- Sociedade Portuguesa de Transplantação
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N.º 4 | Ano 3 | Junho de 2015 | Semestral Revista oficial da Sociedade Portuguesa de Transplantação | Distribuição gratuita No caminho da autossuficiência em transplantação pulmonar Sujeito a uma «árdua curva de aprendizagem», desde a realização do primeiro transplante pulmonar, em 2001, o Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Centro Hospitalar de Lisboa Central/Hospital de Santa Marta, responsável pelo único Programa de Transplantação Pulmonar em Portugal, dispõe hoje de uma equipa multidisciplinar sólida e experiente, que já proporcionou a mais de uma centena de doentes a oportunidade de receber um pulmão «novo». Quase a alcançar o objetivo de tornar Portugal autossuficiente em matéria de transplantes pulmonares, a cultura de exigência e empenho constantes deste centro tem também a sua continuidade assegurada, graças à aposta na formação. PÁG.8 6 Emanuel Furtado é o único cirurgião que realiza transplantes hepáticos pediátricos em Portugal, mas está a formar uma equipa que, em breve, poderá substituí-lo 12 O IV Curso de Transplantação Renal da SPT decorre entre 18 e 20 de junho, no Porto, e vai apresentar novas perspetivas clínicas 18 Perfil de Ana Maria Calvão da Silva, diretora do Gabinete Coordenador de Colheita e Transplantação do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra publicidade Inverter a diminuição da transplantação como prioridade Sumário APONTAMENTOS 4 Destaques do American Transplant Congress 2015 - Artigo de autoria portuguesa vai ser publicado no jornal Transplantation Proceedings 5 Lisboa é a cidade anfitriã do 17.º Dia Europeu para a Doação de Órgãos e Transplantação - Centro Hospitalar do Porto/ /Hospital de Santo António realizou o primeiro transplante renal ABO incompatível em Portugal N os dias que correm, o tempo passa muito depressa. Tudo acontece num ritmo frenético e, sem nos darmos conta, perdemos demasiado tempo! Também na transplantação os anos em que tínhamos mais de 30 dadores por milhão de habitantes parecem já muito longínquos. Desde 2011, nunca mais se recuperou o ritmo de transplantação dos dois anos anteriores e a promessa de recuperação do primeiro semestre de 2014 gorou-se no segundo semestre, com taxas de doação de órgãos e, consequentemente, de transplantação a caírem de forma significativa. O enorme esforço organizativo e legislativo que se reconhece está aquém do necessário devido à gritante falta de meios e recursos alocados à colheita de órgãos e à transplantação. Muitas medidas decididas em 2013 pelo Governo, após o relatório do grupo de trabalho criado para esclarecer as causas da diminuição da transplantação, aguardam implementação. Outras, como a colheita em dadores em paragem cardiocirculatória, foram legisladas, mas tardam a surgir no terreno. Todos temos a nossa quota-parte de responsabilidade, mas o importante agora é que 2015 seja um ano de mudança. O país que acolherá o Dia Europeu para a Doação de Orgãos e Transplantação (a 10 de outubro) precisa de inverter a tendência de descida da atividade. É absolutamente fundamental um investimento concertado na coordenação da deteção de dadores e colheita de órgãos, uma aposta nas novas técnicas de preservação de órgãos, em eficazes tecnologias de informação e na otimização dos meios técnicos e recursos humanos alocados à transplantação. A Sociedade Portuguesa de Transplantação tem este ano de 2015 bem preenchido com o IV Curso de Transplantação Renal – que terá o programa mais ambicioso de sempre –, simpósios temáticos, as comemorações do 7.º Dia do Transplante, em Coimbra, e a participação nas principais reuniões internacionais, com destaque óbvio para o XIV Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação, em Gramado, no Brasil. Continuaremos a insistir na necessidade de promover a doação renal em vida. Vamos manter os olhos no futuro, com atenção especial ao que a doação de órgãos e a transplantação nos vão trazer de novo, procurando desenvolver mais atividade, obter melhores resultados e evolução científica. Fernando Macário Presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação VOZ ATIVA 6 Entrevista com o Dr. Emanuel Furtado, coordenador da Unidade de Transplantação Hepática Pediátrica e de Adultos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra IN VIVO 8 Reportagem sobre o Programa de Transplantação Pulmonar do Centro Hospitalar de Lisboa Central/Hospital de Santa Marta TransFORMAR 12 Highlights do IV Curso de Transplantação Renal 14 Balanço do Fórum Aberto da Sociedade Portuguesa de Transplantação 16 Principais números da transplantação renal em 2014 RETRATO 18 O percurso da Dr.ª Ana Maria Calvão da Silva, diretora do Gabinete Coordenador de Colheita e Transplantação do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra Órgãos Sociais da Sociedade Portuguesa de Transplantação (2013-2016) Direção Presidente: Fernando Macário (Coimbra) Vice-presidente: Susana Sampaio (Porto) Tesoureira: Cristina Jorge (Lisboa) Vogais: André Weigert (Lisboa), Jorge Silva (Porto), Pedro Nunes (Coimbra) e Rui Perdigoto (Lisboa) Assembleia-Geral Presidente: La Salete Martins (Porto) Vogais: Rui Filipe (Castelo Branco) e Manuela Almeida (Porto) Conselho Fiscal Presidente: Alice Santana (Lisboa) Vogais: Nuno Silva (Coimbra), Lídia Santos (Coimbra) e Domingos Machado (Lisboa) Ficha técnica Propriedade: apoios: Esta publicação está escrita segundo as regras do novo Acordo Ortográfico Sociedade Portuguesa de Transplantação Av. de Berna, 30, 3.ºF 1050 - 042 Lisboa Tel.: (+351) 217 819 565 Fax: (+351) 217 819 783 E-mail: [email protected] Website: www.spt.pt Secretariado: [email protected] Edição: Esfera das Ideias, Lda. Campo Grande, n.º 56, 8.º B 1700 - 093 Lisboa Tel.: (+351) 219 172 815 Fax: (+351) 218 155 107 EsferaDasIdeiasLda [email protected] www.esferadasideias.pt Direção: Madalena Barbosa ([email protected]) Marketing e Publicidade: Ricardo Pereira ([email protected]) Redação: Ana Rita Lúcio, Luís Garcia e Marisa Teixeira Fotografia: Rui Jorge Design: Susana Vale Depósito Legal: 365266/13 |3 pontamentos Highlights do American Transplant Congress 2015 DR O Prof. Fernando Nolasco, a Dr.ª Cristina Jorge e o Dr. Fernando Macário foram alguns dos portugueses presentes no ATC 2015 O último American Transplant Congress (ATC), considerado o encontro anual de excelência sobre transplantação, decorreu entre os dias 2 e 6 de maio passado, na cidade de Filadélfia, nos EUA. Entre os vários representantes de diversas unidades de transplantação portuguesas marcaram presença, por exemplo, o Prof. Fernando Nolasco, presidente da Sociedade Portuguesa de Nefrologia, e os Drs. Fernando Macário e Susana Sampaio, respetivamente presidente e vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT). As sessões científicas iniciavam-se às 7h00, com os Sunrise Symposia, e as salas estiveram sempre cheias. «As palestras sobre a caracterização do risco imunológico no pré-transplante para o sucesso do procedimento, nas quais se referiu a importância da deteção e da caracterização dos anticorpos pelos diversos testes disponíveis ou a intervenção sobre a infeção pelo vírus BK no transplante renal foram bastante interessantes», sublinha Susana Sampaio. «Caracterização dos epítopos HLA: estamos preparados para a sua importância?» foi o tema de uma sessão que a vice-presidente da SPT também destaca. «Neste caso, a mensagem principal é que poderemos aumentar o leque de doentes transplantados ao detetar e caracterizar os anticorpos e epítopos que poderão ver o seu risco diminuído pelo facto de se entender quais serão realmente os epítopos importantes para a reação imunológica.» Nas Joint Plenary Sessions, foram também discutidos tópicos de interesse, como a reconstituição imunológica em recetores de dador vivo de rim e as células hematopoéticas como uma via futura para se atingir a tolerância. Susana Sampaio refere que «já existem vários trabalhos nesta área com resultados promissores, o que poderá permitir, no futuro, o transplante sem terapêutica imunossupressora». A vice-presidente da SPT salienta ainda uma comunicação sobre a doação em vida. «Não se deve desincentivar a doação, mas sim proceder a uma avaliação criteriosa, tendo em consideração o risco cardiovascular e de doença renal crónica. Além disso, esta preleção sublinhou a necessidade de fazer um seguimento dos dadores por toda a sua vida», resume. save the date Artigo de autoria portuguesa no Transplantation Proceedings «N ew recipes with known ingredients: combined therapy of everolimus and low-dose tacrolimus in de novo renal allograft recipientes» é o título do trabalho da Dr.