RESPONSABILIDADE DA EMPRESA E CIDADANIA EMPRESARIAL
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RESPONSABILIDADE DA EMPRESA E CIDADANIA EMPRESARIAL
Coleção CONPEDI/UNICURITIBA Vol. 34 Organizadores Prof. Dr. Orides Mezzaroba Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr Coordenadores Profª. Drª. Ana Cláudia Farranha Santana Profª. Dr.ª Danielle Anne Pamplona Profª. Drª. Terezinha de Oliveira Domingos RESPONSABILIDADE DA EMPRESA E CIDADANIA EMPRESARIAL 2014 2014 Curitiba Curitiba Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE Nossos Contatos São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.br Redes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica R429 Responsabilidade da empresa e cidadania empresarial. Coleção Conpedi/Unicuritiba. Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr. Coordenadores : Ana Cláudia Farranha Santana /Danielle Anne Pamplona/ Terezinha de Oliveira Domingos. Título independente - Curitiba - PR . : vol.34 - 1ª ed. Clássica Editora, 2014. 279p. : ISBN 978-85-8433-022-5 1. Responsabilidade social da empresa. I. Título. EDITORA CLÁSSICA Conselho Editorial Allessandra Neves Ferreira Alexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros Vita José Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete Pozzoli Leonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão Equipe Editorial Editora Responsável: Verônica Gottgtroy Capa: Editora Clássica Luiz Eduardo Gunther Luisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-Knoerr Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos CDD 300 XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR MEMBROS DA DIRETORIA Vladmir Oliveira da Silveira Presidente Cesar Augusto de Castro Fiuza Vice-Presidente Aires José Rover Secretário Executivo Gina Vidal Marcílio Pompeu Secretário-Adjunto Conselho Fiscal Valesca Borges Raizer Moschen Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa João Marcelo Assafim Antonio Carlos Diniz Murta (suplente) Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente) Representante Discente Ilton Norberto Robl Filho (titular) Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente) Colaboradores Elisangela Pruencio Graduanda em Administração - Faculdade Decisão Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira Graduada em Administração - UFSC Rafaela Goulart de Andrade Graduanda em Ciências da Computação – UFSC Diagramador Marcus Souza Rodrigues Sumário APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................ 10 EMPRESA: PERSPECTIVAS DE MUDANÇAS DIRECIONADAS À RESPONSABILIDADE SOCIAL (Castro, Aldo Aranha de e Genovez, Simone) ........................................................................................................... 13 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 14 ASPECTOS GERAIS DA EMPRESA ............................................................................................................. 14 FUNÇÃO SOCIAL EMPRESARIAL ............................................................................................................... 20 RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL ........................................................................................... 21 RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA NA DIMENSÃO AMBIENTAL .............................................. 36 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 38 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 39 ASPECTOS DA RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO NA EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA (Luize Mazeto) ........................................................................................................ 42 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 43 EIRELI ......................................................................................................................................................... 43 RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO ................................................................................................... 51 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 61 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 62 BENEFÍCIOS SOCIAIS DE PARCERIAS E ESTRUTURAS JURÍDICAS NO DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADES DE EXPLORAÇÃO E PRODUÇÃO DE HIDROCARBONETOS: O CONTEÚDO LOCAL (Alexandre Ferreira de Assumpção Alves e Fernando Gregio Lüdke) .......................................................... 65 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 66 DESAFIOS E BENEFÍCIOS DA INDÚSTRIA DO PETRÓLEO UPSTREAM .................................................... 69 A JOINT VENTURE COMO ESTRUTURA JURÍDICA ADEQUADA PARA FORMAÇÃO DE PARCERIAS NO UPSTREAM ................................................................................................................................................ 75 CONTEÚDO LOCAL E OS BENEFÍCIOS PARA A SOCIEDADE ..................................................................... 80 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 87 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 88 RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL E MARKETING SOCIAL (Juliana Falci Sousa Rocha Cunha) ... 90 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 91 RESPONSABILIDADE SOCIAL .................................................................................................................... 91 MARKETING SOCIAL ................................................................................................................................. 105 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 117 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 117 EMPRESA E CONTRATO DE EMPREGO COM PESSOA INFECTADA PELO VÍRUS HIV: A PROMOÇÃO DA CIDADANIA NO AMBIENTE DO TRABALHO (Renato de Almeida Oliveira Muçouçah) .............................. 120 AIDS, A “METÁFORA DO MAL” .................................................................................................................. 121 O ESTADO DO MAL-ESTAR SOCIAL E A AIDS? DIREITO À VIDA E À SAÚDE PELO DIREITO AO TRABALHO ................................................................................................................................................. 127 AÇÕES AFIRMATIVAS PARA SOROPOSITIVOS E O PAPEL DA CIDADANIA NA EMPRESA ........................... 135 CONCLUSÕES ............................................................................................................................................ 141 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 142 PROTEÇÃO DA PERSONALIDADE DA PESSOA FISICA EM FACE DA PESSOA JURIDICA COM A REPERSONALIZAÇÃO (Marco Antonio de Souza) ..................................................................................... 145 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 146 VISÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DA PERSONALIDADE ................................................................. 148 SURGIMENTO E PROTEÇÃO DAS PERSONALIDADES .............................................................................. 149 DESIGUALDADES ....................................................................................................................................... 157 REPERSONALIZAÇÃO E CONSTITUIÇÃO .................................................................................................. 160 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 163 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 166 CONSIDERAÇÕES SOBRE A ABERTURA DE CAPITAL NA SOCIEDADE ANÔNIMA (Rodrigo de Oliveira Botelho Corrêa) .......................................................................................................................................... 168 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 169 SISTEMA FINANCEIRO .............................................................................................................................. 170 OFERTA PÚBLICA DE DISTRIBUIÇÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS .......................................................... 173 UNDERWRITING ....................................................................................................................................... 180 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 185 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 186 O ADMINISTRADOR, A SOCIEDADE ANÔNIMA E A SUA RESPONSABILIDADE SOCIAL E COLETIVA (Gabriel Russi Vianna e Sandro Mansur Gibran) ......................................................................................... 188 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 189 RESPONSABILIZAÇÃO DOS ADMINISTRADORES .................................................................................... 191 AÇÃO DE RESPONSABILIDADE ................................................................................................................. 195 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 204 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 206 APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA: BASES CONSTITUCIONAIS DA CRIMINALIZAÇÃO DA OMISSÃO DE REPASSE E A QUESTÃO DA INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA CONFORME O DIREITO PELA SITUAÇÃO FINANCEIRA PRECÁRIA DA EMPRESA (Janaína Elias Chiaradia e Fábio André Guaragni) ................................................................................................................................................... 208 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 209 DA RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR PELO RECOLHIMENTO PREVIDENCIÁRIO .......................... 212 APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA E A ESTRUTURA DO TIPO ................................................. 215 O ART. 168-A E A INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA CONFORME O DIREITO PELA SITUAÇÃO FINANCEIRA PRECÁRIA DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO .................................................................................................................................................. 217 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 221 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 228 OS EFEITOS DECORRENTES DA APLICAÇÃO JUDICIAL DA TEORIA MENOR (Deilton Ribeiro Brasil) .... 230 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 231 ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO NA QUESTÃO REFERENTE AOS EFEITOS DA APLICAÇÃO JUDICIAL DA TEORIA MENOR DA DISREGARD DOCTRINE ..................................................................................... 234 PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA ................................................................. 239 VISÃO DA JURISPRUDÊNCIA ..................................................................................................................... 247 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 250 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 252 FUNÇÃO PROFILÁTICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL CONSUMERISTA E A INDÚSTRIA DO DANO MORAL: CIDADANIA EMPRESARIAL NA SOCIEDADE DE RISCO (Ana Cecília Parodi) ............................... 254 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: A SOCIEDADE DE RISCO E DE CONSUMO ................................................... 255 A FUNÇÃO PROFILÁTICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL ........................................................................ 265 O SUPORTE DA RACIONALIDADE TEÓRICA DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E DA TEORIA DOS JOGOS ................................................................................................................................................ 272 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 280 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 281 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Caríssimo(a) Associado(a), Apresento o livro do Grupo de Trabalho Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial, do XXII Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI), realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias 29 de maio e 1º de junho de 2013. O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito, nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas. Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos, tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos. Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2) aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiramnos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores 7 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido mais difícil. Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto para eventos. O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de 2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que inserirem seus dados. Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –, mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da segunda versão, disponível em 2014. Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05, além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07. 8 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras parcerias e editais para a área do Direito. Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro. Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais. Curitiba, inverno de 2013. Vladmir Oliveira da Silveira Presidente do CONPEDI 9 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Apresentação O tema responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial suscita uma série de questões que interpelam não somente o Direito, mas a Administração, as Ciências Sociais e, principalmente os estudos a Justiça e da Responsabilidade Social. Assinalando as lições de P. Ricouer, Cappelin & Giffoni ( 2007) afirmam que O sentido da responsabilidade das instituições, alimenta uma relação. Conecta a preocupação de imputar (atribuir obrigações e limitações) a quem exerce um poder (econômico, como no caso aqui tratado) com o esforço de atribuir proteção a quem é mais fraco. Podemos, assim, interrogar as empresas, averiguando de que forma incluem, em suas responsabilidades, as metas que a sociedade contemporânea lhes atribui, como a produção de riqueza, o desenvolvimento e o emprego. (p.419) Partilhando dessa perspectiva esse tema foi tratado no GT Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial, realizado no XXII Encontro Nacional do CONPEDI, na UNICURITIBA. Os textos apresentados colocam-se na esteira da multiplicidade apontada no parágrafo anterior e trazendo importantes reflexões sobre o tema. Assim, essa publicação reflete aspectos do debate e foi organizada considerando, na primeira parte da discussão, os aspectos que mais gerais abordados pelos autores. Nesse sentido, o primeiro texto “Empresa: Perspectivas e Mudanças Direcionadas à Responsabilidade Social”, de autoria de Aldo Aranha de Castro e Simone Genovez, busca “analisar o papel da empresa moderna sob o enfoque econômico, social e ambiental” . Os autores destacam aspectos éticos e morais que podem nortear a ação das empresas, tomando por base o art. 170, da Constituição Federal. Na seqüência o texto 2 “Aspectos da Responsabilidade Do Empresário na Empresa Individual de Responsabilidade Limitada”, a autora Luize Mazeto discute os principais aspectos da lei n. 12.441/2011 (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada - EIRELI), destacando as novidades que o diploma legal coloca no ordenamento nacional e suas 10 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial implicações para pequenos empresários. O texto 3 “Benefícios Sociais de Parcerias e Estruturas Jurídicas no Desenvolvimento de Atividades de Exploração e Produção de Hidrocarbonetos: O Conteúdo Local”, de autoria de Alexandre Ferreira de Assumpção Alves e Fernando Gregio Lüdke, discute aspectos da função social da livre iniciativa, considerando a experiência das empresas que exploram e produzem hidrocarbonetos. O eixo orientador do artigo é a definição de conteúdo local, destacando os desafios que essa atuação traz para o setor. Fechando o bloco, apresenta-se o texto 4 “Responsabilidade Social Empresarial e Marketing Social”, de autoria Juliana Falci Sousa Rocha Cunha, onde a autora analisa as relações entre marketing e responsabilidade social, destacando como as empresas vêm fazendo uso dessas ferramentas. E, por fim, nessa primeira parte, o texto 5 “Função Profilática da Responsabilidade Civil Consumerista e A Indústria do Dano Moral: Cidadania Empresarial Na Sociedade De Risco”, de autoria de Ana Cecília Parodi, aponta como a ação das empresas pode ser preventiva no que concerne a minimização de riscos oriundos de sua atuação e, como esses procedimentos relacionam-se com o tema em questão. A segunda parte apresenta a análise de casos específicos que envolvem as dimensões mais diretamente ligadas à aplicação do Direito. Esse bloco é aberto com o texto 6 “Empresa e Contrato de Emprego com Pessoa Infectada Pelo Vírus HIV: A Promoção da Cidadania no Ambiente do Trabalho”, de autoria de Renato de Almeida Oliveira Muçouçah, cujo foco é o exame das relações entre pessoas vivendo com HIV/AIDS e as medidas que podem ser desenvolvidas pelas empresas no sentido de efetivar a dignidade desses trabalhadores/as, cumprindo os preceitos constitucionais. O texto 7 “Proteção da Personalidade da Pessoa Física em face da Pessoa Jurídica com a Repersonalização, de autoria de Marco Antonio de Souza e o texto 8 “Os Efeitos Decorrentes da Aplicação Judicial da Teoria Menor da Disregard Doctrine: Uma Análise Econômica Do Direito”, de autoria de Deilton Ribeiro Brasil, tratam do instituto da “despersonalização” (disregrad doctrine), analisando suas implicações em relação ao tema proposto. 11 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial As discussões relativas à abertura de capital nas sociedades anônimas são tratadas no texto 9 “Considerações sobre a abertura de capital na Sociedade Anônima”, de autoria de Rodrigo de Oliveira Botelho Corrêa, destacando essa possibilidade como forma de “ampliar as opções de financiamento da atividade negocial e produtiva”. O texto 10, “O Administrador, a Sociedade Anônima e a sua Responsabilidade Social e Coletiva”, de autoria de Gabriel Russi Vianna e Sandro Mansur Gibran, discute aspectos que envolvem as complexas relações das S.A., bem como seus administradores, destacando o impacto social dos atos oriundos deste universo. E, por fim, encerrando a discussão, o texto 11, “Apropriação Indébita Previdenciária: Bases Constitucionais da Criminalização da Omissão de Repasse e A Questão da Inexigibilidade de Conduta conforme o Direito pela situação financeira precária da Empresa”, de autoria de Janaína Elias Chiaradia e Fábio André Guaragni, discute a questão previdenciária e seus impactos, problematizando preceitos e princípios legais relativos ao tema. Com esse conjunto de trabalhos espera-se estar oferecendo ao leitor uma diversidade de possibilidades e situações que envolvem o tema relacionado ao livro, demonstrando que práticas relacionadas à responsabilidade e cidadania empresarial ensejam diferentes situações às quais merecem ser compreendidas à luz do equilíbrio legal e dos constitucionais princípios da dignidade humana e da justiça social. Boa leitura!!!! Coordenadoras do Grupo de Trabalho Professora Doutora Ana Cláudia Farranha Santana – UnB Professora Doutora Danielle Anne Pamplona – PUC PR Professora Doutora Terezinha de Oliveira Domingos – UNINOVE Referência Bibliográfica: CAPELLIN, P & GIFFONI, R. As Empresas em Sociedades Contemporâneas: a responsabilidade social no Norte e no Sul. Cadernos CRH. Salvador, v. 20, n. 51, p. 419-434, Set./Dez. 2007. 12 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial EMPRESA: PERSPECTIVAS DE MUDANÇAS DIRECIONADAS À RESPONSABILIDADE SOCIAL COMPANY: CHANGE'S PROSPECTS DIRECTED TO SOCIAL RESPONSIBILITY Castro, Aldo Aranha de* Genovez, Simone* SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Aspectos gerais da empresa 2.1 A empresa sob a perspectiva pósmoderna 3 Função Social Empresarial 4 Responsabilidade Social Empresarial 4.1 Partes Interessadas – Stakeholders 4.1.1 Acionistas ou Investidores 4.1.2 Funcionários ou Empregados 4.1.3 Clientes e Consumidores 4.1.4 Fornecedores 4.1.5 Comunidade 4.1.6 Meio Ambiente 4.1.7 Governo e Sociedade 5 Responsabilidade Social da Empresa na dimensão Ambiental 6 Conclusão 7 Bibliografia RESUMO: O presente estudo tem por objetivo analisar o papel da empresa moderna sob o enfoque econômico, social e ambiental. Toda investigação tem por base o princípio constitucional da função social da empresa (Art. 170, III, da Constituição Federal), princípio indispensável para atingir a responsabilidade social. A atividade empresarial deve ser desenvolvida visando o bem-estar de todas as partes interessadas, trabalhadores, consumidores, fornecedores, comunidade, Estado e meio ambiente. A empresa que busca tornar-se responsável socialmente deve adotar uma postura ética e transparente, cumprir as leis existentes, e mais, buscar conciliar seus interesses particulares com os sociais e ambientais. O diferencial da empresa moderna é trabalhar o econômico, o social e o ambiental juntos, a fim de possibilitar a todos, existência digna e Justiça social, princípios básicos almejados pelo ordenamento jurídico brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Empresa; Função Social; Responsabilidade Social. ABSTRACT: The present study aims to examine the role of the modern corporation with a focus economic, social and environmental. All research is based on the constitutional principle of the social function of the company (Art. 170, III of the Federal Constitution), a principle essential to achieve social responsibility. The business activity shall be developed for the well-being of all stakeholders, employees, customers, suppliers, community, state and environment. The company seeks to become socially responsible should adopt an ethical and transparent manner, enforce existing laws and seek more reconcile their interests with social and environmental. The spread of modern business is to work the economic, social and environmental together in order to facilitate everyone, dignified and social justice, basic principles pursued by Brazilian law. KEYWORDS: Company; Social Function; Social Responsibility. * Advogado atuante na cidade de Marília/SP. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela UEL/PR. Mestrando do curso de Mestrado em Direito da Universidade de Marília – UNIMAR. * Mestre em Direito pela Universidade de Marília - UNIMAR e professora da Graduação em Direito da Faculdade de Sinop - Fasip. 13 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial INTRODUÇÃO A empresa vem assumindo papel de destaque no cenário socioeconômico e jurídico, razão pela qual pretende-se demonstrar se ela é sujeito ou objeto de direito. É neste contexto, que se possibilita à empresa analisar as mudanças que vem acontecendo no mercado local e global e adequar suas atividades de acordo com as necessidades atuais e os preceitos do ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição Federal, ao colocar o princípio da função social da propriedade dentro do capítulo da ordem econômica, estendeu esta obrigação à iniciativa privada, razão pela qual faz-se necessário abordar o novo perfil da atividade empresarial, a fim de esclarecer os aspectos da função social empresarial para atingir a responsabilidade social da empresa. A presente investigação, ao tratar a responsabilidade social pontuando todas as partes interessadas – Stakeholders e a dimensão ambiental, procurará demonstrar que a empresa de hoje, no exercício de suas atividades, assume compromissos sociais, ambientais e jurídicos, diante da nova tendência mercadológica e do ordenamento jurídico vigente. A presente pesquisa tem por objetivo demonstrar que a empresa não é um sistema fechado, voltado aos seus interesses particulares, ela faz parte da sociedade, razão pela qual deve interagir com os sistemas social, ambiental e jurídico, a fim de alcançar a responsabilidade social. Neste contexto, a empresa é capaz de desenvolver suas atividades particulares, cumprir as leis existentes, ser competitiva no mercado e ainda tornar-se responsável socialmente? Assim, delimitado os principais pontos da pesquisa, pretende-se esclarecer, contextualizar e demonstrar que o novo perfil empresarial é conseguir desenvolver suas atividades à luz das leis vigentes, dos interesses sociais e ambientais e, ainda, de todos os públicos com os quais ela se relaciona. 1 ASPECTOS GERAIS DA EMPRESA A empresa faz parte da realidade contemporânea, aparentemente simples de compreender, porém com uma complexidade ímpar, com atribuições internas e externas, com direitos e obrigações que deverão ser ponderadas para permanecer no mercado atual. 14 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial O papel econômico das empresas nas últimas décadas está em ascensão de modo que, para compreendê-las, fazem-se necessários estudos aprofundados e específicos de suas funções, bem como a necessidade de regulamentá-las através de normas jurídicas. A norma jurídica é o resultado da realidade social, dos objetivos dos seres humanos, sua conduta, concretizados em dispositivo de lei. No entanto, não seria prudente conceituar empresa analisando somente os aspectos jurídicos, apartando os econômicos. “Essencial é que não percam de vista o fato econômico empresa, regulando-o juridicamente para que sua atuação possa ajustar-se aos interesses sociais”.1 Apesar de existir corrente doutrinária contrária no sentido de separar os conceitos econômico e jurídico de empresa, somente a junção desses conceitos abordando aspectos sociais, políticos, dentre outros, é que permite compreender a empresa diante de sua complexidade. A palavra ‘empresa’ oferece tão variados sentidos, que se torna temerário empregá-la apenas em significado jurídico, ou econômico, como de hábito, e desprezando, dentre outras, as preocupações sociológicas, políticas, antropológicas que a envolvem.2 É diante desse cenário complexo que se analisa o direito empresarial frente às modificações trazidas pelo Código Civil Brasileiro, Lei 10.406/2002, que a unificou com o direito das obrigações, revigorando a discussão em torno da natureza jurídica da empresa. Muito embora o legislador tenha definido o que é empresário em dispositivo de lei, assim não o fez em relação à empresa, cabendo à doutrina defini-la. Atualmente empresa, empresário e estabelecimento são elementos distintos na composição da organização econômica. Para Hentz “A empresa é o ente responsável pela satisfação das necessidades coletivas, mediante o exercício de atividades de produção, intermediação e prestação de serviços”.3 A empresa é uma instituição organizada para produzir e distribuir bens e serviços no mercado, gerar riqueza, empregar e relacionar com fornecedores e consumidores de forma 1 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 27. 2 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Conceito de empresa: Um desafio que persiste?. Revista Jurídica Consulex, Ano VIII, n. 171, 29 fev. 2004, p. 58. 3 HENTZ, Luiz Antonio Soares. Direito Empresarial: Bases do direito empresarial, empresa e estabelecimento, empresário: direitos e deveres, sociedades empresariais. Ed. rev. e atual. São Paulo: Editora de Direito, 1998, p. 55. 15 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial ética e transparente para, além de ganhar confiança e credibilidade, ser propulsora do desenvolvimento econômico do país, fundamento da Ordem Econômica Constitucional. Assevera Rachel Sztajn que: Empresas são instituição econômica que, visando ao desenvolvimento das atividades de produção e distribuição de bens e serviços nos mercados, criação de riquezas ou utilidades, interessam a operadores do direito e a economistas. São criação da iniciativa econômica em que meios patrimoniais se aliam a outros pessoais, e, portanto, são uma fattispecie originária, devem ter suporte fático próprio não derivado da noção de empresário.4 (grifo autor) O que permite aduzir que a atividade empresarial, enquanto instituição, é distinta daquela exercida pelo empresário. O Art. 966 do Código Civil considera empresário “quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços”.5 Esta atividade deve ser entendida como de gestão, administração do empresário na produção e distribuição dos bens e serviços de modo a garantir maior produção, no menor custo, com bom rendimento, tudo de conformidade com a legislação brasileira e em benefício da sociedade. Ao passo que estabelecimento é composto pelo conjunto de bens corpóreos e incorpóreos que compõe a empresa, inclusive pode ter vários estabelecimentos uma empresa. Estabelecimento empresarial é o conjunto de bens que o empresário reúne para exploração de sua atividade econômica. Compreende os bens indispensáveis ou úteis ao desenvolvimento da empresa, como as mercadorias em estoque, máquinas, veículos, marca e outros sinais distintivos, tecnologia etc. Trata-se de elemento indissociável à empresa. Não existe como dar início à exploração de qualquer atividade empresarial, sem a organização de um estabelecimento.6 Nota-se, com isso, que ambos se complementam, porém cada um deles exerce uma função específica para a concretização do resultado final, razão pela qual a empresa deve ser vista como figura autônoma, dissociada do empresário e dos bens utilizados para exploração de suas atividades, entendida como sujeito de direito com personalidade jurídica e não como objeto da atividade econômica empresarial. 4 SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. 2º ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 150. 5 CIVIL, Código. Art. 966. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 18 out. 2012. 6 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 10 ed. rev. e atual. de acordo com a nova Lei de Falências. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 96. 16 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial As mudanças no campo jurídico acontecem lentamente, não acompanham as sociais, sendo infundado para muitos doutrinadores olhar a empresa separada do empresário, que sempre foi o sujeito de direito, o personagem central, responsável pelos atos empresariais. Não resta a menor dúvida de que ainda reinam as mais intensas dissensões sobre a “personalidade jurídica”, de modo geral, e sobre a “natureza jurídica da “empresa”, em especial. Quanto a esta última, porém, apesar do conservadorismo de alguns que insistem em tomá-la como sinônimo de “atividade” exercida pelo “empresário”, o próprio emprego do termo na literatura jurídica já de há muito a consagrou como “sujeito” de Direito.7 Doutrinadores franceses já tinham suscitado a necessidade da empresa nascer como sujeito apartado da pessoa física do empresário e/ou comerciante, dentre eles, Michel Despax em 1957 já afirmava que “o fenômeno da dissociação entre empresa e empresário nada mais era do que uma manifestação de ascensão à vida jurídica de um novo sujeito de direito, que tomava lugar ao lado do sujeito de direito tradicional, o empresário”.8 Apesar de existir posicionamento neste sentido, desde a segunda metade do século XX, grande parte da doutrina posicionava-se contrário a personalização jurídica da empresa, o que justifica ter que romper o tradicional para dar espaço a uma nova situação fática – um novo sujeito de direito. Ademais, o direito de propriedade confundia-se com o do empresário, que era quem exercia todas as funções administrativas, jurídicas (contratos para relacionar-se com os empregados, fornecedores, clientes), bem como respondia pelas obrigações empresariais assumidas, surgindo daí, a ideia de que a empresa pertence ao seu proprietário, o empresário, sujeito de direito este, objeto aquela. Com o fenômeno da globalização, mudanças socioeconômicas ocorreram, transformando empresas individuais em coletivas, cujos sócios não administram, mas delegam essa tarefa a um terceiro, o administrador, a função de decidir o futuro da empresa. “[...] o acionista, salvas situações excepcionais, não é interessado na administração dos negócios da firma. Seu interesse é mais financeiro do que administrativo”.9 Neste passo, o administrador, além de buscar atingir os objetivos empresariais e cumprir a função social determinada pela Constituição Federal, tem novas responsabilidades 7 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras linhas de direito econômico. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: LTr, 1994, p. 225. 8 DESPAX, Michel. p. 414 apud KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2 ed. Rio de janeiro: Forense, 2002, p. 42. 9 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Conceito de empresa: Um desafio que persiste?. Revista Jurídica Consulex, Ano VIII, n. 171, 29 fev. 2004, p. 59. 17 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial sociais a alcançar para garantir a sustentabilidade da própria empresa no mercado e o lucro almejado pelos acionistas. Fato este que demonstra ser a organização um ente que complementa a atividade do empresário e não um instrumento para a realização dessa atividade, razão de ser considerada atualmente como sujeito de direito, vale dizer, com competência para participar das relações jurídicas, assumir obrigações e ver garantido seus direitos. Vários são os exemplos em que a legislação brasileira tem a empresa como sujeito de direitos: a) na nova Lei de Falência, no caso da recuperação da empresa; b) da sociedade anônima; c) o Art. 173, § 5º da Constituição Federal que responsabiliza a empresa, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular; d) imputação criminal a empresas por crimes ambientais, o que demonstra ter a empresa personalidade, pois responde pelos danos que causar. Sendo assim, é imperioso mencionar o caso Abecitrus, em que o Superior Tribunal de Justiça concedeu segredo de justiça em processo administrativo, sob pena de violação ao direito de privacidade da empresa, o que foi confirmado pelo Tribunal Superior, ante a prevalência do direito à privacidade da empresa sobre o interesse público dos dados do processo.10 Percebe-se que a empresa foi tratada em igualdade de condições com os sujeitos de direito, descartando a possibilidade de ser ela considerada objeto numa relação jurídica, o que de fato efetiva sua independência e autonomia para reavaliar as novas necessidades humanas, contextualizadas no âmbito da responsabilidade social. Assim, está em foco a empresa e qual a posição que ocupa no cenário econômico contemporâneo, sendo certo que rompeu barreiras e superou dogmas tradicionais, adequandoa às necessidades e valores da sociedade moderna, contribuindo para o avanço tecnológico, econômico e social, este último com ajuda de dispositivos legais que acabou com a individualidade empresarial de outrora sem compromisso com o bem-estar social. 2.1 A EMPRESA SOB A PERSPECTIVA PÓS-MODERNA As transformações ocorridas no mundo nas últimas décadas, nos âmbitos econômico, social, jurídico e político, impactaram diretamente no perfil da empresa contemporânea. Outrora, ela exercia suas funções em total desarmonia com o interesse social, valorizava 10 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Medida Cautelar 13.103/SP. Disponível em: <http//:WWW.stj.jus.br>. Acesso em: 11 out. 2012. 18 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial apenas o ter, desconsiderava por completo o ser, ou seja, as relações trabalhistas, consumeristas, ambientais, entre outras. Com o crescimento das cidades, o avanço tecnológico e das telecomunicações, desapareceram as barreiras geográficas, o que facilitou as interações e as transações entre as empresas num curto espaço de tempo, assim como acirrou a concorrência entre elas, que procuraram expandir seus investimentos em regiões onde o custo para produzir é mínimo, as isenções fiscais são melhores, mão-de-obra barata e matéria-prima suficiente para instalar sua indústria, dentre outros benefícios. Em outras palavras, a preocupação maior era reduzir os custos na produção e aumentar o lucro no produto final a ser colocado no mercado. A visão empresarial sempre foi produzir e obter lucro, sem preocupação com poluição do meio ambiente, qualidade de vida dos trabalhadores, da sociedade, dos consumidores e o impacto que essas ações poderiam causar para as gerações vindouras. E, quando pressionadas pela sociedade a mudar a forma de produzir, muitas acreditavam serem manifestações passageiras, outras diziam que sempre fizeram daquela forma, e mais, que “os problemas sociais e ambientais dos processos de produção eram um preço a se pagar pela modernidade”.11 Esta é a visão capitalista do sistema capitalista. Contemporaneamente, mudanças vêm ocorrendo na postura das empresas, elas estão adotando políticas voltadas a questões sociais e ambientais que até pouco tempo não entendiam ser de sua responsabilidade, contribuindo para o avanço responsável e sustentável do país e do mundo. Empresas do setor privado, ou estatais no setor produtivo, têm englobado diversas preocupações com a esfera pública, como ações ambientais e sociais, que até pouco tempo não eram encaradas como responsabilidades das empresas. Na iniciativa privada, muitas das reações contrárias e conflituosas às iniciativas ambientais existentes no passado estão dando lugar a uma crescente associação de melhoria ambiental com empresa eficiente e responsável, refletindo, em muitos casos, diretamente na imagem e capacidade de produção da empresa.12 A empresa vem moldando seu perfil às mudanças exigidas pela sociedade para produção, circulação e permanência de bens e serviços no mercado, voltada para a valorização dos interesses sociais, econômicos e ambientais, concomitantemente com o lucro que lhe é inerente, ultrapassando a individualidade de outrora, numa simples percepção da realidade. 11 OLIVEIRA, José Antônio Puppim de. Empresas na sociedade: sustentabilidade e responsabilidade social. 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 114. 12 OLIVEIRA, José Antônio Puppim de. Empresas na sociedade: sustentabilidade e responsabilidade social. 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 114. 19 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Deste modo, oportuno analisar a função e a responsabilidade social da empresa e seus aspectos jurídicos. 3 FUNÇÃO SOCIAL EMPRESARIAL A Constituição Federal, no Art. 170, inciso III, ao estipular a função social da propriedade, estendeu esta obrigação à iniciativa privada, limitando suas atividades aos fins da ordem econômica, existência digna de todos e justiça social. O princípio da função social não retirou do titular a propriedade, apenas a condicionou a imperativos outrora não observados pelos proprietários, relativizando-a, eis que, para desempenhar suas funções, fabricar produtos, os interesses individuais devem estar em consonância com os interesses da sociedade. Deste modo, a empresa passa a produzir visando seus interesses particulares e sociais, de acordo com a ordem jurídica vigente, leis trabalhistas, ambientais, tributárias, do consumidor, de modo que toda atividade econômica desempenhada pela organização seja livre de qualquer irregularidade, abuso ou ilicitude e traga benefício à coletividade, transparecendo a boa-fé e o compromisso que possui com todos que com ela se relaciona, sendo estes os diferenciais exigidos atualmente para permanecer no mercado globalizado. A adoção de um modelo social empresarial desponta como decorrência da busca do equilíbrio do livre mercado, somado aos interesses sociais. A sociedade de consumo atual, o novo contorno das atividades empresariais fazem despertar, na empresa moderna, a necessidade de reflexão acerca de suas ações e funções em um mundo globalizado, onde diferenciais passam a ser imperiosos como forma de estar no mercado.13 Deste modo, a função social da empresa privada é direcionar suas ações, traçar diretrizes que a levem a bons resultados na fabricação de seus produtos, observando os imperativos legais e os anseios da sociedade local e global. A função social da empresa é um instrumento para dar efetividade à lei, garantia aos cidadãos, melhoria na qualidade de vida da população, além de reprimir condutas contrárias à ordem econômica, preservar a livre concorrência e controle dos meios privados de produção. 13 FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. Função social e função ética da empresa. Revista Jurídica da Unifil, Ano II, n. 2. Disponível em: <http://web.unifil.br/docs/juridica/02/Revista%20Juridica_02-4.pdf>. Acesso em 20/07/2011. 20 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial O princípio da função social da propriedade ganha substancialidade precisamente quando aplicado à propriedade dos bens de produção, ou seja, na disciplina jurídica da propriedade de tais bens, implementada sob compromisso com a sua destinação. A propriedade sobre a qual os efeitos do princípio são refletidos com maior grau de intensidade é justamente a propriedade, em dinamismo, dos bens de produção. Na verdade, ao nos referirmos à função social dos bens de produção em dinamismo, estamos a aludir à função social da empresa.14 Muito embora este princípio sirva de norte para todas as espécies de propriedade, o fato de a Constituição contemplá-lo entre os da atividade econômica, reforça a escolha pelo sistema capitalista, cujos bens de produção são dinâmicos quando utilizados para gerar outros produtos a serem disponibilizados no mercado, contribuindo na geração de riquezas e desenvolvimento socioeconômico do Estado. Assim, pois, a iniciativa econômica privada é amplamente condicionada no sistema da constituição econômica brasileira. Se ela se implementa na atuação empresarial e esta se subordina ao princípio da função social, para realizar ao mesmo tempo o desenvolvimento nacional e assegurar a existência digna de todos, conforme ditames da justiça social, bem se vê que a liberdade de iniciativa só se legitima, quando voltada à efetiva consecução desses fundamentos, fins e valores da ordem econômica.15 A atividade empresarial só será funcional e legítima quando os gestores proporcionarem empregos condizentes com a dignidade da pessoa humana, colocar produtos de qualidade com bom preço no mercado, ter bom relacionamento com o público externo, cumprir as leis e pagar os impostos relativos com sua atividade. Com isso, tem-se que a função social econômica deu abertura para as empresas reorganizarem seu modo de agir transcendendo interesses individuais para alcançar a responsabilidade social, eixo de sustentação econômica para permanência no mercado, bem assim contribuir com o desenvolvimento da nação. 4. RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL Atualmente muito se escreve sobre responsabilidade social empresarial e suas implicações no campo econômico, social, ambiental e jurídico, mas pouco se escreve sobre seu surgimento, o que engloba, conceito e partes interessadas. 14 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 14 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Malheiros, 2010, p. 243. 15 SILVA, Américo Luís Martins da. A ordem constitucional econômica. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 220. 21 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Cristiane de Oliveira Silva Duarte e Juliana de Queiroz Ribeiro Torres pontuam as dimensões históricas do surgimento da responsabilidade social empresarial: As primeiras manifestações sobre esse tema surgiram, no início do século, em trabalhos de Charles Eliot (1906), Arthur Hakley (1907) e John Clark (1916). No entanto, tais manifestações não receberam apoio, pois foram consideradas de cunho socialista. Foi somente em 1953, nos Estados Unidos, com o livro Social responsabilities of the businessman, de Howard Bowen, que o tema recebeu atenção e ganhou espaço. Na década de 70, surgem associações de profissionais interessados em estudar o tema: American Accouting Association e American Institute of Certified Public Accountants. É a partir daí que a responsabilidade social deixa de ser simples curiosidade e se transforma em um novo campo de estudo.16 No Brasil o movimento de responsabilidade social surgiu de uma série de iniciativas e movimentos empresariais. Na década de 60 um grupo de empresários fundou em São Paulo a Associação de Dirigentes Cristãos de Empresas (ADCE) que, por meio de ensinamentos, os cristãos estudavam as atividades econômicas e sociais do meio empresarial. Nas décadas de 70 e 80 surgiram: a Fundação Instituto de Desenvolvimento Empresarial e Social (Fides), criada com base no ADCE; o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Na década de 90, o Grupo de Institutos Fundações e Empresas (Gife), criado em 1995, foi o primeiro a transformar o interesse empresarial em investimento social privado; em 1997 surge o modelo de balanço social; em 1998 surge o Instituto Ethos de Empresa e Responsabilidade Social.17 Todos estes institutos criados tiveram como objetivo orientar as empresas em suas atividades, com base na ética, transparência e, também, como se relacionar com seus diversos públicos. No entanto, foi com a criação do Instituto Ethos, que as empresas brasileiras passaram a incorporar o conceito de responsabilidade social, bem como buscaram meios de implantar este novo sistema, voltando suas práticas não só aos seus interesses particulares, mas em parceria com a comunidade na qual estão inseridas. A questão da responsabilidade social abrange muito mais do que simples doações financeiras ou materiais, campanhas de arrecadação de bens e objetos que, apesar de ser ato importante por parte da instituição, não significa que a mesma tenha responsabilidade social, 16 DUARTE, Cristiani de Oliveira Silva; TORRES, Juliana de Queiroz Ribeiro. Responsabilidade social empresarial: Dimensões históricas e conceituais. In: Responsabilidade social das empresas: a contribuição das universidades. v. 4. São Paulo: Peirópolis: Instituto Ethos, 2005, p. 22-23. 17 DUARTE, Cristiani de Oliveira Silva; TORRES, Juliana de Queiroz Ribeiro. Responsabilidade social empresarial: Dimensões históricas e conceituais. In: Responsabilidade social das empresas: a contribuição das universidades. v. 4. São Paulo: Peirópolis: Instituto Ethos, 2005, p. 25. 22 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial pois amenizar os problemas pontuais não os solucionam, ponto este que diferencia a empresa responsável daquela que apenas pratica filantropia. Segundo o Instituto Ethos, a diferença entre filantropia e responsabilidade social consiste basicamente em: A filantropia é basicamente uma ação social externa à empresa, que tem como beneficiária principal a comunidade em suas diversas formas (conselhos comunitários, organizações não-governamentais, associações comunitárias) e organizações. A responsabilidade social é focada na cadeia de negócios da empresa e engloba preocupações com um público maior (acionistas, funcionários, prestadores de serviço, fornecedores, consumidores, comunidade, governo e meio ambiente), cuja demanda e necessidade a empresa deve buscar entender e incorporar nos negócios. Assim, a responsabilidade social trata diretamente dos negócios da empresa e de como ela os conduz.18 Assim, ações empresariais que não tem continuidade, que são usadas esporadicamente para se autopromover, acabam se tornando um paliativo para a grave conjuntura social. Ao passo que nas ações socialmente responsáveis existe um envolvimento, um comprometimento da empresa com seus diversos públicos, a fim de solucionar e satisfazer tantos os seus interesses particulares quanto o bem-estar social. O setor empresarial, com a globalização e os avanços tecnológicos, vem sendo testado na medida em que devem atingir níveis cada vez maiores e melhores de competitividade e produtividade, tendo hoje que se preocupar com ações sociais contínuas e permanentes, diante das desigualdades sociais, o que forçam a repensar os sistemas econômicos, sociais e ambientais. Ainda para o Instituto Ethos, responsabilidade social é: [...] a forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais se relaciona. Também se caracteriza por estabelecer metas empresariais compatíveis com o desenvolvimento sustentável da sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para as gerações futuras, respeitando a diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais.19 18 ETHOS, Instituto de Empresas e Responsabilidade Social. Perguntas frequentes: o que é responsabilidade social empresarial. Disponível em: < http://www1.ethos.org.br//EthosWeb/pt/93/servicos_do_portal/perguntas_frequentes/perguntas_frequentes.aspx> . Acesso em: 19 out. 2012. 19 19 ETHOS, Instituto de Empresas e Responsabilidade Social. Perguntas frequentes: o que é responsabilidade social empresarial. Disponível em: < http://www1.ethos.org.br//EthosWeb/pt/93/servicos_do_portal/perguntas_frequentes/perguntas_frequentes.aspx> . Acesso em: 19 out. 2012. 23 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Neste sentido, a empresa, para atingir a responsabilidade social, deve atentar para suas atividades, o que significa que suas ações devem estar em conformidade com os interesses dos consumidores, trabalhadores, fornecedores, meio ambiente, estudando meios que diminuam o impacto de suas ações e, consequentemente, valorizem as atividades que buscam uma gestão social mais humana. No entanto, para que isso se torne efetivo, é necessário que o Estado atue em parceria com o setor empresarial, conceda incentivos às empresas públicas e privadas, no sentido de estimulá-las a concretizar esta teoria que traz benefícios tanto à sociedade quanto ao Estado, que terá ajuda do setor privado na busca de realizar os princípios constitucionais da dignidade, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, reduzir as desigualdades sociais, promover o desenvolvimento nacional, conforme dispõem os Art. 1º e incisos, Art. 3º e incisos e Art. 170 e incisos, todos da Constituição Federal. Luís Roberto Barroso entende que “a efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização dos fatos e dos preceitos legais, e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre dever-ser normativo e o ser da realidade social.”20 Deste modo, para que os princípios básicos da Constituição Federal sejam concretizados no exercício das empresas e tenha a efetividade almejada, as práticas empresariais devem ser éticas, transparentes e coerentes, pois não adianta a empresa desenvolver programas sociais se, no dia-a-dia desrespeita seus funcionários, clientes, consumidores, polui o meio ambiente, paga propina aos fiscais do governo para não ser multada frente às suas irregularidades. O conjunto de valores normativos devem ser observados para que, de fato, consiga efetivar a responsabilidade social empresarial e, consequentemente, materializar os direitos sociais, econômicos e ambientais em suas atividades em parceria com os interesses da sociedade ao seu redor. Neste sentido, faz-se necessário mencionar, a título de exemplo, o comportamento responsável dos postos Ipiranga no Brasil, que desenvolveram um projeto chamado Posto Ecoeficiente Ipiranga, com o objetivo de adequar as instalações do posto de abastecimento, preservando os recursos naturais, sem comprometer o resultado econômico. O posto que adequar todas as ações voltadas aos recursos naturais com destinação dos resíduos, água, 20 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1993, p. 79. 24 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial energia e material de acordo com as normas especificadas no projeto recebe o selo de Posto Ecoeficiente Ipiranga.21 Com esta iniciativa, os postos Ipiranga tem por objetivo demonstrar que a atividade em conjunto com seus diversos público,s além de preservar o meio ambiente e agregar valor aos seus produtos, consegue demonstrar que é possível trabalhar visando o interesse econômico nos termos do sistema capitalista, sem comprometer os interesses sociais e ambientais. Este é um exemplo de empresa que trabalha visando ser reconhecida com responsabilidade social, pois desenvolvem suas atividades com ética e transparência, diferenciando-se dos concorrentes no mesmo setor. Sendo assim, é imperioso mencionar os diversos públicos de interesse para, de fato, conseguir demonstrar a importância deste novo sujeito, a empresa, frente às suas negociações, seus interesses econômicos, sociais, ambientais e jurídicos e, ainda, que suas ações não estão dissociadas da sociedade na qual esta inserida, pelo contrário, dela faz parte como sujeito de direito e de obrigações frente aos seus stakeholders e ao ordenamento jurídico brasileiro. 4.1 PARTES INTERESSADAS – STAKEHOLDERS A organização para atingir esse modelo de gestão socialmente responsável deve estabelecer um bom relacionamento com seus parceiros ou partes interessadas – stakeholders – pessoas ou grupos que tem interesse e influencia na atividade empresarial. E para isso alguns princípios devem observados: - abrir canais de comunicação de mão dupla, para um diálogo efetivo entre as partes; - possuir engajamento de longo prazo com as questões propostas e assumidas; - ganhar credibilidade por meio de parceiras diversificadas; - assegurar a coerência e a continuidade das ações, legitimando as ações sociais; - falar a linguagem de cada stakeholder, evitando ruídos de comunicação que possam trazer desentendimentos aos relacionamentos.22 Deste modo, a produção, a tecnologia, a informação, o lucro são tão importantes quanto a relação aberta, participativa, ética, transparente e com o cumprimento das leis 21 IPIRANGA, Posto. Posto Ecoeficiente. Disponível em: <http://www.ipiranga.com.br>. Acesso em: 22 out. 2012. 22 DUARTE, Cristiani de Oliveira Silva; TORRES, Juliana de Queiroz Ribeiro. Responsabilidade social empresarial: Dimensões históricas e conceituais. In: Responsabilidade social das empresas: a contribuição das universidades. v. 4. São Paulo: Peirópolis: Instituto Ethos, 2005, p. 36. 25 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial existentes para cada parte interessada – trabalhadores, consumidores, meio ambiente, dentre outros. Neste passo, serão traçadas algumas das responsabilidades sociais que devem ser analisadas numa gestão empresarial socialmente responsável em relação aos seus stakeholders. 4.1.1 Acionistas ou Investidores Toda empresa deve empreender esforços para obter retorno financeiro para os seus acionistas, porém trabalhar apenas com este objetivo revela-se insuficiente diante do novo contexto social. Os acionistas e investidores apresentam grande relação de confiança com a organização, uma vez que assumem enormes riscos ao prover consideráveis valores para alavancar os negócios. Por isso, ao efetuarem suas aplicações financeiras, preocupam-se em fazê-lo em empresas sólidas e coerentes, que respeitem o meio ambiente, as condições humanas e sociais de seus empregados e zelem pela qualidade de suas relações.23 Deste modo, a atividade empresarial deve respeitar o meio ambiente, dignidade do homem, a comunidade, e os acionistas, antes de investir seu capital, deverão procurar por empresas responsáveis socialmente que já estão se antecipando diante das variações do mercado e melhorando o sistema sócio-operacional em prol da coletividade. Assim, atitudes socialmente responsáveis das organizações também dependem da parceria de investidores conscientes e atualizados, preocupados com a sustentabilidade dos negócios, tanto nesta quanto nas próximas décadas, e não apenas com o retorno imediato sem perspectivas de futuro. 4.1.2 Funcionários ou Empregados Os funcionários ou empregados são os responsáveis pelo desenvolvimento da empresa, são os trabalhadores diretos que necessitam receber tratamento diferenciado, serem protegidos, motivados e preparados para exercer suas atividades. 23 DUARTE, Cristiani de Oliveira Silva; TORRES, Juliana de Queiroz Ribeiro. Responsabilidade social empresarial: Dimensões históricas e conceituais. In: Responsabilidade social das empresas: a contribuição das universidades. v. 4. São Paulo: Peirópolis: Instituto Ethos, 2005, p. 37. 26 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Tanto que a Constituição Federal de 1988 inseriu como um dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, a valorização do trabalho (Art. 1º, inciso IV), procurou descriminar uma série de direitos aos trabalhadores (Art. 7º e incisos), destacou a importância do trabalho no capítulo da ordem social (Art. 193) e ainda colocou que a ordem econômica explicita o trabalho humano como um de seus fundamentos (Art. 170, caput). Estes dispositivos normativos demonstram a importância dos trabalhadores, e que seus direitos estão garantidos por norma constitucional, razão pela qual o empregador deve respeitá-los e buscar meio de incluí-los em sua cadeia de negócios, valorizando-os dignamente. No entanto, a empresa responsável socialmente não é aquela que resume em cumprir as leis trabalhistas, valorizar o trabalho humano, oferecer segurança e condições dignas e salubres para o funcionário exercer suas funções, ela ultrapassa esses objetivos, quando interage com eles, tem uma política de comunicação eficiente, desenvolve atividades para aperfeiçoá-los e educá-los, permite a participação deles, ou seja, é uma empresa transparente que divide com seus empregados todas as ações e planejamentos em busca de melhores resultados. Para melhor compreender o papel da empresa com responsabilidade social essas ações práticas elucidam a amplitude do valor do trabalhador. É importante ter um canal de comunicação aberto com os funcionários. Crie um ambiente de trabalho que incentive os funcionários a trazer novas ideias e opiniões sobre a empresa. Valorize também um ambiente de trabalho adequado e higiênico. Contrate e promova pessoas com experiências e perspectivas diferentes. Além disso, diversifique na seleção de funcionários. Inclua no quadro de pessoas grupos minoritários, como portadores de deficiência, ex-detentos, afrodescendentes e pessoas com mais de 45 anos. Ofereça treinamento, incentive e recompense o desenvolvimento de talentos. Estabeleça diretriz contra o abuso sexual. Informe aos funcionários o desempenho da empresa. Crie um programa de participação nos lucros. Evite demissões. Antes de demitir um funcionário identifique outras alternativas. Mas, quando necessário, reduza o pessoal com dignidade e crie programas de recolocação e requalificação profissional. Preserve a saúde e o bem-estar dos funcionários e dos seus familiares. Planos de saúde, estímulo a práticas esportivas, programas de combate ao fumo e ajuda a dependentes químicos são algumas iniciativas. 27 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Apoie a educação dos empregados e de seus familiares. Crie programas de alfabetização, qualificação e ajude a colocar os filhos de seus funcionários na escola.24 Assim, a organização com responsabilidade social deve criar um ambiente de trabalho sadio onde o empregado possa participar com sugestões e opiniões, além de ser valorado pelas suas atitudes, sem qualquer tipo de preconceito e discriminação, melhorando a produtividade e o compromisso dos funcionários com a empresa, e desta com a sociedade. 4.1.3 Clientes e Consumidores O vínculo entre empresa, clientes e consumidores vai além da venda e compra do produto ou serviço, requer competência, transparência e responsabilidades em relação aos bens disponibilizados no mercado para comercialização ou consumo. A Constituição Federal colocou a defesa do consumidor entre os direitos fundamentais (Art. 5º, inciso XXXII) e, ainda, como um dos princípios da ordem econômica e financeira (Art. 170, inciso V), ressaltando sua importância em norma superior. Ainda foi criado o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990), que regula as relações de consumo, destacando que, dentre elas, que deve existir equilíbrio e harmonia entre consumidor e fornecedor. A atividade empresarial socialmente responsável em relação aos clientes e consumidores é muito abrangente e minuciosa, pois o gestor desde a fabricação até a disponibilidade dos bens e serviços deve se preocupar com segurança, eficiência, qualidade, riscos, possível dano à saúde e à sociedade, oferecer informações claras e corretas, além de atendê-los antes, durante e depois de efetuada a venda, evitando possíveis desconfortos e constrangimentos com o uso e o consumo do produto.25 A norma ISO/DIS 26000 estabelece parâmetros a serem seguidos pela organização tanto em relação aos clientes e consumidores, quanto ao marketing e práticas contratuais justas. O marketing justo requer que a empresa forneça informações baseadas em fatos de fácil entendimento e não sejam tendenciosas, possibilitando aos consumidores tomar decisões 24 SILVA, Rafaela Cristina da; VITTI, Aline; BOTEON, Margarete. Diretrizes da responsabilidade social empresarial no setor de hortifrutícola. Disponível em: <http://www.sober.org.br/palestra/6/459.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2011. 25 LOURENÇO, Alex Guimarães; SCHÖDER, Deborah de Souza. Vale investir em responsabilidade social empresarial? Stakeholders, ganhos e perdas. In: Responsabilidade social das empresas: a contribuição das universidades. v. 2. São Paulo: Peirópolis: Instituto Ethos, 2003, p. 96. 28 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial quanto às suas compras e comparar as características dos diferentes produtos e serviços. Deve estabelecer relações contratuais equilibradas entre as partes. E, ainda, informar sobre os impactos socioambientais em todo o ciclo de vida e ao longo da cadeia de valor, bem como evitar informações injustas, incompletas ou enganosas prejudiciais ao consumidor e ao meio ambiente.26 Em relação à proteção à saúde e segurança do consumidor, a empresa deve oferecer produtos e serviços seguros, com instruções claras de como usar ou utilizar estes, a fim de minimizar riscos quando usados e consumidos de acordo com as indicações. A ISO/DIS 26000 recomenda algumas medidas a serem adotadas pela empresa para garantir a saúde e segurança do consumidor, dentre elas: - forneça produtos e serviços que, sob condições de uso normais e razoavelmente previsíveis, sejam seguros para os usuários, outras pessoas, suas propriedades, e para o meio ambiente; - avalie leis, regulamentos, normas e outras especificações de saúde e segurança para contemplar todos os aspectos de saúde e segurança. Recomenda-se que a organização exceda essas exigências mínimas de segurança quando houver evidência que a superação dessas exigências atingiria uma proteção significativamente melhor, como demonstrado pela ocorrência de acidentes envolvendo produtos ou serviços que estão em conformidade com exigências mínimas, ou a disponibilidade de produtos ou designs de produtos que possam reduzir o número ou a gravidade dos acidentes; - minimize os riscos no design dos produtos: reduzindo o risco usando a seguinte ordem de prioridade: design inerentemente seguro, dispositivos de proteção e informações para usuários; - quando um produto, após ter sido lançado no mercado, apresentar um perigo imprevisto, tiver um defeito grave ou contiver informações enganosas ou falsas, retire todos os produtos que estiverem ainda na rede de distribuição e faça um recall dos produtos usando medidas e meios apropriados para atingir o público que comprou o produto. Medidas de rastreabilidade poderão ser relevantes e úteis. Dentre outras medidas.27 Neste contexto, a empresa deve promover a educação dos clientes e consumidores quanto ao consumo consciente, quais os efeitos que suas escolhas podem ocasionar no meio 26 MINUTA DE NORMA INTERNACIONAL ISO/DIS 26000. Diretrizes sobre responsabilidade social. Disponível em: < http://www.inmetro.gov.br/qualidade/responsabilidade_social/ISO_DIS_26000_port_rev0.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2011, p. 01. 27 MINUTA DE NORMA INTERNACIONAL ISO/DIS 26000. Diretrizes sobre responsabilidade social. Disponível em: < http://www.inmetro.gov.br/qualidade/responsabilidade_social/ISO_DIS_26000_port_rev0.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2011, p. 01. 29 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial ambiente e na sociedade, conscientizando-os do papel decisivo que desempenham na promoção do desenvolvimento sustentável.28 Diante de todos estes aspectos, tão importante quanto colocar produtos e serviços no mercado, é sensibilizar os clientes e consumidores sobre o que de fato estão adquirindo, envolvendo-os e de certa forma conscientizando de que também tem deveres, não é só comprar, mas seguir também as instruções da embalagem. Suas obrigações se estendem a adquirir bens produzidos de empresas que desenvolvam produtos pensando no bem-estar da sociedade, do meio natural, ou seja, consumir produtos que minimizam riscos à saúde, à comunidade e ao ambiente em geral. Neste sentido, Antônio Carlos Efing expõe sobre a importância do consumidor consciente: O consumidor só poderá tornar-se agente capaz de interagir com o mercado de consumo a ponto de influenciar somente a manutenção de empresas socioambientalmente corretas, se for corretamente informado e educado. A conscientização crítica do consumidor demanda informações e sua educação para a adoção dos valores socioambientais tais como os norteadores de suas decisões. Para isso a atuação do Estado é necessária, na medida de sua responsabilidade por tais atos (educação e informação). Além do Estado, a sociedade também é responsável pela propagação das práticas de consumo consciente, visto que a própria preservação do planeta depende desta nova cultura.29 Deste modo, não somente a organização tem deveres e obrigações, mas também os clientes e consumidores em parceria podem cooperar para ajudar a concretizar a responsabilidade social empresarial, quando procuram comprar produtos de empresas que vem buscando tornar-se responsáveis socialmente, ou seja, aquelas que tem compromissos condizentes com bem-estar de todos. 4.1.4 Fornecedores Os fornecedores são os parceiros diretos da empresa, podendo ser chamados de auxiliares da atividade produtiva, cuja relação entre eles envolve muito mais que qualidade, 28 MINUTA DE NORMA INTERNACIONAL ISSO/DIS 26000. Diretrizes sobre responsabilidade social. Disponível em: < http://www.inmetro.gov.br/qualidade/responsabilidade_social/ISO_DIS_26000_port_rev0.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2011, p. 01. 