Leia trecho do livro Paz Guerreira

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Leia trecho do livro Paz Guerreira
 PAZ GUERREIRA
O CAMINHO DAS DEZESSEIS PÉTALAS
DEDICATÓRIA PÓSTUMA
C
ada palavra desta obra está imbuída do
espírito, da marcante presença, mesmo na
ausência, e dos profundos ensinamentos de um grande
homem, exemplo de cavalheiro, que soube praticar
cada uma das virtudes que sempre se dedicou a
ensinar a seus discípulos.
Verdadeiro guerreiro da paz, que dedicou sua vida
às pessoas, pautando cada um de seus atos, do mais
grandioso ao aparentemente mais insignificante, em
profunda elegância e generosa altivez.
Não poderia dedicar esta obra a outra pessoa que
não a meu professor, pai espiritual, exemplo de vida e
Mestre no mais profundo sentido do termo, Michel
Echenique Isasa.
AGRADECIMENTOS
A
conclusão desta obra marcou o final de um
importante trabalho e o início de um novo
ciclo, tendo contado com a colaboração de muitas pessoas, que não posso deixar de mencionar.
Agradeço especialmente a minhas mestras, Beatriz
Díez Canseco e Delia Steinberg Guzmán.
A Luzia Helena Echenique, por seu apoio incondicional.
A minha querida esposa, Giovanna Husseini, pela
dedicação, compreensão e inspiração com que me
brindou nas muitas horas de trabalho dedicadas a esta
obra.
A Roberto Pompeo, discípulo, que esteve presente
em todas as horas deste livro, tendo cada uma de suas
linhas passado por seu crivo e lapidação.
PREFÁCIO
E
ste livro foi escrito com um sentimento de profunda devoção,
com o entusiasmo próprio de um guerreiro que, por amor ao seu
Mestre, se transformou em um artista e Mestre das artes marciais, principalmente das artes marciais filosóficas.
Um dos maiores sonhos desses especiais guerreiros é “vencer sem lutar”. Um sonho comum a homens e mulheres que na verdade guarda um
conceito da marcialidade profundamente penetrado de conteúdo filosófico e humanista.
Você sabe o que é sonho? Pois Talal Husseini fala do sonho como
“uma esfera onde homens e deuses se encontram. No sonho habita algo
dos deuses e algo dos homens, os deuses através dos sonhos delegam
seu poder, os homens são agraciados pela capacidade de seguir sonhando, realizando e conquistando”. E este é o sonho de Talal e de seu
Mestre Michel: a Paz Guerreira.
O que um guerreiro faz? Luta, conquista, avança, domina. Fundamentalmente, protege os demais, que não têm em conta esta especial forma
de encarar a vida e seus inúmeros desafios. Um guerreiro enfrenta todos
eles, é um eterno inconformado com a injustiça, a falsidade, a corrupção, a irresponsabilidade e a ilusão.
Mas no mundo, tanto nas sociedades atuais, quanto no decurso da história, eles não estão sozinhos. Encontram-se com homens e mulheres
que também têm uma espécie de facilidade para os enfrentamentos e as
lutas, embora nem sempre disponham de valor, inteligência e superioridade humana suficientes para lhes permitir abrir um acesso a uma porta
interior, para justamente desenvolver todo o seu potencial guerreiro com
vistas a essa superioridade humana que leva à paz e à concórdia.
O autor deste livro é hoje um Mestre das Artes Marciais Filosóficas.
Eu o conheci há muitos anos, ainda um adolescente, cheio de entusiasmo, vigor e amor pelas artes marciais. Foi o que o levou a conhecer o
seu Mestre, Prof. Michel Echenique, que o formou desde então para
uma trilha intensa de desenvolvimento marcial semeada através da filosofia à maneira clássica.
Assim, por meio dessa relação profunda entre Mestre e discípulo,
Talal Husseini fala de Paz Guerreira e de Vencer sem lutar não apenas
tratando de usar frases de impacto, mas sim trazendo conceitos filosóficos profundos que lhe foram ensinados e que ele levou como prática de
vida. Agora, reuniu esses ensinamentos neste romance e nos presenteou,
com total entrega, como forma de retribuição por tudo que recebeu e
aprendeu com seu Mestre.
A Paz Guerreira é um livro sobre a necessária disposição e uso das
virtudes guerreiras para todo aquele que se propõe a seguir por este caminho. Se queres a paz, então prepara-te para lutar por ela, ensinaram os
mais sábios.
Muitas vezes, cremos ser necessário possuir armas para velar ou lutar,
seja pela nossa segurança, pela Justiça, ou pela Verdade. Nesta obra,
encontramos muitas e verdadeiras armas, como por exemplo: a virtude
do Respeito. Devemos então nos armar, se realmente nos dispomos como homens e mulheres idealistas e valentes protetores dos Valores da
Humanidade, das sociedades e de cada ser vivo.
11ª Pétala – Respeito: “o Respeito é a virtude Cidadã. Não é possível
construir uma civilização onde reine a ordem e a justiça sem dedicar
muito respeito aos valores e à Convivência, sem o devido reconhecimento e aceitação das tradições, dos valores do Estado, dos valores
morais e dos conselhos dos sábios”.
Quando ocupamos muito tempo da nossa vida diária na luta pelos
Ideais de Justiça e de Humanidade, às vezes, nos sentimos abater, can14
sados, sem esperança. Mas recordamos que nas lutas e batalhas (tanto
interiores quanto exteriores) devemos observar constantemente a nossa
própria capacidade de autorrenovação durante a luta, e não deixar que o
fogo que ilumina e arde dentro de nós se apague. Também não devemos
permitir que a esperança de um mundo novo e melhor se dilua ou se
esconda dos seres humanos, pois a esperança é outra das grandes forças
que necessitamos proteger como guerreiros.
O autor nesta obra também nos enriquece com a alusão a mitos atemporais – velhos contos de velhos Mestres guerreiros – como aquele sobre a corda que comunica o céu com a terra. A tradição guerreira filosófica revela à nossa consciência algo fundamental que em geral tem sido
esquecido, apagado da memória humana: que tudo ao nosso redor guarda uma Ordem, que nada vem do acaso. Quando buscamos o melhor e o
mais justo não podemos nos contentar apenas com uma busca horizontal, na medida em que ampliamos a busca teremos que recorrer a tudo
que apontaram e ensinaram Mestres e Sábios de todos os tempos, e eles
sempre apontaram para o alto, para o espírito que está detrás do Sol e
que é a causa ultérrima de tudo.
“Não há poder sobre quem não teme” – este é outro conceito maravilhoso encontrado nesta obra. Aprender a lidar com o medo, conviver
com ele, assimilá-lo, dominá-lo, é um dos grandes aprendizados que a
trilha das artes marciais filosóficas nos lega insistentemente. Também
um dos grandes filósofos de todos os tempos – Sócrates – dá-nos o seu
ensinamento sobre a imortalidade da alma no diálogo Fédon. Devemos
aprender a enfrentar a morte, dizia o filósofo. E, como guerreiros e
filósofos, de quantas e diversas maneiras essa luta não se apresenta diariamente nas nossas vidas?
Toda a vida consiste em aprender a morrer, e aprender a fazê-lo com
honra e dignidade, dizia Sócrates, que além de filósofo foi um grande
guerreiro ateniense.
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A Paz Guerreira é um livro de profundos ensinamentos filosóficos,
mas recheado com batalhas físicas, psíquicas e mentais, em que a exigência é manter-se atento e concentrado. Com uma trama estimulante,
reativa nossa ação de potencial inteligente: física, psicológica, mental e
espiritual, tanto individual quanto coletivamente. E isso é tremendamente estratégico, pois educar os seres humanos na mentalidade de sermos
Um promove uma ação unificadora em que todos os movimentos serão
de um só corpo. E isso é união, isso é eficiência.
Considero-me sua Irmã de Armas nesta vida, armas filosóficas, morais e pedagógicas. Nós lutamos por um Ideal de Sabedoria.
E aquele velho orgulho guerreiro me preenche o coração, por conceder-me a honra de apresentar este livro, esta saga!
Luzia Helena de Oliveira Matos Echenique
Diretora Nacional da Associação Cultural Nova Acrópole
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SUMÁRIO
Eixo do Poder
1ª Pétala: Humildade ............................................................................. 23
2ª Pétala: Admiração ............................................................................. 79
3ª Pétala: Força.................................................................................... 141
4ª Pétala: Liderança............................................................................. 185
Eixo da Realeza
5ª Pétala: Obediência .......................................................................... 239
6ª Pétala: Nobreza ............................................................................... 277
7ª Pétala: Honra................................................................................... 321
8ª Pétala: Cavalaria ............................................................................. 361
Eixo do Senado
9ª Pétala: Retidão .............................................................................. 403
10ª Pétala: Coragem ............................................................................ 437
11ª Pétala: Respeito............................................................................. 477
12ª Pétala: Regulamento ..................................................................... 513
Eixo do Império
13ª Pétala: Paciência ........................................................................... 547
14ª Pétala: Valor.................................................................................. 583
15ª Pétala: Determinação .................................................................... 621
16ª Pétala: Destino .............................................................................. 669 1.
O
s dois exércitos distavam cerca de mil metros um do outro. À
frente dos seus, perfilados, lanças em punho, imóveis, Sokárin
observava o rei adversário, que também permanecia imóvel. As tropas
adversárias reluziam sob o Sol em suas armaduras completamente brancas. No exército de Sokárin, ao contrário, todos trajavam negro, da cabeça aos pés.
Os exércitos se equivaliam em número e força. A batalha seria decidida nos detalhes, qualquer pequeno erro poderia ser fatal. Talvez por
isso a demora na tomada de alguma iniciativa. Sokárin não enxergava
em cores, somente em branco e preto.
Esse momento de expectativa gerava uma tensão crescente no campo
de batalha. Todos os soldados, dos dois lados, só esperavam um gesto
do seu líder para arremeter contra o oponente. O Rei branco levantou
sua lança. Imediatamente Sokárin o imitou, como num espelho, já que
usava a lança na mão esquerda. Praticamente juntos baixaram as lanças,
em sinal de ataque. Sokárin, o Rei negro, reparou que nada ouvia do
galope e dos gritos dos soldados. Tudo lhe parecia num ritmo lento, um
completo silêncio.
Esse transe foi quebrado pelo estrondo produzido pelo encontro dos
exércitos. O choque das armaduras se fez ouvir a quilômetros de distância. Agora Sokárin sentia-se no fragor da batalha, gritos, de guerra e de
dor, ecoavam por todo o espaço, membros decepados, sangue jorrando
por todos os lados. Ajudava não enxergar cores, pois não é a todos que o
vermelho do sangue faz bem.
O Rei negro manejava sua espada com destreza, buscando o Rei
branco no campo de batalha. Podia distingui-lo dos demais de uniforme
branco pelo estandarte que o acompanhava. O estandarte também o proTALAL HUSSEINI
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curava, vinha em sua direção. Ambos pisavam os cadáveres: mais de
metade de cada um dos exércitos já sucumbira.
Finalmente, os dois reis se encontraram frente a frente. A luta arrefeceu, como que numa trégua tácita. Abriu-se um círculo em torno dos
monarcas. A cena era pitoresca, pois parecia uma dança diante de um
espelho.
O duelo seguia ferrenho, nenhum lograva atingir o outro de forma definitiva, quando algo chamou a atenção de Sokárin. Ele olhou o céu na
direção de um guincho que parecia ser de falcão. Foi bem menos do que
um segundo de desatenção, mas o suficiente para que a espada do Rei
branco lhe trespassasse o ventre, saindo nas costas junto à coluna vertebral. Órgãos vitais foram atingidos. O golpe era fatal. Sokárin teve certeza quando viu seu sangue, vermelho, manchar o chão...
Pela primeira vez em sua vida, via uma cor. Ainda teve tempo de
olhar ao redor e ver o exército negro recuar atônito e frágil, ante a morte
de seu líder. Os soldados de branco guardavam silêncio, provavelmente
esperando que se lhe esvaísse o último sopro de vida para soltar seu
brado de vitória.
Prostrado na terra, com a espada cravada no ventre, fixava o seu algoz, que retirava o elmo. Seu rosto... A última imagem que Sokárin viu
foi seu próprio rosto no lugar daquele que o vencera...
Sokárin acordou ofegante, imediatamente levando as mãos ao ventre,
onde a espada entrara. Nada. Um pesadelo. Real, mas um sonho apenas.
O velho Rei sentia o cansaço da batalha e as dores da sua idade avançada. Seu coração palpitava dentro do peito. Ficou alguns minutos sentado
em sua cama, até a respiração se normalizar. Estava confuso, procurava
um sentido para aquele sonho, tão real, tão vívido...
Saiu do seu quarto para o terraço de onde dominava toda a capital.
Estava envolto naquele tipo de solidão que só os monarcas conhecem.
Vivia sozinho entre os homens. E agora, com mais de oitenta anos,
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PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
aproximava-se sozinho da morte. Já havia algumas noites que não conseguia dormir pensando na sua sucessão. A transferência do poder é
sempre um momento delicado em qualquer organização. Num País, é
um momento crítico. Pode ser a consagração e reafirmação das instituições ou sua degradação. O júbilo ou o padecimento do povo nos anos
subsequentes.
Cogitava. Quase meio século de reinado. Os anos maravilhosos do
início desse período não passavam de memórias distantes. O Rei já não
se lembrava em que momento perdera o rumo, traíra sua própria natureza e se deixara manipular por interesses que não levavam em conta os
anseios do povo e, pior, dos deuses. Pode alguém governar afastado
dessas diretrizes? Devia ter deixado o trono quando não teve mais energia para fazer valer sua vontade... Mas não era tão simples assim...
Entretanto, esse sonho, esse pesadelo, o impressionara de tal forma
que tudo lhe parecia parte de uma estranha realidade. Era como se acordasse de um sonho dentro de outro sonho, o sonho de outra pessoa... Os
sentimentos que se lhe amalgamavam na alma eram intensos... Tudo
mudava em seu coração. Sim, ele não podia mais comandar um exército
negro. Se na sua vida levara o País em direção às trevas, não podia permitir que em sua morte elas tomassem definitivamente conta de tudo e
subvertessem a ordem.
A noite estava escura como o breu. Lua nova. Estranhas energias estavam à solta no reino naqueles tempos, e aquela noite em especial era
ainda mais lúgubre. Um calafrio percorreu a espinha do velho Monarca.
O vento estava gelado. Silêncio demais. Uma paz ameaçadora. Da sua
sucessão dependia o futuro do reino. Sim, aquele sonho o fizera entender: estava do lado errado e por isso vinha matando a si mesmo... Mas
ainda havia tempo para mudar. A transição devia ser pacífica, e o próximo rei um homem moral. A placa de pedra com o nome do sucessor
gravado pessoalmente pelo Rei devia ser postada na estela em que figuravam os nomes de todos os soberanos que o antecederam e o seu. Essa
placa ficava coberta com um lacre de metal, que só seria aberto quando
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da sua morte. A abertura se operava somente com duas chaves codificadas. Uma era o sinete do Rei. A outra ficava com o chefe do Conselho
dos Anciãos. Perto de todos, mas fora do alcance. Vigilância o dia todo,
todos os dias. O Rei sentia que estava próximo o momento em que o
nome ali depositado seria revelado.
O chefe do Conselho dos Anciãos era um nobre dos mais considerados de todo o reino, homem acima de qualquer suspeita. A placa era
infalsificável, pois havia um teste alquímico, feito na peça antes de gravada e repetido depois de aberta a sucessão, o que tornava impossível
que a substituição não fosse detectada. Poucas pessoas no reino sabiam
desse procedimento. O sistema de indicação do sucessor fora mudado
quando problemas ocorreram – uma única vez na história do País – muitos séculos antes, levando a uma guerra civil que durara quase dez anos.
A experiência fora traumática para todos, e desde então as sucessões,
apesar da tensão natural desses momentos, sempre correram normalmente. O vento da noite esfriou ainda mais, trazendo Sokárin de volta
de seus pensamentos à realidade de seu corpo alquebrado. Entrou nos
seus aposentos para ali passar as horas restantes de sua insônia.
Urgia que a placa com o nome do sucessor fosse trocada... Só havia
um nome possível para devolver o reino aos seus tempos de ouro...
Sokárin já o observava havia algum tempo. O sonho lhe dava a coragem
necessária para a mudança, mas precisava agir rápido, sua vida já não
importava, o destino de todo o País estava em jogo...
2.
O
dia amanheceu sombrio. Como sombrio era Ofis, assistente do
palácio, espécie de encarregado geral, a quem se atribuíam as
funções mais variadas, inclusive serviços duvidosos, que por sinal eram
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PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
os que mais lhe davam prazer. Seria difícil precisar sua idade, bem como sua origem étnica. Homem de poucas palavras, ninguém no palácio
se lembrava de alguma vez tê-lo visto sorrir. Mas cumpria suas tarefas
com empenho e eficiência. Ofis parecia composto apenas de pele e ossos, mas não que fosse absolutamente magro, havia um preenchimento
sólido como madeira que lhe outorgava um aspecto de indestrutibilidade. Não se sabia no palácio qual era exatamente a sua função ou cargo,
mas isso jamais era questionado ou comentado. Melhor não se envolver
com ele. Circulava o boato de que era violento, mas nunca foi visto envolvido em qualquer altercação. Inspirava temor.
Não comungava desse temor Adaran, o Primeiro-Ministro, braço direito do Rei. Ao contrário, Ofis é que parecia temê-lo, talvez por reconhecer o seu poder dentro do reino. Adaran era um homem de educação
refinada, sempre em absoluto controle de seus pensamentos e emoções.
Transmitia a todos respeitabilidade e segurança. Conduzia os assuntos
do Estado com mão de ferro, e todos sabiam que era praticamente ele
quem governava desde que a saúde do Rei se deteriorara. Mas mesmo
assim evitava o assunto da sucessão, demonstrando de forma clara que
refutava completamente a ideia de substituir Sokárin, apenas não se
furtando de dar sua contribuição às questões públicas se necessário.
Adaran estava sempre vestido de maneira impecável. Dominando vários idiomas, transitava pelas mais altas cúpulas da política internacional
com grande naturalidade. Exímio espadachim e lutador, fazia questão de
deixar evidente seu repúdio pela violência, preferindo sempre que possível as soluções diplomáticas para os impasses. Ao chegar ao Conselho
dos Anciãos, foi abordado por um dos senadores:
– Sr. Adaran, comenta-se que o estado de saúde do Rei se deteriora
rapidamente... Saiba que tem todo o meu apoio para a melhor condução
dos assuntos do interesse do nosso reino, mesmo depois que Sokárin
se for...
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– Senador, agradeço seu interesse pelos assuntos de Estado, mas
cumprido meu papel neste governo pretendo dedicar-me às minhas empresas, que estão negligenciadas desde que apoio o Rei. Ademais, Vossa
Excelência pode estar tranquilo, pois Sokárin governa com muito pulso
e ainda vai nos enterrar a todos. Agora, se me permite... – concluiu já se
retirando em direção à mesa da chefia.
No Conselho dos Anciãos, reuniam-se os quarenta e nove senadores,
que serviam como um órgão consultivo para o Rei, aportando com sua
experiência e conhecimentos nas mais diversas áreas. O Chefe do Conselho dos Anciãos era o Senador Rohel, que tinha a atribuição de Custódio das Tradições. Era um homem de olhar sereno, mas firme, a quem
o peso da idade avançada – era contemporâneo do Rei – não havia atingido ainda. Educado nas antigas tradições, o Senador Rohel não aceitava com facilidade a decadência que o sistema educacional experimentava, assim como várias outras instituições de Estado. Talvez fosse um
saudosismo injustificado, afinal não estavam os mais velhos sempre a
pensar que as coisas e os jovens de agora eram piores do que os de antes? Iludindo-se dessa forma em seus pensamentos para ocultar de si
mesmo as evidências, o ancião viu aproximar-se Adaran:
– Saudações, Senhor Primeiro-Ministro.
– Saudações, Senador Rohel. Como vai a Sra. Inari?
– Bem, obrigado, dentro do que se permite aos velhos...
– Sua esposa conserva o vigor e a energia da juventude, assim como
Vossa Excelência.
– Poupe sua diplomacia para quem acredita nela, Adaran, não compensa gastar seus elogios com alguém que já está mais próximo do outro
lado da existência do que deste... Mas vamos aos trabalhos?
– É claro, Senador.
O Senador Rohel brandiu um antigo martelo de madeira maciça, lançando-o por três vezes sobre um apoio de madeira com uma energia tal,
de que se custaria a crer ele fosse capaz. Anunciou:
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PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
– Senhores Senadores, está aberta a sessão! Como previamente anunciado, não há deliberações, destinando-se esta jornada à manifestação
do Senhor Primeiro-Ministro, a quem passo desde logo a palavra.
Subindo ao púlpito, Adaran agradeceu meneando a cabeça:
– Senhor Chefe do Conselho, senhores Senadores, como todos sabem, a causa que me traz a esta plenária, a pedido do Rei, é, como todos
sabemos, e não podemos nos utilizar de meias palavras neste foro, o
estado de saúde debilitado de Sua Majestade, crendo ele mesmo que
este ano será o último do seu reinado. É importante, pois, que todos envidemos esforços para apoiar integralmente o escolhido, tendo em vista
que a sua escolha foi amparada pela decisão sábia de nosso Monarca.
– Adaran, não há qualquer dúvida de que você será o sucessor – gritou um dos senadores, do fundo da assistência.
– Todos sabem que não tenho qualquer interesse nesse pesado encargo, pois estou envolvido na política em razão do acaso e do senso de
dever cívico que não me permitiu declinar do pedido de auxílio que me
foi dirigido. Prefiro, portanto, nesta etapa de minha vida, ver-me livre
das funções estatais, para dedicar-me aos meus assuntos pessoais. Entretanto, não poderei me furtar, se for esse o caso, de cumprir com o meu
dever de cidadão, pois não me reservo o direito de abandonar minhas
obrigações em função de minha felicidade pessoal.
Apupos avolumaram-se por todo o ambiente. Pelo menos dois terços
dos presentes aplaudiam fervorosamente o cativante Primeiro-Ministro.
Não havia dúvida de que ele era a pessoa indicada para conduzir o reino
a uma nova era de prosperidade e pujança.
O Senador Rohel estava entre a minoria que não se manifestou diante
das palavras de Adaran. O ancião não gostava do Primeiro-Ministro. Se
lhe perguntassem que razões objetivas tinha para isso não saberia responder, mas ao longo dos anos aprendera a ler as pessoas por algo além
de seus atos e palavras. Algo em Adaran não lhe agradava.
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O Primeiro-Ministro entrou na carruagem que o aguardava, conduzido por Ofis, partindo rapidamente.
Adaran saiu do Senado e foi à Real Sociedade, que era um local onde
a elite da Capital se encontrava para a prática de esportes. O lugar ficava
num antigo castelo, com muitos jardins e bosques. Oferecia também
banhos a vapor e ambientes de reunião e conversa, em que questões
importantes do poder e assuntos intelectuais eram tratados. Adaran tinha
direito a uma revanche contra Haggi Eitan, que o vencera dois dias antes, depois de um duelo equilibrado com espadas. Por isso gostava de
lutar com Haggi: os outros membros da Sociedade não eram páreo para
ele. Kadriel ainda o fazia suar um pouco, mas não o vencia. Haggi era
diferente. Tinha um estilo mais clássico, de movimentos suaves, rápidos
e precisos. Boa defesa, era difícil de ser atingido. Seria uma boa luta.
Hoje estava motivado.
No entanto, mais uma vez, Haggi Eitan venceu. Perder a luta não era
tão ruim, pois isso incentivava Adaran a melhorar ainda mais sua técnica. Ruim era encarar o sorriso irônico e desdenhoso de Haggi, mas era
impossível zangar-se com ele, tal o seu carisma. Não havia quem não
gostasse dele. Daí o seu sucesso na carreira diplomática. Ainda assim,
nunca se podia saber se falava a verdade. Ocultava muito bem seus pensamentos e emoções. Era um jogador.
Depois do duelo, sentavam-se na adega para conversar sobre os rumos da política mundial e tomar um vinho. Uniu-se a eles Golan, filho
mais velho do Rei Sokárin. Era frequentador da Real Sociedade e das
rodas de conversa, mas nunca lutava contra Adaran ou Haggi por ser de
nível muito inferior. Seria uma humilhação para ele e um aborrecimento
para os outros. O mesmo nível mediano que tinha com as espadas se
refletia em sua vida. Era médio em tudo. Competente, é verdade, em
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PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
qualquer atribuição que lhe fosse designada, mas sem iniciativa para ir
além. Muitos achavam que seria o sucessor natural do Rei. Ele tinha
certeza.
– Então, senhores – disse, já sentando-se à mesa, com ar satisfeito –
como foi o combate?
– Por que tanta alegria, Golan, já está dando seu pai como morto? Ou
sabe alguma coisa que nós não sabemos? – ironizou Haggi
– Golan ficou sem graça:
– Não, de forma alguma… Só estou contente em ver os amigos…
– Não precisa ficar sem graça, foi apenas uma brincadeira. Ademais,
todos sabem que a saúde do Rei já não é das melhores, e é muito provável que ele realmente não passe deste ano.
– Não diga isso, Haggi Eitan, meu pai ainda viverá muitos anos.
– Se os deuses assim desejarem – intercedeu o Primeiro-Ministro –
você deverá suceder seu pai com sabedoria, Golan. Terá de mim todo o
apoio que necessitar.
– Homens como você, Adaran, são sempre muito importantes para
qualquer governante ter por perto.
– Haggi assumiu novamente seu ar provocativo:
– Mas o que o faz ter tanta certeza de que será o sucessor de Sokárin,
Golan?
– Não tenho certeza – disse, sem convicção – nunca se pode ter certeza, mas meu pai me preparou para isso, sempre me passou toda a sua
experiência e ensinamentos necessários para reinar. Sei, sem falsa modéstia, que sou capaz de reinar.
– E é mesmo, Golan. Você será um grande soberano – aquiesceu
Adaran.
– E você um grande Primeiro-Ministro, não é? – completou Haggi.
– Eu já sou o Primeiro-Ministro, Haggi.
– Sim e quer continuar a sê-lo… Ou quem sabe uma promoção...?
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– Os cargos e títulos não me interessam.
– Mas o poder…
– Inclusive tenho certeza de que Golan precisará de um Ministro do
Exterior competente como você, Haggi.
O filho do Rei assentiu com a cabeça:
– Vocês sabem que podem contar com a minha ajuda, mas nunca se
esqueçam de uma coisa: eu não sirvo a governos, sirvo ao Estado. Por
isso preferi a carreira diplomática aos cargos de administração. Mas
sempre é bom deixar as portas abertas.
– Bem – disse o Primeiro-Ministro – estou na minha hora. Creio que
nosso próximo duelo ficou para a semana que vem, certo Haggi? Até
logo, Golan.
– É claro. Até lá.
– Até logo.
Haggi e Golan conversaram mais um pouco sobre as questões que
envolviam a sucessão e depois se foram, cada um pensando como os
outros lhe poderiam ser úteis.
3.
A
s têmporas de Mulil latejavam. O Sol redondo o fustigava naquele dia em que o céu estava de um azul quase branco, tal era
a claridade. O suor que escorria da testa para dentro dos olhos atrapalhava sua visão, o calor atrapalhava seus pensamentos, as palmas de
suas mãos estavam lanhadas pelas pedras pontiagudas. Ele era um pequeno inseto sobre a superfície gigantesca da rocha. A parede fazia um
ângulo exato de noventa graus com o solo. Em alguns pontos a inclinação chegava a ser ligeiramente negativa. A temperatura ambiente, que
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PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
beirava os cinquenta graus, era ainda mais alta na pedra, o que não
tornava sua missão nem um pouco confortável.
Aos catorze anos de idade, Mulil ainda não tinha a força de um homem feito, porém não era mais um garoto frágil. Acompanhando as
mudanças por que passava seu corpo, vinham as da mente. Seus pensamentos não paravam, a energia que pulsava em seu peito era difícil
de controlar. Ele queria conquistar o mundo...
Mas antes precisava conquistar a si mesmo, eram as palavras de seu
Mestre, que o observava ao longe. Sua presença era o que mantinha
Mulil naquele momento, pois já pensara mil vezes em desistir. Mas ao
se imaginar fracassando perante seu Mestre Montuhotep, pensava mil e
uma vezes em continuar. E prosseguia sua lenta escalada em direção ao
ninho. Cada movimento tinha de ser muito bem estudado, sob pena de
funesto destino, rumo às pontas escarpadas das rochas lá embaixo. Seu
coração estava acelerado pelo esforço e pelo medo da altura. A coragem está dentro de você, dizia Montuhotep, e ela se exterioriza pelo
valor. Seja corajoso e mostre-se valente. As palavras ecoavam em sua
cabeça.
Seus braços já não aguentavam, não tinham mais força alguma, eram
velas queimadas. Só a vontade o sustinha. Procurava concentrar-se em
não perdê-la. Já havia duas horas que a única coisa que olhava era a
rocha, cada pequena fresta ou vão onde se agarrar, cada saliência,
cada reentrância, rocha, rocha e mais rocha, e um objetivo: não era
dominar o cume, mas dominar o falcão... Assim lhe havia dito Montuhotep, sem maiores explicações. Disse que no momento certo ele entenderia... Mulil não tinha tanta certeza de sua capacidade de entendimento, mas muito cedo aprendera uma coisa: a confiar no seu Mestre, caso
contrário não estaria ali, a mais de setenta metros do chão duro, sem
qualquer proteção senão o aprendizado que tivera até então.
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O guincho às suas costas lhe fez gelar o sangue, seu coração bateu
descompassado, o turbilhão de pensamentos que povoava sua mente
cessou como num passe de mágica, para dar lugar a um único pensamento: procurar um apoio na parede que lhe permitisse olhar para o
seu oponente. Conseguiu.
O primeiro guincho fora emitido num voo de reconhecimento. Agora
a ave arremetia contra Mulil. Ver o que antes ouvira não lhe aumentou
em nada a segurança. Desejou nunca se ter virado e apenas ter esperado a morte sem ter que a encarar. Sua reação foi procurar pelo Mestre,
que distava dele cerca de duzentos metros em linha reta pela hipotenusa que fecharia o triângulo com a parede e o chão. Foi como se numa
fração de segundo tivesse ficado cara a cara com o Mestre. A figura
esguia, de elevada estatura, vestindo uma túnica branca que parecia
imune ao pó e à areia, a cabeça ornada com uma espécie de coroa com
uma pedra amarela na frente, em torno do pescoço um colar de contas
do qual pendia um escaravelho de lápis-lazúli, o encarou de tal forma
que Mulil imediatamente preferiu o falcão.
Olhou mais uma vez na direção dos guinchos que se aproximavam
rapidamente junto com seu emissor. Mas o olhar de Mulil já não era o
mesmo, era um olhar de guerreiro, um olhar capaz de descortinar o
Universo... Esse olhar encontrou as pupilas alongadas do falcão, que
de imediato mudou sua postura. Aparentemente nada mudara, pois os
guinchos continuavam a ser emitidos, e a ave ainda vinha em sua direção, mas Mulil sabia, acreditava que algo havia mudado. Ergueu seu
braço esquerdo, deixando o antebraço em posição horizontal.
O falcão parou com seu bico curvo a poucos centímetros do rosto de
Mulil, os olhos cravados nos seus, as garras cravadas em seu braço,
firmemente, como se daquilo dependesse sua vida. Coragem, pensou
Mulil, superando o medo que sentia e suportando a dor aguda, que pa-
36
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
recia irradiar-se em choques elétricos ao longo de seu corpo, tal sua
intensidade. O cheiro férreo do sangue chegou às suas narinas...
Entretanto, a sensação que tomou conta do discípulo foi de paz, uma
paz profunda, mas delicada. Uma paz que dependia da sua postura para se manter. Qualquer deslize, qualquer demonstração de debilidade,
poderia ser o fim. A ave facilmente o despregaria da rocha, lançando-o
no vazio...
Mas Mulil sabia que isso não aconteceria, olhou com ternura para o
falcão e soube... ele seria seu aliado, para sempre... O falcão soltou seu
braço e alçou voo, descrevendo um oito perfeito no céu branco, para
desaparecer sobre o deserto...
4.
K
adriel acordou suado, pela agitação e pelo calor do deserto do
seu sonho. Levantou-se, lavou o rosto com água gelada, foi até
a janela. A vista era privilegiada: dominava toda a cidade até as colinas
do lado oposto. Os primeiros raios da aurora transpassavam a neblina
que cobria as casas e parte dos edifícios, tingindo-a de amarelo-ouro.
Kadriel divagou por longos minutos, aguardando que a coroa solar
apontasse no horizonte e pensando que se aproximava o dia em que governaria a cidade, depois o Estado e ainda o País. Ele retinha seus pensamentos quando estes queriam por vontade própria ir além do País. A
política era difícil, mas Kadriel confiava nas pessoas que o cercavam, e
elas confiavam nele. Ele era um político promissor, bom caráter, às vezes até um pouco inocente. Mas era determinado e honesto, o que lhe
conferia crédito para, bem assessorado, atingir seus objetivos.
TALAL HUSSEINI
37
Um dos primeiros pássaros da manhã riscou o céu, trazendo à mente
de Kadriel lembranças de sua infância. De modo involuntário, levou a
mão direto ao antebraço esquerdo, como sempre fazia, afagando as cicatrizes que obtivera havia muito tempo. Três pequenos riscos de aproximadamente dois centímetros cada um, paralelos, sendo dois alinhados e
o do centro mais avançado. Completando a marca um quarto risco quase
idêntico aos outros do lado exatamente oposto do antebraço.
Kadriel lembrou-se de uma tarde na escola. Ele tinha dez anos de idade. Estava com seus amigos inseparáveis Bakar, Haggi e Dhara. Desobedecendo as determinações dos professores, afastaram-se da atividade
indo em direção às montanhas. Em certa altura pararam, em dúvida sobre a continuidade da expedição. Haggi não queria continuar, Kadriel e
Bakar discutiam sobre os prós e contras de prosseguir ou retornar. Enquanto se perdiam em dúvidas, Dhara tomou a dianteira e prosseguiu
dizendo sem se voltar:
– Espero vocês lá em cima, caso resolvam vir, é claro.
Os garotos se entreolharam e sem dizer mais nada a seguiram.
Chegaram até o topo num local que dava para um penhasco. Os quatro se deitaram de barriga para baixo, apenas com a cabeça para além da
beirada. Ali permaneceram olhando os detalhes da parede escarpada,
que devia contar uns oitenta metros de altura. Cada um pensava em suas
coisas, quando Dhara viu um ninho a aproximadamente dez metros
abaixo de onde estavam. Propôs:
– Vejam, é um ninho de falcões, aqui há um caminho na rocha…
Kadriel a reteve:
– Não, deixe que eu sigo à frente, pode ser perigoso.
E sem deixar muita margem à argumentação, ultrapassou-a em direção ao ninho. Ela o seguiu. Bakar a secundou. Haggi permaneceu no
topo, aguardando qualquer contratempo. Prosseguiam pela encosta lentamente, estudando cada movimento, pois qualquer deslize poderia ser
38
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
fatal. A concentração era total. Foi quando um guincho agudo cortou o
silêncio. O falcão que defendia seus filhotes arremeteu contra os improvisados escaladores. A inquietação tomou conta de todos. Haggi gritou,
Bakar bateu em retirada pelo mesmo caminho por onde tinha descido.
Dhara o seguiu. Somente Kadriel permaneceu estático, mas não de medo, ele estava tranquilo, não sabia bem por que mas estava tranquilo.
O falcão voou em direção a Kadriel. Todos gritaram, mas ele teve o
impulso de enrolar sua blusa no braço para se proteger. O pássaro continuou sua arremetida, mas quando estava próximo do rapaz seus olhares
se cruzaram. Foi um momento único, que Kadriel jamais esquecerá. O
tempo pareceu parar naquele instante, e antes que ele tivesse a chance
de qualquer reação a ave pousou em seu braço. E cravou seus olhos nos
dele, fixamente. Da mesma forma que suas garras afiadas trespassavam
o tecido da blusa para se cravarem em sua pele. Kadriel sentiu o calor
do sangue que encharcava o tecido que envolvia seu braço, entretanto
não entrou em pânico, ao contrário, foi tomado de intensa serenidade.
Sustentou o olhar do falcão. Ambos tiveram um instante de união. Todo
o som do universo desapareceu. O infinito os envolveu naquele pequeno
espaço de tempo…
O falcão soltou então suas garras e alçou voo, descrevendo no céu um
oito deitado e desaparecendo no horizonte. Foi só então que Kadriel
pôde ouvir de novo os sons do mundo e dentre eles os gritos de Bakar,
que escorregara pela encosta em sua fuga, ficando preso em uma delicada árvore, que se soltava na medida em que ele se debatia.
Dhara procurava ajudá-lo, mas não tinha força para alçar seu corpanzil. Kadriel aproximou-se, então, para unir forças com Dhara; Haggi
estava paralisado de medo, mas ao ver que o esforço dos dois amigos
não era suficiente, somou-se a eles para, juntos, conseguirem resgatar o
prisioneiro do abismo.
TALAL HUSSEINI
39
Todos, já em segurança, seguiram em direção à escola. O silêncio que
os envolvia era sepulcral. Ninguém pronunciou palavra em toda a descida, mas aqueles momentos permaneceriam indeléveis na memória de
todos eles. O silêncio os unia mais do que quaisquer palavras que pudessem pronunciar. Entretanto, era indisfarçável que todos olhavam
para Kadriel com estranheza. A mesma estranheza que pautava vários
episódios de sua vida: certa vez, antes de começar a praticar artes marciais, foi cercado por oito garotos na escola, que queriam roubar seu
lanche. Kadriel atravessou essa barreira humana sem que nenhum dos
garotos pudesse tocá-lo. De outra feita, foi surpreendido por um grande
cachorro que escapou de uma casa, quando estava prestes a ser atacado
fixou seu olhar no do cão, que desistiu do seu intento. Quem quebrou o
silêncio foi Dhara:
– Deixe-me ver como está seu braço.
Ele, como que em transe, estendeu seu braço para a menina. Ela desenrolou a blusa que recobria o ferimento, empapada de sangue já meio
seco. Eram três cortes de um lado do antebraço e mais um do lado oposto, não muito profundos, mas o suficiente para algum sangramento.
– Dói?
Ele respondeu negativamente com um gesto de cabeça.
– Mas ainda assim é melhor lavarmos o ferimento para evitar uma infecção.
Kadriel assentiu, deixando-se conduzir pela suavidade de Dhara.
O Sol que aparecera em sua plenitude por sobre o horizonte retirou
Kadriel de suas memórias. Ele ainda afagava o braço onde o falcão pousara naquela tarde da sua adolescência e ainda sentia o perfume suave
de Dhara, no lenço que guardara desde então e que lhe trazia doces lembranças. Nunca chegou a lhe dizer o quanto ela era importante para ele.
Naquele mesmo ano do episódio com o falcão, ela se mudara com sua
família para o exterior. Lembrava-se da última vez que a viu, acenando
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PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
um adeus. Seus olhares se cruzaram e tiveram a certeza de que voltariam a se encontrar. Talvez por isto até hoje não tivesse encontrado uma
companheira definitiva: nutria esperanças de um dia rever Dhara... Mas
esse dia demorava a chegar.
Aos vinte e oito anos, Kadriel já era conhecedor de diversas técnicas
de combate e uso de armas. Seu interesse pelo assunto se devia à vontade de dominar seus medos e entender aqueles fatos estranhos que o
acompanhavam desde a infância. Conseguiu com isso controlar seus
impulsos, muitas vezes açodados e até violentos, mas não lograra dominar seus medos e tampouco entender-se a si mesmo.
Quanto a seus outros companheiros de infância, Haggi Eitan ficara
afastado por alguns anos em que estudava no exterior para a carreira
diplomática, que agora seguia com bastante sucesso. Apesar da pouca
idade, Haggi já fora adjunto de diversas embaixadas em países importantes, bem como já participara de missões diplomáticas de suma relevância para a economia do País. Desde que voltara, mantinham contato
constante até mesmo porque, como Kadriel, Haggi estava estreitamente
ligado à administração atual, sobretudo ao Primeiro-Ministro.
Bateram na porta. Kadriel era chamado por seu amigo inseparável
Bakar, com quem jamais perdeu o contato e que ainda era seu fiel companheiro de tantas batalhas. Eles eram aguardados no Ministério. Partiriam em seguida para o interior.
5.
K
adriel estava ansioso, pois à tarde teria uma audiência com o
Rei. Não fazia a menor ideia de por que fora convocado, o que
o deixava ainda mais nervoso. Teria cometido algum erro grave no
exercício de suas funções no Ministério? O Ministro Doran, sob cujo
TALAL HUSSEINI
41
comando se encontrava não gostava do trabalho. Em verdade, pouco
aparecia no Ministério e quando o fazia era para dar entrevistas ou receber os louros por algum projeto bem sucedido no qual ele naturalmente
não tivera qualquer participação. Kadriel, apesar de ser apenas o segundo homem no Ministério, era quem realmente conduzia as ações. Mas
ele não buscava méritos nem reconhecimento, acreditava no que fazia e
na importância dos trabalhos desenvolvidos sob a sua orientação.
Quando o encarregaram da tarefa provavelmente esperavam o seu
fracasso. Seria uma pá de cal em suas pretensões de ascensão política.
Um retumbante fracasso já no início de sua vida pública. O Rei insistira
em sua indicação, mesmo contra a vontade do Primeiro-Ministro, que
por nutrir grande simpatia por Kadriel, achava que era muito cedo para
ele exercer um cargo de tal magnitude que poderia prejudicá-lo se não
tivesse êxito em sua execução. Mas como o Rei fora irredutível nesse
ponto, Adaran lhe prestou apoio decisivo para que Kadriel conseguisse
superar os obstáculos, sem o qual, com certeza, teria realmente fracassado.
Mas agora o Ministério era um sucesso. O povo conhecia Kadriel e
lhe dedicava muito apreço, mas não tanto quanto ao Ministro, que sem
dúvida era a cabeça pensante que concebia e viabilizava todos aqueles
trabalhos sensacionais, que tantos benefícios traziam à população mais
pobre do Reino.
O edifício do Ministério era da antiga dinastia. Tinha mais de cinco
séculos de idade. A entrada portentosa apoiada sobre grandes colunas de
mármore. No exterior da parede frontal, estátuas de mármore dos governantes da época do Império, em tamanho natural. O último deles, que
antecedera o pai de Sokárin na direção do País, era o que mais chamava
a atenção de Kadriel, que todos os dias não se furtava de parar à frente
da estátua durante uns cinco minutos, permanecendo estático diante
dela, como se esperasse que o Imperador Gur Medhavin lhe falasse. E
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PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
de fato o artista que concebera aquela estátua o fizera em momento de
grande inspiração, parecendo faltar apenas um sopro para que a obra
deixasse seu pedestal e fosse retomar seu lugar no trono, trazendo de
volta os anos de ouro do Império.
O rosto da estátua era impressionante: tinha feições serenas, boca reta
de lábios finos, nariz adunco que não podia ser classificado como pequeno, orelhas pequenas coladas ao crânio e os olhos... pareciam os de
uma águia, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas sobre o nariz,
fitavam o infinito... Kadriel sentia ao mesmo tempo admiração e opressão diante de tamanho poder. Naqueles minutos diários, sonhava com o
dia em que os homens-águia retornariam para conduzir as gentes, mais
uma vez, em direção ao Sol...
Bakar também permanecia estático dois passos atrás de Kadriel, todos
os dias. Não pensava as mesmas coisas, nem via os mesmos homens,
pois eram muito grandes para ele. Mas sabia que iria aonde seu amigo
fosse e esmagaria qualquer um que tentasse feri-lo. Não era difícil crer
nisso ao ver Bakar. Era ao menos vinte centímetros mais alto que
Kadriel, que não era baixo. Sua cabeça quadrada ligava-se ao corpo
através de um cilindro mais largo do que ela. Isso que poderia ser chamado de pescoço alargava-se ainda mais na base para soldar-se aos ombros, largos o suficiente para que quem o visse de longe não pensasse
que ele tinha mais de dois metros de altura. Como sua cabeça, a visão
geral de Bakar era a de um quadrado. Uma cabeça quadrada sobre um
tronco quadrado do qual pendiam braços roliços. Não era musculoso,
seus braços, como suas pernas, eram cilindros de grande diâmetro. Ao
vislumbrar tal estrutura física não seria possível imaginar que se movesse com tamanha agilidade e rapidez, desafiando a física e a lógica.
A inteligência não era a principal arma de Bakar, mas gostava de demonstrar sua força física, brandindo o punho cerrado, que era quase do
tamanho de uma cabeça de uma criança.
TALAL HUSSEINI
43
De fato, um único golpe daquele gigante certamente privaria um desavisado da existência. E, apesar dessas dimensões colossais e do aspecto rústico, Bakar era um grande coração. Provavelmente ele mesmo não
sabia que era possuidor de uma virtude encontrada em poucos seres
humanos: pureza. E lealdade. Não haveria cão mais fiel ao seu dono do
que o gigante era aos seus amigos, sobretudo a Kadriel.
Depois que Kadriel saiu de sua contemplação, dirigiu-se ao interior
do edifício. Bakar o acompanhou em silêncio, que Kadriel quebrou como que pensando em voz alta:
– O que o Rei quererá comigo?
– Por certo parabenizá-lo por seus feitos no Ministério, ou até lhe dar
uma promoção. Quem sabe um ministério só para você... – respondeu o
amigo.
– Não, o Rei nem sabe o que faço por aqui. Pensa, como todos, que o
Ministro é o autor de todos os sucessos. E isso de fato não me importa.
Só interessa que o trabalho esteja sendo feito de maneira correta e trazendo bem-estar para o povo.
– Você está errado Kadriel, foi o Rei quem insistiu em colocá-lo nesta posição. Ele pode estar velho, e ter cometido erros na condução do
País, mas não é tolo. Ele vê mais do que nós, e por isso é o Rei.
– É, você pode ter razão... Mas ainda assim não consigo imaginar que
assunto terá comigo.
– Aguarde e saberá.
Bakar tinha sempre essas respostas curtas e diretas, de uma lógica irrefutável, pela sua simplicidade.
Kadriel afundou-se no trabalho para que o final da tarde chegasse
logo.
Kadriel estava havia vinte minutos sentado no corredor do palácio real, aguardando que o arauto o anunciasse ao Rei. Não que a audiência
estivesse atrasada, ele é que havia chegado bem adiantado. Aquela con44
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
vocação repentina o surpreendera e por mais que se esforçasse não conseguia sequer vislumbrar qual seria o assunto tratado. Mas estava com
sua melhor roupa de gala. Só estivera perto do Rei três vezes, sempre
em cerimônias, junto com muitas outras pessoas. A sós, cara a cara,
nunca. Por isso era normal que seu coração palpitasse meio descompassado, por mais que procurasse manter sua respiração tranquila.
O jovem desistiu de prestar atenção ao tempo e levantou-se para assistir ao pôr-do-Sol de uma das janelas. Alguém dera pinceladas horizontais de amarelo-dourado sobre o azul intenso. Eram faixas irregulares, mas que continham harmonia perfeita, de uma perfeição que jamais
poderia ser traduzida pela mão humana, por melhor que fosse o artista.
O arremedo de natureza nunca chegaria aos pés da obra original, da
obra de Deus...
