas tres estruturas, é oportuno salientar a conexao entre as mesmas. De acordó com Gardner (1996), Ebbinghaus proporcionou avangos á Psicología ao investigar principios da memoria a partir do uso de sílabas sem sentido. Entretanto, Gardner (1996) apontou que o destaque a processos individuáis de memoria e a materiais sem conteúdo significativo trouxe também serias limitagoes ao referido campo. Esta crítica pode ser melhor compreendida ao situarmos a mesma nos debates entre memoria episódica e memoria diaria, isto é, entre investigagoes que concedem relevo a pesquisas experimentáis realizadas em situagoes artificiáis de laboratorio, e procedimentos nao experimentáis que visam ao exame de experiencias de memoria localizadas em contextos reais de vida. A referida discussao será representada no presente artigo através da exposigao das idéias defendidas por Banaji e Crowder (1989), acerca da falencia do conceito de memoria cotidiana, e das reagoes manifestadas por diferentes pesquisadores frente a tal afirmagao (Aanstoos, 1991; Banaji & Crowder, 1991; Bruce, 1991; Ceci & Bronfenbrenner, 1991; Conway, 1991; Gruneberg, Morris & Sykes, 1991; Klatzky, 1991; Morton, 1991; Roediger, 1991 e Tulving, 1991). Apesar da gradativa inclusao de questoes referentes ao contexto, as discussoes estabelecidas ao longo dos artigos nao parecem ter contemplado a compreensao da memoria enquanto processo de construgao coletiva. Acredita-se que seja possível o entrelagamento entre as oposigoes ora propostas, o que nao significa a anulagao de heterogeneidades, urna vez que a referida articulagao visa á instauragao de diálogo intra e interpessoal, intra e intergrupal. Consideracoes acerca da Memoria Episódica e da Memoria Cotidiana Com base ñas discussoes elaboradas no campo da Psicología, Banaji e Crowder (1989) estabeleceram diferengas entre o estudo da memoria a partir da perspectiva laboratorial e da perspectiva ecológica. Deste modo, os autores caracterizaram o primeiro enfoque como mais relacionado com procedimentos experimentáis (voltados para observagao de validade interna e externa de teorías), e com a descoberta de conclusoes passíveis de generalizagao. A abordagem ecológica, por sua vez, foi apontada como capaz de compreender contextos naturais em suas pesquisas e como atenta á aplicabilidade dos resultados alcangados. Entretanto, os autores apresentaram críticas frente a perspectiva ecológica, urna vez que concederam destaque á generalizagao dos resultados de pesquisa; discordaram da aplicagao da terminología autobiográfica, pois os participantes de investigagoes experimentáis também recorreriam as suas historias pessoais para completarem as tarefas propostas; comentaram a nao exposigao de procedimentos e resultados inéditos, entre outros fatores. Embora os autores nao tenham identificado o procedimento experimental como único modelo científico a ser seguido, os mesmos indicaram tal recurso como sendo o mais adequado para realizagao de investigagoes, urna vez que garantiría controle das variáveis extrínsecas e generalizagao de resultados. Por fim, Banaji e Crowder (1989) comentaram que a oposigao entre memoria episódica e memoria cotidiana nao revelava urna nova discussao na esfera da Psicología Social, pois parecía retomar a crise que marcou esta área na década de 70, ou seja, o debate entre o caráter básico ou aplicado desta disciplina. Conway (1991) considerou as críticas elaboradas por Banaji e Crowder (1989) exageradas e propós que avangos acerca do estudo da memoria humana devessem buscar a integragao e nao exclusao de distintas tradigoes de pesquisa. Conway Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.htm Epelboin, S. (2004). Memoria individual e memoria social / coletiva: consideragoes á luz da 21 psicología social. Memorándum, 7, 18-31. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.ritm (1991), entao, defendeu que as investigagoes relativas á memoria episódica e cotidiana, embora diferentes, fossem respeitadas enquanto esforgos válidos e significativos para promogao de conhecimento. Quanto á crítica frente á denominagao memoria cotidiana ou autobiográfica, o autor afirmou que, enquanto esta envolvía a análise de eventos com sentido para os participantes da pesquisa, assim como conhecimento previo e expectativas destes, a memoria episódica delimitava a área de exame de questoes sem sentido a serem memorizadas pelos sujeitos, exame realizado em situagoes artificiáis de laboratorio que visavam ao controle de variáveis extrínsecas e á possibilidade de generalizagao dos resultados encontrados. O autor salientou que a principal distingao entre tais empreendimentos consistía, respectivamente, na inclusao ou exclusao de conhecimento previo e sentido pessoal, por parte do individuo investigado, no que tange á tarefa de memorizagao. Conway (1991) ainda respondeu as acusagoes de nao realizagao de pesquisas relevantes e de obtengao de conclusoes consensuáis por pesquisadores da memoria autobiográfica. Quanto ao último ponto, argumentou que trabalhos sobre recenticidade também revelavam a falta de concordancia entre investigadores da memoria episódica, pois enquanto alguns afirmavam que materiais recentemente percebidos eram lembrados mais fácilmente que fatores apresentados há mais tempo (efeito de recenticidade), outros aboliram tal preceito em fungao da nao ocorréncia do mesmo, quando houve introdugao de outra atividade entre o momento de exposigao e memorizagao. No que se refere á elaboragao de projetos importantes, o autor destacou pesquisas acerca dos efeitos de longo prazo da recenticidade; do papel da recenticidade na conscientizagao e organizagao dos homens no plano temporal e espacial; da confirmagao dos resultados laboratoriais sobre a relagao inversa estabelecida entre intervalo de tempo de retengao da informagao e a recuperagao da mesma; da nao comprovagao da dificuldade de recuperagao mnemónica nos cinco primeiros anos de vida (amnesia infantil); da lembranga de memorias autobiográficas importantes por parte de pessoas mais velhas, o que nao confirmou a teoría da retengao; de consideragoes que revelaram que dos 6 aos 40 anos a capacidade de retengao se mostrava estável e nao em gradativo declínio. Por fim, Conway (1991) esclareceu que pesquisadores da memoria cotidiana avaliavam contribuigoes e limitagoes das consideragoes sobre memoria episódica, o que demonstraría a possibilidade de se estabelecer diálogo e respeito entre defensores de posigoes diferentes. Morton (1991) também concordou com esta aproximagao, afirmando que construgoes teóricas pertinentes poderiam ser oriundas de situagoes artificiáis de laboratorio, como de situagoes reais de vida. Entretanto, propós que o criterio de generalizagao dos dados fosse cuidadosamente analisado, a fim de verificar se este procedimento alcangaria contextos que nao os envolvidos na esfera laboratorial. Ceci e Bronfenbrenner (1991) refutaram as acusagoes feitas frente á memoria cotidiana mediante quatro justificativas. Em um primeiro momento discordaram da equivalencia proposta entre o funcionamento mental humano e processos químicos, pois entendiam o ser humano como ativo, agente, capaz nao somente de se adaptar ao contexto, mas de criá-lo e transformá-lo. Logo, defenderam que investigagoes em situagoes reais nao consistiriam na reaplicagao de pesquisas laboratoriais em ambientes nao artificiáis, mas em alternativas que visariam á complementagao ou mudanga das mesmas. Em um segundo momento, negaram a concepgao estreita que definía empreendimentos científicos como procedimentos experimentáis controlados realizados em laboratorios. Em urna terceira etapa, argumentaram que novas descobertas foram encontradas em dois estudos de campo por eles conduzidos anteriormente. Com relagao aos estudos, Ceci e Bronfenbrenner (1991) descreveram investigagao na qual changas eram convidadas a assar um bolo ou recarregar a batería de urna motocicleta durante trinta minutos. Entretanto, durante este período, as mesmas poderiam brincar com videogame. As criangas foram divididas em tres grupos, de Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.htm Epelboin, S. (2004). Memoria individual e memoria social / coletiva: considerares á luz da 22 psicología social. Memorándum, 7, 18-31. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.ritm modo que um conjunto era observado em laboratorio, o outro na própria casa do participante, e o último grupo em urna cozinha existente em urna universidade, sendo que a freqüéncia e forma das changas checarem o tempo em um relógio eram analisadas. Os resultados revelaram que, em situagoes de laboratorio, tal freqüéncia era 30% maior que em casa. Notaram ainda que em casa os participantes olhavam mais para o relógio durante os dez minutos iniciáis, procura que entao era reduzida até os cinco minutos fináis, quando também ocorria aumento de freqüéncia. As conclusoes apontaram para a criagao de um relógio interno, ou seja, as changas verificavam nos dez minutos iniciáis se conseguiam estimar o tempo subjetivamente com exatidao, de modo a checarem suas estimativas e o tempo real marcado pelo relógio. Ao ajustaren) os dois relógios, demonstravam maior disponibilidade para execugao de urna segunda tarefa, disponibilidade que era restringida nos cinco minutos fináis, quando exibiam procedimentos mais conscientes e freqüentes de controle de tempo. No que tange ao segundo estudo, os referidos autores desenvolveram urna pesquisa em situagao nao experimental, onde repetiram as tarefas propostas, mas os relógios fornecidos eram mais adiantados ou atrasados que a mensuragao real do tempo. Mais urna vez as criangas demonstraram ajuste ao tempo sugerido. Deste modo, Ceci e Bronfenbrenner (1991) defenderam a importancia de estudos experimentáis e nao experimentáis, advertindo inclusive que tais esforgos nao deveriam ser confinados em oposigoes como grande ou pequeño poder de generalizagao, dominios uniformes ou contextos diferenciados, pesquisa explicativa ou exploratoria, procedimento controlado ou nao, e metodología científica ou nao. Por fim, os autores questionaram a busca de invaháncia como sinónimo de rigor científico e concederam énfase ao desenrolar de estudos referentes á memoria autobiográfica e também á episódica. Retomando a proposta apresentada por Banaji e Crowder (1989), cabe mencionar que Klatzky (1991) concordou com a distingao estabelecida entre as análises de memoria episódica e da memoria comum, em fungao da existencia de diferentes niveis de controle aplicados as variaveis extrínsecas. A autora afirmou ainda que o exame da memoria autobiográfica, ao incluir dados que nao poderiam ser encontrados em situagoes artificiáis de laboratorio, se mostrava significativo. Com o propósito de oferecer maior clarificagao conceitual, Klatzky (1991) rejeitou a definigao da memoria comum enquanto pesquisa aplicada contendo material significativo, realizada apenas fora do laboratorio e com quaisquer pessoas. Isto porque, comentou que trabalhos acerca da memoria episódica também revelavam aplicagoes, uso de material com sentido e participagao de amostra nao composta por estudantes de graduagao. Deste modo, explicou que análises em laboratorio poderiam investigar questoes cotidianas envolvidas na capacidade mnemónica. Assim, forneceu urna definigao que contemplava a consideragao de fenómenos relevantes á vida diaria; o uso de materiais que exibiam sentido previo para os sujeitos; utilizagao de materiais oferecidos pelas historias pessoais dos integrantes da amostra; local familiar á amostra para realizagao da pesquisa; e participagao de quaisquer individuos nos trabalhos. Quanto ao nivel de controle das variaveis extrínsecas, Klatzky (1991) argumentou que, em determinadas análises, a emergencia de novas conclusoes em situagoes nao experimentáis compensou o menor grau de controle. Entretanto, advertiu que este comentario nao buscava conceder énfase á pesquisa em contextos reais em detrimento do exame em laboratorio, mas visava ao questionamento sobre pontos de maior aproximagao e afastamento entre tais empreendimentos. Bruce (1991) discordou das críticas negativas, elaboradas por Banaji e Crowder (1989), acerca da memoria comum, as quais se pautavam em nao cientificidade, nao generalizagao dos resultados, entre outros pontos já mencionados. Porém, o autor recorreu a novos argumentos para defender tal campo de investigagao, argumentos que foram expostos através do contraste entre explicagoes sobre os mecanismos e sobre o funcionamento da memoria. Enquanto a memoria episódica Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.htm Epelboin, S. (2004). Memoria individual e memoria social / coletiva: considerares á luz da 23 psicología social. Memorándum, 7, 18-31. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.ritm estaría mais próxima do primeiro plano, a memoria autobiográfica, ao contemplar situagoes reais de vida, idiossincrasias e variabilidade, implicaría na abordagem funcional. Neisser (1991), por sua vez, justificou sua contraposigao ao artigo de Banaji e Crowder (1989) a partir da exposigao de quatro trabalhos que ofereceram conclusoes inéditas, conclusoes elaboradas em investigagoes acerca da memoria comum. Deste modo, concedeu destaque as investigagoes acerca da lembranga de características pessoais valorizadas no presente pelos individuos, e a manutengao ou modificagao destes fatores ao longo do tempo. Caso houvesse manutengao, a lembranga da característica no passado viria em fungao de sua percepgao no momento atual. No caso de mudanga, a lembranga do fator no passado viria antes da indicagao da característica no presente, o que possibilitaria urna maior compreensao quanto ao contraste entre estabilidade e transformagao da questao. O segundo trabalho comentado foi relativo á memoria de changas pequeñas sobre a rotina familiar e episodios específicos, lembranga que era narrada com maior riqueza de detalhes em fungao do desenvolvimento e orientagao dos pais quanto ao uso social da memoria. A análise do esquecimento, após longo período de apresentagao do material a ser retido, foi também apontada. Deste modo, foram observados sujeitos que estudaram espanhol havia muito tempo. As conclusoes indicaram que, decorridos aproximadamente cinco anos da exposigao do material a ser percebido, a proporgao de esquecimento caía automáticamente, de forma a garantir urna performance estável ao longo de mais ou menos vinte e cinco anos. O trabalho acerca de flashbulb memories foi citado, sendo que estas nao seriam estudadas fácilmente sob condigoes artificiáis de laboratorio, já que tais lembrangas eram referentes a episodios marcantes, e revelavam forte carga emocional, longo período de retengao e recuperagao vivida, mas repleta de dados incorretos. Neisser (1991), entao, comentou que tanto a abordagem ecológica, como a tradicional, poderiam proporcionar avangos ao campo da memoria. Bahrick (1991) deu continuidade á defesa da abordagem ecológica, afirmando que existiriam questoes que fugiriam ao rigoroso enquadramento experimental, mas poderiam ser acolhidas por métodos nao experimentáis de investigagao. Entretanto, o autor advertiu que tal condigao nao implicaria na prevaléncia de urna proposta sobre a outra, mas demonstrava a possibilidade de avangos na área da memoria humana a partir de diferentes enfoques. Aanstoos (1991) corroborou tal posicionamento ao salientar que, apesar dos problemas relativos á validade, generalizagao, objetividade e confiabilidade de procedimentos e resultados, a abordagem ecológica representaría um rico campo de discussao na Psicología, urna vez que revelaría o esforgo de compreender questoes mais próximas do real e, consequentemente, menos restritas a condigoes artificiáis. Neste sentido, Gruneberg, Morris e Sykes (1991) identificaram o artigo publicado por Banaji e Crowder (1989) como um prejuízo aos esforgos teóricos e práticos existentes na área. Isto porque, o referido artigo propunha a cisao entre investigagoes experimentáis e nao experimentáis, de modo a desconsiderar a conexao que parece mover a ciencia - a articulagao entre questoes do mundo real e do mundo artificial e especializado do laboratorio. Gruneberg, Morris e Sykes (1991) discordaram também da caracterizagao das análises sobre memoria autobiográfica como pesquisas aplicadas, como da acusagao de falta de contribuigoes relevantes. Frente ao primeiro ponto, argumentaram que tanto metodologías experimentáis, como nao experimentáis, poderiam visar á aplicagao prática de seus resultados. Com relagao á segunda crítica, mencionaram a importancia de pesquisas sobre metamemória, sobre a influencia de conhecimentos no processo de memoria e sobre problemas práticos de memoria. Embora parega haver urna unánime contraposigao frente aos comentarios apresentados por Banaji e Crowder (1989), Roediger (1991) advertiu que análises críticas mais prudentes deveriam incluir observagoes acerca de severos ataques frente as pesquisas experimentáis sobre memoria. Deste modo, Roediger (1991) Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.htm Epelboin, S. (2004). Memoria individual e memoria social / coletiva: considerares á luz da 24 psicología social. Memorándum, 7, 18-31. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.ritm classificou as críticas á abordagem ecológica como respostas aos ataques anteriormente langados contra investigagoes sobre a memoria episódica, ataques que afirmaram que estudos de laboratorio eram artificiáis, triviais, incapazes de lidar com problemas significativos e de generalizar seus resultados em situagoes reais. Tais ataques propuseram a emergencia de pesquisas ecológicas sobre a memoria autobiográfica e o abandono de métodos experimentáis. Roediger (1991) nao caracterizou a resposta de Banaji e Crowder (1989) como radical, mas como revelando a defesa de validade e generalizagao das conclusoes. Logo, citou que, embora os autores mencionados tenham indicado que o ideal era estudar questoes em situagoes reais e encontrar resultados válidos e generalizáveis, os mesmos observaram que, em razao da dificuldade de se realizar investigagoes que contemplassem estas condigoes, seria preferível abrir mao do primeiro fator. Quanto aos artigos ácima comentados, Roediger (1991) indicou a inadequagao de pontos assinalados por Gruneberg, Morris e Sykes (1991) - quanto ao ataque á pesquisa aplicada; por Ceci e Bronfenbrenner (1991) - quanto á restrigao á participagao de qualquer pessoa na composigao de amostras e á equivalencia entre ciencia e método experimental; e por Conway (1991) - quanto a nao inclusao de material com sentido ou de conhecimento previo ñas pesquisas sobre memoria episódica. Por fim, Roediger (1991) ressaltou a pertinencia de serem desenvolvidas análises experimentáis e nao experimentáis acerca da memoria, análises que sejam percebidas enquanto esforgos para obtengao de novos conhecimentos, os quais contenham avangos, embora possam por igual conter alguma limitagao. Tulving (1991) também fez referencia as acusagoes extremadas, as quais afirmaram que cem anos de pesquisa experimental nao trouxeram qualquer contribuigao ao estudo da memoria, acusagoes que ainda insinuaram que os responsáveis por tais empreendimentos nao eram criativos, competentes ou preocupados com questoes sociais relevantes. De acordó com Tulving (1991), confrontos exagerados seriam inadequados, quer fossem expostos em defesa de procedimentos experimentáis ou ecológicos, pois diferentes perspectivas nao deveriam ser classificadas como mutuamente exclusivas, mas como esforgos complementares que buscariam oferecer subsidios a futuras investigagoes. A título de esclarecimento, Banaji e Crowder (1991) responderam aos ataques frente ao artigo por eles anteriormente publicado (Banaji e Crowder, 1989), novamente citando que pesquisas científicas ideáis deveriam envolver contextos reais e generalizagao de resultados. Entretanto, se houvesse necessidade de sacrificar urna das condigoes, a primeira deveria ser abandonada. Embora defendessem tal posigao, nao desconsideravam a importancia de pesquisas aplicadas e desenvolvidas em situagoes naturais. No que tange a essas observagoes, como também aos comentarios apresentados por Tulving (1991) e Roediger (1991), concorda-se com a adogao de posturas mais moderadas, capazes de revelar o compromisso com o diálogo entre diferentes interlocutores. Este compromisso nao deve ser encarado como um pacto ingenuo ou superficial de tolerancia á diversidade, mas como intenso e complexo exercício de reflexao sobre possíveis encontros e desencontros entre propostas que visam ao alcance de um objetivo maior - a construgao de conhecimentos cada vez mais consistentes e coerentes sobre o ser humano. O convite ao diálogo proposto pela autora deste projeto nao compreende apenas as discussoes entre procedimentos experimentáis e nao experimentáis, memoria episódica e memoria autobiográfica, mas também entre as vertentes psicológica e sociológica desenvolvidas em Psicología Social, e, mais específicamente, entre a compreensao da memoria enquanto processo psicológico individual e enquanto construgao social / coletiva. A autora propoe um exame que contemple contribuigoes e limitagoes de posigoes antagónicas, mas que conceda énfase principalmente aos campos de intersecgao entre estas posigoes, a fim de que divergencias sejam promotoras de diálogo e nao de monólogo, de encontró e nao de confronto, de respeito e nao de desconsideragao, enfim, de criatividade e nao de repetigao de argumentos. Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.htm Epelboin, S. (2004). Memoria individual e memoria social / coletiva: considerares á luz da 25 psicología social. Memorándum, 7, 18-31. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.ritm Consideracoes acerca das vertentes psicológica e sociológica Conforme anteriormente mencionado, o presente artigo visa conceder énfase a aspectos individuáis, sociais e coletivos da memoria, ou seja, contemplar a condigao social / coletiva, mas sem negligenciar ou minimizar a condigao individual. Percebe-se, entao, o compromisso com a articulagao entre estas dimensoes e com o respeito para com a especificidade das mesmas. Esta ressalva revela nossa discordancia frente á apresentagao de condigoes diferentes como sendo necessariamente contrarias e implicando na atribuigao de juízos de valor, como: certas ou erradas, melhores ou piores, entre outras categorizagoes. Tal dicotomía pode ser introduzida ingenua e incorretamente quer na discussao a respeito da memoria, quer, em ámbito mais específico, no próprio campo da Psicología Social. Supoe-se, inclusive, que a distingao entre memoria individual e social / coletiva tenha recebido maior destaque a partir da configuragao das orientagoes psicológica e sociológica, delineamento comentado por Farr (1998). Tal diferenciagao se torna mais nítida ao examinarmos as contribuigoes oferecidas, respectivamente, por Krüger (1986) e por Sá (1996). Krüger (1986), ao investigar o delineamento do campo ora abordado, concedeu énfase a alguns aspectos. Assim, citou o individualismo, definindo-o como a orientagao preferencialmente adotada pelos psicólogos sociais na escolha de seus objetos de pesquisa, isto é, na eleigao do estudo do comportamento social e dos processos cognitivos e afetivos enquanto influenciam e/ou sao influenciados pela presenga real, imaginada ou memorizada de outras pessoas. O experimentalismo também consistiu em um aspecto destacado, urna vez que experimentos teriam sido desenvolvidos de forma freqüente, o que nao comprometeria a realizagao de estudos de campo ou outros modos de se realizar pesquisas. Outro fator pode ser representado através da microteorizagao, já que este contexto nao envolvería teorías abrangentes. Krüger (1986) explicou tal aspecto como sendo conseqüéncia da falta de consenso entre os pesquisadores no que tange á concepgao de homem adotada; da significativa dispersao das temáticas focalizadas; da nao continuidade dos programas de pesquisa e, até, do prematuro abandono de programas promissores. A nogáo de etnocentrismo contribuiu para caracterizagao deste campo de investigagáo, compreendendo-se este termo como voltado para a orientagao sobretudo norte-americana registrada neste ámbito. Tal contexto foi apresentado também como urna disciplina científica pragmática, ou que guardava compromisso com o utilitarismo, pois era direcionada ao atendimento de expectativas sociais. O cognitivismo foi ainda destacado como um fator capaz de facilitar o entendimento do campo em questáo, já que a influencia deste movimento vinha ganhando considerável relevo neste ámbito de investigagáo. Por fim, Krüger (1986) ressaltou o a-historicismo, definindo este aspecto como sendo o negligenciar da perspectiva histórica, mencionando a importancia de se enfatizar a inclusáo de tal dimensáo social, histórica e cultural. Concorda-se com sua ressalva, isto é, que aspectos socioculturais, considerados em sua evolugáo temporal, devam ser levados em conta ao se analisar as condutas humanas. Por sua vez Sá (1996), ao caracterizar a Psicología Social em sua vertente sociológica, conferiu destaque a aspectos contrarios aqueles supracitados. Deste modo, o individualismo seria combatido através do compromisso ainda mais social desta vertente, o que pode ser melhor percebido através da introdugáo de dois novos níveis de explicagáo, ou seja, além dos já considerados níveis intra e interpessoal, a adogáo dos níveis posicional e ideológico. Este pode ser compreendido como o conjunto de crengas e representagoes existentes que serviría para organizagáo da sociedade, enquanto aquele foi definido como capaz de revelar as diferentes posigoes sociais ocupadas pelos sujeitos que estabeleciam relagoes. No que tange á contraposigáo ao experimentalismo, salientou-se a utilizagáo de metodologías mais diversificadas, cabendo fazer a ressalva de que nao se exclui neste contexto o uso do próprio método experimental. Quanto á amplitude das Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.htm Epelboin, S. (2004). Memoria individual e memoria social / coletiva: considerares á luz da 26 psicología social. Memorándum, 7, 18-31. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.ritm teorías elaboradas, percebe-se urna tendencia á macroteorizagao. O etnocentrismo, assim como o a-historicismo, foram substituidos pela importancia concedida a fatores históricos e culturáis no desenvolvimento de fenómenos psicossociais. No que se refere ao utilitarismo, percebe-se a exacerbagao deste aspecto quando a orientagao sociológica estabeleceu o compromisso de tornar a Psicología Social aínda mais social. Por fim, quanto ao cognitivismo, descartou-se a nogao de cognigao social, concedendo-se prioridade ao conceito de representagao social. Acredita-se que as orientagóes ácima assinaladas nao devam ser apresentadas como mutuamente exclusivas, nem mesmo como ocupando a posigao de "portavoz" único e verdadeiro da Psicología Social. Isto porque, supóe-se que a diversidade existente, quer na esfera conceitual, metodológica ou de aplicagao, seja a principal mola propulsora de adequadas discussoes e produtivos avangos na esfera ora tratada. Esta posigao revela um convite ao intercambio entre tais orientagóes, o que nao significa a superficial uniao destas vertentes através do apagar as ricas diferengas existentes. Assim, cabe registrar que o presente estudo concebe a memoria social enquanto capaz de reunir aspectos coletivos e aspectos individuáis, urna vez que a memoria envolve recursos da ordem cognitiva, emocional e comportamental, localizados em sujeitos inseridos em contextos sociais. Após a exposigao destes breves comentarios sobre as vertentes psicológica e sociológica em Psicología Social, faz-se necessário abordar a compreensao da memoria enquanto processo básico individual e enquanto construgao social / coletiva. Consideracoes acerca da memoria individual e da memoria social / coletiva No que se refere as oposigoes ácima incluidas, mais específicamente, á memoria social / coletiva, Halbwachs (1990) propós o exame do homem enquanto sujeito inserido na trama da vida coletiva, exame este que nao pretendía reduzir o individual ao coletivo. Assim, afirmou a existencia da memoria individual, mas destacou que a mesma se inscreveria em quadros sociais. Blondel (1966) mostrou concordancia em seu posicionamento, assinalando que o passado apresentaria continuidade, consistencia e objetividade nao em fungao da memoria individual, mas sim devido á intervengao de fatores sociais. Estes fatores possibilitariam ao sujeito inscrever sua experiencia em quadros coletivos de memoria, onde compartí I ha ria com membros de seu grupo os acontecimentos vividos. Blondel (1966) esclareceu ainda que, para Halbwachs, a memoria nao consistiría em reprodugao do passado, envolvendo sim reconstrugao do mesmo a partir de experiencias coletivas. Sá (1979) também comentou tal aspecto construtivo, expondo que a memoria humana nao era tao fiel á conservagao do passado, fato que podia ser fácilmente verificado através de fragmentos inventados e inseridos em historias de vida, com o intuito de garantir, as mesmas, coeréncia e continuidade. Deste modo, observa-se que Halbwachs (1990) se contrapós á concepgao de memoria individual e intacta proposta por Bergson, pois afirmou que lembrar nao consistiría em reviver, mas refazer, reconstruir, com imagens e idéias de hoje, as experiencias do passado. Logo, a memoria nao seria sonho, mas trabalho. Tampouco a memoria seria individual, pois seria coletiva. A memoria do sujeito dependería do seu relacionamento com a familia, classe social, escola, enfim, dos grupos de referencia e pertencimento do individuo em questao. A lembranga, enquanto conservagao total do passado, tornava-se impossível na medida em que um adulto nao poderia manter intacto o sistema de representagoes, hábitos e relagoes sociais da sua infancia. Isto porque, qualquer mudanga do ambiente atingiría a qualidade íntima da memoria, amarrando entao a memoria da pessoa á memoria do grupo e, esta última, á esfera maior da tradigao, que representaría a memoria coletiva de cada sociedade. Como disse Halbwachs (1990, p. 26): "Nossas lembrangas permanecen) coletivas, e elas nos sao lembradas pelos outros, mesmo Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.htm Epelboin, S. (2004). Memoria individual e memoria social / coletiva: considerares á luz da 27 psicología social. Memorándum, 7, 18-31. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.ritm que se tratando de acontecimentos nos quais só estivemos envolvidos, e com objetos que só nos vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sos". Segundo Penna (2001), Bergson se destacou ao propor dois tipos de memoria memoria hábito e memoria souvenir. A primeira consistiría na memoria composta por esquemas de comportamento, dos quais o corpo se valeria, muitas vezes, automáticamente. Tais esquemas seriam adquiridos pelo esforgo da atengáo, repetigáo de gestos ou palavras, enfim, pelas exigencias da socializagao. Já a memoria pura, ao se atualizar na imagem-lembranga, traria á consciéncia um momento único, singular, irreversível da vida, o que revelaría seu caráter nao mecánico, mas evocativo. Ainda no que tange á énfase conferida ao aspecto social, Bosi (1979) comentou que Bartlett também estabeleceu a articulagao entre o processo de memoria e o contexto social, sobretudo ao utilizar o conceito de convencionalizacao. Este conceito afirmava que materiais (imagens e idéias) recebidos por um determinado grupo ganhariam formas de expressao condizentes com as convengoes verbais já existentes no mencionado conjunto. O processo de convencionaiizacao poderia envolver assimilagáo (simples incorporagáo de materiais culturáis recebidos), simplificagáo (desconsideragáo de fatores estranhos aos presentes na prática social), retengáo parcial com énfase no detalhe (manter um ponto nao importante no contexto de origem, conferindo ao mesmo relevancia) ou, por fim, a criagáo de novas formas simbólicas (resultantes das interagoes desenvolvidas no conjunto receptor). Tais procedimentos revelavam o trabalho de construgáo social da memoria, urna vez que esquemas de narragáo e interpretagáo existentes nos grupos implicariam na elaboragao de versoes históricas proprias frente ao conteudo recebido. Bartlett (1995) explicitou melhor tal posicionamento ao afirmar que a convencionaiizacao revelaría a influencia do passado sobre o presente. Embora Bartlett tenha indicado este forte componente social, o mesmo se diferenciou de Halbwachs ao propor a vinculagáo entre fatores da personalidade e o modo do sujeito recordar, e ao salientar que suas investigagoes eram referentes aos processos de memoria no grupo e nao do grupo. De acordó com Johnston (2001), seria possível identificar tres momentos de releitura das contribuigoes oferecidas por Bartlett. A autora definiu o primeiro período como relacionado á publicagáo do livro Remembering em 1932, etapa em que foi concedida énfase a investigagoes empíricas. A segunda fase, época da revolugáo cognitiva, foi assinalada a partir do destaque conferido ao conceito de esquema, o qual revelava a nao compreensáo do processo de memoria através do registro e recuperagáo de tragos. Assim, a organizagáo da memoria era marcada por atitudes, interesses, crengas, valores, sentimentos, enfim, por experiencias pessoais que garantiam caráter dinámico á memoria. Lembrar era equivalente a reconstituir o material a ser evocado, podendo ocorrer omissáo, acréscimo, transformagáo, transposigáo, elaboragao, condensagáo, entre outros mecanismos que explicitariam a condigáo construtiva, e nao simplesmente reprodutiva, da memoria. Segundo o modelo de Johnston (2001), o último período implicaria na concepgáo social da memoria, isto é, na influencia de aspectos socioculturais na reconstrugáo da memoria. Tal etapa seria desenvolvida contemporáneamente e permitiría a aproximagáo entre o trabalho de Bartlett e de outros pesquisadores, o que para Johnston (2001) contribuiría para elaboragao inadequada de releituras sobre o autor ora discutido. Retomando as contribuigoes oferecidas por Halbwachs (1990), cabe mencionar que para este autor o sujeito apresentaria dois tipos de memoria, sendo urna individual e a outra, coletiva. Entretanto, mais urna vez ressaltou que aquela poderia se apoiar nesta, pois o individuo, ao evocar seu passado, estabeleceria relagoes com as lembrangas de outros membros de seu grupo social. Dando prosseguimento a estas categorizagoes, o autor sugeriu a diferenciagáo entre urna memoria interna, pessoal, denominada autobiográfica e urna memoria externa, social, intitulada histórica. A memoria histórica nao era equivalente á memoria coletiva, pois Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.htm Epelboin, S. (2004). Memoria individual e memoria social / coletiva: considerares á luz da 28 psicología social. Memorándum, 7, 18-31. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.ritm enquanto a primeira demarcava rígidas linhas de separagao temporal, buscando o alcance de um caráter único, universal, através da énfase conferida as diferengas, a segunda contava com limites temporais incertos, revelando variadas memorias possíveis e destacando as semelhangas existentes entre as experiencias individuáis e aquelas referentes aos membros que compartilhavam quadros sociais. Jedlowski (1997), ao discutir a temática da memoria coletiva, resumiu as idéias de Halbwachs em tres pontos, sendo eles: a concepgao da memoria individual enquanto inscrita em quadros de referencia social, podendo-se destacar ai o papel da linguagem; a nogao de construgao e selegao do passado, tanto em processos individuáis, como também coletivos de memoria; a compreensao da memoria coletiva enquanto fungao da identidade dos grupos sociais, urna vez que aquela serviría para integragao e continuidade destes, para o surgimento de sentimentos de pertencimento nos componentes dos mesmos, bem com para a reconstrugao do passado segundo interesses particulares destes conjuntos. No que tange á definigao do conceito memoria coletiva, Jedlowski (1997) apontou a vinculagao deste á necessidade das sociedades conservarem suas respectivas herangas culturáis e transmiti-las a outras geragoes. Tal transmissao revelaría a aproximagao entre o tema ora investigado e processos comunicacionais, urna vez que existiriam produtores, transmissores e receptores de memoria. Acredita-se que esta questao introduza outro ponto de reflexao: as relagoes de poder existentes. O autor mencionou, ainda, que conflitos e negociagoes ocorriam em sociedades contemporáneas devido ás relagoes de poder e ao fato daquelas serem compostas por diferentes grupos. Por fim, Jedlowski (1997) apresentou definigoes distintas para os conceitos de memoria comum, social e coletiva. Deste modo, esta foi classificada como sendo elaborada coletivamente, isto é, resultando de interagoes sociais e processos comunicacionais, os quais elegiam determinados aspectos do passado de acordó com as identidades e interesses dos componentes dos grupos em questao. A memoria social foi entendida como fluida e disponível para qualquer individuo pertencente ao grupo social. Por sua vez, a memoria comum foi caracterizada como lembranga que a pessoa teria de si, sem que houvesse elaboragáo, discussáo ou práticas coletivas. Assim, o autor afirmou que a memoria nao envolvería apenas representagoes do passado, mas, sobretudo, práticas que permitiriam a vinculagao entre presente e passado. O momento anterior organizaría o atual através de herangas culturáis transmitidas ao longo de geragoes. Entretanto, o presente selecionaria dados herdados, de modo a reconstruir constantemente o que já passou. Aproveitando a classificagao ácima exposta e as discussoes em torno do conceito de memoria, faz-se necessário apresentar a definigao de memoria social proposta por Sá (2001). Neste sentido, a memoria social envolvería memoria individual, nao contraria ao aspecto coletivo, urna vez que a ele estaría relacionada, sendo o caso da memoria autobiográfica; memoria coletiva (haveria concordancia com a compreensao de Jedlowski); memoria comum, que seria compartilhada por grupo de pessoas, nao havendo elaboragáo coletiva, vista por exemplo na memoria geracional; memoria pública, na qual aspectos do passado estariam virtualmente disponíveis a qualquer individuo, como no caso da memoria documental; memoria histórica - fontes históricas reunidas em memorias coletivas de grupos históricamente demarcados, por exemplo, memoria étnica, nacional e comunitaria; e memoria prática - práticas, rituais e normas implícitas estariam envolvidas, sendo exemplificada pela memoria institucional. Com base nesta última categorizagao, questiona-se a possibilidade de arrumagao de tais classes de forma mais inclusiva. Isto é, seria adequado propor urna memoria social que englobasse tres esferas, sendo estas respectivamente: individual, coletiva e comum? Caso a resposta seja afirmativa, acredita-se que estas esferas poderiam ser apresentadas através de círculos concéntricos, de modo que a parte mais periférica comportaría a memoria comum, a parte intermediaria a Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.htm Epelboin, S. (2004). Memoria individual e memoria social / coletiva: considerares á luz da 29 psicología social. Memorándum, 7, 18-31. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.ritm memoria coletiva e, por fim, a parte central englobaría a memoria individual. Neste sentido, haveria urna esfera mais ampia que envolvería dados compartilhados por membros de conjuntos sociais, dados estes que nao iriam requerer elaboragao coletiva. Em urna esfera mais próxima ao centro, encontrar-se-iam conteúdos construidos coletivamente, sobretudo através de práticas verbais (discursivas) e nao verbais. No que tange ao último aspecto, supoe-se que seria pertinente incluir nesta esfera intermediaria - círculo referente á memoria coletiva - a memoria prática anteriormente apontada por Sá (2001). Ainda nesta esfera, poder-se-ia pensar na inclusao de aspectos públicos (memoria pública) e históricos (memoria histórica), urna vez que tais dimensoes parecem envolver elaboragao coletiva e o destaque a condigoes específicas. Embora Halbwachs (1990) tenha estabelecido diferengas entre memoria coletiva (compreendida em seu aspecto dinámico) e memoria histórica (entendida enquanto demarcada por condigoes espagotemporais), concorda-se com a posigao defendida por Silva (2002) quanto á aproximagao entre memoria e historia. Silva (2002) afirmou que o entrelagamento entre memoria coletiva e memoria histórica revelaría a tentativa daquela alcangar condigao de veracidade, característica atribuida sobretudo á perspectiva histórica. A citada autora concedeu destaque á rememoragao (definida como processo individual) e á comemoragao (apresentada como atividade coletiva) ao analisar a vinculagao entre memoria e historia, vinculagao que permitiría melhor conexao entre as dimensoes temporais referentes ao passado, presente e futuro. A énfase conferida á rememoragao e á comemoragao parece revelar a importancia da memoria prática, esfera também investigada por Connerton (1993), o qual examinou cerimónias comemorativas e práticas corporais visando ao entendimento dos processos de transmissao e conservagao de conteúdos do passado através de performances rituais. Silva (2002) salientou que, neste entrelagamento entre memoria e historia, deveria haver constante compromisso com a reflexao, a fim de que a historia fosse examinada enquanto memoria criticada e nao simplesmente oficializada. Por fim, cabe mais urna vez afirmar que tal convite ao entrelagamento pode e deve perpassar nao somente o campo referente á memoria e á historia, mas também as outras discussoes apontadas no presente artigo. Referencias Bibliográficas Aanstoos, C. (1991). Experimental Psychology and the Challenge of Real Life. American Psychologist, 46 (1), 77-78. Bahrick, H. (1991). A Speedy Recovery From Bankruptcy for Ecological Memory Research. American Psychologist, 46 (1), 76-77. Banaji, M. & Crowder, R. (1989). The Bankruptcy of Everyday Memory. American Psychologist, 44 (9), 1185-1193. Banaji, M. & Crowder, R. (1991). Some Everyday Thoughts on Ecologically Valid Methods. American Psychologist, 46 (1), 78-79. Bartlett, F. C. (1995). 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É professora na Universidade Estácio de Sá (Unesa) e na Universidade Católica de Petropolis (UCP). Contato: Avenida Presidente Vargas, 590 / 1812 - Centro - Rio de Janeiro - RJ - Brasil cep 20071-000 - e-mail: [email protected] Data de recebimento: 04/04/2004 Data de aceite: 24/10/2004 Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.htm Gomes, W. B. (2004). Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 32 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.ritm Primeiras noyóes da psique: das conceptees animistas ás primeiras concepcoes hierarquizadas em antigás civilizacóes First notions of the psyche: from animistic conceptions to the first hierarchical conceptions in ancient civilizations William B. Gomes Universidade Federal do Rio Grande do Sul Resumo Neste estudo, argumento que a historia do pensamento psicológico deve contemplar, como ponto de partida, consideragoes evolucionarías e antropológicas sobre a consciéncia humana. O artigo está dividido em tres partes. A primeira traz as evidencias empíricas e os campos teóricos que se ocupam do estudo da evolugao humana. A segunda examina a definigao de tres termos básicos e fundamentáis para o estudo do pensamento humano: consciéncia, psique e animismo. A terceira compara crengas de antigás civilizagoes sobre concepgoes do universo e da psique. A conclusao argumenta que a escolha da antiga filosofía grega como ponto de partida nao despreza as contribuigoes de outras civilizagoes. O pensamento grego foi, em grande parte, urna síntese cuidadosa e criativa do conhecimento existente até entao. Contudo, as interligagoes entre universo, corpo e psique, como entendidas pelas antigás civilizagoes, trazem as perguntas básicas e a lógica que deve orientar o estudo inicial dos fenómenos psicológicos. Palavras-chave: animismo; consciéncia; historia da psicología; civilizagoes antigás Abstract In this paper, I argüe that the history of human thought should include, as a departure point, the evolutionary and anthropological considerations about human consciousness. The article is divided into three parts. First, I present the empirical evidences and the theoretical fields involved in human evolution. Second, I examine the definitions of the three fundamental terms for the study of thought: consciousness, psyche, animism. Third, I contrast different beliefs about the universe and the psyche from ancient civilizations. To conclude, I say that the usual choice for initiating the study of human thought with the Greek philosophy certainly includes the contributions from the ancient civilizations. Greek thought began as a careful and creative synthesis of existing knowledge. However, links between universe, human and psyche, as seen by ancient civilizations, bring up the basic questions and the logic, which should guide the initial considerations on the study of the psychological phenomena. Keywords: animism; consciousness; history of psychology; ancient civilizations. O estudo da historia do pensamento psicológico vem se consagrando, internacionalmente, como urna forma sólida e segura de introdugao ao estudo da psicología contemporánea. O conceito de pensamento psicológico abrange todas as manifestagoes humanas que tem como centro a geragao de sentido. O pensamento humano manifestou-se ñas mitologías e nos rituais, justificando os estranhos Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Gomes, W. B. (2004). Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 33 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.ritm fenómenos da natureza e dos diferentes destinos dos deuses e dos individuos. As mitologías prescreviam éticas, trazendo como recompensa o sucesso na térra, e algum tipo de vida depois da morte. Mas o sentido humano é crítico, nao se conformando com justificativas atreladas em crengas no sobrenatural. Era preciso buscar no natural a sua própria ordem e explicagáo. O interesse pela observagáo, pela objetividade, e pela medida surgem como projeto para desvendar a origem do cosmos. A preocupagáo com a objetividade foi urna importante manifestagáo da racionalidade humana. A racionalidade nao é tudo para o sentido e suas produgoes. As agoes humanas sao misteriosas e imprevisíveis, e parecem decorrer de urna relagao nem sempre clara entre a forga da paixao e o discernimento do intelecto. As justificativas para a conturbada relagao entre paixao (Eros) e intelecto (Psique) variavam conforme as crengas dos povos. Quem pode antever o juízo de alguém? Cada humano traz o seu próprio entendimento das coisas e, por conseguinte, tudo cai no relativo, no pessoal e no subjetivo. Dos confrontos entre mitos, racionalidade e subjetividade surgiram teorías que, a cada tempo, definiram e explicaram a natureza humana. As teorías prescreviam éticas e sugeriam formas para o proceder correto e justo. O termo concepgao ontológica é usado neste texto para se referir ás substancias apontadas por crengas de diferentes civilizagoes como constituintes da capacidade humana de autoconsciéncia, e das relagoes da autoconsciéncia com o corpo e com o cosmos. A fundagao científica da psicología nos fináis do século XIX tomou como principio a suspensao das discussoes metafísicas. Nao havia um projeto inicial para a construgao de urna teoria geral de psicología. A idéia era circunscrever fenómenos psicológicos e estudá-los em laboratorio, de acordó com as práticas vigentes: indo do simples para o complexo ou do elementar para o superior. A posigao nao era unánime. Varios entendimentos sobre objeto e método foram propostos por diferentes pesquisadores, fortemente influenciados pelas crengas e interesses de seus países ou culturas. O estudo científico da psicología é fundamental e deve sustentar as agoes profissionais do psicólogo. No entanto, nao se pode negligenciar o estudo das crengas que envolvem as agoes humanas e o modo de refletir sobre essas agoes. Ao contrario do que pensavam os primeiros psicólogos cientistas, o estudo de mudangas no pensamento filosófico e ñas discussoes metafísicas sobre a natureza humana é parte importante do conhecimento psicológico. Enquanto crengas, elas constituem o social e o pessoal, estando presentes em cada situagáo em que o psicólogo for chamado a intervir. As crengas gerais sao táo importantes quanto as crengas pessoais do psicólogo. As últimas, por sua vez, devem estar sob permanente suspeita. O trabalho do psicólogo é especialmente complexo por exigir, sobretudo, competencia científica e sensibilidade sociocultural. A importancia do conhecimento psicológico está em sua posigao privilegiada de interagir com todos os saberes, sejam eles físicos ou biológicos, sociológicos ou antropológicos. Por onde iniciar o estudo para táo exigente carreira? A resposta é simples. Inicia-se pela historia do pensamento psicológico. A historia antiga traz as raízes de nossas crengas. Em contraste, o pensamento filosófico moderno nos fornece as matrizes que sustentam as bases de nossas teorías. Há controversia se esse estudo deve comegar pelos gregos, pelos chineses, pelos hindus ou pelos egipcios. Alguns até defendem que seja iniciado pela mitología dos povos amerindios. Na proposta deste texto, o inicio deve ser anterior a qualquer civilizagáo e partir dos primeiros indicadores das origens da consciéncia humana. Desta forma, o presente texto está dividido em tres partes. A primeira dedica-se á identificagáo das primeiras manifestagoes da consciéncia (autoconsciéncia). A segunda examina a definigáo de tres termos básicos e fundamentáis para o inicio do estudo do pensamento humano: consciéncia, psique e animismo. A terceira e última passa em revista algumas crengas de civilizagoes antigás sobre concepgoes do universo e da psique. Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Gomes, W. B. (2004). Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 34 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Consciéncia e evolugao A historia das idéias em psicología tem como ponto de partida o contexto que deu origem ao aparecimento da consciéncia na especie humana (homo sapiens sapiens). Entende-se por consciéncia a intuigao ¡mediata que os humanos possuem dos seus estados físicos e mentáis, e dos seus atos. Pergunta-se, entao: como surgiu a consciéncia e quais foram os indicadores desta capacidade que atingiu o auge de sua sofisticagao no homo sapiens sapiens? A pergunta introduz um problema de ordem histórica. Subsidios para a explicagao evolucionarla da consciéncia procedem de evidencias paleontológicas, arqueológicas, primatológicas, antropológicas, neuropsicológicas, e moleculares. Nos últimos anos, avangos no estudo dos fundamentos neuroquímicos da consciéncia (Churchland, 1995; Edelman, 1989) e no mapeamento da seqüéncia nuclear do genoma humano (Keller, 2002) tém contribuindo grandemente para a compreensao do processo evolucionarlo humano. A apresentagao das primeiras manifestagoes da consciéncia na humanidade requer a antecipagao de conceitos e métodos que permitiram o levantamento de evidencias sobre o humano pré-histórico. A revisao será breve e introdutória, mas suficiente para os fins propostos. Os comentarios que seguem basearam-se nos tres primeiros capítulos do livro Historia da etnoiogia de J. Poirier (1981). Muitos escritores e viajantes da antiguidade dedicaram-se á preparagao de textos e á classificagao de documentos sobre práticas e costumes dos mais diferentes povos. No entanto, tais documentos e textos só comegaram a ser estudados e interpretados na Renascenga. Na Idade Media, a hegemonía do cristianismo desestimulou a curiosidade por mundos extra-europeus e incentivou a depreciagao de outros povos, como aconteceu tao duramente com os negros. Havia um esforgo para manter a humanidade da forma que ela era reconhecida e aceita, isto é, em limites bem estabelecidos e determinados. Urna excegao foi o testemunho de Marco Polo [1254-1324], um mercador e aventureiro veneziano, sobre urna viagem que fez provavelmente entre 1271 e 1295 ao Oriente Medio, permanecendo entre os Khans mongóis (na regiao da atual China) por 17 anos. Marco Polo ditou suas memorias de viagens para um escritor que as publicou em 1477. As historias apresentadas foram recebidas, na época, como fábulas engenhosas e audaciosas, e nao como relatos de fatos reais. A abertura para o conhecimento do que até entao era considerado estranho, exótico e diferente pela velha Europa veio com a Renascenga. As grandes viagens marítimas trouxeram documentos e produtos de térras e povos desconhecidos. Os europeus tornaram-se ávidos por noticias e historias das térras e dos povos recémdescobertos, interessando-se pelas práticas e costumes das sociedades oceánicas, australianas e amerindias. Foi urna época em que se reuniram muitos documentos de interesse etnográfico, com europeus visitando sociedades estranhas e recebendo visitas de membros de tais sociedades que eram apresentados em paradas e festas de coroagao. O impacto destes contatos foi grande. Alterou conceitos vigentes e desenvolveu novos conceitos. Alguns defendiam que os povos recém-conhecidos nao eram dignos de ser considerados seres humanos, por serem malditos e abandonados por Deus. Outros defendiam a valorizagao das sociedades exóticas, como mostrou enfáticamente a teoria do Bom Selvagem, proposta na Franga no século XVIII. Reflexoes sobre o conhecimento das sociedades estranhas e exóticas comegaram no século XVII, através do estudo dos relatos de viagens e dos paralelos culturáis, tendo como referencia as culturas grega, romana e judaica. No entanto, persistía a atitude depreciativa aos povos recém-conhecidos. No século XVIII apareceram as interpretagoes antropológicas por meio dos estudos de filósofos e de naturalistas. Foi na segunda metade do século XIX que se comegou a falar em ciencias humanas (Dilthey, 1880/1983). Conduto, pode-se argumentar que o termo ciencia do homem comegou a ser usado no século XVIII, tendo como referencia o livro Tratado da Natureza Humana do filósofo David Hume [1711-1776], publicado em Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Gomes, W. B. (2004). Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 35 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.ritm 1739. De qualquer modo, estudos sobre povos pré-históricos, escritos de maneira aberta, livres de preconceitos filosóficos e religiosos, apareceram somente no sáculo XIX. Setores da velha Europa haviam alcangado a maturidade necessária para, enfim, compreender a diversidade das atividades humanas em diferentes tempos e lugares. Especulagoes sobre teorias da evolugao sao anteriores ao sáculo XIX. No entanto, o marco revolucionario desta teoria foi a publicagao do livro The Origin of Species em 1859 por Charles Darwin [1809-1882]. O avango do biólogo foi favorecido pela publicagao de Principies of Geology em 1830-33, por Charles Lyell [1797-1875]. Neste livro, Lyell mostrou que tudo que está sobre a superficie da Terra é produzido por processos físicos, químicos e biológicos, em longos períodos geológicos. Tais processos agem sempre da mesma maneira e com a mesma intensidade, sendo possível estimar o tempo das mudangas geológicas. Em outras palavras, as leis que governam os processos geológicos nao se modificaram no decorrer da historia da Terra. Essas idéias foram defendidas, primeiro, em 1785 por James Hutton e depois transformadas em livro em 1795, com o título de Theory of Earth. Hutton mostrou como o solo é formado pela agao dos elementos que alteram a cor, a textura, e a composigao das rochas, e como as carnadas de sedimentos sao acumuladas. A idade da Terra, estimada em 6.000 anos pela tradigao bíblica, estava sendo contestada. Estudiosos da evolugao (Bradshaw, 1997; Salzano, 1995) presumem que o sistema solar que faz parte da Via Láctea deve ter surgido há aproximadamente 4,5 bilhoes de anos, e a vida há 3,5 bilhoes de anos. Na cadeia evolutiva, o Homo sapiens é um mamífero pertencente á ordem dos primatas. A diversificagao dos primatas ocorreu em torno de 50 a 60 milhoes de anos atrás. Na mesma época, ocorria a diversificagao de muitos grupos de plantas e de animáis. Os primatas se alimentavam de animáis e plantas de maneira seletiva. As refeigoes eram realizadas no crepúsculo e durante a noite. Em virtude desses hábitos, houve nestes animáis urna evolugao de padroes básicos de comportamento, envolvendo olfato e alto grau de coordenagao manual-visual. Os humanos distinguem-se dos outros animáis por características anatómicas e comportamentais. Na anatomía, os humanos diferenciam-se pela postura bípede, cerebro grande, e aspectos reprodutivos específicos. No comportamento, eles se distinguem pela linguagem, pela destreza visual-manual, pelo uso do fogo, pela manufatura e uso de instrumentos, pela organizagao social a partir de familias nucleares, e pelo cuidado prolongado com a prole (Salzano, 1995). Há evidencias de que todos os humanos descendem de um único ancestral (CavalliSforza, 2003). O Homo sapiens sapiens deve ter surgido em torno de 200.000 anos atrás na África e migrado para outras partes da Terra há cerca de 100.000 anos. A migragao da África para outras partes da Terra deixou tragos nos povos modernos ao redor do mundo (Bradshaw, 1997). Do mesmo modo, todas as línguas parecem proceder de urna única língua. Genes e linguagens co-evoluíram em linhas similares, conforme principios de diversificagao e diferenciagao. Formas arcaicas do Homo sapiens viveram na África aproximadamente 700.000 atrás, e na Europa há 500.000 anos. Durante um período de aproximadamente 100.000 anos houve urna sobreposigao do Homo Sapiens e dos remanescentes do Homo erectus. O mesmo ocorreu entre os Homo neanderthalensis e os anatómicamente modernos Homo sapiens sapiens, por um período que vai de 100.000 a 35.000 anos atrás. Coincidentemente, arqueólogos reconhecem a presenga de senso estético em vestigios artesanais humanos a partir 35.000 anos atrás. Naquela época, final do período pré-histórico, o Homo sapiens sapiens vivia em pequeñas comunidades agrícolas, confeccionava cerámica, enterrava seus mortos com oferendas, e se expressava artísticamente em gravuras, esculturas e ornamentos. Por tras destas realizagoes estava o aparecimento da consciéncia, a mais elevada diferenciagao do Homo sapiens sapiens (Leroi-Gourhan, 1990). Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Gomes, W. B. (2004). Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 36 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.ritm Consciéncia, Psique e Animismo A manifestagao da consciéncia está associada ao desenvolvimento da habilidade humana para resolver problemas novos e manipular diferentes conceitos simultáneamente. Os humanos agiam em grupos. Mudangas de táticas, quando necessárias, dependiam de avaliagao entre os pares para proposigao de novas estrategias de agao. Na relagao com os pares era necessario fazer inferencias sobre desejos, intengoes, e crengas; implicando em autoconsciéncia dos próprios desejos, intengoes e crengas. A consciéncia, por sua vez, é inexoravelmente relacionada com a memoria em suas diferentes modalidades: 1) memoria para identificagao de objetos que organizados e agrupados constituem os eventos e as experiencias, incluindo o ambiente circundante; 2) memoria para eventos e experiencias; 3) memoria para o trabalho intelectivo propriamente, abrangendo pensamento, raciocinio e imaginagao (Bradshaw, 1997). Psicólogos evolucionários (Por exemplo, Bradshaw, 1997) procuram, em estudos comparatistas, rastrear a continuidade evolutiva entre animáis humanos e nao humanos, incluindo aspectos da consciéncia e da memoria. Em contraste, etnólogos e antropólogos preocupam-se com as diferengas entre animáis humanos e nao humanos, em particular com o processo de formagao da cultura. Por cultura entende-se o compartilhamento de crengas, hábitos, artes, instrumentos e organizagao social. A cultura constituí um conhecimento explícito e implícito, transmitido de geragao a geragao, podendo experimentar momentos de progresso, estabilidade e declínio. A este propósito Edmund Leach (1976, p. 35) resumiu a visao antropológica de humano em Claude Lévi-Strauss, do seguinte modo: O homem é um animal, um membro da especie Homo sapiens, sendo párente próximo dos grandes primatas e mais distante de outros seres vivos presentes e passados. Mas o homem, nos afirmamos, é um ser humano, e ao dizer isso se quer dizer, evidentemente, que ele é diferente e de alguma maneira um outro e nao 'simplesmente um animal'. A localizagao das características distintivas do humano moderno no plano evolucionário é, também, a localizagao dos aspectos que vao ocupar a atengao do campo de estudo que receberá, posteriormente, o nome de Psicología. Entre esses aspectos destaca-se a manifestagao da consciéncia como a capacidade para intuigao ¡mediata, para revisar o passado e para se voltar ao futuro. A consciéncia é a capacidade genérica e universal dos humanos de geragao de sentido para eventos e experiencias cotidianos, preenchendo vazios e faltas. Foi a condigao de ser consciente e de poder dirigir a consciéncia para ela mesma que permitiu aos humanos, o desenvolvimento da reflexao, este ímpeto á procura de sentido para si, para o outro, e para o mundo circundante. Hearnshaw (1987), um historiador británico de Psicología, disse que quando os humanos comegaram a se expressar artísticamente e a sepultar seus mortos com oferendas, eles estavam reafirmando o sentido dos limites entre vida e morte, e celebrando a própria sobrevivencia. A condigao humana de constituir sentido emergiu no desenvolvimento de crengas entre os antigos. Essas crengas eram expressas em magias, rituais e mitos. Elas surgiram da observagao cuidadosa, paciente e continuada do comportamento de outros seres humanos, dos animáis, e da natureza. Os antigos podem ter se perguntado, por exemplo, qual a diferenga entre humanos, animáis e plantas; qual a diferenga entre sua tribo e outras tribos; e qual a diferenga entre cada um deles e os outros. Eles aprenderam, muito cedo, que estavam envoltos em urna rede de relagoes complexas e diante de fatos sobre os quais nao tinham controle. As respostas para explicar ou lidar com as questoes apontadas apareceram gradativamente em explicagoes mágicas e, mais adiante, religiosas. As origens das crengas tragam o caminho da vida inteligente. Em sentido ampio, as crengas antigás ilustram a criagao de sentidos gerais que estabelecem limites conceituais e Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Gomes, W. B. (2004). Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 37 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.ritm práticos: o que comer, quando comer, que plantas e animáis podem servir de alimentos, por que preservar o territorio da tribo, por que ir para luta com outras tribos, e por que nosso povo tem um destino e urna missao especial. Do respeito aos limites dependía a ordem da vida social e a garantía da sobrevivencia. A magia (Séjourné, 1957) traz a primeira forma de relagáo do humano com seu próprio corpo, com os outros seres humanos e com as forgas onipotentes da natureza. Na magia, os humanos procuravam assimilar as forgas da natureza ou se fazer semelhantes a elas. O ritual mágico era mediado por um feiticeiro, aquele capaz de viver os fenómenos naturais, assemelhando-se a eles. O feiticeiro invoca a chuva imitando-a, o mesmo ocorre com a imitagáo do menino que sumiu na floresta, e com as dores do corpo. O sucesso da mágica estava na capacidade de imitar com perfeigao. Havendo falha, a justificativa estava na imperfeigao do ato de imitar. As crengas mágicas revelam a presenga da vida inteligente e as relagoes contextuáis que apoiavam tais crengas e comportamentos. Os atos mágicos (Séjourné, 1957) indicam a falta de realidade do pensamento, a incapacidade de síntese, e a ausencia de um centro de referencia. A magia foi urna maneira de lidar com o múltiplo por meio de fragmentos, caracterizando-se como um modo de agir através de atos parcelados. A religiao apresentou-se como um avango extraordinario na vida inteligente e trouxe o principio de unidade capaz de lidar com emanagoes de todos, a interligagao de partes que perfazem urna ordem, por exemplo, o cosmos invisível (Séjourné, 1957). É quando surgem as concepgoes de urna alma cósmica que dá ordem á natureza, e da alma individual que, de alguma forma, está também presente em animáis e plantas. O humano emerge como centro de si mesmo, disposto a interferir no curso dos acontecimentos e na própria natureza. A unidade que se obtém na religiao independe de sua condigao politeísta ou monoteísta. Associados ás crengas religiosas, surgiram os rituais e os mitos. Os rituais sao sistemas de atos simbólicos regulados por regras próprias. O mito é urna narrativa simbólica de origem desconhecida, pertencente á memoria coletiva de um povo, e que relata eventos ligados ás crengas religiosas. As narrativas míticas podem envolver deuses, heróis, animáis e plantas. Os rituais estao relacionados aos totens que sao objetos simbólicos (planta ou animal), separados para lembrar ancestrais mortos ou para preservar tradigoes familiares ou tribais. A linguagem do ritual é a mesma linguagem do mito. Os rituais pré-históricos envolviam sacrificios humanos e de animáis. Por exemplo, Laurette Séjourné, urna antropóloga especializada no estudo do pensamento e religiao do México pré-colombiano, publicado pela primeira vez em 1957, conta que na religiao asteca o homem nao tinha outro fim sobre a Terra que nao fosse alimentar o Sol com o seu próprio sangue. Sem sangue o Sol se esgotaria e chegaria a seu fim. Aos astecas restava o dilema: matar seres humanos ou esperar pelo iminente fim do mundo. No exemplo, emerge claramente a construgao do mito e a sua relagao com o ritual de sacrificios humanos, em altares especialmente preparados para este fim. O estudo das culturas primitivas foi fortemente influenciado por Edward Burnett Tylor [1832-1917] um etnólogo británico que descreveu as origens do pensamento religioso, em um livro publicado originalmente em 1871-1873, com o título de Primitive Culture (Tylor, 1958). Para Tylor (Tylor, 1958, vol I), nossos ancestrais eram movidos por curiosidades, intrigados com as próprias experiencias dos sonhos e visoes, e dispostos a encontrar urna explicagáo satisfatória para a morte. Eles, entáo, articularam idéias sobre principios animistas e almas fantasmas, estendendo tais idéias para a alma individual, daí para toda a humanidade e daí para o mundo nao natural. Assim, as primeiras explicagoes foram por meio de crengas que ficaram conhecidas como mitos. Tylor (1958) tomou o mito como base para explicar as origens da religiao. Para ele, os mitos interpretavam os fenómenos da natureza com interpolagoes alegóricas, de acordó com o olhar dos povos antigos. É autor da teoria do animismo, na qual ele explica a origem do conceito de alma. O termo animismo é definido como a crenga Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Gomes, W. B. (2004). Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 38 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm em alma ou espirito como entidade distinta e separada da materia. Poirier (1981) resumiu a teoria do animismo em quatro proposigoes: 1) o conceito de alma nasce da experiencia do sonó e da morte; 2) os conteúdos dos sonhos com suas cenas e dramas induziram a idéia de que durante o sonó o ser humano pode agir, deslocarse, continuar uma vida inaparente, mas real, e ser uma sombra dele mesmo, sendo esta sombra a alma; 3) a alma está presente em todos os seres vivos como um espirito vital; e 4) a alma dos mortos pode agir sobre os vivos. A relagao entre sonó, sonho e morte levou á dedugao de que os seres sao constituidos de um corpo visível e de um espirito invisível. A alma é móvel, está presente nos animáis e até nos seres inanimados, e é a vida universal que anima a natureza. De resto, a alma dos antepassados, dos sacerdotes, dos chefes e dos heróis tem autoridade permanente e pode agir sobre os vivos para protegé-los ou prejudicá-los. Em suma, a alma que anima a natureza pode reencarnar-se em animáis humanos, em animáis nao humanos, e em objetos. As crengas sobre almas e espíritos foram se tornando complexas. Em sua reflexao sobre o sentido do mundo e das coisas, o ser humano foi diferenciando os espíritos e elaborando uma realidade de muitos deuses, com fungoes específicas: deuses do mar, do céu, da agua, da colheita, da fertilidade, da guerra, do amor e assim por diante. Foi o que veio a se chamar de politeísmo. O monoteísmo, seguindo a teoria de Tylor, representaría uma etapa posterior e mais abstrata e estaría baseada em nogoes do bem e do mal. Os conceitos de animismo e de alma atravessaram sáculos e continuam presentes, com muita forga, nos dias de hoje. O animismo, em termos gerais, é a doutrina de que os organismos vivos sao animados por uma alma, ou seja, a alma é o principio de vida orgánica e da vida psíquica. O conceito se refere a crengas cruas e ingenuas, ñas quais se confundem imagens, sentimentos e realidade. As relagoes de causalidade se apóiam em idéias falsas, e as práticas mostram uma confianga absoluta no sobrenatural. O pensamento religioso para Tylor (1958) é uma forma de animismo, variando em grau de sofisticagao. No entanto, a magia foi um desenvolvimento importante da inteligencia humana, procurando explicar as relagoes entre o homem e a natureza, alias, a mesma preocupagao da ciencia moderna. Nesta mesma linha de argumentagao, encontra-se Wilhelm Wundt [1832-1920]. Para ele, o conhecimento da natureza nao devia se basear em pressuposigoes apriorísticas, mas no relato psicológico do desenvolvimento humano. Este é o argumento dos seus estudos em Vólkerpsychologie (Wundt, 1912/1916) quando ele trata da historia da evolugao da psicología do género humano em quatro estágios: o homem primitivo, a idade totémica, a idade dos heróis e deuses, e o desenvolvimento da humanidade. A argumentagao é consistente com a virada conceitual provocada pelos evolucionistas, em contraste com a visao judaico crista da degenerescencia da humanidade. A humanidade seria, para Wundt, o ponto de chegada, a meta de aperfeigoamento. O interesse de Wundt era apontar para as primeiras manifestagoes da vida inteligente no totemismo, ñas idéias da alma, da vida depois da morte, até alcangar o desenvolvimento da personalidade e da reflexao evidenciadas ñas idéias de heróis e de deuses. Para Wundt, a idéia da alma originou-se no medo instintivo do morto, o medo de que alguma forga do morto pudesse vir a fazer mal e atacar os vivos. Esta alma deixava o corpo por ocasiao da morte na forma de uma cobra, de um verme, de um pássaro ou de rato. Por conseguinte, estes foram os primeiros animáis totémicos. Os totens foram entao estendidos a outros animáis, a plantas e a objetos inanimados de acordó com o significado atribuido ao animal ou objeto. O animismo, para Wundt, estava associado a um outro conceito de alma, a alma como fólego vital que deixava o corpo no momento da morte. Obviamente, as posigoes de Tylor quanto á origem do pensamento religioso e de Wundt quanto á evolugao do pensamento psicológico, foram criticadas. Durkheim (1912/1995) foi um crítico de Tylor, entendendo que a religiosidade, um fenómeno Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Gomes, W. B. (2004). Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 39 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.ritm duradouro e consistente, nao poderla ter se originado em urna ilusao. Para ele, o fato religioso era um fato social, nao redutível á verdade empírica. Spiro (1984) alegou que as explicagoes de Tylor desconsideraran! as implicagoes sociais e emocionáis da religiao. Bloom (1992), seguindo a perspectiva do criticismo religioso, defendeu a condigao irredutível da experiencia religiosa. Neste sentido, a religiao seria urna experiencia transcendente e sui generis. Por sua vez, Mead (1916) criticou Wundt sob o argumento de que suas posigoes estavam desatualizadas e de que nao poderiam ser levadas em consideragao quando tratando de temas antropológicos. Ressalvou, contudo, que as idéias psicológicas apresentadas eram interessantes e sugestivas. Gundlach e Robinson (1992) avaliaram as posigoes de Wundt como urna síntese da teoria social da Europa Continental. Para os autores, a evolugao cultural em quatro etapas, como referida ácima, nao passava de reminiscencias obvias das informagoes darwinistas, e das teorías dialéticas defendidas no sáculo XIX por filósofos como J. G. Fichte [17621814], G. W. F. Hegel [1770-1831] e K. Marx [1818-1883]. No entanto, o papel importante de Wundt está no reconhecimento da condigao humana como geradora de mudanga, criagao e desenvolvimento da humanidade, em urna visao voluntarista e romántica. De qual quer modo é impossível negar as evidencias históricas de que árvores e plantas foram reverenciadas como totens por serem belas e úteis, e as evidencias arqueológicas da ocorréncia de rituais como o culto das ossadas. O estudo destes materiais mostra que os paleantropídeos veneravam as mandíbulas de raposa no fundo das tocas, e de que os neanderthalenses, os últimos paleantropídeos, sepultavam seus mortos (Leroi-Gourhan, 1990). O conceito de animismo de Tylor e a preocupagáo de Wundt com a evolugao da consciéncia sao importantes por trazer a idéia da unidade psíquica nos seres humanos e por procurar entender a geragáo de sentido na relagáo direta com a experiencia. Os autores fornecem ainda urna perspectiva secular para o problema. O termo animismo procede do latim anima que quer dizer respiragáo ou alma. Por sua vez, o conceito de alma é básico para a compreensao histórica das teorías psicológicas. Apesar da grande variagao em concepgoes de alma, é possível restringir a abrangéncia do termo para tres definigoes básicas: 1) alma como sopro (respiragáo), 2) alma como fogo (calor vital que se apaga com a morte), e 3) alma como sombra, duplo, ou simulacro - que pode sair á noite, como ocorre nos sonhos; que pode aparecer aos vivos, como ocorre depois da morte; e que pode reencarnar-se em outros seres. O conceito de alma será redefinido continuada e simultáneamente na sucessao de idéias psicológicas. Afinal, o termo psique significa alma, isto é, respiragáo, principio de vida, mente e cerebro. Concepgoes ontológicas do universo e da psique A génese das idéias psicológicas e seus contextos constituintes tem sempre como ponto de partida urna visao do universo e do ser. Trata-se dos principios ontológicos fundamentáis. O que era a natureza fundamental da realidade ou ser para as civilizagoes antigás? Certamente, essas visoes poderiam ser tantas quantas eram as civilizagoes. Algumas civilizagoes ganharam notoriedade pela sua proeminéncia histórica e pela influencia que até hoje exercem em nossa maneira de ser e pensar. O conceito ontológico de ser humano será revisto em tres civilizagoes: a chinesa, a indiana, e a egipcia. Essas civilizagoes trazem comporeensoes bem articuladas e hierarquizadas sobre a relagao entre cosmos, alma e corpo. As consideragoes que serao expostas estao baseadas na investigagao exaustiva e inédita de Paulo Roberto F. Mosca intitulada Epistemología Genética e Conhecimento Médico, a primeira tese de doutorado do Programa de PósGraduagao em Psicología da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, defendida em 1999. Seria fascinante se fosse possível iniciar a exposigao pela civilizagao mesopotámica. Há evidencias de que este povo já existia por volta de 12.000 anos a.C. e de ter Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Gomes, W. B. (2004). Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 40 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.ritm criado a escrita entre 4.000 e 3.000 anos a.C. No entanto, as teorías mesopotámicas sobre o mundo e sobre o humano nao foram preservadas. Sabe-se, contudo, que era urna cultura fortemente marcada pela magia e pela religiosidade (Mosca, 1999). China Antiga A origem dos chineses é pouco conhecida. Há evidencias arqueológicas de civilizagoes que existiram na regiao hoje ocupada pelos chineses com datagao de 5000 a.C. No entanto, o pensamento chinés, no que se refere ao taoísmo (caminho) comega a ser conhecida nos sáculos V e IV a.C. (Mosca, 1999) A cosmología chinesa é centrada em urna visao dinámica e mutante do universo. As propriedades fundamentáis do universo sao explicadas através das varias nogoes do taoísmo. A explicagao do mundo é dada através dos conceitos de Wuji (Sem Cumeeira), Tao (caminho), Taiji (Cumeeira Suprema), Yang (a grande luz), e Yin (a grande sombra). O Wuji (Sem Cummeeira) está além do pensamento e assim nao se tem como falar sobre ele. O Tao traz a relagáo entre mestre e aluno. Taiji (Cumeeira Suprema) é o principio natural do movimento perpetuo (nascimento, progresso, decadencia, aniquilagáo) e controla as forgas e movimentos constituidos por Yang e Yin. A dupla é mediada por um principio único do Tao, sendo que um deles nao pode existir sem a presenga do outro. Há entre eles um controle mutuo. Yang expressa a atividade {wei), o ser (yeu) o movimento, {tong) e o principio metafísico (//'). Em contraste, Yin expressa a nao atividade {wu wei), o nao ser {wu), a quiesséncia {tsung), e o éter físico {k'u). Ainda, Yang está associado a calor, luz e masculinidade; e Yin a nuvens, chuvas, e feminilidade. Os principios construtivos do ser humano, na ontologia chinesa sao descritos em urna ordem hierárquica incluindo: jing (esséncia seminal etérea), hing (corpo físico), k'i (sopro vital), p'o (alma racional ligada a materialidade), hun (alma racional cognitiva), e shen (alma superior, mais permanente que hun, e onde tche designa a vontade). A relagao entre os níveis fica mais fácil de entender quando se diz que corpo físico {hing) é animado pelo sopro vital {k'i) e constituido por urna esséncia {jing). Junto ao corpo tem-se urna alma terrena {p'o) que está ao lado de urna alma celeste {Hun ou Huen). Na China Antiga havia urna supervalorizagao das almas mais permanentes sobre as modalidades corporais efémeras. Neste sentido, os seres vivos sao explicados pelo k'i que é o sopro vital e está presente nos vegetáis, nos animáis e nos humanos; e pelo j/ng que se desdobra em Xeou jing e em Chang jing. O Xeou jing é a sensibilidade e está presente nos animáis e nos humanos; e o Chang jing é a racionalidade. Há urna analogía entre os principios construtivos do ser humano e o corpo, sendo indicada as seguintes correspondencias: hun-f\gado, p'o-pulmao, shen-coragao, siang-nns (fecundagao), tcfte-vesícula (vontade). Essas proposigoes orientaram as nogoes religiosas, psicológicas e médicas da Antiga China. india Antiga Há evidencias arqueológicas de que urna civilizagao hindú, indiana ou harappiana já existia, no subcontinente asiático, por volta de 2500 a.C, alcangando seu apogeu por volta de 2000 a.C, e desaparecendo por volta de 1750 a.C. A seguir, a regiao indiana foi ocupada pelos arianos que vieram provavelmente de Bactria e do norte do Irán. Os arianos rig-védicos estenderam seus dominios pelos vales do rio Indus (cerca de 1500 a.C.) e do rio Ganges (cerca de 900 a.C). Os arianos incorporam técnicas usadas pelos harappianos, trabalharam na fundagao de cidades, e desenvolveram o sánscrito, urna língua indo-européia na qual foi escrita a literatura clássica da civilizagao indiana. Ainda hoje o sánscrito é língua da cultura e das relagoes diplomáticas da india e das regioes que sofreram sua influencia (atuais Afganistao, Japao, Indochina e Indonesia). A expansao da civilizagao indiana experimentou grande movimentagao comercial com o Oriente Medio e com a Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Gomes, W. B. (2004). Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 41 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.ritm Mesopatamia, entre 700 e 300 a.C. Foi neste período que apareceu o budismo (Mosca, 1999). A ciencia indiana é pouco conhecida no ocidente. O que sempre interessou muito na cultura indiana foi a sua filosofía. Entre as muitas tradigoes do pensamento indiano, a vertente sámkhya foi a que parece ter exercido maior influencia sobre os principios ou elementos de ciencia (Mosca, 1999). Os apontamentos que seguem sobre a ciencia hindú tratarao de conceitos referentes ao sámkhya e ao budismo. O yoga, outra influencia hinduísta muito conhecida no ocidente, tem como referencia o tratado Yoga-sutras de um autor chamado Patañjali, mas que viveu muito depois do período que está sendo aqui considerado (séc. II a.C). O tratado deve ter aparecido em torno do sáculo II d.C. De acordó com o sámkhya, o Absoluto manifesta-se em tres grandes símbolos: o Grande Alentó, o Incognoscível, e a Grande Mae. O Grande Alentó é a nogáo central. Trata-se de um movimento abstrato eterno, de urna Realidade Única. O alentó é como a respiragáo, um movimento que está sempre indo e vindo. De acordó, com a tradigáo, o aparecimento e desaparecimento do Universo expressam, respectivamente, a expiragao e inspiragao do Grande Alentó. O Incognoscível é o que respira um pensamento, sendo este pensamento o Universo. Por fim, A Grande Mae é o Corpo do Universo Imóvel, isto é o espago. A consciéncia individual tem como fonte e origem o Grande Alentó. O conceito de ser humano, na tradigao sámkhya, é concebido em planos que correspondem a um certo corpo ou revestimento (Mosca, 1999). A descrigao que segué tenta expressar, em sua forma, o desdobrar destes planos e a linha de contigüidade existente entre eles: o primeiro plano é o corpo físico que é o Annamaya Kosha, o revestimento de alimento; ao qual se agrega o Pránamaya Kosha que é o revestimento do fluido vital; ao qual se agrega o Mánomaya Kosha que é o revestimento da mente com as emogoes e os pensamentos materiais, ao qual se agrega o Vijnanamaya Kosha que é o revestimento do conhecimento, a porgao superior dos pensamentos, o "eu" reencarnante; ao qual se agrega, o Anandamaya Kosha que é o revestimento do éxtase, correspondendo a alma espiritual, ás vezes referida como buddhi, termo do qual se deriva buddha que quer dizer liberdade. O budismo é urna religiáo e urna filosofía que embora tendo aspectos próximos ao hinduismo destacou-se com características próprias. O primeiro buddha foi Siddharta Gautama, nascido provavelmente em meados do sáculo VI a.C. Gautama era um nobre da tribo dos sáquias. Aos 29 anos, preocupado com a fatalidade do envelhecimento, do adoecimento, e da mortalidade, ele renunciou aos bens materiais, ao conforto dos palacios, á convivencia da mulher e do filho, e saiu em busca da verdade. Em suas andangas, primeiro encontrou dois mestres com os quais aprendeu a alcangar estados místicos de elevada consciéncia. Nao completamente satisfeito, continuou com as suas andangas e encontrou os ascéticos com os quais ele viveu seis anos de austeridade, praticando flagelagáo do corpo através de penitencias e jejuns. Sentido-se fraco e doente, Gautama deixou os ascéticos e seguiu o seu próprio caminho para a iluminagáo, através da meditagáo. Siddharta Gautama fundou o budismo, urna filosofía e religiáo que se interessa profundamente pelo estudo da mente, usando como método a meditagáo. Ao contrario de outras religioes nao tem um deus de adoragáo. O ponto central do pensamento budista é o sofrimento que é gerado pelas reencarnagoes sucessivas e suas sementes kármicas. A iluminagáo tem como objetivo superar o sofrimento e romper com o ciclo da reencarnagáo. O budismo tem sua síntese doutrinária em quatro verdades: a vida é plena de sofrimento, a origem do sofrimento é a idéia acerca da existencia de um "eu", a cessagáo do sofrimento ocorre com a eliminagáo da idéia do "eu", a obtengáo dessa cessagáo se dá pela prática do óctuplo caminho. O nobre óctuplo caminho consiste em 1) compreensáo correta, 2) pensamento correto, 3) fala correta, 4) agáo correta, 5) meio de vida correto, 6) esforgo correto, Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Gomes, W. B. (2004). Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 42 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm 7) atengao correta, e 8) concentragao correta. As verdades budistas foram analisadas por Mosca, baseando-se para tanto no Samyutta-Nikaya, que quer dizer colegao (nikaya) de discursos (suttas). Com relagao a segunda verdade disse Mosca (1999, p. 250): O Samyutta-Nikaya 2:1,2 aponta que o "surgir" por meio de causas é a seguinte: as construgoes mentáis sao condicionadas pela ignorancia (a dualidade), a consciéncia é condicionada pelas construgoes, o nome e a forma sao condicionados pela consciéncia, as seis esferas sensoriais sao condicionadas pelo nome e pela forma, o contato é condicionado pelas seis esferas sensoriais, a sensagao é condicionada pelo contato, o desejo é condicionado pela sensagao, o apego é condicionado pelo desejo, a existencia é condicionada pelo apego, o nascimento é condicionado pela existencia, e condicionados pelo nascimento a velhice, a morte, o sofrimento, a dor, o desespero e os lamentos vém á existencia, esta é a origem dos males. Com relagao á quarta verdade, a análise de Mosca apontou o seguinte: A interrupgao das construgoes resulta da interrupgao da ignorancia, a interrupgao da consciéncia resulta da interrupgao das construgoes, a interrupgao do nome e da forma resulta da interrupgao da consciéncia, etc.; assim se produzem os males. Os elementos da cadeia de causagao condicionada sao analisados pelo SamyuttaNikaya 2:2-4 do seguinte modo (Mosca, 1999): a geragao de qualquer coisa, consiste em tres especies de existencia (dos prazeres sensuais, da forma e do sem forma), em quatro tipos de apego (aos prazeres sensuais, a urna mesma opiniao, a regras e ritos, a idéia do "eu"), em seis tipos de desejos (o das formas materiais, o das coisas ouvidas, o das percebidas pelo olhar, o ligado ao olfato, ao gosto, ao tato, e á mente), em seis sensagoes (as que nascem em contato com o olho, com a orelha, o nariz, a língua, o corpo e a mente), em seis tipos de contato (contatos com o olho, etc.), em seis esferas sensoriais (as esferas do olho etc.), em nome (ou seja a sensagao, a percepgao, o esforgo, o contato, a atengao) e em forma (derivada dos quatro elementos - térra, agua, ar, e fogo), em seis especies de consciéncia (pelo o olho, etc.) em tres especies de construgoes (pelo corpo, pela palavra, pelo pensamento) e em relagao a ignorancia das quatro nobres Verdades. Mosca enfatiza que o budismo é a mais psicológica de todas as religioes. No oriente, o budismo exerce forte influencia na vida espiritual, social e cultura desde o sáculo VI a.C. A partir do sáculo XX o budismo comegou a fazer adeptos também no ocidente. Egito Antigo O Egito juntamente com a Mesopotánia já na Idade Neolítica (ou da Pedra Polida) fundaram cidades e Estados organizados. A historia geral descreve o Egito Antigo em diversos períodos políticos que abrangem desde o inicio das dinastías em 3100 a.C. á decadencia e dominio estrangeiro em 332 a.C. (Roñan, 1987). O apogeu das artes plásticas, das composigoes religiosas e dos grandes sabios ocorreu no Antigo Imperio, entre 2686 e 2160 a.C. Foram deste período as descobertas que fundaram a matemática, a astronomía e a medicina. Os papiros origináis deste período desapareceram, mas desenvolvimentos posteriores no Medio Imperio (2040 a 1786, a.C.) e no Novo Imperio (1567 a 1085 a.C.) supoem grandes elaboragoes Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Gomes, W. B. (2004). Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 43 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.ritm anteriores. Mesmo os papiros médicos do Novo Imperio eram copias ou adaptagoes de documentos que remontam ao Antigo Imperio (Mosca, 1999). Os antigos egipcios conceberam uma ontologia complexa constituida por varios principios e corpos (Mosca, 1999). Os seres humanos eram formados por um corpo físico (kha), um corpo etéreo (£>a) que seria o alentó vital ligado ao coragáo, uma alma ligada aos desejos (ka), uma alma mental inferior (akh), uma alma superior ou intuitiva (sah), uma inteligencia espiritual (khw ou ku), e um espirito (atm). O corpo físico era descrito como possuidor de uma decadencia inerente, sendo a parte que era mumificada e enterrada no túmulo. O corpo etéreo seria uma alma que permanecía na vizinhanga do corpo do morto na cámara fúnebre ou voava livre. A alma mental inferior era um corpo astral, também designado de duplo, que tinha independencia do corpo físico. Possuía características e personalidade própria. As oferendas aos mortos tinham como objetivo alimentar essa alma inferior para que ela pudesse ser purificada e nao ficasse por ai atrapalhando a vida dos humanos na térra. A alma inferior era algo intermediario entre os deuses e os homens, podendo significar brilho e também o morto que retorna. A alma superior ou intuitiva era o corpo incorruptível que ia da tumba aos céus, era o corpo glorificado do ego. Ela era descrita como possuindo uma forma brilhante, luminosa e intangível ao corpo físico. Por viver com os deuses, a alma superior nao poderia ficar aprisionada ao túmulo, para evitar essa catástrofe teria que recitar fórmulas mágicas. Por fim, o espirito era o filho de Ptah que fazia o sacrificio da individualizagao para viver. Na religiao egípicia, Ptah era o deus criador de todas as coisas. Relacoes entre explicacoes animísticas e positivas ñas culturas antigás O primeiro ponto a ser destacado na comparagao é a inter-relagao das substancias que compoem o universo e a psique. Na ontologia chinesa aparece com clareza a visao tripartida de alma: 1) fólego vital enquanto vida, presente ñas plantas, nos animáis e nos humanos; 2) sensibilidade, presente nos animáis e nos humanos; e 3) a racionalidade presente nos humanos. O segundo ponto refere-se ás interligagoes das explicagóes etéreas ou anímicas com as explicagóes positivas, isto é, conceitos baseados em um estudo empírico da realidade corporal. A distingáo dessas relagóes é complexa, em parte pela escassez de documentos que possam servir de evidencia e também pela grande variedade de vertentes ontológicas em cada grande civilizagáo. Os chineses antigos nao estavam convencidos de que conhecimentos anatómicos e fisiológicos fossem indispensáveis para a compreensáo da estrutura do corpo humano. A prioridade voltava-se para as almas permanentes (shen, a alma superior) e nao para a alma efémera (corpo). A mesma hierarquia valorativa de almas existia para os humanos desta cultura. Para eles, o homem superior, por possuir uma estrutura interna elevada, nao se deixa contaminar pela varióla e nao é atacado pelos tóxicos, o mesmo nao ocorrendo com o homem vil. O importante, para os chineses, era o desenvolvimento da capacidade para observar e intervir nos varios níveis da alma, colocados ácima do corpo. Os Indianos pouco conheciam de anatomía, fisiología, patología e terapéutica. Por exemplo, a medicina védica, uma das vertentes ontológicas indianas, associava a doenga a negligencias em relagáo aos rituais e as regras de vida. Os egipcios sabiam que o homem nao podia viver sem alimento ou sem ar, que os excrementos eram ligados ao aporte de alimentos, e que havia substancias dentro do corpo que preservavam a vida do corpo. Mas já se constata uma forte racionalidade e um certo conhecimento anatómico fisiológico. Nos procedimentos de mumificagáo, juntava-se o conhecimento positivo das partes do corpo que precisavam ser removidas para evitar a putrefagáo, com o conhecimento nao positivo de que era preciso acalmar o morto, prendendo e alimentando seu corpo vital. Na atualidade, reconhece-se que o pensamento indiano exerceu influencia na lógica ocidental, apontando para certas inadequagoes e mostrando que certas distingoes nao sao táo determinadas e inevitáveis como parecem ser. Por exemplo, o Tratado Filosófico Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Gomes, W. B. (2004). Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 44 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Hindú (Upanisads) traz urna das primeiras formulagoes sobre monismo radical, isto é, a unidade essencial entre corpo e espirito. O argumento central deste texto é a construgao do sentido como característica básica e enunciadora da inteligencia humana. Por sentido entende-se a compreensao ¡mediata e necessária que se requer ao humano diante do curso da vida. O sentido é a interpretagao das informagoes obtidas pelas sensagoes ou pelas elaboragoes imaginativas e que serve de base para agao ou resposta. Mas o sentido é, também, a interpretagao da natureza da qual este humano é parte, e do mundo em que vive. As evidencias das primeiras manifestagoes de sentido ou de inteligencia sao escassas e fragmentadas. A documentagao arqueológica encontrada refere-se ao instrumental técnico, ao habitat, e as atividades religiosas e estéticas. O interesse de urna abordagem científica ao problema é saber como se chegou ao primeiro hominídeo, aquele que aparece dotado de urna consciéncia do próprio existir. Para aqueles que se orientam pela tradigao judaico crista, por exemplo, o problema já está resolvido há muito tempo, tornando-se desnecessário procurar o elo da cadeia antropídea. Pois, pela graga de Deus, fez-se o primeiro homem, plenamente amadurecido. Por outro lado, aqueles que procuram urna compreensao secular defrontam-se com a hipotética teoria do animismo, ou seja a imaginagao criadora enquanto atividade da consciéncia, buscando sentido para a relagao entre a vida e a morte. Por esta teoria, o conceito de alma invisível e ¡mortal é urna criagao do sentido humano. De qualquer modo, a idéia de urna alma independente e separada do corpo, mas reunindo características intelectivas e/ou divinas tornou-se base para a explicagao do conhecimento, da racionalidade, e, por conseguinte, do comportamento, ocupando a posigao central em muitas teorías ao longo dos sáculos. As concepgoes de psique e de mundo das civilagoes que precederam aos gregos, como a China, a India e o Egito servem de ilustragao para dois importantes pontos: a explicagao para a relagao entre o cosmo, o corpo, e a psique; e a conjungao de principios ontológicos (o que é a realidade) com principios axiológicos (o que é o bem e o belo), principalmente a ética no sentido de moral ou costume. Nota-se ñas teorías, em um primeiro plano de comparagao, um esforgo para explicar as relagoes entre o cosmos e os seres vivos: os chineses pelo sopro vital (k'i), os indianos pelo Grande alentó e o Incognoscícel, e os egípicios pelo corpo etéreo, o alentó vital. Em um segundo plano, as teorías procuram diferenciar a sensibilidade e também a forga para o movimento, dando-lhe um status de materialidade: os chineses com a sensibilidade (xeou jing), os indianos com as emogoes e os pensamentos materiais, e os egipcios com a alma ligada aos desejos. Em um terceiro plano, as teorías trazem o problema da racionalidade, os chineses contrapondo conhecimento e vontade, representados respectivamente pela a alma racional cognitiva e pela alma mental superior; os indianos no contraste entre o conhecimento e o eu reencarnante, e os egipcios no contraste entre a alma mental inferior (o corpo astral ou duplo) e a alma mental superior ou intuitiva. No último plano está a diferenga entre a alma perecível e a alma imperecível, no caso dos chineses era a alma terrena versus a alma celeste; no caso dos indianos era a experiencia libertadora da éxtase, a alma espiritual; e para os egipcios era a alma mental superior que iria da tumba aos céus. As questoes ontoaxiológicas decorrem das pressuposigoes ontológicas como base prescritiva (ética) em educagao e saúde. Por exemplo, os egipcios diferenciavam claramente urna alma mental inferior que era independente do corpo físico mas permanecía ao lado do corpo, podendo sair atrapalhando e criando problemas para os vivos. A esta alma, eram dedicadas as oferendas para que ela se purificasse e permanecesse tranquila em seu próprio lugar, sem sair para incomodar os demais. Já a alma mental superior requería um certo cuidado em vida para que ela retornasse aos deuses, de onde havia vindo. Esse cuidado se fazia por meio da recitagao de fórmulas mágicas. Quais as implicagoes práticas dessa ontoaxiologia? O cuidado com as sepultaras e as oferendas, no caso da alma racional inferior; e a Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Gomes, W. B. (2004). Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 45 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.ritm recitagáo de fórmulas mágicas no caso da alma mental superior. No caso do budismo, a relagáo ontoaxiológica é muito clara e apresenta, em sua estrutura, semelhangas com teorías psicoterapéuticas contemporáneas. Basta considerar as características ontológicas das quatro vertentes e comparar com a prática budista. As civilizagoes antigás, apesar das distancias geográficas e das condigoes rudimentares de transporte entre elas, desenvolviam intensas atividades comerciáis entre si. A China por volta de 1500 anos a.C. já mantinha comercio com o ocidente, tendo a india como parte da rota de viagem. Há também evidencias de relagoes entre Egito e Mesopotámia desde 1100 anos a.C, conforme evidencias no campo da astronomía, comprovadas no uso do gnomon, ponteiro que marca a altura do sol pela direagáo da sombra, e dos polos para marcar hora, dia, e ano. Entre os sáculos VII e V a.C. ressurgia de quatrocentos anos de obscurantismo a civilizagáo grega. A base desta civilizagáo era a polis, a Cidade-Estado, a comunidade limitada e autónoma. O modelo havia sido inspirado ñas civilizagoes orientáis e consolidava-se politicamente em sua forma de governo democrático (Roñan, 1987). Tinha inicio o grande momento da Grecia antiga, caracterizado por intensa atividade comercial com outros povos e grande florescimento ñas ciencias e ñas artes. Era urna época em que para se estudar se empreendia muitas viagens com o objetivo de conhecer as diferentes culturas, os grandes centros de conhecimento, e, sobretudo, os mestres egipcios, persas, chineses, e indianos. Neste período, surgiram eminentes sabios gregos que foram denominados de físicos por Aristóteles e de filósofos pela tradigao. Por algum tempo, estes sabios foram chamados de primeiros filósofos. Tal entendimento nao é mais aceito por se reconhecer a contribuigao anterior de grandes pensadores de outras culturas mais antigás. Assim, quando os manuais de historia da psicología retornam aos gregos como ponto de partida, certamente nao estao desprezando as civilizagoes anteriores. Contudo, coube aos gregos a construgao da grande síntese e da ampliagao deste conhecimento previo, mesmo que privilegiando algumas diregoes em detrimento de outras. Na síntese grega ampliada e enriquecida assentou-se o alicerce do conhecimento ocidental contemporáneo, entre eles, a psicología. Referencias bibliográficas Bradshaw, J. L. (1997). Human evolution: a neuropsychological perspective. East Sussex, UK: Psychology Press, Publishers. Cavalli-Sforza, L. L. (2003). Genes, povos e línguas (C. A. Malferrari, Trad.). Sao Paulo: Companhia de Letras. (Original publicado em 2000). Churchland, P. M. (1995). The engine of reason, the seat of the soul: a philosophical journey into the Brain. 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Primeiras nocoes da psique: das concepcoes animistas ás primeiras 46 concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.ritm Leach, E. (1976). Claude Lévi-Strauss. New York: Penguin Books. (Original publicado em 1970). Leroi-Gourhan, A. (1990). O gesto e a palavra: técnica e linguagem. (V. Gongalves, Trad.). Lisboa: Edigoes 70. (Original publicado em 1964). Lyell, C. (1830). Principies of Geology. (R. Robbins, Ed.). Retirado em 07/05/2004, do World Wide Web: http://www.esp.org/books/lvell/principles/facsimile/ Keller, E. F. (2002). O século do gene. (N. Vaz, Trad.). Belo Horizonte: Cristálida. (Original publicado em 2000). Mead, G. H. (1916). A translation of Wundt's Folk Psychology (A review). Amercian Journal of Theology, 23, 533-536. Mosca, P. R. F. (1999). Epistemología genética e conhecimento médico: O caminho das idéias médicas sobre o caminho do sangue (e da vida). 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Nota sobre o autor William B. Gomes é psicólogo, Doutor em Higher Education (Southern Illinois University Carbondale, EUA), professor no Instituto de Psicología da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contato: Instituto de Psicología - UFRGS, Rúa Ramiro Barcelos 2600/113, CEP 90035-003, Porto Alegre - RS, Brasil. E-mail: [email protected] Data de recebimento: 31/07/2004 Data de aceite: 20/10/2004 Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm Crippa, G. (2004). Um bibliotecario em sua biblioteca: Cassiodoro e os leitores ideáis na Idade 47 Media Memorándum, 7, 47-57. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.ritm Um bibliotecario em sua biblioteca: Cassiodoro e os leitores ideáis na Idade Media A librarian in his library: Cassiodorus and the ideal reader in the Middle Age Giulia Crippa Universidade de Sao Paulo Brasil Resumo Urna proposta de releitura do De Institutione Divinarum Litterarum, "manual" para organizagao de urna biblioteca, obra de Cassiodoro. Autor longamente avahado na ótica do desenvolvimento da espiritualidade crista, referencia obrigatória na historia das bibliotecas, sempre é mostrado como exemplo de antiguidade tardia, caso ¡solado e sem influencias maiores na Idade Media. Na perspectiva de urna historia da leitura e dos públicos leitores, urna revisao crítica torna-se necessária: a preocupagao com a fungao dos livros e com níveis diferenciados de leitores e de leituras, reconhecida em Gregorio Magno e em Isidoro de Sevilha, já estava presente em Cassiodoro. Por outro lado, a imagem da biblioteca beneditina e de seus monges copistas é recalcada no modelo da atividade desenvolvida em Vivarium, muito mais do proposto pela Regra. A atividade ligada aos livros, atribuida aos monges beneditinos, é tardia em relagao á fundagao da ordem, e sofre influencia profunda da escola de Cassiodoro. Palavras-chave: Cassiodoro, bibliotecas, historia da leitura Abstract New reading of the De Institutione Divinarum Litterarum, a "didactical writing" for library organization, by Cassiodorus, considered for a long time, in the perspective of the spiritual Christian development, mandatory reference in the history of libraries, and an example of Late Antiquity thinker, an isolated case with no large influence during the Middle Ages. In the perspective of the history of reading and of the readers, a critical reading becomes necessary, due to the concern about the function of books and of different reading levéis, recognized by Gregorius Magnus and Isidor of Seville, were already presents in Cassiodorus. A certain picture of Benedictine libraries and of their writing monks reveáis a model generated in Vivarium, much more than what was contained in the Rule. Activities related to books attributed to Benedictine monks take place later than the foundation of the order, and reveáis a profound influence of Cassiodorus' school. Keywords: Cassiodorus, libraries, history of reading Introdugao Nos últimos anos muitas páginas tém sido escritas sobre o ato da leitura. Os historiadores e os historiadores da literatura, derrubadas as fronteiras tradicionais de seus campos de estudos, vém dedicando pesquisas voltadas ao entendimento desse ato, com abordagens diversas: dos enfoques mais literário-estéticos, que revisitam as obras através de seus públicos, estratificados ao longo dos sáculos, aos Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.htm Crippa, G. (2004). Um bibliotecario em sua biblioteca: Cassiodoro e os leitores ideáis na Idade 48 Media Memorándum, 7, 47-57. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.ritm estudos de cunho mais antropológico, que procuram descobrir ritos individuáis e coletivos da leitura, até as fronteiras de urna demografia da distribuigao dos livros e dos leitores. Conhecimento histórico, para ter um sentido hoje, teve e tem que refletir sobre si próprio, para se dotar de significado, para procurar ferramentas de exegese e crítica á realidade. E é exatamente nessa busca de urna identidade, que se quer intelectual, que surge a necessidade de se pensar o próprio conhecimento em sua vertente histórica, como nos propomos aqui, através da abordagem de urna época e de urna visao do mundo em evidente estado de mudanga, entre Antiguidade e Idade Media. Nessa passagem, imperceptível no sentir cotidiano, é possível destrinchar herangas e novos horizontes, que ainda se confundiam e interagiam entre elas, transformando-se: o resgate da reflexao intelectual de outros momentos, de outras épocas, torna-se necessária para refletir sobre o papel e o desempenho daquela parte de populagao que procura, como caminho, o uso da textualidade escrita como instrumento estruturante de sua própria existencia, trago que permite identificar aquelas figuras que, no decorrer do tempo se tornam o conjunto intelectual reconhecido daquele espago e tempo. Localizamos um momento e um espago privilegiados: o ocidente de tradigao romana. Trata-se de urna área em que o registro histórico se constituí, em um primeiro momento, no reconhecimento do valor da prática da escrita como constitutiva de um conjunto de documentos portadores de memorias que, feitas as distingoes de método e crítica da exegese documentaría, estruturam a memoria de poderes existentes e de suas vertentes. Dentro dos estudos voltados á leitura e aos leitores, voltados ao entendimento da distribuigao e funcionalidade dos varios registros textuais, tanto verbais como ¡cónicos, ainda há um ampio espago para a releitura de "teóricos" do conhecimento e de sua organizagao, ao mesmo tempo personagens atuantes dentro da efetiva estruturagao da divisao e classificagao do registro de suporte desse conhecimento. Pretendemos, nesse trabalho, analisar urna fonte escrita: trata-se do tratado de Flávio Magno Aurelio Cassiodoro (s/d, tomus 70, p.11061150) De Institutione Divinarum Litterarum, escrito no VI século d.C, como "manual de instrugao"da biblioteca de Vivarium. Varias sao, hoje, as razoes de se voltar a essa fonte e discuti-la: em primeiro lugar, a farta bibliografía que trata da historia das bibliotecas, quando se ocupa da Idade Media, cita ostensivamente este tratado. Todavía, a referencia, obrigatória, limitase a sinalizar a iniciativa de Cassiodoro de preservar e perpetuar a tradigao clássica, por meio das tradugoes, ao lado da transcrigao dos manuscritos cristaos. Livros de divulgagao, como o recente best seller de Matthew Batties (2003) revelam como essa fonte primaria seja, na verdade ou desconhecida ou citagao de citagao. Batties, por exemplo, mostra um grau de desconhecimento notável desse autor (cf. ídem, pp. 64-65) e, todavía, seu livro alcanga um público relativamente ampio de leitores interessados no assunto histórico sobre livros e bibliotecas, contribuindo, assim, á divulgagao anacrónica da relagao livros/leitores. Ensaios como o de Pierre Riché, muito mais corretos do ponto de vista da interpretagao histórica e das referencias, em sua busca de urna panorámica ampia da Idade Media, todavía, reduzem a importancia que esse autor teve na estruturagao das carnadas de leitores ao longo de dez sáculos (Riché, 2000; Basbanes, 1999). Para entender plenamente o peso que esse tratado teve, tanto na concepgáo de biblioteca, mas, principalmente, na concepgáo da leitura e do leitor, é necessário conhecermos algo sobre o autor e sobre as reflexoes dos principáis pensadores de sua época em relagao á textualidade escrita, suas fungoes e seu público. A obra de Cassiodoro e suas influencias Flávio Magno Aurelio Cassiodoro, romano de origem siria, nasceu na Calabria por volta de 485 e morreu por volta de 580. Em um primeiro momento, foi conselheiro Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.htm Crippa, G. (2004). Um bibliotecario em sua biblioteca: Cassiodoro e os leitores ideáis na Idade 49 Media Memorándum, 7, 47-57. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.ritm do rei Teodorico. Depois da reconquista bizantina da Italia, passou do lado dos vencedores e se mudou para Constantinopla. Em 555 voltou para suas térras, em Vivarium, onde edificou um mosteiro dedicado a Santo Martinho, que se tornou centro de estudos com a finalidade de adquirir um conhecimento mais aprofundado da Biblia, utilizando, para isso, sem limitagao, as contribuigoes da cultura paga e da escola clássica. Em Vivarium, Cassiodoro criou o modelo de urna comunidade monástica, em que os estudos bíblicos apoiavam-se na base de urna harmoniosa colaboragao de caráter espiritual e manual, e onde urna dignidade especial era dada aos escribas. Eles enriqueciam com o trabalho de suas maos a preciosa biblioteca, coragao do mosteiro, que conhecemos melhor de qualquer outra em época anterior aos carolíngios, pelas Institutiones. Em Vivarium, Cassiodoro e seus colaboradores, além de resgatar para a latinidade medieval obras gregas, através da tradugao, criaram novas obras latinas cristas. As Institutiones introduzem urna época em suas primeiras linhas: Cassiodoro, durante o pontificado de Agapito, imaginou a criagao de urna "faculdade teológica" romana: urna instituigao que teria a tarefa de contrastar o predominio das humanae litterae na instrugao superior. Pedagogía tradicional e estudo da Biblia, reflexao espiritual e preocupagoes filológicas (ou mesmo simplesmente gramaticais: a última obra de Cassiodoro [s/d, Patrologiae Latinae, tomus 70, pp. 1239-1270], composta quando o autor tinha mais de noventa anos, é um pequeño manual, o De Orthographia) sao as diretrizes ao longo das quais se moldam as atividades de Vivarium, um mosteiro que, de fato, antecipa a estrutura organizativa e a fungao cultural que as instituigoes monásticas assumirao de modo mais acentuado ao longo dos sáculos seguintes. Após sua morte, a maioria dos livros foi, provavelmente, destinada á biblioteca do Latrao e, em épocas diferentes, foram levados á Franga e á Inglaterra, para serem copiados. Em particular, durante a época da evangelizagao da Inglaterra, há referencias, em autores notáveis como Beda, as viagens dos abades ingleses para Roma, com a finalidade de se abastecer de livros, muitos dos quais eram obras de gramática (1). O conhecimento dessa Arte era necessário ao entendimento da Vulgata, em latim, língua que, nessas térras, nao pertencia aos novos monges convertidos. Os monges enviados por Gregorio Magno, que evangelizam a Inglaterra, levaram consigo livros, e o anglo-saxao Bento Biscop, que na juventude fora para Roma, cria as bibliotecas de Wearmouth e de Jarrow, com base nos manuscritos que levara consigo na volta de sua viagem. Gragas á biblioteca de Jarrow, Beda o venerável tornou-se um dos maiores letrados da Alta Idade Media. É no contato com os livros clássicos, profanos e sagrados, que adquiriu um estilo claro e pode utilizar o latim em suas obras históricas, científicas e escriturísticas. Beda formou Egberto, arcebispo de York em 734, ano de nascimento de Alcuíno, que mais tarde dirigiu a mesma escola, deixando urna especie de catálogo de todos os livros que possuía. Em 781 Alcuíno encontrou Carlos Magno em Parma, constituindo um sodalício cultural entre os mais importantes da Idade Media, que possibilitou a reorganizagao e a reunificagao da informagao escrita naquela que é comumente chamada "Renascenga Carolíngia". Pela especificidade dos interesses de Cassiodoro, considera-se que muitas das obras levadas para a Inglaterra da biblioteca do Latrao eram, originariamente, parte da biblioteca de Vivarium. Dos dois livros que compoem as De Institutione Divinarum Litterarum - manifestó cultural e, ao mesmo tempo, diario de trabalho compilado por Cassiodoro em beneficio dos próprios monges - aquele destinado a urna maior difusao na Idade Media é o segundo, que contém um compendio essencial das artes liberáis redigido na base de fontes destinadas a se tornarem cada vez menos acessíveis. Mas, para o leitor moderno, resulta sem dúvida mais fascinante o primeiro livro da obra, no qual Cassiodoro oferece urna resenha dos livros conservados em Vivarium, tendo o cuidado de assinalar aqueles provenientes de seu fundo pessoal e aqueles em grego, dispostos em urna prateleira específica. As Institutiones, obra de amplidao Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.htm Crippa, G. (2004). Um bibliotecario em sua biblioteca: Cassiodoro e os leitores ideáis na Idade 50 Media Memorándum, 7, 47-57. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.ritm notável, clara e, portante-, fácil de ser analisada e comentada, por muito tempo nao foi considerada marcante para a Idade Media, pois nao teve peso relevante na tradigao espiritual monástica. O plano de estudos de Cassiodoro, aparentemente, permaneceu urna especie de programa especulativo, sobre o qual nunca se refletiu e do qual nunca se tirou inspiragao, a nao ser em época bem mais tardia, sem dúvida pela influencia de Alcuíno que, nao por acaso, realizou sua formagao como abade de York. Seguindo esse raciocinio, se a influencia espiritual de Cassiodoro é praticamente nula, em termos de projeto cultural sua figura é bem mais relevante, merecendo, assim, algumas reflexoes a mais do que o costumeiro. A palavra escrita no cristianismo A Igreja, ao longo de sua constituigao, se articula na base da palavra escrita. Podemos verificar como, a partir do sáculo II há muitas exortagoes á leitura, mas que desde o sáculo III isso é cada vez mais freqüente: por exemplo, véem-se imposigoes da leitura das Escrituras ñas casas, para as familias, no almogo e no jantar, antes de dormir e ao acordar. Isso nao parece funcionar muito: taedium verbi divini é urna reclamagao conhecida por Orígenes (cf. Harnack, 1912, p. 69.). As mulheres preferem ler coisas mais leves (quem sabe, o romance popular sobre um homem que, por um feitigo, se transforma em um asno de ouro?). Joao Crisóstomo se desespera, quando pergunta "Quais de voces léem um livro cristao em casa?", e "voces tém dados em casa, mas nenhum livro" (citado por Harnack, 1912, p. 85). (2). Considerando alguns aspectos do mercado de livros no Imperio (cf. Kleberg, 1992 e Fedeli, 1998), os representantes da Igreja, que conhecem a realidade do seu tempo, nao teriam a ingenuidade de convidar á leitura sem um mínimo de acesso possível ao material escrito. Parece que entre o II e o III sáculo da era Crista um rolo de papiro padrao, vinte folhas, nao custava muito: a palavra de Deus, entao, era relativamente acessível. Certo, mas o número de alfabetizados era muito menor em relagao aos dias de hoje. Na verdade, o número de leitores nao coincide necessariamente com o numero de pessoas alfabetizadas. Nos primeiros tempos da Cristandade havia um incentivo muito grande á aproximagao com a palavra escrita. Além disso, Igreja se organizou para divulgar, oralmente, seus ensinamentos, que, todavía, se fundamentavam em escritos (e nao somente o Velho e Novo Testamento, mas as vidas dos mártires e dos santos eram urna produgao amplamente presente). Para facilitar o acesso ao conteúdo textual escrito, existia a figura dos leitores, mas também a translagao para a pregagao, os cantos e a iconografía. A partir do dado fundamental de que os cristaos sao o "Povo do Livro", ou seja, de algo escrito, pode-se observar a deslocagao da leitura stricto sensu para outras formas de textualidade. Alias, isso se torna indispensável, pois também entre aqueles que deveriam deter o conhecimento, assiste-se, após os primeiros sáculos da era crista, a urna cada vez maior incapacidade de elaborar questoes abstratas. Cesário de Arles, bispo de 503 a 543, chega a ser comparado ao bispo Cipriano pela promogao de textos escritos. Ele sabe que já está pregando em um deserto: sua tarefa é incentivar á leitura das Escrituras em familia, em voz alta, para todos, o que parece indicar urna certa resistencia: nao se exorta a fazer o que é feito corriqueiramente. Joao Crisóstomo, em um passo, imagina um reclamante, Ihe dizendo: "Eu sou um homem de negocios; nao é minha ocupagao ler a Biblia [...] isso é coisa para quem renunciou ao mundo e se devotou a urna vida soltaría no topo da montanha". Também há respostas tipo "Nao somos monges" (citado por Harnack, 1912, p. 118.). A degradagao do paradigma cultural e das estruturas nao sao novidades, mas qual é a solugao? Gramáticos, pedagogos, enfim, aqueles que se encontram seriamente preocupados com o declínio das estruturas culturáis do Imperio tardío, procuram urna saída. E pouco importa se cristaos ou pagaos: a consciéncia é que nao se pode perder aquele conhecimento, porque em algum Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.htm Crippa, G. (2004). Um bibliotecario em sua biblioteca: Cassiodoro e os leitores ideáis na Idade 51 Media Memorándum, 7, 47-57. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.ritm momento, algo nele funcionou em estabelecer as regras de um sistema. É um momento de compendios: se os estudantes, clérigos ou leigos pouco importa, nao léem os clássicos, entao que os clássicos cheguem a eles de outra forma, pois também o poder da escrita no mundo cristao é composto de retóricas, de herangas filosóficas, tornando-se um organismo vivo e capaz de transmitir seu conteúdo. Como diz Cesário de Arles (1939-1940, p. 60), "Visto que os ignorantes e os simples nao podem elevar-se á altura dos letrados, que os letrados condescendam a abaixar-se até sua ignorancia". O conhecimento, entendido como textualidade escrita, se retira, principalmente para os mosteiros. Com uma Regra, a de Sao Bento, que estabelece obrigagoes em relagao á leitura. É, aqui, necessária uma comparagao entre o livro como fator de cultura, em Sao Bento e em Cassiodoro, para entendermos plenamente o peso das Institutiones, peso que se apresenta como uma poderosa correnteza subterránea, em relagao á fungao atribuida aos livros e ao papel do leitor. Nos mosteiros beneditinos a lectio é limitada á Regra, aos livros litúrgicos, á Biblia - em particular aos Salmos - e poucos outros textos religiosos. Havia monges analfabetos e incultos, e tudo induz a crer que nos mosteiros beneditinos do século VI havia poucos livros, únicamente de natureza religiosa e cuja característica principal era a simplicidade. A cultura gramatical e retórica tradicionais, já recusadas pelo santo fundador, eram ausentes da vivencia das mais antigás comunidades beneditinas. Na comunidade fundada por Cassiodoro, o mosteiro era, principalmente, uma escola, na qual se ensinavam tanto as ciencias sagradas como as profanas, embasadas em uma concepgao totalmente livresca e filológica da cultura. No prefacio das Institutiones encontra-se a seguinte afirmagao: por isso, se isso agradar, precisamos preservar a ordem das leituras, [...] meditar, nos códices emendados, sobre a autoridade divina através do exercício, [...] para que os defeitos dos livros nao aumentem por causa das inteligencias grosseiras. (Institutiones, Praefatio em Hugo de Sao Vitor, 2001, p.86). No texto das Institutiones, além da rica mensagem cultural percebe-se a presenga de elementos novos e destoantes com a impostagao geral do discurso. Por exemplo, quando Cassiodoro é forgado a justificar a ignorancia dos irmaos analfabetos ou incultos, ou quando deve fornecer uma interpretagao alegórica da escrita (como no capítulo XXX, de antiquariis et commemoratione ortographiae, p. 1145, em que se le (3): "Aquilo que é de Deus de outra maneira se vé publicar, coisa que é lícita. Assim dito mais figurativamente, do onipotente compus na operagao"). Todavía, a proposta de Cassiodoro nao é voltada aos incultos, nao busca qualquer leitor: volta-se, principalmente, para uma élite de poucos cultos ainda capazes de entendé-lo. Da escrita ele dá uma interpretagao puramente instrumental, em fungao da divulgagao da mensagem crista e da cultura tradicional: em uma palavra, antiga. A preocupado da Primeira Idade Media com os leitores A cultura de Cassiodoro é totalmente imersa na antiga tradigao retórica, e nao admite intrusao de elementos estranhos no plano da didática, das técnicas e dos instrumentos. Cultura do escrito em que a funcionalidade do instrumento gráfico é avahada somente em sua relagao com o "legendi iter". Para o autor, a letra corresponde ao elemento base da escrita e da língua: "Littera est pars mínima vocis articulatae" ("A letra é a parte menor da articulagáo da voz"), retomando, nesse sentido, a definigáo clássica do gramático Probo, para o qual "Littera est elementum vocis articulatae". Em contraste, um autor como Virgilio de Toulouse já mostra uma visao alegórica da letra, para além do significado verbal implícito em cada signo Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.htm Crippa, G. (2004). Um bibliotecario em sua biblioteca: Cassiodoro e os leitores ideáis na Idade 52 Media Memorándum, 7, 47-57. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.ritm gráfico, oferecendo urna simbólica crista que se revela ausente em autores como Prisciano e o próprio Cassiodoro: Litera mihi videtur humanae condicionis esse similis: sicut enim homo plasto et afflatu et quodam caelesti igne consista, ita et litera suo corpore hoc est figura, arte ac dicione, velut quísdam compaginibus arctubusque suffuncta est animam habens in sensu, spiridonem in superiore contemplatione. (Virgili Grammatici, 1886, p.8). (4) O contraste entre essas definigoes mostra as pressoes ideológicas opostas sobre a escola e a retórica no sáculo VI, revelando incertezas e confusoes. A "vitória" da espiritualidade crista leva, a partir desse pressuposto ao estado de isolamento e á sensagao de "antiguidade" da concepgao didática e cultural de Cassiodoro. Pouca importancia, nesse sentido, realmente aparenta ter o autor no desenvolvimento filosófico da espiritualidade medieval. Porém, aos poucos, a proposta de biblioteca elaborada por Cassiododro acaba sendo adotada pela própria ordem beneditina, que substituí gradativamente os preceitos mais simples de escrita e de leitura de sua Regra, a partir do uso que se vé necessitada a fazer de materiais originarios de Vivarium. Na realidade da organizagao cultural crista dos primeiros sáculos, o livro encontra seu espago justamente na experiencia monástica, através das práticas ascéticas individuáis ou comunitarias. O trabalho de transcrigao ou a posse de um manuscrito, para o monge era um sustento e, as vezes, urna mercadoria. Nos "praecepta" de Pacómio se fala em códices conservados em um espago obtido na parede, onde se guardam também diversos objetos de uso doméstico. Responsável para os "códices" resulta ser aquele que, conforme as "Vitae Patrum", era o "pai da comunidade". Na "Regula Magistri" os livros eram confiados a um dos irmaos, que guardava os "ferramenta monasterii" e varias "arcae", cada urna preenchida por objetos de artesanato, domésticos e culturáis, reunidos em um único cómodo. Entre os ascetas e ñas primeiras comunidades monásticas circulavam livros ou textos muito escassos. A transcrigao dos livros era vista como trabalho interno á economía do mosteiro e a distribuigao e a retirada dos livros cabiam a um membro da comunidade. Vivarium revela urna diversidade organizacional inconciliável com aquela das primeiras comunidades: havia, de fato, um scriptorium e um adequado sistema de conservagao dos livros. Os códices eram preparados em "quaterniones" ou "seniones", com a anexagao dos fascículos. A tipología de cada manuscrito variava em fungao do texto e do uso para o qual os próprios códices se destinavam. Utilizavam-se escritas de módulo diferenciado para códices de qualidade textual e técnica particular. Em alguns casos era disponível urna serie de instrumentos auxiliares de leitura e consulta, e era possível encontrar tanto as obras de um autor único quanto os escritos de varios autores: estes eram reunidos em um volume único ou em poucos tomos, para serem consultados com facilidade maior. Também a encadernagao era considerada como muito importante. O cuidado "crítico" dedicado ao texto era praticado através da colagao com os antigos e executado com a ajuda da voz de um leitor. A devolugao do texto era regulamentada por normas exatas. A incompetencia dos scriptores deixava, as vezes, erros no texto que comprometiam a compreensao e, portanto, era necessária urna Decora Correctio, que também dizia respeito á estética do livro. As corregoes eram realizadas de maneira que a escrita do revisor nao se diferenciasse daquela profissional. A biblioteca de Vivarium era constituida por Armaría numerados, onde os códices, de conteúdo sacro, profano, latino ou grego, eram guardados. Cassiodoro, em seu texto, separa seus livros pessoais dos da biblioteca do mosteiro. Havia Escrituras Sagradas, Atas conciliares, escritos de historia, tratados Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.htm Crippa, G. (2004). Um bibliotecario em sua biblioteca: Cassiodoro e os leitores ideáis na Idade 53 Media Memorándum, 7, 47-57. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.ritm de gramática, manuais escolares e nao faltavam textos de aritmética, geometria, música e astronomía. Os sistemas e técnicas de produgao do manuscrito reproduziam aqueles praticados ñas escolas cristas tardo-antigas. Urna distancia cada vez maior dos fiéis em relagao aos textos escritos é visível ñas estrategias para a evangelizagao de Gregorio, entre o final do VI século e o comego do VIL Que a instrugao do clero e do povo tinha mudado desde os tempos de Agostinho e Ambrosio, é evidente, pelo próprio estilo do autor, consciente de encontrar leitores ou ouvintes com capacidades de concentragao e abstragao limitadas. Gregorio é, sem dúvida, um grande divulgador da concepgao alegórica crista do livro, um pensador em que se encontram os conhecimentos literarios que o tornam um dos maiores exegetas da Biblia. Em um passo de suas Homilías sobre Ezequiel, teoriza a diferenga entre a aprendizagem através da escrita e através da audigao, ou seja: entre a cultura dos analfabetos e dos letrados, grupo, este, herdeiro sim da concepgao cultural de Cassiodoro, que em sua introdugao á obra define as finalidades de sua obra em relagao aos leitores "possíveis": Sabendo como cresce, com grande impulso, o estudo das letras profanas, de tal modo que grande parte dos homens eré poder, através dele, alcangar a prudencia da carne, fui invadido de urna grandíssima dor ao constatar a ausencia de mestres públicos para as Sagradas Escrituras enquanto pululam as celebridades dos autores profanos. Procurei entao, junto com o beatíssimo Papa Agapito, que a cidade de Roma recebesse professores de urna escola crista onde as almas pudessem receber a salvagao eterna e a língua dos fiéis se embelezasse pela eloqüéncia puríssima e casta, assim como outrora houve por muito tempo na cidade de Alexandria, e também recentemente na cidade de Nísibe dos sirios, por parte dos hebreus. As guerras, porém, e as turbulentas batalhas extraordinarias, que ocorreram ñas regioes da Italia, fizeram com que meus desejos nao pudessem se realizar, pois as coisas da paz nao tém lugar em tempos agitados. A caridade divina obrigou-me, pois, por este motivo, a escrever estes livros para voces, para que fizessem as vezes de um mestre de iniciagao. Através deles, assim considero, a ordem das Escritas Divinas e o conhecimento breve das letras seculares revela-se como obra divina. Talvez menos claros, pois neles se encontra nao urna eloqüéncia afetada, mas urna narragao necessária. Sem dúvida, é conhecida a grande vantagem de se ter coisas escritas, pois através dos livros se aprende, lá onde a saúde da alma, assim como a erudigao secular se ensina que (deles) se originam. Nesses confio nao a própria doutrina, mas as sentencias dos antigos, que é lícito que os descendentes louvem e que prediquem aquilo que é ilustre. [...] Por isso, amados irmaos, aproximemo-nos sem vacilar das Sagradas Escrituras pelas exposigoes dos santos padres, como por urna escada de visao. Que meregamos, aproveitados pelos seus Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.htm Crippa, G. (2004). Um bibliotecario em sua biblioteca: Cassiodoro e os leitores ideáis na Idade 54 Media Memorándum, 7, 47-57. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.ritm ensinamentos, chegar efetivamente á contemplagao do Senhor. Esta talvez seja a escada de Jaco pela qual os anjos subiam e desciam, e feliz será aquela alma a quem Deus conceder formar-se na intimidade deste caminho; mais feliz ainda será aquele que nele souber indagar pela inteligencia da vida, aquele que, sabendo despojar-se dos pensamentos humanos, souber revestir-se do discurso divino. (Institutiones, Praefatio em Hugo de Sao Vitor 2001, p. 102). No IV sáculo a Igreja divulga sua mensagem através dos instrumentos elaborados na sociedade paga, em primeiro lugar o livro e a escrita. Cassiodoro representa a encruzilhada que separa esse modelo cultural do método de divulgagao propriamente medieval embasado em um nivel duplo de cultura e dotado de técnicas de comunicagao adequadas, capazes de garantir o contato com todo e qualquer estrato social, pois ele embasa o projeto erudito cristao que permite a elaboragao dos níveis diferenciados para a difusao da evangelizagao ortodoxa da Igreja crista. É nesse sentido que vale a pena observar a reflexao de autores que atingem seus conhecimentos nos moldes de Cassiodoro, com atengao particular em Gregorio Magno e Isidoro de Sevilha. Gregorio, homem extremamente culto, é herdeiro da mesma tradigao retórica e escolástica de Cassiodoro, e ambos nao desejam renunciar a ela. Gregorio mostra isso em suas obras de exegese, freqüentemente muito complexas. Como Cassiodoro, reserva essa produgao para um número restrito de eruditos leigos e eclesiásticos. Também, como Cassiodoro, estimula a transmissao de uma cultura funcional e de um patrimonio destinado aos iletrados, através da pregagao. Nesse sentido, ambos sao teóricos profundamente convencidos da necessidade de uma lógica cultural dupla, portanto de uma produgao cultural diferenciada em dois níveis, mediados por um grupo "técnico" de comunicagao: os pregadores. É a eles que Gregorio dirige seus Diálogos, obra popular por excelencia, nos quais o discurso mímico-cénico, em forma de discurso direto, prevalece sobre aquele analítico. Essa obra procura, portanto, leitores menos eruditos. Essa concepgao de diversificar os níveis de leitura, através de uma variedade de meios de difusao, encontra-se em forma esquemática didática na obra de Isidoro de Sevilha (Isidori Hispalensi Episcopi, 1911), que propoe explícitamente uma divisao da produgao dos livros em tres categorias: os excerpta - os comentarios - e a produgao gramatical escolar; as homilias, ou seja, os textos destinados á pregagao; as obras literarias, científicas e filosóficas, redigidas sem motivagoes práticas ¡mediatas de tipo escolar ou litúrgico. (5) As últimas duas categorias apresentam a diferenga de recepgao de público maior, tanto em Isidoro, como em Gregorio, e na base das obras mais eruditas coloca-se, idealmente, a organizagao do conhecimento e dos livros fundamentada na estrutura das Institutiones e realizada em Vivarium. Essa preocupagao encontra-se ñas Variae, textos de Cassiodoro (s/d, Patrologiae Latinae, vol. 69) em que discute assuntos de natureza diversa. Como exemplo, leia-se a seguinte citagao, relativa aos estilos a serem utilizados: Como título desses livros, para designar o caráter e os assuntos e sintetizar em uma palavra o conteúdo, escolhi o de Variae, pois foi forgado a nao usar um único estilo, precisando me enderegar a pessoas diversas. Diversamente, de fato, deve-se falar para pessoas preenchidas por muitas leituras, ou para pessoas de cultura mediocre, ou para quem é totalmente alheio as Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.htm Crippa, G. (2004). Um bibliotecario em sua biblioteca: Cassiodoro e os leitores ideáis na Idade 55 Media Memorándum, 7, 47-57. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.ritm letras, querendo persuadi-lo, tanto que, as vezes, é urna forma de pericia literaria evitar aquilo que os doutos gostam. Nao á toa, de fato, a sabia Antiguidade separou tres géneros de eloqüéncia: a humilde, que para seu próprio caráter de linguagem comum parece se arrastar no chao, o medio, que nao se eleva á grandiosidade nem decai no desleixo, mas se mantém dentro dos próprios limites, entre um e outro extremos, dotado, porém, duma sua graga, e um terceiro género, que, pela altura dos conceitos e das formas se eleva aos cumes mais excelentes do dissertar; certamente, para que toda variedade de pessoas pudesse dispor de urna linguagem própria, e essa, mesmo surgindo de um único peito, corresse, todavía, por caminhos diversos, pois nao pode ser chamado de eloqüente aquele que nao esteja armado dessa tríplice virtude, pronto para enfrentar vigorosamente as situagoes que se apresentam. (ídem, Líber I, p. 500). Na obra Cura Pastoralis de Gregorio, escrita para educar o clero, aconselha aos pregadores urna adaptagao de seus estilos ao público, mesmo que isso implique deixar de lado os requintes literarios, elemento que revela, inclusive, o declínio do nivel cultural medio do clero. Gregorio parte do pressuposto que os clérigos, em sua época, eram menos preparados daqueles para os quais Agostinho escreveu. Mesmo que seu trabalho seja voltado para os membros mais instruidos de sua diocese, ele deixa claro que nao espera que eles entendam idéias abstratas, nem que consigam traduzi-las em atos praticos. A existencia de urna enorme massa de analfabetos cristaos abre caminhos de leitura diferenciados, mas que se fundamentam em um conhecimento minimamente "técnico" por parte dos monges. Já observamos que se realiza urna operagao de transferencia do material originario de Vivarium para a Inglaterra exatamente a partir do pontificado de Gregorio, fornecendo material para os níveis de leitura diferenciados em áreas mais ampias de difusao do cristianismo. Essa base textual se traduz em meios que nao sao somente oráis, mas também visuais e figurativos, meios considerados idóneos para a comunicagao de conceitos ideológicos ao "vulgus" inculto ou semiculto, privo de meios de leitura. Ñas concepgóes de Gregorio, tanto teóricas quanto concretas, encontramos, portanto, a evolugao plenamente medieval da estruturagao do conhecimento de Cassiodoro em sua proposta de organizagao e selegao dos livros: o sonho de Cassiodoro é antigo, na medida em que ainda mantém a esperanga de aproximar a populagao as letras, através da manutengao da língua e da textualidade. Esse legado nao encontra as condigóes necessárias para se realizar, pela desestruturagao cultural da época e pela redugao drástica da própria produgao de livros, resultado da redugao progressiva da circulagao dos materiais, encaminhando para a busca de alternativas para a educagao e a informagao. A maioria dos "leitores" é alcangada pelas técnicas fundadas no discurso figurativo e nao mais analítico-discursivo, mas é na organizagao da escada do conhecimento de Cassiodoro que se fundamenta, cinco sáculos depois, o projeto de leitura da primeira escolástica, de maneira bastante evidente em um autor como Hugo de Sao Vitor que, em seu Didascalicon, (6) pensado como livro pedagógico e manual de leitura para os estudantes da Escola, além de recorrer a citagoes diretas de Cassiodoro, revela a persistencia de seu legado na constituigao de urna "biblioteca ideal" que se sustenta ao longo da Idade Media, pois a encontramos florescer, no ámbito das cidades fervilhantes de novos Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.htm Crippa, G. (2004). Um bibliotecario em sua biblioteca: Cassiodoro e os leitores ideáis na Idade 55 Media Memorándum, 7, 47-57. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.ritm comercios, novas catedrais e muitos estudantes, a disposigao de um número mais ampio de leitores. Primeira tentativa de sistematizagao da literatura patrística (á qual o próprio Cassiodoro deu urna contribuigao notável, com a composigao de um imponente Comentario aos Salmos), os capítulos iniciáis das Institugóes sao um livro feito por livros, mas também atravessado por urna galería de personagens dedicados á escrita e á tradugao delineados com poucos e claros tratos. Há, em primeiro lugar, o pequeño grupo dos monges mais cultos - Bellator, Epifánio e Muciano -, aos quais sao confiadas as tradugoes dos textos gregos ou a redagao de comentarios bíblicos ad hoc. Seguem autores canónicos da literatura religiosa, com o elenco das obras consideradas essenciais na escalada para o conhecimento divino. Mas é quando nos deparamos com o retrato de Eusébio, monge cegó capaz de consultar sem nenhuma dificuldade os livros e os autores guardados "na biblioteca de sua memoria" que chegamos a entender que nao se deve mais ter medo da erudigao enfadonha de urna Idade das Trevas pouco atraente, porque é aqui que a historia nos deixa espago para apreciarmos as fontes primarias do enredo do Nome da Rosa, mas, principalmente, as raízes intelectuais de Umberto Eco. Referencias bibliográficas Riché, P. As bibliotecas e a formagao da cultura medieval. Em M. Baratin & C. Jacob (2000). O poder das bibliotecas: a memoria dos livros no Ocidente. (pp. 246-247). Rio de Janeiro: UFRJ. Basbane, N.A. (1999). A gentle madness: bibliophiles, bibliomanes and the eterna! passion for books. New York: Owl Book. Battles, M. (2003). A conturbada historia das bibliotecas. Sao Paulo: Planeta. Cassiodoro (s.d.) Opera Omnia in dúos tomos distributa. Em J. Gareth (Ed.). Patrología Latina Tomus 69 e 70. Brepols: s.e. (Origináis do VI sáculo) Cavallo, G. (Org.). (1992). Libro e editoria nel mondo antico. Bari: Laterza. Cavallo, G. (Org.). (1998). Lo spazio letterarío di Roma antica. Vol. II La circolazione del testo. Roma: Salerno Editrice. Cavallo, G. (Org.). (2002). Le biblioteche nel mondo antico e medievale. Bari: Laterza. Cavallo, G. (Org.). (2003). Libri e lettorí nel Medioevo: guida storica e critica. Bari: Laterza. Cesário de Arles (1939-1940). Orate Fratres, 14. Em G. Morin. The homilies of St. Caesarius of Arles, (pp. 59-74). London: s.e. Farmer, D.H. (ed.). (1965). The age of bede. London: Penguin. Fedeli, P.(1998). I sistemi di produzione e diffusione. Em G. Cavallo (Org.). Libro e editoria nel mondo antico. (pp. 343-378) Bari: Laterza. Harnack, A. (1912). Bible reading in the early Church. London: s.e. Hugo de Sao Vitor (2001). Didascalicon. (A. Marchionni, Trad.). Petrópolis: Vozes. (Original do sáculo XII). Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.htm Crippa, G. (2004). Um bibliotecario em sua biblioteca: Cassiodoro e os leitores ideáis na Idade 57 Media Memorándum, 7, 47-57. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.ritm Isidori Hispalensi Episcopi (1911). Etymologiarum sive oríginum libri XX. (W.M. Lindsay, Ed.)