ª Tânia Santos, interna de Nefrologia no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), que foi aceite, no dia 8 de março deste ano, para publicação no jornal Transplantation Proceedings. «O artigo, que será publicado em breve, traduz a experiência da Unidade de Transplantação Renal do CHUC na imunossupressão com everolimus ab initio, numa altura em que cada vez mais se discute o benefício da minimização dos inibidores da calcineurina na função do enxerto renal a longo prazo», explica a autora. Este trabalho faz o estudo retrospetivo e comparativo entre dois grupos de doentes transplantados renais submetidos a dois protocolos de imunossupressão: everolimus mais tacrolimus em baixa dose versus antimetabolito mais tacrolimus em dose standard. Foram comparados os resultados nos primeiros três meses após o transplante com base nos seguintes parâmetros: função renal (creatinina sérica e taxa de filtração glomerular), proteinúria, incidência de rejeição aguda comprovada por biópsia, incidência de complicações cirúrgicas (ferida cirúrgica e linfocelos) e incidência de diabetes mellitus pós-transplante. Tânia Santos acrescenta que, «embora o estudo tenha as suas limitações, os resultados foram encorajadores, mostrando que, no grupo do everolimus, não se registou mais função tardia do enxerto, rejeições agudas, complicações cirúrgicas ou diabetes mellitus pós-transplante do que no grupo medicado com antimetabolito». À semelhança de outros estudos, este trabalho desmistifica alguns receios inerentes à utilização dos inibidores mTOR (alvo da rapamicina em mamíferos), atualmente usados em doses inferiores às do passado, e demonstra que existe algum receio por parte dos nefrologistas em reduzir os níveis do inibidor da calcineurina no esquema com everolimus. 4 | junho 2015 A cidade de Gramado, no Brasil, vai acolher, entre 24 e 27 de outubro, o XIV Congresso Luso-Brasileiro de Transplantes/XII Encontro de Enfermagem de Transplantes/V Encontro Multidisciplinar em Transplantes/Fórum de Histocompatibilidade da ABH (Associação Brasileira de Histocompatibilidade). A organização prevê a participação de cerca de 1 500 congressistas e estão já três palestrantes internacionais confirmados: o Prof. Jeremy Chapman, o Prof. Alejandro Soto-Gutiérrez e o Prof. John Friedewald. C om o mote «Do coração da Europa ao mundo da transplantação», o 17.º Congresso da European Society for Organ Transplantation (ESOT) vai discutir variados temas, desde as controvérsias quanto à doação e transplantação, a questões relacionadas com aspetos éticos e legais numa perspetiva europeia. Lisboa recebe Dia Europeu para a Doação de Órgãos e Transplantação DR fe ? How to give li n, o i t a n o d n a g Or ut it! Let's talk abo , With the EDQM pe Council of Euro E ion for Organ Donat European Day tation (EODD) and Transplan ste ano, a 17.ª edição do Dia Europeu para a Doação de Órgãos e Transplantação será assinalada no dia 10 de outubro, sendo Lisboa a cidade anfitriã das comemorações oficiais, organizadas pelo Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), em colaboração com a Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT). Subordinado ao tema «A Arte da Transplantação», segundo a Dr.ª Ana França, coordenadora nacional de transplantação no IPST, o programa deste ano «procura E não só informar, esclarecer e mobilizar a população portuguesa e europeia para as questões relacionadas com a doação e a transplantação», como também «divulgar ao resto da Europa a riqueza cultural e artística portuguesa». Adicionalmente, pretende-se «abarcar o conceito da arte na interseção da doação e da transplantação, como forma de salvar e mudar vidas». 11 pessoas morrem, por dia, na União Europeia, à espera de um transplante (dado de 2014) Com o intuito de sensibilizar a população em geral, este ano, o Dia Europeu para a Doação de Órgãos e Transplantação será assinalado com uma sessão solene agendada para a manhã de dia 10 de outubro, seguida de outras iniciativas a desenvolver junto da população. A tarde do mesmo dia contemplará uma sessão científica promovida pela SPT e pelo IPST. À semelhança de edições anteriores, as comemorações oficiais serão precedidas, nos dias 8 e 9 de outubro, pela reunião dos representantes do Conselho da Europa nesta área. CHUC comemora 35 anos de transplantação renal N o ano em que alcançou a meta dos 2 700 transplantes renais realizados, o Serviço de Urologia e Transplantação Renal do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) assinalou os 35 anos de atividade na transplantação renal com uma sessão comemorativa, no dia 3 do corrente mês de junho. A cerimónia, que decorreu no auditório principal do CHUC, contou com a participação do ministro da Saúde, Dr. Paulo Macedo. Na sessão, o Dr. Fernando Macário, presidente da SPT e nefrologista no CHUC, apresentou os resultados da transplantação renal neste centro, ao passo que o Prof. José Medina Pestana, coordenador da Área de Transplante de Órgãos do Hospital São Paulo, no Brasil, falou sobre o futuro da transplantação. O Prof. Alfredo Mota, diretor do Serviço de Urologia e Transplantação Renal do CHUC, apresentou também algumas reflexões sobre esta atividade. No átrio do CHUC está também patente, desde 19 de maio, uma exposição relativa a esta efeméride. Este é o centro onde se fazem mais transplantes renais em Portugal, tendo sido realizados 119 em 2014. Hospital de Santo António realizou transplante inédito em Portugal m novembro último, a Unidade de Transplantação Renal do Centro Hospitalar do Porto/Hospital de Santo António (CHP/HSA) foi responsável pelo primeiro transplante renal ABO incompatível realizado em Portugal. Este procedimento pioneiro no nosso País permitiu que uma doente do grupo sanguíneo O, em falência renal devido a doença renal poliquística, recebesse um rim de uma dadora, sua irmã, do grupo sanguíneo B. Graças à técnica de plasmaférese, foi possível proceder à dessensibilização, retirando os anticorpos (isoaglutininas) anti-B que levariam à rejeição do rim transplantado. Paralelamente, a administração do fármaco rituximab visou impedir a produção de novos anticorpos. «Este processo inicia-se antes do transplante e é preciso mantê-lo até 15 a 20 dias depois, sendo que por vezes são necessárias plasmaféreses adicionais, dependendo do título de isoaglutininas, para garantir que há tolerância imunológica», explica o Dr. Leonídio Dias, nefrologista na Unidade de Transplantação Renal do CHP/HSA. «No nosso programa, o transplante ocorre quando o título de isoaglutininas é inferior ou igual a 1 para 8. Se na primeira semana após a cirurgia conseguirmos manter o título nesse patamar e, na semana seguinte, conseguirmos que ele seja inferior ou igual a 1 para 16, a probabilidade de rejeição é diminuta e as taxas de sobrevivência a longo prazo do órgão são muito semelhantes às do transplante renal ABO compatível», acrescenta este especialista. O transplante renal ABO incompatível é, na maioria dos programas, indicado em situações em que os títulos de isoaglutininas sejam, à partida, «iguais ou inferiores a 1 para 256», realça Leonídio Dias. «Com valores superiores a esse, o número de sessões de plasmaférese necessárias para retirar os anticorpos é tão elevado, que pode pôr o doente em risco.» Neste caso, «a doente tinha quatro potenciais dadores: uma irmã do grupo sanguíneo B e dois irmãos e o seu marido do grupo sanguíneo A». «Optou-se pela primeira potencial dadora, com quem a recetora tinha um título de isoaglutininas mais favorável: 1 para 128». Seis meses após a intervenção, esta é considerada «um sucesso» pela equipa que a levou a cabo. Leonídio Dias espera que esta opção cirúrgica contribua para «resolver o problema de 20 a 25% das pessoas que querem doar o seu rim a entes queridos e são impedidos de o fazer devido à incompatibilidade ABO». Este nefrologista adianta que a Unidade de Transplantação Renal do CHP/HSA tem agora em estudo um segundo candidato a transplante renal ABO incompatível. |5 oz ativa «Temos uma equipa que está a tornar-se independente da minha presença» Coordenador da Unidade de Transplantação Hepática Pediátrica e de Adultos (UTHPA) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) e, até à data, único cirurgião a assegurar a realização de transplantes hepáticos pediátricos em Portugal, o Dr. Emanuel Furtado garante contar hoje com uma equipa de futuro, que está a dar continuidade ao trabalho desenvolvido pelo centro que lidera. Em entrevista, defende ainda que, dada a reduzida casuística de 10 a 12 transplantes hepáticos pediátricos por ano, no nosso País, os profissionais de cirurgia devem ser comuns à transplantação de adultos. Ana Rita Lúcio Em 2014, comemoraram-se duas décadas de transplantação hepática pediátrica em Portugal e, em 2012, o mesmo já se tinha assinalado em relação à transplantação hepática em adultos. Além destes mais de 20 anos de transplantes de fígado, que outros números contam a história da UTHPA do CHUC? Em primeiro lugar, deixe-me dizer-lhe que me congratulo pelo facto de já poder fornecer números seguros [ver caixa «Calculadora»], visto termos conseguido ultrapassar algumas inconsistências de registo verificadas no passado. Um dos trabalhos que encetámos, logo após ter voltado a assumir a coordenação desta Unidade [em 