O arauto anunciou seu nome. O tempo tem dessas coisas, passa mais
rápido quando nos esquecemos dele. Kadriel empertigou-se, respirou
fundo e dirigiu-se para a porta do salão real. O visitante aproximou-se
do trono em que estava sentado o Monarca, ajoelhando-se a dez passos
de distância. Dois soldados da Guarda Real ladeavam o trono e outros
dois ficavam à porta. Mais uma pequena tropa de cinquenta homens
estava estrategicamente distribuída pelo palácio. Eram todos homens de
elevada estatura, escolhidos um a um pelo Capitão da Guarda, que era
homem da mais absoluta confiança do Rei, que naquele momento e quase sempre estava à sua direita. Usavam couraças peitorais negras, como
também eram negros os mantos que levavam sobre os ombros, as calças
e as botas. Eram os soldados mais bem treinados do Reino, sempre estavam no mínimo em dois. Constituíam uma força de elite temível.
O Rei fez sinal para que Kadriel se aproximasse. Os guardas permaneceram impassíveis. Ao chegar próximo do trono, que estava dois degraus acima do chão, Kadriel prostrou-se novamente, beijando o sinete
real. O Rei levantou-se com alguma dificuldade e dirigiu-se lentamente
TALAL HUSSEINI
45
a uma das janelas do salão, fez sinal para que Kadriel o seguisse. O Capitão da Guarda fez o mesmo, mas os outros três guardas restaram imóveis. O Rei apontou para fora da janela, instando o rapaz a olhar. Assim
permaneceram alguns minutos, até que o Monarca quebrou o silêncio:
– Você vê este pôr-do-Sol?
– Sim, Majestade, é claro.
– Não pergunto se você o enxerga. Pergunto se o vê.
Kadriel sentiu-se aliviado quando o Rei prosseguiu antes que respondesse, mesmo porque não sabia o que dizer:
– Enxergamos com os olhos. Qualquer pessoa que não é cega faz isso. Mas ver é para poucos... Isso é feito com a consciência. O quadro
pintado nesta janela não é simplesmente composto por nuvens dispostas
de determinado modo pelo vento, coloridas pelos reflexos do Sol que se
esconde por detrás do horizonte, sobre um fundo azul, que é o céu que
vemos todos os dias. Não. É a obra de Deus. Este pôr-do-Sol a que assistimos juntos neste momento jamais se repetirá em todo o Universo
infinito, neste mundo ou em outros.
O Rei fez sinal para o Capitão sair com seus homens. Sabia que ele
obedeceria essa ordem a contragosto pois não gostava de deixar Sokárin
sozinho com quem quer que fosse. Kadriel não chegou a notar nada no
semblante do soldado. Os dois ficaram sozinhos. Mas Sokárin não se
moveu, continuou olhando o ocaso, até que no céu só restavam tons
rosados do astro maior. Kadriel ficou estático todo esse tempo, que não
foi mais do que alguns minutos, mas curiosamente sua tensão e sua ansiedade desapareceram.
O Soberano parou então diante de um dos muitos quadros que cobriam todo o entorno das paredes do salão real, que retratava um homem
de olhar aquilino.
– Você sabe quem é este, Kadriel?
– Sim, Majestade, é o Imperador Gur Medhavin.
46
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
– O último governante do Império.
– Eu sempre admiro sua estátua na entrada do Ministério. Parece ter
sido um grande homem.
– E foi. Um grande homem numa época de grandes homens. Hoje,
nem entre os homens pequenos conseguimos ver muitos grandes homens. Seus antecessores foram ainda maiores, mas já escapam à dimensão que podemos conceber. Por isso você sequer consegue olhar suas
estátuas. Já pensou nisso?
– Na verdade não, mas de fato nunca olho para as estátuas dos outros
imperadores, apenas para a dele.
– Você está cogitando o porquê desta convocação, Kadriel – cortou o
Rei, mudando repentinamente de assunto – não imagina o que eu teria
para discutir com você. Eu sei, eu sei... O assunto que o traz aqui é o
mais importante que poderia haver: o futuro do País, a sucessão...
Kadriel estremeceu. O que poderia ele opinar numa questão capital
como essa? Mas o tom do Rei não era de brincadeiras, ao contrário, era
grave. Kadriel aguardou.
– Nós temos um momento muito difícil à frente, que é a transição de
governo. Não importa o que você diga, meus dias estão no final. O nome que gravarei na placa extraída da “Pedra dos Mil Reis” e depositarei
na estela será o do novo soberano: Kadriel Vahan.
A mensagem demorou muito entre os ouvidos e o cérebro de Kadriel.
A sensação era de que se tratava de outra pessoa. Quando o sentido foi
percebido, Kadriel empalideceu, sentiu seu ser esvaindo-se pela planta
dos pés. As pernas amoleceram, o coração enfraqueceu sua batida quase
a ponto de parar, e apesar de não ter dúvidas quanto ao que havia escutado ainda assim não acreditava. Pensou em mil frases, em respostas,
em negativas, em desculpas, pensou até em lançar-se porta afora em
desabalada carreira. Mas ainda que suas pernas o obedecessem, não
poderia fazê-lo, pois o Rei o segurou firme pelos dois ombros e cravou
os olhos reais dentro dos seus:
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47
– Kadriel, já o tenho observado há muito tempo. Não se esqueça de
que fui eu que o nomeei para o cargo em que está, apesar das oposições
de muita gente. Portanto, sei muito bem o que estou fazendo. Você é o
meu sucessor – decretou.
Depois de alguns segundos Kadriel pôde responder, com voz fraca e
hesitante, ainda sem estar completamente recuperado do impacto daquelas palavras:
– Majestade, obviamente jamais argumentaria contra as suas decisões, mas serei a pessoa mais indicada? Nunca tive, nem tenho pretensões dessa natureza...
– E é precisamente isso que o faz adequado. Você está fora da luta
pelo poder. Realiza um excelente trabalho no Ministério. O povo pode
não saber, mas eu sei que o Ministro Doran só faz aparecer em público e
colher as glórias pelo trabalho que você realiza. No entanto, isso nunca
o impediu de continuar trabalhando.
– Mas, Majestade, e seu filho Golan? Muitos julgam que ele seria o
seu sucessor natural.
– Sim, Kadriel, inclusive ele mesmo, suponho, mas a sucessão num
reino não é questão hereditária e sim de um código interno. O dirigente
deve reunir as virtudes necessárias para a condução do povo. Além disso, Golan já não é mais um jovem, e será preciso tempo e energia que só
um jovem tem, para enfrentar o porvir de nosso País.
E continuou, adotando um semblante mais sério:
– Mas não pense que governar é uma benesse! Ao contrário, é um sacrifício, um sacerdócio. Você não terá mais vida pessoal, não terá mais
amigos, correrá riscos, terá de compor com os interesses dos mais diversos grupos, terá de identificar o mal quando ele se aproximar de você
por todos os lados, e, mais importante, terá de fazer o que eu em muitos
momentos não consegui: resistir-lhe.
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PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
– A tarefa que Vossa Majestade me anuncia está além das minhas
forças.
– As tarefas que se nos deparam nunca estão além das nossas forças.
São do nosso exato tamanho. Kadriel, você deverá estar preparado. Estou articulando para que a transição se passe sem grandes transtornos,
pois há forças que se irão insurgir contra a alteração que farei na estela,
mas se isso ocorrer, lute. Disso depende o futuro da nação. Você deverá
enfrentar quaisquer desafios que se interponham entre sua chegada ao
trono e esse futuro. Não se trata de poder ou de querer fazer, trata-se de
um dever. E não esqueça, você deve governar para o povo e para os
deuses, deve ser a ponte entre o céu e a terra.
– Sim, Majestade.
– Não preciso dizer que este assunto deve ser mantido no mais absoluto sigilo até o momento adequado. Aproveite o tempo que ainda me
resta para se preparar para as duras provas que o aguardam. Agora,
pode ir.
Kadriel ajoelhou-se, beijou o sinete real, deu três passos atrás, virouse para a porta e caminhou com passos firmes, sem olhar para trás. Se o
tivesse feito, veria um olhar de satisfação no rosto do Rei.
6.
S
okárin dirigiu-se ao Templo Maior, cujos sacerdotes eram os
encarregados de guardar a Pedra dos Mil Reis, da qual eram extraídas as placas em que cada governante gravava, com a escrita ensinada nas tradições, o nome do seu sucessor, para ser agregada à estela que
continha os nomes de todos, desde o início do Império. O nome ficava
velado até sessenta dias depois da morte do Rei, quando terminava o
TALAL HUSSEINI
49
período de luto com a cerimônia de abertura da placa e coroação do
novo Monarca.
Todas as placas eram retiradas dessa mesma pedra, à qual somente os
sacerdotes do Templo Maior tinham acesso. Depois, em uma cerimônia
secreta, a placa de pedra passava por um tratamento alquímico, dentro
do Templo, que lhe conferia características peculiares, impossíveis de
ser copiadas. Era então entregue ao Rei, que gravava pessoalmente o
nome do seu sucessor, fixando-a na estela e cobrindo-a, em uma cerimônia que era do conhecimento de todos, mas que o Rei realizava sozinho, de portas fechadas. A placa só seria aberta após a sua morte, ou por
ele próprio caso resolvesse alterar o nome do sucessor, como faria agora. Neste caso, a placa com o nome anterior seria destruída por completo
alquimicamente. Depois de revelado o sucessor, os sacerdotes faziam
um teste na placa de pedra, certificando que era a mesma gravada pelo
Monarca. Apesar da grande segurança de que gozava a estela, este era
um teste final que decretava com absoluta certeza a autenticidade deste
objeto cerimonial, e por conseguinte da sucessão.
Todo o procedimento de troca do nome do sucessor se passava de
forma reservada. O Conselho dos Anciãos, os Ministros e a população
eram informados, mas não participavam de nada. Era um período de
solidão do monarca. Quando Sokárin anunciou a solicitação da pedra ao
Templo Maior, houve um pequeno sussurro na câmara, mas todos se
resignaram. Somente um observador muito atento, como era o Senador
Rohel, teria notado a sombra que perpassou o olhar do PrimeiroMinistro. Muito rapidamente suas feições voltaram ao normal, ninguém
mais percebeu sua contrariedade. Golan, o filho do Rei, não sabia se
ficava feliz ou preocupado com a notícia. Teria ele somente agora adquirido a confiança do pai, que resolvera gravar seu nome na placa? Ou
estaria retirando seu nome para inserir outro?
50
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
Sokárin retirou-se escoltado pela Guarda Real, que nunca o abandonava. O assunto da sucessão novamente tomaria conta do reino. Apesar
da idade avançada do Rei e do fato de que a qualquer momento uma
sucessão seria necessária, o tema não era muito debatido, pois causava
uma certa apreensão. As pessoas preferiam acreditar que o Rei viveria
para sempre... Mas uma troca da placa, apenas cinco anos depois da
última troca. Seria a quarta placa gravada por Sokárin em seu reinado.
A primeira logo que assumiu o trono, como era de praxe. A segunda
somente trinta anos depois, devido, segundo todos presumiam, ao provável sucessor ter antecedido a Sokárin na morte. A terceira mais dez
anos depois, pelo mesmo motivo. E agora a quarta, cinco anos depois,
no quadragésimo quinto ano de reinado, por motivos que só o Rei conhecia.
Nenhum possível sucessor havia morrido. Os mais cotados eram
Golan e Adaran. Outros nomes também eram cogitados nos corredores
do poder e nas ruas do País, mas os nomes mais fortes eram de fato esses dois.
7.
A
notícia da troca de sucessor era inequívoca. Um homem de
capa preta, com a cabeça coberta, de forma que seu rosto não
podia ser visto, cruzou rapidamente a cidade. A situação era emergencial.
O homem certificou-se de que ninguém o observava e entrou na velha
casa em ruínas. Ninguém nas redondezas se aventurava por ali. Uns
diziam que era mal-assombrada, outros que era antro de marginais e
desocupados.
TALAL HUSSEINI
51
A grossa camada de poeira sobre o chão e alguns restos de antigos
móveis indicavam que nenhuma alma viva passava por ali havia muito
tempo. Tudo que era feito de tecidos, como as cortinas e estofados, havia sido roído pelos ratos. Os cupins tomavam conta do que foram sólidos móveis, bem como das vigas da casa e do assoalho. Era arriscado
transitar naquele fantasma de casa. Mas o vulto avançava a passos seguros, como se soubesse de cada tábua confiável e de cada armadilha.
Abriu um alçapão obscuro, que jamais seria encontrado por quem não o
conhecesse, dava acesso a uma escada íngreme que desaparecia na profundeza de sombra.
O ser da noite prosseguiu, chegando a uma sala ampla, de forma retangular. Diferentemente do resto da casa, não havia qualquer resquício
de pó naquele recinto. O pé-direito teria uns cinco metros, seis colunas
regularmente dispostas, três de cada lado sustentavam o teto, todo pintado com afrescos. Eram imagens terríveis, de pessoas em grande dor,
sendo torturadas, feridas, outras já mortas e desmembradas, cabeças
decepadas, seres monstruosos e toda sorte de figuras bizarras. A iluminação era provida por várias tochas que não soltavam fumaça, uma vez
que o cômodo não tinha janelas ou qualquer outra abertura para o exterior. A ventilação era um mistério, já que não se via nenhum duto de ar
ou abertura que pudesse servir para esse fim. E de fato o ar era pesado
ali dentro. O chão era de pedra polida, formando vários desenhos de
estranhas mandalas, círculos e linhas, determinando algum tipo de mapa. Numa das extremidades da sala, havia uma espécie de altar, sobre o
qual estava um recipiente côncavo.
Uma voz potente tomou conta do ambiente, fazendo até mesmo a pedra vibrar. Não era uma voz humana, era distorcida:
Surgiram do nada duas figuras encapuzadas, em mantos brancos, portando um terceiro manto, de cor púrpura. Estenderam-no para o homem,
que o vestiu e com um gesto de braço determinou às figuras que saís52
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
sem. Subiu ao altar e conferiu o conteúdo do recipiente, tocando o dedo
indicador no líquido e levando-o aos lábios. Tudo certo. O vulto acendeu uma chama sob o recipiente que continha o sangue, pronunciando
algumas palavras numa língua ininteligível. Abriu uma caixa que estava
colocada sobre o altar e começou a retirar alguns objetos e colocá-los
um a um dentro do líquido quente, que começava a exalar um odor férreo. Eram ossos, alguns pareciam de animais, outros... Continuou a proferir fórmulas mágicas naquele idioma obscuro, cada vez em voz mais
alta. Ora mexia o líquido com um instrumento longo, espécie de colher,
ora levantava os braços, em invocações negras. O ar se tornou ainda
mais pesado. O odor insuportável parecia não incomodá-lo. Uma vibração caótica pareceu tomar conta do lugar, o homem entrou numa espécie de transe. Uma figura começou a formar-se na superfície de sangue... O rosto de um homem, de barba e cabelos compridos e
desgrenhados. E os olhos... negros como o mais profundo dos abismos.
Aqueles olhos eram... o nada... A imagem se desfez.
– Por que me chama?! Ainda não é hora...
– Sim, Mestre – respondeu o homem, curvando-se, respeitosamente –
mas é que alguns fatos novos precipitaram os acontecimentos. Teremos
de tomar algumas providências imediatas, e não quis fazer nada sem
ouvir seus conselhos sábios...
– Você precisa vir até aqui e me ouvir para saber que Sokárin deve
morrer?!
O vulto pareceu surpreso, mas antes que dissesse qualquer coisa a voz
prosseguiu:
– A sucessão... O nome que estará na estela que o Rei pretende gravar
não é do nosso interesse. Precisamos evitar que a troca aconteça, e a
única maneira de fazê-lo você sabe muito bem qual é...
– Sempre poderíamos tentar dominar o sucessor e fazer dele um joguete em nossas mãos. E caso não concorde, ele pode morrer.
TALAL HUSSEINI
53
– Não subestime a capacidade de Sokárin. Ele não é tolo. Nós o dominamos por muito tempo, mas a proximidade da morte parece ter causado alguns efeitos inesperados. Ele vai nomear um jovem, e um rei
jovem que morre repentinamente gera muitas suspeitas e investigações.
Já um rei idoso... não levanta tantos questionamentos. Se o nome inscrito naquela placa chegar ao trono, poderá tornar-se muito perigoso.
– O Senhor já sabe qual é o nome...?
– O nome não importa, se a placa nunca chegar à estela. Nós sabemos
o nome que lá está, e é este que deve permanecer. Se houver a troca, o
novo indicado terá apoios sólidos, e outro ainda mais importante está
chegando.
– O senhor se refere a...
O lugar todo tremeu, dando a impressão de que iria ruir. A voz assumiu um tom aterrorizador:
– Sim! Nunca ouse pronunciar seu nome na minha presença, assim
como ele não pronuncia o meu... Ele virá certificar-se de que a sucessão
correrá como ele quer. Você tem pouco tempo.
– Sim, Mestre, todas as providências serão tomadas. O Rei nunca entregará a placa. E se matarmos os possíveis candidatos a estar na placa...?
– Não seja tolo! Isso despertaria muitas suspeitas e investigações.
Concentre-se nas minhas ordens e procure não pensar por você mesmo.
Agora vá!
A vibração caótica se acentuou até parar repentinamente. O vulto caiu
sobre os joelhos, prostrado, arfando. Aquele ritual sugara suas energias.
Os contatos com seu Mestre eram sempre assim. Sentia-se um fantoche
nas mãos daquele ser malévolo. Os auxiliares de branco entraram, o
ajudaram a se levantar, retiraram sua túnica púrpura e desapareceram. O
homem deixou a casa rapidamente.
54
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
8.
O
Templo Maior era um dos edifícios mais antigos do País. Fora
ampliado e reformado várias vezes. A construção original datava de antes do período do Império. Já ninguém podia precisar a época.
Trazia a magnitude das antigas civilizações. A nave central, que era
parte da construção original, com dimensões colossais. A sua abóbada
era sustentada por quatro estátuas gigantes, de formas já desgastadas
pelo tempo, o que tornava impossível ver em detalhe suas feições, mas
tão sólidas quanto nas priscas eras em que foram concebidas. Os quatro
colossos erguiam a abóbada nos braços estendidos acima da cabeça.
Com mais de quarenta metros de altura, cada uma delas era esculpida
em um único bloco de pedra. Arquitetos, arqueólogos, historiadores e
outros estudiosos de todo o reino gastavam anos a estudá-las e milhares
de páginas a tentar explicá-las, o que não era possível sem as chaves
adequadas.
Desembocava na abóbada o salão principal, que tinha aproximadamente cento e cinquenta metros de comprimento por oitenta de largura.
O pé-direito contava por volta de dez metros. Em frente a cada uma das
paredes mais longas havia uma fileira de colunas com um metro e meio
de diâmetro cada uma e faces de leão nos capitéis. O teto era pintado
com belos afrescos do tempo do Império. A entrada do salão era por
uma das extremidades, enquanto na outra, sob a nave numa parte mais
alta, estava a estela que continha as placas com os nomes de todos os
monarcas, desde o primeiro Imperador, e a placa velada com o nome do
sucessor. Quatro soldados montavam guarda em torno da estela, em
turnos de quatro horas, durante as quais permaneciam absolutamente
imóveis, sendo dois deles rendidos a cada duas horas.
TALAL HUSSEINI
55
Nos espaços entre as colunas havia estátuas, a começar pelos deuses
patronos do País no fundo do recinto, na abóbada, prosseguindo com
seus dirigentes em direção à porta, dos mais antigos para os mais recentes. O espaço reservado a Sokárin estava de frente para a estátua de seu
pai, que o antecedera no trono.
Ao fundo, grandes estandartes com os símbolos do Reino pendiam do
teto. Um tapete vermelho ia da porta ao altar. Em dias de cerimônia,
vinte arautos postavam-se ao longo do tapete logo na entrada, dez de
cada lado, formando um corredor com as trombetas das quais pendiam
os estandartes reais em versão menor. As trombetas soavam um toque
marcial, as portas se abriam em duas folhas, quatro soldados de negro
entravam em formação de dois por dois, marchavam até o altar e ladeavam a estela, rendendo os que ali estavam.
As trombetas soavam novamente, e o arauto anunciava o Chefe do
Conselho dos Anciãos, e todos os demais senadores, seguidos dos ministros de estado, e depois pelos funcionários mais importantes de cada
ministério. Conforme iam entrando, as pessoas permaneciam cada vez
mais distantes do altar. Kadriel entrava junto com os funcionários dos
ministérios, postando-se já na segunda metade do salão. Por fim, entravam os convidados, na sua maioria de famílias ilustres do Reino. Todos
vestiam longas túnicas claras, ou brancas ou beges, que era o traje apropriado para essas cerimônias.
Um toque curto das trombetas fazia cessar os alaridos do salão. Alguns bedéis entravam no salão e, com uma agilidade que só podia ser
fruto de muita prática, enrolavam e recolhiam o tapete vermelho que
todos os quinhentos presentes tinham pisado e ato contínuo estendiam
outro igual, porém novo e limpo. Novo toque, sobre o silêncio. As luzes
do recinto se apagavam, restando apenas a iluminação proveniente de
tochas presas às colunas, o que dava um ar de antiguidade e tradição ao
56
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
local. Todos sentiam forte comoção. Uma música suave de coral soava
entoando um refrão que se repetia em idioma antigo.
O toque das trombetas anunciava então a entrada do Rei. Todos se
postavam com o joelho direito em terra durante toda a lenta passagem
do Rei pelo tapete vermelho, até sua chegada ao altar. O Chefe do Conselho dos Anciãos o aguardava, beijava o sinete real e recebia um sinal
para se levantar, seguido por todos os presentes. Então, o Monarca voltava-se para o público e abria a cerimônia, que, para muitos, era apenas
forma, ou um evento social, mas para Kadriel era o que havia de mais
real na vida, fora dali é que estava a ilusão. Kadriel estranhamente sentia-se mais vivo durante aqueles momentos cerimoniais do que na sua
vida quotidiana. Era transportado a um estado de espírito que não conseguia reproduzir fora dali. Ficava revigorado, a ponto de esquecer por
completo que seria o seu nome o encoberto na estela...
Kadriel perdia-se em suas lembranças e pensamentos. Sempre que
podia ia até o Templo Maior e lá permanecia meditando, orando, observando as estátuas, sozinho, salvo pelos imóveis guardas da estela. Pensava que já era hora de muitas coisas mudarem no País. Os tempos de
grandeza e glória dos antepassados deviam ser restaurados. Kadriel estava imbuído de um forte espírito de humanidade, disposto a dar sua
vida pela civilização que estava e pela civilização que ainda estava para
ser.
De repente, Kadriel sentiu-se desfalecer pela epifania daquele momento e certamente cairia se não tivesse sido sustentado com firmeza
por alguém que surgiu ao seu lado. Ao olhar para o lado, Kadriel deparou-se com a imagem do Imperador Gur Medhavin. Ao olhar com mais
atenção, viu que não se tratava exatamente do Imperador:
– Eu conheço o senhor…?
– Todos conhecem a todos, só não se lembram... – respondeu o homem, com um sorriso sincero.
TALAL HUSSEINI
57
Kadriel assentiu, sem entender muito o que ele quis dizer. Mudou de
assunto:
– Foi o senhor quem me escorou. Obrigado. Não fosse isso teria desmaiado. Há momentos em que a vida parece maior do que podemos
suportar. O senhor me entende?
– Sim, entendo. É sempre bom poder ajudar, e meu trabalho é de certa forma ajudar as pessoas a não caírem. E se caíram, ajudá-las a se levantar.
Kadriel sentiu com aquele homem de olhar austero, mas ao mesmo
tempo suave, uma conexão que excedia os limites do tempo. Não sabia
explicar, mas queria continuar aquela conversa:
– Bem, muito prazer, meu nome é Kadriel Vahan.
– Sim, eu sei. Ravi – fez uma pausa – Medhavin.
– Medhavin...? O senhor quer dizer... como o Imperador?
– Sim, meu avô, Gur Medhavin.
– Foi um grande guerreiro.
– E, como todo grande guerreiro, conquistou a paz...
Essa frase gerou um estranho efeito em Kadriel: ao mesmo tempo em
que sentia seu peito vibrar pela força do heroísmo guerreiro, sentia uma
paz aquietadora em seu coração.
9.
U
m vulto se esgueirava pelas vielas escuras da cidade. Aquela
noite era de um silêncio absurdo. Nem os gatos davam suas
voltas habituais. Até mesmo os grilos e os sapos haviam aderido ao
pacto tácito de não produzir ruído. Porque os animais sabem quando a
noite pertence a outras criaturas e permanecem então em suas alcovas.
O vulto prosseguia apressado. Parecia antever alguma coisa.
58
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
Surgiu sabe-se lá de que entranhas da terra um bêbado a trançar as
pernas em direção ao vulto resmungando no seu linguajar truncado pelo
álcool o que devia ser um pedido de dinheiro ou ajuda. Ousava quebrar
o pacto de silêncio daquela noite de lua nova. Mostrava nas ruas a sua
presença ultrajante, seu hálito fétido, seus andrajos imundos, mas aproximava-se de um ser ainda mais baixo do que ele, um homem, sim, que
não pedia licença aos demônios da noite para transitar no submundo.
O bêbado aproximou-se demais... o suficiente para ver o rosto sob o
capuz, mas somente por alguns segundos. O vulto debruçou-se sobre o
corpo inerte cuja existência já havia abandonado por conta de uma estocada muito precisa de lâmina finíssima que mal deixava um ponto de
sangue nos trapos sujos. Mais um ser que não faria falta alguma ao
mundo e que teria, de qualquer modo, morrido de frio, de fome, ou por
alguma doença ocasionada pela própria sujeira, sendo sepultado como
indigente. O ato bárbaro não aplacou o ódio que corroía aquele corpo,
mas descarregou ainda que momentaneamente a sua tensão.
O vulto chegou a uma porta discreta batendo de maneira ritmada como fosse um código pré-avençado. A porta se abriu deixando-o passar a
uma sala de pé-direito baixo e iluminação fraca:
– Minha encomenda – disse o visitante inusitado, em tom seco.
O outro deu-lhe as costas passando por uma porta induzindo o vulto a
segui-lo. Estendeu-lhe um frasco contendo um líquido transparente.
– Vai funcionar?
– Alguma vez já falhei? – e acrescentou – E meu pagamento? Tive
alguns gastos extras...
O vulto buscou algo no bolso de seu casaco. Tirou um pequeno pacote de pano e colocou sobre a mesa. O outro o apanhou, ávido. Seus
olhos brilharam arregalados sobre as moedas de ouro.
O olhar metálico do visitante não transparecia qualquer traço de humor. Foi a última imagem gravada na retina do pobre homem. A fina
TALAL HUSSEINI
59
lâmina o privou da sua triste existência. O vulto guardou o frasco com o
líquido e apanhou o embrulho com as moedas, desaparecendo porta
afora.
10.
K
adriel ainda não se recuperara daquelas palavras, que o atingiam de maneira inesperada. Faziam-no pensar, cogitar. Nunca
lhe havia ocorrido de entender os imperadores ou governantes em geral
como guerreiros, pois sempre associara guerreiros à idéia de soldados,
batalhas, armas, jamais paz... Perguntou:
– Mas um guerreiro suportaria todas as tensões que o poder impõe?
– Um guerreiro flutuaria nas caldas do poder. Seria o canal puro do
poder universal.
– Mas não seria facilmente corrompido por ele?
– Não é o poder que corrompe, o poder liberta e ilumina. Quando o
homem se corrompe é porque perde o canal do poder e da sabedoria.
Um guerreiro sabe disso e luta todos os dias para sacar o véu da ignorância que corrompe o homem. Portanto, onde homens comuns se corrompem, o guerreiro resiste – girou o olhar em torno do salão: – você
pensava neste salão cheio, num dia de cerimônia, ao observar todas essas pessoas, diga-me o que vê.
– Vejo pessoas comuns querendo algo não comum.
– As pessoas comuns veem tudo de forma comum e não sabem como
conquistar algo diferente porque estão sempre com a mente no passado
ou no futuro. O guerreiro vê tudo de forma especial porque vive o presente. Para um guerreiro, sentar-se, caminhar, tomar banho, ver o Sol e
as estrelas são sempre atos especiais, porque vive cada momento como
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PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
se fosse o último. A consciência posicionada no momento presente abre
as portas da realidade. Só quem conhece essa realidade tem o verdadeiro
poder para governar.
– Digamos que eu pudesse ver o presente, e a realidade se apresentasse, qual seria o primeiro ensinamento que o poder universal me apresentaria?
– A humildade.
Surpreso com a resposta, Kadriel perguntou:
– Mas a humildade não é expressão de caráter servil, baixa elevação,
fraqueza?
– Ocorre que esse sentido foi retirado de contexto com o passar do
tempo. O homem de poder é aquele que serve aos deuses, aos Mestres
de sabedoria, e ante eles se prostra com baixa elevação, serve com honra, ciente de sua fraqueza ante a força que está naqueles. Um guerreiro é
humilde ante os Mestres, a cujos pés faz seu juramento de servir para
além de suas forças com senso de dever e com alegria no coração. Perante seus iguais, é forte, determinado e destemido. Isto é o guerreiro:
humildade e entrega aos Mestres, e poder ante seus iguais. Por que o
mar é tão grandioso, tão profundo e tão poderoso? Porque decidiu ficar
pelo menos um pouco abaixo de todos os rios do mundo.
– Então posso tornar-me rapidamente poderoso e invencível por meio
da humildade?
– Querer as coisas com rapidez denota vaidade, pois tudo tem seu
tempo e seu ritmo. Ademais, é importante saber em primeiro lugar que o
poder não é do homem, e em segundo lugar que vencer não significa
exatamente o que você está pensando. Não se vence no aspecto pessoal.
Toda obra deve ter em vista os valores da alma: nobreza, bondade, verdade e justiça. Para isso, a personalidade deve sacrificar-se por inteiro, o
que deve primar é o dever, não o querer. A força do desejo e do personalismo nos impulsiona à vaidade. O sacrifício consiste em morrer coTALAL HUSSEINI
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mo pessoa, para humildemente renascer no Eu superior. A morte da
personalidade faz brilhar a alma. É preciso aceitar o plano dos Mestres e
dos deuses e esquecer de nós mesmos. Lutar contra tudo que seja falso e
ilusório, pois a personalidade quer seu trono. Aceitar o destino e não
fugir dos combates que a vida impõe, não fugir nem da vida nem da
morte, nem da dor nem do medo. Um guerreiro é humilde e aceita a
morte, uma pessoa comum não.
Kadriel sentia-se estranho, conversava com Ravi como se conhecessem um ao outro há muito tempo. Sentia uma forte pressão no peito, em
parte pelo que Ravi dizia, em parte por se lembrar do compromisso que
havia tido com o Rei. Sendo ele o sucessor, já não poderia ter vida pessoal. Compreendia que para governar teria que primeiramente se tornar
um guerreiro, para que a luz triunfasse com sabedoria. Compreendia que
milhões de pessoas dependeriam de suas decisões, e a humildade era o
seu primeiro código como um governante guerreiro. Se falhasse, muitos
sofreriam. Sentiu uma espécie de tristeza. Baixou os olhos e teve vontade de chorar.
Ravi toca no ombro de Kadriel:
– Sei em que você está pensando e compreendo seus sentimentos,
mas um guerreiro, mesmo com esse sentimento de abismo, assume seu
lugar. Não pense que é um sentimento negativo. Ele traz consigo humanidade, sobriedade, amabilidade, discernimento e poder profundo de
reflexão, aliados importantes nesta dura jornada. Seja humilde e sirva
aos Mestres e aos deuses, Kadriel, pois neste mundo não existe garantia
de vitória, a vitória está em sua alma.
Kadriel já não procurava disfarçar que tudo que era dito perpassavalhe o corpo e a alma. Sentia-se despido diante daquelas realidades novas
para ele, mas na verdade tão antigas quanto o homem, que Ravi lhe desvelava. Sentiu-se fraco:
– Como poderei superar os desafios que me esperam?
62
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
– Vou lhe contar uma estória: o Sol, querendo conhecer a escuridão,
pergunta aos sábios da montanha onde poderia encontrá-la. Estes respondem: "vai até o íntimo da caverna mais profunda e lá seguramente
encontrarás a escuridão". O Sol partiu em sua busca e, encontrando a
caverna mais profunda, procurou a escuridão com entusiasmo. Depois
de algum tempo, já decepcionado, voltou ao encontro dos sábios e disse:
"procurei intensamente, mas, para minha infelicidade, não pude encontrar o que desejava". Os sábios, já preocupados, responderam: "vai, então, até o oceano das esperanças e lá, na mais abissal das profundezas
marinhas, sem dúvida encontrarás a mais poderosa escuridão". Depois
da sua busca em vão, o Sol voltou aos sábios e disse: "procurei com
toda a força da minha alma, procurei no mais profundo dos oceanos e
fui aonde ninguém jamais fora, no entanto, não pude conhecer a escuridão, pois nos mares ela não se encontrava". Os sábios, depois de algum
tempo, trouxeram uma resposta para o Sol: "caro Sol, nunca conhecerás
a escuridão, nem nas cavernas, nem nos oceanos, nem em lugar algum
no mundo, pois como és o Sol, carregas a luz contigo para onde quer
que seja e iluminas tudo ao teu passo. Portanto, jamais conhecerás a
escuridão". Kadriel, assim também deve ser o guerreiro. Seu coração é
um Sol que ilumina as trevas, leva solução para os problemas, leva virtudes para combater os defeitos. Um guerreiro é luminoso e não dá espaço à escuridão. Por isso, não se preocupe com os que gostam da escuridão, pois, quando se aproximarem de você, seu coração de guerreiro
os iluminará com uma luz tão intensa que eles não resistirão. A luz de
cada um é do seu exato tamanho, mas é a mesma luz que banha todo o
universo. Sendo guerreiro e estando ligado à hierarquia branca, você é
um elo da corrente de guerreiros e Mestres, iniciados, e toda a hierarquia de deuses, até encontrar o Sol maior do Deus único e infinito, ao
qual todos se unirão um dia. Para isso, basta você descobrir e assumir o
guerreiro que existe dentro de você. A humildade fará brilhar o mais
TALAL HUSSEINI
63
puro coração, um coração que você ainda desconhece, mas que está lá,
luminoso e radiante.
11.
K
hena seria uma mulher bonita se não tivesse os traços tão endurecidos pela vida. Tinha a fisionomia rígida, os atos rígidos, o
coração rígido. Julgava-se invulnerável, sob o argumento de que já suportara tudo que seria possível uma pessoa suportar. Assim sendo, nada
poderia atingi-la. Não tinha família mais. Sabia bem que os filhos eram
o ponto mais fraco de qualquer pessoa. Quem sobrevive a ver seus filhos sendo destroçados, torturados e, já mortos, vilipendiados, ultrapassa as barreiras da mortalidade. Atinge a liberdade, pois nada nem ninguém poderá mais coagi-lo. Khena passara por essa barreira e deixara
que suas tendências maléficas a dominassem por completo. Fazia o mal
pelo mal, sem qualquer razão aparente. Mas no fundo vingava-se dos
deuses, que lhe tinham sido tão cruéis. O caos lhe agradava.
Foi com esse espírito que adentrou à casa no subúrbio da Capital, onde vivia o Capitão da Guarda Real com sua esposa e filha. Na sala não
havia ninguém. Khena e seu companheiro vestiam máscaras e roupas
inteiramente negras. Estavam pesadamente armados, pois não se ia desprevenido à casa de um guarda real. Foram entrando com cautela. A
criança brincava no quintal, a esposa do Capitão tratava de seus afazeres
na cozinha.
Os dois invasores entraram furtivamente na cozinha, balestras em punho, apontando para a dona da casa. Ao perceber a presença hostil, sua
reação reflexa foi procurar com os olhos a filha. O homem se aproximou colocando o dedo indicador sobre os lábios. Após um segundo de
64
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
hesitação, a dona da casa atacou o invasor com uma faca que tinha à
mão para a preparação do almoço, logrando fazer-lhe um corte no braço, ao mesmo tempo em que gritava para sua filha:
– Fuja!!!
Não disse mais, pois foi atingida por um golpe que lhe extraiu a luz
dos olhos. Quando olhou do quintal para o interior da casa, através da
porta entreaberta, sua filha já não viu a mãe, que jazia desmaiada. Olhar
foi o único gesto que teve tempo de realizar, pois em um segundo
Khena já estava sobre ela. Borrifou sobre seu rosto um líquido que a fez
perder os sentidos. Em seguida a levou para dentro da casa, largando-a
no chão. O homem vociferou:
– Veja o que ela fez no meu braço – mostrando o corte fundo no antebraço, o qual sangrava muito.
– Deixe-me ver isso – disse Khena, rasgando uma tira do vestido da
mulher. Enrolou no membro ferido a apertou com força.
– Cuidado! Isso dói.
– Que homem fraco, não aguenta um arranhão. Só não vá chorar, por
favor – disse em tom irônico. E completou, já com ar sério: – Trate de
limpar essa bagunça, teremos que levá-las conosco.
O homem obedeceu contrariado. Jogaram mãe e filha na carruagem,
desmaiadas. Limparam a sujeira e se foram.
O Capitão passava em revista seus homens. Era um tipo exigente.
Não admitia qualquer falha nos uniformes e principalmente no equipamento. Todos tremiam nessas ocasiões. Depois de verificar um a um,
partiam para o treinamento diário, carregados. Não era fácil suportar o
ritmo que o Capitão imprimia, mas ele era um homem moral. Executava
todo o treinamento junto com seus homens, e sempre terminava os exercícios antes de todos. Não havia, portanto, o que dizer ou reclamar. AliTALAL HUSSEINI
65
ás, reclamação era uma palavra que não existia naquele lugar. Era a
maior honra possível para um soldado servir diretamente ao Rei. Quem
não tivesse capacidade física ou psíquica para suportar esse peso que
pedisse baixa ou transferência para outras unidades que aceitavam pessoas mais delicadas. Todos dependiam de um, ninguém podia falhar ou
fraquejar, pois a falha seria de todos. A força de uma corrente se mede
por seu elo mais fraco. A Guarda Real era uma corrente forte, composta
apenas por homens duros.
Depois de um dia de trabalho intenso, o Capitão retornou à sua casa,
ansioso por rever sua esposa e sua filha. Estranhou encontrar a porta
aberta. Chamou, ninguém respondeu. Seu instinto de soldado imediatamente o colocou em alerta. Parou de chamar, foi vasculhando silenciosa
e cautelosamente a casa toda. Ninguém. Em sua mesa de trabalho viu
um envelope cor púrpura. Dentro uma carta anônima, com um cacho de
cabelo de sua filha, dando conta de que ela fora sequestrada junto com
sua mãe, e do que lhes aconteceria se não seguisse algumas instruções
bastante específicas. O Capitão sentiu um misto de raiva e apreensão.
Sua família era o que havia de mais valioso para ele. Tinha de fazer o
que fosse necessário para preservá-la. Depois, puniria os responsáveis,
custasse o que custasse.
12.
P
eckus fizera o mesmo caminho de todos os dias de sua casa até o
palácio real, a pé, antes da alvorada. Cumprimentava as pessoas
que encontrava na rua, que àquela hora não eram muitas. Sempre as
mesmas que, como ele, madrugavam para trabalhar. Era um homem
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PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
feliz, apesar de morar sozinho – não era casado – e ter de cuidar de si
mesmo sem uma boa mulher para ajudar. Gorducho por força da profissão, não deixava de ter uma certa agilidade. Tinha de estar preparado
antes de o Sol raiar, pois o Rei com o passar dos anos dormia cada vez
menos, acordando sempre mais e mais cedo.
Bem cedo o rei tomava o seu desjejum, e lá estava Peckus para certificar-se de que a comida não estava envenenada. Estava no emprego
havia dois anos. Seu antecessor teve um mal súbito e não sobreviveu.
Nunca se disse que tivesse sido à custa da comida do Rei e nunca veio a
público qualquer atentado contra a pessoa real, mas o atual provador
oficial tinha lá suas dúvidas. Entretanto, tivera sorte até o momento.
Ganhava razoavelmente bem, comia do bom e do melhor e ainda não
morrera pela boca. Não havia do que reclamar.
Aquela manhã não era diferente das outras. Provou o desjejum do Rei
e continuou vivo. Ótimo. A bandeja podia ser levada. Era passada por
uma portinhola para dentro dos aposentos do Monarca pois ele não gostava de ser incomodado durante as refeições.
Era uma noite de verão, mas nos aposentos do Rei não fazia tanto calor quanto no restante da cidade. A construção dos primeiros tempos do
império possuía um sistema de ventilação discreto e eficiente que permitia um frescor arejado em dias quentes e mantinha uma temperatura
amena em dias frios. O Monarca teve um sono tranquilo como havia
algum tempo não tinha. Acordou cedo, como sempre, com o canto dos
primeiros pássaros, logo antes da Aurora com dedos de rosa surgir matutina.
Sentia-se bem disposto naquela manhã. Dirigiu-se ao balcão para o
qual dava a sua janela, para aguardar o nascer do Sol. O frescor dos úl-
TALAL HUSSEINI
67
timos instantes de madrugada o fez experimentar grande vitalidade. Finalmente o Sol se fez anunciar por um manto dourado que cobriu a Capital, lançando uma névoa amarelada sobre os telhados. Surgiu em seguida o astro-rei imponente como só um ser que é o centro de um
sistema pode ser. O Rei absorveu seus raios e voltou para dentro do
quarto. A bandeja com seu desjejum já havia sido deixada pela abertura
na parte inferior da porta, como todos os dias.
Após seu desjejum, o Rei dirigiu-se ao escritório para os despachos
de expediente e assuntos corriqueiros da administração. Três dos guardas que ali estavam o acompanhavam, enquanto um ali permaneceu.
Minutos depois, o Capitão apareceu rendendo o guarda que ficara em
frente ao quarto real, sob o argumento de que sua presença era solicitada
no pátio. Esperou que o guarda desaparecesse e fez um sinal para alguém que se ocultava atrás de uma cortina. O indivíduo entrou no quarto. O Capitão o advertiu:
– Seja rápido, temos pouco tempo.
O homem assentiu com a cabeça e desapareceu no interior do aposento. Lá, foi à escrivaninha do Rei, apanhando sua pena, cuja ponta embebeu num líquido transparente contido num frasco que trazia consigo.
Em seguida, começou a procurar freneticamente por algo: a placa com o
nome do sucessor. Mas não podia deixar vestígios de que ali estivera,
então procedia com muito cuidado.
Do lado de fora, o Capitão estava impaciente, pois o visitante já devia
ter saído. Abriu a porta:
– Não há mais tempo, o Rei deve estar voltando com os guardas. Você precisa ir.
– Ainda não encontrei o que procuro.
– Isso não é problema meu, fiz minha parte trazendo-o até aqui, mas
agora você precisa ir.
68
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
O homem sabia que o Capitão estava certo, mas ainda assim saiu contrariado. As explicações que teria de dar pelo seu fracasso não seriam
das mais agradáveis.
Retornando aos seus aposentos, Sokárin sentou-se à escrivaninha para
algumas horas de escrita, como costumava fazer todos os dias. Apanhou
sua pena e passou a escrever num pergaminho. Foram apenas algumas
linhas. Guardou o escrito cuidadosamente numa caixa sobre a mesa.
Continuou a escrever, até começar a sentir-se muito cansado, sensação
inabitual naquele horário, mas que o Rei reputou à sua idade, que lhe
pesava mais a cada dia. Deitou-se no terraço para aproveitar o ar puro.
Sentia-se como se a espécie de divã que ali havia o abraçasse. Adormeceu.
Como a bandeja do almoço demorava a ser devolvida, após alguma
deliberação, os guardas da porta decidiram comunicar o fato ao Capitão
da Guarda Real. Este bateu à porta, chamando:
– Majestade!
Repetiu o gesto depois de alguns segundos. Nada.
Os guardas se entreolharam. O Capitão fez um gesto de cabeça para
que um deles abrisse a porta. Trancada. Mais um momento de dúvida e
tensão. Não havia alternativa, tinham que entrar. O arrombamento da
porta levou alguns minutos, dada a sua solidez. Foi necessário um pequeno aríete. Finalmente conseguiram. Primeiro entraram dois guardas,
reconhecendo a área e verificando se não havia nenhum intruso. Tudo
limpo.
Foram em direção ao leito do Rei. Afastaram as cortinas... Ninguém!
Todos foram tomados de uma estranha sensação, de vazio, mas seu rigoroso treinamento não permitiu que nenhum deles perdesse o controle.
TALAL HUSSEINI
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Vasculharam o aposento. Realmente não havia ninguém. A bandeja do
almoço não fora tocada. O terraço...
Os guardas encontraram Sokárin deitado com aparência tranquila. O
Capitão, que examinava cuidadosamente o local com os olhos, deu a
ordem:
– Vocês dois – disse ele, apontando os voluntários – vão até a residência do Primeiro-Ministro e do Chefe do Conselho dos Anciãos e
peçam que venham até aqui. É um caso de urgência!
Chegando à suntuosa mansão do Primeiro-Ministro, os guardas pediram a uma serviçal que chamasse seu patrão. A moça foi até o jardim
preferido de Adaran:
– Com licença, Senhor Adaran, dois homens da Guarda Real desejam
vê-lo, dizem que é um assunto de vida ou morte.
Adaran não demonstrou nenhuma surpresa. Não era homem de arroubos nem de gestos muito amplos. Terminou lentamente o que estava
fazendo e dirigiu-se ao saguão de entrada de sua casa, onde os soldados
esperavam em pé, apesar de lhes ter sido oferecido assento. Um deles
tomou a iniciativa:
– Boa tarde, Senhor Primeiro-Ministro. O Capitão pede sua presença
no Palácio Real.
Adaran permaneceu impassível, em pleno controle de suas emoções:
– Do que se trata, o Rei manda me chamar?
– Senhor, o Capitão só nos mandou dizer que é um caso de urgência…
Agora sim o observador mais atento poderia ter notado um ligeiro e
rápido brilho nos olhos de Adaran. Os guardas não perceberam.
– Vamos até lá!
70
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
– Nossas ordens são para chamar também o Chefe do Conselho dos
Anciãos.
– Muito bem, sua casa fica no caminho para o palácio, eu os acompanho.
A casa do Senador Rohel não deixava muito a desejar à de Adaran. A
moça uniformizada que atendeu a porta não deixou de se assustar com a
presença imponente do Primeiro-Ministro, ladeado pelos soldados da
Guarda Real. O Primeiro-Ministro ordenou:
– Diga ao Senador Rohel que estou aqui! Rápido, a questão é urgente.
A moça hesitou. Adaran reforçou a ordem, já visivelmente contrariado, pois não gostava de ter de repetir ordens:
– Algum problema? Por que você ainda não foi?
A moça, assustada, quis começar a balbuciar alguma explicação
quando uma voz vinda do fundo da sala, suave e ao mesmo tempo firme, interveio:
– O Senador não está em casa, Senhor Primeiro-Ministro, mas posso
ajudá-lo?
O ânimo do Primeiro-Ministro arrefeceu instantaneamente:
– Desculpe incomodá-la em sua residência, Sra. Inari, mas temos um
assunto de Estado urgente para tratar com o Senador.
– Vocês aceitam um chá? – disse a esposa do Senador Rohel, fazendo
pouco caso da alegada urgência.
Adaran esteve perto de perder a paciência, mas conseguiu controlarse. Aquela tranquilidade da Sra. Rohel o irritava, todos estavam com
pressa para saber o porquê do chamado urgente do Capitão da Guarda e
a mulher lhes oferecia chá. Mas ele não era homem de perder facilmente
o controle e respondeu com polidez:
TALAL HUSSEINI
71
– Nós agradecemos sua hospitalidade, Sra. Inari, mas os assuntos de
Estado são prioritários. A Senhora saberia nos dizer onde podemos encontrar o Senador Rohel?
– Não sei lhe dizer onde ele está, mas creio que estará de volta antes
de vocês terminarem o chá.
Adaran desta vez ia mesmo perder sua paciência, quando o Chefe do
Conselho dos Anciãos entrou na sala sorridente como se viesse de um
passeio no bosque:
– Bom dia, senhores. A que devo a honra desta visita? Aceitam um
chá?