29 EFING, Antônio Carlos. Fundamentos do Direito das Relações de Consumo: Consumo e Sustentabilidade. 3. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2011, p. 125-126. 30 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial confiança e bons preços, envolvem diálogo, cooperação, transparência, preservação de valores e regras para negociar com responsabilidade social. Nesta perspectiva, os fornecedores devem ter os mesmos objetivos que a parceira empresa, objetivos estes que devem estar delimitados em um código de conduta, contrato e até mesmo no relacionamento que a organização tem com todos que com ela se relaciona. “Os fornecedores são de certa forma uma extensão da empresa, por isso devem compartilhar dos mesmos valores e estabelecer uma relação de parceria e confiabilidade”.30 A organização, ao estabelecer contato com o fornecedor, deverá verificar se este partilha da mesma postura: condições dignas de trabalho aos funcionários, não estar ligado a trabalho infantil, trabalho escravo, poluição do meio ambiente, se tem bom relacionamento com a sociedade, isto é, deve verificar o efetivo envolvimento dos fornecedores no cumprimento da legislação vigente: trabalhista, ambiental, previdenciário, civil, penal, fiscal, dentre outras.31 A empresa socialmente responsável “é aquela que aceita a responsabilidade de lidar com os impactos de suas decisões e atividades por meio de um comportamento transparente e ético integrado em toda a organização e praticado em suas relações [...] 32, ou seja, é aquela que adota uma conduta e assume as consequências independentemente do impacto que pode causar entre os fornecedores, empresas e sociedade. O item “Envolva parceiros e fornecedores” faz uma clara relação entre responsabilidade social e aos membros da cadeia produtiva no processo de aquisição. A interface na gestão de compras e na logística da organização com as demais organizações da cadeia, revela que na relação entre empresa fornecedora e empresa compradora, o elo de ligação na cadeia deve ser fortalecido, com ações colaborativas e trocas de informações que beneficiem ambas as partes.33 30 DUARTE, Cristiani de Oliveira Silva; TORRES, Juliana de Queiroz Ribeiro. Responsabilidade social empresarial: Dimensões históricas e conceituais. In: Responsabilidade social das empresas: a contribuição das universidades. v. 4. São Paulo: Peirópolis: Instituto Ethos, 2005, p. 40. 31 OLIVEIRA, José Antonio Puppim de. Empresas na sociedade: sustentabilidade e responsabilidade social. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 161-162. 32 MINUTA DE NORMA INTERNACIONAL ISO/DIS 26000. Diretrizes sobre responsabilidade social. Disponível em: < http://www.inmetro.gov.br/qualidade/responsabilidade_social/ISO_DIS_26000_port_rev0.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2011, p. 01. 33 LELIS, Eliacy Cavalcanti. Processo de aquisição com responsabilidade social. XIII SIMPEP – Bauru, SP. Brasil, 6 a 8 de Novembro 2006. Disponível em: < http://www.simpep.feb.unesp.br/anais/anais_13/artigos/900.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2011, p. 03. 31 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Observa-se que as empresas, na relação comercial, deverão expor claramente seus objetivos, cumprir o que ficou pactuado no ato da transação e que, em um gesto de complementaridade, ambas comprometam-se a participar ativamente das ações propostas. Com os concorrentes, a empresa deve evitar a concorrência desleal e valorizar práticas que conduzam à liberdade de concorrer no mercado, de modo que: A empresa não deve, portanto, realizar nenhuma ação ilícita e imoral para a obtenção de vantagem competitiva ou que vise ao enfraquecimento/destruição de concorrentes, devendo manter com eles um relacionamento orientado por padrões éticos, de forma a não conflitar com os interesses das demais partes interessadas, em especial com os dos clientes e consumidores finais.34 Portanto, a empresa de fato responsável socialmente necessita da colaboração e parceria dos demais fornecedores que, além das leis, devem cumprir com o estabelecido nos códigos de conduta, contrato e, ainda, valorizar a livre concorrência. 4.1.5 Comunidade A empresa deve promover o bem-estar da comunidade na qual está inserida e, para isso, precisa se envolver diretamente com ela para detectar as necessidades básicas, bem como os problemas existentes, e procurar meios de solucioná-los através de projetos sociais que atendam de forma efetiva aquele ponto crítico da sociedade. No entanto, a organização, antes de tomar qualquer atitude, deve analisar esses problemas sociais, verificar qual deles a instituição apresenta melhores condições de enfrentar para, na sequência, estabelecer e definir critérios, e investir, seja através de dinheiro, infraestrutura, educação, enfim, “[...] organizações que tomam a decisão certa e montam iniciativas sociais focadas, proativas e integradas com o cerne de suas estratégias vão se distanciar progressivamente da multidão”.35 A empresa apenas deve contribuir com o Estado na solução de problemas sociais, afinal não dispõe de recursos financeiros para solucionar todos os problemas que o cercam, 34 LOURENÇO, Alex Guimarães; SCHÖDER, Deborah de Souza. Vale investir em responsabilidade social empresarial? Stakeholders, ganhos e perdas. In: Responsabilidade social das empresas: a contribuição das universidades. v. 2. São Paulo: Peirópolis: Instituto Ethos, 2003, p. 99. 35 PORTER, Michel E.; KRAMER, Mark R. Estratégia e sociedade: O elo entre vantagem competitiva e responsabilidade social empresarial. Disponível em: < http://www.hbrbr.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=91>. Acesso em: 24 nov. 2011, p. 66. 32 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial apenas deve ter o compromisso de dar continuidade nas ações que der início, melhorando a qualidade de vida da comunidade local. A empresa pode fazer o aporte de recursos direcionado para a resolução de problemas sociais específicos para os quais se voltem entidades comunitárias e ONGs ou desenvolver projetos próprios, mobilizando suas competências para o fortalecimento da ação social e envolvendo seus funcionários e parceiros na execução e apoio a projetos sociais da comunidade. [...] Um aspecto relevante é a garantia de continuidade das ações, que pode ser reforçada pela constituição de instituto, fundação ou fundo social.36 Esta argumentação pode ficar mais clara quando a empresa analisa os problemas sociais ao seu redor e constata que a comunidade próxima não dispõe de saneamento básico, então busca meios de solucionar este problema social, seja em parceria com o Estado, através de incentivos, como por exemplo isenção de impostos, seja em parceria com outras empresas ou até mesmo individualmente, quando internaliza esta questão social e desenvolve projeto a fim de solucionar esta situação fática e, consequentemente, melhorar a qualidade de vida da população ao seu redor. Isto não significa que a empresa tem o dever de solucionar todos os problemas sociais ao seu redor, apenas que busque solucionar aquele problema específico, até porque a empresa não tem condições financeiras de resolver todas os impasses sociais, mas tem condições de ajudar o Estado nas questões sociais. Assim, a empresa socialmente responsável, além de se envolver em projetos sociais específicos ou estabelecer parcerias com o Estado ou instituições que já desenvolvem esses projetos ajudando financeiramente, faz com objetivo de obter resultados positivos para a comunidade ganhando, com isso, vantagem competitiva em relação a suas concorrentes, razão pela qual a divulgação para conscientizar a todos de suas atividades é um passo importante e decisivo para mudar a postura dos trabalhadores, consumidores, ou seja, da sociedade em geral, para consumir produtos da empresa que busca ser responsável socialmente. 4.1.6 Meio Ambiente A Constituição Federal, além de inserir o meio ambiente como um dos princípios da ordem econômica e financeira (Art. 170), ampliou esta tutela ao Art. 225, que prevê que o 36 LOURENÇO, Alex Guimarães; SCHÖDER, Deborah de Souza. Vale investir em responsabilidade social empresarial? Stakeholders, ganhos e perdas. In: Responsabilidade social das empresas: a contribuição das universidades. v. 2. São Paulo: Peirópolis: Instituto Ethos, 2003, p. 97. 33 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito de todos e necessário para se ter qualidade de vida e, ainda, que é dever do poder público e da coletividade defender e preservá-lo para a presente e as futuras gerações. Nesta direção, a atividade econômica deve ser desenvolvida visando equilíbrio ecológico da natureza, vez que se trata de um bem jurídico de interesse de toda a coletividade, eis que se trata de direito difuso por pertencer a todos. A organização socialmente responsável se preocupa com os impactos ambientais que suas atividades podem causar ao meio ambiente, somado a isto, ela se antecipa aos danos ambientais, age proativamente na tentativa de minimizar ou acabar com as ações agressivas a natureza. O comportamento empresarial em relação ao meio ambiente reflete a política externa da empresa, bem como se realmente tem responsabilidade social e comprometimento com o desenvolvimento sustentável. Uma empresa ambientalmente responsável está sempre atenta às ações de manutenção e melhoria das condições ambientais, minimizando riscos e ações agressivas à natureza. Para isso, investe em tecnologias antipoluentes, recicla produtos e o lixo gerado, implanta “auditoria verde”, mantém relacionamento estreito com órgãos de fiscalização ambiental, limita o uso de recursos naturais e de descargas nocivas, constrói estações de tratamento de efluentes para reciclar a água utilizada e é responsável pelo ciclo de vida de seus produtos.37 Neste contexto, a organização responsável com o meio ambiente não realiza ações esparsas, pontuais, para solucionar uma situação ambiental grave, ela simplesmente incorpora políticas ambientais interna e externamente, treina seus funcionários, conscientiza a população através de campanhas, seja em escolas, por panfletos ou através da mídia sobre a necessidade de preservação da natureza, ou seja, suas ações ultrapassam as obrigações legais. Afinal, a empresa é uma extensão da sociedade e, por isso, em conjunto, todos devem agir minimamente para no futuro atingir o grande desafio, a responsabilidade social. Neste sentido, uma empresa ecologicamente responsável deve orientar suas ações, sob os seguintes aspectos: 37 DUARTE, Cristiani de Oliveira Silva; TORRES, Juliana de Queiroz Ribeiro. Responsabilidade social empresarial: Dimensões históricas e conceituais. In: Responsabilidade social das empresas: a contribuição das universidades. v. 4. São Paulo: Peirópolis: Instituto Ethos, 2005, p. 39. 34 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial a) definição de uma política ambiental, com objetivos claros e concretos, para reduzir ou evitar os impactos gerados por sua atividade, de forma que sua atitude, diante da problemática ecológica, fique clara; b) configuração de um sistema de gestão ambiental, como desenho e execução dos programas (conjunto de ações) com os quais pretende alcançar os objetivos propostos; c) realização de auditorias ambientais, encarregadas da avaliação sistemática, periódica e objetiva do funcionamento da empresa com relação ao meio ambiente.38 O compromisso empresarial com o meio ambiente deve ser transparente perante todos os interessados, além de ser bem estruturado, de modo que, diante de uma crise, consiga transparecer perante a sociedade que suas ações tem fundamento e responsabilidade, não se resume em mera publicidade de atos infundados e irresponsáveis ambientalmente. A norma ISO 14001:2004 – Sistema de Gestão Ambiental (SGA), de âmbito internacional, prevê estratégias e diretrizes genéricas de como as empresas devem gerenciar suas atividades voltadas às questões ambientais, tendo em consideração a proteção do meio natural, prevenção da poluição, cumprimento legal e necessidades socioeconômicas.39 Essa norma auxilia e direciona as organizações quanto à forma de desenvolver programas e projetos ambientais conciliando-os com interesses sociais e econômicos, visto que, por menor que seja a atividade a ser desempenhada, ela pode impactar no meio ambiente, de modo que a empresa deve trabalhar com o objetivo de reduzir esses impactos. A norma ISO/26000 recomenda que a empresa se responsabilize pelos danos ambientais, arque com os custos da poluição que der causa, implante programas para evitar, avaliar e reduzir os impactos ambientais de atividades, produtos e serviços, bem como riscos à saúde e a segurança no trabalho, use tecnologias e práticas ambientalmente sólidas, e outras.40 Contudo, nota-se que a norma 14001 de gestão ambiental e as recomendações da ISO/DIS 26000, conferem à empresa parâmetros para desenvolver suas atividades de acordo com o novo viés, qual seja, produzir sem prejudicar o meio ambiente, e consequentemente, preservar a vida na terra. Assim, a empresa socialmente responsável tem por escopo evitar e paralisar os danos à natureza ou utilizá-la de forma menos agressiva e mais racional, além de contribuir para o 38 GARCÍA-MARZÁ, Domingos. Ética Empresarial: Do diálogo à confiança da empresa. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2008, p. 224. 39 CERTIFICAÇÃO DE SISTEMAS E SERVIÇOS. ISO 14001:2004 – Sistema de Gestão Ambiental. Disponível em: < http://www.pt.sgs.com/pt/iso_14001_2004?serviceId=10957&lobId=24178>. Acesso em: 25 nov. 2011, p. 01. 40 MINUTA DE NORMA INTERNACIONAL ISO/DIS 26000. Diretrizes sobre responsabilidade social. Disponível em: < http://www.inmetro.gov.br/qualidade/responsabilidade_social/ISO_DIS_26000_port_rev0.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2011, p. 01. 35 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial progresso econômico, social e ambiental da sociedade, com uma gestão voltada para o desenvolvimento sustentável. 4.1.7 Governo e Sociedade A empresa deve apresentar bom relacionamento com os órgãos governamentais, cumprir as leis e contribuir de forma ética e responsável com melhorias para a sociedade, bem assim, com as questões políticas do Estado. É importante que o empresariado seja transparente ao realizar doações em campanhas políticas, bem como viabilize espaço para realizar debates eleitorais que atendam interesses de seus funcionários e de toda comunidade, assuma compromisso de combater a corrupção e propina, e práticas ilegais dos parceiros empresariais ou representantes do governo e, ainda, participem de políticas públicas na área social.41 Deste modo, a relação do empresariado brasileiro com o governo deve ser em benefício da sociedade, vez que atitudes honestas geram impactos sociais positivos o que, consequentemente, resulta em mais empresas querendo se filiar ao grupo das empresas com responsabilidade social, para não perder competitividade e prestígio em relação às concorrentes e parceiras do governo. Assim, diante de todas estas colocações envolvendo os stakeholders, nota-se que não é uma ação esparsa da empresa que a define como responsável socialmente, pois para atingir esta, a organização deve apresentar uma estrutura organizacional, planejamento, comprometimento, transparência, ética e, principalmente, interesse em crescer sem aumentar os problemas sociais e ambientais que atinge toda a população, pelo contrário, crescer diminuindo-os. 5. RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA NA DIMENSÃO AMBIENTAL A atividade empresarial despreocupada com o meio ambiente acarretou sérios problemas de contaminação do ar, rios, solos, muitos deles irreversíveis, o que prejudicou sobremaneira a coletividade, além de ser a grande causadora da escassez dos recursos naturais na atualidade. 41 LOURENÇO, Alex Guimarães; SCHÖDER, Deborah de Souza. Vale investir em responsabilidade social empresarial? Stakeholders, ganhos e perdas. In: Responsabilidade social das empresas: a contribuição das universidades. v. 2. São Paulo: Peirópolis: Instituto Ethos, 2003, p. 98. 36 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial É sabido que a cultura empresarial sempre foi usar a matéria-prima disponível no meio ambiente e descartar os resíduos sólidos na natureza para que ela se encarregue de regenerálos, vale dizer, individualizar os lucros e socializar os problemas ambientais. Neste sentido expõe Paulo Roberto Pereira Souza que: A maximização do bem-estar no regime de mercado competitivo não incorpora a deterioração ambiental e o esgotamento dos recursos, pois estes são de propriedade coletiva. Assim, a otimização econômica convencional implica na maximização dos lucros privados e na socialização dos problemas ecológicos e sociais.42 É justamente pela irresponsabilidade do setor empresarial quanto à questão ambiental que a Constituição Federal reforçou a importância do meio ambiente dentro do capítulo da ordem econômica, no Art. 170, inciso VI e no Art. 225, na qual diz que é direito de todos a um ambiente ecologicamente equilibrado, sendo dever do poder público e da coletividade defender e preservá-lo para a presente e futura geração. Desta feita, a atividade empresarial só se justifica e só será considerada válida constitucionalmente enquanto cumprir os preceitos estabelecidos no capítulo do meio ambiente. Isto quer dizer que toda atividade econômica que não respeitar e proteger os recursos naturais é ilegítima e inconstitucional. Assim, a responsabilidade social e jurídica da empresa não consiste apenas em fabricar e distribuir os produtos no mercado, mas em evitar a contaminação do solo, da água, do ar, ou seja, preocupando-se em dar a destinação correta dos resíduos sólidos de sua produção (Lei 12.305/2010), seja através da reciclagem, armazenamento ou mesmo reutilizando o excedente. Exemplificando, empresa que trabalha com defensivos agrícolas, vem exercendo a técnica da logística reversa, para recuperar os recipientes plásticos, isso requer o envolvimento dos fabricantes, importadores, distribuidores e agricultores, para que estes recipientes sejam entregues ao fabricante e recebam a destinação final correta de reciclagem ou incineração. Neste sentido, esclarece Paulo Roberto Leite que: O agricultor deve realizar uma lavagem tríplice nas embalagens, inutilizá-las evitando o reaproveitamento, armazená-las temporariamente em sua 42 SOUZA, Paulo Roberto Pereira. Tutela Jurisdicional do Meio Ambiente e seus reflexos na Atividade Empresarial. In: FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser; RIBEIRO, Maria de Fátima (org). Atividade Empresarial e Mudança Social. São Paulo: Arte & Ciência; Marília: Unimar, 2009, p. 159. 37 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial propriedade, entregá-las na unidade de recebimento dentro do prazo de um ano e manter comprovantes de entrega por mais um ano. Ao distribuidor cabe indicar o local de entrega das embalagens vazias na própria nota fiscal, disponibilizar e gerenciar o local de recebimento, emitir comprovante de entrega, orientar e conscientizar o agricultor. Ao fabricante cabe recolher as embalagens vazias das unidades de recebimento, dar a destinação final correta de reciclagem e incineração, orientar e conscientizar o agricultor.43 Segundo, o Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias – InpEV, é expressivo o retorno de embalagens vazias no Brasil, tendo atingido o nível de 91,6% (noventa e um vírgula seis por cento) em 2007, sendo 50% (cinquenta por cento) de plástico PEAD.44 Estes dados demonstram que o trabalho conjunto dos fabricantes, e até do agricultor, vem contribuindo para diminuir a contaminação ambiental e que, apesar de ainda ser incipiente, o setor empresarial vem rompendo velhas tradições de socializar os problemas ambientais, trazendo para si responsabilidades sociais. Portanto, toda atividade empresarial deve ser desenvolvida visando resultados econômicos, sem destruir o meio ambiente, que é um bem de todos, garantido constitucionalmente. Deste modo, para a empresa alcançar a responsabilidade social, além de conquistar o mercado competitivo, tem o dever de desenvolver suas atividades voltadas às questões sociais, econômicas, ambientais e jurídicas, observando-as todas ao mesmo tempo. Daí a necessidade de eliminar velhas tradições e acompanhar as mudanças, mudanças rápidas que requer compromisso e competência do empresariado brasileiro para, de fato, efetivar a responsabilidade social em suas diversas dimensões. 6 CONCLUSÃO As empresas contemporâneas, sujeitos de direitos, são autônomas. Portanto, possuem direitos e obrigações perante o Estado e a sociedade, estando aptas a realizar toda e qualquer atividade que não contrarie o ordenamento jurídico brasileiro e contribua para o crescimento e desenvolvimento socioeconômico do país. A mudança que se percebe em relação ao exercício das atividades empresariais particulares é que elas vem cedendo espaço, ainda que timidamente, às questões sociais e 43 LEITE, Paulo Roberto. Logística reversa: meio ambiente e competitividade. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2009, p. 147. 44 LEITE, Paulo Roberto. Logística reversa: meio ambiente e competitividade. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2009, p. 149. 38 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial ambientais junto com seus interesses econômicos, comportamento esperado da empresa pósmoderna. O princípio constitucional que fez romper antigas tradições e proporcionou mudança nos padrões de produção e circulação de bens e serviços no mercado, foi o princípio da função social, uma vez que ele socializou as atividades econômicas no país, humanizando-as, o que impulsionou transformações no meio industrial e abriu precedente para a responsabilidade social. A empresa que busca tornar-se responsável socialmente, primeiramente deve cumprir com sua função social, trabalhar com ética e transparência no mercado, e respeitar todos os públicos com os quais ela se relaciona. Tal fato evidencia-se na fundamentação legal e doutrinária apresentada para cada uma das partes interessadas – Stakeholders. Constatou que a empresa que possui responsabilidade social desenvolve suas atividades de um modo diferente, não preocupada apenas com o lucro e aumento da produtividade, mas também com as questões sociais e ambientais ao seu redor. Assim, o diferencial destas empresas é que elas visualizam os problemas ao seu redor, desenvolvem projetos e parcerias com o Estado e a própria comunidade, a fim de solucioná-los. Desta feita, somente empresas responsáveis socialmente são capazes de transformar a realidade social, cumprir as leis existentes e, ainda, serem competitivas no mercado. Para isso, precisam da participação Estatal e da conscientização da população para, de fato, efetivar os imperativos constitucionais da existência digna de todos e Justiça Social. 7 BIBLIOGRAFIA BARROSO, Luís Roberto. 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O tema se revela expressivo em razão de tratar de uma nova modalidade empresária que promete alterar o cenário empresarial nacional, visto que incentiva pequenos empresários a formalizar as atividades empresariais, ao passo que possibilita a limitação de responsabilidade destes frente às obrigações sociais, sem a necessidade de um sócio para tal benefício. Palavras-chave: Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI); Empresário Individual; Responsabilidade limitada; Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Abstract: The work at hand aims to clarify the main aspects of the Law n. 12.441/2011, which established the Individual Limited Liability Company (EIRELI) in the Brazilian legal system. In this sense, issues regarding the individuals authorized to constitute the referred Company, the amount of joint stock, limitations in its use, among other characteristics will be addressed in this work. Besides studying the limits imposed by the new Law, other issues will also be tackled such as the entrepreneur's liability, including the concepts of civil liability and the disregard of the legal entity doctrine. The theme is significant due to the fact that the Law is expected to change the national corporate reality, encouraging small entrepreneurs to formalize its activities and, at the meantime, enabling them to limit its liability towards corporate obligations, exempting the existence of another partner for the individual entrepreneur to make use of such benefits. Keywords: Individual Limited Liability Company; Individual Entrepreneur; Limited liability; Disregard of the Legal Entity Doctrine. 1 Acadêmica de direito do Centro Universitário Curitiba. 42 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Sumário: 1. Introdução; 2. EIRELI; 2.1. Aspectos Gerais; 2.1.1. Da Constituição; 2.1.2. Do Capital Social; 2.1.3. Do Nome Empresarial; 2.1.4. Do Titular; 2.1.5. Do Objeto; 2.1.6. Dos Dispositivos Aplicáveis da Sociedade Limitada; 3. Responsabilidade do Empresário; 3.1. Responsabilidade Civil; 3.1.1. Responsabilidade Civil Subjetiva e Objetiva; 3.2. Desconsideração da Personalidade Jurídica; 3.2.1. Aspectos Gerais; 3.2.2. Objetivo; 3.2.3.Desconsideração da Personalidade Jurídica na EIRELI; 3.2.4. Consequências; 4. Considerações Finais; Referências. 1. INTRODUÇÃO O escopo do presente estudo consiste em conceituar e esclarecer os limites e controvérsias concernentes à EIRELI – empresa individual de responsabilidade limitada, recentemente criada no ordenamento jurídico brasileiro pela lei n. 12.441/2011, bem como expor acerca da responsabilidade do empresário individual titular dessa modalidade empresária. Nota-se a relevância do tema por sua atualidade, visto que, em razão do pequeno tempo em que a lei encontra-se em vigência, foi pouco debatido e aprofundado pelos juristas e tribunais brasileiros. Outrossim, o assunto também envolve o cenário jurídico empresarial do país, eis que existem diversos empresários individuais atuantes na informalidade, além de sociedades limitadas de “fachada”, compostas por um sócio figurativo sem poder de deliberação, situação que visa ser modificada com a possibilidade de adesão à EIRELI. Para compor o trabalho, serão inseridas as noções atribuídas ao empresário individual de responsabilidade limitada (EIRELI), levando em pauta seu conceito, requisitos e controvérsias verificadas. Além disso, a responsabilidade do empresário será estudada. Neste tópico, pretendese estudar acerca da responsabilidade civil e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. 2. EIRELI 2.1. ASPECTOS GERAIS A limitação da responsabilidade de um sócio diante das atividades empresariais e obrigações contraídas com terceiros é um grande chamariz para empresários, uma vez que o seu patrimônio pessoal permanece resguardado. São os recursos de titularidade da sociedade que são atingidos. 43 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Todavia, ao constituir uma sociedade, para que houvesse essa limitação de responsabilidade do sócio, verificava-se na legislação um requisito essencial para sua criação, qual seja a pluralidade de sócios. A unipessoalidade, antes encontrada apenas na empresa individual ou firma individual – e na subsidiária integral, mas esta não será objeto do trabalho em apreço-, não detinha a prerrogativa de limitação de responsabilidade, uma vez que o patrimônio da pessoa física se confundia com o da pessoa jurídica, não havendo proteção aos bens pessoais do titular. Por conseguinte, para assegurar a responsabilidade limitada, originaram-se sociedades limitadas ditas de fachada, nas quais eram observadas a existência de um sócio majoritário, detentor da maioria absoluta do capital social, e um sócio minoritário, presente apenas formalmente, sem possuir nenhum poder de deliberação dentro da sociedade. Além dessas, passaram a existir diversos empresários individuais de menor porte atuantes na informalidade, visto o alto risco patrimonial assumido quando adotada uma modalidade de sociedade unipessoal que, até a promulgação da lei 12.441/2011, não permitia a limitação de responsabilidade. Ante essa situação, constatou-se a necessidade de criação de uma lei que admitisse a responsabilidade limitada para empresários individuais. Destarte, concebeu-se a lei 12.441/2011, que disciplina acerca da EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, sendo, a partir de então, admitido no sistema jurídico brasileiro a possibilidade de restringir a responsabilidade de um empresário individual frente às obrigações decorrentes da atividade empresarial. Com a promulgação da lei, o Código Civil foi alterado em alguns artigos, que serão objeto de estudo mais adiante. Entre os dispositivos, oportuno destacar a inclusão do inciso VI no art. 44, que inclui a EIRELI no rol de pessoas jurídicas admitidas no ordenamento jurídico brasileiro. Neste ponto, discute-se se a lei criou um novo tipo societário ou apenas adicionou uma qualidade ao empresário individual já existente. Para o doutrinador Rubens Requião (2012, p.113), a EIRELI consiste apenas em um novo atributo ao empresário individual: [A EIRELI] Não se trata [...] de um novo tipo societário [...]. Mas apenas se imputa à pessoa natural empresária um novo atributo, qualificado pela responsabilidade limitada ao capital que destacar para sua atividade, no que se distingue do empresário individual, que sofre responsabilidade ilimitada pelas suas obrigações. 44 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 411) também compartilha deste entendimento. Em contrapartida, Alfredo Assis Gonçalves Neto (2012, p. 157) defende que a lei 12.441/2011 regulou uma nova figura jurídica para atuar nos moldes do empresário individual já previsto em lei, mas distinto deste e da sociedade empresária. Outro dispositivo adicionado ao diploma é o art. 980-A, que disciplina as características do novo tipo societário: Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País. (Incluído pela Lei nº 12.441, de 2011) (Vigência); § 1º O nome empresarial deverá ser formado pela inclusão da expressão "EIRELI" após a firma ou a denominação social da empresa individual de responsabilidade limitada. (Incluído pela Lei nº 12.441, de 2011) (Vigência); § 2º A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade. (Incluído pela Lei nº 12.441, de 2011) (Vigência); § 3º A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração. (Incluído pela Lei nº 12.441, de 2011) (Vigência); § 4º ( VETADO). (Incluído pela Lei nº 12.441, de 2011) (Vigência); § 5º Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade limitada constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional. (Incluído pela Lei nº 12.441, de 2011) (Vigência); § 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas. (Incluído pela Lei nº 12.441, de 2011) (Vigência). Dentro destes requisitos e limitações, que serão estudados a seguir, rodeiam várias controvérsias que, em razão de consistir um tema ainda novo, não há posicionamentos jurisprudenciais, além de haver poucos estudos doutrinários aprofundados sobre o tema. 2.1.1 Da Constituição Inicialmente, sobre a constituição de uma EIRELI, Gonçalves (2012, p. 163) entende tratar-se de uma declaração unilateral de vontade expressada pelo empresário individual que a compõe. Para o autor, a lei autoriza sua constituição de duas maneiras, quais sejam a originária ou direta e a derivada ou indireta. Enquanto a primeira consiste na criação de uma EIRELI sem a existência de qualquer ente anterior, a segunda decorre da transmutação de uma sociedade unipessoal para uma EIRELI. 45 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Esta conversão é permitida pelo art. 1.033, parágrafo único do Código Civil, adicionado pela lei em questão, que possibilita, em caso de falta de pluralidade de sócios superveniente, não reconstituídos em 180 dias, a transformação2 da sociedade em EIRELI, não operando neste caso a extinção da pessoa jurídica. Posto isto, Gonçalves (2012, p. 159) reflete que: Constituída por qualquer dessas vias, a empresa individual de responsabilidade limitada desponta como um novo ente personificado (art. 44º IV do CC/2002), um novo agente econômico regulado pela lei para atuar no mercado e exercer uma atividade econômica organizada própria de empresário, distinto deste e da sociedade empresária. Sua criação concretiza-se sempre por ato unilateral de uma pessoa: no primeiro caso, do empresário ou de quem pretenda dar início ao seu comércio individual; no segundo, do único sócio – ambos alcançando-se à condição de titulares exclusivos do seu capital. Portanto, tanto de forma originária como secundária, a EIRELI foi concebida não somente para possibilitar aos inúmeros empresários individuais a sua organização em pessoa jurídica limitada, mas também para poder regularizar as sociedades de fachada e aquelas ditas irregulares, pendentes de pluralidade de sócios a mais de 180 dias. 2.1.2 Do Capital Social No que tange ao capital social da EIRELI, o caput do art. 980-A impõe a condição de que o capital social mínimo no ato da constituição da EIRELI não seja inferior a 100 (cem) vezes o salário mínimo vigente no país, que, hodiernamente, perfaz o montante de R$ 67.800,00, de acordo com o decreto n. 7.872, de 26 de dezembro de 2012. Sobre o assunto, Requião (2012, p. 115) reflete que a imposição legal de um valor mínimo para a constituição de uma EIRELI é uma medida positiva: O capital assume nos tipos societários regulados no Brasil importância essencial, justificando as técnicas utilizadas pelo legislador para avaliá-lo e fixá-lo e protegêlo[...]. Na empresa individual de responsabilidade limitada terá importância ainda maior, pois trará uma segregação de patrimônio do empresário, identificando aquele destinado a suportar a operação da empresa e separando-o do patrimônio propriamente “privado” do empresário, bem como os seus bens “particulares” não vinculados à empresa, que não poderão ser afetados pela operação desta. 2 Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 515) ensina que “transformação é a mudança do tipo da sociedade empresária. Por essa operação, por exemplo, a limitada se torna anônima ou vice-versa. Na transformação, permanece a mesma pessoa jurídica, submetida, porém, ao novo regime adotado”. 46 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Seguindo o mesmo entendimento, Rizzardo (2012, p. 73) constata que “o capital mínimo visa evitar a criação de empresas fantasmas”. Em contrapartida, Gonçalves (2012, p. 176) pondera que este requisito pode dificultar ou impossibilitar a adesão de microempresários individuais nesta modalidade societária, visto que a renda bruta anual destes não deve ultrapassar de R$ 60.000,00, conforme art. 18-A, § 1o da LC 123/2006. A inconstitucionalidade deste requisito legal foi questionada pelo PPS (Partido Popular Socialista) por meio da ADIn n. 4637, com os fundamentos (ADI ..., 2011) de que tal exigência impede a eventual criação da EIRELI por pequenos empreendedores, ofende a livre iniciativa, além de erroneamente utilizar o salário mínimo como parâmetro de indexação do capital mínimo. Além desta manifestação contra esta condição, o deputado Carlos Bezerra, do PMDB-MT, propôs através do projeto de lei n. 2468/11 a redução do capital mínimo exigido de 100 para 50 salários mínimos. 2.1.3 Do Nome Empresarial O segundo requisito elencado no dispositivo consiste na necessidade de que o nome empresarial seja precedido da expressão EIRELI. Sobre o assunto, Rizzardo (2012, p. 73) leciona que: A colocação da sigla “EIRELI” é necessária não só para diferenciar a empresa individual de responsabilidade limitada das outras, como para se apresentar perante aqueles com quem contrata, dando-lhes ciência do regime jurídico a que está sujeita. Destaca-se que o nome pode ser tanto uma firma como uma denominação. Na firma, tem-se o nome composto pelo nome civil do titular do capital, enquanto na denominação o nome é formado por expressões de fantasia. Em ambos, a nomenclatura deverá ser precedida da sigla “EIRELI” para identificar o tipo jurídico da empresa. Gonçalves (2012, p. 171) adverte que, ausente a expressão EIRELI na firma ou denominação, o benefício da limitação de responsabilidade é afastado. 47 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 2.1.4 Do Titular Referente ao titular da empresa, o § 2º do art. 980 A condiciona que uma pessoa natural somente poderá ser detentora de uma EIRELI, ou seja, é vedado que uma pessoa física detenha simultaneamente duas empresas dessa modalidade. Salienta-se que o dispositivo não dispõe sobre a viabilidade de uma pessoa jurídica constituir uma EIRELI. Diante desta lacuna, repousa a questão: quem pode ser titular de uma EIRELI? Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 409) aborda em sua obra de maneira sintética que a EIRELI pode ser criada tanto por pessoa física, como jurídica. Diversamente do entendimento do jurista, a Instrução Normativa no. 117, de 22 de novembro de 2011, baixada pelo Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC), regula no item 1.2.10, que quem tem capacidade para ser titular de uma EIRELI é a pessoa natural, maior de 18 anos ou emancipado, brasileiro(a) ou estrangeiro(a). Gonçalves (2012, p. 165), que bem observa sobre o assunto, demonstra convergir com este entendimento de que somente pessoas físicas devem ser titulares de uma empresa dessa modalidade. O doutrinador defende inicialmente que a instituição da EIRELI teve como escopo regularizar a situação de empreendedores individuais, reduzindo o risco inerente à atividade empresarial exercida. Logo, se este era o fim almejado, a lei deve ser aplicada com esta interpretação. O jurista (GONÇALVES NETO, 2012, p. 165) ainda reflete que a única justificativa para que uma pessoa jurídica seja detentora de outra sociedade empresária, no caso a EIRELI, seria a possibilidade de descentralização da estrutura ou de constituição de grupos econômicos para haver gerenciamento de forma alternativa, o que pode ser solucionado com a constituição de subsidiária integral. Ainda, de acordo com o autor (GONÇALVES NETO, 2012, p. 167-168), se vingasse o entendimento contrário de que pessoas jurídicas pudessem ser detentoras de uma EIRELI, poderiam ocorrer as seguintes consequências: a) ficaria permitido o surgimento de cadeias de Eireli(s), uma dando nascimento as outras; b) as sociedades brasileiras poderiam não mais se responsabilizar pelos atos de suas filiais (substituindo-as por Eireli(s); e c) as sociedades estrangeiras adotariam conduta idêntica, deixando de abrir filiais para operar no Brasil (o que tornará letra morta o conjunto de disposições que tratam da autorização para o funcionamento de sociedades estrangeiras e, bem assim, a norma que só permite a constituição da subsidiária integral por sociedade brasileira). 48 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Portanto, verifica-se que não há unanimidade entre os estudiosos quanto a quem pode ser titular de uma EIRELI. 2.1.5 Do Objeto Questiona-se a partir da leitura do § 5º do art. 980-A quanto ao objeto social de uma EIRELI. Além das atividades próprias de empresário, pode também o objeto ser uma atividade de cunho intelectual? De acordo com o art. 966 do Código Civil, “considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. Consoante o parágrafo único do mesmo dispositivo, excetuam-se desse conceito aqueles que exercem atividade profissional com caráter intelectual de natureza científica, literária ou artística, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa. Neste sentido, ressalta-se que “[...] a sociedade cujo objeto social compreenda a realização de um trabalho de caráter intelectual será sempre e necessariamente uma sociedade simples, afora tão somente as situações em que o trabalho intelectual represente um elemento de empresa” (BORBA, Edwaldo Tavares, 2008, p. 18, grifei). Frisa-se que sociedades simples não são empresárias (art. 982, CC). Neste diapasão, compreende Gonçalves (2012, p. 172) que a EIRELI somente pode ser encartada como sociedade empresária, vejamos: Do ponto de vista de sua origem, evidencia-se que a Eireli foi criada indubitavelmente para limitar a responsabilidade do empresário (individual), sendo inscrita, inclusive, no Registro Público de Empresas Mercantis (art. 1.033, parágrafo único, do CC/2002); e, no que concerne ao seu regime jurídico, é pautado nas normas da sociedade limitada (art. 980-A, § 6º, do CC/2002), que é encartada entre os tipos de sociedade empresária (art. 983 do CC/2002). O jurista (GONÇALVES NETO, 2012, p. 172-173) ainda defende que a previsão legal do artigo em pauta de que a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz, de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional, não significa que a EIRELI possa ter por objeto o exercício de atividade intelectual: Remuneração não é atividade e uma regra desse jaez não tem o condão de destruir o sistema, o que conduz à certeza de que as atividades de qualquer natureza a que se 49 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial refere seu texto são aquelas próprias de empresário, não abrangendo a exceção do parágrafo único do art. 966 do CC/2002. Portanto, malgrado os equívocos terminológicos, a norma há de ser interpretada dentro do contexto em que está inserida. Em contrapartida a esse entendimento, Frederico Pinheiro (2011, p. 17-18) defende que há possibilidade de registro de uma EIRELI na Junta Comercial quando se tratar de atividade intelectual, independentemente do elemento de empresa: [...] quem exerce atividade intelectual, seja de natureza científica, artística ou literária, incluindo atividades relacionadas à exploração econômica de direitos autorais regulados pela Lei 9.601/1998, pode se registrar na Junta Comercial como empresário individual, sociedade empresária ou EIRELI, independentemente da demonstração do que se trata de “elemento de empresa”. A única exceção feita a essa regra é quanto ao exercício da advocacia, em razão da vedação legal extraída de diversos dispositivos da Lei 8.906/1994 (Estatuto de Advocacia da OAB)”. Nota-se divergência de entendimentos sobre o assunto. Porém, imprescindível avaliação meticulosa da matéria quanto à possibilidade de uma EIRELI ter por objeto uma atividade de cunho intelectual. A partir do momento em que se permite tal medida, vislumbram-se novas questões complexas como, por exemplo, como se enfrentaria a reparação de dano decorrente de erro profissional se o sujeito for amparado pela responsabilidade limitada. 2.1.6 Dos Dispositivos Aplicáveis da Sociedade Limitada De acordo com o § 6º do art. 980-A, as regras pertinentes às sociedades limitadas serão aplicadas à EIRELI no que for cabível, visto que muitos dispositivos são incompatíveis. Evidentemente que, como leciona Gonçalves (2012, p. 179), os dispositivos referentes às sociedades limitadas em que a pluralidade de sócios é imprescindível para a aplicação da norma não serão ajustados à EIRELI. É incompatível também com a EIRELI a norma que trata da possibilidade de aplicação das normas da sociedade anônima supletivamente, isso porque, nas palavras de Gonçalves (2012, p. 179): [...] a disposição contida no parágrafo único do art. 1.053 do CC/2002 tem natureza de exceção, que não pode ser aplicada extensivamente a outras figuras jurídicas, senão àquela para a qual se dirige. Além disso, a anônima é uma sociedade de 50 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial capitais, ao passo que a Eireli deve ser classificada como sociedade de pessoas, porque indissociável do titular de seu capital. No tocante às normas dedicadas às quotas sociais das sociedades limitadas passíveis de aplicação à EIRELI, para Alfredo Augusto Gonçalves (2012, p. 179-180), são apenas duas, quais sejam a do art. 1.055, § 1º e do art. 1.059, ambas do Código Civil. Além dessas, o doutrinador (GONÇALVES NETO, 2012, p. 180) diz parecer possível a extensão à EIRELI dos artigos referentes à administração, “exceto aqueles que dispõem a respeito de deliberações, desde que o ato constitutivo contemple a hipótese, porquanto se deve entender [...] que, na omissão, o administrador da Eireli é o titular de seu capital”. É passível também de adaptação à EIRELI a norma que autoriza a modificação do capital, para mais ou para menos, desde que seja respeitado o mínimo legal de 100 salários mínimos. Ainda, poderá ser aplicado à EIRELI o dispositivo que trata da dissolução da sociedade limitada (art. 1.087, CC), e, supletivamente, em caso de omissões do regime jurídico da sociedade limitada, as normas das sociedades simples. 3. RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO Inicialmente, destaca-se, conforme preceitua Marcelo Bertoldi (2009, p. 177), que a responsabilidade da sociedade perante terceiros é ilimitada, inexistindo algum benefício que a exclua desta regra. Por conseguinte, a classificação das sociedades em responsabilidade limitada, ilimitada e mista trata-se de um critério relativo à pessoa do sócio. A responsabilidade do sócio, de acordo com o art. 1.024 do Código Civil, bem como o art. 596 do Código de Processo Civil, é, em regra, subsidiária, isto é, devido à personalização da sociedade, o patrimônio do sócio será atingido somente após exaurido o da pessoa jurídica. Neste sentido, Rubens Requião (2012, p. 520): Essa responsabilidade [dos sócios], não mais se discute, é subsidiária, no sentido de que somente se efetiva quando faltarem bens suficientes para a sociedade cumprir integralmente suas obrigações. Além desta característica, a responsabilidade dos sócios também pode ser classificada em limitada ou ilimitada. Esta (ilimitada) consiste na inexistência de limites 51 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial frente às obrigações da sociedade, isto é, o sócio poderá suportar todos os encargos sociais. Em contrapartida, aquela (limitada), funda-se na restrição da responsabilidade dos sócios ao montante de suas contribuições. Sobre responsabilidade limitada, Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 435) preceitua que: A limitação da responsabilidade dos sócios é um mecanismo de socialização, entre os agentes econômicos, do risco de insucesso, presente em qualquer empresa. Tratase de condição necessária ao desenvolvimento de atividades empresariais, no regime capitalista, pois a responsabilidade ilimitada desencorajaria investimentos em empresas menos conservadoras. Por fim, como direito-custo, a limitação possibilita a redução do preço de bens e serviços oferecidos no mercado. Oportuno para o trabalho em apreço destacar apenas a responsabilidade limitada, presente nas sociedades limitadas “quando o contrato social restringe a responsabilidade dos sócios ao valor de suas contribuições ou à soma do capital social” (REQUIÃO, 2012, p. 441). A EIRELI – frise-se seu significado - empresa individual de responsabilidade limitada, tem o espírito justamente de limitar a responsabilidade do empresário que a constitui ante as atividades empresariais e seus consequentes efeitos sobre terceiros. 3.1 RESPONSABILIDADE CIVIL O objetivo basilar do Direito consiste em salvaguardar as ações lícitas e coibir as que violam a lei. Portanto, quando praticadas ações que ocasionam danos a terceiros, existe o dever legal de reparar o prejuízo causado. Neste ponto, insere-se a concepção de responsabilidade civil, a qual é conceituada por Sergio Cavalieri Filho (2007, p. 2): Em seu sentido etimológico, responsabilidade exprime a ideia de obrigação, encargo, contraprestação. Em sentido jurídico, o vocábulo não foge dessa ideia. Designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico. O doutrinador (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 2) leciona que há um dever jurídico originário, também denominado de primário, que consiste no dever de observar a lei. Do descumprimento da lei, prática que usualmente gera danos a terceiros, surge o dever sucessivo ou secundário, consistente no dever de reparação do dano causado. 52 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial A partir desta noção, observa-se a distinção entre os termos obrigação e responsabilidade. A primeira (obrigação) consiste em um dever jurídico originário, enquanto a segunda (responsabilidade) é um dever jurídico sucessivo. Portanto, apenas quando uma obrigação é descumprida, é que surge a responsabilidade de compensar o prejuízo ocasionado. O próprio Código Civil, em seu art. 927, demonstra esta estrutura: Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Importa dizer que ao violar a lei e causar um dano a outrem, a relação de equilíbrio antes existente entre o agente da conduta danosa e a vítima é rompida. Por este motivo, aplica-se o princípio da restitutio in integrum, objetivando assim que o statu quo ante do prejudicado seja alcançado na medida do possível, reestabelecendo assim o equilíbrio da relação. Acerca da classificação da responsabilidade, esta pode ser subjetiva ou objetiva, como será estudado a seguir, sendo que a distinção entre elas se encontra na concepção de culpa3. A culpa, conforme aponta Cavalieri (2007, p. 16), deve ser compreendida em seu sentido lato sensu, abarcando também a ideia de dolo. 3.1.1. Responsabilidade Civil Subjetiva e Objetiva A responsabilidade subjetiva, que foi desenvolvida no Direito Romano e consagrada no Código Civil Francês de 1804, é a concepção clássica de responsabilidade e caracteriza-se pela necessidade de existência de culpa na conduta do ofensor. Sobre seus pressupostos, Cavalieri (2007, p. 17) leciona: 3 Sobre a distinção entre dolo e culpa, Cavalieri (2007, p. 30-31) leciona: “tanto no dolo quanto na culpa há conduta voluntária do agente, só que no primeiro caso a conduta já nasce ilícita, porquanto a vontade se dirige à concretização de um resultado antijurídico – o dolo abrange a conduta e o efeito lesivo dele resultante -, enquanto que no segundo a conduta nasce lícita, tornando-se ilícita na medida em que se desvia dos padrões socialmente adequados. O juízo de desvalor no dolo incide sobre a conduta, ilícita desde a sua origem; na culpa, incide apenas sobre o resultado. Em suma, no dolo o agente quer a ação e o resultado, ao passo que na culpa ele só quer a ação, vindo a atingir o resultado por desvio acidental de conduta decorrente de falta de cuidado”. 53 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Há primeiramente um elemento formal, que é a violação de um dever jurídico mediante conduta voluntária; um elemento subjetivo, que pode ser o dolo ou a culpa; e, ainda, um elemento causal-material, que é o dano e a respectiva relação de causalidade. Esses elementos são claramente identificados no art. 186 do Código Civil Brasileiro: Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Estando-se diante de um ato ilícito, nasce o dever de reparar o dano causado, conforme art. 927 do diploma supracitado. Esta responsabilidade funda-se no dever de cuidado que as pessoas devem almejar, isto é, como vivemos em sociedade, todos os atos praticados, mesmo que lícitos, precisam observar um dever de cautela para que os bens jurídicos alheios não sejam atingidos. Assim, Cavalieri (2007, p. 32) reflete: A inobservância desse dever de cuidado torna a conduta culposa – o que evidencia que a culpa é, na verdade, uma conduta deficiente, quer decorrente de uma deficiência da vontade, quer de inaptidões ou deficiências próprias ou naturais. Exprime um juízo de reprovabilidade sobre a conduta do agente, por ter violado o dever de cuidado quando, em face de circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo. Portanto, haverá responsabilidade subjetiva quando o ofensor, mesmo que não possuindo intenção de causar um dano, o ocasiona por não ter praticado a conduta adequadamente e, consequentemente, pratica um ato ilícito, caracterizando a culpa do agente. A não realização da conduta de forma apropriada pode ser exteriorizada de três modos: na imprudência, na negligência e na imperícia. A primeira consiste na falta de precaução por conduta comissiva, por ação, enquanto a segunda decorre falta de cautela por omissão. Já a terceira é verificada quando houver falta de habilidade no exercício de atividade técnica. Frise-se que o evento danoso que ocorre involuntariamente deve ser previsto ou previsível, ou seja, é necessário que haja a possibilidade de previsão para que o resultado pudesse ser evitado. Se não for possível antever o evento, a culpa resta descaracterizada, já estando, nesta hipótese, no campo do caso fortuito ou da força maior, uma vez que o resultado carece de nexo causal. 54 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Por sua vez, a responsabilidade objetiva, desenvolvida contemporaneamente, dispensa a existência de culpa. De acordo com Oliveira (1987, p. 90), funda-se em um princípio de equidade: “quem aufere vantagem com determinada situação, deve responder pelo risco, ou desvantagens dela advindas”. Por este motivo, também é denominada de “teoria do risco”, visto que quando o risco é inerente à atividade, o agente fica obrigado a reparar o dano causado, independentemente da existência de culpa. Nas palavras de Cavalieri (2007, p. 128), a responsabilidade objetiva é baseada no fato de que: Todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou, independentemente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa do responsável, que é aquele que materialmente causou o dano. Quanto às teorias do risco, cita-se aqui o risco-proveito, o risco-profissional, o riscocriado e o risco-integral, no entanto não serão abordadas no presente trabalho, visto que o foco é outro. 3.2. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 3.2.1. Aspectos Gerais A teoria da desconsideração da pessoa jurídica, de acordo com Susy Elizabeth Cavalcante Koury (1997, p. 63-4), se desenvolveu no campo da common law, especialmente nos Estados Unidos. Conforme a jurista, a primeira jurisprudência firmada sobre o tema foi no caso Bank of United States v. Deveaux, julgado no ano de 1809. Outro caso famoso, que é considerado por muitos juristas como o primeiro caso sobre o tema, é o caso inglês Salomon v. Salmon & Co, julgado em 1897. Na Alemanha, a tese surgiu com o jurista Rolf Serick, que defendeu o tema em sua tese de doutorado perante a Universidade de Tubigen, em 1953. Para Coelho (2012, p. 59), apesar de o tema já ter sido objeto de estudo de outros doutrinadores, como, por exemplo, Maurice Wormser, nos anos 1910 e 1920, o professor alemão é o precursor deste instituto. No direito brasileiro, o precursor da teoria foi Rubens Requião ao proferir, em 1969, a palestra com o tema “Abuso de Direito e Fraude Através da Personalidade Jurídica 55 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial (Disregard Doctrine)”, em conferência realizada na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Sobre a teoria, inicialmente importa dizer que o instituto da pessoa jurídica objetiva a constituição de um ente de direitos e deveres com autonomia patrimonial, isto é, com a separação da responsabilidade entre a sociedade e os sócios. No entanto, como leciona Rubens Requião (1969, p. 15), a autonomia patrimonial conferida a este ente é relativa, permitindo, quando houver o uso inadequado do instituto, a retirada do véu que o encobre para alcançar os membros que o compõe. É neste cenário em que se insere a teoria da desconsideração (disregard doctrine). Dos ensinamentos do jurista, entende-se que a personalidade jurídica pode vir a ser utilizada com abuso de direito ou fraude. Referente ao primeiro conceito (abuso de direito), o doutrinador (REQUIÃO, 1969, p. 16) reflete que o exercício do direito deve cumprir com uma finalidade social, mesmo que o interesse seja privado. Logo, quando esta finalidade é desviada, ainda que conforme a lei, está diante de um abuso de direito. Frise-se que “nem tudo que é conforme a lei é legítimo” (REQUIÃO, 1969, p. 16). A segunda máxima (fraude) denota a prática de um negócio jurídico com a finalidade de prejudicar os credores. Defronte estas hipóteses, haverá a desconsideração da personalidade jurídica. Nas palavras da jurista Susy Elizabeth Cavalcante Koury (1997, p. 69), “a Disregard Doctrine surgiria, então, como um recurso jurídico contra essa utilização indireta das sociedades comerciais”. Assim, a doutrinadora (KOURY, 1997, p. 68) reflete: Um dos meios mais frequentes utilizados pelo ordenamento jurídico para reagir contra o desvio de função deste instituto é exatamente a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, através da qual se supera a forma da pessoa jurídica, desvalorizando-se a distinção entre ela e os seus componentes, no caso particular, ou seja, sem negar sua personalidade de maneira geral. Evidentemente, porém, que a aplicação da teoria é restringida aos casos em que a responsabilidade não pode ser diretamente atribuída ao sócio da pessoa jurídica, pois, se não existir esta proteção do patrimônio da pessoa física perante o da sociedade, não há razão para cogitar o superamento de sua autonomia. Salienta-se, conforme leciona Coelho (2012, p. 66-67), que a teoria da desconsideração adotou uma formulação subjetiva, isto é, considera-se o intuito do sócio ou administrador, se este objetiva ou não fraudar o credor. Verifica-se nesta hipótese a 56 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial complexidade probatória que envolve a matéria. Quanto à teoria objetiva, o pressuposto avaliado é a existência de confusão patrimonial, o que pode ser facilmente comprovado pelo credor prejudicado4. Realça-se que esse princípio será utilizado tão somente para os atos específicos definidos pelo juiz naquele momento, permanecendo a desvinculação patrimonial do sócio e da sociedade em todas as outras situações, como leciona Requião (1969, p. 17): Com efeito, o que se pretende com a doutrina do disregard não é a anulação da personalidade jurídica em toda a sua extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado efeito, em caso concreto, em virtude de o uso legítimo da personalidade ter sido desviado de sua legítima finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei (fraude). No mesmo sentido, Coelho (2012, p. 63): [...] a decisão judicial que desconsidera a personalidade jurídica da sociedade não desfaz o seu ato constitutivo, não o invalida, nem importa a sua dissolução. Trata, apenas e rigorosamente, de suspensão episódica da eficácia desse ato. Quer dizer, a constituição da pessoa jurídica não produz efeito apenas no caso em julgamento, permanecendo válida e inteiramente eficaz para todos os outros fins. Além disso, tendo em vista a constante evolução da sociedade, a aplicabilidade do instituto não está restrita às hipóteses previstas em lei. É muito importante que o magistrado interprete o texto normativo sempre buscando as necessidades concretas encontradas. Neste aspecto, Koury (1997, p. 76): [...] a lei escrita é incapaz de resolver todos os problemas suscitados pelas relações sociais, de tal modo que, mesmo nos casos que pareçam enquadrar-se perfeitamente na hipótese prevista na lei, faz-se necessário investigar as realidades sociais concretas, a fim de que a aplicação da lei a elas produza os resultados intentados pelo legislador. No mesmo viés, Coelho (2012, p. 77): 4 As teorias objetiva e subjetiva pertencem à chamada “teoria maior”, na qual, conforme Itamar Gaino,(2012, p. 162) o instituto da desconsideração da personalidade jurídica será aplicado ser houver abuso de direito. Já a “teoria menor” consiste nas hipóteses legais que imputam a responsabilidade dos sócios com base em fatos objetivo, abstraindo-se a necessidade de abuso de direito. No entanto, Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 70) diz que esta classificação da desconsideração em teoria maior e menor já está ultrapassada. 57 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial A aplicação da teoria jurídica independe de previsão legal. Em qualquer hipótese, mesmo naquelas não abrangidas pelos dispositivos das leis que se reportam ao tema (Código Civil, Lei do Meio Ambiente, Lei Antitruste ou Código de Defesa do Consumidor), está o juiz autorizado a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que ela for fraudulentamente manipulada para frustrar interesse legítimo do credor. No entanto, atenta-se que “a desconsideração não pode ser usada como panaceia para a solução de todos os casos de inadimplência da sociedade ou do sócio” (GAINO, 2012, p. 150). Ainda, Coelho (2012, p. 77-78) destaca que “[...] não pode o juiz afastar-se da formulação doutrinária da teoria, isto é, não pode desprezar o instituto da pessoa jurídica apenas em função do desentendimento de um ou mais credores sociais”. Quanto à possibilidade de esta prática afetar o princípio da segurança jurídica, Koury (1977, p. 141) defende que: [...] não nos parece comprometer a segurança e a justiça o fato de deixar-se a cargo dos juízes e tribunais o exame das circunstâncias do caso concreto para a aplicação da desconsideração. Ao contrário. A jurisprudência é elemento de formação e aperfeiçoamento do direito, ao demonstrar que a lei não pode mais adaptar-se às exigências sociais do presente e, desse modo, prepara as reformas legislativas, mas sempre inspirada por aquilo que é previsto no ordenamento jurídico. Mister observar, ainda, que a desconsideração da personalidade jurídica poderá ocorrer tão somente por ato judicial, pois “o juiz é a única autoridade competente para desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade. Nem o particular nem a autoridade administrativa podem imiscuir-se nessa matéria” (GAINO, 2012, p. 217). Finalmente, importa dizer que, como já visto, a responsabilidade do sócio é sempre subsidiária. Portanto, este pode valer-se do benefício de ordem previsto no art. 1.024 do diploma Civil, sendo os bens da pessoa jurídica executados anteriormente. Portanto, o patrimônio pessoal do titular será atingido somente quando exaurido o da sociedade, conforme aponta Gaino (2012, p. 217). Por fim, relevante abordar também, que os bens do empresário/sócio poderão ser perquiridos, além das hipóteses previstas no diploma civil, quando da existência de créditos a favor de trabalhadores, consumidores e de natureza fiscal e ambiental. 3.2.2 Objetivo Inicialmente, mister colocar as palavras de Requião (1969, p. 14): 58 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Em qualquer país em que se apresente a separação incisiva entre pessoa jurídica e os membros que a compõem, se coloca o problema de verificar como se há de enfrentar aqueles casos em que essa radical separação conduz resultados completamente injustos e contrários ao direito. Entende-se que o escopo direito é proporcionar justiça. Para que esta finalidade seja concretizada, devem ser reprimidos os atos contra a lei e ao bom desenvolvimento social. Tendo em vista a prerrogativa de autonomia patrimonial conferida à pessoa jurídica, diversificando assim a responsabilidade do sócio e da empresa, sempre há a possibilidade de utilização do ente de maneira inadequada para prejudicar terceiros credores. Logo, dentro da lógica do direito, estes atos devem ser coibidos, justificando, portanto, a aplicação da teoria da desconsideração. O desembargador Itamar Gaino (2012, p. 148) expõe em sua obra sintética e devidamente o escopo da aplicação deste instituto: A finalidade da teoria é de permitir ao juiz a coibição de abuso e de fraude praticada pelos sócios por meio da pessoa jurídica. Levanta-se o véu protetor de sua autonomia patrimonial, apreendendo os bens que compõem o seu acervo com a finalidade de satisfazer o crédito ostentado por terceiro perante o sócio; ou, em situação inversa, afasta-se a pessoa jurídica, que figura como responsável pelo cumprimento da obrigação, imputando a responsabilidade ao sócio, em caráter subsidiário. Sustenta-se ainda que o objetivo não é ferir a autonomia da pessoa jurídica, anulando-a em toda sua extensão, mas sim coibir as fraudes decorrentes desta no caso específico definido pelo julgador. 3.2.3 Desconsideração da Personalidade Jurídica na EIRELI Conforme já estudado, o art. 980-A § 6º do Código Civil, criado pela lei 12.441/2011, estabelece que aplicam-se à EIRELI, no que cabível, as regras relativas às sociedades limitadas. Logo, conforme constata Pinheiro (2011, p. 11): [...] verificados os pressupostos do art. 50 do Código Civil ou de outros permissivos legais, a desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada à EIRELI e, eventualmente, responsabilizar e atingir o patrimônio pessoal de seu administrador ou criador, mormente porque “Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas” (§ 6º do art. 980-A do Código Civil). Frisando a existência de restrição da limitação da responsabilidade na EIRELI, fora vetado o § 4º do art. 980 – A inserido no Código Civil pela nova lei, que determinava que 59 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial “somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente " (grifei). A justificativa para tal veto (BRASIL, Mensagem 259, de 11 de julho de 2011)5 é pautada na possível interpretação equivocada do texto da lei no sentido de conferir absoluta limitação do patrimônio pessoal do empresário, não excedendo nem mesmo nas hipóteses de atuação fora das demarcações legais e contratuais. Neste sentido, Frederico Garcia Pinheiro (2011, p. 10): O veto se deu em razão da provável confusão interpretativa que daria ensejo à impossibilidade de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica quando verificados seus pressupostos. Por fim, reflete-se que é essencial a aplicabilidade do instituto da desconsideração da personalidade jurídica à EIRELI com fundamento em seu próprio objetivo, qual seja inibir práticas fraudulentas por parte do titular da empresa. Caso fosse incompatível com a modalidade societária, sua constituição poderia ter a finalidade de tão somente fraudar credores e terceiros prejudicados. 3.2.4 Consequências A empresa não se resume apenas à relação privada, visto que atinge uma gama maior da sociedade, na medida em que gera empregos, paga tributos, oferece bens e produtos, enfim, movimenta a comunidade atingindo, portanto, o seu fim social. Em razão disto, sua preservação é de fundamental importância para a população. Neste viés, Wilges Bruscato (2011, p. 581): [...] o exercício da empresa agrega valores sociais imprescindíveis ao homem moderno: o trabalho, a incidência tributária, o avanço tecnológico, o desenvolvimento para o lugar e o entorno onde se instalam iniciativas empresariais e a facilitação do acesso da população bens e serviços. Em nome de tais agregados 5 Razões do veto: Não obstante o mérito da proposta, o dispositivo traz a expressão 'em qualquer situação', que pode gerar divergências quanto à aplicação das hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do Código Civil. Assim, e por força do § 6º do projeto de lei, aplicar-se-á à EIRELI as regras da sociedade limitada, inclusive quanto à separação do patrimônio. 