- Oxford: s.e. Kleberg, T. (1992). Commercio Librarlo ed Editoria nel Mondo Antico. Em G. Cavallo (Org.). Libro e editoria nel mondo antico. (pp. 69-75) Bari: Laterza. Morin, G. (1939-1940). The homilies of St. Caesarius of Arles. London: s.e. Virgili Grammatici (1886). Opera. (J. Heumer, Ed.). Lipsiae: s.e. Notas (1) As referencias a algumas das viagens de Bento Biscop encontram-se na Vidas dos abades de Wearmouth e Jarrow de Beda, editadas por D.H.Farmer (1965) ñas pp. 188, 190, 192, 196 e 198. (2) Joao Crisostomo, Homilía in Johannis, 32, citado in Harnack, A. (1912), p. 85. (3) "(...) quod factum Domini aliquo modo videntur imitan, qui legem suam (licet figuraliter sit dictum) omnipotentis digiti operatione conscrípsit". (4) "A letra me parece ser próxima á condigao humana: de fato, tanto o homem é feito de lama, respiro e de um certo fogo celeste quanto a letra é a figura deste seu corpo, na arte e na dicgao, por assim dizer, com certas conjungoes e articulagoes se realiza, tendo a alma na frase, o espirito na contemplagao superior". (5) Etymologiarum sive oríginum libri XX. (1911) VI, viii, 1-2. (6) O Livro IV do Didascalicon pode ser comparado, em sua estrutura, com os capítulos I a XV das Institutiones. Nota sobre a autora Giulia Crippa é professora do Curso de Ciencias da Informagao e da Documentagao, Departamento de Física e Matemática, Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras, Universidade de Sao Paulo - Campus de Ribeirao Preto, Brasil. Contato: [email protected] Data de recebimento: 17/08/2004 Data de aceite: 11/10/2004 Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/crippa01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 58 Experiência como fator de conhecimento na psicologiafilosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII) Experience as factor of knowledge in the philosophical-psychology AristotelicThomist of the Society of Jesus (16 t h and 17 th centuries) Paulo Roberto de Andrada Pacheco Universidade de São Paulo Brasil Resumo Analisando um tipo específico de correspondência epistolar jesuítica - as Litterae Indipetae -, evidenciou-se um dinamismo de elaboração da experiência, revelador de um modus vivendi baseado no que comumente vem designado sob o nome de psicologia-filosófica aristotélicotomista. É a este vivido descrito nas cartas e a este modo de viver específico (com suas devidas implicações fundamentais) que se dedica este artigo, buscando responder a uma pergunta: em que medida a experiência (tal como era entendida no âmbito histórico-culturalinstitucional próprio da Companhia de Jesus nos séculos XVI e XVII) é fator de conhecimento? E conhecimento de quê? Mostrou-se uma concepção de experiência que parte do pressuposto de que o homem é uma unidade (corpo e alma, razão e fé, sensação e intelecção) e de que, vivendo ordenado (em si mesmo e no mundo que o circunda), realiza-se o seu ser por analogia ao Ser Divino. Palavras-chave: experiência, Companhia de Jesus, Litterae Indipetae Abstract By the analysis of a specific type of Jesuitical correspondence - the Litterae Indipetae -, a dynamism of the experience's elaboration was outstanding, revealing a modus vivendi (way of living) based in Aristotelic-Thomist philosophical-psychology, name under which has been usually appointed this praxis. This article is dedicated to this lived experience described in the letters and to this specific modus vivendi (with its due basic implications), searching to answer this question: how the experience (such as was understood in the proper historical-culturalinstitutional scope of the Society of Jesus in the 16th and 17th centuries) is a factor of knowledge? And knowledge of what? The conception of experience that was revealed considers man as unit (body and soul, reason and faith, sense and intellect) and that, living in an orderly way (in itself and in the world that surrounds it), he fulfils its being, in analogy to the Holy Being. Keywords: experience, Society of Jesus, Litterae Indipetae I) Introdução É possível que a experiência seja um fator de conhecimento? (*) Se sim, em que circunstância? A que objeto se debruçaria? Sobre que fundamentos se sustentaria? Qual a epistemologia de fundo? Evidentemente, todas estas são questões, não obstante sua importância, por demais genéricas para merecerem um estudo. No entanto, se se fazem alguns recortes, será possível vislumbrar alguma perspectiva de pesquisa quiçá profícua: como, portanto, a história ou a filosofia podem favorecer à psicologia um olhar mais adequado sobre o tema da experiência? Eis que se delineiam alguns limites. Porém, é preciso especificar ainda mais: período histórico, horizonte cultural e institucional, documentos, ponto de partida. E, sobretudo, deixar claro que não se trata tanto de uma opção por um saber em detrimento de outro: não se trata de apostar na história em detrimento da psicologia. Tampouco, trata-se de optar por determinada meta de compreensão simplesmente por curiosidade, exotismo, ou porque se pretende um psicologismo interpretativo. O pesquisador parte sempre do presente, afirma o historiador francês Michel de Certeau (2002) (1). Nesse sentido, o pesquisador é Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 59 sempre um sujeito localizado historicamente no presente, que lança uma pergunta, num espaço-tempo muito bem delimitado, a um interlocutor com traços bastante particulares. No caso deste artigo, o termo de compreensão são os homens dos séculos XVI e XVII (especificamente os europeus e, ainda mais especificamente, os jesuítas, responsáveis pela construção, transmissão e preservação da cultura brasileira nos níveis antropológico-filosóficos ou teológicos), a fim de descobrir sua concepção de experiência. O objeto ou as fontes documentais primeiras, por sua vez, são as assim chamadas Litterae Indipetae: cartas nas quais jovens jesuítas dos séculos XVI e XVII solicitavam ao Padre Geral da Companhia de Jesus o envio em missão nas "Índias" (2). Atualmente, estas cartas encontram-se conservadas no Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), em Roma. Pode-se dizer que são fontes que interessam, na medida em que contêm exemplos das modalidades de elaboração da experiência pessoal no que respeita ao processo eletivo a que eram educados os jesuítas; além de dados sobre o indipetente (como idade, escolaridade, atividade que exercia na Ordem etc.); bem como conteúdos edificantes próprios do gênero de documento que são. O objetivo geral é evidenciar as categorias filosóficas, teológicas e (se assim se pode dizer) "psicológicas" que sustentam - nas cartas - um vivido particular, a encarnação de determinadas normas e teorias. Estas categorias poderiam emergir da análise dos topoi cultural e institucionalmente determinantes do protocolo formal de redação daquelas cartas. Como método optou-se, necessariamente, pela história, já que a alteridade em questão está afastada no tempo. No entanto, a voz se alça de um lugar peculiar - a psicologia -, e assim instaura um "fazer singular", sem pretensões de "sistematização totalizante". Esta é uma historiografia (portanto, um fazer que implica dois termos a "história" propriamente dita e a "escrita" de/sobre a história) que considera a "pluralidade" a que chama atenção Certeau (2002) (3). Na esteira da discussão acerca do real e do discurso sobre o real (4) a que se dedica Certeau (2002) e, com ele, seus discípulos (5), inscreve-se - quiçá pretensiosamente! - também este artigo, que mais que um "psicologismo" que sobrevaloriza a subjetividade, ou um "historicismo" filo-estruturalista ou - por que não? - um "racionalismo" totalitário, é a tentativa de dar voz ao "outro" afastado no tempo, ao "morto", àquele "fantasma da historiografia": "objeto que ela busca, que ela honra e que ela sepulta. Um trabalho de separação se efetua com respeito a esta inquietante e fascinante proximidade" (p. 14). Assim sendo, este "discurso sobre o real", esta "escrita da história", este "fazer história" singular é mais a transcrição, o relato, de um diálogo que foi se constituindo no dinamismo aparentemente paradoxal da estraneidade à intimidade e vice-versa. É justamente no âmbito do saber sistematizado em torno do que comumente se chama "psicologia filosófica" aristotélico-tomista, bem como dos estudos dos diferentes gêneros de documentos produzidos neste âmbito (manuais de filosofia, tratados de espiritualidade, cartas etc.) e das pesquisas abrangendo esse saber que se assenta este texto. Premissa A julgar simplesmente pelo uso repetido da palavra já desde séculos - como se vê, por exemplo, no trecho extraído de um hino composto por São Bernardo de Claraval, no século XIII -, a experientia já passa a ser fator de interesse bastante significativo: Jesu, dulcis memoria / Dans vera cordis gaudia Sed super mel et omnia / Eius dulcis presentia. (...) Nec lingua valet dicere / Nec littera exprimere Expertus potest credere / Quid sit Jesum diligere. Se se pensa, então, a discussão que começa a tomar corpo nos séculos XVI e XVII experientia x experimentum -, vê-se configurado um cenário cada vez mais significativo. Considerar, finalmente, essa mesma categoria no contexto institucional específico da Companhia de Jesus, ter-se-á algumas razões a mais para apontar a experiência como premissa de trabalho. Tal como é empregado entre os jesuítas, o termo experiência deve ser entendido a partir de um complexo feixe de influências: além da assumida posição filosófica aristotélico-tomista, é preciso dizer que parece existir também uma influência agostiniana. E, para além do aspecto puramente filosófico, quando se fala de experiência na Companhia de Jesus, se está tratando Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 60 com uma categoria que também pertence ao universo da regulação tanto espiritual e corporal quanto jurídica e institucional. Dizer que expertus potest credere, como o diz São Bernardo para declarar que o conhecimento do amor de Jesus não se dá através de lingua ou littera; ou dizer que experientia docet, como repete algumas vezes o Doutor Angélico; ou ainda probatur autem eius veritas tum ipsa experientia, como aparece na obra do jesuíta português Manuel de Góis, responsável pela composição da maior parte dos manuais de filosofia do Curso Conimbricense do Colégio das Artes de Coimbra; enfim, dizer experientia nesse âmbito histórico-cultural e institucionalmente definido pode ser bem compreendido ao ler o que outro padre jesuíta, Alexandre de Gusmão (1629-1724) escreveu no prólogo de sua obra Eleyçam entre o bem e o mal eterno: Se fosse consideravel hum homem tão simples ou tão ignorante, que duvidasse, se o fogo queymava, y a agua esfriava, este tal, com nenhuma outra razão se poderia desenganar melhor, que com a experiência, pondo huma mão no fogo e outra na agua. Logo se desenganaria, e veria por experiência, que o fogo queymava e a agua esfriava. Pois has de saber, que destes homens ha muytos neste mundo, e sempre os houve. Não fallo dos Atheistas, os Epicureos, que da outra vida nada curão; fallo dos christãos, que sabendo, e confessando que ha Ceo para bons e Inferno para maos, vivem como se ignorassem, que o fogo do Inferno queymava e a agua do Ceo refugiava. Estes tais, de ordinario se não desenganam nesta vida, até que na outra fazem a experiencia, que o Santo Job diz se costuma fazer no Inferno, que he passar da agua de neve para o calor do fogo. Então com seu mal eterno experimentão, quanto queyma aquelle fogo, e quanto esfria aquella agua. O que importa logo, he fazer nesta vida a experiência que o Espírito Santo nos manda fazer, pelo Ecclesiastico (Gusmão, 1720). Experientia é pois modo de conhecer, que não se dá simplesmente per modum cogitandi ou somente per modum operandi. A experiência, assim dada a entender, deve ser compreendida como o conhecimento que se adquire após o operari e todas as potências de alma aí envolvidas e o precedente (e/ou consecutivo) cogitare com suas devidas implicações anímicas. Sabendo-se que o "agir" do homem (conforme essa antropologia filosófica específica sobre a qual nos debruçamos: fundamentalmente aristotélico-tomista) - seu operar, seu proceder - só se dá na medida em que seja "para conseguir a coisa desejada intencionada" (Aquino, 1947, p. 166), vê-se uma importante diferença para o que se possa descrever como ação contemporaneamente: não se trata do simples movimento verificado apenas externamente um "comportamento" -, mas da conjugação de uma série longa de fatores, tais como a intencionalidade, que só nasce se se considera a vontade e o intelecto, os apetites e as faculdades da alma sensitiva (tanto externas quanto internas). Sabendo-se também que o "cogitar" humano - seu modo de pensar, de inteligir - envolve toda uma gama de faculdades anímicas influenciando umas às outras... percebe-se que a visão de homem aqui envolvida, quando se fala de experientia é, digamos assim, uma visão totalizante: não há solução de continuidade entre uma e outra operação, trata-se de um contínuo, onde per experientia implica o homem total - todos os seus cinco gêneros de potências da alma, suas três almas distintas e seus quatro modos de viver diferentes, e suas devidas implicações (6). O corpus documental A fim de sistematizar em grupos as fontes utilizadas e visualizar e organizar os diferentes dados que cada uma delas poderia fornecer, elas foram divididas, inicialmente, em três grupos: 1) documentos do universo filosófico e retórico de formação dos Jesuítas; 2) fontes referentes à ordenação e formação da vida espiritual (7) na Companhia de Jesus e 3) documentos descritivos da ordenação e formação da vida institucional. A cada um desses grupos corresponde um aspecto fundante do modus vivendi dos jesuítas, aspectos (ou pólos de análise) que serão aqui definidos, respectivamente, como scholicorum (por designar o Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 61 fundo teorético presente na filosofia e na retórica seiscentistas), ratio spiritualis (a regra espiritual) e ratio intitutorum (a regra institucional). No primeiro grupo estão o Comentário à Ética a Nicômaco de Aristóteles (8), escrito pelo padre Manuel de Góis, e publicado em 1593, e algumas importantes obras de referência em retórica utilizadas pelos jesuítas (principalmente Cícero e Quintiliano). Ao segundo grupo pertencem o texto dos Exercícios Espirituais (9) (o texto dos Exercícios nas suas três versões - o texto Autógrafo, de perto dos anos de 1544; o Versio Prima, escrito em latim, de cerca de 1530; e a Vulgata, de cerca de 1547 - em versão sinóptica, comentado por Claude Viard (10), o Diário de Moções Interiores (11) (escrito por Inácio entre 1544 e 1545, e publicado apenas em 1934) e o Relato (12) de Inácio (ditado por Inácio ao Padre Luiz Gonçalves da Câmara entre os anos de 1553 e 1555). E, finalmente, foram agrupadas ao terceiro conjunto de fontes as Constituições (13) (a versão francesa, traduzida do texto de 1556, acrescentada do Exame Geral - um preâmbulo das Constituições - e das Declarações - que nada mais são que comentários ao texto das Constituições), os chamados Documentos de Fundação (14) (uma seleção realizada por Pierre-Antoine Fabre e Maurice Giuliani, que consta dos seguintes documentos: o relatório 1539. Durante três meses. A maneira como se instituiu a Companhia, o Atestado concernente à decisão de fazer voto de obediência, o relatório Determinações da Companhia, a transcrição do Voto de Inácio, o relatório Forma e Oblação da Companhia, e o texto da Summa em versão sinóptica com os dois documentos pontificais de aprovação da Companhia de Jesus, Regimini Militantis, de 1540 e Exposcit Debitum, de 1550) e algumas das Cartas de Inácio. Além desses três grupos de documentos, acrescentam-se alguns textos de espiritualidade (15) a que tinham acesso os jesuítas do período referente ao generalato do Padre Cláudio Aquaviva (16). Esses textos exprimem os três aspectos fundamentais que, uma vez encarnados num modus vivendi, puderam ser novamente formulados num texto escrito e tornado prescrição de um modelo descritivo lisível. Prescrição de um modus vivendi que toma corpo no período do referido generalato e que vai se estabelecendo, paulatinamente, ao longo dos anos que se seguem: tipo de espiritualidade que começa a tomar uma forma propriamente jesuítica. Portanto, uma prescrição dirigida aos próprios jesuítas. Exemplos desses "modelos descritivos" são alguns diários espirituais produzidos na época (como o de Francisco de Borja e outros (17)). As Indipetae, nesse sentido, também podem ser consideradas exemplos disso. Tem-se portanto o processo de análise assim desenhado: de um lado aqueles pólos compreensivos, de outro as Indipetae e, entre eles, os textos de espiritualidade. As Indipetae, como fonte documental pouco estruturada do ponto de vista dos aspectos de análise até aqui descritos, não podem ser interpretadas de maneira imediata. São, sim, documentos marcados por aquele aparelho pedagógico de ordenação do homem, mas para identificar os fundamentos desse aparelho é necessário um revelador, algo que torne presente a coisa, que represente, que transpareça essa estrutura subterrânea. Certo, há, nas Indipetae, uma elaboração da experiência, no entanto, não se trata de uma elaboração sistemática, evidente em si mesma. O grau de elaboração - se se pode dizer assim - presente nos textos de espiritualidade, é de uma profundidade tal que permite, se colocado entre um e outro dos tipos de documentos, vir á tona aquela estrutura profunda. Como são documentos que se propõem ao leitor como prescrição de uma espiritualidade com traços jesuíticos, revelam com maior clareza os fundamentos do aparelho pedagógico de ordenação do homem que o sustenta. Esses textos são uma espécie de espelho translúcido: ao mesmo tempo em que revelam a estrutura subterrânea das Indipetae, desvelam a si mesmos, ao espelharem aqueles três pólos de análise supracitados. I I ) A categoria experiência tal como é usada... Nas Indipetae, lemos, por exemplo, em carta enviada em 02 de maio de 1583, pelo Irmão Coadjutor Seraphin Bonaventura Coçar: Pero en semejante caso experimento (...) que ades hora me da devero Dios Nuestro Señor un desseo fervoroso, que como luz del cielo deshaze en mi alma aquellas tinieblas y razones, dexandome muy consolado, y con tal alegria, que me parece bastante para arrostrar a qualquiera dificultad y Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 62 trabajo que por entonces se me podria ofrecer, y de hecho se me haze todo suave (18). Joan Sotalell, de Gandía, no dia 20 de maio de 1603, escreve também: "Tengo experimentado que muchas vezes, quando alguna tentacion, o otra cosa alguna me aflige, el medio para vencella, es pensar (...) yr a las Indias (...), y siento despues grande consuelo y facilidad en haser lo que antes me parecia muy pesado" (19). Ou Gabriel Mayo que, um ano depois (10/03/1604), escreve dizendo que "juntamente al desseo (...) experimento facilidad grandissima para todos los trabajos de corazon, que me paracer en comparacion de aquellos, muy pequeños" (20). Também Juan Bravo diz experimentar muy a la clara que este desseo que me ha dado Nuestro Señor hasta agora ha sido como una lima con la qual gran parte de mys imperfecçiones han desaparecido, y melhorandose my vida notablemente fruto que es argumento claro de que es raiz divina la de donde mana (21). A categoria experiência, nesses trechos, é colocada ao lado de expressões tais como "Dios Nuestro Señor", "alma", "consolado", "trabajos", "tentaciones", "desseo". Como é possível uma experiência de Deus? Como é possível conhecer desejos, tentações ou a si mesmo e sua alma a partir da experiência? Como o trabalho e a realidade cotidiana e objetiva pode ser lugar de uma experiência? É preciso, pois, compreender bem como era entendida esta categoria no âmbito cultural e institucional específicos com o qual se está lidando aqui: trata-se de descrever a gramática de uso do termo, o campo semântico no qual está imerso. ... No âmbito do scholicorum Como a filosofia seiscentista de forma geral, mas especialmente a que se desenvolveu em torno do ponto de vista escolástico retomado no período, abordava a questão da experiência? É bem verdade que o período histórico com o qual lidamos é determinado por uma transição importante - entre uma realidade social que construía seus conhecimentos retoricamente (22) e uma outra que passou a construir cientificamente o conhecimento (23) - onde justamente o debate não só filosófico, mas também científico, quanto ao que respeitava à experiência marcava claramente posições muito distintas (24): experientia X experimentum. Não obstante esta importante transição e as diversas implicações a ela inerentes, interessa mais agudamente aquele modelo construído em torno da manutenção de um pensamento propriamente escolástico. Exatamente por se estar tratando de um período e de uma realidade institucional e cultural que construíram muito de seu conhecimento retoricamente, e sobretudo pelo fato mesmo de a retórica ser disciplina importante no sistema pedagógico jesuítico, se torna necessário assumir, aqui, algumas questões significativas deste âmbito. É sabido como Cícero e Quintiliano eram os principais autores estudados quando o assunto era retórica: nihil mutare sine ratione, dizia Cipriano Soares em seu manual de retórica - De arte rethorica - defendendo a razoabilidade no uso de suas obras, ainda que pagãs (Zanlonghi, 2003). E, finalmente, sabe-se também que a retórica, nesse contexto neo-escolástico, era o aprendizado da capacidade argumentativa. E, tal como foi assumida pelos jesuítas - segundo a filosofia aristotélico-tomista -, a retórica era estudada de forma que se respeitava uma compreensão da pessoa como unidade, irredutível a uma só dimensão - forma ou substância. Dessa forma, vê-se um projeto retórico que não valorizava somente o intelecto em detrimento da paixão ou a racionalidade em detrimento da emotividade. Trata-se de uma antropologia de fundo que compreende o homem como razão encarnada, onde não há solução de continuidade entre matéria e substância e que traz consigo algumas importantes implicações. Conforme o modelo aristotélico-tomista da topografia da alma (Bergamo, 1994), quatro são os chamados sentidos internos: fantasia, cogitativa, memória e senso comum. À cada um cabe um papel: o senso comum produz a primeira unificação das informações sensíveis, a fantasia inicia o processo de unificação espaço-temporal, a memória armazena e ordena essas Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 63 informações em imagens, e a cogitativa é responsável pela primeira intelecção dos elementos não sensíveis (cf. Zanlonghi, 2003). De importante destaque é o papel da cogitativa - ratio particularis - que, além de inteligir os elementos não sensíveis (res non sensatas, como vícios e virtudes), sintetiza as informações sensíveis recolhidas pelos sentidos internos e armazenadas pela memória: é portanto o ponto alto da organização da atividade sensitivo-imaginativa. Apesar de ser de âmbito pré-racional, a cogitativa já está ordenada ao Fim Último, na medida em que faz um primeiro reconhecimento, no sensível, do Universal (25). Uma importante relação a se compreender é a que existe, nesse projeto retórico, entre memória e prudência: cabe à retórica, como técnica, dar aos elementos recolhidos uma unidade e uma dignidade final, o que só é possível se se compreende que a memória, na medida em que armazena e ordena em loci determinados uma série de phantasmata (o mesmo vale para a representação de elementos invisíveis), e sendo parte da prudência (assim como a escolástica herdou de Cícero), é também um habitus moral que se aperfeiçoa com determinados exercícios de retórica; e que também a prudência, na mesma medida em que tem a memória como uma de suas partes, tem também necessidade de imagens para se exercitar. Conseqüentemente, 1) a prudência se serve da memória como ponto de sustentação, 2) a memória só pode operar com imagens sensíveis e 3) o uso das imagines agentes e, particularmente, das imagens que surpreendem os sentidos acaba sendo vantajoso para o aperfeiçoa mento da prudência (26). É bem verdade que a Renascença é marcada por uma mudança radical na concepção de memória que fora desenvolvida durante a Idade Média (27). Com a Renascença, a memória sofre um processo de laicização, na mesma medida em que começa a ser lida sob a luz do neo-platonismo renascentista (28). No entanto, vale lembrar que, graças à Segunda Escolástica, a Companhia de Jesus manteve a memória como parte da prudência, como virtude do homem moral e do orador. Outro aspecto a se considerar no ponto de vista filosófico quanto ao que respeita à categoria experiência, é o papel da filosofia agostiniana na definição desta categoria. Para Santo Agostinho (354-430) fé e razão não têm, entre si, fronteiras ou limites de separação: a razão ajuda o homem a alcançar a fé e a esclarecer seus conteúdos, da mesma forma que a fé orienta e ilumina a razão; os conteúdos da revelação cristã e as verdades acessíveis ao pensamento racional caminham juntos. Sua obra é profundamente enraizada na filosofia de Platão, especialmente nos textos do neo-platônico Plotino, de quem assume, por exemplo o conceito de alma (29). Uma de suas mais importantes obras é o De Trinitate, texto onde procura sistematizar a filosofia e a teologia cristãs. Esta obra, divulgada entre os anos 400 e 416, em 15 livros, é um tratado não só sobre a Santíssima Trindade, mas sobre o próprio homem, já que ele é uma analogia - imagem e semelhança - da própria Trindade. No início do primeiro livro do De Trinitate, Agostinho já lança mão da categoria experiência: com a ajuda de Nosso Deus e Senhor e conforme nossa capacidade, empreenderemos a tarefa que nos pedem, e assim demonstraremos que a Trindade é um só e verdadeiro Deus, e quão retamente se diz, se crê e se entende que o Pai, o Filho e o Espírito Santo possuem uma só e mesma substância ou essência. Assim não poderão afirmar, por assim dizer, que enganamos os adversários com nossas pretensões. Mas que se convençam pela própria experiência de que existe aquele sumo Bem, só visível às mentes puras. E se eles não podem compreender, é porque o limitado olhar da inteligência humana não é capaz de se fixar nessa luz sublime, se não for alimentado pela justiça fortalecida pela fé (Agostinho, 1994, p. 27). No entanto, é preciso entender bem o que ele quer dizer quando faz uso dessa categoria, sobretudo se se considera o uso freqüente de expressões do tipo "há de entender, com a ajuda do Senhor" (Idem, p. 60), "a alma, segundo penso, deve humilhar-se, para que possa brilhar, iluminada pela graça de Cristo" (p. 82), "fatos em que o Senhor Deus nos anuncia sua ação" (p. 131), "Deus nos envia sinais adequados ao nosso caráter de peregrinos" (p. 147), "Deus é Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 64 a verdade!" (p. 263) ou ainda "torna-se necessário crer antes de compreender" (p. 270). Em todas estas expressões, bem como em outras tantas, começa-se a compreender como é possível, em Agostinho, que no conhecimento esteja implicada a fé, que já é uma adesão amorosa: credendo diligere, ele diz. Mas quem ama o que desconhece? Pode-se conhecer algo e não o amar; pergunto, porém, se é possível amar algo que se ignora, porque se isso for possível, ninguém é capaz de amar a Deus antes de o conhecer. E o que é conhecer a Deus, senão o contemplar e perceber com firmeza, com os olhos da mente? Ele não é um corpo para que possamos divisá-lo e percebê-lo com os olhos corporais (p. 267). Mente conspicere (traduzido por "olhos do espírito" no texto) e firmeque percipere (firme percepção) estão juntas na mesma expressão. O que causa impressão é notar o uso de uma categoria que, a rigor, se conjuga às experiências sensíveis de maneira geral - percipere -, no âmbito de uma certa "atenção do espírito". Sobretudo quando se sabe que percipere, para Agostinho, significa muitas vezes o conhecimento experimental de Deus. No entanto, o que esclarece toda possível contradição é entender que esse conhecimento experimental, como se viu nos excertos elencados acima, é dado por uma sabedoria sobrenatural, pela graça da fé, enfim. Certa enim fides, utcumque inchoat cognotionem: De fato, é efeito próprio da fé formar em nós uma imagem de Deus, no melhor conceito possível. Confere ele uma existência mental às coisas propostas à nossa adesão pessoal. (...) Mas, [Agostinho] conhecia muito bem os limites impostos pela nossa condição terrestre à busca racional de Deus. E os limites da experiência mística correspondentes aos limites da exploração teológica (p. 624). Para Agostinho, o conhecimento das verdades eternas se obtém por meio da iluminação divina: "a iluminação agostiniana é uma luz especial, incorpórea, que nos torna visíveis e compreensíveis as 'verdades eternas'. Luz essa mediante a qual Deus irradia na mente humana essas verdades absolutas e imutáveis" (p. 637). Em toda essa discussão o que interessa sobremaneira é perceber a relação entre conhecimento sensível e graça da fé, que, como se verá a seguir, não é estranha à concepção retomada pela pedagogia inaciana, mesmo quando se está simplesmente no âmbito da Filosofia Moral, como é o caso do Manual Co ni mb ricense. Como o termo experiência aparece nesta obra amplamente divulgada nos séculos XVI e XVII tanto na Europa quanto no Brasil? Por exemplo na segunda disputa - Acerca do Fim -, Góis (1593) se perguntando se Bem e Fim são iguais, diz que uma coisa só pode ser igual a outra sob dois aspectos: formalmente (ou seja, quando a razão formal de ambas as coisas é idêntica), ou por reciprocidade de fundamento (quando tanto em ato quanto em potências as coisas são iguais). A partir daí, busca responder à pergunta que abriu a disputa, afirmando que: 1) Bem e Fim não são, do ponto de vista formal, idênticos; 2) assim como Bem e Fim não são tampouco idênticos quanto á reciprocidade do fundamento com relação a Deus, quando se tratarem de ações divinas internas; 3) e, finalmente, Bem e Fim, em ato, com relação às criaturas, também não são idênticos quanto a reciprocidade de fundamentos, no entanto, o são, de algum modo, se se consideram segundo a potência. E para provar a segunda parte da asserção, recorrendo à experiência, afirma: A segunda parte da mesma asserção consta do facto de aquilo que pode tornar-se bem e conveniente com respeito a alguém, embora a princípio, com relação a ele, não seja bem em acto e conveniente, pode, por sua natureza, ser por ele apetecido e ter razão de fim com respeito a ele. E ao contrário, aquilo que pode ser experimentado [quid potest ab aliquo experi] por alguém e alcançar a natureza de fim em relação a alguém, pode ser-lhe bem e conveniente ou ao menos ser apreendido como tal (p. 93). Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 65 É interessante notar como, aqui, a categoria experiência é utilizada no âmbito de compreensão do que seja o Bem e o Fim, objetos teleológicos daquele felicem vitae statum a que se dedica a obra de Góis (1593). Demonstrando que, além da abordagem intelectual da temática proposta (30), é possível, com rigor e verdade, compreender diferenças entre as duas categorias, com o uso da experiência; que, neste caso, não tem que ver com experimentum, mas com a reação afetiva e efetiva do "homem como consciência encarnada" (Zanlonghi, 2003, p. 63) diante de uma determinada realidade a ser investigada. Em seguida, na quarta disputatio, quando discorre acerca dos "três princípios dos actos humanos: vontade, intelecto e apetite sensitivo", argumentando a partir de obras de Santo Agostinho, São Damasceno, Santo Anselmo e Santo Tomás, Góis (1593) pergunta se a vontade move as outras potências da alma humana e responde assim: Prova-se esta verdade quer pela experiência própria [probatur autem eius veritas tum ipsa experientia], visto que contemplamos, lemos, movemo-nos de um lugar e fazemos outras obrigações do género quando queremos; quer pela razão, porque é do fim que parte o princípio de moção de qualquer potência ativa, visto que todo o agente opera por causa do fim e do bem em comum que tem a razão de fim, é o objeto da vontade. Donde se conclui que a vontade move todas as outras potências para o exercício dos seus atos (p. 147). Nas quaestionenes que se seguem a essa, e especialmente naquelas em que a categoria experiência aparece, é notável como praticamente sempre ela virá unida ao conceito de "vontade" (com apenas duas exceções). Ainda no artigo apresentado acima - Io artigo da 3a questão -, o autor ajuda a compreender o porquê dessa conjunção: A acção com que a vontade move formalmente as outras potências é transeunte, visto que não permanece na própria vontade. Com efeito, não se distingue realmente da acção das outras potências. Além disso, este mesmo concurso da vontade umas vezes é algo espiritual, visto a vontade concorrer com a potência imaterial como com o intelecto; outras vezes, material, se, por exemplo, concorre com potência inerente a órgão corpóreo, como com a imaginação (p. 149). E exatamente por agir no "órgão corpóreo" e no "espiritual" ao mesmo tempo ou separadamente, que a vontade é uma potência que pode ser tanto conhecida do ponto de vista estritamente intelectual, como do ponto de vista da experiência. Assim, por exemplo, quando se pergunta como é possível à vontade mover os sentidos internos, usando a distinção aristotélica entre poder despótico e político, e argumentando a partir da compreensão tomista da obra do Estagirita, explica que não obstante para Santo Tomás apenas a cogitativa (potência da alma sensitiva, elencada na lista dos sentidos internos) obedecer à razão e à vontade, sendo regida portanto por poder despótico, a nós, porém, parece-nos que devemos afirmar que não existe nenhum sentido interno que obedeça sempre à vontade. Com efeito, o sentido comum apreende necessariamente o objecto sem mudar a apreensão do sentido externo e, de um modo geral, todos os sentidos internos (sem dúvida, quanto a isso parece ser idêntica a razão de todos). Algumas vezes apreendem o objecto tão tenazmente que a vontade, de nenhum modo ou dificilmente, domina a concepção deles, como ensina a experiência cotidiana [uti docet quotidiana experientia] (p. 151). E explica que esta "tenacidade de concepções" se deve a muitas causas, entre elas enumera: 1) pela presença real do objeto que se introduz pelos sentidos externos; 2) pela instigação dos "demônios internos"; 3) pela disposição (affectione) do órgão interno (os melancólicos, por exemplo, por terem temperamento frio e seco, persistem muito mais tempo na apreensão de uma mesma coisa, porque o órgão está mais disposto a isso); 4) pelo afeto do apetite Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 66 sensitivo, "visto se saber que o sentido interno se fixa mais nas cousas para que o apetite é levado com maior ímpeto" (p. 151). Em seguida, Góis (1593) se pergunta como a vontade move os apetites sensitivos. E, logo de início, explica que a vontade move os apetites com poder político. E se baseia em autores tais como Aristóteles, São Damasceno, São Gregório Nisseno e Santo Tomás. Mas, a argumentação final cabe à experiência: ... que o apetite seja movido pela vontade demonstra-o a experiência [quod appetitus a voluntate moveatur, patet experientia], visto que muitas vezes provocamos ou reprimimos os movimentos dele, segundo o nosso arbítrio. (...) Que tal sujeição não é despótica, aparece claramente no facto de a cada passo o apetite ser levado para o bem sensível contra o juízo da razão e o afecto da vontade 3 1 . (...) Esta repugnância nasce do facto de o apetite sensitivo seguir a apreensão do sentido interino, a qual é de tal modo eficaz que não pode ser coibida pela razão nem pela vontade. Ou ainda porque a moção do apetite sensitivo depende da disposição [dispositione] do órgão (por isso, os que têm temperamento cálido se irritam fàcilmente), a qual disposição [dispositio] ou modificação [sive affectio] não se suborna ao poder (p. 153). Todavia, o autor lembra que tanto Aristóteles como Santo Tomás afirmam que seja possível ao apetite ser movido pela vontade, dado que, pela ordem e hierarquia de moventes e movidos, superior move inferior, especialmente sabendo-se que nada é objeto de apetição se não for antes objeto de intelecção: "a vontade só move o apetite, imediatamente e por certa redundância, quando no sentido interno já existe notícia do mesmo objeto, de maneira que, sem nova intenção ou aplicação da notícia, o apetite seja mais incitado por causa da inclinação da vontade" (p. 155). O artigo 4o dessa mesma quaestione se dedica a compreender como a vontade pode mover os membros externos. E, apela para a experiência, logo no início do artigo: "Como se prova pela experiência [ut experimento compertum est], a vontade move os membros externos, com que se exerce o movimento arbitrário, com poder servil e sem qualquer oposição, a não ser que sejam impedidos por alguma doença" (p. 155). Porém, ele ainda se pergunta se, na verdade, não seriam os membros externos movidos antes pelos apetites sensitivos. E diz que não, apelando de novo para a experiência: "o contrário disto ensina a experiência nos santos mártires [docet experientia in sanctis martyribus], que ofereciam os membros a tormentos acerbíssimos" (p. 155). Aqui, no entanto, é importante entender que a vontade só pode mover os membros através de alguma potência média, que, neste caso, serão os apetites: "pede a harmonia e a ordem dos moventes que o supremo não mova o extremo senão com a intervenção do médio" (p. 155). Esclarece finalmente que pode acontecer de os membros serem movidos não pela vontade (mesmo que indeliberada), mas diretamente pelos apetites, como acontece nos movimentos súbitos, entretanto esses não podem ser considerados movimentos humanos, mas "do homem". Na quarta quaestione dessa mesma disputa sobre os princípios dos atos humanos, Góis (1593) pergunta se o apetite é capaz de mover a vontade. Faz, então, três afirmações, baseando-se em Aristóteles e Santo Tomás de Aquino: 1) é inegável que o apetite mova a vontade de alguma maneira, como se confirma "também pela experiência [confirmatur quoque experientia]. Ninguém existe, com efeito, que não experimente [qui non experiatur] o movimento do apetite ou da ira ou da dor ou da alegria, inclinar a vontade para si" (p. 159); 2) porém o apetite não move a vontade com poder despótico, como a harmonia e a ordem dos moventes o indica; 3) mas a move por intermédio da notícia intelectiva que propõe acerca de determinado objeto que deve ser aceito ou rejeitado, já que a vontade, seguindo a decisão do intelecto, pode querer ou repudiar o mesmo que o apetite, ou o apetite pode mover a vontade por meio da notícia do sentido interno, na medida em que as imagens dos sentidos determinam o intelecto para a contemplação de uma coisa ou de outra. Até este ponto da obra, praticamente todas as vezes em que se fez uso da experiência como método de conhecimento, ela estava de algum modo vinculada à categoria "vontade". Nos dois Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 67 outros momentos da obra em que a experiência aparece será, uma vez vinculada às "paixões" e outra às "virtudes morais". Vejamos. Do debate filosófico, de maneira geral, o que se conclui é que experiência é algo que ajuda o homem a conhecer a verdade. Seja do ponto de vista retórico (na medida em que a retórica conduz o homem pelas sendas dos sentidos internos, identificando, organizando, adaptando, armazendo e ordenando e explicitando segundo sua dignidade os elementos colhidos na realidade), seja do ponto de vista dialético (na medida em que, como dinâmica dialógica que é, se volta adequadamente ao fundo mesmo da realidade), a experiência é sempre entendida, grosso modo, como um aspecto do indivíduo que pode conduzi-lo mais adequadamente à Verdade, ou, nos termos da casuística, ao Bem Último. ... Na ratio spiritualis jesuítica Como a espiritualidade seiscentista encarava a questão da experiência? E, mais especificamente, como uma espiritualidade com normas muito peculiares - a dos jesuítas compreendia a relação entre experiência e vida espiritual? No início deste artigo, a fim de apresentar a premissa deste trabalho, citou-se um trecho de um hino composto no século XIII, por Bernardo de Claraval, monge beneditino - Jesu, dulcis memoria / Dans vera cordis gaudia / Sed super mel et omnia / Eius dulcis presentia. /(...) Nec lingua valet dicere / Nec littera exprimere / Expertus potest credere / Quid sit Jesum diligere. Esclarece-se, inicialmente, o que pode parecer um anacronismo: como comparar o hino medieval com a então emergente questão renascentista do valor da experiência? Certeau (1982) nos chama a atenção para o fato de que a Renascença é marcada pela retomada da fórmula teológica medieval (32) segundo a qual o relacionamento com Cristo se dá na materialidade da Eucaristia e da Igreja. Ele afirma que, fora dessa objetividade material, corria-se o risco de uma "mystiquerie". Em poucas palavras: a fé era mais do que a língua podia dizer ou as letras expressarem: somente expertus potest credere. Percebe-se aí que a experiência é fundamental nesse relacionamento com o corpo real (Eucaristia) e místico (Igreja) de Jesus Cristo na terra (33). Tem-se, portanto, um primeiro aspecto relevante: a relação experiência/espiritualidade, que aparece num debate teológico renascentista e que busca recuperar a carnalidade objetiva da experiência mística. Entra em jogo, nessa concepção de experiência, o binômio visível/invisível (e, por que não?, do audível/inaudível, palpável/impalpável etc.), que Certeau (1982) explica como sendo o lugar do nascimento de uma nova concepção de "mística" (34). Visível e invisível, fato em si e sentido do fato, experiência e fé, corpo e alma, finito e infinito, acidental e fundamental: a mística renascentista com uma definição escolástica, especialmente a dos jesuítas, retoma (ou mantém) a experiência do sagrado como algo do nível dos sentidos, mais que de uma formulação teórica, teológica ou filosófica. Além de acrescentar algo novo: a prática, que tem como representante mais significativo, no caso da então nascente Companhia de Jesus, os Exercícios Espirituais. É nítido também o fato de que não há solução de continuidade (35) entre um e outro aspectos do relacionamento com o Mistério. Os Exercícios Espirituais, além disso, demonstram como se dá o conhecimento da realidade: através do transcender a dimensão das operações discursivas e do recorrer à arte da memória e da imaginação (36). O exercitante é convidado a, fazendo uso da memória, construir uma ponte entre o abstrato de uma afirmação e sua imagem concreta na alma. Essa imagem existe na medida em que quem faz os Exercícios, aprende a usar a imaginação. Aqui, se pode apresentar a preocupação de Inácio com a "aplicação dos sentidos" (37). Para ele, a consistência última da realidade é apreendida pelos sentidos - ver, tocar, ouvir, degustar, sentir o cheiro (38) -, e não por um exercício de abstração metafísica - lingua ou littera. Outros muitos exemplos dessa "experiência sensível", nos Exercícios Espirituais, podem ser dados: desde a insistência com o pedido de sentir com Cristo sua alegria ou padecimento (39), até os muitos exemplos de uso da aplicação dos sentidos, nos quais Inácio sempre insiste na necessidade de, em seguida, "refletir em si mesmo e tirar proveito" (EE. 124. Loyola, 1991, p. 116), passando inclusive pelos exames e verificações de emenda propostas, por exemplo, logo no início do livro (40). Todavia, é somente no EE. 176 que aparecerá, pela primeira vez, o termo experiência. Tratase da parte dos Exercícios Espirituais denominada "Três Tempos para Fazer Boa Eleição", e Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 68 Inácio, demonstrando como os conhecimentos filosóficos acerca da alma são aqui aplicados como experiência, afirma: "Deus nosso Senhor move e atrai a vontade de tal forma que, sem duvidar nem poder duvidar, a alma fiel segue o que lhe é indicado" (EE. 175. Idem, p. 142). E, em seguida, explicando quando se há de fazer uma boa eleição, enumera como segundo momento propício aquele no qual "se recebe suficiente luz e conhecimento pela experiência das consolações e desolações, e pela experiência do discernimento dos espíritos" (EE. 176. Idem, p. 142). Mais à frente, nas "Regras para Sentir e Reconhecer de Alguma Maneira as Diversas Moções que se Produzem na Alma, as Boas para as Receber as Más para as Rejeitar", Inácio explicará o que é consolação e desolação, e dirá: Existem três causas principais pelas quais nós nos encontramos desolados. A primeira é porque somos mornos, preguiçosos ou negligentes nos nossos exercícios espirituais; de forma que é por causa de nossas faltas que a consolação se afasta de nós. A segunda, para nos fazer experimentar quanto valemos e até onde avançamos no serviço e louvor do Senhor sem o salário das consolações e grandes graças. A terceira, para nos dar verdadeiro saber e conhecimento - de modo a sentir interiormente - do que não depende de nós fazer nascer ou conservar uma grande devoção, um amor intenso, lágrimas, nem nenhuma outra consolação espiritual, mas que tudo é bom e graça de Deus nosso Senhor (EE. 322. Idem, p. 226). Um pouco mais à frente, nas "Regras Visando Mesmo Efeito com um Maior Discernimento dos Espíritos", Inácio explica: Quando o inimigo da natureza humana tiver sido sentido e reconhecido tanto por sua cauda de serpente quanto pelo fim maldoso em direção ao qual impulsiona, é proveitoso, para aquele que foi tentado por ele, olhar em seguida o desenvolvimento dos pensamentos bons que ele lhe apresentou e seu começo, e como, pouco a pouco, ele tentou fazer descer da suavidade e alegria espiritual onde estava, até chegar a sua intenção depravada. Assim, por esta experiência conhecida, e anotada, se guardará no futuro de suas enganações habituais (EE. 334. Idem, p. 234). No trecho do EE. 176 citado acima, Inácio fala de "experiência de desolação" e "experiência de discernimento dos espíritos", e com a ajuda dos dois trechos seguintes se pode melhor compreender o que é a categoria experiência dentro desta perspectiva, a partir destas duas experiências particulares: não se trata apenas de uma sensação ou sentimento abstrato (de consolação ou desolação), mas também de uma certa sensibilidade específica (um reconhecimento que se dá pela visão), que juntas dão ao homem uma ciência que lhe permitir evitar as "enganações habituais" do "inimigo da natureza humana". Outro aspecto importante a se considerar quanto ao texto dos Exercícios Espirituais, é o uso que Inácio faz - já mencionado acima - de categorias próprias da psicologia filosófica aristotélico-tomista. Um exemplo bastante significativo é o do EE. 50, quando o autor lança mão das potências da alma sensitiva e da alma racional, especialmente da memória, da inteligência e da vontade, para ajudar o exercitante nos passos a que se propõe. Ele diz: O primeiro ponto será aplicar a memória sobre o primeiro pecado que foi aquele dos anjos; em seguida, exercer a inteligência sobre este mesmo pecado percorrendo o tema, depois a vontade; querendo lembrar e compreender tudo isso para experimentar bastante vergonha e confusão. Fazer a comparação entre o pecado dos anjos e os meus tão grandes pecados (EE. 50. p. 80). Aqui, as três faculdades da alma correspondem, para Inácio, aos três níveis constitutivos do homem: animal, racional e imagem de Deus. Neste ponto fica claro o papel que o fundador atribui a cada uma das potências: Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 69 A memória é a faculdade que o exercitante opera quando deixa retornar nele mesmo aquilo que lhe foi apresentado como matéria para sua meditação ou sua contemplação. Tendo-o encontrado, ele lhe dá toda a atenção. A inteligência lhe permite percorrer o tema, fazendo sobretudo comparações entre aquilo que vivem os personagens contemplados ou considerados e aquilo que ele mesmo vive, entre aquilo que eles fazem e aquilo que ele faz ou quer fazer. A vontade é uma faculdade afetiva. Ele se deixa tocar pelo tema rememorado e aprofundado. É, portanto, a capacidade de ser afetado e, por outro lado, de sentir e responder com amor. Nesse sentido, pode-se traduzir, hoje, este termo por 'coração'. Mas a vontade aponta também para a capacidade de decidir, de querer: aqui, de tomar a decisão de aplicar a memória ou de fazer trabalhar a inteligência (Loyola, 1991, nota do tradutor, pp. 81-83). O outro documento da ratio spiritualis jesuítica analisado é o texto do Diário de Moções Interiores, de Inácio. Sabe-se que o Diário, é o resultado do trabalho pessoal de "eleição sobre a pobreza", que o fundador fez enquanto preparava o texto das Constituições. Para esta eleição, Inácio se utilizou, entre outras coisas, de uma pequena folha de papel dobrada onde anotou uma série de argumentos contra e a favor quanto ao que concerne ao voto de pobreza (Loyola, 1991) (41). No verso da última página, onde se lê Os inconvenientes em não ter nenhuma renda são as vantagens em ter parcial ou totalmente", encontra-se no terceiro argumento a seguinte observação: "com rendas, eles não experimentarão tantos movimentos interiores e problemas que os levem a uma preocupação desordenada procurando dinheiro (p. 322). No entanto, o aspecto mais revelador deste maço de folhas autógrafas a que se deu o nome de Diário, é justamente o fato de que se tratam de notas advindas de uma elaboração da experiência pessoal. Assim, a própria linguagem utilizada no texto se torna objeto de atenção. Não é, pois, de se estranhar que os trechos que se seguem às vezes sejam impessoais, ou se caracterizem por uma simples descrição de um estado emocional, ou de uma consideração feita, ou de um sentimento provado etc. Por exemplo, no dia 4 de fevereiro de 1544, uma segunda-feira, Inácio escrevia: "Mesma coisa [referindo-se ao que havia escrito no dia anterior: "abundância de devoção na missa, lágrimas, grande confiança em Nossa Senhora"], e também outros sentimentos" (p. 327), sendo que quando ele faz uso do termo "sentimentos", não só aqui mas ao longo de todo o Diário, não está prescindindo de uma compreensão intelectual: sentir, em espanhol, é indissociável do intelecto, do afeto e da sensibilidade envolvidos. E isso se pode comprovar, por exemplo, quando escreve, alguns dias mais tarde que "depois do despertar, eu não parava de render graças a Deus nosso Senhor muito intensamente, com inteligência e lágrimas, por um tão grande bem e uma tão grande luz recebida, que não podem ser expressas" (pp. 331-332). Ou mesmo quando faz uso de jogos de palavras tais como "inteligência espiritual", "sentindo o Filho muito propício para interceder", "vendo os santos de uma tal maneira que não se pode escrever" (p. 333), ou "tão grandes inteligências que não se pode escrever" (p. 334), ou ainda "esse sentimento ou essa visão", "sentindo muitas inteligências importantes, saborosas e muito espirituais" (p. 335) e, para não estender por demais esta lista, mesmo quando relata que "um conhecimento me veio de que um tal pensamento era também de Deus" (p. 337), ou que provou "certo sentimento ou visão pelo entendimento" (p. 342) etc. Encontram-se também referências explícitas à experiência, como é o caso desta nota feita no dia 21 de fevereiro de 1544, na qual Inácio relata que durante a missa daquela segunda-feira conhecia, sentia ou via, Dominus scit, que falar ao Pai, ver que ele era uma Pessoa da Santíssima trindade, me levava a amá-lo inteiramente, tanto quanto as outras Pessoas estavam nele essencialmente. Experimentava a mesma coisa durante a oração ao Filho, a mesma coisa durante a oração ao Espírito Santo, gozando indiferentemente de uma ou Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 70 outra Pessoa durante o tempo em que sentia as consolações, as relacionando a todas as três (pp. 340-341). Além de todos estes exemplos, é preciso ao menos apontar as inúmeras referências (anotadas nas margens das folhas, por mão de Inácio) às visões, lágrimas e loquela (= palavra, em latim; mas, que no caso das anotações de Inácio, se refere à escuta de uma voz interior ou exterior que lhe significa um momento, lhe ajudando num discernimento qualquer). Com respeito ao Relato de Inácio, Marin (1999), que denomina o texto de "autobiofonia", explica que se trata de um documento no qual Inácio é dado ao leitor como um "imitável, um modelo". Este texto permite "reviver a vida do fundador, repetir a vida do fundador" (p. 146), que é mais do que uma série de eventos, mas o tecido dos eventos ("tudo o que se passou em sua alma até o dia de hoje") dirigidos pelo Senhor "desde a sua conversão" (p. 147): Mas se o próprio de um modelo é de ser imitável, portanto reiterável e repetível, como repetir uma vida dirigida e formada pelo Senhor? Como repetir as intervenções divinas que (...) constituem a vida do fundador, o legendum singular desta vida? Como fazer da leitura do relato desta vida, um modo de repetição desta vida mesmo depois de seu verdadeiro nascimento até o momento onde ela termina? (...) Trata-se, em uma palavra, de escrever 'o relato' no corpo segundo uma modalidade encarnada de sua leitura, ou (...) descobrir a maneira na qual cada companheiro leitor se apropria singularmente, segundo sua vocação, da experiência do fundador (p. 147). Ler o Relato, portanto, tem, segundo Marin (1999), dignidade sacramental, na medida que pode ser descrito como uma espécie de comunhão eucarística, na medida em que o texto se torna corpo em quem lê: é a experiência pessoal de Inácio que é dada como paradigma de identificação e incorporação (dois termos que não nos são mais estranhos), ou, nos termos próprios da gramática de uso jesuítica, simplesmente imitação. O paradoxo apontado pela pergunta de Marin (1999) - o de ser a vida de Inácio dada à imitação apesar de ter sido uma vida formada e dirigida por Deus - se desfaz na interseção entre Graça Divina e Vontade Humana, que nessa visão de homem é tão presente: a experiência da Graça Divina na vida de Inácio (42), faz dele um modelo, um imitável, um texto vivo para seus companheiros, que, no entanto, têm a liberdade de colocar em operação sua Vontade pessoal para encarnar em suas vidas (ou não) essa "experiência-modelo". Desse debate, finalmente, pode-se concluir que experiência é o contraponto de uma mística do abstrato, onde a experiência de relação com Deus se dá apenas na parte nobre da alma humana - alma racional. Mais uma vez, vemos a afirmação da imprenscindibilidade dos sentidos, da experiência sensível. A espiritualidade jesuítica, aqui manifesta especialmente pelo seu texto normativo, reafirma que o conhecimento dedutivo não basta para se chegar a um pleno conhecimento da realidade, ou seja, não basta para chegar a tocar o Sentido, o Bem, a Verdade, o Fim presente, como consistência última, na realidade: é preciso a experiência imediata, é preciso o conhecimento direto proporcionado pelos sentidos e pela consciência de si mesmo, é preciso a experiência das coisas percebidas, que são conhecidas na medida em que as vivemos, as tocamos, ouvimos, experimentamos... "sentir y gustar de las cosas internamente" (García-Mateo, 1998, pp. 478-479). ... Na ratio intitutorum jesuítica Interessa nesse tópico, responder às seguintes questões: qual o conceito de experiência que aparece na norma de um corpo institucional religioso - o da Companhia de Jesus? Que papel desempenha a experiência no processo de identificação/definição do indivíduo com esse corpo institucional? Inicialmente, deve-se apontar o uso comum, nos primeiros documentos da Companhia de Jesus, da expressão "nossa maneira habitual", para designar como os primeiros jesuítas agiam em questões muito particulares. Por exemplo, no documento 1539. Durante três meses, A maneira como se instituiu a Companhia, o redator anota que a maneira habitual usada para discutir sobre as questões da fundação era: "refletir e meditar sobre elas durante o dia e as Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 71 aprofundar em nossas orações" (Loyola, 1991, p. 278). Bem como no Atestado concernente à decisão de fazer voto de obediência: "depois de ter rezado a Deus e pesado maduramente a coisa (...), decidi de pleno grado" (p. 282) etc. A pergunta que se pode fazer a partir daí é: como um indivíduo pode chegar a assumir para si, a se colocar em primeira pessoa nessa "nossa maneira habitual"? Ou: que dinâmica permite a identificação de um indivíduo à essa modus operandi particular? Lê-se nas Determinações da Companhia algo que responde a esta pergunta: "Aqueles que estão para ser admitidos devem, antes de serem experimentados durante o ano de provação, passar três meses em exercícios espirituais, em peregrinação e a serviço dos pobres nos hospitais, ou em outra coisa" (p. 285). Aprende-se a ser jesuíta "experimentando" o que seja ser um jesuíta. E o que é ser um jesuíta? Passar por exercícios espirituais, fazer peregrinação, trabalhar a serviço de pobres: o que é isso? É a vida de Inácio: uma experiência-modelo que, aqui, deixa de ser a descrição de uma experiência espiritual, para se tornar a prescrição explícita de um modelo de imitação. É por isso que na Summa os primeiros escrevem: "que ninguém seja recebido nesta Companhia antes que seja, inicialmente, longa e cuidadosamente experimentado, e quando se tiver constatado que é prudente no Cristo e se distingue por sua doutrina ou pela santidade de sua vida" (p. 306). Quanto ao texto das Constitui ções, importa, primeiro, que fique claro que mais que um texto normativo strictu sensu, elas são, para os jesuítas, a descrição de um caráter particular, bem definido e com traços muito específicos. É bem verdade que é pelo motivo mesmo de ser descritivo, que o texto tem uma virtude prescritiva, na medida em que ao descrever como "é", tangencia o como "deve ser" o jesuíta. É esta característica do documento que permite compreender porque é indicado que sejam lidas e meditadas com freqüência, até o ponto de serem sabidas de cor (43). Neste documento aparecem, com freqüência termos diferentes para designar a categoria analisada neste capítulo: experiência (que, no texto francês, aparece como expérience, quando designa substantivo ou éprouver, para designar um verbo), "provação" (que aparece no texto francês como probation) ou "prova" (épreuve, em francês). Assim, encontramos, por exemplo no "Exame" (uma espécie de prólogo ao texto jurídico) das Constituições, após explicar a pertinência dos "seis meses de experiências e provas", a seguinte observação: Isso para que, de uma e outra partes, aja-se com a maior clareza e conhecimento em nosso Senhor e que, mais sua constância tenha sido experimentada, mais sejam estáveis e firmes no serviço divino e na sua primeira vocação, para a glória e honra de sua divina Majestade (p. 400). Em seguida, nos parágrafos 64 a 83 do mesmo "Exame" descrevem-se minuciosamente cada uma das experiências que se farão ao longo do período anterior à entrada em casa ou colégio da Companhia de Jesus (trata-se do período denominado "primeiro ano de provação"): Além disso, antes de entrar na casa ou colégio, ou depois de ter entrado, seis experiências principais são exigidas, sem contar muitas outras sobre as quais se falará mais adiante. Essas experiências poderão ser avançadas, retardadas ou adaptadas e, em certos casos, modificadas por outras com a autorização do superior, segundo a pessoa, os tempos, os lugares e as circunstâncias (p. 409). São estas experiências: fazer exercícios espirituais durante mais ou menos um mês (§ 65), servir em hospitais ou em um hospital durante um outro mês (§ 66), fazer peregrinação durante um outro mês (§ 67), se aplicar em serviços baixos e humildes (§ 68), expor publicamente a doutrina cristã para crianças ou pessoas ignorantes (§ 69) e pregar e confessar em igrejas indicadas (§ 70). Nos parágrafos que se seguem, procura-se explicar como cada uma delas ajuda a atestar o candidato e ao final diz: "se esses atestados quanto às experiências faltam, deve-se procurar a razão com muito cuidado, com o objetivo de saber a verdade sobre tudo, afim de que se possa melhor prover a tudo, onde convém" (p. 411). Isso porque, nas experiências de provação, o candidato se expõe, se revela, e é, portanto, essencial o papel das testemunhas: o candidato está sempre sob os olhos de uma testemunha. Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 72 Ao final, cabe ao candidato produzir, diante de seus superiores, o atestado de suas experiências, por isso o comentário do § 79, acima transcrito. Já no texto das Constituições propriamente dito, na Primeira Parte - que trata de "A admissão á provação" - quando fala daqueles que serão recebidos, se diz: Para falar de uma maneira geral daqueles que se deverá receber, pode-se dizer que mais alguém tenha recebido de Deus nosso Senhor dons naturais e infundidos para ajudar a Companhia naquilo que ela busca, seu divino serviço, e mais tenha feito a experiência desses dons, mais será apto a ser recebido na Companhia (p. 433). Serão recebidos na Companhia aqueles que são experimentados naqueles dons que ajudam a Companhia, ou sejam, que distinguem a sua ação da ação das demais Ordens. De novo experiência pode ser colocada lado a lado com o termo "identificação" ou "imitação". Como se confirma no Capítulo I I I , desta Primeira Parte - denominado "A dispensa daqueles que foram admitidos e não deram satisfação" - onde se enumeram as justificativas para a dispensa de um membro da Companhia: entre elas se diz que será dispensado quem for "contrário ao bem da Companhia", ou seja, "se a experiência mostrar que este é de fato inútil e mais próprio a embaraçar a Companhia que a ajudar" (p. 448). Na Quarta Parte - "A formação nas letras e nos outros meios de ajudar o próximo daqueles que são guardados no seio da Companhia" - das Constituições, mais especificamente no Capítulo I I I , que trata dos "Estudantes que se deve colocar nos Colégios", por sua vez, lê-se o seguinte: No entanto, só serão admitidos como estudantes aprovados aqueles que foram experimentados nas casas ou nos colégios e que, depois de dois anos de experiências e de provação, uma vez feitos os votos e a promessa de entrar na Companhia, são recebidos para nela viver e nela morrer para a glória de Deus nosso Senhor (p. 477). Ou então, o que se lê na Quinta Parte - "O que concerne à admissão ou incorporação na Companhia" - quando logo no Capítulo I ("A admissão. Quem a faz e em que momento"), se diz: Aqueles que foram suficientemente colocados à prova na Companhia e durante bastante tempo para saber, de parte a parte, se convém que eles permaneçam para um maior serviço e uma maior glória de Deus nosso Senhor, devem ser admitidos não mais em provação como antes, mas de uma maneira mais intrínseca, enquanto membros de um mesmo corpo, o da Companhia. É o caso principalmente daqueles que são admitidos para serem professos ou coadjutores formados (p. 515). Pela leitura de todos estes excertos fica clara a identidade experiência/ provação. O jesuíta é chamado a viver um período de provas, ao final do qual o indivíduo é definitivamente reconhecido ou não como pertencente ao um corpo institucional. A experiência aqui pode ser definida, pois, como uma série de atividades que garante 1) a identificação do indivíduo com a instituição e 2) a reprodução/manutenção dessa mesma instituição (Fabre, 2000). Importante destacar, portanto, o papel da experiência assim compreendida com o processo de individualização x individualismo (usando termos hodiernos): quem obedece a essa regra integra um corpo institucional e se torna um homem que vive de uma forma que, se descrita, permite-nos conhecer o jesuíta. ... Nos textos de espiritualidade On peut par deux voies savoir les choses de la vie [mystique] future, c'est à savoir par la foi et par l'expérience. La foi est la voie commune que Dieu a établie pour cela à cause que les choses de Dieu et de la vie future ne nous sont connues que par ouï-dire et parla prédication des apôtres. L'expérience est pour Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 73 peu de personnes. Les apôtres de Jésus-Christ étaient de ce nombre. Aussi disaient-il: Quod vidimus, quod audivimus, quod manus nostrae contrectaverunt de verbo vitae annuntiamus vobis; et ailleurs: Quod scimus loquimur, quod vidimus testamur. Jean-Joseph Surin (1660) Science Expérimentale des choses de l'autre vie Assim inicia sua obra - Science expérimentale des choses de l'autre vie -, o padre jesuíta francês Jean-Joseph Surin (1600-1665), que ganhou celebridade dentro e fora da Companhia de Jesus graças a suas virtudes e talentos como diretor espiritual. Quarenta e cinco anos depois da morte do P.e Cláudio Aquaviva, vê-se (com esta e outras tantas obras espirituais) muito mais estabelecida sobre bases seguras uma espiritualidade com feições propriamente jesuíticas. É bem verdade que, no trecho citado, Surin deixa claro que a experiência é uma forma de conhecimento das coisas futuras (ou místicas) para poucos, como os apóstolos que - note-se viram, ouviram e tocaram o "verbo vitae". Mas isso não significa que somente eles puderam fazer uma experiência sensível do Verbo Encarnado ou das coisas futuras ou místicas (para usar os termos que ele usa). Neste ponto, Surin é bastante claro: "os apóstolos de Jesus Cristo eram deste número", porém, mais à frente no texto inicial da obra, ele se diz parte deste número também e afirma ter a "mesma intenção" dos apóstolos: "que essas coisas que conhecemos (...), e na qual a providência de Deus nos engajou, sejam empregadas neste discurso para tornar firme a fé na qual a profissão da religião católica nos engajou, e para nos tornar melhores cristãos" (Surin, 1990, p. 128). Eis o ponto capital: o texto-testemunho de Surin - que relata os sofrimentos porque passou e as graças que recebeu no período que se seguiu à sua intervenção junto a um caso de possessão demoníaca de algumas irmãs Ursulinas - ganha estatuto de veracidade porque é uma experiência feita que se comunica com a finalidade de tornar firme a fé de quem leia: annuntiamus vobis, loquimur e testamur que os Demônios existem (44), mas que há um "Deus, tal como a Igreja acredita e anuncia" (Idem, p. 343) e um "Deus que é vingador dos crimes" (p. 347), e também que "uma vontade boa é toda poderosa, e que contra ela o Inferno é como que um quase-nada que, sem ela, se torna um gigante sem tamanho" (p. 377), mas sobretudo que "a providência de Deus foi singular nesta possessão, dando todas as ocasiões e provas suficientes de que eram demônios, e que Deus e a Igreja dominam sobre eles" (p. 414). Como, nos textos de espiritualidade jesuítica, a questão da experiência se apresenta? Como, no tempo, foi se estabelecendo esta espiritualidade e, sobretudo, como ela se estabelece, no âmbito discutido até aqui, a partir do assumir-se, numa síntese encarnada, todo um horizonte formativo com as características bastante peculiares descritas? Por exemplo, na carta enviada no dia 29 de setembro de 1583 pelo P.e Aquaviva à toda a Companhia de Jesus - Lettera del Nostro Padre Generale (...) Sopra la Rinovatione dello spirito etc. - se pode ler, depois que ele exorta os padres e irmãos a "metter la mano all'opera", sua justificativa para este trabalho: sappiamo con l'esperienza, che le arti non s'imparano, se non facendo; & pure occupandosi intorno à materia di fuori, non trovano resistenza: perche ne all'architetto le pietre, ne à gli altri artefici impediscono le materie i suoi disegni; ma la nostra filosofia che consiste nel moderar gli affetti interni, truova molto maggior ripugnanza, & mutatione; poi che se bene nel quadrare, la pietra fa alcuna difficoltà, quadrata però non torna alla prima roizessa; ma gli affetti nostri ben spesso si mutano, come per isperienza proviamo (pp. 2324). Aquaviva (1583), aqui, insiste no fato de que se renovará o espírito não somente pela graça de Deus, mas pela prática constante dessa renovação. Constante porque, "como por experiência provamos", os afetos não são como nossas características externas que, quando modificadas não voltam atrás, mas "muito freqüentemente se alteram". Experiência é, pois, não somente Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 74 conhecimento adquirido pela prática, mas um saber indutivo acerca de si mesmos, a que eram educados os jesuítas. Na carta seguinte - Lettera del Nostro Padre Generale (...) Dello studio della perfettione, & carità fraterna -, Aquaviva (1586) explicando o que é este "estudo da perfeição e caridade fraterna", ou seja, o forçar-se a fazer a vontade do "nosso pai e senhor" (p. 08), tornará a obediência às Constituições e aos Superiores "cada dia mais doce" (p. 08) e, especialmente, "far-nos-á com a experiência saborear e, com uma luz maravilhosa, que não é de lume natural, conhecer claramente, que esta é uma doutrina do céu" (p. 08). Regra espiritual e regra institucional são, aqui, corroboradas pelo conhecimento filosófico das potências da alma ("se nossa vontade não é espoliada de todo amor e afeição particular não poderá buscar a Deus", como escreve mais à frente na mesma carta); e a interseção se dá exatamente no apelo à experiência. Também Fazio (1594) faz uso dessa categoria - dentro do mesmo espaço de discussão usado por Aquaviva (1586) - para demonstrar o quão necessário é se aplicar no exercício da "Mortificação santa" das faculdades da alma e, sobretudo, das paixões desordenadas e também no exercício da obediência. Segundo ele, a mortificação e a obediência fazem com que nos deixemos guiar, finalmente, pela vontade de Deus e não pela nossa, que, "por sua natureza é cega" e, dessa forma guiados, não corremos o risco de incorrer no erro "que o Senhor mesmo predisse dizendo: Si coeco coecus ducatum prestet, ambo in foveam cadunt" (p. 49). Sanchez (1594/1607), fazendo uso de questões próprias da Filosofia Moral, acaba por prescrever a obediência como ajuda para a manutenção da prudência, que, sabidamente, é a virtude dos experimentados. Assim escreve ele, no Capítulo IV, Livro V - que trata da "obediência que é devida aos superiores" - de seu Le Royaume de Dieu et le vray chemin pour y parvenir: Apres qu'un homme aura prins des estudes & exercices suffisans en sa vacation & estat, il a necessité d'une prudence & discretion, par laquelle il se regle, & conduise, car d'autre maniere, les vertus se convertiroient en vices. Et pource que la prudence, est celle-là, qui met le frain & ordonne toutes vertus, parfoy elle est appellée vertu des anciens, qui d'ordinaire s'obtient fort tard, & avec grande experience (à raison de quoy les jeunes superieurs, font tant de folies, & injures mal a propos) pourtant il est três-evident qu'il faut prendre l'obeissance pour bride & guide, qui supplee à la prudence (p. 560). Um a um, todos os padres espirituais apresentados vão se servindo da experiência para prescrever exercícios que auxiliem no engajamento à "religião católica" e no se tornarem "melhores cristãos": Villanueva (1608), depois de dizer que a oração mental é mais oração que a vocal, lembra, por exemplo, que no entanto se acrescentam as palavras à oração mental quando a alma "se sente caída" (p. 7,1) e coloca que "este aviso (...), cada dia nos é ensinado pela experiência, que vendo caído o nosso espírito na oração, com a voz exterior o reaviva" (p. 7,2); e segue com suas considerações sobre as potências da alma humana. À frente, na mesma obra, Villanueva (1608), falando acerca da especulação e da contemplação, como formas de oração de entendimento, retoma conteúdos próprios dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola: aplicação dos sentidos, composição de lugar, uso da memória, etc. Rodriguez (1609/1834) também, no Ejercicio de perfeccion y virtudes cristianas (45), apela para a experiência com o fim de comprovar como são importantes os votos para a ordenação pessoal e institucional. Assim como Nieremberg (1631/1657, 1640/1957), o qual também faz uso desta categoria para mostrar como a vontade precisa ser bem conduzida pelos preceitos da moral (46), ou pela ordem institucional (47). De tal forma que, nestes textos, pode-se encontrar o teórico, o institucional e o espiritual tornados prescrição não porque sejam documentos normativos, mas porque fazem lisível a descrição de um modus operandi e de um modus cogitandi encarnados numa experiência de caráter necessariamente jesuítico. "Necessariamente" porque se trata de um caráter fundado sobre aquele tripé formativo muito peculiar desta ordem religiosa. Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 75 III) Conclusão No início deste artigo, se perguntave como era possível que termos tão diversos e, sobretudo, tão distantes do horizonte cognoscitivo da experiência pudessem ser usados, numa mesma frase, juntos: Deus, a alma, as paixões da alma, os sentimentos etc. Tendo seguido este percurso, a questão parece esclarecer-se. Escrever que se faz a experiência de que Deus dá um "desejo fervoroso" que, como luz do céu, desfaz as trevas e as falsas razões da alma; ou que se experimenta que, na medida em que os desejos são considerados a partir das falsas razões, parecem vir do demônio, como o afirma Seraphin Bonaventura Coçar (48), é descrever o resultado de um trabalho de discernimento dos espíritos, ou seja, o trabalho do juízo a fim de bem localizar de quem partiu o desejo, quem o concedeu; é também comprovar o trabalho de elaboração pessoal acerca da experiência de "sentir um incendido desejo". De fato, em sua carta, Seraphin procura deixar claro ao Padre Geral o quão seriamente trabalhou para conhecer a origem desse desejo e sobretudo o quão certo é de que quem o dá é "Dios Nuestro Señor", já que tem experimentado uma atenção maior na "observância das regras", depois de se ter encomendado a Deus, nas orações. Vê-se que, a experiência, neste caso, está intimamente ligada a um conhecimento de si mesmo e de Deus, bem como de virtudes morais, indissociavelmente: se o desejo é um desejo honesto, útil e agradável, é um movimento em direção ao sumo Bem; mas não basta a confirmação teórica, é preciso uma experiência sensível de sua honestidade, utilidade e bondade: "un desseo fervoroso, que como luz del cielo deshaze en mi alma aquellas tinieblas y razones, dexandome muy consolado, y con tal alegria, que me parece arrostrar a qualquiera dificultad y trabajo". Joan Sotalell experimenta paciência grande diante das tentações, pelo simples pensar "yr a las Indias" (49), além de experimentar consolação e facilidade para fazer o que antes era difícil. No texto que escreve, o jovem jesuíta relata, como os demais indipetentes, o trabalho de discernimento dos espíritos a que se dedicou - oferecimentos, obediências, abnegações, exercícios espirituais, mortificações -, bem como procura demonstrar e comprovar como conhece bem a si mesmo, seus limites, suas virtudes, as graças recebidas. Tudo utilizado como argumento a favor e prova da origem divina de um tal desejo. Além disso, Sotalell explicita seu desejo de fazer sua a vontade de Deus: "davame grande molestia el ver que no podia ser luego, pero conformeme con la voluntad de Dios Nuestro Señor que fuesse quando el quiziesse"; como, por exemplo, Aquaviva (1586) lembrava em sua carta dirigida à Companhia de Jesus: "ne trova il servo di Dio altro riposo, ò altro contento, che U far la volontà di colui, la cui volontà è sola regola d'ogni rettitudine" (p. 7). A experiência de facilidade para os "trabajos de corazon" a que se refere Gabriel Mayo (50) em sua Indipeta, unida à certeza de sua falta de habilidades que justifiquem o pedido, não se contradizem, porque: "no nace este desseo que tengo de ver en mi algo delo que han de tener los Predicadores", mas "nace de la sola immensa bondad de Dios, que en mi lo despierta y me tira sin ýo mereçello ni pretendello". Porém, a comprovação maior é que, junto com o desejo de ira para o Japão para trabalhar na conversão das almas, sente também um "desseo de dar la vida por amor del Señor". Como pode ser possível que um Bem honesto, útil e agradável dê origem a um desejo de morte? Se e somente se esse desejo é o desejo do Amor de Deus, o desejo do Sumo Bem, da realização da vida a que foi chamado no seio da Companhia de Jesus. Também Juan Bravo comprova, a partir da experiência, a origem divina do seu desejo, quando apresenta as justificativa nascidas da elaboração pessoal: o desejo corrige suas imperfeições e lhe permite viver firme nas "cosas de Instituto". E, finalmente, diz: "No creo que rayz de donde brotan tales ramas puede ser o malas, o antojadiza" (51). Em outra carta sua (52), Juan Bravo relata o desejo de dizer à voz tudo o que o Senhor lhe fez conhecer e sentir: desejou estar "a los pies de Vuestra Paternidad para que con la lengua propria diera al Padre que my Dios me ha dado una notiçia de my coraçon y de lo que en el pasa". Que coisas são essas que Deus lhe faz experimentar? Sempre são confirmações da origem divina do desejo que sente de ir ao Japão, confirmações, inclusive, que lhe dão a segurança de escrever não uma ou duas vezes, mas várias vezes, sempre para refrescar a memória do Padre Geral de seus desejos e, especialmente, do seu trabalho de discernimento e da certeza a que chegou. Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 76 Experiência: instrumento cognoscitivo? Ponte para aceder a Deus? Critério de identificação/imitação final? Sim, tudo isso, mas num continuum feito carne, num dinamismo particular. A aparente fragmentação da análise desenvolvida ao longo deste texto se desfaz na leitura das cartas Indipetae que não permitem uma compreensão de tipo filo-estruturalistafrancesa. Finalmente, é preciso dizer, há uma unidade interna não só a essas fontes, mas à própria Companhia de Jesus: é essa unidade mesma - retórico-filosófico-espiritual-institucional - que permite, na leitura dos documentos identificar uma dinâmica, uma vitalidade, que evidencia um homem e sua experiência de si mesmo, de Deus e do mundo indissociáveis. Uma tal compreensão do homem, enfim, faz o psicólogo se perguntar: quem é o homem para mim? E, quem sabe, aprender com quem, de "morto" que era, se tornou uma voz encarnada. Referências bibliográficas Agostinho (1994). A Trindade. (A. Belmonte, trad.). São Paulo: Paulus. (Original de 416). Aquaviva, C. (1583). Lettera del Nostro Padre Generale Claudio Acquaviva. Sopra la Rinovatione dello spirito à Padri & Fratelli della Compagnie. 29/09/1583. Roma. (BCS W12/441). Aquaviva, C. (1586). Lettera del Nostro Padre Generale Claudio Acquaviva. Dello studio della perfettione, & carità fraterna. 19/05/1586. Roma. (BCS W12/441). Aquino, T. (1947). 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Notas * Este artigo é fruto das pesquisas desenvolvidas na tese de doutoramento financiada pela CAPES, na FFCLRP/USP. Agradeço, especialmente, as frutuosas colaborações dos professores Alcir Pécora, Pierre-Antoine Fabre e Marina Massimi. (1) "...toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural. Implica um meio de elaboração circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados etc. Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam" (Certeau, 2002, pp. 66-67). Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 79 (2) Termo com o qual, genericamente, eram designados os territórios de missão, no âmbito cultural e institucional estudados. (3) "Sublinhar a singularidade de cada análise é questionar a possibilidade de uma sistematização totalizante, e considerar como essencial ao problema a necessidade de uma discussão proporcionada a uma pluralidade de procedimentos científicos, de funções sociais e de convicções fundamentais" (Certeau, 2002, p. 32). (4) Certeau (2002) afirma: "A historiografia (quer dizer 'história' e 'escrita') traz inscrito no próprio nome o paradoxo - e quase oximoron - do relacionamento de dois termos antinômicos: o real e o discurso. Ela tem a tarefa de articulá-los e, onde este laço não é pensável, fazer como se os articulasse. Da relação que o discurso mantém com o real, do qual trata, nasceu este livro. Que aliança é esta entre escrita e a história? Ela já era fundamental na concepção judaico-cristã das Escrituras. Daí o papel representado por essa arqueologia religiosa na elaboração moderna da historiografia, que transformou os termos e mesmo o tipo de relação passada, para lhe dar aspecto de fabricação e não mais de leitura ou de interpreta ção. Desse ponto de vista, o reexame da operatividade historiográfica desemboca, por um lado, num problema político (os procedimentos próprios ao 'fazer história') e, por outro lado, na questão do sujeito (do corpo e da palavra enunciadora), questão reprimida ao nível da ficção ou do silêncio pela lei de uma escrita 'científica'." (p. 11). (5) Trata-se do grupo de pesquisa com o qual tive a oportunidade de trabalhar na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, durante estágio de pesquisa no exterior, realizado no ano 2003/2004. Lembro de modo particular de Pierre-Antoine Fabre, Antonella Romano e Luce Giard, além daqueles que, por intermédio desses últimos, vêm se debruçando sobre o "fazer história" dentro do mesmo horizonte de preocupação de Michel de Certeau. (6) Aquino é quem assim divide: cinco categorias de potências (vegetativas, sensitivas, apetitivas, motora e intelectivas), três almas (vegetativa, sensitiva e racional) e quatro modos de viver (vegetativo, sensitivo, motivo e intelectivo). Cf. Aquino, 1991, pp. 159-194 (q. LXXVIII). E ele diz ainda: "ao teólogo pertence indagar, especialmente, só das potências intelectivas e apetitivas, susceptíveis de virtude. Mas, como o conhecimento dessas potências depende de certo modo das outras, por isso a nossa consideração sobre as potências da alma, em especial, será tripartida. Pois, primeiro, devem-se considerar cousas que servem de preâmbulo ao intelecto. Segundo, as potências intelectivas. Terceiro, as potências apetitivas" (pp. 159-160). (7) Falar de espiritualidade nos séculos XVI e XVII, especialmente falar da Devotio moderna 20, sem dúvida é considerar fatores tais como a retórica, a ética, a política, a teologia etc. Hansen, no prefácio à obra de Pécora (1994) - Teatro do Sacramento - define a Devotio moderna como "metafísica neo-escolástica da Luz difusa" que funda a "história como história sacra" (Pécora, 1994, p. 16), como lugar da epifania da "Luz". Segundo ele, espiritualidade, experiência religiosa, mística e fé, são re-elaborações ou retomadas de conceitos tomistas, apenas revestidos de roupagens modernas; o que significa uma devoção em nada desvinculada da realidade 21. Porém, é Guibert (1953) quem melhor nos define o que seja espiritualidade, quando explica o que significa uma "espiritualidade inaciana": segundo ele, o termo designa tanto a vida interior pessoal de um homem, como a maneira como esse homem exerce certas práticas genericamente entendidas como espirituais, ou mesmo uma doutrina espiritual presente em escritos desse mesmo homem. No entanto, quando se trata da "espiritualidade" de uma ordem religiosa, por exemplo, na maioria das vezes "cette spiritualité du groupe aura pour point de départ la spiritualité d'un homme, d'un fondateur ou d'un maître, telle qu'elle ressort de sa vie, de ses enseignements et de sa parole, de ses écrits, de tel écrit considéré comme normatif par la tradition vivante du groupe" (p. XVIII). Por isso, pela expressão "espiritualidade inaciana", se quer designar esse conjunto de características próprias da experiência pessoal de Inácio, presente em determinados documentos - que serão aqui analisados - que funda um modo próprio de um grupo, no caso a Companhia de Jesus. Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 80 (8) Quando se fala de Conimbricenses ou de Curso Conimbricense, está se referindo ao conjunto de textos publicados entre 1592 e 1606 com o título genérico de Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus. Discute-se freqüentemente a que autores se deve atribuir a responsabilidade da redação dos volumes: sabe-se que a maior parte dos títulos é de autoria do P.e Manuel de Góis; cabendo aos P.es Sebastião Couto e Baltazar Álvares a redação de dois dos seus oito volumes. De forma que as obras do P.e Pedro da Fonseca, especialmente o Comentário à Metafísica de Aristóteles, não podem ser consideradas como parte de sua estrutura. Observando-se o conjunto da obra, é interessante notar que excetuando o pequeno volume sobre a Ética a Nicômaco e o volume dedicado à lógica aristotélica, todo o Curso gira em torno do domínio disciplinar próprio da física (filosofia natural). De maneira geral, pode-se dizer que os comentários estão estruturados em torno do texto aristotélico, sendo que a parte mais significativa é a dedicada às quaestionenes: onde é possível ver um desenvolvimento dos temas propostos pela obra aristotélica, mas sem se fixar á "letra do texto". Martins (1996) comenta mesmo que "mais do que no comentário propriamente dito (...), é aqui que podemos encontrar as posições doutrinais mais importantes dos Conimbricenses" (p. 489). Especificamente quanto a esse pequeno volume dedicado ao comentário da Ética a Nicômaco, pode-se dizer que não se ocupa de todo o texto aristotélico, mas apenas de "algumas das melhores questões que foram tratadas dispersamente por Aristóteles nos livros da Moral a Nicómaco" (Góis, 1593, p. 59). De fato, este tratado está organizado em torno de nove Disputationes que abordam, sumariamente, apenas alguns dos temas da obra de Aristóteles: as três primeiras giram em torno das noções centrais de Bem, Fim e Felicidade. A quarta se ocupa dos Princípios dos atos humanos, ou seja, da Vontade, do Intelecto e do Apetite Sensitivo. A quinta analisa, genericamente, a questão da bondade e da malícia dos atos humanos. A sexta trata das Paixões e a sétima das Virtudes em geral. A oitava e a nona Disputationes dividem a análise de algumas virtudes em particular: a Prudência, a Justiça, a Temperança e a Fortaleza. (9) Quantos aos Exercícios Espirituais, são - à primeira vista - uma série de notas práticas, de métodos de exame de consciência, de oração, de deliberação ou eleição, de planos de meditação e de contemplação, divididos em partes que indicam quatro semanas, além de regras etc.; é um conjunto de instruções diversas destinadas a dirigir o cumprimento de um certo número de exercícios interiores sistematicamente ordenados, de forma que se trata de um livro não para ser lido, mas para ser vivido; mas, sobretudo, trata-se de uma obra destinada a quem guia o exercitante (Guibert, 1953). Quanto à compreensão de como este texto nasceu, qual o seu objetivo e portanto seu lugar na vida de espiritualidade da Companhia de Jesus, é o próprio Inácio quem narra - no seu Relato - como os Exercícios foram escritos: não de uma só vez, "mas, na medida em que observava algumas coisas na sua alma e as achava úteis, e lhe parecia que poderiam ser também úteis aos outros; então as punha por escrito" (Loyola, 1991, p. 1072). De forma que o texto dos Exercícios Espirituais é o resultado de uma experiência pessoal, marcada por acontecimentos que são sinais da presença e da ação de Deus, descrita de maneira a ser útil para que outros homens fossem capazes de trilhar um caminho de experiência de encontro com Deus. O objetivo da obra é suscitar e sustentar uma experiência de eleição da vontade de Deus - "sempre conhecer e cumprir sua divina vontade" (Loyola, 1991, p. 693) 28 1 -; uma "escola de oração" (p. 529), para usar a expressão de Guibert (1953). Podemos também dizer que os Exercícios são mesmo o ponto de partida fecundo, no sentido de "princípio de orientação e de desenvolvimento de toda esta espiritualidade nascida da experiência de Santo Inácio" (idem, p. 537). E finalmente, segundo O'Malley (1999), "não se pode compreender os jesuítas sem fazer referência" aos Exercícios Espirituais (p. 9). (10) Esta versão apareceu em língua francesa no ano de 1991, sob a iniciativa de um grupo de padres jesuítas - Jean-Noël Aletti, Adrien Demoustier, Jean-Claude Dhôtel, Gervais Dumeige, François Évain, Édouard Gueydan, Antoine Lauras, Luc Pareydt e Claude Viard -, dirigidos pelo P.e Maurice Giuliani, sj, com a colaboração de Pierre-Antoine Fabre (da EHESS) e de Luce Giard (do CNRS). Trata-se da obra Loyola, Ignace de (1991). Écrits (M. Giuliani, pres. et dir). Paris: Desclée de Brouwer/Bellarmin (Collection Christus, 76, Textes). Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 81 (11) A respeito do Diário de Inácio, podemos dizer que o que temos publicado atualmente é apenas um pequeno fragmento do "grande maço de manuscritos" nos quais Inácio "escrevia cada dia o que se passava em sua alma" (Loyola, 1991, p. 1072), especialmente com respeito á escrita das Constituições. Esse fragmento equivale a dois cadernos inteiramente escritos pela mão de Inácio: o primeiro vai de 02 de fevereiro a 12 de março de 1544, e o segundo se refere aos dias de 13 de março de 1544 à 27 de fevereiro de 1545. Esses manuscritos só foram publicados pela primeira vez em 1934. O Diário, por ser a descrição do que se "passava na alma" de Inácio, descreve a dinâmica da vida mística do fundador. (12) Finalmente, quanto ao que concerne ao Relato, o que mais nos interessa é seu caráter "testamentário" (Cf. Loyola, 1991, p. 1011), que ajuda a entender como a experiência espiritual de Inácio constituiu-se fundamento da Companhia de Jesus. No Relato, a vida de Inácio é mais que uma seqüência de acontecimentos: é uma vida marcada, constituída e formada pela graça de Deus (Marin, 1999); a vida de Inácio se torna, pois, uma "experiênciamodelo", de forma que ler seu relato significa "reviver a vida do fundador, repetir a vida do fundador como fundador, quer dizer refundar o corpo, reinstituir o instituto que ele fundou a partir de sua conversão" (idem, p. 147), ou seja, finalmente, é imitar Inácio. (13) A gênese das Constituições se confude com o nascimento da Companhia de Jesus. Não é inaugural (no sentido de que só aparece como necessidade cerca de cinco anos depois dos votos em Montmartre), mas é fundante da Ordem (na medida em que organiza, define, legisla em nome de uma unidade). Em junho de 1539, os primeiros companheiros de Inácio deliberam o que dá origem à Summa, um conjunto de decisões que fornecerão ao Papa Paulo III o essencial para a edição da bula Regimini Militantis que, em 1540, reconhece a nova Ordem religiosa. Da deliberação de 1539 à versão final das Constituições são passados 19 anos, nos quais o texto é revisado, enriquecido, retomado. A esse período correspondem os Generalatos de Inácio, Laínez e Borgia e o Pontificado de Paulo III e Júlio I I I . Cada um desses personagens contribuiu de alguma forma com a gênese do texto definitivo, de forma que falar de um autor é sempre uma questão problemática; especialmente quando sabemos também que é a Polanco - secretário dos três primeiros Padres Gerais - que se deve a maior parte do trabalho jurídico. No entanto, é preciso ter claro que, para além das inúmeras contribuições ao texto das Constituições, o ponto de unidade é a experiência pessoal de Inácio (Guibert, 1953). Fabre (1991) lembra que ainda no texto "B" (a última versão, que foi editada em 1558), Inácio teve a oportunidade de deixar várias notas marginais, atestando assim seu trabalho de fundador (Fabre, 1991). Leite (1938) também diz que as Constituições são "a melhor fonte para se conhecer o pensamento explícito e direto de Inácio". Através desse texto fundador, conhece-se, pois, mais que um sistema jurídico, um texto que tem a característica de constituir a Companhia de Jesus, na medida em que compõe, dá a essência, descreve, estabelece um modo de agir que é o espelho da vida de Inácio e de seus primeiros companheiros. (14) Apesar de escritos em períodos distintos, os documentos, quando lidos no conjunto, revelam uma cadeia contínua de progressiva legitimidade da Ordem: sua instituição, a eleição do Prepósito, a Summa - texto oficial do "Instituto" - que deverá ser aprovada, mais tarde, pelo Papa Paulo III e, posteriormente, confirmada por Júlio I I I . A produção desses documentos nada mais é que uma "articulação coletiva do ato fundador, como vínculo, no gesto de uma escritura comum" (Loyola, 1991, p. 269), onde o ponto de unidade do grupo que começa a se dispersar é o próprio Inácio, que aceita se tornar Geral: é justamente porque eles se dispersarão pelas missões "que a união em um Corpo deve ser considerada" (idem, p. 270), daí a necessidade de um selo unitivo - a obediência (que vimos ser uma das questões debatidas no primeiro encontro fundador, entre metade de março e 24 de junho de 1539, em Roma). (15) Entre os textos editados no período, selecionamos apenas alguns obedecendo basicamente a três critérios: 1) autores e obras mais lidas nos colégios e casas da Companhia de Jesus, conforme o inventário de Gilmont (1961) e o esboço histórico da espiritualidade jesuítica feita por Guibert (1953); 2) disponibilidade de obras nos arquivos pesquisados Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 82 (basicamente BCS, mas também BCE, BNF e BCR); 3) e, finalmente, aquelas obras, entre as recolhidas, que melhor sintetizassem o conteúdo daqueles três pólos de análise anteriormente descritos - filosófico/teorizado, regrado-espiritual e regrado-institucional. Optamos, então, pelos seguintes textos: uma carta do P.e Aquaviva (1543-1615), de 29 de setembro de 1583, na qual o Padre Geral propõe a "renovação do espírito aos Padres e Irmãos da Companhia" e uma outra carta, do dia 19 de maio de 1586, sobre o "estudo da perfeição e da caridade fraterna"; ambas têm um caráter refundador importante, na medida em que julgam o momento histórico vivido e propõem os novos passos a serem dados. Um texto de Giulio Fazio - Trattato utilissimo della mortificatione delle nostre passioni, & affetti disordinati - de 1594, pela sua importância do ponto de vista da síntese entre conteúdo filosófico aristotélico-tomista e experiência espiritual. Outro texto do mesmo ano, do espanhol Pedro Sanchez - Libro del Reyno de Dios y del camino por donde se alcanza -, do qual encontramos uma tradução francesa de 1607. Dada a significação da obra do ponto de vista da descrição do verdadeiro filho da Companhia de Jesus, demonstrando o valor da obediência como "caminho" para se alcançar o Reino. O Libro de oracion mental, de Melchior de Villanueva, editado em 1608, por ser uma síntese bastante completa do uso de conceitos próprios da psicologia filosófica aristotélico-tomista no âmbito da espiritualidade. O Ejercicio de perfeccion y virtudes cristianas, de Alonso Rodrigues (1533-1617), publicado pela primeira vez em 1609 e que conheceu inúmeras traduções e edições ao longo da história da Companhia de Jesus. Finalmente, como representante de uma espiritualidade completa - um todo orgânico - que amadureceu no tempo, escolhemos algumas obras de Juan Eusebio Nieremberg (1595-1658): o seu De Artes Voluntatis, de 1631 (tivemos acesso a uma tradução francesa de 1657) e o Vida divina y camino real de grande atajo para la perfeccion, de 1633. Esses oito textos são uma síntese daquilo que descrevemos a partir dos três pólos representativos do pensamento e da ação jesuíticos, na medida em que, imersos num ambiente filosófico, pedagógico, espiritual e institucional específicos, se preocupam em estruturar aquilo que se configurará um corpus de espiritualidade com características próprias. Trata-se, nesse caso, de uma genealogia positiva: são textos que só podem ter nascido de um ambiente sustentado minimamente por aquele tripé. (16) É nesse período, com já vimos, que começa a tomar corpo a realização prática do programa pedagógico (Guerra, 2003) traçado pelas Constituições; é aprovado o Diretório dos Exercícios Espirituais em 1599, o que permite um trabalho aprofundado e sério sobre o texto inaciano; são publicadas inúmeras cartas de Aquaviva (sobre a oração, sobre a renovação do espírito, sobre o estudo da perfeição e outras tantas destinadas a particulares); são editados os primeiros tratados espirituais e instruções sobre oração, aproveitamento espiritual etc. (Lamalle, 2004); os debates nas Congregações Gerais e seus decretos sobre tempo dedicado à oração, noviciado etc. Todos exemplos de uma profícua preocupação com o estabelecimento de uma Espiritualidade "verdadeira, sólida e eficaz" (Guibert, 1953, p. XXV), com traços propriamente jesuíticos. (17) A julgar pelas indicações oferecidas pelo Diretório dos Exercícios Espirituais: nas "notas transmitidas oralmente", §8 da II parte, diz-se que "se pode aconselhar àquele que se exercita de anotar por escrito seus pensamentos e suas moções" (Loyola, 1991, p. 265, tradução nossa), obedecendo à tradição iniciada por Inácio e certamente conhecida através do seu Relato. (18) ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 4 (grifo nosso). (19) ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 338 (grifo nosso). (20) ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 379 (grifo nosso). (21) ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 329 (grifo nosso). (22) Segundo Mendiola (2003), essas sociedades são aquelas que se constituíram do século V a.C. ao século XVII d.C. Podemos descrever assim essa realidade retórica: a cognição estava Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 83 construída sobre a oralidade/escritura, de forma que a leitura da realidade era sempre analógico-metafórica; estando baseada na oralidade/escritura, é uma realidade onde importa a interação entre as pessoas, ou seja, exige comunicação e sociabilidade; ainda por estar baseada na oralidade/escritura, era necessário que se normatizasse o falar, tornando-se o processo de aprendizado um processo moralizante e marcadamente cristão. É uma realidade, por fim, teleologicamente orientada. (23) Para essa assim chamada realidade científica, Mendiola (2003) enumera as seguintes características: se desenvolveu a partir do século XVII e chega aos nossos dias; o processo cognitivo é baseado na depuração da escrita pelas técnicas de impressão, o que faz da leitura da realidade, uma leitura literal-referencial; sendo baseada na escrita/impressão como meio de comunicação, elimina a necessidade de interação e valoriza o discurso analítico e representacional (a palavra suplanta a coisa) e permite a comparação entre textos e opiniões diferenciadas, tornando-se, portanto, uma dinâmica individual e técnico-cognitiva. É uma realidade, por fim, cognitivamente orientada. (24) Schmitt, em artigo de 1969, discutindo a questão da diferença entre experientia e experimentum em obras de Zabarella e Galileu, diz que "uma das tendências que mais claramente marcam a tendência do século XVII é uma ênfase crescente na experiência" (p. 80, tradução nossa). Uma ênfase que, segundo ele, se encontra tanto no que respeitava à produção filosófica (por exemplo, em Gassendi e Locke), quanto ao que respeitava à produção científica (por exemplo, as obras de Francis Bacon e Newton). (25) Assim, já é possível distinguir um aspecto importante da antropologia que se constrói a partir dessa concepção da alma: os sentidos não são passivos, na medida em que concorrem ativamente no processo intelectivo. Podemos começar a completar a questão, lembrando: o intelecto age a partir das phantasmata. Se se compreende a unidade intelecto/sensibilidade, que está por trás dessa compreensão, não há contradição: "sensibilidade e intelecto interagem até o ponto que a virtus cogitativa apresenta uma estreita afinidade com o espírito; assiste-se a uma espiritualização da sensibilidade" (Zanlonghi, 2003, p. 69, tradução nossa). Essa "espiritualização" permite a unidade entre razão e sensibilidade: o homem, enquanto razão encarnada que é, necessita dos sentidos para conhecer; sejam os sentidos externos (que recolhem as impressões), sejam os sentidos internos que formam imagens, depositadas e ordenadas na memória, que cumpre o papel de custodiar as impressões unidas aos juízos do intelecto. (26) Sobre essa passagem cf. Zanlonghi (2003), quando ela afirma: "Todavia, para compreender de que modo a retórica age neste nexo, é preciso refletir sobre a conexão entre prudência e retórica. Muitas, na verdade, são as tangentes e um mesmo estatuto gnosiológico: nem ciência, nem opinião, produzem conhecimento, mas não demonstração, como a retórica desenvolve raciocínios que movem a partir de premissas prováveis e constróem uma razoabilidade orientada para o concreto, assim a prudência é a virtude que, em estreito contato com as paixões, discerne o bem do mal e orienta a escolha do bem concreto. Ambas orientadas para a ação, radicadas nos afetos, mas dirigidas para sua própria normalização, dividem o destino comum de agir naquela zona intermediária entre sentido e intelecto (...). Mesmo a prudência utiliza a cogitativa na sua aplicação na vida cotidiana, recebendo como matéria do raciocínio a variedade das ações possíveis ou a variedade dos aspectos e dos pontos de vista de uma mesma ação. A prudência precisa, para produzir o seu consilium, ver claramente a experiência. De onde tirará o socorro senão pescando da memória, da imaginação e da cogitativa as species que a retórica fundirá em imagens?" (pp. 75-76). (27) A chamada arte da memória foi, segundo a tradição ciceroniana, "descoberta" por Simónides de Céos, alguns séculos antes da era cristã. Após entender o papel da visão e da ordem no processo memorativo, criam-se regras para facilitar o desenvolvimento do que passa a ser chamado "memória artificial". Mais tarde, Cícero (1966) enquadra a memória entre as disciplinas da Retórica (que, segundo ele, são cinco: inventio, dispositio, elocutio, memoria e pronuntiatio); e Quintiliano descreve o processo. Platão compreende a memória como sinal da Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 84 divindade e da imortalidade da alma. Aristóteles também trata da memória e a relaciona à formação do conhecimento, apontando o importante papel da imaginação. Cada um desses pensadores da antigüidade, se tornará, na Idade Média e na Renascença, referência para um passo na compreensão dessa arte. Segundo Yates (1975), na antigüidade clássica é elaborado um "modelo arquitetural da memória", onde as coisas (para elas a memoria rerum) e as palavras (para elas a memoria verborum) a serem lembradas são ordenadas num espaço (locus ou topos), a partir de imagens (imaginibus ou phantasmata). É na Idade Média, no entanto, que a arte da memória passa a ter uma importante "intenção religiosa": há uma preocupação por se lembrar das coisas da salvação e da danação da alma, dos artigos da fé, da estrada para o céu (virtudes) e para o inferno (vícios). Essa preocupação com as virtudes e os vícios, faz com que os escolásticos retomem a obra aristotélica, especialmente a Ética à Nicômaco, que enquadra a memória como parte da prudência: "a memória pode ser um habitus moral quando a utilizamos para lembrar das coisas passadas em vista de uma conduta prudente no presente e de um olhar prudente para o futuro" (p. 74, tradução nossa). A "memória artificial" é uma memória aperfeiçoada pela arte: eis o papel da Prudência. (28) Com o advento da impressão, a memória perde seu lugar, porque não é mais necessário saber par coeur as lições aprendidas. Assim, a "arte da memória" torna-se um jogo curioso, ou um artifício mágico: "Tem-se a impressão que no século XVI a arte da memória começa a declinar. O livro impresso destrói os velhos hábitos da memória" (Yates, 1975, p. 143, tradução nossa). Os principais representantes dessa nova áurea ocultista que aparece em torno à arte da memória são as correntes neo-platônicas renascentistas, especialmente de Pico de la Mirandola e Marcilo Ficino. Também Giordano Bruno envereda pelas sendas da memória e desenvolve o conceito a paritr de uma concepção mágica. (29) Para Agostinho, o homem é uma alma que faz uso de um corpo. Até naqueles conhecimentos adquiridos pelos sentidos, a alma se mantém em atividade e ultrapassa o corpo. Os sentidos só mostram o imediato e o particular, enquanto que a alma é capaz de tocar o universal e atingir a compreensão pura, porque a alma se confunde com o próprio Deus. (30) Em disputas e questões anteriores, o autor já havia descrito o que os filósofos e o Filósofo entendem por Bem (aquilo a que tudo apetece; e sendo que o bem é aquilo que é honesto, útil e/ou agradável/deleitável, o Sumo Bem será aquilo que é, ao mesmo tempo, honesto, útil e agradável/deleitável, ou seja, o Amor de Deus) e por Fim (aquilo a que potencialmente toda a criatura se dirige, ou age em direção a, e em havendo, portanto, uma finalidade para toda a ação do homem). (31) Rm 7,23. (32) Também Bergamo (1994) aponta a fascinação pelo mundo da interioridade e pela estrutura da alma, presente especialmente no século XVII, na França, e retomado da tradição medieval. Segundo ele, a questão da estrutura da alma tem suas raízes em um problema bastante discutido por autores de séculos anteriores: "Em particular, a aparição, com o desenvolvimento da escolástica no século XIII, de uma antropologia fortemente estruturada que, modelando-se sobre a filosofia aristotélica, comportava uma classificação rigorosa das faculdades da alma, e uam análise minuciosa de seu funcionamento, abriu a via para uma longa série de transposições, até o ponto que conhecimentos maduros sobre o terreno de discussão filosófico poderiam, a qualquer momento, ser transplantados e aplicados no campo da literatura espiritual. Há, em suma, toda uma história da representação da estrutura da alma, que não somente se articula no interior de uma história da espiritualidade, mas ainda cruza a história das relações da espiritualidade com seu contexto, e em particular com o discurso filosófico" (Bergamo, 1994, pp. 32-33, tradução nossa). (33) Certeau (1982) explica que esta fórmula teológica mantida nos séculos XVI e XVII é no entanto ligeiramente modificada, quando então acontece o temido risco da "mystiquerie". O risco, segundo Certeau é que a crescente individualização das práticas e o aparecimento cada Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 85 vez maior das experiências privadas, isto é, o progressivo desvincular-se da instituição, produzisse esta "mystiquerie": "Torna-se 'místico' aquilo que se destaca da instituição" (p. 116, tradução nossa). Por isso a necessidade de se retomar, com clareza maior, a certeza de que a Igreja é o sinal do corpo de Cristo. Esta idéia faz trazer a experiência mística para o campo da instituição visível. (34) Ele, de fato, diz: "O campo religioso se reorganiza também em função da oposição entre o visível e o invisível, de tal maneira que as experiências 'escondidas', que cedo foram reunidas sob o nome de 'mística', adquiriram uma pertinência que não tinham" (Certeau, 1982, p. 120, tradução nossa). Ou ainda: "Esta (...) modificação implica uma reestruturação das relações entre o fato e o sentido. Se torna mais difícil pensar que os fatos chamam o sentido - um sentido que seria levado à lisibilidade pelas coisas mesmas -, quanto mais era necessário gerar primeiro uma 'razão' por textos, e depois fatos (uma 'experiência' e'/ou um corpo) para esta razão (sintoma: 'produzir' passado do sentido de 'manifestar' para o de 'criar')" (p. 121, tradução nossa). (35) Massimi (1999) afirma, falando da experiência religiosa dos jesuítas: "não há solução de continuidade entre a experiência psicológica e a experiência religiosa, já que ambas são inerentes ao eu do homem. Nem pode haver autonomia entre a esfera psíquica e a esfera espiritual, assim como hoje nós 'modernos' concebemos" (p. 51). Segundo a tradição da filosofia aristotélico-tomista, conhece-se o fundamental pelo acidental: "conhecemos a alma por seus efeitos, ou seja, por suas funções psicológicas, ou faculdades que se evidenciam no plano dos fenômenos" (p. 53). (36) García-Mateo (2000) dá uma descrição detalhada do uso que Inácio fazia das categorias de seu ambiente cultural de forma justa e razoável. Assim, por exemplo no EE. 53, Inácio escreve: "Imaginando Cristo nosso Senhor diante de mim e colocado na cruz, fazer um colóquio: como, de Criador, ele veio a se fazer homem, passar da vida eterna à morte temporal, e assim morrer por meus pecados. Da mesma maneira, olhara para mim: o que eu fiz por Cristo, o que eu faço por Cristo, o que devo fazer por Cristo. Depois, vendo-o nesse estado, suspenso na cruz, percorrer o que se me oferecerá" (EE. 53, p. 84, tradução e grifos nossos). Percebe-se daí que o uso da imaginação tem que ver com o que, mais a frente explicaremos melhor, será chamado "composição de lugar" e "aplicação dos sentidos". (37) A aplicação dos sentidos na composição de lugar, por exemplo, aparece pela primeira vez, dentro do texto dos Exercícios Espirituais, no EE. 47: "Aqui é preciso remarcar que na contemplação ou meditação do que é visível, como por exemplo a contemplação de Cristo nosso Senhor, o que é visível, a composição será ver com a vista da imaginação o lugar material onde se encontra a coisa que eu quero contemplar. (...) Na contemplação do que é invisível, como é aqui a dos pecados, a composição será ver com a vista da imaginação e considerar minha alma aprisionada nesse corpo corruptível e todo o composto humano neste vale, como que exilado entre animais privados de razão. Eu digo: todo o composto da alma e do corpo" (EE. 47. Loyola, 1991, pp. 78-80, tradução nossa). E voltará a aparecer outras muitas vezes. Como comentário a esse EE. 47, aparece, na obra sinótica a seguinte nota: "A composição de lugar é uma preparação que tem necessidade da imaginação. Explicando-a aqui, Inácio mostra que a imaginação é uma faculdade a ser colocada em ação: fazer um trabalho que não consiste simplesmente em colocar juntas idéias e palavras, mas os elementos de um quadro. O exercitante torna preciso assim o lugar evangélico no qual ele vai se situar durante o exercício" (p. 79, nota do tradutor, tradução nossa). Outros exemplos de aplicação dos sentidos podem ser encontrados em EE. 53, EE. 66-70, EE. 122-125, EE. 159, EE. 194, EE. 202, EE. 220. (38) Alguns exemplos retirados dos Exercícios Espirituais: "Verei com os olhos da imaginação" (EE. 122, p. 116, tradução e grifo nossos). "Pelo sentido da audição escutarei" (EE. 123, p. 116, tradução e grifo nossos). "Pelo sentido do olfato e do gosto, hei de sentir e saborear a suavidade e a doçura infinitas da divindade, da alma, de suas virtudes e de tudo o mais" (EE. 124, p. 116, tradução e grifo nossos). "Exercitarei o sentido do tato, abraçando, por exemplo, Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 86 e beijando os lugares que estas pessoas tocaram com os pés, ou se detiveram" (EE. 125, p. 116, tradução e grifo nossos). Jesu, dulcis memoria: a "doçura infinita da divindade" deve ser experimentada pelos sentidos. Bem como, toda experiência do sagrado passa pelos sentidos. (39) Cf., por exemplo, EE. 48, EE. 55, EE. 63, EE. 65, EE. 104, EE. 203. (40) Nos EE. 29 e 30, por exemplo, logo no Exame Particular, Inácio propõe que se compare, depois que se tenha analisado os gráficos cotidianos e semanais, a evolução de um dia para o outro e de uma semana para a outra, a fim de verificar se houve emenda do pecado a que o exercitante se dispôs a emendar. (41) Esse pequeno documento que, dobrado, comporta quatro páginas, foi classificado entre os manuscritos do AHSI com os números 38 e 39, de forma que temos as páginas 38f, 38v, 39f e 39v. (42) Apenas a título de exemplo, citamos uma passagem do Relato, quando Inácio relata sua ida para Alcalá: "uma coisa o embaraçava muito, era que quando ele começava a aprender de cor, como era necessário nos inícios da gramática, lhe vinham novas inteligências de coisas espirituais e novos gostos; e isso de tal maneira que ele não podia aprender de cor e não podia as afastar, ainda que lutasse muito contra elas" (Loyola, 1991, p. 1046, § 54). (43) Nas "Regras Gerais Tiradas das Constituições" se diz que foi a Divina Providência que permitiu que a Companhia de Jesus existisse e, portanto, mais que qualquer constituição exterior é a Ela que se deve recorrer sempre. No entanto, continua, foi a mesma Providência Divina que "pede a cooperação de suas criaturas" e o Papa que "assim ordenou", que mostraram o quão necessário era "escrever Constituições que ajudem a melhor avançar, conformes ao Instituto da Companhia, na via do serviço divino que começamos a seguir" (Loyola, 1991, p. 608, tradução nossa). No parágrafo seguinte diz: "Assim, e bem mais ainda, é necessário que todos aqueles que entram na Companhia e vivem nela sejam convencidos em nosso Senhor e desejos de guardar integralmente todas as constituições, as regras e a maneira de viver da Companhia e que com sua divina graça se esforcem, de todo seu coração e de todas as suas forças, por as observar perfeitamente" (p. 609, tradução nossa). (44) No Capítulo I da Primeira Parte do texto Surin (1990) mostra as "provas de que existe verdadeiramente demônios", a partir das "pistas que deixaram em sua saída dos corpos das pessoas possuídas" (pp. 131-149). (45) É bem verdade que não se trata de uso explícito, como nos demais exemplos, no entanto, Rodriguez (1609/1834) recorre a exemplos de santos, apóstolos e mártires para mostrar, por exemplo, como é verdade que os votos não tiram a liberdade, pelo contrário a aperfeiçoam, como é o caso deste trecho: "não se tira a liberdade pelos votos, antes se aperfeiçoa mais (...); porque o que fazem os votos é afirmar e fitar nossa vontade no bem (...); como em Deus, e nos bem aventurados que não podem pecar (...) e os apóstolos que foram confirmados em graça e não podiam pecar mortalmente, não por isso perderam a liberdade, antes com isso se aperfeiçoou; porque se afirmou e fixou mas o bem para que foi criada" (p. 100, tradução nossa). (46) Nieremberg (1631/1657), no decorrer do seu De arte voluntatis, se auxilia de conceitos vindos da psicologia filosófica aristotélico-tomista com a clara finalidade de demostrar como as potência da alma racional têm necessidade dos preceitos morais para se bem ordenarem. Assim, não poucas vezes, fará uso de termos e expressões que implicam um conhecimento por experiência: "a felicidade é um certo silêncio" (p. 118, tradução nossa), "as ações honestas e legítimas, as afeições sãs, as boas obras" (p. 158, tradução nossa), "nós nos privamos voluntariamente dessas duas tão excelentes vantagens" (p. 320, tradução nossa), "lhe represente duro e penível" (p. 377, tradução nossa), "quem ama a paz e deseja adquirir repouso" (p. 475, tradução nossa) etc. Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm 87 (47) Na obra seguinte, Nieremberg (1640/1957) segue as veredas da regra institucional sob a qual se encontra determinado para mostrar também, pela experiência, como este é um caminho facilitado para chegar a uma "vida divina". (48) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 4. (49) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 338. (50) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 379. (51) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 329. (52) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 404. Nota sobre autor Paulo Roberto de Andrada Pacheco é psicólogo formado pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto; desenvolvendo pesquisa na área de concentração de História das Idéias Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contato: [email protected]. Data de recebimento: 20/08/2004 Data de aceite: 20/10/2004 Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 88 1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467-1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623) A single régimen for body and soul: Luigi Cornaro (1467-1566) and Leonard Lessius (1554-1623) treatises Paulo José Carvalho da Silva Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo Brasil Resumo Fontes variadas dos sáculos XVI e XVII combinavam diferentes tradigoes de saber a fim de sistematizar modos de conservar a saúde do corpo e da alma. Pode-se destacar o Dois tratados de regime de vida para a conservagao da saúde do corpo e da alma até a extrema velhice, publicado em 1613 pelo teólogo jesuíta da Universidade de Louvain Léonard Lessius, a partir do Trattato della vita sobria do veneziano Luigi Cornaro, de 1558. Conclui-se que o regime proposto por Lessius prescreve urna disposigao de comportamento, adquirida por meio da vontade e do hábito, que promete o melhor desempenho das fungoes corpóreas e anímicas necessárias, enquanto meios concretos, para que o individuo possa ter urna vida, ao mesmo tempo, saudável, virtuosa e satisfatória. O que estaría baseado em urna refinada convergencia de saberes médicos, da filosofía da alma e da ética aristotélicas e da espiritualidade inaciana. Palavras-chave: regime de vida; psicología aristotélica; medicina; espiritualidade jesuíta; sáculos XVI e XVII. Abstract Varied sources of trie sixteenth and seventeenth centuries mix different knowledge traditions to develop ways of preserving body and soul's health. A significative example it the Dois tratados de regime de vida para a conservagao da saúde do corpo e da alma até a extrema velhice, published in 1613 by the Jesuit Theology professor of the university of Louvain Léonard Lessius from his translation of the Trattato della vita sobria, 1558, by the Venetian Luigi Cornaro. These systematic advices teach how to behave looking for a better performance of the functions of body and soul, which are necessary for a healthy, virtuous and satisfactory life. They are based on a refined combination of medical régimen tradition, Aristotelian philosophy of the soul and Ethics, and Ignatian spirituality. Keywords: régimen; Aristotelian psychology; medicine; Jesuit spirituality; sixteenth and seventeenth centuries. Convergencia de saberes e ars vivendi A elaboragao de saberes sobre o bem viver no inicio da Idade Moderna deu-se através de conflitos e conciliagoes de diferentes tradigoes do pensamento, o que resultou em diferentes modos de adesao, refutagao e síntese de saberes, cuja difusao estendeu-se ao longo dos sáculos XVI e XVII. Em particular, o aristotelismo renascentista foi urna das abordagens filosóficas que mais embasou propostas de regime de vida neste período. Contudo, mesmo que tenha havido um grande interesse por Aristóteles nos mais diversos contextos de pensamento, durante o período que se estende entre o final do século XIV e a metade do século XVII, há poucas pesquisas atuais sobre o assunto (1). De modo específico, apesar de sua Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 89 1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm considerável difusao, nao há ainda estudos que abordam os múltiplos regimes de vida fundamentados na filosofía aristotélica da alma e na tradigao médica das dietas produzidos nos sáculos XVI e XVII. Por sua vez, sabe-se que os jesuítas foram responsáveis pela defesa e renovagao do aristotelismo neste período. Exemplo disto é o programa de estudos sobre a definigao de alma e de vida desenvolvido ñas escolas da antiga Companhia de Jesús. A partir de leituras do De anima e do Parva Naturalia, complementadas pelo estudo dos livros da Ética de Aristóteles, para os jesuítas do fim do sáculo XVI e inicio do sáculo XVII, salvo algumas nuances, a alma é o principio de vida, una e individual, constituida de tres partes funcionáis coordenadas: a alma vegetativa (responsável pelo crescimento, nutrigao e geragao de todos os seres vivos); a sensitiva (sede dos sentidos, paixoes, imaginagao, memoria e locomogao dos animáis e seres humanos) e a racional, exclusiva dos humanos, (a qual pertence á razao e á vontade). O que estaría sistematizado em comentarios escolásticos, sobretudo nos tratados do coimbrao Manuel Góis, datados do final do sáculo XVI, conhecidos como tratados conimbricenses (2). Estes tratados jesuíticos sobre a alma podem ser considerados urna resposta a dois ampios projetos: estabelecer os principios de urna ciencia da vida, e neste sentido, o estudo da alma nao funcionava apenas como os prolegómenos da filosofía moral e da teología, mas era a base para o estudo de todos os seres vivos, e demonstrar, através de argumentos racionáis, a imaterialidade e a imortalidade da alma humana (3). Como se sabe, era imprescindível fixar a concepgao de alma num contexto de debate travado contra posigóes que rivalizavam com o aristotelismo cristao dos jesuítas. Havia os galenistas que davam maior relevo á materia do que a corrente tomista, bem como a polémica visao de Pietro Pomponazzi (1462-1525), filósofo aristotélico da Universidade de Pádua, segundo o qual nem conforme Aristóteles, nem conforme a razao, a alma seria ¡mortal, contrariando com esta afirmagao o quinto Concilio Laterano, de 1513, ou ainda outros paduanos partidarios do pensamento de Averrois (Ibn Rushd) (1126-1198), que defendiam a existencia de um intelecto ativo comum a todos os seres racionáis, a partir da leitura do filósofo, médico e juiz andaluz, maior comentador de Aristóteles em língua árabe (4). Em escritos direcionados á atividade pastoral ou á vida cotidiana, os jesuítas das primeiras geragoes sistematizaram diversificados procedimentos de caráter bastante metódico, funcional e coerente com as idéias apresentadas nos tratados teóricos publicados pela Companhia no mesmo período. Para além dos debates académicos, alguns jesuítas exploraram, de maneira particular e em diferentes contextos, conseqüéncias desta concepgao de alma com tres partes funcionáis, inclusive, sistematizando modos de harmonizá-las, por meio do ordenamento de seus acidentes e na melhor aplicagao de suas faculdades. Sao diferentes práticas que se fundamentam em urna refletida conciliagao de saberes sobre a natureza humana que inclui a espiritualidade inaciana, a psicología e a ética aristotélicas e até mesmo a tradigao médica. Pode-se destacar o Dois tratados de regime de vida para a conservagáo da saúde do corpo e da alma até a extrema velhice, publicado em 1613, pelo teólogo e professor da Universidade de Louvain Leonard Lessius (1554-1623) e reeditado em varias línguas ao longo de tres séculos, que prescreve justamente conselhos para a conservagáo da integridade das fungoes somáticas e anímicas (5). Propoe-se, portanto, urna análise deste manual de medicina do corpo e da alma com o objetivo de explicitar a convergencia de saberes médicos e da filosofía da alma aristotélica, o que pode contribuir para a compreensao da organizagao do conhecimento sobre o bem estar humano no inicio da Idade Moderna. Elogio da vida sobria Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 90 1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm O Dois tratados de regime de vida para a conservagao da saúde do corpo e da alma até a extrema velhice é composto de um tratado complementar á obra do veneziano Luigi Cornaro, Trattato de la vita sobria, cuja primeira edigao data de 1558. Cornaro (1467-1566) escreveu tal manual de saúde entre os 85 e 95 anos para relatar que, após urna vida de excessos que arruinara sua saúde, descobrira as virtudes dos regimes alimentares. O autor retoma os lugares comuns sobre os efeitos da temperanga, renovando a tradigao, ao multiplicar os conselhos e insistir, através de um relato em primeira pessoa, ñas delicias e prazeres que a sobriedade e a moderagao podem proporcionar. Trata-se, na realidade, de urna longa tradigao. A escola hipocrática produziu, no final do sáculo V a.C, um tratado sobre o Regime de vida, que estabelece os postulados fundamentáis dos cuidados com a alimentagao, atividades físicas, sexualidade, idade e lugar de residencia. Claudio Galeno (129-199) sintetizou idéias hipocráticas, aristotélicas e de outras tradigoes helenísticas, em seu tratado de Higiene, que defende a idéia da saúde como um equilibrio perfeito interno e com o meio externo. Além das regras monásticas da alta Idade Media e dos textos de origem árabe, como o Canon de Avicena, os regimina sanitatis medievais mais conhecidos, embora nao sejam os únicos, sao os versos didáticos atribuidos á Escola de Salerno, sáculo XI, o Régimen sanitatis salernitanum, e o livro de saúde de Aldebrando de Siena publicado no sáculo XIII. Na Italia do inicio da modernidade, varios médicos difundiram modos de conservar a saúde. Pode-se destacar, nesta empreitada, o médico e professor da Universidade de Pádua Michele Savonarola (1384-1469). Seu pequeño manual de longo título, o Libreto délo Excellentissimo physico Maistro Michele Savonarola: De tutte le cose che se mangiano comunamente: quale sonó contraríe e quale al proposito: i como si apparecchiano: i di quelle se beveno per Italia : e de sei cose non naturale : i le rególe per conservare la sanita deli corpi umani, sistematiza os principios considerados necessários para a conservagao da boa saúde por muitos anos, retomando nogoes hipocrático-galénicas e adaptando-as a sua realidade local e atual. Conforme esta tradigao hipocrático-galénica reiterada no Renascimento, a combinagao harmoniosa, quantitativa e qualitativa, entre os líquidos corporais chamados de quatro humores (sangue, fleuma, bile amarela e bile negra ou melancolía) é urna condigao para a saúde. Para que isto se mantenha é necessário o equilibrio entre a entrada de alimentos e o gasto com os esforgos corporais. O objetivo do regime é regular este equilibrio de modo a garantir urna boa proporgao entre calor e umidade (6). Por sua vez, o veneziano Cornaro apresenta seus conselhos afirmando que há tres grandes males introduzidos na Italia pelos maus costumes: a adulagao das cortes, a maneira de viver conforme a opiniao e doutrina de Lutero e as indignidades. Seu tratado exorta a urna maneira de viver considerada mais honesta, católica e digna através da busca da justa medida e da sobriedade no viver, que se inicia pelo regime alimentar. Assim, propoe urna medicina de si mesmo que abrange a conservagao do corpo em saúde e o predispoe a colaborar com os exercícios de devogao que visam á salvagao da alma (7). O Trattato della vita sobria aparenta-se ao género dos tratados de civilidade difundidos na Italia de sua época. Da racionalidade de corte, Cornaro parece guardar a énfase na razao e no prazer que comportam o senso de medida e o controle de si. Entretanto, restringe-se aos aspectos médicos e á conveniencia do bom regime: seu livro expoe os passos a serem tomados por aquele que deseja conservar, por longos anos, a boa saúde, entendida como parte inalienável da idéia de dignidade, que pressupoe virtudes políticas e intelectuais como a prudencia e a discrigao (8). Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 91 1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm Siraisi (1997) lembra que nos Quinhentos e Seiscentos italianos, o público para este tipo de manual de saúde nao se restringía aos médicos, mas abrangia também as cortes e a intelectualidade urbana, em especial os idosos destas classes. A proliferagao dos manuais de higiene e sobretudo das dietas está relacionada certamente ao aumento na sofisticagao das refeigoes e dos rituais comensais das prósperas classes altas e o interesse, marcante do humanismo, nos escritos clássicos sobre este tema. No Trattato de Cornaro, gosto e conveniencia sao apresentados em oposigao, para, com o relato da experiencia, posteriormente, comprovar serem, pelo contrario, conciliáveis na prática do regime. O que prenuncia o espago que o campo do desejo ocupa enquanto operador do modo de vida temperante na versao de Lessius. Tal como outros escritos do período, o autor expoe sua experiencia como exemplo, inclusive relatando como venceu suas próprias dificuldades em realizar o regime prescrito pelos médicos. Parece com isso querer convencer o leitor do caráter concreto de seus conselhos e da verossimilhanga de seus resultados, atraindo a confianga do leitor para o seu conceito público de homem idoso, pleno de saúde e sabedoria. Mesmo havendo recebido a regra segundo a qual se deve comer os alimentos e beber o vinho convenientes e em pequeña quantidade, Cornaro relata que seguia seu próprio gosto. Mas após resolver seguir a temperanga e a razao, vendo que nao há nenhuma pena nisso e que se trata de um dever, afirma: Após haver decidido ser continente e razoável, vendo que nao se trata de algo difícil, pelo contrario, um dever do homem, dispus-me de tal maneira a seguir este modo de vida, que jamáis caí na desordem em coisa alguma; e fazendo-o, em pouco tempo, percebi que esta vida me agradava e que em menos de um ano (o que poderá parecer inacreditável para alguns) cureime de cada urna de minhas enfermidades (Cornaro, 1616, p. 7, trad. nossa). Apoiando-se na tradigao dos quatro elementos e das quatro qualidades, bem como no sistema de correspondencias entre as ordens do macrocosmo da natureza e do microcosmo do corpo humano, Cornaro repropoe a conservagao de urna certa regra no comer e no beber que proporcionaria beneficios no dominio individual e em organizagoes maiores como a familia, a cidade ou o reino. Tais consideragoes sustentam a conclusao de que a vida regrada é o fundamento e o meio mais certo de urna vida saudável e longa, além de ser a verdadeira e única medicina para muitos males. Nota-se que, embora Cornaro proponha um método para prolongagao da vida, ele nao recorre aos saberes alquímicos, astrológicos ou mágicos que tradicionalmente visavam tal fim, conservando-se estritamente dentro do género dos regimes e com isto atribuindo urna eficiencia ainda maior á dieta sobria (9). Trata-se, porém, de urna certa medida a ser encontrada e nao urna regra geral predeterminada. Cornaro professa um acento na individualidade, pouco comum até entao. É a própria pessoa que pode conhecer através da sua experiencia quais sao os alimentos e bebidas mais ou menos convenientes, pois somente esta conhece as condigoes de sua natureza e suas propriedades ocultas: Na verdade, o homem nao pode ser médico perfeito de outrem além de si mesmo; e a razao é porque cada um é que pode, com diversa experiencia, conhecer sua compleigao perfeitamente e as suas propriedades mais ocultas; e o que tal vinho, tal alimento provoca no seu estómago. (...) Nao havendo, portanto, melhor médico do que si mesmo, nem melhor Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 92 1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm medicina do que a vida ordenada (Cornaro, 1616, p. 16, trad. nossa). Vigarello (Cornaro, 1558/1991) sustenta que esta observagao íntima, e o conseqüente saber intransferível e necessário sobre as disposigoes particulares, nao existiam nos régimen sanitatis medievais. Sendo Cornaro pioneiro ou nao, nota-se que esta medicina de si mesmo parece ter se tornado um ideal dos sáculos XVI e XVII. Ela comparece, por exemplo, como objetivo de urna obra de Levinio Lemnio publicada em Veneza nos anos de 1561 e 1564. O médico holandés fornece os meios pelos quais o leitor possa investigar a si mesmo e medicar-se, finalidade explicitada no título: Delta complessione del corpo humano Librí III da quali a ciascuno sará agevole di conoscere perfettamente la qualitá del corpo suo, e i movimenti dell'animo e II modo di conservan del tutto sani. Tal finalidade comparece ainda no encerramento do discurso sobre como se manter bem na velhice, de André du Laurens: Discours de la conservation de la vue, des maladies melancholiques, des catarrhes, & de la vieillesse, de 1630. Nele, o médico de Henri IV e professor de Montpellier afirma que é necessário que cada um aprenda a conhecer o "seu natural" e aquilo que Ihe cai bem ou mal tornando-se senhor e médico de si mesmo. Exame e julgamento da própria natureza e exame e ordenagao do próprio desejo equivalem-se no ponto de partida para a escolha da vida sobria no tratado de Cornaro. O que é bastante compreensível em um texto que visa demonstrar os efeitos de urna maneira de viver tradicionalmente concebida como hábito virtuoso (10). Os contra-argumentos aos lugares comuns evocados pelo autor e que poderiam constituir-se em impedimentos á prática de seus conselhos sao todos eles voltados para o dominio da vontade. Por exemplo, em resposta á opiniao de que é melhor viver pouco, mas de acordó com o próprio apetite, do que muito, retendo e forgando a natureza, ele vai dizer que os grandes livros da doutrina foram escritos por homens maduros, que atingiram um estado em que o prazer da boca nao conta tanto. Ele insiste também em dar o próprio exemplo no sentido de provar que é possível ter urna vida prazerosa em idade avangada, guardando a sobriedade. Afirma que muito se deleita com conversagoes, leituras, viagens, etc., em suma, a vida que leva é agradável e alegre: vida viva e nao morta. A importancia da escolha da vida sobria dentre as experiencias possíveis do corpo e da alma é enfatizada ao longo de seu livro em seu caráter de facilidade, prazer e utilidade: Esta é aquela sobriedade divina, grata a Deus, amiga da natureza, filha da razao, irma da virtude, companheira do viver de modo temperante, modesta, gentil, contente com pouco, regulada e distinta em suas operagoes (Cornaro, 1616, p. 23, trad. nossa). A sobriedade purga os sentidos, torna o corpo ágil, o entendimento vivo, a memoria boa, os movimentos flexíveis e as agoes facéis. As potencias conservam urna grande harmonía. Além de tudo, permite urna maior capacidade de seguir a vida espiritual. Enfim, a própria sobriedade constitui-se em urna medicina da disposigao da alma e do corpo: Ó santíssima e inocentíssima Sobriedade, único refresco da natureza, mae benigna da vida humana: verdadeira medicina do ánimo bem como do nosso corpo; quanto devem os homens louvar-te e agradecer-te os teus corteses dons? (Cornaro, 1616, p. 33, trad. nossa). Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 93 1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm Temperarla: entre medicina e teología Nao obstante a proibigáo das Constituigoes e regras do fundador Inácio de Loyola de se ensinar medicina ñas escolas jesuítas, eles prestaram servigos médicos durante as epidemias que assolaram a Europa no sáculo XVI e ñas missoes no Oriente e na América, organizaram saberes e práticas sobre o corpo e seus males, divulgaram meios de manter a saúde e apropriaram-se de conceitos e procedimentos da arte médica para dirigir a vida no interior da Companhia (11). Em particular, o comentario de Lessius ao Trattato della vita sobria segué os mesmos principios e baseia-se nos mesmos pressupostos médicos e éticos de Cornaro, porém apresenta os argumentos de maneira mais sistematizada, mais explicativa e enriquecida de detalhes e exemplos. As comodidades apresentadas por Cornaro sao modeladas e desenvolvidas por Lessius em urna exposigáo que as divide ñas que concernem principalmente ao corpo e, logo em seguida, ñas que dizem respeito mais á conservagáo da alma. Seu tratado é estruturado em tres etapas. Primeiro, explica-se o que se entende por sobriedade no viver; em um segundo momento, define-se por que via e meio se pode ordenar urna justa medida; e enfim aborda-se quais sao os frutos e comodidades que déla se obtém. Lessius justifica seu interesse pela medicina em geral e específicamente pelo tratado de Cornaro, nao somente a partir da experiencia pessoal de cura de seus males com o regime, mas através do argumento que o autoriza enquanto teólogo a enveredar-se no campo da medicina. Trata-se do que considera ser um ponto em comum entre as duas disciplinas: a temperanga como virtude de justa medida operante tanto na ordem da alma como na ordem do corpo: Mas esta materia nao deve ser considerada distante da minha vocagao, a da Teología, e nao a da Medicina. Pois, ainda que eu nao tenha dedicado tempo ao estudo da medicina, esta empresa nao é em nada afastada do objetivo de um teólogo, sendo este o discurso da Temperanga, que é urna virtude muito bela, e do que ela consiste, de suas extremidades, da medida de seu objeto, como se deve procurar esta medida, e, por conclusao, quais os frutos que déla se pode colher. (Lessius, 1623, pp. 527-8, tradugao nossa). A sobriedade no viver demarca urna regra no beber, no comer e em outros excessos, de maneira que o homem beba ou coma de modo a nutrir o corpo e nao perturbar a alma: "á medida que a constituigao natural o requer, sem impedir as fungoes da alma. Isto chamaremos de regime de vida, vida regrada e temperante." (Lessius, 1623, pp. 530, trad. nossa). Nos monasterios, havia, desde muito, urna ordem estabelecida de distribuigao parcimoniosa de alimentos e bebidas a todos os religiosos, o que determinava a frugalidade necessária das refeigoes. Seguindo a doutrina aristotélico-tomista, as indicagoes de Inácio de Loyola a propósito do respeito ao individuo e as orientagoes previamente expendidas por Cornaro, Lessius adverte nao ser adequada urna regra geral sem considerar as diferengas nos corpos, sobretudo no tamanho, na idade e na compleigao dos mesmos. O que nao significa relegar a medida á própria vontade, pois as paixoes podem levar á confusao entre necessidade e volúpia. Portanto, nao sendo evidente, torna-se imprescindível descrever por quais meios se pode buscara medida. Urna maneira de verificar o limite do corpo é estar atento justamente as alteragoes das disposigoes da alma. Deve-se medir o ánimo e a aptidáo para atividades tais como a oragáo, meditagáo ou estudos das letras. Se estas se encontram prejudicadas, certamente houve excesso no beber e no comer. Este, ao Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 94 1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm sobrecarregar a parte vegetativa da alma, impede o exercício de faculdades superiores, como os sentidos, a imaginagao, a intelecgao e a memoria (12). Lessius, porém, parece partir do principio de que nao basta conhecer as vantagens da justa medida; colocá-la em prática pressupoe o dominio dos próprios apetites e das faculdades da alma. A sétima regra, por exemplo, discorre sobre a dificuldade na observancia de urna justa medida porque o apetite é, freqüentemente, incitado pela imaginagao dos alimentos como prazerosos e agradáveis. Neste caso é preciso corrigir a imaginagao, representando o alimento como abjeto, para temperar o apetite excessivo com urna dose de repulsa. Bem como é oportuno nao se expor aos perfumes ou á visao dos alimentos porque a presenga do objeto dispersa a potencia e torna mais difícil a abstengao. Recomenda-se representar os alimentos nao como agradáveis á visao, ao olfato e ao paladar, mas "mal cheirosos, sujos, infectos e detestáveis como logo se tornarao" (Lessius, 1623, pp. 564-5, tradugao nossa). Assim como se deve (conforme determinava Hipócrates no décimo quinto aforismo) adaptar ao invernó e ao verao o uso dos alimentos, temperando frió e calor, é também oportuno temperar o querer, através do controle da presenga real ou representada dos objetos, para se atingir a sobriedade no viver (13). Segundo o autor, sao grandes as comodidades que a sobriedade traz á alma e ao corpo. Ela protegería o homem de quase todas as doengas, prevenindo e curando ao temperar os humores e conservar sua boa proporgao qualitativa e quantitativa. Além disso, a sobriedade tornaría o corpo leve, ágil, robusto e disposto em todos os seus movimentos. Retirando pela dieta a abundancia de humores, o peso se vai, a preguiga o deixa, e os condutores dos espíritos ficam livres e abertos. Esta mesma dieta promovería urna boa digestao, engendraría um sangue louvável e déla procedería urna quantidade de espíritos purificados, os quais tornam o corpo vigoroso e disposto (14). Lessius argumenta que a sobriedade também traz o mesmo número de comodidades á alma. Em primeiro lugar, ela conserva os sentidos exteriores em integridade e vigor. Ademáis, ela diminuí e suaviza grandemente as paixoes que inquietam a alma, principalmente as da cólera e da melancolía, temperando toda impetuosidade desordenada. O que, por si só, justificaría urna grande estima pela sobriedade: Pois é algo vergonhoso nao poder dominar a cólera e estar sujeito á melancolía, as importunas solicitagoes da fantasía e se deixar levar por um cegó apetite da boca e da sensualidade (Lessius, 1623, p. 616, trad. nossa). As paixoes desregradas seriam reagoes nao apenas desonestas e contrarias á virtude, como também inimigas da saúde e improprias para pessoas honrosas. A sobriedade remediaría fácilmente todos estes males por urna diminuigao ou corregao dos humores que sao urna de suas causas. A relagao causal entre humores e paixoes é explicada pelo autor através da evidencia de que aqueles que estao repletos de humores biliosos sao coléricos e impacientes e que os melancólicos sao tristes e medrosos. Ou ainda, se a melancolía esquenta-se no cerebro, ela engendra a frenesia e a mania; se o humor é ácido e colado aos tecidos do estómago, ele causa um apetite insaciável de comer; se o corpo está repleto de sangue ardente, ele incita á sensualidade exagerada. Lessius explica que os humores dominantes também definiriam o campo das fantasías e dos sonhos que seguem as paixoes da alma. Ele aponta que o excesso de um humor perverte a natural constituigao da fantasía e da apreensao. A bile, por exemplo, que é muito amarga e grandemente contraria á natureza, faz com que a fantasía apreenda os discursos e agoes dos outros como coisa que Ihe é contraria, inimiga e injuriosa, e, como se trata de um humor ardente e impetuoso, ele faz com que a apreensao seja impaciente e veemente e faz o homem perseguir a vinganga. O humor melancólico, por sua vez, é pesado, frió, seco, mole, ácido, de Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 95 1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm cor negra e muito prejudicial ao coragao. Ele faz com que a fantasía apreenda todas as coisas como Ihe sendo contrarias e inimigas, tristes e tenebrosas, mas por sua frieza e seu entorpecimento levaría ao medo e á fuga. Já a pituita ou fleuma é fría e úmida, o que converte a apreensao em algo prosternado, sem vigor, nem alegría. Da mesma maneira que a bile torna os homens coléricos e turbulentos, audaciosos e desagradáveis, a pituita faria com que nada Ihes contente, tornando-os maledicentes e implicantes. A dieta é um soberano remedio para a maior parte destes incómodos. Inácio de Loyola, nos Exercícios Espirituais, já havia acatado a idéia de que a alimentagao influencia os estados da alma. Segundo Lessius, por seu meio, os maus humores diminuem, e, pouco a pouco, a natureza os consomé e os expulsa. Após a intemperie do corpo se corrigir, o sangue purifica-se e tempera-se, sem nenhuma mistura de cruezas, sem humores supérfluos. Tanto que se vé normalmente quanto as pessoas sobrias sao aprazíveis, afáveis, corteses, alegres, acessíveis e moderadas em todas as suas agóes. As explicagóes de Lessius ratificam a idéia de que o suco de urna natureza benigna torna benignos os afetos e costumes e o suco maligno torna os afetos e costumes malignos e furiosos. O que nao significa que ele concorde com a idéia de que a alma reduza-se ao temperamento do corpo. Lessius parece pressupor muito mais do que urna coincidencia, urna interagao entre os dominios dos afetos e dos humores. Ele afirma que as paixoes também exercem urna alteragao nos próprios humores por efeito de correspondencia. Pode-se constatar quando, por exemplo, a imaginagao é retida longamente em urna injuria e, por causa disto, a emogao da ira cresce e aquece os espíritos e o humor da bile por urna certa simpatía. O humor biliar, estando aquecido, faz com que a fantasía apreenda as coisas com mais forga e veeméncia e que qualquer injuria parega ainda muito maior do que é. O que desencadeia um ciclo vicioso. A tristeza também pode oprimir o coragao por meio de alguma simpatía e impedir sua livre fungao. Daí procede que o humor melancólico queima-se e seus vapores nao podem ser dissipados. Tornando-se ainda mais maligno, aumenta a tristeza, freqüentemente causa desespero e leva a resolugóes desagradáveis. Disto se depreende que para controlar a paixao da ira é aconselhável temperar o fluxo de bile, da mesma forma que para manté-lo temperado é indicado distrair o pensamento das injurias recebidas. De igual maneira, controla-se a paixao da tristeza agindo sobre o fluxo melancólico e tempera-se a melancolía dissipando-se as lembrangas de acontecimentos tristes (15). O que nao estaría em desacordó com a distingao fixada pelo coimbrao Manuel Góis, no seu comentario ao Parva Naturalia, de 1593, segundo a qual tais perturbagóes teriam duas causas: urna formal; o impulso da alma, e outra material, a alteragao orgánica dos espíritos vitáis. Lessius nao pretende, com este tratado, elaborar nenhuma teoria especulativa acerca da natureza da alma. A intersecgao entre medicina e teología explorada pelo jesuíta restringe-se ao campo das fungóes atribuidas ao corpo e á alma e visa á definigao do método de urna agao possível sobre estas fungóes. Por se tratar de urna defesa de urna dieta sobria, é compreensível que realce os processos desencadeados pela causa material dos movimentos das fungóes vegetativa e sensitiva da alma. Usando a terminología aristotélica, pode-se dizer que se trata dos acidentes, e nao da natureza substancial da alma, o que experimentaría modificagóes na aplicagao do seu método de conservagao da saúde (16). De qualquer modo, reduzir a alma ao temperamento do corpo seria incompatível, nao somente com a psicología aristotélico-tomista, como também com as máximas teologais, sobretudo com o pressuposto católico contra-reformado, bem ao gosto jesuítico, de urna predisposigao natural virtualmente boa que se encontra em estado de corrupgao, por causa do pecado original, mas que pode ser superado, por Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 96 1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm agao da graga e do uso correto do livre arbitrio. Isto através da aquisigao de um hábito virtuoso, efetivado no exercício prolongado das boas obras, o que Lessius propoe com o exercício da sobriedade, valendo-se também de argumentos do saber médico, como a descrigao dos processos fisiológicos envolvidos. A terceira comodidade que a sobriedade promoveria no campo anímico é a conservagao da memoria, ao impedir o resfriamento do cerebro, causado pelo excesso de humores desta qualidade. A quarta vantagem da sobriedade seria o vigor do entendimento para pensar, raciocinar, inventar, julgar e urna especial disposigao para receber as iluminagoes divinas. De onde procede que aqueles que aderem á sobriedade sejam vigilantes, circunspetos, de bom conselho, possuam um julgamento sadio e sejam excelentes ñas ciencias a que se dedicam, além de obter um prazer indescritível ao dedicar-se á oragao, á meditagao e á contemplagao. Em suma, o exercício das virtudes provenientes da fé é facilitado quando se segué um regime sobrio de vida. O que se explica pelo fato de que a fé seria o intrínseco primeiro e principal fundamento, por meio do qual todas as outras virtudes sao sustentadas, e a temperanga seria o extrínseco e segundo fundamento, que afasta os impedimentos á fé, ao liberar as fungoes da potencia intelectiva, tornando o exercício das virtudes mais fácil e deleitável: Pois todo o progresso espiritual depende do intelecto e da fé que nele reside. Nao podemos amar um bem e usufruí-lo, nem odiar algum mal, e reiterar o odio por ele, se nao formos impelidos e movidos pelo mesmo intelecto (...) Pois a vontade se conforma fácilmente ao julgamento do intelecto, quando este Ihe propoe algo (Lessius, 1623, p. 633, trad. nossa). A sobriedade, pelo fato de ter o poder de suprimir os obstáculos que impedem as livres agoes do entendimento, configura-se como segundo fundamento da sabedoria e do progresso espiritual. Pois as coisas que causam o impedimento da contemplagao sao a excessiva umidade do cerebro, a abundancia de vapores e fumagas, a obstrugao dos seus condutores, a grande quantidade de sangue, o furor dos espíritos provenientes do sangue e da bile, os vapores biliosos, ou a melancolía adusta (queimada) que ganham o cerebro. Todos estes impedimentos poderiam ser prevenidos, se nao remediados, com a ajuda da sobriedade. Ela ofereceria os meios de se ter um "sangue bem temperado, e, conseqüentemente, os espíritos bem purificados e um cerebro livre de humores supérfluos." (Lessius, 1630, p.640, trad. nossa). A quinta comodidade é que a sobriedade diminuiría a violencia da sensualidade e forneceria urna soberana tranqüilidade ao corpo e á alma. Ela retrairia a causa material, a causa impulsiva e a causa excitante envolvidas na atividade sexual. Pela materia, entende-se a abundancia de esperma (criado pelo excesso de alimento, o que é urna explicagao aristotélica); por causa impulsiva, o espirito animal que serve á expulsao e por causa excitante, a imaginagao dos prazeres sexuais. Enfim, para Lessius, a sobriedade é a verdadeira medicina do corpo e da alma, enquanto disposigao de comportamento adquirida por meio da vontade e do hábito que, a partir da ordenagao de causas materiais e formáis, promete o melhor desempenho das fungoes corpóreas e anímicas necessárias, enquanto meios concretos, para que o individuo possa ter urna vida, ao mesmo tempo, saudável, virtuosa e satisfatória. O regime de Lessius pressupoe a integragao das tres fungoes coordenadas da alma aristotélica. É a alma vegetativa que está no centro de suas prescrigoes por ser aquela que agiria diretamente nos processos da digestao. Mas, á medida que os afetos também estao implicados na prática da sobriedade, a chamada alma sensitiva é colocada em agao. Finalmente, por ser a temperanga um hábito racional Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 97 1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm é a razao que dirige todo o processo de conservagao da saúde do corpo e integridade da alma. Trata-se de um repertorio sistemático de conselhos práticos que, em harmonía com a concepgao de alma defendida nos debates académicos por expoentes da Companhia de Jesús e sem transgredir a proibigao inaciana de envolvimento com a medicina, dialoga e contribuí com a tradigao dos regimes do corpo em plena modernizagao. Ao ampliar e difundir o elogio á temperanga do Trattato delta vita sobria, Lessius endossa nogoes e procedimentos da medicina preventiva, na qual se inserem as dietas, sem, com isto, tornar-se médico e deixar de ser um teólogo, e propoe um só regime para o corpo e a alma. Referencias bibliográficas Fontes primarias Cornaro, L. (1616). Discorsi della vita sobria. Roma. Cornaro, L. (1991). De la sobriété. Conseils pour vivre longtemps. (G. Vigarello, Intr.). (pp. 7-25). Grenoble: Jérome Million. (Original publicado em 1558). Gois, M. (1593). Commentarii Conimbrícensis Societatis Jesu, in Libros Aristotelis qui Parva Naturalia appellantur. Lisboa: Simao Lopes. Gois, M. (1583). Disputas do curso sobre os livros da Moral da Ética a Nicomaco, de Aristóteles em que se contém alguns dos principáis capítulos da Moral. Lisboa: Simao Lopes. Gois, M. (1602). Commentarii Conimbrícensis Societatis Jesu, in tres libros de Anima. Veneza. Hipócrates (1994). De Vart médica! (E. Littré, Trad.). 