– Já lhes ofereci, querido, mas parece que estavam com muita pressa
de encontrá-lo. Quem sabe agora que já o encontraram possam aceitar…
– disse a Sra. Inari Rohel, com um sorriso sincero nos lábios.
– É claro, minha querida, poderia servir-nos no jardim? Está um lindo
dia e ali podemos conversar com mais reserva – respondeu antes que o
Primeiro-Ministro pudesse ter qualquer reação. Não restou senão seguir
o velho senador ao jardim.
Irritava um pouco a Adaran a cortesia com que aquele casal se tratava
e com que tratavam os filhos e os empregados. Não deixava de ser um
pouco de inveja, já que essa cortesia era verdadeira, e afinal onde se
podia encontrar isso nos dias atuais.
Adaran começou a falar:
– O Capitão pediu nossa presença no palácio. Não disse ser um chamado de Sokárin. Temo que este tenha…
– …falecido – completou o ancião.
Desta vez o Primeiro-Ministro não conseguiu esconder sua surpresa
do olhar arguto do Senador Rohel, que prosseguiu:
– Creio que o senhor já esperava por isso, não é Senhor PrimeiroMinistro? – antes que Adaran pudesse esboçar qualquer resposta prosseguiu: – Todos nós esperávamos e, de certa forma, até o próprio
Sokárin, dado o seu estado de saúde. Terá havido tempo para que ele
devolvesse a placa com o novo sucessor? Ou ao menos para gravá-la?
72
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
Seria curioso que o Rei morresse logo antes de poder indicar seu novo
sucessor... Qualquer indício suspeito na sua morte apontaria imediatamente para o nome que está atualmente na estela, não é PrimeiroMinistro? – ao utilizar a mesma construção inquisitiva pela segunda
vez, o Senador fixou os olhos em Adaran, buscando alguma reação estranha, mas desta feita o semblante de Adaran nada transpareceu.
– O Capitão não mencionou nada sobre isso.
Ambos sabiam mais do que falavam e falavam mais do que diziam,
num jogo de gato e rato entre dois gatos criados.
– Mas creio que é tempo de nos dirigirmos ao palácio real, Senador.
– Sim, já é tempo..., Primeiro-Ministro.
O Primeiro-Ministro não gostava do ancião. Imaginou-se estrangulando-o naquele mesmo instante, mas nada podia fazer. Resignou-se.
Saíram para o palácio.
Quando o Rei despertou, sentiu como se tivesse dormido muitas horas. Estava leve, bem disposto. Resolveu ir à biblioteca. Os dois guardas
do lado de fora permaneceram imóveis ante sua passagem, como se não
o vissem. Este era o dever deles. O Rei seguiu até a biblioteca do palácio. Não cruzou com ninguém. Tudo estava como sempre.
Quando ia retirar um livro da estante, ouviu um burburinho que provinha da ala em que se situavam seus aposentos. Pessoas surgiram de
todos os lados indo em direção ao tumulto. O Rei acorreu também ao
local. As pessoas pareciam desorientadas, a ponto de não verem que o
próprio Soberano estava ao seu lado, para lhe franquearem passagem ou
mesmo auxiliá-lo no deslocamento. Ao chegar ao corredor em que ficava seu quarto, o Rei se consternou ao verificar que os cortesãos se acumulavam à porta do seu quarto. Dirigiu-se para lá tão rapidamente quanto permitia sua idade. O tumulto era tanto que suas ordens de dispersão
não eram atendidas. Os guardas continham os curiosos, mas já havia
algumas pessoas no interior do aposento real. O Rei conseguiu entrar.
TALAL HUSSEINI
73
Sentiu um calafrio atravessar-lhe cada célula do corpo quando pôde
vislumbrar a razão do tumulto. Adaran, o Primeiro-Ministro, estava em
pé ao lado da cama, juntamente com o Senador Rohel. Sobre o leito,
dois médicos do reino debruçavam-se sobre o corpo do Rei. Ao se ver,
Sokárin entendeu. Os médicos acenaram negativamente com a cabeça
para os dois políticos. O pensamento mais imediato do Rei foi voltar ao
seu leito e deitar-se, para voltar a dormir desta vez sem sonhar, para em
seguida acordar e retomar seu quotidiano. Mas foi apenas um pensamento rápido. Logo em seguida não queria mais se aproximar daquele
corpo, daquela vida, queria o Sol e seus raios dourados. Foi em direção
à janela-porta que dava para o balcão. O Sol nunca estivera tão forte.
Uma luz intensa o cobriu e ofuscou sua visão. Sokárin saiu para o balcão, na direção dessa luz.
Lentamente sua visão adaptou-se à intensa luminosidade, até que pôde enxergar seu Reino, de paz e harmonia, sem desavenças, sem injustiça, sem pobreza, sem dor, sem miséria. Era o reino que Sokárin vinha
sonhando, aquele que ele acreditava possível quando gravou o nome de
Kadriel Vahan na placa. Se ele passasse pelas provas que o aguardavam,
a indicação se mostraria acertada. Sokárin sentiu uma alegria intensa em
seu coração. Ficaria ali para sempre. Quando olhou para trás, na direção
do seu quarto, nada pôde ver pois estava escuro lá dentro. Preferiu seu
reino de luz e não olhou mais para trás...
13.
O
s arautos percorriam a Capital anunciando a morte do Rei e o
luto oficial de sessenta dias. O mesmo ocorria em todas as
cidades do Reino. Mulheres choravam, muitos dispuseram panos negros
74
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
nas janelas, em demonstração de luto. A comoção foi geral. Sokárin
havia reinado muitos anos, as pessoas estavam acostumadas com ele.
Mesmo aqueles alijados de oportunidades durante o seu reinado lamentavam.
Os prognósticos começavam. Quem seria o sucessor? Obviamente o
substituto natural seria Golan, filho do Rei. Não, o Primeiro-Ministro
era quem governava de fato, portanto daria continuidade ao trabalho.
Rohel era o nome mais indicado, pois era um homem sério, acima de
qualquer crítica. Não, de modo algum, muito idoso, era preciso alguém
mais jovem.
E assim as conjecturas percorriam o reino em todas as esferas, desde
os estratos mais pobres da população, que nada entendiam de governo
ou de política, que mediam o desempenho de um governante pela quantidade de comida que chegava à mesa, e com que frequência, até a alta
cúpula do governo, em que as conversas eram preenchidas com palavras
mais bonitas, frases mais bem elaboradas, raciocínios que aparentavam
uma lógica irrefutável e o conhecimento de causa de quem estava ao
lado do Rei quando ele gravou a placa. A verdade é que todos temiam
ainda que inconscientemente os períodos de sucessão. Muitas coisas
podiam acontecer. Mudanças nunca são muito bem vindas. Ainda que a
opção possa ser melhor, o pior conhecido é preferível. Cada um buscava
suas maneiras de aliviar a ansiedade, e os exercícios de adivinhação
eram uma delas.
Kadriel passara a maior parte do tempo, nos últimos dias, com Ravi
Medhavin. Ele era uma pessoa interessante, de vasta cultura e grande
magnetismo. Kadriel sentiu por ele grande empatia, como se o conhecesse há séculos. Em poucos dias, já se sentia como um velho amigo, ou
para retratar melhor, como um filho. Ravi lhe transmitia a segurança de
um pai.
TALAL HUSSEINI
75
Ravi era o único que sabia o conteúdo da conversa de Kadriel com o
Rei. Kadriel o revelara no mesmo dia em que Sokárin morrera, mas não
antes, a fim de manter sua palavra. Ravi não transparecera nenhuma
surpresa, mas lhe deu alguns conselhos que poderiam ser valiosos no
futuro.
Os dois foram juntos para a cerimônia de cremação do Rei. Como o
acesso era livre ao público, as ruas estavam intransitáveis. Milhares de
pessoas se apinhavam para dar seu último adeus a Sokárin. Os membros
de governo e convidados especiais tinham o acesso facilitado pela polícia e pela Guarda Real. Somente assim Kadriel e Ravi puderam chegar
até as proximidades da cerimônia. A população era mantida a certa distância, podendo observar daí o que se passava, mas quem tentava cruzar
a linha limite era detido com veemência. Alguns poucos mais empolgados tentaram fazê-lo, mas foram todos impedidos.
A cremação foi emocionante, com cânticos entoados pelas sacerdotisas, e palavras cerimoniais no idioma antigo sendo pronunciadas pelos
sacerdotes. Todos se esqueceram, por duas horas, da sucessão, só voltando o assunto à memória coletiva quando começaram a decair as
chamas que consumiam o corpo físico de Sokárin, que havia sido cuidadosamente preparado. O sinete real, que passava de governante em governante desde tempos imemoriais, fora retirado e estava com o Capitão
da Guarda Real, que o entregaria ao Custódio das Tradições, para abrir,
no momento oportuno, a placa com o nome do novo rei.
Fazia calor.
– Não vá desmaiar – cochichou Ravi ao seu ouvido – não ficaria bem
para um rei.
– Ainda custo a acreditar que Sokárin falava sério – cochichou de
volta.
– Há certas coisas com que não se brinca.
– Mas não sei se houve tempo para ele efetuar a troca das placas.
76
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
– Isso não importa. O que importa é o que você sabe e o que o Rei lhe
pediu: para lutar por sua posição.
O Senador Rohel tomou a palavra, abrindo um pequeno envelope:
– Senhoras e Senhores aqui presentes, que vieram de todo o Reino
prestar suas últimas homenagens ao Rei Sokárin: ele próprio confioume esta mensagem para ser lida nesta ocasião, de suas honras fúnebres.
Diz a mensagem:
“Estão aqui presentes todos aqueles de quem dependerá o sucesso do
próximo dirigente, meu sucessor, cujo nome será conhecido dentro de
algumas semanas. Por isso, rogo a todos, povo, senado, clero, militares,
que apoiem a pessoa indicada e lhe prestem todo o suporte necessário ao
bom desenvolvimento do Estado. A sucessão deve decorrer, como tem
decorrido das últimas vezes, em total harmonia e tranquilidade, sob pena de se repetirem os dias terríveis de guerra civil que conhecemos somente pelos livros de história. Na única vez em que isso ocorreu na história conhecida de nosso País, ainda antes do tempo do Império, uma
guerra fratricida de mais de dez anos nos atrasou e fez derramar nosso
sangue por sangue idêntico. Fez trazer a barbárie aonde havia civilização, fez brotar o ódio onde havia cordialidade, fez prevalecer a ignorância à razão, fez soçobrar os valores mais básicos de nossa sociedade no
lodo das paixões, tendo custado muito trabalho, muita vontade e muitas
vidas para que enfim as grandes águias que guardaram em seus ninhos
nas montanhas mais altas as sementes da Sabedoria pudessem restaurar
a chama da civilização. A verdade, por mais que pareça obscura, ao
final prevalecerá, pois dela emana a luz. Para aqueles que veem com o
coração não há escuridão. Vejam, pois, com a consciência. Vida longa e
próspera ao Rei!”
O Senador Rohel estava visivelmente emocionado ao terminar de ler
aquelas palavras de seu soberano e amigo. Fez uma pausa, como que
para se recompor, e retomou a palavra:
TALAL HUSSEINI
77
– Outro ponto – esperou até que os rumores na assistência silenciassem – encontramos nos aposentos do Rei um escrito, que possivelmente são suas últimas palavras. Estavam num papiro escrito de próprio
punho por Sokárin, guardado na caixa que conteve a nova placa com o
nome do sucessor, sobre a sua escrivaninha. A placa não estava lá. Portanto, não temos como saber se Sokárin já a havia colocado na estela ou
se a guardou em outro lugar. Mas entendo que essas palavras devem ser
conhecidas por todos os aqui presentes, e, como são um tanto enigmáticas, cada um deverá entendê-las como o seu coração mandar. Sokárin
escreveu:
“PARA O FALCÃO PODER POUSAR
É PRECISO QUE O NINHO ESTEJA PREPARADO”.
78
PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
14.
O
s dois homens caminhavam havia algumas horas. Mulil já não
fazia ideia de onde estava, pareciam andar em círculos. Mas
evidentemente não andavam. Montuhotep sabia exatamente o que fazia.
Quando Mulil pensava em entregar-se ao cansaço físico e jogar-se ao
chão, morrendo ali mesmo, seu Mestre disse que descansariam um pouco. Foram apenas alguns minutos, uns goles d’água e nenhuma palavra. A curiosidade corroía o jovem, mas preferiu poupar suas forças
para o que estava por vir, fosse o que fosse. O ancião não deixava muitos espaços para a personalidade de seus discípulos, principalmente
Mulil, a quem, apesar da aparente tranquilidade, era evidente que buscava preparar o mais rápido possível para algo...
Mulil se perguntava como o velho homem aguentava a caminhada
sob aquele Sol escaldante, durante horas, sem transpirar uma gota sequer, sem demonstrar qualquer traço de cansaço. Foi seu último pensamento antes de retomarem a marcha. Ao cabo de mais quatro horas,
Montuhotep parou, olhou ao redor com satisfação, respirou fundo e
disse, mais para os ventos do que para Mulil:
– Aqui estamos!
Era um local plano e alto. Estavam sobre um penhasco. Sim, Mulil o
reconhecia. Sete anos antes ali estivera, mas havia percorrido outro
caminho. Haviam chegado pela parte inferior do rochedo, aquele rochedo que tivera de escalar até o ninho do falcão que lhe deixara marcas indeléveis no braço e no espírito. Desta vez estavam no alto do penhasco. Aquele lugar ficava nos limites do deserto, não havia
vegetação, salvo algumas touças rasteiras, mas o solo ainda não era de
areia solta, e sim de terra seca, dura – último estágio de desidratação
antes do piso propriamente desértico – e algumas pedras.
TALAL HUSSEINI
81
Era final de tarde. Montuhotep proclamou que deviam se preparar
para descansar, pois teriam muito trabalho à noite. Cada um trazia
pouco peso: uma manta, pão e água. O ancião ainda carregava consigo
uma pequena sacola que segundo ele continha alguns produtos úteis.
Os últimos raios do Sol do ocaso permitiram a Mulil uma visão assustadora: uma parede de areia se aproximava...
Seu Mestre continuava impassível. Apenas retirou da sua sacola dois
lenços, entregou um a Mulil e envolveu seu rosto no outro, exortando-o
com os olhos a fazer o mesmo. Mulil estava nervoso, a areia lhe enchia
os olhos, até fazê-lo entender que ficavam melhor fechados. O jovem
agarrava-se ao braço de Montuhotep como um náufrago a uma tábua
de salvação. Tentava falar mas o vento levava suas palavras como fossem folhas secas.
Subitamente, o braço de seu Mestre lhe escapou. Mulil restou como
um cego numa floresta, exceto que não havia árvores em que se apoiar.
Andou por alguns minutos a esmo, os braços estendidos à frente do
corpo fazendo movimentos laterais como para evitar o choque com as
árvores inexistentes ou talvez para encontrá-las. Seu senso de direção
não mais existia quando se lembrou de que estava próximo de um penhasco e seu próximo passo poderia ser no nada. Parou. Lembrou-se
do que havia aprendido sobre o medo, essa reação natural que muitas
vezes podia significar a diferença entre a vida e a morte, mas que deixava uma trilha delgada. Ausência de medo: morte. Excesso de medo:
morte. A vida residia no estreito caminho do controle do medo.
Mulil tranquilizou então sua respiração, baixou os braços, já que não
serviriam para detectar o vazio. Finalmente, decidiu que a melhor estratégia era ficar parado. Sentou-se no chão, entocando-se em sua manta, de modo a ser o menos atingido possível pela areia. Já se haviam
passado horas, ao menos em sua avaliação. A estratégia funcionou por
algum tempo, mas a temperatura começou a baixar drasticamente, in82
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
dicando que já caíra a noite no deserto. A inércia que por algum tempo
significou sobrevivência agora significava morte, pelo frio. Mulil pela
primeira vez entendeu o que seu Mestre sempre lhe dizia sobre a vida e
a morte: que eram as duas faces da mesma moeda.
Levantou-se e começou a andar com dificuldade, tateando o chão antes de completar cada passo. Tinha de encontrar seu Mestre, era seu
único pensamento, sem ele não havia esperança de sobrevivência naquele ambiente hostil. Mulil sentiu-se desfalecer em meio ao turbilhão
de areia.
Recuperou lentamente a consciência e, quando conseguiu focalizar
sua visão embaçada, pôde ver o rosto sulcado de Montuhotep, que repetia estranhos mantras numa língua desconhecida para Mulil. Estavam dentro de algum tipo de caverna em que mal se podia ficar em pé.
O ancião ordenou que Mulil se sentasse à moda dos escribas, ao que
obedeceu de imediato, embora se sentisse bastante tonto. Ele devia
permanecer ereto e repetir alguns exercícios respiratórios. Continuaram esses exercícios por algumas horas, até Mulil não sentir mais suas
pernas, nem seus braços e por fim nenhuma parte de seu corpo. Em
certos momentos, Mulil chegou a pensar que iria desmaiar, mas conseguiu manter-se em razão da presença de seu Mestre, diante de quem
não queria falhar. Aos poucos, a dor se transformou em amortecimento,
mas não um amortecimento físico, e sim uma polarização que permitia
ao jovem ignorar seu corpo físico. Desse modo, o mal-estar tornou-se
conforto.
Por fim, o velho Mestre ordenou que fechasse os olhos e visualizasse
um falcão dourado. Então, Mulil devia imaginar-se cada vez menor
ante esse pássaro, até que ele se tornasse gigante à sua frente. Em seguida, Mulil devia projetar-se em direção ao falcão dourado e entrar
nele, fundindo-se nele. O discípulo o fez sem dificuldade. Montuhotep
continuava a entoar a sequência de mantras, em meio aos quais orientava o jovem:
TALAL HUSSEINI
83
– Agora, você é o falcão! Abra suas asas, sinta-as. Busque a saída da
caverna e voe em direção ao céu.
Mulil obedeceu. Voou para a saída da caverna e viu-se novamente
em meio à tempestade de areia. Mas desta feita ela não o assustava.
Bateu mais forte suas asas e de repente ganhou o firmamento. Sobrevoou a tempestade, que se transformava numa pequena nuvem de areia na
medida em que o falcão ganhava altura. A luz dourada que emanava de
Mulil iluminava tudo ao seu redor, refletindo-se na terra distante. O
jovem voltava sua cabeça de falcão para os lados e via suas asas dominando o vento. Nunca vira tantas estrelas. Sentia-se uma delas, sentiase parte do espaço absoluto. Subiu até as arestas do mundo terrestre se
desfazerem, e as cores se esfumarem na noite profunda. Voava em direção ao ser essencial. Estava livre…
Mesmo ao longe continuava a ouvir a voz de seu Mestre como se estivesse ao seu lado. Ouvia com o coração. Ela o chamava. Mulil não
queria voltar, não queria mais ser um homem, queria permanecer falcão, queria permanecer livre, queria ganhar o espaço infinito e as estrelas suas irmãs. Mas devia obedecer. Sentia um misto de alegria pelo
sentimento que experimentava e de tristeza por ter de abandoná-lo.
Seus olhos de falcão viram através da areia, que já se dissipava, o pequeno buraco no chão, de onde saíra. Mergulhou em direção a ele, ganhando-o rapidamente.
Sentia agora o peso de sua coluna vertebral. As palavras de seu Mestre norteavam seu retorno, tornando-o seguro. Mulil sentia-se humano
novamente. Abriu lentamente os olhos. Dava graças por seu Mestre ser
o único ser humano ali presente. Não queria palavras, não queria emoções, não queria pensamentos humanos.
84
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
Kadriel despertou daquele sonho com uma sensação de distanciamento. Sentia-se, como Mulil, uma ave, um falcão voando distante da terra
dos homens mas sem perdê-la de vista, voando sob as estrelas mas sem
poder tocá-las. Não queria contato com pessoas, preferia estar consigo
mesmo. Novamente um sonho com aqueles personagens longínquos no
tempo.
As palavras do Rei, lidas pelo Senador Rohel, ainda ecoavam na mente de Kadriel: “Para o falcão poder pousar...”, misturando-se com as
imagens do seu sonho. Por que o Rei deixara aquelas palavras? Seriam
fruto do delírio de um moribundo? Ou guardariam algum segredo impenetrável? Por que o falcão, figura renitente no seu sonho e na sua vida?
O jovem sentou-se no chão, à moda dos antigos escribas, fechou os
olhos e procurou reproduzir a concentração que o discípulo fizera no
seu sonho. Nenhum resultado.
Kadriel passou o dia sem sair de casa, cogitando, um tanto aéreo. Era
curioso que a única pessoa com quem imaginava poder conversar naquele momento era Ravi, apesar de tê-lo conhecido há tão pouco tempo.
Já perto das cinco horas da tarde, resolveu tomar uma atitude: dirigiu-se
à casa de Ravi.
15.
N
o dia da morte do Rei, o Capitão ficara extremamente desconfiado. Aquele ingresso indevido nos aposentos, que ele mesmo
permitira, e o subsequente óbito eram coincidência demais para uma
mente treinada como a sua. Ele observara atentamente cada detalhe do
quarto. O Rei estivera escrevendo, comera sua refeição e deitara-se no
terraço para dali não mais sair vivo.
TALAL HUSSEINI
85
A comida não era uma hipótese, pois havia o provador oficial Peckus.
Ademais a refeição não estava lá quando da invasão. As cozinheiras e
Peckus haviam sido detalhadamente questionados. Nada indicava alguma participação na morte de Sokárin.
Tudo indicava que a resposta mais direta era a correta: morte natural.
Mas os instintos de guarda do Capitão dificilmente falhavam e ele ainda
estranhava algo, não sabia bem o que era, mas descobriria. Se houvesse
alguma irregularidade no caso, ele descobriria. Por via das dúvidas, havia recolhido a pena e algumas das folhas que o Rei utilizava para escrever nos seus últimos momentos deste lado da existência. Mandara
fazer seus próprios testes. A pessoa que os realizou era da sua confiança
e além disso não sabia do que se tratava. Disse haver um traço de uma
substância que poderia ser venenosa, mas não tinha como afirmar com
certeza por ser altamente volátil e já estar terminando de se dissipar
quando ele fez os testes. Quando os repetiu para confirmação, nada mais
encontrou. De qualquer maneira, o Capitão guardou consigo esse material, poderia ser-lhe de alguma utilidade no futuro. Pedir um exame do
corpo do Rei, sendo que nada indicava qualquer crime, seria loucura,
profanação, o soldado não ousou cogitar tal hipótese. Se havia algum
indício no corpo do Rei de que sua morte não tinha sido natural seria
cremado junto com o Soberano. Só lhe restava aguardar e concentrar
suas preocupações em outro assunto relevante: sua família.
Era o dia seguinte à cerimônia fúnebre real, e era seu dia de folga.
Resolveu não sair de casa na esperança de que os sequestradores fizessem contato. Sua expectativa foi atendida. Uma batida na porta e um
envelope sob ela. Faltou pouco para as mãos firmes do Capitão tremerem ao abrir o envelope. Continha apenas um local. Entendeu que indicava aonde devia se dirigir e lá foi.
86
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
– Nesse local, outro envelope idêntico ao primeiro continha outra indicação geográfica. Finalmente, no sétimo envelope, havia um endereço e
um horário. A velha olaria desativada, três horas depois de o Sol se pôr...
Esse compromisso o Capitão não iria perder.
Ao chegar à casa de Ravi, Kadriel foi recebido por uma moça que não
fez nenhuma pergunta, como se ele estivesse sendo esperado. Indicoulhe o caminho do jardim, nos fundos da residência, que se localizava no
extremo da cidade com vista direta para o vulcão Anthar, que em sua
última erupção, mil anos antes, havia causado grandes estragos à cidade.
Desde então, estava tranquilo. Não inativo, pois diz-se que não existem
vulcões inativos e sim adormecidos, com seu grande poder latente esperando o momento certo para eclodir. Nesse sentido, os vulcões são como as pessoas...
Ravi foi rápido em deixar Kadriel bastante à vontade:
– Você vê este bosque? – indagou apontando as árvores que ficavam
no fundo do seu quintal; Kadriel assentiu com a cabeça – gosto de olhar
para ele todas as tardes. O Sol o cobre com essa névoa amarelada, até
esconder-se atrás do grande vulcão, que domina nossa cidade.
– Realmente, aqui o senhor tem uma paisagem muito bonita.
– Mais do que bonita, ela tem a intensidade da vida, que se renova
todos os dias, permitindo que nunca nos esqueçamos dos ciclos que a
compõem. Meditando neste lugar perante o Sol que vai, pode-se sentir a
respiração do Universo, seu lento movimento de contração e expansão.
Tudo em nossa existência é assim: expande-se até um ponto extremo,
para depois novamente contrair-se até um único ponto. Quando o Universo se contrai num ponto há apenas o Ser, e não a manifestação, não o
Existir...
– Não estou certo de que entendo isso muito bem...
TALAL HUSSEINI
87
– É porque nem tudo se pode entender racionalmente. Certas coisas
só podem ser intuídas, após muita contemplação.
Kadriel não respondeu, não sabia o que dizer. Procurava uma brecha
para abordar o assunto que o levara até ali. Ravi reparou na sua ansiedade:
– Kadriel, você obviamente veio até aqui porque quer contar-me alguma coisa.
– De fato, mas é que na verdade nem sei bem porque estou aqui. Conhecemo-nos tão pouco e o senhor já sabe certas coisas sobre mim que
eu não disse a mais ninguém...
– Você quer falar da sucessão?
– Não. Quer dizer, sim, gostaria de falar sobre isso também, pois não
tenho certeza se saberei cuidar sozinho do que me espera... Mas não foi
isso que me trouxe aqui desta vez... É que esta noite tive um sonho estranho...
Ravi não fez qualquer comentário, só permaneceu com a atitude de
quem está aberto ao discurso do seu interlocutor. Kadriel prosseguiu:
– O mais estranho é que quando acordei sentia-me como que fora
deste mundo. E a única pessoa em quem conseguia pensar, para conversar sobre isso, era o senhor...
– Conte-me seu sonho, Kadriel.
Relatou-o, então, como também o primeiro sonho com esses mesmos
personagens, na prova do penhasco. Falou das impressões que tivera
durante estes momentos oníricos, parecendo-lhe estes mais realidade do
que sua realidade vigílica. Começava a achar que aqueles sonhos teriam
algum significado, mas não sabia qual.
– O falcão aparece nos dois sonhos. E as últimas palavras do Rei
mencionavam o falcão – foi o único comentário de Ravi – prossiga.
– Depois que acordei, sentia-me como se ainda estivesse sonhando.
Na verdade, tentei fazer a concentração que Mulil fez no sonho, para
88
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
tentar reproduzir suas experiências, mas não obtive sucesso – confessou
Kadriel, um pouco encabulado.
– A meditação tem uma forma correta para ser feita. Se quiser, posso
ensiná-lo.
Kadriel concordou, demonstrando entusiasmo pela ideia. Ravi continuou:
– Você já subiu no vulcão Anthar?
– Nunca. Não é proibido? Dizem que é perigoso, pois ele pode entrar
em atividade.
Ravi sorriu, como quem se dirige a uma criança a quem disseram que
o fogo é perigoso porque queima, que a água é perigosa porque afoga,
que os animais são perigosos porque mordem, e que tudo deve ser temido porque é perigoso de alguma maneira, ainda que não saibamos de
momento qual seja. A educação pautada no medo fazia rir a Ravi, mas
era um riso de condescendência e ao mesmo tempo de tristeza, diante da
incapacidade humana em se fazer entender de forma construtiva, mesmo
pelas crianças. A humanidade havia desaprendido como ter obediência
por respeito e por admiração. O medo era a ferramenta mais fácil, começava a ser utilizada na infância e continuava até a morte, o maior de
todos os medos. As pessoas viviam com medo e morriam com medo,
quando não morriam, muitas vezes, do próprio medo. O instrumento
natural de proteção e sobrevivência era transformado em aparelho de
letargia e inconsciência.
– Se ele entrar em atividade, não fará muita diferença estarmos dentro
da sua cratera ou estarmos bem aqui neste quintal olhando para esse
bosque. Teremos apenas alguns minutos a mais para olhar de frente a
nossa própria morte.
Aquelas palavras ao contrário de infundir temor em Kadriel o encheram com um sentimento novo, uma vontade de escalar as costas da velha montanha, para a qual – agora percebia – sequer olhava detidamenTALAL HUSSEINI
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te. Sentia vontade de aproximar-se do céu e dos deuses. Ravi, como que
percebendo seus pensamentos, lhe fez sinal que o seguisse e adentrou no
bosque, com passos rápidos. Cruzaram todo o bosque até ganhar um
descampado. Intuindo a pergunta que ardia na garganta de Kadriel, Ravi
respondeu sem responder, apenas fazendo um ligeiro movimento de
sobrancelha em direção ao vulcão.
Enquanto caminhavam lado a lado, em silêncio, o Sol se punha, tingindo de escarlate o ocaso e a planície; pinceladas de azul e amarelo
terminavam de tecer aquele final de tarde. Ravi não deixou transparecer
sua consternação com o prenúncio que o vermelho trazia: sangue seria
derramado...
Quando começaram a parte mais íngreme da subida, Ravi explicou a
Kadriel como ele devia andar sem fazer força com os músculos, apenas
utilizando as articulações. Explicou-lhe também que ele devia manter a
conversa enquanto fazia esforços, para descondicionar a respiração.
Entre um assunto e outro, caminharam horas, sem qualquer cansaço.
Quando Kadriel se deu conta, estava diante da cratera.
– Você queria fazer a meditação, deixe-me explicar-lhe algumas
questões. Para meditar é necessário se concentrar e contemplar. Primeiro, é necessário concentrar-se, pois só assim você conseguirá ver a unidade por trás das coisas. Concentrando-se com firmeza num único ponto, logrará ver o que está por trás desse ponto, e depois o que está por
trás desse outro e assim sucessivamente até chegar à unidade das coisas.
Então, será necessário desacelerar os pensamentos, para aumentar a
velocidade da mente. A mente livre de pensamentos atingirá uma vibração que lhe permitirá chegar ao silêncio, sobre o qual foi construído
todo o Universo, silêncio este que pode ser vislumbrado entre as palavras, ou entre as letras de uma palavra, ou nos intervalos entre os sons...
Aí cessa a mente e começa a meditação, que vai lhe permitir contem-
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PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
plar. E a contemplação vai lhe permitir descobrir que esse todo é a Unidade. Quem contempla não tem a visão do observador e de Deus como
coisas distintas. Tudo passa a ser uma coisa só. Meditar é silenciar-se
em Deus. Agora vou mostrar-lhe a prática do que lhe ensinei, que
aprendi com o meu Mestre – disse, indicando que se sentasse sobre os
joelhos, com a coluna reta – ouça apenas a minha voz, deixe-se guiar
por ela...
Na medida em que Kadriel ia realizando os passos, ouvia ao fundo a
voz de Ravi, que em tom suave parecia integrar-se à natureza:
Circulação.
O Centro é algo que não pode ser ensinado, tampouco aprendido. O
Centro é algo que somente pode ser recordado.
Um velho sábio disse aos seus discípulos que quando saíssem em
busca do seu Ideal e no caminho sentissem as primeiras dificuldades,
quando sentissem os músculos enfraquecer, a palidez tomar conta dos
lábios, os olhos titubear e o coração sentir o hálito do fracasso, se lembrassem de que um dia estiveram lado a lado com seus irmãos, em torno
de uma fogueira, cantando os hinos de glória e de vitória desse Ideal
Superior. Essa lembrança lhes traria a força às veias e certeza às almas,
pois o maior mal da humanidade é o esquecimento.
Fluxo.
É na recordação que nos encontramos. É nesse ponto de recordação
que todas as coisas do universo se encontram.
É no Centro que todas as coisas nascem, desenvolvem-se, e são novamente consumidas. Para o Centro todas as coisas marcham.
Pulso.
Onde os mares deságuam, onde a rotação da terra gira, onde as galáxias flutuam, onde os pássaros encontram seu destino. Onde o silêncio é
o corpo de Deus, e o movimento deixa de existir. Lá é o Centro.
TALAL HUSSEINI
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Irradiação.
Onde o coração do cisne celeste se transforma em diamante e suas
asas de luz se projetam tocando o cosmos. Onde a magia é a única realidade ponderável. Onde o mortal transmuta-se em imortal. Lá é o Centro.
O Centro é o ponto onde todo o universo se une. Onde a eternidade é
engolida pela duração, e o Uno do infinito é absorvido pelo Absoluto.
Iluminação.
O discípulo é o único que pode conceber o Centro. É infinito o potencial latente que reside dentro do coração do discípulo.
Focalização.
O cérebro é o ministro. O coração é o rei. Esse rei segue os impulsos
da vontade do ser. Esse ser é o infinito, o poder interno, o Centro que
habita o coração de cada discípulo. Por ser infinito, não nasce, não
morre.
Polarização. Selo.
Kadriel visualizou um círculo branco dentro de um círculo dourado.
Lembrou-se da imagem que, enquanto falcão, vira formar-se na tempestade de areia. Abriu os olhos. A imagem que se formara era semelhante
à do seu sonho: nuvens em torno da cratera e claridade apenas no centro. Ele enxergava toda a montanha. Voava. Sentiu algo puxá-lo. Olhou
para baixo. Lá estava seu corpo, sentado sobre os joelhos. Ravi parado à
sua frente lhe falava. A cada palavra que dizia, sentia uma força compeli-lo para baixo.
Sentiu-se cair. Tudo tornou-se escuro. Seus pensamentos, sentimentos, seu corpo... tudo estava confuso. Nada parecia fixar-se. Abriu os
olhos, agora de verdade. Em meio à confusão mental que experimentava, tinha uma certeza: sentira o Centro no coração. Seu corpo estava
gelado. Aquela pequena experiência o fizera ver as coisas com um pouco mais de realidade. Não sabia como, apenas sentia. Melhor, intuía.
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PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
O universo parecia-lhe parado. Sentia apenas seu coração pulsando.
Um falcão cortou o céu sobre a cratera. Seu grito ecoava pela montanha. Kadriel pensou que tinha sido aquele falcão, ao menos por alguns
momentos. Invejou-o, no bom sentido.
Ravi, como que lendo seus pensamentos, disse:
– Os seres da natureza têm muito a nos ensinar. Nos momentos em
que tudo parece perdido, o discípulo pode renovar-se e brilhar como
nunca. Certas aves, como os falcões e as águias, têm características muito especiais, sempre foram mencionadas nas tradições como símbolo de
poder e sapiência. Ao contrário de outras aves, quando veem uma tormenta, vão diretamente de encontro a ela, não se escondem, nem ficam
agitadas, abrem suas asas poderosas e velozes e enfrentam a tormenta,
superam as nuvens negras, a tempestade, os choques elétricos provenientes dos raios. Sabe por quê?
E prosseguiu, sem esperar a resposta:
– Porque sabem que acima, para além da tormenta, está o brilho do
Sol!
Kadriel sentiu vontade de chorar.
16.
A
olaria era num lugar ermo. Nenhum morador por perto. Como
estava abandonada havia anos, não havia sequer um guardião.
Era objeto de um litígio entre herdeiros, muitos donos, nenhum dono,
e o patrimônio se deteriorava. Ademais, havia o boato de que aquele
lugar era mal-assombrado. O velho proprietário falecido não conseguira
deixar o local e atormentava qualquer um que se aventurasse naquelas
paragens.
TALAL HUSSEINI
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Exceto algumas turmas de jovens que, animados pelo álcool, por vez
ou outra lá iam para instigar a adrenalina, saciando as necessidades do
velho fantasma, ninguém ousava passar por ali. O silêncio era perturbador. Se caísse um simples alfinete, a reverberação da queda soaria como
uma bomba.
Quando o Capitão abriu o portão, sentiu o magnetismo pesado. Um
arrepio lhe percorreu a espinha, e até os cabelos se eriçaram. Manteve o
controle. Observou tudo ao seu redor. Nenhum sinal de vida. Havia uma
enorme construção, em ruínas. O Capitão gritou para ver se alguém respondia. Nada. Percorreu o lugar rapidamente, tentando encontrar um
possível cativeiro. Não, sua mulher e sua filha não estavam ali. Os sequestradores não seriam tão imprudentes. Verificou as possíveis saídas e
procurou se inteirar dos materiais deixados no local, canos, pedras, ferramentas, que poderiam transformar-se em armas.
Prosseguiu caminhando em campo aberto, para ver se alguém fazia
contato. Finalmente parou onde podia ver a entrada e ali permaneceu, à
espera. Vestia o uniforme negro da guarda real acrescido de uma espécie de capuz que não permitia ver seu rosto, salvo de muito perto.
Nos bastidores desse cenário, duas sombras se moviam em silêncio.
Uma delas posicionou-se dentro do prédio, atrás do Capitão. Era um
arqueiro que tinha a mira fixada bem na sua nuca, bastava retesar o arco
e disparar. Só aguardava o sinal. Não estava ciente da outra sombra, que
flutuava em sua direção, qual um espectro. Ela não tinha peso, não emitia nenhum som. Por certo, não pertencia a este mundo.
Quando o arqueiro se deu conta, a sombra já estava sobre ele. Sentiu
uma pontada nas costas que paralisou completamente seus músculos.
Sem poder se mover, quase nem sentiu outra pontada, no pescoço, que o
privou da existência.
De repente, dois homens entraram na velha olaria, andando rapidamente em direção ao Capitão. Este foi também na sua direção para esta94
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
belecer contato. Mas não teve tempo de pronunciar nenhuma palavra,
pois quando já estavam bem próximos os homens sacaram espadas. A
sombra que desabilitara o arqueiro havia tomado para si o arco, mas só
teve tempo de disparar uma flecha, que atingiu no peito um dos homens.
O outro desferiu um corte rápido e preciso, que atingiu o Capitão no
pescoço. A morte foi instantânea. Seu corpo tombou de lado, inerte.
Outra seta partiu da sombra atingindo o agressor na perna, logo acima
do joelho. Ele tentou fugir, mas o ferimento não permitia um deslocamento eficiente. Logo, a sombra estava sobre ele.
Já desarmado, o agressor ferido fez um olhar de pavor quando pôde
ver de perto o vulto que o atingira. O Capitão…! Mas não podia ser,
acabara de matá-lo..., pensava, olhando para o corpo que jazia mais adiante. Na verdade, aquele era um amigo do Capitão que propositalmente
se fizera passar por ele para evitar a emboscada. Sua morte foi lamentável. O Capitão não esperava uma ação tão rápida e direta de seus inimigos. Mas choraria a morte do companheiro de armas depois:
– Onde está a minha família?
– Eu não sei... – sua frase foi interrompida por um duro golpe.
– Não tenho tempo a perder com mentiras inúteis! – respondeu o Capitão – você vai morrer mesmo, mas tem a possibilidade de escolher se
vai ser com pouca dor ou com muita dor!
– Eu recebi ordens apenas para matá-lo, não sei onde elas estão, juro!
– Quem deu essas ordens? – inquiriu, amarrando os pulsos do homem
em torno de uma pilastra.
– Nós nunca fazemos contato direto, recebemos apenas ordens escritas, que devemos queimar em seguida...
O Capitão sacou uma faca. Sem anunciar seu movimento, cortou na
metade o dedo indicador da mão direita do interrogado, que soltou um
grito pavoroso.
TALAL HUSSEINI
95
– Estou apenas começando com você. Se quer me fazer perder tempo,
terei prazer em gastar esse tempo com você. Onde estão minha mulher e
minha filha?
– O senhor precisa acreditar em mim, jamais as vi.
O Capitão assentiu com a cabeça, soltando o ar dos pulmões, como
quem está no limite da sua paciência. Aproximou a faca do olho do rapaz. Este assumiu uma expressão de pavor, aguardando a próxima pergunta e já cogitando até respondê-la. Mas a pergunta não veio. Veio a
faca e arrancou seu olho da órbita. A vítima esqueceu a dor do dedo.
– Você pensa que eu estou brincando, não é? Com a vida da minha
família? Pois você vai gostar das brincadeiras que ainda tenho reservadas para você.
– Não tenho as informações que quer! Mate-me logo!
– Muito fácil. Agora você quer morrer. Quando eu terminar, desejará
nem ter nascido.
Um calafrio trespassou-lhe a espinha. Sentiu que era sério. Resolveu
falar:
– Senhor... Elas estão mortas!
– Mentira! Mentira! Seu cão! – socou-o algumas vezes na cara.
– Não tenho por que mentir. Já estou morto. A intenção nunca foi devolvê-las. O senhor foi usado e deveria estar morto agora.
– Quem?
– Já disse, não sei... Não temos essa informação.
O Capitão começou a bater com o fio de sua faca contra uma pedra,
ao tempo em que se dirigia ao seu prisioneiro:
– Você sabe por que estou fazendo isto? Porque esta é a faca que vai
decapitá-lo... Não pode estar muito afiada. E vai estar cada vez menos,
conforme você demore em responder o que quero. Quem?
O Capitão pensava em sua filhinha enquanto começava a cumprir sua
promessa. O homem resolveu falar e antes de ter sua vida e seu martírio
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PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
abreviados pela misericórdia de seu algoz, pronunciou um quase que
chiado apenas:
– Ofis...
Adaran e Haggi se encontraram na Real Sociedade para um duelo
com espadas como sempre que possível faziam. Os últimos dias tinham
sido conturbados, com a morte do Rei e toda a tensão que precede a
sucessão. Mas, finalmente, ambos haviam conseguido algum tempo em
suas agendas cheias, sempre em nome de uma boa luta, e quem sabe
uma conversa interessante.
Começaram de forma lenta, para aquecimento, sem trocar palavra. O
ritmo do combate foi aumentando gradativamente. O som do metal com
metal marcava a cadência. O combate já estava em frequência real
quando Adaran obteve um êxito, ao desferir o que seria um corte no
rosto de Haggi, que apenas deu seu sorriso irônico. Adaran não resistiu:
– Sinto-me bem hoje. Não lhe darei qualquer chance.
Haggi fingiu ignorar a observação e concentrou-se ainda mais na luta,
pois, como o seu oponente, não gostava de perder. Adaran riscou-lhe o
braço com a espada. Riu de novo.
– Em quem você aposta?
– Você sabe que sempre aposto em mim, Adaran.
– Para o reino...
– Aposto no nome que está escrito na placa – respondeu Haggi, com
diplomacia.
O combate continuava acirrado. Adaran atingiu Haggi com outro golpe fictício, desta vez um corte horizontal no abdômen.
– Aposto em mim – tripudiou Adaran.
– Para o reino...?
Adaran riu e não respondeu. Logrou outro golpe:
TALAL HUSSEINI
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– Para o combate é uma aposta ganha. Você me parece um pouco lento hoje, Haggi. Algo o preocupa?
– Creio que é você que está inspirado, Adaran. Algo o anima?
– O futuro do reino depende do nome que está escrito na placa. Espero que Sokárin tenha sabido escolher... Mas o fato de ele ter solicitado
uma placa para troca no final... Não sei...
– Não sabemos se ele chegou a gravar a nova placa. E ao que parece
nunca saberemos. Não apareceram vestígios da placa entre os pertences
do Rei. Portanto, não há como saber se foi gravada.
Os dois contendores conversavam enquanto combatiam, mas estavam
mais concentrados do que nunca. Mais nenhum golpe aterrou. Adaran
prosseguiu:
– Soube que você vai ao interior. Alguma razão específica?
– Vou a pedido do Senador Rohel. É missão oficial solicitada na qualidade de Chefe do Conselho dos Anciãos, que é quem responde pelo
Reino neste período de vacância.
– Qual o objetivo?
– Apenas estar em contato com os chefes locais e assegurar que estão
tranquilos quanto à sucessão e que irão apoiá-la, seja quem for o escolhido. Quer vir junto, Adaran? Você parece ter bastante interesse nesse
assunto.
– Para você não preciso fingir, Haggi, não tenho interesse em assumir
o trono, pois é um desgaste muito grande. Mas sei que tenho chances e
se for esse o caso, precisarei de todo apoio possível. Seria muito útil que
os chefes locais estivessem fechados em torno do meu nome caso eu
fosse o escolhido. Uma transição segura é melhor para todos. Os interesses deles seriam preservados...
– Você quer dizer os privilégios...
– Quem não os tem? Veja você, Haggi, você é pago pelo Estado para
viajar, comer e beber bem, estar perto das mais belas mulheres. Imagine
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PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
se isso acabasse de uma hora para outra! – ao terminar a frase atingiu
novamente Haggi, eram cinco contra zero, encarou-o e continuou: – um
rei detém o poder, atinge sem ser atingido. As alianças evitam conflitos.
E todos queremos evitar os conflitos, não é Haggi? – acertou-o pela
sexta vez – principalmente quando vamos perder...
– De fato, vou me lembrar das suas palavras quando estiver no interior do País. Você sabe que a diplomacia sempre traz saídas menos onerosas do que os conflitos. Qualquer rei não prescindiria dos serviços de
um diplomata hábil, principalmente quando pode perder... – ao concluir
a frase, acertou o golpe fatal em Adaran, parando a espada junto ao seu
pescoço – muitos golpes fracos não são tão efetivos quanto um bem
aplicado. Isso é diplomacia.
Haggi baixou a espada e deu as costas para seu oponente:
– Creio que basta, por hoje.
Caso tivesse se voltado teria visto em Adaran um olhar ameaçador.
17.
B
akar passeava tranquilo na feira da praça central, que tinha lugar nos dias de saturno, como fazia todas as semanas. A feira
era pitoresca: barracas amontoavam-se lado a lado, num caos aparente,
guardando certas regras de organização que podiam parecer muitas vezes misteriosas para um visitante, mas que faziam todo sentido para
quem estava habituado a elas.
O pouco espaço que restava para o trânsito era plenamente ocupado
por centenas de transeuntes que buscavam comprar algum utensílio ou
simplesmente passeavam, como Bakar, olhando o movimento de pessoas e de mercadorias.
TALAL HUSSEINI
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A compleição física de Bakar o fazia destacar-se do restante da multidão, eis que seus ombros e cabeça ficavam acima do mar de cabeças
que enchia as ruas dos arredores do centro da Capital. O gigante estava
detido numa das barracas que comercializava artigos de cavalaria, como
selas, ferragens e outros materiais. Bakar analisava uma ferradura, cujo
jogo pensava comprar para seu cavalo, quando uma altercação a alguns
metros de onde se achava chamou a sua atenção. Escutou alguns gritos
de mulher e observou que cinco homens cercavam uma moça, tentando
roubar sua bolsa de couro, à qual agarrou-se fortemente, a ponto de cair
quando um dos assaltantes tentou puxá-la.
Abriu-se uma roda de pessoas em torno da situação, mas ninguém
movia uma palha para ajudar a vítima do ataque. Um dos homens preparava-se para chutar a moça caída, quando seu gesto foi interrompido por
um soco no seu plexo que literalmente o arremessou por sobre uma barraca de frutas. O homem caiu sobre algumas abóboras, esmagando-as e
ficando coberto daquela gosma alaranjada.
Bakar brandia seu enorme punho, ainda fechado, em direção aos demais agressores, que se entreolharam compartilhando o medo, depois de
passar pelo companheiro desfalecido entre as abóboras, e sobre um outro que parecia ser o líder, como que esperando um ato de coragem.
Coagido moralmente, o suposto líder sacou uma faca e, sem muita convicção, arremeteu gritando na direção de Bakar, que sem esboçar nenhuma reação no semblante, apenas desferiu um chute que imprimiu a
sola da sua bota na cara do seu oponente, interrompendo o grito e o ataque. Faca para um lado e mais um agressor jazendo inerte do outro, este
parecendo mais gravemente ferido que o primeiro.
O sólido cavalheiro voltou-se para os três restantes, que saíram em
disparada por entre a população, ao ver que no calor da luta, sem perceber, Bakar simplesmente amassara a ferradura que ainda estava na sua
mão esquerda. Os assaltantes desapareceram, sem que alguém os pudes100
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
se seguir, pois já conheciam o ritmo da multidão. Cadenciavam sua corrida de modo a, incrivelmente, não esbarrar em ninguém.