2012], foi precisamente o de retificar os dados mais antigos e retomar a contabilização, o que não foi fácil, porque não existe em Portugal um registo oficial de transplantes hepáticos, ao contrário do que acontece, por exemplo, com a transplantação renal. Porque é importante que exista um registo oficial da transplantação hepática em Portugal? Hoje em dia, o registo dos dados é fundamental na Medicina, como noutras áreas. Não é possível ter uma noção exata daquilo que está a ser feito, se não houver um registo fiável, que deve 6 | junho 2015 ser auditado regularmente, para aferir a sua veracidade e precisão. E julgo que as autoridades competentes já estarão sensibilizadas para isso. Creio mesmo que o Instituto Português do Sangue e da Transplantação está a investir na construção de uma base de dados de registo que permita acompanhar a evolução da atividade no futuro. Voltando aos números, do total de 1 125 transplantes hepáticos realizados pela unidade que lidera, entre 1992 e 2014, houve apenas 24 transplantes de dador vivo. A doação em vida é uma vertente que falta incrementar? Esses 24 transplantes ocorreram até 2009. Desde então, temos estudado vários dadores vivos, no âmbito da transplantação pediátrica, mas não chegámos a realizar qualquer transplante, por força dos critérios de alocação de fígados de dador cadáver, que são extremamente favoráveis para as crianças. O que tem acontecido é que esses casos nos quais temos estudado o recurso a dador vivo não chegam a ser concretizados, porque, entretanto, aparece um órgão de cadáver que é adequado. Não obstante, temos sempre em mente reiniciar essa vertente da nossa atividade, não só no que toca às crianças, mas também aos adultos. A taxa de sobrevida a 20 anos, no caso das crianças com transplante de fígado, é de 84%, descendo para 62% quando comparada à sobrevida dos adultos. Que leitura faz destes resultados? A taxa de sobrevida geral, hoje, é muito melhor do que era há 20 anos. É claro que há um desfasamento entre os resultados alcançados na transplantação de adultos e na transplantação pediátrica. E percebe-se que assim seja: desde logo, porque as populações de doentes são muito distintas, mas, sobretudo, porque as curvas de sobrevida nos adultos são penalizadas pela significativa prevalência de indicações de doença maligna, como tumores primitivos do fígado. Além disso, também interferem com a sobrevida a infeção pelo vírus da hepatite C ou outras doenças que podem eventualmente recidivar e traduzir-se em maior perda de vidas, a longo prazo. O que explica a melhoria da taxa de sobrevida geral nos últimos anos? A prestação geral das equipas – e falo no plural, porque isto se passou um pouco por todo o mundo. A transplantação hepática melhorou muito nos últimos 20 anos, não só por se ter aperfeiçoado a competência de todos os profissionais envolvidos, mas também por se terem aprimorado outros aspetos, como os cuidados intensivos pós-transplante, por terem surgido novas soluções terapêuticas que ajudaram a controlar a rejeição do órgão e por ter havido uma melhoria global do conhecimento disponível. Curiosamente, há uns anos, havia maior qualidade nos órgãos transplantados, por serem oriundos de dadores mais jovens e com menos doenças. Nesse aspeto, a doação piorou, mas essa é uma consequência dos avanços da sociedade: há menos jovens a morrer em acidentes de automóvel, por exemplo. Hoje, os dadores são tendencialmente mais velhos e com mais comorbilidades associadas, o que faz com que a qualidade dos órgãos piore. CALCULADORA* 1 125 transplantes hepáticos, dos quais 910 em adultos e 215 em crianças 24 transplantes de dador vivo, 1 dos quais em adulto e 23 em crianças 36% das crianças transplantadas tinham menos de 2 anos 74% de taxa de sobrevida do enxerto a 20 anos 84% de taxa de sobrevida do doente a 20 anos (nas crianças) 62% de taxa de sobrevida do doente a 20 anos (nos adultos) 76% de taxa de sobrevida do doente a 10 anos (nos adultos) 88% de taxa de sobrevida do doente ao ano (nos adultos) *Dados da atividade da Unidade de Transplantação Hepática Pediátrica e de Adultos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, entre 1992 e 2014 A caracterização dos recetores também mudou? Nas crianças é muito semelhante. Nos adultos aumentou sobretudo a incidência de carcinoma hepatocelular e de infeção por vírus da hepatite C. Em Portugal, há ainda outra mudança a assinalar a este nível. Tínhamos uma experiência de transplantação com um viés relativamente a outros centros estrangeiros, que se prendia com a elevada quantidade de doentes com polineuropatia amiloidótica familiar transplantados, um cenário que se alterou radicalmente nos últimos anos, por força do aparecimento de outras opções terapêuticas eficazes. Às crianças o que é das crianças É uma das «vitórias» alcançadas pela equipa liderada por Emanuel Furtado. Desde 2012 que os transplantes hepáticos pediátricos passaram a ser realizados nas instalações do Hospital Pediátrico de Coimbra (HPC), também ele integrado no CHUC. «As crianças só têm de vir ao hospital dos adultos quando são necessários procedimentos de âmbito imagiológico. À exceção disso, mantêm-se no ambiente pediátrico do princípio ao fim e é a nossa equipa que se desloca ao HPC para levar a cabo as cirurgias», explica o coordenador da UTHPA. Está ligado à transplantação hepática pediátrica desde o seu início em Portugal e é o único cirurgião a realizar este procedimento a nível nacional. Esta área continua muito dependente de si, como se viu no período de nove meses em que esteve afastado do CHUC, ou já há outros cirurgiões capazes de dar continuidade ao seu trabalho? Além do contributo indispensável da Dr.ª Isabel Gonçalves, responsável pela área de Pediatria, que foi constante ao longo dos anos, orgulho-me de contarmos agora com o envolvimento permanente de duas jovens cirurgiãs do Hospital Pediátrico de Coimbra, que estão a fazer o seu percurso e têm já uma competência cirúrgica muito avançada. Adicionalmente, permita-me salientar o facto de estarmos a pôr em prática uma filosofia pela qual sempre pugnámos – e que, aliás, foi uma das condições por mim colocadas quando aceitei retomar a coordenação desta Unidade: o grupo de profissionais dedicados à componente cirúrgica tem de ser transversal à transplantação hepática pediátrica e de adultos. Num país pequeno como o nosso, com a baixa taxa de natalidade que nos caracteriza, que nunca necessitará de mais do que 10 a 12 transplantes hepáticos pediátricos por ano, não é possível, numa área tão complexa e que exige uma competência técnica apurada em diferentes vertentes, ganhar essa competência e mantê-la com uma casuística tão reduzida. Por isso é que defendo que as vertentes de transplante hepático pediátrico e de adultos têm de estar integradas, embora elas não sejam completamente sobreponíveis. Há uma série de questões técnicas específicas da Pediatria, mas a transplantação de adultos ajuda a manter a competência nessa área. Está finalmente a conseguir construir a equipa de futuro que sempre quis? Estou. E não poderia estar mais satisfeito com o que temos alcançado. Neste momento, temos uma equipa em crescimento, que está a tornar-se adulta e independente da minha presença. Isto é fundamental não só para nós, mas para todo o País, dado que, no que concerne à transplantação hepática pediátrica, o nosso centro tem uma responsabilidade nacional. Um centro único é sempre um risco, porque, se falha, como falhou naqueles nove meses, entre 2011 e 2012, em que estive afastado do CHUC, há um prejuízo para todo o país. Mas esse problema não é de resolução fácil. Se dispersarmos uma atividade com 10 ou 12 casos por ano em vários centros, vamos ter, por outras razões, as mesmas dificuldades de formação, porque os profissionais não terão como adquirir a prática necessária. Esse é o aspeto mais limitativo da possibilidade de haver mais do que um centro de transplantação hepática pediátrica – algo que entendo que não deve existir, mas é uma discussão que admito que se faça. |7 vivo Equipa 100% empenhada em dar «novo fôlego» aos doentes A objetiva da TransMissão captou a realização de um transplante pulmonar no dia 9 de abril. Este doente, com fibrose pulmonar, teve de esperar algum tempo por um pulmão compatível, que neste dia recebeu com êxito total O Programa de Transplantação Pulmonar do Hospital de Santa Marta (HSM), pertencente ao Centro Hospitalar de Lisboa Central, é o único do País. A equipa da TransMissão foi conhecer os bastidores do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica, onde tudo acontece. Com uma elevada dose de esforço e dedicação dos profissionais que aqui trabalham, desde 2001 até à atualidade, 112 pessoas puderam receber um pulmão «novo». Marisa Teixeira S ubimos ao 3.