60 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial sociais é que a empresa merece ser preservada, pois através deles cumpre sua função social. Destarte, consoante frisa Coelho (2012, p. 61), a teoria da desconsideração tem por objetivo a proteção deste ente: A teoria da desconsideração da personalidade jurídica não é uma teoria contrária à personalização das sociedades empresárias e à sua autonomia em relação aos sócios. Ao contrário, seu objetivo é preservar o instituto, coibindo práticas fraudulentas e abusivas que dele se utilizam. Com tal característica, o instituto evita o desvio comportamental dos sócios, ao passo que legitima a perquirição de seus bens particulares nas hipóteses em que atuarem com abuso de poder ou fraude. Em consequência a esta sanção destinada aos sócios, o credor é salvaguardado em suas relações jurídicas pactuadas com a empresa. Esta proteção é efetivada não somente na prevenção de danos, uma vez que o empresário tem consciência dos efeitos de seus atos, mas também nas hipóteses em que o prejuízo é verificado, pois o patrimônio do sujeito poderá também ser atingido para o pagamento das dívidas. Portanto, o instituto é essencial para o bom funcionamento das relações jurídicas envolvendo empresas, e portanto deve ser aplicado também à EIRELI. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao fim do presente trabalho, constatou-se que a lei n. 12.441/2011 que implantou a EIRELI no sistema jurídico brasileiro apresentou-se um tanto adequada para ordenar e legalizar a situação existente no cenário empresarial nacional. É bem verdade que o nosso direito carecia de uma modalidade societária que admitisse a limitação de responsabilidade de um empresário individual. Esta característica imputada pela lei é um grande estimulador para a constituição de novas empresas e regularização de outras já existentes como empreendedores individuais informais e aparentes sociedades empresárias limitadas. Uma vez regularizadas estas situações e criados novos entes, vê-se um motor propulsor do palco econômico, uma vez que gera empregos, arrecada riquezas para o Estado a título de tributos, fomenta o comércio e, enfim, assegura o desenvolvimento da sociedade brasileira. 61 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Corroborando a eficiência e conveniência da lei, aponta-se que a Junta Comercial do Paraná divulgou, em uma estatística realizada até julho de 2012, que, até este período do ano, somente no Estado do Paraná foram constituídas 1.255 (mil duzentos e cinquenta e cinco) empresas do tipo societário EIRELI (PARANÁ, 2012). Portanto, vê-se a aceitação dos empresários em relação à modalidade empresarial. Frisa-se, no entanto, que a responsabilidade limitada não é absoluta. Os bens particulares do empresário poderão ser perquiridos com fundamento na teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a ser utilizada quando atuar com abuso de poder ou fraude. Ressalta-se que o instituto pode ser aplicado à EIRELI, uma vez que são aplicáveis as regras das sociedades limitadas quando compatíveis. Esta exceção não visa ofender a autonomia da personalidade jurídica, mas sim punir os empreendedores que utilizam deste ente para atingir uma finalidade alheia ao seu fim social, além de salvaguardar os credores prejudicados. Verifica-se, deste modo, que haverá uma comunhão de interesses passíveis de serem efetivados com a EIRELI, isto é, não somente a preocupação de limitação da responsabilidade por parte do empresário será garantida quando da atuação correta e da boa-fé, como também a dos credores, que, apesar do fato de que, em regra, somente a empresa arcará com as obrigações sociais, quando houver este comportamento desviado do empreendedor, o seu patrimônio pessoal será atingido para sanar os danos causados. Enfim, este novo tipo societário poderá trazer enormes benefícios à sociedade brasileira, sendo certo que muito ainda será desenvolvido para que o modelo seja utilizado para regularização de muitos empreendedores anônimos e a regularização das sociedades empresárias limitadas de fachada. REFERÊNCIAS ADI questiona lei que permite criação de empresa individual de responsabilidade limitada. Notícias STF. Brasília, 12 ago. 2011. 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Institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte; altera dispositivos das Leis no 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, da Lei no 10.189, de 14 de fevereiro de 2001, da Lei Complementar no 63, de 11 de janeiro de 1990; e revoga as Leis no 9.317, de 5 de dezembro de 1996, e 9.841, de 5 de outubro de 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp123.htm>. Acesso em: 23 ago. 2012. BRASIL, Mensagem 259, de 11 de julho de 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Msg/VEP-259.htm>. Acesso em: 10 mar. 2012. BRASIL, PL 2468/2011. Altera o art. 980-A da Lei nº 10.406, 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), inserido pela Lei nº 12.441, de 11 de julho de 2011, que instituiu a empresa individual de responsabilidade limitada. 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Rio de Janeiro: Editora Forense, 2012. 64 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial BENEFÍCIOS SOCIAIS DE PARCERIAS E ESTRUTURAS JURÍDICAS NO DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADES DE EXPLORAÇÃO E PRODUÇÃO DE HIDROCARBONETOS: O CONTEÚDO LOCAL SOCIAL BENEFITS FROM PARTNERSHIPS AND LEGAL STRUCTURES IN THE DEVELOPMENT OF HYDROCARBONS EXPLORATION AND PRODUCTION ACTIVITIES: THE LOCAL CONTENT Alexandre Ferreira de Assumpção Alves Fernando Gregio Lüdke RESUMO: O trabalho expõe os desafios que os empreendedores enfrentam na empresa de exploração e produção de hidrocarbonetos, desde problemas de ordem técnica até a necessidade permanente de aporte de recursos. Esta indústria, potencialmente capaz de causar danos severos ao meio ambiente e à coletividade, diretos ou por via reflexa, é também responsável por elevado desenvolvimento tecnológico e benefícios sociais, como o conteúdo local. Consoante definição legal, conteúdo local é a proporção entre o valor dos bens produzidos e dos serviços prestados no País para execução do contrato e o valor total dos bens utilizados e dos serviços prestados para essa finalidade. Ao lado do conceito eminentemente técnico e próprio do jargão petrolífero, a proposta é expor como o empresário poderá contribuir para a efetividade da função social da livre iniciativa, um dos fundamentos da República brasileira. Com a observância deste requisito presente nos contratos para a exploração de jazidas de petróleo e gás natural possibilita-se o incremento da indústria nacional, o aumento da taxa de ocupação, a formação de novos profissionais para o mercado e investimentos diretos e indiretos em P&D. Dentro da proposta de cidadania empresarial e função social da empresa, ambas despidas de conteúdo sancionatório, salvo diante de decisão judicial condenatória, o descumprimento do conteúdo local impõe ao empresário multas e outras sanções aplicáveis pelo órgão regulador, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Palavras-chave: Indústria do petróleo; função social da empresa; responsabilidade empresarial; conteúdo local ABSTRACT: This work exposes the challenges faced by entrepreneurs on the activities of exploration and production of hydrocarbons, from technical issues to a permanent demand for the injection of resources. This industry, potentially capable of causing severe damages to the environment and collectivity, either direct or as a reflex, it is also responsible for the high technological development and social benefits, as the local content. It is defined as the proportion between the value of the assets produced and the services provided in the Country 65 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial for the performance of the contract, and the total value of the goods used and the services provided for this purpose, pursuant to the legal definition. Along with the concept, eminently technical and proper to the oil market, the proposal is to expose how the entrepreneurs can contribute for the effectiveness of the social function of the free enterprise, one of the principles of the Brazilian Republic. The compliance with this requirement present in the contracts for the exploration of oil and natural gas deposits, it becomes possible the increment of the national industry, an increase in the employment index, the formation of new professionals for the market and direct and indirect investments in R&D. Within the proposal of business citizenship and social function of the company, both despised of sanctioning content, except for a conditioning judicial decision, the non-compliance with the local content imposes to the entrepreneur fines and other penalties that may be applied by the regulatory agency, the National Petroleum, Natural Gas and Biofuels Agency (ANP, acronym in Portuguese). Keywords: Oil industry; company social function; corporate responsibility; local content INTRODUÇÃO A importância do petróleo para a economia mundial, como preciosa fonte de energia, faz dele um bem muito cobiçado por países e pessoas. Apesar de ser um recurso natural não renovável, o petróleo tem altíssimo nível de demanda na esfera global, sendo uma importante matriz energética, representando por volta de um terço das necessidades mundiais.1 A produção de petróleo cresceu no mundo 1,3%, de 2010 para 2011, mesmo com a queda de 71% devido à ocorrência dos eventos da chamada primavera árabe 2 na Líbia,3 seguindo também o crescimento da demanda por fontes de energia primária.4 No passado, o petróleo fora utilizado até mesmo como remédio, acreditando-se no poder curativo para doenças como escorbuto, gota, dor de dente, reumatismo e, ainda, unhas 1 2 3 4 BP Statistical Review of World Energy June 2012, p. 3. Disponível em: <http://www.bp.com/assets/bp_internet/globalbp/globalbp_uk_english/reports_and_publications/statistical_e nergy_review_2011/STAGING/local_assets/pdf/statistical_review_of_world_energy_full_report_2012.pdf>. Acesso em 28 jan. 2013. Primavera árabe é o nome convencionado para a série de greves e manifestações populares em prol da democracia em países do norte da África e Oriente Médio. “Tempestades no pós-Primavera Árabe”. O Globo online. Rio de Janeiro, 13 jan. 2013. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/mundo/tempestades-no-posprimavera-arabe-7280410>. Acesso em 20 jan. 2013. BP Statistical Review of World Energy June 2012, op. cit., p. 3 e 8. O consumo de energia primária no mundo cresceu 2,5% em 2012, segundo o BP Statistical Review of World Energy June 2012, p. 3. No mesmo sentido, o jornal Valor Econômico publicou notícia onde, segundo a Agência Internacional de Energia, a demanda mundial de petróleo em 2013 será de 90,8 milhões de barris por dia. Demonstra, diga-se de passagem, que a demanda se dá em um cenário de baixa da produção da Opep. Cf. Jornal Valor Econômico online (http://www.valor.com.br). Acesso em 18 de jan. 2013. 66 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial encravadas5. Passando pela fase em que era tido como lama pesada e viscosa utilizada para impermeabilização de navios para evitar que afundassem, o petróleo teve uma nova fase inaugurada com o surgimento da lamparina. No século XIX, com o advento da eletricidade e utilização das lâmpadas elétricas, ao invés de cair em desuso, o petróleo passou a ganhar mais destaque no início do século seguinte com o crescimento da indústria automobilística e a consequente necessidade de combustível6. Hoje, ainda é impossível prescindir dele e sua importância não se limita à utilização de combustível, produto do refino desse recurso, abrangendo vários derivados que servem de matéria prima para a fabricação de muitos produtos. Para satisfazer toda essa demanda, as sociedades empresárias voltam suas atividades, inicialmente, à exploração, visando manter o ciclo de renovação das jazidas ou aumento do portfólio de ativos em produção.7 As atividades exploratórias, caso tenham sucesso, levarão ao desenvolvimento do eventual campo e posterior entrada em fase de produção. Estas empresas pertencem ao chamado upstream do petróleo ou atividades de exploração e produção (E&P).8 As atividades de upstream, no seu todo, não são tão simples. Elas desencadeiam uma série de análises e decisões para os participantes9, que são tomadas baseadas na ponderação dos riscos da atividade. A incerteza geológica da região a ser desbravada é um fator também relevante, porque só se sabe se um projeto pode ter ou não sucesso quando a avaliação é concluída após a perfuração do poço. Dentre alguns destes riscos, pode-se destacar: (i) o do poço eventualmente resultar em seco, (ii) a falta de comercialidade da descoberta, ou seja, a reserva pode não possuir quantidade de hidrocarbonetos ou qualidade suficiente para justificar o desenvolvimento e sua colocação em produção, (iii) o preço futuro do petróleo e do gás natural, como commodity, 5 6 7 8 9 BRET-ROUZAUT, Nadine; FAVENNEC, Jean-Pierre (Coord.). Petróleo e Gás Natural: como produzir e a que custo. Rio de Janeiro: Synergia, 2011, p. 1-3. Ibidem. É importante destacar que a vida econômica de um campo é limitada. O tempo durante o qual o campo será produtivo dependerá do volume de petróleo nele contido, da taxa de recuperação possível (considerados técnicas de retirada do produto para otimização da produção) e do tempo que os concessionários têm para a exploração da jazida, de acordo com as regras contratadas com o país hospedeiro, que, no caso do Brasil, poderá variar de 25 a 30 anos. Cf. AMUI, Sandoval. Petróleo e gás para executivos: exploração de áreas, perfuração e completação de poços e produção de hidrocarbonetos. Rio de Janeiro: Interciência, 2010. “Upstream”, segundo o Dicionário do Petróleo em Língua Portuguesa, corresponde às atividades de “E&P” – conjunto de operações destinadas à exploração e produção de petróleo e/ou gás natural”. FERNÁNDEZ Y FERNÁNDEZ, Eloi; PEDROSA JUNIOR, Oswaldo A., PINHO, António Correia de (Org.). Dicionário do petróleo em língua portuguesa: exploração e produção de petróleo e gás: uma colaboração Brasil, Portugal e Angola. Rio de Janeiro: Lexikon: PUC-Rio, 2009. p. 500. Midstream e downstream são termos, respectivamente, relacionados ao transporte e distribuição. Adotou-se a denominação “participantes” por mera conveniência. A palavra equivale a “player”, que é um jargão popularmente referido na indústria às sociedades que implementam as atividades de upstream. 67 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial (iv) os riscos ambientais, e (v) o risco regulatório, isto é, quanto à volatibilidade do marco jurídico para exploração do recurso em um determinado país hospedeiro.10 O cenário exposto, considerando os riscos e exigências da indústria petrolífera11, principalmente a de upstream, voltada para a exploração e produção dos hidrocarbonetos, explica o porquê da formação de estruturas jurídicas de parceria para o desenvolvimento dos projetos correlatos. Através delas torna-se mais viável a exploração conjunta de reservas pelos participantes. A simples exploração de petróleo e gás natural não é de todo predatória. Com a participação de grandes petrolíferas atuando em conjunto, aumenta-se a arrecadação de participações governamentais, tributação, investimentos sociais, geração de empregos diretos e indiretos e da produtividade da indústria nacional para o fornecimento de bens e serviços para o upstream. Esta última decorre das obrigações de conteúdo local contidas nos contratos de concessão celebrados pela União, representada pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), e os concessionários. De acordo com a cláusula de conteúdo local, as concessionárias devem assegurar preferência à contratação de fornecedores brasileiros sempre que suas ofertas apresentem condições de preço, prazo e qualidade equivalentes às de outros fornecedores convidados a apresentar propostas. O dispositivo contratual tem o objetivo de incrementar a participação da indústria nacional de bens e serviços, em bases competitivas, nos projetos de exploração e desenvolvimento da produção de petróleo e gás natural. O resultado esperado da aplicação da cláusula é um impulso ao desenvolvimento tecnológico, à capacitação de recursos humanos e à geração de emprego e renda neste segmento. Com base em pesquisa documental e bibliográfica e no método dedutivo, são objetivos do trabalho: a) expor os riscos inerentes à empresa de produção e exploração de petróleo; b) destacar a importância da formação de parcerias entre particulares e destes com o Estado; c) examinar, em linhas gerais, a joint venture como a principal estrutura jurídica para atividades do upstream; d) demonstrar a importância do conteúdo local na indústria do petróleo como instrumento para o desenvolvimento sustentável em prol da sociedade brasileira e da realização da cidadania empresarial. O tema é desenvolvido em três capítulos: o primeiro 10 11 “País hospedeiro” é comumente referido na indústria como aquele onde os investimentos são/estão sendo feitos, i.e., o país que concedeu a área onde as operações estão sendo conduzidas. “Indústria de petróleo”, de acordo com a definição contida no art. 6º, XIX da Lei n. 9.478/97, é “o conjunto de atividades econômicas com exploração, desenvolvimento, produção, refino, processamento, transporte, importação e exportação de petróleo, gás natural, outros hidrocarbonetos fluidos e seus derivados”. No mesmo sentido, FERNÁNDEZ Y FERNÁNDEZ, Eloi; PEDROSA JUNIOR, Oswaldo A., PINHO, António Correia de (Org.). Op.cit., p. 164. 68 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial dedicado aos desafios e benefícios da indústria do petróleo, o segundo, às joint ventures como modelo típico associativo para esta empresa e o último ao conteúdo local e os benefícios advindos para a sociedade. 1. DESAFIOS E BENEFÍCIOS DA INDÚSTRIA DO PETRÓLEO UPSTREAM As grandes sociedades frequentemente abrem mão de sua participação e do controle total sobre determinados ativos e projetos em favor de outras entidades, obtendo com essa prática benefícios econômicos e, muitas vezes, também, políticos. Nessa seara, dificilmente operações de upstream são conduzidas por uma só sociedade, levando-se em conta a vultuosidade dos riscos, das despesas e dos investimentos necessários para a implementação do projeto. Bill Manning destaca que: This combination of high costs and high risk has forced most resource companies to spread the risk as much as possible. Most petroleum exploration companies take the view that it is far preferable to have a smaller interest in many wells than a larger interest in one well. The use of a joint venture where the costs and risks are spread amongst a number of coventures can assist smaller cash-starved companies to survive.12 Através de parcerias as sociedades empresárias conseguem a pulverização de seus riscos e a partilha das obrigações de custeio dos programas exploratórios. Como contrapartida e em consequência do desenvolvimento das atividades de E&P, a comunidade local é favorecida com a arrecadação das participações governamentais, arrecadação de tributos e pelo desenvolvimento da indústria para-petrolífera (construção de embarcações, fabricação de equipamentos para a perfuração de poços, logística, entre outras). 12 “Essa combinação de altos custos e altos riscos forçou a maioria das empresas que exploram recursos a dividir o risco tanto quanto possível. A maioria das petrolíferas adota a postura de que é de longe preferível ter uma participação menor em vários poços do que uma participação maior em um poço só. O uso de uma joint venture onde os custos e riscos são divididos entre um dado número de parceiros pode ajudar pequenas empresas sedentas por capital a sobreviver.” (tradução livre). MANNING, Bill. Some Practical Aspects of Resources Joint Ventures. In: DUNCAN, W.D (Org.). Joint Ventures Law in Australia. 2.ed. Sidney: The Federation Press, 2005, p. 321. 69 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 1.1 O risco exploratório A exploração das reservas antecederá toda e qualquer etapa no desenvolvimento de um projeto e posterior extração dos recursos naturais. O petróleo, como outros hidrocarbonetos, é fruto da deposição no fundo de bacias13 de restos animais e vegetais, em sua maioria microrganismos mortos ao longo de milhões de anos. Conjugados com condições de temperatura e pressão específicas favoráveis ao evento, propiciam ao final do processo a transformação do material orgânico acumulado em hidrocarbonetos – em regra, petróleo e gás natural. Os hidrocarbonetos se formam no interior da rocha geradora, na maioria das vezes o folhelho, pelos processos físicos e químicos atuantes, migrando posteriormente para as rochas armazenadoras ou rochas-reservatório, como os arenitos, onde poderão ficar aprisionados por um arranjo particular das formações conhecido por trapa ou armadilha. Essa movimentação de hidrocarbonetos se deve à ação de temperatura e pressão elevadas, reinantes no interior da rocha geradora.14 As reservas de petróleo originam-se, assim, de reações complexas e peculiares, advindas de fatores variados, como (i) a deposição de material orgânico, (ii) necessidade de formações rochosas específicas (rochas geradoras, reservatórios e selantes), (iii) temperatura e pressão favoráveis e (iv) o fator tempo. Milhões de anos são necessários para que aquele material orgânico, uma vez depositado, transforme-se no “óleo de pedra”.15 Ao decidir participar de um projeto, as sociedades possuem poucos e incertos dados sobre a área a ser explorada, sendo o risco geológico uma característica predominante no segmento de upstream. Por conseguinte, os investimentos realizados nesta etapa são considerados capital de risco. Apesar da disponibilidade de diversos aparatos e tecnologia suficientes para se dimensionar e estipular a localização de reservas de petróleo e gás natural, não se pode inferir com certeza a sua existência sem a perfuração de um poço. Nesse sentido, sustenta Sandoval Amui: 13 14 15 No passado, tais bacias sedimentares foram, em sua maioria, lagos, lagoas e mares. Sandoval Amui explica o processo de formação dos hidrocarbonetos e suas principais características. Op.cit. p. 2. A origem da palavra “petróleo” é latina– petroleu (petra + oleum) – significa, no sentido literal, “óleo de pedra”. 70 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Não obstante a evolução dos levantamentos sísmicos, a perfuração de poços é o mais eficiente recurso exploratório, pois somente com ela se comprova ou não a tese de existência de estruturas geológicas e de acumulação de hidrocarbonetos proposta em função dos estudos geológicos e geofísicos. Isso não significa que, existindo hidrocarbonetos numa certa área, a perfuração de poços irá garantir a descoberta das acumulações. O que se afirma é que, sem a perfuração, não se poderá garantir a presença de acumulações de petróleo e gás natural, ainda que existam.16 O segmento de upstream caracteriza-se como um grande jogo de acertos e perdas. Nesta ótica, poderá um poço proporcionar uma descoberta comercial (que poderá valer muitas vezes o capital investido e, diga-se, arriscado) ou resultar em um poço seco17. Assim, todo o investimento será perdido. Se um poço é indiscutivelmente seco, as operações usualmente terminam com o seu permanente abandono. Colocando as probabilidades de sucesso em perspectiva, um poço de exploração comum tem entre 1/5 (um quinto) e 1/6 (um sexto) de chances de encontrar um reservatório potencialmente comercial. Tem-se uma chance, portanto, de 80% (oitenta por cento) ou mais de que todo o investimento realizado seja perdido. É importante ressaltar, considerando as chances de sucesso da campanha exploratória, que, em razão da complexidade das operações envolvidas, o custo de um poço pode variar na faixa de muitos milhões de dólares, alguns atingindo ou ultrapassando US$ 100 milhões na exploração em águas profundas, por exemplo. Tais custos envolvem todo o aparato necessário para a perfuração, como o afretamento da sonda de perfuração, equipamentos e materiais usados no poço, serviços de terceiros e apoio logístico. Segundo Peter Roberts, a parceria entre petrolíferas permite às partes deter somente uma porção de um projeto, possibilitando a utilização do restante de seus recursos para participar em um número maior de empreendimentos. Logo, é possível a diversificação de projetos, ao invés da execução de somente um deles não obstante atingir-se o mesmo objetivo.18 O que pode ser retirado do exemplo acima é o valor obtido na hipótese de êxito da descoberta. Uma grande descoberta em águas profundas pode atribuir um valor líquido de US$ 15 bilhões; até mesmo descobertas menores podem facilmente atingir US$ 1 bilhão. Detendo 20% (vinte por cento) de participação em tais descobertas, pode gerar a uma 16 17 18 Loc. cit. “Poço seco” é a definição de uma campanha sem sucesso, onde os resultados esperados não são atingidos, seja por falta de hidrocarbonetos conforme previsto nos estudos seja pelas características do eventual reservatório encontrado. ROBERTS, Peter. Joint Operating Agreements: a practical guide. 2.ed. Londres: Global Law and Business, 2010, p. 16. 71 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial petrolífera um retorno de várias vezes o valor dos investimentos que arriscou – até mesmo levando em conta o capital perdido por conta de eventuais poços terem resultado secos. 19 Este tipo de desafio leva uma sociedade considerar, na avaliação de um projeto, o compartilhamento dos riscos exploratórios com outros diferentes participantes. Fazendo isso, ela e os investidores diminuem a entrada de receita, já que o lucro será repartido, mas, por outro lado diminui também, substancialmente, a possibilidade de perda completa do capital empregado, considerando que ele estará diluído em outros projetos. 1.2 Altos dispêndios no upstream do petróleo O segundo fator que leva os participantes da indústria a formarem parcerias, além da possibilidade da divisão dos riscos, é a divisão dos gastos e investimentos. A indústria petrolífera demanda grandes aportes de capital. Por conta de seu papel na matriz energética mundial, é uma commodity muito importante. O montante de capital investido em negócios de petróleo pode chegar a US$ 2,34 trilhões por ano; os investimentos demandados pela área de upstream chegam a mais de US$ 200 bilhões por ano.20 Segundo Bill Manning, que aborda a problemática na exploração de recursos naturais na Austrália: these resources have a tendency to be found in remote and inhospitable parts of the continent. Access to these areas is both difficult and expensive. Consequently, the costs of exploration and development are inflated by substantial transportation costs. Roads, railways and airports have to be constructed. Energy has to be provided. Personnel have to be housed in new towns or, as has been trend more recently, work on a fly in/fly out basis from the nearest population centre.21 19 GAILLE, Scott. International Energy Development. Lexington: s.n., 2012, p. 80-81. BRET-ROUZAUT, Nadine; FAVENNEC, Jean-Pierre (Coord.). Op. cit., p. 32. 21 “Estes recursos têm uma tendência de serem encontrados em partes remotas e inóspitas. O acesso a essas áreas é difícil e caro. Consequentemente, os custos de exploração e desenvolvimento são inflacionados pelos custos de transporte substanciais. Rodovias, ferrovias e aeroportos precisam ser construídos. Energia precisa ser fornecida. Pessoal precisa ser alojado em novas cidades ou, como tem sido a tendência recentemente, ir e voltar do ponto populoso mais próximo.” (tradução livre). MANNING, Bill. Op. cit, p. 321. 20 72 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Os custos concernentes a um projeto da indústria primária do petróleo estão divididos em quatro grandes grupos de custos: de exploração, de investimentos, de desenvolvimento e operacionais.22 Além da formação de parcerias para compartilhar os riscos e eventuais perdas, é importante salientar que, para mitigar o risco, as sociedades procuram ter seus ativos espalhados geograficamente e sob regimes políticos diversos, ao invés de concentrá-los em um só país ou área. Dessa forma, beneficiada pelo sistema de parcerias, uma sociedade pode preferir deter 20% (vinte por cento) de cinco campos de petróleo diferentes espalhados pelo mundo do que 100% (cem por cento) em uma determinada área e sob um regime político instável. Mesmo se uma sociedade desejasse possuir participação integral em um projeto internacional, o país hospedeiro pode forçá-la a partilhá-lo com outras sociedades. O então chamado “casamento-forçado” em projetos de petróleo é comum em países em desenvolvimento e com a indústria do petróleo nascente. Nestes países, os governos poderão oferecer as mais atrativas áreas de petróleo de forma a persuadir os grandes participantes a investir no seu setor petrolífero. O objetivo dos países em desenvolvimento, neste caso, é favorecer sociedades específicas, por sua reputação ou capacidade técnica, ou outras por conta dos respectivos países de origem – visando, neste último caso, facilitar e/ou consolidar relações entre governos. Vale destacar que os investimentos iniciais em potenciais blocos são, também, realizados pela própria ANP, de forma a disponibilizar dados com vista a despertar interesse de eventuais participantes. O Plano Plurianual de Estudos Geológicos e Geofísicos (PPA) da ANP, que recebe recursos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), já aplicou R$ 500 milhões em levantamentos em diversas bacias sedimentares, de um total de R$ 1,8 bilhão aprovados para o período compreendido entre 2007 a 201423. 22 (i) custos com exploração, principalmente antes da descoberta de uma reserva, incluindo levantamento sísmico, interpretação geofísica e geológica, perfuração de exploração e testes de poços; (ii) custos de investimentos na fase de delineação e avaliação, para análise do reservatório; (iii) custos de desenvolvimento, incluindo perfuração de poços de produção e/ou injeção, construção de instalações na superfície, tais como rede coletora, unidade de separação e tratamento, tanques de armazenagem, unidades de bombeamento e unidade de medição, construção de instalações de transporte, como oleodutos e terminais de carregamento; e (iv) custos operacionais, incluindo o apoio geral fornecido por contratados, manutenção, logística e transporte. Loc. cit. 23 Conforme informação do site Geofísica Brasil (http://www.geofisicabrasil.com/noticias/204-clipping/4269anp-investe-r-18-bilhao-em-bacias-de-novas-fronteiras.html). Acesso em 10.03.2013 73 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 1.3 BENEFÍCIOS PARA OS PAÍSES HOSPEDEIROS Assim como uma sociedade empresária pode sofrer com a concentração de todos os seus investimentos em um único país, este pode estar exposto ao risco de concentração se os investimentos na sua indústria petrolífera forem primordialmente detidos por uma única sociedade internacional. E se essa sociedade decidir encerrar suas atividades na região ou no país, ou se ela vier a falir? Este cenário de incertezas pode ser prejudicial à economia do país ou a seus planos de desenvolvimento, além dos reflexos contidos no direito concorrencial. A petroleira estatal pode não ter capacidade técnica suficiente para conduzir as operações existentes, sendo muito pouco provável que tenha acesso aos mesmos níveis de capital para financiar a exploração e o desenvolvimento dos recursos. Da mesma forma, é importante a pluralidade de participantes, pois a introdução de várias sociedades petrolíferas internacionais no setor de energia de um determinado país aumenta a competição para áreas não concedidas. Uma vez que uma sociedade participa de um projeto, muito provavelmente ela irá considerar atuar em outros. Isto pode permitir ao país hospedeiro manter relações contratuais com múltiplas sociedades para obter maiores bônus e melhores ofertas comerciais em futuras concessões de petróleo e gás. Há uma leve tendência de países hospedeiros em não confiar nos compromissos de uma única sociedade estrangeira. A introdução de diversas petrolíferas estrangeiras como parceiras num projeto pode permitir que o país hospedeiro solicite e receba diferentes pontos de vista de como o projeto deverá ser implementado e operado. A competição de propostas pode fazer com que um governo mais dificilmente faça uma escolha ruim, uma vez que a presença de várias sociedades serve como uma política de “freios e contrapesos” no processo de seleção. Muitos países instituem, ainda, a parceria entre os participantes e uma entidade governamental para aumentar o controle sobre a exploração dos recursos sob sua jurisdição. É importante destacar que o país onde é realizada a exploração e produção de hidrocarbonetos também é beneficiado com a arrecadação das participações governamentais, 74 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial que podem incluir o pagamento de bônus de assinatura24, participação nos resultados da produção e/ou royalties pagos com base nos volumes produzidos. Além disso, há a arrecadação de tributos pelos diversos entes federativos, conforme devidos em relação às atividades principais e às acessórias (indústria de bens e serviços) e, ainda, os investimentos sociais, resultado de programas empresariais de desenvolvimento socioeconômico. Adicionalmente, e como parte de uma política maior de desenvolvimento industrial, o aumento da produção da indústria para-petrolífera nacional, com o crescimento da demanda por produtos e serviços pelos participantes concessionários. Como todo este arcabouço de benefícios, é possível a manutenção de Estados e Municípios mais ricos, assim como, também, o desenvolvimento de municípios menos privilegiados, seja com o repasse das participações governamentais, com a arrecadação de tributos ou com a consequente geração de empregos causada pela instalação de parques e indústrias para-petrolíferas. 2- A JOINT VENTURE COMO ESTRUTURA JURÍDICA ADEQUADA PARA FORMAÇÃO DE PARCERIAS NO UPSTREAM Não obstante sua utilidade comercial, não existe uma definição de joint venture, seja em lei ou prática negocial, Contudo, pode-se defini-la como sendo uma associação de dois ou mais participantes independentes, que combinam recursos para desenvolvimento de atividades para atingir um fim comum de natureza empresarial. A joint venture decorre de um acordo ou arranjo de cooperação e, como tal, tem por base um contrato.25 A joint venture é um veículo amplamente utilizado para a realização de operações no âmbito do comércio e investimentos internacionais. Elas têm aparecido em quase todas as atividades, incluindo fabricação e produção industrial, exploração de petróleo, gás natural e minérios, agricultura, distribuição, transporte, bancos e financiamentos, comunicações, mídia, projetos de pesquisa e desenvolvimento, e turismo e entretenimento, dentre outras.26 24 Bônus de assinatura é uma participação governamental prevista na legislação petrolífera (Leis n. 9.478/1997 e 12.351/2010). Trata-se de um valor fixo devido à União pelo contratado, a ser pago no ato da celebração do contrato de concessão ou de partilha de produção. 25 FISHER Geoffrey, International joint venture contracts: choice of law. In: DUNCAN, W.D (Org.). Joint Ventures Law in Australia. 2.ed. Sidney: The Federation Press, 2005, p. 345. 26 Idem, p. 344. 75 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Convém mencionar que a amplitude da definição do termo joint venture leva a delinear que a formação de parcerias deste tipo poderá adotar diversas formas de constituição, não existindo limitação. De todo modo, é importante destacar que elas poderão se constituir através de um contrato associativo (consórcio), como sociedades não personificadas (em comum ou em conta de participação) ou personificadas (notadamente as sociedades do tipo anônima ou limitada). Alternativamente, uma joint venture pode ser de duas formas: contratual (sem personalidade jurídica – non corporate joint venture) ou societária (com personalidade jurídica – corporate joint venture). A forma mais comum é a contratual, por delimitar menos a autonomia de seus participantes e estabelecer menos obrigações. Luiz Olavo Baptista, com base na experiência jurisprudencial norte-americana, conseguiu identificar as joint ventures pela presença de quatro requisitos: (i) origem ou caráter contratual; (ii) natureza associativa; (iii) direito dos participantes à gestão conjunta; e (v) objetivo e duração limitados.27 Uma joint venture societária envolve a criação de uma entidade jurídica separada, que deterá os ativos e conduzirá as operações. Em uma associação desta natureza, os participantes se tornarão sócios na sociedade criada, a qual será uma entidade com personalidade jurídica distinta da de seus participantes. O documento básico de constituição de uma joint venture societária é o contrato ou estatuto, que expressa a intenção das partes para estabelecer a joint venture em uma forma societária. Adicionalmente, poderão ser assinados memorandos de intenções, acordos de quotistas ou acionistas ou pactos para regular aspectos específicos do empreendimento. É importante destacar que as joint ventures societárias constituem uma forma mais sofisticada de parceria e atrai uma gama maior de obrigações legais. Em alguns países, a exploração de recursos naturais pode ser, por lei, outorgada a somente uma entidade, que exercerá o monopólio estatal. Neste caso, os parceiros em uma joint venture deverão, necessariamente, criar um novo veículo para conduzir as operações. De todo modo, não sendo este o caso, os participantes devem estar convencidos na hora de optarem por esta estrutura de que as vantagens superam as desvantagens, principalmente em razão do fato de a parceria restar regulada pelas exigências e normas vigentes de direito societário.28 27 28 BAPTISTA, Luiz Olavo; DURAND-BARTHEZ, Pascal. Les Associations d’Entrerprises dans Le Commerce International. Paris: FEDUCI, 1986, p. 19, Apud RIBEIRO, Marilda Rosado Sá. Direito do Petróleo – As Joint Ventures na Indústria do Petróleo. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 105. FISHER, Simon. Formation and Structure. In: DUNCAN, W.D (Org.). Op. cit., p. 144 et seq. 76 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Já a joint venture contratual é formada a partir da relação contratual direta das partes e não envolve a formação de entidade societária para operar a parceria. É importante observar que, apesar de uma joint venture contratual ser um tipo flexível, permitindo a facilidade de criação, operação e término – o que leva à sua maior popularidade em relação às de natureza societária – as partes precisam se preocupar em definir precisamente os limites e extensão da sua relação no contrato ou em uma série de contratos acessórios. A ausência de uma estrutura societária significa que os documentos contratuais podem se tornar muito extensos, pois eles precisariam regular toda a administração da parceria.29 De toda sorte, garantem uma maior flexibilidade aos participantes, já que, em grande parte, os direitos e obrigações entre as partes são fixadas unicamente pelos termos do contrato alcançado e não são sujeitos a disposições legais supervenientes, como é o caso na utilização de uma estrutura societária. Para melhor exemplificar os aspectos descritos acima, o quadro a seguir, inspirado no que foi proposto por Bill Manning, resume os principais pontos nos quais uma joint venture contratual se diferencia de uma societária. Quadro 1: Principais diferenças entre as estruturas contratual e societária Disposição Estrutura societária Veículo utilizado Contrato associativo ou de Contrato de sociedade consórcio devidamente arquivado Qualidade das partes Contratantes ou partes Sócios Propósito Definido variavelmente pelo escopo, itens excluídos e compromissos associados no ato de constituição. Nenhum compromisso exclusivo em relação ao propósito da associação, mas sujeito a deveres de lealdade. Definido pelo objeto social da sociedade e por uma lista definida de questões aplicáveis. Pode existir obrigação dos sócios de dar preferência ao propósito da sociedade e podem existir certos compromissos de exclusividade. Compromisso dos participantes 29 Estrutura contratual AG Greenwood. International Joint Venture Arragements. In: LEW, JDM; STANBROK, C (Org.). International Trade: Law and Practice. 2ª ed. Londres: Euromoney Publications, 1990, p.157. Apud FISHER, Geoffrey. op. cit., p. 344. 77 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Financiamento Gerenciamento e controle operacional Contratação As partes financiam suas A sociedade é financiada por contribuições individuais. fluxos de caixa e contribuições sociais. Uma única parte operadora, Diretoria ou Conselho de sujeita ao envolvimento do administração, sujeito a comitê operacional. votação dos sócios para questões reservadas. O operador contrata como A sociedade contrata em nome agente das partes. próprio. No direito brasileiro do petróleo, as joint ventures passaram a assumir importância capital com o marco regulatório introduzido pela Lei n. 9.478/97 (Lei do Petróleo), após a extinção do exercício em caráter exclusivo, pela Petrobras, do monopólio da União sobre as atividades previstas nos incisos I a IV do art. 177, em razão da Emenda Constitucional n. 9/1995. É importante salientar que as joint ventures constituídas seguirão o que preconiza o artigo 38 da Lei nº 9.478/97, o qual institui a figura dos consórcios para a condução das atividades objeto da concessão30: Art. 38. Quando permitida a participação de empresas em consórcio, o edital conterá as seguintes exigências: I - comprovação de compromisso, público ou particular, de constituição do consórcio, subscrito pelas consorciadas; II - indicação da empresa líder, responsável pelo consórcio e pela condução das operações, sem prejuízo da responsabilidade solidária das demais consorciadas; III - apresentação, por parte de cada uma das empresas consorciadas, dos documentos exigidos para efeito de avaliação da qualificação técnica e econômico-financeira do consórcio; IV - proibição de participação de uma mesma empresa em outro consórcio, ou isoladamente, na licitação de um mesmo bloco; V - outorga de concessão ao consórcio vencedor da licitação condicionada ao registro do instrumento constitutivo do consórcio, na forma do disposto no parágrafo único do art. 279 da Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Os participantes, quando em parceria, utilizam o contrato de consórcio somente para as formalidades exigidas pela lei e edital de licitações respectivo. O contrato deve ser arquivado no Registro Público de Empresas Mercantis, a cargo das Juntas Comerciais, e 30 Além da formação de consórcios para atividades de E&P, é possível também a constituição dessa figura contratual para a construção e operação de refinarias e de unidades de processamento, de liquefação, de regaseificação e de estocagem de gás natural, bem como para a ampliação de sua capacidade; construção de instalações para transporte de petróleo, seus derivados e gás natural, seja para suprimento interno ou para importação e exportação, importação e exportação de petróleo, derivados e gás natural e atividades econômicas da indústria de biocombustíveis (arts. 53, 56, 60 e 68-A da Lei n. 9.478/1997). 78 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial publicada a certidão do arquivamento, a ser apresentada posteriormente a ANP. Sem embargo, para efeito inter pars pode existir outro contrato para operacionalização da joint venture. Alexandre Santos de Aragão sustenta que as joint ventures no direito do petróleo brasileiro representam mais do que um simples consórcio31. De todo modo, em termos operacionais, elas acabam por se assemelhar a essa figura. Vale destacar, ainda, o novo modelo regulatório instituído pela Lei nº 12.351, de 21 de dezembro de 2010 (dispõe sobre a exploração e a produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos, sob o regime de partilha de produção, em áreas do pré-sal e em áreas estratégicas), como principal norma reguladora das atividades concernentes à área do pré-sal. Neste novo modelo, a União poderá contratar diretamente com a Petrobras as atividades de exploração e produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos, ou, alternativamente, abrir licitação na modalidade leilão para oferta de blocos (conhecida como “rodada”). Caso isto ocorra e a Petrobras não seja vencedora isolada, o vencedor deverá constituir consórcio com ela. Esta exigência decorre do fato de a Petrobras ser a operadora de todos os blocos contratados sob o regime de partilha de produção, sendo-lhe assegurada, a este título, participação mínima de 30% (trinta por cento) no consórcio (arts. 2º, VII, 4º e 20 da Lei n. 12.351/2010). O edital de licitação será acompanhado da minuta básica do respectivo contrato e indicará, obrigatoriamente, a formação do consórcio e a respectiva participação mínima da Petrobras. Um novo “ator” neste cenário é a Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. – Pré-Sal Petróleo S.A (PPSA), empresa pública cuja autorização para criação decorre da Lei n. 12.304/2010. Ela será parte obrigatória no consórcio com a finalidade de gerir os contratos, seja a Petrobras contratada diretamente ou na condição de consorciada operadora. Tal determinação, contida nos arts.19 e 20 da Lei n. 12.351/2010, tem por objetivo proteger os interesses da União no contrato de partilha, eis que o produto da lavra pertence a ela, mas será partilhado de acordo com as disposições legais e contratuais. Quando permitida a participação conjunta de sociedades empresárias na licitação, o edital conterá a comprovação de compromisso, público ou particular, de constituição do consórcio pelos vencedores. 31 ARAGÃO, Alexandre Santos de (Org.). Direito do petróleo e de outras fontes de energia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 21 et seq. 79 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Percebe-se nitidamente uma forte regulação no setor petrolífero, onde as sociedades empresárias, consorciadas ou não, devem cumprir fielmente as obrigações contidas no contrato de concessão e as normas regulamentares da ANP, dentre elas as referentes ao conteúdo local, que será o tema do próximo capítulo. 3- CONTEÚDO LOCAL E OS BENEFÍCIOS PARA A SOCIEDADE Para Luiz Cesar Pazos Quintans, conteúdo local não teria uma definição exata. Seria, na verdade, um processo de estímulo, uma orientação política, com o intuito de ampliar a capacidade de fornecimento brasileiro, para o desenvolvimento da indústria local de bens e serviços, a ponto de gerar competitividade a níveis internacionais, renda, emprego, novos insumos e tecnologias no Brasil.32 Sem embargo da noção apresentada, a legislação sobre o novo marco regulatório da indústria do petróleo apresenta um conceito de conteúdo local, que não se distancia do formulado pelo autor. Nos termos do art. 2º, VIII, da Lei n. 12.351/2010, conteúdo local é a “proporção entre o valor dos bens produzidos e dos serviços prestados no País para execução do contrato e o valor total dos bens utilizados e dos serviços prestados para essa finalidade”. A guisa de ilustração, uma sociedade petrolífera estrangeira, em geral, contrata empregados ou prestadores de serviços estrangeiros mais qualificados para trabalhar no país hospedeiro, bem como máquinas, equipamentos, enfim bens e serviços importados. Tudo é expresso numa cifra, ou seja, constitui um valor a ser despendido pelo contratante. Parte deste valor, em termos proporcionais, deverá ser gasto em contratação de bens e serviços produzidos no Brasil, tanto na fase de exploração quanto de desenvolvimento da produção. A ANP, a partir da sua Primeira Rodada de Licitações de blocos para exploração e produção de hidrocarbonetos, realizada em 1999, instituiu a obrigação de investimentos mínimos de conteúdo local em diferentes fases dos contratos assinados 33. Como já exposto, QUINTANS, Luiz Cesar Pazos. Direito do Petróleo – Conteúdo Local: a evolução dos modelos de contrato e o conteúdo local nas atividades de E&P no Brasil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2010, p. 4. 33 Ao discorrer sobre o julgamento das ofertas dos concorrentes habilitados à Primeira Rodada de Licitações, o Capítulo 8 do Edital inseriu como critério para atribuição de pontos e pesos o conteúdo local, então definido como “Compromisso com Aquisição Local de Bens e Serviços nas Fases de Exploração e Desenvolvimento” (itens 8.2 e 8.3). Com isto, as licitantes que viessem a ser habilitadas se comprometiam a adquirir bens e serviços locais, prestados por sociedades constituídas segundo a definição do Contrato de Concessão. 32 80 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial esse compromisso faz parte de uma política governamental para estimular o desenvolvimento da indústria nacional. Em um primeiro momento, nas licitações, a oferta pelas petrolíferas interessadas era livre, ou seja, cada sociedade participante na licitação poderia ofertar a porcentagem de conteúdo local mínima com a qual se comprometeria, recebendo a pontuação designada de acordo com o pertinente edital de licitações. Este modelo de compromisso permaneceu vigente até a Quarta Rodada de Licitações (2001/2002). Na Quinta (2003) e Sexta Rodadas (2004), a cláusula de conteúdo local nos contratos de concessão foi modificada e passou-se a exigir percentuais mínimos e diferenciados para a aquisição de bens e serviços brasileiros destinados a blocos terrestres, a blocos localizados em águas rasas e a blocos em águas profundas 34. Na Sétima Rodada de Licitações (2005), outras mudanças foram introduzidas na referida cláusula, que passou a limitar as ofertas de conteúdo local a faixas percentuais situadas entre valores mínimos e máximos. As regras estabelecidas na Sétima Rodada ainda continuam em vigor. Foi também estabelecida uma planilha contendo itens e subitens, tanto para fase exploratória quanto para a etapa de desenvolvimento, onde se permitia que o ofertante alocasse pesos e percentuais de conteúdo local em cada um dos itens. Outra inovação foi a publicação da Cartilha de Conteúdo Local de Bens, Sistemas e Serviços Relacionados ao Setor de Petróleo e Gás, como ferramenta de medição do conteúdo local contratual. Esta cartilha contém as definições, métodos e critérios para cálculo do conteúdo local. Embora não se pretenda discorrer sobre tais critérios, deve-se mencionar um aspecto importante ao escopo do trabalho: a responsabilidade social da empresa como fator de inclusão social em relação à empregabilidade de mão de obra nacional, um dos aspectos mais importantes do conteúdo local. O empresário necessitará contratar mão de obra para a realização das operações nas fases de exploração e desenvolvimento. Isto representará para ele um “custo total de mão de obra”, ou seja, decorrente da utilização de mão-de-obra diretamente relacionada à realização de um serviço, sob a forma de salários e encargos. Dentro deste “custo total”, deverá estar incluído em percentuais mínimos uma proporção de “custo total da mão de obra local”, que representa “mão-de-obra local diretamente relacionada à realização de um serviço sob a forma 34 Tal limitação se justifica, dentre outras coisas, pelo fato de as pretendentes concessionárias ofertarem, muitas vezes, porcentagens de conteúdo local inexequíveis a fim de conseguir uma maior pontuação na licitação. Contudo, esta análise não é objeto do presente trabalho. 81 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial de salários e encargos”. Entende-se por mão de obra local aquela proveniente do emprego de cidadãos brasileiros ou estrangeiros com visto permanente, empregados nos estabelecimentos prestadores de serviços, em seus subcontratados (que deverão estar inscritos no CNPJ), ou proveniente de mão-de-obra autônoma. Não será considerado como “local” a mão-de-obra de indivíduos estrangeiros, ainda que com visto temporário ou autorização de trabalho a estrangeiros, bem como aquela proveniente de empregos não legalizados no país. Nota-se que há uma obrigação do concessionário de empregar brasileiros ou estrangeiros que tenham permanência estável no Brasil, permitindo especialmente aos nacionais acesso ao trabalho e renda, fatores de elevada inclusão social. O Quadro abaixo sintetiza as alterações quanto às exigências de conteúdo local: Quadro 2: Exigências de Conteúdo Local pela ANP nos Contratos de Concessão Rodada Zero 1a4 (1999 a 2002) 5e6 (2003 e 2004) 7, 9 e 10 (2005 a 2008) Exploração Sem exigência de conteúdo local Limite máximo 0<CL<=50% Desenvolvimento Limite mínimo por tipo de bloco Águas profundas – 30% Águas rasas – 50% Terra – 70% Limites mínimos e máximos por tipo de bloco Mín. Máx. Terra 70% 80% Águas rasas (< 100m) 51% 60% Águas rasas (100-400m) 37% 55% Águas profundas 37% 55% Limite mínimo por tipo de bloco Águas profundas – 30% Águas rasas – 60% Terra – 70% Limites mínimos e máximos por tipo de bloco Mín. Máx. Terra 77% 85% Águas rasas(< 100m) 51% 60% Águas rasas(100-400m) 37% 55% Águas profundas 37% 55% Limite máximo 0<CL<=70% Medição ----Declaração de origem Declaração de origem Cartilha de Conteúdo Local (Certificação) A sociedade ou consórcio vencedor da licitação precisará investir a porcentagem mínima ofertada em bens e serviços de origem nacional. Na hipótese de não atingir tal mínimo, haverá a aplicação de multas e outras penalidades a serem impostas pela ANP, além do prejuízo da própria imagem das petrolíferas perante a comunidade por conta do não cumprimento de uma obrigação35. 35 No sitio institucional da ANP (www.anp.gov.br) são relacionados os blocos licitados e as concessionárias fiscalizadas em relação ao cumprimento da cláusula de conteúdo local. Em alguns deles a ANP constatou o descumprimento do compromisso, como ocorreu com o Bloco REC-T-192, cuja fiscalização de conteúdo local, encerrada em 5/1/2012, concluiu que: “Da análise dos Relatórios de Gasto Trimestrais, da Planilha de Conteúdo Local preenchida pela supracitada operadora e dos demais documentos apresentados, se verificou 82 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial De acordo com a própria Agência, entre 2011 e 2012 foram aplicadas multas relativas a não cumprimento de conteúdo local no valor total aproximado de R$ 36 milhões.36 Percebe-se nitidamente que o investimento a ser feito pelos empresários em prol do desenvolvimento da sociedade e das regiões onde serão realizadas as atividades de E&P está acompanhando de uma sanção negativa, relevando a importância do conteúdo local para o direito brasileiro do petróleo e sua necessária vinculação ao princípio da função social de empresa, consectário da função social da propriedade (art. 170, III da Constituição de 1988)37. Não se trata de uma exortação ao empresário, cujo atendimento viria acompanhado de sanções positivas ou prêmios. Trata-se de um dever jurídico patrimonial emanado de cláusula contratual compulsória para implementar efetivamente fundamentos constitucionais previstos no art. 1º, incisos II, III e IV da Constituição – a cidadania (melhoria da qualidade de vida, instalação de novos empreendimentos na área petrolífera e para-petrolífera, estímulo à pesquisa e inovação), a dignidade da pessoa humana (geração de empregos, investimentos em infraestrutura e parcerias com municípios, estados e entidades privadas), os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. A responsabilidade do empresário concessionário em assegurar o mínimo de conteúdo local revela uma preocupação com os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, em assegurar melhores condições de vida para os trabalhadores, valorizando-os e dando-lhes dignidade e cidadania, em consonância com o caput do art. 170 da Constituição. Note-se que o conteúdo local, além de estímulo à formação e capacitação profissional, bem como a investimentos em tecnologia para os empreendedores, impõe também deveres a terceiros não empresários, inclusive ao Estado. De nada valeria a legislação impor um percentual mínimo de aquisição de bens e serviços nacionais se os beneficiados, notadamente a indústria nacional, estiverem incapacitados para atender às exigências do setor de E&P. Portanto, o fomento à cidadania empresarial, notadamente nos aspectos da produção e educação continuada, traz também uma ação conjunta do poder público com o empresariado com o fito de propiciar condições materiais e humanas (v. g. novos centros de formação que não foi atingido na Fase de Exploração o cumprimento do percentual de conteúdo local mínimo para a Atividade Global e para as Atividades Específicas I (Operações de aquisição de dados de geologia e geofísica), II (Operações de processamento de dados geofísicos, estudos e interpretação de dados de geologia e geofísica) e III (Perfuração, completação e avaliação de poços) constantes no ANEXO III do referido Contrato de Concessão 48610.008016/2004. Foi aplicada multa pecuniária pelo não cumprimento dos compromissos. 36 BRASIL. Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP. Disponível em <http://www.anp.gov.br/?id=2734>. Acesso em 16 mar 2013. 37 Cf. PEREZ, Viviane. Função Social da Empresa: uma proposta de sistematização do conceito. In: ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Temas de direito civilempresarial, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 197-221. 83 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial tecnológica ou universitária, incentivos fiscais, novas linhas de crédito à produção industrial), para que existam condições efetivas de suprir as demandas do setor petrolífero e, por ilação, cumprir a cláusula de conteúdo local. De acordo com pesquisa apresentada pela PricewaterhouseCoopers, 61% (sessenta e um por cento) dos participantes entrevistados afirmaram que as obrigações de conteúdo local aumentam em mais de 10% (dez por cento) os custos da exploração de hidrocarbonetos. Tais investimentos são expressivos, conforme indicado na pesquisa foram certificados investimentos concernentes à indústria nacional na órbita dos R$ 3,2 bilhões, no período entre o 4º trimestre de 2008 e o 2º trimestre de 2011.38 Portanto, além dos riscos inerentes à própria atividade em si, os participantes precisam, ainda, levar em conta a possibilidade de conseguir cumprir as obrigações do contrato, incluindo a obrigação de investimentos mínimos em conteúdo local. Segundo a Lei n. 12.351/2010, no modelo de partilha de produção caberá ao Ministério de Minas e Energia propor ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) o conteúdo local mínimo e outros critérios relacionados ao desenvolvimento da indústria nacional. Igualmente, o edital de licitação será acompanhado da minuta básica do respectivo contrato e indicará, obrigatoriamente, o conteúdo local mínimo. 3.1 O Sistema de Certificação de Conteúdo Local Com o objetivo de estabelecer as condições legais para a realização das rotinas relacionadas às exigências da cláusula de conteúdo local, instauradas a partir da Sétima Rodada, a ANP criou o Sistema de Certificação de Conteúdo Local, cuja regulamentação foi publicada em 16 de novembro de 2007, depois de concluído o processo de consultas públicas. Esse Sistema estabelece a metodologia para a certificação e as regras para o credenciamento de entidades certificadoras junto à ANP39. As entidades credenciadas serão responsáveis por 38 PricewaterhouseCoopers. O conteúdo local nos empreendimentos de petróleo e gás natural. Disponível em: <http://www.pwc.com.br/pt_BR/br/publicacoes/setores-atividade/assets/oil-gas/pesq-pwc-conteudonacional12.pdf>. Acesso em 15 mar 2013. 39 No sítio institucional da ANP (http://www.anp.gov.br/?pg=65118&m=&t1=&t2=&t3=&t4=&ar=&ps=&cachebust=1363830732312) são listadas as sociedade credenciadas para as atividades de certificação de conteúdo local. Acesso em 13/3/2013. 84 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial medir e informar à ANP o conteúdo local de bens e serviços contratados pelas concessionárias para as atividades de exploração e desenvolvimento da produção de petróleo e gás natural. O Sistema de Certificação de Conteúdo Local compreende um conjunto de quatro Resoluções: Resolução ANP n° 36 de 13.11.2007 – define os critérios e procedimentos para execução das atividades de certificação de conteúdo local. Resolução ANP n° 37 de 13.11.2007 – define os critérios e procedimentos para cadastramento e credenciamento de entidades para exercer a atividade de certificação de conteúdo local. Resolução ANP n° 38/2007 de 13.11.2007 – define os critérios e procedimentos de auditoria nas empresas de autorizadas ao exercício da atividade de certificação de conteúdo local. Resolução ANP n° 39/2007 de 13.11.2007 – define os relatórios de investimentos locais em exploração e desenvolvimento da produção em contratos de concessão a partir da Sétima Rodada de Licitações. Nota-se, portanto, um conjunto coordenado de ações sob a fiscalização e normatização da ANP para assegurar vários princípios e fundamentos constitucionais, já citados, em prol da atuação empresarial positiva na indústria do petróleo. A regulamentação acima tem papel fundamental para apresentar ao concessionário suas obrigações em relação ao conteúdo local e o acompanhamento da evolução dos investimentos nessa seara. Com isto, o upstream poderá oferecer ao Brasil, importante país hospedeiro que recebeu e receberá nos próximos anos bilhões em investimentos nas áreas já licitadas e nas do pré-sal, maiores oportunidades de empregabilidade, geração de conhecimentos e desenvolvimento tecnológico pelo próprio povo brasileiro. 3.2 A Preocupação com o Conteúdo Local pelas Companhias Petrolíferas – caso Petrobras As companhias petrolíferas que operam no Brasil demonstram empenho no cumprimento dos percentuais de conteúdo local. Tal constatação demonstra a importância da política governamental e regulatória, além de frisar o papel da ANP na fiscalização da aplicação da Cartilha e do Sistema de Certificação. 85 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Dentro das limitações do presente trabalho, mas com o intuito de apresentar dados de gestão da política de E&P de uma petrolífera em matéria de conteúdo local, optou-se pela Petrobras, não só pelo fato de ser a maior companhia de petróleo que atua no país, mas em especial pelo fato de ser uma sociedade de economia mista. Por esta razão, com o controle acionário titularizado pela União e sendo integrante da administração pública indireta, é importante verificar os objetivos e metas que a companhia adota no cumprimento da cláusula dos contratos de concessão. A Petrobras tem como objetivos de gestão de conteúdo local: - o aumento do parque fabril; - obtenção de maior valor agregado do que é produzido no país; - realizar investimento em infra-estrutura e tecnologia; - aumentar a arrecadação de impostos; - aumento do nível de emprego e renda; - ampliar as exportações e reduzir as importações. Percebe-se uma consonância com o que se espera da atuação empresarial consentânea com os princípios da atividade econômica insculpidos na Constituição, para promover um desenvolvimento sustentável a longo prazo e com vistas à inclusão social. Segundo o plano de gestão apresentado pela Petrobras, os potenciais ganhos são: redução de custos (representação, imposto de importação, custo de manutenção); maior garantia de fornecimento de produtos e serviços sem dependência do exterior; maiores ações no pós venda. Ademais, a preferência por bens e serviços nacionais viabiliza a redução de estoques; mitigação das barreiras de idiomas; redução de riscos e aumento da capacidade de inovação dos fornecedores. As metas a serem atingidas são: maximizar conteúdo local em base competitiva e sustentável; impulsionar o desenvolvimento dos mercados locais de forma sustentável; incentivos para instalação de empresas internacionais no Brasil; incentivar novos entrantes nacionais; incentivar associação entre companhias nacionais e internacionais; desenvolver concorrência em setores de média competição; ampliar capacidade produtiva setores altamente competitivos40. 40 O documento institucional encontra-se disponível em http://www.conselhos.org.br/Arquivos/Html/Documentos/Docs%20COG/Vis%C3%A3o%20da%20Operadora% 20Petrobras.pdf. Acesso em 11/3/2013. 86 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial CONCLUSÃO Verificou-se ao longo do trabalho que a exploração de petróleo, seja offshore ou inshore, é cercada de desafios e grandes dificuldades, não só em termos técnicos como financeiros, sociais e políticos. As responsabilidades que os empresários assumem, seja por disposições contratuais seja por legais, e os altos dispêndios demandam a necessidade de formação de parcerias para diluição dos riscos e exploração de vários campos, bem como viabilizar um lucro maior pelas atividades de exploração e produção, já que a maioria absoluta das petrolíferas é composta por grandes companhias, com ações e títulos negociados no mercado de valores mobiliários. Por envolverem várias sociedades no empreendimento, além de participantes da atividade para-petrolífera, formam-se cadeias produtivas desde as fases de exploração e produção (upstream), transporte (midstream), refino e distribuição (downstream). Com esta gama de relações contratuais e negócios complexos múltiplos benefícios são gerados para a sociedade e o poder público, como analisado no capítulo 1. A principal forma de associação utilizada na indústria do petróleo é a joint venture, seja contratual – viabilizada através da formação de consórcios para operação de blocos ou mesmo participação na fase de licitação – ou societária. A Lei do Petróleo, tanto no antigo quanto no atual marco regulatório, dispõem sobre a formação dos consórcios e as responsabilidades das partes contratantes, inclusive quanto à proporção mínima de utilização de bens e serviços produzidos no Brasil (conteúdo local). Nas áreas situadas no polígono do pré-sal e outras estratégicas, a serem licitadas, a Petrobras será a operadora de todos os campos e líder nos consórcios, caso não receba diretamente da União a outorga para a exploração. O conteúdo local tem importância fundamental na efetivação de direitos fundamentais (ao pleno emprego, cidadania, geração de renda, de conhecimento, entre outros) e na concreção do princípio da função social da empresa. Ao contrário de ser uma exortação ao empresário, cujo atendimento seria acompanhado de sanções positivas ou prêmios, é uma obrigação emanado de cláusula contratual compulsória para implementar fundamentos, objetivos e princípios previstos em vários dispositivos constitucionais para promoção de melhorias na qualidade de vida, instalação de novos empreendimentos na área petrolífera e para-petrolífera, estímulo à pesquisa e inovação, geração de empregos, investimentos em infraestrutura e parcerias com Municípios, Estados e entidades privadas. 