O gigante voltou-se para a moça, que ainda estava caída, assistindo
àquele confronto inusitado, admirada com seu defensor inesperado:
– Você está bem?
– Sim, graças a você.
Os olhos de Bakar brilharam. Nunca tinha visto uma mulher tão linda.
Morena. Olhos ligeiramente puxados e brilhantes. Cílios longos. Nariz
fino. Dentes perfeitos. Cabelos negros lisos e compridos.
– Você poderia...? – disse a moça, estendendo a mão para que o distraído Bakar a ajudasse a se levantar.
– Claro – alçou-a como se fosse de papel.
– O que você fez foi realmente impressionante... Fico agradecida.
– Não precisa agradecer, qualquer um teria feito o mesmo.
– Mas de todas as pessoas que estavam aqui, ninguém fez. Você é
muito forte...
Bakar enrubesceu. Não sabia muito bem como lidar com aquele tipo
de situação, uma mulher, tão bonita... Talvez fosse a dama que ele esperava há tanto tempo...
Já em pé, a moça limpou sua roupa batendo o pó com a mão. Era esguia, de porte elegante. Havia cortado o braço na queda. Bakar intercedeu:
– Você está ferida. Precisamos ver esse corte.
– Não é nada, apenas um arranhão.
– Mesmo assim é melhor você vir comigo dar uma olhada nesse corte, minha casa não fica longe daqui – disse com inocência – só preciso
pagar por esta ferradura antes.
Na barraca de onde retirara a ferradura agora imprestável, o dono se
recusou a receber o pagamento e disse:
– Não, o senhor é um herói, não precisa pagar.
TALAL HUSSEINI
101
Bakar deixou as moedas correspondentes ao valor da ferradura sobre
o balcão e voltou-se para a sua protegida sob os protestos do vendedor
que insistia em não receber.
– Vamos?
A moça o acompanhou. Ao chegar na sua casa, antes de entrar, Bakar
caiu em si. Como convidava uma moça solteira, que acabara de conhecer, já para entrar na sua casa?! Estúpido. Desculpou-se:
– Puxa, me desculpe! Que falta de educação a minha convidar alguém que acabei de conhecer, uma moça, para entrar na minha casa...
Acho melhor que você faça um curativo no seu braço em outro lugar.
Desculpe mesmo... – Bakar parecia sinceramente constrangido.
– Não se preocupe, você não precisa se desculpar, eu sei que suas intenções são as melhores possíveis. Você me parece alguém confiável.
Vamos entrar. Mas posso ao menos saber o nome do meu salvador?
– Bakar.
– Combina com você. Eu me chamo Mirta.
Ofis recebeu um envelope cor púrpura. Não continha nada. Ele sabia
que devia dirigir-se a um local previamente designado num horário já
estabelecido. Ofis não era homem de grandes alternâncias de humor,
mas aquela mensagem velada o deixava irrequieto. No horário previsto,
obedeceu.
Cuidou que ninguém o visse entrar na velha casa. Entregou o envelope a dois guardas encapuzados, que lhe franquearam a passagem. Depois de passar por entre móveis velhos e empoeirados, Ofis abriu um
alçapão oculto e desceu escadas íngremes. Numa antessala, vestiu uma
túnica negra e prosseguiu até ganhar um grande salão retangular, de alto
pé direito, e teto sustentado por seis colunas três de cada lado. O chão
de granito polido formava desenhos de estranhas mandalas. Tomou posição e ali permaneceu, imóvel.
102
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
Também receberam o envelope de cor púrpura outras três pessoas,
que acorreram ao mesmo local, adotando o mesmo procedimento de
Ofis. Todos só se encontraram no salão, já com suas túnicas e capuzes,
o que indicava que os envelopes tinham uma significação de horário
diferente para cada uma daquelas pessoas.
Os quatro, que tinham posições preestabelecidas, voltaram-se para
uma espécie de altar que ficava numa das extremidades da sala e se ajoelharam, tocando a cabeça no chão à sua frente. Entrou uma pessoa numa túnica de cor púrpura e acendeu o fogo no altar. Derramou sobre o
fogo um líquido vermelho que estava num pequeno recipiente de vidro.
Um cheiro férreo espalhou-se pelo ar. Sua voz reverberou naquele espaço:
– Meus caros! Chamei-os aqui porque vocês são os meus colaboradores mais próximos. Uma grande batalha se aproxima. O reino passa por
um período de transição e ao que tudo indica isso não acontecerá da
forma tranquila que esperávamos. Sokárin fugiu ao controle nos seus
últimos momentos de vida. Entretanto, isso não importa mais. A cerimônia da colocação da nova placa na estela não ocorreu, o que significa
que o nome que lá está é o meu. Se a nova placa tivesse sido encontrada
e destruída, as garantias seriam maiores. Como não foi, há possibilidade
de já ter sido gravada e alguém a encontrar, e pretender com isso justificar uma luta pelo poder. Mas mesmo que isso venha a acontecer, não
podemos abrir mão do que é nosso por direito. A lei do reino determina
que a alteração somente se perfaz com a cerimônia de troca. Portanto,
vale o nome que lá está agora. Lutaremos até o fim, e levaremos a morte
aos nossos inimigos e a todos aqueles que se interpuserem em nosso
caminho rumo ao poder. Nosso Mestre nos determinou que estejamos
atentos a uma pessoa em especial, e ao grupo que o cerca: Kadriel. Ele é
um funcionário sem expressão, de segundo escalão, mas Ayamarusa
deve ter suas razões para nos dar essas ordens, e não nos cabe questioTALAL HUSSEINI
103
ná-las, e sim segui-las. Cada um já tem suas instruções com relação a
isso. Podem levantar-se agora.
Os quatro obedeceram.
Ofis ouvia atentamente. Nenhum deles sabia quem eram os demais.
Ofis desconfiava de algumas pessoas, mas não tinha certeza. Ainda não
era o momento de se conhecerem. Talvez depois que estivessem assegurados no poder.
Sob o capuz da túnica púrpura, apenas se viam olhos brilhantes, metálicos, do condutor da reunião, a sugerir argúcia e determinação. Ele continuou seu discurso:
– Nós que aqui estamos somos o centro de tudo o que vai acontecer
neste país daqui por diante. Somos os pilares onde se sustentam milhares, milhões de aliados. Tenho estabelecido contatos com pessoas importantes que apoiarão nossa causa. Abaixo de nós há um exército pronto para a batalha. Acima de nós, estão forças que mal podemos
compreender, mas que detêm poderes que nos levarão ao domínio. Nossa missão imediata é encontrar a placa gravada por Sokárin antes de
morrer. Mas temos de estar preparados para enfrentar qualquer batalha.
Seus olhos brilhavam. Ele já sentia o poder próximo de suas mãos,
bastava agarrá-lo.
– Sei que todos estão cientes de suas tarefas. Depois conversarei com
cada um em particular para verificar o andamento dos planos e revisar
os detalhes. Alguma dúvida? Que bom! As comunicações continuarão
sendo efetuadas pelas cores dos envelopes e pelos sinais nos cumprimentos. Agora vão! A vitória se aproxima! – e dirigindo-se a Ofis, sem
identificá-lo perante os demais: – Você, permaneça, pois tenho mais um
assunto a tratar.
Depois que os outros se retiraram, o homem de púrpura dirigiu-se a
Ofis vociferando:
104
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
– Soube que você realizou uma ação contra o Capitão… – Ofis assentiu com a cabeça – Mas ele ainda caminha entre os vivos…
– Meus homens falharam, senhor...
– Não, não – respondeu com tranquilidade, aproximando-se do seu
interlocutor, que estava de cabeça baixa – VOCÊ falhou! – gritou a plenos pulmões.
Caminhou em torno de Ofis e prosseguiu, novamente em tom calmo:
– O primeiro passo para conseguir o que desejamos é assumir nossos
erros. Quem lhe deu a ordem para matar o Capitão?
– Ninguém, senhor, mas eu pensei…
– Faça-me uma gentileza: não pense! Limite-se a cumprir as minhas
ordens! Eu tenho planos para o Capitão. Ele serve melhor aos nossos
propósitos vivo. Nunca mais desobedeça a uma ordem minha nem tome
iniciativas que podem prejudicar todos os nossos planos. Nesse sentido
foi bom você ter falhado, mas isso não justifica nem a desobediência e
nem a incompetência. Você agiu por conta própria e ainda falhou. Se
você não tinha pessoas habilitadas, deveria ter feito isso você mesmo.
Mas essa foi sua penúltima falha... Erros não são mais aceitáveis a partir
de agora. Sua próxima falha será a última... e tenho certeza de que você
a cometerá! Mas agora os planos em relação ao Capitão... ele voltará
para buscar a família, pois não acredita que sua mulher e sua filha estão
mortas, e terá uma grande surpresa! Viverá, mas em desgraça...
– Talvez seja um erro... Penso que devíamos eliminar logo o Capitão...
– Daqui em diante guarde para si suas opiniões estúpidas. O Capitão
fugiu ao nosso controle, é um elemento perigoso, mas morto não nos
serve, será mais útil vivo, porém desacreditado. Ficará destruído, acabado, mas não terá a chance de abandonar tão facilmente seu purgatório,
vamos destruir a sua essência – olhou novamente para Ofis, que parece
TALAL HUSSEINI
105
ter-se animado ao lembrar sua missão e prosseguiu explicando com detalhes como ele deveria proceder dali em diante.
18.
K
adriel ficara muito impressionado com a experiência que Ravi
lhe proporcionara. Kadriel sentia ter descoberto seu Mestre, o
que o enchia com um sentimento muito bom, seu coração parecia muito
grande para caber no peito, queria expandir-se, explodir de alegria.
Escolheu o caminho mais longo para voltar para a sua casa, aquele
que margeava o rio que cortava a Capital. Era um passeio muito bonito.
Kadriel aproveitava para colocar em ordem seus pensamentos, para
absorver as novas situações que se desencadeavam rapidamente ao seu
redor. Parou defronte à água corrente e permaneceu a olhá-la durante
vários minutos. Colheu uma rosa e lançou-a ao rio, numa espécie de
cerimônia, muito íntima, de contato direto com a natureza, como gesto
de agradecimento por tudo que a vida lhe havia dado e fundamentalmente por ter encontrado um Mestre que pudesse guiá-lo nesta grande
vida.
Na beira do rio, com carinho, segurava a rosa e, antes de lançá-la,
pensou:
“Vai, rosa... Como símbolo daquilo que de melhor vive em mim, de
alguma maneira toque o que de melhor vive nesse rio... E que possam os
deuses saber que já não estou só. Tenho Mestre e sei que através dele
todos os Mestres vivem. Sonho em ser digno de tal honra e pretendo
servir-lhes inexoravelmente.”
Deixou a bela rosa vermelha cair ao rio e lentamente começar a deslizar em sua suave e delicada correnteza.
106
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
Ajoelhado, observando a rosa, algo estranho aconteceu: Kadriel sentiu que por alguns instantes tudo começou a ficar vermelho e sentia um
frio estranho percorrer seu corpo. Quando se deu conta, estava mergulhado no rio e tudo se movia devagar... Tentou nadar, mas era impossível... Percebeu que ele era a rosa. Não ficou desesperado, apenas não
compreendia o que estava acontecendo. Olhava ao seu redor e via o
mundo passar. Era reconfortante a maciez do rio, que o acolhia perfeitamente em sua fluidez. De repente, Kadriel viu uma luz se aproximando e pergunta:
– Quem és?
A luz respondeu:
– Sou a consciência unificadora.
– O que queres de mim?
– Não posso pedir algo que ainda não possuis.
– O que pretendes?
– Que entendas...
– O que queres que eu entenda?
– O teu destino.
– Diz-me aonde devo chegar, e irei.
– Chegar não é tão importante quanto é caminhar. É a trilha que conta, é a jornada que modifica.
– Mas não se descobre o mistério quando se chega a ele? Não devemos chegar a algum lugar para chegar a esse mistério?
– O mistério que se encontra no final é o mesmo mistério que se encontra no início e no meio... Para a rosa não interessa o mistério do seu
destino, mas a jornada no rio.
– Desculpe-me a impertinência, consciência unificadora, mas diz-me
por quê.
– A rosa se transforma no rio, e o rio na rosa, na medida em que segue sua jornada, pois a rosa que saiu de algum ponto não é a mesma de
TALAL HUSSEINI
107
hoje, nem será a mesma amanhã. Quando a rosa começou a fazer parte
do rio, ele também deixou de ser o que era e a cada instante se torna um
novo rio. A rosa segue o fluxo do rio, e o rio se adapta à forma da rosa,
que a cada instante já não é a mesma. A jornada é evolução, e o mistério
da evolução transfere-se para a rosa e para o rio a cada instante. O importante não é a rosa no rio, mas a rosa se transformar em rio.
– Porque rosa e rio são um só...
– Esse grande rio que vês nasceu de um pequeno córrego, que por sua
vez nasceu da união de pequenas gotas, que por sua vez nasceram da
força invisível da natureza. A rosa que és nasceu de um agregado de
energia, que por sua vez veio da terra, que por sua vez foi alimentada
por uma força invisível. Essa força invisível faz crescer e viver os cabelos, a grama, as unhas, um feto, um vento, uma estrela. Essa força é a
vida que unifica todas as coisas, que dá sentido a todas elas. Tanto rosa
quanto rio compartilham da mesma força invisível da natureza: a vida.
Evolução, vida e jornada são uma mesma coisa.
– E como posso unir coisas que parecem tão distintas?
– Através da consciência unificadora.
Por um instante, Kadriel sentiu-se confuso, e em alguns segundos depois abriu os olhos e viu que nunca havia saído da posição em que estava e do ponto em que se encontrava, na beira do rio. Embora nunca tivesse saído do lugar, já não era mais o mesmo. Talvez até tivesse saído
do lugar de uma forma mágica... Mas isso não era importante. Teve a
nítida impressão que de alguma forma conhecia aquela luz que vira no
rio e que o transportara para dentro d'água, transformando-o numa rosa.
Sim, aquela luz, a consciência unificadora, sempre estivera dentro dele...
O caminho de volta à cidade transcorreu tranquilamente, sem qualquer incidente. Kadriel sentia-se leve. Mais do que isso: sentia-se outra
108
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
pessoa, como se tivesse morrido e nascido de novo. De certa forma, era
isto que tinha acontecido: Kadriel tivera um nascimento espiritual.
As paisagens lhe pareciam mais belas, as cores mais nítidas, o ar mais
puro, sentia-o encher seus pulmões. Sentia o oxigênio espalhar-se por
todas as células do seu corpo, através da corrente sanguínea. Nunca se
sentira tão bem.
Kadriel chegou a pensar que estranharia o ambiente urbano depois do
tempo que passou em meio à natureza, como no seu sonho com Mulil e
o falcão, mas para sua surpresa, ao contrário, sentia-se preparado para
qualquer situação, para qualquer desafio.
Agora, já via Ravi de modo muito diferente do que quando o conhecera. Enxergava toda a energia que ele emanava. Essa energia o fazia
parecer mais alto e mais forte do que ele era fisicamente. Seus olhos
percorriam constantemente todo o ambiente em que se encontrava, enviando a seu cérebro com rapidez um relatório completo e detalhado de
tudo: os objetos e a sua disposição, as pessoas presentes, seus problemas, preocupações, interesses. As emoções e pensamentos pairando à
volta. Não que tudo isso o afetasse, ao contrário, estar consciente do que
ocorria ao seu redor lhe permitia estar mais centrado. Suas emoções
também pareciam sempre sob o mais perfeito controle, mas isso não o
tornava frio, ao revés, era bastante caloroso e sempre pronto a ajudar a
quem quer que fosse. Mas o que mais impressionava Kadriel era a mente de Ravi. Ele sabia tantas coisas, que parecia impossível para um ser
humano aprendê-las todas em uma única vida, ainda que passasse o
tempo todo a estudar.
A mente de Kadriel trabalhava sem cessar. Ele tinha dificuldade em
compreender a separação entre os homens, separação esta que afastava a
possibilidade de a humanidade retomar a trilha divina, o caminho da
hierarquia branca. Precisava ser restaurada a união mágica, liberando
uma energia tal que mudasse os rumos da humanidade como era então
TALAL HUSSEINI
109
conhecida, permitindo que a verdadeira sabedoria voltasse a ser transmitida aos homens, ligados ao raio de luz divina, que ilumina desde o menor dos seres até chegar ao Sol fulgurante e sublime do Deus único e
infinito.
Kadriel assustava-se com seus próprios pensamentos e com a grandeza dessas ideias, que ao mesmo tempo eram muito belas. Mas por que
alguém quereria impedir essa evolução? Por que há na terra seres que
não desejam a evolução da humanidade, mas sim seu afastamento cada
vez maior do que é espiritual e divino, o que a levará à inafastável destruição.
Não importavam os porquês, mas sim o fato de que há tais seres, que
pretendem corromper a ordem do universo, rompendo o fio que une a
humanidade à sua verdadeira essência divina, deixando não mais do que
cascas vazias...
Sim, ele lutaria até o último fio de suas forças para que isso não acontecesse, para que essas forças obscuras não triunfassem sobre o que é
bom, belo e justo...
19.
O
fis deixou o palácio no mesmo horário de todos os dias. Permanecia realizando suas funções – que ninguém sabia dizer ao
certo quais eram – junto ao Primeiro Ministro. Este o tratava como a um
empregado qualquer, não denotando de modo algum que pudessem ter
outras ligações que não as estritamente ligadas ao ministério. Como
sempre, ia a pé. Seguia um caminho que atravessava certas ruelas obscuras da cidade, nas quais poucas pessoas de bem ousariam passar,
mesmo durante o dia.
110
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
Quando passava por um beco, pressentiu um ataque vindo de um canto escuro. Teve tempo apenas de se esquivar parcialmente. A adaga veio
ao seu encontro num forte golpe desferido de cima para baixo. Seu antebraço foi ferido, mas seu peito, que era o alvo, foi poupado. Recuou,
procurando divisar seu adversário, que seguiu atacando. Desta vez, Ofis
teve mais sucesso e conseguiu, sem ser atingido, fazer com que seu
oponente largasse a arma.
Mas o embate prosseguiu. O homem de preto – pela força dos golpes,
sem dúvida era um homem – arrojou-se novamente contra Ofis, que não
foi rápido o suficiente para impedir que um soco lhe atingisse a boca.
Sentiu seu lábio inferior latejar. Era um golpe duro. Sentiu sua consciência desvanecer por uma fração de segundo. Qualquer outro teria caído. Reagiu, logrando derrubar seu oponente, que rapidamente colocouse em pé mais uma vez.
Quando Ofis finalmente pôde ver seu rosto, tornou-se irônico:
– Capitão?! Por que não estou surpreso?
– Onde está minha família, seu canalha? Elas estão vivas?
– Eu não sei do que você está falando... – sorriu, cínico.
– Eu matei os homens que você enviou para me emboscar. Um deles,
antes de morrer, disse seu nome. Sei que você é responsável pelo desaparecimento de minha mulher e minha filha e imagino que está por trás
também da morte do Rei. Tenho provas de que não foi uma morte natural...
Um traço de sombra passou pelos olhos de Ofis ao ouvir essa frase,
mas respondeu com sarcasmo:
– Ninguém acreditará nessa sua absurda teoria da conspiração. Sua
voz será um eco solitário. Você não tem prova alguma de nada, e ainda
que tivesse facilmente seria desmentida.
– É o que veremos! – ao mesmo tempo em que terminava a frase, já
havia agarrado Ofis novamente – Você vai me dizer onde elas estão.
TALAL HUSSEINI
111
Ofis desvencilhou-se do Capitão e o atingiu com um violento soco na
ponta do queixo. O Capitão cambaleou quando outros dois golpes bem
ajustados o levaram ao chão. Conseguiu, mesmo grogue, aparar um chute que vinha em direção ao seu rosto. Derrubou seu oponente e lançouse sobre ele. Mesmo combalido, ainda conseguia manter um fio de
consciência de seus movimentos, fruto de muitos anos de treinamento.
Atingiu Ofis com alguns socos, mas este não parecia acusá-los, parecia
feito de madeira. O Capitão, ao contrário, já se ressentia das pancadas.
Mas o coração o mantinha no combate.
A mão dura de Ofis o atingiu no fígado. O Capitão dobrou-se. O segundo golpe veio agudo direto no seu baço. Parecia ter sido com a ponta
dos dedos. Sua visão embaçou. Uma testada em seu nariz terminou de
escurecê-la. Somente o ódio e a adrenalina o mantinham acordado. Não
caiu porque uma tenaz o agarrou pelo pescoço, pressionando sua traqueia. Ofis o segurava forte. Aproximou seus lábios do ouvido do Capitão e sussurrou:
– Você quer saber como elas morreram?
O Capitão tentou desvencilhar-se em vão. Também não conseguia falar pois sua respiração era obstruída pelos dedos firmes de Ofis. Apenas
fazia debater-se. Seu algoz continuava:
– Primeiro foi sua mulher... A menina assistindo. Depois a criança...
Não vou perder mais tempo com você. Sua alma me pertence. Você é
um morto-vivo. Extraímos qualquer coisa que você pudesse ter de bom
em seu coração. Tente viver sem esperança, vagando pelo mundo, perdido... Elas estão esperando por você em casa!
Ao terminar a frase desferiu outro soco no fígado do Capitão, soltando ao mesmo tempo seu pescoço. Este caiu sobre as próprias pernas.
Um último chute ainda lhe extraiu alguns dentes. Pensou ter ouvido Ofis
rir enquanto virava as costas. O Capitão estava caído de cara na terra
vermelha.
112
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
O curioso era que aquelas últimas palavras de Ofis ao contrário de o
devastar, reacenderam suas expectativas de encontrá-las. Sim, elas o
estavam esperando em casa... O Capitão sorriu por trás do semblante
desfigurado. Precisava reunir suas últimas forças... Queria ver sua esposa e filha... Saudade... Levantou-se e arrojou-se sobre Ofis, derrubando-o.
A luta recrudesceu. O Capitão, que parecia batido, recuperou-se acertando alguns golpes sobre o outro. Ofis parecia ter finalmente se cansado e esmorecia, já não opunha tanta resistência. O Capitão sentia que a
situação virava a seu favor. Quando dominava o combate, Ofis conseguiu espetá-lo com algo pontiagudo. Não era um ferimento grave, mas
sua vista ficou um tanto embaçada, seu corpo mais mole, seus pensamentos confusos. Ofis tratou de fugir.
O Capitão o perseguiu pelas ruas, mas somente lograva enxergar o suficiente para ver sua silhueta, e se movimentar o suficiente para segui-lo
de longe. Viu, à distância, Ofis entrar numa casa. Alguns minutos depois chegou à porta e entrou atabalhoadamente. Somente então percebeu
que era a sua própria casa. Sua esposa estava sentada no chão, coberta
de sangue, com as costas apoiadas sobre a parede. Tinha vários cortes
sobre todo o tórax, e uma grande faca enterrada no peito sobre o coração. O Capitão jogou-se de joelhos ao seu lado e num impulso reflexo
retirou a faca, largando-a ao lado. Tentava, em atitude desesperada fechar com as mãos os ferimentos que sangravam sem parar, principalmente aquele de onde retirara a faca. A pobre mulher ainda estava viva,
mas apenas por alguns segundos... eram as últimas convulsões. Nada
falou, mas ainda pôde voltar seus olhos para o marido e em seguida dirigi-los para o outro canto da sala.
Lá estava a sua filha, caída no chão. O Capitão, com a mente obnubilada pela substância que a picada certamente lhe injetara, com as emoções absolutamente fora de controle pela situação que o envolvia, apaTALAL HUSSEINI
113
nhou-a nos braços, encostando o ouvido em seu peito. Ela fora vítima da
mesma arma que sua mãe, mas ainda vivia. Era apenas um sopro de
vida. Seus olhos de criança, marejados, olhavam com ternura para o pai,
como que mais a procurar tranquilizá-lo do que a pedir auxílio. Na sua
percepção de infante, sabia que não havia mais auxílio possível. Conseguiu sorrir, fechou os olhos e expirou...
O pai a abraçava, inerte, contra o peito e soluçava, chorando copiosamente.
Foi quando ouviu os chamados dos soldados do lado de fora, avisando que a casa estava cercada e que iriam entrar. O Capitão ainda estava
confuso. Foi até a janela e verificou que não era um blefe. Muitos soldados de infantaria e arqueiros estavam de prontidão. O Capitão sabia
que seria suspeito, caíra estupidamente numa armadilha. E sua família
fora vítima desse pesadelo cruel. E elas não estavam mais com ele... As
lágrimas verteram novamente, mas ele as reteve. Precisava se controlar,
pensar em como contornar aquela situação. Só havia uma maneira: fugir... Se fosse preso, não teria como provar sua inocência. Por que não o
haviam matado?
O oficial responsável pelo cerco o reconhecera de sua aparição na janela e gritou:
– Capitão! Sabemos que o senhor está aí dentro. Houve um chamado
da vizinhança devido ao grande barulho proveniente de sua casa. Está
tudo bem? Foi relatada situação de violência.
Sim, precisava escapar, pensariam que ele era o responsável pelas
mortes.
O Capitão sempre fora precavido, como exigia a sua profissão. Sua
casa possuía uma saída subterrânea que ele mesmo escavara até uma rua
paralela. A entrada ficava atrás de um armário no porão. Foi até lá e
evadiu-se, do modo que lhe permitiam as dores do corpo e da alma.
114
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
Quando os soldados adentraram à casa, ele já estava fora de alcance.
Todos ficaram horrorizados com a chacina. O Capitão enlouquecera... e
assassinara sua família. A notícia correu rápido. Em poucas horas, era o
homem mais procurado da Cidade. O Conselho dos Anciãos, ao qual
cabiam as responsabilidades do reino até a abertura da sucessão, declarou imediatamente sua exoneração da Guarda Real. De soldado real, o
Capitão passava a foragido da justiça.
20.
K
adriel foi almoçar com Haggi. Sabia da viagem que este faria
ao interior do País e não queria deixar de lhe desejar boa sorte.
Haggi ficara muito tempo fora, mas Kadriel o considerava um bom amigo e excelente cavalheiro. O encontro foi numa discreta tasca no bairro antigo da Capital. Esse local consistia num emaranhado de ruelas e
becos que formavam um labirinto impossível de decifrar para quem não
o conhecesse. Mas os dois jovens se haviam praticamente criado naquele local. Guiavam-se ali melhor do que a grande maioria das pessoas.
O local a que se dirigiram ficava numa dessas ruas. A entrada era
abaixo do nível da rua – era necessário descer uns quatro degraus para
ganhar o interior. O proprietário era um velho conhecido dos dois, chamado Ragatis. Era um tipo rosado, possuidor de uma enorme barriga,
cultivada à base de muito vinho e muita comida. Desde que conheciam
aquele local, o que fazia muitos anos, aparentava ter a mesma idade.
Sempre usava um avental surrado e camisa de mangas curtas, não importava o quão rigoroso fosse o inverno. Careca, com grandes orelhas,
nariz de batata, olhos pequenos e perspicazes, sorriso franco e mãos
gordas, quando viu Kadriel chegar, deu apenas um sorriso e indicou
TALAL HUSSEINI
115
com um rápido movimento de olhos a mesa em que Haggi o esperava.
Quando Kadriel sentou-se, o taverneiro perguntou-lhes:
– O de sempre?
Diante do assentimento, trouxe uma jarra de vinho da casa e um prato
de petiscos.
– E, então, meu amigo, soube que está de viagem marcada para o interior?
– Sim, o Chefe do Conselho dos Anciãos me envia para assegurar a
colaboração das lideranças regionais para com o sucessor. O equilíbrio
conseguido pelo Imperador Gur Medhavin deve ser mantido.
– Concordo que isso seria muito bom, mas tenho minhas dúvidas
quanto à tranquilidade desta sucessão – lançou Kadriel.
– Sim, também percebo certas tensões no ar.
– O que pensa o Primeiro-Ministro?
– Adaran é um homem difícil de decifrar...
– Mas vocês são companheiros de espada na Real Sociedade... E para
um homem observador como você não deve ser difícil detectar suas
intenções.
– Adaran sabe perseguir seus objetivos, é tenaz e determinado para
conseguir o que quer.
– Ele quer o reino?
– Por mais que seu discurso seja desinteressado, creio que ele não
desgostaria de assumir o trono, já que gosta do poder. Diria que ele pensa nessa possibilidade, e não hesitaria em comprar os apoios necessários
para isso com privilégios, mordomias e presentes. Os chefes do interior
são terreno propício para esse tipo de ação, pois querem manter seus
domínios a qualquer preço.
– E se a sucessão não transcorresse de forma pacífica?
– O que poderia suceder? O nome de sucessor está na placa e ponto
final, não há o que discutir.
116
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
– Todos sabem que Sokárin solicitou uma nova placa, o que indica
que pretendia trocar o nome do sucessor.
– Mas não trocou, não houve cerimônia de substituição da placa...
– Em contrapartida, a nova placa não foi encontrada, o que significa
que poderia já estar gravada. Isso indicaria que o nome que lá está não
reflete a vontade de Sokárin. A troca, a cerimônia, é apenas uma formalidade.
– Kadriel, nós nos conhecemos há muito tempo. Você está querendo
me dizer alguma coisa?
– Sim, Haggi, na verdade estou. Mas isso não pode sair desta mesa...
O outro concordou com a cabeça.
– O nome que estaria ou que está na nova placa é o meu.
Haggi não conseguiu esconder sua surpresa. Os dois amigos se olharam, em silêncio, por alguns momentos. Kadriel esperou que Haggi falasse:
– Como você pode saber disso?
– O próprio Sokárin me falou, antes de morrer. Disse-lhe que não estava preparado para tal encargo, mas ele me pediu que aceitasse pois
sabia melhor do que eu quem estava ou não preparado...
– Mas por que ele não trocou a placa?
– Ao que parece, não teve tempo. Ou a idade o traiu ou sua morte foi
antecipada... Não duvido disso.
– Mas, quem...?
– Muitas pessoas poderiam ter interesse em abreviar a vida do Rei,
mas o maior suspeito está com seu nome gravado na placa atual... Só
saberemos no dia da abertura.
– Sempre intuí que você seria um grande governante um dia, só não
imaginei que pudesse ser tão cedo. Você é jovem, haveria muitas resistências... Mas de qualquer modo parece que isso não importa mais, a lei
estabelece que vale o nome da estela.
TALAL HUSSEINI
117
– Mas nós sabemos que esse não é o nome que Sokárin desejava. E
ao menos uma pessoa neste mundo sabe que sua vontade era que eu
assumisse o governo, mesmo contra a minha vontade: eu.
– Confesso que agora seu tom de voz deixou-me preocupado,
Kadriel. Você não pensa em questionar o sucessor?
O silêncio de Kadriel foi bastante eloquente. Haggi passou a mão esquerda sobre o olho, descendo até o queixo e soltando a respiração, num
gesto que lhe era peculiar em momentos de grande preocupação. Conhecia o amigo e sabia que ele falava sério. Fazendo um sinal positivo
com a cabeça, como se tivesse entendido, e, franzindo o cenho, prosseguiu:
– E o que pretende fazer?
– Primeiramente, encontrar a placa que estava em poder de Sokárin.
Ele mesmo me disse que eu deveria lutar se fosse preciso. A placa com
meu nome justificaria de alguma maneira essa luta. Ainda que não perante a lei, mas ao menos perante o povo. Tenho a convicção de que
Sokárin a gravou, caso contrário não a teria escondido.
– Na sua linha de raciocínio, o que garante que as mesmas pessoas
que assassinaram o Rei não teriam destruído a placa?
– Garantir...? Nada. Mas a justiça não tem garantias entre os homens.
Não passa de um ridículo arremedo da justiça dos deuses. Mas isso não
nos afasta do dever de buscá-la... – e mudando de direção a conversa,
emendou: – preciso saber de uma coisa, Haggi.
O diplomata permaneceu a fitá-lo com olhar inquisidor. Kadriel prosseguiu:
– Se você está comigo nesta jornada, até o fim, custe o que custar.
Haggi não hesitou nenhum instante em responder, sustentando com
firmeza o olhar forte de Kadriel:
– Sim, meu amigo, pode contar comigo. Até o fim. Custe o que custar.
118
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
Os dois se cumprimentaram de modo fraterno e deixaram o local separadamente.
Bakar não via a hora de seu encontro com Mirta. Estava encantado
desde o primeiro, e até então único, encontro. Sonhara com ela nas três
noites que se haviam passado desde então. Avistou-a no local onde haviam combinado. Estava linda! Cabelos soltos sobre os ombros, pele
lisa. Bakar foi em sua direção. Apesar do tamanho, ele não era desajeitado. Mas desta vez a emoção o fazia parecer um rinoceronte solto num
parque. Só não derrubou pessoas pelo caminho porque, qual fosse um
rinoceronte de verdade, todos se afastavam à medida que ele se aproximava.
Finalmente chegou perto de Mirta, que sorria discretamente e o recebeu com afeto:
– Como você está elegante, Bakar! Não quer se sentar um pouco?
Ruborizado com o inesperado elogio, sentou-se. Mirta continuou:
– Um chá?
– Sim, claro.
– Onde você trabalha, Bakar?
– No ministério, com meu amigo Kadriel. Você precisa conhecê-lo, é
muito boa pessoa. Aliás, vou encontrá-lo daqui a pouco, se quiser vir
comigo...
– Claro, eu adoraria passar mais tempo com você...
Após o chá, os dois caminharam pelo parque, em direção ao escritório
do ministério, onde encontrariam Kadriel. Lá chegando, foram até a sala
em que Bakar trabalhava. Bakar fez festa com seu amigo – na verdade,
queria mostrar sua nova amiga:
– Olá Kadriel, quero lhe apresentar uma pessoa.
TALAL HUSSEINI
119
Kadriel voltou-se. Ao vislumbrar a bela morena, teve de disfarçar sua
surpresa ao ver tão formosa dama em companhia de Bakar. Não que ele
não merecesse, mas não era comum vê-lo acompanhado, devido à sua
timidez. A moça foi discreta. Kadriel não pôde deixar de reparar nos
seus olhos negros. Sua primeira impressão foi de que havia bondade
naquele olhar. A moça era realmente muito bonita.
Bakar se entreteve com algumas pessoas que o chamaram, deixando
Mirta a sós com Kadriel, que notando seu desconforto procurou deixá-la
à vontade:
– Você quer beber alguma coisa?
– Não, obrigada, acabamos de tomar um chá.
– Sim, claro... – e tentando manter a conversa – faz tempo que você
conhece Bakar?
– Para dizer a verdade, acabamos de nos conhecer, em circunstâncias
engraçadas... – ela interrompeu a frase, como se não quisesse perder o
tempo de seu interlocutor com assuntos pessoais.
– Sim, continue... você ia dizendo como o conheceu.
– Não... deixe que ele lhe conte...
– Mas vocês dois estão...? – fez uma expressão facial, como querendo
que ela completasse a frase, mas Mirta se manteve em silêncio. Então
ele insistiu: – você sabe...
– Se você quiser saber alguma coisa, basta perguntar.
– Vocês estão namorando?
Ela deu uma gargalhada, mas não com desdém. Ao contrário, com extrema espontaneidade:
– Não. Acabamos de nos conhecer. Tivemos uma simpatia mútua e
imediata, só isso... Acho Bakar bondoso e engraçado, mas pretendo ser
apenas sua amiga.
Kadriel teve uma sensação estranha diante daquelas palavras. Conhecia seu amigo e já notara que ele estava completamente apaixonado pela
120
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
moça. Ela não parecia ter os mesmos sentimentos em relação a ele, o
que podia não ser muito bom. Mas algo dentro de Kadriel gostara daquelas palavras. Ela era realmente muito bonita...
21.
H
aggi partira cedo, junto com Tarin, seu empregado e braço
direito. Tarin cuidara de seu pai e agora cuidava de Haggi.
Não lhe deixava faltar nada. Antecipava suas necessidades, trazendo as
soluções antes que Haggi sequer pensasse que tinha um desejo. Era um
homem de certa idade, apesar de parecer bem mais jovem do que realmente era. Pele parda, sem nenhuma ruga, cabelos grisalhos, olhar discreto, mas profundo, o que só um observador mais atento poderia ver. Já
havia providenciado tudo o que seria necessário para a viagem por terra.
Os barcos não agradavam a Haggi, que preferia a possibilidade de durante o trajeto encontrar-se com pessoas do povo, cujas palavras traçavam o mais fiel retrato do país e dos anseios da população.
Viajavam a cavalo, mas com vestimentas comuns, que não denotavam a origem nobre de Haggi. Não era vantajoso chamar muito a atenção naquelas estradas. A meio caminho da cidade que ficava sob o domínio de Nakan, líder da Aliança dos Doze, pararam numa estalagem,
pois já se fazia noite. Depois de instalados, foram até a taverna que funcionava no mesmo local. Estava lotada. Muitas pessoas bebiam, conversavam em voz alta e gargalhavam. Discretamente, se instalaram numa
mesa no fundo do salão, de costas para a parede e de frente para a porta
de entrada.
Daquela posição, Haggi observava todo o ambiente. Rapidamente havia contado quantas pessoas havia, e sua disposição nas mesas, quais
TALAL HUSSEINI
121
estavam já alterados pelo vinho, quais poderiam ser perigosos, e todas
as informações que lhe pudessem ser úteis. Tal habilidade, que era para
ele um hábito, fora fruto de muito treinamento. Haggi observava o estalajadeiro, um homem de meia idade que não estava bebendo álcool e
que, como ele, perscrutava a tudo e a todos. O homem estava suado e
com aspecto cansado, por estar procurando atender a todos, mas feliz
por ver seus lucros indo de vento em popa. Haggi tomava sossegado
uma sopa acompanhada de vinho e percebeu a entrada de três homens
de feição sisuda. Imediatamente sabia que causariam algum tipo de problema. Reparou que o estalajadeiro também notou a presença dos homens. Ambos, entretanto, permaneceram impassíveis.
Haggi, automaticamente, avaliou que objetos naquele local poderiam
transformar-se em armas, para uma eventualidade. Eram, sem dúvida,
caçadores, pois portavam arcos e aljavas, bem como traziam os ombros
guarnecidos por peles de animais abatidos. Foram em direção a uma das
mesas, onde estava sentado um jovem corpulento, que Haggi identificou
como sendo um ferreiro ou algo do gênero, pelas roupas e tipo físico.
Usava uma camisa sem mangas, nos pulsos largos braceletes de couro.
Os braços queimados denotavam exposição constante ao calor. Do lado
esquerdo da cinta, levava uma adaga rústica, que os homens que chegaram não viam, eis que a mesa a ocultava.
As deduções do diplomata foram confirmadas quando aquele que parecia ser o líder dos caçadores jogou sobre a mesa uma dessas armadilhas de caça que consistem numa boca dentada, de ferro, que é forçada a
ficar na posição aberta e quando acionado um dispositivo de molas no
seu centro, geralmente pela pisada do animal – a armadilha está escondida sob folhas – se fecha fortemente sobre a presa, prendendo-a pela
pata, que imediatamente se quebra com o impacto. A presa não morre e
nem tem sua pele danificada, o que é bom para a venda.
122
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
– Este conserto que você fez está uma porcaria! A mola não tem pressão, os animais escapam.
O ferreiro permaneceu impassível, limitando-se a analisar o objeto
com os olhos, que em seguida se voltaram novamente para a sua comida:
– Eu não consertei essa armadilha – respondeu secamente.
– Como não consertou? Você trocou o sistema de molas há duas semanas e já não está funcionando.
– Já disse que, se isso foi consertado por alguém, não foi por mim.
– Você está me chamando de mentiroso?!
A essa altura, todos já haviam percebido a altercação e voltavam suas
atenções para aquela mesa. Muitos se levantaram. O ferreiro respondeu
com tranquilidade:
– Estou dizendo que jamais coloquei minhas mãos nessa peça. Se você é ou não mentiroso não posso afirmar pois não o conheço bem. Suas
amigas aí atrás é que poderiam responder melhor... – ao proferir essa
ofensa já se levantou, aproximando a mão da faca, esperando uma reação mais dura.
Foi o que um dos acompanhantes do caçador pretendeu fazer, mas este o conteve.
– Não queremos problemas, apenas quero que seja realizado o serviço
pelo qual paguei.
– De fato você me pagou pelo conserto de uma armadilha, mas não
foi esta. Veja: este sistema de molas não é o que eu utilizo, inclusive
nem se utiliza nesta região.
– Penso que não estou sendo bem claro. Se você não quiser consertar
esta armadilha vai terminar com o seu pescoço no meio dela.
– Vai ser preciso bem mais do que vocês três para colocar o meu pescoço aí.
TALAL HUSSEINI
123
O clima estava bem quente. Haggi percebeu a apreensão do proprietário do estabelecimento. Várias opiniões começaram a surgir por entre os
frequentadores, mas dificilmente se percebia o autor de cada intervenção:
– Se fez um serviço mal feito, tem de arrumar! – disse alguém.
– Esses caçadores são muito arrogantes, provavelmente estão mentindo... – interveio outro.
– Esse ferreiro faz tudo mal feito. Deve ter estragado a armadilha...
– Quem com ferro fere, com ferro será ferido. Um dia é da caça e outro do caçador – proferiu um homem que já estava embriagado.
Todos o olharam, fazendo alguns segundos de silêncio para então retomar as discussões. Entrementes, as partes envolvidas já estavam na
iminência do confronto físico. Foi quando Haggi resolveu interferir.
– Senhores, não pude deixar de ouvir sua interessante discussão, a
respeito de armadilhas de caça...
– E posso saber quem é o senhor – interveio o caçador.
– Quem eu sou é o que menos importa neste momento. O que importa
é que a discussão já se vai acalorando, a ponto de logo se iniciarem as
vias de fato, o que seria desagradável para o meu jantar e para o estabelecimento.
O proprietário aprovava suas palavras com a cabeça. Mas os contendores não compartilhavam dessa aprovação. Desta vez foi o ferreiro que
intercedeu:
– Creio que podemos resolver muito bem nossos problemas. É melhor o senhor voltar para a sua mesa e continuar sua refeição se não quiser arrumar problemas para si mesmo.
Haggi não se abalou com a ameaça e prosseguiu em tom sereno:
– É claro que vocês podem resolver seus problemas, mas não penso
simplesmente em resolver problemas, penso em como podemos todos
ganhar com isso... – enquanto os dois homens pensavam em suas pala124
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
vras, Haggi continuou, voltando-se para o ferreiro: – o senhor é capaz
de consertar este tipo de armadilha?
– Evidente que sim. Não só consertar como melhorá-la... Este sistema
de molas é antiquado, perde muito rapidamente a força. Na minha opinião deveria ser substituído por outro mais eficiente.
– E o senhor faz essa substituição... – o ferreiro assentiu. Neste ponto
o caçador nada dizia. Haggi o interpelou: – o senhor utiliza muitas armadilhas como esta?
O homem não hesitou em responder, com certo ar de gabação:
– É claro! Nosso grupo caça muito. Temos algumas dezenas destas.
– Então, é possível que o senhor tenha-se enganado, e que a armadilha deixada para conserto seja outra?
O homem pareceu apanhado de surpresa por aquela pergunta. Havia
caído na armadilha de Haggi. Sustentou seu ponto de vista, já sem tanta
convicção:
– Conheço cada uma das minhas armadilhas... foi esta que ele consertou...
O ferreiro já ia responder alguma coisa, mas Haggi se antecipou:
– Também conheço de armadilhas, eis que venho de uma família de
caçadores, e de fato este tipo de mola não é utilizado nesta região. Mas
entendo que quem tem tantas armadilhas semelhantes possa cometer um
engano inocente em relação a isso. De todas essas armadilhas, suponho
que muitas já estejam precisando de reparos e manutenção. Por que não
as traz todas para nosso amigo ferreiro consertar?
– Espere um momento, amigo, eu não trabalho de graça. Cobrarei cada conserto e para esse indivíduo – olhou com desdém para o caçador –
o preço é mais alto.
– Você vai cobrar o preço justo, porque ele será um excelente cliente,
que tem muitas peças para consertar. E as terá sempre. Mais vale ganhar
menos e sempre do que ganhar muito apenas uma vez – decretou Haggi
TALAL HUSSEINI
125
com autoridade. Desta vez foi o caçador a ponderar, já em tom mais
moderado:
– Mas o problema é que eu não tenho como pagar por todos esses
consertos...
– Viu só? – disse o ferreiro, com ares de quem tinha razão.
– Com armadilhas ruins você caça bem menos, certo? Se ele não caça
e não tem dinheiro, são vários trabalhos de conserto a menos, não é? Eis
o que vamos fazer.
Haggi chamou os dois homens num canto e lhes pediu que viessem
apenas os dois, deixando seus respectivos amigos de lado:
– Primeiramente, me prometam que escutarão minha proposta até o
final, sem interrupções – os dois homens concordaram – depois, se não
quiserem segui-la, tomo meu rumo e o problema será de vocês. Você
consertará cinco armadilhas dele, sem cobrar nada – o ferreiro se retesou, mas manteve sua palavra de não interromper – agora. Mas depois
de conseguir caça, você pagará por esse serviço, acrescendo um décimo
ao seu valor em retribuição à confiança e ao crédito que o ferreiro lhe
deu. As peles conseguidas você vai negociar com um amigo meu. Mostre-lhe isto – estendeu um pequeno pedaço de pergaminho com um símbolo desenhado – e a partir daí os negócios com ele ficam por sua conta.
Já aviso que ele só trabalha com material de primeira, mas paga bem
mais do que nestas redondezas. Quando você voltar para pagar pelo
primeiro conserto, deixará mais cinco armadilhas para consertar, pagando adiantado desta vez. O ferreiro lhe cobrará um décimo a menos no
valor dos serviços, em face do adiantamento. Na próxima vez, você trará mais cinco armadilhas para consertar, e a partir daí o pagamento será
no preço normal, sendo metade ao deixar as armadilhas e a outra metade
ao retirá-las. Todos ganham. Você caçará mais com armadilhas boas.
Estas sempre precisarão de reparos, pois quando as últimas estiverem
consertadas, já as primeiras precisarão de novos reparos. É um ciclo que
não termina.
126
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
Os dois homens se olharam, olharam para Haggi. Por mais que tentassem pensar em alguma falha naquele plano, não conseguiam. Foi o
ferreiro que tentou, já esperando por uma resposta:
– Mas e se ele não aparecer mais para me pagar o primeiro conserto?
– Então você terá o prejuízo desse serviço, mas eu ficarei sabendo e
ele não mais conseguirá vender sua caça para o meu contato. Então,
todo o ciclo que descrevi ficaria corrompido e ninguém sairia ganhando.
Só idiotas fariam isso. Como sei que vocês não são idiotas, creio que o
plano funcionará – os dois concordaram – então vamos selar este acordo
com um brinde?
Os três se cumprimentaram, brindaram e continuaram conversando.
Os caçadores e os amigos do ferreiro, que olhavam à distância, não entendiam o que se passava. Estavam desejosos de uma boa briga, mas
suas expectativas foram frustradas pelo estranho. Não restava senão
continuar a se divertir.
Os três homens ainda permaneceram algumas horas conversando,
como velhos amigos. Haggi tinha este dom: fazer com que pessoas que
acabara de conhecer se sentissem à vontade com ele, a ponto de lhe confiar seus mais recônditos segredos. Aproveitava essas oportunidades
para perquirir sobre o que o povo pensava dos governantes, da política,
das necessidades. Para um governante é importante ouvir a população,
não esperando dela soluções, mas para ter uma correta leitura dos problemas. Haggi conquistara, naquela noite, dois amigos, dois aliados.
Não eram nobres, não tinham exércitos, mas tinham lealdade. Homens
leais são sempre importantes nos momentos difíceis.