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Antuerpiae: Officina Plantiniana apud Viduam et Filios Ioannis Moreti. Lessius, L. (1623). Deux traictez du regime de vivre pour la conservaron de la santé du corps & de ¡'Ame, iusques a une extreme vieillesse (S. Hardy, Trad. francesa de época). Paris. (Original publicado em 1613). Savonarola, M. (1515). Libreto délo Excellentissimo physico Maistro Michele Savonarola: De tutte le cose che se mangiano comunamente: quale sonó Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 98 1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm contraríe e quale al proposito: i como si apparecchiano: i di quelle se beveno per Italia : e de sei cose non naturale : i le rególe per conservare la sanita deli corpi umani. Son dubij notabilissimi nuovamente stampato. Venetia: Bernardino Benalio. Fontes secundarias Alfonso-Goldfarb, A. M. (1987). Da Alquimia a química. Um estudo sobre a passagem do pensamento mágico-vitalista ao mecanismo. Sao Paulo: Nova Estela; Edusp. Des Chene, D. (2000). Life's form. Late Arístotelian conceptions of the soul. Ithaca; Londres: Cornell University Press. Giard, L. (1986). L'aristotelisme au XVIe siécle. Les Etudes philosophiques, 3, 281307. Giard, L. (1993). L'École de Padoue. Em D. Huisman (Org.). Dictionnaire des philosophes (pp. 894-897). París: Presses Universitaires de France. Granz, F.E. (1984). A bibliography of Aristotle editions: 1501-1600. Baden-Baden: Roerner. Lohr, C. H. (1995). Les jésuites et l'aristotelisme du XVIe siécle. Em L. Giard (Org.). Les jésuites a la Renaissance. Systéme éducatif et production du savoir. (pp. 79-91). Paris: Presses Universitaires de France. Martin, A. L. (1996) Plague? Jesuit accounts of the epidemic disease in the 16th Century. 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Notas (1) Sobre a circulagao de escritos aristotélicos neste período ver F.E. Granz, (1984). A bibliography ofAristotle editions: 1501-1600. (2) Vide M. Gois (1593). Commentarii Conimbricensis Societatis Jesu, in Libros Aristotelis qui Parva Naturalia appellantur; M. Gois (1583). Disputas do curso sobre os livros da Moral da Ética a Nicomaco, de Aristóteles em que se contém alguns dos principáis capítulos da Moral, e M. Gois (1602). Commentarii Conimbricensis Societatis Jesu, in tres libros de Anima. Fundada por Inácio de Loyola, juntamente com urna dezena de condiscípulos da Espanha, Franga e Savoia, que se diplomaram pela Universidade de Paris, a Companhia de Jesús foi oficialmente reconhecida por Paulo III em 1540. Em menos de um sáculo de existencia, eles implantaram na maior parte da Europa, e mesmo fora déla, urna rede de estabelecimentos de ensino, entre colegios e universidades, assim como observatorios astronómicos, gabinetes de curiosidade, bibliotecas e casas de edigao, nos quais as ligoes de Aristóteles ganharam múltiplos usos. C. H. Lohr (1995) discute as especificidades do aristotelismo professado pela antiga Companhia de Jesús. Vide ainda C. B. Schmitt (1992). Aristote et la Renaissance. M. Massimi tem dirigido diversas pesquisas sobre as vertentes da chamada psicología jesuítica e sua influencia na historia das idéias psicológicas no Brasil, vide, entre outros, M. Massimi e P.J.C. Silva (Org.). (2001). Os olhos véem pelo coracao. Conhecimentos psicológicos das paixoes na cultura luso-brasileira dos sáculos XVI e XVII. (3) Para urna exposigao detalhada sobre os debates realizados pelos jesuítas, interno e externamente á Companhia, sobre a definigao de alma e vida, suas potencias, divisóes e unidade, ver D. Des Chene (2000). Life's form. Late Aristotelian conceptions of the soul. (4) L. Giard (1986 e 1993) articula os aspectos conceptuáis ao caráter institucional destas querelas, examinando, com isto, a insergao dos jesuítas ñas discussóes universitarias do período. Ver ainda A. Simmons, Jesuit Aristotelian Education: The anima Commentaries. Em J. O'Malley (Org.). (1999). The Jesuits. Cultures, Sciences, and the Arts, 1540-1773 (pp. 522-537). (5) Léonard Lessius nasceu em Brecht, próximo a Anvers em 1554 e entrou no noviciado em 1572. Lecionou filosofía durante sete anos em Douai e de 1585 a 1600, teología em Louvain, onde morreu em 1623. Seu Hygiasticon sev vera ratio valetudinis bonae et vitae una cum sensuum, iudicii, et memoriae integritate ad extremam senectutem conservandae teve varias tradugoes em francés, inglés, holandés, italiano, polonés e castelhano entre os séculos XVII, XVIII e XIX. Este estudo foi baseado na comparagao de urna edigao latina (1613) e de urna edigao francesa de época (1623), além de duas edigoes do texto de Cornaro (1616) e (1558/1991). (6) G. Vigarello, em sua introdugao á edigao moderna do livro de Cornaro (1558/1991), De la sobriété. Conseils pour vivre longtemps, o sitúa em urna posigao inédita entre tradigao e modernidade, sobretudo no seu caráter metódico acerca do procedimento concreto da sobriedade e a conservagao do corpo, em comparagao aos textos medievais. Para um panorama geral e exame das diferentes tradigoes de regimes de saúde na Antiguidade e na Idade Media, ver P. G. Sotres (1995). Les régimes de santé. Em M. D. Grmek (Org.). Histoire de la pensée medícale en Occident. Antiquité et Moyen Age (Vol. I, pp. 257-281). Ver ainda N. Siraisi (1997). Time, body, food: The Parameters of Health. Em N. Siraisi, The Clock and the Mirror. Girolamo Cardano and Renaissance Medicine (pp. 70-90). Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 100 1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm (7) De urna parte, a divulgagao de regimes na Italia pode integrar urna campanha contra a crítica protestante á normativa dietética da Igreja romana. Vide M. Montanari (2003). A fome e a abundancia: historia da alimentacao na Europa. Por outro lado, conforme N. Siraisi (1997), o próprio hipocratismo renascentista pressupoe urna conexao entre a mistura de calor e umidade no corpo e o funcionamento das faculdades e potencias da alma. Conseqüentemente, um melhor regime pode melhorar as condigoes da alma como do corpo. Por exemplo, menos comida e mais exercícios fariam pessoas "lentas" mais saudáveis e mais prudentes ou perceptivas. Pessoas já dotadas pela natureza com almas perceptivas poderiam tornar-se ainda melhores com o correto regime; elas deveriam comer peixe ao invés de carne, evitar esforgos violentos e reduzir sua massa corporal. (8) Os modelos deste género de livros de civilidade sao O livro do Cortesáo (1528) de Baldassare Castiglione e o Galateo dos Costumes (1558) de Giovanni della Casa, aos quais A. Pécora (2001) aplica sua Máquina dos géneros (pp. 69-77 e pp. 7990). (9) Sobre os saberes e práticas alquímicas vide A. M. Alfonso-Goldfarb (1987). Da Alquimia a química. Um estudo sobre a passagem do pensamento mágico-vitalista ao mecanismo. (10) A sobriedade está baseada na temperanga, isto é, na virtude do justo meio entre duas qualidades moráis, ideal difundido na cultura grega, sistematizado nos tratados da ética de Aristóteles e reelaborado por Sao Tomás. O que concorda com o ideal de equilibrio entre as qualidades físicas dos elementos, que serve de base para a medicina hipocrático-galénica, ainda em prática nos sáculos XVI e XVII. Concordancia que Lessius também revisita em chave de leitura católica contrareformada. (11) Sobre a agao jesuíta ñas epidemias do século XVI, ver A. L. Martin (1996). Plague? Jesuit accounts of the epidemic disease in the 16th Century. Sobre as missoes médicas ver o exemplo dos trabalhos jesuítas na india, no mesmo século, como médicos, organizadores e médicos de almas, em I. Zupanov (2002). Drugs, health, bodies and souls in the tropics: Medical experiments in Sixteenth-century Portuguese India. The Indian Economic and a Social history Review. 39, (1), 1-43. Ver também M. Massimi (2000). La teoría dei temperamenti nei cataloghi dei gesuiti in missioni in Brasile nei secoli XVI e XVII. Physis, 37 (1), 137-149, que analisa o uso da categoría medicinal de complexio na selegao dos missionários jesuítas. (12) Lessius logo explica que o impedimento se deve á quantidade de vapores enviados ao cerebro. Porque estes provém sobretudo dos alimentos que o estómago recebeu, indica-se a sobriedade que corrige pouco a pouco este mau hábito e leva a urna mediocridade na quantidade e na qualidade, o que poupa a cabega dos tais vapores. O médico francés André du Laurens (1630) prescreve o método de levantar-se da mesa ainda com fome como meio de chegar á conveniente medida no comer e beber e também adverte para os efeitos maléficos dos excessos alimentares na alma, explicando-os através da alteragao no calor natural. (13) Vide Hipócrates (1994), aforismo número 15, p. 440, trad. nossa: "No invernó e na primavera, o ventre fica naturalmente mais quente, e o sonó mais longo; é necessário, portanto, nestas estagoes, alimentar-se mais, já que, o calor ¡nato estando mais abundante, necessita-se de maior quantidade de alimento, como testemunham os jovens e os atletas." (14) Por espirito entende-se, neste caso, a versao para spiritus, tradugao latina de pneuma. Na fisiología galénica o pneuma é algo como um sopro; um elemento nem físico, nem transcendente. É o pneuma que mediaría a agao da alma sobre processos somáticos, interagindo com os diferentes tipos de humores: o pneuma psychicon, produzido no cerebro, rege as atividades mentáis; o pneuma zotichon, Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 101 1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm gerado no coragao, age em órgaos e fungoes vitáis; e o pneuma physicon, produzido no fígado, participa da nutrigao. (15) A propósito das doengas melancólicas e da maneira de curá-las, A. du Laurens (1630) também afirma que este mal pode ser gerado tanto pelo humor natural que a causa como por síntoma ou acídente da imaginagao ou razao perturbada. Ele lembra que nem todos os que sao de compleigao melancólica sao importunados pela paixao da melancolía e que existem diferentes tipos do mal conforme as diversas misturas cujo humor predominante é o melancólico. De qualquer forma, para Laurens e para Lessius, a imaginagao pode seguir tanto a disposigao do corpo quanto a maneira de viver e sao os instrumentos da alma que sao afetados pelos excessos nao sua esséncia. (16) Por substancia, designa-se aquilo que o ser é em si mesmo, o que pode ser simples (Deus), ou composto (os demais seres). Acídente é o que decorre da materia de que os entes sao compostos e aquilo que, embora pertenga necessariamente a um ser, nao permite identificá-lo como sendo este e nao outro. A análise destas duas categorías fazia parte das diferentes leituras de Aristóteles empreendidas pelos jesuítas, como, por exemplo, o De communibus omnium rerum naturalium principiis et affectionibus, de 1576, concebido por Benito Pereira do Collegio Romano, ou as Disputationes metaphysicae de Francisco Suarez, professor do Collegio Romano e posteriormente das universidades de Alcalá, Salamanca e Coimbra. Vide C. H. Lohr (1995). Les jésuites et l'aristotélisme du XVIe siécle. Em L. Giard (Org.). Les jésuites a la Renaissance. Systéme éducatif et production du savoir (pp. 79-91). Nota sobre o autor Paulo José Carvalho da Silva é psicólogo, mestre em Historia da Ciencia pela PUCSP e doutor em Psicología pela USP, faz parte do corpo docente do Programa de estudos pós-graduados em Historia da Ciencia da PUC-SP e leciona Historia da Ciencia na Universidade Ibirapuera em Sao Paulo, Brasil. Contato: [email protected] Data de recebimento: 29/07/2004 Data de aceite: 17/10/2004 Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 102 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração na Época Moderna Saint Michael, the Souls of Purgatory and the scales: iconography and veneration in the Modern Epoch Adalgisa Arantes Campos Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Resumo O estudo parte de fontes apócrifas, canônicas, visuais e devocionais a respeito da trajetória histórica da iconografia e do culto ao Arcanjo Miguel e às Almas do Purgatório. Retoma a contribuição bibliográfica de Flávio Gonçalves, Emile Mâle, Michel e Gaby Vovelle, dentre outros estudiosos. Particular ênfase é dada ao barroco luso-brasileiro, especialmente ao acervo produzido pelas irmandades leigas nas Minas Gerais. A representação do Arcanjo evolui de formas integradas ao Juízo Final até a sua individualização em soldado vistoso e delicado no Barroco e Rococó, assumindo, então, forma de escultura autônoma nos altares. O culto às almas atinge o espaço público através da portada em pedra sabão na Capela de São Miguel e Almas de Ouro Preto. Finalmente, o estudo enfoca a racionalização em curso no oitocentos, que levaria a simplificação escatológica dessa invocação. Palavras-chave: escatologia; catolicismo devocional; irmandades; barroco; rococó Abstract The study begins by looking at apochryphal, canonical, visual and devotional sources dealing with the historical and iconographic trajectory of the cults of the Archangel Michael and of the Souls of Purgatory. The contributions to this theme by Flávio Gonçalves, Emile Mâle and Michel and Gaby Vovelle, among other scholars, are re-examined. Particular emphasis is placed on Luso-Brazilian baroque style, especially the works produced by the lay brotherhoods in Minas Gerais. The representation of the Archangel evolves from forms associated with the Final Judgement to his portrayal, in the baroque and rococo styles, as a striking and delicate soldier who assumes the form of an autonomous alter sculpture. The cult of the Souls is displayed in public by way of the soapstone façade of the Chapel of Saint Michael and the Souls in Ouro Preto. In concluding, the study focuses on the rationalization in course during the nineteenth century which led to a scatological simplification of this devotion. Keywords: scatology; devotional catholicism; brotherhoods; Baroque; Rococo 1. Antecedentes do culto em Portugal A devoção a São Miguel Arcanjo (1) suscitou a produção de objetos diversificados: imagens, pinturas, moedas e medalhas, selos ou mesmo a representação integrada às cenas do Juízo Final, existentes nas portadas do Românico, paredes e abóbadas do Gótico e Maneirismo (Male, 1947). Fontes escritas confirmam a amplitude da crença; no Purgatório, de Dante Alighieri, as almas recorrem à intercessão de São Miguel (PURG. XIII, 49-51); nos Livros de Horas, literatura piedosa de grande circulação até a época Moderna, o Arcanjo luta contra o demônio, salvando os justos para a imortalidade (2). A Ibéria não se esquiva a esse pendor devocional, finalizando encenações do teatro religioso, como o Auto da Ave Maria (de Antônio Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 103 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Prestes), com mensagens edificantes proferidas por São Miguel (Martins, 1969, vol.2, p.10). Em Coimbra, o Museu Machado de Castro conserva três esculturas em pedra, do século XV, duas delas mesclam bem características medievais e renascentistas. Das portadas medievais herdaram a presença de almas nas balanças. A instituição possui ainda o retábulo de São Miguel, proveniente de Santa Clara (convento velho), do escultor João de Ruão (1537) (Cf. Borges, 1980, p.51). Nessa composição arquitetural, compartimentada em seis nichos distribuídos em dois registros, São Miguel é representado na parte superior, com a tradicional balança com almas. Naquele altar de Santa Clara, o Arcanjo perdeu as balanças, que, seguindo o gosto da época, também teriam almas. O culto a São Miguel foi recuado entre os portugueses, assumindo destaque a partir de D. João III que, por lhe ter tido especial devoção, alcançou do papa, Adriano VI, autorização para que fossem celebrados os ofícios de S. Miguel, na Capela Real (1522) (cf. Albuquerque, 1995). Intitulado o Piedoso, o rei obteve a titularidade das Ordens Militares, cuja união à Coroa foi adquirida da Cúria Romana que lhe rendeu o cargo de Mestre da Ordem de Cristo. A devoção e o fato de ter sido o primeiro monarca titular da Ordem, explica a presença do arcanjo no escudo. A Capela de São Miguel, integrada aos prédios que compõem o conjunto da Universidade de Coimbra, possui soberba portada manuelina, bem como decoração interna bastante erudita, datada dos séculos XVII e XVIII, fato que ratifica a presença particular desse culto no âmbito das elites governantes (3). Em Portalegre, na Igreja da Sé, pode-se observar no retábulo, sob invocação da Virgem do Carmo, a representação de São Miguel em um dos quatorze painéis de feição maneirista, pintados por Luís de Morales, em 1616 (Serrão, 1987). Concluindo este rol sumário de obras lusitanas anteriores ao Barroco, menciona-se o retábulo de São Miguel no templo de Santo Antão, em Évora, feito por Jerônimo Corte Real na segunda metade do quinhentos (Gonçalves, 1959). Face ao presente acervo, observamos a veneração a São Miguel, a propósito bastante recuada entre os portugueses, onde teve excelente contextualização histórica, para então se alastrar no ultramar, inclusive sob os auspícios do Concílio Tridentino (1545/1563). Motivado pela tradição e também pela reforma religiosa, o culto a São Miguel atinge a cidade e o campo, atraindo os governantes, o clero regular, secular e os leigos (4). Durante o seiscentos e setecentos, transforma-se em um culto dotado de bases sociológicas ampliadas. Domina por completo as manifestações mais populares, compartilhando, muitas vezes o mesmo altar com outra invocação, notadamente das Almas do Purgatório, das quais é considerado o principal defensor. Em Portugal, a representação do Arcanjo tornara-se freqüente nos painéis existentes nos monumentos denominados alminhas. A exposição alusiva ao culto às Almas do Purgatório (1993), organizada pelo Museu de Etnografia de Póvoa do Varzim (Fig.I), divulgou através de imagens, telas e retábulos de feição bastante popular a amplitude dessa devoção (5). No Porto, a representação de São Miguel encontra-se no convento de Santa Clara, nos Congregados, em São Pedro dos Clérigos e no forro da Casa do Cabido da Sé, onde o pintor Pachini (1737) reservou-lhe o painel central, pois é considerado o patrono daquele Cabido. Ladeando a Sé, tem-se a fonte entalhada por Nicolau Nasoni (1736), através da qual a representação dupla em relevo e escultura de Miguel atinge o espaço público, tal é a vitalidade da devoção entre os lusitanos. Lisboa também possui acervo representativo: o templo dedicado a São Miguel em Alfama, a imagem luxuosa com capacete, estandarte e asas de prata do Museu da Sé; numa versão mais popular, o Miguel com almas nas balanças e na peanha da igreja de Santa Madalena (6); esculturas e os azulejos do Museu de Madre de Deus, duas imagens expostas no Museu de Arte Antiga, a excepcional pintura de autoria de André Gonçalves (1685 - fi-1762) na tribuna de altar lateral de Menino de Deus (7), dentre outras. O presente arrolamento expande aquele iniciado por Flávio Gonçalves e então, reunidos, fornecem um conjunto expressivo de objetos devocionais dedicados a São Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 104 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Miguel no âmbito das manifestações culturais do colonizador (Gonçalves, 1959, 1963). Salienta-se a presença da devoção na Espanha Andaluza e na Galícia, divulgada na América, onde, a propósito, existem bons exemplos apelativos da proteção do Arcanjo. A partir da constatação da representatividade do acervo inventariado, tentamos estabelecer tipos iconográficos que nos ajudariam a compreender os modelos desenvolvidos nas Minas Gerais. Existem iconografias com duração prolongada, outras bastante particularizadas no tempo e espaço, sem continuidade no Barroco luso-brasileiro. 2. Iconografia do Arcanjo e fontes doutrinárias São raras as referências bíblicas sobre a atuação de São Miguel, embora haja passagens elucidadoras a respeito de tipos iconográficos precisos (Dn 12, 1-3; Is 28, 17; Jó 3 1 , 6-7; Ex 23, 20-21; Ap 12, 7-8). Das breves alusões, a mais importante, sem dúvida, é a luta travada por Miguel e seus anjos contra o demônio (Ap 12, 7-8), pois ela suscitou uma tradição iconográfica, geralmente de feição Medieval, Renascentista, Maneirista e Barroca, raramente Rococó. Segundo a narrativa sagrada, Lúcifer tentou se equiparar a Deus e, submetido por Miguel, perdeu a graça e o acesso às alturas, sendo condenado, então, a transitar nas partes baixas, na escuridão das profundezas dos abismos (Ap 20, 1-3). Dentro dessa concepção fornecida pelo santuário de Gárgano estão obras bastante recuadas, cujos atributos - lança e demônio - contaram com grande repetição (MALE, 1984, 245-279). Por haver sido lançado para baixo, para as trevas, a cor de satã seria negra (8). Na arte medieval, o demônio foi representado sob forma hedionda e essencialmente animal. GRABAR (1994) observou notável popularidade nessa representação. Através dos avanços da racionalização, o artista do Renascimento nem sempre o representa com feição monstruosa, imaginando-o com traços humanos. No barroco ibero-americano observamos a coexistência das duas representações, com uma diferença: a tradição erudita inclina-se ao demônio antropomórfico e a popular ao animalesco. Nas soluções intermediárias é possível encontrar Miguel com aspecto refinado, enquanto o demônio é uma forma híbrida entre o humano e o animalesco, como no exemplo da Matriz de Catas Altas do Mato Dentro, atribuído a Francisco Vieira Servas (Coelho & Hill, 2001). No século XII, o santuário de Saint Michel (França) introduziu uma particularidade estranha à arte italiana - o escudo, conservando o dragão e a lança. Esse atributo possibilitou a difusão de um modelo bastante popular no barroco ibero-americano. Em muitos casos, essa versão iconográfica recorreu simultaneamente a outra passagem bíblica que demonstra a grandeza do Arcanjo no conceito divino. Referese ao significado do nome Miguel, do hebraico Mi-câ-el, em latim Quis ut Deus, Quem (é) como Deus (Ex 23,20-21). Dessa forma, em escudos da gramática Barroca e Rococó encontramos a inscrição Quis ut Deus ou então, simplesmente as iniciais. O Românico e o Gótico difundiram as balanças (9), escatológicas por excelência, freqüentes também nas representações renascentistas, maneiristas e barrocas. Naquelas cenas alusivas ao Juízo Final, o Arcanjo Miguel tem balanças e almas (Fig. II e III). Enquanto avalia as almas justas e as pecadoras, o demônio, sorrateiramente, observa ou avança sobre o prato situado à esquerda, lado que significa na linguagem religiosa a degradação (Fig. IV) moral. Para Male e Reau, as balanças, difundidas pelo sul da França, foram introduzidas durante o século XI como resultado da conversão do Egito, que cristianizou o deus Anubis, cujo papel de juiz post-mortem era simbolizado pelas balanças. Sem entrar no mérito dessa interpretação, reconhecemos que a associação do Arcanjo com as almas não foi dada literalmente pelas Escrituras, mas pelas fontes apócrifas e estas circularam abertamente até por ocasião do Concílio Tridentino (1545-1563). Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 105 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Dos textos não incluídos na Bíblia destacamos o Primeiro livro de Henoque (cerca de 170), no qual se estabelece a relação entre o final dos tempos e São Miguel, aceito como o principal dos arcanjos, o mediador entre Deus e os homens, o misericordioso e magnânimo, o encarregado de zelar pelos bons (Macho, 1984). As poucas passagens escriturísticas referentes ao Arcanjo reiteram também a dimensão escatológica, pois ele é considerado príncipe e defensor dos povos; não bastasse, o soldado na luta contra o Anticristo (Dn 10, 13 e 2 1 ; Dn 12, 1; Ap 20, 13, Ex 23, 20-21). Na Visão de Paulo (anterior a 250), também apócrifo, Miguel intercede, já no momento do ofertório da missa de defuntos, em defesa dos justos, pois de Deus recebera a missão de conduziraquelas almas ao Paraíso (10). Por amor a Miguel, a São Paulo e à humanidade, o Pai concedera às almas um dia e uma noite de refrigério, de suspensão das penas expiatórias, do sábado ao domingo, dia da ressurreição (11). Segundo a Visão de Paulo, o Arcanjo Miguel roga fervorosamente ao Filho de Deus em defesa dos filhos dos homens (Macho, 1981, p. 377). Tal bondade e ardor, existentes na súplica do Arcanjo, constituem fonte de inspiração para o teatro religioso, que vez por outra empregou palavras edificantes proferidas por Miguel (Martins, 1969, p. 10 e 246). Assim sendo, o Apocalipse de Paulo, dotado de linguagem bastante compreensível e de pormenores realistas, teve sucesso extraordinário no sentimento religioso, como também na construção de imagens relativas ao além e à intercessão de Miguel na defesa dos justos. Inúmeras concepções religiosas viram nas balanças com seus dois pratos a imagem perfeita para simbolizar "a justiça, o peso comparado dos atos e das obrigações" (Chevalier & Gheerbrant, 1989, p. 114). A Bíblia também a considera adequada para significar a eqüidade divina: "pese-me Deus em sua balança justa, e conhecerá a minha simplicidade" (Jó 31,6) (12). Apesar disso, a introdução da balança nas representações referentes a Miguel só ocorreu a partir do século XI. Acontece justamente quando se encontram em ascensão os diversos testemunhos em favor de uma expiação temporária, alguns já referidos nas Escrituras, outros acrescidos pelas narrativas de viagens ao além e, outrossim, pela vivência apostólica da Igreja que incentivaram a declaração conciliar sobre o purgatório no século XIII (Concílio de Lião, 1274). Portanto, embora obras românicas, góticas, renascentistas e maneiristas aludam principalmente ao Juízo Final, a mentalidade religiosa de então se adianta, amadurece em seu seio a crença no Juízo particular concomitante à morte. GRABAR destacou o descompasso da escultura monumental medieval em relação ao pensamento teológico, demonstrando que ela muitas vezes preocupava-se mais com o preenchimento das arquivoltas concêntricas, domínio da aparência, do que propriamente com a atualização do significado (Cf. Grabar, 1994, 363). O Renascimento, Maneirismo e Barroco destacaram a imagem de Miguel com balanças e almas, substituindo-lhe a túnica de anjo pela armadura de soldado (Fig: X), porém, doravante investida de outro sentido, não mais alusivo à consumação dos tempos, mas ao juízo individual. A iconografia de Miguel, com balanças e almas, difundiu-se no mundo ibérico coevo (13). Contudo, nas Gerais, onde a colonização remete ao XVIII, as almas desapareceram rapidamente, deixando as balanças vazias. Encontramos a representação do Arcanjo ainda com almas nas balanças nas igrejas paroquiais de Catas Altas do Mato Dentro, Caeté, Itatiaia, Ouro Branco, São João del Rei, Santa Rita Durão, Camargos e no Museu do Ouro de Sabará (Fig:V e VI). São ausentes nas balanças de imagens do Rococó (1760-1840) (14). Somente em imagens datáveis das primeiras décadas do século XVIII, portanto de fatura portuguesa ou bem integrada à tradição ibérica, houve recorrência à representação das Almas do Purgatório. A mesma consideração se aplica às obras do Rococó em Portugal, notadamente às eruditas, inclinadas ao modelo de Guido Reni (1575 - fi-1642). A posição inclinada do corpo, o manto revolto, as sandálias vazadas e leves, balanças vazias, gládio, enfim toda a elegância da configuração de Reni influenciou bastante o Barroco internacional. Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 106 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Durante a restauração da imagem de São Miguel de Cachoeira do Brumado (distrito de Mariana), realizada em 1993, o CECOR-UFMG localizou pequenos furos para a fixação de pinos nos pratinhos daquelas balanças, entalhados em madeira. Este caso explica a perda de almas que, por serem entalhadas à parte, ficavam mais expostas às lesões. Esclarece também a presença desse atributo em meados do setecentos nas Gerais. Na arte escultórica das Minas Gerais, a representação de almas nas balanças teve duração mais limitada que aquela verificada na pintura, prataria e talha em geral. Neste caso, já não mais conotam um forte sentido escatológico, servindo, sobretudo, como símbolo da Irmandade de São Miguel e Almas. Constitui um simples decalque estético, resíduo ilustrativo de mudanças operadas no sentimento religioso e na espiritualidade daquela época. O imaginário cristão medieval reconheceu a existência de almas errantes, que tiveram penitências mal cumpridas e estariam penando aqui e acolá, suplicando por preces (15). O catolicismo pós-tridentino se esforçou para desbastar certos aspectos da religiosidade popular, dentre eles encerrando as almas em processo de purificação em uma única topografia do além, isto é, o Purgatório. As almas continuavam a suscitar a sociabilidade, a piedade cristã, só que através de canais formalizados. Não deviam se expor ostensivamente aos homens, causando-lhes temores e embaraços. Nas Minas, a cultura lusitana bem como as tradições populares chegam de uma forma fragmentada, em virtude das condições específicas da colonização, acarretando o enfraquecimento precoce da "onipresença dos mortos e sua coabitação com os viventes" (Vovelle, 1987, p. 199 ss). Por mais que se tentasse transplantar para o Novo Mundo as instituições, costumes e crenças próprias de sua cultura, o colonizador contava então com a grandeza do território, os poucos núcleos urbanos, a diversidades das culturas e a ausência de tradição cristã autóctone. Do ponto de vista europeu, um verdadeiro caos, uma conspiração contra a preservação do imaginário católico e também dos valores da religiosidade popular de matriz medieval. Por sua vez, o território das Gerais foi desbravado apenas em fins do seiscentos, com o estabelecimento das primeiras vilas em 1711. Portanto, entre a ocupação litorânea do Brasil e o povoamento da Capitania, houve um hiato de quase 200 anos (Ramos, 2001). Nela foram os próprios leigos que, assentando-se socialmente erigiram as irmandades (Boschi, 1986). Deste modo, percebe-se uma mutação significativa na mentalidade religiosa de origem, no sentido de dificultar a coesão, a solidariedade e o enraizamento das tradições. Enquanto a Capitania das Minas se mantinha esquiva à edificação das alminhas, na Ibéria elas se alastravam pelo meio urbano e rural do seiscentos e do setecentos. Não bastasse a ausência daqueles oratórios com a invocação das almas, a própria representação daquelas criaturas desapareceu precocemente; primeiro das balanças, depois dos frontais de altares e de outros objetos de culto. Trata-se de um motivo em extinção nas artes figurativas, ainda que a devoção persistisse, sem o entusiasmo verificado no mundo ibérico. As Almas Santas eram veneradas, contudo sem a vontade expressa de objetivar, através de obras visuais, esse culto em particular. Por outro lado, não podemos afirmar que a devoção já se encontrasse profundamente interiorizada, a ponto de não precisar se manifestar no domínio concreto, pois os testamentos mineiros não atestam apreço expressivo às benditas do Purgatório, a não ser nas primeiras décadas. Um modelo iconográfico que obteve relativo sucesso nas obras refinadas, imitado algumas vezes naquelas de confecção popular, representou São Miguel com gládio. Em substituição à popular lança, o gládio inspirava-se na aparição do Arcanjo ao papa Gregório em 815, ocasião em que o teria desembainhado banhado em sangue (Vorágine, 1990, p. 622). Essa vertente apresenta a dupla gládio e escudo podendo prescindir da presença do demônio em favor de base em forma de monte, pois Miguel preferira sempre aparecer aos homens sobre montanhas (cf. Reau, 1996; Attwater, 1991). Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 107 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Conforme a Visão de Paulo, os anjos brilham como sol, têm o nome de Deus inscrito no peito, trazem a palma - símbolo da vitória contra o mal, e a cruz, símbolo maior para o cristão (Erbetta, 1981, 362). Na obra La leyenda Dorada (1260), São Miguel é relacionado não só com o Juízo Final, mas particularmente com a figura de Cristo, que exercerá o papel de juiz (Vorágine, 1990, I I , 621). Como o segundo mais importante nessa cena, o Arcanjo se apresentará diante do último tribunal portando a cruz, os cravos, a lança e a coroa de espinhos (16). Desde o Renascimento e o Maneirismo, a produção visual explorou bastante o liame estabelecido entre Miguel, a Paixão de Cristo e a consumação dos tempos. Na tábua quinhentista, anônima, do Museu de Arte Antiga de Lisboa, alusiva ao Julgamento das Almas, Miguel traz a espada e uma longa haste, ambas com arremates cruciformes. Na gravura maneirista de Jérôme de Wierx (Fig. VII) existente na Biblioteca Nacional de Paris, de fins do quinhentos, Miguel é representado ao centro, com o destaque que merece em face dos demais arcanjos, trazendo aos pés um demônio animalesco, a palma à esquerda e a cruz abandeirada, à direita. Na pintura de Santo Antão, em Évora, Corte Real o representa com a palma da vitória e com o braço direito para o alto, encimado pela inscrição Quis ut Deus. E no coroamento encontra-se um painel circular; nele estão justapostos o Pai e o Filho crucificado (17). A palma foi atributo de pouca difusão no barroco, enquanto a cruz assumiu relevância enorme no conjunto das obras da época Moderna (18). Despojada ou ornamentada, ela ocupou ostensivamente a paisagem, morros, encruzilhadas, pontes e adros, destacando-se também como atributo iconográfico dos mais concorridos. Pietro de Cortona (1596 - fi"1665) registrou essa aliança iconográfica, que unifica o culto à Paixão, aos anjos e ao Arcanjo Miguel. Nela, figuras angélicas de delicados gestos apresentam os martírios de Cristo, enquanto, no centro da composição, Miguel - com manto revolto, asas amplas e penacho exuberante sustenta graciosamente o Santo Lenho. No catolicismo barroco, essa iconografia desenvolveu-se particularmente, transformando-se em um programa, concorrendo com as versões tradicionais, inspiradas nos modelos fornecidos por Gárgano, Mont Saint Michel e portadas medievais. Entretanto, São Miguel conservou sua feição escatológica. Com a cruz (abandeirada ou não) continuou a aludir à consumação dos tempos, só que de um modo abrandado (19). O atributo cruz, no entanto, não diz respeito apenas a uma projeção futura. Das inúmeras aparições do Arcanjo consta uma, assaz interessante, que suscitou expressiva produção artística. Segundo a tradição religiosa, São Francisco (1182 fi-1226) jejuava e orava em louvor a São Miguel no Monte Alverne, em setembro. Neste mês inscrevem-se duas festas: a celebração do Arcanjo Miguel e a Exaltação da Cruz. Na ocasião, Francisco meditava sobre a Paixão de Cristo e, por amor, quis compartilhar as dores do Calvário, recebendo os estigmas da Paixão. Segundo o padre Antônio Vieira e a literatura piedosa coeva, o anjo que imprimiu as chagas em São Francisco fora Miguel (Vieira, 1646/1945). Por essa razão os franciscanos veneram São Miguel e fizeram questão de criar, no século XII, uma iconografia precisa para a cena da imposição dos estigmas. No barroco luso-brasileiro, os terceiros franciscanos, cientes da tradição iconográfica da ordem, repetem-na nos altares de seus templos e nas imagens que saíam às ruas nos andores das "Chagas" e do "Amor Divino" por ocasião da procissão de Quarta-feira de Cinzas (Campos, 2001). Com a iconografia citada, sobressai o medalhão existente na portada magistral de São Francisco de Assis, de Vila Rica (Cf. Trindade, 1951). Tratamos aqui das variantes iconográficas básicas próprias da devoção ao Arcanjo Miguel, o que não descarta, porém, a existência de outras possíveis combinações. Observamos, entretanto, que o modelo em ascensão já nas primeiras décadas do setecentos mineiro, diga-se de concepção bastante culta, exalta a veneração à Paixão de Cristo. 3. A Devoção a São Miguel e Almas no âmbito da Capitania de Minas Gerais Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 108 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Em Os leigos e o poder, há relação com trinta e cinco irmandades sob a invocação de São Miguel e Almas existentes na Capitania das Minas, montante que as coloca em terceiro lugar, em termos de invocação institucionalizada, sobrepujada primeiramente pelas irmandades do Rosário dos Pretos e, em segundo, pelas do Santíssimo Sacramento (Boschi, 1986, 187-188). Não se trata de particularidade das Gerais, visto que também em Portugal e na França da época Moderna houve classificação semelhante das devoções, o que atesta, no plano da religiosidade, a popularidade atingida por esse culto (20). A devoção, recuada como vimos, foi reavivada com o Concílio Tridentino, juntamente com os coros angélicos e Almas do Purgatório. No barroco lusobrasileiro foi ratificada pelas Constituiçoens Primeiras: (...) encomendamos muito que tratem desta devoção das Confrarias; e de servirem, e venerarem nellas aos Santos, principalmente á do Santíssimo, e do nome de Jesus (esta não se desenvolve), á de N. Senhora, e das Almas do Purgatório... porque estas Confrarias he bem as haja em todas as Igrejas (LX-869). Levantamos cerca de 60 localidades mineiras que possuíram irmandades de São Miguel e Almas ou então apenas a devoção, atestada pela existência de obras artísticas, capelas ou denominação de sítios. Neste caso, são lugares em que o culto não chegou a ser institucionalizado. O nosso estudo considera tanto a existência legal da irmandade, como a presença de imagens em nichos e museus, os retábulos com emblemas das almas sob a invocação do Glorioso Arcanjo. A devoção a Miguel Arcanjo acompanhou a rota de ocupação do território das Minas (21). Geralmente as igrejas que foram elevadas à sede de paróquia no primeiro quartel do setecentos tinham as irmandades do Rosário dos Pretos, das Almas e necessariamente do Santíssimo Sacramento. Por sua vez, na região de colonização mais recente como, por exemplo, a Comarca do Serro do Frio, a devoção não provocou o mesmo fervor, resultando em diminuto acervo (22). A antigüidade e a relevância do culto às Almas são confirmadas pelo lugar destacado de seu altar, sempre na proximidade do arco-cruzeiro, o primeiro do lado da Epístola, fronteiro a outro sob invocação de Nossa Senhora (23). Nas localidades que se conservaram indiferentes às novas devoções do oitocentos e do novecentos, é possível constatar, ainda, a presença do altar e respectivo Arcanjo exatamente na concepção original. Há casos em que a invocação deixa o altar primígeno, distanciando-se da vizinhança da capela-mor, em favor de devoções mais atraentes - Senhor dos Passos, Nossa Senhora das Dores, Coração de Jesus... ou, então, é obrigado a dividir a tribuna com outro santo. Ironicamente, transforma-se em inquilino no próprio altar. Face a esse processo, dia a dia em aceleração, o Arcanjo foi perdendo devotos. Suas imagens, das requintadas às populares, progressivamente vêm sendo deslocadas para museus e coleções particulares. A devoção suscitou enorme acervo cultural que atrai a atenção dos comerciantes do setor, vigilantes ao lento arrefecimento do culto. Com isso, tem-se a dispersão gradativa dos bens culturais alusivos ao culto a São Miguel e Almas, que dificulta a realização de um mapeamento mais completo. Na Capitania, as irmandades de São Miguel foram, mormente constituídas por brancos, embora no plano individual a veneração não fosse restrita. Observamos documentalmente que, na maioria das vilas, na ausência das Misericórdias, as irmandades do Glorioso Arcanjo alugavam seu esquife (tumba) a preços módicos ou até mesmo faziam o funeral daqueles que não tinham recursos para isso (24). Supomos que tal particularidade tenha sido a razão da veneração declarada dos negros e pardos e daqueles que eram pobres em geral (25). Reau estabelece uma conexão entre o culto a Miguel e a tumba da boa morte (talvez inspirado remotamente na barca egípcia), motivo pelo qual o Arcanjo foi cultuado não só em altares, templos e oratórios, mas também em cemitérios. Por sua vez o período áureo das confrarias de São Miguel e Almas coincidiu no plano político com o longo governo de D. João V (1707 - 1i i l750), qualificado pelo Sumo Pontífice de fidelíssimo e pela historiografia de "o rei barroco" (Bebiano, 1987; D'Araújo, 1989). Declarada foi a sua inclinação para a religião, as artes em Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 109 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm geral e especialmente em favor das Almas do Purgatório. Portanto, a propagação das irmandades das Almas além de contar com o estímulo das autoridades eclesiásticas, baseava-se na compreensão pessoal do rei. Era um ir e vir de influências mútuas, enfim uma devoção compartilhada. Entende-se assim por que o culto às Almas do Purgatório sensibiliza a Capitania, mormente durante o governo joanino, sobretudo antes da longa doença que acometeu daquele protetor pródigo. 4. Os altares de São Miguel e Almas No decorrer do dezoito e princípios do dezenove mineiros, os altares de São Miguel, bem como das irmandades em geral, subordinavam-se aos modelos internacionais, ainda que em ritmos diferenciados. Temos assim os retábulos do tipo NacionalPortuguês (1700-1730), D. João V ou Joanino (1730-1760) e o "Rococó" (17601840) sendo que a transição constituiu um processo lento, resultando soluções mescladas e tardias (26). Durante todo o período citado, houve elaboração de altares de São Miguel e Almas, mas eles foram mais freqüentes nas primeiras décadas do setecentos. Contudo, reconhecemos a existência de um conjunto expressivo de altares do Joanino tardio (1745-1760) e do Rococó, geralmente decorrentes da substituição da talha primitiva. Assim sendo, verificamos que a devoção não declina abruptamente, ao contrário, resiste bem, atingindo com tranqüilidade o próprio oitocentos. Todavia, em discreta retirada para favorecer invocações em propagação: Paixão de Cristo e temas correlatos, Nossa Senhora da Boa Morte, São Francisco de Assis, Sagrados Corações... As irmandades de maior poder aquisitivo, conseguiam acompanhar as novidades artísticas, alteravam, via de regra, os retábulos originais ou pelo menos as mesas de altares que, modernizadas, diferenciam-se do conjunto escultórico respectivo. As modificações aconteciam ao sabor do momento, sem obedecer a um programa teológico ou iconográfico. É comum encontrar a mesa Rococó (ou mesmo sem estilo definido) em retábulo do nacional-português ou joanino. Face às inovações estilísticas, mesas de altares perderam seus emblemas distintivos - balança e/ou alminhas, conseqüência da depuração do fundo escatológico da iconografia original. O acervo ficou alterado em seu contexto cultural, o qual suprimiu a maioria das balanças com almas, atributos recorrentes nos primórdios da colonização, quando eram fortes as marcas de origem. Observamos a difusão de balanças sem almas em frontais de mesa de altares, em meio às modificações introduzidas, a partir de 1745, na talha joanina (27). Desde então, e no Rococó em particular, tornam-se flagrantes como atributos as balanças vazias, a cruz ou a ausência total de símbolos religiosos. As obras com a representação de balança vazia superam numericamente aquelas dotadas de alminhas, porque são mais recentes, pois correspondem ao redirecionamento da mentalidade religiosa no sentido de uma racionalização. As criaturas do além vão se retirando do mundo da representação, para serem veneradas sob uma forma mais interiorizada e até arrefecida, doravante sem a mediação da imagem. Verificamos o domínio recuado de uma iconografia mais solidária com a sorte das benditas do purgatório, mais direta e espontânea, tal como encontramos em Monsenhor Horta (antigo São Caetano), Cachoeira do Campo, Furquim, Itaverava, Vila Rica (Conceição do Antônio Dias) e São João del Rei (28). (Fig:V e VI). Em meados do XVIII mineiro, as transformações no âmbito da talha joanina restringem seus elementos simbólicos em proveito do conjunto estético - enxuto, estrutural, grandioso. Essa tendência em despojar a decoração do seu significado religioso e desbastar os caprichos ornamentais, atinge o gosto das irmandades, e notadamente os altares de almas feitos nesse período. Com essa concepção, dois altares sobressaem pela monumentalidade, requinte e despojamento ornamental, em relação aos modelos pretéritos - o da matriz de Catas Altas (Fig: IX) e o da Sé de Mariana, ambos lado Epístola, ladeando o arco cruzeiro. Eles obedecem a um pensamento prévio, não foram feitos para depois assimilarem invocacões em nichos ou se modificarem paulatinamente, como é o caso do altar de Miguel da matriz do Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração HQ na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Pilar ouropretana, que atingiu esta iconografia a partir de intervenções em datas diferentes. As duas irmandades das Almas, a de Catas Altas (29) e a de Mariana (30) já se encontravam constituídas em 1713 (31). Há descompasso entre a iconografia do Arcanjo de Catas Altas, de concepção tradicional e de fatura elaborada - demônio animalesco, balança com almas, estandarte com inscrição (Quis ut Deus) - e o altar no qual se insere, bem mais simplificado, embora refinado (Coelho & Hill, 2001). Os atributos da imagem são literalmente escatológicos. Enquanto este conteúdo é abrandado, ou mais espiritualizado, na ornamentação do retábulo, encimado pelo grande arranjo escultórico, no qual se tem a alegoria da Fé (uma jovem de olhos vendados trazendo uma cruz à direita), na tribuna destaca-se o Senhor Bom Jesus de Matosinhos, circundado por uma massa escultórica de raios luminosos; logo abaixo no nicho uma imagem de Nossa Senhora das Dores, no espaço convencionalmente destinado ao sacrário (32). Trata-se de altar de fatura erudita, na forma e no conteúdo simbolizado, distante daquelas mensagens diretas fornecidas pelas almas que, para suscitar a devoção, mostravam as penas que padeciam. A fé é a virtude mais nobre, indispensável à graça e à salvação eterna (Jó 8, 24). É cega, porque aquele que crê "não esquecerá que os olhos hão de estar sempre vendados para o ma, fechados ao mundo que despreza a lei de Deus" (33). Na cultura barroca, a cruz materializa sempre a expulsão das trevas, proteção divina, aversão à idolatria e, sobretudo, a meditação sobre a morte, entendida como portal para a eternidade dos justos. O Senhor do Bom Jesus e sua mãe evocam a memória o drama do Calvário, tão relevado no catolicismo barroco. O destaque reservado ao Cristo, em prejuízo do próprio padroeiro, representa o acatamento à pastoral tridentina, pois sua imagem deve preceder a todas outras (34). O catolicismo pós tridentino venera tanto a Paixão, que santos oragos descem dos tronos, com modéstia, em direção ao sacrário do próprio altar. De um modo geral, dia a dia vão desaparecendo aqueles sinais evocativos de orações para as Almas do Purgatório, embora a mentalidade continue voltada para a salvação eterna. No altar da Sé de Mariana, certamente concluído em 1748, estão presentes o Senhor Bom Jesus, das Dores, Madalena, São João, numa reconstituição do que teria ocorrido no Monte Calvário. Essa tribuna é vedada por um relevo escultórico excepcional, incomum nas Minas. Nela foram entalhados os emblemas representativos da Paixão do Senhor: a jarra, as mãos de Pilatos, o martelo e a cruz com a legenda SPQR - Senatus populusque romanus, iconografia comum aos cruzeiros da Capitania. Na tampa do sacrário tem-se a representação do cordeiro envolto numa estrutura raionada brilhante, para significar que ele, Cristo a vítima expiatória, é a verdadeira luz do mundo (Jó 8, 12). No frontal do altar figura a balança vazia, doravante sem as benditas almas do purgatório. A imagem de São Miguel tem peanha lisa, levemente ondulada, balança vazia e, infelizmente, perdeu o outro atributo que seria a cruz. Ao invés do apelo tradicional às almas, da presença destacada de São Miguel no trono (tribuna), evoca-se a salvação através dos méritos da Paixão de Cristo. A obra mais recuada dessa versão iconográfica, localizada em altar de São Miguel, é aquele da Matriz do Pilar (Vila Rica). Ali, a irmandade de São Miguel procedeu à fatura de novo retábulo em 1733, o qual apresenta tribuna espaçosa que, no transcorrer dos anos, foi recebendo figuras da Paixão: em 1736 colocaram o Crucificado, em 1747 Nossa Senhora das Dores, depois a Madalena e o São João (35). Um Calvário alcançado às custas do improviso, seguindo a pulsação do gosto religioso. O exemplo mais acabado da aliança iconográfica, Paixão e Arcanjo das Almas, ainda que improvisado no transcurso de meio século, encontra-se no templo de São Miguel, Santíssimos Corações e Senhor Bom Jesus de Matosinhos - três invocações em um só monumento - situado no antigo Passa-dez (Cabeças), em VilaRica. Trata-se da única obra monumental com iconografia das almas na Colônia. É uma representação tardia (a do purgatório), mais sincronizada com a mentalidade da Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 111 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm primeira metade do século XVIII. Momento alto da criação local, sintetiza, e simultaneamente renova, representações dispersas e em franca extinção, imortalizando-as através daquela portada, datada do último quartel do setecentos (36). Uma grande obra que materializa e documenta, através da talha em pedra sabão, o culto às almas (Campos, 1998). Na singular portada da Capela de São Miguel ouropretana há representação das almas no fogo do purgatório (37). Encimando a composição, há nicho ocupado por São Miguel, com escudo e balanças desprovidas de almas. Através de análise estilística, atribui-se o conjunto da portada a Antônio Francisco Lisboa e sua oficina, que executaram obra provavelmente enquanto trabalhavam no frontispício de São Francisco, também em Vila Rica. Apesar do tema representado e de certa frontalidade do Arcanjo, a portada das Cabeças é posterior a 1778, ano em que se lavrava e carregava pedra para aquele frontispício. Em 1771, José Simões Borges (morador em Congonhas do Campo) legalizava a doação de um terreno ao ermitão Manoel de Jesus Fortes para a edificação da capela no Passa-dez (Vila Rica) (38). A invocação original era Santíssimos Corações e São Miguel e Almas, comumente registrada nos documentos entre 1761-1792, período de construção e ornamentação (incompleta) do templo (39). Contudo, é interessante observar que a decoração interna do templo foi progressivamente inclinando-se à devoção da Paixão, com a aquisição de imagens do Senhor do Sepulcro, Senhor do Bom Jesus, das Dores, São João Evangelista. Talha de confecção tardia, de um Rococó transitando para o clássico. Não bastasse, os irmãos encomendaram uma via-crucis (interna) para a sacristia, envolvendo painéis de Manoel da Costa Ataíde, relevos com mesas de altares e imagem do Senhor dos Passos. A Capela transformou-se em templo de peregrinação, com estalagem para os devotos (40). Aos poucos, o templo dos Santíssimos Corações e São Miguel e Almas assemelhou-se ao santuário de Congonhas, com a diferença de que, em Vila Rica, os Passos da Paixão são internos e naquele são ao ar livre, segundo a tradição ibérica (Massara, 1988). Há documento de 1867 em que os devotos do Senhor Bom Jesus instituem novo compromisso: doravante "eles pretendem fazer reviver a antiga Irmandade de São Miguel e Almas, erecta na dita capela", cuja veneração, constatamos, foi tão preterida a favor daquela do Senhor do Bom Jesus, a ponto do Glorioso Arcanjo ser convertido em inquilino em seu próprio templo (41). Tudo pela Paixão de Cristo, a maior devoção do setecentos mineiro! É interessante registrar que o santuário de Congonhas, feito às custas das esmolas levantadas pelo ermitão Feliciano Mendes, funcionava como paradigma devocional durante a segunda metade do setecentos. A partir de então, seguindo a motivação portuguesa, o culto se impõe nas Gerais, preferindo-se os lugares altos e a topografia irregular. Curiosamente, a construção e ornamentação de São Miguel e Almas do bairro das Cabeças é contemporânea à fatura da via sacra escultórica de Congonhas, cujas imagens foram confeccionadas entre 1796-1799. O templo ouropretano, coincidentemente, localiza-se no topo de um sítio íngreme, embora não o suficiente para comportar a presença de um escadório. Apresenta, no entanto, condições adequadas para essa fusão de devoções, ou melhor, o domínio do culto à Paixão. Dessa forma, o templo vilarriquenho amadurece um processo iniciado nos próprios altares de São Miguel e Almas presentes nas igrejas matrizes. O purgatório do Aleijadinho, tal como o de Dante, situa-se em uma montanha, obtida através da suave ondulação da sobreporta. Nele, homens e mulheres, com feições tranqüilas, purificam-se sem externalizar aflição ou sofrimento. Diferentemente das representações costumeiras, o escultor descobre bastante o peito de algumas almas, destacando ao centro uma figura masculina, representada de corpo inteiro e nu, o que é raridade na iconografia existente na Capitania. Nessa concepção, há intenção de diferenciar rigorosamente os tipos humanos (masculino/feminino) ainda que não se distingam plenamente os tipos sociais, estes mais freqüentes na iconografia portuguesa. Ainda assim, o Aleijadinho representou, excepcionalmente, um frade (com o tonsura), como também a visão frontal de uma Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 112 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm mulher com cabelos longos e soltos, seios expostos, denunciando a profissão e.ou o pecado da luxúria. No purgatório de Vila Rica e nas demais representações das Minas, não ocorrem sinais distintivos - coroa, tiara, mitra etc. Domina uma iconografia avessa às hierarquias tradicionais, afinada assim com a realidade colonial, particularmente a mineira, onde as condições específicas da colonização contribuíram para a diluição precoce do modelo baseado em uma sociedade estamental. Por sua vez, as almas não são dotadas da feição genericamente infantil que caracteriza, via de regra, as obras populares. Aleijadinho as representou adultas e, outrossim, com fisionomia particular, individualização, aliás, também afirmada na pintura do cômodo lado epístola na matriz de São João del Rei (Fig. VIII). Mais uma vez constatamos que nas Minas, o cuidado de adquirir bens temporais ocupava os homens não prevalecendo a visão infernalizada do purgatório (42). Diante justamente desta particularidade, é coerente apresentar uma visão mais complacente, conformada aos homens daquele tempo! Encimando o purgatório em um nicho, registro separado e superior, São Miguel de elaborada confecção, não perde a imponência, ao contrário dos Miguéis da talha portuguesa, que descem até as chamas e inclinam-se muito, para, com as próprias mãos, retirar dali as benditas. Essa convivência íntima de graus distintos de santidade não ocorre na portada de Vila Rica, onde se materializa a nítida separação entre as formas de existência no além, mais ou menos santificadas. Reconhecemos que não constitui uma obra de fatura ingênua (composição compacta, ausência de movimento, desproporção). Foi elaborada quando a racionalização do pensamento tendia a apartar não só o mundo dos vivos daquele dos mortos, bem como a estratificar rigorosamente o além dos eleitos. Assim, a visão do purgatório não é infernalizada, mas também não conta com a participação, em seu seio, da companhia direta dos intercessores, segundo o gosto de matriz medieval. Eles se afastam progressivamente para o alto, para o imperscrutável! A imagem de São Miguel, entalhada na pedra com certa frontalidade, porta balança vazia de almas e escudo que se espraia, à moda de João Gomes Batista, seguindo aquela forma divulgada nos rolos (filactério) dos profetas de Congonhas, o atributo - o escudo - estranho à arte da comarca de Vila Rica, mais freqüente nos acervos das comarcas do Rio das Mortes e Rio das Velhas. 5. A iconografia do Arcanjo Miguel nas Minas Gerais Na arte colonial mineira Miguel foi representado de diversas maneiras. Em obras cuja datação é mais recuada, traz uma bota pesada e austera. Em fins do primeiro quartel do setecentos, o rude calçado vai dando lugar a uma sandália vazada apenas nos dedos, com arremate trabalhado nas bordas, à maneira de Jérôme de Wierx, demonstrando-se, assim, a intenção ornamental. No geral, as imagens datáveis da primeira metade do século exibem as pernas bem recobertas por um calçado fechado. A partir de então, desenvolve-se uma versão graciosa: a sandália de tiras trançadas à moda Guido Reni, colocando à mostra os pés e as pernas do Arcanjo. Desse modo, nas imagens do Rococó há preferência pela leveza, elegância e sensualidade. São formas mais adequadas à vida urbana do que ao mundo rural. Essa trajetória, igualmente verificada no acervo europeu, evidencia a passagem de um modelo severo (Barroco) a outro mais arejado (Rococó). O academismo oitocentista trataria de recuperar a austeridade, retornando às sandálias levemente vazadas. A bota foi usual nos lugares de ocupação mais antiga, nos primeiros núcleos de povoamento, decorrentes do desbravamento dos bandeirantes. Nas versões mais populares continuou compacta. Denuncia o contato direto com o meio natural. Contudo, não é específica da Capitania, e não foi colocada para expressar as dificuldades enfrentadas diante do mundo natural. Por sua vez, a sandália parcialmente vazada (nos pés) é coetânea com as povoações mais recentes, às vezes decorrentes de um remanejamento interno das populações, quando já se tem estabelecido o perfil urbano da Capitania. O calçado de São Miguel fornece, portanto, indicações para a datação do acervo cultural e sobre a modernização Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 113 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm superficial da peça, caso tenha sido "maquiada" conforme o gosto Rococó. Convém salientar que, em geral, por obedecerem à tradição, nas obras mais rústicas, houve a tendência a prolongar o uso da bota completamente fechada. Outro atributo importante para a iconografia de Miguel é o demônio Freqüente nas peças do primeiro terço do setecentos, desaparece rapidamente, para voltar à cena com o academismo oitocentista. Nas concepções eruditas, é representado à maneira antropomórfica; nas populares, apresenta forma assaz variável, mas sempre tendendo para o animalesco. A vertente erudita foi a maior responsável pela retirada do demônio da peanha das imagens, em favor do monte ou das nuvens. Conforme a tradição religiosa, São Miguel manifestou-se aos homens em solo montanhoso - Itália, França, Inglaterra... (Attwater, 1991; Reau, 1996). Segundo a doutrina, Miguel tem uma missão escatológica, pois estará ao lado do Senhor no Juízo Final, quando então trará arvorada a Santa Cruz. Os atributos monte ou nuvens, que dominam a iconografia nas Gerais, aparecem durante as primeiras décadas do setecentos, disputando, tanto nas obras de confecção mais elaborada quanto naquelas ingênuas, com a representação do demônio. O popular segue na esteira do erudito, imitando-o, divulgando-o e até degradando-o (Grabar, 1994, p. 396 ss). Em fins do primeiro terço do setecentos, o monte ou as nuvens, às vezes indistinguíveis, se impõem definitivamente nas peanhas das imagens eruditas. Embora haja imagens sobre nuvens ou montes, portando as botas aludidas, a sandália mais austera ou plenamente vazada ajusta-se melhor ao novo tipo iconográfico, desprovido de satã; mudança esta também com preferência pelas composições graciosas e leves. Na iconografia das Minas, a lança encontra-se presente desde tempos recuados. Às vezes com sentido funcional - submeter o demônio - outras, meramente para compor a imagem. Durante o primeiro quartel do setecentos mineiro, houve uma tendência, inclusive já explorada anteriormente na arte medieval, a dar a forma crucífera ao arremate da lança, a qual serve de suporte para uma bandeirola. Com o tempo, esta lança cruciforme transforma-se em uma cruz bastante leve, mais adequada para as peanhas compostas de nuvens ou montanha. Com isso destacamos que muitas imagens carentes de atributos (à mão direita), necessariamente não teriam a lança, sobretudo se a peanha é formada por montanha ou nuvens. Portanto, a partir da terceira década do século XVIII, a representação do Arcanjo passa a contar, de maneira progressiva, com a cruz, que pode estar substituindo a lança ou gládio. Verificamos que composições do período Rococó compartilham da afeição à Paixão de Cristo, generalizada nessa época na religiosidade da Capitania, relevando o atributo cruz, ao invés da lança e do gládio. A introdução da cruz nas imagens atinge a maior popularidade nas manifestações do Rococó. O gládio e o escudo, identificados no acervo proveniente da comarca do Rio das Velhas e na do Rio das Mortes, são atributos mais raros, atingem o Rococó, mas de maneira bastante particularizada. Sem dúvida, o atributo mais costumeiro e duradouro, que não deixa esmaecer na memória a face escatológica de São Miguel, é a balança, existente em todo o período contemplado (sempre à mão esquerda). Ela acompanha a lança, o gládio, a cruz, enfim é compatível com todos os atributos. Do Barroco ao Rococó, as balançinhas constituem o atributo mais recorrente. No entanto, modifica-se no transcorrer do setecentos mineiro: nos modelos mais recuados pode conter a representação de almas, enquanto nas obras de meados do século e particularmente do Rococó é rara tal presença. É como se essas criaturas fossem rapidamente retiradas do mundo visível (artístico e religioso) e, então, alocadas definitivamente lá, no purgatório! No escoar do setecentos mineiro, as imagens alusivas a São Miguel perderam a austeridade, tanto no que diz respeito à contenção do movimento na talha quanto na policromia. As feições assumem a expressão doce, angélica, meio afeminada. Os capacetes tornam-se delicados, sofisticados, cada vez mais distantes da rígida forma inicial. A composição obedece à construção em diagonais, possibilitando a Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 114 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm movimentação das massas, revelada em volumoso e revolto manto e vestimenta pouco militar, dotada de suave galanteria! Minas Gerais deixou vasto acervo iconográfico alusivo a São Miguel, dia a dia em processo de descontextualização. Inicialmente, bastante marcado pela influência ibérica, porém, precocemente criou opções próprias, voltadas para a depuração escatológica, - supressão das almas -, e notadamente para o culto à Paixão. Na última grande obra em homenagem a Miguel, isto é, a pintura da nave da igreja paroquial de Arcângelo de Joaquim José da Natividade (XIX), ele ajoelha-se diante da Santíssima Trindade, despojando-se do gládio e da cruz abandeirada. Trata-se de uma nova época, mais afirmativa da vida terrena e despreocupada em relação ao além! SIGLAS ACC: Arquivo da Casa dos Contos de Ouro Preto ACMBH: Arquivo da Cúria Metropolitana de Belo Horizonte AHMI: Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência (Ouro Preto) AEAM: Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana APM: Arquivo Público Mineiro (Belo Horizonte) APNSC: Arquivo Paroquial de N. Sra. da Conceição (Ouro Preto) APNSP: Arquivo Paroquial de N. Sra. do Pilar (Ouro Preto) APSAT Arquivo Paroquial de Santo Antônio (Tiradentes) CECOR: Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Belo Horizonte) IEPHA Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico IFAC: Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da UFOP (Ouro Preto) IPHAN: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (escritório de Belo Horizonte) IBMI: Inventário de Bens Móveis e Integrados feito pelo IPHAN IEPHA/MG: Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais MMC: Museu Machado de Castro, Coimbra Referências Bibliográficas Albuquerque, M. (1995). 