87 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial A responsabilidade do empresário concessionário em assegurar o mínimo de conteúdo local e a atuação da ANP na regulamentação e fiscalização, aplicando eventualmente sanções, revela uma preocupação com os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, em assegurar melhores condições de vida para os trabalhadores, valorizando-os e dando-lhes dignidade e cidadania, em consonância com o caput do art. 170 da Constituição. 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VALOR ECONÔMICO ON LINE. http://www.valor.com.br 89 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL E MARKETING SOCIAL Juliana Falci Sousa Rocha Cunha* RESUMO: A responsabilidade social empresarial tem sido constantemente abordada, o que se deve em grande parte à pressão social e à transferência de responsabilidades do Estado para empresas privadas, cujo maior objetivo é a obtenção de lucro. Neste contexto, o presente artigo pretende estudar a responsabilidade social empresarial e sua relação com o marketing. No que tange à responsabilidade social serão analisadas as suas diretrizes, as suas demais responsabilidades, questões relacionadas ao direito brasileiro, justificativas para a sua adoção etc. Em seguida, será abordado o marketing social e alguns dos instrumentos utilizados por ele para implementação da responsabilidade social corporativa. Assim sendo, pretende-se demonstrar que muitas empresas brasileiras estão se valendo da responsabilidade social como ferramenta de marketing social para atingirem o seu objetivo maior que é a maximização de lucro. PALAVRAS-CHAVES: responsabilidade; empresarial; marketing. CORPORATE SOCIAL RESPONSIBILITY AND SOCIAL MARKETING ABSTRACT: The corporate social responsibilityhasbeenveryoftengottogrip, mainlyduetothe big social pressionandthetransferoftheresponsibilitiesfromtheStatetotheprivatecompanies, whosemaingoalistogetprofits. In thiscontext, thisarticleplanstostudythecorporatesocial responsibilityand its relashionshiptothe social marketing. The social responsibilitywillbeanalysed in its guidelines, issuesrelatedtotheBrazilianlaw, justificationsto its adoptionandsoone. Afterthat, the social marketing and some toolsusedtoimplementwillbediscussed. Therefore, theintentionofthisstudyistodemonstratethatmanyBraziliancompanies are takingadvantageofthe social responsibility as a tool of social marketing toachieve its maingoal, thatisto maximize theirprofits. KEYWORKS: responsibility; corporate; marketing. * Mestranda em Direito Empresarial - Faculdade Milton Campos. Especializada em Direito Empresarial Faculdade Milton Campos, Direito Civil - Faculdade Milton Campos e Marketing – Fundação Getúlio Vargas. Graduada em Direito - Faculdade Milton Campos, Administração de Empresas – Centro Universitário UNA e Tecnologia em Processamento de Dados – Centro Universitário UNA. 90 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 1 INTRODUÇÃO O tema responsabilidade sócio empresarial tem sido recorrente nas discussões jurídico-empresariais nas últimas décadas. Essa discussão se deve à pressão da sociedade civil e do Governo em repassar para as empresas as responsabilidades que são do poder público, mas que infelizmente este não as tem assumido. A Constituição da República prevê no artigo 6o os direitos sociais, entretanto, ao verificarmos a real situação, a grande maioria desses direito sociais não têm sido assegurados. Exemplo de responsabilidade do Estado assumida pelas empresas é a educação, a qual tem sido promovida em diversas empresas brasileiras, desde a educação básica até a pós-graduação. Mas, muitas empresas que têm iniciativas no âmbito da responsabilidade social não as fazem por iniciativa desinteressada, mas sim objetivando que sejam reconhecidas e respeitadas pela sociedade e consequentemente aumentem o lucro, que é o principal foco das organizações. Enfim, nota-se que muitas empresas brasileiras estão utilizando a responsabilidade social empresarial como ferramenta de marketing social, utilizando certificações, selos e balanço social para atingir o seu maior objetivo, que é a maximizaçãodo seu retorno financeiro. 2 RESPONSABILIDADE SOCIAL Para iniciar o presente estudo é essencial definir o que é responsabilidade social. Segundo MELO NETO e FROES (2001): A responsabilidade social busca estimular o desenvolvimento do cidadão e fomentar a cidadania individual e coletiva. Sua ética social é centrada no dever cívico (...). As ações de responsabilidade social são extensivas a todos os que participam da vida em sociedade – indivíduos, governo, empresas, grupos 91 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial sociais, movimentos sociais, igreja, partidos políticos e outras instituições. Já ASHELEY (2002), de modo simplista e direto conceitua responsabilidade social como (...)toda e qualquer ação que possa contribuir para a melhoria da qualidade de vida da sociedade. O Instituto Ethos, organização não governamental que tem como foco apoiar as organizações na gestão socialmente responsável dos seus negócios, afirma que a responsabilidade social é uma “(...) forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais compatíveis com o desenvolvimento sustentável da sociedade”. De acordo com REIS e MEDEIROS (2007): (...) a responsabilidade social das empresas é discutida mais pela perspectiva de atendimento a interesses privados e econômicos – muito relacionados à imagem pública da empresa, que precisa ser preservada – do que aos interesses sociais mais amplos e relacionados ao bem-estar da sociedade, enquanto atitude altruísta, embora algumas discussões apontem uma harmonia entre as responsabilidades econômicas e sociais, dentre outras (...). Assim sendo, em síntese, pode-se definir a responsabilidade sócio empresarial como a responsabilidade assumida pelas empresas, que contribui para a melhoria da qualidade de vida da sociedade. Neste contexto, nota-se que os teóricos tem afirmado que a responsabilidade social empresarial possui três pressupostos básicos: (a) o maior alcance da responsabilidade empresarial para além dos interesses dos seus proprietários/acionistas; (b) a mudança da responsabilidade sob a ótima legal, que passa a envolver obrigações morais; (c) atendimento às demandas sociais. Isto posto, pode-se dizer que a responsabilidade social adotada pelas empresas não deve ser encarada como uma caridade, filantropia isolada ou uma ação unilateral e isolada do empresário. Elasempre deve estar alinhada com os objetivos organizacionais. 92 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 2.1 HISTÓRICO DA IDÉIA DE RESPONSABILIDADE SOCIAL Ao analisar os últimos séculos, encontram-se referências à “responsabilidade social” desde o século XVI. Todavia, desde então muito se evoluiu, passando pela filantropia, voluntariado, cidadania corporativa e também desenvolvimento sustentável. No século XVI, já se falava no termo “responsabilidade social” nos Estados Unidos. Nesta ocasião, as dívidas que o empresário adquiria ao longo da vida, por ocasião de seu falecimento eram herdadas pelos seus descendentes. Ou seja, não podendo o empresário honrar com os compromissos assumidos pela sua empresa em caso de falecimento, os seus descendentes deveriam assumir tal ônus. No século XVIII, imperava o liberalismo, com a busca pelo lucro. A responsabilidade social significava manter a empresa maximizando os lucros, gerando empregos e pagamento os impostos públicos. A sociedade não se importava com questões relacionadas ao meio ambiente ou trabalhistas, o que acarretou o aumento da poluição e a piora das condições precárias de trabalho. Ademais, no referido século os governos determinaram que as dívidas comerciais de uma organização seriam de responsabilidade dos investidores e que para que uma empresa pudesse funcionar era preciso autorização pública, o que só era concedido e mantido com relação as organizações que se comprometiam e cumpriam ações sociais. No século XIX, mesmos as empresas americanas que estavam sendo privatizadas tinham as suas ações controladas pelo Estado. Todavia, a guerra norte-americana (1861 a 1865), segundo REIS e MEDEIROS (2007) “marcou mudanças na legislação das empresas, possibilitando que realizassem também serviços de interesse privado, além daqueles de interesse público”. Assim, com o passar dos anos as empresas foram enriquecendo e conseguiram controlar os órgãos legislativos, o que possibilitou com que fossem aprovadas leis de interesse particular das companhias, como a isenção em caso de danos ao trabalhador. 93 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Já no século XX, em 1919 ocorreu um caso emblemático em termos de responsabilidade social, que é constantemente lembrado pelos teóricos que estudam a responsabilidade social, dentre eles REIS e MEDEIROS (2007): (...) a questão da responsabilidade das empresas tornou-se de conhecimento público no julgamento do caso Dodge “versus” Ford, no qual os irmãos Dodge processaram a Companhia Ford porque o então presidente e acionista majoritário da empresa, Henry Ford, em 1916, comunicou aos demais acionistas que os lucros da companhia seriam reinvestidos para fins de expansão da empresa e diminuição nos preços dos automóveis. (...) A Suprema Corte de Michigan negou o pedido de Ford, justificando que “uma empresa comercial é organizada e principalmente visa o lucro dos acionistas”. A utilização de dividendos da empresa que não fossem a otimização de lucros não foi acatada, e a decisão da Corte foi favorável aos demais acionistas em detrimento dos objetivos sociais propostos. Após esta decisão, muitas outras decisões da alta corte americana foram favoráveisà doação de empresas, como por exemplo, o caso A. P. Smith Manufacturing Company versus Barlow. Naquele século tambémocorreu a quebra da Bolsa de Nova Iorque (1929), o que fez com que o Estado passasse a interferir diretamente na economia. Paralelamente, as empresas notaram que deveriam buscar outros objetivos além do lucro, como uma relativa valorização dos seus trabalhadores, o que perdurou até a década de 1970. A partir de então houve grande evolução nas discussões relacionadas à responsabilidade social das empresas, fazendo assim com que os executivos fossem sensibilizados para questões sociais. Com o desenvolvimento da economia e o acesso as informações, os cidadãos tornaram-se mais exigentes, inclusive cobrando das organizações posturas socialmente corretas, como o respeito ao meio ambiente, à sociedade e aos seus trabalhadores. Com isto, os consumidores passaram a prestar mais atenção às atividades exercidas pelas empresas, sempre tendo em mente a sua responsabilidade social. 94 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Atualmente, a responsabilidade social das empresas tem sido considerada como um investimento e não mais como um custo. A tendência é de que as empresas que desejem continuar competitivas no mercado, obrigatoriamente devem investir em responsabilidade social, sendo que caso não o façam poderão ser desconsideradas pelos clientes, fornecedores, concorrentes, comunidade etc e consequentemente desaparecerem do ambiente empresarial. 2.2 RESPONSABILIDADE SOCIAL: ALGUMAS VANTAGENS E DESVANTAGENS As empresas que adotam a responsabilidade social e consequentemente realizam a divulgação de tais ações beneficiam-se de vantagens, mas também de algumas desvantagens. Dentre as vantagens, pode-se citar o fortalecimento da marca e da imagem da empresa, a diferenciação perante as demais empresas e em especial aos seus concorrentes, a geração de mídia espontânea (visibilidade), a fidelização de clientes, a atração e retenção de profissionais, a atração de investimentos, o aumento de produtividade,o aumento das vendas e o crescimento da credibilidade. Exemplos de atração e retenção de talentos foi citado por ASHELEY (2002). Segundo uma pesquisa realizada pela empresa IBM, 75% dos profissionais entrevistados acreditam que tanto a responsabilidade social quanto um plano de trabalho voluntário atraem e retêm talentos na organização. Outra pesquisa interessante foi realizada pela “You & Company” com alunos de MBA, dos quais 83% daqueles que procuram por emprego escolhem empresas que adotam práticas de maior responsabilidade social. Além disto, 50% destes alunos afirmam que preferem trabalhar em empresas éticas, mesmo que lhes seja oferecida menor remuneração. 2.3 DIRETRIZES DA RESPONSABILIDADE SOCIAL De acordo com o Instituto Ethos, a responsabilidade social da empresa é dividida em seisdiretrizes/indicadores: Valores, transparência e governança; Público interno; 95 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Meio ambiente; Fornecedores; Consumidores e clientes; Governo. A primeira diretriz citada acima está relacionada à atuação das empresas de acordo com os valores e princípios éticos, sendo estes a base para o exercício das atividades empresariais, envolvimento, por exemplo, a segurança da utilização de seus produtos e/ou serviços pelos consumidores. Os valores e a transparência da empresa devem permear todo o ambiente interno, que serve como “espelho” da organização para o mercado consumidor, fornecedores, clientes, governo e comunidade. Quando os empregados agem em concordância com os valores da organização e de maneira transparente, a companhia é reconhecida e valorizada frente as demais empresas, concorrentes ou não. Para isto, é essencial que a comunicação interna atue fortemente na divulgação destes valores, que devem sempre ser promovidos pela alta administração e pelas gerências, sob o risco de não serem reconhecidos pelos seus trabalhadores. Ademais, mesmo estando os empregados comprometidos com os valores e a transparência da empresa é necessário que também sejam envolvidos os parceiros e fornecedores, que fazem parte da cadeia de produção da organização. A segunda diretriz, o público interno, está relacionada, segundo BARBOSA et al (2007): (...) a atuação interna da empresa não restringindo ao respeito aos direitos dos trabalhadores decorrentes da legislação trabalhista e dos padrões da OIT (Organização Internacional do Trabalho), alcançando as áreas de investimento em desenvolvimento pessoal e profissional dos funcionários, a melhoria das condições de trabalho, o estreitamento da relação empresa – empregados, bem como às culturas locais, sobretudo às minorias. Quanto ao meio ambiente, o terceiro indicador, a empresa deve estar atenta aos impactos que a sua atividade gera no meio ambiente, procurando sempre minimizá-los, 96 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial inclusive divulgando os casos de sucesso alcançados para outras empresas, para que estas também possam adotar tais iniciativas. A quarta diretriz refere-se aos fornecedores. As corporações devem sempre manter um bom relacionamento com os seus fornecedores e demais parceiros, bem como cumprir todos os contratos acordados. Os clientes e consumidores, quinta diretriz, devem ser acompanhados pelas empresas socialmente responsáveis não somente no momento da pré-venda, mas também no pós-venda. As organizações também devem realizar investimento em pesquisa e desenvolvimento de produtos/serviços, buscando satisfazer as necessidades dos seus consumidores, mas também procurando aprimorá-los de tal modo a evitar o menor impacto negativo possível, como por exemplo, danos à saúde. O sexto e último indicador é o governo, o qual deve apresentar relacionamento ético, transparente e responsável com as empresas, sendo que elas devem cumprir as leis sempre em busca do desenvolvimento social e político do país. Assim sendo, trabalhando com estes indicadores, pode-se disseminar a importância da responsabilidade social para toda a sociedade. 2.4 RESPONSABILIDADE SOCIAL E OUTRAS RESPONSABILIDADES Para muitos teóricos a responsabilidade social inclui responsabilidades de natureza econômica, legal, ética e filantrópica. Segundo REIS e MEDEIROS (2007), “(...) há quatro tipos de responsabilidade sociais, os quais resultam em condutas específicas, que poderão ser avaliadas pela sociedade e que definem uma área determinada sobre a qual a empresa toma decisões. São elas: a legal, a ética, a econômica e a filantrópica”. Segundo o referido autor a área filantrópica está relacionada à devolução à sociedade daquilo que foi por ela recebido. No que tange à área econômica, busca-se “maximizar para o steakholder a riqueza e/ou o valor.” A ética refere-se à condutas aceitáveis 97 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial que são realizadas de acordo com os padrões estabelecidos pelos steakholder. A última área, mas não menos importante, é a legal, que está relacionada ao cumprimento de leis e regulamentos do governo por parte das companhias. Com relação ao abordado pelo referido autor é importante recordar que anteriormente foram criadas quatro dimensões da responsabilidade social empresarial por CARROLL (1979), sendo que tempo depois ele elaborou a pirâmide da responsabilidade social, conforme mostrado na Figura 1: Figura 1 – Dimensões da Responsabilidade Social Empresarial Responsabilidades filantrópicas EMPRESA CIDADà Responsabilidades éticas FAZER O CERTO E EVITAR DANOS Responsabilidades legais Responsabilidades econômicas OBEDECER ÀS LEIS SER LUCRATIVA Fonte: BARBIERE e CAJAZEIRA (2012) Segundo CARROLL (1979), as responsabilidades econômicas, que se encontram na base da pirâmide, estão relacionadas à lucratividade. O autor lembra que esta é a principal responsabilidade social da companhia. Já as responsabilidades legais, que se assentam sobre as responsabilidades econômicas, estão relacionadas à obtenção do referido lucro, mas dentro de certos limites legais. As responsabilidades éticas, como afirma BARBIERE e CAJAZEIRA (2012) estão relacionadas “há comportamentos e atividades não cobertos por leis ou aspectos econômicos do negócio, mas que representam expectativas dos membros da sociedade”. Ademais, o autores afirmam que “enquanto a responsabilidade legal refere-se à expectativa de atuar conforme a lei, a ética se refere à obrigação de fazer o que é 98 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial certo e justo, evitando ou minimizando danos às pessoas. No quarto nível da pirâmide se encontram as responsabilidades filantrópicas, que envolvem ações da empresa em busca do bem estar dos cidadãos. Qualquer que seja o teórico analisado a empresa deve atuar nos quatro níveis simultaneamente e não em apenas um ou alguns. Ou seja, ela deve ser ao mesmo tempo lucrativa, obedecer a legislação, atender as expectativas éticas da sociedade e ser uma boa cidadã. 2.5 PÚBLICOS DA RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL São muitos os públicos alvo da responsabilidade social empresarial, o que gera grande esforço das empresas para atender aos diversos interesses. Dentre elesestão os empregados da companhia, a comunidade, os fornecedores, os acionistas, os clientes e os parceiros. Estes públicos são direta ou indiretamente afetados pelas decisões da empresa no que tange à responsabilidade social. Assim sendo, impactos negativos na responsabilidade social influem diretamente nos ambientes internos e externos da empresa, gerando consequências que demandam muito esforço e investimento para serem revertidos. Ocorrendo a deterioração do clima interno, por exemplo, nota-se imediatamente o crescimento da desmotivação dos funcionários, o surgimento ou aumento dos conflitos internos e a redução da produtividade laboral, o que pode refletir diretamente no aumento de acidentes de trabalho. Já no âmbito externo, os consumidores podem se recusar a adquirir o produto/serviço ofertado pela empresa, bem como aumentar as reclamação de fornecedores e reduzir as vendas. 2.6 RESPONSABILIDADE SOCIAL E ENDOMARKETING Como tratado anteriormente, um dos públicos alvo da responsabilidade social empresarial são os empregados das organizações, as quais devem sempre estar 99 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial motivados. Assim sendo, podemos considera-los como o público interno da responsabilidade social. Objetivando atingir este público as empresas tem adotado o endomarketing, que segundo CERQUEIRA (1994) “melhora a comunicação, o relacionamento e estabelece uma base motivacional para o comportamento entre as pessoas e das pessoas com o sistema organizacional.” Assim sendo, o endomarketing pode ser utilizado pelas empresas como elo fortalecedor dos seus empregados com o cliente externo (consumidor) e com o seu produto/serviço. Ao adotar a responsabilidade social a empresa precisa envolver os seus clientes internos nesta nova realidade, sendo que através da utilização do endomarketing elas têm conseguido promover mudança de valores internos e adequar-se ao cenário de empresa socialmente responsável. 2.7 RESPONSABILIDADE SOCIAL E O DIREITO BRASILEIRO Na legislação brasileira não se encontra a devida definição dotermo “responsabilidade social”.Entretanto, existem normas que tratam de práticas sociais relacionadas à responsabilidade social corporativa, como por exemplo a Lei 8.213/91, que aborda a questão da contratação de pessoas portadoras de deficiência. Também existe a Lei de Incentivo à Cultura (Lei 8.313/91), mais conhecida como Lei Rouanet. Ela fornece incentivos fiscais para as empresas ecidadãos que aplicarem uma parte do seu imposto de renda em ações culturais. Desta maneira, as pessoas jurídicas que realizarem o referido “investimento” acabam sendo valorizados pela comunidade. Todavia, existem crítica constante à referida lei no sentido de que o governo, ao invés de investir diretamente em cultura, repassa aos referidos “investidores” a escolha do que deve ser patrocinado. Nota-se também iniciativas de outras entidades, como a Bolsa de Valores de São Paulo que adota a responsabilidade social, dispondo de instrumentos de governança 100 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial corporativa. Acredita-se que esta iniciativa foi adotada visando atrair investimentos e valorizar empresas comprometidas com a governança corporativa. Ademais, o Supremo Tribunal Federal em ação direita de inconstitucionalidade abordou o reajuste das mensalidades escolares e afirmou que “a ordem econômica, também fundada na livre iniciativa, deve conformar-se aos ditames de justiça social”. Ademais, o referido tribunal afirmou que a livre iniciativa não poderá ser considerada legítima se for exercida com o objetivo de lucro e de realização do empresário, sendo essencial propiciar justiça social, inclusive no seu aspecto distributivo. (BRASÍLIA, STF. ADI. QO319, Relator Min. Moreira Alves, 1993). 2.8 JUSTIFICATIVAS PARA A ADOÇÃO DA RESPONSABILIDADE SOCIAL O investimento empresarial em responsabilidade social pode ser justificado por pressão interna ou externa à organização. Alguns exemplos de pressão externa para a adoção e implantação de responsabilidade social corporativa são citados por TENÓRIO (2012): “legislações ambientais, aos movimentos dos consumidores, à atuação dos sindicatos em busca da elevação dos padrões trabalhistas, às exigências dos consumidores e às reinvindicações das comunidades afetadas pelas atividades industriais”. Ademais, o referido autor acrescenta: organismos internacionais como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a própria Organização das Nações Unidas (ONU), através do programa chamado Global Compact, estão incentivando empresas de todo o mundo a adotar códigos de conduta e princípios básicos relacionados à preservação do meio ambiente. Outro motivo que justifica a adoção de medidas relacionadas à responsabilidade social de uma empresa é o seu benefício ou vantagem. Não se fala somente em vantagem econômica, que é o principal enfoque de uma companhia, mas também em ganho de imagem, competitividade e preferência do consumidor, por exemplo. Ademais, não se pode olvidar dos incentivos fiscais oferecidos pelos governos. Conforme previsto no art. 151, inciso I, da Constituição da República, tais 101 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial incentivos visam o “equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do país”. Exemplo comumente citado é o da Lei Rouanet, já abordada. Uma justificativa que também pode ser adotada pelas companhias para realizarem investimentos em responsabilidade social é que aquela iniciativa encontra-se intrínseca na cultura organizacional. Neste caso, dificilmente ocorre a descontinuidade na realização do investimento Mas, qualquer que seja a justificativa que uma empresa apresente para realizar investimentos na área social não se deve esquecer que o seu principal objetivo é o “lucro” e que a responsabilidade social é uma das maneiras de incrementar o seu retorno financeiro, seja direta ou indiretamente. 2.9 RESPONSABILIDADE SOCIAL NO BRASIL O IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada realizaa Pesquisa Ação Social das Empresas, que “é um mapeamento da participação do setor empresarial em atividades sociais voltadas para as comunidades mais pobres”. Segundo o instituto, entre 2000 e 2004, a participação social das empresas passou de 59% para 69%. No ano de 2004, elas aplicaram cerca de 0,27% do PIB brasileiro daquele ano em responsabilidade social. Em tal ocasião eram cerca de 600 mil empresas que, de alguma formal, atuavam voluntariamente no campo da responsabilidade social, sendo que 50% delas estavam localizadas no Sudeste e 29% no Sul do Brasil. Quanto aos incentivos fiscais disponibilizados pelo governo, é impressionante como são poucas as empresas por eles influenciadas. A proporção de empresários que utilizou os benefícios tributários em 2000 era de apenas 6%, sendo que em 2004 o percentual apresentou contração, atingindo 2% das empresas. Sobre os motivos pelos quais as companhias não utilizam os incentivos fiscais, destaca-se no Gráfico 1. 102 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Gráfico 1 – Brasil:Por Que Motivos Não Utilizaram Incentivos Fiscais? O valor do incentivo era muito pequeno, não compensava 40% 35% Ação social realizada não estava prevista na legislação 16% 22% Não sabia que a legislação autoriza essas deduções Não tinha imposto a pagar Outros motivos 15% 17% 6% 7% 9% 9% 2004 2000 Fonte: Pesquisa Ação Social das Empresas no Brasil - IPEA (2006) Quanto à expectativa de crescimento da atuação social, verificou-se na pesquisa que 43% do empresariado nacional pesquisado em 2004 declarou possuirplanos de aumentar os recursos e o atendimento à comunidade, sendo que no ano 2000 um quinto das empresas revelou não pretender ampliar o investimento nesta área. O foco do investimento das empresas entrevistadas na última pesquisa foram alimentação e abastecimento, além de assistência social, o que pode ser comprovado no Gráfico 2. 103 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Gráfico 2 – Brasil:Quais as Principais Ações Desenvolvidas pelas Empresas em 2000 e 2004? Alimentação e Abastecimento 41% Assistência Social 41% Saúde 17% Lazer e Recreação 18% 19% 15% 17% Esporte 14% 2% 13% 14% Cultura Meio Ambiente 24% 19% 7% Desenv. Comunitário e Mobil. Social Segurança 54% 23% 19% Educação/Alfabetização Qualificação Profissional 52% 7% 13% 7% 9% 2004 2000 Fonte: Pesquisa Ação Social das Empresas no Brasil - IPEA (2006) No que se refere ao público atendido pelas ações sociais das empresas, notase que o público infantil é o mais privilegiado, seguido pelos idosos, conforme demonstrado no Gráfico 3. 104 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Gráfico 3 – Brasil: Para Quem as Empresas Voltaram a Atenção em 2000 e 2004? 62% 62% Criança Idoso 31% 27% Comunidade em Geral Jovem 25% 20% 17% Adulto 7% 17% 15% Família Mulher 30% 26% 25% Portador de Deficiência Portador de doenças graves 39% 23% 6% 40% 13% 2004 2000 Fonte: Pesquisa Ação Social das Empresas no Brasil - IPEA (2006) Todavia, infelizmente não existe resultado recente da referida pesquisa, mas acredita-se que com a crescente pressão da comunidade pela adoção da responsabilidade social pelas empresas, os indicadores devem ter melhorado. 3 MARKETING SOCIAL Inicialmente é essencial definir o que é marketing. Em um primeiro momento o termo marketing era relacionado à vendas. Entretanto, ele não ficou adstrito somente à área de vendas e tem sofrido modificações significativas nos últimos anos. Segundo KOTLER (2000), “marketing é um processo social por meio do qual pessoas e grupos de pessoas obtêm aquilo que necessitam e/ou desejam com a criação, oferta e livre negociação de produtos e serviços de valor com os outros”. 105 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Neste contexto, em 1970 surgiu o termo “marketing social”, tendo o seu significado sido relacionado ao uso dos princípios e técnicas de marketing visando a promoção de comportamentos sociais. Assim sendo, o que é marketing social ou marketing para as causas sociais na atualidade? Segundo KOTLER (2000): “(...) é um processo social por meio do qual as pessoas obtêm aquilo de que necessitam e o que desejem com a criação, oferta e livre negociação de produtos e serviços de valor com os outros”. De acordo com COBRA (1986) o marketing social é uma troca de valores que podem ser sociais, morais ou políticos, que são utilizados para vender ideias, objetivando o bem estar de toda ou parte da comunicada que o cerca. LEWIS e LITTLER (2001) afirmam que o: marketing social trata do desenvolvimento de programas destinados a influenciar a aceitação de ideias sociais, e pode ser definido como um conjunto de atividades para criar manter e/ou alterar atitudes e/ou comportamentos em relação à ideia ou causa social, independentemente de uma organização ou pessoa patrocinada. Assim sendo, pode-se dizer que o marketing social é uma estratégia de marketing adotada por determinadas empresas que objetivam associar a imagem da companhia ou de uma determinada marca a determinadas questões sociais consideradas relevantes para o seu público alvo. Ademais, acrescenta-se que, segundo NASCIMENTO (2002): As premissas da base do conceito social do marketing são as seguintes: (1) a principal missão da empresa é criar clientes satisfeitos e saudáveis, e contribuir para a qualidade de vida; (2) a empresa pesquisa de forma constante produtos melhores para atrair e promover vantagens que vão ao encontro do interesse dos consumidores, mesmo se estes últimos ainda não tiverem consciência disso; (3) a empresa foge dos produtos que, de qualquer forma, não correspondam ao interesse dos consumidores; (4) os consumidores irão descobrir e 106 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial encorajar as empresas que demonstram preocupação com a satisfação e o bem-estar. Ao se observar a adoção do marketing social pelas empresas brasileiras, nota-se que são muitas as formas de executá-lo, dentre elas a filantropia, o patrocínio de projetos sociais, as campanhas sociais, a promoção social da marca ou de um produto/serviço e o relacionamento baseado em ações sociais. A filantropia é aquela doação realizada pela corporação à uma ou mais entidades sociais, como creches de comunidades carentes e asilo de pessoas desamparadas. Nesta modalidade, NASCIMENTO (2002) afirma que geralmente ocorre “a promoção da imagem do empresário como o grande benfeitor e alguém dotado de grande sensibilidade para problemas sociais”. O patrocínio de projetos pode ocorrer em parceria com o governo, com outras empresas ou ser realizado de maneira individual pela companhia. Segundo NASCIMENTO (2002), “nessa modalidade a empresa busca não somente alavancar, mas também desenvolver seu negócio em outras frentes”, o que gera retorno positivo tanto de vendas quanto de imagem. Exemplos comuns são os patrocínios de times esportivos (ex. vôlei Usiminas-Minas) e a construção ou ampliação de estradas que beneficiam a comunidade próxima à empresa. As campanhas sociais são a divulgação de mensagens de interesse público, proporcionando visibilidade e publicidade para a empresa fomentadora desta modalidade de marketing social. Em muitas destas campanhas o próprio empregado da empresa é mobilizado, o que acaba sendo uma poderosa ferramenta de endomarketing. Exemplo deste tipo de ação é realizada por uma empresa que vende sanduíchese que pretende destinar parte das vendas de um determinado produto em um dia do ano para entidades que cuidam de crianças com câncer (ex. “McLanche Feliz”) ou até mesmo a empresa que deseja veicular informações sobre primeiros socorros em embalagens de pão. A promoção social da marca ou do produto/serviço se verifica quando uma empresa vincula a sua marca ou de um determinado produto/serviço à uma entidade sem fins lucrativos. Exemplos podem ser notados constantemente com companhias que imprimem nos seus produtos a marca da Fundação Abrinq, a qual trabalha para que os direitos de crianças e 107 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial adolescentes sejam respeitados. Ou seja, esta empresa quer mostrar que executa ações em busca de tais direitos, seja diretamente ou indiretamente. Já o marketing de relacionado com base em ações sociais é aquele em que a equipe comercial da empresa orienta o seu público quanto à realização de serviços sociais. Exemplo que se pode notar em algumas companhias é o desenvolvimento de partidas esportivas entre os fornecedores externos e compradores da empresa, com venda de ingressos com valores simbólicos, objetivando arrecadar renda para realização de ação social definida por eles. Ressalta-se que muitas vezes as empresas adotam uma ou outra forma de marketing social dentre as citadas anteriormente, mas nada impede que sejam adotadas duas ou mais formas combinadas. Para realizar o investimento em ação social as companhias devem realizar um detalhado estudo sobre em qualtipo de ação pretendem investir, sempre tendo em vista os valores importantes tanto para a empresa quanto para os seus consumidores, posto que muitos destes podem não se identificar com esta “causa” e se recusarem a adquirir o produto e/ou serviço da empresa. Exemplo famoso que deu muito certo foi o “McLanche Feliz”, que no dia da realização da ação grande parte dos consumidores, clientes ou não, vão até os seus estabelecimentos para contribuir coma iniciativa da companhia. Quanto à realização do referido estudo, é interessante que seja realizada uma análise segmentada dos clientes, detalhando qual deles a empresa pretende atingir. Com base nesta segmentação, deverá ser realizado um estudo dos costumes, modos de vida, interesses e opiniões. Com base nestas informações será possível formular os objetivos do marketing social e as melhores estratégias a serem utilizadas. Quando se fala em objetivos do marketing social não se pode esquecer que o lucro é o principal, mas quais seriam os objetivos secundários que levariam à obtenção daquele? A empresa pode, por exemplo, querer tornar-se mais conhecida no seu mercado de atuação e consequentemente vender mais. Ou ela pode almejar que os clientes se orgulhem das suas ações e consequentemente optem por adquirir os seus produtos/serviços, em detrimento de outras companhias que não focam em responsabilidade social. A empresa 108 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial também pode querer que os seus empregados sintam-se motivados por terem a oportunidade de trabalharem em uma empresa socialmente responsável. Ou quem sabe a corporação busque encantar os seus fornecedores, para que obtenham parcerias construtivas e mais competitivas. Outro foco da empresa pode ser os concorrentes, que tenderão a ser “menosprezados” pelos clientes tendo em vista não terem atingidos o nível de responsabilidade social alcançado pela empresa. Finalmente, a empresa não pode esquecer de ter em mente o governo e a sociedade civil, que podem atuar como fortes parceiros em diversos empreendimentos sociais, o que impacta diretamente na imagem da empresa e dos seus produtos/serviços. Assim sendo, estabelecidos os objetivos, dentre os quais alguns foram citados acima, o crescimento das vendas e consequentemente o aumento dos lucros será uma consequência da atuação responsável da organização,os quais se mantidos tenderão a assegurar a sua preservação no longo prazo. Mas, apesar de todo o trabalho desenvolvido pelo marketing social, para que uma organização obtenha sucesso com esta iniciativa é essencial que o programas de marketing social apresente benefícios diretos, além de forte ligação com a venda de produtos e/ou serviços. Ademais, existem desafios quanto à utilização do marketing social. Um deles é a dificuldade em lhe dar com o retorno recebido pelos atores intermediários do processo, que realizam “feedback” para a empresa e aguardam um retorno ou ação, o que muitas vezes não lhes é repassado.Em seguida, pode-se citar como desafio a análise de mercado, que precisa de dados confiáveis e de qualidade, o que muitas vezes não é possível devido ao despreparo do profissional que atua na área. Outro desafio refere-se à estratégia do produto, que muitas vezes não apresenta produtos flexíveis como demandado pelo mercado ou encontra dificuldade tanto na implantação quanto na elaboração da estratégia de posicionamento de produto/serviço. Um quarto desafio que deve ser citado é a estratégia de preço, principalmente em empresas sem fins lucrativos, que apresentam dificuldade em implantá-la, tendo em vista não trabalharem habitualmente com mensuração e acompanhamento de preços. Finalmente, não poderia deixar de ser citada a dificuldade de mensuração da contribuição do marketing social para os objetivos organizacionais, o que alguns profissionais de marketing alegam não ser possível, mas que é importantíssimo, tendo em vista a necessidade de alinhamento com os objetivos estratégicos. 109 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Apesar dos pontos positivos da implantação do marketing social pelas empresas, a grande maioria delas visa atrair consumidores, aumentando assim o seu potencial de vendas e consequentemente maximizando os seus lucros, objetivo principal das organizações, com exceção daquelas sem fins lucrativos que se dedicam à causas específicas, como o apoio ao menor carente. E qual seria a distinção entre marketing social e responsabilidade social? Segundo MORCERF e ALMEIDA (2006), “o marketing social tem como objetivo a mudança de comportamento da sociedade com o bem-social, utilizando ferramentas mercadológicas e técnicas de Marketing. A responsabilidade social (...) é a preocupação que as empresas, pessoas e governo têm pelo social”. Assim sendo, nota-se que o marketing social deve estar atrelado à estratégia empresarial, a qual tem como objetivo a maximização dos lucros da empresa e consequentemente a sua sobrevivência no mercado competitivo. Neste contexto, nota-se que a sociedade tem exigido que as empresas atuem mais fortemente no campo da responsabilidade social, sob pena de não conseguirem comercializar os seus produtos/serviços. Não se pode esquecer que o Estado é o ente originalmente responsável pela responsabilidade social. Entretanto, ele tem-se furtado de atuar nesta área e tem incentivando as empresas privadas a assumirem açõesnesta área. Para isto, o Estado tem fornecido incentivo fiscal para que as companhiasprivadas possam investir na área social semque os seus recursos sejam diretamente afetados. 3.1 ETAPAS DA RESPONSABILIDADE SOCIAL E DO MARKETING De acordo com DICKSON (2001), a responsabilidade e o marketing social devem ser divididos em três etapas, sempre tendo em vista a ética. A primeira etapa é aquela relacionada a fazer com que o profissional que atua na área de marketing das empresas realizem os seus trabalhos (criação de mercado, inovação de produtos/serviços etc) de maneira responsável, atendendo com agilidade as demandas do mercado e dando retorno para a organização em que atua. 110 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial A segunda etapa é a utilização da responsabilidade social de maneira ética, tendo comportamento responsável frente aos produtos e/ou serviços oferecidos ao mercado e também respeitando os limites dos clientes, tendo sempre em vista o consumo consciente. Já a terceira etapa visa encorajar as demais pessoas da organização a agirem de forma consciente, buscando sempre a responsabilidade social empresarial. 3.2 ADOÇÃO E IMPLANTAÇÃO DE MARKETING SOCIAL É cada vez maior a pressão social para que as empresas reconheçam e assumam suas responsabilidades sociais. Além disso, a demanda por maior “transparência” é latente na sociedade. Como muito bem nos relembra NASCIMENTO (2002), “inúmeras são as razões que justificam a adoção e implementação de políticas e programas de marketing social pelas empresas, entre elas a atração e retenção de melhores valores profissionais, além da valorização da marca e simpatia da mídia”. Assim sendo, ao elaborar um planejamento de marketing, a empresa deve estar atenta aos 4P’s do marketing tradicional: preço, praça (distribuição), produto e promoção. Já quando se fala em marketing social, NASCIMENTO (2002) afirma que devem ser adicionados outros 4 P’s: “público, parceria, política e pagamento”. Desta maneira, o ideal é que esse planejamento seja realizado por equipe independente daquela que se dedica ao marketing tradicional, sendo que já existem muitos profissionais brasileiros especializados em marketing social. Frente ao exposto, nota-se que o marketing social tornou-se um ponto estratégico para as organizações, gerando impacto direto na sua competitividade mercadológica. 111 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 3.3 INSTRUMENTOS DO MARKETING SOCIAL Diversos tem sido os instrumentos utilizados pelas empresas visando a disseminação das suas ações no âmbito da responsabilidade social, dentre eles certificações, selos, além da divulgação pública das ações sociais empreendidas pela corporação. Visando divulgar as principais ações realizadas pelas empresas, foi desenvolvido o Balanço Social, que permite que as empresas divulguem o que realizaram no campo social com relação aos seus empregados, os acionistas, potenciais investidores, fornecedores e concorrentes. Trata-se de um relatório publicado anualmente pelas empresas, no qual são abordados os projetos e as ações sociais implementadas pela organização no ano anterior. O seu público alvo são principalmente os investidores, analistas de mercado e acionistas. Todavia, existem teóricos que acreditam que o referido relatório é um instrumento de gestão e não uma ferramenta de marketing social. De acordo com HIGUCHI e VIEIRA (2012): os ganhos em termos sociais gerados pelos programas em responsabilidade social corporativa são contabilizados pelas organizações por meio do balanço social, que descreve os valores financeiros investidos e os benefícios ofertados para a sociedade por estes investimentos. Muitas empresas utilizam o Balanço Social como forma de marketing social, ou seja, buscam através da sua publicidade seduzir a comunidade como um todo e em especial os consumidores. No Brasil existe o Balanço Social IBASE, que é um modelo de demonstrativo numérico a ser publicado anualmente pela empresa, que trata das suas atividades, sendo de fácil preenchimento e que possibilita que os seus dados sejam comparados comos dados de outras companhias. Ele foi criado em 1997 pelo sociólogo Herbert de Souza, conhecido como “Betinho”. Em tal publicação são tratados, por exemplo, indicadores sociais internos e externos, ambientais, do corpo funcional e informações sobre o exercício da cidadania. 112 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial À nível internacional existe a norma AS - Social Accountability 8000, criada pelo “The Council on Economic Accountability” em 1997 e coordenada pelo “Social Accountabilty International” (EUA), cujo objetivo é a melhora tanto do bem estar quanto das condições laborais. Também é importante fazer referência à norma internacional ISO 26.000, que foi publicada pela primeira vez em 2010. Segundo ela: (...) a responsabilidade social se expressa pelo desejo e pelo propósito das organizações em incorporarem considerações socioambientais em seus processos decisórios e a responsabilizar-se pelos impactos de suas decisões e atividades na sociedade e no meio ambiente. Isso implica um comportamento ético e transparente que contribua para o desenvolvimento sustentável, que esteja em conformidade com as leis aplicáveis e seja consistente com as normas internacionais de comportamento. Também implica que a responsabilidade social esteja integrada em toda a organização, seja praticada em suas relações e leve em conta os interesses das partes interessadas. Neste contexto o INMETRO – Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (2013) afirmou que “a ISO 26000:2010 é uma norma de diretrizes e de uso voluntário; não visa nem é apropriada a fins de certificação”. Quanto à normatização nacional, existe a ABNT NBR 16.000, publicada em 2004 e que teve a sua segunda versão publicada em 2012, baseada na diretriz internacional ISO 26.000 publicada em 2010. Para esta norma brasileira (2012), a responsabilidade social é: (...) responsabilidade de uma organização pelos impactos de suas decisões e atividades na sociedade e no meio ambiente, por meio de um comportamento ético e transparente que: contribua para o desenvolvimento sustentável, inclusive a saúde e o bem estar da sociedade; leve em consideração as expectativas das partes interessadas; esteja em conformidade com a legislação aplicável e seja consistente com as normas internacionais de comportamentoe esteja integrada em toda a organização e seja praticada em suas relações. Muitas empresas brasileiras, de diversos segmentos, já foram certificadas de acordo com a referida norma, dentre elas Serasa SA, Campos Advogados S/C, Construções e 113 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Comércio Camargo Corrêa S/A, Associação Comercial de São Paulo, Setha Indústria Eletrônica Ltda, Líder Táxi Aéreo e Anglogold Ashanti Córrego do Sítio Mineração SA. Outro instrumento utilizado pelas empresas visando a divulgação de suas ações sociais são os selos, que transmitem um valor simbólico para o compromisso de uma companhia. No que tange aos selos de responsabilidade social, vale retornar ao exemplo já citado no presente estudo, que é o selo ABRINQ – Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos, que é de responsabilidade da Fundação Abrinq. Figura 1 – Selo Fundação Abrinq Fonte: Fundação ABRINQ Através do referido selo a Fundação Abrinq reconhece as empresas que realizam ações em benefício de crianças e adolescentes brasileiros. A fundação foca em quatro eixos: educação, saúde, proteção e emergência, conforme Figura 2. 114 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Figura 2 – Fundação ABRINQ: eixos de atuação Fonte: Fundação ABRINQ Destaca-se que o selo ABRINQ é exemplo de um selo bastante difundido no mercado, mas existem muitos outros, sendo que algumas empresas ou grupos empresariais chegam até mesmo a criar seus próprios selos, como é o caso de algumas unidades regionais da UNIMED, empresa do ramo de saúde – vide Figura 3. Figura 3 – Selos diversos Fonte: Programa de Ação Social da Unimed Cuiabá Fonte: INMETRO - Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia Fonte: UNICEF – Fundo das Nações Unidas para para a Infância Outro instrumento de marketing social que tem sido muito utilizado pelas empresas brasileiras é a participação em prêmios de entidades nacionais que revelam as melhores práticas em determinadas áreas da responsabilidade social, como a inclusão de pessoas com deficiências no mercado de trabalho. As empresas que são agraciadas com tais premiações obtém projeção, muitas vezes até mesmo nacionalmente e realizam divulgação da 115 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial premiação para os seus consumidores, acionista, comunidade etc, o que gera maior lucro, que é o principal objetivo empresarial. A CBIC - Câmara Brasil da Indústria da Construção Civil, por exemplo, realiza o “Prêmio CBIC de Responsabilidade Social”, nas categorias Entidade, Empresa e Destaque Social.Segundo a entidade, o objetivo do prêmio é “fortalecer e estimular o desenvolvimento de ações socialmente responsáveis no setor”. Algumas das empresas contempladas com este prêmio no ano de 2012 foram a Construtora Camargo Corrêa – categoria empresa, Sinduscon Blumenau/SC – categoria entidade e Seconci-MG – categoria destaque social. Outra iniciativa interessante é o prêmio “Varejo Sustentável – Responsabilidade Social e Sustentabilidade no Varejo” (Figura 4), que é realizado a cada dois anos, tendo como objetivo “reconhecer e incentivar projetos sustentáveis desenvolvidos por empresas e entidades varejistas de todo o Brasil”. Algumas das empresas que já receberam este prêmio são: Center Vale Shopping (São José dos Campos/SP), DPaschoal e Grupo Pão de Açúcar. Figura 4 – Prêmio “Varejo Sustentável – Responsabilidade Social e Sustentabilidade do Varejo” Fonte: Varejo Sustentável – Responsabilidade Social e Sustentabilidade no Varejo Isto posto, conclui-se que as empresas brasileiras possuem diversos instrumentos de marketing social que visam a divulgação de suas ações no campo da responsabilidade social. Alguns destes possuem foco regional e outros nacional, mas sempre visam divulgar a marca e/ou produto/serviço da empresa relacionada as iniciativas de responsabilidade social. 116 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 4 CONCLUSÃO O ambiente organizacional sofre constantes e significativas transformações, tendo o governo transferido grande parte da sua responsabilidade social para as empresas, as quais por sua vez são pressionadas pela sociedade a agirem de acordo com as premissas sociais, sob pena de não serem competitivas. Desta feita, as empresasestão trabalhando com uma visão mais ampla do negócio, tendo notado a necessidade de ultrapassar o objetivo de busca da maximização dos lucros e agir com responsabilidade social, não somente com relação ao seu cliente, mas também com os fornecedores, parceiros, acionistas, comunidade etc. Neste contexto, verifica-se o desenvolvimento cada vez maior da responsabilidade social e o crescimento da utilização do marketing social nas organizações, o qual tem se destacado como uma estratégia competitiva e oportunidade de geração de novos negócios. Muitos instrumentos de marketing social podem ser utilizados pelas empresas que adotam ações de responsabilidade social, dentre elas a realização do balanço social e a utilização de selos e certificações nacionais e internacionais. Desta maneira, não há dúvidas de que a responsabilidade e o marketing social devem estar sempre relacionados, proporcionando, por exemplo, diferencial e agregação de valor a uma empresa, marca e produto/serviço. REFERÊNCIAS ASHLEY, Patrícia Almeida et al. Ética e responsabilidade social nos negócios. São Paulo: Saraiva, 2002. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS E TÉCNICAS. NBR 6023: informação e documentação: referências: elaboração. Rio de Janeiro, 2002. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS E TÉCNICAS. NBR 10520: informação e documentação: citações em documentos: apresentação. Rio de Janeiro, 2002. 117 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS E TÉCNICAS. NBR 14724: informação e documentação: trabalhos acadêmicos: apresentação. Rio de Janeiro, 2005. BARBIERE, José Carlos; CAJAZEIRA, Jorge Emanuel Reis. Responsabilidade social empresarial e empresa sustentável: da teoria à prática. 2. ed. atual. e ampl. 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Acessado em: 07. mar. 2013. no Varejo. 119 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial EMPRESA E CONTRATO DE EMPREGO COM PESSOA INFECTADA PELO VÍRUS HIV: A PROMOÇÃO DA CIDADANIA NO AMBIENTE DO TRABALHO Renato de Almeida Oliveira Muçouçah• RESUMO O presente artigo tem por escopo analisar o direito fundamental ao trabalho propiciado pela participação social na empresa, com particular enfoque no labor desenvolvido por pessoas soropositivas e as formas diversas pelas quais a empresa empregadora poderá contribuir para a afirmação da cidadania da pessoa portadora do vírus HIV. Desta forma, é no ambiente do trabalho que se poderá desconstruir, aos poucos, todo o imaginário social criado a partir das representações sociais da década de 1.980 acerca da doença e da pessoa do doente, o qual poderá encontrar-se em plenas condições para o trabalho. Desta feita, o trabalhador e a empresa poderão auxiliar no processo de reconstrução do verdadeiro significado que a doença traz, qual seja: ser uma doença como outra qualquer, que em nada afeta a qualidade dos serviços prestados, recebendo o empregado apoio empresarial para a afirmação de sua cidadania. Palavras-chave: HIV; garantia de emprego para soropositivos; ações afirmativas; participação empresarial no processo de cidadania. COMPANY AND EMPLOYMENT AGREEMENT WITH PEOPLE INFECTED BY HIV VIRUS: THE PROMOTION OF CITIZENSHIP IN THE WORK ENVIRONMENT ABSTRACT The scope of this article is to analyze the fundamental right to work provided by the shareholding in the company, with particular focus on the work developed by people with HIV and the various ways by which the employer can contribute to the affirmation of citizenship of the person with HIV virus. Therefore, it is in the workplace that can deconstruct gradually throughout the social imagination created from the social representations of the 1980’s decade about the disease and the person of the HIV infected, who may find himself in • Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Mestre e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). 120 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial a position fully to work. Thereby, the worker and the company will assist in the reconstruction of the true meaning that the disease brings, namely, it is: a disease like any other, and in any case does not affect the quality of services performed, deserving the employee receiving business support for claim his citizenship. Keywords: HIV; stability for seropositive employee; affirmative action; participation in corporate citizenship process. 1. AIDS, A “METÁFORA DO MAL” A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, doença cujas letras iniciais na língua inglesa (Adquired Immuno Deficiency Syndrome) batizaram-na AIDS, desde os tempos de sua descoberta possuía todo o aparato necessário para ser o que sempre foi e até hoje é: uma doença. Uma doença de altos índices letais, como câncer. Sabidamente uma doença causada por vírus, tal como febre amarela. Ou, ainda, uma doença crônica, sem qualquer previsão técnica ou tecnológica de terapias destinadas à sua cura, como diabetes. Não tivesse a enfermidade em epígrafe se tornado uma epidemia mundial justamente no crepúsculo do século XX, a era da dita “sociedade da informação”, ter-se-ia tornado apenas uma dentre várias outras já diagnosticadas, sem qualquer necessidade de atenção especial. Os caminhos da AIDS, no entanto, nem mesmo de longe encontraram seu desaguadouro natural. Reconhecida em 1981, nos Estados Unidos, pela identificação em um grande número de pacientes homossexuais do sexo masculino que apresentavam o raro sarcoma de Kaposi, assim como severo comprometimento do sistema imunológico, a síndrome logo iniciou suas dramáticas veredas. Inicialmente conhecida por “GRID” (Gay Related Immune Deficiency, ou, em português, Deficiência Imunológica Relacionada a Homossexuais), após identificação também em homens e mulheres cujas relações eram exclusiva ou preponderantemente heterossexuais, teve como nomenclatura a famosa “Doença dos Cinco H”: homossexuais, haitianos, hemofílicos, heroinômanos (usuários de heroína injetável) e hookers (em português, profissionais do sexo). Doença inédita e desafiadora, a qual se alastrou pelo mundo numa voracidade poucas vezes vista, qualquer possível indício de sua causa era acompanhado de perto pelos meios de comunicação, propiciando em larga escala, pela primeira vez na história humana, a construção mediatizada de uma enfermidade. Infectologistas, sexólogos, biologistas, religiosos, filósofos, 121 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial televisão, jornais, políticos de todos os matizes e a sociedade em geral, todos ao mesmo tempo num confuso amálgama, tomavam conhecimento idêntico de informações que, por serem inéditas, mostravam-se contraditórias, indefinidas, num diálogo tragicamente irônico e infecundo qual seria uma hipotética celeuma entre Voltaire e Olavo Bilac. A repressão, no entanto, ao verdadeiro e único algoz da pandemia - o vírus da imunodeficiência humana, popularizado como “HIV” - muito tardou em ocorrer. 1.1. Vírus “humano”, doença “divina” O reconhecimento do retrovírus HIV, em 1986, como único responsável pela doença da AIDS, não logrou revelar-se concomitantemente o encerramento das discussões acerca da enfermidade; já à época a doença e seus doentes ocuparam o signo da indignidade humana presentificada, numa violência simbólica sem paralelos em toda a História. Por muitos séculos, desde a Antigüidade, a lepra foi considerada a doença mais estigmatizante do globo; tinha-se a enfermidade como o desqualificar moral divino pela indignidade intrínseca ao doente (e por isto mesmo ensejando-lhe, também, punição jurídica e política). Durante a Idade Média, por exemplo, a conduta escorreita a ser seguida pelas boas gentes era a de excluir o leproso do seio social, de forma draconiana, por meio de uma espécie de cerimônia fúnebre. Nesta, a pessoa doente de lepra seria declarada morta (e seus bens, portanto, transmissíveis), e, em seguida, enviada a um mundo exterior e estrangeiro (FOUCAULT, 2002). Certas pandemias, em paralelo ou em outros períodos, também foram tidas em parte como castigos divinos: a peste negra que assolou a Europa medieval ou a gripe espanhola do início do século XX disto são bons exemplos. No entanto, não conseguindo a ciência desvelar a natureza de tais fenômenos, a explicação destes somente poderia radicar-se numa punição transcendente, dotada, assim, ora de individual e forte, ora de pulverizado conteúdo moral. Os homens, em verdade, excluíam-se uns aos outros por desconhecerem tanto as verdadeiras formas de contágio e de transmissão quanto os legítimos responsáveis pelo adoecimento. Bem diferente era a sífilis (ou Lues), doença sexualmente transmissível e de carregado conteúdo moral, cuja causa poderia ser explicada, aí sim, pelo contato sexualmente desenvolvido. No entanto, as discussões sobre sífilis pautaram-se pelo deslocamento para o eixo da culpabilidade palpável e alheia: para os parisienses era a morbus germanicus, e, no entanto, os ingleses consideravam-na justamente a mancha francesa. Os habitantes de 122 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Florença culpavam os napolitanos pela enfermidade, enquanto os japoneses acusavam, como terríveis disseminadores, seus vizinhos chineses (SONTAG, 1989), num doloroso tergiversar inquisitorial que teve seu sepultamento quando a ciência pôde aniquilar, em definitivo, a verdadeira “culpada”: a bactéria Treponema pallidum. A conceituação de AIDS, patrocinada pela mídia, lançou-se numa construção científica e social ao mesmo tempo, de forma a provocar, ainda em pleno século XXI, reações semelhantes e diferentes às doenças anteriormente citadas, num amálgama assustador de representações cuja violência torna-se incompreensível para o atual estágio científico e ético da humanidade. A AIDS, frisemos, representou-se também em semelhanças com outras enfermidades: assim como a sífilis, tratava-se da doença alheia. Ela foi buscada no exterior, identificada como originária do continente africano, (JOFFE, 1994), tomando a condição estrangeira como fundamental para explicar sua existência - por isto, nos Estados Unidos, também considerada a doença dos “haitianos”. Em igual medida, por ligar-se ao grupo externo dos homossexuais, permitiu ao interno, não adepto de tais práticas, o sentir-se irresponsável. No entanto, ao contrário da lepra, foi justamente o conhecimento científico paulatino da causa e das formas de transmissão da enfermidade que propiciaram, também, a construção de atitudes altamente excludentes e persecutórias1 não apenas da síndrome, mas também de suas vítimas. O princípio da ciência epidemiológica, em ligar doenças a “grupos de risco”, marcaria de forma indelével o trajeto social da AIDS, como jamais houvera marcado qualquer outra doença: num primeiro momento, a enfermidade parecia insidiosamente selecionar um segmento assaz perseguido por certa conduta, tida por muitos como intrinsecamente desordenada e imoral, a homossexualidade, e em especialíssimo relevo a masculina. E, após a descoberta do vírus e de suas formas de transmissão por meio de sangue e secreções sexuais, não necessariamente ligados à “pederastia”, verificou-se a inclusão de outros “grupos de risco”, dos quais o único considerado “inocente” seria o dos hemofílicos. Neste particular, tomando a sociedade o condão de valorar quem seria condenado ou absolvido por infectar-se com uma moléstia, iniciou-se um verdadeiro negar de dignidade não apenas ligado aos grupos 1 Sua Santidade o Papa João Paulo II (2013), então líder espiritual da maior religião da humanidade, embora reiteradas vezes manifestasse sua preocupação com o combate à AIDS e ao preconceito em torno dela, não deixava de sempre citá-la como uma “patologia do espírito”. E o fez até mesmo no ano de 2004, dirigindo-se a uma miserável África assolada pela pandemia. Suas razões, se por um lado compreensíveis pela ortodoxia da doutrina moral da Igreja, não deixam também de embasar o conceito médio que geralmente se faz dos portadores do vírus HIV e dos doentes de AIDS. 123 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial ou, posteriormente, às práticas de risco, mas aos próprios seres humanos, personificados e punidos eternamente por suas condutas - sem direito, sequer, a um hipotético perdão. A AIDS, por seu desenvolvimento ligado à decomposição física, dores abjetas e fatalidade repentina, provocou um verdadeiro pavor social - e conseqüente repressão a quem trazia a peste à humanidade. As técnicas de exclusão da sociedade, utilizadas à época dos leprosos - de cortar do “corpo social” sadio os corpos infectados - foram substituídas por técnicas que poderíamos denominar panópticas2. Trata-se da inserção social perenemente controlada dos “pestilentos”. Fala-se, efetivamente, em “luta” contra a AIDS. É lugar-comum conceber-se metáforas belicosas na relação existente entre corpo e doença: o corpo é considerado uma “fortaleza”, mas o HIV “ataca” as “defesas” imunológicas, necessitando, assim, de uma terapia “agressiva”. Se no passado o médico era o responsável pela bellum contra morbum, agora é toda a sociedade quem procede à guerra contra a AIDS. Numa guerra, como se sabe, há vítimas e algozes. E, assim, “a idéia de vítima sugere inocência. E inocência, pela lógica inexorável que rege todos os termos relacionais, sugere culpa” (SONTAG, 1989, p. 16). Individualizaram-se os grupos (por isto mesmo de risco) aptos a transmitir o HIV a toda a sociedade, os possíveis algozes: dever-se-ia, portanto, proceder à exclusão social de todos os seus integrantes. Não sendo mais possível fazê-lo juridicamente, a exclusão dá-se no campo da moral. E esta vigilância panóptica dos considerados seres desviantes das corretas condutas, como os já aludidos homossexuais, os usuários de drogas injetáveis, as pessoas de vida sexual com múltiplos parceiros, etc., permitiu a disseminação de que o reprimir do vírus deveria centrar-se no condenar a quem, ao menos em tese, estivesse apto a transmiti-lo. 2 O Panóptico (pan + óptico), idealizado por Bentham como o método perfeito de vigilância, é muito bem analisado por Foucault (2004). Trata-se, em suma, da vigilância totalizante de alguém ou de um grupo, findandose o binômio ver/ser-visto. O observador vigilante, pela estrutura montada para dar vazão ao funcionamento do poder, detém a possibilidade de vigiar sem ser visto, instaurando, nos vigiados, o temor da observância absoluta, indolor e invisível, sempre com vistas à punição em face das condutas assumidas e imediatamente verificadas. Segundo Foucault, “o princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades especiais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha [...] O Panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder” (p. 165-167). 124 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial A difusão do vírus, cuja insidiosa denominação é a de ser o vírus da imunodeficiência humana, iniciava, assim, a enfermidade da deficiência dos valores tidos como divinos. O sagrado e o profano encontraram-se frente a frente numa doença, embora desconheçamos qualquer processo biológico de enfermidade que tenha, em sua gênese, um fundamento moral. 