Na verdade, conquistara três aliados, pois ainda que ninguém mais reconhecesse o valor daquela intervenção, ao menos um homem reconhecia: o dono do estabelecimento, que já contabilizava os prejuízos que a
briga poderia causar. Todos que conheciam sua fama de sovina estranharam quando ele ofereceu uma rodada por conta da casa. Todos, exceto Haggi.
TALAL HUSSEINI
127
22.
K
adriel tinha uma curiosidade histórica sobre Ravi, e como ganhavam intimidade a cada dia, resolveu perguntar por que seu
pai não sucedera Gur Medhavin e depois o próprio Ravi, que seria então
Rei a esta altura. Ravi respondeu com a mesma naturalidade de sempre.
Os meandros do poder não exerciam sobre ele nenhum apelo. Tratava o
assunto sem qualquer exaltação, apesar de ser descendente direto de um
dos maiores dirigentes da história recente. Foi nesse tom que Ravi respondeu:
– Kadriel, não falemos num governo de sábios, pois já nos esquecemos o que é isso. Mas mesmo em um governo de filósofos, como já
experimentamos em nosso País, a sucessão não se dá por linhagem sanguínea e sim por retidão, capacidade e solidez moral. Normalmente, um
soberano procura preparar para sucedê-lo seus filhos de sangue, aos
quais poderá dar exemplos próximos e práticos de como governar. Mas
muitas vezes o Destino intervém para subverter isso que em nossa visão
limitada parece ser ordem, em prol de uma ordem superior, que resta de
difícil entendimento para os homens. Às vezes, a despeito de esmerada
educação, aquele que deveria suceder se deixa dominar por sua personalidade e fica suscetível a vícios inaceitáveis num governante. Não poderá, então, suceder. Se força essa situação, lança o caos. A personalidade
é como um cavalo que deve ser domado, ora com carícias, ora com chibatadas. Mas pobre do cavaleiro que se deixa conduzir pelo cavalo ao
invés de conduzi-lo. Perder-se-á do caminho ou será jogado ao chão
onde perecerá.
Ravi parou diante de uma flor, observou-a durante longos minutos.
Kadriel não ousou interromper aquele momento de contemplação. Ao
contrário, conseguiu compartilhar a admiração que Ravi demonstrava
128
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
por uma simples flor. Quase pôde vislumbrar a perfeição que pode conter uma pétala. Como uma flor transcende os sentidos para despertar
percepções naquele que, ao olhar, sabe ver... Ravi retomou suas palavras como se não as tivesse largado:
– Meu avô foi um homem precoce na vida e na morte. Foi um soldado no período das guerras incessantes que assolaram nosso País. Por
coincidência, por destino ou por arranjos do Universo – escolha o que
preferir –, numa batalha decisiva, todos os oficiais superiores de sua
unidade sucumbiram. De forma natural, Gur assumiu a liderança dos
soldados. Foi um daqueles instantes que só acontecem em combate.
Ninguém precisou dizer nenhuma palavra, ele sabia que devia liderar e
todos sabiam que ele devia ser o líder. De uma situação de inferioridade,
ele obteve uma vitória estrondosa. Era um militar nato. Quando isso
ocorreu, tinha apenas dezoito anos de idade. O Imperador o nomeou
General de Campo. Num período de um ano, tornou favorável nossa
situação na guerra, o que àquela altura parecia impossível. Esta é uma
característica dos grandes homens: conquistar o impossível. Mesmo
aqueles que por convicção ou por inveja haviam se manifestado contrariamente à sua nomeação tiveram de reconhecer sua capacidade.
Kadriel ouvia atentamente, como se não quisesse perder nem um detalhe. Ravi relatava como se tivesse presenciado os fatos. E Kadriel
também os vivenciava naquele relato:
– Foi então que o Imperador surpreendeu ainda mais a todos, inclusive ao próprio Gur: nomeou-o seu sucessor e afastou-se do trono ainda
em vida. Inicialmente Gur Medhavin relutou, se dizia um soldado e não
um governante, mas o Imperador, com a visão que só os grandes dirigentes têm, lhe mostrou que esse era o caminho e o demoveu das suas
resistências. Não fosse a firmeza de caráter e o prestígio com que contava o Imperador, aquele menino de apenas dezenove anos não teria resistido às pressões. Mas até a sua morte o Imperador se manteve ao lado
TALAL HUSSEINI
129
do jovem, como seu Mestre e conselheiro. Gur Medhavin ainda enfrentaria mais sete anos de guerra em seu governo e depois mais sete anos
de paz. No período de guerra, Gur Medhavin não perdeu uma única batalha, por menor que fosse. E a paz foi conquistada da maneira mais
inusitada possível, da maneira guerreira. Gur pacificou os inimigos já
sem, no final, precisar sequer lutar. Consolidou o apoio das lideranças
regionais, criando a Aliança dos Doze, que eram os dirigentes das doze
maiores cidades do Império. Durante esse período de paz, deu acesso a
alimentos a todos com uma agricultura eficiente, promoveu a educação,
calcada no senso de justiça, na vivência moral, na importância de falar a
verdade, no domínio do medo. Deu suporte à cultura e à ciência, criando
bibliotecas e universidades, fundou templos, permitindo a liberdade de
religiões, exceto a feitiçaria. Fundou uma escola de dirigentes, onde se
poderiam preparar aqueles que fossem exercer cargos públicos. Teve
muitas realizações.
Os olhos de Kadriel brilhavam ao pensar que tudo aquilo era possível.
Sim, se já havia existido, poderia voltar a existir. Ravi continuou, ciente
de que a maior curiosidade de Kadriel não havia sido respondida, ainda
que ele não se lembrasse:
– Tudo isso foi elaborado num período curto, pois, como disse, Gur
Medhavin não foi prematuro somente na vida, mas também na morte.
Morreu aos trinta e três anos, quando meu pai tinha apenas oito e não
poderia sucedê-lo. Deixar o trono para um menino, que dependeria de
um tutor, seria inconcebível e jogaria por terra todas as conquistas. Gur
era consciente. Nomeou como seu sucessor um homem de sua extrema
confiança: o pai de Sokárin. Mas Gur decretou que a partir de então não
haveria mais Império e sim um Reino. No futuro, quando as condições
se apresentassem novamente, o Império ressurgiria.
Kadriel conseguia ver a admiração com que Ravi se referia ao Imperador Gur Medhavin e partilhava dessa admiração. Mais do que isso,
130
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
partilhava do sonho de reconquistar aquelas épocas gloriosas. Absorvido por aquelas palavras, assumia definitivamente o seu destino. Entendia por que Sokárin o havia escolhido e por que lhe ordenara lutar pelo
poder. Kadriel, como Gur, não queria o poder, e era exatamente isso que
o legitimava. Somente quem não deseja o poder para si saberá usá-lo em
benefício da justiça.
Estava pronto para a batalha.
Ao chegar no palácio de Nakan, Haggi foi recebido com todas as honras de um grande líder. Enquanto alguns empregados, juntamente com
Tarin, tomavam conta de seus pertences, o próprio Nakan veio ao seu
encontro para dar as boas vindas. Nakan era um homem de seus cinquenta e tantos anos, cabelos grisalhos nas têmporas, olhos negros despertos, mãos largas, o que denunciava um bom soco. Estava em boa
forma física, aspecto militar. Haggi pôde sentir sua força quando o
cumprimentou com um aperto de mãos, reforçado pela outra mão agarrando com vigor o pulso de Haggi.
– Haggi Eitan! Há quanto tempo não nos vemos. Fiquei feliz quando
chegou o mensageiro anunciando sua visita. Sempre passamos momentos agradáveis quando nos encontramos. Você sabe, fora da Capital, é
difícil encontrar conversas refinadas. A mensagem, entretanto, não incluía o motivo da visita, mas deixemos para tratar disso após o jantar.
Há um bom banho quente preparado para você nos seus aposentos. Ivis
irá acompanhá-lo – concluiu, indicando uma bela moça que aguardava
em silêncio o fim da conversa.
– Nakan – respondeu Haggi, com o mesmo entusiasmo de seu anfitrião – eu é que fico honrado em ser recebido na sua corte. Como estão as
coisas na principal cidade da aliança? Vejo que seu bom gosto para as
coisas belas da vida não se perdeu – acrescentou, fazendo referência a
TALAL HUSSEINI
131
Ivis – vejo também que você mantém sua boa forma. Espero termos
tempo para um combate com sabres.
– É sempre uma honra combater com alguém hábil. Por aqui já não
tenho adversários. Mas teremos tempo para isso nos próximos dias. Por
hora, descanse da viagem. Mandarei chamá-lo para o jantar. Então poderemos conversar melhor.
– Agradeço-lhe desde logo a hospitalidade. Vou aceitar de bom grado
a oferta do banho, pois a viagem para cá não é das mais confortáveis.
– Até mais tarde, então.
Ivis, com um sorriso, pediu a Haggi que a acompanhasse. Disparou,
lépida, pelos corredores, deixando atrás de si um rastro inebriante de
perfume de flores. Aquele aroma, por si só, já dissipava o cansaço do
diplomata, que era um emérito apreciador do sexo oposto, sabendo ler
com precisão o corpo e a psiquê femininos. Deixou-se conduzir pela
moça, que lhe indicou seu quarto, junto ao qual havia uma casa de banho com uma banheira esfumaçante, preparada com ervas aromáticas.
Ivis fechou a porta atrás de si. Olhou para Haggi com seus lindos olhos
cor de mel, cabelos ruivos cacheados, tez branca, e declarou com naturalidade:
– Nakan me ordenou que cuidasse muito bem do senhor – disse aproximando-se de Haggi.
Ela sorria com os olhos. Esta é uma característica admirável nas pessoas, principalmente nas mulheres: sorrir com os olhos. Ivis não possuía
qualquer traço de vulgaridade ou lascívia, era linda e discreta, mesmo
oferecendo entregar-se ao visitante. Haggi, apesar do encantamento que
o tomou, respondeu como um cavalheiro:
– Ivis, você é belíssima! Muito me agradaria sua companhia, desde
que fosse por sua própria vontade e não por ordens de Nakan. Sei que
ele quer agradar-me e sou grato por isso. Vejo também que ele não poderia ter escolhido melhor, pois você é, além de bela, discreta, o que é
132
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
uma qualidade adorável. Tem os mais lindos olhos em que um homem
poderia querer mergulhar, silhueta digna das princesas, perfume de rosas. Apenas lhe peço uma coisa: me chame de Haggi, não de senhor...
– Sim, senhor, quer dizer, sim... Haggi. Quer que o deixe, então? Se
não o agrado, Nakan pode providenciar outra companhia...
– Não, por favor – interrompeu Haggi – espero que você me dê a
honra de sentar-se ao meu lado no jantar. Agora estou de fato muito
cansado e vou aproveitar estes momentos para me recompor. Quando
você estiver ao meu lado sem falar em Nakan e sem pensar nas ordens
que ele lhe deu, tenho a certeza de que nos entenderemos muito bem.
– Com licença.
Haggi consentiu com a cabeça. Ivis retirou-se, fechando atrás de si a
porta. Haggi soltou a respiração de uma só vez, sentando-se na cama.
Mais alguns segundos e não teria resistido. Ivis era simplesmente maravilhosa. Normalmente teria aceitado de imediato a proposta de uma mulher como ela, mas aquela moça era especial, ele reconhecera isso desde
quando a vira no saguão. Ela deveria ser uma conquista plena. E ao não
usurpar seu corpo, ganhara pontos no seu coração. O diplomata afundou-se na banheira para apaziguar seu ânimo.
Os serviçais haviam deixado sobre a cama uma túnica para ser usada
durante o jantar. Haggi a vestiu. Sentia-se confortável no palácio de
Nakan, apesar de estar acostumado a muitas cortes, de vários países.
Desceu para o salão em que seria servido o jantar. Ao deparar-se com o
número de cortesãos, percebeu que não seria fácil ter os momentos de
privacidade com Nakan de que precisaria para tratar dos assuntos de
estado. Aproximou-se sorridente do governador, ao lado do qual havia
um lugar que lhe estava reservado.
TALAL HUSSEINI
133
– Ivis não lhe agradou, meu caro Haggi? Posso providenciar outra
moça para cuidar de você em sua estada. Quem sabe mais de uma...?
– Ivis me agrada muito, Nakan. Mas você me conhece. Sabe que gosto de realizar sozinho minhas conquistas amorosas.
– Quem falou em amor? Estou falando de companhia e diversão. Veja – disse, olhando em direção a um grupo de moças, dentre as quais se
encontrava Ivis. Ela olhou na direção dos observadores e sorriu. Nakan
alçou sua taça em direção a ela. Haggi devolveu o sorriso, pensando
consigo mesmo o quão encantadora ela era.
– Nakan, você sabe que não estou aqui somente para me divertir e
passear. A visita é oficial, determinada pelo Senador Rohel. Ele me pediu que verificasse como as doze cidades estão vivendo a expectativa da
sucessão e que assegurasse seu apoio e união em torno do novo rei.
– Haggi, sei que você está ansioso para resolver as questões políticas
que o trouxeram até aqui, mas agora há muitos ouvidos atentos por perto. Deixemos essas conversas para outro momento, quem sabe durante
uma luta de sabres amanhã...?
Como bom diplomata, Haggi entendeu de imediato que o governador
não queria tratar de assuntos de estado naquele momento. Dançou conforme a música:
– Isso é um desafio? Alguma vez você já me venceu com o sabre,
Nakan?
– Não me lembro é de você alguma vez ter me vencido.
– Se sua luta estiver tão ruim quanto sua memória não terei muita dificuldade.
Haggi aproveitou o assunto de lutas, querendo sondar as possibilidades bélicas da Aliança:
– Meu nobre Nakan, você sabe que lhe guardo muito respeito, mas
você é um general de um exército de brinquedo. Muito bem treinado, é
134
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
verdade... Mas como saber se no fragor da luta real se irão portar como
verdadeiros guerreiros?
Nakan, compreendendo de imediato aonde Haggi queria chegar, não
se ofendeu, pelo contrário, respondeu na linguagem do jovem – com
diplomacia –, puxando para perto de si um pequeno gato que estava ao
seu lado, atado por uma coleira:
– Haggi, meu caro, você vê este filhote de leão? Foi retirado da selva
recém-nascido, por caçadores que abateram sua mãe e mo deram de
presente. Sem ela, não teria qualquer chance de sobrevivência lá fora.
Aqui no palácio, é adulado pelas cortesãs e criado junto aos gatos domésticos e animais de companhia, brincando com as ovelhas – parou de
falar, acariciando a cabeça do gatinho, que, nervoso, procurava livrar-se
da contenção, mordendo e arranhando, sem a força necessária, as mãos
que o retinham.
Haggi aguardou a conclusão, que não demorou:
– Você acha que por ter sido criado entre ovelhas, perderá sua natureza de leão? – nesse momento o pequeno felídeo conseguiu finalmente
encaixar uma boa mordida na mão de Nakan, que o soltou, mostrando a
Haggi o pequeno corte, com um levantar de sobrancelhas.
– Você tem razão: um leão será sempre um leão. Resta saber de quem
será a mão que ele irá morder...
Os dois riram, para quebrar o rumo sério que a conversa tomara, e
passaram a conversar amenidades. Falaram dos lugares em comum que
tinham visitado. Falaram de história e de filosofia. De mulheres e de
lutas, enfim, de todos os assuntos possíveis para desviar da sucessão.
Mas Haggi entendera a mensagem: um guerreiro seria sempre um
guerreiro, pronto para a batalha, bastando que ela se apresentasse. Pensava consigo mesmo que ter aquele leão do seu lado seria muito melhor
do que tê-lo contra si.
TALAL HUSSEINI
135
Pediu licença ao governador e foi em direção a Ivis, que lhe sorriu,
com os olhos...
23.
T
odo o Reino vivia a agitação do dia da abertura da placa, que
finalmente era chegado. Seria exposto, na Pedra dos Mil Reis, o
nome do sucessor de Sokárin. O País passara por um período de luto e
reflexão para alguns, e de planejamento e conluio para outros. A ansiedade incontida teria fim. Aqueles cujas possibilidades eram reais experimentavam verdadeira tensão.
Golan, filho de Sokárin, era o mais nervoso. Acompanhado por seus
acólitos, não conseguia disfarçar a impaciência. Só adentravam ao salão
real os senadores, os ministros de estado e funcionários de alto escalão,
os nobres e algumas pessoas convidadas. A população permanecia do
lado de fora, na grande praça em frente ao palácio. A multidão tomava
todas as ruas dos arredores. O burburinho era grande. Em alguns momentos, pequenos grupos ensaiavam um coro com nome de sua preferência. Mas logo era retomado o silêncio da expectativa. Era um momento ímpar.
Dentro do salão real, a cerimônia era presidida pelo Senador Rohel,
na qualidade de Chefe do Conselho dos Anciãos. Próximos a ele, na
parte mais elevada do salão, onde ficava a Pedra, o Primeiro-Ministro
Adaran, Golan, os demais senadores e alguns guardas reais estrategicamente espalhados, imóveis em seus trajes negros que impunham sóbrio
respeito. O Senador Rohel tomou a palavra, acenando para o público ali
presente, a fim de que se fizesse silêncio:
136
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
– Autoridades aqui presentes, cidadãos das mais respeitadas famílias
do reino, servidores do Estado, população que preenche as ruas fora
deste palácio a aguardar o nome de seu novo soberano, damas e cavalheiros, é chegado o momento por que todos tanto esperamos: a revelação da placa de pedra que guarda o nome daquele que irá dirigir este
Reino daqui por diante. Qual é o nome que ali está é o que menos importa agora! Porque a partir do instante em que for revelado assumirá
não apenas um título, mas um encargo, o pesado encargo de governar.
Fez uma pausa e prosseguiu:
– Governar com sabedoria é tarefa das mais difíceis. Exige denodo,
abnegação, renúncia à vida pessoal. Dedicar-se ao Estado e ao povo
demanda afastar-se de si mesmo, e aproximar-se de si mesmo. Afastarse da personalidade traiçoeira e aproximar-se do espírito clarividente.
Exige intuição, que é a visão direta das coisas, despida da intermediação
dos sentidos. Confiamos em nosso monarca Sokárin para ter sabido escolher aquele que reunirá essas condições. Como disse, o nome não
importa tanto quanto a confiança em que o escolhido assumirá as vestes
de um verdadeiro estadista, de um verdadeiro rei. O apoio incondicional
de todos será imprescindível para o futuro deste país. Como é de praxe,
antes da abertura, fica aberta a palavra aos ministros de estado e aos
senadores que dela queiram fazer uso. Depois da abertura, somente o
silêncio respeitoso.
Passaram-se alguns segundos, até que um velho senador deu um passo adiante e educadamente aguardou que o presidente da cerimônia lhe
outorgasse a palavra:
– Ainda não foi encontrada a placa solicitada por Sokárin, nem gravada e nem destruída. Mas o simples fato de ter ele solicitado outra placa significa de forma muito clara uma coisa: o nome que aí está não era
o do seu desejo – dando um passo atrás o ancião voltou à sua posição
original.
TALAL HUSSEINI
137
Um burburinho se fez sentir no salão. Outro senador pediu a palavra,
e iniciou sua intervenção mal esperando a licença do Senador Rohel:
– O nobre colega deverá desculpar-me, mas não comungo da sua opinião. Entendo que sua manifestação foi intempestiva, tendo por único
fim lançar a dúvida e a discórdia em torno do nosso novo soberano, seja
ele quem for. Nenhum outro nome foi cogitado, nem placa alguma foi
encontrada. Assim sendo, devemos esquecer que ela um dia existiu,
devemos esquecer que Sokárin a solicitou, devemos prestar nosso integral apoio ao novo Rei.
– Discordo – intercedeu outro, já sem praticamente pedir licença ao
presidente da cerimônia, que já dava mostras de impaciência – no nosso
sistema sucessório, o Rei é quem escolhe quem deverá substituí-lo, sua
vontade é determinante. Sokárin requereu outra placa, como esta não foi
encontrada, não sabemos qual seria o nome da sua vontade, mas sabemos que por certo não é o nome que aí está!
Estava criado o debate. Não havia como voltar atrás, pensava Rohel.
Tinha de pensar numa forma de apaziguar os ânimos, pois era certo o
que todos haviam dito até aquele momento. De fato, possivelmente o
nome que ali estava não era o dos desejos de Sokárin, mas era o único
de que dispunham.
Já se fazia difícil conter a audiência. O vozerio tomava conta do ambiente. Do lado de fora, o povo não entendia o porquê de ainda não ser
conhecido o nome do novo Rei, mas já circulavam rumores sobre o debate que se travava no interior do palácio, o qual se reproduzia nas ruas,
com as devidas proporções retóricas.
Dentro, a discussão se acirrara. As opiniões formavam duas facções
de mesmo peso numérico. Kadriel, que assistia à cerimônia ao lado de
Ravi, mantinha-se sereno. De algum modo, a situação que se apresentara lhe dava forças, pois não ficava completamente desprovido de argumentos na luta que pretendia entabular. O futuro próximo não seria pa138
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
cífico, mas justificaria o porvir. Na mente e no coração de Kadriel não
havia lugar para o cinza, ele conseguia distinguir perfeitamente, naquele
momento, o branco do negro...
Quem tomou novamente a palavra, com o intuito de pôr fim à pendenga, foi o Senador Rohel. Respeitabilíssimo, conseguiu recompor o
silêncio e pôde se manifestar com tranquilidade:
– Senhores, senhores, por favor, todos que aqui se manifestaram o fizeram com muita propriedade, tanto na forma de se expressar, demonstrando cultura, discernimento e conhecimentos profundos de oratória,
quanto no mérito dessas expressões. É fato que ter o Rei Sokárin solicitado outra placa poderia indicar a vontade de alterar o nome que aí está.
Por outro lado, essa vontade só se consolidaria com a efetiva substituição da placa, uma vez que antes disso muita coisa poderia acontecer:
poderia voltar atrás em sua opinião, por exemplo. Sei que alguém poderia argumentar que nesse caso o Rei deveria devolver a placa aos sacerdotes para que fosse destruída. Mas não o fez. Talvez lhe tenha faltado
tempo para isso, assim como esse mesmo tempo pode lhe ter faltado
para fazer a substituição da placa. Nem uma coisa, nem outra. E mais,
não há sequer sinal dessa nova placa, não se sabe se chegou mesmo a
ser gravada. Mas nada disso importa mais. Nossas leis são muito claras
ao dizer que eventual alteração somente será convalidada com a cerimônia de substituição da placa conduzida pessoal e privativamente pelo
Rei. Tal cerimônia não teve lugar. O único nome que temos para a condução do nosso reino é o que está velado por essa chapa de metal. O
mais sábio que podemos fazer neste momento é prosseguir com esta
cerimônia, prestando nosso suporte ao novo monarca. Assim sendo, se
ninguém mais tiver nenhum pronunciamento relevante, prosseguimos
com a abertura.
Como ninguém se manifestasse, Rohel aproximou-se da estela, sacou
um anel da sua mão esquerda e outro da direita, este último era o anel de
TALAL HUSSEINI
139
Sokárin que ficara sob sua custódia até aquele dia e que logo passaria às
mãos do Rei. Os anéis eram as chaves que reunidas serviriam para remover a placa de metal que recobria a placa de pedra com o nome gravado.
Rohel inseriu os dois anéis nas posições corretas, mas eles não giraram como deveriam. De fato, havia uma resistência. Talvez o tempo que
a placa ali estivera tivesse gerado uma oxidação do metal que agora o
prendia. Dois guardas reais se aproximaram a um sinal do Senador. Os
anéis finalmente giraram, mas a chapa continuava presa. Era uma situação inusitada e um tanto desconfortável. Os mais supersticiosos se
apressavam em imaginar que o fantasma de Sokárin segurava a placa
por não desejar aquele nome. Foi trazido um pé-de-cabra, com o qual se
forçou a retirada da chapa de metal.
A chapa finalmente cedeu, mas com o esforço algo desagradável
ocorreu: a placa de pedra com o nome rachou ao meio.
Para desfazer a tensão criada, Rohel prosseguiu como se nada tivesse
acontecido – o que era difícil, pois o estalo da pedra quebrando foi ouvido em todo o salão, que guardava silêncio mortal – revelou a todos em
voz alta: Adaran.
Foi nesse instante que todos tiveram um sobressalto. O chão tremeu
por alguns segundos, parou, e voltou a tremer por mais alguns segundos,
fazendo-se ouvir um forte estrondo. A agitação entre os presentes e nas
ruas foi grande. Todos acorreram às janelas do salão. Nas ruas, viam-se
muitos braços apontando na direção de Anthar.
Uma coluna de fumaça cinza escura, quase negra, se elevava aos
céus. O vulcão, inerte havia muito tempo, dera um sinal de vida. Não
era uma erupção, mas o velho Anthar vivia... e usurpava o momento de
glória de Adaran.
140
PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
24.
M
ulil tinha-se desenvolvido muito como discípulo desde a pro-
va no deserto, na qual enfrentara a tempestade de areia como um falcão. Seu laço de confiança com Montuhotep era absoluto. Por
isso, não questionou, nem sequer em pensamento, quando o velho Mestre lhe deu uma missão que parecia impossível:
– Mulil, preciso que você realize uma tarefa de extrema importância.
Não tenho mais ninguém a quem possa confiá-la, exceto você; – fez
uma pausa e prosseguiu – quero que você saia da cidade pelo lado oeste, em direção ao deserto. E não pare, senão para descansar, durante
sete dias, sempre perseguindo o Sol poente.
Todos sabiam que o deserto era imenso e voraz naquela direção.
Ninguém se aventurava naquele sítio inóspito, nem mesmo os bandos de
saqueadores nômades, até mesmo porque não havia quem saquear.
Uma missão de um homem só, com os víveres que ele pudesse carregar,
só conseguiria caminhar três dias, considerando outros três para voltar. Quatro dias viajando não deixariam margem para o retorno. Mas
Mulil não pôs isso em questão. Simplesmente assentiu com a cabeça e
perguntou:
– Quando parto?
– Amanhã, ao raiar do dia.
– Mais alguma coisa que devo saber?
– Se você estiver à altura do desafio, o deserto lhe dirá. Apenas lembre-se de tudo que já aprendeu. E mais uma coisa: o deserto é caprichoso, um passo fora da trilha e você poderá nunca mais reencontrá-la.
E, para um discípulo, perder a trilha é o pior dos castigos. Agora, sugiro que você comece os preparativos para a viagem.
Mulil obedeceu sem pestanejar.
TALAL HUSSEINI
143
Outra pessoa talvez tivesse feito mais perguntas. Mulil nada perguntou. Outro discípulo talvez tivesse dúvidas. Mulil não teve nenhuma
dúvida. Outro talvez tivesse medo. Mulil não teve medo. Era uma jornada ao desconhecido, ao deserto profundo, ao nada... O que
Montuhotep pedia levaria certamente à morte. Mas era o seu Mestre
quem pedia. Do que já aprendera, Mulil repetia para si mesmo sempre
uma máxima: confiar nos Mestres até a morte. Agora lhe era dada a
oportunidade de praticar esse ensinamento. Lançou-se sem hesitação
ao desafio. Lançou-se ao deserto.
Mulil partiu só e a pé, pois não considerava justo arrastar consigo
mais nenhuma pessoa ou animal. A tarefa era sua. Caminhou sem maiores problemas durante os três primeiros dias. Na terceira noite, foi
tomado por uma certa agitação. Sua mente de desejos começou a questioná-lo. Se quisesse sobreviver, na manhã seguinte devia começar o
percurso de volta. Em contrapartida, seguir adiante significava ultrapassar o ponto sem volta. Dali em diante seria impossível completar o
caminho de retorno.
O castigo que duas noites e três dias no deserto já lhe haviam imposto até então era uma simples amostra do que estaria por vir. A dúvida
assolou Mulil, qual a vaga atinge o rochedo. Aparentemente não lhe faz
estrago, mas cria frinchas na pedra, enfraquece paulatinamente a estrutura do sólido para em algum momento derrubá-lo. Mulil estava
ciente desse processo, mas as incertezas eram muitas. Dúvida, a fraqueza da mente. A única forma de impedir a queda do rochedo é evitar
que a água o atinja. Mulil lutava para isto: evitar que a dúvida o atingisse. Resolveu deixar a decisão para o dia seguinte ao acordar. De
qualquer modo, precisava descansar. Tinha então a dura tarefa de silenciar seus pensamentos e dormir. Sentia-se mais desgastado pelas
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PAZ GUERREIRA - FORÇA
últimas horas de pensamentos do que por toda a sua caminhada. À noite, a temperatura caía quase ao ponto de congelamento da água, enquanto com o Sol a pino, o calor era muito maior do que o do sangue
humano enquanto circula nas veias. O extremo calor e o extremo frio
não eram o pior, mas sim a mudança brusca, que se dava em poucos
minutos.
Foi uma noite de muitos sonhos, na sua maioria pesadelos, situações
confusas que não permitiam saída. Mulil já havia aprendido algumas
técnicas básicas do estado onírico, como voluntariamente trocar de
sonho ou fazer o sonho parar, mas naquela noite não conseguia aplicálas. Ficava encurralado num pesadelo, conseguia trocar de sonho e
momentos depois se encontrava novamente na mesma situação. Acordou exausto antes do Sol. Saiu debaixo das suas mantas para o frio da
noite desértica. O ar gélido o despertou, precisava decidir: prosseguir
para a morte certa ou retornar e encarar a decepção de seu Mestre.
Sem perceber, Mulil estava à mercê de sua mente inferior.
Foi então que retomando os ensinamentos de seu Mestre parou de
pensar, deixou a decisão para o coração. E seu grande coração lhe
respondeu com uma única palavra que ficou ecoando em sua cabeça:
abismo. Quantas vezes crescera quando se lançara ao abismo? Este era
o maior dos abismos com que já se deparara...
Sem mais cogitar, apanhou seus apetrechos e marchou sobre o deserto, deixando às suas costas o Sol que nascia. Não se voltou para ver o
céu de azul claro sobre o horizonte dourado. Partiu em direção à noite,
como se andando para oeste rápido o bastante pudesse fazer o tempo
parar.
Tornou ainda mais rígido o racionamento dos seus víveres e principalmente da água, que acabou por completo no quinto dia de jornada.
Ainda tinha pão, mas parou de comê-lo para evitar que a sede o castigasse mais ainda. Mais se arrastava do que caminhava em direção ao
TALAL HUSSEINI
145
Sol que se punha, como lhe tinha indicado seu Mestre. Sua pele estava
toda rachada pelo Sol. Seus lábios pareciam ter escamas, que sangravam ao menor movimento, devido à agrura da ausência de líquido. Seu
corpo chegava ao limite. Suas últimas forças eram consumidas rapidamente. Ele já tentava apenas manter-se sob controle, para morrer com
dignidade e não chorando em desespero como aqueles sem trilha, nem
guia. De repente, mais para a sua direita, a salvação...
Mulil vislumbrara algumas palmeiras. Vegetação significava água.
Juntou o ânimo que lhe restava e correu como pôde em direção àquele
oásis, que estava mais longe do que lhe parecera inicialmente, pois não
chegava nunca. Subitamente, o oásis evaporou diante dos seus olhos.
Foi quando se deu conta de que estava mais perto do que calculara,
estava na sua mente. Miragem. O deserto pregava peças e pregou-lhe a
maior de todas, pois a noite caíra, e Mulil saíra da trilha. No deserto,
basta afastar-se alguns passos da trilha para perdê-la para sempre.
Mulil se afastara bastante.
Deixou-se cair de joelhos sobre a areia macia e ali permaneceu,
prostrado, durante longos minutos. Ou seriam horas? Já não sabia. Era
o fim, ele falhara. Lembrou-se então de algo que um beduíno certa vez
lhe ensinara para sobreviver – ao menos um pouco mais – no deserto.
O homem lhe relatara uma situação parecida com esta em que ora se
encontrava. Sobrevivera extraindo água do estômago do camelo, bebendo seu sangue e utilizando a gordura de suas corcovas. Mulil não
tinha camelo. Tirou sua faca, fez um corte no antebraço e bebeu seu
próprio sangue. Adiava um pouco a desidratação completa. Colocou-se
sentado sobre os joelhos, para meditar.
Depois da prova do falcão na tempestade de areia, Montuhotep o levara a um templo em que passaria por uma primeira grande sala com
várias esfinges enfileiradas dos dois lados, umas de frente para as outras. Ali passara por provas que lhe permitiriam um elevado grau de
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PAZ GUERREIRA - FORÇA
domínio do seu corpo físico. Resgatou então aquele conhecimento para
relevar as dores que seu corpo ora lhe impunha. Sentiu-se melhor polarizando e vendo as reais condições que aquele corpo ainda tinha para
levá-lo mais adiante naquela missão. Sim, era possível prosseguir. Após
a sala com as esfinges, passava por um gigantesco portal, formado por
dois obeliscos encimados por bandeiras flamejantes, que lhe permitiam
administrar com eficiência a energia que o animava. Conseguiu então
infundir uma nova carga de vitalidade no seu corpo alquebrado. Passava, então, à terceira sala, que era na verdade um pátio aberto, onde os
sacerdotes faziam as curas, inclusive pelo sonho, e ensinavam a controlar as emoções – o que lhes permitia também dominar os animais –,
evitando que elas o fizessem se sentir destruído antes de a destruição de
fato chegar.
Essa meditação recompôs Mulil. O repouso da noite completaria a
recuperação. Mas ainda restava um problema grave: saíra da trilha e
não sabia como reencontrá-la. Ademais, nem mesmo sabia para onde
essa trilha o levaria, apenas acreditava que o levaria a algum lugar
com base na confiança que depositava em Montuhotep. Foi com essa
confiança que Mulil caiu no sono, ainda em posição de meditação.
Ele era novamente um falcão. Alçou voo para a noite infinita. Mesmo
na escuridão, o céu ainda tinha a luz das estrelas. O chão parecia um
imenso oceano negro. Era curioso como sempre que ficava entre o céu
e a terra preferia o céu. Passou-lhe a ideia de não mais voltar, mas sua
missão naquele momento era na terra. Em meio ao negrume da areia
do deserto, viu um caminho dourado, muito nítido. Viu também seu corpo ajoelhado na areia ao longe e soube então como retomar a trilha.
Era uma oportunidade a poucos dada no deserto. Bastava seguir os
ensinamentos da tradição: sempre que estiver em dúvida sobre que caminho seguir, escolha o mais difícil.
TALAL HUSSEINI
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Quando amanheceu o dia, Mulil analisou o local em que estava.
Areia de todos os lados, exceto de um. Todos sabiam que o deserto fora
mar em outras épocas. Havia então algumas áreas em que esse mar
salgado ficava petrificado, formando uma crosta de sal que tornava
ainda mais forte o calor, pois refletia de forma intensa a luz do Sol.
Tais locais eram muito perigosos, pois, além do calor insuportável e do
perigo de rompimento da superfície salgada – o que poderia tragar
uma pessoa ou animal de forma muito mais rápida e fatal do que areia
movediça –, ali era um habitat profícuo para milhares de escorpiões.
Sem nenhuma dúvida, aquele era o caminho mais difícil. Sem mais digressões, Mulil prosseguiu por ali. E conseguiu encontrar a trilha.
Era o sétimo dia. Montuhotep lhe dissera para prosseguir durante sete dias, mas ele não via absolutamente nada nem ninguém. Pensou que
seu ritmo de viagem não fora intenso o bastante. Talvez por se ter perdido teve seu itinerário atrasado.
Continuou caminhando o quanto pôde, mas num dado momento suas
forças o abandonaram por completo. O expediente de beber o sangue
era um paliativo que só o enfraqueceria naquela altura. As meditações
para concentrar as energias também não podiam mais ajudá-lo, pois
seus recursos de simples discípulo haviam chegado ao fim.
Enfrentara com bravura os limites humanos e a força da natureza, ali
representada pelo fogo do deserto, mas agora não restava mais nada.
Curvou-se, humilde, e reconheceu a soberania dos deuses. Usou suas
últimas forças para agradecer pela feliz encarnação que tivera, com a
oportunidade de ter tido um Mestre. E pela primeira vez em suas orações pediu. Pediu que alguém pudesse ter êxito nesta empreitada em
que falhara. E pediu para novamente nascer discípulo na sua próxima
encarnação. Caiu com o rosto sobre a areia escaldante.
148
PAZ GUERREIRA - FORÇA
25.
K
adriel acordou com o coração disparado. Aqueles sonhos tinham de ter algum significado, alguma relação com sua vida.
O que Mulil estava buscando? Por que seu Mestre o mandara para a
morte? Que presságio lúgubre era aquele?
Sim, só podia significar o fim de seu reinado que não foi. Não havia
placa. Sokárin não fizera a troca. Adaran era o novo rei, aclamado em
cerimônia pública após a abertura da placa. É certo que a atividade de
Anthar diluíra a atenção de todos, povo ou nobreza. Não foi possível
reunir novamente a assistência para o encerramento oficial da coroação,
pois a consternação foi geral. Até um certo pânico se iniciou com pessoas deixando suas casas com o que podiam, para abandonar a cidade e
escapar à cólera do vulcão.
O Chefe do Conselho dos Anciãos passou então o cetro real a Adaran
e pronto, nada mais. O País tem novo rei. Hoje era o dia seguinte. Todos
aguardavam os primeiros decretos do novo monarca. Kadriel começou
desanimado esse dia. Precisava falar com Ravi. Aprontou-se rapidamente e saiu. Nem conversou direito com Mirta, que chegava à sua casa
naquele momento, encontrando-o já de saída do lado de fora. Ela trajava
uma roupa provocante, como de hábito, que salientava as formas de seu
corpo. Kadriel mal reparou, perguntando de maneira seca, o que não lhe
era peculiar:
– O que faz aqui, Mirta?
– Bakar convidou-me para a reunião de logo mais. Como aqui é meu
caminho, resolvi passar um pouco antes, para podermos conversar em
particular...
– Infelizmente, não poderemos conversar agora, pois estou de saída.
Mas foi bom que você veio – Mirta abriu um sorriso, que se desfez logo
TALAL HUSSEINI
149
que Kadriel completou sua frase: – preciso que você avise Bakar de que
a reunião deverá ser adiada para o período da tarde. Peça a ele que avise
aos demais, por favor.
– Sim, é claro... – respondeu Mirta, mal conseguindo esconder seu ar
de desapontamento, no qual Kadriel nem sequer reparou, saindo e deixando a moça plantada no meio da rua.
Quando se dirigia à casa de Ravi, Kadriel ouviu gritos que eram de
um homem cujo cavalo havia disparado. As pessoas que estavam à volta
nada faziam. Quando Kadriel tomou um cavalo para perseguir o conjunto descontrolado e tentar pará-lo, uma mulher já havia tomado a dianteira com o mesmo intuito. Kadriel apertou o passo de sua cavalgadura,
mas a amazona era bastante hábil e a distância não encurtava. Quando
ela já estava bem próxima do cavalo disparado, o ginete deste despencou. Ao tocar o solo, ouviu-se o estalido seco de algo se deslocando ou
quebrando. Imediatamente, a moça desmontou e aproximou-se para
verificar o estado do caído e ajudá-lo se possível.
O cavalo responsável pela queda, aliviado do peso que o atormentava,
diminuiu o ritmo e parou mais adiante.
O homem caído estava pálido, condição típica da baixa de pressão
sanguínea causada pelo rompimento de tendões. O ombro estava deslocado, o que projetava todo o braço para frente. O homem gritava de dor.
Nesse momento, Kadriel já havia chegado ao local mas só fez observar,
uma vez que a situação estava totalmente controlada pela mulher. Ela
falava mansamente com o ferido, tranquilizando-o e dizendo que não
era nada de grave, explicava que era médica e que iria verificar as condições da lesão. Sua voz era suave e, de fato, tranquilizou não só a vítima da queda como também Kadriel, que tinha os olhos fixos nos longos
cachos da médica.
150
PAZ GUERREIRA - FORÇA
Ao mesmo tempo em que conversava com o paciente, que já estava
bem mais tranquilo, a moça tocou de leve o ombro deslocado com a
ponta dos dedos de uma mão, enquanto com a outra segurava o pulso do
homem. Num movimento rápido, preciso e suave, recolocou o braço no
lugar. Kadriel estava deveras impressionado, e o homem agradecido.
Movia o braço para um lado e outro, como que para se convencer de
que estava realmente consertado. A médica entregou ao homem algumas ervas e lhe recomendou:
– Faça com isto uma infusão e aplique no local durante três dias.
Nesse período deve evitar grandes esforços com esse braço. Depois disso, estará novo.
Kadriel observara tudo atentamente, embasbacado com a desenvoltura daquela moça. Sem ver seu rosto, já a achava linda. Ao menos seus
cabelos o eram, e sua voz... Após certificar-se de que seu paciente inesperado estava mesmo bem, levantou-se, voltando-se para Kadriel, que
ficou mudo ao cruzarem olhares. Aqueles olhos verdes... pensava reconhecê-los. Finalmente, quebrou a hipnose em que o haviam induzido e
pôde ver todo o seu rosto, de pele clara, entornado por cabelos negros,
sorriso luminoso de dentes perfeitos. Kadriel pensou estar diante da
mulher de sua vida. Logo, seus arranjos mentais começaram a fornecerlhe uma identidade. Balbuciou:
– Mas você é...
– Dhara – ela completou – e você é Kadriel!
Kadriel estava obtendo relativo êxito em não fazer cara de parvo, mas
estava obviamente desajeitado. Lembrou-se do dia em que se despediram, ainda crianças, e de como tivera a certeza de que a reencontraria.
Esse dia demorou a chegar, mas finalmente ali estava Dhara, diante dele, a menina se tornara uma bela mulher. Não sabia como reagir, o que
dizer, se a abraçava, se estendia a mão. O impasse não deve ter durado
TALAL HUSSEINI
151
mais do que alguns segundos, que lhe pareceram séculos. Foi Dhara
quem, percebendo a situação, quebrou o gelo:
– Será que uma velha amiga não merece ao menos um abraço?
Não foi necessário repetir a pergunta, Kadriel estreitou-a nos braços,
numa união terna. Quanto durou aquele abraço? Provavelmente nenhum
dos dois saberia dizer. Kadriel tampouco sabia o que Dhara pensava
naquele momento, mas ele... vivera toda uma vida ao lado dela naquele
instante. Sua mente e seu corpo reagiam... Tinha agora certeza do que
antes apenas ousara supor: estava diante da mulher da sua vida.
26.
C
ustara-lhe muito chegar até lá, mas agora o Capitão se recuperava das suas mazelas físicas. Aquela área montanhosa não
recebia visitantes, dado o seu acesso difícil e as suas condições hostis.
Ele mantinha por lá uma cabana de caça com suprimentos e materiais
necessários para passar ali um bom tempo. Havia o inconveniente de
não poder se aquecer com o fogo, para não chamar a atenção de ninguém com a fumaça. Ainda que realmente não houvesse trânsito de pessoas, o Capitão não queria correr nenhum risco de ser encontrado antes
de estar completamente recuperado.
Nas proximidades havia um grande lago de água gelada, onde se banhava. Gostava da energia da água. A baixa temperatura lhe fazia doer
até os ossos. Mas o Capitão de certa maneira queria impor a si mesmo
aquele sofrimento. Suas feridas psíquicas eram graves. Sentia culpa por
ter envolvido sua família em questões de estado, o que resultara na sua
morte. Sentia ódio dos assassinos. Sentia raiva de si mesmo por ter cedido à coação. Alimentava sua sanidade com a vingança. Mas estava no
152
PAZ GUERREIRA - FORÇA
limiar da loucura. Às vezes, ele mesmo não tinha absoluta certeza se
não enlouquecera, se não estava vivendo um pesadelo tenebroso, do
qual acordaria a qualquer momento. Mas seu sono era tão agitado quanto seus dias. Sempre que acordava, percebia que ainda estava naquele
purgatório psicológico. Talvez alguma outra pessoa, no seu lugar, tivesse optado por interromper sua vida. Mas o Capitão, não. Apenas a certeza de que acabaria com todos que tiveram alguma relação com a morte
de sua esposa e filha o mantinha lúcido.
Contava os dias para esse momento de glória, que provavelmente seria o seu último... Planejava, traçava roteiros, depois os mudava, criava
outros, voltava aos anteriores. Sua mente era um turbilhão. Ele mesmo
sabia que só poderia partir para a ação quando conseguisse aquietar seus
pensamentos. E isso ocorreria quando também seu corpo estivesse forte
o bastante para a batalha que esperava por ele, um lobo que caça solitário sob a luz errante da noite.
27.
G
entilmente, Haggi voltou-se para o líder da Aliança das Doze
Cidades, agradecendo sua hospitalidade e os ensinamentos
sobre o espírito guerreiro dos leões, mas dizendo que tinha agora outros
assuntos para tratar. Foi então em direção a Ivis, sob os olhares marotos
das suas companheiras, acompanhados de risinhos e cochichos. Ivis
enrubesceu, o que a tornou ainda mais atraente para o diplomata, que
lhe estendeu a mão dizendo:
– Você prometeu sentar-se comigo durante o jantar...
Antes que ela respondesse, uma das mulheres do grupo se antecipou:
TALAL HUSSEINI
153
– Sente-se você aqui conosco. Não é sempre que temos a honra da
companhia de homens refinados.
– É claro que muito me agradaria estar entre tão formosas damas, mas
minha estada na cidade será de apenas algumas semanas, com uma agenda oficial muito cheia, o que me deixará pouco tempo para conversas agradáveis como a que preciso ter com Ivis. Portanto, sei que entenderão – concluiu alçando para fora do grupo Ivis, que já lhe pegara a
mão estendida.
– Obrigada por me salvar – sussurrou-lhe a moça quando já se afastavam – não aguentava mais as conversas banais, das quais por sinal você
foi objeto.
– Devo ficar preocupado?
– Creio que eu deveria, pois elas queriam devorá-lo vivo – disse sorrindo.
O jovem casal sentou-se a uma mesa mais no canto da sala, sob o
olhar atento de Nakan, que discretamente observava seus movimentos.
Beberam algumas taças de vinho, não o suficiente para inebriar-se, mas
o bastante para perder um pouco a inibição. Quem os visse poderia pensar se tratar de um casal unido há muito tempo, pois riam e pareciam ter
uma intimidade de fazer inveja a muitos casais.
Os dois saíram para um balcão, onde podiam respirar o ar fresco da
noite e ficar mais distantes dos olhares e da música. A companhia de
Ivis realmente agradava a Haggi e a recíproca era verdadeira. Havia
uma empatia entre eles. De repente, veio aquele momento de silêncio,
em que toda a animada conversa cessa, restam os olhares e sorrisos inibidos. É o momento do beijo. Agora, Haggi sentia que Ivis, de fato, estava com ele, por ela mesma e não por determinação de Nakan ou de
quem quer que fosse. Ele aproximou seus lábios dos dela, parou quando
faltavam aproximadamente dez por cento do percurso. Esse último tre-
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PAZ GUERREIRA - FORÇA
cho cabia à mulher, se ela quisesse de verdade o beijo ela o percorreria,
caso contrário, se afastaria.
Haggi, como bom cavalheiro, esperou, os olhos cravados nos de Ivis.
Tinha de esperar o tempo que fosse necessário até sua definição. Ela
sorriu com os olhos, e se aproximou. As mulheres costumam depositar
muita confiança no primeiro beijo, pensam que por ele podem descobrir
muitas coisas sobre um homem, inclusive se será um companheiro ideal.
Ivis sorriu e disse:
– Acho que já está tarde. Vou me retirar – beijou Haggi na face e partiu, completando: – amanhã nos vemos. Boa noite.
– Boa noite...
Finalmente Haggi fora surpreendido. No jogo da sedução, fora colocado em cheque. Resolveu ir para os seus aposentos, mas o sono não se
apresentava. Pensou que a paciência necessária no amor era ainda maior
do que a necessária na diplomacia. Era fato que com esse movimento
Ivis se tornara ainda mais atraente para ele.