º andar do Edifício do Coração, no Hospital de Santa Marta, onde o Prof. José Fragata, diretor do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica, nos esperava. Minutos mais tarde, teve de interromper a entrevista com a equipa da TransMissão, pois foi chamado com urgência a uma das salas de isolamento, no piso abaixo, onde estava um doente transplantado pulmonar. No local, vários médicos e enfermeiros ocupavam o corredor, observando os colegas que tentavam salvar aquela vida. Mais tarde, a enfermeira Alda Catela, pôs-nos a par da situação: «É uma das complicações que podem surgir em qualquer cirurgia torácica – um tamponamento cardíaco, ou seja, a acumulação de sangue estava a impedir o coração de fazer a sua função.» Naquele 2.º piso, há três salas destinadas aos doentes transplantados pulmonares, mesmo ao lado da Unidade de Cuidados Intensivos de Cirurgia Cardiotorácica de Adultos e em frente à ala dedicada aos doentes em idade pediátrica. Enquanto nos mostrava os «cantos da casa», Alda Catela explicou-nos que «os transplantados pulmonares tomam fármacos imunossupressores em maior quantidade e que o pulmão é um órgão mais sensível, motivos que levam à existência de uma maior barreira de proteção, incluindo, por exemplo, a necessidade de salas de isolamento com pressão positiva». Ao fundo do corredor do 3.º piso do Edifício do Coração, visitámos os dois quartos da enfermaria destinados aos doentes transplanta8 | junho 2015 dos e, a meio desse percurso, o bloco operatório. Local, aliás, onde o repórter fotográfico da TransMissão regressou, no dia seguinte, para captar imagens de um transplante pulmonar. Um «momento de sorte» para a nossa objetiva, visto que se realizam cerca de 20 transplantes de pulmão por ano. Já com o doente estabilizado, José Fragata, também responsável pelo Programa de Transplantação do HSM, clamou: «Ficaram a perceber como é o nosso dia a dia? Imprevisível e assoberbado.» O vaivém de pessoas com que nos deparámos à chegada, de facto, fazia adivinhar que calmo não seria, certamente, o adjetivo que melhor descreve o Serviço de Cirurgia Cardiotorácica. Todavia, os contratempos não são assim tão comuns e, quando acontecem, são rapidamente resolvidos, o que se traduz nos bons resultados. Embora Portugal esteja próximo de se tornar autossuficiente em transplantes pulmonares, nem sempre foi assim. Em 1991, o Dr. Rui Bento realizou o primeiro transplante cardiopulmonar em Portugal, exatamente aqui, no Hospital de Santa Marta. «Contudo, só em 2001 se realizou o primeiro transplante pulmonar, pelas mãos do Dr. Henrique Vaz Velho», recordou José Fragata, sublinhando que, «até 2007 [ano em que entrou para a equipa], apenas decorriam, em média, dois transplantes por ano e, nessa data, o Programa de Transplantação Pulmonar foi redesenhado, criando-se uma nova atitude». O diretor salientou ainda que todas as ações pioneiras precisam de uma fase de maturação, o que acabou por se verificar, muito com a ajuda de uma parceria estabelecida com o Hospital Puerta d’Hierro, em Madrid, essencial para o aprofundamento de conhecimentos e técnicas. A transplantação pulmonar em Portugal esteve sujeita a uma árdua curva de aprendizagem, mas alcançou o almejado sucesso, para o qual, na opinião de José Fragata, foram fundamentais diversos ingredientes-chave, como «a determinação, a força de vontade, a interajuda e o empenho», até porque, no início, «existiu algum descrédito interno e externo». Coesão interdisciplinar «Nesta atividade tem de existir um verdadeiro espírito de equipa entre cirurgiões torácicos e cardíacos, pneumologistas, anestesiologistas, enfermeiros, microbiologistas, psicólogos, assistentes sociais, entre muitos outros profissionais, o que, felizmente, aqui acontece», frisou José Fragata. Esta opinião é partilhada pela responsável de Pneumologia, a Dr.ª Luísa Semedo, que acompanha o Programa de Transplantação Pulmonar desde o início, ocupando o atual cargo desde 2008. «A grande coesão que existe entre todos é um dos pontos fortes deste Programa», reforçou. O percurso de um doente potencial para transplante começa no Serviço de Pneumologia, onde é referenciado tendo em conta as guidelines internacionais. Posteriormente, decorre uma reunião interdisciplinar para debater o caso, pelo que a decisão de transplantar é sempre tomada em conjunto. Luísa Semedo advertiu para a importância de ponderar vários fatores, chamando a atenção para «os dois pratos da balança». Por um lado, «todos os doentes estão em pé de igualdade, independentemente do sexo, da raça ou da religião»; por outro lado, «tem de se dar primazia à eficácia». «Se as possibilidades de sucesso num doente são menores, deveremos optar por outro que tenha mais possibilidades de recuperar, porque os órgãos são um bem escasso.» Quanto à decisão de se fazer um transplante uni ou bipulmonar, também há critérios a seguir. Se se tratar de uma doença infeciosa que atinge os dois pulmões, por exemplo, não é lógico retirar apenas um, pois o «novo» pulmão correrá o risco de ser também infetado. Aumentar a colheita de pulmões de qualidade De acordo com o Dr. Ivan Bravio, responsável pela cirurgia torácica no Programa de Transplantação Pulmonar do Hospital de Santa Marta (HSM), «muitos médicos ainda não sabem que se faz este procedimento em Portugal, que é mais conhecido apenas entre os que trabalham nos centros hospitalares que referenciam os doentes». Este contexto leva à necessidade de alertar para «a correta otimização dos potenciais dadores, com o intuito de proteger os pulmões», especialmente as Unidades de Cuidados Intensivos (UCI) de todo o País. «É essencial fazer formações nas UCI para aumentar o número de pulmões de qualidade disponíveis para transplante», defende Ivan Bravio. São várias as guidelines que devem ser seguidas para não comprometer a qualidade dos pulmões. «Os órgãos provenientes de dadores que sofreram um AVC, por exemplo, necessitam de grande hidratação com soros. Ora, estes pulmões podem ficar edemaciados, de tal modo que não cheguem a ser utilizados, ou, se o forem, poderão comprometer a recuperação do doente em quem são implantados. O ideal seria levar a cabo alguns procedimentos, como a maior restrição de líquidos», explica Ivan Bravio. Com o objetivo de aumentar a colheita de órgãos com qualidade, o Programa de Transplantação Pulmonar do HSM está a desenvolver um plano de formações, que conta implementar junto das UCI de todo o País ainda este ano, de modo a ajudar a otimizar os dadores de pulmão, sensibilizando para a delicadeza deste órgão. Quando surge um dador, a compatibilidade com os potenciais recetores é estudada para averiguar a viabilidade do transplante. «A dádiva do pulmão é muito exigente, pois trata-se de um órgão extremamente melindroso e só cerca de 20% dos que são doados se conseguem aproveitar», evidenciou José Fragata. De referir que os dadores em morte cerebral são a grande maioria, especialmente vítimas de acidente vascular cerebral (AVC). Já os receto- EQUIPA INTERDISCIPLINAR (da esquerda para a direita): Atrás: Jesus Falcão, Alda Catela e Ana Mendes (enfermeiras), Dr. Nuno Banazol (cirurgião cardíaco), Enf.ª Helena Lima, Dr.ª Luísa Semedo (pneumologista), Dr. Ivan Bravio (coordenador da cirurgia torácica), Prof. José Fragata (diretor do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica), Dr.ª Isabel Fragata (diretora do Serviço de Anestesiologia), Dr. João Eurico Reis (cirurgião torácico), Clara Vital (enfermeira-chefe), Enf.ª Suzette Vilares, Dr.ª Ana Rita Costa (cirurgiã torácica), Dr. Pedro Baptista (cirurgião torácico), Dr.ª Salomé Cruz (anestesiologista), Enf.ª Ana Barros e Enf.º Ricardo Freitas. À frente: Vanda Ferreira (assistente operacional), Joana Gonçalves e Susana Faustino (enfermeiras), Conceição Grunho, Paula Canita, Arminda Basílio, Ana Costa e Alice Alves (assistentes operacionais), Enf.ª Dina Ferreira e Estela Borges (assistente operacional) |9 vivo res apresentam, principalmente, doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), quando estão acima dos 40 anos, ou fibrose quística, quando são pessoas mais novas. A fibrose pulmonar e a doença do interstício também são fortes motivos para a necessidade de transplante pulmonar. Finalmente, quando se opta pela transplantação, uma equipa constituída, geralmente, por dois cirurgiões e um enfermeiro desloca-se à unidade hospitalar onde se encontra o dador para fazer a colheita do pulmão e, a partir daí, começa uma verdadeira corrida contra o tempo. José Fragata sublinha: «Tudo tem de ser devidamente coordenado para minimizar o tempo de isquemia. Em simultâneo, outra equipa já avançou no bloco operatório, retirando o órgão doente, uma fase do processo bastante complexa e, por vezes, cansativa.» Aposta na formação O Dr. Ivan Bravio, que assumiu o cargo de responsável pela cirurgia torácica no início deste ano, destaca a experiência adquirida desde 2001 e as diferenças desde então. «Neste momento, estamos com a técnica e um ritmo perfeitamente adaptados, já faz parte da rotina.» Antigamente, os transplantes eram apenas levados a cabo pelos seniores, devido à complexidade da tarefa; agora, os internos têm mais «espaço de manobra», tanto que, nos últimos transplantes pulmonares, Ivan Bravio tem contado apenas a colaboração de internos. No pós-transplante pulmonar, os doentes passam pela sala de isolamento para evitar possíveis complicações A ocorrência de um tamponamento cardíaco num doente transplantado pulmonar, situação pouco comum, foi um momento difícil no dia da reportagem da TransMissão. Felizmente, tudo correu bem 10 | junho 2015 Números 112 transplantes entre 2001 e 2015 Dos doentes transplantados, 54% sofriam de patologia do interstício pulmonar, 24% de doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), 15% de fibrose quística (FQ) e 7% de bronquiectesias não FQ 26 doentes em lista de espera para transplante pulmonar 246 dias de tempo médio em lista de espera 35 dias de estadia hospitalar média «Tem corrido bem, mas pode sempre melhorar, para tal, temos de investir nos mais novos. O ideal seria existirem duas ou três equipas que saibam efetuar todos os passos de um transplante, para que se possam fazer cada vez mais», reforça Ivan Bravio, adiantando que, neste momento, estão três cirurgiões mais novos em formação no Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Marta. «Estava cá há 15 dias quando fui, acompanhado, fazer a primeira colheita», recorda o Dr. João Eurico Reis, interno do 4.