1.2. A doença fetichizada A representação social da AIDS, tal como se deu, não poderia encontrar novo significado num curto espaço de tempo. Iniciou-se então o divórcio entre ciência e sociedade, tendo em vista que o ato sexual, forma preponderante de transmissão do HIV e, ao mesmo tempo, grande responsável pela interação e perpetuação humanas, pôde ser desvinculado da transmissão do vírus. Bastaria para tanto, disse a ciência (por finalmente compreender a dinâmica do vírus), utilizar-se das chamadas camisas-de-vênus, método contraceptivo já existente há muitos séculos. No caso dos usuários de drogas injetáveis, seria recomendável que utilizassem seringas e agulhas descartáveis, tão-só. Nas transfusões de sangue deveria haver, por parte dos hemocentros, uma fiscalização rígida acerca da segurança do material utilizado. No entanto, a apresentação da síndrome à sociedade, propiciada pela mídia, retratava ingredientes fortíssimos de contágio pelo sexo, de morte, de figuras decrépitas, que não seriam simplesmente apagadas da representação popular da doença com fórmulas simples como as acima citadas e, por isto mesmo, desproporcionais à propagada gravidade do tema. Eclodiram-se as mais variadas representações na mesma proporção epidêmica da AIDS, que, então, já havia ganhado vida própria no imaginário social, personificada pelos próprios seres humanos ligados aos “grupos de risco” (PAULILO, 1999). Os resultados desta construção coletiva, em várias partes da Terra, foram os mais lamentáveis possíveis. Uma década após o registro da doença, 50% dos entrevistados para pesquisa específica sobre o tema (HEREK e CAPITANO, 1993), todos homossexuais norteamericanos do sexo masculino, acreditavam que seriam capazes de transmitir HIV uns aos os outros durante uma relação sexual, ainda que não fossem portadores do vírus. Acreditavam, portanto, que o ato sexual entre dois homens, de per si, seria capaz de produzir o vírus. Tratase de uma reflexo próprio da negação da cidadania, internalizada mesmo nas vítimas do preconceito. Fora dos acolhedores sítios existentes dentro dos “muros da cidade” estão todos os não-aceitos: todos aqueles que, supostamente, não se atêm aos padrões e códigos 125 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial compartilhados pela maioria (PAIVA, 1992). Ter AIDS significa estar para sempre manchado por uma tonalidade que distingue o soropositivo dos soronegativos e desloca, ambos, a uma comunidade de párias: os primeiros para além dos muros da cidade, e os últimos para dentro desta. Até mesmo profissionais de saúde demonstram grande dificuldade em lidar com pacientes. Estes são por aqueles vistos como doentes terminais (sendo que muitas vezes são apenas portadores assintomáticos do vírus), como pessoas rejeitadas pela sociedade por não se aterem às suas regras elementares, e, enfim, como homens e mulheres culpados por serem portadores do HIV - na lógica de que deliberadamente procuraram a infecção, como se efetivamente pegassem o vírus em suas mãos e o introduzissem na corrente sangüínea, à exceção dos hemofílicos. Assim, recebem uma espécie de sentença de morte fictícia, dada mesmo por estes profissionais de saúde: o paciente “não é visto como pessoa, mas tãosomente ele encarna a doença AIDS” (SADALA, 1999, p. 99). Em igual orientação, um dos elementos da doença que também muito afetou os avanços em termos de combate à segregação dos soropositivos foi o fato de o HIV ser transmitido através de sangue e secreções sexuais; tal fato propiciou a visão inicial, já desmentida, de que outros líquidos do corpo humano (como saliva e suor) também fossem capazes de contagiar. Isto explicaria, mesmo em pleno século XXI - vinte anos após a descoberta das formas de transmissão do vírus - reações espantosas por parte de alguns legisladores, os quais deveriam pautar-se pela busca integral de proteção aos direitos mais elementares dos soropositivos, como adiante veremos. É sabido que todas estas concepções norteadoras da citada doença provocaram um atraso criminoso, por parte do Estado, no lançamento de políticas de saúde pública adequadas para combater a exposição ao vírus. Como conseqüência, no Brasil, pudemos observar quanto ao contágio pelo vírus exatamente o inverso do que inicialmente se propôs combater: aumento do número de infectados entre pessoas de orientação heterossexual, dentre os quais destacamse as mulheres3, além de ser difundida a pandemia também para as camadas mais pobres da sociedade, bem como aos habitantes de municípios de médio e pequeno porte (GALVÃO, 2002). 3 Neste aspecto específico o tema é demasiadamente espinhoso. Com efeito, no que concerne às mulheres casadas, as campanhas contra o HIV até hoje não conseguem tocar em certos temas, como a assimetria nas relações de gênero. Seria preciso para tanto, segundo recente estudo, reescrever uma “gramática moral” dos casais a questionar os poderes em jogo no casamento, já que determinadas campanhas acabavam até mesmo por colocar a mulher como responsável pelo controle do contágio, transferindo-lhe a responsabilidade pela exigência do uso do preservativo (GONÇALVES E GUILHEM, 2003). 126 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 2. O ESTADO DO MAL-ESTAR SOCIAL E A AIDS? DIREITO À VIDA E À SAÚDE PELO DIREITO AO TRABALHO Em 1996, após a edição da Lei 9313, de autoria do Senador José Sarney, o Brasil passou finalmente a cumprir em parte sua obrigação constitucional: determinou que o Ministério da Saúde deve adquirir os medicamentos anti-retrovirais existentes contra o HIV, todos de alto custo, e os distribuir através da rede pública de saúde. As drogas combinadas, conhecidas como “coquetel”, passaram então a ser distribuídas entre todos os soropositivos que delas necessitassem, o que reduziu de forma espetacular os casos de adoecimento de AIDS e, mais ainda, a mortalidade em decorrência das complicações desta enfermidade. Por muitos especialistas a infecção pelo HIV passou a ser considerada como uma patologia crônica, porém controlável em virtude da ação potente do coquetel. O Brasil, país famoso por suas heranças coronelistas e seu passado escravocrata, ganhou credibilidade no cenário internacional pela excelência de sua política no combate à AIDS, tida como exemplar. Com esta nova inspiração, também iniciou campanhas verdadeiramente educativas destinadas a todo o povo, orientando-o no sentido da prevenção geral contra as variadas formas de infecção pelo retrovírus. Aos poucos, e até os dias atuais, a síndrome deixou de ser o espetáculo da morte. Não é mais noticiada com a mesma freqüência, tampouco é facilmente percebida pelas ruas; o Estado prossegue em insistir nas políticas de prevenção infecciosa e, por outro lado, distribuir os medicamentos necessários à manutenção da vida daqueles já tocados pelo signo da soropositividade. No entanto, um dos vários aspectos que o estudo da doença suscita parece ter sido ignorado ao longo dos anos. Trata-se do direito à vida, mas da vida com dignidade. A garantia do direito à vida e à saúde em tempos de AIDS, num primeiro momento, resumia-se à própria guerra da vida física contra a iminente morte; hoje, no entanto, os soropositivos vivem, e vivem por muito tempo. Celebram todos, pois, a vida, descobrindo como novidade alvissareira que o vírus não era mortal, e sim os homens. Não houve, a par de toda esta garantia do direito à saúde que propiciou a continuidade existencial dos soropositivos, um enfoque que transcendesse as fronteiras do palpável. Os mitos relacionados à doença, ainda dispersos pela população, geram agora uma dor que não é mais física: ter HIV ou AIDS ainda está associado, pelo processo já descrito de representações 127 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial sociais, a vergonha, humilhação ou culpa, tornando impossível uma comunicação social entre soropositivos e soronegativos que não seja pautada pela desigualdade (SILVA, 2004). Ora, é evidente que o direito à vida não se resume apenas à existência e saúde físicas. Mas, caso queiramos estabelecer-nos apenas neste ponto, também ele ainda não é plenamente garantido aos soropositivos: tendo eles o direito de receber os medicamentos gratuitamente do Estado, não encontram, por outro lado, proteção adequada de respeito à sua condição. A lógica é muito simples: como estas pessoas, consideradas a encarnação da indignidade em face das representações sociais da AIDS, conseguirão em igualdade de condições um trabalho, a fim de prover a subsistência própria ou de sua família? Numa economia agressivamente capitalista - que produz e reproduz o trabalho sem qualquer critério ético, como se nota pela exposição de Paul Singer (1979) - como propiciar a manutenção da própria existência material sem a garantia do direito fundamental ao trabalho, mormente a um segmento tão marginalizado como ainda é o dos portadores do vírus HIV? Caso consideremos, no entanto, que a manutenção da vida em condições razoáveis de dignidade englobe, além do direito ao trabalho e à saúde física, também o ensejar de uma saúde global – no exato sentido que lhe dá o artigo 12 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado e em vigor no Brasil – teremos obrigatoriamente de refazer nossos percursos de combate à AIDS, agora voltados à demolição de seu atual signo, bem como posterior reconstrução deste, dotada de novos valores humanos. Consoante o artigo 7º da Constituição Federal, bem como após a edição da Lei 9029/95, não há como cogitar da possibilidade de exigência, por parte de empregador, de testes anti-HIV para admissão de trabalhador ao emprego ou durante o cumprimento do contrato individual de trabalho. Não há necessidade, igualmente, de que a empresa seja notificada ou comunicada pelo empregado após a descoberta do vírus. Para os empregados conhecida ou assumidamente soropositivos, a discriminação, em termos gerais, é reprimida em face dos objetivos fundamentais da República, conforme se observa pelo artigo 3º, IV, da Carta Magna. Em matéria de trabalho, além da lei ordinária citada no parágrafo anterior, tal prática também é proibida pela Convenção 111 da OIT, em vigor no Brasil desde 1996: cuidando de atos discriminatórios em questões de emprego e ocupação, veda qualquer prática neste sentido. Embora não exista qualquer proteção específica aos soropositivos, é óbvio que eles podem valer-se das prerrogativas acima firmadas. No entanto, nota-se com clareza a inexistência, no Brasil, do verdadeiro antídoto à verdadeira peste causada pelo HIV: políticas públicas para o combate radical da mentalidade formada sobre a pessoa soropositiva, dádiva 128 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial alcançável por um único caminho possível - a educação em direitos humanos, percurso por sua vez alcançável através da promoção do direito ao trabalho. 2.1. Saúde e trabalho em tempos de AIDS Curioso notar que pela primeira vez, em 1988, um texto constitucional brasileiro afirmou o direito à saúde como fundamental. Ora, o espanto se deve ao fato de este bem ser imprescindível à vida e com esta se relacionar numa interpenetração óbvia; e se sabe, aliás, que saúde não engloba apenas um conceito de estado físico relacionado à ausência de enfermidades: é também um estado de completo bem-estar mental e social, conforme preceitua a Organização Mundial da Saúde. Ter direito à saúde significa, portanto, exigir do Estado e de particulares não apenas que estes se abstenham de prejudicá-la, mas também exigir do Estado certas medidas e prestações que tornem possível assegurá-la (SILVA, 1999). Em termos bem claros, a AIDS é uma síndrome de deficiência imunológica; com o organismo debilitado e sem defesas naturais, certos cuidados são indispensáveis para que o soropositivo não seja atacado por doenças oportunistas. Medicamentos anti-retrovirais contra o HIV são apenas parte de um tratamento que deve envolver, também, uma boa alimentação, uma moradia digna, condições de aceitação por parte de outros indivíduos, etc. Frise-se também que saúde não é apenas promoção, mas também prevenção, individual ou coletiva, tanto aos grupos humanos quanto aos seus contornos sócio-ambientais (SCHRAMM E KOTTOW, 2001). A fruição da maioria destes direitos, negados sistematicamente a grande parte de toda a população brasileira, passa em grande escala pelo direito ao trabalho, já que este é o meio encontrado por nossa cultura para a obtenção dos recursos bastantes a fim de que sejam concretizados tais misteres. No entanto, a histórica visão do trabalho como algo opressivo e degradante contribuiu para que a ciência buscasse desenvolver, no trabalho, especializações funcionais e técnicas de aumento produtivo, investindo, todavia, “muito pouco na busca de uma harmonização do homem no seu trabalho” (BORGES, 1997, pp. 88-89) com o fito de tornar tal atividade um processo de humanização do indivíduo e das coletividades. E, no entanto, o trabalho faz reunir seres humanos e, em seu ambiente executivo, obriga-os à interação solidária, tornando-se por tal razão um ingrediente duplamente elementar para qualquer política preventiva ou de promoção da saúde: além de fornecer mediante remuneração o instrumental necessário para seus cuidados elementares, trata da necessária sociabilidade humana. 129 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial No caso específico dos soropositivos, o trabalho adquire esta dupla função com grande intensidade. Via de regra o compreender da infecção pelo infectado induz à auto-imputação de uma identidade negativa, de forma fazê-lo sentir-se inferior aos demais da sociedade (SILVA, 2004). Neste sentido é que opera o poder simbólico (BOURDIEU, 2005) da socialmente construída AIDS: até hoje com uma certa vigilância panóptica, a cultura social procura a integração verdadeira apenas dos dominantes, e apregoa a fictícia da sociedade como um todo, ocasionando a desmobilização de grupos vulneráveis como o ora relatado. A igualdade torna-se, assim, uma quimera. No entanto, se podemos considerar nossa sociedade como igualitária, isto ocorre justamente em razão de ser uma sociedade de trabalhadores, já que é da essência do trabalho nivelar os homens (ARENDT, 1981). Por isto a sociabilização do soropositivo alcançada pelo trabalho, por lograr tanto desconstruir a representação social que se faz do portador ou doente, quanto por reconstruir a auto-identidade, torna-se tão vital quanto a função de gerir a própria sobrevivência física. É o real, único e possível conceito de saúde. A realidade trabalhista, entretanto, fornece-nos o indício bastante de que a sociedade como um todo ainda tem se portado de forma cruelmente lancinante contra os soropositivos: dispensados do emprego logo após a descoberta de sua condição, o índice de processos na Justiça do Trabalho demonstra a impossibilidade, sobretudo por meio das políticas recentes, de identificar em curso um processo eficaz de educação em direitos humanos. 2.2. Tentativas brasileiras de afirmação da dignidade humana do soropositivo: descaminhos, acertos e contradições Embora não existam tutelas legais específicas para a promoção da exacerbadamente aviltada dignidade humana do soropositivo, deve-se ressaltar que houve algumas tentativas de promovê-la como um todo. Uma das mais recentes, que tragicamente acabou resultando em um dentre tantos outros escândalos em termos de desvalorização da dignidade humana, ocorreu justamente quando da apreciação do Projeto de Lei 5448/01, de autoria do Deputado Nelson Pellegrino. Era pretendido alterar o artigo 1º da Lei 7716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, para estender a proteção também à discriminação em face de doença de qualquer natureza. Na justificativa, o autor salientava textualmente que doenças estigmatizantes como a AIDS engendram, freqüentemente, práticas preconceituosas 130 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial incompatíveis com a dignidade da pessoa humana e que, por esta razão, deveriam ser reprimidas na esfera criminal. Designada como relatora a Deputada Denise Frossard, em setembro de 2004 a parlamentar votou pela rejeição do projeto por entender que (...) a repulsa à doença é instintiva no ser humano. Poucas pessoas sentem prazer em apertar a mão de uma pessoa portadora de lepra ou de AIDS. Algumas dessas poucas pessoas fazem-no sinceramente, outras, hipocritamente. De um modo geral, as pessoas não se sentem confortáveis na companhia de pessoas doentes, ainda mais quando se trata de doença letal ou deformadora. A discriminação é válida quando se trata de doença contagiosa ou de epidemia que coloca em risco a vida e a saúde da comunidade. A deformidade física fere o senso estético do ser humano. A exposição em público de chagas e aleijões produz asco no espírito dos outros, uma rejeição natural ao que é disforme e repugnante, ainda que o suporte seja uma criatura humana. Portadores de doenças e deformidades costumam freqüentar locais públicos exibindo as partes afetadas do corpo, não só com o intuito de provocar comiseração, como também, com o propósito de afrontar a sensibilidade dos outros para o que é normal, saudável e simétrico. Ninguém é obrigado a ser herói, dizia Nelson Hungria. Ninguém pode ser obrigado a suportar a doença e a deformidade alheia, contrariando a sua própria natureza. (BRASIL, 2013). As razões de rejeição ao projeto apresentadas interessam-nos justamente por explicarem, de per si, as dificuldades em se estabelecer uma política voltada à valorização da dignidade humana dos soropositivos. E, com efeito, a necessidade desta lei se fazia sentir. O estigma em relação ao portador do vírus não se limita apenas a ele próprio, mas se estende também à sua família, bem como ao seu grupo étnico ou social. A afirmação é corroborada pela Lei estadual 11199/02, do Estado de São Paulo, quando veda a divulgação de informações ou boatos que denigram a imagem social de qualquer dos acima citados, em razão da presença do HIV em meio a tais pessoas ou grupos. Ainda no âmbito repressivo, houve o Projeto de Lei 6124/05, que define o crime de discriminação aos portadores do vírus HIV e doentes de AIDS. Designada como relatora novamente a Deputada Denise Frossard, após pressão política dos ativistas de direitos humanos em face de sua rejeição ao Projeto anteriormente citado, o atual recebeu relatório favorável e se encontra em fase de tramitação na Câmara dos Deputados. Mais de vinte e cinco anos após o surgimento da AIDS e de toda a construção da “metáfora do mal” encarnada nos seus portadores, o Brasil caminha para ter sua primeira Lei federal especificamente destinada a regulamentar não um projeto de educação em direitos humanos, à 131 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial re-significação do estar soropositivo, mas à simples repressão do aviltamento da dignidade humana em sua forma mais elementar. Notemos que o Brasil caminha para ter a sua primeira Lei sobre a tutela da dignidade dos soropositivos porque houve o Projeto 1.856/99, do Senado Federal, o qual tornar-se-ia lei não fosse vetado pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso. O Senado houve por bem considerar que a patente dificuldade de um soropositivo ter respeitado seu direito ao trabalho pela discriminação sofrida (e, assim, propiciar a subsistência própria e da família), engendraria um problema solucionável apenas pela estabilidade no emprego. A estabilidade no emprego é uma “vantagem jurídica de caráter permanente deferida ao empregado em virtude de uma circunstância tipificada de caráter geral”, a fim de assegurar-lhe “manutenção indefinida no tempo do vínculo empregatício” (DELGADO, 2004, p. 1241), a não ser que uma causa considerada justa venha a dar-lhe rompimento (previstas sobretudo, mas não somente, no artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho). Desta feita, o empregado portador do vírus HIV não poderia sofrer uma denúncia vazia do contrato de trabalho, a não ser por motivo de força maior devidamente comprovada, até a data de seu afastamento pela Previdência Social. Aprovado o Projeto, o veto presidencial mostrou-se absolutamente equivocado. Sustentou que a estabilidade já existia apenas para determinados casos, não havendo, porém, qualquer inconstitucionalidade em prever-lhe novas formas visto que, embora a estabilidade via de regra seja definida por norma heterônoma estatal, é admissível, em princípio, até mesmo aquela advinda de ato empresarial (DELGADO, 2013). Ademais, argumentava já existir a proteção constitucional contra despedida arbitrária, revelando-se esta somente na multa a ser paga pelo empregador em caso de dispensa sem justa causa do empregado. O modelo constitucional entretanto é genérico, e admitiria - como efetivamente admite, posto ser norma constitucional expressa - qualquer outra forma de proteção neste sentido. Seria um equívoco, entretanto, afirmar que não há progresso algum em relação aos direitos dos soropositivos. Embora inespecíficas à questão, o Direito e os juristas vêm dando formas a uma série de construções para o respaldo e afirmação da dignidade do portador. A dispensa do empregado é direito potestativo do empregador, inexistindo qualquer estabilidade para o trabalhador portador do vírus. No entanto, com base na Lei 9029/95, a dispensa do empregado soropositivo ou o impedimento de seu acesso ao trabalho têm sido considerados discriminatórios pelos Tribunais, com base na situação análoga à da discriminação sexual. Embora a forma de discriminação em exame não esteja tipificada 132 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial literalmente neste instrumento, a proibição de qualquer forma de suas formas negativas é um dos objetivos fundamentais da República. A vontade da Lei, neste específico caso, foi a de proteger a mulher quanto à prática discriminatória de exigência de exames relativos ao estado de gravidez e à esterilização, mas pode ser utilizada, como utilizada tem sido, também para se compreender que a infecção por HIV não reduz a capacidade laborativa, não sendo impedimento, pois, que justifique obrigar o trabalhador em cessar suas atividades (SANTIAGO, 2003), de modo a tal ato configurar conduta discriminatória. Desta feita, conforme a explanação lúcida de Elisa Maria Brant de Carvalho Malta e Vera Lúcia Carlos (...) no que concerne aos trabalhadores soropositivos desligados pelo empregador sem justa causa, por discriminação ou preconceito, sem razão objetiva, socialmente injustificada, arbitrária, obstativa à aquisição do auxílio-doença pela Previdência Social, torna o ato patronal passível de anulação perante a Justiça do Trabalho, podendo o empregado postular a anulação da dispensa e sua conseqüente reintegração no emprego, inclusive com pedido de concessão de tutela antecipada. Pode-se afirmar que a atitude discriminatória realizada pelo empregador, eivada de nulidade, não encontra ressonância no ordenamento jurídico (2001, p. 82). Não sendo confundida com o instituto da estabilidade, a reintegração ao emprego é uma garantia no sentido de não obstar que o trabalhador tocado pelo HIV interrompa suas atividades e continue a perceber sua remuneração, a conviver em sociedade, enquanto tiver condições físicas para fazê-lo. Assim garante-se também a continuidade da contribuição à Previdência Social, para que, no momento em que não seja mais possível ao doente de AIDS prosseguir, seja-lhe garantido o direito à aposentadoria. E, frise-se, este limite ao direito potestativo do empregador vem sendo considerado uma presunção discriminatória, quando não comprovado motivo justo para dispensa. Recentemente, em setembro de 2.012, o Tribunal Superior do Trabalho resolveu pacificar a questão por meio da Súmula 443, na qual se presume a despedida discriminatória do empregado por este possuir moléstia grave que o estigmatize, ressaltando-se, de forma expressa, a questão de estar infectado pelo vírus HIV. Dessa forma, buscou o Tribunal forçar algumas empresas que discriminatoriamente agem a reintegrarem o empregado soropositivo ao emprego, de forma tal a, na prática, conferir-lhe garantia provisória de emprego. Pensamos, pois, que a presunção discriminatória não é absoluta, podendo ser elidida com prova em contrário. De qualquer forma, é um esforço do Tribunal em promover a cidadania 133 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial no ambiente do trabalho. Este papel, porém, caberá também às empresas cientes de sua função social, como adiante se verá. Notemos que a Súmula foi baseada dos princípios constitucionais da dignidade humana, do valor social do trabalho, nos Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos, no artigo 7º, I, da Constituição Federal, e do art. 170 também do texto magno. Nota-se ainda que estas duas regras jurídicas extraídas, mesmo não sendo derivadas de leis ordinárias federais, possuem validade definida pela teoria dos princípios, pois se demonstram como a concretização de mandamentos constitucionais (BRANCO, COELHO e MENDES, 2009, p. 144). Nosso sistema admite, sem dúvidas, a criação de certos comandos por parte da jurisprudência (ou, mais especificamente, Súmulas), pois é a criação de espécie de norma concreta oriunda de princípios jurídicos. Tem-se, pois, a função integradora dos princípios, vez que ambos os valores mencionados – valorização social do trabalho e livre iniciativa – podem participar diretamente da questão. Nesse mesmo sentido discriminatório, o valor da intimidade é uma questão pungente. Celso Lafer (2006), recordando que tal direito tem como objeto a integridade moral do ser humano, aduz ao estar só, à possibilidade de não dar ao conhecimento de terceiros aquilo que se refere somente ao indivíduo, ao seu modo de ser na vida privada. Tal direito, cujo valor tem sua origem no cristianismo, representa “um fugir do mundo para o interior da subjetividade” (p. 263), sendo um alto valor para o soropositivo em suas várias relações interpessoais e, sobretudo, naquelas de trabalho, nas quais ganha relevo ainda maior. Afinal, se há o direito à intimidade do empregado quanto a não divulgar sua condição, também há o direito da comunidade trabalhista à saúde. Dada a patente impossibilidade de se transmitir o HIV na absoluta maioria dos ofícios, profissões e das situações laborais, como aliás explicita a Declaração da Reunião Consultiva sobre a AIDS e o Local de Trabalho, formulada em conjunto pela OMS e OIT, é certo que no desenvolvimento das relações empregatícias não há qualquer risco de contaminação ou transmissão do vírus HIV (BARROS, 1997). Desta feita, podemos concluir pela absoluta impossibilidade tanto de se investigar por via direta (exame de sangue) quanto por indireta (pesquisa de hábitos, atitudes, condutas do trabalhador) a possibilidade de o trabalhador estar ou não soropositivo, seja quando de sua admissão ao emprego, seja quando do desenvolvimento da relação pactuada, seja em seu ocaso. Assim, poderá o empregado resguardar sua condição do conhecimento de seu empregador e dos colegas de trabalho, bem como de qualquer outro da sociedade. 134 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial O conformismo, ao elidir da heterogeneidade de que fala Celso Lafer (2006), que pretende massificar, nivelar todos em pé de igualdade - porém nivelar todos em termos fictícios, e apenas os dominantes em termos reais, como explica o já citado Pierre Bourdieu (2005) - é a quem o direito à intimidade pretende calar. Todos são iguais, mas na esfera da vida privada é que o indivíduo poderá ser diferente, não ser uniforme à maioria, não perder sua especificidade. Para que ele seja um igual, nas relações de trabalho, o soropositivo precisará manter a ciência de seu vírus (que o torna “diferente” da maioria) no âmbito estrito de sua vida privada, encontrando muitas vezes como única confidente a sua própria consciência. A proteção a este bem se dá de forma tal que, mesmo em o empregador sabendo, por qualquer razão, do estado de infecção por HIV de seu empregado, deverá manter sigilo a respeito, sob pena de facultar ao trabalhador indenização por danos morais, inclusive cumulada com eventuais danos materiais sofridos (SOUZA, 2003). Os efeitos práticos da Súmula, de decisões judiciais e da doutrina podem ser considerados como socialmente muito relevantes. Os Tribunais e o Direito brasileiros têm realizado uma plêiade de serviços em prol da inclusão social deste grupo social vulnerável, porém de maneira pontual, em casos individualizados, evidenciando - por parte de todas as funções que representam o Estado e a sociedade civil - o quão longe ainda se está de uma política de educação em direitos humanos, a única solução possível para um completo “coquetel”. 3. AÇÕES AFIRMATIVAS PARA SOROPOSITIVOS E O PAPEL DA CIDADANIA NA EMPRESA Num texto surpreendente e emocionante, o sociólogo Herbert de Souza (2013), doente de AIDS falecido em 1997, descreve o que ele chamou de “dia da cura”, o sonhado ocaso da dor aos seres humanos infectados pelo vírus HIV. No dia da cura, seria preciso enfrentar novamente a felicidade, posta de lado há tanto tempo: a iminência da morte e sua personificação em vida eram tão verdadeiras que impediam o próprio viver. Com a cura, os soropositivos não teriam mais vergonha de sua condição e, assim, poderiam um dia morrer como todos os outros mortais. Se antes não tinham o direito de viver em paz, agora não precisariam mais ficar reclamando pelo de morrer em paz. E, no entanto, a cura para a AIDS sempre existira, sem contudo jamais ser notada. Era, pois, a vida. 135 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Ora, toda a nossa discussão proposta refere-se à valorização da cura da AIDS, nos moldes propostos pelo sociólogo. Não se trata de negar a relevância de tudo quanto já foi feito ou proposto em prol dos portadores do vírus HIV e doentes de AIDS - que representam conquistas de toda a sociedade - e sim de formar uma cultura de valorização da pessoa humana do soropositivo, em toda a extensão de seus legítimos valores morais, face às múltiplas maneiras de existência em sociedade, seja individual, seja coletivamente. Trata-se de erigir uma nova concepção, uma mudança profunda de todas as já apresentadas representações sociais do que é estar soropositivo, de re-significar o conteúdo da doença tãosó por ela mesma, separando-a, ainda assim, de seu doente. Tal processo seria possível, no caso específico, por meio de uma política duplamente garantista: a promoção da saúde, conforme conceito já aludido, através do direito fundamental ao trabalho. Este, no entanto, é cada vez mais negado ao soropositivo. O número assombroso de processos trabalhistas solicitando reintegração do portador ao seu emprego em razão de dispensa discriminatória corrobora a afirmação. No entanto, é natural que caiba o questionamento já em 1993 proposto pelo jurista e então Diretor para o Cone Sul da OIT, Oscar Ermida Uriarte: podría aplicarse (...) mecanismos para favorecer el acceso al empleo de los seropositivos? En todo caso, parece existir cierto grado de incompatibilidad entre, por un lado, la proscripción del examen obligatorio y la confidencialidad de los resultados, y por otro, el establecimiento de um régimen de promoción del empleo de los afectados por el VIH, que supone la identificación de éstos (1993, p. 51). Como já afirmamos, a necessidade de se sublinhar o direito à intimidade do soropositivo em abster-se de informar (ou mesmo negar sua condição perante outros) decorre da necessidade de fazerem-se iguais. Do contrário, materialmente, seriam considerados desiguais. O reconhecimento do princípio da igualdade jurídica, construção segundo a qual a lei, genérica e abstrata, deve ser idêntica para todos, foi durante muito tempo a certeza de que tal representava, por si só, a garantia da concretização da liberdade. No entanto, a cantilena liberal começou a ser desmentida por experiências e estudos de direito e política comparada: pela constatação de que os indivíduos socialmente desfavorecidos não teriam, com base na igualdade formal de direitos, as mesmas oportunidades oferecidas àqueles socialmente privilegiados (GOMES, 2001). 136 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial As ações afirmativas, um fenômeno norte-americano4, são medidas que visam beneficiar determinados segmentos da sociedade, pela razão de inexistirem iguais condições de competição em face de discriminação ou injustiças históricas. Este instrumento, cada vez mais utilizado na promoção de políticas em relação às comunidades negras e pessoas portadoras de necessidades especiais, traduz-se num instrumento altamente significativo para a educação em direitos humanos ora proposta. Diferentemente das políticas antidiscriminatórias repressivas, “que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto” (GOMES, 2001, p. 1142), ações afirmativas em relação aos soropositivos evitariam a discriminação em sua forma já exposta. No caso, cuida-se também de discriminar, mas no sentido da chamada discriminação positiva, socialmente justificada, com vistas a atingir a verdadeira igualdade entre os pares sociais. Assim, para colocá-los frente a frente, soropositivos e soronegativos, favorecem-se os primeiros em detrimento dos últimos na competição francamente desigual existente entre ambos pelo acesso a determinado bem - no caso específico dos soropositivos, o direito integral à saúde, por meio de condições diferenciadas de acesso ao trabalho. Em se tratando dos portadores do vírus HIV, as representações sociais sobre o infectado e a infecção, ainda muito presentes na realidade histórica deste grupo social, justificam a adoção da medida proposta. Não basta apenas a repressão pura e simples à discriminação para fazer valer o direito que toda pessoa soropositiva tem em ver respeitada sua dignidade. Desta forma, o que antes era um princípio jurídico passivo, “agora é um conceito jurídico ativo, vale dizer, de um conceito negativo de condutas discriminatórias vedadas mudou-se para um conceito positivo de condutas promotoras de igualação jurídica” (ATCHABAHIAN, 2004, p. 150). Em sendo os direitos humanos englobados num todo indivisível, a violação de um deles equivale à violação de todos: por isto ao lado do direito à intimidade, de quem quiser fazê-lo valer, poderá existir concomitantemente o acesso facilitado ao emprego por soropositivos que desejem utilizar-se de tal condição. Não se trata, em absoluto, de incompatibilidade, vez que ninguém é obrigado em valer-se das condições mais favoráveis. A novidade da ação afirmativa estaria no propiciar trabalho a quem não o tem ou ainda teve, e não deseja valer-se, como parâmetro de vida, da omissão de algo que lhe é intrínseco: o 4 Aliás, no direito norte-americando, segundo relata Rands (1998), o soropositivo já é protegido por ações afirmativas, posto ser considerado deficiente físico. Embora não seja objeto da presente reflexão, no Brasil os soropositivos, embora idealmente pudessem ser considerados portadores de necessidades especiais, encontram barreiras nas especificações técnicas da legislação a respeito, a qual não permite este enquadramento. 137 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial direito do soropositivo em resguardar de terceiros sua condição, se por um lado propiciador da igualdade fática, por outro limita-se a resolver questões pontuais e individualizadas de grande valor, mas que não configuram um processo de educação em direitos humanos, com vistas à garantia de efetiva e plena cidadania para todos. Por isto o HIV/AIDS, segundo a OIT uma doença cuja prevenção necessariamente passa pelo ambiente do trabalho, deve ter seus doentes e infectados como representantes em cada ambiente do trabalho, por meio de ações afirmativas compulsórias, facultativas ou voluntárias da empresa. Esta, por sua vez, cumprirá com sua função social em empregar a pessoa soropositiva, tanto de modo a integrá-la à sociedade e aos direitos trabalhistas e previdenciários básicos, quanto por auxiliar em desconstruir, dentro de seus espaços para execução dos trabalhos, a imagem que ordinariamente se tem acerca do soropositivo, por darlhe a necessária visibilidade. Projetos que venham a ser propostos pelas empresas em geral – qual seja, contratar empregador assumidamente soropositivos – poderão contribuir em larga medida com o combate ao preconceito, justamente por dar voz e rosto a pessoas que sejam vítimas da infecção por HIV. Será um passo importante rumo à plena cidadania da população soropositiva, por promover um verdadeiro processo de educação prática em direitos humanos. A atitude da empresa que isto fizesse significaria, num primeiro instante, assumir que existe, no corpo social, a perenidade da prática discriminatória e da necessidade de sua eliminação, constituindo-se no primeiro passo para a educação proposta. O efeito cultural da medida, que é o verdadeiramente desejado processo pedagógico, possibilitaria dar história de vida, face, endereço, sentimentos e troca interpessoal de experiências a quem, ainda hoje, é considerado uma presença na ausência. Os soropositivos não existem. E não existem porque eles não têm identidade, endereço ou rosto. No entanto sabemos, paradoxalmente, que os soropositivos existem. Eles existem no imaginário social, surgidos como representações sociais falseadas, que remetem ainda aos conceitos estigmatizantes da década de 1980. São presenças fluídas, vagas e sabidas numa sociedade que insiste em ignorar sua condição, presentes de forma não palpável. Qualquer luta eficaz contra o signo da AIDS requer mais que um simples coquetel; requer a convivência diária, próxima e solidária com os soropositivos. E isto os empregadores, por iniciativa própria, poderão promover, até mesmo como forma de valorização do trabalho humano, e não de seu aviltamento. Aproveitando a lúcida explanação de Norberto Bobbio sobre a intolerância - embora em sentido diverso da que empregamos aqui, mas que reflete, em boa medida, a atuação 138 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial pedagógica proposta - “a antítese indiferença-fanatismo não remete exatamente à antítese tolerância-intolerância, que é essencialmente prática” (2004, p. 208). Reprimir o preconceito resguardando-se o direito à intimidade do portador, com reparação a posteriori do ato ilícito, certamente não conduz, de forma automática, a um processo de revalorização humana do soropositivo. Para a resolução efetiva e verdadeira do problema, trata-se de conciliar as garantias já existentes com um processo de educação prática em direitos humanos, a qual poderá iniciarse por iniciativa da própria empresa, e não de maneira forçada, como propõe a Súmula 443 do TST. Esta educação prática em direitos humanos, formada na vivência do dia-a-dia no interior dos ambientes do trabalho existentes na empresa, permite uma concepção humanista, molde a recuperar e afirmar a dignidade da pessoa do infectado ou doente, bem como o respeito à sua dignidade. Neste processo, em que os atores principais são o Estado e a sociedade civil (DÍAZ, 2002), a pedagogia empresarial liga-se à marcha pela conquista de uma prática e defesa dos direitos humanos, assim como na proposta de convivência democrática de diferentes estilos de vida que, afinal, compreendem a diversidade humana (MUJICA, 2002). Neste sentido, aliás, foi o Projeto de Lei 3.021/00, de autoria do deputado Benedito Dias. Pretendia o projeto estabelecer um desconto de 50% na contribuição previdenciária efetuada pelo empregador, desconto este possível à empresa apenas quando empregar um trabalhador portador do vírus HIV. O Projeto previa a contratação de soropositivos tornada obrigatória, por meio de alteração no artigo 93 da Lei 8.213/91, a qual trata dos percentuais mínimos para contratação de pessoas portadoras de necessidades especiais. No entanto, o referido Projeto foi rejeitado em 2.007 pela Coordenação de Comissões Permanentes da Câmara dos Deputados pela simples razão de retirar receitas destinadas na União e não prever alternativas para reposição deste valor aos cofres públicos, motivação que é de todo rechaçável: em sendo possível e necessária a contratação de pessoas portadoras do vírus HIV, seria interessante propor tais benefícios às empresas que desejam promover, em seu seio, a cidadania dos soropositivos por meio do já citado processo de educação em direitos humanos. No entanto, por ato próprio, a empresa poderá – cumprindo, pois, sua função social – promover uma campanha de contratação de pessoas soropositivas, por evidente intenção patronal na feitura e participação deste processo pedagógico de cidadania. Afinal, isto salientaria a necessidade de sociabilidade democrática entre indivíduos dentro da empresa, no rompimento com a tristeza e o isolamento aos quais a identidade da doença encaminha. 139 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Ademais, possibilitaria os citados acessos à remuneração e, por conseguinte, à realização material da vida, mas não só. Isto seria alcançado por meio da garantia de emprego, por exemplo, aos portadores já empregados, conforme se depreende da Súmula 443 do TST. A empresa, levando a AIDS aos seus locais de trabalho, também tornará possível destruir todos os signos relacionados à doença, já que esta pode ser encontrada em todos os gêneros, etnias, faixas etárias, orientações sexuais e classes sociais; ademais, pelos reflexos que os ambientes do trabalho produzem na comunidade a ele vinculada, seria possível construir, aos poucos, uma nova formação social para a enfermidade. Por meio de ações afirmativas específicas a soropositivos, conjugadas com ações repressoras da discriminação, conseguiremos instaurar a completa pedagogia da vivência fática dos direitos humanos. A educação neste caso, enquanto um transformar de valores, é um processo não de fora para dentro (como o Estado impondo determinados valores aos seus cidadãos por meio de leis ou mesmo pela citada Súmula, por exemplo), mas algo que se fundamenta no indivíduo, sendo este o responsável pela construção de seu próprio aprendizado. A imposição legal, por exemplo, de percentuais mínimos para contratação de soropositivos, como no citado Projeto de Lei já arquivado, ou a presunção discriminatória albergada pela Súmula em comento, seriam apenas a pedra de toque neste processo que é individual e interior, não se confundindo, jamais, com a própria pedagogia. No específico tema, lograria formar uma nova representação do que é ser pessoa portadora do HIV a quem não é, por permitir dar uma identidade ao portador: a aprendizagem de um novo conteúdo é uma atividade de construção, pela qual a pessoa incorpora à sua experiência os signos de um novo conhecer (MUJICA, 2002). Recebendo orientações da empresa, dos representantes dos empregados e, por fim, dos próprios soropositivos, a comunidade empregatícia fatalmente desconstruirá, pela necessária sociabilidade ambiental do trabalho, as funestas representações sociais construídas e difundidas acerca dos soropositivos e de sua enfermidade. Aqui entramos no segundo passo da aprendizagem: reconhecendo a empresa a pessoa humana em sua dignidade, bem como o fato de que o homem é um ser social, esta educação só encontra sentido na interação de seres humanos com outros seres, em experiências individualizadas ou coletivamente tratadas. 140 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial CONCLUSÕES Cabe ressalvar que qualquer processo de educação assumido enquanto transformador (como o presente) deve ser, necessariamente, dotado de uma ética absolutamente transformadora. Com efeito, a visão puramente mercadológica, pautada pelo lucro obsessivo, jamais seria complacente com uma educação voltada à cidadania (Bittar, 2004). A ideia de inclusão social, neste sentido, chocar-se-ia frontalmente com princípios elementares do mercado irresponsável e, assim, tornar-se-ia polêmica. De qualquer forma, ressaltemos que as ações afirmativas não necessariamente precisam ser propiciadas pelo Estado. Os empregadores conscientes da função social de seus empreendimentos devem buscar promover, certamente, a contratação de pessoas soropositivas com o fito de iniciar, aos poucos, um novo processo de construção coletiva de valores, voltado à afirmação da dignidade humana da pessoa portadora do vírus HIV. A imposição para percentuais de contratação de portadores, por via de regulamento de empresa, ou de simples política também empresarial, não encontra nenhum obstáculo; aliás, trata-se de um espírito muito inovador e em consonância com todas as recomendações para promoção dos direitos mais elementares do ser humano, já que a discriminação, neste caso, é positiva e socialmente muito bem justificada. Os sindicatos de trabalhadores neste mister também são convidados a participar, sobretudo para firmar acordos e convenções coletivos que garantam o acesso ao trabalho aos soropositivos que desejem valer-se de tal condição, de maneira a auxiliar as empresas a administrar este mister. De qualquer forma, alguém terá de dar o primeiro passo. É, portanto, o escopo desta proposta criar condições para que os soropositivos possam vivenciar seus direitos e obter uma vida integralmente saudável, pela eliminação das barreiras sociais que desejam ou cortá-los draconianamente da sociedade como numa “medida sanitária”, ou deixá-los vigiados sob modelos panópticos. Trata-se do educar a todos para um novo valor, o da solidariedade, pela prática cotidianamente solidária que o ambiente do trabalho inequivocamente requer. E esta poderá ser, sem dúvidas, uma prática cidadã empresarial. E sendo as comunidades locais umbilicalmente vinculadas à empresa e aos seus ambientes do trabalho, a novidade pedagógica também se fará aos poucos sentir e, com a eliminação paulatina de tudo quanto se construiu em torno da AIDS, talvez um dia o tão defendido direito de cada portador de reservar sua condição à intimidade acabe esquecido. Esquecido por tornar-se socialmente irrelevante. 141 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. ATCHABAHIAN, S. Princípio da igualdade e ações afirmativas. São Paulo: RCS Editora, 2004. BARROS, A. M. Proteção à intimidade do empregado. São Paulo: LTr, 1997. BITTAR, E. C. B. Ética, Educação, Cidadania e Direitos Humanos. São Paulo: Manole, 2004. BOBBIO, N. A Era dos Direitos. São Paulo: Campus, 2004. BORGES, W. H. Violência, Direito e Trabalho na organização social. São Paulo: Germinal, 1997. BOURDIEU, P. O poder simbólico. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. BRANCO, P. G. G; COELHO, I. M; MENDES, G. F. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. BRASIL. Projeto de Lei 5448, de 27 de setembro de 2001 [online]. Disponível na Internet via WWW. URL: http://www.camara.gov.br. Data: 13 mar. 2013. DELGADO, M. G. 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RESUMO: Embora os direitos da personalidade, surgiu já alguns séculos, surgindo também a “disregard doctrine” (desconsideração da pessoa jurídica), que é fruto de construção jurisprudencial, considerando que as questões patrimoniais era o que predominava, pois o Código Civil de 1916, durou décadas, refutando garantir direitos da personalidade, predominando o “ter e não o ser”. Finalmente ocorreu profunda transformação no Direito Civil contemporâneo, em face do neoconstitucionalismo, trazendo para o interior da Carta Magda valores que devem ser considerados na análise dos conflitos oriundos das relações jurídicas privadas. Neste sentido, a evolução histórica superou a dicotomia público-privado, sendo que em seguida passou a analisar as conseqüências desta transformação, fazendo com que surgisse nova teoria das fontes, na qual a Constituição passa a ser uma fonte normativa, uma nova teoria das normas, que impõe que a interpretação e aplicação pelo jurista seja adequada as regras e princípios, objetivando a garantia da pessoa humana no atual Estado democrático de direito. PALAVRAS-CHAVE: 1 Personalidade da pessoa física; 2 Personalidade da pessoa jurídica; 3 Repersonalização. 1 Aluno do Curso de Mestrado em Ciências Jurídicas do Centro Universitário de Maringá (CESUMAR), Maringá – Paraná; E-mail: [email protected] 145 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial SUMMARY: Although personality rights, has appeared a few centuries, and also had a "disregard doctrine" (disregard the legal entity), which is the result of judicial construction, whereas heritage issues was predominant, because the Civil Code of 1916, lasted for decades, refuting securing rights of personality, for the prevailing "have and not being." Finally there was a major transformation in contemporary civil law, in the face of neoconstitutionalism, bringing into the Charter Magda values that should be considered in the analysis of conflicts arising from private legal relationships. In this sense the historical evolution exceeded the public-private dichotomy, and then went on to analyze the consequences of this transformation, making new theory arose from sources in which the Constitution becomes a source of rules, a new theory of norms, which requires the interpretation and application by the jurist is suitable rules and principles aimed at ensuring the human person in the current democratic rule of law. KEYWORDS: Personality of a person, 2 person's legal personality; Repersonalization 3. INTRODUÇÃO Os direitos da personalidade que tiveram sua origem no direito romano, onde qualificavam de injúria tudo aquilo que ferisse algum atributo pessoal do homem, como a liberdade e as esferas física e moral. Para cada direito ferido, atribuía-se uma ação. No século XIII, direitos da pessoa humana foram assegurados pela Carta Magna da Inglaterra, editada para fazer frente ao absolutismo dos detentores do poder. Em 1776, nos Estados Unidos, com a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, protegeu alguns direitos da personalidade. Seguida da Declaração da Revolução Francesa que também reconheceu em 1871 certos direitos da personalidade. Já o Código Civil da Alemanha (1900) e da Suíça (1907) são apontados como os primeiros a tratar, expressamente, dos direitos da personalidade. A Alemanha consagrou, em seu Código Civil, os direitos à vida, ao corpo e à saúde. Após sendo ampliado com direito à honra, ao nome, à imagem, à voz, a intimidade, dentre outros. Mas autores como Savigny, Ravà, Orgaz e Von Tuhr “são opositores do reconhecimento do direito da personalidade, pois reconhecer eles, segundo os escritores, significaria aceitar a justificação do suicídio2”, fato esse que coaduna com os civilista de 2 BARRETO, Wanderlei de Paula. In: ALVIM, Arruda e ALVIM, Thereza (coords.). Comentários ao código civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. 1, p. 100. 146 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial época passada, pois o Código Civil Brasileiro de 1916 não demonstrava grandes preocupações com a matéria, dando ênfase então somente a questão patrimonial, diferentemente do que ocorreu com o advento do Código Civil de 2002, que trata nos artigos 11 ao 21, sendo que em comunhão com o texto constitucional tratou de “repersonalizar3” esses institutos. Em razão disso o princípio da autonomia patrimonial das sociedades empresárias que antes eram absolutos, passaram a serem relativizados, eram utilizadas como instrumentos para a realização de fraudes contra os credores ou mesmo abuso de direito. Na medida em que é a sociedade o sujeito titular do direito e devedor das obrigações, e não o seu sócio. Muitas vezes os interesses dos credores ou terceiros são indevidamente frustrados por manipulações na constituição de pessoas jurídicas, celebração dos mais variados contratos empresariais, ou mesmo realização de operações societárias, como as de incorporação, fusão, cisão. Nesses casos, alguns envolvendo elevado grau de sofisticação jurídica em que a consideração da autonomia da pessoa jurídica importa a impossibilidade de correção da fraude ou do abuso. Quer dizer, em determinadas situações, ao prestigiar o principio da autonomia privada das pessoas jurídicas, o ilícito perpetrado pelo sócio permanece oculto, resguardado pela licitude da conduta da sociedade empresária. Somente se revela a irregularidade se o juiz nessas situações (quer dizer, especificamente no julgamento do caso), afastar esse princípio, ou seja desconsiderá-lo. Desse modo, como pressuposto da repressão a certos tipos de ilícitos, justifica-se episodicamente a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária, com vista ao principio da dignidade da pessoa humana, sob a ótica da repersonalização. 3 Repersonalização: Representa a perspectiva da pessoa humana como centro do direito civil, e do direito como um todo, compreendendo que ela está acima da dimensão patrimonial, em razão de dignidade essencial. Assim, ela está intimamente conectada com o princípio da dignidade da pessoa humana. A ideia costuma ser também referida como repersonalização do direito privado, remetendo à perspectiva da pessoa, no direito romano, como centro da experiência jurídica na esfera privada. 147 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 2. VISÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DA PERSONALIDADE O constitucionalista Zulmar Fachin esclarece que o vinculo entre “Direito Constitucional e Direito Civil são cada vez mais estreito. Havendo forte doutrina civilista no Brasil que, inspirada em doutrinadores Italianos, tem se dedicando ao estudo do direito Civil, tomando a Constituição como sua fonte legitimadora4” visando a proteção dos direitos da personalidade inseridos nos artigos 11 a 21 e 52 do Código Civil de 2002. Enfatiza ainda FACHIN em sua obra outros direitos5: [...] de propriedade desde que exerça a função social (art. 5º inciso XXII da CF), herança (art. 5º inciso XXIII da CF), estabelecendo família com base da sociedade (art. 226 da CF), protegendo ainda união estável (art. 226, parágrafo 3º da CF), a família monoparental (art. 226, parágrafo 4º da CF), prevê o usucapião urbano, rural ((art. 183 da CF), a desapropriação de terras rurais para reforma agraria (art. 184 da CF) [...]. Neste contexto, esclarece o autor que o Direito Civil Constitucionalizando, “a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º inciso III) assume posição de centralidade axiológica no desenvolvimento das relações jurídicas entre particulares6”. O que significa dizer que o individuo passou a ser valorado nessa circunstâncias. Comungando também desse entendimento decisão do Tribunal do Distrito Federal relata que “antigamente predominava a visão que o Direito Civil seria um ramo distanciado do Direito Constitucional7”. No bojo do acórdão a “complexidade e a dinâmica do mundo moderno, desta concepção tornou-se ultrapassada, sendo imperativa a análise da constitucionalização e da publicização no âmbito civil8”. Com isto, a jurisprudência assinala que tal mudança se justificou em virtude da necessidade de acompanhar os novos valores e os novos direitos salvaguardados pela Constituição Federal de 1988, sendo fundamental a percepção ética que o Operador do Direito deve obter na interpretação e aplicação do Novo Código Civil à luz da Constituição. 4 FACHIN, Zulmar, Curso de Direito Constitucional: 3ª ed. São Paulo: Método, 2008. p. 23. Ibid.: p. 23. 6 Ibid.: p. 23-24. 7 Disponível em http://www.tjdft.jus.br Acesso em 18 de março de 2013. 8 Disponível em http://www.tjdft.jus.br Acesso em 18 de março de 2013. 5 148 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Não é demais salientar que a “Constitucionalização é o processo que submete o direito positivo aos fundamentos de validade estabelecidos na Constituição e a publicização9” e o processo de intervenção no setor legislativo infraconstitucional que objetiva reduzir o campo da autonomia privada com o escopo de tutelar a parte mais vulnerável da relação jurídica. Portanto esclarece à autora Roxana Cardoso Brasileiro Borges que esse é o caminho correto para a interpretação das normas: “ler o Código Civil de acordo com o que a Constituição Federal dispõe. Se o Código Civil e a Constituição Federal trazem regras distintas para, por exemplo, o direito de família, a regra que prevalecerá é a da Constituição Federal10”. Significa dizer que o Código pode ser aplicado naquilo em que não divergir do conteúdo constitucional. 3. SURGIMENTO E PROTEÇÃO DAS PERSONALIDADE Em tema de monografia apresentado no 21º Curso na Escola da Magistratura Núcleo de Maringá – EMAP/2012, cujo titulo foi TIPOS DE DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURIDICA, expõe, “o que venha ser personalidade da pessoa física e da pessoa jurídica11”. Nesse sentido, ressalta-se que um tema coaduna com outro em seu surgimento e desaparecimento do ordenamento jurídico. Para tanto, visando o devido entendimento, verifica-se como surge antes a personalidade da pessoa física, para então depois tratar da personalidade jurídica. Assim, prescreve o Código Civil de 2002: Art. 2 A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro12”. Em contrapartida, finda a personalidade com a morte da pessoa física, conforme demonstra o diploma legal, mas ainda sobejam direitos e deveres aos respectivos herdeiros: 9 Disponível em http://www.tjdft.jus.br Acesso em 18 de março de 2013. BORGES, Roxana Cardoso Brasileira, Direitos de personalidade e autonomia privada: 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 85 11 SOUZA, Marco Antonio. Tipos de desconsideração da pessoa jurídica: 2012. p. 10-11. Pós Graduação lato sensu, Escola da Magistratura Núcleo de Maringá. 12 Vade Mecum Saraiva – 11. ed. amplamente atualizada. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. p. 157. 10 149 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Art. 6 A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva13”. “Todo ser humano é dotado de personalidade, assim como a pessoa jurídica, desde o início de sua existência. Não se confunde, porém, a personalidade com a pessoa, uma vez que aquela é o atributo desta.”, é o que esclarece o autor Roberto Senise Lisboa14”. Entende-se que o objeto do direito é a personalidade humana, englobando o aspecto físico, psíquico e moral. São excluídos do âmbito de incidência dos direitos da personalidade elementos externos à pessoa (materiais ou imateriais) e qualquer comportamento não incidente sobre a pessoa ou seus atributos. Por fim, as definições ressaltam o caráter inato e essencial destes direitos, inerentes à condição humana e sem os quais a pessoa não subsiste. Nesta mesma perspectiva ainda acrescenta o autor15”: Personalidade, na acepção clássica, é a capacidade de direito ou de gozo da pessoa de ser titular de direitos e obrigações, independentemente de seu grau de discernimento, em razão de direitos que inerentes à natureza humana e sua projeção para o mundo exterior. Os direitos de personalidade são direitos intrínsecos ao ser humano, considerado em si mesmo e em suas projeções ou exteriorizações para o mundo exterior. Corroborando com o exposto, o professor Dr. José Sebastião de Oliveira e a mestre Regina Cristina da Silva Menoia, referenciam-se que “os direitos da personalidade são os direitos mínimos para resguardar a dignidade da pessoa humana, direitos essenciais do ser humano para garantir o gozo e o respeito ao seu próprio ser16”. 13 Vade Mecum Saraiva – 11. ed. amplamente atualizada. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. p. 159. LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: teoria geral do direito. 3. ed. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 2003. v. 1. p. 245. 15 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: teoria geral do direito. 3. ed. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 2003. v. 1. p. 245. 16 Disponível em http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/ Acesso em 18 de março de 2013. 14 150 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Por outro lado, em que pese a personalidade jurídica ser figura não palpável, também surge no ordenamento jurídico e também por diversas conseqüências desaparece, resguardando direitos e deveres sucessórios. Assim, o conceito de pessoas jurídica começou a desenvolver-se somente durante o Império, “e quando da constituição dos municipia, nessa época, às cidades itálicas que eram conquistadas e atraídas à órbita do Estado Romano, outorgavam-se Estatutos e se lhes concedia uma espécie de autonomia segundo a autora FREITAS17”. Dessa forma, a pessoa jurídica teve como nascedouro, ao menos que tange a sua estrutura característica, no Império Romano. Também com o advento do Código Civil de 2002, juridicamente demonstra como nasce essa personalidade jurídica, atualmente no ordenamento jurídico pátrio, ou seja, com a vontade humana daqueles que a representam, denominado empresário, conforme dispositivo legal que adiante segue: Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços18. Posto isto, significa dizer que há duas situações distintas, no que tange a pessoa jurídica, sendo o empresário e o ente público, conforme demonstra o diploma legal: Art. 967. É obrigatória a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, antes do início de sua atividade19”. Dessa feita, conforme os artigos abaixo do Código Civil, pessoas jurídicas segundo Fábio Ulhoa Coelho são: Art. 40. As pessoas jurídicas são de direito público, interno ou externo, e de direito privado. Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno: 17 FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Atlas, 2007. p. 26. 18 Vade Mecum Saraiva – 11. ed. amplamente atualizada. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. p. 235. 19 Vade Mecum Saraiva – 11. ed. amplamente atualizada. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. p. 235. 151 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial I - a União; II - os Estados, o Distrito Federal e os Territórios; III - os Municípios; IV - as autarquias, inclusive as associações públicas. Art. 42. São pessoas jurídicas de direito público externo os Estados estrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público. Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado: I - as associações; II - as sociedades; III - as fundações; IV – as organizações religiosas; V – os partidos políticos20. Demonstrado como surge no ordenamento jurídico, as personalidade tanto da pessoa física, bem como da jurídica, aspectos jurídicos devem serem observados desses sujeitos de direito, conforme se vê adiante no Código Civil de 2002 e Súmula do STJ: Art. 52. Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção os direitos da personalidade21”. STJ Súmula nº 227 - 08/09/1999 - DJ 20.10.1999 Pessoa Jurídica - Dano Moral A pessoa jurídica pode sofrer dano moral22”. Discorre ainda o professor Dr. José Sebastião de Oliveira e a mestre Regina Cristina da Silva Menoia, que, “a morte determina o fim dos direitos da personalidade, mas a recordação daquele constitui um prolongamento de sua personalidade, que se projeta em outras pessoas, que deve ser tutelado pelos seus parentes em nome da família, merecendo total proteção do direito23”. Significa dizer que ambos tenham direitos personalíssimos garantidos, mesmo depois que passam não mais existirem no ordenamento jurídico. 20 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. São Paulo, Saraiva, 1999. p. 35. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/> Acesso em 18 de março de 2013. 22 Disponível em <http://www.stj.gov.br/> Acesso em 18 de março de 2013. 23 Disponível em <http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/> Acesso em 18 de março de 2013. 21 152 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 3.1 SÍNTESE HISTÓRICA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA André Luiz Santa Cruz Ramos, historicamente conta em sua obra a respeito da “disregard doctrine” que é fruto de construção jurisprudencial, notadamente a jurisprudência inglesa e norte-americana, com efeito, a doutrina comercialista aponta que o caso pioneiro acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ocorreu na Inglaterra, em 189724”. Trata-se do caso “Salomon versus Salomon & Co. Ltda25”, cuja transcrição mais detalhada, no Brasil, consta na obra de Rubens Requião, no caso em referência, “a sentença de 1º grau entendeu pela possibilidade de desconsideração da pessoa jurídica da Salomon & Co. Ltda., após reconhecer que Mr. Salomon tinha, na verdade, o total controle societário sobre a sociedade não se justificando a separação patrimonial entre ele e a pessoa jurídica26”. Essa decisão é considerada, pois, a grande precursora da teoria da desconsideração, não obstante tenha sido posteriormente reformada pela “Casa dos Lords, a qual entendeu pela impossibilidade de desconsideração, fazendo prevalecer a separação entre patrimônios de Mr. Salomon e de sua sociedade e, consequentemente, sua irresponsabilidade pessoal pelas dívidas sócias27”. A Casa dos Lordes reformou, unanimemente, esse entendimento pela desconsideração, “julgando que a company havia sido validamente constituída, mas a tese das decisões reformadas dos juízos a quo repercutiu, dando origem a doutrina do disregard of legal entity28”, sobretudo nos Estados Unidos onde se formou larga jurisprudência, “expandindo-se mais recentemente na Alemanha e em outros países europeus, firmando, portanto, a partir dos precedentes mencionados, a possibilidade de afastamento dos efeitos da personalização, autonomia e separação patrimonial nos casos em que a personalidade jurídica fosse utilizada de forma abusiva, em prejuízo aos interesses dos credores29”. 24 CRUZ RAMOS, Andre Luiz Santa, Curso de Direito Empresarial: – 4ª ed. – Salvador BA: Editora JusPodivw, 2010. p. 335. 25 Ibid.: p. 335. 26 CRUZ RAMOS, Andre Luiz Santa, Curso de Direito Empresarial: – 4ª ed. – Salvador BA: Editora JusPodivw, 2010. p. 335. 27 Ibid.: p. 335. 28 CRUZ RAMOS, Andre Luiz Santa, Curso de Direito Empresarial: – 4ª ed. – Salvador BA: Editora JusPodivw, 2010. p. 335. 29 Ibid.: p. 335. 153 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Nesses casos, poderia “o juiz ou tribunal desconsiderar os efeitos da personalidade jurídica, permitindo-se, assim, a execução do patrimônio pessoal dos sócios por dívidas da sociedade30”, sob enfoque de violar direitos da personalidade, mas em outrora o patrimônio se sobressaia em face das pessoas, pois valorizava o ter e não o ser, fatos que levavam a não desconsiderar a pessoa jurídica. 3.2 CHEGADA AO BRASIL Embora o Procurador André Luiz Santa Cruz Ramos faça referência de outro doutrinador, logo tratou também de inserir em sua obra, a forma que essa teoria da desconsideração chegou ao Brasil, como adiante se pode ver: A teoria da desconsideração da personalidade jurídica chegou ao Brasil pelas mãos de Rubens Requião, na década de 60, quando o autor já defendia a sua aplicação no Pais, a despeito da ausência de previsão legislativa. Nas palavras do renomado jurista se diz o seguinte: ora, diante do abuso de direito e fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos31. Portanto, diversos doutrinadores apontam que a teoria da desconsideração vem sendo aplicada no Brasil há bastante tempo pela jurisprudência nos casos em que caracteriza o desvio de finalidade das sociedades, mas com muita resistência, somente tomando corpo com a repersonalização. Com isto, a desconsideração da pessoa jurídica é objeto do caput e do § 5º do artigo 28 do CDC, pois os parágrafos 2º, 3º e 4º atingem a matéria da responsabilidade subsidiária ou solidária que a própria lei define, sendo dispensável a intercessão judicial no sentido de apregoar a desconsideração. A prima proposição da desconsideração elencada pelo artigo 28 do CDC é o abuso de direito, que importa no exercício não regular de um direito. 30 Ibid.: p. 335. REQUIÃO, Rubens, apud, CRUZ RAMOS, Andre Luiz Santa, Curso de Direito Empresarial: – 4ª ed. – Salvador BA: Editora JusPodivw, 2010 339. 