No dia seguinte pela manhã, Haggi encontrou-se com Nakan para um
combate com sabres, como haviam combinado. Era a oportunidade ideal
para tratar de assuntos importantes sem ouvintes indesejáveis por perto.
Os dois homens eram bastante hábeis com a espada. Haggi tinha um
estilo mais sutil, de movimentos leves e rápidos, boas esquivas e contraataques. Nakan se destacava pela força e intensidade dos golpes, bem
como por sua cadência constante, que obrigava o oponente a movimentar-se todo o tempo. Haggi sentia mais dificuldade em lutar com Nakan
do que com Adaran, seu adversário principal na Capital, talvez porque
já conhecesse melhor seu jogo. Mas o fato é que confiava em vencer
qualquer um a qualquer momento. Fazia o jogo do adversário, esperando o momento ideal para o ataque fulminante. O duelo seguia acirrado.
TALAL HUSSEINI
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Não havia espaço para conversa. Quando finalmente os dois concordaram em fazer um intervalo, sem que se pudesse apontar um vencedor,
Haggi tomou a iniciativa:
– E então, Nakan, como estão os chefes das cidades que compõem a
aliança em relação ao processo sucessório?
– A Aliança dos Doze está unida. Ninguém manifestou nenhuma insurgência contra a sucessão.
– Mas, para fazermos um exercício de raciocínio, se houvesse tal discordância, todas as cidades estariam unidas nessa dissidência?
– Você me faz uma pergunta difícil de responder, Haggi. Eu diria que
sim, mas em questões políticas é difícil ter absoluta certeza.
– Você tem dúvidas quanto à sua liderança?
– É claro que não, até porque sob a bandeira dos gêmeos, símbolo
que representa a minha cidade, luta o exército mais poderoso da Aliança. Isoladamente, talvez só o exército da Capital nos supere em número
e força. Então, é uma liderança com lastro – sorriu Nakan.
– Como está Egas, o velho Leão? Todos sabem que ele esperava ter
sido nomeado no seu lugar para essa liderança. Se ele resolvesse unir
forças com outras cidades, poderia contestá-lo...
– Se ele tivesse essa pretensão, já o teria feito. É evidente que ele não
ficaria triste se eu quebrasse o pescoço numa caçada. Mantemos boas
relações diplomáticas, mas não confiamos um no outro. Haggi, meu
amigo, sei que fazer esta observação é a sua atribuição, porém não devemos colocar problemas onde eles ainda não existem.
– Esta região é muito rica. Você sabe o quanto foi difícil unificá-la e
mantê-la fiel ao País. Depois de muitos séculos, somente Gur Medhavin
foi capaz de consegui-lo. Qualquer inconsistência poderia reacender o
espírito separatista do povo.
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PAZ GUERREIRA - FORÇA
– Não creio nisso, mas vou ficar atento. Amanhã bem cedo sigo viagem para a Capital, para a cerimônia de abertura da placa. Você virá
comigo?
– Não, minha missão ainda não terminou por aqui...
– Entendo. Ivis...
– Nakan, você me toma por um cafajeste – respondeu Haggi, sorrindo
– são assuntos de Estado.
– É claro, Haggi, é claro. Bem, você terá alguns dias para tratar desses assuntos sem a minha presença. Ainda estará aqui quando eu voltar?
– Sem nenhuma dúvida. Creio que ainda teremos muito que conversar depois da posse do novo rei.
Haggi provavelmente já conheceria o nome do sucessor antes do retorno de Nakan, pois mantinha uma eficiente rede de inteligência por
todo o País e inclusive fora dele.
– Aguenta mais um combate?
Haggi, sem responder, levantou-se, pegou seu sabre e tomou posição
de guarda. Lutaram por mais duas horas, para ao final não se definir um
vencedor. Sim, um empate. Nakan parecia mais feliz do que Haggi, pois
normalmente perdia. O diplomata, entretanto, não parecia abalado. Não
que a técnica de Nakan tivesse melhorado muito, mas ele lutava com
uma garra impressionante.
– Foi um bom combate – concluiu Haggi.
– Concordo. Você foi cortês com seu anfitrião não o derrotando em
sua própria casa. Mas da próxima vez, espero mais do que isso.
– Nakan, você sabe que eu jamais amoleço num combate. Você é que
lutou bem mesmo – respondeu Haggi, com semblante impassível, mas
pensando consigo mesmo o quão astuto era o líder da Aliança. Jamais
pôde ter certeza se ele realmente sabia, ou se só estava tentando fazer
com que Haggi se traísse.
TALAL HUSSEINI
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O jogo de cena também terminou empatado, pois os dois se mantiveram indiferentes. Nakan se despediu:
– Ainda nos veremos esta noite, pois darei um jantar para anunciar o
noivado de minha filha.
– Ah, sim, você tem uma filha que estudava fora do País, não é mesmo? Não me lembro dela.
– Tenho certeza de que se lembrará quando a vir. Ela tem me auxiliado muito no governo desde que retornou. É muito capaz. O mesmo não
se pode dizer do homem que ela escolheu...
– Você não o aprova?
– Não devia comentar estes assuntos particulares, mas sei que posso
confiar em você, e não tenho mais ninguém com quem possa me abrir
com relação a isso. Eu o considero um fraco, apesar de ser de uma das
famílias mais ricas da região. Foi um amor de infância que ela reencontrou na sua volta, mas ela ainda o vê com os olhos de adolescente. Apesar de ser muito lúcida para certas coisas, não está agindo de forma madura neste caso.
– Por que você simplesmente não impede o casamento?
– Em primeiro lugar, porque em minha casa sempre tratamos com liberdade as questões eminentemente pessoais. Na vida pública, já não
temos muito espaço para nós mesmos. Se o tolhermos mais ainda, nada
restará. E depois porque a minha oposição seria o suficiente para a decisão final dela a favor desse casamento. Fosse um assunto de Estado, ela
me obedeceria de modo absoluto. Mas na sua vida pessoal não gosta de
imposições e é muito determinada.
– Neste caso, não sei o que dizer. Creio que só lhe resta esperar pelo
inesperado.
– Só me resta contar com que ela veja a realidade por si mesma. Vemo-nos à noite.
– Até lá.
158
PAZ GUERREIRA - FORÇA
Após descansar em seus aposentos, Haggi se propôs uma missão para
aquela tarde: encontrar Ivis. Mas ela havia desaparecido. Vasculhou
todo o palácio sem sucesso. Perguntava aos serviçais, mas todos o olhavam com estranheza e não respondiam. A última esperança era o jantar.
A música já tocava e o vinho já era servido. Todos os convivas começavam a soltar-se e desinibir-se, Haggi vasculhava com os olhos todo o
salão, e nada de avistar Ivis. Nakan fez sinal para que se aproximasse:
– Noto que você está inquieto, meu amigo.
– Estou bem – respondeu, sem deixar de procurar com os olhos.
– Não está encontrando o que procura?
– Aquela moça que estava presente no dia da minha chegada, Ivis,
não a vejo por aqui.
– Não se aflija, tenho certeza de que logo ela aparecerá – respondeu
Nakan.
Haggi pensou ter sentido um tom de ironia na voz do líder, mas relevou.
Os arautos anunciaram a presença do futuro noivo, que já dava sinais
claros de embriaguez. Isso poderia se explicar pela ocasião mas, somado
às preocupações que o pai da futura noiva lhe manifestara, tal impressão
fez com que Haggi sentisse imediata antipatia pelo sujeito. A filha de
Nakan surgiu. Quando a viu, Haggi ficou lívido.
Os arautos anunciaram:
– Damas e cavalheiros, a filha do governador Nakan: Ivis!
Apenas Nakan percebeu, porque o observava, a reação de surpresa de
Haggi, mas o diplomata prontamente se restabeleceu. Ivis estava linda!
O ébrio noivo foi em sua direção, com um sorriso abobado estampado
na face, e a tomou pelo braço, dirigindo-se à mesa que lhes estava reservada, ao lado da de Nakan, onde estava Haggi.
O governador se levantou para fazer o anúncio. Ficou em pé, em silêncio por alguns segundos, até que todos se aquietassem. Aguardou
TALAL HUSSEINI
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mais alguns segundos para se certificar de que todos lhe davam a devida
atenção e então proclamou:
– Senhoras e senhores aqui presentes, a noite de hoje é muito especial
para todos, especialmente para minha filha, Ivis. Não posso dizer que eu
esteja feliz, pois qual é o pai que gosta de entregar sua filha? Mas, enfim, se ela está feliz, tenho que aceitar os fatos. Oficializo perante todos
o noivado de Ivis e Garat – completou secamente.
Todos aplaudiram. Os noivos sinalizaram um brinde para Nakan com
suas taças. Quando a audiência silenciou, Garat ficou com a palavra:
– Agradeço as palavras, senhor Governador, e lhe digo que farei sua
filha muito feliz. Pode estar tranquilo. Também eu gostaria de fazer um
anúncio – Ivis pegou no seu braço para tentar contê-lo, mas foi em vão
– quero dizer que a data do casamento...
Nakan o interrompeu abruptamente, mas com um sorriso:
– Meu caro Garat, creio que é muito cedo para falarmos em datas.
Não criemos expectativas cedo demais. Aproveitem esse momento de
noivado e mais tarde, então, sim, poderão marcar a data.
Garat ainda fez menção de continuar falando, mas Nakan finalizou
qualquer possibilidade disso:
– Insisto! Não falaremos de datas esta noite. Senhores músicos, toquem! Senhores convidados, aproveitem a noite!
Não restou ao alegre noivo senão voltar-se para sua taça de vinho,
que estava longe de ser a primeira da noite e mais longe ainda de ser a
última.
Os convidados afluíam para cumprimentar os noivos.
Haggi voltou-se para o governador, em tom cínico:
– Que demonstração de alegria, Nakan!
– Não sou homem de dissimular minhas opiniões. Ivis sabe que não
aprovo este noivado e quero que isso fique muito claro também para
Garat.
160
PAZ GUERREIRA - FORÇA
– Não creio que ele tenha compreendido, considerando seu estado...
Nakan, posso lhe fazer uma pergunta?
– Faça!
– Por que, no dia em que aqui cheguei, você mandou Ivis acompanhar-me, se sabia que ela ficaria noiva?
– Era um teste.
– Para mim ou para ela?
– Para ambos.
Haggi entendeu que não conseguiria extrair mais do que isso de
Nakan. Mudou de assunto:
– Bem, acho que está na hora de cumprimentar os noivos – deixou a
mesa, tomando nas mãos uma maçã.
Aproximou-se da mesa dos noivos, estendeu a mão para Garat, mas
não desviava os olhos de Ivis:
– Meus parabéns, Garat! Você é um homem de muita sorte. Sua noiva, se me permite dizer, é a mais bela dama deste lugar. Vejo que todos
vieram preparados com belos presentes, mas infelizmente eu não sabia
da razão deste jantar. O que me trouxe a Rubatis foram outros propósitos. Mesmo assim, com a sua licença, não gostaria de me furtar a presentear a noiva.
Dizendo isso, cumprimentou-a com uma mão e estendeu-lhe a maçã
com a outra.
Ivis sorriu francamente:
– É uma bela maçã, mas confesso que é o presente mais inusitado que
recebi...
– Ela é muito mais do que parece. A uma mulher complexa e misteriosa forçosamente devem agradar os mistérios, que podem estar presentes mesmo nas pequenas coisas.
– Mas que mistério pode residir numa maçã?
TALAL HUSSEINI
161
Ao responder, Haggi olhou rapidamente para Garat, de forma que só
Ivis o percebesse, e emendou:
– O primeiro deles é que uma maçã, quando está podre, cai sozinha...
Tarin, que um pouco afastado de seu Mestre ainda assim ouvia toda a
conversa, pensou consigo: “cai sozinha, mas um vento sempre pode
ajudar...”. Conhecia seu patrão. Sabia que ele já articulava em sua mente
toda uma estratégia para conquistá-la. Nunca o vira falhar nesse intento.
Ivis perguntou:
– Mas quando uma maçã podre cai, surge outra em seu lugar?
– Sempre.
– E como saber se essa nova maçã também já não está podre?
Haggi ainda segurava a mão da noiva durante todo esse diálogo.
Garat se sentia incomodado com aquela conversa da qual nada entendia.
Também as pessoas que vinham depois de Haggi para cumprimentar a
noiva se impacientavam, mas isso não incomodava em nada o visitante,
e tampouco à noiva. Ele respondeu, olhando no fundo dos olhos de Ivis:
– Só há uma maneira de saber quantas sementes há numa maçã: provando-a. Mas mesmo assim, não se pode saber quantas maçãs há numa
semente...
Dizendo isso, Haggi se retirou, percebendo que extraíra ainda um último sorriso de Ivis. Não desviou seus olhos dela até deixar a sala. Ela
fez o mesmo. Ele notou que Garat falava com Ivis um pouco exaltado,
mas ela não lhe fazia atenção. Quando ganhou o exterior, Haggi respirou. Tarin surgiu ao seu lado:
– Senhor, se me permite dizer, creio que após tão demorada e tão intensa conversa com a noiva, como todos lá dentro puderam notar, não
seria conveniente deixar a festa.
– Sim, Tarin, você tem razão. Vou apenas tomar um pouco de ar e retornarei em seguida, para ficar mais alguns momentos.
162
PAZ GUERREIRA - FORÇA
Quando entrava novamente no salão, Haggi sentiu uma aproximação
pelas costas. Com um leve movimento deslocou-se para o lado, deixando passar e cair atabalhoadamente Garat.
Todos perceberam a alteração. Alguns amigos de Garat, tão fúteis
quanto ele, haviam enchido sua cabeça com ideias de que Haggi o desrespeitara, mantendo uma conversa muito longa com sua noiva, para ser
um simples cumprimento. E que, pior, ela parecia ter gostado dessa
conversa. Já embriagado, Garat se inflamou e atacou Haggi, mas sua
investida foi fracassada. Estatelou-se de forma humilhante. Ao se levantar, desafiou:
– Você não pertence a esta cidade, e vem aqui me desrespeitar. Eu o
desafio para lutar!
– Não tenho porque lutar com você, Garat, e não o desrespeitei. Apesar de que no estado em que se encontra não merece mesmo respeito e
muito menos merece que eu lute com você – ao dizer isso, Haggi virou
as costas para deixar o local.
Garat, não se conformando, apanhou uma faca sobre uma das mesas e
se lançou sobre Haggi, que num movimento muito rápido derrubou o
oponente, tomando-lhe a faca e colocando-a sobre o seu pescoço, ao
mesmo tempo em que com a outra mão segurava seu pulso numa torção.
O salão todo fez silêncio.
Alguém murmurou:
– Você foi atacado. A lei permite que o mate.
– Sim – completaram outras vozes – você deve matá-lo!
O coro cresceu. Garat chorava, diante da possibilidade real e da proximidade da morte. No lugar de Haggi, ele nem teria esperado tanto
tempo, já teria usado aquela faca. Haggi terminou de lançar Garat ao
chão, que ali permaneceu em prantos, jogou a faca longe, e saiu, sem
dizer palavra.
TALAL HUSSEINI
163
Pôde ouvir os vários comentários dos presentes que estavam sedentos
de sangue, inclusive alguns amigos de Garat: “fraco”, “não o matou,
demonstrou que não tem valor”, “sem honra”, e por aí afora. Mas ao
menos uma pessoa naquele salão não vira fraqueza naquele ato: Nakan.
Este vira compaixão, e gostara disso. Ivis talvez também tivesse entendido alguma coisa naquela situação, não sobre Haggi, mas sobre Garat e
maçãs...
Haggi estava convicto de que agiu de acordo com a sua regra de cavalheiro: jamais poderia atacar ou matar alguém caído, de costas ou inferior na luta. Garat se enquadrava em pelo menos duas dessas situações.
Quando passou pela mesa de Nakan, este o recebeu com um leve tapa
nas costas e um sorriso, sem tocar no assunto do que acabara de ocorrer:
– Haggi, amanhã parto cedo para a Capital, para a posse do novo rei.
Creio que não nos veremos antes de minha partida, mas espero ainda
encontrá-lo na minha volta, dentro de alguns dias.
– Sim, é claro Nakan, estarei aqui. Ainda teremos muito a conversar,
depois da posse do novo rei. Agora vou me retirar, creio que já tive ação
o bastante por hoje.
28.
A
daran acordou não cabendo em si no primeiro dia do seu reinado. Todos esperavam o anúncio das primeiras medidas do novo
soberano, como era de praxe. Ele pretendia fazer história. Pretendia
dirigir-se ao povo à tarde, pois tinha várias reuniões pela manhã. Com
os militares, com os Ministros e com o Senado.
A primeira reunião foi com o Conselho de Guerra, formado por nove
generais de estrela dourada. O mais novo de todos era Nakan, com seus
164
PAZ GUERREIRA - FORÇA
cinquenta e tantos anos. Os demais contavam todos mais de sessenta
mas em boa forma, apesar do longo período de paz por que passava
o Reino. Via-se em seus rostos que eram homens duros, capazes no seu
mister, prontos a defender o País com suas vidas contra qualquer
ameaça.
Estavam em torno de uma mesa longa. Quando Adaran entrou, fizeram reverência, até receber a ordem para descansar. Era a primeira reverência que Adaran recebia afora a da cerimônia de posse, que acabou
prejudicada pelo maldito vulcão. E vinha de uma elite nacional. Adaran
saboreou seu momento, esperou um pouco mais do que o necessário
para dar o comando de descansar. Finalmente, sentou-se à ponta da mesa, fazendo um gesto altivo para que os generais o imitassem. Tomou a
palavra:
– Senhores Generais, vocês são a elite do nosso exército! O saudoso
rei Sokárin ficou muitos anos no poder, teve vida longa. Foi um período
de paz, o que pode ter amolecido nossas tropas – o ataque fora direto,
mas todos permaneceram impassíveis, exceto um dos mais velhos, que
ficou visivelmente contrariado com a observação ofensiva. Entretanto,
se conteve e nada disse.
Adaran prosseguiu:
– Começamos agora uma nova fase. Pretendo passar em revista nossas tropas, a começar dentro de três dias. Estejam preparados. Não será
tolerado qualquer desvio de disciplina! Temos de estar muito bem preparados para os novos tempos.
Pedindo licença para falar, um dos generais perguntou:
– Vossa Majestade pretende ir à guerra?!
Adaran riu:
– Para que serve um exército senão para estar preparado para a guerra? Mas isso não significa que precisemos ir à guerra. Apenas não quero
TALAL HUSSEINI
165
surpresas. Vou dirigir mais investimentos do Reino para as tropas. Novas armas, de melhor qualidade, mais cavalos, mais treinamento.
Todos assentiram com a cabeça, alguns até sorriram. Com aquelas
promessas Adaran parecia ter conquistado o apoio de alguns. De outros
ainda não conseguira fazer a leitura, mas logo saberia a posição de todos. Continuou:
– Pretendo implementar muitas mudanças, obviamente para melhor,
mas que podem encontrar resistência. Quero que estejamos preparados
para suplantar rapidamente qualquer indício de revolta. É imprescindível evitar qualquer estremecimento nas relações internas, para que não
enfraqueçamos perante nossos vizinhos em virtude de conflitos e desavenças intestinas. Estamos todos de acordo? Os senhores são os defensores da lei e da ordem. Apoiarão incondicionalmente o novo Rei?
Aguardavam em silêncio para ouvir as medidas que Adaran anunciaria:
– Não teremos mais um Ministro da Guerra. Este Conselho se reportará diretamente a mim! Em contrapartida, terá suas atribuições aumentadas, e também suas vantagens... O fato de estar realizando a primeira
reunião oficial de meu reinado com este Conselho demonstra o prestígio
que lhe quero outorgar. Tenho certeza de que os senhores compreenderão a medida que estou prestes a anunciar, mas também estou certo de
que outros não o farão. Para fazer entender a todos, até mesmo pela força se for necessário, pois o povo nem sempre entende as medidas do
governante, qual o doente que se nega a tomar o remédio por amargo,
conto com a pronta ação dos senhores e de seus comandados. Pois
bem...
Fez uma longa pausa, deixando todos ansiosos para ouvir o restante,
apesar de nenhum deles demonstrá-lo:
– Este Conselho de Guerra passa a exercer as atribuições até agora
exercidas pelo Conselho dos Anciãos!
166
PAZ GUERREIRA - FORÇA
Novamente Adaran esperou, perscrutando no olhar de cada um as reações que pudessem denotar apoio ou contrariedade. Os mesmos três
que antes sorriram ao ouvir as notícias sobre suas novas vantagens exultaram. Claramente aprovavam as medidas do Rei e lhe expressaram
total e incondicional apoio. Os seis demais permaneceram impassíveis,
à exceção do velho General, que antes já demonstrara impaciência. Desta feita, não se conteve, pediu a palavra e quase sem esperar a autorização do Rei vociferou:
– Isto é um ultraje! Senhores Generais, meus companheiros de armas,
vocês não percebem o que está acontecendo aqui?! Isto é um golpe de
Estado! Com todo respeito, Vossa Majestade está conspurcando as instituições de nosso país. Este Conselho tem atribuições bem distintas das
do Conselho dos Anciãos. Não temos a pretensão nem a capacidade de
usurpar suas atribuições! Pretende Vossa Majestade corromper-nos com
vantagens e poder? Jamais aceitaremos! Vamos a público desmascará-lo
perante o Conselho dos Anciãos e perante o povo. O exército jamais
aceitará este disparate! Se assim for, prefiro resignar-me de minhas funções – ao dizer isso, levou a mão à espada para retirá-la da cintura e
entregá-la, num gesto de renúncia ao cargo.
Mais do que rápido, a um sinal imperceptível de Adaran, um dos vários guardas reais que faziam a segurança da reunião atingiu o velho
general com uma seta disparada da sua balestra. O tiro certeiro calou o
general, antes que ele pudesse terminar de retirar sua espada. Ele tombou sobre a mesa, para espanto dos demais. Antes que alguém pudesse
dizer qualquer coisa, o Rei emendou:
– Todos os senhores viram, são testemunhas, de que o general estava
desequilibrado e num gesto impensado ia sacar da sua espada para atentar contra a pessoa real. O guarda cumpriu sua obrigação de defender o
Rei. É tão tênue a linha que separa os aliados dos inimigos... – comentou em tom mais baixo, como se falasse consigo mesmo, e depois em
TALAL HUSSEINI
167
tom normal, encarando seus interlocutores com firmeza: – nestes tempos em que vivemos, não há espaço para a dúvida. Aqueles que questionam o progresso são inimigos do Reino e, como tal, devem ser eliminados. Conto com o apoio dos senhores? – perguntou ignorando o cadáver
sobre a mesa.
Os generais estavam chocados, apesar de acostumados ao rigor nas
atitudes. Procuravam dissimular sua consternação, mas pela primeira
vez sentiram o peso da autoridade do novo Rei. Um dos que havia sorrido antes, pediu a palavra e se levantou:
– Vossa Majestade conta com o apoio dos generais! E acho que falo
por todos nós – olhou ao redor indagando os outros com o olhar. Ninguém se manifestou – se Vossa Majestade me permite perguntar, o que
será feito do Conselho dos Anciãos, será dissolvido, seus membros devem ser presos?
– É claro que não, meu caro general! O Conselho dos Anciãos ganhará novas atribuições. Não podemos extirpar instituições com as quais o
povo está acostumado. Os membros do Conselho dos Anciãos são muito
idosos para carregar o peso que hoje carregam. Não se trata de um golpe
de estado, como disse nosso amigo falecido, mas sim de uma medida
humanitária, que visa a proteger a integridade de nossos senadores. Eles
manterão seus proventos e ficarão responsáveis por todos os eventos
cívicos e festividades nacionais. Aparecerão interna e externamente
como um órgão de honra, mas não terão sobre seus ombros o peso do
trabalho duro de Estado. Aqueles que não compreenderem essa situação
e essa intenção deverão ser detidos, para evitar que contaminem os demais e o povo.
Alguns assentiram com um gesto de cabeça, outros concordaram com
o seu silêncio. Adaran continuou:
– Por fim, precisamos recompor o número de nove neste Conselho.
Então, nomeio agora mais um general de estrela dourada, a quem espero
que todos recebam como a um irmão: General Ofis!
168
PAZ GUERREIRA - FORÇA
Ao ouvir sua deixa, Ofis, que aguardava do lado de fora da sala, adentrou, já em trajes de general de estrela dourada, como se não esperasse
outra coisa daquele encontro. Ao ver a cena, até mesmo o General
Tybur, que era o mais prestativo para com o novo soberano, não conseguiu disfarçar seu constrangimento. Um sujeito que nem era militar,
nomeado general de estrela dourada, era algo inusitado. Era certo que a
comenda era privativa do Rei, e não havia lei que dissesse que só poderia ser dada a militares, mas a tradição... Adaran estava bem a par da lei
e amenizou a situação, ao menos com seu mais novo aliado, fazendo
mais um anúncio:
– O Conselho de Guerra precisará de um líder, que será a ponte direta
entre o que se passa aqui dentro e os ouvidos reais. Assim sendo, eu
nomeio Presidente do Conselho de Guerra o General Tybur!
O General agradeceu e dissipou qualquer constrangimento que ainda
tivesse em seu semblante em relação a Ofis. O mesmo não se podia dizer dos demais, que disfarçavam o melhor que conseguiam seus pensamentos e emoções, pensando na reação e no fim que teve o velho general, cujo corpo finalmente era retirado pela Guarda Real.
O Rei Adaran deixou a reunião e foi a público fazer seus anúncios oficiais. Quebrando a tradição, resolveu dirigir-se primeiro à população e
somente depois ao Conselho dos Anciãos. Anunciou como em seu reinado promoveria a igualdade entre todas as pessoas, pois somente sendo
iguais poderiam ser livres. O pobre seria igual ao rico, o covarde igual
ao valente, o estudioso igual ao ignorante. Tais distinções incabíveis não
mais teriam lugar neste Reino. Igualdade e liberdade seriam então realidades para todos, indistintamente. A educação seria promovida com
vistas ao futuro e não mais ao passado, pois era importante vislumbrar a
evolução e o desenvolvimento, em lugar de ficar atrelados às tradições e
à história, que só faziam perder tempo precioso de estudo e frear a ciênTALAL HUSSEINI
169
cia, que esta sim traçava os rumos de um conhecimento sólido e palpável, ao contrário da filosofia e das religiões, que cuidavam do irreal, do
metafísico, portanto, de coisas ilusórias que só serviam para atrapalhar o
verdadeiro desenvolvimento individual e social do povo.
Todos aplaudiam com vigor. A praça pública estava lotada. O povo
finalmente tinha a sensação de que um verdadeiro líder chegara para
lançar o país numa nova era, desatrelada do passado. O apoio da população fora facilmente conquistado. Agora, restava dirigir-se ao Conselho
dos Anciãos. Com as vantagens de ganhos que, antes de mais nada, pretendia anunciar, Adaran tinha por objetivo neutralizar boa parte das eventuais reações adversas no Senado.
A realidade saiu um pouco diferente do que esperava. Anunciou com
sucesso os benefícios que dava aos senadores, mas quando relatou as
modificações nas atribuições do Senado que implementava, a reação foi
forte. Aqueles cujo apoio já tinha o mantiveram, os que não lhe eram
simpáticos reagiram com violência, como também aqueles que se posicionavam de maneira neutra, dificultando, assim, os planos de Adaran
que almejava trazê-los para o seu lado. O tumulto chegou à exaltação e,
não fossem os senadores todos de certa idade, teriam ido às vias de fato.
O Rei concluiu agradecendo os serviços prestados até então pelo Senado e principalmente por tudo que ainda teriam de fazer nas suas novas
funções e se retirou rapidamente, deixando as discussões e divergências
para os que subiam ao púlpito. Vários soldados da Guarda Real permaneceram no Senado após o Rei se ter retirado, mas não interferiram nas
disputas, apenas fazendo observar quais eram as posições de cada um.
Aqueles que não apoiavam as iniciativas do Rei, já nomeados pelos outros como oposicionistas, conclamavam o Senador Rohel, que era uma
espécie de baluarte dessa corrente, a subir à tribuna e dirigir-se à plenária. Este aceitou, mas estava visivelmente abatido. Não era naquele dia o
orador inflamado de outros tempos. Apenas deixou claro seu repúdio às
170
PAZ GUERREIRA - FORÇA
medidas anunciadas por Adaran em relação ao Senado, o que, segundo
ele, caracterizava um isolamento daquela Casa, de forma a extirpá-la da
vida pública do País. Falou pouco. Desceu da tribuna entre aplausos e
apupos dos dois grupos que dividiam o Senado. Rohel já vislumbrava o
porvir. Sabia que os dias de paz e tranquilidade se aproximavam do fim.
Saiu da tribuna direto para a sua casa.
Inari, que conhecia seu marido, ao vê-lo chegar, apenas franziu o sobrolho. Entendendo a pergunta que ela não lhe fizera, respondeu:
– Vamos nos preparar para o pior, Inari, minha querida!
29.
A
o chegar à casa de Ravi, Kadriel estava ansioso para lhe relatar
seu sonho e para conversar sobre o reino, a sucessão e tudo
mais, porém sua ansiedade tinha sido dissipada pelo encontro com
Dhara. Ele estava aéreo. Ravi, que examinava tranquilamente alguns
escritos, convidou-o a sentar-se:
– Olá, Kadriel. Esperava você um pouco mais ansioso neste primeiro
dia de reinado de Adaran, mas vejo que está bem tranquilo. O que o traz
aqui?
– É que esta noite tive um sonho...
– Novamente com Mulil.
– Sim... E acho que ele morreu...
– Você acha?
– É, não tenho certeza.
– De qualquer modo, não se esqueça de que é apenas um sonho.
– Cada vez mais eu acho que esses sonhos têm relação com a minha
vida. Cada vez mais me identifico com Mulil. Tudo parece tão real...
TALAL HUSSEINI
171
– Os sonhos são reais, na sua esfera. O que nos parece etéreo e fantasioso pode ser a realidade em uma outra perspectiva. E o que vivemos
como realidade pode não passar de ilusão. Já pensou nisso? Mas conteme seu sonho, vamos ver qual é a sua realidade onírica.
Kadriel contou em detalhes o que sonhara e disse que estava curioso
para saber o que aconteceria em seguida com Mulil, pois já reparava
que os sonhos pareciam seguir uma sequência.
Ravi respondeu-lhe que poderia aprender muito com esses sonhos, a
partir das experiências vividas por Mulil, que poderia fazê-las suas. Disse-lhe que quando sonhasse devia se lembrar de guardar as memórias do
sonho dentro do coração, pois por mais real e vívido que fosse, poderia
ser esquecido algum tempo depois de acordar. Também era uma prática
interessante tomar notas logo ao acordar. Kadriel assim faria. Os dois
conversavam acerca do sonho, quando chegou à casa um militar, fazendo-se anunciar e chamando por Ravi.
O dono da casa mandou que o fizessem entrar. O homem tinha um ar
circunspecto e aparentava estar preocupado:
– Bom dia, General Aldhar. Como estão as coisas?
O General não respondeu, dirigindo o olhar para Kadriel. Entendendo
suas dúvidas, Ravi o tranquilizou:
– Este é Kadriel, Aldhar – os dois se cumprimentaram com um gesto
de cabeça – ele é da minha mais absoluta confiança. Podemos conversar.
Quase inconscientemente, Kadriel sentiu-se orgulhoso das palavras de
Ravi. Esse sentimento o fez perceber o quão importante a opinião de
Ravi se tornara para ele. Sentiu um calor aconchegante no coração. O
General Aldhar continuou:
– Estou preocupado, Ravi! Você já soube das primeiras declarações
do novo Rei?
– Não, ainda não tive notícias...
172
PAZ GUERREIRA - FORÇA
– Seu primeiro ato foi uma reunião com o Conselho de Guerra, da
qual participei, juntamente com os outros oito generais de estrela de
ouro. Ele ampliou as vantagens e as atribuições do Conselho de Guerra
– fez uma pausa, como aguardando alguma intervenção de Ravi, que
permaneceu calado. Então prosseguiu: – o Rei vai destinar muitos investimentos ao exército. Ele disse que não quer fazer a guerra, mas se
trata de uma preparação para isso. Pediu nosso apoio para tornar o Conselho dos Anciãos um ente inoperante, meramente decorativo, que não
terá mais qualquer atribuição prática.
– E os generais apoiaram tal medida? E o velho General Margut, ranzinza por natureza?
– Margut... está morto!
Ravi não conseguiu esconder sua surpresa, assumindo uma feição séria. Aldhar continuou sua narrativa:
– O General não se conformou com as medidas, se manifestou de
forma exaltada. Levou a mão à sua espada, como tinha o hábito de fazer
sempre que discursava de maneira mais inflamada. Um dos guardas
reais o abateu com uma seta. Adaran afirmou que o general iria atacá-lo,
mas Margut tinha muito senso de dever e respeito à coroa, independente
de quem a usasse. A mim me pareceu mais que ele ia entregar sua espada. Em todo caso, nunca saberemos ao certo. Adaran continuou sua prolação com o cadáver ali estendido sobre a mesa, em um tom de certa
forma de ameaça contra quem não o apoiasse integralmente.
– E como você acha que os outros vão se posicionar?
– Difícil dizer. Ao menos Tybur, que foi nomeado presidente do Conselho, e mais um parecem apoiá-lo incondicionalmente. O terceiro é
Ofis, que foi nomeado general para compor o Conselho no lugar de
Margut.
– Ofis...?
– É um lacaio de Adaran desde os tempos em que era ministro. Nem
sequer é militar, mas a regra diz que a nomeação do Conselho de Guerra
TALAL HUSSEINI
173
é privativa do Rei, dentre aqueles que ele entender capacitados... Os
outros, e também eu mesmo, saíram em silêncio, não pude fazer uma
leitura de ninguém. Todos pareciam estudar a nova situação, para depois
se posicionar. Mas o Rei é Adaran, então não parece haver muita opção.
Ravi parecia pensativo:
– Sim, Aldhar, é verdade, mantenha-se discreto, ficaremos em contato.
O General despediu-se de Ravi com um abraço e saiu marchando, visivelmente consternado. Ravi dirigiu-se então a Kadriel:
– Você vê, meu jovem? Adaran agiu rápido, está consolidando sua
posição, apesar de não senti-la realmente ameaçada.
– Sim, e ao investir no exército está aumentando e confirmando sua
força...
– Força? Não. O que Adaran tem não é força. Ele é vaidoso, e o vaidoso não tem força porque está sempre sozinho, ainda que compre apoios e companhia.
– Mas se isso não é força, então o que é a força?
– A força é a virtude que compartilham todos os guerreiros de um clã,
não é uma questão pessoal, mas sim um poder coletivo. Os antigos diziam que um homem sem cidade não é nada, pois carece de força para
lutar como um guerreiro. A força e o espírito que emanam da companhia vêm da união dos cavalheiros diante de um ideal superior.
Dizendo isso, Ravi apanhou no chão um graveto e o entregou a
Kadriel, mandando-o quebrá-lo. Kadriel o fez com facilidade. Então,
Ravi juntou vários gravetos num feixe e mandou que Kadriel os quebrasse. Ele não conseguia, por mais força que empregasse.
– Por trás de cada graveto existe uma linha de força que os une e justifica, é como uma linha luminosa que se manifesta quando as partes
descobrem que na realidade são unas em essência. Tudo no universo
está interligado e interconectado, o ser humano, quando desliza pelo
aroma do mistério da união, encontra a força que vem do ideal, e através
174
PAZ GUERREIRA - FORÇA
da técnica o guerreiro é capaz de explorar com eficácia tudo o que a
força do ideal lhe oferece. Espírito, força e técnica compõem as três
armas do verdadeiro guerreiro.
Kadriel queria entender melhor tudo aquilo. Era um ensinamento que
não podia ser digerido de uma só vez, exigia reflexão. Kadriel despediuse de Ravi, com a intenção de voltar para a sua casa e pensar no assunto.
Quando já estava do lado de fora da porta, indo em direção à rua, Ravi
lhe perguntou:
– E como é ela?
Kadriel voltou-se, sem entender direito a que seu Mestre queria referir-se. Perguntou, com ar confuso:
– Ela quem...?
– Ora, a mulher que colocou esse brilho nos seus olhos. Desde que
você chegou aqui hoje, notei que está diferente, mais tranquilo, um pouco disperso. Dessas observações, ficou claro que só pode ser uma moça.
Kadriel surpreendeu-se com a percepção demonstrada por Ravi, pois
não imaginava que cada célula de seu corpo transparecia seus sentimentos. Voltou até a porta e contou a Ravi então o que se passara quando
vinha de sua casa. Seus olhos brilhavam novamente ao falar de Dhara:
– Você nunca poderá dizer que o primeiro dia de reinado de Adaran
foi ruim para você, – ironizou Ravi – você encontrou uma dama muito
especial, que ao que parece tem alma nobre. O coração tem sabedoria
para encontrar seus próprios caminhos.
30.
M
ulil acordou sem saber onde estava. Alguém o havia limpado, colocado roupas novas. Estava dentro de um edifício.
Tinha dormido sobre uma esteira. O aposento era confortável, apesar
TALAL HUSSEINI
175
de simples. Sua última lembrança era de estar sucumbindo ao deserto,
à sede e à fome. Caminhara o que pudera, para além do ponto sem volta. Perdera-se da trilha por perseguir uma miragem, mas a conseguira
reencontrar graças ao ensinamento de seu Mestre. Quando caiu ao
solo, lembrou-se de uma prática que havia aprendido, que consistia em
reduzir a respiração, pacificar as emoções e esvaziar a mente, de modo
que o corpo passava a ter um gasto mínimo de energia, possibilitando a
sobrevivência. Era como um estado de hibernação. O corpo ficava inerte, quase como uma pedra. Mulil teve tempo somente de induzir esse
estado. Assim foi encontrado.
– Você passou o umbral – disse uma voz suave às suas costas, retirando-o de seus pensamentos.
Era um homem esguio, cuja aproximação Mulil não percebera. Usava uma túnica típica dos antigos sacerdotes. O homem prosseguiu, sorrindo:
– Nós o encontramos deitado na areia do deserto, com os sinais vitais muito fracos. Já o esperávamos, mas não tínhamos certeza de que
conseguiria.
– Que lugar é este?
– É o templo de Zohar. É o lugar a que você tinha de chegar para
cumprir a missão que seu Mestre lhe designou.
– Mas eu nunca ouvi falar de nenhum templo nesta parte do deserto.
– Somente os sacerdotes e alguns sábios o conhecem. O deserto, que
costuma expulsar ou engolir aqueles que nele se aventuram, nos acolheu e nos protege contra visitantes indesejados. Você é um bom discípulo, cumpriu à risca a missão que seu Mestre lhe outorgou, mesmo que
ela o fosse levar à morte.
– E o que o deserto tem a me dizer?
176
PAZ GUERREIRA - FORÇA
– Se houver resposta para essa pergunta, ela lhe será dada numa pequena cerimônia logo mais. Você agora precisa se alimentar, pois passou por privações na sua viagem e precisa se recuperar.
No início da noite, após um repasto frugal, Mulil foi conduzido a um
salão cerimonial. Era iluminado com várias tochas de fogo azul, o que
dava um ar etéreo ao ambiente. Havia apenas quatro sacerdotes no
local, que aguardavam Mulil em torno de um altar, sobre o qual ficava
uma pia cheia d’água. Também havia um recipiente em que se queimavam incenso e mirra. Os sacerdotes explicaram a Mulil que ele devia
guardar aquele altar durante toda a noite, sentado sobre os joelhos.
Após algumas horas, já não sentia mais as pernas. Depois polarizou,
procurando esquecer até mesmo que tinha um corpo. O cheiro da mirra
e do incenso, e a luz diáfana azul causavam-lhe tontura. Mulil procurava resistir, mas sentia que iria desmaiar a qualquer momento. Fechou
os olhos, perdendo por um instante a consciência da realidade que o
cercava. Foi quando alguém tocou-lhe suavemente o ombro. Ele despertou, deparando-se com uma mulher esguia, de pele muito clara, que
usava uma espécie de turbante, não permitindo que se lhe vissem os
cabelos. Seu rosto era excessivamente alongado, grandes e profundos
olhos negros. Estendeu a mão sobre Mulil.
– O que você veio fazer aqui? – perguntou a mulher.
– Vim por ordens de meu Mestre... Estou velando o fogo...
– O que você veio fazer aqui? – insistiu.
– Vim saber o que o deserto tem para me dizer...
– Sobre o deserto marcha o vento, capaz de gerar tempestades, subverter cidades, destruir civilizações, tudo por uma força silenciosa, de
fonte invisível mas extremamente poderosa. Quando você conseguir
TALAL HUSSEINI
177
ouvir essa força silenciosa, sentir esse vento marchar sobre sua alma,
vai aprender a dominar a si mesmo e a vencer sem lutar.
Ela fez uma pausa e prosseguiu, respondendo a pergunta que Mulil
não fez:
– A chave está nas dezesseis partes do Deus, nas dezesseis pétalas,
nas dezesseis virtudes.
Mulil queria perguntar mais, mas um forte odor penetrou suas narinas, sua vista ficou enevoada. Quando o ardor se dissipou, a mulher
não estava mais na sua frente. Ele prosseguiu sua velatura, até que os
sacerdotes vieram rendê-lo. Demorou vários minutos até conseguir
mover suas pernas. Disse aos sacerdotes:
– Gostaria de falar novamente com a sacerdotisa que veio ter comigo
durante a meditação.
– Não temos nenhuma sacerdotisa em nosso templo... apenas sacerdotes.
Mulil não escondeu sua perplexidade. Tudo fora tão real. Sentia-se
muito diferente do que quando chegara ao templo, e mais ainda do que
antes de partir naquela jornada inusitada no deserto. O sacerdote levou-o até uma área externa, onde alguns homens trabalhavam em tarefas manuais, como pintura, escultura, marcenaria. Aproximaram-se de
um dos artesãos, que não desviou o olhar nem a atenção do seu trabalho. O sacerdote indicou-o a Mulil, dizendo:
– Este é Sigés. Ele é a razão concreta de sua vinda ao nosso templo.
Você deve levá-lo até Montuhotep, que tem um trabalho específico para
ele realizar, o qual não pode ser executado por outro – o artesão fez
uma ligeira mesura com a cabeça, sem perder o foco da sua obra.
Mulil dirigiu-se a ele:
– Chamo-me Mulil. Espero que possamos fazer uma viagem rápida e
tranquila até a cidade.
178
PAZ GUERREIRA - FORÇA
Sigés nada respondeu. O sacerdote explicou:
– Ele não pode lhe responder. Fez um voto de silêncio, que não lhe
permite pronunciar palavra. Já há cinco anos nada fala. Seu mundo são
as suas obras. Ele conhece as proporções mágicas, pois aprendeu com
seus Mestres a dominar os números mágicos. Consegue com isso dar
movimento à pedra, infundir-lhe a energia que lhe dá vida. Diz-se que
suas estátuas podem locomover-se sozinhas...
Na viagem de volta de Mulil e Sigés, tudo correu tranquilamente.
Cruzaram o deserto sem maiores problemas, mas não sabiam o que os
aguardava na chegada…
31.
K
adriel sentia-se feliz por Mulil não ter morrido no seu sonho.
Também sentia-se disposto a iniciar sua missão. Tinha de
cumprir o que prometera a Sokárin: lutar pelo poder. Primeiro, precisava encontrar a placa. Tinha a certeza no seu íntimo de que ela existia e
de que o Rei falecido a escondera, para ser encontrada no momento
oportuno. Esse momento era agora. O início da sua luta dependia de um
fator que o justificasse. É certo que perante a lei pouco importava, pois
a cerimônia de troca das placas e a inserção da nova placa na estela é
que determinavam o nome do sucessor. Isso não ocorrera. O trono era
de Adaran. Mas perante a Justiça, o trono era seu. Essa era a vontade de
Sokárin. Confiava em que muitas pessoas entenderiam a verdade e o
apoiariam.
Ia reunir-se com Bakar para traçarem uma estratégia de busca. Havia
perguntado a Ravi o que ele achava, mas este lhe respondera que esta
era uma batalha que Kadriel precisava lutar sozinho. Era importante que
TALAL HUSSEINI
179
assim fosse, pois essa prova fazia parte de algo maior, e se não pudesse
ser vencida, significava que Kadriel não merecia nem cogitar a coroa.
Kadriel já tentara detectar algum indício do possível esconderijo da
placa através da frase que Sokárin deixara, mas não lhe ocorria nada. O
enigma falava de falcão, também seus sonhos tinham a presença renitente dessa ave... Bakar chegou. Kadriel esperava sua ajuda mais para as
questões operacionais, pois não tinha muita esperança de que ele pudesse ajudar com o enigma, uma vez que seu forte não era o intelecto.
O gigante deu-lhe um forte abraço. Como já o conhecia, Kadriel preparou-se para o aperto. Um desavisado, ao receber o abraço amistoso de
Bakar, podia ficar com dor nas costelas por alguns dias.
– Então, Kadriel, para que me chamou aqui? Aonde vamos?
Kadriel relatou para o amigo toda a história, desde a sua conversa
com Sokárin. O outro ouvia estupefato. Via-se em seu olhar um misto
de admiração e incredulidade. Quando Kadriel terminou seu relato, ele
disse, com firmeza:
– Ora, e o que estamos esperando? Vamos logo buscar essa placa.
– O problema é que não sabemos onde ela está.
– Como não sabemos? Você mesmo não acabou de dizer na sua estória que ela está no ninho do falcão? É só ir buscá-la! – concluiu Bakar,
achando incompreensível por que ainda não estavam a caminho.
– O enigma não é literal, Bakar, é apenas uma metáfora, é simbólico.
– Quem foi que disse isso?! Se o Rei falou sobre ninhos e falcões é
por que queria dizer isso mesmo. Além do mais, você tem alguma ideia
melhor para começar a procurar? Em vez de ficarmos aqui perdendo
tempo com pensamentos inúteis, vamos agir. O único lugar que conheço
com falcões aqui por perto é aquela montanha em que nos perdemos
quando éramos crianças. Vamos logo! Se não estiver lá, aí pensamos em
mais alguma coisa.
180
PAZ GUERREIRA - FORÇA
Kadriel pensou consigo que de fato seu amigo de grandes proporções
tinha toda a razão. A energia e a disposição que Bakar demonstrava
infundiram-lhes ânimo para partirem logo. Sem demora, já estavam
subindo a montanha. Ela parecia menor do que da última vez em que ali
estiveram. Na oportunidade, Kadriel ganhara as cicatrizes no seu antebraço.
Os dois amigos chegaram à beira do abismo em que anos antes haviam estado, junto com Dhara e Haggi. Deitaram-se na borda e olharam
para baixo. Não viram alguns vultos que se locomoviam às suas costas.
Lá estava o ninho. Não devia ser o mesmo ninho da sua infância, mas
estava no mesmo lugar. Kadriel começou a descer pela encosta para se
aproximar. Desta vez, tomaram o cuidado de amarrar uma corda na sua
cintura, cuja outra ponta foi atada a uma árvore.
Kadriel chegou rapidamente ao ninho. Nenhuma ave por perto. Remexeu a palha do ninho, até que suas mãos se depararam com algo sólido. O objeto estava envolto em um pedaço de tecido. Kadriel reconheceu o brasão de Sokárin. Seu coração palpitou. Apanhou o embrulho e
iniciou o caminho de subida. Chegando ao plano, sentou-se no chão
para abrir o invólucro. Não pôde conter a emoção quando viu que era o
mesmo tipo de rocha da pedra dos mil reis. As lágrimas rolaram sobre a
sua face ao se deparar com o nome escrito na pedra real: KADRIEL
VAHAN.