º ano, enfatizando o «incentivo dado aos mais jovens para ingressarem nesta atividade desde o início». E acrescenta: «Ficamos com o “bichinho da transplantação”!» Depois de serem submetidos a cirurgia, os doentes na fase pós-operatória ficam internados entre três e quatro semanas, dependendo da evolução, e passam, posteriormente, para um quarto individual na enfermaria. Quando recebem alta hospitalar, os doentes que vivem longe ficam instalados perto do hospital. Assim, e como são doentes autónomos, podem dirigir-se ao hospital para a reabilitação pulmonar, bem como para as consultas, não ocupando desnecessariamente camas nas enfermarias, o que torna o processo mais eficaz, seguro e menos dispendioso. De frisar que o follow-up destes doentes é extremamente importante, mesmo depois dos primeiros tempos. No primeiro ano pós-transplante são observados em consulta, de mês a mês, ou sempre que se justifique e, com o decorrer do processo, se tudo correr dentro da normalidade, o intervalo temporal entre consultas vai aumentando», refere Luísa Semedo. E sublinha: «Estes doentes são imunodeprimidos, mas não queremos que o órgão seja rejeitado, portanto, temos de fazer um seguimento bastante controlado.» A aprendizagem no Programa de Transplantação Pulmonar não se faz só por intermédio da aquisição de competências, mas também em termos humanos. A enfermeira-chefe do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica, Clara Vital, tem acompanhado a evolução destes doentes desde o primeiro caso e sublinha os ótimos resultados, tanto em relação à sobrevivência, como no que diz respeito à qualidade de vida. «Alguns doentes estavam confinados à cama, a fazer oxigénio contínuo… Depois do transplante, tudo se altera! É uma grande alegria ver os bons resultados e alguns doentes fazem questão de nos visitar, agradecendo-nos muito. É o reconhecimento do nosso trabalho», partilha Clara Vital, com um sorriso de satisfação. Para muitos casos, o transplante pode ser a última oportunidade, logo, apesar das horas extra e do grande esforço que todos os elementos da equipa têm de fazer, a conclusão é unânime: vale a pena! João Eurico Reis conclui: «Muitos doentes dizem-nos que já não se lembravam do que era respirar e outros nem sabiam o que era respirar convenientemente… Estes testemunhos enchem-nos a alma!» publicidade ransformar Update em transplantação renal DR Dr. Josep Grinyó DR Prof. David Taube Prof. Armando Carvalho Prof. Daniel Seron A quarta edição do Curso de Transplantação Renal, que vai decorrer no Porto Palácio Hotel, entre 18 e 20 de junho, fará uma revisão dos aspetos médicos e cirúrgicos que rodeiam este procedimento. Além de se debaterem os principais «temas quentes» nesta matéria, serão apresentadas novas perspetivas clínicas e de investigação. Ana Rita Lúcio C om a chancela organizativa da Sociedade Portuguesa de Transplantação, o IV Curso de Transplantação Renal procurará, à semelhança do que aconteceu em edições anteriores, proporcionar uma atualização sobre as temáticas mais relevantes nesta área (ver caixa «Temas em debate»). O mote será não só o de revisitar o conhecimento já existente, como também avançar com novidades que despontam em diferentes quadrantes. É o caso da intervenção do Dr. Josep Grinyó, diretor do Departamento de Nefrologia do Hospital Universitari de Bellvitge, em Barcelona, agendada para dia 19 de junho, às 9h00, que incidirá sobre o tema «Imunossupressão em transplantação – novos conceitos, novas terapêuticas». Este especialista começa por recordar que, em meados da década de 1980, «a combinação de pequenas moléculas tendo como alvo as enzimas intracelulares e os anticorpos dirigidos aos recetores da superfície celular conduziu ao aparecimento dos regimes imunossupressores modernos». No entanto, o posterior advento dos inibidores mTOR (alvo da rapamicina em mamíferos), desprovidos da nefrotoxicidade classicamente atribuída aos inibidores da calcineurina, «criou grandes expectativas sobre o potencial desenvol- 80 85% a dos doentes transplantados sofrem de perturbações do metabolismo ósseo mineral Prof. Aníbal Ferreira 12 | junho 2015 vimento de regimes imunossupressores capazes de preservar a função renal e evitar a lesão crónica do enxerto». Contudo, «a baixa tolerabilidade destes agentes» acabou por limitar o seu uso. «Os regimes que se baseiam em inibidores mTOR estão associados a uma melhoria da taxa de filtração glomerular, mas registam níveis de descontinuação do tratamento até 40%, sobretudo quando combinados com antimetabolitos.» Já na última década, segundo Josep Grinyó, «vários novos imunossupressores xenobióticos e biológicos têm sucumbido em fases distintas do seu desenvolvimento». Entre estes, «apenas o betalacept, um bloqueador seletivo de coestimulação, completou o processo de desenvolvimento e foi aprovado pelas autoridades competentes», revela. Não obstante, este nefrologista prevê que «a evidência crescente sobre o papel da lesão do enxerto mediada por anticorpos como uma das causas primordiais de falência do enxerto pode contribuir para um interesse renovado pela análise das respostas humorais». Também no dia 19 de junho, pelas 11h30, o Prof. David Taube, nefrologista no Imperial College Renal and Transplant Centre do Hammersmith Hospital, em Londres, versará sobre «Rejeição aguda no século XXI». «A rejeição, apesar dos avanços significativos em termos de diagnóstico e tratamento, continua a ser a causa mais importante de falência do enxerto», explica. A esse nível, a rejeição crónica mediada por anticorpos é o «maior desafio» que se continua a colocar atualmente. «Embora seja fácil de diagnosticar, particularmente graças à identificação dos anticorpos específicos anti-HLA [human leukocyte antigen, na sigla em inglês] do dador, ainda não há um tratamento eficaz para esta patologia.» Hepatites víricas e transplantação Ainda no dia 19, às 15h30, o Prof. Armando Carvalho, diretor do Serviço de Medicina Interna A do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, discorrerá sobre «o impacto das hepatites víricas crónicas nos doentes transplantados renais». Relativamente às hepatites B e C crónicas, a evidência disponível sugere que «nos recetores que sofrem destas patologias, em geral, a sobrevivência do doente e do enxerto é ligeiramente menor do que no caso do caso dos recetores que não têm hepatite B ou C». Todavia, «a sobrevida e a qualidade de vida dos doentes com hepatites transplantados são melhores do que se continuassem em diálise». Abordando igualmente «o peso que a terapêutica pode ter neste panorama», Armando Carvalho lembra que «é possível tratar, quer a hepatite B quer a hepatite C» e, no que concerne à última, «o panorama pode mudar bastante, em função das novas terapêuticas sem interferão, já recomendadas nestes doentes, que revelam elevada eficácia». Por seu turno, às 18h00, o Prof. Daniel Seron, diretor do Serviço de Nefrologia do Hospital Vall d’Hebron, em Barcelona, procurará responder à pergunta «Porque se perdem os enxertos a longo prazo?». Os resultados dependem, em grande parte, «do controlo da resposta imunitária desde o primeiro dia pós-transplante», defende. E explica: «Os principais desafios na tentativa de ministrar a terapêutica imunossupressora são as estratégias de minimização e a deteção e prevenção precoces de falhas na adesão ao tratamento.» Doenças ósseas no pós-transplante Finalmente, ainda no dia 19, será a vez do Prof. Aníbal Ferreira, nefrologista no Centro Hospitalar de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral, tomar a palavra, falando sobre as doenças ósseas e as alterações metabólicas que podem ocorrer após o transplante. Este especialista adianta que é necessário ter em conta «a doença óssea