31 154 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Entretanto, a personalidade jurídica é aplicada visando determinada finalidade social. Se qualquer ato é praticado em desavença com tal finalidade originando prejuízos a outrem, tal ato é abusivo e, de imediato, atentatório ao direito, sendo a desconsideração um meio eficaz de coibição a tais práticas. Na mesma teia, o Código alude ao excesso de poder, que diz respeito aos administradores que cometem atos para os quais não tem poder. Tais poderes são acentuados pela lei, pelo contrato social ou pelo estatuto, cuja violação também é apontada como hipótese de desconsideração. Esta interpretação segue o raciocínio da teoria menor da desconsideração. De acordo com tal teoria, se a sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é solvente, isso basta para responsabilizá-lo por obrigações daquela. Contrariando, deste modo, os fundamentos teóricos da desconsideração e representando a negação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Neste diapasão, deve-se entender o parágrafo em questão como conexo somente às sanções impostas ao empresário, por inadimplemento de norma protetiva dos consumidores, de caráter não pecuniário. Com efeito, a distinção entre a pessoa jurídica e a pessoa dos sócios, contida no “art. 46 do Código Civil32”, deve ser relativizada, quando a pessoa jurídica é constituída no sentido de fugir às suas finalidades, em fraude à lei ou em prejuízo de terceiros, e com base no “art. 50 do mesmo diploma legal33”, deve ser desconsiderada a personalidade da sociedade de modo que os atos praticados em nome desta sejam diretamente atrelados aos seus sócios. 32 Art. 46 CC. O registro declarará: I - a denominação, os fins, a sede, o tempo de duração e o fundo social, quando houver; II - o nome e a individualização dos fundadores ou instituidores, e dos diretores; III - o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente; IV - se o ato constitutivo é reformável no tocante à administração, e de que modo; V - se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais; VI - as condições de extinção da pessoa jurídica e o destino do seu patrimônio, nesse caso. 33 Art. 50 CC. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. 155 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Posteriormente a Lei nº 8884/94 que dispõe sobre a prevenção e repreensão às infrações à ordem econômica também regulamentou a aplicação da teoria, estatuindo em seu artigo 18 que: “a personalidade jurídica do responsável por infração a ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, a desconsideração também será afetiva quando houver falência, estado insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração34”. Traz ainda essa Lei, em um de seus dispositivos que “aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal 35”, com isto visa com que os abusos sejam suprimidos e/ou diminuídos por parte de fraudadores. Outra iniciativa mencionada foi a da edição da Lei nº 9605/98, que regula os crimes ambientais, mais uma vez o legislador regulamentou o tema da desconsideração da personalidade jurídica, conforme adiante prescreve o dispositivo legal. O artigo 4º desta Lei prevê que “poderá ser desconsiderado a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente36”. Neste entendimento, o ambientalista Frederico Augusto Di Trindade Amado menciona em sua obra que em que pese se “tratar da lei criminal, cuida-se de uma hipótese que desconsideração da personalidade jurídica37”, em que se poderá declarar a ineficácia da personalidade notadamente nas ações indenizatórias por danos ambientais, entende que é uma modalidade de: “disregard of legal entity norteada pela teoria menor não se exigindo do abuso da personalidade jurídica, bastando por exemplo a simples 34 Disponível em<http://www.leidireto.com.br>Acesso em 18 março de 2013. Disponível em <http://www.leidireto.com.br>Acesso em 18 de março 2013. 36 Disponível em <http://www.senado.gov.br/> Acesso em 18 de março 2013. 37 AMADO, Frederico Augusto Di Trindade, Direito Ambiental Sistematizado. Rio de Janeiro. Ed. Metodo, 2009. p. 252/253. 35 156 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial impossibilidade de a pessoa jurídica arcar com a reparação ambiental, podendo atingir os sócios e os gestores do ente de inexistência moral38”. O relato é exemplo do ocorre no código do consumidor. No estudo, observou-se uniformidade com os dispositivos de Lei, pois que a previsão normativa constante do CDC os dois textos legais posteriores que também cuidaram da aplicação da teoria da desconsideração, enquanto a Lei nº 8884, em seu artigo 18 repetiu a redação do artigo 28 caput, do CDC, a lei nº 9605/98 repetiu, em seu artigo 4º redação do artigo 28, parágrafo 5º do diploma consumerista. Nesta mesma linha, a CLT (CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO) em seu “art. 2º39” possibilita a desconsideração da pessoa jurídica, nos casos de violação aos direitos dos trabalhadores, o mesmo ocorrendo conforme estipula o 135 do Código Tributários Nacional, em caso de má administração, destaca-se ainda o artigo 1676 do Código Civil de 2002, quando a meação do cônjuge não são respeitada. Com os desideratos apresentados, percebe-se a preocupação do Legislador em inserir normas no ordenamento jurídico visando preservar direitos da personalidade, com vista a garantia e proteção da dignidade da pessoa humana. 4. DESIGULDADES A personalidade tanto física como jurídica existiam no Estado Liberal, mas quando o direito da pessoa física era violado por empresas (pessoa jurídica), sob a proteção patrimonialista pouca coisa se podia fazer. Mas hoje tudo esta mudado, neste sentido 38 Ibid.: p. 252/253.. Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço. § 1º - Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados. § 2º - Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas. 39 157 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial esclarece o professor Dr. José Sebastião de Oliveira e à mestre Regina Cristina da Silva Menoia: “Fatores tais como as duas grandes guerras mundiais, a transformação do Estado liberal em Estado social, o fim das ditaduras totalitaristas, e o surgimento de uma nova ordem econômica social, resultaram no fato de que o sistema jurídico desenvolvido pelo direito civil clássico principalmente no tocante aos anseios sociais e necessidades do homem encontrava-se defasado, contribuindo para a exclusão do direito civil do núcleo da ordem jurídica dos povos, vindo a ocupar seu lugar a Constituição, com seus princípios e regras que constituem e regulamenta relações sociais40”. Significa dizer que as empresas como sujeito de direito e obrigações, geridas por pessoas, tem o condão de respeitar a dignidade da pessoa humana, sob o prisma, de violar o principio da dignidade da pessoa humana, que se apresente no “núcleo do ordenamento jurídico”. A atual Carta Magna reconhece em seu art. 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana, bem como o Art. 5º, inciso XXII, o direito de propriedade. O que fazer quando duas garantias asseguradas pela constituição se chocam? Há de se ponderar se o direito individual de ser proprietário livre prevalecerá sobre a dignidade humana e o cumprimento da função social da propriedade. Atualmente existe uma grande tendência, trazida inclusive pela Constituição de 1988, em despatrimonializar o Direito e torná-lo mais solidário e democrático, com o espírito de solidariedade. Tal mudança pode ser observada até mesmo no Código Civil de 2002, que modificou diversas normas neste sentido. Entretanto, para dirimir melhor o tema, deve ser adotado a tese da ponderação de bens juridicamente tutelados como método adequado para solução de colisão de direitos fundamentais, “onde o intérprete poderá, através da razoabilidade, checar as áreas pertencentes ao âmbito normativo dos bens envolvidos no conflito41”. 40 Disponível em <http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/> Acesso em 18 de março de 2013. 41 GRAU, Eros Roberto e Sérgio Sérvulo da Cunha. Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 242. 158 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial O método de ponderação de bens pode sugerir a existência de uma hierarquia axiológica e dinâmica entre os princípios em tensão. Uma hierarquia axiologia eis que confere, em justa medida, maior ou menor peso ou valor aos princípios colidentes. Dinâmica, por se estar diante de relação axiológica mutável que outorga primazia axiológica a uma relação específica, podendo inverter-se em situação diversa. Então, ao analisar o instituto do direito de propriedade contraposto ao da dignidade humana, ambos albergados pela Constituição Federal de 1988 como norma fundamental, conclui-se que não existem elementos específicos para atestar qual direito se sobrepõem ao outro. O que deve ser feito é análise do caso concreto quando tais normas vierem, porventura, a se chocar. Lembrando-se sempre que a dignidade humana é epicentro axiológico de nosso ordenamento jurídico. Portanto, deve a pessoa jurídica ser submissa as normas impostas, pois o fundamental é o respeito a dignidade humana, com enfoque ao direitos individuais homogêneos, coletivos e difusos. Neste sentido esclarece o professor Dr. Zenni, em uma de suas obras: “O desenvolvimento é uma premência humana, e deve ser encarada de uma forma coletiva, não se lhe tratando como fenômeno isolado, sem comunicação e influxos nos diversos recantos do globo. Não se Poe em discussão que grande parte da humanidade esta privada de bens e serviços, e a distribuição de riquezas é macroscopicamente desigual, denunciando um abalo à ordem moral42. Por isto, a Constituição Federal de 1988, resguardou a dignidade da pessoa humana como valor central do ordenamento jurídico, valor que passou a integrar todos os ramos do direito é que pode se dizer que houve a repersonalização do direito. Fazendo com que o patrimônio deixasse de ter seu valor prioritário colocando esta primazia diante da pessoa, o que leva a crer que as empresas embora deva exercer seu papel social, jamais devem violar direitos personalíssimos, sob pena de serem desconsideradas. 42 ZENNI, Alessandro Severino Valler. A crise do direito na pós-modernidade: Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2006. p. 63 159 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Quanto ao estudo do direito de propriedade, de acordo com a Constituição de 1988, envolve duas vertentes, uma de caráter individual e outra de caráter social. A primeira diz respeito a garantir o direito de propriedade (Art. 5.º, XXII) e outra diz respeito a atribuir a propriedade o atendimento à sua função social (Art. 5.º, XXIII). Além de reafirmar a instituição da propriedade privada e a sua função social como princípios da ordem econômica (Art. 170, II e III), relativizando o seu significado. Verifica-se, portanto, que a inovação trazida pela Constituição de 1988 se dá com a função social da propriedade ter sido incorporada ao Capítulo de Direitos e Garantias, bem como o próprio direito de propriedade ter sido destacado. Por outro lado, os direitos de personalidade, tidos como a expressão do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana nas relações interprivadas, são considerados a base fundante de todo o ordenamento jusprivatista e a razão de ser do direito civil contemporâneo; apontados como uma das maiores inovações na codificação civil de 2002, suscitaram uma série de estudos dos mais representativos expoentes do direito civil, no sentido de compreender-lhes o significado, identificar suas características e dimensionar seus limites, caso a função social da propriedade privada deixe de ser estabelecida. 5. REPERSONALIZAÇÃO E CONSTITUIÇÃO Continua esclarecendo, a douta Srª Juíza Oriana Piske do Tribunal Federal que a “promulgação da Constituição Federal de 1988, fez com que todo o ordenamento infraconstitucional precisasse ser adaptado à nova moldura imposta pelas normas superiores, ou seja43”, assim o Código deve curvar-se ante o manto Constitucional dos valores que ofuscam a ideologia que o inspirou, e a abertura do sistema lhe dá uma convergência social irresistível. Delineia-se aí a expressão Constitucionalização do Direito Privado. Nesta toada, há uma mudança substancial, ou seja, deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição e não a Constituição segundo o Código, como ocorria com freqüência. 43 Disponível em http://www.tjdft.jus.br Acesso em 18 de março de 2013. 160 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Assim, a repersonalização do Direito Civil está relacionada com a emancipação da pessoa humana, colocando-a como centro do Direito Civil, passando o patrimônio ao papel coadjuvante. Com isto, propõe que quando diz que uma coisa é ler o Código naquela ótica produtivista, outra é relê-lo à luz da opção ideológico-jurídica constitucional, na qual a produção encontra limites insuperáveis no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. Neste contexto, o compromisso transformador, inerente à ideia de Estado Social e Democrático de Direito, publiciza o Direito Civil com vistas à sua repersonalização, através dos mecanismos normativos do sistema, ampliando o interesse recebido nas titularidades, visando, assim, sua funcionalização, na condição de meio de concretização dos valores solidarísticos constitucionalizados. Em síntese, que a discussão dos princípios e valores que o sistema jurídico colocou em seu centro e em sua periferia é o que se chama de repersonalização do Direito Privado. A partir da constitucionalização do Direito Civil, é necessário que os civilistas assumam o desafio de perceber a pessoa em toda a sua dimensão ontológica e, através dela, seu patrimônio. Devem ser levados em consideração os princípios constitucionais nas relações do Direito Privado, reconhecendo o caráter normativo de princípios como o da solidariedade, da dignidade da pessoa humana e da função social da propriedade, pois através deles é possível assegurar eficácia imediata a tais relações, caso seja necessário, desconsiderar a pessoa jurídica, com vista à proteção ao principio da dignidade da pessoa humana. 5.1 EFICACIA DA REPERSONZALIÇÃO Conceitua CANTALI que com a “eleição da dignidade da pessoa humana como valor fundante “de toda a ordem jurídica, a pessoa passou a ser o centro referencial do ordenamento, e os direitos ligados à sua personalidade tomaram posição de destaque”. A pessoa não é mais tida apenas "como sujeito de direitos, categoria abstrata, elemento da 161 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial relação jurídica", mas passa a ser considerada "como bem jurídico tutelável, não como objeto de direito, mas como valor expresso na tutela das situações subjetivas existenciais". A pessoa vale pelo que é, e não apenas pelo que tem. Continua discorrendo a autora (CANTALLI), que o “responsável por esta mudança de perspectiva é o processo de repersonalização do Direito Civil, seara onde os interesses patrimoniais (empresas e outros), perderam a posição de destaque outrora garantido, já que funcionalizados aos interesses existenciais da pessoa humana44”. Orlando de Carvalho, justamente se referindo ao fenômeno da repersonalização, identifica o “Direito Civil com uma zona de composição espontânea de interesses, na qual se reconhece o poder de autodeterminação ou de autogestão do indivíduo, que assim se eleva necessariamente a pressuposto número um do próprio modo de regulamentação civilístico45”. Percebe-se, que com a repersonalização, a pessoa passa a ser a finalidade e a função do Direito e, nessa medida, não há como não levar em consideração a sua capacidade interna de tomada de decisão, ou a sua própria vontade, e o seu poder de autoregulamentação dos interesses segundo a sua vontade, que é a própria autonomia, inclusive, quando os interesses e bens em questão são extrapatrimoniais. Assim, para CANTALLI pode se afirmar o seguinte46: que a autonomia privada ampliou seu campo de atuação para além das tradicionais situações patrimoniais. Há autores que, com esta mudança de entendimento, entendem que a teoria da autonomia da vontade, onde esta reinava sem limites e sem intervenção estatal, foi superada, dando lugar à teoria da autonomia privada, onde a vontade não é capaz de criar direito por si só, sendo fonte normativa apenas quando a conduta do particular estiver legitimada pela ordem jurídica, ou seja, quando praticada dentro dos limites estabelecidos e em consonância com os valores constitucionais. Este cenário perdurou por muito tempo, até a Constituição Federal de 1988 que, atendendo aos anseios sociais, alterou radicalmente todo o Direito Civil com a 44 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 204. 45 CARVALHO, Orlando de. A teoria Geral da Relação Jurídica. Coimbra: Centrelha,1981. p. 90-92 46 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 204. 162 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial consagração, no inciso III do artigo 1º, do princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Onde diversas violações a esse direito são reprimidas, no caso em especifico com a desconsideração da personalidade jurídica, inclusive a inversa, ou seja possibilitando ao órgão judicante, retirar o véu da pessoa jurídica, para satisfazer o direito quando violado por fraudadores. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Verifica-se que o Estado brasileiro, após a Constituição de 1988, deixou de lado o modelo liberal e passou a um paradigma social, consagrando direitos individuais homogêneos, coletivos e difusos que alcançam várias dimensões da cidadania. O Código Civil e brasileiro de 1916 possuía uma ideologia liberal oitocentista, impregnada por um marcante individualismo. Assim, evidenciou-se o grande abismo entre os princípios e valores do Código Civil de 1916 e os princípios e valores presentes na sociedade pós-industrial, revelando a necessidade de romper com os padrões éticos e ideológicos estabelecidos após a Carta Constitucional brasileira de 1988, não recomendando a continuidade daquele Código, seja pela emersão de novos direitos que passaram a exigir tratamento multidisciplinar e para os quais aquela codificação se mostrou inadequada, seja pelo fato de a patrimonialização das relações ali presentes contrastar com o princípio da dignidade da pessoa humana e da valorização da cidadania, ambos consagrados na Constituição de 1988. Dessas acepções, considerando que a personalidade tanto da pessoa física, bem como da jurídica deve ser respeitada, Os Tipos de Desconsiderações da Pessoa Jurídica se mostram eficazes, apesar de existirem críticas e dúvidas quanto a sua efetiva contribuição. No art. 50 do Código Civil, diz que a incorporação da teoria do disregard douctrine no direito pátrio, eliminando às incertezas relacionadas à interpretação de elementos essenciais para sua configuração, como o abuso de direito. Posto isto, o grande desafio da atualidade é a repersonalização efetiva no Direito Civil, ou seja, o reposicionamento da pessoa humana como elemento central, passando o patrimônio, no caso em mesa, a empresa e seu respectivo patrimônio, a papel secundário. Outro desafio importante está na eficácia privada dos direitos fundamentais. Para 163 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial tanto, é necessário efetivar concretamente os direitos humanos e de cidadania. Trata-se, portanto, de um desafio ético. No Novo Código Civil observa-se a presença de valores como, afetividade, essencial valor da família; a função social, como ente autônomo para o exercício normal das atividades econômicas, isto é, para o tráfego jurídico de boa-fé e fins sociais. Diante dessas considerações, destaca-se a Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica para o direito atual superficialmente em todos os aspectos, além de confirmar sua aplicabilidade pela Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, nos casos em que fique evidenciada fraude e/ou abuso de direito por parte do sócio que transfere os seus bens de raiz para a sociedade visando fraudar credores, dentre tantas outras questões tributária, trabalhistas e de sócio casado que transfere para uma sociedade os bens conjugais, esvaziando assim, todo o patrimônio e prejudicando a meação da esposa, esclarecendo que estes são apenas uns dos diversos exemplos aceitos pela Jurisprudência no que diz respeito à aplicação da teoria da Desconsideração Inversa, objetivando com isto, colocar as respectivas personalidade em pé de igualdade, visando garantir a dignidade da pessoa humana, haja vista que nessa relação entre personalidade da pessoa física e jurídica, uma não pode violar o direito da outra, como ocorre com a pessoa jurídica. Como conteúdo merecedor de destaque, e não apenas como limite da propriedade, nas suas diversas perspectivas e facetas; o princípio da equivalência material das prestações e a defesa da pessoa física em face da pessoa jurídica, motivado pela hipossuficiência. Todos esses valores e princípios fazem parte de uma nova pauta ética que devem ser considerados pelo aplicador do Direito, uma vez que foram convolados a princípios e regras de índole constitucional, devendo nortear a realização do Direito Civil. Assim, o Novo Código Civil evoluiu rumo a concretização de todos os Direitos Fundamentais das pessoas, a fim de construir uma sociedade mais justa e cada vez menos excludente. Como pode ser observado, não há outra conclusão sem que seja a de que a pessoa jurídica vem sendo utilizado de forma desvirtuada e maliciosa por sócios da pessoa jurídica que visam o proveito próprio, mas por outro lado, o poder judiciário vem atuando firmemente no intuito de coibir as atitudes dos devedores que tentam se esquivar do pagamento de suas dívidas utilizando da pessoa jurídica de forma fraudulenta. 164 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial O Código de Defesa do Consumidor compilou as hipóteses em que é cabível a desconsideração, sendo que depois surgiu na Lei de ordem econômica nº 8884/94, Lei ambiental nº 9605/98 e por derradeiro no Código Civil de 2002 em seu artigo 50 que trata tanto de desconsideração inversa como a pura, onde essa última desconsidera o ente jurídico, chegando aos bens da pessoa física, para satisfazer o direito. Posto isto, significa dizer que o art. 5º LXXVIII, da CF, vem se consolidando, mormente quanto ao princípio da razoável duração do processo que é o norteador do direito à luz da Constituição Federal de 1988 em favor daqueles que buscam por justiça, pois o véu está sendo retirado pelo órgão jurisdicional, fazendo com que de fato a pessoa jurídica exerça seu verdadeiro papel social em prol dos jurisdicionados. Neste quadrante percebe-se que é de interesse da sociedade que o Poder Judiciário, além de regular as relações jurídicas com o Estado e entre particulares, também distribua Justiça. Portanto, do acima exposto é inevitável a judicialização dos direitos sociais para sua real efetivação, ainda que este ente (poder judiciário) possa agir somente quando provocado, mas por hora é somente desta maneira que o homem terá o exercício pleno de sua dignidade. Esse é o papel social que, historicamente, lhe é reservado. Em decorrência, há uma função social a ser realizada nos atos, nos contratos, nas relações jurídicas, na propriedade, no contexto familiar, com a importância da lealdade, da boa-fé, da honestidade, da confiança, da dignidade nas relações privadas, tudo com vista no principio da dignidade humana, o que por sua vez teve sua dignidade restabelecida por intermédio do fenômeno denominado REPERSONALIZAÇÃO. 165 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ALMEIDA, Amador Paes de. Execução de bens dos sócios. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. AMADO, Frederico Augusto Di Trindade, Direito Ambiental Sistematizado. Rio de Janeiro. Ed. Método, 2009. P 252/253. Art. 46 CC/2002. Art. 50 CC/2002. BARRETO, Wanderlei de Paula. In: ALVIM, Arruda e ALVIM, Thereza (coords.). Comentários ao código civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2005. BORGES, Roxana Cardoso Brasileira, Direitos de personalidade e autonomia privada: 2. ed. 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Regras Processuais no Código Civil.3. ed. São Paulo: Saraiva. 2008. GRAU, Eros Roberto e Sérgio Sérvulo da Cunha. Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. MADALENO, Rolf. Direito de Família: aspectos polêmicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado,1998. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil – Execução. Editora Revista dos Tribunais. Volume 3, 2007. 166 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial MARINONI, Luiz Guilherme; LIMA JUNIOR, Marco Aurélio. Fraude Configuração Prova Desconsideração da Personalidade Jurídica. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 783, jan. 2001. REQUIÃO, Rubens, apud, CRUZ RAMOS, Andre Luiz Santa, Curso de Direito Empresarial: – 4ª ed. – Salvador BA: Editora JusPodivw, 2010. VADE MECUM Saraiva – 11. ed. amplamente atualizada. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. SOUZA, Marco Antonio. Tipos de desconsideração da pessoa jurídica: 2012. p. 10-11. Pós Graduação lato sensu, Escola da Magistratura Núcleo de Maringá. 167 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial CONSIDERAÇÕES SOBRE A ABERTURA DE CAPITAL NA SOCIEDADE ANÔNIMA CONSIDERATIONS ON THE PUBLIC OFFER Rodrigo de Oliveira Botelho Corrêa Mestrando em Direito pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Advogado RESUMO Uma questão essencial para o exercício e desenvolvimento da atividade empresarial é a busca por capital. Existem algumas alternativas para se obter o capital necessário para empreitadas mercantis. Uma delas, e muito provavelmente a mais eficiente, sobretudo para negócios de grande valor agregado, é o recurso ao mercado de capitais. Este trabalho retrata a importância da abertura de capital das companhias, como forma de ampliar as opções de financiamento da atividade negocial e produtiva. Estuda-se a legislação aplicada ao processo de abertura de capital, com foco nos aspectos mais sensíveis e relevantes da oferta pública de valores mobiliários, como o underwriting. ABSTRACT A key issue for the performance and development of business activity is the search for capital. There are some alternatives to obtain the necessary capital for commercial ventures. One, and probably the most efficient, especially for high value-added business, is recourse to the capital market. This work shows the importance of IPO companies as a way to expand financing options and negotiating productive activity. We study the legislation applied to the process of going public, with a focus on the most sensitive and relevant public offering of securities, such as underwriting. Thus, we present the conclusion and our impression about the issue. Palavras-chave: Sociedade anônima – abertura de capital – mercado de capitais. Key-words: Public company – Initial Public Offer (IPO) – securities exchange 168 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Introdução O final do século XVIII trouxe mudanças conspícuas, as quais repercutem até hoje. Conquanto já existissem vozes defendendo valores como o racionalismo, o cientificismo e, sobretudo, a ideia de um regime político calcado na liberdade, naquele período ocorreram episódios que finalmente romperam com o regime anterior e promoveram a implantação do sistema de mercado ou de autonomia. Fábio Nusdeo1 destaca quatro acontecimentos notáveis, todos ocorridos no ano de 1776, nos campos da Política, da Economia, do Direito e da Tecnologia, que ajudaram a vitória do sistema de mercado. No campo da Política, o referido autor destaca a declaração de independência dos EUA, que foi a primeira nação a ser fundada com base em institutos eminentemente liberais, conquanto ainda houvesse algumas reminiscências do regime anterior, como a escravidão. Na Economia, a edição do livro A Riqueza das Nações de Adam Smith, no qual o autor apresenta o conceito de liberdade sob o prisma econômico. Aos indivíduos deveria ser assegurada a tomada de decisões quanto à aplicação dos recursos escassos, afinal o homem vivencia no dia a dia de sua existência a tarefa de administrar os recursos escassos que estão à sua disposição. Assim, a organização da Economia deveria ficar a cargo dos indivíduos. Esses indivíduos, conduzidos por um sentimento hedonista, decidiriam de forma a aplicar os recursos escassos da maneira mais eficiente e ótima possível, fato que levou Smith a cunhar a expressão “mão invisível” do mercado. Surge aí a noção de sistema de mercado ou de autonomia. No Direito, Fábio Nusdeo menciona a edição do Décret d´Allarde, de obra do ministro Turgot, que pôs fim às corporações de ofício, dando liberdade a todo cidadão de exercer a profissão de sua escolha. Esse decreto foi revogado posteriormente, mas represtinado por meio da Lei Le Chapelier, de 1791. Também merecem destaque o movimento constitucionalista, por se constituir em um modelo liberal de limitação do poder, e a codificação do Direito Privado, que não só conferiu maior segurança às relações jurídicas, como rompeu com o Direito medieval, calcado em preceitos do Direito Romano e do Direito Canônico. 1 NUSDEO, Fábio. Curso de Economia: introdução do Direito Econômico, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 126 169 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Por fim, na área da tecnologia, o referido professor da Universidade de São Paulo indica a aplicação da máquina a vapor ao processo produtivo, feito de Robert Fulton, que se valeu da descoberta de Watt. Essa sucessão de acontecimentos históricos, que não se limitam a esses, e que culminaram com a Revolução Francesa, levou a implantação definitiva do sistema de mercado. Conquanto desde o renascimento comercial a atividade econômica tivesse recrudescido, inclusive por meio de sociedades de capitais, é certo que somente com o liberalismo e o seu sistema de mercado ela se fortaleceu a ponto de dar origem ao mais propalado sistema de organização social-econômica: o capitalismo. A circulação de capital, calcada nas decisões descentralizadas dos agentes econômicos, é a mola propulsora e a principal característica do sistema capitalista. Dentre os seus inúmeros setores, o sistema financeiro tem papel de inegável destaque, justamente por permitir trocas entre agentes deficitários e superavitários. Esse sistema será o tema do próximo tópico. 1. Sistema financeiro Como destacado no item anterior, a liberdade econômica proporciona a circulação da riqueza entre os agentes econômicos. Esses agentes exercem essa liberdade mediante a tomada diuturnamente de decisões sobre se eles gastarão seus recursos imediatamente ou se adiarão esse gasto, poupando os recursos para gastá-los depois. Esse dispêndio, por sua vez, poderá se dar por meio do consumo ou do investimento. Nem sempre, contudo, o agente econômico dispõe de recursos suficientes para fazer valer a sua decisão. Nesse caso, ele terá de procurar no mercado recursos para suprir essa necessidade. Da mesma forma, aquele que acumula recursos, não deseja que seu patrimônio fique sem uma destinação econômica efetiva, o que acabaria por diminuir o seu valor. A função do sistema de financeiro é justamente a de prover os canais adequados mediantes os quais os agentes econômicos deficitários obtêm os recursos de que necessitam para os seus projetos de investimento ou para consumirem, em troca do pagamento de uma remuneração aos poupadores. 170 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial O sistema financeiro é segmentado nos seguintes subsistemas2: a) Mercado de crédito: operações bancárias típicas (intermediação financeira por meio da captação de recursos dos agentes econômicos superavitários e empréstimo desses recursos aos agentes econômicos deficitários) b) Mercado monetário (open market): operações de curto prazo com títulos públicos. Usado como instrumento de política pública para dar maior ou menor liquidez à economia. c) Mercado cambial: operações de curto prazo envolvendo a compra e venda de moeda estrangeira d) Mercado de capitais ou de valores mobiliários: operações que visam à captação pelos agentes econômicos deficitários da poupança dos agentes econômicos superavitários por meio da emissão de valores mobiliários. As companhias podem financiar suas atividades por meio de recursos próprios ou de terceiros. Os recursos de terceiros podem ser obtidos junto ao mercado de crédito, através de empréstimos junto a instituições financeira (que praticam intermediação financeira) ou pela emissão de valores mobiliários (mercado de capitais). Portanto, a grande diferença entre os outros mercados e o mercado de capitais reside na ausência da intermediação financeira. O fato de na emissão pública de valores mobiliários ser obrigatória a presença de uma instituição financeira underwriter, não caracteriza intermediação financeira. Isto porque o underwriting não importa em intermediação financeira, mas sim em participação, ainda que com garantia firme de subscrição dos títulos, no processo de colocação pública de títulos3. No mercado de capitais podem ser distinguidos dois segmentos: o mercado primário e o mercado secundário. No mercado primário ocorrem as emissões públicas de novos valores mobiliários, mediante a mobilização da poupança popular. É no mercado primário que se atende à finalidade principal do mercado de capitais, que é a de permitir a captação de recursos do público. Já no mercado secundário, não há o ingresso de recursos para as companhias emissoras, inexistindo a emissão de novos títulos. A função essencial do mercado secundário é a de conferir liquidez aos valores mobiliários, permitindo que os seus 2 EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas. Mercado de Capitais – regime jurídico, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 6-7. 3 EIRIK et al, op. cit., p. 9 171 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial adquirentes possam vendê-los rapidamente. Sem a existência de um mercado secundário ativo, ficariam muito prejudicadas as operações de captação de novos recursos no mercado primário, uma vez que os poupadores teriam dificuldade para alienar os valores mobiliários por eles adquiridos4. Como salientam EIZIRIK et al, Para as companhias emissoras é importante que suas ações tenham liquidez no mercado secundário, pois lhes será mais fácil colocarem no mercado novos títulos, uma vez que os investidores normalmente preferem adquirir valores mobiliários que possam mais rapidamente alienar. A cotação das ações de uma companhia no mercado secundário, isto é, o valor pelo qual são negociadas, constitui um parâmetro fundamental para que se calcule o preço de emissão das novas ações no mercado primário, nos termos do artigo 170, parágrafo único, da Lei das S/A5. Com efeito, quando as ações apresentam índices razoáveis de liquidez no mercado secundário, o critério mais importante para fixação do preço de emissão de novas ações será o da sua cotação no mercado6 (EIZIRIK et al., 2008, p. 10-11). As operações no mercado secundário podem ocorrer em bolsa de valores ou de futuros e mercadorias ou então no mercado de balcão. Nada impede, porém, que os investidores comprem e vendam diretamente os valores mobiliários, fora das bolsas ou do mercado de balcão, sem a participação de qualquer intermediário financeiro. Essas operações são realizadas foram do mercado de capitais. 4 Idem, p. 10 Art. 170. Depois de realizados 3/4 (três quartos), no mínimo, do capital social, a companhia pode aumentá-lo mediante subscrição pública ou particular de ações. § 1º O preço de emissão deverá ser fixado, sem diluição injustificada da participação dos antigos acionistas, ainda que tenham direito de preferência para subscrevê-las, tendo em vista, alternativa ou conjuntamente: I - a perspectiva de rentabilidade da companhia; II - o valor do patrimônio líquido da ação; III - a cotação de suas ações em Bolsa de Valores ou no mercado de balcão organizado, admitido ágio ou deságio em função das condições do mercado. § 2º A assembléia-geral, quando for de sua competência deliberar sobre o aumento, poderá delegar ao conselho de administração a fixação do preço de emissão de ações a serem distribuídas no mercado. § 3º A subscrição de ações para realização em bens será sempre procedida com observância do disposto no artigo 8º, e a ela se aplicará o disposto nos §§ 2º e 3º do artigo 98. § 4º As entradas e as prestações da realização das ações poderão ser recebidas pela companhia independentemente de depósito bancário. § 5º No aumento de capital observar-se-á, se mediante subscrição pública, o disposto no artigo 82, e se mediante subscrição particular, o que a respeito for deliberado pela assembléia-geral ou pelo conselho de administração, conforme dispuser o estatuto. § 6º Ao aumento de capital aplica-se, no que couber, o disposto sobre a constituição da companhia, exceto na parte final do § 2º do artigo 82. § 7º A proposta de aumento do capital deverá esclarecer qual o critério adotado, nos termos do § 1º deste artigo, justificando pormenorizadamente os aspectos econômicos que determinaram a sua escolha. 6 Op. cit., p. 10-11 5 172 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 2. Oferta pública de distribuição de valores mobiliários “A oferta pública de distribuição de valores mobiliários constitui a operação pela qual a companhia ou titulares de valores mobiliários de sua emissão promovem, mediante apelo ao público, a colocação de ações ou outros valores mobiliários no mercado de capitais”.7 Existem duas modalidades de ofertas públicas de distribuição: ofertas públicas primárias e ofertas públicas secundárias. “Nas ofertas públicas primárias, a companhia emite novos valores mobiliários, com o objetivo de proceder à sua colocação perante investidores e os recursos obtidos são revertidos para a própria companhia emissora, a fim de financiar seus projetos de desenvolvimento ou suas necessidades de caixa”.8 Já as ofertas secundárias são aquelas em que os acionistas da companhia ou titulares de outros valores mobiliários de sua emissão vendem ao mercado, também mediante apelo ao público, os títulos de sua propriedade já emitidos pela companhia. Nesse caso, os recursos pagos pelos investidores para adquirir as ações ou os outros valores mobiliários ofertados não são destinados à companhia emissora, mas aos próprios ofertantes. Existem ainda ofertas mistas, que envolvem tanto valores mobiliários provenientes de uma nova emissão quanto de títulos já emitidos. Tanto a Lei 6385/76 quanto a Instrução CVM 400/2003 tratam essas duas modalidades de oferta pública igualmente, sem distingui-las. Existem dois registros: 1) registro inicial de companhia aberta (Lei 6385/76, art. 21; LSA, art. 4º, § 1º9; Instrução CVM 202/1993); 2) registro da oferta propriamente dita (Lei 6385/76, art. 19, caput; LSA art. 4º, § 2º10; Instrução CVM 400/2003 alterada pela Instrução CVM 429/2006). Os registros, embora distintos, caracterizam-se pela complementaridade das informações que contêm (Voto n. 426, do CMN, de 21 de dezembro de 1978, apud EIZIRIK et al., 2008, p. 136). O registro não tem um fim em si mesmo. Ele se constitui em um meio para dar transparência e disseminar informações relevantes para o mercado. Ele visa a proteger o interesse difuso do mercado. 7 EIZIRIK et al, op. cit., p. 133. Ibidem, p. 133. 9 Art. 4o Para os efeitos desta Lei, a companhia é aberta ou fechada conforme os valores mobiliários de sua emissão estejam ou não admitidos à negociação no mercado de valores mobiliários. § 1o Somente os valores mobiliários de emissão de companhia registrada na Comissão de Valores Mobiliários podem ser negociados no mercado de valores mobiliários. 10 § 2o Nenhuma distribuição pública de valores mobiliários será efetivada no mercado sem prévio registro na Comissão de Valores Mobiliários. 8 173 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial É importante destacar que a companhia pode ser constituída por subscrição privada e, posteriormente, abrir o seu capital ou a constituição da sociedade anônima pode se dar por meio de subscrição pública de ações. Essa última hipótese é tratada pela LSA nos artigos 82 a 87. Portanto, a oferta pode ser privada ou pública. A doutrina se vale de três elementos ou critérios para identificar se uma oferta de distribuição de valores mobiliários é pública ou privada, quais sejam: a) a qualificação dos ofertados; b) o acesso deles às informações sobre o valor mobiliário que está sendo oferecido; c) a maneira pela qual é efetuada a colocação11. A Lei 6.385/76 não conceitua a oferta pública de distribuição de valores mobiliários. A referida lei apenas elenca algumas hipóteses que devem ser consideradas como tal. Nesse sentido, o § 3º, do artigo 19 do referido diploma legal dispõe que Caracterizam a emissão pública: I - a utilização de listas ou boletins de venda ou subscrição, folhetos, prospectos ou anúncios destinados ao público; II - a procura de subscritores ou adquirentes para os títulos por meio de empregados, agentes ou corretores; III - a negociação feita em loja, escritório ou estabelecimento aberto ao público, ou com a utilização dos serviços públicos de comunicação. Esse artigo 19 da Lei 6.385/76 foi regulamentado pelo artigo 3º, da Instrução CVM 400/2003, que também deixou de conceituar a oferta pública de distribuição de valores mobiliários, limitando-se a trazer, além das já enumeradas no referido § 3º, do artigo 19, da Lei 6.385/76, mais algumas outras hipóteses em que ela estaria configurada. Veja a propósito a sua redação: Art. 3º São atos de distribuição pública a venda, promessa de venda, oferta à venda ou subscrição, assim como a aceitação de pedido de venda ou subscrição de valores mobiliários, de que conste qualquer um dos seguintes elementos: I - a utilização de listas ou boletins de venda ou subscrição, folhetos, prospectos ou anúncios, destinados ao público, por qualquer meio ou forma; II - a procura, no todo ou em parte, de subscritores ou adquirentes indeterminados para os valores mobiliários, mesmo que realizada através de comunicações padronizadas endereçadas a destinatários individualmente identificados, por meio de empregados, representantes, agentes ou quaisquer pessoas naturais ou jurídicas, integrantes ou não do sistema de distribuição de valores mobiliários, ou, ainda, se em desconformidade com o previsto nesta Instrução, a consulta sobre a viabilidade da oferta ou a coleta de intenções de investimento junto a subscritores ou adquirentes indeterminados; 11 EIZIRIK, et. al., op. cit., p. 139 174 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial III - a negociação feita em loja, escritório ou estabelecimento aberto ao público destinada, no todo ou em parte, a subscritores ou adquirentes indeterminados; ou IV - a utilização de publicidade, oral ou escrita, cartas, anúncios, avisos, especialmente através de meios de comunicação de massa ou eletrônicos (páginas ou documentos na rede mundial ou outras redes abertas de computadores e correio eletrônico), entendendo-se como tal qualquer forma de comunicação dirigida ao público em geral com o fim de promover, diretamente ou através de terceiros que atuem por conta do ofertante ou da emissora, a subscrição ou alienação de valores mobiliários. §1º Para efeito desta Instrução, considera-se como público em geral uma classe, categoria ou grupo de pessoas, ainda que individualizadas nesta qualidade, ressalvados aqueles que tenham prévia relação comercial, creditícia, societária ou trabalhista, estreita e habitual, com a emissora. § 2º A distribuição pública de valores mobiliários somente pode ser efetuada com intermediação das instituições integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários (“Instituições Intermediárias”), ressalvadas as hipóteses de dispensa específica deste requisito, concedidas nos termos do art. 4º. Para que a oferta pública seja caracterizada como privada, ela deverá ser direcionada diretamente aos ofertados pelo próprio ofertante ou por seus representantes. Em contrapartida, quaisquer instrumentos de apelo à poupança popular, desde que não individualizados os destinatários da oferta, podem também ser considerados como caracterizadores da distribuição pública12, mesmo se não forem utilizados materiais de publicidade. Além desse critério relativo à forma como os valores mobiliários são oferecidos, deve-se considerar também a qualificação dos ofertados. EIZIRIK et al.13 sustentam que a exigência do registro perante a CVM não deve ser aplicada às hipóteses em que os investidores não necessitam de atuação estatal para proteger seus interesses. Os professores chegam a esta conclusão por meio da interpretação dada à exposição de motivos da Lei 6.385/76, notadamente ao seguinte trecho: 20. Apenas a emissão pública (isto é, a emissão oferecida publicamente) está sujeita a registro. Não se aplica essa norma à emissão particular, como é o caso da emissão negociada com um grupo reduzido de investidores, que tenham acesso ao tipo de informação que o registro visa a divulgar. Se estes, porém, adquirem a emissão com o fim de a colocar no mercado, mediante oferta pública, estão sujeitos às mesmas restrições que a companhia emissora. Esses mesmos autores defendem que a Instrução CVM 400/2003, ao dispensar o registro de oferta pública, quando esta for dirigida a grupo de pessoas que mantenha prévia 12 13 EIZIRIK et. al., op. cit., p. 145 Ibidem, p. 145-146. 175 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial relação comercial, creditícia, societária ou trabalhista, estreita e habitual, com a emissora, consagra o segundo elemento acima mencionado, qual seja: a disponibilidade de informações. Se a oferta é dirigida a um grupo de pessoas que tem amplo acesso às informações relativas à emissão, ela não seria pública. São os casos do exercício do direito de preferência ou de oferta direcionada apenas a pessoas que já são acionistas da companhia. Por fim, destaca-se que o artigo 5º da referida Instrução CVM 400/2003 dispensa o registro de oferta pública, independentemente do deferimento de pedido, em algumas hipóteses. Existe ainda a possibilidade de o ofertante requerer a dispensa integral ou apenas do cumprimento de algum requisito, mas isto deverá ser apreciado pela CVM. 2.1. A obtenção do registro de oferta pública de distribuição de valores mobiliários A Instrução CVM 400/2003 estabelece as regras para a obtenção do registro de oferta pública de distribuição de valores mobiliários. Deve-se, todavia, destacar que, como preceitua o § 3º, do artigo 4º, da Lei 6.404/76, a CVM pode estabelecer uma classificação para as companhias abertas, com vistas a simplificação dos procedimentos de registro. Nesse sentido, a CVM já expediu algumas normas reguladoras, estabelecendo procedimentos mais simples para o registro de determinadas emissões. Citam-se a Instrução 265/97, que trata do registro simplificado de sociedades incentivadas, a Instrução 404/2004, que dispõe sobre as debêntures padronizadas, e, sobretudo, a Instrução CVM 471/2008, que prevê procedimento simplificado para registro de ofertas públicas de distribuição de valores mobiliários. O pedido de registro de oferta pública de distribuição de valores mobiliários deve ser apresentado pelo ofertante emissor em conjunto com a instituição financeira intermediária da oferta. Prospecto. O principal documento da oferta pública de distribuição de valores mobiliários é o prospecto. O artigo 38 da referida Instrução CVM 400/2003 o conceitua da seguinte forma: Art. 38. Prospecto é o documento elaborado pelo ofertante em conjunto com a instituição líder da distribuição, obrigatório nas ofertas públicas de distribuição de que trata esta Instrução, e que contém informação completa, precisa, verdadeira, atual, clara, objetiva e necessária, em linguagem acessível, de modo que os investidores possam formar criteriosamente a sua decisão de investimento. 176 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial O Prospecto deverá, de maneira que não omita fatos de relevo, nem contenha informações que possam induzir em erro os investidores, conter os dados e informações sobre: (i) a oferta; (ii) os valores mobiliários objeto da oferta e os direitos que lhes são inerentes; (iii) o ofertante; (iv) a companhia emissora e sua situação patrimonial, econômica e financeira; (v) terceiros garantidores de obrigações relacionadas com os valores mobiliários objeto da oferta; e (vi) terceiros que venham a ser destinatários dos recursos captados com a oferta (Instrução CVM 400/2003, art. 39). A CVM poderá exigir do ofertante e da emissora, inclusive com vistas à inclusão no Prospecto, as informações adicionais que julgar adequadas, além de advertências e considerações que entender cabíveis para a análise e compreensão do Prospecto pelos investidores (Instrução CVM 400/2003, art. 39, § 2º). No caso de ofertas públicas que envolvam a emissão de valores mobiliários para os quais não estejam previstos procedimentos, informações e documentos específicos, a CVM poderá, a pedido dos interessados, estabelecer o conteúdo para o respectivo Prospecto (Instrução CVM 400/2003, art. 39, § 3º). Prospecto preliminar. Como não existe proibição para que o ofertante adote esforços de venda antes da concessão do registro pela CVM, a Instrução CVM 400/2003 prevê a figura do prospecto preliminar (artigo 4614). Nesse caso, os investidores poderão efetuar reservas de subscrição ou aquisição com base no prospecto preliminar, mas estas somente poderão ser confirmadas após o registro da oferta, quando o prospecto definitivo deve ser disponibilizado aos investidores. Estudo de viabilidade econômica. É exigido apenas em alguns casos, como na subscrição pública de ações para a constituição de companhia (LSA, artigo 82, § 1º, “a”). O 14 Art. 46. O Prospecto Preliminar conterá as mesmas informações mencionadas no art. 40, sem revisão ou apreciação pela CVM. §1º Os seguintes dizeres devem constar da capa do Prospecto Preliminar, com destaque: I - “Prospecto Preliminar” e a respectiva data de edição; II - “As informações contidas neste prospecto preliminar estão sob análise da Comissão de Valores Mobiliários, a qual ainda não se manifestou a seu respeito”; III - “O presente prospecto preliminar está sujeito a complementação e correção”; e IV - “O prospecto definitivo será entregue aos investidores durante o período de distribuição”. §2º Na hipótese de estar previsto o recebimento de reservas para subscrição ou aquisição, deverá ainda ser incluído no conteúdo do Prospecto Preliminar o seguinte texto: “É admissível o recebimento de reservas, a partir da data a ser indicada em aviso ao mercado, para subscrição (ou aquisição, conforme o caso), as quais somente serão confirmadas pelo subscritor (ou adquirente) após o início do período de distribuição.” §3º Caso a fixação da quantidade de valores mobiliários, do preço de emissão ou, no caso de valores mobiliários representativos de dívida, da taxa de juros, tenha sido delegada ao Conselho de Administração e este ainda não tenha deliberado sobre o assunto, tal informação deverá constar do Prospecto Preliminar, esclarecendo-se, inclusive, a faixa de preços, preço máximo ou mínimo ou outros critérios estabelecidos para tal fixação. § 4º Aplica-se ao Prospecto Preliminar o disposto no art. 40 desta Instrução. 177 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial artigo 32 da Instrução CVM 400/2003 elenca as hipóteses nas quais a apresentação desse estudo se faz necessária15. Discricionariedade da CVM para o deferimento do registro. “Não cabe à CVM realizar qualquer exame sobre a qualidade dos títulos ofertados, sobre a (...) emissora, ou mesmo sobre a conveniência do momento escolhido para a realização da distribuição pública”16. Na esteira do que dispõe o § 2º, do artigo 82 da LSA, “[a] Comissão de Valores Mobiliários poderá condicionar o registro a modificações no estatuto ou no prospecto e denegá-lo por inviabilidade ou temeridade do empreendimento, ou inidoneidade dos fundadores”. O registro pode ser denegado: (i) pela não apresentação pela companhia das informações consideradas necessárias para a avaliação, pelos investidores, do mérito do empreendimento; (ii) se o estatuto social ou algum ato societário estiver com alguma irregularidade. O registro perante a CVM não constituiu uma chancela estatal ao negócio. Este é um negócio de risco e o Estado não pode assegurar nenhum resultado. Contudo, se aquela autarquia deixar de cumprir o seu mister de forma regular e adequar, cometendo alguma falha no registro, em princípio, ela poderá responder judicialmente por danos causados em razão da falha do serviço. A CVM pode, a qualquer tempo, cancelar ou suspender o registro de oferta pública, desde que o faça de forma fundamentada. A oferta deverá ser irrevogável, mas poderá ser sujeita a condições que correspondam a um interesse legítimo do ofertante, que não afetem o funcionamento normal do mercado e cujo implemento não dependa de atuação direta ou indireta do ofertante ou de pessoas a ele vinculadas. O preço da oferta é único, mas a CVM poderá autorizar, em operações específicas, a possibilidade de preços e condições diversos consoante tipo, espécie, classe e quantidade de valores mobiliários ou de destinatários, fixados em termos objetivos e em função de interesses legítimos do ofertante, admitido ágio ou deságio em função das condições do mercado. O ofertante poderá estabelecer que o preço e, tratando-se de valores mobiliários representativos de dívida, também a taxa de juros, sejam determinados no dia da apuração do 15 Art. 32. O pedido de registro de oferta pública de distribuição de valores mobiliários deve ser instruído com estudo de viabilidade econômico-financeira da emissora quando: I - a oferta tenha por objeto a constituição da emissora; II - a emissora esteja em fase pré-operacional; ou III - os recursos captados na oferta sejam preponderantemente destinados a investimentos em atividades ainda não desenvolvidas pela emissora. 16 EIZIRIK et. al., op. cit., p. 155 178 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial resultado da coleta de intenções de investimento, desde que sejam indicados os critérios objetivos que presidem à sua fixação no Prospecto Preliminar e no aviso eventualmente publicado anteriormente ao Anúncio de Início de Distribuição. Caso se utilize da faculdade acima, o preço e a taxa de juros definitivos deverão ser divulgados ao público nos mesmos termos do Anúncio de Início de Distribuição e do Prospecto, e comunicados à CVM e à bolsa de valores ou mercado de balcão onde são negociados os valores mobiliários da emissora no próprio dia em que forem fixados. Poderá haver contratos de estabilização de preços, os quais deverão ser previamente aprovados pela CVM. Havendo, a juízo da CVM, alteração substancial, posterior e imprevisível nas circunstâncias de fato existentes quando da apresentação do pedido de registro de distribuição, ou que o fundamentem, acarretando aumento relevante dos riscos assumidos pelo ofertante e inerentes à própria oferta, a aventada autarquia federal poderá acolher pleito de modificação ou revogação da oferta. A CVM teria 10 (dez) dias para se manifestar sobre esse pedido de modificação da oferta; presumir-se-á deferido esse pedido, caso não haja manifestação em sentido contrário no referido prazo. Em caso de deferimento da modificação, a CVM poderá, por sua própria iniciativa ou a requerimento do ofertante, prorrogar o prazo da oferta por até 90 (noventa) dias. É sempre permitida a modificação da oferta para melhorá-la em favor dos investidores ou para renúncia a condição da oferta estabelecida pelo ofertante. É possível revogar a oferta. Essa revogação torna ineficazes a oferta e os atos de aceitação anteriores ou posteriores, devendo ser restituídos integralmente aos aceitantes os valores, bens ou direitos dados em contrapartida aos valores mobiliários ofertados, na forma e condições previstas no Prospecto. A modificação deverá ser divulgada imediatamente através de meios ao menos iguais aos utilizados para a divulgação da oferta e as entidades integrantes do consórcio de distribuição deverão se acautelar e se certificar, no momento do recebimento das aceitações da oferta, de que o manifestante está ciente de que a oferta original foi alterada e de que tem conhecimento das novas condições. Nesse caso, os investidores que já tiverem aderido à oferta deverão ser comunicados diretamente a respeito da modificação efetuada, para que confirmem, no prazo de 5 (cinco) dias úteis do recebimento da comunicação, o interesse em manter a declaração de aceitação, presumida a manutenção em caso de silêncio. A aceitação da oferta também poderá ser objeto de revogação. Mas esta somente será ocorrer se tal hipótese estiver expressamente prevista no Prospecto, na forma e condições ali 179 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial definidas, ressalvadas as hipóteses previstas nos parágrafos únicos dos arts. 20 e 27 da instrução CVM 400, as quais são inafastáveis. 3. Underwriting Além da prévia autorização da CVM, a emissão pública de valores mobiliários deverá contar com a intermediação de uma instituição financeira (Lei 6.385/76, art. 19, § 3º e Instrução CVM 400/2003, art. 3º). A emissão sem essa participação de uma instituição financeira é tratada como infração grave, de acordo com o disposto no art. 59 da Instrução CVM 400/2003 e sujeita as penalidades previstas no art. 11 da Lei 6.385/76. As companhias não possuem estrutura para realizarem por conta própria todo o processo de emissão de valores mobiliários. Essa operação implica em riscos. Por isso elas precisam da assessoria de uma instituição financeira. Basicamente, três são os riscos envolvidos: a) risco de espera; b) risco proveniente da fixação do preço de lançamento dos títulos; c) risco de distribuição dos títulos. O risco de espera (waiting risk) decorre das mudanças havidas no cenário econômico durante o lapso temporal transcorrido entre o momento em que a companhia verifica a necessidade de captação de recursos e a efetiva colocação dos valores mobiliários no mercado. Não raro, essas mudanças do cenário econômico tornam inviável a emissão. Nas ofertas públicas primárias, como os papéis não possuem cotação no mercado, é verdadeiramente difícil fixar o preço de emissão dos títulos. Por um lado, a companhia deseja emiti-lo pelo maior preço possível, com vistas a captar a maior quantidade de recursos que puder. Por outro lado, o preço não pode ser tão alto, que afaste os interessados, frustrando a operação. Existe, assim, o risco pela fixação do preço de emissão (pricing risk). Por fim, existe ainda o risco de distribuição dos títulos (marketing risk). As companhias não possuem estrutura para oferecer os títulos ao público alvo. Assim como qualquer outro produto, é necessário uma verdadeira estrutura comercial para que os títulos possam ser distribuídos com sucesso, alcançando o seu público alvo. Desses três riscos, o underwriter assume profissionalmente, via de regra, por meio do recebimento de comissões, os dois últimos, princing risk e marketing risk. Ele funciona como um elo entre as companhias emissoras e o poupador. 180 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 3.1. Etapas do underwriting Em primeiro lugar, realiza-se um estudo de viabilidade econômica da distribuição pública. Se constatada a sua viabilidade, monta-se a operação. Em seguida, promove-se o seu desenvolvimento por meio da convocação e realização da assembleia geral ou de reunião do conselho de administração, da obtenção dos registros perante a CVM, da elaboração do prospecto de venda e de outros documentos publicitários distribuídos ao público. Por fim, colocam-se os títulos no mercado (via de regra, essa etapa é realizada exclusivamente pelo underwritter) 3.2. Modalidades de underwriting O underwriting pode ser firme ou straight ou com garantia de subscrição, ou ainda de melhor esforço ou best efford ou sem garantia de subscrição, ou ainda residual ou stand by. No underwriting straight ou com garantia de subscrição, a instituição financeira assume o compromisso de subscrever a totalidade dos valores mobiliários para posterior revenda ao público. Neste caso, o underwritter assume o risco integral pela colocação, tornando-se titular dos valores mobiliários. Ele não poderá devolvê-los à companhia nem receber compensação para o caso de insucesso da colocação pública. Assim, a instituição pagará à companhia o preço da emissão para depois revender os títulos adquiridos no mercado. No underwriting de melhor esforço ou best efford ou sem garantia de subscrição, o underwriter se compromete apenas a realizar seus melhores esforços para colocar os títulos. Ele não se obriga a adquiri-los na hipótese de insucesso da distribuição pública. Cuida-se, a rigor, de um simples contrato de distribuição de valores mobiliários, sem garantia. Já no underwriting residual ou stand by ou com garantia de sobras, o underwriter assume a obrigação de adquirir as eventuais sobras na distribuição. Ele se inicia como um underwriting de melhor esforço, mas com garantia firme de aquisição das eventuais sobras. Nada impede que sejam combinadas as modalidades de underwriting em uma mesma distribuição. Nesse caso, por exemplo, a companhia por acordar com a instituição financeira, 181 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial que parte dos títulos será distribuído por meio de underwriting firme e outra parte através de underwriting de melhor esforço. 3.2.1. Consórcio de underwriters A operação de underwriting pode ser efetuada por uma única instituição financeira ou por um conjunto delas. Neste último caso, elas atuarão como um consórcio (Instrução CVM 400/2003, art. 3417). A formação de consórcio se justifica quando a colocação pública de valores mobiliários envolver montante expressivo. A duração desse consórcio ficará condicionada à execução da operação de underwriting. As cláusulas relativas ao consórcio deverão ser formalizadas no próprio contrato de underwriting firmado entre as instituições intermediárias e o ofertante dos valores mobiliários que serão publicamente colocados, de acordo com o artigo 34, § 1º da Instrução CVM 400/2003. “Não há, portanto, um instrumento contratual de consórcio celebrado exclusivamente pelas consorciadas, apartado do contrato de underwriting”.18 Não há necessariamente solidariedade entre os underwriters consorciados. O instrumento de constituição do consórcio deverá prever se eles obrigam-se solidariamente. Na falta dessa previsão, ela não haverá. No contrato de distribuição deve ser indicada a instituição financeira que ocupará o papel de líder do consórcio. As obrigações da instituição líder estão prevista no artigo 37 da Instrução CVM 400/2003: Art. 37 - Ao líder da distribuição cabem as seguintes obrigações: I. avaliar, em conjunto com o ofertante, a viabilidade da distribuição, suas condições e o tipo de contrato de distribuição a ser celebrado; II. solicitar, juntamente com o ofertante, o registro de distribuição devidamente instruído, assessorando-o em todas as etapas da distribuição (art. 7º); 17 Art. 34 - As Instituições Intermediárias poderão se organizar sob a forma de consórcio com o fim específico de distribuir os valores mobiliários no mercado e/ou garantir a subscrição da emissão. § 1º As cláusulas relativas ao consórcio deverão ser formalizadas no mesmo instrumento do contrato de distribuição, onde deverá constar a outorga de poderes de representação das Instituições Intermediárias consorciadas ao líder da distribuição e, se for o caso, as condições e os limites de coobrigação de cada instituição participante. § 2º À instituição que não celebrou o instrumento referido no "caput" será permitida a adesão através da celebração, com o líder da distribuição, do respectivo termo, até a data da obtenção do registro. § 3º Salvo disposição em contrário, a obrigação de cada uma das Instituições Intermediárias consorciadas de garantir a distribuição dos valores mobiliários no mercado, nos termos deste artigo, ficará, no mínimo, limitada ao montante do risco assumido no contrato, observadas as disposições do parágrafo único do art. 36. 18 EIZIRIK at. al., 2008, p. 169 182 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial III. formar o consórcio de distribuição, se for o caso; IV. informar à CVM, até a obtenção do registro, os participantes do consórcio, discriminando por tipo, espécie e classe a quantidade de valores mobiliários inicialmente atribuída a cada um; V. comunicar imediatamente à CVM qualquer eventual alteração no contrato de distribuição, ou a sua rescisão; VI. remeter mensalmente à CVM, no prazo de 15 (quinze) dias após o encerramento do mês, a partir da publicação do Anúncio de Início de Distribuição, relatório indicativo do movimento consolidado de distribuição de valores mobiliários, conforme modelo do Anexo VI; VII. participar ativamente, em conjunto com o ofertante, na elaboração do Prospecto (art. 38) e na verificação da consistência, qualidade e suficiência das informações dele constantes, ficando responsável pelas informações prestadas nos termos do art. 56, § 1º; VIII. publicar, quando exigido por esta Instrução, os avisos nela previstos; IX. acompanhar e controlar o plano de distribuição da oferta; X. controlar os boletins de subscrição ou os recibos de aquisição, devendo devolver ao ofertante os boletins ou os recibos não utilizados, se houver, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após o encerramento da distribuição; XI. suspender a distribuição na ocorrência de qualquer fato ou irregularidade, inclusive após a obtenção do registro, que venha a justificar a suspensão ou o cancelamento do registro; XII. sem prejuízo do disposto no inciso XI, comunicar imediatamente a ocorrência do ato ou irregularidade ali mencionados à CVM, que verificará se a ocorrência do fato ou da irregularidade são sanáveis, nos termos do art. 19; e XIII. guardar, por 5 (cinco) anos, à disposição da CVM, toda a documentação relativa ao processo de registro de distribuição pública e de elaboração do Prospecto. 