Bakar colocou-se imediatamente sobre o joelho direito, inclinando-se
em reverência, cabeça abaixada. Kadriel fez sinal para que não fizesse
aquilo, mas ao mesmo tempo sentiu uma estranha satisfação, era o primeiro cumprimento que recebia como rei.
Era a deixa que esperavam os vultos.
Surgiram rápidos de seu esconderijo e lançaram sobre os dois amigos
uma rede. Bakar ficou retido, mas Kadriel conseguiu escapar. Não por
muito tempo, pois os quatro homens se lançaram sobre ele. Tudo isso se
TALAL HUSSEINI
181
passou no mais absoluto silêncio. A única agitação se dava dentro da
cabeça de Kadriel, que estava um turbilhão.
Os pensamentos de Kadriel retomaram o rumo de uma possível reação. Como lesse seus pensamentos, um dos homens aproximou uma
balestra da cabeça de Kadriel e disse:
– Não tente nada.
Mal acabara a frase, Kadriel surpreendeu-o com um golpe rápido que
lançou a arma nas trevas. Quando se preparava para atacar seu oponente, outro dos homens pulou sobre suas costas, apertando-lhe o pescoço
com o antebraço. Enquanto tentava se soltar, outros dois o apanharam.
Kadriel lutava com vontade, mas logo estava com um dos homens torcendo cada um de seus braços para trás, um terceiro segurando-o pela
cintura e o primeiro segurando-lhe o pescoço.
Não conseguia mais se movimentar, faltava-lhe o ar, seus braços pareciam prestes a quebrar. Quando estava a ponto de desistir, Kadriel
transportou-se. Tinha a sensação de estar flutuando no ar. No ar não,
numa substância mais densa que o ar e menos densa que a água. Fez-se
silêncio, que lhe dizia para relaxar, esquecer a dor. Aos poucos, Kadriel
relaxava. Sua respiração foi baixando e se tornando consciente. Ele inflou o ventre e abriu as costelas para os lados e para cima. Abriu o peito,
pressionando os ombros para baixo, facilitando a respiração. Abriu as
fossas nasais, respirando como um touro furioso. Seu olhar tornou-se
duro como o da águia que fixa sua presa.
Com movimentos suaves, mas rápidos e irresistíveis, Kadriel livrouse dos seus oponentes, arremessando-os com facilidade nas quatro direções. Surpresos com a reação inesperada, voltaram à carga desordenados. O primeiro e o segundo foram projetados com facilidade. Kadriel
movimentava-se como o fogo. Seus gritos foram diminuindo até desaparecer, o que o fez lembrar de onde estava: na beira de um precipício.
Não se ouviu nenhum baque, o que indicava a profundidade.
182
PAZ GUERREIRA - FORÇA
O terceiro homem foi barrado com um chute na garganta. O estalido
do pescoço soou claro no silêncio da montanha. Quando o corpo rolou
pelo precipício, já estava sem vida. A morte fora instantânea. A montanha seria o seu sepulcro, junto com seus dois companheiros. Kadriel
voltou sua atenção para o quarto elemento, que fugia correndo em direção à floresta. Quando Kadriel pensou em começar a persegui-lo, Bakar,
que havia finalmente conseguido rasgar a rede, lançou um pedregulho
certeiro em direção ao fugitivo, que o atingiu na nuca, levando-o à morte instantânea.
Bakar virou-se para Kadriel, com ar de total indignação:
– Ao menos um você deixou para mim!
O comentário, que não podia partir de outro senão de Bakar, fez dissipar a tensão que envolvia Kadriel, e este sorriu para o amigo, olhou
para a placa e respondeu:
– Não se preocupe, Bakar, nossa luta está apenas começando! Hoje é
o primeiro dia de um futuro que acaba de chegar.
TALAL HUSSEINI
183
32.
N
akan entrou casmurro no seu palácio, com passos marciais,
quase marchando, sem falar com ninguém. Os serviçais que o
conheciam há mais tempo sabiam que nessas ocasiões não se devia dirigir a palavra ao governador nem para desejar um bom dia, sob o risco
de deixá-lo ainda mais irritado. Aparentemente, algo na viagem à Capital o havia desagradado. Mas de qualquer modo não podia se furtar a
encontrar seu hóspede Haggi, que havia permanecido na cidade até a
sua volta atendendo a um pedido seu. O governador mandou chamar
Haggi para encontrá-lo a sós na biblioteca do palácio. Quando o governador chegou ao local designado, Haggi já o aguardava, pois, como bom
diplomata, jamais deixava uma autoridade esperando. O governador
vociferou:
– Adaran...!!
– Perdão, Nakan, não compreendi...
– As primeiras ações de Adaran como novo Rei não me agradaram
nem um pouco! – completou Nakan.
Haggi fingiu surpresa. O General completou:
– Não vou esconder meu descontentamento. Não acho que ele seja a
pessoa mais indicada para conduzir o reino. O velho Sokárin devia estar
certo em alterar o sucessor. É lamentável que não tenha tido tempo para
trocar a placa...
– Mas Adaran é um homem inteligente e capaz. Será que não pode
fazer um bom reinado?
– Não duvido da capacidade nem da inteligência de Adaran. Só não
tenho certeza sobre o seu caráter.
– Posso entender, então, que o Rei não terá o apoio do interior. Será
que uma revolta se aproxima?
TALAL HUSSEINI
187
– Não, de forma alguma vou me rebelar ou conspirar contra o Rei,
mas também não terei grande prazer em apoiá-lo em suas empreitadas.
Pressinto tempos difíceis.
A conversa decorria num tom bastante franco, o que não era tão comum entre aqueles dois homens treinados nas artes diplomáticas. Nakan
relatou então o episódio ocorrido na reunião com os generais, que culminou com a morte de um velho general. Desse fato Haggi não sabia,
pois sua rede de informações não contava com ninguém dentro do Conselho de Guerra.
– Nakan, você sabe que minha missão aqui é verificar as condições
em que a Aliança das Doze Cidades vai encarar a sucessão, e agora o
novo Rei. Posso dizer em meu relatório que o apoio da Aliança ao novo
Rei é absoluto?
– Meu caro amigo – retrucou Nakan, tornando contido o ritmo da
conversa – penso que relatórios não devem conter juízos de valor muito
específicos. Relatórios são tanto mais precisos quanto menos informações trouxerem.
– Entendo... Entre nós, podemos pensar em algo mais conclusivo?
– Haggi, minha conclusão é que vou procurar cuidar da melhor forma
possível dos interesses da minha cidade e das demais cidades da Aliança, sem entrar em atrito com o poder central. Mas por certo não aceitaremos nenhuma imposição que venha a restringir de qualquer forma
nossas posições. A Aliança das Doze Cidades procurará manter sua autonomia.
– E se o governo central não permitir?
– Prefiro não pensar nessa hipótese, por enquanto, mas não iremos
nos submeter.
Assim dito, Nakan despediu-se de Haggi. Esse era mais um teste que
impunha ao rapaz, pois sabia que ele representava o Estado, e que ao
deixar sua posição de insurgência tão exposta corria sérios riscos. Se
188
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
relatasse a Adaran o que ouvira, certamente ele tomaria medidas contra
a Aliança, ou contra Nakan, mas este estava preparado. Já a Aliança...
seria mesmo uma aliança? Nakan estava absolutamente certo com relação à fidelidade de duas cidades, acreditava em outras duas, mas não
colocaria sua mão no fogo. Quatro eram duvidosas e as outras três por
certo estariam com o Rei. O choque não seria fácil...
Haggi despediu-se do governador e foi em direção aos seus aposentos. Quando já estava perto, um vulto surgido do nada o surpreendeu.
Era Ivis. Não se tinham visto desde o episódio no jantar. Depois daquilo, Haggi estivera ocupado com seus afazeres oficiais e algumas viagens
curtas até outras cidades da Aliança. Haggi não era homem de ser surpreendido e muito menos de se assustar. Ivis havia sido discreta. O susto
mesclou-se à satisfação em vê-la.
– Ivis...! Que surpresa!
– Precisava vê-lo... Não tive a oportunidade de me desculpar por
Garat.
– Você não tem do que se desculpar, pois nada fez. Se alguma culpa
lhe assiste é a de estar noiva daquele imbecil.
– Creio que essa culpa já expiei, pois não sou mais noiva... nem dele,
nem de ninguém.
Haggi teve trabalho para ocultar a alegria que sentiu com tal notícia.
Uma demonstração dessa natureza arruinaria sua estratégia de conquista. O próprio fato de sentir aquela alegria foi estranho para Haggi, pois
não era a satisfação de um movimento bem sucedido no tabuleiro da
conquista, e sim um sentimento verdadeiro, cuja origem ele não conseguia identificar. Ao se recompor internamente, Haggi indagou:
– Não é mais noiva? Mas e Garat? E as famílias? E tudo que envolve
esse tipo de situação?
– Não posso me importar com tudo isso se minha felicidade estiver
em jogo. Garat é um covarde, falta-lhe o valor de um cavalheiro.
TALAL HUSSEINI
189
– E o que a traz aqui? Posso ajudar de alguma maneira? – dizendo isso, Haggi aproximou seu rosto do de Ivis e por um instante estiveram
verdadeiramente perto de se beijar, não fosse um serviçal do palácio têlos abordado correndo, desesperado e resfolegado:
– Senhor, uma convocação do Rei, o senhor precisa ir imediatamente
à Capital!
– Pois bem, não há necessidade para tamanho desespero, amanhã
preparar-me-ei para a viagem.
– O senhor não entendeu, a convocação é para agora! Há uma carruagem real a aguardá-lo no pátio, para partir imediatamente. Suas malas já
foram arrumadas e estarão na carruagem.
O rapaz fez uma pausa e prosseguiu:
– Creio que não exista a opção de não ir agora, pois há guardas reais
para a sua escolta, com firmes ordens para seguir imediatamente para a
Capital, com o senhor...
– Entendo.
Haggi afastou-se de Ivis, com um olhar resignado:
– O dever me chama, mas por certo nos encontraremos novamente.
Vou esperá-la na Capital. Não fique noiva de novo sem me consultar.
Ivis sorriu e acenou um adeus tímido, de quem não conseguiu obter o
que queria.
33.
A
figura que comandava a reunião era tenebrosa. Pele acinzentada, longos cabelos desgrenhados, olhos fundos, negros como
breu. Sua voz não parecia humana, soava algum tanto metálica e ao
190
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
mesmo tempo grave, fazia vibrar as entranhas de quem o ouvia, mais
precisamente o estômago, causando uma sensação incômoda. Vestia
apenas uns trapos em torno da cintura, lembrando o estilo utilizado
pelos povos de além do Indo, mas mais folgados.
Ayamarusa admoestava seus interlocutores, que eram os seus discípulos, ou, antes, seus servos. Ele começou imprecando-os de palavrões,
pois haviam permitido que Mulil completasse sua missão no deserto. A
notícia era que Mulil estava percorrendo o caminho de volta, trazendo
com ele um artesão sagrado, encarregado de cumprir não se sabe qual
missão de Montuhotep. Nenhum dos presentes ousava sequer olhá-lo
diretamente, pois era realmente uma visão desagradável. Se apenas sua
voz já causava náuseas, esta acompanhada da sua figura faria qualquer
um desmaiar. Quem ousou responder à pergunta de Ayamarusa de por
que havia sido permitido a Mulil chegar ao seu destino foi um homem
com idade entre os trinta e cinco e os quarenta e cinco anos, de estatura bastante elevada, cabelos curtos, rosto largo e quadrado. Pelos trajes, via-se que era militar de alta patente do exército egípcio. Os ombros largos e braços secos terminados por grandes mãos denotavam
grande força física.
Knef era um assassino profissional. Conhecia todas as formas de matar, desde as mais violentas até as mais sutis. Conhecia muito bem todas as técnicas de combate manual e armado. Todas essas habilidades
somadas a uma mente extremamente metódica o tornavam um homem
muito perigoso. Ele redarguiu ao seu Mestre que lhes pareceu mais
conveniente deixar que o deserto destruísse Mulil.
– Mas não destruiu! – esbravejou Ayamarusa – Vocês o subestimaram, e agora corremos sério risco. O artesão não pode chegar à presença de Montuhotep. Devemos capturá-lo com vida, para extrair dele
as informações sobre a missão que lhe foi confiada. Reúnam todas as
forças para realizar essa tarefa. O momento ideal é agora, pois devem
TALAL HUSSEINI
191
estar chegando à cidade. Depois que estiverem entre os seus, será muito mais difícil nos aproximarmos. Vão! E desta vez não falhem!
Todos obedeceram imediatamente, seguindo em direção à entrada
oeste da cidade, por onde sabiam que Mulil chegaria. Era um grupo
bizarro, formado por assassinos e vilões de todos os tipos. Além de
Knef, havia um sujeito magro e alto, de idade indefinida e de raça também indefinida, pálido, chamado Agap. Ele era um mago, perito nas
artes da sabotagem e da intriga. Dentro do meio da magia e da feitiçaria não tinha grande poder, mas o que possuía era o suficiente para
provocar grandes estragos em pessoas desprotegidas. Nos círculos que
frequentava, todos sabiam que ele era mau-caráter, mas ninguém conseguia prová-lo.
Também na linha da feitiçaria, fazia parte do grupo uma mulher, com
ares sensuais, de boa aparência física, salvo pelo olho esquerdo esbranquiçado. Aparentava pouco mais de trinta anos de idade, devido a
certos rituais de magia negra que costumava realizar, pois em verdade
tinha idade bem mais avançada. Sethini dominava o sonho. Interferindo
nesse ambiente, conseguia induzir as pessoas a fazer o que ela quisesse
e, se fosse o caso, poderia causar-lhes danos psíquicos levando-as até
mesmo à loucura ou à morte.
O último componente do estranho grupo se chamava Ripu. Era um
homem de instintos violentos, utilizado para fazer todos os trabalhos
mais sujos que eram necessários. Foi cooptado por meio do sequestro
de sua família, perpetrado pelo restante do grupo para chantageá-lo.
Certo dia, quando procuravam forçá-lo a um trabalho ameaçando de
morte seus familiares cativos, ele mesmo se adiantou e os matou, esposa e três filhos. Seu semblante nem sequer se alterou. Em seguida, realizou o trabalho que lhe ordenavam, assim como realizou todos os que
lhe solicitaram depois disso. Gostava, não era questão de coação. Ja192
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
mais mencionou palavra sobre sua família, seguiu trabalhando para
Ayamarusa como se nada tivesse acontecido. Com isso ganhou sua
confiança.
Os quatro começaram a fazer os preparativos para cumprir sua missão. Desta vez, não podiam falhar. O erro de cálculo sobre o deserto
fora grave. Jamais imaginariam que Mulil pudesse conseguir. Poucas
pessoas haviam sobrevivido àquelas areias, ainda mais sem conhecêlas previamente. Mas agora não falhariam. O plano era perfeito. O
artesão capturado e Mulil morto, isso lhes bastava...
Mulil e Sigés haviam feito uma tranquila viagem de volta. É mais fácil traçar planos de viagem quando se conhece o itinerário e as distâncias a percorrer. Entretanto, por mais que no início Mulil tivesse tentado encetar alguma conversa, não obteve qualquer resultado além de
alguns sinais. Além de silencioso, Sigés era bastante compenetrado.
Parecia fazer cálculos e planos mentais durante toda a viagem, apesar
de ainda não conhecer sua próxima tarefa.
Já se aproximavam da cidade, o denotavam algumas palmeiras que
surgiam ao longo do caminho e aquela névoa que, ao longe, formava
uma espécie de redoma em torno do povoado, que distorcia as imagens
naquela área. Sigés carregava seus instrumentos com cuidado. Traziaos num grande saco de lona que parecia bastante pesado, mas em momento algum permitiu que Mulil o ajudasse a levá-lo. Ambos estavam
exaustos.
Surgiram no horizonte, vindo em sua direção, duas silhuetas. Mulil
ficou desconfiado, mas daquela distância ainda não se divisava seus
rostos. De qualquer modo, alertou Sigés, que já estava com uma marreta, que era uma das suas ferramentas, nas mãos. Mulil tinha um longo
bastão que, aprendera com seu Mestre, era um importante instrumento
para longas caminhadas.
TALAL HUSSEINI
193
Talvez fossem seus amigos que viessem recebê-los. Sentia saudades
de sua amada Sekhmetis. Uma das silhuetas podia ser de seu amigo
Zimbro, pelas grandes proporções. Zimbro era um grande guerreiro,
dotado de extrema força física e domínio sobre os animais. Parecia
comunicar-se com eles, nunca estava desacompanhado de Onix, sua
pantera negra. Não, não podia ser ele, pois não havia nenhum animal
ao seu lado. A preocupação de Mulil cresceu.
Os dois vultos que, agora se via, eram de homens, começaram a correr em sua direção. Não havia onde se esconder, pois estavam em campo aberto. Fugir também era inútil, pois com o cansaço da viagem fatalmente seriam alcançados. Restava lutar.
Esperaram parados. Knef lançou-se sobre Mulil, que conseguiu se
esquivar do primeiro assalto. O combate tornou-se feroz entre os dois
homens. Evidentemente, Knef o superava em força física e técnicas de
combate, mas Mulil aprendera com seu Mestre muito sobre tática e
estratégia, o que lhe permitia equilibrar as ações.
Enquanto isso, Sigés surpreendeu contra o violento Ripu, logrando
desviar do seu ataque e contra-atacá-lo com uma forte marretada nas
costelas, que o retirou de combate com duas ou três quebradas. Sigés
passou a ajudar Mulil contra Knef, que intensificava seus ataques. Mas
não viu chegar Agap, que lhe soprou um pó no rosto, paralisando os
seus músculos e deixando-o consciente, mas sem qualquer possibilidade
de reação. Juntou-se a ele Sethini, colocando um capuz negro sobre a
cabeça de Sigés e ajudando Agap a colocá-lo sobre um cavalo.
Mulil viu que levavam o artesão, mas nada podia fazer, pois já estava
em grande dificuldade na sua luta contra Knef. Os rigores do deserto
minavam sua resistência. Knef conseguiu derrubá-lo, sacou uma espada
curta e foi em sua direção, pronto para liquidá-lo. Foi quando uma
flecha passou zunindo por ele, riscando-lhe o ombro. A espada caiu.
Mulil lançou-se sobre ela, mas Knef a chutou para longe. Voltou-se
194
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
para o vulto que disparara contra ele. Estava muito longe para que
pudesse identificar. Fora um excelente tiro para aquela distância. Era
uma pessoa pequena, mas estava acompanhada de outra, bem maior,
com um animal ao lado. Vinham rápido na sua direção. Knef pensou
por um momento em qual seria a melhor atitude. Terminar de acabar
com Mulil..., mas ficaria exposto a outro disparo. Enfrentar os inimigos
desconhecidos... seriam três contra um, pois seus companheiros já haviam fugido com o prisioneiro, acompanhara-os Ripu, ferido. Resolveu
fazer uma retirada estratégica, mas ainda teve tempo de se dirigir a
Mulil:
– Ainda vamos nos encontrar de novo! E você não terá tanta sorte!
Chamo-me Knef, guarde bem este nome, pois será o último que ouvirá
antes da sua morte – ao dizer isso, saltou sobre um cavalo que seus
companheiros lhe haviam deixado, e partiu em disparada.
O primeiro vulto a chegar perto de Mulil foi Onix, a pantera negra de
Zimbro. Ela poderia ter alcançado o fugitivo, mas permaneceu com
Mulil, atendendo a um assobio de seu companheiro. Os outros dois
chegaram em seguida. O gigante Zimbro sorria, como sempre, feliz em
rever o amigo. A pessoa menor era Sekhmetis, que ajoelhou-se ao lado
do prostrado Mulil, abraçando-o carinhosamente. Ver aqueles olhos
verdes fazia com que se esquecesse de todas as agruras do deserto. Enquanto o casal se perdia num abraço sem fim, quem disse as primeiras
palavras foi Zimbro:
– Mulil, você está horrível, o deserto acabou mesmo com você...
De fato, o discípulo de Montuhotep estava mais magro, com a pele
queimada pelo Sol e ressecada pelo sal, barba de semanas, sujeira de
dias. Mas ainda teve energia para responder com humor:
– Quase acabou, meu amigo, quase... não fosse o tiro preciso, como
sempre, de Sekhmetis.
A jovem sorriu. Mas Mulil prosseguiu em tom mais grave:
– Ocorre que conseguiram levar Sigés!
TALAL HUSSEINI
195
– Quem é Sigés? – perguntaram quase em uníssono.
– É um artesão. Foi o motivo de minha viagem pelo deserto. Devia
trazê-lo à presença de Montuhotep, que tinha para ele uma tarefa. Mas
eu pus tudo a perder... Graças à minha falha, intuo que ele está nas
mãos de Ayamarusa.
– Montuhotep saberá o que fazer, precisamos ir até ele sem perda de
tempo – respondeu Sekhmetis.
Os dois homens concordaram. O grupo partiu apressado para ter
com o Mestre.
34.
K
adriel parecia ter dormido vários dias. A busca da placa fora
desgastante. Sua vontade era ir direto a Ravi para lhe relatar as
novas, mas o cansaço e a hora tardia em que retornaram o fizeram ir
diretamente para a sua casa. Bakar, que o acompanhara, roncava sonoramente sobre uma manta no chão da sala. Como nenhum dos homens
que os haviam atacado na montanha sobrevivera, acharam seguro ir para
casa, uma vez que a notícia da placa ainda não teria chegado aos ouvidos de ninguém, principalmente de Adaran, que não permitiria que seu
trono fosse ameaçado por nada.
Kadriel não via a hora de falar com Ravi, ele saberia como esconder a
placa e como utilizá-la da maneira mais adequada e no momento oportuno. Resolveu, entretanto, fazer a prática de concentração que aprendera com Ravi, enquanto esperava que Bakar acordasse.
Sentou-se sobre os joelhos, na posição que lhe havia sido indicada
como a mais adequada para concentrar-se, e iniciou os passos. Ao chegar perante o senhor das portas, algo inusitado aconteceu: surgiu um
196
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
ruído agudo que quase estourava seus ouvidos. De repente, Kadriel como que se transportou, em velocidade espantosa, passando sobre mares
e cidades, até as altas montanhas do topo do mundo, parando bruscamente, frente a frente com um indivíduo magro, a ponto de deixar aparecer as costelas sob a pele, vestido apenas com um tipo de calção indiano curto, de tecido, folgado, justo apenas na cintura e em torno das
coxas, sentado com as pernas cruzadas, como os escribas, em frente à
entrada de uma caverna. Kadriel flutuava em frente a esse indivíduo.
Sua pele era de uma cor estranha: um misto de escura acinzentada com
um tom avermelhado, como se tivesse apanhado muito Sol. Os cabelos
e a barba longos estavam desalinhados. A vibração ensurdecedora continuava. Kadriel sentia que aquela vibração fazia com que tudo à sua
volta tendesse ao caos, como se o mundo fosse desintegrar-se a qualquer
momento. Quando olhou para trás, Kadriel viu uma multidão vibrando
daquela forma, como que hipnotizada. Voltou-se novamente para aquela
figura bizarra e deparou-se com uma imagem que nunca mais esqueceria: os olhos. Seus olhos eram negros como o abismo, praticamente não
tinham esclerótica. Duas esferas negras, de uma profundidade insuportável. Kadriel viu seu nome, que jamais ousaria pronunciar: Ayamarusa.
No exato momento em que soube seu nome, foi arrebatado de volta
pelo mesmo caminho até a sua casa. O impacto do retorno foi tanto, que
Kadriel não conseguira recuperar de imediato a consciência. Quando
abriu os olhos, deparou-se com Bakar, que o retinha em seus braços
com uma expressão de pavor na face. Kadriel sangrava pelas narinas,
sentia náuseas e tonturas. Bakar gaguejou:
– Você está bem...?
Kadriel pensou na resposta, mas ela não saiu de seus lábios. Fez um
gesto afirmativo lento com a cabeça, o que pareceu não convencer ao
seu amigo, que insistiu:
TALAL HUSSEINI
197
– Pois você não me parece nada bem, acho melhor irmos a um médico. Você está tremendo, e sangrando... – concluiu tocando seu próprio
nariz, para indicar onde era o sangramento.
Kadriel levou as costas da mão ao nariz, depois a olhou, para constatar o que já sabia ser verdade. Procurou respirar com calma, buscando
forças para pronunciar algumas palavras que pudessem tranquilizar
Bakar:
– Estou melhor... Um médico não será necessário. Precisamos ir até a
casa de Ravi.
Bakar o ajudou a se levantar. Kadriel ainda estava visivelmente trêmulo, mas o sangramento estancara. Os dois partiram rapidamente rumo
à casa de Ravi. Havia muito que conversar.
Chegando à casa de Ravi, este os recebeu pessoalmente, fazendo-os
entrar no jardim que ficava na parte posterior da casa, aquele que possuía vista para Anthar. Percebendo que Kadriel não estava muito bem,
Ravi fez sinal a uma serviçal para que lhe trouxesse algo de beber. Apenas pelo sinal, ela sabia que devia trazer vinho. Serviu as taças a partir
de uma ânfora decorada com estranhos símbolos, desconhecidos tanto
para Kadriel quanto para Bakar, pois não pareciam humanos. Kadriel
ficou curioso, mas deixou as perguntas para uma outra oportunidade, já
que havia muitos assuntos importantes para tratar.
Sem pronunciar palavra, com um ar solene, Kadriel fez sinal a Bakar
para que mostrasse a Ravi o fruto de seus esforços. Bakar, fazendo ares
ainda mais cerimoniais, colocou sobre a mesa um embrulho e o foi desvelando vagarosamente. Ravi não demonstrou qualquer surpresa ao se
deparar com a placa, apenas pousou a mão sobre ela, saboreando com o
tato cada uma das letras que formavam o nome de Kadriel. Ravi indagou:
198
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
– Vocês tiveram algum problema para consegui-la? Você não me parece nada bem, Kadriel. Tome um pouco deste vinho envelhecido, lhe
fará bem.
– Não foi um problema com a placa... Quer dizer, na verdade tivemos
sim alguns problemas... Mas, quero dizer... Não foram eles que me deixaram assim – Kadriel ainda estava visivelmente perturbado. Ravi fez
uma expressão interrogativa, e foi Bakar quem tomou a palavra para
tentar explicar.
– Senhor, nós encontramos a placa num ninho de falcão nas montanhas, no mesmo local em que certa vez, na nossa infância, havíamos
sido atacados por um falcão. Nós a pegamos sem maiores problemas,
mas quando estávamos de saída, apareceram alguns homens... – fez uma
pausa, esperando alguma pergunta de Ravi, mas este permaneceu em
silêncio, como tinha por hábito fazer, aguardando a continuação. Então
Bakar prosseguiu: – eram quatro, nos pegaram de surpresa, me acertaram na cabeça, colocando-me fora de combate, e então os quatro partiram para cima de Kadriel. Quando me recuperei, ele não havia deixado
quase nada para mim, três deles estavam mortos e o último fugia em
disparada em direção à floresta. Tive de abatê-lo com uma pedrada.
Como era muito tarde e estávamos cansados, voltamos para casa.
– Então por que Kadriel está atônito? Chegou a ser golpeado?
– Não, senhor, ontem quando retornamos ele estava bem. Hoje pela
manhã, quando acordei, o encontrei ajoelhado no chão, trêmulo, com o
nariz sangrando muito... – neste momento da narrativa, Ravi o interrompeu:
– Trêmulo e sangrando?! Rápido, ajude-me a colocá-lo neste catre.
Colocou uma mão sobre o coração de Kadriel e a outra sobre a cabeça
e, fechando os olhos, pronunciou algumas palavras impossíveis de se
entender. Depois preparou um chá e fez Kadriel bebê-lo. Este logo pe-
TALAL HUSSEINI
199
gou no sono, dormindo por aproximadamente meia hora. Quando despertou, Ravi o velava:
– O que aconteceu, Kadriel?
– Nós recuperamos a placa...
– Sim, isso eu já sei, Bakar me contou tudo. Você fez uma prática de
concentração?
– Sim, aquela que o senhor me ensinou, mas algo muito estranho
aconteceu... – Kadriel relatou então sua experiência.
Bakar, que também ouvia, parecia impressionado. Ravi limitou-se a
dizer:
– Ayamarusa quis vê-lo de perto. Agora já o conhece. Mas não se
preocupe, não acontecerá de novo, já criei algumas barreiras que o impedirão de chegar novamente até você.
– Mas quem é esse? É uma figura real, ou uma fantasia tenebrosa dos
meus pesadelos? Pois o vi também no meu sonho. Ele era o líder de um
grupo que atacou Mulil.
– Ele é ambos. O mal que ele pode fazer é bem real. Só esperava um
novo momento histórico para buscar realizar seus intentos malignos.
– O senhor o conhece, então?
– Sim, o conheço há muito tempo. Mas você não deve se preocupar
com ele agora. Suas atenções devem estar focadas em como cumprir o
seu destino, como lutar pelo trono e fazer deste País um lugar belo e
justo. Quanto mais tempo Adaran ficar no poder, pior ficará a situação
da população.
– Vamos levar a placa a público, tenho certeza de que muitos nos
apoiarão!
– Sim – concordou Bakar – vamos lutar pelo direito de Kadriel à sucessão.
– Entendo o seu açodamento, rapazes, ele é fruto da juventude, mas o
momento agora é para uma estratégia mais elaborada. Temos que traçar
alianças fortes em torno de um núcleo formado pelos guerreiros mais
fiéis. Assim que Adaran souber da placa, não poupará esforços para
200
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
destruí-la e também àqueles que a viram. Para isso, precisaremos partir,
para retornar quando estivermos preparados.
– O senhor sugere fugir? – perguntou Kadriel, com certa indignação.
– Não se trata de fugir, mas de se retirar para uma posição estrategicamente melhor. Como estamos agora, seremos facilmente destruídos.
Devemos aproveitar para partir enquanto não somos procurados. Depois
disso, nossa vida ficará bem mais difícil. Preparem o básico para uma
longa viagem, mas evitando peso demais. Encontrem-me aqui amanhã,
no início da noite.
Já na saída, Kadriel lembrou-se da placa:
– Pode deixá-la comigo, eu a esconderei onde jamais poderão encontrá-la. Agora vão!
Os dois obedeceram. Kadriel ainda tinha muitos questionamentos: o
que Ayamarusa representava em relação a Mulil, nos seus sonhos, e em
relação a ele mesmo, nas suas meditações? E na montanha, o que se
passara, como conseguira força para arremessar os quatro oponentes
como fossem bonecos de palha? No momento oportuno, Kadriel perguntaria sobre isso a Ravi. Por agora, era melhor obedecer.
35.
D
hara se surpreendeu quando chegou ao seu local de trabalho.
Desde que voltara do exterior, pouco antes da morte do Rei
Sokárin, trabalhava num consultório de atendimento médico ao público
mantido pelo governo. As portas estavam fechadas. Na porta, apenas
uma nota dando conta do fechamento por determinação do Rei Adaran.
Formava-se uma fila de pessoas do lado de fora, para serem atendidas, algumas em estado grave. A maioria dos médicos colegas de Dhara
havia ido embora ao se deparar com a notícia do fechamento. Dhara ia
TALAL HUSSEINI
201
fazer o mesmo, mas uma mulher de certa idade lhe implorou por ajuda,
e a médica não pôde deixar de lhe prestar atendimento, observando o
juramento que fizera para poder exercer a medicina. Esse juramento não
era muito praticado na época, mas Dhara o levava a sério.
Sua vontade era ir até o palácio real tirar satisfações sobre aquele absurdo: deixar a população sem atendimento de saúde. No entanto, logo
que terminava de atender a um paciente, outro lhe pedia ajuda. Mais
dois médicos que estavam por ali começaram a ajudá-la, talvez por
consciência, talvez por se sentirem mal com o exemplo. Havia também
alguns auxiliares, que passaram a ajudar, sob o comando de Dhara.
Terminando de atender ao último paciente realmente grave, Dhara dirigiu-se às outras pessoas que ali estavam:
– Todos os casos mais graves já receberam tratamento inicial. Não
poderemos atender a mais ninguém, pois do lado de fora não temos as
condições para isso. Peço que retornem amanhã, quando este malentendido já deverá ter sido solucionado, ou que se dirijam a outro centro de atendimento.
– Este é o terceiro centro a que venho – gritou um homem do meio da
multidão – todos estavam fechados!
– Não temos mais informações do que vocês. Agora só o que peço é
que voltem às suas casas. Por ora, não temos solução. Desculpem!
A população começava a se tornar hostil. O vozerio se elevava, alguns objetos começavam a ser atirados nos médicos. Dhara tentava conter, em vão, a multidão. Mas a massa humana não tem um comportamento racional, antes comporta-se como um grande e perigoso animal,
pronto para devastar tudo à sua frente quando seus desejos não são
atendidos. Dhara divisava as expressões de ódio e desespero, revolta e
indignação:
– Por favor, tenham calma! Tudo será resolvido!
Ninguém a ouvia, e a situação já estava ficando crítica. Os médicos
conseguiram sair do local, graças a uma ou outra voz de bom senso que
202
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
reconheceu que os que ali estavam ao menos atenderam algumas pessoas, e que não eram os culpados pelo ocorrido. Mas mesmo essas vozes
logo foram caladas pela multidão em fúria. Houve tempo apenas para
que Dhara e os outros saíssem dali.
Dhara decidiu ir imediatamente até o palácio real, para ser recebida
por alguém que lhe desse uma explicação plausível para aquela situação
absurda. Entretanto, ela ainda não tinha sequer a informação do nome
do novo ministro da saúde.
No caminho para o Palácio Real, Kadriel a avistou. Ela andava rápido, falando consigo mesma, a ensaiar o que diria ao Rei, ao Ministro, ao
Secretário, enfim a quem a recebesse. Ele a chamou. Como não ouvisse,
correu até ela, interceptando o seu passo:
– Dhara! Tudo bem? Vejo que está com pressa como eu...
– Sim, muita, o rei mandou fechar os centros de saúde. A população
está perecendo nas ruas.
– E o que você pretende fazer?
– Pretendo não, já estou fazendo, estou indo até o Palácio Real, para
obter mais informações.
– Não quero desiludi-la, mas isso me parece inútil... e perigoso, pois
Adaran está se mostrando um tanto autoritário.
– Creio que você tem razão, mas quero ouvi-lo da boca de alguma autoridade governamental.
– Dhara, escute com atenção – disse Kadriel em tom sério, segurando-a nos dois ombros – preciso que você confie em mim, apesar de eu
não poder lhe explicar muito agora. Se você quer ir ao palácio, não vou
tentar dissuadi-la, mas depois me encontre em minha casa, até o cair da
noite, sem falta.
– Mas por quê?
– Simplesmente esteja lá, aí lhe explico melhor a situação. Mas confie em mim, ela é muito mais grave do que parece... Esteja lá, certo?
Você promete?
TALAL HUSSEINI
203
– Sim, tudo bem... – concordou Dhara, mais por ter ficado impressionada com a forma como Kadriel colocou a situação do que propriamente com as circunstâncias.
– Outra coisa: não se exponha, nem confronte as autoridades, o momento é realmente muito delicado, você poderá se colocar em risco.
Ela assentiu e continuou seu caminho. Subiu com passo firme as escadarias do palácio. Observou que a segurança havia sido redobrada. Os
guardas que estavam à porta barraram sua entrada.
– Alto! Identifique-se!
– Sou médica do reino!
Os guardas se entreolharam e resolveram deixá-la passar, afinal ali
era apenas o primeiro ponto de checagem, e que mal poderia oferecer
uma moça?
Tendo entrado mais vinte metros, nova parada. Desta vez ela não esperou ser inquirida e foi logo se adiantando:
– Sou médica do reino. Gostaria de ver imediatamente o responsável
pela saúde!
Os guardas cochicharam. Um deles saiu, o outro permaneceu em silêncio perante Dhara. O primeiro guarda voltou acompanhado de um
indivíduo de baixa estatura, franzino, nariz longo, olhos pequenos, tronco ligeiramente curvado para a frente, mãos finas e longas em relação à
sua estatura, juntas dos dedos salientes. O pequeno homem se aproximou de Dhara com um sorriso pouco convincente:
– Em que posso ajudá-la, senhora?
– Pode levar-me imediatamente para ver o Ministro da Saúde! – retrucou Dhara, com autoridade.
O homem não demonstrou qualquer perturbação, deu um sorriso igual
ao primeiro e respondeu:
– Temo que isso não seja possível.
204
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
Dhara o fuzilou com os olhos, mas antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele completou:
– Sua Majestade, o Rei Adaran, ainda não nomeou seu ministério.
Portanto, a pessoa que a senhora deseja ver – fez uma pausa estalando
os dedos das mãos – não existe.
Desta vez, foi Dhara quem não se abalou e emendou com firmeza:
– Bem, neste caso, o Rei ainda é responsável por cada um dos ministérios! Exijo uma audiência imediatamente!
– Não quero ser pessimista, mas diria que isso é um tanto... como direi? Impossível. O Rei não concede audiências a qualquer pessoa que
bate às portas do palácio. Sugiro que a senhora tente marcar um apontamento com a assessoria do Rei e quem sabe em dois ou três anos será
atendida... – deu novamente o seu sorriso sarcástico e voltou-se para
deixar a sala. Via-se que era um desses funcionários medíocres a quem
fazia gosto abusar do pequeno poder que lhe fora dado.
O que ele não viu, quando voltou as costas para Dhara, foi seu olho
esquerdo escurecer, sua fisionomia assumir traços que pouco lembravam a beleza que despertou o amor de Kadriel. Ela avançou sobre o
homenzinho e agarrou-o pela gola do casaco antes que qualquer dos
guardas tivesse tempo para esboçar uma reação. Talvez eles não tivessem a vontade para isso, pois aquele homem era do tipo irritante para
todos e não apenas para o povo que acorria ao Rei. Ela o puxou com
vigor, fazendo-o voltar-se para ela. Agora que estava à sua mercê, sua
arrogância tinha desaparecido, se transformando em medo:
– Escute aqui, meu senhor, acabo de vir do centro de saúde no qual
trabalho como médica, acabo de atender a várias pessoas em estado grave que, como eu, deram com a cara na porta. Posso entender que o Rei
não queira me atender, mas não suportarei o cinismo de um subalterno
qualquer. O senhor vai terminar de me atender e vai me explicar exata-
TALAL HUSSEINI
205
mente o que eu preciso fazer para agendar uma audiência com o Rei,
ainda que leve dez anos...!
O homem estava visivelmente intimidado, mas ainda não tivera tempo de responder quando um oficial da Guarda Real, acompanhado de
dois soldados, intercedeu:
– Já basta, senhora! – o sorriso voltou aos lábios do homenzinho, que
pensou ter retomado o controle da situação, mas o oficial completou: –
o Rei vai vê-la imediatamente, senhora. Por favor nos acompanhe.
O sorriso se desvaneceu da face do homenzinho. Dhara retomou a fisionomia tranquila e acompanhou os guardas. Não lhe ocorreu que poderia ser um subterfúgio para prendê-la, até mesmo por que se quisessem fazê-lo não precisariam de subterfúgios. Fizeram-na entrar numa
grande sala, que era o ofício de despachos do Monarca. Se Dhara tivesse
conhecido aquela sala nos tempos de Sokárin, teria percebido que o novo Rei fora bastante ágil em redecorá-la, com grandes cortinas de veludo, mobília clássica, tapetes tecidos a mão. O Rei estava próximo a uma
grande lareira acesa. Dhara ajoelhou-se em sinal de respeito. Depois de
alguns segundos, Adaran fez sinal para que ela se levantasse:
– Eu a estava observando em sua conversa com o meu funcionário...
Gosto de pessoas determinadas, por isso lhe concedo esta audiência.
Você é médica, pois não?
Dhara assentiu.
– Você é muito bonita, para uma médica.
Dhara não entendeu se aquilo era um elogio, preferiu fingir que não
ouviu. Adaran parecia estudá-la, andava em torno dela, medindo-a dos
pés à cabeça. Outra pessoa teria começado a se sentir desconfortável.
Dhara ousou tomar a palavra:
– Majestade, o que me traz à sua presença é o fechamento dos centros
de saúde... – antes que ela pudesse concluir o raciocínio, Adaran prosseguiu:
206
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
– O que você acha de ficar para o jantar? Poderíamos discutir isso
com mais... privacidade.
– Majestade, seu convite realmente é uma honra, mas não vejo o assunto como de ordem privada e sim de ordem pública. Gostaria de saber
apenas se o fechamento é temporário ou definitivo. E se os médicos dos
centros podem considerar-se à disposição ou se ainda estão vinculados
ao governo.
– O fechamento é por tempo indeterminado, pois estamos redirecionando as prioridades. Os médicos continuam vinculados ao governo,
pois serão muito úteis nos próximos tempos. Algo mais?
– Nada mais Majestade – disse Dhara, ajoelhando-se novamente como para se despedir da entrevista.
– Por que tanta pressa? Afinal você ainda não me respondeu sobre o
jantar...
– Infelizmente ainda tenho muitos doentes para atender hoje... – mentiu Dhara.
– Eles podem esperar. Os que têm chance de sobreviver vão aguentar
até amanhã. Os outros, bem..., morrerão de qualquer jeito...
– Sim, Majestade, pode ser, mas minha obrigação é ao menos tentar
evitá-lo. Agora, peço permissão para me retirar.
O Rei demorou a responder, deixando Dhara mais alguns segundos
ajoelhada. Então a dispensou. Quando ela já saía pela porta do aposento,
o Rei lançou:
– Também sou como você, – Dhara voltou-se – determinado. Sempre
consigo o que quero… refiro-me ao jantar. Você ainda não me disse seu
nome...
– Dhara, Majestade – e deixou o salão.
Ela manteve a compostura até deixar o Palácio Real. Já nas ruas, respirou fundo. O novo Rei era uma figura no mínimo bizarra. Dhara não
TALAL HUSSEINI
207
estava se sentindo muito bem. Havia algo no ar do Palácio que não lhe
fez bem. Seguiu para a sua casa o mais rápido que pôde.
36.
O
arauto do rei anunciou a presença de Haggi no Palácio Real,
atendendo à convocação que lhe fora feita. O diplomata teve
de aguardar alguns minutos antes de ser recebido, o que preferiu fazer
de pé. Ficou imóvel, pernas separadas, mãos para trás, em posição de
descanso, diante do funcionário franzino, de sorriso sarcástico, o mesmo
que havia atendido Dhara. Depois de cinco minutos com Haggi a encará-lo, seu sorriso já havia desaparecido da face, após dez minutos já se
sentia desconfortável. Vinte minutos de espera e o homenzinho já rezava para que o Rei atendesse logo aquele visitante. Suas preces foram
atendidas: Haggi foi chamado.
Entrando na suntuosa sala de despachos do novo rei, Haggi logo percebeu as profundas alterações na decoração. Na verdade, estava bem
mais aconchegante do que a sala austera que Sokárin utilizava, salvo
pela presença de Adaran, que não era nem de perto tão agradável quanto
a do antigo monarca.
Haggi ajoelhou-se diante de seu parceiro de combates com sabre,
cumprindo o protocolo real. Adaran demorou-se um pouco até lhe dar a
ordem para se levantar, saboreando o momento. Finalmente, dirigiu-se
ao diplomata:
– Meu caro Haggi, há quanto tempo! Levante-se. Soube que você estava quase gostando da vida do interior – ironizou Adaran.
– Majestade...! – terminou Haggi a mesura – sim a vida no interior
não é das mais desagradáveis. Sabem receber bem seus hóspedes.
208
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
– Diga-me: como se posiciona Nakan em relação à sucessão? – fuzilou o Rei, de forma bem mais direta do que as conversas que costumavam ter.
– Pareceu-me tranquilo, em princípio, disse que fosse quem fosse o
sucessor, apoiaria a decisão de Sokárin.
– E depois que soube quem de fato era o sucessor...?
– O tom do seu discurso não mudou, mas não sei...
– O que você não sabe?
– Não sei se ele ficou feliz. Procurou não demonstrar nada abertamente, mas o percebi um pouco reticente. Não sei se foi alguma coisa
que ele ouviu na reunião do Conselho de Guerra... Bem, poderia ser só
uma impressão minha.
– Ele mencionou algo do que foi conversado no Conselho de Guerra?
– Não, Majestade, mas sou treinado para perceber a intenção das pessoas, e por mais que Nakan saiba dissimular muito bem seus pensamentos, pude notar algo diferente.
– Haggi, como rei, não tenho tempo para conversas muito prolongadas. O que preciso saber é se posso ou não confiar em Nakan e qual sua
posição em relação à Aliança.
Haggi mirou fixamente nos olhos o Rei, antes de responder:
– Majestade, na sua posição, eu não confiaria em Nakan. Quanto à
segunda pergunta, creio que se ele tivesse de tomar uma posição aberta,
haveria divisão dentro da aliança. E como sabemos, tudo que está dividido fica mais fraco.
– Está certo. Era só o que eu precisava saber. Permaneça na cidade,
Haggi, pois em breve terei outra designação para você. Como sempre
dizíamos, um diplomata hábil é útil para qualquer governo.
Haggi fez um sinal com a cabeça e preparou-se para sair. Quando já
deixava o aposento, o Rei lhe falou:
– Ah, e tão logo meus compromissos me permitam não vamos abrir
mão de um bom combate com sabres.
TALAL HUSSEINI
209
Saindo, Haggi respondeu:
– Sim, Majestade, quando quiser. A diferença é que agora não creio
que possa vencê-lo...
Depois que Haggi se havia afastado do recinto, uma figura que estava
oculta numa sala contígua apareceu diante do Rei.
– Então, General Ofis, nosso diplomata passou no teste. Confirmou o
que nossos informantes já haviam dito: Nakan não é confiável. Creio
que agora poderemos designar-lhe a próxima missão.
– Creio que sim, Majestade... – respondeu o sombrio Ofis, roçando a
mão no cavanhaque, com ares de quem não estava plenamente convencido da confiabilidade de Haggi.
O Rei não se importou muito com isso, pois afinal de contas, Ofis não
confiava em ninguém mesmo.
37.
Q
uando Bakar chegava perto de sua casa para fazer seus preparativos, conforme Ravi determinara, alguém o chamou:
– Bakar, tudo bem? O que você faz por aqui?
Bakar voltou-se surpreso e deparou-se com Mirta.
– Mirta...!
– Então, o que faz por estes lados?
– É que... bem... eu moro aqui perto.
– E por que tanta pressa?
– É que tenho umas coisas para arrumar em casa.
– É uma pena... Pois tinha pensado em darmos um passeio.
– Infelizmente, hoje não vai ser possível.
210
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
– Bem, estou indo para a mesma direção, posso ao menos acompanhá-lo até a sua casa. Se não se importar.
– É claro que não.
– Como estão os seus amigos?
– Bem, estão bem, preparando a viagem – Bakar interrompeu a frase,
sentindo que falou demais.
– Vocês vão fazer uma viagem entre amigos. Que ótimo! Gostaria de
fazer algo assim, mas não tenho tantos amigos... Para onde vão?
– Ainda não sei, mas acho que você poderia vir conosco.
– Uma viagem surpresa! Adoro surpresas! Será que seus amigos não
se importariam?
– Creio que não. Arrume suas coisas, poucas coisas. Partiremos amanhã, e me encontre aqui na minha casa no final da tarde, certo?
– Certo, até depois – respondeu Mirta, saindo em disparada.
Jamais passaria por uma mente ingênua como a de Bakar achar algo
de estranho em alguém que ele conhecia há tão pouco tempo, aceitar
acompanhá-lo numa viagem de destino desconhecido. Agregue-se a isso
o fato de Bakar estar apaixonado por Mirta. E, ademais, haviam-se encontrado por coincidência, e quem mencionou a viagem e a convidou
foi ele, Bakar.
O gigante arrumou rapidamente suas coisas e ficou o resto do tempo
pensando em Mirta.
38.