prévia ao transplante», o grau de insuficiência renal após transplante, tal como «avaliar a medicação» a que estes doentes estão sujeitos após a intervenção. Isto porque há fármacos que podem «influenciar diretamente a remodelação óssea e o metabolismo ósseo mineral». Em foco estará também a necessidade de os nefrologistas se socorrerem, em determinados casos, de uma biópsia óssea, de modo a conseguirem «fazer um diagnóstico real e preciso da doença óssea associada ao transplante». Paralelamente, Aníbal Ferreira destacará ainda outras questões relevantes da intervenção terapêutica, nomeadamente «o tratamento do hiperparatiroidismo após transplante com vitamina D ativa e calcimiméticos» e a «utilização de vitamina D nativa ou colecalciferol e de vitamina D ativa para reduzir a proteinúria nos doentes transplantados». Temas em debate no curso Transplantação, o milagre de Medicina do século XX; Transplante renal na Europa; Searching for donors – how far can we go?; Morte cerebral e manutenção do dador; Preservação de órgãos; Histocompatibilidade e imunogenética em transplantação renal; Imunologia do transplante renal; Cirurgia do transplante e complicações; Cuidados médicos no pré, peri e pós-transplante; Seleção do par dador-recetor – rim de cadáver; Recetores “limite” para transplante renal, quem não deve ser transplantado?; Transplantação de dador vivo; Transplante renal pediátrico; Transplante rim-pâncreas; Diabetes e transplante renal; Imunossupressão em transplantação – novos conceitos, novas terapêuticas; Protocolos de imunossupressão – abordagem prática; Interações medicamentosas – casos clínicos; Doentes hiperimunizados e doentes AB0 incompatíveis; Rejeição aguda no século XXI; Disfunção aguda do enxerto para além da rejeição aguda; Como monitorizar o estado da imunossupressão?; Infeções bacterianas em transplantação renal; Infeções víricas em transplantação renal; Infeções fúngicas; Vacinação em transplantação; Porque se perdem os enxertos a longo prazo?; Terapêuticas celulares – que futuro?; Complicações cardiovasculares na transplantação renal; Neoplasias pós-transplantação renal; Doenças ósseas após transplante renal; Nutrição e transplante renal; Fármacos não imunossupressores e transplante renal; Insuficiência renal crónica no transplantado renal; Imagiologia em transplantação renal; Histopatologia do transplante renal – avaliação prática; Perspetivas éticas e legais em transplantação; Podemos transplantar mais? O segredo da organização? Caminhada em Coimbra no 7.º Dia do Transplante A s comemorações do 7.º Dia do Transplante, que se assinala a 20 de julho, decorrem em Coimbra, cidade onde, no mesmo dia de 1969, o Prof. Linhares Furtado realizou o primeiro transplante em Portugal, com um rim de dador vivo. A principal novidade das atividades deste ano será uma caminhada nas margens do Mondego, com início junto ao Pavilhão Centro de Portugal, projetado pelos arquitetos Souto Moura e Siza Vieira para a Expo 2000, e final no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha. No Pavilhão Centro de Portugal, decorrerá também uma sessão solene com a presença de representantes dos principais organismos relacionados com a transplantação, incluindo a SPT, e de outras entidades públicas, na qual alguns transplantados darão os seus testemunhos. No mesmo espaço, será oferecido um almoço aos transplantados e seus familiares, que acorrerão a Coimbra vindos de diversos pontos do País. Também na margem direita do Parque Verde do Mondego será plantada a habitual «árvore da vida», que encerra as comemorações do dia, simbolizando a nova vida dos transplantados. DR | 13 ransformar Incremento da transplantação em Portugal passa pela doação em vida Dr. João Eurico Reis (orador), Dr.ª Cristina Jorge (oradora), Dr.ª Ana França (coordenadora nacional de transplantação no Instituto Português do Sangue e da Transplantação - IPST), Dr. Fernando Macário (presidente da SPT), Prof. Hélder Trindade (presidente do IPST) e Dr. Américo Martins (orador) Com o intuito de debater estratégias que ajudem a encontrar respostas à pergunta «Como aumentar o número de transplantes em Portugal?», o Fórum Aberto da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT), que decorreu entre 27 e 28 de março passado, no Porto, colocou a tónica no panorama da transplantação renal, hepática e pulmonar de dador vivo, a nível nacional e internacional. Ana Rita Lúcio P artindo da premissa de que, atualmente, a doação de órgãos a partir de cadáver «não permite suprir todas as necessidades de transplantação em Portugal», este Fórum Aberto visou relançar a discussão sobre «os transplantes de dador vivo como uma alterativa bem estabelecida, sobretudo no âmbito renal», afirmou o Dr. Fernando Macário, presidente da SPT. «Estamos muito longe do número de transplantes realizados em 2009 e 2010 no nosso País e, apesar de se assinalarem avanços no que toca à doação de cadáver, nomeadamente com o arranque do programa de colheita de dadores em paragem cardiocirculatória, ainda há um longo caminho a percorrer, sendo que a transplantação de dador vivo nos pode ajudar a atingir melhores resultados», argumentou. Fernando Macário salientou, por isso, a importância de tomar como referência o caso do nosso país vizinho. «Em Espanha, as entidades responsáveis alcançaram aquilo que nós não estamos a conseguimos fazer: manter níveis de transplantação muito elevados e crescer no que respeita ao transplante renal de dador vivo.» Com efeito, entre os espanhóis, «este procedimento corresponde a 15% do total de transplantes renais», corroborou a Dr.ª María Valentín Muñoz, responsável pelo Programa de Transplantação Renal de Dador Vivo da Organización Nacional de Trasplantes (ONT). Dando conta dos aspetos que contribuem para o incremento das estatísticas da transplantação renal, a também nefrologista destacou, «em primeiro lugar, o modelo organizativo instaurado em Espanha». Na base dessa estrutura, está a figura do coordenador hospitalar de transplantes, «um profissional com perfil muito específico, médico ou enfermeiro, que vem de dentro do próprio hospital e está bem familiarizado com o seu funcionamento e a sua orgânica», apontou. Acresce que «85% destes coordenadores hospitalares de transplantes são intensivistas, o que facilita a referenciação de potenciais dadores cadáver e o despoletar do processo de doação». 14 | junho 2015 María Valentín Muñoz sublinhou igualmente a utilidade do «funcionamento em rede». «Além da coordenação que é feita a nível nacional, temos 17 coordenações autonómicas de transplante, correspondentes ao número de comunidades autónomas em território espanhol e mais de 180 coordenações hospitalares.» Especificamente no que concerne à transplantação renal de dador vivo, «a atenção que se dá à divulgação de informação através dos media e ao acompanhamento próximo de potenciais dadores» é outro fator a ter em conta, assim como as diversas campanhas dirigidas ao público. Embora o primeiro transplante renal de dador vivo em solo espanhol tenha acontecido em 1965, só a partir de meados da década de 2000 «se deu um novo impulso à doação em vida», recordou a nefrologista. «Nessa altura, já havia evidência que apontava para os bons resultados deste procedimento e já se dispunha das técnicas cirúrgicas cada vez menos invasivas», explicou. Beneficiando também de um programa de doação renal cruzada, «que veio revolucionar o panorama da transplantação renal de dador vivo» (ver caixa «Mais países, mais dadores»), Espanha contabilizou 382 doações em vida num total de 2 552 transplantes renais realizados em 2013. «Em Espanha, o coordenador hospitalar de transplantes é um profissional que vem de dentro do hospital e está familiarizado com o seu funcionamento e a sua orgânica» Dr.ª María Valentín Muñoz Evolução da transplantação renal de dador vivo, entre 1991 e 2013, em espanha* 450 400 361 350 300 382 312 235 240 250 200 150 100 87 19 19 91 50 0 60 61 9 19 2 9 19 3 9 19 4 9 19 5 9 19 6 9 19 7 9 19 8 9 20 9 0 20 0 0 20 1 0 20 2 0 20 3 0 20 4 0 20 5 0 20 6 0 20 7 0 20 8 0 20 9 1 20 0 1 20 1 1 20 2 13 34 16 15 15 20 35 22 20 19 17 19 31 156 137 102 34,6 doadores por milhão de habitantes 15% dos transplantes renais são realizados a partir de dador vivo *Dados da Organización Nacional de Trasplantes Transplantação hepática e pulmonar de dador vivo De regresso à realidade portuguesa, foi a vez de uma equipa multidisciplinar do Centro Hepato-Bilio-Pancreático e de Transplantação do Centro Hospitalar de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral (CHLC/HCC) dar o seu testemunho sobre o estado da arte do transplante hepático de dador vivo no nosso País. Segundo o Dr. Américo Martins, cirurgião hepático, esta unidade hospitalar registou «cinco transplantes hepáticos de dador vivo em 2014», o que corresponde a 5% da totalidade dos transplantes realizados nesse ano. «Uma percentagem que se pretende aumentar, embora na doação adulto-adulto seja uma tarefa difícil», garantiu. «Ao passo que a transplantação hepática pediátrica de dador vivo, além de exigir a extração de menos massa hepática, beneficia de uma atitude mais propícia à doação em vida por parte dos familiares, nos adultos isso nem sempre acontece. Nestes casos, lidamos com uma hepatectomia que pode criar riscos para quem doa, daí que o estudo e o acompanhamento minucioso dos dadores seja imprescindível», explicou. Este cirurgião defendeu ainda que é Mais países, mais dadores Ao abrigo do Programa Nacional de Doação Renal Cruzada, o primeiro transplante cruzado de rins com dadores vivos, em Portugal, ocorreu no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, em 2013. Porém, «com 1 970 doentes em lista de espera para transplante renal em 2014, é uma mais-valia inequívoca para o nosso País beneficiar do protocolo de cooperação já estabelecido entre os programas de doação renal cruzada português e espanhol», assegurou a Dr.