3.3. Consulta sobre a viabilidade da oferta e coleta de intenções de investimento (bookbuilding) Com vistas a reduzir os riscos da oferta pública, notadamente o princing risk e o marketing risk, a Instrução CVM 400/2003 regulamentou o procedimento de consulta sobre a viabilidade da oferta e o de coleta de intenções de investimento ou bookbuilding. A consulta sobre a viabilidade da oferta destina-se apenas a auxiliar o ofertante e o coordenador líder a analisarem a viabilidade da oferta, não se confundindo com o processo denominado de bookbuilding, o qual tem por finalidade servir de base para a fixação do preço da oferta. Destaca-se, a propósito, o que dispõem os artigos 43 e 44 da Instrução CVM 400/2003: 183 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Art. 43 - É permitida a consulta a potenciais investidores pelo ofertante e pela instituição líder da distribuição para apurar a viabilidade ou o interesse de uma eventual oferta pública de distribuição, devendo esta consulta não exceder de 20 investidores e ter critérios razoáveis para o controle da confidencialidade e do sigilo, caso já tenha havido a contratação prévia de instituição intermediária pelo ofertante. § 1º A consulta a potenciais investidores não poderá vincular as partes, sob pena de caracterizar distribuição irregular de valores mobiliários, sendo vedada a realização ou aceitação de ofertas, bem como o pagamento ou o recebimento de quaisquer valores, bens ou direitos de parte a parte. § 2º Durante a consulta a potenciais investidores, o ofertante e a instituição líder da distribuição deverão se acautelar com seus interlocutores, de que a intenção de realizar distribuição pública de valores mobiliários seja mantida em sigilo até a sua regular e ampla divulgação ao mercado, nos termos da Instrução CVM nº 358, de 3 de janeiro de 2002. § 3º O ofertante e a instituição líder da distribuição deverão manter lista detalhada com informações sobre as pessoas consultadas, a data e hora em que foram consultadas, bem como a sua resposta quanto à consulta. § 4º Caso seja efetivamente protocolado pedido de registro à CVM, o ofertante deverá apresentar, juntamente com os documentos listados no Anexo II, a lista mencionada no § 3º. Art. 44 - É permitida a coleta de intenções de investimento, com ou sem o recebimento de reservas, a partir da divulgação de Prospecto Preliminar e do protocolo do pedido de registro de distribuição na CVM. Parágrafo único. A intenção de realizar coleta de intenções de investimento deverá ser comunicada à CVM juntamente com o pedido de registro de distribuição realizado nos termos do art. 7º. Portanto, no primeiro caso – na coleta de intenções de investimento – o ofertante e o underwriter buscam descobrir se os títulos que seriam alvo de oferta pública teriam aceitação pelo mercado. Eles, então, consultam potenciais investidores para saber se eles teriam interesse em adquirir aquele título. Somente 20 (vinte) potenciais investidores poderão ser consultados. Além disso, nem a oferta apresentada, nem a opinião informada acerca dessa oferta vincularão as partes, sob pena de vir a ser caracterizada distribuição irregular de valores mobiliários. Como visto, essa consulta é uma simples pesquisa e nada mais. Pelo bookbuilding, procura-se fixar o preço de lançamento do valor mobiliário. Já foi visto que existe o risco de que o preço de lançamento do valor mobiliário ou seja alto demais, afastando os potenciais interessados, ou baixo de mais, o que não interessaria ao emissor. Para reduzir esse risco, a CVM permite que consultem-se investidores para saber não só se eles têm interesse naquela oferta, como também quanto eles aceitariam pagar por aquele título. Como durante esse processo, o underwriter poderá receber propostas de compra, e como o seu resultado poderá ser utilizado como critério para a fixação do preço de emissão, é 184 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial absolutamente indispensável que ele seja muito transparente. Isto porque como não existem parâmetros objetivos para a fixação do preço de emissão, esse processo está sujeito a manipulações. Por isso mesmo que o preço encontrado no processo poderá ser contestado. Além disso, o underwriter poderá ser responsabilizado por eventual manipulação ou falha na condução e conclusão desse processo de consulta. Conclusão É absolutamente necessário, para viabilizar a atividade econômica, o capital. O apelo à poupança dos agentes superavitários é, sobretudo para grandes empreitadas, o principal instrumento para a formação do capital necessário à empresa. Além de ser um importante instrumento de financiamento para a atividade negocial, o mercado de capitais também permite a circulação de riqueza e a participação das famílias no processo de produção. Em outras palavras, o público pode ter acesso à formação do capital que redundará em um grande empreendimento empresarial, sem que, para isso, o Estado tenha de intervir diretamente. Como a atividade econômica possui riscos, a oferta de valores mobiliários, cujos subscritores assumirão ao menos parte desse risco, deve ser cercada de alguns cuidados. Daí a existência de normas que disciplinam esse processo de oferta pública de valores mobiliários. O prospecto é o principal documento dessa oferta pública. É por meio dele que a companhia se apresenta ao mercado e indica as características não só de sua atividade, como dos valores mobiliários oferecidos. Evidentemente, esse prospecto deve ser elaborado com bastante atenção, observados todos os requisitos legais. Além da elaboração cuidadosa do prospecto, a companhia ofertante deve ser auxiliada por uma instituição financeira, o underwriter. Essa instituição financeira além de auxiliar a sociedade que oferta valores mobiliários ao público, também poderá assumir certos riscos inerentes a essa operação. Daí a existência de modalidades de underwriting. Em razão do grande risco envolvido, poderá haver mais de um underwriter. Nesse caso, eles se organizarão em consórcio. O contrato de underwriting tratará das obrigações de cada consorciado, podendo, inclusive, prever solidariedade entre eles. 185 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial A CVM disciplinou processos de consulta sobre a viabilidade da oferta e de coleta de intenções de investimento (bookbuilding). O primeiro visa a prevenir o ofertante sobre o risco de o valor mobiliário não ter aceitação pelo mercado. Consultam-se alguns potenciais investidores – no máximo 20 (vinte) investidores poderão ser consultados – para saber se eles subscreveriam o valor mobiliário a ser ofertado. Já o segundo, tem por finalidade descobrir o preço que o mercado pagaria pelo valor mobiliários, prevenindo o ofertante do pricing risk. A par dessas considerações, o processo de oferta pública de valores mobiliários é um grande instrumento de crescimento da atividade econômica e também, é possível dizer, de melhoria das condições sociais, notadamente porque permite, sem nenhum outro requisito social, a não ser a existência de recursos poupados, a participação de todas as famílias na formação do capital de grandes empreendimentos empresariais. REFERÊNCIAS BORBA, José Edwaldo Tavares. Das debêntures, Rio de Janeiro: Renovar, 2005. _______. Direito societário, Rio de Janeiro: Renovar, 2004. BRASIL. Instrução CVM 202, 1993. _______. Instrução CVM 265, 1997. _______. Instrução CVM 400, 2003. _______. Instrução CVM 404, 2004. _______. Instrução CVM 471, 2008. _______. Lei 6.385, de 1976. _______. Lei 6.404, de 1976. CARVALHOSA, Modesto; EIZIRIK, Nelson. A Nova Lei das S/A, São Paulo: Saraiva, 2002. COMPARATO, Fábio Konder, O Poder de Controle na Sociedade Anônima, 3ª ed. rev. e atual., Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1983. EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada, v. I. São Paulo: Quartier Latin, 2011. EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas. Mercado de Capitais – regime jurídico, Rio de Janeiro: Renovar, 2008. NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico, 5ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 186 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial PAPINI, Roberto. Sociedade Anônima e Mercado de Valores Mobiliário, 4ª edição, São Paulo, Forense Jurídica. QUEIROZ, José Eduardo Carneiro. Valor mobiliário, oferta pública e oferta privada: conceitos para o desenvolvimento do mercado de capitais in Direito Empresarial: mercado de capitais, v. 8, Arnoldo Wald (organizador), São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. SANTANA, Maria Helena dos Santos Fernandes; GUIMARÃES, Juliana Paiva. Marcado de valores mobiliários: evolução recente e tendências in Direito Empresarial: mercado de capitais, v. 8, Arnoldo Wald (organizador), São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. 187 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial O ADMINISTRADOR, A SOCIEDADE ANÔNIMA E A SUA RESPONSABILIDADE SOCIAL E COLETIVA L’ADMINISTRATEUR, LA SOCIÉTÉ ANONYME ET SA RESPONSABILITÉ SOCIALE ET COLLECTIVE Gabriel Russi Vianna1 Sandro Mansur Gibran2 RESUMO As sociedades anônimas, frequentemente constituídas como de grande porte, são de inegável importância econômica não apenas aos por elas diretamente beneficiados como os seus acionistas, empregados, consumidores etc. mas também para a comunidade onde elas se inserem. Depreende-se, portanto, que as sociedades anônimas são também responsáveis por uma coletividade, ou seja; são responsáveis pela sociedade civil na qual e da qual elas também são parte. As diretrizes das sociedades anônimas estão centradas na figura de seu administrador, cuja responsabilidade é o objeto do presente estudo. Para tanto, é imprescindível entender um pouco mais sobre a complexa estrutura deste tipo societário e os tantos interesses na sociedade anônima agregados como metas a serem cumpridas por seu gestor. Ao mesmo tempo, a completa análise dos deveres demonstra a responsabilidade institucional daquele que assume este cargo. Também por este motivo e por sua hegemonia é mister a imposição de limites ao administrador na medida em que as suas atribuições e atitudes frente à companhia podem ou não trazer bons resultados à coletividade. A partir destas premissas, analisar-se-ão casos nos quais a responsabilidade pelo prejuízo poderá ser atribuída também ao administrador, extrapolando a figura da sociedade anônima empregadora. PALAVRAS-CHAVE: sociedade anônima, administradores, responsabilidade social, coletividade ABSTRACT 1 2 Bacharel em Direito – 2007 – 2012 – UNICURITIBA; Advogado inscrito na OAB/PR sob n.º 63.463; Mestrando em Direito Internacional Privado – 2012 – 2014 – Université Panthéon-Assas (Paris II) – Paris, França. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1996); Especialista em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; mestre em Direito Social e Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Doutor em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Professor do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba; Professor Titular de Direito Empresarial e de Direito do Consumidor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba; Professor de Direito Empresarial do Centro de Estudos Jurídicos do Paraná; professor de Direito Empresarial da Escola da Magistratura Federal ESMAFE" e Coordenador da Pós-Graduação de Direito Empresarial do Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba. http://lattes.cnpq.br/3242304285536069 188 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Les sociétés anonymes aussi connus comme entreprises de grand puissance, sont d'une indéniable importance économique, et non seulement pour leurs actionnaires, salariés et consommateurs, mais aussi pour l'environnement où elles se trouvent. Il faut aussi marquer que les sociétés anonymes sont responsables pour une collectivité, c'est-à-dire, la société civil. Les lignes directrices de la société anonyme sont centrée sur l'administrateur, dont la responsabilité est objet du présent étude. Alors, il faut bien comprendre la structure de la société anonyme et aussi les tâches de son administrateur. Au même temps l'analyse complète nous montre la responsabilité institutionnaliste de celui qui prend cette position. C'est également pour cette raison et pour sa hégémonie, qu'il faut imposer des limites au administrateur, parce que ses tâches et activités peuvent ou non résulter positivement à la collectivité. À partir de ces prémisses, l'étude analysera les cas où l'administrateur peut être responsabilisé pour les préjudices causés à la société, c'est-à-dire, une responsabilisation personnelle. MOTS-CLÉS: société anonyme, administrateurs, responsabilité social, collectivité 1. INTRODUÇÃO A capitalização das sociedades anônimas como melhor alternativa de investimento é uma realidade crescente. No Brasil, a quinta economia mundial, país em progressivo desenvolvimento e de enriquecimento de sua população, oportuniza-se que cada vez mais brasileiros se aventurem na bolsa de valores, ou seja; nas sociedades de capital aberto, objetivando rendimentos maiores do que aqueles encontrados em fundos econômicos mais conservadores que, por apresentarem menor risco, naturalmente, acabam representando menor lucratividade. As sociedades anônimas são reguladas pela Lei nº 6.404 de 15 de dezembro de 1976, o regramento mais completo sobre o assunto presente no ordenamento jurídico brasileiro. Por conta de sua natureza jurídica e, consequentemente, pelos impactos que pode causar aos particulares investidores, ao mercado e à coletividade, a análise da administração, atrelada aos aspectos principais dessas sociedades, adquire fundamental importância. Tal gênero de sociedade é composto por uma vasta estrutura, dotada de diversos órgãos, dentro dos quais, especificamente na diretoria e no conselho de administração, encontram-se os seus administradores. Nem todos os diretores e conselheiros serão administradores, porém, apenas membros destes órgãos podem ocupar tal cargo. São os administradores que guiam e decidem os rumos da companhia. São eles os 189 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial responsáveis pela condução do negócio e pelas decisões comerciais que visam atingir os objetivos empresariais, aumentando então o seu capital e adquirindo espaço cada vez maior no mercado, na sociedade onde ela se insere. Nota-se a natureza basilar do administrador à sociedade, seu cargo estratégico gera grande número de responsabilidades que definirão os caminhos seguidos pela empresa. Suas estratégias e políticas de mercado estão diretamente relacionadas ao futuro da companhia. Caso o administrador incorra em erro na administração empresarial, é bastante provável que a companhia venha a sofrer prejuízos de toda sorte e, por consequência, o universo de acionistas a ela atrelados poderá vislumbrar perdas significativas. É nesse ponto da relação entre acionistas e empresa que se faz os seguintes questionamentos: quem arcará com o prejuízo dos acionistas ou de terceiros? Seria a própria companhia ou poderá, em algumas hipóteses, o administrador ser responsabilizado pessoalmente pelos seus atos? Ambas as hipóteses podem ocorrer. Nem sempre o administrador será passível de responsabilização pelos seus atos – para que o seja, deverá restar provado que agiu com máfé, tendo descumprido os deveres incumbidos. Em outros casos, não poderá ser o responsável pelos danos causados. Existe uma linha bastante tênue e aberta a discussões sobre o tema da responsabilização do administrador de sociedade anônima: ao mesmo tempo em que não pode um administrador que tenha cometido maus atos de gestão sair ileso, igualmente, não poderá ser responsabilizado o aquele que tenha agido de acordo com as suas atribuições e deveres, objetivando, a partir de uma decisão negocial, o crescimento da companhia. Este último exemplo de administrador probo e íntegro necessita de uma concreta proteção legal para poder exercer as suas funções, garantindo a ele a certeza de que se agir conforme a lei, nos moldes do estatuto da companhia e dos ditames da boa-fé, não será alvo de uma eventual ação de responsabilidade. Caso contrário, nenhuma pessoa almejaria ou deveria ser incumbida ao cargo de administrador, tendo em vista seu risco iminente. Nesse sentido, a Lei nº 6.404/76 protege o administrador responsável e diligente, ampliando sua segurança na tomada de decisões e na projeção e definição de novos rumos mais benéficos à atividade empresarial por ele gerida. A ampla normatização empresarial tem ferramentas suficientes para garantir o cumprimento de deveres e a aplicação de direitos das pessoas, físicas ou jurídicas, relacionadas a uma sociedade anônima. Deste modo, os administradores dispõem de meios efetivos de proteção contra eventuais prejuízos causados à companhia ou à coletividade, caso estejam agindo segundo as diretrizes a si orientadas por seus superiores, os acionistas 190 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial controladores. 2. RESPONSABILIZAÇÃO DOS ADMINISTRADORES Pode-se verificar por meio do art. 158 da Lei das Sociedades Anônimas (LSA), que existem duas possibilidades de responsabilização civil dos administradores. A primeira delas diz respeito aos eventuais prejuízos que possam ser causados por culpa ou dolo do administrador, mesmo na hipótese de não ter havido a extrapolação de suas atribuições e poderes, cabendo à empresa empregadora comprovar a atitude culposa de seu gestor. A segunda delas se configura na violação de lei ou mesmo do estatuto da companhia. Em resumo, “em relação à primeira, é unânime a doutrina ao afirmar que a previsão legal é, ao demandante cabe a prova do procedimento culposo do demandado. Quanto à segunda, no entanto, predomina largamente o entendimento de que cuida a hipótese legal de responsabilidade subjetiva com presunção de culpa, havendo também quem a considere objetiva.”(COELHO, 2007, p.253). Todavia, a ressalva de Marcelo M. Bertoldi é válida ao mencionar que “o administrador, incumbido de seu cargo, tem o dever e a prerrogativa de agir em nome da companhia, portanto, todos os atos que venham a ser praticados em virtude desta função seriam de responsabilidade exclusiva da própria companhia.”(BERTOLDI, 2003, p. 371). Esta ideia é concretizada no mencionado corpo normativo, em seu art. 158, que prevê que o administrador não poderá ser pessoalmente responsável pelas obrigações contraídas em nome da companhia e em virtude de ato regular de gestão. O termo “ato regular de gestão” adquire extrema importância na definição da responsabilidade. O termo, por si, evidencia sua subjetividade. Faz-se necessário, portanto, ampla avaliação do caso concreto para que se possa concluir acerca da necessidade de responsabilização subjetiva. Assim, propiciando mais abrangente análise da responsabilização, é preciso trazer à tona os institutos da negligência, imprudência e imperícia. Ainda, é preciso vislumbrar as reais consequências e dimensões do ato praticado, e se é dotado de manifesta vontade em causar prejuízo à companhia. Porém, em algumas situações, mesmo que o administrador respeite a lei, e o estatuto, poderá ele ficar obrigado à reparação de danos, caso tenha agido com alguma das formas dolosas. Segundo importante doutrina, a responsabilidade do administrador em três tipos: administrativa, civil e penal. A responsabilidade administrativa, talvez a mais simples delas, 191 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial decorre apenas da má gestão do cargo. Tratando-se tão somente de um problema administrativo, não há qualquer formalidade para que ocorra a destituição de um administrador ou o retorno a seu cargo de origem. Sequer é necessário que tenha ocorrido uma falta por parte do administrador. Lembra o autor que é possível que haja fiscalização, mesmo nesta seara administrativa, por parte de órgãos como a Comissão de Valores Mobiliários – CVM, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, ou até mesmo por parte do Banco Central do Brasil. No caso da CVM, esta é competente para aplicação de advertências, multas, suspensão do exercício do cargo de administrador ou inabilitação para seu exercício. O Banco do Brasil tem legitimidade para propor as mesmas medidas que a CVM quando as infrações estiverem interferindo nos interesses da Instituição Financeira. Quanto à responsabilidade civil, o autor acrescenta, ao comentar o § 6º do art. 159 da LSA, que está prevista a exclusão da responsabilidade do administrador caso tenha ele agido de boa-fé, visando os interesses e objeto social da companhia. Lembra que, apesar de ser papel do juiz estatal a apreciação da ação de responsabilidade proposta em face do administrador, poderá também a assembleia geral apreciar a matéria. Por fim, analisa a possível responsabilização criminal do administrador, que ocorrerá apenas nos casos em que houver um tipo penal diretamente relacionado àquela conduta. No capítulo dos crimes contra o patrimônio, existem diversas previsões legais inseridas no art. 177 do Código Penal, típicas de administradores de sociedades anônimas. A título exemplificativo traz-se algumas ações que caracterizam crime, como, afirmação falsa ou omissão fraudulenta de fato relevante em qualquer documento que se destine ao público; apresentação de falsa cotação de valores mobiliários; realização de empréstimo em favor da sociedade sem a devida consulta aos órgãos pertinentes; negociação das próprias ações da companhia, quando não abarcadas pelas previsões legais; distribuição de lucros sem levantamento do balanço, ou ainda se realizado mediante balanço falso; aprovação irregular de contas. “Existe, também, a possibilidade do cometimento de crimes contra a ordem tributária, contra o sistema financeiro nacional e ainda os chamados crimes falimentares previstos na Lei de Falências – Lei n.º 11.101/05.” (BORBA, 2008, p.418-423) que, porém, não são objetos do presente estudo. Ainda quanto à responsabilização criminal, “por muitas vezes, o dano causado a terceiros pode ser tamanho, que o patrimônio particular do administrador violador, não seria suficiente para reparar todos os danos. Exatamente em um caso como esse, pode-se verificar a importância da responsabilização criminal que, com sua função repressiva e preventiva, irá de 192 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial certa forma, coagir aquele que provocou o dano ao pagamento.”(CARVALHOSA, 2009, p. 353). 2.1. NATUREZA DA RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES As responsabilidades elencadas no art. 158 da LSA “são 'interdefinívieis': não há conduta que se enquadre num deles que não se possa enquadrar também no outro. Não é correto, portanto, considerar que cada dispositivo expressa um sistema diferente de responsabilidade civil dos administradores de sociedade anônima.”(COELHO, 2007, p. 261). Como exemplo, o autor apresenta a hipótese em que o administrador deixa de aplicar a disponibilidade financeira da sociedade, agindo, portanto, com negligência, ou até mesmo imperícia. A omissão aqui praticada é de natureza culposa, mas ao mesmo tempo, este comportamento caracteriza a violação aos deveres legais de lealdade e diligência. A conclusão é de que: quando o administrador age com culpa, pode estar ao mesmo tempo violando expressa disposição legal e, paralelamente o não cumprimento do estatuto ou da lei, é também configurada uma conduta culposa ou dolosa. Com efeito, é exatamente neste ponto que o autor discorda de grande parte da doutrina nacional. Para Coelho, não pode prevalecer o entendimento de que somente o inciso I do art. 158 consagra a modalidade subjetiva de responsabilização, enquanto o inciso II do mesmo artigo consagraria apenas a responsabilidade objetiva.3 Com base neste entendimento, a análise para verificar se o administrador deve ou não ser responsabilizado seria suficiente na medida em que se descobre ou verifica que o dano foi causado por algum ato em descompasso legal. Com razão, a meritória doutrina afirma que, ao descumprir uma lei, caberia ao administrador o dever de indenizar. Sintetizando o exposto pelo autor, “as hipóteses de responsabilidade civil dos administradores de sociedade anônima – não obstante distinguidas pelo art. 158 da LSA – são redutíveis, em síntese, a uma apenas: a decorrente de descumprimento de dever legal.” (COELHO, 2007, p. 261). No mesmo sentido, Modesto Carvalhosa critica o texto de lei. Para o autor, o legislador teria insistido em dois tipos distintos de natureza por desconhecer a evolução do instituto e ainda por ser desatento e repetitivo. Em sua opinião, “para as duas condutas não há distinção. Para ambos os casos aplica-se a moderna teoria da responsabilidade presumida, em que se conciliam o elemento moral subjetivo – a imputabilidade moral – com a teoria objetiva da conduta.” (CARVALHOSA, 2009, p.362). 3 COELHO, 2007, p. 260. 193 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 2.2. SOLIDARIEDADE DOS ADMINISTRADORES A redação do § 2º do art. 158 da Lei nº 6.404/76 prevê que os administradores respondem solidariamente por prejuízos que decorram do não cumprimento dos deveres legais. O fato de o estatuto da companhia não atribuir todas as responsabilidades a todos os administradores não exime um administrador de responder solidariamente por algum dever não cumprido que, contudo, não seja expressamente seu. Entretanto, deve-se ter cautela nas hipóteses em que há manifesta prática de ato ilícito, em tais casos, não pode um administrador responder solidariamente pelo ato praticado por um de seus colegas. Se esse fato ocorresse, criar-se-ia demasiada injustiça, gerando insegurança jurídica a ponto de que ser incumbido a um cargo de administrador seria resumido à assunção de riscos próprios e alheios, não se podendo vislumbrar qualquer vantagem efetiva na ocupação desta função. Por outro lado, caso o administrador tenha conhecimento dos fatos de terceiros, contrários aos deveres legais, e não tome nenhuma medida para impedir o ilícito, responderá solidariamente. Da mesma forma responderá caso seja conivente com os atos praticados por outro administrador, ou então ser negligente ao descobrir os fatos já praticados ou na iminência de acontecer. Faz-se possível que, mesmo que o administrador venha a ter conhecimento de fatos desvantajosos ou contrários à empresa, para que possa se eximir de qualquer responsabilidade, registre uma objeção em reunião do órgão de administração competente, levando o fato a conhecimento do conselho fiscal da assembleia geral, conforme previsto no § 1º do artigo anteriormente mencionado. Por fim, aquele, mesmo que estranho à administração da sociedade, que venha em conjunto com um administrador, beneficiar-se, seja para si ou para outrem, praticando ato que viole a lei ou o estatuto, responderá solidariamente ao administrador. Esta situação está prevista no §5º do art. 158 da LSA. Pode-se, portanto, depreender do exposto que a Lei oferece ferramentas efetivas para a autoproteção dos administradores. Além disso, o legislador infraconstitucional atentou-se ao risco inerente a esse ofício e criou ampla normatização para além da autoproteção desses funcionários, conferindo a eles maior segurança na tomada de decisões e na assunção do cargo e das funções. 194 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 2.3. APURAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES Os efeitos decorrentes do descumprimento ou violação dos deveres de um administrador podem refletir de diversas maneiras: tanto podem ser afetados aqueles que investem o seu patrimônio em valores mobiliários, quanto parceiros comerciais que dependam da atividade da companhia. Além disso, as consequências da má administração irão, por óbvio, afetar a própria companhia e a coletividade na qual se insere a companhia. A participação em sociedade anônima tem como objetivo primordial o lucro. Essa modalidade de investimento está diretamente relacionada à injeção de capital em determinada sociedade anônima, sendo que, na maior parte das vezes a participação dos investidores não ultrapassa os limites da aplicação de capital. Naturalmente existe um risco inerente a estes investimentos. Contudo, se porventura houver diminuição de patrimônio como resultado de infrações praticadas pelos administradores, o acionista poderá requerer ressarcimento. Em sendo constatado prejuízo para a companhia, devem-se apurar os danos ocorridos por meio da assembleia geral. Este é o órgão dotado de competência para deliberar sobre o assunto pois nele será discutida a possibilidade da propositura de ação de responsabilidade perante o administrador. 3. AÇÃO DE RESPONSABILIDADE A ação de responsabilidade é o meio legal a partir do qual poder-se-á atribuir ao comportamento do administrador, sua parcela de prejuízo causada à empresa. Tal instituto está previsto na LSA, em seu art. 159, que dispõe: “Compete à companhia mediante prévia deliberação da assembleia geral, a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio”. Esta é a regra geral da ação que traz as suas peculiaridades em seus sete parágrafos, a seguir analisados. Primeiramente cabe lembrar a lição de Modesto Carvalhosa sobre a forma pela qual o sistema jurídico brasileiro trata a matéria. Pelo ordenamento jurídico pátrio, mostra-se possível a multiplicidade de pretensões de natureza individual e social, envolvendo, para tanto, os acionistas; a própria companhia, bem como terceiros. “Ainda, o ordenamento permite a cumulação de pedidos de responsabilidade com nulidade, conforme previsão do art. 292 do Código de Processo Civil. Esses pedidos são independentes.”(CARVALHOSA, 2009, p. 380). Para o autor, ter-se-ia, então, duas espécies de ações: a primeira delas seria aquela em que a companhia tem prioridade e, somente caso 195 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial não exerça esta prioridade, ela poderá ser substituída por qualquer acionista. Tal ação é chamada de “ação social”, e neste caso, é permitida a substituição pelos acionistas tendo em vista que é de interesse deles a manutenção da sociedade. É o patrimônio dos acionistas que ali está incluso e pode, eventualmente, sofrer toda sorte de diminuição em virtude de um desvio de função do administrador. Já a segunda espécie de ação teria características de ação individual, passível de interposição pelos acionistas. Esta seria o que Miranda Valverde chama de ação para reparação dos prejuízos diretos.4 Alfredo de Assis Gonçalves Neto, a partir dos estudos de Joseph Hamel e Gaston Lagarde, divide a ação de responsabilidade em quatro espécies: a) a ação social, promovida pela companhia por danos a ela causados (actio uti universi); b) a ação social, promovida pelo acionista em proveito da companhia (actio uti singuli); c) a ação individual do acionista, exercida por este na busca da reparação de um prejuízo pessoal; d) a ação individual de terceiro, também por um prejuízo pessoal.5 É claro que a ação social promovida pelo acionista em favor da companhia, citada no item b acima, é a mesma ação em que o acionista vem a substituir a companhia quando ela é inerte. Conforme a classificação de Modesto Carvalhosa considera-se a ação proposta pelo substituto como a mesma que seria proposta pela companhia. De fato, o objeto da ação e as prerrogativas são as mesmas, alterando-se apenas a parte autora. Em sentido oposto, a doutrina francesa trazida por Gonçalves Neto, preferiu classificá-la como uma espécie diferente de ação. A inclusão da ação proposta individualmente por um terceiro prejudicado, disposto no item d acima, é a previsão expressa da segunda parte do § 7º do art. 159. A propositura da ação de responsabilidade em face de um ou mais administradores de uma determinada companhia tem como objetivo restabelecer o seu bom funcionamento, voltando então a buscar os fins para os quais ela foi constituída. Uma vez recobrada a normalidade das atividades, a “saúde da companhia” deve ser recuperada e, por consequência, seus acionistas e até mesmo os terceiros que dela dependam, poderão reaver os danos sofridos. 4 5 MIRANDA VALVERDE, 1953, apud CARVALHOSA, 2009, p. 380. JOSEPH HAMEL e GASTON LAGARDE, 1954, apud GONÇALVES NETO, 2005, p. 214. 196 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Para que a ação de responsabilidade seja proposta, conforme a regra do caput do citado artigo, deve ter havido prévia deliberação da assembleia geral nesse sentido. O § 1º do artigo vem para especificar qual o tipo de assembleia em que esta decisão pode ser tomada. Na realidade tanto a assembleia geral ordinária como a extraordinária, podem apreciar tal matéria, contudo, para que a apreciação ocorra em assembleia geral extraordinária, ela deve ter sido prevista na ordem do dia ou então ter sido consequência direta de algum assunto incluído na assembleia. Uma vez deliberado o assunto, caso haja a confirmação da necessidade de propositura da ação de responsabilidade, o administrador ou administradores que figurarão no polo passivo da demanda ficarão impedidos do exercício de seus cargos, devendo então ocorrer as suas substituições imediatas por outros administradores, ainda na mesma assembleia. Como consequência da destituição do administrador, logicamente, seu poder de mando, atribuições e prerrogativas inerentes ao cargo serão tolhidos. Ao mesmo passo, faz-se necessária a nomeação de outro administrador para ocupar o cargo daquele ou daqueles em face de quem será proposta a ação. Como se trata de um cargo estratégico, a sua vacância pode representar ainda mais perdas para a companhia, e por este motivo, a substituição deve ocorrer de forma imediata. A destituição se faz necessária pelo fato de que não há mais possibilidade de confiança naquele administrador, uma vez que o desvio das funções as quais lhe foram incumbidas é configurada como falta grave. Os acionistas, por sua vez, não desejam que o administrador, tendo praticado atitudes contrárias aos interesses da empresa, ocupe um cargo estratégico na companhia em que ele investe o seu patrimônio, pois, naturalmente os riscos do investimento seriam insustentáveis. Para se ilustrar a previsão legal mencionada, traz-se a exame um julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. A empresa BRASIL TELECOM S.A., em assembleia geral extraordinária realizada em 12.04.2001, decidiu pela propositura de ação de responsabilidade em face de dois administradores. Em decorrência da decisão da assembleia, os administradores propuseram uma Ação Cautelar com pedido liminar, para que fossem suspensos os efeitos das decisões tomadas na assembleia realizada em 12.04.2011. Quando o juiz da vara de origem apreciou a ação, decidiu pela não concessão do pedido liminar. Todavia, através de um pedido de reconsideração, os administradores obtiveram sucesso no pedido liminar. Então, contra esta decisão, insurgiu-se a empresa, propondo Agravo de Instrumento. Quanto ao mérito, o principal argumento utilizado pela BRASIL TELECOM S.A. foi o de que, com o deferimento do pedido liminar, foram mantidos nos 197 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial cargos de administradores aqueles que foram reputados como inidôneos pela assembleia soberana de seus acionistas, violando, portanto, o § 2º do art. 159 da LSA. Ainda, mesmo que não fosse proposta a ação de responsabilidade, que culmina na destituição, os administradores poderiam ser destituídos com base no art. 122, inciso II, vez que não possuem direito próprio a manutenção no cargo. Ou seja, se independentemente da ação, eles poderiam ser destituídos do cargo. Não se justifica, portanto, o deferimento da liminar. Para finalizar, a empresa BRASIL TELECOM S.A. ressaltou o fato de que a decisão de primeiro grau suspendeu os efeitos da assembleia geral extraordinária, sem que fosse indicada qualquer irregularidade deste ato societário. Com base nestes e outros argumentos, o Desembargador Edson Alfredo Smaniotto houve por bem afastar os efeitos da liminar concedida. “Não há previsão de provimento acautelatório contra disposição literal de lei. O periculum in mora deve, obrigatoriamente, decorrer de uma quaestio facti, jamais do comando normativo que goza de eficácia jurídica. No mais, tudo é questão de mérito das decisões assembleares e do conselho administrativo, que envolve o conflito de interesse pars inter pares. Vícios administrativos decorrentes da manifestação de vontade dos conselheiros, diante da indesejável vinculação de alguns aos interesses menores dos acionistas, é tema a ser dirimido mais tarde, se possível, na ação que permita cognição mais ampliada, onde o próprio direito e não o resguardo processual, se verossímil, eventualmente poderá ser antecipado. Por ora, concedo o efeito suspensivo ao agravo de instrumento, reconhecendo na pretensão recursal ora deduzida a razoabilidade do pedido, diante da literalidade da Lei 6.404/76, e da soberania das decisões assembleares, notadamente quanto ao mérito das deliberações, além do perigo da demora na mantença da liminar concedida pelo douto Juízo a quo, na medida em que as deliberações da Assembleia ficariam sujeitas, ad nutum, ao controle do Poder Judiciário, acarretando sensível prejuízo às estratégias a serem adotadas diuturnamente para a prosperidade da Companhia. Casso a r. reconsideração agravada de fls. 536, afastando, até a manifestação Turmária, os efeitos da douta liminar concedida na Ação Cautelar. Feita a transcrição, insta assinalar que, após profunda reflexão acerca da questão, mantenho-me firme no posicionamento antes externado, devendo a r. decisão agravada ser definitivamente cassada, em homenagem à literalidade do dispositivo inserto no artigo 159 da Lei das Sociedades Anônimas, que expressamente atribui à Assembleia-Geral a competência para deliberar acerca da propositura de ação de responsabilidade civil contra o administrador, 198 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial pelos prejuízos causados ao seu patrimônio.”6 Esse julgado afirma sua importância no sentido de ilustrar e corroborar os conceitos abrangidos pelo presente estudo. Pela análise de caso é possível mostrar a efetividade legal em face dos litígios empresariais internos. Do caso concreto, percebe-se que nem sempre a destituição e a consequente substituição do administrador que desvia alguma de suas funções ocorre de forma pacífica. No presente caso houve recusa dos administradores em face de quem foi proposta a ação, fato esse que os levou à busca da tutela judicial para que se reconhecesse a ineficácia da deliberação assemblear. Contudo, o Desembargador Relator decidiu reconhecer a literalidade da lei e cassar a decisão de primeiro grau, mencionando a violação direta ao disposto no § 2º do art. 159. Vale lembrar que a destituição do administrador é definitiva, não sendo possível a retomada de seu cargo. No direito brasileiro, mesmo que a ação de responsabilidade seja julgada improcedente, não pode o administrador voltar a ocupar o cargo. Retomando a análise dos parágrafos do art. 159 da LSA, é justamente no seu § 3º que se encontra a previsão da substituição da companhia por qualquer acionista para a propositura da ação de responsabilidade contra o administrador. A regra diz que se no prazo de três meses após a deliberação da assembleia, a companhia não tomar as providências para que a ação seja proposta, poderá então qualquer acionista formulá-la visando a garantia de seus direitos. Pouco importa a porcentagem do capital social que detêm este acionista. Como interessado na responsabilização do administrador, a Lei permitiu que esta substituição ocorresse caso a companhia se mostrasse inerte. Importante ressaltar que esta substituição não transfere a titularidade do direito ao acionista, porém, tão somente a legitimidade ativa para a propositura. Isso implica em dizer que a companhia continuará sendo a beneficiária primária do resultado da demanda, pois caso haja ganhos por parte da companhia, ganham também os seus acionistas. Todos os gastos havidos pelo acionista para a defesa dos interesses da companhia serão ressarcidos por esta, até o limite do valor da condenação recebida. Quanto à substituição, lembra ainda Carvalhosa que “em ação social ut universi, o acionista, ao ingressar em juízo, declara não ser titular do direito material da ação, indicando como titular da pretensão a companhia.”(CARVALHOSA, 1992, p. 382). No § 4º está prevista outra forma de propositura da ação de responsabilidade em face do administrador. É o caso em que a assembleia delibera negativamente acerca do pedido de 6 Agravo de Instrumento n.º 2001002002291-5, rel. Des. Edson Alfredo Smaniotto, 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, julgado em 25.02.2002. 199 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial ação. Nesse caso, apesar de a assembleia ser o órgão deliberativo de grau máximo, ainda podem formulá-la, em nome da companhia, os acionistas que representem ao menos 5% do capital social. Caso um acionista individualmente não detenha esta porcentagem mínima de ações da companhia, poderá ele em conjunto com outros acionistas compor um litisconsórcio para que os 5% necessários sejam atingidos. Esta é a chamada ação social ut singuli. Existe ainda outra hipótese em que poderá um acionista ou um conjunto que represente ao menos 5% do capital formular o pedido de ação. “Será legitimado, ainda, o acionista individualmente a propor a ação de responsabilidade civil, no caso de recusarem os administradores a fazer constar da ordem do dia a deliberação sobre a matéria, ou se, embora sendo consequência direta do assunto nela incluído, negar-se a mesa a reconhecê-lo, trancando a discussão e deliberação a respeito.” 7 O § 5º do artigo regula, então, o direito do acionista de ser ressarcido dos gastos decorrentes da defesa da companhia. Nesse caso, a companhia deverá efetuar o pagamento dos valores inclusive com correção monetária e juros aplicáveis. Como o § 6º do art. 159 muito interessa a este trabalho, discorrer-se-á acerca dele com maior profundidade após algumas observações sobre a previsão do § 7º. Este último parágrafo garante àqueles diretamente prejudicados (acionistas ou terceiros), o direito de propor ação individual, independente da ação de responsabilidade que venha a ser iniciada pela companhia. Ou seja, mesmo que a companhia exerça o seu direito de ação de responsabilidade em face do administrador, ainda assim, poderá o terceiro ou acionista propor a ação que couber também em face do administrador. Esta ação prevista no § 7º visa reparar os danos sofridos diretamente por um acionista ou terceiro, diferentemente da actio ut universi e actio ut singuli, em que os danos foram sofridos diretamente pela companhia. Modesto Carvalhosa apresenta uma peculiaridade desta ação ao dizer que “ao propor a ação individual, o acionista tem em vista o seu próprio interesse, embora o resultado de seu procedimento judicial possa coincidir com os interesses de outros acionistas”.8 Diferentemente das ações que podem ser intentadas pela companhia, esta ação não visa o restabelecimento do normal funcionamento da companhia, mas, tão somente, a recuperação de eventuais prejuízos individuais ou particulares que um acionista ou terceiro possa ter sofrido. Pode parecer complexo vislumbrar situações em que poderia o acionista sofrer um 7 8 MIRANDA VALVERDE, 1953, apud CARVALHOSA, 2009, p. 387. CARVALHOSA, 2009, p. 390. 200 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial dano direto, sem que a companhia também o sofresse. Sobre esse tópico, Modesto Carvalhosa traz três hipóteses: “1) A primeira hipótese seria quando do uso de informações confidenciais por parte dos administradores. Neste caso, a companhia não seria prejudicada, pois, de qualquer forma, estaria aportando capital. Para o funcionamento e sucesso dela basta que ocorra a venda de suas ações, contudo, a utilização de informações confidenciais, ou privilegiadas, que configuram o chamado insider trading, geram sim prejuízos diretos aos acionistas” (CARVALHOSA, 1992, p. 390). A manipulação do mercado por parte dos administradores irá sem dúvida prejudicar os acionistas que poderiam exercer o seu direito a compra de novas ações. Imagine-se que a companhia esteja prestes a adquirir o controle acionário de uma outra grande companhia, no intuito de realizar uma fusão para potencializar a sua participação no mercado. É muito provável que o valor das ações aumente significativamente e que ainda novas ações sejam pulverizadas no mercado. Neste cenário, poderiam então os acionistas adquirir novas ações. Porém, se os administradores tiverem utilizado de informações as quais apenas eles poderiam ter acesso em decorrência do cargo exercido, para adquirirem para si, ações da companhia, ou ainda favorecer terceiros, restariam então prejudicados os acionistas. Não poderiam terceiros, ou como são chamados, outsiders, ter preferência na compra de ações em prejuízo dos acionistas da companhia. Esta é a primeira hipótese apresentada pelo autor. 2) A segunda hipótese é o chamado dano personalizado. “Será o caso, por exemplo, de recusa do fornecimento de certidões, de que trata o art. 100, a determinado acionista. Da mesma forma, a protelação no pagamento de dividendos, pela criação de formalidades inadmissíveis ou abusivas. Assim, todos os atos ilegais, antiestatutários e como abuso do desvio de poder, discriminadamente dirigido a determinado acionista, ensejam ação individual” (CARVALHOSA, 1992, p. 390). Mais uma vez, vislumbra-se, nas hipóteses narradas acima que não haverá qualquer dano direto à companhia, mas tão somente ao seu acionista. Por este motivo é permitida a propositura de ação individual, onde não se confundem os interesses do acionista com os interesses da empresa. 3) A última hipótese é configurada nos casos em que há relação contratual direta entre o acionista e o administrador. Havendo esta relação, diversas são as possibilidades que ensejarão a propositura de uma ação individual. Os exemplos no mesmo sentido são “de abuso na utilização de procuração outorgada pelo acionista (art. 126), ou seja, o ato ilícito do administrador não prejudica a companhia, mas, sim, o acionista pessoalmente. Também 201 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial ocorre a hipótese de danos causados aos acionistas, na avaliação dos patrimônios líquidos das companhias envolvidas em incorporação, fusão e cisão. Havendo supervalorização, em tais avaliações, em detrimento do acionista, o cabimento da ação individual será inquestionável.” (CARVALHOSA, 1992, p. 390). Consoante a redação do artigo em questão, pode ainda propor ação individual obstando reparar os danos sofridos os terceiros estranhos à companhia. No caso dos terceiros, a regra é de que a companhia responda em nome dos administradores. Essa substituição se dá em nome do princípio da segurança das relações jurídicas e na teoria da organicidade da representação social. Todavia, existem hipóteses em que os terceiros poderão buscar diretamente junto ao administrador a sua responsabilização. O exemplo trazido por Modesto Carvalhosa discorre sobre a utilização de informações confidenciais, que podem então, criar condições artificiais de negociação de valores mobiliários no mercado. Neste caso poderiam os investidores, intermediários de mercado e suas instituições, propor diretamente ação de responsabilidade em face do administrador.9 É reconhecido que a sociedade anônima, como qualquer outra empresa, exerce função social, a par de se tratar de modo de organização patrimonial. Embora seja instrumento de atividade dirigida a certo fim - o lucro -, não se divorcia das relações com a comunidade onde está integrada. Entenda-se por função social da propriedade o poder que o titular tem de dar ao bem determinado destino, de vinculá-lo a certo objetivo. O adjetivo social orienta a propriedade ao interesse coletivo e não àquele do próprio titular do bem: está-se diante de um poder-dever do proprietário, sancionável pela ordem jurídica. A ideia de função social da propriedade passou a ser positivada com a promulgação da primeira Constituição Republicana Alemã, em Weimar, em 191910, impondo deveres ao proprietário. Esclareça-se que função social da propriedade não se confunde com restrições legais ao uso e gozo dos próprios bens. Em se tratando de bens de produção, o poder-dever do proprietário é entendido como o poder-dever do titular do controle dirigir a empresa para a realização dos interesses coletivos. Destaque-se, novamente, que poder de controle não se confunde com propriedade: não se trata de direito real, incidindo sobre determinado bem, mas de poder de organização e direção, que envolve pessoas e coisas.11 A Lei nº 6404/76, conforme anteriormente explanado, atribuiu à sociedade anônima 9 CARVALHOSA, 2009, p. 395. 10 O art. 153 da Constituição de Weimar foi mantido, ipsis verbis, pela Constituição da República Federal Alemã, de 1949, em seu art. 14, 2ª alínea: “A propriedade obriga. Seu uso deve, ao mesmo tempo, servir o interesse da coletividade”. 202 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial função social. O art. 116, parágrafo único, estabelece que “o acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e têm deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos diretos e interesses deve lealmente respeitar e atender”. O art. 117, § 1º, ‘a’, arrola como modalidade de exercício abusivo de poder do acionista controlador a orientação da companhia “para fim lesivo ao interesse nacional, ou levá-la a favorecer outra sociedade, brasileira ou estrangeira, em prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos lucros ou no acervo da companhia, ou da economia nacional”. O idealismo dos dispositivos acima transcritos permanece ineficaz, porque a legislação e o próprio sistema empresarial não viabilizam a aplicação de sanções adequadas ao acionista infrator. O abuso de não-utilização de bens produtivos, ou de sua utilização imprópria, deveria ser sancionado adequadamente, mas não em prejuízo ou comprometendo a propriedade destinada à coletividade, visto que não se pode desprezar a força produtiva daqueles que ali, na empresa, trabalham e, muito menos, o interesse daqueles que nela investiram. O poderio que adquiriram as sociedades anônimas, sua eficiência no processo de desenvolvimento econômico, explica e justifica o interesse geral em fiscalizá-las e protegêlas, em educar o empresário e induzi-lo à melhor utilização de sua propriedade/empresa, em incentivar e garantir ao investidor o retorno do capital aplicado em ações da companhia, permitindo ao administrador a gestão imparcial aos interesses da empresa e da coletividade. Diante desta premissa, mais do que inerente à própria companhia, a responsabilidade do administrador e/ou do acionista controlador é de ordem pública, posto que o reconhecimento de culpabilidade é de interesse de toda a sociedade política. É essencial para a sociedade anônima conjugar estreitamente o interesse social com o interesse privado, de forma a assegurar a prosperidade da sociedade com a satisfação dos interesses razoáveis e naturais de seus acionistas. A má gestão de uma grande companhia pode produzir reflexos na economia de um país, dando causa às crises12, e repercutindo intensamente em muitos outros setores 11 A confusão entre poder de controle e propriedade é próprio do Capitalismo, pois o poder de controle empresarial funda-se na propriedade do capital ou dos títulos-valores representativos do capital da empresa (COMPARATO, Fábio Konder. Função social dos bens de produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 63, p. 71-79, jul/set. 1986, p. 77). 12 Crise econômica e financeira, crise política e institucional, crise de investimento e de confiança. 203 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial essenciais.13 Dessa forma, as facilidades abertas para o levantamento de recursos – desde o apelo ao mercado de capitais até o progressivo autofinanciamento da companhia – exigem, então, fiscalização pública e impõe o dever de intensa publicidade dos atos de gestão em favor dos sócios e da coletividade. 4. CONCLUSÃO Por todo o exposto no presente trabalho pode-se concluir que a empresa adequada no molde das sociedades anônimas é com certeza a mais complexa de todas, não apenas pela sua ampla estrutura, mas também pelo impacto que causa no mercado nacional e internacional. Trata-se de um tipo de companhia em que investidores depositam nela a sua confiança e propriedades, buscando aumentar o seu patrimônio. Todos os investimentos são realizados com parâmetros delimitados e estudados a fundo. Aquele que ali aplica seu dinheiro deseja obter retorno de seu capital, vislumbrando ganhos futuros. É por meio dos investidores que as companhias conseguem efetivamente potencializar suas atividades. Sua injeção de capital é fundamental para o rápido e constante crescimento empresarial, realizando esta forte e ampla capitalização, as companhias desse gênero ganharam espaço e formas bastante particulares. Como a necessidade de crescimento perene é natural à forma com a qual as empresas definem seus objetivos, faz-se necessária maior quantidade de recursos e capital, assim, a melhor e mais efetiva maneira de arrecadar tais recursos é a venda de quotas de participação na companhia. Portanto, com o auxílio fundamental dos investimentos em ações, as companhias têm, cada vez mais, grandes oportunidades de aumentar sua atuação nos mercados, promovendo maiores ganhos para subsídio da própria atividade, bem como para a satisfação de lucro dos investidores. Ao mesmo passo em que a estrutura da companhia é complexa, sua gestão também o é. Para administrar esta complexa estrutura, são eleitos administradores que serão os principais responsáveis pela condução dos negócios e para o atendimento dos fins para os quais a companhia foi criada. Estes administradores estão sempre trabalhando em um ambiente de muita pressão, onde devem tomar diversas decisões estratégicas, sempre visando 13 O crescimento das sociedades anônimas justifica o interesse público; haja vista que esta instituição alberga infinidade de pessoas: acionistas, fornecedores, consumidores, credores, empregados, revendedores, distribuidores, financiadores etc., grupos de significado excepcional para a ordem e a tranqüilidade social. 204 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial atender os interesses das companhias, e, além disso, suas responsabilidades aumentam à medida que aumentam os investimentos. A doutrina traz uma série de deveres, os quais devem ser respeitados e seguidos por estes profissionais, para que se garanta uma boa gestão da companhia. Mas, por mais correto e diligente que o administrador seja, não está ele isento de tomar alguma decisão que venha a trazer prejuízos para a companhia. Naturalmente, todos os administradores estão sujeitos a esta situação. Portanto, pode-se afirmar a existência de certo risco ao se dirigir uma sociedade anônima. Não obstante, até mesmo decisões conscientes, tomadas de boa-fé, podem causar prejuízos à companhia. Estas são as chamadas decisões de negócios, onde não existe um juízo de certeza. Contudo, tais decisões fazem parte do risco inerente à atividade empresarial e, portanto, não são de responsabilidade dos administradores. Então, com o objetivo de conferir proteção ao administrador de sociedades anônimas, e o legislador incluiu o § 6º do artigo 159 da LSA. Tal artigo afirma a isenção de responsabilidade por parte do administrador caso suas decisões de boa fé e conformes a política da empresa causarem prejuízos à atividade e aos investidores. Este é o elemento essencial para que a companhia seja bem gerida, por um simples motivo: se não houvesse tal previsão dificilmente encontrar-se-ia alguém disposto a ocupar um cargo desta natureza. Os profissionais, por mais qualificados que sejam, estão sujeitos ao cometimento de erros, portanto, invariavelmente, teriam que arcar com prejuízos da sociedade. E em se tratando de sociedades anônimas, sabe-se que prejuízos são quase sempre muito significativos para a companhia. Portanto, a importância basilar da criação desse este instituto reside no fato de permitir ao administrador exercer suas funções com certa tranquilidade, sabendo que seu patrimônio pessoal e sua carreira não serão lesados pelos reflexos de seus atos em conformidade com a política empresarial. Esta normatização permite atitudes mais agressivas por parte dos administradores, afinal, para crescer e dar o retorno que seus acionistas esperam, a empresa deve adotar uma política menos passivas em relação ao mercado. Importante ressaltar que o instituto não visa proteger o administrador que faltou com os seus deveres e que não agiu de boa-fé. Assim, a completa estruturação legal não redime erros pessoais, irresponsáveis e dolosos na administração da empresa, tais fatos fazem com que o assunto ora debatido tenha importância fundamental na sociedade atual, ao passo que seus reflexos trazem ganhos extraordinários aos sujeitos de direito e afirmam a obrigatoriedade e importância do dever de tutela por parte da administração pública, também 205 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial no direito empresarial, que auxilia extraordinariamente o fomento econômico e a proteção individual de todos aqueles que, direta ou indiretamente estão inseridos em uma relação empresarial. 5. REFERÊNCIAS BERTOLDI, Marcelo M. Curso avançado de direito comercial: Teoria geral do direito comercial, direito societário. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. v.1. BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 11. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008 Brasil, Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Rio de Janeiro, RJ, 31 dez. 1940. Brasil, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 17 jan. 1973 Brasil, Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 17 dezembro 1976. Brasil, Lei nº 9.457, de 05 de maio de 1997. Altera dispositivos da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, que dispõe sobre as sociedades por ações e da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 6 maio 1997. Brasil, Lei nº 10.303, de 31 de outubro de 2001. Altera e acrescenta dispositivos da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, que dispõe sobre as Sociedades por Ações e da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários.. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 1 nov. 2001. Brasil, Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial a extrajudicial. e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 9 fev. 2005. Brasil, Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Agravo de Instrumento n.º 2001002002291-5. Brasil Telecom S/A e Stet International Netherlands N.V. e outros. Relator: Desembargador Edson Alfredo Smaniotto. DJ 15 maio 2002 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v.3. 206 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v.2. GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de direito societário: sociedade anônima. 1. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. v.2. 207 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA: BASES CONSTITUCIONAIS DA CRIMINALIZAÇÃO DA OMISSÃO DE REPASSE E A QUESTÃO DA INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA CONFORME O DIREITO PELA SITUAÇÃO FINANCEIRA PRECÁRIA DA EMPRESA MISAPPROPRIATION SOCIAL SECURITY: THE CONSTITUTIONAL BASES OF OMISSION CRIMINALIZATION TRANSFER AND THE QUESTION OF CONDUCT UNENFORCEABILITY OF AS LAW BY COMPANY FINANCIAL PRECARIOUS JANAÍNA ELIAS CHIARADIA1 FÁBIO ANDRÉ GUARAGNI2 1. Introdução. 2. Da responsabilidade do empregador pelo recolhimento previdenciário. 3. Apropriação indébita previdenciária e a estrutura do tipo. 4. O art. 168-A e a inexigibilidade de conduta conforme o direito pela situação financeira precária da empresa na jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. 5. Considerações finais. RESUMO: Nos preceitos explicitamente contidos na Constituição Federal e no Código Penal, há normas e princípios para regular a sociedade em geral, elencando concepções e enunciados que impulsionam a produtividade e o crescimento do setor financeiro, mediante o princípio da livre iniciativa, limitado por ditames de justiça social, da qual deriva a base dos crimes praticados em detrimento da ordem previdenciária. Dentre eles, o estudo concentra-se na 1Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Graduada em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB) tendo estagiado no Ministério Público de Santa Catarina. Especialista MBA em Direito Empresarial e Processual Civil no Centro Universitário de Jaraguá do Sul (UNERJ) e Pós-Graduanda em Didática do Ensino Superior pela Faculdade do SENAC. Integrante da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG). Advogada no ramo empresarial e professora universitária no Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA e na Faculdade do SENAC. Autora de obras jurídicas, capítulos e artigos científicos. 2 Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Pós-Doutorado na Università degli Studi di Milano, Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais (UFPR). Professor de Direito Penal Econômico do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Professor de Direito Penal do UNICURITIBA, FEMPAR, ESMAE, CEJUR e LFG. 208 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial apropriação indébita previdenciária, art. 168-A, CP, analisando a estrutura do tipo e contornos dos bens jurídicos protegidos. Envereda, por fim, pela análise da incidência da inexigibilidade de conduta conforme o direito, derivada da precária situação financeira da empresa, como exculpante supralegal em relação à figura típica, diante da jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. PALAVRAS-CHAVE: responsabilidade do empregador; recolhimento previdenciário; apropriação indébita previdenciária; culpabilidade; inexigibilidade; exculpante; Tribunal Regional Federal da 4ª Região. ABSTRACT: In the precepts explicitly contained in the Constitution and the Penal Code, there are rules and principles to govern society in general, listing conceptions and utterances that drive productivity and growth in the financial sector, through the principle of free enterprise, limited by the dictates of social justice, which derives the basis of crimes committed at the expense of social security order. Among them, the study focuses on misappropriation pension, art. 168-A, CP, analyzing the type of structure and outlines the legal interests protected. Is appealing Finally, by analyzing the incidence of unenforceability of conduct under the law, derived from the precarious financial situation of the company, as exculpante supralegal regarding typical figure, given the case law of the Federal Regional Court of the 4th Region. KEYWORDS: employer's liability, pension payment, pension embezzlement; guilt; unenforceability; exculpante; Federal Regional Court of the 4th Region. 1. INTRODUÇÃO As cartas constitucionais estampam modelos variados de contratos sociais, conforme identificados na literatura de Bobbio (1997, p. 31-48). Para tanto, fixam a estrutura, a distribuição do poder estatal e marcos mediante os quais este poder se relaciona com o indivíduo. Todos estes aspectos, a seu turno, dependem de opções políticas e econômicas, variáveis no tempo e no espaço. Nos países associados a modelos capitalistas de produção – em que o proprietário dos meios de produção paga pela força laboral de terceiros, empregando-a sobre aqueles meios “a atividade empresarial é protegida e fomentada pelo ordenamento jurídico, inclusive 209 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial constitucional. A Constituição brasileira serve como exemplo, ao adotar princípios como o da livre-iniciativa (art. 170, caput) e livre-concorrência (art. 170, IV). Ambos são vinculantes para o ordenamento jurídico infraconstitucional” (GIDDENS, 1991, p. 61). Note-se, todavia, que o modelo brasileiro não se pauta por um liberalismo pleno, em moldes que retrocedem aos séculos XVIII e XIX. Afinal, da experiência dos últimos duzentos anos, herda-se a síntese produzida a partir de um estado liberal (protetor e garantidor de liberdades), como tese, e de um estado interventor como antítese, preocupado com igualdades: como síntese de ambos, surge o estado social de direito. Daí o ensinamento de Bonavides (2011, p. 183): (...) o Estado Social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas algo, no Ocidente, o distingue, desde as bases, do Estado proletariado, que o socialismo marxista intente implantar; é que ele conserva sua adesão à ordem capitalista, princípio cardeal a que não renuncia. De fato, tem-se uma ordem econômica capitalista, inclinada ao liberalismo e ao privatismo. Destaca Ulhoa Coelho (2008, p. 26) que: (...) ao atribuir à iniciativa privada papel de (...) monta, a Constituição torna possível, do ponto de vista jurídico, a previsão de um regime específico pertinente às obrigações do empreendedor privado. Não poderia, em outros termos, a ordem jurídica conferir uma obrigação a alguém, sem, concomitantemente, prover os meios necessários para integral e satisfatório cumprimento dessa obrigação. Todavia, tal modelo liberal encontra limites na necessidade estatal de intervir na ordem social e promover a compensação de desigualdades históricas. Desta forma Eros Roberto Grau (2008, p. 190) elucida que: (...) a norma econômica na Constituição Federal de 1988 consagra um regime de mercado organizado, entendido como tal aquele afetado pelos preceitos de ordem pública clássica (Geraldo Vidigal); opta pelo tipo liberal do processo econômico, que só admite a intervenção do Estado para coibir abusos e preservar a livre concorrência de quaisquer interferência. 