N
akan passava em revista suas tropas. A fama era de que seus
homens eram os mais bem treinados do reino. O governador
acreditava nessa fama e fazia questão de incentivá-la. Após ter presen-
TALAL HUSSEINI
211
ciado o ocorrido na reunião do Conselho de Guerra com o Rei, o General Nakan havia acirrado ainda mais os exercícios. Sua cidade era uma
das poucas fortificadas no Reino. Nakan determinara a restauração e o
reforço de todos os pontos falhos na muralha. Dessa forma, o acesso à
cidade ficava muito difícil, só sendo possível por dois grandes portões,
ao Norte e a Leste, este na direção da Capital. Os homens já se perguntavam se o País se preparava para alguma guerra. Nenhum oficial sabia
de nada nesse sentido. O General negava a hipótese, limitando-se a dizer que estar bem preparado para a guerra pode ser, muitas vezes, uma
garantia da paz.
A verdade é que Nakan estava inquieto. Também havia muita gente
que dizia que ele se preparava para um golpe de estado, para marchar
com suas forças rumo à Capital. Tal hipótese, no entanto, era absurda,
pois mesmo a força das doze cidades reunida não era bastante para superar o exército real e principalmente a unidade de elite da Guarda Real.
Mas Nakan de fato estava pensativo naqueles dias. Já se havia reunido com alguns dos governadores das outras cidades da Aliança. A unidade desta já não era a mesma de tempos passados. A ganância, a sede
de poder, o orgulho dos líderes locais, cada vez mais, levava cada um a
buscar seus próprios interesses, sem pensar na coalizão. Nakan sabia
que isso os enfraquecia, mas nada podia fazer, ao menos por enquanto.
O arauto anunciou o visitante: o Rei Escorpião. Ele governava a menor cidade da Aliança. Seu exército era menos numeroso do que os demais, mas essa limitação era compensada com um treinamento rigoroso
e soldados muito fortes e valorosos. Seu pequeno número não permitia
que sustentassem sozinhos uma longa campanha, mas ao engrossar outras fileiras podiam fazer a diferença. Em suma, todos os queriam como
aliados. O Rei sempre acompanhava seus soldados nas campanhas, deixando um substituto para gerir a cidade na sua ausência e na hipótese de
212
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
não retornar com vida. Nakan gostou da conversa. Podia contar com
aquele apoio incondicional.
Outras duas cidades lhe prestaram apoio integral, qualquer que fosse
a posição por ele adotada. Quatro governadores de outras cidades nem
sequer atenderam ao seu convite, o que deixava claras suas intenções de
romper a Aliança. Nakan não havia em momento algum dissimulado
seus sentimentos em relação ao governo central de Adaran. Suas atitudes no Conselho de Guerra e em relação ao Conselho dos Anciãos o
haviam deixado extremamente preocupado, a ponto de manifestar publicamente sua repulsa, não pelo Rei mas por suas condutas, o que dava
no mesmo. Os que não atenderam ao seu chamado queriam deixar clara
sua postura de total alinhamento com o governo da Capital.
As quatro outras cidades anunciaram que viriam conversar em bloco,
o que demonstrava que haviam tecido sua união antes de qualquer outra
coisa. Sua manifestação de apoio ou de repúdio, ou ainda de neutralidade, seria realizada também em bloco. Uma coisa preocupava Nakan: seu
líder.
Os governadores foram anunciados. Entraram lado a lado na sala, pretendendo demonstrar igualdade. Mas na conversa Nakan rapidamente
confirmou suas suspeitas: o Velho Leão os tinha em suas mãos, ou seriam garras. A certa altura da conversa, Nakan passou a se dirigir somente
ao líder, deixando os outros governadores em segundo plano:
– Egas, vamos ser francos e diretos nesta conversa. Por ora, a única
coisa que fica clara para mim é que vocês quatro se posicionarão em
conjunto – disparou Nakan.
– Creio que em um ponto concordamos, para mim também parece a
única coisa clara nesta sala – esbravejou o Leão, com sua voz tonitroante – você ainda não disse por que conversa com os governadores da Aliança, por que testa seus apoios. Quer realizar um levante contra o governo central?
TALAL HUSSEINI
213
– Egas, meu caro, a situação ainda não está definida. Não sei se podemos confiar no novo Rei. Não quero levantar-me contra ele, nem levar o País a uma guerra civil. Apenas quero resguardar os interesses das
cidades da Aliança. Apenas quero manter a autonomia que sempre tivemos, desde os tempos do Imperador Medhavin. Nossa região é rica,
pode fazer crescer os olhos de um Rei ganancioso – Nakan relatou-lhes
o que presenciara no Conselho de Guerra, depois continuou seu discurso: – evidentemente não quero guerra contra o Rei, mas gostaria de me
mostrar forte o suficiente para que ele também não queira guerra comigo. E isso só é possível com a Aliança sólida.
O Velho Leão coçou a barba, como sempre fazia quando estava pensando seriamente sobre alguma coisa. Disse pausadamente:
– Dois leões não reinam juntos...
– Entendo, Egas, mas podem lutar juntos para ter sobre o que reinar...
– Nós lhe deixaremos saber nossa posição no momento oportuno,
Nakan – declarou Egas já se levantando, no que o acompanharam os
demais governadores.
Nakan também se levantou, em sinal de educação e quando já estavam na porta de saída, lançou:
– Só espero que esse momento não seja no campo de batalha, Egas.
O Leão sorriu e deixou a sala.
Todos os soldados de Nakan estavam em alerta, bem como todos os
portões da cidade eram mantidos fechados. E exatamente nestas condições ela se apresentava quando surgiu diante da cidade um emissário do
Rei, acompanhado de uma força considerável, de aproximadamente mil
soldados. Um sentinela foi de imediato avisar ao governador, que dirigiu-se pessoalmente ao portão.
214
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
O emissário dava claros sinais de irritação quando o governador ordenou que se abrisse o portão. Permitiu que entrasse o emissário, acompanhado do capitão que comandava aquela divisão, mas lhes solicitou
que os soldados permanecessem do lado de fora, pois causariam tumulto
na cidade.
O emissário portava um escrito com o selo real, que deveria entregar
a Nakan dependendo da resposta que este desse a uma pergunta que
devia fazer:
– Senhor Governador Nakan, jura fidelidade e obediência ao novo
Rei? O senhor deve responder e beijar o selo real que aqui trago.
Nakan sabia que se respondesse a verdade, isto é, que não juraria absolutamente nada por Adaran, seria destituído do governo e provavelmente preso. Mas um guerreiro não pode deixar de dizer a verdade. Essa
era a sua formação. Todos à sua volta guardavam um silêncio ansioso,
esperando pela jura. Nakan por fim respondeu:
– Eu juro – o emissário respirou aliviado, mas seu alívio durou pouco
– fidelidade ao povo da minha cidade, juro obediência aos meus Mestres, e beijo o selo da Divindade. Juro defender a justiça, a beleza e a
bondade. O Rei Adaran não representa para mim nenhum desses valores. Portanto, não posso segui-lo.
O emissário, que sabia do conteúdo da carta, suava frio. Tinha que
entregá-la. Se o General Nakan resolvesse resistir, eles seriam rechaçados com facilidade. Provavelmente sua cabeça seria enviada à Capital
cravada numa lança. Nakan abriu lentamente o envelope: ele estava
destituído do posto de general do reino e também de governador da cidade. Seus bens estavam confiscados, e ele estava exilado. Tinha um dia
para juntar seus pertences pessoais e deixar a cidade. E uma semana
para deixar o País.
Nakan limitou-se a responder:
TALAL HUSSEINI
215
– Os senhores são meus convidados no palácio para esta noite. Mas
os soldados continuam do lado de fora das muralhas.
O emissário aceitou de pronto o convite, o capitão disse que preferia
ficar acampado do lado de fora com seus homens.
A notícia se espalhou rapidamente pela cidade. O burburinho era inevitável. A maior parte da população se revoltava contra o Rei e apostava
que Nakan não entregaria a cidade sem luta.
O governador parecia o menos preocupado. Passou a noite pensando
na medida mais certa a tomar. O Rei o surpreendera, fora rápido em
suas ações. É certo que ele não escondera uma certa animosidade contra
o Rei, mas quem lhe teria dito? Haggi? Outros informantes? Impossível
saber. O importante era resolver o momento. A Aurora ainda não anunciara seus róseos cabelos sobre a curva do horizonte quando um grupo
formado por todos os capitães do exército de Nakan lhe pediu audiência:
– Senhor, viemos prestar-lhe nossa solidariedade e dizer que estamos
ao seu lado, seja em que circunstâncias for.
Nakan sorriu:
– Agradeço-lhes, meus fiéis camaradas, mas o mais acertado a se fazer é aceitar as ordens do Rei. Eu me retiro e nossa cidade será poupada.
– Mas nós podemos exterminar os soldados do Rei.
– Esses sim. Mas e os outros que virão? O exército do Rei é mais forte do que todo o exército da Aliança. E já nem podemos dizer que há
uma Aliança. Se resistirmos seremos nós os exterminados.
– Então, vamos morrer combatendo, senhor.
– Nós, que temos o espírito guerreiro, nos sentiríamos felizes com tal
morte, mas a população sofreria, nossa cidade seria maltratada. Já decidi: podem comunicar aos homens que me retirarei da cidade amanhã ao
meio-dia.
216
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
Próximo do meio-dia, todos os soldados de Nakan se perfilaram no
pátio em frente ao portão, do lado de dentro, sob as ordens dos seus capitães, para saudar o general que se despedia. Levava consigo uma carroça carregada com mantimentos para a viagem e alguns gêneros úteis.
Ivis o acompanhava. Ele não conseguira demovê-la desse propósito.
Ninguém de toda a corte se propusera a acompanhá-lo, pois sabiam que
sua vida dali em diante seria difícil.
Do lado de fora, os soldados do Rei, que não sabiam da decisão do
governador, estavam tensos. Estavam preparados para entrar em combate, mas sabiam que seriam massacrados. Sua preocupação aumentou
quando começaram a escutar as formações de soldados e os gritos de
guerra do lado de dentro dos muros.
Nakan passou em revista seus soldados. Primeiro, percorreu toda a linha de frente a cavalo. Depois desmontou e foi conversando com os
homens como se cada um deles fosse seu filho. Ao escutar no meio da
tropa gritos sugerindo a batalha, imediatamente os dissuadiu, ordenando
que não reagissem contra os soldados do Rei e que acatassem as ordens
dos seus novos superiores que viriam.
Ele terminou sua peroração, montou em seu cavalo e já se preparava
para partir, quando escutou a frase dirigida a um dos capitães:
– Permissão para sair de forma, senhor, e acompanhar o meu general
– disse um soldado dando um passo à frente.
– Permissão concedida!
– Permissão para sair de forma, senhor – disse outro.
– Permissão concedida! – repetiu o capitão.
E assim vários soldados, quase metade do total o fizeram, formandose atrás de Nakan, preparados para segui-lo. Esses soldados já tinham
deixado preparados seus sacos de viagem. Além da infantaria, vários
cavaleiros fizeram o mesmo.
TALAL HUSSEINI
217
O emissário corria desesperado de um lado para o outro, tentando
conter a deserção:
– Parem! Todos vocês! Apenas Nakan foi exilado! Quem o acompanhar será considerado um fora da lei!
Ninguém lhe dava ouvidos.
Os portões se abriram. Os soldados do Rei fizeram menção de tentar
conter a saída dos soldados de Nakan, mas este se dirigiu ao comandante:
– Eu poderia ter resistido a essa ordem de usurpação do meu governo
e da minha cidade, mas não o fiz para evitar derramamento de sangue.
Não conclamei ninguém a me acompanhar, pelo contrário, tentei demovê-los dessa ideia. Mas eles me acompanham mesmo assim. Pretendemos sair em paz, mas se vocês tentarem nos impedir, não hesitaremos
em entrar em combate.
– Senhor, mas esses são soldados do Reino, e as armas e equipamentos que portam pertencem ao governo. Não posso permitir que os levem.
– Em primeiro lugar, esses não são soldados do reino, são homens livres! E, em segundo lugar, você precisaria muito mais do que esses mil
homens para pedir que deixemos as armas. Se você realmente as quer,
terá de vir pegá-las.
O capitão entendeu a mensagem, impressionado com a imponência de
Nakan, e ordenou a seus homens que não interferissem na saída. Depois
que Nakan estava longe, entraram na cidade para mantê-la sob controle
e noticiar à população algumas medidas do novo Rei.
Questionado por um dos oficiais sobre para onde pretendia rumar ao
deixar o País, Nakan respondeu com seu velho sorriso, de quem já sabia
perfeitamente para onde ir, com a segurança de quem não olhou para
trás, para ver diminuir as muralhas de sua amada cidade, nem uma vez
sequer. Dirigiu seus homens em direção à região das montanhas.
218
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
39.
O
Capitão só pensava em sua vingança contra Ofis, agora General Ofis, e contra Adaran, agora Sua Majestade Adaran. Seus
inimigos haviam crescido, mas isso não importava, o Capitão ainda tinha bem claras em sua memória as imagens finais de sua família, e isso
o alimentava em seu sonho revanchista.
Também não podia esquecer que, além de procurar Justiça, era um
homem procurado pela Justiça, sob a acusação de assassinato de sua
família. Mesmo assim, depois que se recuperara no lago, o Capitão conseguira fazer contato com alguns de seus homens, os de maior confiança, que acreditariam na sua estória. Alguns desses de fato acreditaram e
reuniram-se a ele, formando uma milícia que se ocultava nas montanhas. Não era um grupo grande, mas era bem preparado, na sua maioria
formado por ex-componentes da Guarda Real. O Capitão se tornara uma
espécie de guia daqueles jovens – praticamente todos os que o seguiram
eram aqueles que não tinham família e procuravam uma bandeira por
que lutar –, apesar de sempre fazer questão de deixar claras suas intenções de vingança.
No reino, não se propagavam entre o povo quaisquer notícias a respeito desse grupo, mas na corte sabia-se da sua existência e, apesar de
até aquele momento não terem realizado nenhuma ação contra o poder
constituído, essa existência devia terminar, antes de se tornar relevante.
Além do Capitão, os nomes de todos os que haviam deixado a Guarda
Real após a ascensão de Adaran ao trono faziam parte da lista de procurados. Nos povoados das montanhas, conhecia-se o grupo e nutria-se
por ele certa simpatia, já que essas populações se consideravam esquecidas pelo governo e tinham em seu sangue uma certa rebeldia contra
TALAL HUSSEINI
219
qualquer um que estivesse no poder. Agradava-lhes a ideia de alguém
que confrontasse as autoridades.
O grupo do Capitão preparava uma ação ousada: assassinar o Rei.
Misturar-se-iam à população, em disfarces, alguns membros do grupo
provocariam um tumulto ante a passagem do Rei, para desviar a atenção, enquanto pelo outro lado os arqueiros entrariam em ação. Ninguém
poderia ser capturado, todos carregavam uma pequena adaga que serviria para o suicídio em caso de captura.
A população aclamava a passagem do Rei, que vinha cercado por vários homens da Guarda Real. Quando o tumulto premeditado começou,
instintivamente a maioria dos Guardas colocou-se à frente do Rei voltada para o lado da algazarra. O lado oposto ficou menos protegido.
Nesse instante, o Capitão e mais quatro de seus homens, os melhores
arqueiros, atiraram simultaneamente. Uma das setas passou raspando
pelo ombro do Rei, mas as outras foram barradas pelo escudo de Ofis,
que, ao contrário dos demais, não havia se deslocado para o lado do
tumulto, como que pressentindo algum perigo. Alguns Guardas Reais
misturaram-se ao povo na tentativa de perseguição dos agressores. Não
obtiveram sucesso com os arqueiros, mas os dois causadores da distração foram presos. Foram incontinenti ligados ao ataque contra a pessoa
real. Um deles conseguiu sacar sua faca e auto-infligir-se um golpe fatal. O segundo tentou fazer o mesmo, mas foi impedido. Foi bastante
golpeado pelos Guardas e imediatamente arrastado à presença do General Ofis. A essa altura, Adaran já estava em segurança dentro do Palácio. Não se percebeu o discreto sorriso de escárnio no rosto de alguns
Guardas Reais ante a reação desesperada e quase histérica do Rei diante
do perigo.
O homem foi amarrado num palanque, sob os apupos da população
sedenta de sangue. Levou várias chibatadas, intercaladas com perguntas
220
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
sobre quem era o autor daquele atentado, as quais não respondia. Ofis
aproximou-se do ouvido do prisioneiro e sussurrou:
– Você já está morto... Resta saber se será de forma rápida ou lenta,
com muita dor ou com pouca dor. Diga quem o mandou e morrerá rapidamente. Particularmente, espero que você não fale logo...
Iniciou-se então uma tortura, que consistia em arrancar lentamente as
vísceras do prisioneiro, ainda vivo, com pequenos anzóis. Quando começava essa sessão, uma flecha precisa, disparada não se sabia de onde,
atingiu o cativo no olho esquerdo, privando-o instantaneamente da existência. Ofis não escondia seu desapontamento. Alguns Guardas tentaram em vão encontrar o atirador.
O General percebeu então na seta cravada no prisioneiro uma gravação: “assassinos”. Havia gravações idênticas nas flechas que atingiram o
escudo de Ofis. Não se sabia se aquele termo visava a denominar o grupo de atiradores ou suas pretensas vítimas, o que era mais provável. Em
todo caso, a partir daquele momento, o grupo do Capitão ficou conhecido em todo o reino como os “assassinos”.
O incidente, ainda que frustrado, tornou impossível para as autoridades esconder a existência de uma oposição hostil e agressiva contra o
reinado de Adaran. Ao passar de boca em boca, a história do atentado
era aumentada, a ponto de os “assassinos” se tornarem figuras quase
míticas, que inspiravam em muitos o temor e em muitos outros curiosidade e simpatia.
Escondidos novamente nas montanhas, os “assassinos” lamentavam o
fracasso de sua ação e a perda de dois homens, mas sentiam-se orgulhosos e excitados com a tentativa e com a repercussão que esta teria. Deveriam redobrar os cuidados com segurança, pois agora os esforços para
prendê-los seriam maiores. O Capitão falou aos homens sobre o ocorrido e pôde perceber nos seus olhos a confiança que lhe dedicavam. Fez
TALAL HUSSEINI
221
questão de ressaltar mais uma vez que sua missão terminaria com a
morte do General Ofis e do Rei.
40.
D
hara chegou à casa de Kadriel ainda irritada com o descaso
demonstrado pelo Rei pela situação da saúde. E também pelo
assédio do Monarca que parecia exceder à questão pública. Depois que
ela terminou de falar e desabafar sua inquietação, calmamente Kadriel
começou a lhe relatar tudo o que se vinha passando no reino desde a sua
conversa com Sokárin.
De alguma maneira, sabia que podia confiar em Dhara. Esta ficou em
silêncio durante vários segundos, assimilando todas aquelas informações. Quando ia dizer alguma coisa, Kadriel se antecipou:
– Dhara, em razão disso tudo, deixaremos a cidade amanhã. Se Adaran desconfiar das intenções do nosso grupo estaremos perdidos. Por
isso, a partida abrupta. Fora da Capital e do alcance do Rei, será possível traçar uma estratégia mais eficaz. Você já teve uma amostra do caráter do Rei, nós sabemos de outras situações que corroboram seu autoritarismo. Quanto mais tempo ele permanecer no poder, pior se tornará a
situação do povo – fez uma pausa e emendou: – você vem conosco?
– É difícil saber que posição tomar, assim, repentinamente. Até ontem minha vida estava tranquila, hoje não tenho mais trabalho, descubro
que o Rei é um tirano, e me encontro em meio a uma rebelião... Sinceramente, não sei o que fazer...
– Entendo sua hesitação. É difícil assimilar as voltas que a vida
nos dá. Mas você não está no meio de uma rebelião, e sim de um grupo
que legitimamente quer reclamar o trono, pois essa era a vontade de
222
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
Sokárin. Não se trata de buscar o poder a qualquer preço, pois eu nunca
quis estar nesta posição, mas sim de ter de assumir o destino que me foi
reservado. Por mais que o preço seja alto, e o caminho adiante seja duro,
não posso dar as costas a esse destino. E você também, Dhara, tem de
tomar uma posição, e infelizmente tem de ser agora. Se não lutarmos,
estaremos condenando o povo, já miserável, à definitiva miséria da desesperança. Agora é o momento. Se quiser vir conosco, esteja aqui antes
do final da tarde, para irmos até a casa de Ravi, de onde partiremos.
Vou esperar por você.
Dhara saiu, ainda atônita com as palavras de Kadriel. A noite seria
longa para ela. Teria muito em que pensar.
Perto do final da tarde do dia seguinte, Kadriel, já pronto para sair,
aguardava apenas a chegada de Dhara, quando alguém bateu na porta.
Kadriel não pôde conter sua felicidade, que foi tão grande quanto sua
decepção ao abrir a porta e se deparar com dois soldados da Guarda
Real:
– Senhor Kadriel?
– Sim – confirmou Kadriel, desconfiado – em que posso ajudá-los?
– O senhor deve nos acompanhar até o ministério. O senhor trabalha
lá, não é?
Kadriel até havia esquecido que trabalhava no ministério, ademais,
com a mudança de rei, não ficaram vacantes todos os cargos?
– Sim, trabalho... Mas neste momento não posso acompanhá-los, tenho um compromisso...
– Nossas ordens são para escoltá-lo até lá.
Nesse momento, Kadriel viu que Dhara chegava, já olhando com estranheza para os soldados. Ele lhe fez um sinal muito discreto para que
seguisse caminho e não parasse ali. Felizmente ela o entendeu e passou
direto por sua casa. Kadriel dirigiu-se então aos guardas:
TALAL HUSSEINI
223
– Bem, eu estava aguardando uma pessoa, que vai ficar preocupada
se não me encontrar aqui. Permitam ao menos que eu deixe uma mensagem.
Como os guardas concordaram com o seu pedido, dirigiu-se para dentro de sua casa para apanhar o material de escrita. Entrou no seu quarto,
agitado, olhando para todos os lados e pensando na melhor opção. Enfrentar os dois guardas sozinho seria suicídio. Só restava fugir. Mas e se
fosse um assunto banal? Não, nesse caso, não teriam enviado a Guarda
Real, bastaria uma convocação. Assim, apanhou parte de suas coisas e
saiu por uma janela nos fundos da casa. Quando os guardas estranharam
a demora e resolveram entrar para verificar o que tinha acontecido, ele
já estava próximo à casa de Ravi. Dhara já estava lá relatando o ocorrido a Ravi. Ficaram aliviados quando viram Kadriel chegando esbaforido. Dhara se antecipou:
– Kadriel, você está bem? O que os guardas queriam com você?
– Não sei, porque não fiquei lá para ver. Mas a minha fuga deve têlos colocado em alerta. Precisamos partir imediatamente!
Ravi concordou. Todos já estavam reunidos, podiam seguir viagem:
Ravi, Kadriel, Dhara, Bakar e Mirta. Também estavam presentes o Senador Rohel e sua esposa Inari, mas apenas para se despedir. Eles não
tinham mais idade para enfrentar uma viagem daquelas. O Senador continuaria lutando à sua maneira, enquanto o Senado existisse, já que suas
atribuições haviam sido drasticamente reduzidas.
A caravana partiu com duas carruagens puxadas por quatro cavalos
cada uma. Levavam mais dois cavalos, para revezar e outros dois em
que Bakar e Kadriel iam montados. Por decisão de Ravi, foram em direção à região das montanhas.
Retornando ao Palácio, os guardas que haviam ido à casa de Kadriel
reportaram-se diretamente ao General Ofis, e não ao ministro Doran,
224
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
como deram a entender no que disseram a Kadriel. Ao vê-los de mãos
vazias, o semblante de Ofis se transtornou:
– Onde está ele?!
– Bem, senhor... ele... nos enganou...
– Como os enganou? Ele nem sabia que se tratava de uma prisão.
Vocês não disseram que era um chamado do ministro?
– Sim, senhor, mas acho que ele desconfiou...
– Idiotas! Uma semana na limpeza das latrinas, que é só para isso que
vocês servem. Agora desapareçam da minha frente.
Ofis pensou consigo que teria de aguardar um comunicado de seu informante, e no momento oportuno os interceptaria. O Rei não estava
muito preocupado com Kadriel e seu bando, mas ele sabia que o rapaz
ainda lhes causaria problemas. Queria evitá-los enquanto isso ainda era
fácil. Mas talvez o Rei tivesse razão, e não houvesse com que se preocupar. Em outro momento pensaria nisso. A prioridade do momento era
o grupo dos assassinos.
Ao retornar à sua casa, o Senador Rohel se deparou com Guardas Reais, que o esperavam junto ao portão principal. O Senador foi em sua
direção e os interpelou sobre o que queriam.
– Precisamos que o senhor nos acompanhe, Senador.
– Posso saber aonde?
– Ao quartel da Guarda Real. O General Ofis deseja vê-lo.
– “General” Ofis! Hum. Como se aquele lacaio de Adaran tivesse feito alguma coisa que lhe pudesse valer essa patente... – os guardas fingiram não ouvir, muitos não discordariam dessa frase. Rohel dirigiu-se a
sua esposa: – Inari, fique em casa e não se preocupe, logo estarei de
volta.
– Mas, querido, para onde vão levá-lo?
TALAL HUSSEINI
225
– Ao quartel da Guarda Real. Caso eu não volte hoje contate... – e
cochichou um nome junto ao seu ouvido. Ela assentiu e entrou, enquanto o Senador acompanhou os soldados.
Chegando ao quartel, foi levado imediatamente à presença de Ofis:
– Vou ser bem direto, Senador. O senhor esteve com Kadriel?
– Posso saber a que título estou aqui? Estou preso?
– É claro que não, Senador. O senhor é nosso convidado, apenas para
esclarecer se esteve com um fugitivo da lei recentemente.
– Não estive com nenhum fugitivo da lei!
– De onde o senhor veio quando chegou à sua casa?
– Da casa de meu amigo Ravi.
– Que também é amigo de Kadriel...
– Sim, e de muitas outras pessoas... não há crime algum nisso. E
Kadriel, cometeu que crime para ser procurado pela justiça?
– Nós pensaremos em algum, Senador, nós pensaremos em algum... –
respondeu o General, ironicamente.
– Sim, é claro... bem ao seu feitio e do seu patrão.
– Se o senhor estiver se referindo a Sua Majestade posso mandar
prendê-lo por desacato à coroa.
– Rapaz, olhe bem para mim, você acha que eu tenho idade para temer esse tipo de ameaça? Ainda mais vinda de um lacaio desqualificado
como você? Pois me prenda! Como se precisasse de motivo para isso.
Ofis não se alterou com as ofensas, limitou-se a provocar:
– O senhor pode não se importar com nossas prisões, mas sua esposa
Inari...
O ancião arremeteu contra Ofis, mas foi detido pelos guardas:
– Não ouse ameaçar minha esposa, seu verme! Você não vale absolutamente nada! Vou estar na primeira fila no dia que terminar essa pantomima a que vocês chamam de reinado!
– Já basta! Saia daqui, velho! Antes que eu mande mesmo prendê-lo!
226
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
O Senador não esperou que ele repetisse a ordem e saiu rapidamente.
Os guardas nem piscavam. Ofis lhes disse:
– E vocês, idiotas, uma palavra sobre o que aconteceu aqui, e vão
passar o resto das suas vidas miseráveis limpando as cocheiras! Dispensados!
No caminho para as montanhas, Ravi aproveitou um momento de parada para descanso e, magistralmente, como num passe de mágica, desapareceu ante os olhos de Kadriel. Estupefato, este começou a se embrenhar na floresta com a esperança de encontrar o Mestre. Depois de
alguns minutos, avistou ao longe, sentado numa pedra frente ao rio, a
figura de Ravi contemplando a natureza com a pureza própria de uma
criança. Aproximou-se e, de um silêncio pleno, irrompeu a voz quase
metalizada de Ravi:
– Sente, cale a sua mente e observe.
Kadriel começou a admirar toda a paisagem, sem saber ao certo o que
deveria ver, se é que deveria ver alguma coisa. Tratou de pacificar as
emoções e pouco a pouco sentiu sua mente se aquietar.
Ravi ordenou que Kadriel levasse todos os sons para o seu coração,
como se escoassem por um funil e se envolvessem em uníssono no seu
centro solar.
Sentiu que por trás de todos os sons havia uma espécie de segundo
som, muito sutil, que após alguns eternos segundos, se traduziram num
silêncio indescritível.
– Da solidão do guerreiro nasce o silêncio, e do silêncio, qual véus
que se abrem aos mistérios, surge o poder. O poder é a ponte entre o Ser
e a existência. É o que abre as portas para a magia e para a vida. Por ser
uno com o Ser, é puro. Por isso, o poder nunca pode corromper. Os homens, por perderem o canal do poder, é que se corrompem. Para um
TALAL HUSSEINI
227
homem de poder, não existe o impossível, pois tem consciência de sua
unidade interior e de sua própria imortalidade.
Enquanto ouvia atentamente o Mestre, Kadriel sentia um misto de
muitas coisas. Sentia algo frio subir a coluna, ao mesmo tempo em que
algo quente descia. Sua mente por momentos vislumbrava o que significava o poder para aquele que reina e ao mesmo tempo via que o poder
era interior. Lutava para se concentrar e manter viva aquela experiência.
O guerreiro que canaliza o poder se torna representante desse atributo
divino na terra. A isso chamamos liderança. Um líder é um canal do
poder. Como numa espécie de “aura mágica”, faz com que todos que
estão ao seu redor voltem a sonhar e a ter esperanças. Faz que as pessoas se sintam seguras e protegidas, motivadas e valorizadas, sintam que
suas vidas podem tocar o incomum, se vejam capazes de romper as limitações e de rasgar a mediocridade. Um líder encontra as respostas
para todas as perguntas em sua própria alma, nada está para além dele,
sabe que a realidade do poder está dentro de seu círculo interno.
Um líder sempre toma a iniciativa e sabe que rumo seguir. Sempre utiliza o elemento surpresa e com carisma garante o êxito. O líder é como
o Sol: quando surge, o caos e as sombras abrem espaço para a sua passagem.
– Chegou o momento de você realmente aceitar seu destino Kadriel,
não tema o poder, pois quando nos encontramos com ele descobrimos
que sempre fomos o poder. Não tema liderar, pois não só as pessoas que
estão com você o necessitam, como você também necessita delas. Cada
um nasce para algo neste mundo. Só encontramos nossa identidade
quando efetivamente agimos em conformidade com o nosso destino. O
eixo do poder é o canal pelo qual Deus se manifesta. Quatro são as virtudes que o guerreiro deve desenvolver para abrir passo a esse poder: a
humildade entra como forma de energia espiritual e sai como admiração; entra a força, que se exterioriza como liderança. Esse quadrante de
228
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
virtudes conforma as quatro primeiras pétalas necessárias para o guerreiro trilhar a conquista da sua guerra interior. Só quem tem o poder de
vencer dentro poderá vencer fora.
Kadriel compreendia cada ensinamento como se fosse único. Sentia
um aperto forte na garganta, de alguma forma intuía que a decisão se
localizava fisicamente na garganta. Também intuía que o ser humano se
compromete com o universo no momento em que as palavras lhe saem
da garganta e se liberam pela boca.
– Serei digno de honrar o poder. Liderarei com todas as minhas forças e trarei paz e justiça para o nosso reino.
Ravi forjava o rapaz com muito amor. Sabia que na realidade não lhe
ensinava nada novo, só fazia-lhe lembrar aquilo que de alguma forma
sua alma já conhecia. O que precisava era formar seu caráter.
Voltaram em silêncio. A cada pulso do coração, Kadriel sentia o pulso da natureza em sua manifestação.
Quando chegaram ao vilarejo, Ravi aproveitou o momento de parada
para retomar com Kadriel o assunto daquilo que ocorrera no penhasco,
quando foram apanhar a placa. De como ele enfrentara quatro oponentes, livrando-se de todos eles, quase sem fazer esforço. Intuitivamente,
Kadriel havia utilizado uma técnica de Nei Kung – A Arte Guerreira da
Ação Inteligente –: a técnica dos quatro dragões. Ravi a explicou detalhadamente a Kadriel, que conseguia vislumbrar em tudo aquilo que
havia sentido no penhasco os aspectos que lhe eram objetivamente
transmitidos agora. Na ocasião ele não tinha essa consciência, mas agora conseguia fazer as relações. Ravi frisava:
– Lembre-se que o objetivo da técnica dos quatro dragões é buscar o
centro, esse lugar mágico onde se encontra o poder e se pode controlar e
dominar os quatro elementos... Cada dragão representa um obstáculo a
essa busca dura e complicada: o dragão mental é o desejo, o dragão
TALAL HUSSEINI
229
emocional é a ansiedade, o dragão vital é a agitação e o dragão éterofísico é a rigidez corporal...
Kadriel passou o resto do tempo no vilarejo ao pé da montanha pensando sobre tudo aquilo. Sobre os quatro dragões, sobre o poder e a liderança. Por um segundo, pensou em ser alguém comum, ter sossego,
uma vida simples, sem grandes preocupações. Mas seu destino era o de
um dirigente, de um guerreiro, que teria de fazer de tudo para que as
pessoas pudessem ter uma vida tranquila, boa e justa. Também viu que
não poderia ser feliz tendo uma vida comum. Para alguns neste mundo,
a felicidade está na proporção do sacrifício. Kadriel era um desses.
41.
P
or ser um grupo reduzido, conseguiram instalar-se no pequeno
vilarejo sem maiores problemas, pois Ravi conhecia seu líder,
Durkan. Este era um homem austero, como a vida rígida das montanhas
determinava. Era, como todos os homens da aldeia, um camponês, não
sendo afeito às questões da política, de governos ou de guerra. Ravi
conversou com ele em particular, recebendo todo o apoio de que necessitassem.
Entretanto, ao saber das intenções de Ravi de não permanecer muito
tempo ali, e sim rumar com seu grupo para regiões mais altas nas montanhas, alertou-os de que aquela era uma região de domínio dos “assassinos” e que seria perigoso ir mais adiante. Conforme se subia nas montanhas, os povoados que se encontravam eram menos hospitaleiros, pois
os víveres eram mais escassos. Não se confiava muito nas pessoas dos
vales, principalmente da Capital. Ravi pareceu reflexivo por um momento. Logo agradeceu a acolhida e foi ter com os seus. Chamou de
230
PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
lado Kadriel e Bakar, falando-lhes durante alguns minutos. Parecia darlhes instruções minuciosas sobre alguma coisa.
Os dois saíram em seguida em direção ao alto da montanha. Tinham
que encontrar o chefe dos “assassinos”. Ou melhor, segundo Ravi, bastava que se embrenhassem por aquelas paragens, que eles seriam encontrados. Não levavam consigo nenhuma arma, fato com o qual Bakar não
se conformava, como sua expressão deixava saber, apesar de nada ter
dito.
Caminharam cerca de duas horas. Até aquela altitude, a vegetação
ainda era cerrada. Os caminhantes tinham a sensação de que estavam
sendo observados o tempo todo. De repente, uma flecha veio cravar-se
no chão bem à frente de Kadriel, que imediatamente deteve o passo. Era
evidente que a intenção não fora atingi-lo, caso contrário estaria morto.
Ele gritou para as árvores:
– Quem está aí?
Nenhuma resposta. Uma rede foi lançada da copa das árvores, mas
apanhou apenas Kadriel, Bakar conseguiu esquivar-se, com uma agilidade inesperada para o seu corpanzil. Vários homens lançaram-se sobre
ele. Dois, que o agarram cada um dos braços, foram logo arremessados.
Outro agressor que, incauto, ficou parado na sua frente, contando que
seus braços estivessem imobilizados, levou um soco apontado ao nariz,
mas que atingia o rosto inteiro, dadas as dimensões da mão de Bakar.
Seu nariz desapareceu dentro do rosto, e a consciência o abandonou de
imediato. Restava um agarrado às suas costas. Bakar lançou-se de costas
contra um tronco, amassando o passageiro indesejado. Mas nesse momento outros homens surgiram, juntamente com os dois que haviam
sido arremessados no início. Um deles acertou uma paulada em Bakar,
que lhe atingiu as costas, não causando aparentemente nenhum efeito,
mas veio outra paulada na testa, que escureceu um pouco a visão do
gigante, apesar de não derrubá-lo. Quando a luz voltou-lhe aos olhos,
TALAL HUSSEINI
231
mais de meia dúzia de flechas estavam apontadas para ele, os arcos tensionados, prontos para disparar. De dentro da rede, Kadriel, lendo as
intenções de Bakar nos seus olhos gritou:
– Bakar! Não faça isso! Não reaja!
Ao ouvir a voz do amigo, Bakar cedeu, relaxou os braços ao lado do
corpo. Aquele que parecia ser o líder falou:
– Esse é um bom conselho – e dirigindo-se aos outros: – amarrem-no!
Os dois foram amarrados e encapuzados, para que não soubessem aonde estavam indo. Kadriel permaneceu em silêncio. Bakar tentou fazer
algumas perguntas no início – quem são vocês? Para onde estão nos
levando? –, mas não obteve qualquer resposta.
Depois de cerca de uma hora de caminhada, pararam e tiveram os capuzes retirados. Estavam numa espécie de acampamento, que ficava
numa clareira aberta propositalmente para esse fim. A vegetação ainda
era espessa no entorno, o que denotava que não deviam estar a grande
altitude. Kadriel pensou conhecer o líder do bando. Ele estava bastante
mudado, principalmente o olhar, que estava vazio, mas sim, era ele, o
Capitão da Guarda Real!
– O que vocês querem aqui?! Não sabem que estes são domínios dos
“assassinos”? Têm sorte de estar vivos!
– Se estamos vivos, é por que você quis assim. Por que não nos matou?
– Tive vontade quando meus homens me relataram o estrago que seu
amigo mastodonte fez, mas por outro lado fiquei pensando que quem
fosse louco o bastante para entrar nestas matas, desarmado, devia ter
alguma coisa interessante para dizer... E, ademais, se eu estiver enganado, ainda posso matá-los a qualquer momento. Portanto, eu ganho de
todas as maneiras – fez um pequeno trejeito com o canto da boca, que
devia representar o máximo de um sorriso para aquele homem, que
completou: – então, me enganei?
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– Não – respondeu Kadriel – creio que nós temos interesses em comum. Meu nome é Kadriel Vahan, e pretendo lutar contra Adaran.
– Sei quem você é. Por que pretende lutar contra o Rei?
– Porque a coroa é minha!
Todos os homens riram da frase, menos o Capitão. Kadriel não se intimidou e prosseguiu, seguindo à risca o que Ravi lhe dissera para fazer:
– Você sabe que Sokárin havia gravado outra placa de sucessão antes
de morrer, mas não teve tempo de colocá-la na estela, certo?
– Muitos dizem que essa placa não existe...
– Mas ela existe. Sokárin a escondeu. E nós a encontramos – ao dizer
isso, levou a mão dentro das roupas para pegar alguma coisa. Imediatamente várias lanças foram encostadas contra seu peito. Ele olhou para o
Capitão, que fez sinal a seus homens para se afastar. Kadriel retirou
então um embrulho e o entregou ao Capitão.
Ao abri-lo, este sentiu um calafrio. Procurou não demonstrá-lo e desdenhar do que estava diante dos seus olhos.
– Sim. Isto é uma pedra com seu nome gravado... O que isso prova?
– Essa é uma pedra dos mil reis. Você sabe disso. Quantas vezes
montou guarda diante da estela? Além disso, ela poderá, no momento
oportuno, passar pelo teste alquímico.
– Certo. Suponhamos que eu acredite que esta pedra é verdadeira, o
que você espera? Que eu me ajoelhe aos seus pés e lhe jure obediência?
Você é um rei sem coroa, sem trono, sem cidade e, pior, sem exército.
– Não espero que você me reconheça como seu rei, mas está claro
que temos um inimigo em comum e, como diz o ditado guerreiro, “o
inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Todos os itens que você mencionou, os terei, cada um a seu tempo...
O Capitão ficou pensativo, depois respondeu:
– Minha única motivação é a vingança! Não me interesso por reis,
príncipes, imperadores ou o que quer que seja.
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– Entendo isso. Mas podemos reunir esforços?
Ainda numa última hesitação, o Capitão perguntou:
– Eu tenho homens, que não são muitos, mas são na sua maioria exsoldados da Guarda Real, combatentes de elite. E você, o que tem?
– Além da legitimidade à coroa, tenho um Mestre! Ravi Medhavin
encabeça o nosso grupo. Sua sabedoria nos será muito valiosa.
O Capitão admirava muito o imperador Medhavin. A menção a alguém daquela linhagem o agradou. Ele estendeu a mão para Kadriel:
– Temos um pacto!
Kadriel e Bakar sorriram. O Capitão mandou dois homens à cidade
para escoltar o resto do grupo de Kadriel até o acampamento, pois seria
perigoso ficar na cidade. As forças do Rei poderiam aparecer.
Quando todos chegaram já era noite. Uma comemoração foi feita,
ainda que com a sobriedade e a austeridade de quem está em guerra e
não pode se dar ao luxo do desperdício. Mas todos se reuniram em torno
de uma fogueira e contaram estórias. Ravi encantou a todos com relatos
de suas viagens pelo mundo, alguns que nem mesmo Kadriel tinha ouvido. A alegria foi interrompida por um dos sentinelas, que viera da
parte mais baixa da montanha:
– O exército marcha para cá!
Depois de indagado com mais calma, após ter descansado um pouco
da carreira, disse que uma enorme formação de soldados se aproximava.
Era uma superioridade numérica muito grande. Seriam dizimados. A
agitação tomou conta do acampamento. Como descobriram aquele lugar. A culpa era de Kadriel, alguém os havia seguido... Quem interrompeu a confusão foi Ravi, com seu tom de voz tranquilo:
– Fui eu quem disse a eles que estaríamos aqui! – e continuou antes
que alguém tivesse tempo de fazer qualquer colocação – eu disse isso há
muitos anos.
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Ravi se divertia com os olhares de confusão de todos, inclusive de
Kadriel, que nada sabia a respeito do que acabara de proferir. Ravi dirigiu-se ao mensageiro:
– Como eram os estandartes que portavam? Tinham as cores do rei
Adaran?
– Havia três estandartes na linha de frente, ao que me pareceu, representando constelações. Havia a de gêmeos, a do caranguejo e a de peixes.
– Senhores, esses não são exércitos do Rei, são os nossos exércitos! –
anunciou – são exércitos da Aliança das Doze Cidades. A constelação
de gêmeos representa a cidade de meu amigo Nakan. As outras devem
ser seus aliados. Provavelmente, o Rei não os considerou confiáveis e
eles agora aqui estão.
– Mas são apenas três estandartes e a Aliança tem doze cidades. Onde
estão as outras? – perguntou alguém.
– As outras, meu amigo, quando for o momento você as encontrará
no campo de batalha...
Quando se encontraram, Ravi e Nakan se estreitaram num abraço fraterno, de velhos amigos. As apresentações foram feitas, Kadriel, Bakar,
o Capitão, e todos os outros. Nakan, apesar do seu bom humor, estava
preocupado com quais seriam os próximos passos daquele grupo. Ele
tinha metade dos seus homens, na cidade do escorpião todos haviam
acompanhado seu general, mas eram poucos no total, as outras duas
cidades também tinham vindo com menos de metade do seu contingente. Isso não seria suficiente nem para fazer cócegas nas forças do Rei,
ainda mais com o reforço das outras cidades da Aliança.
Ravi continuava tranquilo e disse que tudo teria seu tempo certo. O
momento não era agora, muitos preparativos ainda teriam de ser feitos
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antes de poderem confrontar Adaran, que por sinal não era seu pior inimigo. Ninguém entendeu muito bem o sentido daquelas últimas palavras que Ravi parecia ter dito mais para si mesmo, mas ninguém perguntou.
Ravi relatou aos governadores das cidades a história da sucessão, da
mesma forma que Kadriel a havia exposto ao Capitão, que agora a escutava novamente. Kadriel estava imóvel ao seu lado. Sua postura estava
diferente, parecia ter assumido seu destino. Os líderes no entanto ainda
não pareciam conformados em segui-lo como Rei.
Os dias se passaram e o clima não cooperava com a situação precária
de um acampamento. A chuva já durava mais de trinta dias. Se isso continuasse, as plantações das cidades montesinas estariam completamente
perdidas. Os prognósticos dos anciãos das cidades encarregados de fazer
a leitura do tempo não eram boas: em meio à tempestade, viria o vendaval, na forma de ciclones. De fato, no dia seguinte, logo que o dia raiou,
se é que se podia chamar assim, uma vez que ainda parecia noite, no
horizonte, unindo o céu cinza à terra escura, um paredão. Aproximavase rápido, trazendo seu cinza ainda mais escuro na direção das aldeias.
À sua frente, qual cavaleiros de escolta, quatro formações de vento, saindo do céu, no meio das nuvens, em redemoinho que ia fincar sua ponta no chão. Eles se contorciam num balé assustador, pareciam debochar
dos pobres humanos que os aguardavam atônitos.
Se alguém um dia tivesse uma visão do fim do mundo, certamente seria aquela. Perto do meio-dia, tudo escureceu, haviam chegado as legiões dos ventos, a artilharia dos raios que retumbavam seus tambores ao
fulminar árvores gigantes apenas para demonstrar seu poder, a água que
insistente amolecia as consciências... Era uma luta que os homens não
podiam vencer. Restava-lhes esperar.
Todos pensaram que Kadriel enlouquecera quando ele foi na direção
de que vinha o temporal, levantou os braços, com as palmas das mãos
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abertas, e começou a recitar palavras incompreensíveis. Alguns até sentiriam vontade de rir, não fosse a situação desesperadora.
Mas a estupefação foi geral quando tudo pareceu parar: a chuva, os
raios, e o vento, o próprio tempo... Fez-se o mais absoluto silêncio, nenhum pássaro cantava, nenhum animal da floresta emitia qualquer som,
ninguém falava, ninguém sequer respirava. Em meio ao céu cinzento,
abriu-se um círculo de claridade exatamente sobre a montanha, sobre o
lugar onde estavam, deixando entrar toda a luz e todo o calor do Sol do
meio-dia. Ouviu-se então um guincho, era um falcão que descia através
daquela espécie de portal que se abrira entre as nuvens. Ele vinha de
onde não havia tempestade, de onde o céu era claro e o Sol brilhava
pleno. Demorou mais de dois minutos na sua descida, pois voava em
forma circular, descrevendo uma espiral para baixo, até pousar sobre o
ombro de Kadriel.
Era um falcão diferente dos demais. Normalmente tinham a plumagem de cor marrom, aquele era amarelo. O efeito brilhante que as aves
têm nas suas penas o fazia parecer dourado ao Sol. O destino pousara
nos ombros de Kadriel. Sim, este seria seu nome: Destino.
O céu se abriu por completo, terminando de dissipar a tempestade.
Todos ficaram olhando fixamente para o homem e a ave. Bastou que
um o fizesse, para que todos em sequência o imitassem: um a um todos
ajoelhavam-se sobre o joelho direito, baixando a cabeça, em sinal de
reverência, em direção a Kadriel.
O poder que ele demonstrara não era dos homens comuns, era digno
dos reis. O presságio do falcão afastava qualquer dúvida que porventura
ainda persistisse.
Até mesmo o Capitão sentiu vontade de fazer reverência, mas resistiu
ao enorme peso que lhe pressionava os ombros, não, ele jamais seguiria
alguém novamente, sua vida poderia acabar quando cumprisse sua vingança.
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Kadriel fez sinal a todos para que se levantassem. Um brado espontâneo elevou-se da soldadesca para exultá-lo. Os generais se aproximaram, os demais também, todos queriam estar perto do Príncipe. Podia-se
sentir o seu magnetismo.
Agora tinham uma bandeira por que lutar.
Estava reunida a companhia de heróis.
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