ª Ana França, coordenadora nacional de transplantação no Instituto Português do Sangue e da Transplantação. «A potencialidade de dadores vivos equiparada à população em Espanha é maior e, naturalmente, o número de pares estudados também», acrescentou. María Valentín Muñoz, por sua vez, mostrou-se igualmente satisfeita com a «aliança internacional» que está em marcha nesta área. «Quando o nosso programa de doação cruzada arrancou, em 2009, começámos com 24 casais e realizámos apenas dois transplantes. Hoje, contamos com mais de 100 casais e, até março de 2015, já fizemos nove transplantes. Este protocolo de cooperação vai trazer-nos um leque ainda maior de possibilidades», considerou a responsável pelo Programa de Transplantação Renal de Dador Vivo da ONT. fundamental apostar em «mecanismos de divulgação, sensibilização e esclarecimento» à população. Ao Dr. João Eurico Reis, cirurgião torácico no CHLC/Hospital de Santa Marta, coube, por seu turno, traçar o panorama do transplante pulmonar de dador vivo, «um cenário do qual não estamos tão próximos em Portugal», advertiu. O primeiro transplante pulmonar bem-sucedido foi levado a cabo em 1983, no Toronto General Hospital, no Canadá, sendo que o primeiro transplante pulmonar de dador vivo aconteceu em 1990, nos Hospitais da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Não obstante, «mais de duas décadas volvidas, este procedimento continua a ser efetuado por poucos centros em todo o mundo». Um dos exemplos citados foi o do Departamento de Cirurgia Torácica dos Hospitais da Universidade de Quioto, no Japão, liderado pelo Prof. Hiroshi Date. Elencando as especificidades do transplante pulmonar de dador vivo, João Eurico Reis lembrou que este «implica três cirurgias em três doentes diferentes». «Falamos de duas lobectomias: dois dadores para cada recetor.» Entre dadores e recetor há também que avaliar a compatibilidade anatómica, tal como a «compatibilidade imunológica». Em termos de sobrevida, o registo internacional aponta para 75% a um ano e 50% a cinco anos, valores que não são superiores aos de dador cadáver. «Apesar de mais complexo, o transplante lobar, cuja técnica serve de base ao transplante de dador vivo, já foi realizado com sucesso, a partir de dadores cadáver, no nosso centro», ressalvou este cirurgião. Porém, «atendendo aos resultados internacionais», a estratégia para aumentar o número de transplantes pulmonares em Portugal deve, de acordo com João Eurico Reis, passar sobretudo «pelo trabalho em conjunto com as Unidades de Cuidados Intensivos de todo o País, para melhorar o manejo dos dadores cadáver, no que respeita ao pulmão e pelo alargamento dos critérios de referenciação dos pulmões». Finalmente, e já no segundo dia do Fórum Aberto de Transplantação, a intervenção da Dr.ª Cristina Jorge, nefrologista no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental/Hospital de Santa Cruz, recaiu sobre a temática da «transplantação renal de dador vivo com transplante de células hematopoiéticas do mesmo dador». Esta opção terapêutica experimental, «que está a ser testada em três estudos conduzidos por grupos dos Hospitais da Universidade de Stanford, do Massachusetts General Hospital, em Boston, e do Northwestern Memorial Hospital, em Chicago, nos Estados Unidos, «visa induzir tolerância imunológica no recetor, através da receção de células hematopoiéticas da medula óssea do mesmo indivíduo que doou o rim». «Em alguns destes recetores, o transplante de rim e de células hematopoiéticas revelou-se eficaz, sendo que os doentes se mantêm durante anos sem necessidade de terapêutica imunossupressora», concluiu Cristina Jorge. | 15 m análise Transplantação renal sem crescimento em 2014 Os números da transplantação renal em Portugal tardam em retomar a senda positiva que se traduziu no recorde de transplantes realizados em 2009. Em 2014, os números voltaram a ficar abaixo desse recorde, mas registou-se um aumento do transplante renal enquanto primeiro tratamento substitutivo da função renal. Estes são alguns dos dados de 2014 do Registo do Tratamento da Doença Renal Crónica Terminal da Sociedade Portuguesa de Nefrologia (SPN), que foram divulgados no Encontro Renal 2015, no dia 16 de abril. Luís Garcia O Dr. Fernando Macário apresentou os números de 2014 no Encontro Renal 2015 N o total, foram realizados 448 transplantes renais em Portugal no ano passado (394 de dador cadáver e 54 de dador vivo). O Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra foi a unidade que mais transplantes efetuou, à semelhança dos anos anteriores, seguindo-se o Centro Hospitalar do Porto/Hospital de Santo António (HSA), que se destacou sobretudo no transplante de dador vivo, com 28 procedimentos realizados, mais de metade dos transplantes deste tipo feitos em Portugal. Ainda assim, o transplante de dador vivo manteve números semelhantes aos de anos anteriores. «No global, este transplante representa apenas 8% do total, um dos piores resultados nos países ocidentais. Mesmo Espanha, que tinha números semelhantes aos portugueses, já se distanciou muito», referiu, durante a sua apresentação no Encontro Renal 2015, o Dr. Fernando Macário, coordenador do Registo do Tratamento da Doença Renal Crónica Terminal da SPN. Na opinião deste nefrologista, «uma das grandes apostas nesta área deve ser a transplantação renal de dador vivo, com vista a “libertar”, pelo menos, os doentes jovens da hemodiálise». A incidência do transplante renal foi de 43 por milhão de habitantes – um valor que Fernando Macário considera «bom», embora bem abaixo do que já se verificou em anos anteriores. No que respeita à etiologia da doença renal crónica que levou ao transplante, as causas mais frequentes foram a glomerulonefrite crónica (21,2%), a diabetes (16%) e a doença renal poliquística autossómica dominante (11,1%). «Como seria de esperar, foi no HSA e no Centro Hospitalar de Lisboa Central/Hospital de Curry Cabral que se transplantaram mais diabéticos, dado serem estes os hospitais portugueses com programas de transplante renopancreático», referiu Fernando Macário. A «boa nova» de 2014 é que o transplante renal cresceu enquanto primeiro tratamento substitutivo da função renal, passando dos 9 casos registados em 2013 para 24, o que representa «um aumento substancial». Evolução do número de transplantes renais (1980-2014) 600 N.º de transplantes renais Total = 11 134 500 400 300 200 100 0 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 Anos 16 | junho 2015 Anos Balanço anual de transplantes renais 14 12 10 8 6 4 2 0 98 96 94 92 90 88 86 84 82 80 Perdidos Realizados -300 -200 -100 0 100 200 300 400 500 600 Número de enxertos Faleceram 72 doentes com enxerto funcionante e 119 foram transferidos para hemodiálise ou diálise peritoneal Etiologia da DRC nos doentes transplantados em 2014 16,0% 9,6% Indeterminada 25,4% Diabetes 16,0% Hipertensão arterial 25,4% 21,2% 17,7% 9,6% Glomerulonefrite crónica 21,2% Doença renal poliquística autossómica dominante 11,1% Outras 17,7% N = 406 42 não disponibilizados 11,1% DRC: doença renal crónica transplantes em 2014 por Unidade de transplantação 120 N = 394 transplantes de dador cadáver e 54 de dador vivo 112 N.º de doentes 100 Cadáver Dador vivo Rim e pâncreas Rim e fígado Pâncreas após rim 84 80 60 40 48 41 46 36 28 20 0 10 11 1 CHSJ HSA 1 7 CHUC 2 12 3 2 HSM HCC 19 8 2 HSC HCV HGO CHSJ: Centro Hospitalar de São João, no Porto; HSA: Centro Hospitalar do Porto/Hospital de Santo António; CHUC: Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra; HSM: Centro Hospitalar Lisboa Norte/Hospital de Santa Maria; HCC: Centro Hospitalar de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral; HSC: Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental/Hospital de Santa Cruz; HCV: Hospital da Cruz Vermelha; HGO: Hospital Garcia de Orta | 17 etrato Entre a família de sangue e a família do transplante Com um sorriso nos lábios, a Dr.