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Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Vovelle, M. (1987). Ideologias e mentalidades. (M.J. Goldwasser, Trad;). São Paulo: Brasiliense. (Publicação original de 1982). Notas (1) A difusão do culto a São Miguel relaciona-se às suas aparições, das quais destacam-se as de 492 sobre o Monte Gárgano, em Siponto (Itália), a de 710 em Avranches (França) e aquela feita ao papa Gregório no mausoléu de Adriano, em 815 Nesses sítios foram construídas capelas, centros de peregrinação que propagaram o culto (Cf. Vorágine, 1990; Reau, 1996). (2) "Très Riches Heures du Duc de Berry" e "Heures de Rohan". Cf. Martins, 1969, vol. 2, pp. 244-246. (3) A Capela de São Miguel "foi uma das extensões manuelinas aos paços antigos", segundo risco de Marcos Pires, falecido em 1521 [Cf. Dias & Gonçalves, 1990, pp. 49-61. (4) O culto a São Miguel foi uma tradição entre as ordens de São Francisco de Assis e os Mínimos de São Francisco de Paula (Cf. Male, 1984, ps. 418 e 422). Já na própria Idade Média, tanto na França quanto na Inglaterra, sua efígie era colocada em medalhinhas que os devotos carregavam ao pescoço (Cf. Bloch, 1993, pp. 106 e201). (5) O acervo exibido pela exposição teve alcance regional. Através dela observamos uma nítida distinção entre a confecção desse barroco mais provinciano e aquele presente nos grandes centros (Lisboa, Coimbra, Porto), de inclinação erudita (no tocante aos altares: maiores, com fingimento de mármore, uso de painéis na tribuna, à moda italiana, em detrimento do trabalho escultórico, tratamento refinado...). (6) Na Capela de São Tiago (Coimbra), encontramos imagem de São Miguel com iconografia idêntica. (7) André Gonçalves tem enorme importância na arte portuguesa do setecentos (Cf. Machado, 1995). (8) O Arcanjo teria aparecido em Gárgano em 490, 492, 493 e 1656 cf. Pestana, 1997. (9) Notre Dame (Chartres), Saint-Etienne (Bourges), catedral d'Autum, Santa Fé (Conques), Notre Dame (Paris), Saint-Trophine (Arles) (Cf. Male, 1947). (10) "Anche nell' offertorio alle messe dei defunti compito di Michele è condurre le anime in paradiso" (Cf. Erbetta, 1981, p. 364). (11) idem, p. 378. Trata-se de obra traduzida durante a Idade Média em inúmeras línguas, que teve influência sobre a literatura alusiva ao além em geral e ao purgatório em particular, pois concebe a existência de dois infernos, o inferior para os que pecaram mortalmente (I Cor 6, 9-10), e o superior - futuro purgatório (Cf. Erbetta, 1981, vol. 3, pp. 376-378). (12) O oratoriano Manoel BERNARDES recorre à passagem de Isaías (Is 28, 17), às balanças como símbolos da eqüidade da justiça divina: "Farey juizo por pezos, e justiça por medida. Por esta razão se pinta já por antigo uso da Igreja o Archanjo S. Miguel com balanças na mão, a quem pertence por especial officio appresentar as almas no Tribunal Divino, e os pezos destas balanças sem dúvida são o amor..." (Cf. Bernardes, 1946, vol. 1, p. 229). (13) Há obras alusivas ao Juízo Final no México, Peru e Bolívia, datadas dos séculos XVIII e XIX, nas quais o Arcanjo Miguel é representado com balanças dotadas de almas, segundo a moda gótica, só que doravante, ao invés da túnica, porta a armadura de soldado (Cf. Sebastián, s.d., pp. 232 e 263). (14) Recorremos ao IBMI do IPHAN e ao arquivo fotográfico do CECOR/UFMG, o qual já restaurou inúmeras peças com a temática em questão, complementando aquelas informações com levantamentos de campo. (15) Segundo São Patrício, algumas almas passavam seu purgatório em um determinado lugar da terra [Cf. Vorágine. 1990, vol. 2, pp. 704-717), cit. p. 709). Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 118 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm (16) "El es el abanderado de Cristo en el ejército de los Santos Ángeles Y él será quien en cuanto el Señor le dé la orden, matará valientemente al Anticristo en la cima del monte Olivete, y quien dará la voz para que los muertos resuciten, y quien el día del juicio presentará ante el tribunal la Cruz, los cravos, la lanza, y la corona de espinas" (Vorágine, 1990, vol. 2, p. 621). (17) São Miguel com o atributo cruz coberta com guião (bandeirola) é freqüente na iconografia portuguesa. Flávio Gonçalves faz menção ao "Juízo Final" da Sé de Portalegre e da igreja paroquial de São Lourenço, na mesma cidade: "S. Miguel está também de pé sobre as nuvens, de asas abertas, o manto a cair-lhe dos ombros. Empunha na mão direita o habitual guião com a cruz vermelha. Em baixo, no lume, debatem-se os corpos dos condenados, incluindo vários frades. Das nuvens, dois anjos acercam-se e livram as almas" (Vorágine, 1990, vol. 2, p. 23). (18) Bardi divulga uma imagem mineira, de coleção particular, absolutamente excepcional e popular, que representa São Miguel submetendo o demônio com a lança, trazendo à esquerda um enorme galho de coqueiro (palma) invertido, que vai da cabeça do Arcanjo às pernas de satã [Cf. BARDI, Pietro Maria. (1981). História da Arte Brasileira]. (19) Manoel Bernardes (1946, p. 150) vaticinou: "A todos capitanearâ o Principe S. Miguel, trazendo em seus braços arvorado aquelle proprio madeyro da Cruz, em que o Filho de Deos pendurou, com seus sagrados membros, a salvação do mundo" (20) Em estudo voltado para uma micro-região portuguesa, envolvendo 32 freguesias, constata-se a seguinte classificação: 24 irmandades do Santíssimo, 23 do Rosário, 21 das Almas do Purgatório (Pereira, 1973). A mesma ordenação foi encontrada para o caso francês: "Il y a presque partout des autels et des chapelles des Ames du Purgatoire, mais leur succès est inégal suivant les lieux" (Vovelle, 1978, p.160). (21) Cf. rota dos primitivos colonizadores. Em Trindade, 1928, pp. 15-36. (22) Acreditamos que a tese "A Terceira devoção do setecentos mineiro; o culto a São Miguel e Almas". São Paulo: História USP, 1994, tenha colaborado para a introdução de rico acervo dessa iconografia na exposição Bienal 500 (cf. Oliveira, 2000). (23) Observamos a presente disposição em Cachoeira do Brumado, Camargos, Catas Altas do Mato Dentro, Dores do Turvo, Furquim, Mariana, Monsenhor Horta, Ouro Branco, Ouro Preto (Matriz de Antônio Dias), Padre Viegas, Prados, Santa Rita Durão, Tiradentes etc. (24) Até 1739 São Miguel e Almas do Pilar (Vila Rica) possuía um esquife para anjo, um de "pano rico" para os próprios confrades, outro de "pano pobre" destinado ao serviço caridoso, quando "empresta" definitivamente as tumbas à Misericórdia, com a condição deles retornarem à matriz nos dias de funeral dos irmãos (cf. AEPNSP, Termos da irmandade de São Miguel e Almas 1712-1818: lançamentos de 05/10/1713 relativo ao enterro de pobres, de 29/10/1739 sobre as condições do empréstimo dos esquifes). A partir daí não constaram as referidas tumbas nos inventários de alfaias da irmandade. (25) Raramente essas irmandades se abriram aos negros e mulatos, mas encontramos exceções; as Almas da Sé de Mariana, especialmente no ano de 1778 (Cf. AEAM, Missas, Oficios na Cathedral... 1751 - 1791, fl. 105), e a de Santa Rita Durão (AEAM, Compromisso da irmandade de São Miguel e Almas de Santa Rita Durão, 1765, cap. 18). (26) Cf. as variações dessa tipologia básica: Oliveira, (1984/5); Cf. altares de almas Vovelle & Vovelle, 1969. (27) Nos anos 40 a talha joanina sofre simplificação que reduz os "excessos ornamentais" e favorece a "estrutura arquitetônica e monumental dos retábulos" (Oliveira, 1984/5, p. 20). (28) A maioria do acervo referido é de transição do nacional para o joanino, e se situa entre 1725-1730: o altar de Cachoeira do Campo, com graciosa alma feminina no arremate do retábulo, já existia em 1725. (Cf. Martins, 1974, v. 2, p. 37). Da mesma época, o altar de Miguel na Matriz de São Caetano, cujo livro de Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 119 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm compromisso é de 1722 (AHMI), possui imagem de Miguel, sem dúvida feita pelo mesmo escultor daquela de Furquim, tal a semelhança entre ambas. O retábulo da matriz de São João del Rei é joanino, transitando para o Rococó. (29) A irmandade de São Miguel de Catas Altas é mais antiga que a de Nossa Senhora da Conceição (padroeira), isto é, anterior a 1713 com compromisso aprovado em 1716, motivo pelo qual vivia disputando por precedência nas procissões e enterros (Cf. AEAM, Livro de Visitas e fábrica da matriz de Catas Altas do Mato Dentro, 1727-1831, f. 26). (30) Petição alusiva à Vila do Ribeirão do Carmo (Mariana - 1713), afirma a existência coeva das irmandades do Santíssimo, Nossa Senhora da Conceição e "Almas Santas", a qual naquele tempo já esmolava às segundas-feiras e celebrava oo Finados (Cf. Trindade, 1945, pp. 139-141). (31) A imagem do Arcanjo geralmente exigia reparos nas partes sensíveis - mãos, dedos, asas, penacho - recebendo nova encarnação, mas não era comum às irmandades disporem da imagem de seu padroeiro. Os devotos são conservadores em relação às suas imagens de culto, que, carregadas nos anos, também o são na sacralidade. O mesmo não se aplica aos altares, constantemente renovados. Catas Altas teve duas imagens: uma pequena e antiga novamente estofada em 1748, quando recebeu ares novos por Manoel Rabelo, já desaparecida e a atual, atribuída a Francisco Vieira Servas. Outro exemplo é Arcanjo da Matriz do Pilar (Vila Rica), feita em 1714 e encarnada pela segunda vez em 1733, quando da fatura do segundo altar. Vj. lançamento de 03-05-1714: "Por ouro que se pagou de feitio do Anjo S. Miguel..." 65/oitavas e meia - fl. 126v; no tocante ao segundo estofamento cf. o termo de 6-3-1733 fl. 76, AEPNSP, Termos da Irmandade de São Miguel e Almas da Matriz do Pilar -1712-1838, enumeração irregular). (32) O altar de Catas Altas é grandioso, ultrapassando a cimalha real, motivo de disputa no Juízo eclesiástico movida pelo Santíssimo Sacramento (Cf. Bazin, 1983, v. 2, pp. 54-59). Seu risco e confecção (1744-1750) se devem a Francisco Antônio Lisboa, quase homônimo de Aleijadinho, cuja obra foi avaliada pelo mestre entalhador Francisco Xavier de Brito. (Cf. Martins, 1974, v. 2, pp. 25, 100, 130, 151, 379 e 388). (33) No lavabo da sacristia de São Francisco em Vila Rica encontra-se outra bela alegoria da fé, agora através da representação de um monge vendado (Cf. Röwer, 1943). (34) "Manda o Sagrado Concilio Tridentino q. nas Igrejas se ponhão as Imagens de Christo Senhor Nosso, de sua Sagrada Cruz, da Virgem Maria Nossa Senhora, e dos outros santos..." (XX-696); "E no que toca á preferencia dos lugares, que entre si devem ter nos altares, declaramos q, sempre as Imagens de Christo nosso Senhor devem preceder a todas, e estar no melhor lugar; e logo as de Virgem Nossa Senhora, e depois de S. Pedro Principe dos Apostolos: e que a do Patrão, e Titular da Igreja terá o primeiro e melhor lugar, quando no mesmo Altar não estiverem Imagens de Christo Nosso Senhor, ou da Virgem..." (XX-699; sobre a cruz cf. também XXI-702-703 em Constituiçoens Primeiras ....). (35) O segundo altar (o primeiro era de 1712) foi ajustado com o mestre entalhador Manoel de Brito em termo de 10-08-1733, dourado em 1741 (termo de 8 de maio); o Cristo foi esculpido por Antônio Rodrigues Quaresma (fl. 128); a da Virgem "com diadema e espadinha de prata" data de 1747-1748 (fl. 132) (AEPNSP, Livro de termos da irmandade de São Miguel e Almas da matriz do Pilar 1712-1838, enumeração irregular). Atualmente o altar tem apenas o Crucificado na tribuna e o São Miguel encimando o sacrário. (36) Agradecemos a Jeaneth Xavier de Araújo a transcrição de APM, Receitas e despesas da Capela das Almas - 1778-1813, DF 2137, outrora transcrito pelo IPHAN, aproveitado por Bazin, 1983, pp. 86-87. Martins, v . 1 , pp. 307-348. (37) Portada atribuída a Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, feita no último quartel do XVIII. Contudo, o livro de Receitas não faz menção a pagamento ao Aleijadinho. Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 120 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm (38) A Capela dos Santíssimos Corações e São Miguel e Almas do Alto das Cabeças pertencente à freguesia do Pilar é decorrente de doação, com a exigência de fundação de missa (Cf. AEPNSP, "Patrimonio da Capela do Smo. Corassam de Jesus, São Miguel do Alto das Cabeças (...) da Matriz do Oiro Preto". 1766 (...). (39) Manuel de Jesus Fortes fez a ermida primitiva e, em 1772, pediu licença para esmolar reedificar a ermida em Capela; há petição de 17/8/1789, suplicando licença para se continuar a esmolar por mais três anos, "para o fim de se finalisar aquela obra. E findo ela, se aplicar o que se tirar para o sufrágio das Almas do Purgatório". Os devotos afirmam "como é obra feita de esmolas, a não tem ainda de todo concluída (...) a querem concluir de todo o necessário, paramentando-a e ornando-a com a devida decência de todo o preciso" (Cf. Revista do APM, XXVI (1975): 224-225, doc. 190, 189 e 190). (40) Dentro do patrimônio da capela incluem-se casas fronteiras, coladas umas as outras "em correnteza", cuja construção provável deve ser a primeira metade do oitocentos. Em 1789, os devotos já denominavam o templo de "Santíssimos Corações de Jesus, Maria, José, Senhor de Matozinhos, São Miguel e Almas". (41) O Compromisso de 1867 (AEPNSP) foi aprovado com a seguinte ressalva "mas ficando-se esta Irmandade com o titulo unicamente do Senhor Bom Jesus de Mattosinhos da Capela das Cabeças do Ouro Preto, e não de S. Miguel e Almas, para evitar-se confusões e equivocos", ao nosso ver para não se confundi-la com aquela existente no recinto paroquial do Pilar, desde 1712 (IPHAN, "Registro do Compromisso da Irmandade de S. Miguel e Almas, erecta na Capella do Senhor Bom Jesus de Mattozinhos de Ouro Preto" (transc. do Registro de Provisões e Títulos da Câmara Municipal, 1846-95, n° 119 - pasta Capela de São Miguel e Almas, Ouro Preto). (42) Não encontramos aquela demonização vista para o caso europeu (cf. Delumeau, 1981). Anexo Imagens: Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 121 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Figura I: Exposição sobre Culto às Almas realizada em Póvoa do Varzim, Portugal. Fotografia: Adalgisa Arantes Campos. Figura I I : O Juízo Final Weyden Rogier van Der Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 122 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Figura I I I : O Juízo Final Weyden Rogier van Der. Detalhe São Miguel e almas. Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 123 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Figura IV: Catedral de Notre-Dame; Paris. Portada ocidental Fotografia: Achim Bednorz IN: L'arte gotica. Milano: Konemann, 2000 p.311 Figura V: Matriz do Pilar São João Del Rei (São Miguel e almas) Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 124 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Fotografia: Rangel Cerceau Figura VI: Matriz do Pilar São João Del Rei. Detalhe São Miguel e Almas Fotografia: Rangel Cerceau Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 125 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Figura VII: Biblioteca Nacional de Paris, Jérôme Wierx. Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 126 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Figura VIII: São João del Rei, forro do cômodo lado epístola, Matriz do pilar Fotografia: Adalgisa Arantes Campos Figura IX: Planta da Matriz de Catas Altas Cláudio Magalhães- IPHAN Alves, C.M. (1993/6). Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas: notas à margem de um projeto de restauração. Barroco, 17 : 221-225. Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 127 na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Figura X: Prado, altar de São Miguel e Almas, Io lado Epístola. Fotografia: Adalgisa Arantes Campos Data de recebimento: 19/08/2004 Data de aceite: 06/10/2004 Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representares do conceito de insconsciente na obra de 128 Machado de Assis. Memorándum, 7, 128-137. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.ritm Representares do conceito de inconsciente na obra de Machado de Assis Representations of the concept of unconscious in the workmanship of Machado de Assis Sávio Passafaro Peres Marina Massimi Universidade de Sao Paulo Brasil Resumo Este ensaio procura reconhecer e avahar as idéias psicológicas que circularam no Brasil no final do sáculo XIX, em sua representagáo na obra machadiana, tomada como documento histórico e como veículo transmissor de idéias. Para isso, foram examinadas as ocorréncias do conceito de inconsciente na obra de Machado de Assis em tres diferentes ámbitos. Primeiro, na terminología empregada pelo autor. Segundo, nos discursos expositivos dos narradores machadianos. Terceiro, na descrigáo dos estados subjetivos das personagens. Depois de feitas as análises, as idéias e nogoes encontradas foram confrontadas com algumas das principáis formulagoes acerca do conceito de inconsciente em outros autores de sua época. Palavras-chave: historia da psicología; inconsciente; literatura. Abstract This essay intends to recognize and to evalúate the psychological ideas that circulated in Brazil during the 19th century and the way they are represented in the workmanship of Machado de Assis, faced as historical document, and a transmitting vehicle of ideas. For this, the occurrences of the concept of unconscious had been examined in the workmanship of Machado de Assis in three different scopes. First, in the terminology used by author. Second, in the expositive speeches of the Machadian narrators. Third, in the description of the subjective states of the personages. After this, we examined the occurrences of the concept of unconscious in the workmanship of Machado de Assis, related with some of the referring conceptions of unconscious in the work of other authors of his time. Keywords: history of psychology; unconscious; literature. Introducao Machado de Assis é considerado pelos críticos um dos maiores escritores brasileiros. De bergo humilde, mulato, nascido no Rio de Janeiro no ano 1839, Machado conquistou, pouco a pouco, esta posigao gragas a sua genialidade e talento. Escreveu durante toda sua vida urna vasta obra, composta dos mais diversos géneros literarios: crónicas, críticas, teatro, poesia, mas é principalmente nos contos e romances que encontramos suas melhores criagóes. É a partir de 1880, com a publicagao de Memorias postumas de Brás Cubas (1), que dá inicio ao período que os críticos denominam sua segunda fase de produgáo literaria, em virtude de um enorme salto qualitativo de suas obras, que já nao se prendiam aos padróes das diversas escolas literarias, como o romantismo urbanizado do século XIX, o naturalismo, o realismo. Existe urna enorme quantidade de estudos sobre a ficgao machadiana, sendo esta examinada sob os mais diferentes ángulos: biográfico, filosófico, psicológico, sociológico, estético, histórico. Ainda assim, sua obra pode oferecer-nos muito para urna pesquisa na área da historia das idéias psicológicas se a interrogarmos de Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.htm Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representares do conceito de insconsciente na obra de 129 Machado de Assis. Memorándum, 7, 128-137. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.ritm forma adequada, com o auxilio das fontes secundarias. Todavía, é sempre necessário cautela se nao quisermos "forgar" a obra a responder aquilo que queremos ou que julgamos que ela deva responder, falacia muito comum entre os críticos. Investigar na obra de Machado de Assis as idéias psicológicas ai presentes acarreta diversos problemas metodológicos, que, no entanto, se tratados de forma adequada, podem ser superados. Urna das questoes a que devemos estar atentos refere-se á linguagem utilizada pelo autor. Se Machado descreveu em ¡números contos a interioridade de suas personagens, utilizou, para isso, urna terminología característica. Ora, se considerarmos a historia da psicología e das idéias psicológicas, podemos observar que cada sistema psicológico usa um jargao próprio, onde o sentido e o significado de cada expressao nao existe por si só; o termo existe em relagao a outros termos, presentes dentro de um contexto maior, ou de urna estrutura que Ihe confere significado. O conceito de "inconsciente", por exemplo, só existe em relagao ao conceito de "consciéncia". No sentido ampio do termo, "inconsciente" seria nada mais que um adjetivo, que indica que um objeto de origem psíquica nao faz parte da consciéncia. No entanto, qualificar de "inconsciente" pensamentos, impulsos, desejos, emogóes, interesses e outros elementos da vida psíquica nao é algo tao simples como á primeira vista pode parecer. Afinal, o que dá garantía de existencia das nossas emogoes e conteúdos interiores, é o fato de que podemos experimentá-las. Mas como se pode chegar á conclusao que existem conteúdos subjetivos com os quais o individuo nao pode, por definigao, ter acesso ¡mediato? A melhor resposta seria: da mesma forma que os cientistas, para explicarem a deformagao na órbita de Saturno, foram forgados a inferir a existencia de Plutao, antes mesmo de observá-lo. Isto é, podemos afirmar que supor a existencia de conteúdos inconscientes é urna inferencia necessária para que varios fenómenos possam ser explicados. No séc. XIX, segundo aponta Ellenberger (1970/1991), a idéia de inconsciente, como urna regiao psíquica com conteúdos inconscientes, foi introduzida para se resolver a problemática da memoria. Pois onde ficam nossas lembrangas quando nao estao presentes na consciéncia? A resposta mais atraente seria considerar estas memorias como temporariamente inconscientes, podendo estas emergir novamente á consciéncia. A questao da relagao entre inconsciente e memoria se destaca em dois contos de Machado, presentes no livro Varias Historias (1896) que serao explorados mais adiante: "Um homem célebre" e "O cónego ou metafísica do estilo" publicados pela primeira vez, respectivamente, em 1888 e 1885 (2). Este último contó apresenta especial importancia, pois será utilizado para se fazer urna articulagao com tres das quatro principáis concepgoes da atividade inconsciente presentes ao final do séc. XIX. O contó é urna narrativa sobre um cónego que está sentado, escrevendo um sermao. A principio, sua escrita flui naturalmente, mas, de repente, surge na cabega do protagonista urna dúvida quanto ao adjetivo a ser usado. Aqui o narrador convida o leitor a subir até da personagem, e apresenta ao leitor urna estapafúrdia teoria "psico-léxico-lógica" na qual as palavras tém sexo. O estilo seria o casamento délas e, ainda, os substantivos nascem em um lado do cerebro, ao passo que os adjetivos nascem do outro. O contó prossegue com o narrador mostrando a busca do adjetivo pelo substantivo na cabega do padre. O substantivo encontra varias "damas" em seu caminho, mas recusa a todas, pois está predestinado a um único adjetivo. O cónego, sem tomar conhecimento dos seus processos inconscientes, sente-se com a inspiragao "travada". E, por nao conseguir encontrar o adjetivo adequado, resolve se levantar, vai até a janela, passando a se ocupar de outros afazeres. Nem se lembra mais da busca pelo adjetivo. Contudo, apesar da atividade consciente ocupada com estes pequeños afazeres, o seu inconsciente está em plena atividade. Nesta passagem, portanto, encontra-se nao somente a idéia de um inconsciente Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.htm Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representares do conceito de insconsciente na obra de 130 Machado de Assis. Memorándum, 7, 128-137. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.ritm tópico - isto é, como urna regiao psíquica passiva onde se armazenam as memorias, regiao esta subordinada á consciéncia - mas também a idéia de um inconsciente funcional, dinámico, isto é, de caráter ativo, que possui atividades relativamente independentes do próprio pensamento consciente. Vejamos: "Enquanto o cónego cuida de cousas estranhas, eles (o adjetivo e o substantivo: n.d.r) prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba ou suspeite nada." (p.274, V.14). Logo após, o narrador torna explícita a nogao de inconsciente, convidando o leitor a acompanhar, no inconsciente do cónego, a busca do substantivo pelo adjetivo: Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciéncia para a inconsciencia, onde se faz a elaboragao confusa das idéias, onde as reminiscencias dormem ou cochilam. Aqui pula a vida sem formas, os germens e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvao ¡menso do espirito. (1896/1961, V.14, p.275). A descrigao deste inconsciente prossegue, revelando-se como um lugar obscuro, efervescente, onde estao guardadas as memorias remotas, as emogóes e "idéias grávidas de outras idéias". É a fonte geradora da linguagem, a partir da qual se articulam as idéias conscientes. O ensaio de Ivo Barbieri O cónego ou a invengao da linguagem (1998) aponta o fato de que o bruxo do Cosme Velho encontrou forte inspiragáo para descrigao do inconsciente na obra do filósofo alemáo, Édouard von Hartmann (1842-1906): Philosophie de l'inconscient, publicado pela primeira vez em 1877, livro este que pode ser encontrado no restante do acervo da biblioteca pessoal de Machado de Assis. Neste livro, um dos capítulos é dedicado a explanagóes sobre o estilo literario e a atividade criativa. Sobre este assunto, Hartmann, citado por Ivo Barbieri (1998), afirma que a invengao e a realizagáo do belo deriva de processos inconscientes, cujo resultado se traduz na consciéncia através do sentimento do belo. E esse sentimento é a materia bruta, pela qual o artista, por meio da reflexáo, irá construir sua obra; mas, a cada momento, o inconsciente deve fazer certas intervengóes. Ainda, segundo o mesmo autor, o processo inconsciente, que é o principio de toda criagao, escapa completamente ao "olhar da consciéncia". Neste contó de Machado, a descrigao do "desvao do espirito" nao se restringe a aspectos relativos ao processo criativo, sendo que outras qualidades podem ser evidenciadas. De fato, ao final do século dezenove, segundo aponta o historiador Ellenberger (1970/1991), a questao do inconsciente era abordada sob diversos pontos de vista. Para mostrar um quadro completo, podemos dizer que no ano de 1900 havia quatro diferentes aspectos de sua atividade: conservativo, dissolutivo, criativo e mitopoético. Destas quatro concepgóes, tres aparecem presentes nesse contó, com excegao da fungao dissolutiva. Vejamos as principáis concepgóes e suas relagóes com este contó e outros. As funcoes do inconsciente A fungao conservativa era identificada com a memoria, o registro de um grande número de recordagoes; também de recordagoes de percepgóes que a mente consciente que ficavam armazenadas e das quais a personalidade consciente nao sabia absolutamente nada. Tais fenómenos eram observados, por exemplo, em casos clínicos de pacientes que, durante estados febris, falavam urna língua que haviam aprendido quando changas e que depois haviam esquecido. Além disso, o hipnotismo forneceu ¡números casos de "hipermnésia". Um argumento muito debatido ao fim do séc. XIX, tanto na filosofía quanto na psicología, era se no individuo havia recordagoes inconscientes de tudo o que havia encontrado na vida. A presenga desta fungao conservativa do inconsciente pode ser muitas vezes encontrada em "O cónego ou metafísica do estilo", em passagens como: "Ficai ai, Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.htm Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representares do conceito de insconsciente na obra de 131 Machado de Assis. Memorándum, 7, 128-137. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.ritm perfis meio apagados de paspalhoes que fizeram rir ao cónego, e que ele inteiramente esqueceu." (p.277). Ou ainda: Cá estao as vozes remotas da primeira missa; cá estao as cantigas da roga que ele ouvia cantar as pretas, em casa; farrapos de sensagóes esvaídas, aqui um medo, ali um gosto, acola um fastio de cousas que vieram cada urna por sua vez, e que agora jazem na grande unidade impalpável e obscura, (p.276). Outro contó em que temos referencia á fungao conservativa é "Um homem célebre". Trata-se do drama de um compositor de polcas, Pestaña, que apesar dos sucessos destas, mantém-se frustrado. Isto porque deseja fazer obras em formas clássicas, como sonatas, ao estilo de um Beethoven ou um Mozart. Contudo, apesar de constantes tentativas, nunca consegue compor nada deste género. Em urna das passagens da narrativa, Machado refere-se ao inconsciente como o lugar de onde provem a inspiragao: Ás vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente urna aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vao; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, á ventura, a ver se as fantasías brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiragao nao vinha, a imaginagao deixava-se estar dormindo. Se acaso urna idéia aparecía, definida e bela, era eco apenas de alguma pega alheia, que a memoria repetía, e que ele supunha inventar. Entao, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroga; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano. (Assis, 1961, V.14, p.72). Restava a Pestaña apenas compor polcas. Certo dia, entretanto, Pestaña comegou a compor urna sonata, que Ihe pareceu belíssima. Sua mulher, porém, que estava por perto a escutar, percebeu, para o seu desconsoló, que aquela obra nao era dele, mas sim de Chopin. Isto é, a música nao era fruto de sua inspiragao, mas sim de sua memoria. Segundo o ensaio de Augusto Meyer (1965) sobre a psicología da criagao artística em Machado: Silvio e Silvia, o que o ocorre, no caso de Pestaña, é que a música foi "trasladada inconscientemente". A fungao críativa do inconsciente já era sublinhada desde o tempo do romantismo. Segundo esta concepgao, o ato de criagao tem origem no inconsciente. Esta idéia aparece em E. Hartmann, sendo posteriormente desenvolvida, segundo Ellenberger (1970/1991), por eminentes psiquiatras, como Francis Galton (1822-1911), e de um modo mais psicológico por Theodore Flournoy (1954-1921). A presenga desta fungao criativa do inconsciente em "O Cónego ou metafísica do estilo" é evidente, como já foi exposto anteriormente. A fungao mitopoetica (termo cunhado pelo psiquiatra Frederick Myers (1841-1901)) era urna "regiao media", subliminar, de onde se desenvolvía continuamente urna estranha produgao de fantasía interior. Um grande explorador desta faculdade foi Flournoy, que pesquisou, sob a perspectiva psicológica, um famoso médium de sua época. Em sua concepgao, o inconsciente se ocupa continuamente de criar mitos e fantasías, que muitas vezes permanecem completamente inconscientes, manifestando-se com maior freqüéncia nos sonhos. Algumas vezes, no entanto, estas fantasías se manifestam mesmo no estado de vigilia, através de diferentes formas: delirio, do sonambolismo, hipnose, mitomania, transes, possessóes. Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.htm Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representares do conceito de insconsciente na obra de 132 Machado de Assis. Memorándum, 7, 128-137. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.ritm Segundo alguns outros psiquiatras da época, estas fantasías poderiam ter expressoes somáticas, residindo nesta classe de fenómenos a etiología da histeria. Na descrigáo do inconsciente por Machado de Assis em "O cónego ou metafísica do estilo" esta fungao parece ser sugerida na seguinte passagem: Platao traz os óculos de um escrivao da cámara eclesiástica; mandarins de todas as classes distribuem moedas etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas pálidas; tao pálidas, que nao parecem as mesmas que a mae do cónego plantou quando ele era changa. (Assis, 1961, V.14, p.275). A fungao dissolutiva do inconsciente compreendia duas classes de fenómenos. A primeira era composta daqueles fenómenos psíquicos que antes eram conscientes, mas que, com o tempo, se tornaram automáticos (como se verifica nos hábitos adquiridos). A segunda era composta de alguns fragmentos cindidos da personalidade que interfeririam no processo normal. Esta hipótese encontrou forte argumentagao no fato de se conseguir, através de sugestao hipnótica, gerar no individuo comportamentos específicos, mesmo depois de despertó do sonó hipnótico, sendo que estes comportamentos eram induzidos sem que o individuo tivesse consciéncia da real razao de seu ato. Estes fenómenos levaram Janet (1859-1947) e outros eminentes psiquiatras do final do séc. XIX á conclusao de que varios disturbios tinham origens psíquicas, devido á forga destes fragmentos cindidos que permaneciam inconscientes. Assim, muitos psicólogos da época consideravam a histeria como urna especie de possessao da consciéncia por esta parte cindida da personalidade. A existencia de urna parte cindida da personalidade que permanece oculta leva-nos á hipótese da existencia de "desejos inconscientes". Em relagao ao desejo, entretanto, o problema se torna mais complexo que em relagao á memoria, pois tratamos aqui de um elemento da psique que impele o individuo ao comportamento. Mas, afinal, como um desejo pode ser inconsciente, se ele necessita do comportamento para a sua satisfagao? Se um desejo é inconsciente e se, por definigao, só se pode chegar a ele de forma indireta, quais sao os sinais, os indicios, ou os fenómenos que garantiriam a sua existencia? Pois afirmar a existencia de um desejo só faz sentido na medida em que seja possível encontrar ao menos urna manifestagao do mesmo. Mas se o fim de um desejo é o comportamento, como poderia chegar a tal fim sem passar pela consciéncia? Poderíamos complicar ainda mais: e por que motivo haveria um desejo de se esconder? E como isso poderia ser observado na literatura? Buscaremos desenvolver estas questóes usando como ponto de partida a obra de um contemporáneo de Machado, Os irmaos Karamazov (1866/2001), de Dostoievski. O intuito de introduzir a questao por meio desta obra é de se apresentar um panorama mais rico das idéias psicológicas no séc. XIX no ámbito da literatura, nao se restringindo somente ao ámbito das teorías da psicología científica. O romance gira em torno da familia Karamazov, composta por Fiódor Pávlovitch, homem vulgar, bufáo e imoral, e seus tres filhos: Alieksiéi, um asceta; Ivan, tipo mais comedido e controlado; e Dimítri, homem impetuoso, que por urna serie de razóes odeia seu pai. A tensáo entre Fiódor e Dimítri aumenta ainda mais devido ao fato de ambos apaixonarem-se por urna mesma mulher, o que leva Dimítri a ameagar seu pai de morte. Enquanto isso, Fiódor, para conquistar a moga, comega a consumir seu patrimonio, dando a ela presentes caros e prometendo-lhe djnheiro: se a uniáo fosse concretizada, seria o fim da heranga para os filhos. É nesse contexto que um dos agregados da casa, Smerdiakov, possível filho bastardo de Fiódor, comega a sugerir a Ivan que irá assassinar seu pai, pois todos pensariam que o assassino seria o filho mais velho, Dimítri. No entanto, Ivan nao chega Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.htm Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representares do conceito de insconsciente na obra de 133 Machado de Assis. Memorándum, 7, 128-137. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.ritm formular em pensamento a intengao do agregado; o que Ihe ocorre - além de profundas insónias e tormentos mentáis - é apenas um sentimento inexplicavel de asco e odio a Smerdiakov. A presenga de Ivan na casa de seu pai seria de grande importancia para que fosse evitado um possível assassinato de seu pai. Todavía Ivan resolve viajar, afastando-se da situagao. O agregado, que senté grande simpatía por Ivan, entende a viajem como um sinal de aprovagao, pois, dentre outras coisas, Ivan é um intelectual cético que defende a supremacía da vontade pessoal frente aos valores moráis, sendo dele a famosa frase: "Se Deus nao existe, tudo é possível". Durante sua viagem, seu pai morre assassinado. Quando Ivan regressa, enlouquece algum tempo depois de saber da noticia, mas a loucura chega ao auge quando fica sabendo que o verdadeiro assassino é Smerdiakov. Tudo leva a crer que o fator responsável por sua insanidade é a culpa. O livro parece sugerir que a culpa existe porque, inconscientemente, ele queria a morte do pai, afastando-se de casa e deixando o campo aberto para o assassinato. Provavelmente até soubesse inconscientemente das intengoes de Smerdiakov (afinal por que tanta raiva dele?). Tudo indica que Ivan nao formula seu desejo de modo explícito a fim de se proteger da dor moral da culpa pelo seu desejo parricida, gerado pelo interesse (na heranga). Porém, o confuto inconsciente se manifesta na insónia e no sentimento de odio profundo ao agregado (possível projegao de odio e asco ao próprio desejo parricida). Se no romance de Dostoievski o desejo inconsciente é apenas sugerido, em "Urna senhora", de Machado de Assis, o desejo inconsciente é evidente. Neste contó, presente em Historias sem Data (1884) a protagonista, D. Camila, nao formula para si o desejo de que sua própria filha nao se case: Um dia, poucos meses depois, apontou no horizonte o primeiro namorado. D. Camila pensara vagamente nessa calamidade, sem encará-la, sem aparelhar-se para a defesa. Quando menos esperava, achou um pretendente á porta. Interrogou a filha; descobriu-lhe um alvorogo indefinível, a inclinagao dos vinte anos, e ficou prostrada. Casá-la era o menos, mas, se os seres sao como as aguas da Escritura, que nao voltam mais, é porque atrás deles vém outros, como atrás das aguas outras aguas; e, para definir essas ondas sucessivas é que os homens inventaram este nome de netos. D. Camila viu iminente o primeiro neto, e determinou adiá-lo. Está claro que nao formulou a resolugao, como nao formulara a idéia do perigo. A alma entendese a si mesma; urna sensagao vale um raciocinio. As que ela teve foram rápidas, obscuras, no mais íntimo do seu ser, de onde nao as extraiu para nao ser obrigada a encará-las. (1961, V.13. p.171). Mesmo com D. Camila nao formulando em nivel consciente o seu desejo, este, por outros meios, atinge seu comportamento. O meio pelo qual o desejo se realizará será através do sentimento de desagrado que D. Camila tem em relagao aos namorados de sua filha, vendo-lhes apenas defeitos, e, assim, criando empecilhos ao casamento da mesma. Vale também notar que D. Camila procurou atrasar ao máximo o amadurecimento da filha, tratando-a como changa e vestindo-a como menina até o momento em que nao Ihe foi mais possível. Em D. Camila, como no caso de Ivan Karamazov, o desejo permanece inconsciente, livrando-a, deste modo, de urna dor moral, pois tomar consciéncia do ato de "atrasar" a vida da própria filha nao poderia passar sem o peso da culpa. Todavía, se em Ivan a motivagao é o dinheiro, em D. Camila a motivagao é a vaidade. Interessante notar Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.htm Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representares do conceito de insconsciente na obra de 134 Machado de Assis. Memorándum, 7, 128-137. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.ritm as idéias de Matías Aires (3), autor que, segundo Alfredo Bosi, seria urna das fontes para se construir urna "genealogía do olhar machadiano" (1999) Numa perspectiva histórico-psicológica, Massimi observa que Há outros aspectos do pensamento do autor (Matias Aires: n.d.r) acerca de vaidade que o aproximam de Freud. O primeiro é a hipótese da existencia de censura: no prólogo vimos que o autor aceña á possibilidade de que sensagao e paixoes com conotagoes éticas negativa, fugiam da lembranga e do conhecimento do sujeito que as experimenta. O segundo aspecto é a afirmagao de que a vaidade é urna paixao 'escondida' (em termos freudianos "inconsciente"): ela "se esconde de tal sorte, que a si mesma se oculta, e ignora; ainda as agoes mais pias nascem muitas vezes de huma vaidade mystica, que quem a tem, nao conhece nem distingue." (Massimi, 1984, p.107). Fato notável: Matias Aires em 1752 já supunha a existencia de urna censura inconsciente. E talvez censura seja o nome mais adequado para o que ocorre neste contó, pois o desejo pressupunha urna conotagao ética negativa. Nem sempre, porém, é a "dor moral" o único fator que faz com que o desejo permanega inconsciente - temos que somar a esta a "inconveniencia". Em alguns contos de Machado, o desejo pode até ser formulado, mas a psique arranja meios de suspendé-lo, de distorcé-lo e de afastá-lo da consciéncia. É o caso de "Uns bragos", (1986/1961). Em "Uns bragos" temos o problema do desejo de urna mulher casada, de vinte e sete anos, D. Severina, por um rapazinho de quinze anos, Inácio, que se hospeda em sua casa para ajudar seu marido nos servigos do escritorio. O que nos interessa neste contó é o fato do narrador descrever detalhadamente todas as etapas de desenvolvimento do desejo em D. Severina. Mesmo depois do desejo já estar instalado, a própria personagem nao se dá conta de sua existencia. O narrador vai mostrando ao leitor varios sinais que indicam a presenga do desejo, até que este, finalmente, penetre na consciéncia da personagem. Este contó apresenta urna grande riqueza na descrigao dos processos psíquicos. O narrador mostra com pormenores o desenrolar do desejo, que ora se esconde, ora se disfarga, mas que, entretanto, dirige o comportamento da mulher no sentido de sua satisfagao. Primeiramente é o menino, Inácio, que se apaixona pela mulher. Todavía este só a encontra praticamente tres vezes ao día, no café da manha, no almogo e no jantar. Inácio, em virtude da paixao, comega a se distrair constantemente, esquecer das coisas e devanear. O tempo passa e a paixao de Inácio nao diminuí. Inácio, entretanto, tenta ao máximo disfargar sua paixao. Mas, certo dia, D. Severina suspeita de Inácio: Tudo parecía dizer á moga que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressao do assombro, trouxe urna complicagao moral, que só conheceu pelos efeitos, nao achando meio de discernir o que era. Nao podia entender-se nem equilibrarse, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador (seu marido: n.d.r), ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estaco: realmente, nao havia mais que suposigao, coincidencia e possivelmente ilusao. Nao, nao, ilusao nao era. E logo recolhia os indicios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.htm Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representares do conceito de insconsciente na obra de 135 Machado de Assis. Memorándum, 7, 128-137. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.ritm distragóes, para rejeitar a idéia de estar engañada. Daí a pouco (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das coisas, (p.54). Após alguns dias, D. Severina confirma sua hipótese e resolve nao contar nada a seu marido, para evitar desgosto a ambos. O narrador entao vai mostrando como D. Severina vai fugindo ao seu desejo pelo mocinho: "(...) já se persuadía bem que ele era urna changa, e assentou de o tratar secamente até ali, ou ainda mais." (p.55). Mas, no entanto, o narrador vai revelando em D. Severina, através dos comportamentos, de pequeños gestos, o verdadeiro sentimento da mulher: Inácio comegou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar, geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabega dele; mas tudo isso era curto, (p.55). Com o transcorrer do tempo, D. Severina passa a tratar Inácio mais carinhosamente, dando conselhos: nao beber agua fria depois de café quente, etc. Ao mesmo tempo: "A agitagao de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se." (p.56). Aqui o narrador parece sugerir um fenómeno parecido com o presente em "Missa do Galo", publicado pela primeira vez 1893, em que o protagonista senté, através de "sensagóes", o desejo de sua tia por ele, e o dele por ela. Entretanto, nao o formula em nivel consciente, como "pensamento". "Nunca poderei entender a conversagao que tive com urna senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta." (Assis, 1899/1961, V.15, p.91). E ainda: Há impressoes desta noite que me parecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalhome. Urna das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasiao, ela, que apenas era simpática, ficou linda, ficou lindíssima. (p.99). Podemos dizer que é o mesmo caso o de D. Severina, que senté, mas nao sabe, no plano consciente, de desejo por Inácio. Finalmente D. Severina saberá de seu desejo. Isso ocorre através de urna especie de "possessao". Certa vez, D. Severina sente-se atordoada: "Parecía fora do natural, inquieta, quase maluca."(p.55), fazendo atos sem propósito, vai á janela e confirma que seu marido foi embora, senta-se na cadeira e lembra que Inácio comerá pouco, e resolve ("capciosa natureza") ir observá-lo para ver se nao estava doente. Aqui, o narrador parece deixar claro que nao foi este o real motivo que faz D. Severina ir ao encontró de Inácio. Inácio está dormindo na rede quando D. Severina vem sorrateiramente observá-lo, porém ao observá-lo, o desejo aparece em nivel consciente. D. Severina comega urna luta interior com seu desejo por Inácio; sua arma contra este desejo consiste em considerá-lo urna crianga: E mirou-o lentamente, fartou-se de vé-lo, com a cabega inclinada, o brago caído; mas, ao mesmo tempo que o achava crianga, achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e urna dessas idéias corrigia ou corrompía a outra. (p.61). De repente, D. Severina comega a andar e beija a boca de Inácio. Logo em seguida, ela recua, envergonhada do ato, nao acreditando em sua atitude. Apesar do beijo, Inácio nao acorda, está sonhando justamente que a própria D. Severina está Ihe beijando. O contó finaliza com Inácio sendo mandado embora de sua casa, sem que ele saiba o porqué. Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.htm Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representares do conceito de insconsciente na obra de 135 Machado de Assis. Memorándum, 7, 128-137. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.ritm Há muitas idéias psicológicas presentes no contó, porém o que mais se destaca sao malabarismos do desejo nao admitido, que, por meios ardilosos, levam a personagem a efetuar comportamentos no sentido de sua satisfagao. Conclusao A nogao de urna atividade inconsciente se manifesta na ficgao machadiana em diferentes níveis e sob diversos aspectos. Através da análise de alguns contos, encontramos passagens em que a atividade consciente nao corresponde á totalidade psíquica, sendo aquela apenas urna parte desta. Em virtude disso, podemos concluir, no que diz respeito as modalidades com que Machado descreve os estados subjetivos de suas personagens, que por tras de varias intengóes conscientes, existem finalidades ocultas, inconscientes, como é o caso dos contos "Urna senhora" e "Uns bragos". De fato, Machado constantemente apresenta personagens dotadas de urna consciéncia conflituosa, confusa, pouco transparente a si mesma. Algumas vezes, mesmo a atividade da memoria, de recordar-se, é submetida a filtros ou barreiras como podemos observar em "Missa do Galo". Em outro nivel, Machado faz referencia á concepgao de um inconsciente vinculado á inspiragao musical, como é o caso de "Um homem célebre", "Cantiga de esponsais" e literaria em "O cónego ou metafísica do estilo". Podemos afirmar, portanto, que o conceito de inconsciente ou de forgas inconscientes que movem o individuo foi disseminado em solo brasileiro através da literatura, antes mesmo do surgimento da própria Psicanálise. Referencias bibliográficas Aires, M. (1752). Reflexao sobre a vaidade dos homens. Officina de Francisco Luís Ameno: Lisboa. Assis, M. (1961). Obras completas. Sao Paulo: Editora Brasileira. 32 volumes Barbieri, I. (1998). O cónego ou a invengao da linguagem. Tempo Brasileiro, 133134, 23-34. Bosi, A. (1999). O Enigma do Olhar. Sao Paulo: Ática. Dostoievski, F. (2003). Irmaos Karamazov. (P. Bezerra, Trad.) Rio de Janeiro: Ediouro (originalmente publicado em 1866). Ellenberger, H. (1991). La scoperta dell'inconscio. (N. Nunes & O. Mendes, Trad.) Torino: Bolati Bognieri. (originalmente publicado em 1970) Leite, D. M. (1967). Psicología e literatura. Sao Paulo: Companhia Editora Nacional. Massimi, M. (1984). Historia das idéias psicológicas no Brasil, em obras do Período Colonial. Dissertagao de mestrado. Universidade de Sao Paulo, Sao Paulo. Massimi, M. (1990). Historia da psicología brasileira: da época colonial até 1934. Sao Paulo: E.P.U. Meyer, A. (1965). Silvio e Silvia. Em A. Meyer (Org.). Forma Secreta. (4.ed). (pp.39-41). Rio de Janeiro: Lidador. Notas (1) Os nomes dos livros estao grafados em itálico, já o nome dos contos estao entre aspas. Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.htm Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representares do conceito de insconsciente na obra de 137 Machado de Assis. Memorándum, 7, 128-137. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.ritm (2) Machado de Assis, durante a vida, publicou cerca de duzentos e dez contos em revistas, jomáis e livros. Muitos dos contos presentes em seus livros foram anteriormente divulgados em revistas e jomáis. Assim sendo, a ordem cronológica da produgao dos contos nao corresponde com exatidao á ordem de publicagao de seus livros de contos. (3) Matias Aires foi um importante pensador brasileiro do séc. XVIII, influenciado pelo pensamento racionalista, La Rochefoucauld, Pascal e outros, escreveu obras dos mais variados géneros. Porém destaca-se dentre estas obras "Reflexoes Sobre a Vaidade dos Homens", obra em que o autor procura entender o ser humano, partindo do conceito central da vaidade. Interessante notar que modo semelhante de pensamento é encontrado em Pascal, outra forte influencia do pensamento de Machado, segundo apontam muitos críticos. Nota sobre os autores Sávio Passafaro Peres é formado em Psicología pela Faculdade de Filosofía Ciencias e Letras da Universidade de Sao Paulo, Campus de Ribeirao Preto, Brasil. Área de pesquisa: historia das idéias psicológicas e realizou esta pesquisa como bolsista da FAPESP. Contato: [email protected]. Marina Massimi é Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicología e Educagao na Faculdade de Filosofía Ciencias e Letras da Universidade de Sao Paulo, Campus de Ribeirao Preto, Brasil. Especialista na área de Historia das Idéias Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contato: Avenida Bandeirantes, 3900 14040-901 - Ribeirao Preto (SP) / Brasil. E-mail: [email protected]. Data de recebimento: 09/02/2004 Data de aceite: 29/09/2004 Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.htm Jacó-Vilela, A. M.; Esch, C.F.; Coelho, D.A.M. & Rezende, M.S. (2004). Os estudos médicos no Brasil no século XIX: contribuigoes á Psicología. Memorándum, 7, 138-150. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.ritm 138 Os estudos médicos no Brasil no século XIX: contribuicóes á Psicología Brazilian medicine courses in the 19th century: contributions toward Psychology Ana Maria Jacó-Vilela Cristiane Ferreira Esch Daniela Albrecht Marques Coelho Marcelo Santos Rezende Universidade do Estado do Rio de Janeiro Brasil Resumo O texto visa apresentar a historia dos estudos médicos no Brasil por se entender, em consonancia com varios historiadores da psicología, a relevancia do saber médico para a constituigao da Psicología no Brasil. Neste sentido, acompanha-se o exercício da profissao médica desde a colonia, a criagao das primeiras Faculdades de Medicina e sua produgao de teses médicas. Observe-se que estas representam parte relevante das primeiras produgoes teóricas brasileiras e tém sido pesquisadas por investigadores de origens diversas objetivando a construgao da historia de suas disciplinas, entre elas a psicología. Daí decorre a importancia da orientagao do ensino médico, principalmente no tocante á psiquiatría e á medicina social, conforme se apresenta nessas teses. Dá-se especial relevo as teorías psicológicas mais utilizadas entao porque estas serao fundamentáis para a constituigao do saber psicológico. Palavras-chave: ensino médico; teses médicas; Psicología no Brasil. Abstract The work aims at presenting the history of the medical studies in Brazil due to the relevance of these studies for the constitution of Psychology in Brazil. In this direction, the exercise of the medical profession is accompanied, since colonial times, by the creation of the first Faculties of Medicine and its production of medical theses. It is observed that these theses represent excellent part of the first Brazilian theoretical productions, which have been searched by researchers of diverse origins aiming at the construction of the history of their respective disciplines. This is also the case regarding Psychology. According to this theses, this is the reason why the orientation of the medical education is so important, especially social medicine and psychiatry. It is also given special attention to the psychological theories used most frequently at that time because they are fundamental importance to the constitution of the psychological knowledge. Keywords: medical course; medical theses; Psychology in Brazil. Introducao O interesse pela compreensao da historia da medicina no Brasil surgiu ao nos depararmos com a importancia dos cursos de medicina para o desenvolvimento da psicología no país. Faz parte do imaginario dos historiadores da psicología no Brasil a relevancia das teses para doutor em medicina, dispositivo utilizado desde a criagao das Faculdades de Medicina até 1930 para titular os médicos. Isto porque estas teses se constituem nos primeiros livros académicos do Brasil, já que tém tiragem variável, dependendo do interesse e da capacidade financeira de seu autor, Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.htm Jacó-Vilela, A. M.; Esch, C.F.; Coelho, D.A.M. & Rezende, M.S. (2004). Os estudos médicos no Brasil no século XIX: contribuigoes á Psicología. Memorándum, 7, 138-150. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.ritm 139 e versam sobre urna grande variedade de temas: os médicos sao os grandes cientistas do século XIX, abarcam em seus conhecimentos muito daquilo que hoje vemos em outras áreas, como Ciencias Sociais, Meio Ambiente, Educagao, Psicología, Educagao Física, além de Biología e outros temas correlatos á área médica. Assim, a origem deste trabalho é o interesse pelas referidas teses, objeto de investigagao específica em que procedemos á identificagao e análise daquelas relativas á Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, procurando verificar, nelas, a presenga da temática psicológica. Os resultados desta investigagao, bem como da com o periódico Brazil-Médico estao sendo apresentados em diversos textos a partir das análises efetuadas. Aqui, objetiva-se apresentar específicamente um pouco da historia da constituigao dos cursos de medicina no país, clarificando-se o campo da psiquiatría e sua distingao dos demais campos médicos. Relevo especial é dado as principáis teorías psicológicas entao aceitas, pois é nesta base que a psicología irá se constituir como um saber específico sobre a subjetividade, em contraposigao ao saber neoescolástico sobre a alma que imperava até entao. Ressalte-se que o propósito maior deste texto é servir de auxilio a outros pesquisadores do tema, pois o interesse pela contribuigao médica á constituigao da psicología torna necessária urna compreensao, pequeña que seja, sobre a formagao médica. Assim nos preocupamos principalmente em apresentar de forma coerente a historia desta formagao no Brasil e o aparecimento, nela, dos saberes psicológicos, recorrendo para isto principalmente a estudiosos que já se dedicaram a esta temática. Ou seja, nao pretendemos utilizar aqui o recurso a fontes primarias porque nosso objetivo nao é a formagao em medicina em si, mas um de seus resultados, as teses. Estas, todavía, nao sao objeto de análise neste texto. O contexto Até meados do século XVIII as cidades brasileiras encontravam-se abandonadas por Portugal (Costa, 1979). A ocupagao do territorio era realizada por iniciativa particular dos colonos. Quando Portugal desenvolveu um novo tipo de interesse, devido á descoberta do ouro, passou a exercer um controle mais rigoroso sobre a colonia, intensificando a extorsao económica. Além disso, a disputa que havia entre Igreja, Governo e Cámara (1) (senhores rurais e grandes negociantes) gerava a impressao de ausencia de um poder único e de existencia de urna lei obscura. Paralelamente a isto, episodios de sabotagem económica e de rebeldía política tanto de intelectuais, como na Inconfidencia Mineira (1789), quanto de carnadas populares, como na Conjuragao Baiana (1798) - multiplicavam-se. As infragoes dos colonos passaram a ser punidas com truculencia e arbitrariedade. Entretanto, esta estrategia punitiva terminou por esgotar suas possibilidades de agao sem modificar o perfil insurreto da populagao. O século XIX recebeu a desordem urbana praticamente intocada. Esta conclusao pode ser comprovada pela presenga de diversas revoltas populares, como a Revolugao Pernambucana (1817), a Sabinada (1834), a Balaiada (1838) e a Cabanagem (1835) (Fausto, 1994) (2). Além dos problemas das insurreigoes populares, as cidades estavam subjugadas a urna especie de absolutismo patriarcal. O monopolio das familias rurais ocorria através das cámaras municipais, e por isso tinham urna forte influencia na organizagao político-social da colonia. A familia colonial nao formava cidadaos livres e autónomos, como é o nosso modelo de individuo moderno. Ao invés disso, formava parentes e "apadrinhados", todos dependentes das decisóes do patriarca. No seu apego á tradigao, a familia colonial mantinha-se em um estado de inercia que impedia o estabelecimento da ideología liberal, cujos preceitos estabeleciam, como sua base, um sujeito senhor do seu livre-arbítrio, autónomo, igual aos demais e livre para estabelecer contrato no mercado de trabalho. Ao desembarcar no Brasil em 1808 com a corte portuguesa, D. Joao VI pretende estabelecer instituigóes centralizadoras (Shwarcz,1995) que pudessem, de alguma Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.htm Jacó-Vilela, A. M.; Esch, C.F.; Coelho, D.A.M. & Rezende, M.S. (2004). Os estudos médicos no Brasil no século XIX: contribuigoes á Psicología. Memorándum, 7, 138-150. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.ritm 140 forma, restabelecer a ordem e ao mesmo tempo "civilizar", ou seja, europeizar a sociedade. Data dessa época a instalagao dos primeiros estabelecimentos de caráter cultural, como a Imprensa Regia (até entao nao havia, no Brasil, imprensa autorizada por Portugal), o Real Horto e o Museu Real. Vinculados aos modelos metropolitanos, os primeiros centros de saber enxergavam o Brasil ora como espelho, ora como extensao da corte portuguesa. D. Joao VI, logo após a mudanga da corte para o Brasil, centralizou o poder na colonia, promovendo o inicio da criagao de um Estado nacional e do desenvolvimento urbano, pelo menos na capital, Rio de Janeiro. Como os integrantes da nobreza portuguesa poderiam viver num país que nao tinha os hábitos de consumo, lazer, higiene e moradia que havia na Europa? O comercio internacional, as instituigóes culturáis e de ensino superior surgiram como instancias modernizadoras e civilizadoras da provinciana sociedade brasileira. Dentro desse contexto civilizatório foram criadas, em 1808, as Cadeiras de Cirurgia e Anatomía que, em 1832, deram origem as Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. Nesta época, o Brasil, agora país independente (3), adquiría maior facilidade de contato com o restante da Europa, o que propiciava a penetragao de idéias correntes no Velho Mundo, especialmente na Franga. Assim, apresentaremos a seguir urna breve descrigao do processo de institucionalizagao da medicina no Brasil, seguindo alguns estudiosos escolhidos por sua dedicagao ao tema, a fim de melhor compreendermos o contexto académico em que nosso objeto de estudo se situava. A Institucionalizagao da Medicina no Brasil Antecedentes No período que se estende do século XVI ao inicio do século XIX, os profissionais habilitados, portadores de "licenga", de diploma ou "carta" para exercer a Medicina no Brasil, foram os físicos e os cirurgioes. Sofreram, contudo, a concorréncia dos nao habilitados, isto é, dos "práticos", designados por urna vasta sinomínia curandeiros, curadores, entendidos, curiosos, entre os quais se incluíam os pajes, os boticarios e barbeiros, além dos jesuítas (Santos Filho, 1991; Maia, 1996). Os físicos, ou médicos propriamente ditos, foram principalmente os licenciados pela Universidade de Coimbra. Os cirurgioes da época, por sua vez, podem ser classificados em varias categorías. A grande maioria dos residentes no país nos sáculos XVI e XVII constitui-se dos "cirurgioes barbeiros", que se habilitaram como aprendizes ou ajudantes de mestres, foram examinados e receberam "carta" (Santos Filho, 1991). Além dos atos cirúrgicos comuns á época, sangravam, sarjavam, aplicavam ventosas e sanguessugas, extraíam dentes, barbeavam e cortavam o cábelo, estas duas últimas práticas restritas ao "barbeiro" do século XVII em diante. Trata-se pois de urna medicina hipocrática, onde se estudam os humores, pratica-se a sangría. Entretanto, seus fundamentos na religiao impedem que avance nos processos experimentáis e empíricos (de vivissegao, por exemplo) que já faziam parte e muito haviam contribuido para o avango da medicina européia (Rossi, 1998). Outra categoría é a dos "cirurgioes aprovados", que seguiam um curso teóricoprático em hospitais, se submetiam a exame e obtinham "carta" que Ihes outorgava o direito de exercerem todos os tipos de cirurgia e, mesmo, a própria medicina, onde nao houvesse físicos. Apareceram no Brasil a partir do século XVII e dividiram a clientela com estes últimos. Finalmente, outros, os "cirurgioes diplomados", formados por escolas européias que nao as ibéricas, também aqui viveram no século XVIII. Entretanto, foram minoría (Santos Filho, 1991; Salles, 1971). Da criagao dos primeiros cursos as Faculdades de Medicina O ensino oficial de medicina teve inicio logo após a chegada de D. Joao VI ao Brasil, através da criagao da Escola de Cirurgia da Bahia e da Escola Anatómica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro, em 1808 (Santos Filho, 1991). Ambas funcionaram no Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.htm Jacó-Vilela, A. M.; Esch, C.F.; Coelho, D.A.M. & Rezende, M.S. (2004). Os estudos médicos no Brasil no século XIX: contribuigoes á Psicología. Memorándum, 7, 138-150. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.ritm 141 Hospital Real Militar das respectivas cidades. Em 1813 (4) a Escola do Rio de Janeiro transformou-se na Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro, tendo o mesmo acontecido, dois anos depois, com a Escola da Bahia. O curso durava cinco anos; terminados os exames do quarto ano, os alunos que o desejassem recebiam a "Carta de cirurgia". Os que completavam o quinto ano, por sua vez, ficavam habilitados a exercer a Cirurgia e recebiam "licenga para curar de Medicina". Entretanto, ainda na década de 20 do século XIX era intenso o clamor em prol da reforma das Academias Médico-Cirúrgicas do Rio de Janeiro e Bahia, apontadas como deficientes e anacrónicas. (5) Em 1829 é fundada a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (6). Chamada, em 1830, a dar parecer sobre os planos de reorganizagao do ensino médico, tem seu anteprojeto aprovado com pequeñas alteragoes pela Comissao de Saúde Pública da Cámara, e promulgado como lei em 1832. A partir deste momento, estavam criadas as Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. Até a confecgao de um regimentó, foram adotados os estatutos da Faculdade de Paris (7). Instituíramse tres cursos: o de Medicina, o de Farmacia e o de Partos, e as faculdades passaram a conceder os títulos de "doutor em Medicina", "farmacéutico" e "parteira". Como nosso objetivo refere-se as teses da Faculdade de Medicina, vamos nos deter aqui as exigencias para a obtengao do título de "doutor em Medicina". (8) Os candidatos a este título deveriam sustentar, em público, urna tese, escrita no idioma nacional ou em latim, e impressa á própria custa. A tese compreendia urna "dissertagao" e a enumeragao de "proposigoes" que se traduziam, muitas vezes, na transcrigao ipsis verbis de aforismos de Hipócrates. O curso médico, pela nova regulamentagao, deveria ter a duragao de seis anos, sendo composto por quatorze materias divididas em tres segóes: ciencias acessórias, ciencias cirúrgicas e ciencias médicas. De acordó com Santos Filho (1991), as reformas que se processaram no regime monárquico e as seguintes, no período republicano, visaram, em esséncia, adaptar o ensino ao progresso técnicocientífico que se verificava na Medicina. As aulas nunca foram regulares, dada a ausencia constante de varios lentes. O ensino médico sofria ainda com a precariedade do material escolar, com a falta de instrumentos, de drogas, de vasilhames, e até de cadáveres para as dissecagóes anatómicas. A precariedade de espago físico é urna constante em todo este período. A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro só veio a ter sua sede própria em 1918, quando foi inaugurada a Faculdade Nacional de Medicina da Praia Vermelha (9). A orientagao doutrinária do ensino médico No século XIX afirma-se a influencia francesa no ensino da Medicina no Brasil, ao passo que, nos sáculos anteriores, prevaleceu, ou antes, imperou a Medicina ibérica. No século XIX, a influencia gaulesa estendeu-se nao somente á Medicina, como as demais ciencias, á literatura, aos costumes, ao comercio. Teorías e conhecimentos oriundos de outros países europeus, como da Alemanha e da Inglaterra, também foram adotados no Brasil por muitos profissionais quando já ia bem avangado o século XIX, embora tivessem presenga menor que a francesa. Desse modo, importava-se e aplicava-se a teoria, a orientagao, os métodos clínicos, a técnica cirúrgica e a terapéutica (10). Os profissionais desta fase, denominada por Santos Filho (1991) como précientífica, sao os doutores em Medicina formados, na maioria, pelas Faculdades do Rio de Janeiro e da Bahia. Substituíram os "físicos" dos tres primeiros sáculos. Obrigados á auto-suficiencia, forgados a entender e a praticar todas as especialidades, todos os ramos da Medicina, constituíram o que se convencionou chamar de "médicos-de-família" (11), ou seja, aquele que medicava os membros de urna familia, do recém-nascido ao anciao, de ambos os sexos, atendendo-os ora como clínico, ora como cirurgiao, e ainda como parteiro. Era, além do mais, o conselheiro, consultado e ouvido ñas dificuldades e nos problemas domésticos. Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.htm Jacó-Vilela, A. M.; Esch, C.F.; Coelho, D.A.M. & Rezende, M.S. (2004). Os estudos médicos no Brasil no século XIX: contribuigoes á Psicología. Memorándum, 7, 138-150. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.ritm 142 A Medicina continua teórica e essencialmente clínica, vale-se da observagao ao pé do leito do enfermo, baseia-se nos síntomas e em sinais visíveis e suspeitados, os quais, depois de comparados e somados, determinam a natureza da doenga. Inexistiam os meios auxiliares de diagnóstico e, portanto, a casuística - o registro dos casos - era um fator importante para determinar o diagnóstico. A patología repousava na sintomatologia, enquanto a origem, as causas - por desconhecidas, ignoradas, ou ainda, por mal avahadas - eram atribuidas, como no passado, as condigoes climáticas, aos desregramentos alimentares e sexuais, a estados emotivos, a "germes", vapores e humores indeterminados, genéricos, já que a teoría microbiana só surge ao final do século XIX. Entretanto, a medicina no Brasil também comega a assumir o novo paradigma científico e, como tal, além de criar instituigoes como as já citadas, necessita de seus meios de divulgagao. Surgem os periódicos médicos, dos quais dois se destacam por sua duragao, tornando-se um importante veículo de pesquisa, intervengao e divulgagao de idéias. Sao eles a "Gazeta Medica da Bahia", primeiro periódico médico brasileiro, criado em 1866, e o "Brazil Medico", do Rio de Janeiro, criado em 1887. A "Gazeta Medica da Bahia" surgiu a partir de um grupo de médicos, (12) nao pertencentes ao quadro de lentes da Faculdade da Bahia, que se reuniam, a partir de 1865, em sessoes científicas, com discussoes sobre Anatomía Patológica, alicergadas em dados fornecidos pelo microscopio. Esses médicos, com as suas cuidadosas observagoes e seus estudos clínicos, iniciam urna nova era na Medicina brasileira. Sao eles os predecessores e, mesmo, os arautos da Medicina experimental no país. Foram denominados "tropicalistas", ou, em terminología atual, parasitologistas (Santos Filho, 1991). A Gazeta Medica da Bahia, pelo seu conteúdo, pode ser apontada como um verdadeiro tratado de Medicina Tropical brasileira (Schwarcz, 1995). O Brazil Medico, ao contrario da Gazeta Medica da Bahia, nasceu vinculado á Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Para Schwarcz (1995), o periódico adquirirá um perfil próprio a partir de fináis do século XIX com o fortalecimento da área de higiene pública, quando terá um papel vital no combate as epidemias e na divulgagao das campanhas de saneamento e no apoio a urna "medicina tropical" (p. 223). Em nossa pesquisa sobre este periódico observamos que assume de forma explícita um caráter didático, de formagao dos médicos, através de artigos sobre estudos de caso, além de indicar literatura atualizada, apresentar resumos de obras recém-langadas na Europa e estimular, via divulgagao, a participagao em eventos científicos. Em todos estes casos, a partir dos anos de 1912 surge a mengao explícita a livros, eventos, estudos psicológicos (13). Medicina Social De acordó com alguns estudiosos que trabalharam com as teses defendidas ñas Faculdades de Medicina, muitas délas discorrem sobre temas sociais, de modo que podem ser consideradas como pertencentes á Medicina Social. Segundo Antunes (1998), "tratam de questoes relacionadas á higiene e áquilo que hoje consideramos como fatores psicossociais" (p. 30). Machado (1978) também as sitúa na esfera da Medicina Social, afirmando que esta se empenhava na busca de urna normalizagao da sociedade com vistas a urna formagao sadia. Era preciso que a sociedade fosse organizada e livre de desvíos. O que causava "desordem" deveria ser eliminado ou devidamente controlado através de projetos profiláticos e reparadores. Nota também que, ñas teses, freqüentemente há urna elaboragao de propostas para varias organizagoes sociais, com a finalidade de higienizá-las: urna preocupagao com hospitais, cemitérios, bordéis e, de maneira especial, com a escola e a própria instituigao familiar. Assim, por exemplo, verificamos que a campanha pela amamentagao materna gera afirmativas como a de Duque, em sua tese "Hygiene da Changa, do nascimento a queda do cordao umbilical" (1864, pp. 23-24): "... o /e/te é, pois, Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.htm Jacó-Vilela, A. M.; Esch, C.F.; Coelho, D.A.M. & Rezende, M.S. (2004). Os estudos médicos no Brasil no século XIX: contribuigoes á Psicología. Memorándum, 7, 138-150. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.ritm 143 incontestavelmente aquelle que a natureza destinou ao recém-nascido, e o substitui-lo seria ir de encontró ao voto desta, e diminuir a humanidade". Nessas propostas médicas observa-se também urna certa produgao de idéias moralizantes expressas através de formas de controle de comportamento, sempre com a justificativa de visar urna vida mais saudável. Ubatuba, por exemplo, em sua tese de 1845 (p.22): "Algumas consideragóes sobre a educacao physica", dirige-se diretamente ao que deve ser o comportamento adequado da mulher: "vesti-vos, alimentae-vos regradamente e compenetrae-vos d'esta verdade que sois esposas, mais, e que sois mais a alma de vossas familias do que das sociedades". É importante notar também que até o século XVIII o ensino na colonia portuguesa, limitado as escolas elementares, era controlado pelos jesuítas. Em meados do século XVIII os jesuítas sao perseguidos em Portugal - e conseqüentemente no Brasil - através das sangoes de Marqués de Pombal (14). Com a proibigao do trabalho educacional dos jesuítas, o clima intelectual brasiieiro fica mais rarefeito, só movimentado pela entrada, embora pequeña e restrita, de ideologías liberáis originadas no contexto da Revolugao Francesa e da Independencia dos Estados Unidos. No século XIX, contudo, a intelectualidade brasileira se encontra em meio a um fluir de idéias que ofereciam a possibilidade da construgao de novos discursos filosóficos, extremamente ecléticos, no dizer de Alberti (1999). Notadamente a partir da chegada dos pensamentos evolucionista, materialista e, principalmente, do positivismo ao Brasil (este já no último quartel do século XIX), Alberti observa, ñas teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, urna crescente objetivagao da alma, tirando-a das maos de Deus e gradativamente colocando-a sob o controle rigoroso da ciencia. Neste contexto, julgamos fundamental o exame das idéias em desenvolvimento na Europa, especialmente na Franga, que influenciaram significativamente a consolidagao do campo médico brasiieiro. Principáis teorias européias influentes no ensino médico brasiieiro A consolidagao da psiquiatría enquanto especialidade médica no Brasil acompanhou o desenvolvimento desta disciplina no cenário europeu. Assim como na Europa, o nascimento da psiquiatría aqui está estritamente vinculado ao nascimento do asilo enquanto instituigao psiquiátrica, de modo que a inauguragao do Hospicio Pedro I I , no Rio de Janeiro, em 1852, é muito freqüentemente considerada o marco inicial do exercício da atividade psiquiátrica entre nos. A construgao do Hospicio, inserida no emergente projeto de urbanizagao e ordenagao da cidade, simbolizou, entre outras coisas, urna tentativa do nascente Imperio brasiieiro em mostrar-se em consonancia com a modernidade européia. Neste momento, as faculdades de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia — que, como dito, foram criadas em 1832, sucedendo aos antigos colegios médicocirúrgicos — possuíam urna cátedra de Medicina Legal (Russo, 1993). Logo em seguida foi criada a cadeira de Higiene, urna das principáis áreas de pesquisa, sobretudo no Rio de Janeiro. Somente em 1881, numa nova reforma do ensino médico (decreto 3024), foi criada a cadeira de Clínica Psiquiátrica e Molestias Mentáis, que, no caso da Faculdade do Rio de Janeiro, foi interinamente ocupada pelo também catedrático de Medicina Legal á época, Dr. Nuno de Andrade, diretor médico do hospicio. Conforme Venancio (2003), somente em 1887 a nova cátedra e a diregao do Hospicio serao ocupadas por aquele que é considerado o primeiro psiquiatra brasiieiro, Joao Carlos Teixeira Brandao (1854-1921). Observamos, pois, que a Psiquiatría se constituí no Brasil por um lado no mesmo movimento do que ocorrera na Franga - a partir da existencia do hospicio e do trabalho com pessoas internadas e classificadas como doentes mentáis (e nao mais os loucos a serem considerados como "diferentes" ñas rúas da cidade ou colocados ñas naus dos desvairados). Por outro lado, ela se constituí a partir da Medicina Legal, ou seja, as questoes da inimputabilidade e da periculosidade do réu ou criminoso sao questoes Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.htm Jacó-Vilela, A. M.; Esch, C.F.; Coelho, D.A.M. & Rezende, M.S. (2004). Os estudos médicos no Brasil no século XIX: contribuigoes á Psicología. Memorándum, 7, 138-150. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.ritm 144 prementes á época e fazem com que a investigagao dos atributos do individuo seja uma questao relevante na intersegao da Medicina com o Direito, o que vai justificar, por exemplo, a relevancia da teoria da degenerescencia, como veremos abaixo. Esta e outras idéias em desenvolvimento na Europa, e ainda mais especialmente na Franga, influenciaram significativamente a consolidagao do campo médico brasileiro, de modo que grande parte das teses elaboradas pelos alunos da Faculdade de Medicina para sua conclusao de curso é muito freqüentemente considerada uma mera reprodugao ou compilagao de autores franceses, dentre os quais se situam, por exemplo, Pinel, Esquirol, Morel, Ribot, tese com a qual nao concordamos por partilharmos do principio da "tradugao" tao bem exposto por Schwarz (1992) (vide nota 10). Philippe Pinel (1745-1826) foi o primeiro autor a estudar a loucura de forma empírica, contrapondo-se as concepgoes teológicas e metafísicas desenvolvidas até entao, as quais, vendo os loucos como vítimas de possessoes demoníacas ou de outros fenómenos sobrenaturais, nao os encaravam como doentes e, portanto, como pertencentes á esfera médica. (15) Representante do espirito iluminista de sua época, Pinel defendía como principios básicos de orientagao de um médico na busca da verdade os mesmos seguidos pelas outras ciencias naturais para este fim (Teixeira, 1997). Assim sendo, preconizava que os médicos partissem do estudo dos síntomas apresentados para, a partir daí, se chegar a um quadro clínico mais geral, o que constituiría o método a ser utilizado na investigagao e análise das doengas mentáis. Segundo Teixeira (1997) as nogóes introduzidas por Pinel consolidaram novos conceitos operatorios: (1) uma semiología psiquiátrica, a partir do olhar do alienista que convive, observa e descreve minuciosamente o comportamento dos doentes; (2) uma nosografía, com a conhecida divisao pineliana em quatro grandes classes, a saber: a mania, a melancolía, a demencia e o idiotismo; (3) uma abordagem clínica, que parte dos síntomas para chegar aos quadros clínicos; e (4) uma terapéutica específica da loucura, voltada para o tratamento das causas corporais e, principalmente, das chamadas causas moráis, isto é, das paixóes descontroladas, ardentes ou pervertidas que estariam na base da insanidade (P- 46). O tratamento moral, proposto por Pinel como terapéutica específica para a loucura, defendía a regularizagao e conseqüente disciplinarizagao dos hábitos dos internos, o que se traduzia, por exemplo, no estabelecimento de horarios para todas as atividades, na definigao de uma rotina precisa para os trabalhos, na administragao dos momentos de recreio, enfim, no controle de tudo aquilo que contribuísse para uma rigorosa ordenagao do seu quotidiano. Além disso, a restrigao aos jogos que exaltassem as paixóes e o reconhecimento e sujeigao á autoridade do médico, também eram tidos como elementos fundamentáis abarcados nesta proposta terapéutica (Castel, 1978). Na concepgao de loucura desenvolvida por Pinel estava presente a idéia de perturbagao do entendimento, uma disfungao do intelecto ou faculdade de pensar, onde o delirio figuraría como um síntoma necessário para o diagnóstico da doenga mental. Jean-Etienne Dominique Esquirol (1772-1840), complementando Pinel, amplia a sua nogao de loucura quando a descreve também como uma "aberragao profunda dos sentimentos moráis" (Castel, 1978, p. 270), e, assim, reafirma a importancia do asilo enquanto o único local apropriado para o tratamento moral dos alienados. A partir de Esquirol, o afastamento social do louco passa a ser considerado terapéutico por si só, e o hospicio passa a ser visto definitivamente Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.htm Jacó-Vilela, A. M.; Esch, C.F.; Coelho, D.A.M. & Rezende, M.S. (2004). Os estudos médicos no Brasil no século XIX: contribuigoes á Psicología. Memorándum, 7, 138-150. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.ritm 145 como um instrumento necessário para a intervengao médica na loucura, do qual, portanto, o alienista nao poderla prescindir. A Teoria da Degenerescencia, desenvolvida por Bénédict-Augustin Morel (18091873), foi urna das grandes influencias no meio médico brasileiro da segunda metade do século XIX e inicios do XX, principalmente por sua relevancia para a Medicina Legal, como exposto ácima. Defende a idéia da transmissao de urna predisposigao do organismo á degenerescencia, que pode ser identificada pela ocorréncia de tragos físicos e moráis característicos aos degenerados. Leonel Gomes Velho, em sua tese "Do degenerado e sua capacidade civil", de 1905, apresenta as idéias de Morel e de alguns de seus seguidores, procurando inicialmente apontar as diferentes definigoes de "degenerado" e de como este se encontra presente em todos os recantos da vida - nao existem só os degenerados debéis, pouco aptos para as lutas pela existencia, mas também os superiores, aqueles individuos origináis, bizarros e excéntricos que, apesar de serem triunfantes na vida e até ocuparem elevadas posigoes sociais, sao tao anormais sob o ponto de vista cerebral quanto os idiotas. Devido a este fato, os debéis, por serem impotentes, sao menos prejudiciais á sociedade que os degenerados superiores (s/esp). Assim, a degenerescencia nao estaría ligada somente á alienagao mental, mas á idéia de desvio de modo geral. As causas da degeneragao sao pensadas como podendo ser tanto físicas quanto moráis. Como possíveis causas físicas sao apontadas a insalubridade dos climas, a má higiene e a insuficiencia das moradias e da nutrigao, sendo atribuida especial importancia ao meio enquanto produtor de condigoes propicias á instalagao de processos degenerativos. Como causas moráis, por outro lado, figuram a ignorancia, a avareza, a sede de prazeres, a prostituigao, os fanatismos, entre muitas outras (Serpa Jr., 1998, p.18). No entanto, também sao apontadas com freqüéncia lesoes físicas, moráis e intelectuais como sendo conseqüéncias do processo de degeneragao, o que demonstra o caráter paradoxal deste processo, onde causa e efeito sao muitas vezes confundidos, num processo de retroalimentagao. Urna das formas encontradas pela medicina para intervengao neste processo foi a higiene, mencionada por Morel como possibilidade de tratamento para a degenerescencia. A higiene moral empenhava-se na moralizagao dos hábitos e costumes do degenerado, a partir da disseminagao de urna leí moral que, sendo universal, seria o principal fator de uniao da especie humana. Á higiene física nao é atribuida menor importancia, pois se proclamava urna interdependencia do físico e do moral, já que somente em um organismo saudável a moral poderia desenvolverse adequadamente. É interessante notar que a problematizagao acerca das relagoes entre o físico e o moral é bastante representativa das discussoes em voga neste momento. Como já vimos, com a chegada dos modelos científicos em vigor na Europa, como o positivismo, e o progressivo abandono do "discurso da alma", pela entrada em cena do discurso biologizante, a definigao de urna localizagao física das fungoes psíquicas - ou seja, do que no momento anterior era entendido como "atributos da alma" passa a ser o objetivo primordial perseguido pelos médicos de entao. Este é um momento que Keide e Jacó-Vilela (1999) denominam como um processo crescente de fisiologizagao da alma. As idéias psicológicas em desenvolvimento na Franga e na Alemanha, traduzidas, respectivamente, ñas figuras de Ribot e Wundt, também exerceram influencia na produgao académica de nossos médicos. Wilhelm Wundt (1832-1920), fundador do Laboratorio de Psicología em Leipzig em 1879 é reconhecido, de urna maneira geral, como o fundador da Psicología Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.htm Jacó-Vilela, A. M.; Esch, C.F.; Coelho, D.A.M. & Rezende, M.S. (2004). Os estudos médicos no Brasil no século XIX: contribuigoes á Psicologia. Memorándum, 7, 138-150. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.ritm 146 científica, embora este rótulo muitas vezes deixe ocultas as condigoes de possibilidade para este papel criadas por trabalhos anteriores, como os de Muller e de Fechner, bem como enfatiza a vertente experimental de seu trabalho, desdenhando sua "psicologia dos povos". Esta será a face de seu trabalho que chega ao Brasil e propiciará, já nos principios do século XX, a montagem de laboratorios. Na Franga, por sua vez, a Sociedade de Psicologia Fisiológica, fundada em 1885, em Paris, sob a lideranga de Theodule Ribot (1839-1916), surge por sua vez em contraposigao á vertente filosófica anteriormente predominante designada como "esplritualismo" (16) e pretendía contribuir para urna autonomizagao da psicologia, afastando-a da filosofía e possibilitando, a partir de um maior comprometimento com a fisiología, que obtivesse um estatuto científico. Assim, ressalvadas as diferengas entre os dois autores ácima, observa-se que apresentavam em comum a compreensao de que a psicologia fisiológica deveria basear-se em fatos concretos, evitando quaisquer especulagoes de cunho filosófico que a aproximassem de urna metafísica, pois somente desta forma poderia ser, de fato, enquadrada no conjunto das ciencias. Com este intuito, buscava-se estabelecer urna correspondencia entre os fenómenos psicológicos e fisiológicos, afirmando-se, com base nos novos conhecimentos acerca do sistema nervoso, que eram de urna mesma natureza, fundamentando-se assim orgánicamente a atividade psíquica. Ribot, contudo, terá maior presenga entre os médicos brasileiros pois sua psicologia era mais centrada na observagao da patología, que nao via como negagao ou oposigao ao funcionamento normal, mas como degradagao deste. Seus estudos dirigidos para a patología mental tém grande importancia para esta vertente da psicologia experimental européia, contribuindo para o fortalecimento de urna abordagem clínica por parte de seus teóricos. Partia-se do principio de que, a nao ser por urna variagao quantitativa, os fenómenos patológicos sao idénticos aos normáis, o que significa, em outras palavras, que a patología poderia viabilizar estudos sobre as condigoes de normalidade, já que seria equivalente a estas em urna outra escala. Assis, em sua tese "Das emogoes", de 1892, após dizer que a psicologia experimental talvez explique a insensibilidade afetiva, principalmente pela análise das formas de "ataque", de alteragoes da personalidade, diz que O objeto, portanto, da psychologia physiologica é descrever os phenomenos do mundo mental e investigar as leis que os regem. (...) na sciencia mental, o psycho-physiologico nada tem a ver com a alma e com as suas faculdades, substancia ou causas metaphysicas (s/esp). Esta valorizagao da psicopatologia foi um dos elementos fundamentáis na definigao de um caráter eminentemente intervencionista da psicologia fisiológica, caráter este que a distinguirá de outras vertentes da psicologia experimental - como a própria psicologia alema - e que a tornará especialmente interessante para a realidade brasileira. A perspectiva intervencionista oferecida por este modelo será, portanto, mais freqüentemente adotada pelos intelectuais brasileiros, que, na busca constante de solugoes para os problemas da cidade, estarao sempre propondo fazer uso de técnicas de intervengao (Jacó-Vilela, 2000). Considerares Fináis O processo de institucionalizagao do ensino médico no país foi instrumento relevante para o caráter científico e moderno da medicina praticada no Brasil. Um de seus fatores mais relevantes, a compreensao sobre o estatuto da alma, releva urna continua mudanga da relagao alma versus corpo, a fisiologizagao de antigos atributos da alma possibilitando aos médicos urna maior autoridade para assumirem urna regulagao das condutas humanas e conseqüentemente dos fenómenos sociais relativos á saúde, saneamento, habitagao e outros. Afinal, ninguém melhor que médicos - que, é importante ressaltar, atuavam em acordó Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.htm Jacó-Vilela, A. M.; Esch, C.F.; Coelho, D.A.M. & Rezende, M.S. (2004). Os estudos médicos no Brasil no século XIX: contribuigoes á Psicología. Memorándum, 7, 138-150. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.ritm 147 com os interesses do Estado - para organizar urna sociedade composta de pessoas cujas condutas, sentimentos e motivagoes sao regidos por processos fisiológicos. Considerava-se a conduta anti-higiénica dos habitantes como subversiva e um empecilho fundamental á saúde e á organizagao da cidade. As técnicas higiénicas da Medicina Social concretizaram-se por dispositivos de persuasao que procuravam mostrar as vantagens (diminuigao da mortalidade dos filhos, mais saúde, e vida mais longa) de urna submissao as suas ordens. Santos, por exemplo, em sua tese de 1857 intitulada Que régimen será mais conveniente para a creagáo dos expostos da Santa Casa de Misericordia, atientas nossas circunstancias especiaes: a criacao em comum dentro do Hospicio, ou a privada em casas particulares? diz: Se a cifra dos meninos engeitados, e educados á custa da sociedade, cresceu tao prodigiosamente, há trinta annos, nao é porque de anno a anno haja um numero maior de meninos expostos e engeitados; é porque morrem muito menos, gragas as applicagoes felizes da hygiene publica á educagao das changas (Santos, 1857, p. 24). Ou seja, os médicos recorrern aos saberes psicológicos para exercerem sua fungao, quer aqueles saberes oriundos da tradigao brasileira quer, principalmente, os novos conhecimentos científicos em desenvolvimento na Europa. A sociedade brasileira no século XIX atravessou urna profunda transformagao económica e social desde a chegada da familia real no comego do século. Nesse contexto, a medicina foi chamada para contribuir na solugao de diversos problemas, incluindo-se ai a preocupagao com fenómenos que poderíamos chamar de "psicológicos". Assim, é possível dizer que o século XIX foi para a Psicología o momento fundamental que preparou as condigóes para sua constituigao e posterior autonomizagao como saber independente. Referencias bibiográficas Fontes primarias Assis, A. P. (1892). Das emogóes. Rio de Janeiro: Imprensa Mont'Alverne; Ferreira & Cia. Banca. Duque, F. B. (1864). Hygiene da changa, do nascimento á queda do cordáo umbilical. Rio de Janeiro: Typ. Unniversal de Laemmert. Santos, L. D. (1857). Que régimen será mais conveniente para a creagáo dos expostos da Santa Casa de Misericordia, atientas nossas circunstancias especiaes: a criagáo em comum dentro do Hospicio, ou a privada em casas particulares?. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert. Ubatuba, M. P. S. (1845). Algumas consideragóes sobre a educagam physica. Rio de Janeiro: Typ. Commercial E. C. dos Santos. Velho, L. G. (1895). Do degenerado e sua capacidade civil. Rio de Janeiro: Tip. Correa Martins. Fontes secundarias Alberti, S. (1999) Historia da Psicología: origens nacionais. Em A.M. Jacó-Vilela; H.C. Rodrigues; F. Jabur (Org.s). Clio-Psyché: historias da psicología no Brasil, (pp.237-246). Rio de Janeiro: UERJ; NAPE. Antunes, M. A. M. (1998). A psicología no Brasil: leitura histórica sobre sua constituigao. Sao Paulo: Unimarco; Educ. Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.htm Jacó-Vilela, A. M.; Esch, C.F.; Coelho, D.A.M. & Rezende, M.S. (2004). Os estudos médicos no Brasil no século XIX: contribuigoes á Psicología. Memorándum, 7, 138-150. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.ritm 148 Castel, R. (1978) A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Rio de Janeiro: Graal. Costa, J. F. (1979). Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal. Fausto, B. (1994). Historia do Brasil. Sao Paulo: Edusp. Jacó-Vilela, A. M. (2000). Psicólogos estrangeiros no Brasil. Cadernos do IPUB, 6 (18), 37-52. Keide, R. A. & Jacó-Vilela, A. M. (1999). Mens in corpore: o positivismo e o discurso psicológicodo século XIX no Brasil. Em A.M. Jacó-Vilela; H.C. Rodrigues; F. Jabur (Org.s). Clio-Psyché: historias da psicología no Brasil, (pp.261-180). Rio de Janeiro: UERJ; NAPE. Machado, R. et al. (1978). Danacao da norma: a medicina social e a constituigáo da psiquiatría no Brasil. Rio de Janeiro: Graal. Maia, G. D. (1996). Biografía de urna faculdade. Historia e estórias da Faculdade de Medicina da Praia Vermelha. Sao Paulo: Atheneu. Rossi, P. (1998). El nacimiento de la ciencia moderna en Europa. Barcelona: Crítica. Russo, J. A. (1993). Psiquiatría, manicomio e cidadania no Brasil. Em J. Russo et al. (Org.s). Duzentos anos de psiquiatría. 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Notas (1) Nao poderiam ser eleitos membros das Cámaras pessoas mecánicas, mercadores, filhos do reino, judeus, soldados nem degredados, e sim nobres somente, naturais da térra e descendentes dos conquistadores, segundo diversos alvarás e cartas regias que vao de 1643 a 1747.(Garda, 1975, citado por Costa, 1979, p. 40). Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.htm Jacó-Vilela, A. M.; Esch, C.F.; Coelho, D.A.M. & Rezende, M.S. (2004). Os estudos médicos no Brasil no século XIX: contribuigoes á Psicología. Memorándum, 7, 138-150. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.ritm 149 (2) Revolugao Pernambucana: revolta de cunho liberal que conseguiu congregar em torno de um ideal de emancipagáo política e republicanismo, populares, intelectuais, militares e religiosos. Sabinada: movimento promovido por fazendeiros e militares baianos descontentes com as medidas impostas pela Regencia. Nao incluía a defesa de interesses populares como a libertagáo de escravos e outros. Cabanagem: movimento liderado por fazendeiros e comerciantes paraenses, gerado pelo inconformismo contra medidas impostas pelo poder central. Teve ampia participagáo da populagáo pobre, conhecida como cabanos. Balaiada: revolta liderada por escravos e sertanejos pobres que viviam no Maranháo. Receberam apoio de liberáis, pessoas ricas e de prestigio social, descontentes com o poder central. (3) A fundagáo do Instituto Histórico e Geográfico em 1838, já no período imperial e de forma associada financeira e intelectualmente ao monarca, surgiu da necessidade de se criar urna historia e inventar urna memoria para a nagáo recémfundada. (4) Projeto elaborado por Manuel Luís Alvares de Carvalho, "diretor dos estudos de Medicina e Cirurgia da Corte e do Estado do Brasil", físico-mor do Reino, e aprovado pelo decreto Io de abril de 1813. O curso durava cinco anos, estando as disciplinas distribuidas da seguinte maneira: Primeiro ano - Anatomía Geral; Química farmacéutica e nogoes de farmacia; Segundo ano - Anatomía (repetigáo) e Fisiología; Terceiro ano: Higiene, etiología, patología e terapéutica; Quarto ano: Instrugoes cirúrgicas e operagoes, Arte obstétrica, teoría e prática; Quinto ano: Medicina (exercícios práticos ñas enfermarías) e Arte obstétrica (repetigao). Posteriormente, determinou-se que os alunos da Academia do Rio de Janeiro tivessem aulas de Botánica, Patología cirúrgica e de materia médica e farmacéutica. (5) Alguns projetos de reforma do ensino médico foram apresentados na década de 20 até culminar no projeto aprovado, em 1832, que cria as Faculdades. Para maiores detalhes, ver Santos Filho (1991, p. 87-88). (6) Em 1835 é transformada em Academia Imperial de Medicina, que hoje é a Academia Nacional de Medicina (Maia, 1996). (7) Este detalhe é revelador da influencia francesa á época. (8) A organizagáo do curso era a seguinte: Primeiro ano: Física médica; Botánica médica e principios elementares de zoología. Segundo ano: Química médica e principios elementares de Mineralogía; Anatomía geral e descritiva. Terceiro ano: Anatomía; Fisiología. Quarto ano: Patología externa; Patología interna; Farmacia, Materia médica, especialmente brasileira, Terapéutica e arte de formular. Quinto ano: Anatomía topográfica, Medicina operatoria e aparelhos; Partos, molestias de mulheres pejadas e paridas e de meninos recém-nascidos. Sexto ano: Higiene e Historia da Medicina; Medicina Legal. E ainda: Clínica externa e Anatomía patológica respectiva, a todos os estudantes do segundo ao sexto anos; e Clínica interna e Anatomía patológica respectiva aos do quinto e sexto anos. (9) No Rio de Janeiro, a primeira sede do curso, em 1808, foi o Hospital Real Militar; em 1813, com a ampliagáo do ensino, as aulas passaram a ocupar também a Santa Casa de Misericordia. Em 1856 a Faculdade muda-se para o predio onde funcionava o Recolhimento das Órfás, mantido pela Santa Casa. Permanece neste local até a aquisigáo de sede própria, em 1918, quando é inaugurada a "nova Faculdade Nacional de Medicina", localizada na Praia Vermelha. Em 1973, a Faculdade muda-se novamente, agora para a Cidade Universitaria da liria do Fundáo, local onde permanece até hoje. (10) Entretanto, é oportuno lembrar, com Schwarz (1992), que esta importagáo implica nova leitura do que foi importado (Conferir capítulo As idéias fora do lugar). (11) Consideramos oportuna a comparagáo com os atuais "médicos de familia", categoría criada no Brasil após o excesso de privilegios á especializagáo e que é compreendida como "assimilagáo" do modelo cubano, desconhecendo-se a experiencia brasileira previa neste modelo. Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.htm Jacó-Vilela, A. M.; Esch, C.F.; Coelho, D.A.M. & Rezende, M.S. (2004). Os estudos médicos no Brasil no século XIX: contribuigoes á Psicología. Memorándum, 7, 138-150. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.ritm 150 (12) Formado pelo escocés John Paterson, o alemao nascido em Portugal Oto Wucherer, e o portugués Silva Lima (Santos Filho, 1991). (13) Embora nao pretendamos detalhar aqui nossas investigagoes com as fontes primarias, consideramos importante salientar que, em nossa pesquisa sobre este periódico, os artigos foram divididos em 11 categorías, quais sejam: Alcoolismo/ Drogas; Sexualidade; Clima/ Topología; Psicología; Higiene; Infancia/ Juventude; Saneamento; Servigos e Assisténcia; Ocorréncias Psíquicas/ Psiquismo; Instituigoes e Doengas. Em nossa análise destas, por sua vez, temos confirmado o caráter eminentemente didático que o Brazil-Médico assume. (14) Fortemente influenciado pelo Iluminismo, Pombal - ministro de Estado de D. José I - se insere no quadro do despotismo esclarecido, em que os monarcas, sem abandonar o poder absolutista, adotam algumas práticas e principios liberáis. As ordens religiosas, donas de um grande patrimonio de bens, faziam constantes interferencias em assuntos do Estado. Pombal, marcado pelo anticlericalismo típico do Iluminismo, promoveu a expulsao dos jesuítas de Portugal e de seus dominios em 1759. (15) Até entao os loucos viviam pelas rúas ou eram objeto de internamento nos hospitais gerais, ao cuidado das irmas de caridade, ou seja, a loucura nao era objeto de interesse da ciencia. (16) Esta vertente teve como principáis representantes Pierre-Paul Royer-Collard, Victor Cousin e Théodore Jouffroy. Nota sobre os autores Ana María Jacó-Vilela é pesquisadora do Núcleo Clio-Psyché de Estudos e pesquisas em Historia da Psicología do Programa de Pós-Graduagao em Psicología Social da UERJ e desenvolve atualmente pesquisa sobre a contribuigao de católicos e médicos á constituigao da Psicología no Brasil. Contato: [email protected] Cristiane Ferreira Esch, Daniela Albrecht Marques Coelho e Marcelo Santos Rezende foram bolsistas de Iniciagao Científica (CNPq e Faperj) da referida pesquisa, atualmente psicólogos formados. Contato: [email protected] Data de recebimento: 16/08/2004 Data de aceite: 20/10/2004 Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/jacovilela01.htm Bomfim, E. M. & Albergaría, M. T. A. (2004). Origem e relevancia de um laboratorio de psicología 151 no Brasil na década de 1950. Memorándum, 7, 151-164. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Origem e relevancia de um laboratorio de psicología no Brasil na década de 1950 Origin and social relevance of a laboratory of psychology in Brazil in the 1950's Elizabeth de Meló Bomfim Maria Teresa Antunes Albergaría Universidade Federal de Sao Joao del-Rei Brasil Resumo 0 artigo ancora-se ñas investigagoes sobre as condigoes de surgimento e a relevancia de um laboratorio de psicología da década de 1950 em urna instituigao confessional situada no interior do Estado de Minas Gerais. Trata-se da antiga Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei que, em 1955, adquiriu, da Italia, modernos equipamentos nos moldes dos existentes na Europa pretendendo introduzir melhorias no ensino ministrado nos cursos. Desdobrando suas atividades, o laboratorio tornou-se o instrumento utilizado pelos salesianos para a geragao de um Instituto de Psicología e Pedagogía, de um curso de Orientagao Educacional e de um ativo servigo de orientagao educacional e profissional. Palavras-chave: historia da psicología no Brasil; historia dos laboratorios de psicología; historia dos salesianos no Brasil. Abstract This article investigates the relevance of a laboratory of psychology and the conditions under which they were created in the 1950's in a religious institution in a country town in the state of Minas Gerais. The institution was the former Dom Bosco College of Philosophy, Sciences and Letters of Sao Joao del-Rei, which, in 1955, acquired, from Italy, some modern equipment similar to the ones used in Europe at the time, in an attempt at improving the courses that were taught there. Unfolding its activities, the laboratory became the instrument the Salesian brotherhood used to créate an Institute of Psychology and Pedagogy and a Course in Vocational Guidance as well as a group which specialized in educational and professional orientation. Keywords: history of psychology in Brazil; history of the Psychology laboratories; history of the Salesian brotherhood in Brazil. Introducao Em meados do sáculo XX, os salesianos, membros da terceira maior congregagao católica do mundo cujo patrono é Francisco de Sales, realizaram a importagao de um moderno laboratorio de psicología para a, entao recente e hoje já extinta, Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei. Objetivando desenvolver conhecimentos e pesquisas em psicología semelhantes, principalmente, aqueles desenvolvidos nos laboratorios de psicología europeus, adquiriram aparelhos, testes e equipamentos nos moldes dos existentes no Instituto de Psicología de Milao, no Instituto Superior de Pedagogía de Turim, no Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Bomfim, E. M. & Albergaría, M. T. A. (2004). Origem e relevancia de um laboratorio de psicología 152 no Brasil na década de 1950. Memorándum, 7, 151-164. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Instituto Jean Jacques Rousseau, no Instituto de Psicología de Louvain e no Instituto Católico de Paris. A aquisigao do laboratorio reorientou o conteúdo programático do curso de pedagogía existente, fortalecendo as temáticas de pesquisa e prática pertinentes á psicología. Com o desenrolar das atividades do laboratorio, foi possível a fundagao de um instituto de psicología e pedagogía, a criagao de um curso de Orientagao Educacional e o desenvolvimento de um ativo servigo de orientagao educacional e profissional. Neste trabalho, parte integrante de um projeto maior, nossa intengao foi a de debrugarmo-nos sobre as series documentáis pertencentes ao acervo desse antigo Laboratorio de Psicología da Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei para a análise da origem e da constituigao do referido laboratorio. Como responsáveis pelo projeto de levantamento, análise e disponibilizagao desse acervo, respaldamo-nos, neste artigo, na perspectiva metodológica da historia documental (Carvalho, 1976). Assim, relacionamos a constituigao do laboratorio com sua origem histórica e com seus desdobramentos na década de 1950, a partir da documentagao existente. O atual projeto de levantamento, análise e disponibilizagao do acervo, no qual estamos envolvidas, visa restaurar e higienizar as documentagoes existentes e elaborar, num catálogo, o registro do material, tendo em vista a sua disponibilizagao para consultas e pesquisas. Urna futura informatizagao do acervo possibilitará que os dados estejam disponíveis em redes computadorizadas oferecendo, assim, urna ampia divulgagao da documentagao que nao seja confidencial. Pretende-se, também, criar um centro de documentagao e historia da psicología que funcionará como urna unidade de apoio documental para o desenvolvimento de estudos e pesquisas em psicología, reunindo informagoes e documentos relevantes na área. Objetivando ser um órgao de atengao as necessidades de estudiosos e pesquisadores de psicología e áreas afins, o centro de documentagao e historia da psicología poderá estabelecer lagos de cooperagao e intercambio ativos com instituigoes congéneres, nacionais e estrangeiras, no sentido de promover campanhas em prol dos centros de documentagao de psicología, fazer convergir os acervos da área porventura desativados ou com pequeña utilizagao e incentivar publicagoes em historia da psicología no Brasil. As origens do laboratorio A congregagao dos salesianos foi fundada pelo italiano Joao Melchior Bosco (18151888), que recebeu, após ser consagrado sacerdote católico, conforme o costume italiano, o nome de Dom Bosco. Dom Bosco era um padre muito afeigoado á leitura e á educagao e consta que aproveitava todo o tempo disponível para a realizagao de seus estudos. Estudava enquanto levava o rebanho ao pasto, durante as refeigoes e antes de dormir. Aprendeu as línguas francesa e hebraica e estudou as obras de Cornélio Nepos (9924 a.C), Cicero (106-43 a.C), Salústio (86-35 a.C), Tito Lívio (59 a.C-17 d.C), Tácito (59-119 d.C), Ovidio (43 a.C.-18 d.C), Virgilio (70 -19 a.C.) e Horacio Flacco (65-8 a.C). Leu, também, as obras do beneditino Dom Calmet (16721757), do historiador judeu Flávio Josefo (37-101 d.C), os volumes sobre a defesa ao cristianismo de Denis-Luc Frayssinous (1765-1841), o dominicano Iácopo Passavanti (1300-1357), o teólogo jesuíta Cornelius Lapide (1567-1637), além de Jaime Luciano Balmes (1810-1848) e Domenico Cavalca (1270-1342). Gostava de recitar trechos das obras de Dante, Petrarca, Tasso, Parini e Monti, numa evidente manifestagao de sua boa memoria. Estudou no seminario de Chieri, cidade próxima de Turim, e, após ter-se consagrado sacerdote, em 1841, ingressou no Convento Eclesiástico de Turim, dando inicio á sua obra sacerdotal. Os oratorios festivos, urna de suas contribuigoes, eram reunioes com criangas e jovens desamparados que, aos domingos e dias festivos, se agregavam para atividades de lazer e de aprendizagem da fé crista. Era o inicio do sistema Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Bomfim, E. M. & Albergaría, M. T. A. (2004). Origem e relevancia de um laboratorio de psicología 153 no Brasil na década de 1950. Memorándum, 7, 151-164. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm preventivo - melhor prevenir do que remediar -, que seria adotado ñas atividades educativas dos salesianos apoiadas em tres pilares: razao, amor e religiao. Ao fundar a congregagao, Dom Bosco insistiu que os seus sacerdotes estudassem. A partir da reforma educacional italiana de 13 de novembro de 1854, quando foi promulgada a Lei Casati - considerada laica e instituida num momento de hostilidade em relagao á influencia da Igreja Católica -, empenhou-se para que seus sacerdotes, sem perda de tempo, possuíssem os títulos e láureas legáis e evitassem, assim, o fechamento das instituigoes escolares por falta de professores. Era seu desejo que seus padres se apresentassem para os exames de licenga normal, urna especie de curso de magisterio superior existente na Italia, ou que se inscrevessem nos cursos das Faculdades de Filosofía, Ciencias, Letras e Matemática da Regia Universidade de Turim. Em 1872, os salesianos passaram a contar com a colaboragao feminina, a partir dos trabalhos das jovens Maria Verzotti, Francesca Riccardi e Luigina Carpanera, integrantes do Oratorio das Filhas de Maria Auxiliadora de Turim. Era o inicio da obra da congregagao católica Filhas de Maria Auxiliadora. A preocupagao de Dom Bosco com o aperfeigoamento educacional de seus sacerdotes era grande e, antes de sua morte, manifestou o desejo de enviá-los para as universidades romanas. Contudo, isso só ocorreria, em 1890, após sua morte, quando seus sucessores, Pe. Miguel Rúa, Pe. Paulo Albera e Pe. Pedro Ricaldone, encarregaram-se da continuidade de sua obra que, entao, já alcangara varios países do mundo. No Brasil, após a designagao, por Dom Bosco, do Padre Lasagna como inspetor para o Brasil e o Uruguai, em 1881, foram criados varios colegios. Entre eles, figuram o Colegio Santa Rosa, em Niterói (1885), o Liceu Coragao de Jesús, em Sao Paulo (1885) e o Liceu de Artes e Oficios, em Campiñas (1897). Em 1900 foi criado o Liceu Salesiano do Salvador (1). E, novos colegios foram acrescidos como os de Sao Paulo, Santa Catarina e no Espirito Santo.(2). Na Italia, a partir da década de 1930, os salesianos promoveram mudangas na orientagao relativa aos títulos académicos, em fungao dos novos métodos e recursos técnicos existentes, privilegiando, também, a formagao em cursos de pedagogía. Neste sentido: ... notamos dois grandes passos: Io As insistencias para que se dé a máxima atengao e importancia á consecugao dos títulos académicos, até mesmos os relacionados com Artes, Profissoes e Agricultura. As estatísticas em 1939 fizeram ver que mais de 900.000 trabajadores (operarios - artífices - agricultores) passaram pelas Escolas Profissionais Salesianas nos 87 anos de existencia. Era necessário estar á altura do progresso, com novos métodos e recursos da técnica. 2o O Conselheiro Escolar Geral a firmar a orientagao de enviar os salesianos a freqüentar os cursos universitarios ñas universidades de maior renome, principalmente pedagógico (Faculdade Dom Bosco, s/d, p. 5-6). Em 1940, conseguem a aprovagao do Ateneu Eclesiástico Salesiano, em Turim, onde eram ministrados os cursos de Filosofía, Teología e Direito Canónico. Do investimento nos cursos de pedagogía, resultou, em 1941, a fundagao do Instituto Superior de Pedagogía, que objetivava difundir os principios da pedagogía crista, as propostas psicológicas e formativas de Francisco de Sales e o sistema pedagógico de Dom Bosco. O Instituto Superior de Pedagogía cresceu e, aos poucos, foram criados os institutos de Psicología Experimental, de Biología, de Física e Química, de Antropología e Etnografía e de Ciencias Sociais, gerando, na Italia de 1956, o Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Bomfim, E. M. & Albergaría, M. T. A. (2004). Origem e relevancia de um laboratorio de psicología 154 no Brasil na década de 1950. Memorándum, 7, 151-164. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Instituto Superior de Ciencias Pedagógicas. Com um modelo de ensino superior estruturado, urgia incrementá-lo nos varios países que dispunham dos servigos salesianos. No Brasil, e mais específicamente em Sao Joao del-Rei, os salesianos haviam criado, em 1940, o Colegio Sao Joao, urna instituigao escolar destinada ao aspirantado sacerdotal. Para sua fundagao, foi designado o padre Francisco Gongalves, que havia cursado o Colegio Sao Miguel em Lavrinhas (Sao Paulo) e desenvolvido seus estudos teológicos em Sao Paulo. Sua morte prematura, em 1947, gerou sua substituigao pelo Padre José Vieira de Vasconcellos que, entre outras fungoes, ocuparía, posteriormente, o cargo de presidente do Conselho Federal de Educagao. O Colegio Sao Joao possibilitou as condigoes de fundagao, em 1948, do Instituto de Filosofía e Pedagogía, urna instituigao educacional destinada á formagao, a nivel superior, dos jovens aspirantes ao sacerdocio. O Instituto de Filosofía e Pedagogía foi um passo para a abertura, em nivel superior, de cursos destinados aos leigos da regiao. Assim, em 1954, nascia a Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei. A Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei manteve, inicialmente, os cursos de Filosofía, Letras e Pedagogía e era contemporánea da Faculdade Salesiana de Lorena (Sao Paulo), fundada em 1952, e da Faculdade Auxilium, mantida pelas irmas da congregagao Filhas de Maria Auxiliadora. Tinha na Faculdade de Lorena seu modelo mais próximo. Como os salesianos de Lorena haviam solicitado a Giacomo Lorenzini, entao diretor do Instituto de Pedagogía do Ateneu Salesiano em Turim, a compra de um laboratorio de psicología, semelhante iniciativa foi tomada pelos padres de Sao Joao del-Rei tao logo se teve a noticia da permissao para a efetivagao da Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei. Antes mesmo da sua inauguragao, os salesianos iniciaram, através da inspetoria situada no Rio de Janeiro, entao capital federal, urna serie de correspondencias com o diretor do Instituto de Pedagogía do Ateneu Salesiano, em Turim, Giacomo Lorenzini, para a aquisigao do laboratorio de psicología (Bomfim e Albergaría, prelo A). O laboratorio de psicología de Sao Joao del-Rei nao consta como um dos pioneiros laboratorios de psicología do país, conforme estudo realizado por Massimi (1990). Também nao foi o primeiro de Minas Gerais. Campos (1992) lembra que: Em agosto de 1929, Antipoff assumiu a cadeira de Psicología e criou o laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento, primeira instituigao dedicada específicamente á pesquisa em Psicología em Minas. Varios programas de pesquisa foram desenvolvidos pelo Laboratorio no decorrer da década de 30 (p. 33). Contudo, sua importancia pauta-se na sua constituigao e na relevancia social dos trabalhos ali realizados. A montagem e os custos do laboratorio Embora o responsável pela aquisigao do laboratorio tenha sido Giacomo Lorenzini, foi considerável a participagao de profissionais como Agostinho Gemelli (18781959), Albert Michotte (1881-1965), Walther Moede (1888-1958) e Vicent Cimatti (1879-1965), que contribuíram, quer com o envió dos aparelhos, quer apresentando seus inventos, ou mesmo sugerindo outras aquisigoes. Os aparelhos foram, em grande parte, construidos sob encomenda e eram semelhantes aos usados nos laboratorios europeus; entre os quais, os de Genebra, Turim, Louvain, Liége, Berlim, Paris, Madrid, Valencia e Roma. Copiavam os modelos dos existentes nos: (...) Istituto di Psicología di Milano (Gemelli), Istituto Superiore di Pedagogía di Tormo Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Bomfim, E. M. & Albergaría, M. T. A. (2004). Origem e relevancia de um laboratorio de psicología 155 no Brasil na década de 1950. Memorándum, 7, 151-164. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm (Lorenzini-Biglietti), Instituí Jean Jacques Rousseau (Piéron-Piaget), Instituí du Psychologie de Louvain (Michotte-Fanville) Instituí Caíholique de París (Naville), além de Lausanne (Carrrard), Bruxelles (Christians) Liége (Pasquasy) Berlim (Moede), Petersburgo (Netchaieff), Budapest (Mnemómetro de Ranchbourg), Valenga (Tacodómetro de Mira) e Basiléia (Relógios de Jacquet). As firmas que mais trabalharam na construgao dos aparelhos sao: LASM (Laborafori Apparecchi Scieníifici Medid), dirigido por Ceresa em Torino, IMR (Instituto Missionário Rebaudengo) em Tormo, DUFOUR em Paris, Isíiíuío Sacro Cuore di Milano e o Jacquet de Basiléia (Instituto de Psicología e Pedagogía, 1964, p. 47-48). A análise das correspondencias entre os salesianos brasileiros e Giacomo Lorenzini revela que, em 1954, havia sido enviada a quantia de 10.000 dólares, correspondente a 6.210.000 liras italianas para a aquisigao do laboratorio (Bomfim e Albergaría, prelo B). Figura 1: Um aparelho - audiómetro No ano da expedigao dos aparelhos, grande parte da verba, mais específicamente 4.890.644 liras esterlinas, já havia sido gasta, conforme é possível verificar na correspondencia datada de 11 de abril de 1955 e enviada por Giacomo Lorenzini. Restava, ainda, a quantia de 1.319. 356 liras esterlinas que seria destinada á aquisigao de tres aparelhos cuja construgao nao havia terminado. A análise da documentagao do laboratorio permite mapear em tres eixos a composigao e os custos do laboratorio: . o primeiro eixo é constituido pelos aparelhos, testes e demais equipamentos; . o segundo eixo traduz o material bibliográfico, mais específicamente os livros, as revistas e a aquisigao de material musical; . o terceiro e último eixo mostra as despesas realizadas com embalagens, transporte e demais taxas para a viabilizagao da importagao dos equipamentos. Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Bomfim, E. M. & Albergaría, M. T. A. (2004). Origem e relevancia de um laboratorio de psicología 156 no Brasil na década de 1950. Memorándum, 7, 151-164. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Especificando os itens de cada um desses eixos, verifica-se que, no primeiro eixo, relativo aos aparelhos, testes e demais equipamentos para a instalagao do laboratorio, é possível relacionar cada item com os seus respectivos valores expressos em liras esterlinas da época. Verifica-se, também, que nesse eixo estao relacionados os movéis, os dispositivos elétricos necessários ao funcionamento dos aparelhos, assim como um microscopio, que foi destinado ao estudo de biología educacional. Veja a relagao no Quadro I. Quadro I: Relagao dos equipamentos, testes e aparelhos por valores em liras esterlinas Ambidestrimetro ou falso torno Amplificador, microfone e altofalante Aparelho de Bedini completo Aparelho de controle de queda Aparelho de ilusao de Muller Lyer Aparelho de Richter Aparelho desmontável de Moede Aparelho para fixagao de gráficos Audiómetro completo Base de microfone Bloco de Wiggly Caixa de Decroly Caixa de derivagao Caixa de la colorida Camera microfotográfica Campímetro de Landelt Cardiógrafo de Jacquet Cinco interruptores para eletroquimógrafo Cinestesiómetro Compasso antropométrico Contador de erros L. A S. M. Cronoscopio gráfico Dezoito pranchas para daltonismo Dinamógrafo Dois alto-falantes Dois cronoscopio Dois Morse Dois Sinais eletromagnéticos Dois Suportes Duas cápsulas de Marey Duas pranchas otométricas Duplo taquistoscópio Eletrocronoscópio Eletrogravímetro Eletroquimógrafo Encaixes de Friedrich-Delys Ergógrafo com registro automático Esfignomamómetro Espirómetro modelo Pini Estesiómetro de Michotte Estesiómetro P. A S. Fabricagao de tres movéis para livros 45.000 82.500 7.000 43.000 2.400 33.000 26.000 24.000 295.000 6.800 3.800 33.000 1.150 2.200 15.000 56.800 17.250 13.000 34.000 7.700 24.000 55.000 12.000 34.500 25.000 29.000 12.000 41.000 1.400 41.000 500 26.000 62.000 58.000 155.000 29.000 98.000 6.000 44.200 48.500 16.000 653.219 Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Bomfim, E. M. & Albergaría, M. T. A. (2004). Origem e relevancia de um laboratorio de psicología 157 no Brasil na década de 1950. Memorándum, 7, 151-164. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Folhas para o campímetro Fotoestesiometro Gravador de fita (magnetófono) Máquina datilografica Olivetti Máquina datilografica Olivetti portátil Máquina de rotagao a motor Mecanismos de Fritz-Heider Metrónomo com contato elétrico Microscopio com acessórios e sua preparagao do microscopio Mil folhas de respostas para o teste Bloco de Wiggly Mil folhas de respostas para o teste Caixa Decroly Mnemometro de Ranschurg Módulos para atengao Móvel para o quadro elétrico Ototipo Ototipo luminoso com base e completo Plastoscópio Pneumográfo Pneumográfo torácico Polidinamómetro Prancha otometrica cor sobre cartao Prancha otometrica para astigmatismo Projetor epidiascópio com cavalete Projetor Yus com duas lámpadas Quadro elétrico Reprodutorde microfilme Didascalie Rodelas de Piorkowsky Seis dispositivos para conexao e seis dispositivos para suporte Serie de pesos para ilusao Sinuosidade de Bonnardel Souriciére de Moede Suporte universal Tapping Taquistoscópio completo Taquitoscópio de Netchaieff Teste de Arthus completo Teste de Baumgarten-Tramer Teste de Heuyer e Braille completo Teste do disco de Léon Walther Testes de Piéron e Toulouse Tremómetro completo Vinte rolos de papel para quimógrafo, nove m. de tubo para prolongamento e cinqüenta cm. de borracha p/ cápsulas de Marey 1.500 150.000 254.800 38.000 38.000 92.000 29.000 14.500 351.000 5.000 5.000 43.000 18.000 18.000 1.300 60.000 6.000 7.000 9.500 33.200 250 250 147.300 6.000 180.000 8.000 5.200 11.280 1.300 25.000 9.000 25.000 5.000 60.000 38.000 16.000 18.000 20.000 20.000 47.000 22.000 6.100 Os aparelhos, testes e equipamentos permitiam a realizagao de medidas biométricas, sensoriais, de aptidóes específicas, de personalidade e de interesses. Conforme o relatório de atividades do Instituto de Psicología e Pedagogía - IPP (1964), alguns aparelhos destinavam-se ao uso geral, como é o caso do quadro elétrico, do gravador de fita, do amplificador, do microscopio e do projetor. Outros serviam como registradores e medidores, como o eletroquimógrafo, o suporte Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Bomfim, E. M. & Albergaría, M. T. A. (2004). Origem e relevancia de um laboratorio de psicología 158 no Brasil na década de 1950. Memorándum, 7, 151-164. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm universal, as cápsulas de Marey, os sinais eletromagnéticos e os pneumógrafos. Para os exames visuais, eram destinados o ototipo, o campímetro de Landelt, o plastoscopio (também denominado estereometro de Michotte) e o fotoestesiómetro. Para a medida dos outros sentidos, eram usados o audiómetro (audigao), o eletrogravímetro (sensibilidade bárica), o estesiómetro (percepgao tátil) e o dinamómetro de Zimmermann (esforgo e trabalho realizado). Os estudos sobre a percepgao demandavam o uso dos aparelhos de Muller e Lyer (ilusóes óticas), da máquina de rotagao a motor (percepgao de movimentos e cores), do taquistoscópio (rapidez de percepgao de imagens) e dos encaixes de Friedrich-Delys (percepgao de formas). O tapping, o teste de Heuyer e Braille, o disco de Léon Walther, o tremómetro e as rodelas de Piorkowsky eram usados para os estudos de psicomotricidade. Para a análise da habilidade manual e da aprendizagem, eram utilizados o Souriciére de Moede, o cinestesiómetro, o falso torno, o bloco de Wiggly e a sinuosidade de Bonnardel. Para a medida de habilidade mecánica, eram usados os mecanismos de Fritz-Heider, a caixa de Decroly, os puzzles de BaumgartenTramer e o aparelho de Richter. Para as medidas biométricas, eram usados o espirómetro de Pini, o compasso antropométrico, o esfignomanómetro e o polidinamómetro. Finalmente, os testes de Bedini e de Toulouse e Pierón serviam para a medida de atengao. Interessante observar que, na montagem do laboratorio, os aparelhos, testes e equipamentos ficavam próximos dos materiais bibliográficos, compondo, num mesmo local, um ambiente para a leitura e para a realizagao de medidas e avaliagóes experimentáis. Assim, ao lado dos aparelhos, testes e equipamentos, ficavam os livros e revistas da biblioteca especial, conforme mostra a Figura 2. Figura 2: Os livros no laboratorio No segundo eixo da montagem do laboratorio, investigamos o conteúdo do material bibliográfico da biblioteca especial e demais impressos. Para a aquisigao desse material, foi significativa a participagao de Ralfy Mendes de Oliveira, sacerdote salesiano brasileiro que, na ocasiao, realizava seu curso de especializagao na Italia. Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Bomfim, E. M. & Albergaría, M. T. A. (2004). Origem e relevancia de um laboratorio de psicología 159 no Brasil na década de 1950. Memorándum, 7, 151-164. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Coube a ele a selegao dos livros espanhóis e franceses, além e principalmente devido ao seu particular interesse, de um livro de música e do material musical. Com o material impresso de caráter catequetico e musical foi despendida a quantia de 32.130 liras esterlinas. Com a compra de livros na Espanha e na Franga, foram gastas 70.000 liras esterlinas. As demais despesas foram realizadas com as assinaturas de revistas e a compra de livros adquiridos na Italia. A relagao total dos livros para a biblioteca especial do laboratorio foi composta por cinqüenta títulos. A listagem da autoría dos livros com os seus respectivos títulos encontra-se no Quadro I I . Quadro I I : Autoria por títulos dos livroi Autoría Títulos dos livros ARISTÓTELES Metafísica (libro XII) BAUDIN Corso di psicología BIOT e GALLIMARD Guida medica delle vocazioni sacerdotali e religiose Manuale di psichiatria pastorale BOGLIOLO La tesi di laurea BOGLIOLO Aspetti del platonismo tomista BOUTONIER Les dessins des enfants BUYSE La experimentación en pedagogía CLAPARÉDE Comment diagnostiquer les aptitudes chez les écoliers COLLIN Précis d 'une psychologie de 1 'enfant CO RALLO Educazione e liberta CO RALLO La pedagogía della liberta COUSINET La vie sociale des enfants CRAECKER Les enfants intellectuellement doués CHIEREGHIN Música, divina armonía La psicología dell'etá evolutiva GESELL [I fanciullo daí cinque ai dieci anni Restaurazione della persona umana JEAN LE PRESBYTRE Tu che diventi uomo KÓHLER Les problemes neuropsychiatriques et médico-pédagogiques de l'enfant Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/ "memorandum/artigos07/bo mfalberg01.htm Bomfim, E. M. & Albergaría, M. T. A. (2004). Origem e relevancia de um laboratorio de psicología 160 no Brasil na década de 1950. Memorándum, 7, 151-164. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm LACRO IX L adolescence scolaire LAMANNA -ilosofia e pedagogía LENOBLE Quand vous aurez quinz'ans LEY e WAUTHIER Études de psychologie instinctive et affective LORENZINI Psicopatologia e educazione MAISONNEUVE Psychologie sociale Principi di vita sociale MONSABRE Esposizione del domma cattolico - 18 vol. NORA Psicología junioristica NOSENGO L'adolescente e Dio PALADINI La storia della scuola nell'antichitá PICHOT Les tests mentaux POROT Manuel alphabétique de psychiatrie RORSCHACH Psychodiagnostic ROUART Psychopathologie de la puberté et de l'adolescence Educhiamo i meno dotati SEGNALI Come insegno le quattro operazioni SERTILLANGES Le probléme du mal: la solution TOULEMONDE Les inquiets L'enseignement de la géographie UNESCO La préparation du personnel enseignant VIDONI Le attitudini deN'uomo VIGLIETTI Orientamento professionale FALORNI Lo studio psicológico dell intelligenza e della motricitá Reattivi mentali per Tésame psicológico del fanciullo LALAUME Pratique de psychotechnique apliquee á 'industrie Méthodologie psychotechnique Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Bomfim, E. M. & Albergaría, M. T. A. (2004). Origem e relevancia de um laboratorio de psicología 161 no Brasil na década de 1950. Memorándum, 7, 151-164. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Pela relagao dos livros, observa-se que as temáticas psicológicas, pedagógicas e psiquiátricas perfaziam o total de 41 títulos, seguidas da temática em filosofía com cinco títulos, religiao com quatro títulos e, finalmente, um título em harmonía musical. Dentre as obras que vieram para o laboratorio, foi possível localizar na atual biblioteca do campus Dom Bosco da Universidade Federal de Sao Joao del-Rei, herdeira da biblioteca da extinta Faculdade Dom Bosco, somente as de Sertillanges (1951), Falorni (1952), Buyse (1937), Piéron (1951), Piéron, Pichot, Faverge e Stoetzel (1952), Rouart (1954), Claparéde (1924) e Lamanna (1954). A investigagao sobre o terceiro eixo, referente as despesas bancarias, transporte e embalagens, levou-nos a um mapeamento em tres agrupamentos. No primeiro agrupamento, referente aos gastos com transporte, verificou-se a existencia de despesas com o material proveniente de Milao (500 liras esterlinas), com a expedigao para o Brasil (314.250 liras esterlinas) e com a taxa marítima (300.000 liras esterlinas). No segundo agrupamento, foram computados os investimentos realizados com as embalagens. Foram despesas realizadas com o material para embalagens (3.800 liras esterlinas), com a construgao de seis caixas de embalagem (4.500 liras esterlinas) e com o pagamento dos operarios para a realizagao da tarefa (8.000 liras esterlinas). Finalmente, no terceiro agrupamento, computaramse as taxas e despesas bancarias realizadas com Banca Nazionale del Lavoro (2.500 liras esterlinas) e com a expedigao de documentos (1.690 liras esterlinas). No total, foram gastas 635.240 liras esterlinas com o transporte, as embalagens e as taxas. A relevancia do laboratorio na década de 1950 Acondicionado em salas do segundo andar da Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei, o laboratorio ocupou, básicamente, tres salas que se intercomunicavam e urna sala maior - destinada a aulas, demonstragoes experimentáis ou filmes. Foi, inicialmente, coordenado por Ralfy Mendes de Oliveira e os equipamentos eram utilizados ñas demonstragoes didáticas e nos estudos relativos as análises da visao, audigao, tempo de reagao motora e de reagoes fisiológicas. Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Bomfim, E. M. & Albergaría, M. T. A. (2004). Origem e relevancia de um laboratorio de psicología 162 no Brasil na década de 1950. Memorándum, 7, 151-164. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Figura 3: Teste no laboratorio Em 1957, Ralfy Mendes de Oliveira criou o Servigo de Orientagao Educacional e Profissional (SOEP), que agregou o trabalho, inicialmente voluntario, de Maria do Carmo Carvalho Mazzoni, Antonia Benedito, Niva Dámaso de Oliveira, Helia Ribeiro de Sá, Maria Lygia Rodrigues Leao e Antonina Gomes da Silva. Em 1958, em outro desdobramento das atividades do laboratorio, foi criado o Instituto de Psicología e Pedagogía (IPP). Entre seus objetivos, caberia ao IPP zelar pela coordenagao das disciplinas de psicología ministradas nos diferentes cursos da Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras, pelo incentivo e desenvolvimento de pesquisas e pela promogao da especializagao da equipe técnica. Entre suas atividades comunitarias, o IPP manteve o Centro de Estudos Pedagógicos (CEP), criou o Servigo de Orientagao Educacional e Profissional (SOEP), o Centro de Pesquisas e os Círculos de Pais. O Centro de Estudos Pedagógicos (CEP) promovía reunioes com o professorado primario e secundario local objetivando a realizagao de debates e conferencias e um evento científico anual denominado Semana de Estudos Pedagógicos, que propiciou um ativo intercambio com expressivos profissionais brasileiros da área. Entre 1959 e 1962, funcionou o curso de Orientagao Educacional criado por Luis Zver e José Maria Telles, a partir de suas participagoes no I Simposio de Orientagao Educacional, ocorrido em Sao Paulo, em 1957. Embora as pesquisas realizadas na década de 1950 nao tenham sido localizadas, foi possível verificar, pela mengáo em textos do laboratorio, a existencia de um levantamento de aptidáo musical nos seminaristas salesianos realizado por Ralfy Mendes de Oliveira, em 1957, urna pesquisa relativa ao sentimento de felicidade entre changas de um grupo escolar conduzida por Maria do Carmo Mazzoni e Antonia Benedito, em 1958, urna análise da situagáo emotiva de menores abandonados desenvolvida por Helia Ribeiro de Sá e Maria Lygia Leao, em 1958, e urna pesquisa sobre a relagao entre nivel mental e rendimento escolar realizada por Antonina Gomes e Niva Dámaso de Oliveira, em 1958. Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Bomfim, E. M. & Albergaría, M. T. A. (2004). Origem e relevancia de um laboratorio de psicología 163 no Brasil na década de 1950. Memorándum, 7, 151-164. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Em 1959, Geraldo Servo, que havia retornado da Europa no ano anterior, substituiu Ralfy Mendes de Oliveira na coordenagao do laboratorio. Imediatamente, incrementou as atividades do, ainda incipiente, Servigo de Orientagao Educacional e Profissional (SOEP) realizando, no referido ano, trabalhos de orientagao profissional, de orientagao vital e atendimentos clínicos. Nos prontuarios de orientagao profissional, sao freqüentes as fichas antropométricas, contendo dados somáticos (dimensao craniana, peso, envergadura, altura total e do tronco), dados biométricos (capacidade pulmonar, pressao arterial e pulsagoes), informagoes de dinamometria (tragao e compressao das maos) e índices cefálicos, vitáis e de robustez. Aparecem, também, as fichas médicas e biográficas, os resultados de exames de daltonismo e da aprendizagem de coordenagao visual-motora, assim como dos testes de Wiggly, Otis e Souriciére de Moede. Para os trabalhos de orientagao vital, eram utilizados o sociométrico, a entrevista, as respostas ao catálogo de livros e ao questionário de personalidade de Brown e os resultados dos testes de Otis, Gex, Raven, Wiggly, Gastón Berger, WISA ou Wechsler, Weil, DAT, Thurstone, Rorschach e Piéron. Para o atendimento clínico, além dos dados coletados para orientagao vital, eram usados os testes Family Tree, Goodnough, Minhas Maos e Rosenzweig, acrescidos, quando necessário, da entrevista com os pais. Consideracoes fináis O laboratorio de psicología, nomeado também como gabinete de psicología e como laboratorio de psicología experimental, nao foi um espago restrito ao desenvolvimento de experimentos ou medidas neurofisiológicas. Desde sua aquisigao, esteve atravessado pela concepgao educacional dos salesianos que associava á formagao académica a formagao artística, mais específicamente a musical, e priorizava a perspectiva religiosa e o atendimento á comunidade. As pesquisas passaram a ter articulagao com os trabalhos comunitarios desenvolvidos na cidade e na regiao circunvizinha, principalmente nos oratorios festivos, nos círculos de pais e ñas escolas. Sob a coordenagao de Geraldo Servo, as atividades relacionadas á psicología experimental foram cedendo lugar as atividades pertinentes á psicología aplicada. Cresceram, nos anos subseqüentes, as práticas do dinámico Servigo de Orientagao Educacional e Profissional (SOEP) em detrimento das atividades de pesquisa, modificando, assim, os objetivos origináis do laboratorio de psicología. O SOEP, ñas décadas subseqüentes, passaria a ocupar o papel de destaque, colaborando com as industrias e demais organizagoes do trabalho e desenvolvendo servigos de orientagao profissional, selegao e treinamento de pessoal. Cresceram, também, no SOEP, os atendimentos clínicos e educacionais. Os aparelhos, pesados e fixos, foram rápidamente substituidos pelos testes, de fácil locomogao e de aplicagao coletiva. E, sem uso, foram tornando-se obsoletos. Contudo, permanecem as lembrangas, sempre presentes ñas memorias dos saojoanenes, de um importante e histórico laboratorio de psicología. Referencias bibliográficas Bomfim, E. M. e Albergaría, M. T. (prelo A). Contribuigoes para a historia da psicología a partir do acervo do antigo laboratorio de psicología da Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei: a década de 1950. Boletim CDPHA, Belo Horizonte. Bomfim, E. M. e Albergaría, M. T. (prelo B). Resgatando dados para a historia da psicología em Minas Gerais na década de 1950. Cadernos de Psicología, Belo Horizonte. Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Bomfim, E. M. & Albergaría, M. T. A. (2004). Origem e relevancia de um laboratorio de psicología 164 no Brasil na década de 1950. Memorándum, 7, 151-164. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Campos, R. H. F. (1992). Notas para a historia das idéias psicológicas em Minas Gerais. Em Conselho Regional de Psicología - 4°.Regiao. Psicología: possíveis olhares, outros fazeres. (pp. 11-63) Belo Horizonte: Autor. Carvalho, Delgado (1976). Historia documental moderna e contemporánea. Rio de Janeiro: Record. Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei (s/d). Há seis anos. Anais da Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras. Sao Joao del-Rei, mímeo. Autor. Instituto de Psicología e Pedagogía - IPP (1964). Relatório - Cinco anos de atividades (1960-1964). Sao Joao del-Rei, mímeo. Autor. Massimi, M. (1990). Historia da psicología brasileira. Sao Paulo: EPU. Notas (1) Ver: http://www.salesiano-ba.com.br/salenew4/osalesiano_histo.html. (2) Sobre a vida e a obra de Dom Bosco e sobre os salesianos no Brasil ver também: Azzi, R. (1982). Os salesianos no Brasil. Sao Paulo: Ed. Salesiana Dom Bosco; Bosco, T. (1993). Dom Bosco:uma biografía nova. Sao Paulo: Ed. Salesiana Dom Bosco. Nota sobre as autoras Elizabeth de Meló Bomfim, psicóloga e doutora em educagao, é pesquisadora visitante, com bolsa da Fundagao de Amparo á Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), na Universidade Federal de Sao Joao del-Rei (UFSJ). Contatos: Rúa Turibaté, 50/201 - Sion - Belo Horizonte/MG - CEP 30315-410 - Brasil, e-mail: [email protected]. Fone: (55) (31) 32819759. María Teresa Antunes Albergaría, psicóloga e mestra em educagao, é professora na Universidade Federal de Sao Joao del-Rei (UFSJ). Contatos: UFSJ - Campus Dom Bosco - Praga Dom Helvecio, 74 - Sao Joao del-Rei/MG - CEP 36301-160 - Brasil. e-mail: [email protected]. Fone: (55) (32) 3379-2885 ou 3372-8552. Data de recebimento: 24/07/2004 Data de aceite: 08/10/2004 Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/bomfalberg01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional 165 de Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de Córdoba y el movimiento neoescolástico Beginings of profesionalization of Psychology in Argentina, the National University of Cordoba and neoscholasticism María Andrea Piñeda Universidad Nacional de San Luis Argentina Resumen Este es un estudio sobre los antecedentes e inicios de la carrera de psicología en la Universidad Nacional de Córdoba y el impacto del neoescolasticismo en la misma. Se divide en tres períodos. Primero, desde la creación de la Facultad de Filosofía y Humanidades donde que se dictaron los primeros cursos de Psicología desde 1937. Segundo, 1956-1958, cuando tuvo lugar el primer plan de estudios de la carrera de psicología: Profesorado de Psicología y Pedagogía. Tercero, 1958-1966, primeros años de la Licenciatura en Psicología. Se analizan planes de estudios y programas de los cursos entre 1937 y 1966, tomando como indicadores tres factores: docentes vinculados a la psicología influidos por el neoescolasticismo; textos de autores neoescolásticos en circulación, y autores neoescolásticos propuestos como contenido en los programas de los cursos. En los dos primeros períodos el influjo del neoescolasticismo ha resultado significativo, pero tiende a desaparecer a partir del tercero. Palabras clave: profesinalizacion de la psicología; universidades; educación; titulación. Abstract This is a study about the antecedents and beginnings of the first undergraduate program of Psychology at the National University of Córdoba and the impact of neoscholasticism in it. It is divided into three periods. First, starting from the creation of the Faculty of Philosophy and Humanities where the first courses of Psychology were held since 1937. Second, from 1956-1958, period during which the first program of Psychology and Pedagogy took place. Third, 1958-1966: the first years of the career in Psychology. Programs of Studies and programs of courses between 1937 and 1966 are analyzed taking into account three factors: teachers connected to neoscholasticism; neoscholastic textbooks of psychology read at the career, and neoscholastic authors studied during courses. In the first two periods, a significant impact of the neoscholasticism was registered in the field of psychology, which was lost in the third period. Keywords: professionalization of psychology; universities; education; professional licensing. Introducción Este trabajo pretende rastrear los antecedentes y los inicios de la carrera de psicología en la Universidad Nacional de Córdoba (1), y determinar la influencia que el movimiento neoescolástico, o "Escuela de Lovaina" (Piñeda, 2002) tuvo en el campo de la psicología de esta institución, durante el período pre-profesional y en los inicios del proceso de profesionalización. Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional 166 de Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Para la adecuada comprensión del problema que se propone, se hace necesario enmarcar el mismo en un contexto que debe tener en cuenta por lo menos tres factores. En primer lugar, una caracterización general de la historia de la psicología argentina entre las décadas del 30 y del 50. En segundo lugar, el neoescolasticismo como movimiento mundial y su impacto en nuestro país. Y por último, consideraciones respecto de la historia de la carrera de psicología de la Universidad Nacional de Córdoba. Numerosas investigaciones historiográficas han dado cuenta de la psicología argentina de esta época. En este sentido, para una visión general de este complejo tema, resultan dignos de mención los desarrollos de Gentile (2003), Rossi (1994; 2001) y Rovaletti (1997). Por su parte, Klappenbach (2004; En prensa), ha realizado una periodización de la psicología argentina que a los fines de nuestro estudio, resulta muy útil para la comprensión de lo que él llama el "segundo" y "tercer período": 1918-1940, y 1940-1960, respectivamente. En el segundo período -que García de Onrubia había descripto como de "vacío de la psicología" (Bortnik, 1992); Papini y Cortada de "retroceso y decadencia de los modelos experimentales" (Papini, 1976; 1978; Cortada, 1978)- Klappenbach analiza que más bien parece haber predominado una psicología filosófica en el marco de una reacción antipositivista o superadora del positivismo. La misma, propició la influencia de diversas corrientes filosóficas espiritualistas al campo psicológico, como la fenomenología, el existencialismo y también el neoescolasticismo (Klappenbach, 1999; 2002). Durante el tercer período, caracterizado por sus tensiones entre una psicología filosófica y una psicología aplicada (Klappenbach, 2001; 2002 a ; En prensa), es donde se produce, a partir del impulso del Primer Congreso Argentino de Psicología de 1954 (Gentile, 1997) -fuertemente avalado por el Estado Nacional, y profundamente identificado con sus políticas-, la creciente profesionalización de la psicología argentina (Klappenbach, 1995). Varios estudios han profundizado sobre la creación de las primeras carreras de psicología instauradas en universidades del ámbito estatal (Gentile, 1989; Klappenbach, 1995 a ; Klappenbach et. al., 1995; Dagfal 1997; 1997 a ; 1998; Piñeda, 2003) como privado (Piñeda, 2004; 2004 a ), a cuyo campo el presente estudio pretende hacer su contribución. En segundo término, entrecruzándose con los problemas de la historiografía de la psicología argentina antes descriptos, se hace necesario considerar el desarrollo histórico del movimiento neoescolástico. El mismo se enmarca dentro de una reacción antipositivista, que busca la solución en una propuesta de renovación de la filosofía de principios escolásticos -principalmente tomista y suarista- mediante la integración de la misma con corrientes filosóficas modernas, y fundamentalmente, con los problemas y desarrollos de la ciencia moderna, entre ellas y de un modo estelar, la psicología. Desde esta perspectiva, el neoescolasticismo aboga por una visión integral del hombre considerando esencialmente su dimensión de ser libre y trascendente, desde la cual pretende fundamentar una psicología científica que tenga en cuenta en el abordaje de su objeto formal, la totalidad humana, sin reduccionismos ni determinismos. Este movimiento, que reconoce sus primeros antecedentes en Europa a mediados del siglo XIX, se institucionalizó hacia 1880 con el explícito aval del Papa León XIII, contando entre sus principales líderes al Cardenal Mercier desde la Universidad de Lovaina (Bélgica). Dicha institución no sólo resulta de importancia para la consideración de una filosofía neoescolástica, sino también para una psicología científica enmarcada en estos principios. Más allá de Bélgica, el movimiento tuvo gran impacto entre otros países, en Italia, Francia, España, Alemania, Canadá, Estados Unidos, y también en América del Sur (Misiak, 1954; Piñeda, 2002). Los primeros indicios de recepción en Argentina, datan de fines de 1890, justamente en la ciudad de Córdoba, en la figura de José María Liqueno (Caturelli, 2001, p. 649650). Sin embargo, su mayor difusión encontró terreno propicio en la década del veinte y treinta en torno a los Cursos de Cultura Católica (Zuretti, 1975), y fuera del ámbito estrictamente católico, en el mismo Colegio Novecentista liderado por Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional 167 de Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Coriolano Alberini (Pró, 1960, p. 83; 1980). El neoescolasticismo, parece haber penetrado en el discurso psicológico argentino, fundamentalmente entre 1935 y 1960 (Piñeda, 2004c; 2004d), como hemos referido, período preprofesional: apto para la recepción de corrientes espiritualistas, e inicios de la profesionalización, en que se registran ciertas tensiones entre la antropología filosófica y la psicología aplicada. En tercer término, referiremos que la Universidad de Córdoba -que había sido la primera institución educativa de su naturaleza en Argentina-, estuvo a lo largo de su historia fuertemente vinculada al catolicismo. Fundada por los jesuitas, tras su expulsión, quedó en manos primero de franciscanos y más tarde del clero secular, para pasar a ser laica recién a finales del siglo XIX. La Facultad de Filosofía había sido la más antigua del país, funcionando ininterrumpidamente desde sus orígenes en la Facultad de Artes, en 1614, hasta que alrededor de 1890, por el avance del positivismo y la profesionalización se vió condenada a la parálisis, y la filosofía pasó a enseñarse en la Facultad de Derecho. Fue a partir del impulso de católicos que trabajaban dentro de la UNC, que se sentaron las bases para la reinstauración de la antigua Facultad, en 1922, con la creación del Seminario de Filosofía en la Facultad de Derecho, y en 1933, con la constitución del Instituto de Filosofía que desde el comienzo tuvo estructura de Facultad con potestad para entregar grados (Caturelli, 1971, p.27). En el seno de la Facultad de Filosofía y Humanidades, en 1958, se creó la Licenciatura en Psicología. Anteriormente, en 1956 se había creado en la misma Facultad, el Profesorado en Psicología y Pedagogía dependiente de la Escuela de Psicología y Pedagogía, siendo considerada antecedente directo de la futura licenciatura. No obstante, al menos desde 1937, ya se dictaban cursos de Psicología en aquella Facultad. En este marco, hemos rastreado documentos con el objetivo de identificar a las figuras más destacadas del neoescolasticismo cordobés que influyeran en el campo psicológico de esta comunidad universitaria, así como la recepción y el impacto que este movimiento tuviera en la universidad cordobesa en los distintos períodos señalados. En base a fuentes documentales, hemos realizado el siguiente análisis: a) de los programas de cursos de filosofía y psicología dictados entre 1937 y 1957; b) de los planes de estudio del antiguo profesorado y de la licenciatura que se creó posteriormente; c) del contenido y bibliografía de los programas de los cursos dictados en dichos planes de estudio. A partir de dicho análisis, intentamos identificar por un lado, los docentes que sustentando una postura neoescolástica habrían sido parte de este movimiento; y por otro, la circulación que puedan haber tenido algunos libros de texto de psicología de autores neoescolásticos. Asimismo, compararemos longitudinalmente, el impacto que la "Escuela de Lovaina" causara en el campo psicológico de la UNC, estableciendo posibles rupturas y continuidades en tres momentos históricos diferentes: el de gestación de la Facultad, dominado por un ambiente fuertemente tomista; el de la creación del Profesorado de Psicología y Pedagogía, y el de los inicios de la carrera de psicología propiamente dicha. El Neoescolasticismo y la organización de la Facultad de Filosofía. Los primeros cursos de Psicología La creación de la Facultad de Filosofía, en donde en la segunda mitad del siglo XX se organizaría la carrera de psicología, estuvo muy vinculada desde su cuna al movimiento neoescolástico -y más específicamente a la renovación tomista- que, como se mencionó, comenzó a tener lugar en la UNC desde finales del siglo XIX. En efecto, docentes influenciados por este movimiento, también vinculados al Seminario de Córdoba, al Colegio de Montserrat y al Instituto de Filosofía Santo Tomás de Aquino que publicaba la Revista Arx, gestaron un clima intelectual que se Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional 168 de Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm institucionalizó en la UNC a partir de 1933, con la creación del Instituto de Filosofía, que después de 1940 se convirtió en la Facultad de Filosofía y Humanidades (Caturelli, 1971, p.190). Tomando los aportes de Alberto Caturelli (1971), quien ha estudiado extensamente la historia de la Universidad Nacional de Córdoba, mencionaremos entre los impulsores del neoescolasticismo en esta universidad, a Nemesio González (1866 1929), cuya tesis doctoral sobre La Escuela Positivista (1890) constituyó una de las primeras críticas argentinas al positivismo, junto a José María Liqueno (1877 1926), uno de los más importantes impulsores del neotomismo en Córdoba; Mons. Audino Rodríguez y Olmos (1888 - 1965), apologista del Tomismo; Luis Martínez Villada (1886 - 1959), Profesor de Filosofía en la Facultad de Derecho y creador de la Revista Arx, y Sofanor Novillo Corvalán (1881 - 1965). Este último fue docente en la Facultad de Filosofía y Derecho de la universidad cordobesa, creando en dicha Facultad el Seminario de Filosofía. Llegó a ser Rector de la UNC, y fue en su gestión, desde 1932, cuando se comienza a proyectar la organización el Instituto de Filosofía que sentaría las bases para la Facultad. La comisión encomendada por el Rector para este cometido, había estado constituida por Enrique Martínez Paz, Raúl Orgaz, Luis Martínez Villada, Nimio Anquín, y Emilio Gouiran, quien fuera su primer Director. Cuando en 1940, se amplía el Instituto de Filosofía incorporando en su estructura el Instituto de Historia, pasa a llamarse "de Filosofía y Humanidades", ingresando una figura de relieve internacional como Rodolfo Mondolfo, ajeno al movimiento que venimos estudiando (Caturelli, 1971, p.179 - 190). Es de destacar que la mencionada Revista Arx que editaba el Instituto Santo Tomás de Aquino, nucleaba en torno a Martínez Villada a talentos más jóvenes que esa primera generación de tomistas, como Manuel Río, Rodolfo Martínez Espinosa, Nimio Anquín, Alberto García Vieyra y Guido Soaje Ramos. Este último, sería el fundador de la Semana Tomista (Caturelli, 1971, p. 188), y se desempeñaría como docente en los primeros años de la carrera de psicología de la Universidad Nacional de Cuyo (Piñeda, 2003). De todas las figuras antes mencionadas, dos estarían directamente vinculados a la psicología cordobesa: José María Liqueno y Emilio Gouiran. José María Liqueno, cuyos desarrollos se inscriben principalmente en el campo de la psicología metafísica, consideraba que esta rama de la filosofía era complementaria a la psicología empírica. La segunda sería la base de la primera y a su vez, ambas contribuirían al estudio del hombre total, sin parcializaciones. En cuanto a la psicología empírica se refiere, Liqueno principalmente tomaba los aportes del italiano Agostino Gemelli y realizaba un esfuerzo por integrar diversas teorías de otros autores modernos como Wundt, Pièron, Grasset o James, y polemizaba con José Ingenieros sobre las propiedades y facultades del alma (Caturelli, 1971, p.183). Emilio Gouiran (1909 - 1955), fue el primer Director del Instituto de Filosofía. Dictó al menos en 1937 un curso de Psicología. Si bien dentro de una línea tradicional de pensamiento, se ha visto muy influenciado por Blondel, Pascal, Maine de Birán, Lavelle y Jaspers (Caturelli, 1971, p. 203). Por otra parte, Caturelli (1971) destaca otras tres figuras vinculadas específicamente al tomismo, que por su desempeño como docentes e investigadores han contribuido al campo de la psicología en la Universidad Nacional de Córdoba en este primer período. El primero, Mons. Filemón Castellano, cuya labor estuvo dedicada a la Filosofía de la Religión y la Psicología, donde se dedicó, sobre todo, a la caracterología, tema sobre el cual dictó varios cursos en la Facultad (ver Anexo C, tabla n° 1). La segunda figura de importancia para el neoescolasticismo y la psicología en este primer período de la Facultad de Filosofía es el Padre Héctor Luis Torti, cuyo manual de Psicología (Torti, s/f) muestra una integración de todos los temas clásicos y su concepción espiritualista del hombre con las exigencias de la psicología moderna, Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional 169 de Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm evidenciando -sobre todo en temas de la personalidad- fuerte influencia de Spranger y Adler. En tercer lugar, hacemos referencia al Dr. Ramón Brandán (1891 - 1968) médico y filósofo que practicaba una medicina psicosomática de base religiosa. A partir de todos estos autores, es posible visualizar la recepción del neoescolasticismo en la temprana psicología cordobesa. Aún más, por otro lado, el impacto de este movimiento en este terreno puede verificarse de modo significativo en el período anterior a la creación de la carrera de Psicologíay Pedagogía, al menos desde 1937, a través del análisis sociobibliométrico (2) e la siguiente documentación existente en el Archivo de la Facultad de Filosofía: listado de 16 conferencias de 1937, y 24 programas de cursos sobre temas psicológicos que la Facultad de Filosofía y Humanidades dictaba entre 1937 y 1957 (ver Anexo C, tabla n° 1). Dicho impacto es registrado en primer lugar, en profesores en cuyos cursos se abunda en contenidos y citas relativas a este movimiento, pareciendo adherir doctrinariamente al mismo. Tales son los casos de los Profesores Filemón Castellano, Alfredo Fragueiro, Hilario González, Emilio Gouirán, Carlos Laguinge (3), Raúl Alberto Piérola, Francisco Torres, y Carlos A. Tagle. En segundo lugar, verificamos el impacto de la Escuela de Lovaina, en la circulación de textos de autores neoescolásticos citados en la bibliografía de los cursos (ver Anexo C, tabla n° 2). En 6 materias, se registran referencias a 26 obras, una de ellas, citada dos veces, con lo cual el número de referencias a obras y autores neoescolásticos asciende a 27. Así, el autor más citado es Etienne Gilson: 6 veces; siguiéndole con 3 citas, Agostino Gemelli; compartiendo el tercer lugar con 2 citas: Tomás de Aquino, Manuel Barbado, Regis Jolivet, José Laburu, Joseph Lindworsky y E. Peillaube. En cuarto lugar, con solo una cita: O. Derisi, G. Dwelshauvers, A. Ennis, J. Fröbes, J. Nuttin e I. Quiles. De las 26 obras de estos autores, cabe destacar que 9 eran netamente filosóficas, no directamente relacionadas a la psicología, aunque con relación al problema del hombre, el resto todas eran textos directamente relacionados con la psicología: 4 de antropología filosófica y 14 de psicología científica. Y por último, como tercer elemento de análisis considerado para establecer el impacto del neoescolasticismo en la Facultad, mencionamos los autores neoescolásticos que explícitamente eran propuestos como contenido de los programas en cuestión. En el conjunto de estas 6 materias, sin duda, el autor más estudiado entre aquéllos de interés para el neoescolasticismo, es Tomás de Aquino, propuesto como contenido 8 veces. Síguele Francisco Suárez, 2 veces propuesto; y por último, con una cita: Agostino Gemelli, Jacques Maritain y Desiré Mercier (ver Anexo C, tabla n° 3). Así, profesores influenciados por el neoescolasticismo, autores neoescolásticos, y textos de neoescolásticos que circulaban en la Facultad, serían indicios claros de una significativa recepción del neoescolasticismo en la temprana psicología en la universidad cordobesa, al menos en las dos décadas inmediatamente anteriores a la creación de la carrera de psicología y pedagogía. La carrera de Psicología y Pedagogía Sin dejar de tener en cuenta los cursos, seminarios y conferencias centrados en temas psicológicos que la Facultad dictaba al menos desde 1937, podemos considerar como antecedente directo de la carrera de psicología en la universidad de Córdoba, la creación de la carrera de Psicología y Pedagogía que se constituyera a partir de 1956, que daría cuenta de una progresiva maduración del campo psicológico y a su vez, irían abonando el terreno a la profesionalización del mismo. En 1956 se creó la carrera de Psicología y Pedagogía, en el seno de la Facultad de Filosofía y Letras, dado que sus autoridades (4) consideraban que la madurez Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional 170 de Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm alcanzada por los estudios psicológicos ameritaba su inserción en el cuadro de los estudios universitarios. Según consta en la Resolución de la Facultad que autoriza su creación (Resol. N°40/56), su organización había sido impulsada desde los centros de estudiantes, miembros de organizaciones de egresados, y profesores de psicología y otras disciplinas afines a las humanidades de la universidad, cuyos estudios preliminares habrían tomado como modelo para la organización de la nueva carrera, las existentes en diversas universidades extranjeras, y otras Facultades de Filosofía y Letras del país. Para su constitución, se había aprovechado la existencia de la Escuela de Pedagogía de la que dependía la carrera del mismo nombre, la cual -tras la incorporación de materias estrictamente psicológicas destinadas a completar la formación prevista -, debieron transformarse en Escuela de Psicología y Pedagogía, y Carrera de Psicología y Pedagogía, respectivamente. Así, el título que otorgaba esta carrera era el de Profesor en Psicología y Pedagogía. Con todo, respecto al perfil del egresado, merecen hacerse algunas consideraciones, ya que de la lectura de los considerandos que fundamentaban la resolución de creación de la carrera, se podrían colegir dos discursos paralelos aunque no necesariamente contradictorios-, cuyas tensiones se verían plasmadas en el plan de estudios. En primer lugar, se advertía la necesidad de formar profesionales altamente habilitados para atender a problemas que se suscitaran en los diversos órdenes de la actividad comunitaria. En ese sentido, se privilegiaban tres áreas de interés: la industria, la atención de anormales e inadaptados, y la educación. Por tanto, se manifestaba la intención de formar especialistas capaces de aplicar conocimientos psicológicos al campo de la industria, la medicina y la educación. Para lograr este cometido, el alumno cursaría durante los dos últimos años de su carrera, seminarios de investigación "en los respectivos gabinetes del Instituto de Psicología". Estos seminarios estarían destinados a que el alumno, mediante "estudios y prácticas intensivas" pudiera "dominar un repertorio de conocimientos técnicos y prácticos" (Resol. N° 40/56 p.2) indispensables para el ejercicio profesional, y se especializara en alguna de estas áreas. En síntesis, con la creación de la carrera de psicología y pedagogía, se buscaba la formación de profesionales cuyo quehacer estaría orientado a la psicotecnia. A partir de esta fundamentación, en segundo lugar, se observa en los posteriores considerandos de la resolución cierto cambio de discurso. Así, se advertía la necesidad de que junto al cursado de materias psicológicas se incorporaran "materias propiamente filosóficas y de carácter formativo en el sentido de otorgar al estudiante un amplio horizonte espiritual". Esto tenía el objetivo de "impedir [...] que en la Facultad prospere el espíritu de estrecha especialización, de modo que nuestros egresados en Psicología no sean meros técnicos del alma ciegos al fenómeno humano len su totalidad" (Resol. N° 40/56, p.2). Se debía asegurar a los estudios psicológicos "el carácter teórico y desinteresado que corresponde a los que se efectúan en esta Casa de Estudios, de modo que el pragmatismo y la tecnología subyacentes en el ejercicio empírico de la Psicología no agrieten la solidez de las investigaciones humanísticas, sino que, por el contrario, las complementen y enriquezcan según los imperativos de una sana integración espiritual, propiciadas por las corrientes de pensamiento más hondas de nuestro tiempo" (Resol. N° 40/56 p.2). Desde este punto de vista, entendemos que se pensaba para la psicología un lugar singular, tanto desde el punto de vista epistemológico, como desde el punto de vista organizativo de la Facultad en que se insertaría este nuevo campo. Así, se concebía que la psicología "encontraba su fundamento en la filosofía", y por otro lado, que en su aplicación práctica derivaba en la pedagogía. Por todo esto, la creación de la carrera de psicología y pedagogía encontraba su lugar en la Facultad de Filosofía, sobre todo proyectándose hacia la práctica educativa. Por lo cual, se Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional 171 de Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm abría el nuevo campo científico en el seno de la Escuela de Pedagogía que se transformaba para darle lugar a la disciplina teórica, y por tanto preeminente, que alimentaría la práctica de que era objeto dicha Escuela. El perfil de egresado que se explicitaba tras estos considerandos, consistía en aquél "especialmente abierto [por la aproximación de estas tres grandes disciplinas] a la comprensión de los problemas humanos y profesionalmente apto para el ejercicio de la docencia y de la investigación" (Resol. N° 40/56 p.2). Sin embargo, aún cuando se anunciaba un perfil claramente profesional orientado a dar respuestas a problemas de diversas esferas de la vida humana, el título otorgado era el de Profesor con lo cual cabe plantearse hasta qué punto el plan de estudios satisfacía ese perfil profesional. ^^^^^^^^^^^^ Como podrá advertirse del análisis del plan de estudios (5) (ver Anexo, Tabla N°1) diseñado para la carrera, de las 23 materias previstas a lo largo de cinco años, solo 5 estarían orientadas a la formación técnica. En efecto, dos materias estarían más vinculadas a la aplicación de la psicología a los problemas del campo médico: Psicoterapia, y Teoría y Técnica del Psicoanálisis (6), y tres materias serían en general aplicables al campo del trabajo, la industria y la educación: Orientación Profesional I y I I , y Psicotecnia, a lo que se le sumaban las diez horas semanales de Seminario y Práctica Psicológica que se cursaban en quinto año. Como se puede apreciar, sobre todo si comparamos este plan de estudios con los primeros de otras universidades (Piñeda, 2003, 2004a), no había demasiados espacios curriculares específicos para la formación en los campos de aplicación que al principio se enunciaban. Estas inconsistencias que se evidencian en el discurso, y que se verían plasmadas en el plan de estudios, estarían dando cuenta de ciertas tensiones propias de la apertura de un campo de saber y la conformación de un grupo de especialistas a partir del terreno de otros existentes. Así, por un lado, divisamos la comunidad de filósofos: prestigiosa y dominante en la Facultad, cuya visión de la psicología se inclinaría más hacia la antropología filosófica que hacia la psicotecnia. Junto con ésta y subsidiaria de ella, la comunidad de pedagogos. Ambas comunidades, hasta el momento, eran las portadoras del saber psicológico universitario. Por otro lado, se visualiza la naciente comunidad de especialistas en temas psicológicos, que aún ni siquiera podían ser denominados psicólogos. Por otra parte, otras consideraciones resultan de interés respecto de la comunidad filosófica. Tomando como fundamento los resultados alcanzados del análisis sociobibliométrico de los cursos, seminarios y conferencias del período 1937 1956, debemos tener en cuenta que en el plantel docente del campo de la filosofía que componía la Facultad, existía como antecedente una fuerte presencia del movimiento neoescolástico. Este punto de vista es consistente con el análisis efectuado de los miembros del Primer Congreso Nacional de Filosofía (Mendoza, 1949), donde la UNC fue una de las instituciones que más miembros vinculados al neoescolasticismo había aportado (Piñeda, 2003a). Desde este punto de vista, podemos sumar argumentos contundentes para explicar la resistencia que la comunidad de filósofos oponía a la graduación de especialistas en temas psicológicos con un perfil "técnico en cuestiones del alma", pues, la resistencia a toda tendencia reduccionista y determinista ha sido característica del neoescolasticismo y ha constituido sus objetivos fundantes como movimiento (7) (Piñeda, 2002). Así, las contradicciones que se visualizaban en el acto de creación de la nueva carrera, tal vez podrían estar mostrando que el mismo proyecto educativo en ese momento todavía no estaba del todo claro, porque en el fondo, no se había superado la discusión respecto a lo que debía ser la psicología y el psicólogo. Este problema sería común a otras universidades, y -por ejemplo- ya se habría advertido dos años antes en el congreso de psicología, y un año antes en la creación de la carrera de psicología de Rosario (Gentile, 1989; 1997; 2003), donde Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional 172 de Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm se intentaba una superación de las insalvables diferencias discursivas respecto a lo que era la psicología, focalizando en la figura del psicólogo como un profesional y como un técnico, y en la utilidad de la psicología en tanto disciplina de aplicación. No obstante, como puede advertirse en el acto de creación de la carrera de Psicología y Pedagogía en Córdoba, este perfil en algunos lugares aparentemente excento de conflictos, en el caso que estamos analizando, no escapaba a la discusión y a los desacuerdos epistemológicos. Más bien, habrían hecho falta al menos dos años de transición para que el proyecto educativo se esclareciera, y las tensiones entre estos dos perfiles: el docente y el profesional, se resolvieran en la creación de la Licenciatura en Psicología, dando lugar al nacimiento definitivo de un nuevo grupo de especialistas que si bien conservarían vínculos con su cuna filosófica por cuatro décadas más -hasta la constitución de la Facultad de Psicología-, se abrirían paso al campo científico con independencia. Cabe señalar, finalmente, que hasta que se graduaran los primeros Licenciados en Psicología, la Universidad Nacional de Córdoba dio varios Profesores en Psicología y Pedagogía que pudieron optar por el grado de Licenciado, rindiendo ciertas equivalencias con el nuevo plan de estudios. Tal es el caso de algunos de los profesores que después de 1959 constituyeron sus cátedras en la Universidad Católica de Córdoba (8) (Piñeda, 2004a). La Licenciatura en Psicología La carrera de psicología se organizó en la Universidad Nacional de Córdoba en 1958, en el seno de la Facultad de Filosofía y Humanidades. El primer plan de estudios que se aprobó exigía para la obtención del título de Licenciado en Psicología, la aprobación de 20 cursos, la asistencia al laboratorio de psicología durante por lo menos 6 semestres con un crédito horario de 6 horas semanales o tiempo equivalente, siendo dicho desempeño calificado numéricamente. También era obligatoria la aprobación de 2 materias filosóficas: Introducción a la Filosofía y Antropología Filosófica, y la aprobación de materias electivas de índole filosófica, histórica, antropológica y de cultura general. Además, los alumnos debían mostrar conocimiento de algún idioma moderno. Dada la flexibilidad del plan de estudios, los docentes del Departamento de Psicología eran los encargados de guiar a los alumnos en la integración de sus opciones. Al aprobar los primeros 12 cursos semestrales de materias psicológicas, el idioma extranjero y 3 semestres de actuación en el Laboratorio de Psicología, se otorgaba el Certificado de Asistente en Psicología como instancia intermedia al de Licenciado (9). Para la obtención del título de Doctor en Psicología, el Licenciado debía preparar una tesis final y actuar como adscripto a una de las secciones del Instituto de Psicología durante por lo menos 2 años, realizando en ese tiempo, trabajos de investigación bajo la dirección de algún docente a elección del alumno. Por otra parte, la formación de los psicólogos seguiría nutriéndose con cursillos, seminarios y materias electivas que ofrecía la Facultad, en su mayoría dictadas por el plantel de docentes de Filosofía y de Pedagogía (ver Anexo C, Tabla N° 4). Resulta interesante volver a aplicar el método sociobibliométrico para el análisis de los contenidos y bibliografía de los espacios curriculares obligatorios y electivos del plan de estudios de la Licenciatura, según los programas encontrados que datan de 1958 a 1966, considerando los mismos tres factores antes utilizados: profesores bajo influencia del neoescolasticismo; textos neoescolásticos en circulación, y autores propuestos como contenido en este período. De este análisis, se evidencia que la circulación del discurso neoescolástico, se vería notablemente disminuido después d e 1 9 5 8 . Así, de los 20 cursos obligatorios (ver Anexo C, Tabla N°5), registrando los programas entre 1958 y 1966, sólo en 3 cursos se pueden encontrar referencias a autores neoescolásticos. En primer lugar, en Psicología General (Programas de Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional 173 de Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm 1958 y 1966), dictado por el Profesor Raúl Alberto Piérola (10) con una proporción de 3 referencias sobre un total de 78. Los autores referenciados son Gemelli & Zunini (1954); Dwelshauvers (1939), y Jolivet (s/f). En segundo lugar, en Orientación y Selección Profesional (Programas de 1965 y 1966), a cargo de la Profesora Hermenegilda Fogliatto (11), con 1 referencia sobre 16, y al año siguiente: 1 cita sobre 6 1 , siendo en ambos casos Gemelli (1959) el autor referenciado. En tercer lugar en Psicología Pedagógica (1964), cuya Profesora era Blanca Rodríguez: sobre 47 referencias, 1 es a Gemelli (1960). Por otra parte, de los cursos electivos que se debía tomar, uno de los mismos debía ser de carácter filosófico. De todos los ofrecidos entre 1958 y 1966 (ver Anexo C, Tabla N° 4), los dos únicos en los que hemos encontrado referencias a autores neoescolásticos son el curso de Filosofía de la Ciencia, dictado por el Dr. Andrés Raggio, efectuando una referencia a Michotte (1954); y el curso de Ética, dictado por Carlos A. Tagle en 1959, 1962 y 1963. En este último, en los tres años, sobre un total de 42 referencias, 10 son a autores de interés para los neoescolásticos: 3 a Mercier (s/f) (12), 2 a Tomás de Aquino (1936), 1 a Derisi (1941), 1 a Maritain (1930), 1 a Balmés (s/f), 1 a Quiles (1942), y 1 a Gilson (s/f). Por la proporción de citas y estructuración de contenidos de los programas, creemos que solo en el caso del Profesor Tagle se justifica hablar de cierta influencia neoescolástica en su formación y en su pensamiento. En el resto de los casos, si bien puede tratarse de docentes católicos, como Hermenegilda Fogliatto (13), creemos que las citas se deben en mayor medida al impacto que las obras referenciadas habían causado en Argentina, por lo cual, su circulación seguía asegurada en la sexta década del siglo XX (Piñeda, 2004c). Como se habrá apreciado, desde esta perspectiva, el autor más significativo había sido Agostino Gemelli. De sus 4 obras psicológicas traducidas al castellano, todas de gran impacto en Argentina, tres de ellas continuaban siendo referenciadas (14). Por otra parte, es de mencionar que, en general, tanto en los cursos obligatorios como electivos, se observan referencias a autores que sin ser neoescolásticos armonizan con una visión aristotélica o aristotélico-escolástica de hombre y facultades mentales: como Franz Brentano y Charles Spearman. Sin embargo, lo que predomina en la bibliografía propuesta a los alumnos es literatura de corte fenomenológico - existencialista, y también psicoanalista. Así, advertimos que tras la creación de la Licenciatura en Psicología, estas son las tendencias que hegemonizaban el escenario intelectual de la UNC, a la vez que perdía protagonismo el neoescolasticismo. Para un estudio posterior resultaría de interés el análisis de campos comunes de problemas entre el neoescolasticismo y el psicoanálisis, que aún cuando en primera instancia pueden parecer incompatibles, tendrían ciertos puntos de coincidencia, como que, cada uno desde su punto de vista, intentaría restablecer la unidad del hombre en la psicología buscando integrar la unidad psicosomática, y ambos critican las psicologías positivistas (Quiles, 1952, p.70). Conclusiones El movimiento neoescolástico habría ejercido considerable influencia en la comunidad académica de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Nacional de Córdoba que fuera cuna de la carrera de psicología. Esta influencia, que habría sido predominante en los años en que se gestara la Facultad de Filosofía, tendría un significativo impacto en el campo psicológico al menos entre 1937 y 1956. Posteriormente, con la creación de la Licenciatura en Psicología, el neoescolasticismo perdería inserción en la misma. Esta discontinuidad del influjo neoescolástico que había sido significativo en la etapa pre-profesional: entre 1937 y 1956, podría explicarse al menos por dos factores. En primer lugar, porque el neoescolasticismo en la Argentina ha estado predominantemente más vinculado a la filosofía que a la psicología científica. Con lo Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional 174 de Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm cual, en la UNC, los docentes de orientación neoescolástica que enseñaron en esta universidad en el primer y segundo período, y que pertenecían a la Facultad de Filosofía, y trabajaban tanto en el Instituto de Filosofía como en el de Humanidades, fundamentalmente podían hacer su aporte a la formación de los nuevos egresados desde el terreno de la Antropología Filosófica, y no tanto en el de la Psicología Científica. En este nuevo campo, se daría lugar a nuevos docentes. Este hecho, habría dado lugar a cierta desvinculación progresiva entre psicología y filosofía, resultante en una mayor tecnificación de la carrera, contrariamente a lo proyectado en el Profesorado de Psicología y Pedagogía, y a su vez, habría permitido la entrada a nuevos discursos en boga tanto en Europa como en América, y en Argentina en general. El segundo factor que explicaría el decaimiento del neoescolasticismo en la UNC, es que en 1959, se creó la Universidad Católica de Córdoba. Según hemos podido constatar (www.uccor.edu.ar/-reseña histórica; Piñeda, 2004b), la creación de la misma se habría impulsado por profesionales de la UNC. Varios de los egresados en el Profesorado de Psicología y Pedagogía, y de la posterior Licenciatura de esta universidad, habrían sido profesores de la carrera de psicología de la universidad privada (ver Anexo, tabla n° 6). Asimismo, docentes de filosofía que nunca fueron profesores en Psicología ni en una ni en otra universidad, pero que sin embargo, fueron muy importantes para la recepción e influjo del neoescolasticismo en el clima intelectual de la universidad estatal, pasaron a ser docentes en la universidad privada (15) (Universidad Católica de Córdoba, 2003). Si bien la creación de la universidad privada se debe a intereses de los católicos y excede la languidez del neoescolasticismo en la universidad publica, es de considerar que la primera concentró gran cantidad de docentes católicos, muchos de los cuales probablemente ya no enseñarían en la universidad estatal, perdiendo su inserción en ella. Referencias Bal més, J. (s/f). Ética. Curso de Filosofía Elemental. Bleger, J. (1962). Clase inaugural de la Cátedra de Psicoanálisis. Acta Psiquiátrica y Psicológica Argentina, 8 (1), 56-60. Bortnik, R. (1992). Valor y sentido de una historización de la psicología en la Argentina. Buenos. 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(2) El método sociobibliométrico, es una herramienta utilizada en el campo de la historiografía, y desarrollado muy especialmente por el grupo de la Universidad de Valencia. Mediante la cuantificación de referencias a autores, obras, referencias, etc., en un texto dado, y el análisis cualitativo de esos datos, pretende poner de relieve las comunidades científicas, instituciones, programas de investigación, objetos de estudio, metodologías, etc. es decir, las diversas dimensiones de la ciencia, entendida como organización social (Tortosa, Mayor, Carpintero, 1990, p.35). (3) Fue Miembro Activo del Primer Congreso Argentino de Psicología, Tucumán, 1954, y presentó el trabajo: "Psicotecnia del Paracaidismo". (4) La Resolución de creación de la carrera estaba refrendada por el Profesor Víctor Massuh, Delegado Interventor de la Facultad de Filosofía y Humanidades, y por Evelina Ana Recalde, Secretaria. (5) En este período 1956 - 1958, no hemos hallado los programas de las materias consignadas en el Plan de Estudios del Profesorado en Psicología y Pedagogía, por Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional 179 de Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm 10 que no nos ha resultado posible un análisis semejante al que hiciéramos en el apartado anterior. (6) El curso de Teoría y Técnica de Psicoanálisis estaba pensado dentro del plan de estudios para cuarto año de la carrera. Si bien no se han encontrado programas que atestigüen la fecha, docente y modalidad de su dictado, se han registrado actuaciones que autorizan la iniciación de este curso a partir de 1959 (Bonzani, A., 11 de febrero de 2004, correspondencia con la Jefa de Archivo de la Facultad de Filosofía y Humanidades de la Universidad Nacional de Córdoba). Este dato cobra interés, en el contexto que se le atribuye a José Bléger, haber dictado el primer curso de Psicoanálisis en una universidad argentina, en la Facultad de Filosofía, Letras y Ciencias de la Educación de la Universidad del Litoral, Rosario, 1959. El curso de Bléger, como él mismo lo describió en su clase inaugural (Bleger, 1962), se trataba sólo de psicoanálisis teórico. Pero, con el objetivo de enriquecer la formación de los psicólogos, esa teoría debía ser "operante" en el "oficio del psicólogo". Bléger consideraba imposible formar en las aulas universitarias para la práctica psicoanalítica. Como se recordará, miembro de la APA, delegaba en el Instituto de Psicoanálisis la autoridad para formar psicoanalistas. (7) Para ilustrar hasta qué punto el neoescolasticismo se oponía a la figura del psicólogo como un técnico, baste recordar en esos años los tres discursos de Pío XII dirigidos a los psicólogos recordando la importancia de considerar al hombre en su totalidad sin reduccionismos ni determinismos. En la primera (Pío XII, 1953/1967) declara que la personalidad en su conjunto es objeto de estudio de la psicología, y que en el estudio de la misma, no se debe perder de vista la unidad del hombre. Esta idea es reiterada en el segundo discurso al que hacemos referencia (Pío XII, 1958), considerando los aspectos morales y religiosos, a la vez que psicológicos, inherentes a la personalidad -entendida como unidad psicosomática del hombre, en cuanto determinada y gobernada por el alma. Estas dos esferas: la moral y la psicológica, fundamentan dos puntos de vista diversos pero complementarios, que el psicólogo no puede pasar por alto en virtud de la unidad psicosomática que entraña la personalidad. En el tercer discurso (Pío XII, 1958 a ), exhorta a los miembros del Congreso de Neuro-psicofarmacología reunidos en Roma, por el Collegium Internationale Neuro-Psycho Pharmacologicum, a sujetarse su promisorio ejercicio profesional a un código deontológico, es decir, a normas morales objetivas que resguarden la dignidad humana. Es decir, en la práctica que exige la modificación del comportamiento y la cura de enfermedades físicas y mentales, respetar al ser humano como sujeto libre y responsable de sus actos, capaz de mantenerse fiel a su conciencia y a Dios. En general, en estos tres discursos se recalcaba a los psicólogos clínicos y psicoterapeutas, a los psicólogos aplicados y a los psiquiatras y neuropsicólogos, que aún desde su especialidad no perdieran de vista la totalidad del hombre. (8) Hacemos mención alos Licenciados en Psicología y Pedagogía: Arrascaeta María Susana; Miotti Miguel Ángel, y Arlette Fernández Juana (Universidad Católica de Córdoba, 2003). (9) En esta resolución no se expresan cuáles eran las incumbencias de este Asistente. (10) Piérola, dictaba la cátedra de Psicología en la Universidad Nacional de Tucumán, aparentemente en la Fac. de Medicina. (11) Hermenegilda Fogliatto es Philosophical Doctor. Ex - Profesora Titular de las Cátedras de Orientación Vocacional y Metodología de la Investigación, UNC. Ex Investigador Principal de CONICET. Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional 180 de Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm (12) Tres veces citado en diversos capítulos. (13) Hermenegilda Fogliatto participa activamente del Movimiento de Seglares Claretianos como coordinadora de grupos (Fogliatto, 2003). (14) La cuarta a la que nos referimos es Nuevos Métodos y Horizontes de la Psicología Experimental, siendo el original de 1910, fue traducida al castellano en 1927, editada por Subirí. (15) Por ejemplo Nimio Anquín y Alberto Caturelli. Nota sobre a autora María Andrea Piñeda: Licenciada en Psicología, docente e investigadora de la Universidad Nacional de San Luis, Argentina. Miembro del PI: "Conformación de la psicología como profesión regulada en Argentina. Estudio comparativo con la conformación de la psicología como profesión regulada en la Unión Europea.". Becaria de Ciencia y Técnica de la UNSL. Contacto: Ejército de los Andes 950, Edificio Plácido Horas (4 o Bloque), 2o piso, Box 7 1 - CP 5700 - San Luis. E-mail: [email protected] Anexo A Carrera de Psicología y Pedagogía. Escuela de Psicología y Pedagogía. Facultad de Filosofía y Humanidades. Universidad Nacional de Córdoba. Primer Plan de estudios de la Carrera de Psicología y Pedagogía. Año 1956. Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Primer Año: Introducción a la Filosofía Psicología I Pedagogía Historia de la Cultura I Neurofisiología Segundo Año: Historia de la Cultura II Psicología de la Infancia y de la Adolescencia Historia de la Educación Psicología II Psicoterapia Orientación Profesional I Prueba de suficiencia en Idioma: Francés o Italiano Tercer Año: Didáctica General Psicotecnia Orientación Profesional II Psicología Pedagógica Psicopatología General Cuarto Año: Ética Sociopsicología Teoría y Técnica del Psicoanálisis Legislación Escolar Argentina y Comparada Prueba de suficiencia en idioma: Inglés o Alemán Quinto Año: Filosofía de la Educación Antropología Filosófica Seminario y Práctica Psicológica (10 horas semanales) Título: Profesor en Psicología y Pedagogía: aprobación de todo el plan de estudios. Doctor en Psicología y Pedagogía: Dos años de egresado del profesorado y presentación de Tesis Doctoral sobre un tema original de la Especialidad elegida. Fuente: Resolución N° 40. Facultad de Filosofía y Humanidades. 23 de abril de 1956. Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de 182 Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Anexo B Licenciatura en Psicología. Facultad de Filosofía y Letras. Universidad Nacional de Córdoba. Primer Plan de Estudios de la Carrera de Psicología. Año 1958. Sección Psicología General 1) Psicología General 2) Caracterología 3) Psicología de la Personalidad B- Sección Metodología Psicometría Psicoestadística Psicología Diferencial Orientación y Selección Profesional C- Sección Psicofisiología 1) Sistema Nervioso o Neurofisiología 2) Psicofisiología D- Sección Psicología Clínica 1) Psicopatología General 2) Psicoterapia 3) Psicoanálisis E- Sección Psicología Evolutiva 1) Psicología de la Niñez 2) Psicología de la Adolescencia 3) Psicología Pedagógica F- Sección Psicología Social 1) Psicología Social 2) Sociología 3) Psicología Industrial G- Materias Filosóficas Obligatorias 1) Introducción a la Filosofía 2) Antropología Filosófica H- Cursos Electivos 1) Filosóficos 2) Históricos 3) Antropológicos 4) Cultura General Laboratorio de Psicología J- Examen de Idioma Moderno K- Examen final para la obtención de título de Licenciado L-Adscripción y trabajo de investigación en el Instituto de Psicología y Tesis Doctoral para la obtención del título de Doctor en Psicología. 1) 2) 3) 4) Fuente: Dirección General de Publicidad de la Universidad Nacional de Córdoba (1959) Ordenanza de creación de la Carrera de Psicología aprobada por el H. Consejo Superior el 29 de diciembre de 1958. Planes de Estudios. Horas Plácido (1961) La Enseñanza de la Psicología en la Universidad Argentina y otros comentarios. Anales del Instituto de Investigaciones Psicopedagógicas. 1959 -1961. (T.VI). Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de 183 Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Anexo C Tabla N° 1: Profesores de la Facultad de Filosofía y Humanidades de la Universidad Nacional de Córdoba vinculados al neoescolasticismo. 1937 1957. Profesor Castellano, Filemón Fragueiro, Alfredo González, Hilario Gouiran, Emilio Laguinge, Carlos Piérola, Raúl Alberto Torres, Francisco Tagle, Carlos Alberto Curso Año Psicología del carácter 1937 (serie de 4 conferencias) 1956 Psicología II Historia de la filosofía 1937 Psicología Racional 1953 Psicología (2 o curso) 1954 Curso de Psicología 1937 Psicología I 1954 Psicotecnia y 1956 Orientación Profesional I Psicología General 1957 Psicología 1942, 1944, 1946 1956, - Ética 1957, 1958 Fuente: Facultad de Filosofía y Humanidades. Programas de los Cursos de Filosofía y Psicología: 1937 - 1957, sobre un total de 23 profesores cuyos programas de cursos (24) y conferencias (16) fueron encontrados. Tabla N° 2: Circulación de libros de texto de psicología y temas afines, de autores escolásticos y neoescolásticos, en los cursos dictados por la Facultad de Filosofía y Letras. UNC: 1937 - 1957. Autor del texto Texto de Psicología y temas afines Aquinatis, -(1935). Summa Contra Sancti Gentiles. De. Marietti. Thomas -(s/f). In Aristótelis. Comentarium. Librum de anima. Barbado, -(1943). Introducción a la Manuel Psicología Experimental. Madrid: s/datos Ed. -(1946). Estudios de Psicología Experimental. Madrid: s/ datos Ed. Cursos en los que se citó -Psicología Racional, 1953. -Psicología Racional, 1953. -Psicología I, 1954 N° Total de citas citas autor a la obra 2 1 1 1 2 1 -Psicología I, 1954 Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de 184 Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm i-i i-i i-i i—i i-i 2 3 La Plata: UNLP. -(s(f). Traité de -Psicología I, Psychologie. S/datos Ed. 1954 -Psicología, 1946. -Psicología I, 1946. -Psicología I, 1954. -Psicología General, 1957. 1 -Psicología I, 1954 -Psicología Racional, 1953. -Psicología Racional, 1953. 6 i—i i—i -Psicología Racional, 1953. i—i i—i 2 2 i—i 2 i—i i—i 2 i—i -Introducción a la Filosofía, 1957. -Introducción a la Filosofía, 1957. -Psicología General, 1957. Jolivet, -(s/f). Psychologie. Paris: -Psicología Regis Lyon. General, 1957. -(s/f). Psicología. S/datos -Psicología Ed. General, 1957. Laburu, -(1940). Psicología Médica. -Psicología I I , José A. Ed. Mosca. 1956. -(1941). Anormalidades del carácter. Ed. De Seuil. -Psicología I I , 1956. Lindworsk -(s/f). Psicología -Psicología I, Experimental. S/ datos Ed. 1954. y,J. -(1950). El poder de la i—i -Aristóteles (s/f). Tratado del Alma. Traducción castellana (s/ datos editorial). -(1950). Tratado de Psicología Empírica y Expe rimen tal. Madrid: s/ datos Ed. -(En col. Zunini, G.) (1950). Introducción a la Psicología. Barcelona; s/ datos Ed. -Orientaciones de la Psicología Experimental. Barcelona: s/ datos Ed. -(1947). Lo spirito della Filosofía Mediévale. Brescia. -(1950). El Realismo Metódico. Madrid: Ed. Rialp. -(s/f). Le Tommisme. Descleé de Brower. -(s/f). El ser y la esencia. S/ datos Ed. -(s/f). Dios y la Filosofía. S/ datos Ed. -(1955). La Psychologie descriptive selon Franz Brentano. Paris: P.U.F. i—i Gilson, Etienne i—i Gemelli, Agostino i—i Fröebes, Joseph -(1950). La Persona. Su -Psicología esencia, su vida, su mundo. Racional, 1953. i—i Derisi, Octavio Nicolás Dwelshau vers, Georges Ennis, Antonio Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de 185 Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm i-i i-i i—i 6 materias 26 obras -Psicología I I , 1956. -Psicología Racional, 1953. 2 i—i Totales -Psicología Racional, 1953 i—i -Psicología I I , 1956. -Psicología I I , 1956. i—i voluntad. Bilbao: s/datos Ed. Nuttin, -(1953). Psicanalisi e Joseph Personalitá. Italia: Edizioni Poaline. Peillaube, -(1935). Caractere et E. Personalité. París: (s/datos ed.). -(1953). Carácter y Personalidad. Librería Sta. Catalina. Quiles, -Tomás de Aquino (s/f). Ismael Tratado de la unidad del entendimiento contra los Averroístas. Argentina: Espasa-Calpe. Traducción castellana. 27 27 c/ c/ obra aut Fuente: Facultad de Filosofía y Humanidades. Programas de los Cursos de Filosofía y Psicología: 1937 - 1957. [Análisis sociobibliométrico de la bibliografía de los programas de los cursos de Filosofía y Psicología de la Facultad de Filosofía y Humanidades de la UNC, sobre un total de 24 programas encontrados en el Archivo de la Facultad]. Tabla N° 3: Autores de interés para el neoescolasticismo incluidos en los contenidos de los programas de los cursos de Filosofía y Psicología de la Fac. de Filosofía y Humanidades. Autor i—i Suárez, Francisco i-i Mercier Santo Tomás i-i Gemelli Maritain N° Programas en los que Cont se estudia curso Psicología, 1954. Historia de la Filosofía, 1937. Psicología, 1954. Historia de la Filosofía, 8 1937. Psicología, 1942. Psicología, 1944. Psicología, 1945. Psicología Racional, 1953 Ética, 1956. Ética, 1957. Ética, 1956. 2 Ética, 1957. Fuente: Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de 186 Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Facultad de Filosofía y Humanidades. Programas de los Cursos de Filosofía y Psicología: 1937 - 1957. Tabla N°4: Cursos Electivos, Cursillos y Seminarios dictados por la Facultad de Filosofía (1958 - 1965), que podían ser tomados por los alumnos de psicología y de otras carreras. Curso electivo / Cursillo/ Seminario Didáctica General Filosofía de las Ciencias Seminario de Métodos y técnicas de Investigación Social Seminario de Sociología de la educación Cursillo de Antropología Filosófica Historia de la Educación Psicología Pedagógiga Pedagogía Etica Estética: Psicología de la belleza y el arte Estética Año 1959/60 1959 1964/1965 1959/1961/62/6 3/64 1963 1958/61/62/63 1960 1958/60/61/62 1959/62/63 1958/59/60 1961/62/63/64/ 65 Psicología 1964/65 Seminario de Pedagógica Seminario de Psicoterapia 1965 Lingüística General (curso y 1958/59/60/61/ seminario) 63/64/65 Cursillo de Didáctica 1965 Sociología 1958/61/62 Tabla N° 5: Circulación de autores y textos neoescolásticos en cursos electivos y seminarios de carácter filosóficos y psicológicos (1958 - 1965), según programas analizados. Materia Introducción a la Filosofía Año Profesor 1958 - Prof. Titular: 1964 Adelmo Montenegro Ref. autores neoescolás ticos Autor N — — Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de 187 Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Antropología Filosófica 1958 1959 1960 1961 1962 1963 Ética 1959, 1960, 1962, 1963 Prof. Vázquez Prof. Raggio Prof. Carpio Prof. M. A. Virasoro s/datos Prof. A. Weissman Prof. Titular -S. Carlos Tagle Tomás -Mercier - Maritain Balmés -Derisi -Quiles -Gilson Psicología Pedagógica 1960 1964 Electivo: Filosofía de la Ciencia. Electivo: Estética. Psicología de la belleza y el arte. Electivo: Psicología del Arte Electivo: Estética. Escuelas y tendencias estéticas y psicología del arte Electivo: La Antropología Filosófica de Francisco Romero Electivo: Métodos y Técnicas de la Investigación Social Seminario de Psicología Pedagógica. La Dislexia Infantil Seminario de Psicoterapia 1958 1959 1960 1963 Prof. Piérola S/ datos Dr. en Filosofía, Michott Andrés R. e Raggio. Raúl Alberto Piérola. 2 3 1 1 1 1 1 1 Raúl Alberto Piérola S/ datos Adelmo Montenegro R. 1964 - Dr. Prof. Adolfo 1965 Critto 1964 Lic. Blanca Rodríguez 1965 Dr. Paulino Moscovich Tabla N° 6: Egresados de la UNC que fueron docentes de la Carrera de Psicología de la UCC entre 1958 y 1965. Egresado Título Psicología Arrascaeta María Lic. Pedagogía Susana Carranza Reynoso Lic. Filosofía y Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de 188 Córdoba y el movimiento neoescolástico. Memorandum, 7, 165-188. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Ernesto Risler Susana Leila Surdo Hércules Eduardo Mocchiutti Juan Narciso Miotti Miguel Ángel Lic. Psicología Lic. Psicología Lic. y Dr. en Psicología Lic. en Psicología y Pedagogía Osvaldo Lic. Psicología Hepp Teodoro Arlette Fernández Juana Carrozi Silvia Rodríguez Pardina Oscar Lic. Pedagogía Psicopedagogía Médica Médico Cirujano y Data de recebimento: 08/06/2004 Data de aceite: 20/10/2004 Memorandum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm Guedes, M.C. (2004). Memoravel Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Memorándum, 7, 189-195. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.ritm 189 Nota Memoravel Carolina Martuscelli Bori (1924-2004) María do Carmo Guedes Pontificia Universidade Católcia de Sao Paulo Brasil Memoravel Etim.lat: memorabilis,e "digno de ser dito, digno de memoria". Ninguém melhor que Carolina Bori para receber esse nome. Oitenta anos, dos quais mais de cinqüenta batalhando pela psicología e a educagao (formou-se em Pedagogía pela USP em 1947) e pelo menos quarenta pela ciencia brasileira (para citar apenas o período a partir do qual se dedicou decididamente á SBPC), Doutora Carolina é lembrada por colegas das muitas instituigoes pelas quais passou como "urna das personalidades reconhecidamente mais expressivas da psicología e da ciencia brasileiras" (Carvalho, Matos, Tassara, Rocha e Silva, Souza e Machado) (1): Admirável colega, participagao inteligente e desassombrada em momentos críticos da vida nacional. Aziz Nacib Ab'Saber, Instituto de Estudos Avangados, USP Incansável [na luta] pelo desenvolvimento e reconhecimento da importancia da ciencia para nossa sociedade. Osear Sala, Instituto de Física, USP dentista que defende de maneira firme e despretensiosa os seus pontos de vista; que age com simplicidade e moderacao até mesmo ñas discussoes mais inflamadas; que se dedica com afinco a expansao da Ciencia em nosso país, principalmente entre os jovens. Maria Isaura Pereira de Queiroz, Antropóloga, FFLCH, USP Um notável exemplo de competencia dialógica, caracterizada por urna disponibilidade para receber o outro, um esforgo para entrar e compreender [seu] campo, urna atengao para escutar [seu] discurso, um cuidado para nao desviar [seu] processo e, finalmente, urna capacidade de questionar e orientar o trabalho do outro. Alberto Villani, Instituto de Física, USP Encarna admiravelmente o papel de intelectual humanista, cuja atividade é inseparável de urna visao ética de mundo. Gilberto Velho, Museu Nacional da UFRJ Carolina Martuscelli Bori nasceu em Sao Paulo. Formou-se professora na Escola Normal "da Praga" e em Pedagogía pela FFCL da USP, em 1947. É desse tempo que a conhece Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.htm Guedes, M.C. (2004). Memorável Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Memorándum, 7, 189-195. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.ritm 190 o Professor Azis Ab'Saber: "Desde cedo sobressaiu-se, por seus dotes intelectuais, culturáis e físicos", disse ele no velorio do dia 6 de outubro. Já um dos porteiros (2) do predio onde viveu os últimos "acho que quase vinte anos", diz déla que "era muito gentil com a gente, nunca deixou de dizer um bom dia, um boa noite, porque ela trabalhava muito, só chegava de noite, mas nunca deixou de cumprimentar quando chegava e quando saía. Era demais educada". E á minha pergunta sobre o que acontecía quando eu deixava lá alguma coisa para ser entregue a ela, disse: "Tinha bastante gente que fazia isso, deixavam trabalho, acho que pra ela ler. Ás vezes ela descia buscar, ás vezes a gente levava pra ela." - "Por que, é um sistema do predio?" - "Nao, nada disso, é porque a gente gostava déla." Insistí: "E também porque ela já era idosa..." - "Nao, nao era táo velha assim, ela trabalhava muito, ela até viajava a trabalho." Para Vera, que trabalhava com ela no Nupes há muitos anos, Professora Carolina "era um modelo para nos: vinha todos os dias, sempre no horario, sempre impecável; e vinha de ónibus!; chegava e já abria a correspondencia, respondía a todos, a tudo, mesmo o que a gente achava sem importancia". E Nicinha, que com ela trabalhou na SBPC, Professora Carolina "deixa um vazio que nunca será preenchido; ela nao podia vir muito, mas vinha e sempre aquela pessoa gentil, que sabia da gente, apoiava, ajudava." Para a Professora Titular do Departamento de Psicología Experimental da USP, Maria Amelia Matos, ex-aluna, depois colega de Departamento, possivelmente sua amiga mais próxima, Carolina. E o Professor Enio Candotti, atual Presidente da SBPC, completa: Carolina Bori [era] referencia obrigatória pelo seu rigor ético e principios sólidos (Folha de Sao Paulo, 8/10/04). Dizer que Carolina Bori "batalhou" significa lembrar nao só de seu incansável empenho pessoal, público e privado, mas também de muita indignagáo, muita braveza, muito estudo e muitíssimas reunioes, das quais participava atentamente, antes de, sempre ponderada, comedida, emitir sua opiniáo - "conhecimento meditado", segundo Ab'Saber (1998). Em 1995, ao organizar urna das muitas homenagens que recebeu quando de sua expulsória (como ela se referia á aposentadoria compulsoria - sistema segundo o qual a USP automáticamente elimina do quadro de ativos um dos seus quando do septuagésimo aniversario), tivemos oportunidade de entrevistar funcionarios de varias instituigoes. Nao era um projeto especial para ouvir apenas funcionarios, mas nos queríamos informagoes que ás vezes só eles poderiam dar. Na SBPC, a mais abrangente sociedade científica do país, a pergunta foi feita á equipe de secretarias: "o que - na opiniáo de secretarias que trabalharam com tantas diretorias - podia ser citado como projeto da Professora Carolina e no qual ela tivesse se empenhado de modo muito especial?". Depois de se entreolharem, mas quase ¡mediatamente, urna primeira resposta, unánime: o projeto das Regionais. Na verdade, apenas mais um projeto comprometido com a importancia da ciencia brasileira no desenvolvimento do país e com a difusáo do conhecimento científico, objetivos principáis de urna vida pública, marcada pela defesa firme de principios e idéias. Na defesa desses objetivos, Carolina Bori foi responsável, com a colaboragáo de muitos e urna firme mas sempre discreta coordenagáo, pela criagáo e/ou desenvolvimento de muitas das principáis associagoes científicas locáis e nacionais na Psicología. Colaborou sempre, competente e dedicadamente, e sem nenhuma vantagem pessoal, com diretorias e conselhos científicos dos mais importantes órgáos e associagoes nacionais em ciencia, educagáo, universidade e fomento á pesquisa, em muitas das quais exerceu os mais importantes cargos, eventualmente mais de urna vez. Mas também, e com o mesmo empenho, de pequeños grupos, ás vezes muito pouco abrangentes. Criou e chefiou unidades académicas em mais de urna instituigáo. Colaborou com a criagáo e participou de conselhos editoriais de importantes periódicos em ciencia e Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.htm Guedes, M.C. (2004). Memorável Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Memorándum, 7, 189-195. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.ritm 191 psicología no país e no exterior e era Presidente da SBPC quando da criagao de um periódico sobre ciencia para crianga. Carolina Bori criou e manteve-se, até o final, á frente de projetos importantes, como: a formagao de professores (ao falecer era ainda urna ativa diretora do Conselho Científico do Nupes, trabalhando há dois anos num projeto sobre a questao do negro na universidade, projeto que teve como urna de varias atividades um curso para professoras que enfrentam o episodio de discriminagao em sala de aula); a formagao do psicólogo e a disseminagao do conhecimento científico (na Reuniao Anual da Anpepp em maio de 2004, entre varios fóruns escolheu participar, e de fato participou ativamente, do fórum sobre relagao graduagao/pós-graduagao). E em entrevista em julho de 2004 (3), dizia: [Falar] sobre o que está por vir? Va/ depender do que se fizer agora. O futuro da Psicología depende dos que estao trabalhando [em] e lecionando psicología hoje. A esperanca está em fazer e nao em querer e esperar. II Le fruit est aveugle. C'est l'arbre qui voi (4). Rene Char "Com enorme capacidade de trabalho, Carolina Bori enfrentava múltiplas tarefas, que desempenhava sempre com igual zelo e denodo", disse déla o Professor Ab'Saber, com quem trabalhou por muitos anos na SBPC e no IBECC. E continua: "Sempre me impressionou o fato de, a despeito de toda sua dedicagao á SBPC, nunca ter abandonado o Instituto de Psicología, suas aulas, seus alunos, seu laboratorio de Psicología Experimental, a pós-graduagao, além de participar do IBECC." (Magalhaes, 1998) Era assim que Doutora Carolina trabalhava. Muito e bem. E dava conta porque sabia administrar, dirigir, coordenar. Dava conta porque, além de competente, era solidaria com suas equipes, tinha em alto grau o que Pessotti (1998) chamou de "lealdade institucional", e fazia de qualquer trabalho um projeto político. Trabalhando na formagao e aperfeigoamento de pessoal para atividade científica e de docencia (em todos os níveis), criou e ajudou a criar incontáveis grupos, disciplinares e interdisciplinares. E sabia, como só ela, imprimir nesses grupos o que Tunes e Simao (1998) chamaram de "um caráter coletivo", mostrando, com seu próprio exemplo, a possibilidade de diálogo dentro da Psicología e entre diferentes áreas de conhecimento. Ñas diretorias de que participou, soube sempre buscar apoios, descentralizando poder, expandindo fronteiras. Fez isso admiravelmente, e depoimentos preciosos o atestam, de colegas, de ex-alunos, de técnicos e de funcionarios administrativos (Matos, 1998). Fez isso em instituigoes de ensino, de pesquisa e fomento á pesquisa, bem como ñas diversas unidades académicas que teve oportunidade de chefiar e associagoes, nacionais e internacionais, cujas diretorias integrou. E o fazia como um servigo público, no mais alto sentido do termo, á Educagao, á Ciencia, á Psicología. Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.htm Guedes, M.C. (2004). Memorável Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Memorándum, 7, 189-195. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.ritm 192 III Morrer acontece com o que é breve e passa sem deixar vestigios. Carlos Drumond de Andrade Mas, ácima de tudo, Carolina Bori era urna Professora. E porque era urna grande Professora, deixa discípulos. De seus projetos, aquele com maior número de adeptos talvez seja o que vé na pesquisa científica feita com rigor o meio por excelencia de fazer Psicología, projeto que gerou a maior parte de importantes pesquisadores da área no país, e ñas mais diferentes perspectivas teóricas. Vale dizer, nao me refiro apenas á Psicología Experimental e á Análise do Comportamento, embora este seja seu projeto de maior repercussao internacional e que tem hoje, no Brasil, um seleto e muito produtivo grupo. No final de agosto deste ano, em Campiñas, participou da Reuniao Anual da ABPMC e do IV Congress of the International Association of Behavior Analysis, onde proferiu palestra para urna platéia de mais de 200 pesquisadores, grande parte formada por estudantes de graduagao e pós-graduagao, cujos trabalhos, expostos ao longo do Congresso, mostram a exuberancia da área no país. Em 2001, ao receber da ABA o Award for the International Disseminatoion of Behavior Analysis, Carolina Bori dizia, com sua modestia (ela diria objetividade) de sempre: É preciso manter presente que tal empreendimento [o crescimento da Análise do Comportamento no Brasil] envolveu um grande conjunto de pessoas: alunos, professores, grupos de pesquisa e profissionais. O desenvolvimento da Análise do Comportamento no Brasil é o resultado de seu trabalho coletivo. (grifo meu) Na defesa da ciencia e da pesquisa científica, seus discípulos se espalham por todas as áreas do conhecimento e a grande maioria das universidades brasileiras. Sua atuagao foi marcante, como Presidente da SBPC entre 1986 e 1989, período da reconstrugao da democracia no país, quando soube defender bravamente tanto a presenga de cientistas nos conselhos e comissoes de governo quanto a autonomía da Sociedade (Ennio Candotti, 1989). Como pesquisadora do Instituto Butanta [quero] destacar o valor de sua atuagao em pro! dos dezessete Institutos de Pesquisa das Secretarias do Estado de Sao Paulo. Alba Aparecida de Campos Lavras, Instituto Butanta, USP Fica, assim, a esperanga de que O exemplo de toda urna vida dedicada a pesquisa e ao ensino superior talvez contribua para urna mudanca de atitude e urna compreensao do papel da ciencia como propulsora do progresso social. Francisco Mauro Salzano, Instituto de Biociéncias, UFRGS Na encruzilhada de futuro incerto em que todos nos encontramos mundo, país, universidade -, que se multiplique seu exemplo. Como espelho. Como historia viva, aquela que permanece registrada para sempre. Marcello G. Tassara, Escola de Comunicagao e Artes, USP Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.htm Guedes, M.C. (2004). Memorável Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Memorándum, 7, 189-195. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.ritm 193 No que se refere á difusao do conhecimento científico, foi urna "sementé que germinou" (Pacheco Filho, 1989). Seus principáis discípulos compreendem, além de colegas e estudantes universitarios, ainda um sem número de técnicos e funcionarios de diversas instituigoes e diferentes órgaos de governo com os quais ou em favor dos quais trabalhou. Urna manifestagao do apoio que [Carolina Bori] recebia a suas solicitagoes foi a pronta aceitagao ao convite que formulou a dentistas de diferentes áreas para comporem o Conselho do 'Projeto Estagao Ciencia'. Vera Soares, Centro de Cooperagao de Atividades Especiáis, USP No incentivo á pesquisa, trabalhou na viabilizagao de políticas adequadas á pesquisa na psicología, ñas ciencias humanas, na ciencia em geral. Vestigios de seu trabalho nesta área sao fácilmente identificáveis no que se refere aos orientandos que levou a defesa em diversas instituigoes, num total que já alcangava cem (entre mestrandos e doutorandos) quando de sua "aposentadora" em 1994. Como orientadora, nunca dizia o que devia ser feito. Seus comentarios a nossos textos podiam resumir-se a pequeñas interrogagoes sobre termos [imprecisos, claro], ou urna ou outra palavra ou frase curta á margem, com sua letra característicamente gentil. Mas diziam respeito sempre ao que tinha sido feito e nao áquilo que poderíamos ou deveríamos ter feito. Como disse Villani (1998), com quem trabalhou no Instituto de Física: "de um lado estimulava o prazer de elaborar o trabalho e, de outro, sublinhava nossa responsabilidade quanto á produgao de novos conhecimentos". E o que falar de tantos "nao-orientandos" que ela atendeu e do atendimento que nunca deixou de prestar a todo o pessoal com quem trabalhou, aos ex-orientandos, a colegas de seus orientandos, e até a amigos e familiares de toda essa gente? A todos sempre acolhia: para urna indicagao bibliográfica, para empréstimo de material, para discutir urna idéia, para ajudar num projeto, para repartir informagoes, e até apenas para ouvir. Será que nao aprendemos todos, com ela, a importancia do acolher (etim. lat. vulg. accolligere = reunir, juntar)? Mas há ainda suas palavras, em aulas e bancas de qualificagao e defesa de dissertagoes e teses e em palestras, conferencias, simposios, debates que alcangaram diretamente tanto colegas quanto um sem número de estudantes, de graduagao e de pós-graduagao e na maior parte das instituigoes de ensino superior brasileiras, bem como de jovens e nao tao jovens professores, nessas e em outras instituigoes, as mais diversas. Nao duvido que haja muita gente que diria ter muito aprendido com ela, em oportunidades muito curtas ou mesmo únicas. Vou sempre me lembrar da Professora Carolina como urna grande amiga e incentivadora do nosso grupo [de Pesquisa em Historia da Psicología], com a visao ampia e generosa que ela sempre teve em relagao a ciencia. Regina Helena de Freitas Campos (UFMG) Fazendo minha tese na Antropología Social, freqüentei alguns seminarios e partícipe'! de grupo de estudos no Nupes. Um día, perguntando sobre minha pesquisa, Professora Carolina passou urna tarde me ouvindo e sugerindo leituras. E me impressionava também a independencia déla: dei carona algumas vezes para sair da USP, mas nunca me deixou ir além da Faria Lima: "Aquí eu já tenho condugao". Eliana de Oliveira, Pesquisadora no NEINB Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.htm Guedes, M.C. (2004). Memorável Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Memorándum, 7, 189-195. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.ritm 194 Mantidos sempre seus principios, Carolina Bori nao recusava apoio á formagáo de grupos de pesquisa. Nao recusava assessoria a colegiados. Nao recusava convite de estudantes. Nao recusava dar pareceres a pesquisas. E exerceu muitos cargos académicos. E, em todas as tarefas, o contato direto ia além daquele com colegas ou alunos, era também com técnicos e funcionarios administrativos. E isso gerava ainda um tipo a mais de atendimento, conseqüéncia de seu enorme respeito as pessoas e de sua incrível ética. Finalmente, cabe lembrar que sabia, como ninguém, incentivar pesquisadores "de primeira viagem". Tivemos oportunidade de vé-la questionando as pesquisas expostas na Reuniáo Anual da SBP em 2003, em Belo Horizonte. Á saída da sala, um depoimento espontáneo de um bolsista de Iniciagáo Científica de urna universidade do interior do Paraná, que se apresentava em público pela primeira vez: Fiquei impressionado. Para todos os projetos apresentados ELA tinha urna pergunta "de verdade" e um comentario que incentivava a gente. Depois dessa experiencia, vou continuar a pesquisa, sem dúvida. (o grifo nao é meu) Parafraseando Susan Polis Schutz, quando se tem urna Mestra qui poursuit dans la vie ses propres objectifs et nous laisse y prendre part, on a beaucoup de chance... (5) Obrigada, Carolina Bori, por ter sido tal Professora. Notas (1) Para maior fluidez do texto, as referencias sao ás vezes indicadas apenas pelos seus autores. Sao todas tiradas de seus depoimentos publicados em Psicología USP, 9 (1), de 1998, organizado por Maria Amelia Matos. (2) Entrevistado em 18/10/04 "para um trabalho sobre a Professora Carolina", o Porteiro nos disse seu nome e completou: "Mas nao precisa por, o importante é que tenho certeza que estou falando por todos." (3) "Conversando com Carolina Bori". Entrevista gravada em DVD para a ABPMC fwww.youruba.com.br'). (4) "O fruto é cegó/ é a árvore que vé." Este verso já foi usado na correspondencia em que convidávamos colaboradores e ex-alunos da Professora Carolina a participar da Exposigáo interativa que, em sua homenagem, realizamos com apoio da FATG em 1995, durante a Reuniao anual da SPRP. (5) "que persegue na vida/ seus próprios objetivos/ e nos deixa deles participar/ temse muita sorte...". Siglas utilizadas ABA - Association of Behavior Analysis ABPMC - Associagáo Brasileira de Medicina e Terapia Comportamental ANPEPP - Associagáo Nacional de Pesquisa e Pós-Graduagáo em Psicología CENAFOR - Centro de Aperfeigoamento á Formagao FATG - Fundagáo Aniela e Tadeusz Ginsberg FFCL - Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras IBECC - Instituto Brasileiro de Educagáo, Cultura e Ciencia da Unesco Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.htm Guedes, M.C. (2004). Memorável Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Memorándum, 7, 189-195. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.ritm 195 NEINB - Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro, USP NUPES - Núcleo de Pesquisa sobre Ensino Superior, USP PUC-SP - Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo SBP - Sociedade Brasileira de Psicología SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciencia SPRP - Sociedade de Psicología de Ribeirao Preto UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro USP - Universidade de Sao Paulo Nota sobre a autora María do Pontificia junto ao Contato: Carmo Guedes é formada em filosofía e doutora em psicología, professora na Universidade Católica de Sao Paulo e dirige o Núcleo de Historia da Psicología Programa de Pós-graduagao em Psicología Social da mesma instituigao. [email protected] Data de recebimento: 20/10/2004 Data de aceite: 24/10/2004 Memorándum 7, out/2004 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.htm
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