ª Ana Maria Calvão da Silva, diretora do Gabinete Coordenador de Colheita e Transplantação (GCCT) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), abriu-nos as portas da sua casa, e do seu coração, para partilhar algumas memórias. Ficámos a conhecer um pouco da sua história, que em muito se cruza com as vidas dos doentes, os quais, carinhosamente, apelida de família. Marisa Teixeira O personagem João Semana, da obra As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis, em tudo a fazia lembrar o pai, também ele médico. «Desde pequena, via o meu pai a ser chamado a qualquer hora, na aldeia de Vilamar [perto de Cantanhede, distrito de Coimbra], onde vivíamos, sempre a ajudar quem mais necessitava», afirma Ana Maria Calvão da Silva. Inspirada por este exemplo, chegou a ter alguma vontade de seguir Medicina, mas julgava-se «demasiado sensível» para ultrapassar certas situações, imaginando-se antes a ajudar os doentes nos «bastidores» – em laboratório. Assim, em 1977, Ana Maria Calvão da Silva licenciou-se em Farmácia, mas o objetivo não era seguir as pisadas da mãe, farmacêutica na mesma aldeia, pois, «apesar de, na altura, o farmacêutico ser muito interventivo na preparação dos medicamentos, queria fazer outro tipo de investigação». Mas, até lá chegar, teve de trabalhar em áreas que não lhe «enchiam a alma». «Casei-me quando estava no 3.º ano do curso e o meu filho mais velho nasceu no ano em que me formei. Queria muito trabalhar, ser independente e, apesar de o primeiro concurso que houve na altura ter sido para farmácia hospitalar, que era mesmo o que eu não queria, concorri e ingressei num estágio, nos Hospitais da Universidade de Coimbra», recorda. Todavia, como nunca foi de ficar acomodada, continuou a lutar para exercer algo de que gostasse. E assim foi. A jovem farmacêutica acabou por ir trabalhar para o Laboratório do Hospital de Cantanhede, em 1979, mas ainda não estava satisfeita. Determinada, candidatou-se a novo concurso, desta feita para o Laboratório do Hospital dos Covões, mas, curiosamente, na mesma época, foi convidada pela Dr.ª Henriqueta Breda 18 | junho 2015 – que estava na Comissão Instaladora dos Centros de Histocompatibilidade, uma novidade em Portugal nas áreas da Imunologia e da transplantação – para criar o Centro de Histocompatibilidade do Centro. «“É isto que quero”, pensei. A transplantação era uma área que me fascinava e podia ajudar os outros. Decidi aceitar», lembra. Ana Maria Calvão da Silva não se transformou num João Semana, mas quase. Por vezes, lamenta o tempo que «roubou» aos filhos, mas acredita ter feito tudo o que estava ao seu alcance para os compensar e, felizmente, a sua família de sangue sempre aceitou a sua «família do transplante», constituída principalmente pelos seus doentes e por aqueles que com ela trabalham, também dedicados 100% a esta área. Depois de 34 anos de entrega à transplantação, a diretora do GCCT do CHUC não se arrepende das decisões que tomou. «Sinto-me realizada, pois consegui ajudar os outros por intermédio da profissão. Ficamos sem tempo, mas, em contrapartida, salvamos a vida de muitos doentes. E isso compensa tudo», sublinha. Uma breve ausência de Coimbra A génese do Centro de Histocompatibilidade do Centro (CHC) não foi fácil. Ana Maria Calvão da Silva lembra que, no início, tinha apenas o apoio de uma trabalhadora-estudante e, só ao fim de um ano, conseguiram recrutar a primeira técnica de laboratório. «Na época, existia uma média de 2/3 dadores, as colheitas eram poucas, mas tínhamos de estar alerta e sempre prontos para uma emergência», explica. Em aproximadamente dois anos, esta responsável conseguiu implementar toda a tecnologia necessária para o estudo imunológico dos recetores de rim e também impulsionar a área de virologia. «Entretanto, em 1983, o meu marido foi trabalhar para Lisboa e os nossos filhos, ainda pequenos, sofriam muito com a sua falta.» Por isso, Ana Maria Calvão da Silva não hesitou e também foi para a capital, integrando o Centro de Histocompatibilidade do Sul em regime de destacamento, bem como o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, até porque se sentia confiante por o CHC estar orientado e «a andar sobre rodas». Uma mudança que recorda como difícil, mas sublinha: «A vida é feita de desafios e temos de os enfrentar para atingirmos os nossos objetivos.» A mudança valeu a pena, pelo grande enriquecimento profissional, com a aprendizagem de novas técnicas e a participação em vários projetos de investigação. Outros momentos que Ana Maria Calvão da Silva considera bastante relevantes enquanto fontes de saber foram as oportunidades de, como bolseira do Conselho da Europa, ingressar no programa «Bourses Médicales Individuals», em Paris, no ano de 1983, onde trabalhou com o Prof. Jean Dausset e, mais tarde, em 1992, frequentou o 8th Histocompatiblity European Course, em Atenas. Quando regressou a Coimbra, em 1985, a responsável introduziu no CHC novas técnicas e procedimentos que aprendeu em Lisboa. No entanto, já com uma equipa estruturada, fazendo praticamente apenas investigação, eis que, mais uma vez, o destino lhe trocou as voltas. Em 1993, foram criados os Gabinetes Coordenadores de Colheita e Transplantação (GCCT) e Ana Maria Calvão da Silva foi convidada a constituir o da região Centro. «Quase com 40 anos de idade, vou recomeçar?», questionou-se. Depois de muita reflexão, concluiu que sim: «A minha consciência assim o ditava, talvez conseguisse aumentar o pool de órgãos e o número de hospitais dadores. Nesse contexto, não podia acomodar-me, tinha de pensar nos outros.» No dia 14 de fevereiro de 1994, assumiu o cargo de diretora do GCCT do CHUC. «O Gabinete estava sob a tutela do Prof. Linhares Furtado, de quem guardo as melhores recordações», ressalva a responsável, garantindo que trabalhar com este pioneiro da transplantação em Portugal «foi um privilégio». Não esquecendo tantos outros nomes com quem teve «a sorte» de se cruzar ao longo da carreira, os cerca de dez anos de convivência laboral com Linhares Ana Maria Calvão da Silva observa a tela pintada pelo Prof. Linhares Furtado que tem em sua casa e lhe foi oferecida pelo próprio. A diretora do GCCT do CHUC trabalhou durante dez anos com este pioneiro da transplantação em Portugal e nutre por ele grande estima. Evolução da colheita de órgãos/ /tecidos nos hospitais da área de influência do GCCT do CHUC 1980 2 1992 37 2004 49 1981 2 1993 26 2005 54 1982 5 1994 30 2006 57 1983 5 1995 49 2007 58 1984 9 1996 43 2008 94 1985 7 1997 52 2009 112 1986 9 1998 47 2010 99 1987 13 1999 46 2011 97 1988 8 2000 41 2012 88 1989 25 2001 44 2013 105 1990 26 2002 44 2014 88 1991 41 2003 49 Furtado fez com que se criassem entre ambos laços inquebráveis. «Ele era um ídolo para mim e apoiou-me muito, incentivando-me sempre a ir mais além», assegura. Em luta constante para salvar vidas «Quando os meus doentes “não têm voz”, alguém tem de intervir por eles. Um órgão é um bem precioso, que temos de salvaguardar e não desperdiçar.» Esta foi a missão que Ana Maria Calvão da Silva decidiu abraçar e tenta, a todo o custo, angariar o maior número de órgãos possível para salvar as vidas dos que deles necessitam. São várias as histórias que habitam na sua memória e, um dia, gostaria de escrever sobre elas. «Fui confrontada, muitas vezes, com questões humanas complexas. Tinha de arranjar forças para lidar com vários doentes e familiares desesperados e, por vezes, mal eles saíam do meu gabinete, eu chorava entre quatro paredes», confessa. Por outro lado, a diretora do GCCT do CHUC desde 1994 salienta que contribuir para que um doente tenha uma segunda oportunidade de vida não tem preço. E, com o olhar humedecido pelas lágrimas que, em alguns momentos, teimam em aparecer no seu rosto, recorda este exemplo: «Em 1995, um menino, de quem ainda hoje lembro o nome, precisava urgentemente de um transplante de fígado. Lancei um apelo e o Hospital do Funchal respondeu. Como consegui a ajuda da Força Aérea para a equipa ir colher o órgão, conseguimos salvá-lo.» Esta foi, sem dúvida, uma situação marcante, até porque, consequentemente, Ana Maria Calvão da Silva resolveu estabelecer um protocolo com a Força Aérea para que, sempre que fosse necessário, se deslocassem às ilhas para colheita de órgãos. Uma conquista de que se orgulha e à qual várias se seguiram, com a criação de parcerias com outras entidades, como os Bombeiros Voluntários ou o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). Questionada sobre os ingredientes necessários para alcançar os bons resultados que se têm verificado no GCCT do CHUC, de jeito modesto, Ana Maria Calvão da Silva responde apenas que tem feito o possível, mas que «gostaria de ter conseguido muito mais», comentando ter-lhe já passado pela cabeça desistir, porque, muitas vezes, tem de lidar com situações «angustiantes». Contudo, apesar dos obstáculos, tem fé e acredita que Deus a ajuda a prosseguir. «Enquanto me sentir com forças para ajudar estes doentes, vou continuar. Ficam a pertencer à nossa família e o carinho que recebemos deles é indescritível.» | 19 publicidade
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