210 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial O próprio caput do art. 170, na Constituição brasileira, deixa gizado este esforço conciliatório, quando exalta a necessidade de valorizar-se a livre iniciativa, porém respeitado o trabalho humano para a “existência digna” de todos, “conforme os ditames de justiça social”. Por outro lado, se são princípios da ordem econômica as liberdades acima destacadas, igualmente o são, para o legislador originário, a função social da propriedade, a defesa do consumidor, do meio ambiente, a meta de redução de desigualdades regionais e sociais, etc, conforme se extrai dos incisos do art. 170. Todas limitam a livre iniciativa e guiam parâmetros para a livre concorrência. Assim, as liberdades constitucionalmente asseguradas, tangentes à livre iniciativa e livre concorrência, demarcam-se por um liberalismo certamente diverso daquele vivenciado em tempos anteriores, eis que, “o liberalismo de nossos dias, enquanto liberalismo realmente democrático, já não poderá ser, como vimos, o tradicional liberalismo da revolução francesa, mas este acrescido de todos os elementos de reforma e humanismo com que se enriquecem as conquistas doutrinárias de liberdade” (BONAVIDES, 2011, p. 163). Portanto, as normas infraconstitucionais, embebidas dos princípios constitucionais, retratam a valorização das atividades empresariais em moldes sustentáveis e exaltam o cumprimento das responsabilidades advindas das relações patrão-empregado. Ao ser firmado um contrato individual de trabalho, empregados e empregadores adquirem direitos e responsabilidades, sendo que as duas partes devem cumprir integralmente com suas obrigações. Ao empregador é imposto o fiel respeito e garantia aos direitos dos trabalhadores. Ao empregado, são confiadas atribuições, as quais deverão ser cumpridas da melhor maneira possível, sem que sejam ocasionados, conscientemente, danos ao empregador. Neste contexto, e dentre as responsabilidade assumidas, assumem destaque aquelas relacionadas com o custeio da Previdência Social, em parte derivado do cumprimento das obrigações contratuais laborais. A Previdência Social serve à ordem econômica justamente por viabilizar a realização de justiça social e a existência digna, aos moldes do caput do art. 170 c.c art. 193, ambos da CR. Desta forma, em face das normas constitucionais regentes da ordem econômica e social, há de ser analisado o crime de apropriação indébita, diante da responsabilidade do empregador pelo recolhimento previdenciário e suas consequências para sociedade atual, em especial para a sustentabilidade empresarial. Para tanto – e antes – impende refinar os 211 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial fundamentos principiológico-constitucionais da responsabilidade do empregador pelo repasse previdenciário. 2. DA RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR PELO RECOLHIMENTO PREVIDENCIÁRIO Como dito, os princípios constitucionais que norteiam a ordem econômica e a ordem social, inseridos na atual Constituição da República, são de suma importância para a compreensão das diretrizes que sustentam a atividade empresarial, em especial quanto às responsabilidades assumidas perante os empregados e a previdência social. Na base essencial da Constituição Federal de 1988, princípios gerais convertem-se em constitucionais e, “uma vez constitucionalizados, se fazem a chave de todo o sistema normativo” (BONAVIDES, 2011, p. 258). Desta forma, para que o operador do direito e todos os demais cidadãos possam atuar em consonância com os preceitos legais, visando à busca por uma sociedade justa, devem ser respeitados os princípios fundamentais e “se os princípios constitucionais são mandamentos de otimização, que devem ser realizados na maior medida possível dentro das condições fáticas e jurídicas existentes, ao legislador e aos outros ramos do direito sobraria apenas uma tarefa: a de otimizador de direitos fundamentais e da constituição” (SILVA, 2011, p. 118). Dentre os princípios constitucionais que exsurgem como mandamentos de otimização, avulta o da “livre iniciativa”: refere-se à liberdade concedida pelo constituinte para que qualquer cidadão possa exercer profissão ou empreender atividade econômica, independentemente de autorização do Estado, desde que norteado pela legislação vigente, salvo hipóteses previstas em lei. É a letra expressa do art. 170, parágrafo único, CR. Trata-se de uma faculdade para que os entes privados, ou qualquer cidadão, possam contribuir e proporcionar o desenvolvimento econômico, social e político de si e da sociedade como um todo. A liberdade inserida em tal princípio não significa a possibilidade de que cada cidadão possa fazer o que bem entender, mas o de poder exercer atividade lícita, com as qualificações pertinentes, objetivando lucratividade, usufruindo de incentivos e benefícios, desde que a legislação específica seja respeitada, conforme esclarece Martins (2011, p. 167): 212 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial O que interessa em termos de primeira acepção, é que, mesmo sob restrições legalmente estabelecidas, num regime de livre-iniciativa, é a partir do exercício da atividade profissional ou da atuação econômica que os indivíduos retiram sustento diário, adquirindo patrimônio capaz de garantir sua dignidade. […] Os benefícios de um regime que garanta e verdadeiramente estimule a livre-iniciativa não se resumem apenas à esfera individual. É que a sua dinâmica, pelas infindáveis transações e melhoria presumida de bem-estar em cada uma delas, acaba por gerar relevante riqueza social, uma vez que a livre-iniciativa em ação transforma parcela da propriedade estática em propriedade dinâmica. Assim, no sistema constitucional, o princípio da livre-iniciativa limita-se pelo respeito à legislação vigente, inclusive infraconstitucional, nela avultando os mecanismos que visam coibir práticas empresariais contrárias à ordem econômica, conforme se verifica no art. 173, § 4º, da Carga Magna, que torna defesas práticas abusivas do poder econômico que visem à “dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Afinal, as garantias de liberdade ofertadas aos empresários devem ser exercidas sem lesar interesses individuais ou coletivos, a fim de que a justiça social e o bem-estar coletivo sejam respeitados. Neste contexto, tem-se os comentários de Maria Helena Diniz (2011, p. 42) ao especificar que: (...) a livre concorrência, oriunda da atuação profissional, é a liberdade dada aos empresários para exercerem suas atividades segundo seus interesses, limitados somente pelas leis econômicas, porém norteadas pelo princípio da boa-fé objetiva. Trata-se da opção de uma forma de competição (leal e lícita) com os demais fatores econômicos dos que exercem a mesma atividade de mercado. Assim, as normas que incentivam a livre concorrência, em especial através da liberdade dos agentes econômicos, estratégias de publicidade, ofertas especiais, circulação de capitais e pagamentos, por outro lado, proíbem e sancionam a concorrência desleal, buscando a conservação da boa-fé objetiva no ramo empresarial. Tamanha a importância da boa-fé nas atividades empresariais que Popp et al. (2008, p. 23) enfatiza a questão ao mencionar que: (...) deixam de ter tanta relevância as disposições contratuais escritas, na medida em que se gerou maior severidade às obrigações e deveres de conduta próprios à formação, bem como estabeleceu-se um amplo rol e seguro critério de determinação e reconhecimento das chamadas cláusulas abusivas. Um das consequências principais desta situação foi a revisão dos chamados princípios contratuais. Assim, 213 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial atualmente, estão neste patamar a autonomia privada, a justiça contratual e a boa-fé objetiva. A autonomia privada está representada pela liberdade concedida ao setor privado, enquanto que a boa-fé objetiva acaba se interligando com a responsabilidade assumida através das atividades empresariais. Com relação aos princípios ora abordados, tanto da livre iniciativa, quanto da livre concorrência, tem-se que “as relações empresariais sofrerão grande influência do princípio da boa-fé objetiva. Não há motivos, porém, para preocupações, pois a aplicação de tal princípio é mera concretização no âmbito infraconstitucional dos parâmetros descritos nos arts. 1º, 3º e 170 da Carta Magna” (POPP et al., 2008, p. 23). Em sociedades economicamente organizadas, a empresa tem como objetivos primordiais o lucro, a geração de empregos, o recolhimento e correta destinação de tributos, a fim de que venha a contribuir para a sustentabilidade social. Tudo viabiliza o construir de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como garante o desenvolvimento nacional, a fim de promover o bem de todos, enquanto objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, CR). Portanto, ao mesmo tempo em que ao setor empresarial se impõe a observação dos preceitos constitucionais, em especial aqueles vinculados aos direitos trabalhistas, é-lhe assegurada a condição de livre administração, desde que através de condutas investidas de boa-fé e ética profissional. Desta forma, é do empresário a faculdade de escolher o ramo que deseja empreender, os maquinários que serão necessários, bem como os critérios que devem ser observados para contratação de seus funcionários, visto que é dele também, a responsabilidade pelo cumprimento de todas as obrigações assumidas através das relações laborais, diante dos preceitos constitucionais anteriormente mencionados, a fim de que a economia possa ter seu crescimento garantido e a sustentabilidade social seja uma realidade efetiva. Consequentemente, tem-se que a relação de trabalho é o gênero do qual deriva a espécie relativa à relação de emprego, abrangendo o contrato individual de trabalho, vinculante de empregado e empregador. Assinala Amauri Mascaro Nascimento (2009, p. 546) que “o contrato de trabalho impõe-se tanto como uma necessidade subjetivista de afirmação da liberdade de trabalho como também de uma afirmação de justiça social sob cujos 214 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial princípios deve-se enquadrar”. A questão previdenciária coliga-se com o ditame de justiça social referido. Daí ressaltarem das responsabilidades consequentes do contrato de trabalho, aquelas relativas ao recolhimento previdenciário. De fato, nos contratos individuais de trabalho firmados entre empregados e empregadores, uma das responsabilidades oriundas de tal vinculação remete ao recolhimento da parcela destinada a Previdência Social à sua efetiva destinação a esse órgão, uma vez que os fins pretendidos refletem consequências para toda sociedade. O maior interessado é o empregado, que teve a parcela destinada a Previdência Social descontada de seus rendimentos mensais, visando garantir os benefícios resultantes de tal contribuição, essências para sua sobrevivência. Por outro lado, a apropriação indébita dos valores correspondentes às verbas destinadas pelo empregado à previdência social, por parte do empregador, viola todos os preceitos constitucionais anteriormente mencionados, demonstrando má-fé (com violação do princípio da boa fé objetiva), favorecendo a concorrência desleal (em franca colisão com o bem jurídico penal concernente à ordem econômica), e prejudicando o crescimento social necessário para a continuidade das atividades econômicas. A classe empresarial é a grande impulsionadora da econômica nacional, razão pela qual deve observar os direitos constitucionais e as responsabilidades vinculadas ao contrato individual de trabalho, em especial quanto ao recolhimento e destinação da contribuição previdenciária, diante de aplicações de atitudes éticas, respaldadas no princípio da boa-fé, visando à sustentabilidade de seu ramo e as consequências para toda a sociedade. Enfim, a tutela penal do repasse à previdência dos valores descontados ao empregado justifica-se com força na letra do art. 170, CR, em especial nos limites à livre-iniciativa, bem como na principiologia jurídico-empresarial, como dá mostra o princípio da boa-fé objetiva. 3. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA E A ESTRUTURA DO TIPO A atual redação do Código Penal rege crimes contra a ordem previdenciária, com os contornos que lhe foram dados pela Lei 9.983/2000. Fá-lo de modo esparso: enquanto a apropriação indébita previdenciária está contida no art. 168-A, dentre os crimes contra o patrimônio, a sonegação de contribuição previdenciária está no art. 337-A. A opção do 215 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial legislador não foi no sentido de agrupar os tipos penais em torno da ordem previdenciária, enquanto parte da ordem econômica, como meta de proteção penal. Isto, sem embargo, não impede o intérprete de visualizá-la como bem jurídico, ainda que acumulada com outros bens jurídicos. Afinal, a legislação penal é farta de crimes pluriofensivos (voltados à tutela penal de mais de um bem de modo simultâneo). O antedito art. 168-A, CP, criminaliza “deixar de repassar à Previdência Social contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional”, vinculando à omissão em tela pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Consta nos incisos do parágrafo 1º do artigo em destaque que as mesmas penas são aplicadas a quem deixar de recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à Previdência Social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público (inciso I); recolher contribuições devidas à Previdência Social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços (inciso II); e ainda pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela Previdência Social (inciso III). Todavia, o texto em mesa cinge-se ao caput. O bem jurídico protegido é, além do patrimônio da Previdência Social, cuja expectativa de acréscimo foi desatendida, o patrimônio do empregado, que teve o desconto em sua folha de pagamento efetivado, sem a destinação apropriada do valor respectivo. Ainda, consoante afirmado, protege-se a ordem previdenciária como um todo, fundada na ideia de solidariedade, a partir da qual se dão “as prestações públicas no âmbito social”, igualmente tuteladas através do tipo penal” (PRADO, 2007, p. 606). Sujeito ativo do crime em destaque é o responsável tributário, amoldando-se o tipo como crime próprio; sujeitos passivos, a Previdência Social e o próprio empregado. Compõe o tipo objetivo do crime, como núcleo, a locução deixar de repassar. Evidencia-se um tipo omissivo próprio, de mera inatividade (a partir do célebre princípio da inversão, em relação aos crimes ativos, que podem ser materiais ou de mera atividade), gerador de dano para o bem jurídico. O crime é de consumação instantânea, operando no exato momento em que se esgota o prazo legal ou convencional destinado ao repasse dos valores para o órgão previdenciário. O tipo subjetivo contenta-se com o dolo genérico, sem que incidam elementos subjetivos diversos do dolo. 216 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Para extinção da punibilidade, conforme expressado no § 2º, do art. 168-A, do CP, exige-se que o agente, espontaneamente, declare, confesse e efetue o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal. Segue-se, aqui, toada tradicional no âmbito penal fiscal. O art. 34 da Lei n. 9.249/95 estatuiu extinguir-se a punibilidade em crimes contra a ordem tributária “quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia”. Por outro lado, os artigos 15, da Lei n. 9.964/2000 (respectiva ao Programa de Recuperação Fiscal – Refis) e o 9º, da Lei n. 10.684/2003 (alterou a legislação tributária, dispondo sobre parcelamento de débitos junto à Secretaria da Receita Federal, à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e ao Instituto Nacional do Seguro Social), estabeleceram hipóteses de suspensão da pretensão punitiva do Estado, bem como, a extinção da punibilidade de tais crimes mediante o pagamento. Assim, ao empregador é devido o recolhimento das contribuições previdenciárias e a efetivação da destinação ao órgão responsável, pena de suportar os ônus pela tipificação do crime de apropriação indébita. Neste contexto, ganha destaque a tese defensiva respectiva à inexigibilidade de conduta conforme o direito, enquanto exculpante supralegal. Ela foi invocada em casos penais de apropriações indébitas previdenciárias realizadas por empresários motivados por dificuldades severas relativas à condução das atividades negociais. As apropriações ocorriam para sanear fluxos de caixa negativos nas empresas. Este contexto tornaria incensuráveis as apropriações, consoante a argumentação em prol dos réus. Os precedentes do Tribunal Regional Federal da 4ª Região servem como referências para a análise. 4. O ART. 168-A E A INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA CONFORME O DIREITO PELA SITUAÇÃO FINANCEIRA PRECÁRIA DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO A jurisprudência expressada nos julgados proferidos pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região tem sido exigente para a admissão da precária condição financeira da empresa 217 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial como causa supralegal de exclusão de culpabilidade da omissão de recolhimento previdenciário (art. 168-A, CP). Embora assinale a possibilidade em tese de admitir a exculpante, cerca-a de requisitos. Assim, a precariedade financeira deve ser devidamente comprovada, acompanhada da evidência de não haver alternativa menos danosa para a sociedade, composta, dentre outras pessoas, dos próprios trabalhadores lesados, bem como dos também lesados dependentes dos préstimos previdenciários. Conforme anteriormente exposto, o elemento nuclear do crime elencado no artigo em destaque é “deixar de repassar” os valores devidos à Previdência Social recolhidos dos empregados como contribuições, no prazo legal e convencional. Sem o citado recolhimento prévio junto aos empregados – em regra, por desconto em folha -, não haverá a tipificação como apropriação indébita. Os precedentes do citado tribunal determinam que, para configurar a excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, se faz necessário que as graves dificuldades financeiras alegadas estejam sobejamente comprovadas, a ponto de terem afetado não só a empresa, mas também o patrimônio pessoal do denunciado. Assim, segundo destaca o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com amparo em julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal: (...) comprovados a materialidade, a autoria e o dolo no cometimento do delito de omissão de recolhimento de contribuições previdenciárias, mantém-se a condenação. Salientando que basta a comprovação do dolo genérico (...) a exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, em face da alegação de dificuldades financeiras, pressupõe a demonstração de situação invencível que tenha impossibilitado, transitoriamente, o recolhimento à Previdência Social das contribuições descontadas dos empregados. (TRF4, ACR 002656344.2008.404.7100, Sétima Turma, Relator Márcio Antônio Rocha, D.E. 18/10/2012). Ressaltaram os julgadores que a “omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias por longo período de tempo, caracterizando incorporação dos valores tributários às receitas da empresa, revela opção de gerenciamento que não se coaduna com a alegação de dificuldades financeiras transitórias e, consequentemente, não enseja o reconhecimento de causa excludente da culpabilidade”. O TRF da 4ª Região, em julgado diverso (TRF4, ACR 0002574-04.2007.404.7113, Sétima Turma, Relator Artur César de Souza, D.E. 17/09/2012), evidenciou que “a materialidade 218 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial do delito se consuma pela simples ausência de recolhimento das contribuições previdenciárias descontadas dos empregados, no prazo legal”. Adicionou que o elemento volitivo do delito de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP), classificado como crime omissivo puro ou próprio – conforme acima classificado -, prescinde de resultado material para sua consumação, bastando a simples vontade livre e consciente do autor de deixar de recolher os valores descontados dos empregados a título de contribuições previdenciárias ao INSS. No mesmo julgado, restou ressaltado que, para configurar a “excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa é necessário que a grave dificuldade financeira alegada esteja sobejamente comprovada documentalmente a ponto de ter afetado não só a empresa, mas também o patrimônio pessoal do denunciado”. Desta forma, “configurada a opção gerencial do réu pelo não recolhimento das contribuições previdenciárias, resta afastada a excludente de culpabilidade consistente na inexigibilidade de conduta diversa em decorrência da alegada dificuldade financeira”, uma vez que não comprovadas as particularidades exigidas para tal situação. Outros precedentes de suma importância reforçam esta orientação: APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. ART. 168-A DO CÓDIGO PENAL. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. DIFICULDADES FINANCEIRAS. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. ÔNUS DA PROVA. CONTINUIDADE DELITIVA. DOSIMETRIA DA PENA. 1. Autoria restou demonstrada pela confissão espontânea da acusada que admite a prática dos atos na gestão da empresa familiar. 2. A materialidade do delito se consuma pela simples ausência de recolhimento das contribuições previdenciárias descontadas dos empregados, no prazo legal, fato comprovado no Procedimento Administrativo Fiscal - PAF, instaurado pela Autarquia Previdenciária. 3. O elemento volitivo do delito de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP), classificado como crime omissivo puro, prescinde de resultado material para sua consumação, bastando a simples vontade livre e consciente do autor de deixar de recolher os valores descontados dos empregados a título de contribuições previdenciárias ao INSS. A sanção é imposta àquele que, após recolher os valores dos empregados, deixa de repassá-los à autarquia previdenciária no prazo legal. 4. Para configurar a excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa é necessário que a grave dificuldade financeira alegada esteja sobejamente comprovada documentalmente a ponto de ter afetado não só a empresa, mas também o patrimônio pessoal do denunciado. 5. Configurada a opção gerencial da ré pelo não recolhimento das contribuições previdenciárias, resta afastada a excludente de culpabilidade consistente na inexigibilidade de conduta diversa. 6. Tratando-se de crime de apropriação indébita previdenciária, a pena privativa de liberdade deve ser fixada a partir do mínimo legal e não do termo médio, elevada em 1/4, diante do número de infrações verificadas no curso da cadeia delitiva (31 condutas). 7. Tratando-se de crime continuado, a unificação deve alcançar, também, a pena de multa, restando inaplicável o disposto no art. 72 do CP. 8. A pena privativa de liberdade, observados os requisitos do art. 44 do CP, pode ser substituída por duas penas restritivas de direitos, consistentes em prestação pecuniária e prestação de serviços à comunidade, quando a condenação for superior a um ano de reclusão. 9. A pena pecuniária substitutiva deve guardar simetria com a pena privativa de liberdade e o seu valor deve levar em consideração as condições econômicas do acusado e dispensar 219 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial especial consideração ao montante do prejuízo e às condições econômicas do acusado. (TRF4, ACR 0017302-89.2007.404.7100, Sétima Turma, Relator Artur César de Souza, D.E. 11/09/2012). ARTS. 168-A E 337-A DO CP. SONEGAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA E APROPRIAÇÃO INDÉBITA DA MESMA NATUREZA. MATERIALIDADE, AUTORIA COMPROVADAS. CONDUTA DOLOSA EVIDENCIADA. EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. DIFICULDADES FINANCEIRAS. AUSÊNCIA DE PROVAS OBJETIVAS. CONTINUIDADE DELITIVA. TUTELA DO MESMO BEM JURÍDICO. ART. 71 DO CP. APLICABILIDADE. PRESCRIÇÃO PARCIAL DA PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL. REDUÇÃO DAS PENAS. SANÇÃO PECUNIÁRIA. VALORAÇÃO PROPORCIONAL. 1. Materialidade e autoria sobejamente comprovadas no caso sub judice. 2. A natureza dolosa da conduta incriminada ressai incontroversa dos autos, tendo em vista o depoimento da própria ré e os testemunhos ofertados em juízo. 3. Para configurar a excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa é necessário que as graves dificuldades financeiras alegadas estejam sobejamente comprovadas a ponto de terem afetado não só a empresa, mas também o patrimônio pessoal do denunciado. Precedentes deste Tribunal. 4. Hipótese na qual não foram trazidos aos autos documentos aptos à demonstração do impacto desta na gestão do empreendimento e no patrimônio pessoal do acusado, circunstâncias imprescindíveis para o acolhimento da correspondente exculpante. 5. Ocorre parcial prescrição da pretensão punitiva do Estado se, entre a data da omissão isoladamente considerada e a do recebimento da denúncia, houve o transcurso do prazo aplicável à espécie segundo o que dispõem os incisos do artigo 109 do Código Penal. 6. Consoante reiterada jurisprudência desta Corte tem entendido, embora sejam tipos penais distintos, possuindo características próprias, mostra-se cabível a aplicação do crime continuado para as condutas tipificadas nos artigos 168-A, § 1º, inc. I e 337-A, inc. III, ambos do CP, tendo em vista que tutelam o mesmo bem jurídico. Precedentes. 7. Além de se mostrar razoável o arbitramento das reprimendas de caráter econômico, eventual dificuldade em cumprir-se a imposição condenatória poderá ser analisada pelo Juízo de Execução, pois, conforme o regramento disposto na Lei nº 7.210/84, a ele compete analisar se o pagamento deverá operar-se integralmente ou, ante as alegações e documentos apresentados na ocasião oportuna, parceladamente, a fim de preservar o sustento dos condenados e de seus dependentes. (TRF4, ACR 2008.71.08.004452-1, Oitava Turma, Relator Paulo Afonso Brum Vaz, D.E. 23/08/2012). APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. ARTIGO 168-A C/C ART. 71, AMBOS DO CÓDIGO PENAL. DIFICULDADES FINANCEIRAS. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE NÃO COMPROVADA. PRESCRIÇÃO RETROATIVA. Tratando-se de delito omissivo-formal a caracterização do tipo subjetivo nos crimes de omissão de recolhimento de contribuições previdenciárias independe da intenção específica de auferir proveito (animus rem sibi habendi), pois o que se tutela não é a apropriação das importâncias, mas o seu regular repasse ao INSS. É imprescindível, para que as dificuldades financeiras possam configurar inexigibilidade de conduta diversa, que a defesa apresente provas contundentes da insolvência do empreendimento. Reconhece-se a prescrição parcial da pretensão punitiva do Estado, se a pena foi fixada em 02 anos e se transcorreu o lapso temporal de mais de 04 anos entre os fatos e o recebimento da denúncia. (TRF4, ACR 000342168.2009.404.7005, Oitava Turma, Relator Luiz Fernando Wowk Penteado, D.E. 07/08/2012) 220 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Ressaltando novamente as premissas constitucionais evidenciadas, a partir da efetivação do contrato individual de trabalho, vinculante para as partes nele envolvidas, é dever do empregador promover o desconto em folha de pagamento de seus funcionários no tocante as verbas destinadas a contribuição à Previdência Social, e consequentemente, transmitir tais valores a esse órgão, sob pena de restar identificado o crime de apropriação indébita e ser obrigado a suportar os ônus especificados na legislação pertinente. Por isso, o reconhecimento da causa supralegal de exclusão de culpabilidade por nossos tribunais pátrios, tomando-se o TRF da 4ª Região como referência, dá-se em casos excepcionais. Mais: é cercado de exigências. Faz-se necessário que estejam caracterizadas situações de precárias condições financeiras da empresa. Nestes termos, impede-se a exculpante quando a apropriação: a) derivar de uma opção gerencial pura e simples; b) ocorrer como mecânica integrante das rotinas de gestão, tendo como tônica a nota da habitualidade. Os precedentes parecem assinalar, ao revés, que a situação financeira precária deve ser anômala, inesperada, derivada de contingências externas, e não das más escolhas de gerenciamento. Para enfrentá-la, a apropriação indébita deve ser episódica, consistindo na alternativa menos danosa socialmente, pressupondo o esgotamento de outras. Dentre as outras, elenca-se o esgotamento do patrimônio pessoal do sócio/empresário. Do contrário, compromete-se toda a ideia de sustentabilidade social da atividade empresarial. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O crescimento econômico e social, alicerçado na identificação de direitos subjetivos juridicamente protegidos, aliado às necessidades de sustentabilidade (social, ambiental, concorrencial), determinou significativo aumento de limitações voltadas aos aspectos liberais da Constituição. Tais limitações são derivadas de uma ordem social justa e solidária. Vislumbrando a integração entre capital e trabalho, Paulo Bonavides (2011, 189) destacou que: Com a reconciliação entre o capital e o trabalho, por via democrática, todos lucram. Lucra o trabalhador, que vê suas reinvindicações mais imediatas e prementes atendidas satisfatoriamente, numa fórmula de contenção de egoísmo e de avanço para formas moderadas do socialismo fundado sobre o consentimento. 221 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial E lucram também os capitalistas, cuja sobrevivência fica afiançada no ato de sua humanização, embora despojados daqueles privilégios de exploração impune, que constituíam a índole sombria do capitalismo, nos primeiros tempos em que se implantou. O respeito às regras constitucionais sociais envolve todos os que estão diretamente inseridos nas várias modalidades de relações contratuais. Por outro lado, igualmente, as normas constitucionais de cunho liberal, que alavancam as iniciativas do ramo empresarial, em prol do desenvolvimento econômico, devem ser garantidas e observadas. O dualismo existente na Constituição Federal vigente, ora elencando direitos sociais, ora liberais, visa estimular a garantia dos direitos fundamentais e sociais quando da formalização dos contratos entre particulares. Necessariamente com estes contornos, os princípios da livre-iniciativa e livre-concorrência dão suporte para atos empresariais de boa-fé e ética profissional, em prol da sustentabilidade econômica. Os crimes contra a Previdência Social - dentre os quais a apropriação indébita previdenciária prevista no art. 168-A, do Código Penal - protegem tanto a livre iniciativa como a liberdade concorrencial, com os limites de justiça social que os emolduram. Há ofensa à ordem previdenciária quando da omissão de repasse à Previdência de verbas recolhidas, com tal fim, mediante descontos dos salários dos trabalhadores. Quebra-se a expectativa de arrecadação previdenciária, derivada do regular desenvolvimento das relações laborais, com consequente violação de todos os préstimos sociais dela dependentes. Para além, a omissão de repasse incriminada no art. 168-A ofende diretamente os patrimônios dos assalariados. Daí deriva, inclusive, a opção legislativa por alocar o crime no título dos crimes contra o patrimônio. Resultam destas violações à ordem previdenciária, de modo mediato, prejuízos à ordem econômica, enquanto regularidade jurídica da produção, distribuição e consumo de bens e serviços (PÉREZ, 1998, p. 35). Afinal, o empresário que torna habitual a omissão de repasse dos valores à Previdência, deles se apropriando, angaria vantagens comparativas em relação aos agentes concorrentes do setor empresarial em que atua. Tais vantagens podem conduzir à quebra concorrencial, com produção de monopólios ou oligopólios, tudo afrontando a boa fé objetiva imanente à livre iniciativa. Noutros termos, viola-se o conjunto de contenções à livre iniciativa pela qual, constitucionalmente, pretende-se conciliá-la com os imperativos de justiça social. 222 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial A seu turno, a livre concorrência, também limitada pelos mesmos imperativos constitucionais, não logra desenvolver-se. Ao revés, não há possibilidade de livreconcorrência, dentro de marcos legais de atuação, quando agentes empresariais, competidores no mesmo ramo, atuam mediante vantagens comparativas ilícitas, penais ou extrapenais. Bem assinala Bajo Fernandez (1982, p. 591): (...) a delinquência econômica requer uma especial atenção pela gravidade de um de seus efeitos característicos: o de ressaca ou espiral (sog-und spiralwirkung) cuja descrição é a seguinte: em um mercado de forte concorrência a deslealdade na concorrência se produz quando se esgotaram as possibilidade legais de luta. Nesta situação, quem primeiro delinque pressiona o resto à comissão de novos fatos delitivos (efeito de ressaca), e cada participante se converte assim em um eixo de uma nova ressaca (efeito de espiral). Este efeito de especial contágio (ansteckuungswirküng) se vê facilitado, além de tudo, porque o autor potencial é consciente do número enorme de delitos econômicos, da relevância da cifra negra e da benignidade das penas previstas nas leis suscitando uma imagem amável e positiva do delinquente. No caso, o agente empresarial competidor, para manter-se no setor da vida econômica em que atua, deverá replicar a omissão de repasse de verbas previdenciárias do concorrente que por primeiro praticou o crime. Este pressiona aquele (efeito de ressaca). Criase um ambiente de reprodução do crime de apropriação indébita previdenciária, já que se mostra a única forma de todos os concorrentes igualarem-se (efeito de espiral). Instala-se, assim, um quadro crônico de ofensa à ordem econômica. Este cenário não escapa à jurisprudência selecionada, centralizada no TRF da 4ª. Região, quando assinala a aceitabilidade de exculpantes supralegais do crime de apropriação indébita previdenciária sob um rígido cerco de exigências. De um lado, a Corte enaltece a ideia chave da culpabilidade penal, no sentido de que traduz reprovação a todo aquele que poderia ter agido conforme o direito e não agiu, sendo incensurável o agente cuja atuação não podia operar segundo a lei, dentro das circunstâncias em que estava. A exigibilidade de conduta conforme o direito, de fato, é um elemento da culpabilidade que deita raiz no giro normativo experimentado por todo o direito penal na etapa neokantiana, própria da primeira metade do século passado. Aliás, foi em 1907 que Frank escreveu célebre opúsculo acerca da culpabilidade, estabelecendo bases que iriam 223 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial desembocar no elemento correspondente à exigibilidade de conduta. Escreveu que “não se pode reprovar o autor por algumas ações realizadas sob circunstâncias de certa anormalidade” (FRANK, 2004, p. 42). Sugeria, assim, que a afirmação da culpabilidade dependeria da verificação da (a)normalidade das circunstâncias. É certo que cingia a definição de tais circunstâncias ao legislador. Todavia, no Brasil é comum atualmente a compreensão da exigibilidade de conduta conforme o direito como verdadeiro princípio reitor da culpabilidade penal, de maneira que o julgador pode evocar a inexigibilidade em face de circunstâncias que, embora não contempladas pelo legislador como exculpantes, permitam efetiva conclusão de que não havia, por parte do agente, outra possibilidade de agir (FRANK, loc. cit.). No caso do CP brasileiro, o artigo 22 elenca exculpantes legais, fundadas na inexigibilidade de conduta vislumbrada pelo legislador: são as hipóteses de coação moral irresistível e obediência hierárquica. Esta referência legal dá contornos indicativos daquelas situações que podem configurar, de maneira supralegal, ocorrências equiparáveis às codificadas e, pois, conducentes à ausência de censura penal. Afinal conforme pondera Fernando Galvão (2013, p. 421): (...) embora a exigibilidade de conduta diversa seja princípio geral de direito, é adequado que o Código Penal estabeleça parâmetros objetivos para o reconhecimento da situação exculpante, delineando critérios para a averiguação da inexigibilidade (...) A demasiada amplitude da noção de inexigibilidade pode proporcionar a burla à finalidade protetiva do ordenamento jurídico-penal. Sensível a tudo isto, a jurisprudência admite exculpantes supralegais e, na quadra do art. 168-A, CP, também as maneja: no particular, compreende que a situação financeira precária da empresa pode conduzir à exculpação dos gestores quando motiva a apropriação indébita previdenciária. Assim atua o TRF da 4ª Região. Porém – e aqui vem a mesma sensibilidade – a Corte constrói um conjunto de obstáculos para a aceitação da exculpante que demonstram tratar-se, para os julgadores, de figura de exceção, de circunstância efetivamente anômala e incomum. Assim, a admissão da exculpante depende: a) de demonstração documental da situação financeira precária, o que se evidencia por balanços, perícia contábil e fluxo financeiro (sendo bastante importante a abertura do sigilo de movimentações bancárias, sobretudo pela prática cotidiana, conquanto ilegal, de caixa dois); 224 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial b) comprometimento pessoal do patrimônio dos sujeitos ativos: o empenho do patrimônio pessoal do sócio para dar alento à situação financeira combalida ou precária da empresa é certamente exigível como comportamento anterior e pressuposto à apropriação de valores retidos dos trabalhadores. Afinal, a legitimidade da obtenção de lucro dentro de uma ordem econômica capitalista dá-se pelo fato de que ele remunera o risco da atividade empresarial. A contrario sensu, o prejuízo faz parte do arco de possibilidades com que se defronta o empresário. Não devesse arcar com o prejuízo, não lhe seria legítimo obter o lucro.O fundamento da retenção deste é o risco de ocorrer aquele. Um é contraponto do outro. Nestes termos, a situação empresarial precária deve ser enfrentada pelo empreendedor, enquanto considera viável fazê-lo, com patrimônio pessoal, e não alheio. Não estaríamos diante de uma ordem econômica autenticamente capitalista se o prejuízo empresarial fosse debelado mediante a frustração das políticas sociais do Estado – inclusive previdenciárias – ou fosse afastado com a incursão do capitalista sobre o patrimônio dos trabalhadores (!). Assim, é plenamente justificável que a jurisprudência exija evidência de que até o patrimônio pessoal do sócio sujeito ativo do art. 168-A foi atingido, de modo que a via de enfrentamento da crise financeira da unidade empresarial pelas próprias forças foi esgotada. Em relação a esta exigência, um reparo deve ser efetuado quato aos precedentes do TRF da 4ª Região: não se pode exigir a prova documental ou do empenho pessoal do patrimônio, como onus probandi da defesa, mas a argumentação apoiada em fundamentos – documentais ou não – que conduzam à dúvida razoável de que tudo isto ocorre. Do contrário, dar-se-ia uma espécie de inversão do ônus da prova, todo incumbido à acusação no processo penal. c) da transitoriedade da apropriação indébita previdenciária. Pelos julgados, a incorporação da omissão dos repasses à previdência como opção gerencial, com forma de habitualidade e recorrência, enquanto expediente destinado a fazer caixa em favor da unidade empresarial, afasta a exculpante. Trata-se de exigência coerente com o caráter anômalo da não censurabilidade por inexigibilidade de conduta. De fato, a própria incriminação do comportamento em um tipo penal evidencia que, dentro de uma ordem jurídica normal, o repasse das verbas previdenciárias descontadas ao trabalhador é conduta exigível cotidianamente, junto ao empresariado. Ora, a opção gerencial pelo ilícito justamente conduz aos efeitos em cascata e em espiral, antecitados, típicos dos crimes econômicos, com o que se 225 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial inviabiliza qualquer espécie de livre-concorrência, pelas vantagens concorrências dos agentes que atuam de modo ilícito. A atividade empresarial perde sustentabilidade, tanto quanto o vigor de uma ordem econômica liberal, todavia preocupada com uma ordem social justa e promotora da dignidade de tantos quantos dela dependem. Enfim, o TRF da 4ª Região somente aceita a exculpante da situação financeira precária da empresa, como causa de inexigibilidade de conduta conforme o direito, quando demonstrada por via documental, associada ao comprometimento pessoal do patrimônio dos sócios, à transitoriedade da omissão de repasses e à evidência de que não se tratou de opção gerencial. Há de se acrescentar outra exigência, plausível diante do caráter excepcional da exculpante: se o lucro ou o prejuízo derivam da condução cotidiana dos negócios, boa ou ruim, sendo culminâncias da maneira como a atividade empresarial foi conduzida, são circunstâncias normais, ou seja, circunstâncias em que a norma deve ser observada e as condutas devem submeter-se a elas. A inexigibilidade de conduta conforme o direito não se caracteriza, pois, com a pura e simples situação precária das finanças da empresa. Se esta precariedade resultou da maneira de condução do empreendimento, das escolhas do empresário, a superveniência de dificuldades financeiras não pode ser enfrentada mediante injustos penais. Não se trata de circunstância anômala; antes, faz parte do jogo. Assim, se a fonte da situação financeira precária reside nos próprios atos de gestão, a omissão de repasses previdenciários pelo empresário para o respectivo saneamento é merecedor de reprovação penal. A excepcionalidade da exculpante exige situação anômala: por exemplo, através de um plano macroeconômico repentino, ficam vedados os saques de valores depositados em bancos, tal qual ocorrido no Brasil no início do governo Collor, ou na Argentina, com o “corralito”. O caráter surpreendente da mudança macroeconômica, aliada à falta de caixa para fazer frente aos salários, tudo associado à iminência da data para o pagamento dos trabalhadores, forma um conjunto de circunstâncias anormais. Observadas as demais condições para o reconhecimento da exculpante, não é censurável o empresário que, excepcional e transitoriamente, naquele momento, omitiu os repasses para fazer volume financeiro bastante para os pagamentos dos próprios salários. O exemplo de admissão da exculpante, carregado de exigências, é consentâneo com a origem dogmática da supralegalidade das exculpantes por inexigibilidade de conduta. Segundo o primeiro de seus 226 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial defensores, Freudenthal (2002, p. 541), toda sua teoria “não é mais que a realização do princípio ‘impossibilium nulla est obligatio’”. Em termos simples: somente quando for impossível ao empresário fazer coisa diferente da omissão dos repasses dos valores à Previdência para reagir à precariedade financeira da empresa, não poderá ser censurado. Possuindo outros caminhos para debelar a crise do empreendimento, a apropriação indébita previdenciária é censurável. Por fim: sem que haja um cerco de condições para a admissão da exculpante, tornando-a excepcional, mitiga-se a tal ponto a força preventiva do comando contido no art. 168-A, CP, que a tutela penal da ordem previdenciária perece. Este é o argumento central pelo qual setores importantes da doutrina não aceitam exculpantes supralegais. Veja-se a ponderação de Jescheck (2002, p. 542): Uma causa de exculpação supralegal como a da inexigibilidade, entendida tanto objetiva como subjetivamente, debilitaria o efeito preventivo geral do direito penal e conduziria à desiguladade na aplicação do direito, pois a inexigibilidade não é um critério idôneo. Ademais, de acordo com a clara sistemática da lei, as causas de exculpação constituem disposições excepcionais que não são suscetíveis de aplicação extensiva. Também em situações difíceis da vida a comunidade deve poder exigir obediência jurídica, embora isto implique para o afetado um importante sacrifício. Quando a jurisprudência opta por aceitar exculpantes supralegais, deve se acautelar, pois as advertências para assim proceder são consistentes. Daí a elogiável parcimônia no reconhecimento da exculpante registrada nos julgados selecionados no correr deste trabalho. Bem pontua Paolo Grossi (2003, p. 115) que “a minha pretensão em relação ao Poder Público e em relação aos outros se legitima somente graças ao dever que simultaneamente venho a possuir frente ao Poder Público e frente aos outros”. O indivíduo possui direitos à medida que se desincumbe dos seus deveres, máxima que vale para a atividade empresarial: assim, o assegurar constitucional da livre-iniciativa e da livre-concorrência gera ambiente propício à legítima aferição de lucro mediante empreendimentos e negócios. De outro lado, os deveres de recolhimentos previdenciários servem à realização de uma ordem econômica conforme aos “ditames da justiça social” (art. 170, CR), e nada permite que o respectivo descumprimento seja banalizado, mediante sistemática exculpação, fundada em precariedade financeira do empreendimento. 227 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios Básicos de Direito Penal. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. BAJO FERNANDEZ, Miguel. “La delincuencia econômica”: un enfoque criminológico y político criminal. In Estudios Penales: Libro homenage al Prof. J. Antón Oneca. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1982. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. COELHO, Fábio Ulhoa. 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São Paulo: RT, 2006. 229 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial OS EFEITOS DECORRENTES DA APLICAÇÃO JUDICIAL DA TEORIA MENOR DA DISREGARD DOCTRINE: UMA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO THE EFFECTS OF THE JUDICIAL APPLICATION OF THE MINOR THEORY OF DISREGARD DOCTRINE: AN ECONOMIC ANALYSIS OF LAW Deilton Ribeiro Brasil ∗ Sumário. Introdução. Capítulo I –Análise econômica do Direito na questão referente aos efeitos da aplicação judicial da teoria menor da disregard doctrine. Capítulo II –Princípio da preservação da sociedade empresária. Capítulo III –Visão da jurisprudência. Considerações finais. Referências. Resumo Ao longo dos tempos, a atividade econômica da sociedade empresária vem passando por evoluções, passando da marcante fase da teoria dos atos de comércio, vista como instrumento de objetivação do tratamento jurídico da atividade mercantil. Isto é, com ela, o Direito de Empresa deixou de ser apenas o Direito de certa categoria de profissionais, organizados em corporações próprias, para se tornar a disciplina de um conjunto de atos, que, em princípio, poderiam ser praticados por qualquer cidadão; para a fase da teoria da sociedade empresária que possui o acento tônico da comercialidade, em consequência do progresso da técnica e da economia de massa, deslocando-se da noção de ato para a noção de atividade. O exercício profissional da atividade intermediária entre a produção e o consumo de bens impõe uma crescente especialização e a criação de organismos econômicos cada vez mais complexos. Depreende-se, portanto, que o princípio da preservação da sociedade empresária tem se constituído a principal preocupação do Direito de Empresa contemporâneo, diante do inegável abalo social produzido uma tendência de generalizar, inadvertidamente, a aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Deve-se verificar atentamente, se estão presentes os pressupostos reconhecidos pela doutrina como ensejadores de sua aplicação, para, somente depois, em caso de resposta afirmativa, proceder-se à sua efetiva aplicação tendo-se como premissa fundamental a ideia de que o Direito envolve necessariamente uma racionalidade econômica, que, por sua vez, confere grande destaque à lógica da eficiência econômica. Palavras-Chave: Teoria menor da Disregard doctrine; Preservação da sociedade empresária; Análise econômica do Direito; Constituição Federal; Código Civil de 2002. ∗ Pós-Doutorando pela Universidade de Coimbra, Portugal. Doutor em Estado e Direito: internacionalização e regulação pela Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro/RJ. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos de Belo Horizonte/MG. Membro do IAMG. Professor da Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete - FDCL. E-mail: [email protected] 230 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Abstract Over time, the economic activity of the business company is going through changes, through a remarkable phase of the theory of acts of trade, seen as a mean of objectifying the legal treatment of financial activity.That is, with it, the Company is no longer just the jurisprudence of a group of professionals, organized themselves into corporations, to become the subject of a series of acts which, in principle, could be committed by any citizen; to the stage theory of the company that has the stress of marketability, as a result of technical progress and economics of mass, moving from the notion of an act for the notion of activity. The professional activity intermediate between production and consumption of goods imposes na increasing specialization and the creation of economic organizations increasingly complex. It appears therefore that the principle of the company maintenance has been the main concern of contemporary business jurisprudence in the face of undeniable social shock produced a tendency to generalize, inadvertently, the application of the theory of disregard of legal entity. It is necessary to check carefully whether the conditions are present according to the doctrine as recognized by the opportunity of its application, for only then if the answer is affirmative it will be necessary to proceed to its effective implementation taking as a fundamental premise the ideat hat the law necessarily involves na economic rationality, which, in turn, places great emphasis on the logic of economic efficiency. Keywords: Minor theory of the Disregard doctrine; Maintenance of the company; Economic analysis of Law; The Federal Constitution; Civil Code of 2002. Introdução. Para COELHO (2005, p. 266) a teoria menor da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica é, por evidente, bem menos elaborada que a maior. Ela reflete, na verdade, a crise do princípio da autonomia patrimonial, quando referente a sociedades empresárias. Parte de premissas distintas da teoria maior: para a incidência da desconsideração com base na teoria menor, basta a prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. 1 A teoria menor da desconsideração, se a sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é solvente, isso basta para responsabilizá-lo por obrigações daquela. A formulação menor não se preocupa em distinguir a utilização fraudulenta da regular do instituto, nem indaga se houve ou não abuso de forma. Por outro lado, é de todo irrelevante a natureza negocial do Direito creditício oponível à sociedade empresária. Equivale, em outros termos, à 1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.Recurso Especial n° 279.273/SP (2000/0097184-7). Recorrentes: B Sete Participações S/A e outros; Recorrente: Marcelo Marinho Andrade Zanotto e outros, Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo, 3ª Turma, Min. Rel. Ari Pargendler; Rel. p/ acórdão Nancy Andrighi, D.J. de 29.3.04, j. não conhecer de ambos os recursos especiais – v.v. 231 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial simples eliminação do princípio da separação entre pessoa jurídica e seus integrantes (COELHO 2005, p. 266). Para POSNER (1976), o instituto da limitação da responsabilidade dos sócios representaria uma externalização dos custos para os credores das sociedades empresárias, que, no entanto, poderiam negociá-los com a própria sociedade empresária, de forma a buscar a compensação ex ante desses custos que lhe foram transferidos. Para tanto, seria necessário que se garantisse aos agentes econômicos um amplo acesso às informações referentes à sociedade empresária bem como um ambiente no qual os credores possuíssem reais condições de negociar com a sociedade empresária. Ainda de acordo com POSNER (1976) a standard contract theory, se os empreendedores, para resguardar seus patrimônios particulares dos riscos inerentes à atividade econômica, não dispusessem do mecanismo de constituição de uma sociedade empresária, como pessoa jurídica autônoma, teriam de negociar, pontual e renovadamente, a limitação de suas responsabilidades com cada credor. Isso aumentaria os custos de transação e poderia comprometer a eficiência econômica. Ao preceituar a irresponsabilidade dos sócios pelas obrigações da sociedade (ou a sua limitação), o Direito estaria, segundo essa visão, como que criando uma cláusula geral de contrato, inerente às negociações entabuladas com a pessoa jurídica. Se não fosse a vontade do credor de pactuá-la, ele deveria condicionar a concessão do crédito ao aval ou fiança dos sócios. Claro está que, desse modo de ver a personalização das sociedades empresárias, não se pode afastar a responsabilidade dos sócios, perante credores, por obrigações não negociáveis (involuntary creditors), como, por exemplo, os titulares de direito à indenização por ato ilícito. De fato, se a personificação das sociedades comerciais é uma cláusula geral de contrato, credores que não tiveram a oportunidade de negociar a extensão do crédito não manifestaram nenhuma anuência em relação a ela. Desse modo, para se compreender o segundo fator de desprestígio do princípio da autonomia patrimonial, cabe distinguir as obrigações da sociedade empresária em dois tipos: as negociáveis e as não negociáveis. No primeiro tipo, encontram-se as dívidas sociais originadas de tratativas desenvolvidas, com maior ou menor liberdade, entre as partes de um negócio jurídico. Alcança, grosso modo, os créditos disciplinados pelo direito civil e comercial, como são os documentados em títulos cambiais ou em contratos mercantis (COELHO, 2005, p. 270). Ainda no segmento das obrigações negociais – normalmente decorrentes de um contrato –, há diferente significados da importância e do papel desempenhados pelo processo obrigacional. 232 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Quanto aos créditos negociais no ordenamento alemão existe dispositivo 2 que proteção aos credores que avaliam o risco negocial, a redução do capital social original deve observar necessário requisito de publicação, por três vezes, da resolução de decréscimo do capital social. Simultaneamente, os credores devem ser convidados a se manifestar expressamente. Os credores que não consentirem com a redução do capital deverão ter suas obrigações satisfeitas ou garantidas. Trata-se de medida para proteção do credor negocial da empresa, especialmente porque, em raciocínio de proporção invertida, a redução do capital social implica em aumento do risco oferecido por aquela sociedade empresária (DINIZ, 2003, p. 114). Em decorrência da inexistência de regra similar no Brasil SALOMÃO FILHO (1998, p. 910) preleciona que se o legislador não impõe obrigação de capital mínimo, é difícil exigir do sócio que faça a previsão correta no momento de constituição de sociedade. O mais correto parece ser considerar a fixação do montante do capital como componente da business judgment rule do sócio e admitir a desconsideração somente nos casos em que a subcapitalização for extremamente evidente. As obrigações não negociáveis têm a sua existência e extensão definidas na lei, ou não são, por outros motivos, objeto de ampla e livre pactuação entre o credor e a sociedade devedora. Não se deve analisar o Direito das Obrigações exclusivamente sob o ponto de vista dos negócios de tráfico jurídico na sua missão de distribuição de bens, pois, além dos negócios que se referem apenas à cessão temporária do uso ou do proveito de determinada coisa, ou exclusivamente à prestação de uma determinada atividade, há fatos jurídicos que geram obrigações não em razão de uma vontade dirigida à sua produção, ou seja, aqueles que fazem nascer obrigações não negociais. Para HAMILTON (1991, pp. 83-89) incluem-se neste último grupo as obrigações tributárias e as derivadas de ato ilícito ou aqueles que não têm meios de formar seus preços, agregando-lhe qualquer taxa de risco, como por exemplo, o Fisco, o INSS, trabalhadores e titulares de direito de indenização (inclusive consumidor). Para essa categoria de credores sociais, a limitação da responsabilidade dos sócios representa, normalmente, prejuízo, porque eles não dispõem dos mesmos instrumentos de negociação dos credores negociais para se preservarem da insolvência da sociedade empresária (COELHO, 2005, p. 398). A limitação da responsabilidade do empreendedor ao montante investido na empresa é condição jurídica indispensável, na ordem capitalista, à disciplina da atividade de produção 2 § 58 da GmbH-Gesetz. 233 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial e circulação de bens e serviços. Nesse sentido, quem negocia com uma sociedade limitada, concedendo-lhe crédito, deve calcular o seu risco e as correspondentes taxas remuneratórias, levando em conta que a garantia de recuperação é representada, em princípio, apenas pelo patrimônio da sociedade. Se considerar muito elevado o risco, o concedente do crédito poderá condicioná-lo ao reforço das garantias, que se viabiliza, pela coobrigação dos sócios, mediante fiança ou aval, dados em favor da sociedade (COELHO, 2005, pp. 396-397). A responsabilidade limitada é, portanto, uma distribuição de riscos, forçada, mas necessária, feita pelo legislador, sendo a desconsideração da personalidade jurídica uma regra geral de repressão ao empresário que usa a responsabilidade limitada não passivamente, como um meio de salvação no caso extremo de falência, mas ativamente, como elemento estratégico para externalização dos riscos em maneira diversa daquela prevista no ordenamento consoante SALOMÃO FILHO (1998, p. 115). Capítulo I - Análise econômica do Direito na questão referente aos efeitos da aplicação judicial da teoria menor da disregard doctrine. No ordenamento jurídico brasileiro, a teoria menor da desconsideração foi adotada excepcionalmente, por exemplo, no Direito ambiental (lei n° 9.605/98, art. 4°) e no Direito do consumidor (CDC, art. 28, § 5°). O referido dispositivo do CDC, quanto à sua aplicação, sugere uma circunstância objetiva. Da exegese do § 5° deflui, expressamente, a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica pela mera prova da insolvência da pessoa jurídica, fato este suficiente a causar obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. 3 A tese de que a teoria menor da desconsideração aplica-se às relações de consumo, está calcada, como dito, na exegese autônoma do § 5° do art. 28, do CDC, isto é, afasta-se, aqui, a exegese que subordina a incidência do § 5° à demonstração dos requisitos previstos no caput do art. 28 do CDC. E isto porque o caput do art. 28 do CDC acolhe a teoria maior subjetiva da desconsideração da personalidade jurídica, enquanto que o § 5° do referido 3 Como bem salienta a Min. Nancy Andrighi em seu voto o TJSP bem constatou o obstáculo ao ressarcimento dos danos causados aos consumidores: São 40 mortos e mais de 300 feridos e o dano foi de natureza patrimonial e também de ordem moral. Verifica-se, de imediato ‘ictu oculi’, que a liquidação vai encontrar valor vultoso. O capital social da B-7 é de R$3.100.000,00 (três milhões e cem mil reais), para outubro de 1995 (fl. 171 da pasta 1 do Inquérito Civil). O capital social da Administradora Osasco Plaza é de R$10.000,00 (dez mil reais), como se lê à fls. 74 do mesmo volume do referido inquérito. E o valor real da empresa sempre estará na dependência de sua operação regular. 234 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial dispositivo acolhe a teoria menor da disregard doctrine, em especial se considerado for a expressão também poderá ser desconsiderada, o que representa, de forma inegável, a adoção de pressupostos autônomos à incidência da desestimação da personalidade jurídica. 4 A desconsideração pode, excepcionalmente, representar um instrumento de redistribuição do risco empresarial entre a sociedade e seus credores, fazendo com que os sócios nas situações concretas sejam pessoalmente responsáveis pelos danos provocados pela sociedade. Essa visão da desconsideração segundo NEGRI (2008, pp. 185-6), mesmo que tenha um espaço reduzido dentro do ordenamento pátrio, já foi desenvolvida em outros países sob o influxo da análise econômica do Direito, de forma que se mostra imprescindível o exame da disregard doctrine sob esse novo olhar, que procura analisar o Direito de acordo com critérios econômicos. Para CEOLIN (2002, p. 100) concluir pela plausibilidade de se promover a flexibilização do princípio da autonomia da pessoa jurídica em face das obrigações decorrentes de atos ilícitos, é mister primeiramente refletir sobre o instituto da responsabilidade civil em face das sociedades empresárias. Os homens que, durante muito tempo, adotaram em determinadas situações, atitude conformista perante o dano, hodiernamente, não toleram qualquer espécie de ofensa à sua pessoa ou ao seu patrimônio. Todo e qualquer ato causador de danos à esfera patrimonial ou à moral alheia é enfaticamente censurado e passa a ser objeto de demandas judiciais franqueadas às vítimas, para que elas possam obter o devido ressarcimento. Assim é que se tornou um hábito da sociedade contemporânea a busca por um culpado, alguém a quem se possa imputar determinado ato danoso e cobrar-lhe a respectiva restituição (VILLELA, 1994, p. 14). Da culpa ao risco, a responsabilidade civil transformou-se em um dos institutos jurídicos mais debatidos e aplicados do ordenamento, criando-se uma verdadeira indústria do dano impulsionada pelas vultosas indenizações concedidas pelos magistrados. Em meio a toda essa euforia ao redor da responsabilidade civil, vozes levantaram-se na tentativa de conter seu incessante avanço, principalmente no que diz respeito à adoção generalizada de teorias que lhe imprimem caráter objetivo, denominadas objetivas ou do risco. Suscitou-se a necessidade de se repensar o papel desempenhado pelo risco para a concretização de atividades 4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.Recurso Especial n° 279.273/SP (2000/0097184-7). Recorrentes: B Sete Participações S/A e outros; Recorrente: Marcelo Marinho Andrade Zanotto e outros, Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo, 3ª Turma, Min. Rel. Ari Pargendler; Rel. p/ acórdão Nancy Andrighi, D.J. de 29.3.04, j. não conhecer de ambos os recursos especiais – v.v. 235 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial propulsoras do desenvolvimento de inúmeros setores da comunidade (VILLELA, 1997, pp. 15-16). Concebeu-se, assim para MELLO (2001, p. 78), a teoria da socialização do risco segundo o qual os riscos, por serem inerentes a muitas atividades industriais e econômicas, são indispensáveis ao progresso humano. Nessa ordem de pensamento, não corresponde à absoluta verdade a afirmação de que a atividade de risco só beneficie aquele que se arvora a promovê-la. As indústrias químicas, metalúrgicas, petroleiras, farmacêuticas etc., por exemplo, promovem lucro e satisfação de inúmeros interesses das mais variadas classes de indivíduos. Se o empresário busca nelas recompensa pecuniária, são os demais integrantes da sociedade que se beneficiam com o progresso e o bem-estar social que aquelas geram através do desenvolvimento de novos materiais, remédios, meios de transporte rápidos e seguros de pessoas e bens, além da oferta de empregos e da arrecadação enorme de impostos que financiam inúmeras ações de ordem social. Sendo a comunidade diretamente beneficiada com as técnicas desenvolvidas pelas atividades de risco, ela também deverá suportar os eventuais prejuízos delas decorrentes ou, ao menos, criar mecanismos compensadores da assunção dos riscos pelos seus agentes. Responsabilizar apenas aqueles que se dedicam a essas atividades, investindo recursos ou gerindo-as, pelos danos causados por atos ordinários de gestão, significa ignorar os resultados socialmente úteis proporcionados, ainda que indiretamente, a todos os demais integrantes da comunidade (CEOLIN, 2002, p. 101). Sob esse aspecto, VILLELA (1991, passim) comenta que não parece teoricamente absurda a hipótese de que do risco, além de lucros e danos imediatos, possam advir resultados sociais úteis, concluindo que para essa eventualidade cabe ao Direito desenvolver respostas que neutralizem ou reduzam a responsabilidade civil dos agentes que puseram em marcha a atividade arriscada. Deve-se, portanto, levar em consideração, quando se cogita da responsabilidade civil dos agentes causadores de danos, que as atividades de risco são também fonte de progresso. Essa questão tem bastante relevância para o campo societário, na medida em que se constata que muitas atividades de risco são concretizadas por entes personificados, mais precisamente pelas sociedades. Aliás, a conjugação de esforços e de patrimônios individuais, de modo a constituir um novo ser, fez-se necessária, inicialmente, para fazer face aos riscos decorrentes das grandes expedições marítimas que não podiam ser suportados por um único indivíduo. Nessa ordem de ideias, desprestigiar a autonomia da pessoa jurídica, para alcançar o patrimônio pessoal de seus membros, constitui resposta diametralmente adversa ao atual rumo 236 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial que se pretende imprimir à responsabilidade civil, que procura criar mecanismos compensatórios àqueles que se aventuram em atividades de risco propiciadoras do progresso. Por isso, aduz-se que não apenas aqueles que, em vez de aplicarem seus recursos na poupança ou no mercado imobiliário (atividades nada produtivas socialmente), impulsionam a economia e propiciam o desenvolvimento de novas técnicas através da criação de sociedades devem arcar com os prejuízos ou danos causados a terceiros. Esses devem ser contabilizados pela comunidade como um todo, pois pretender alcançar de maneira generalizada o patrimônio dos sócios, que cumpriram com seus deveres perante a sociedade e a terceiros, seria desprestigiar o princípio da autonomia da pessoa jurídica e, com ele, toda uma gama de fatores essenciais às relações negociais (CEOLIN 2002, pp. 103-104). Para que os sócios possam ser pessoalmente responsabilizados por atos ilícitos praticados pela sociedade empresária através de seus prepostos, é preciso demonstrar que, de algum modo, eles contribuíram para a ocorrência do dano sofrido pela vítima. Não se pode imputar aos sócios a responsabilidade pelos danos causados a terceiros pela sociedade, ainda que decorrentes de imprudência, negligência ou imperícia de seus prepostos e ainda que o patrimônio social seja insuficiente para satisfazer a indenização a que ela foi condenada. Somente a sociedade é responsável por tais obrigações, salvo se restar demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta direta e pessoal do sócio e o dano causado a terceiro (CEOLIN 2002, p. 104). É certo que as vítimas de atos ilícitos encontram-se em posição desfavorável perante os demais credores, seja porque não lhes é dado negociar com a sociedade antes da constituição do vínculo obrigacional, seja porque não têm preferência entre os créditos a serem satisfeitos na hipótese de falência. Porém, não se pode pretender reverter essa situação mediante a flexibilização do princípio da autonomia da pessoa jurídica, de sorte a torná-lo inoponível às vítimas de atos ilícitos (CEOLIN 2002, p. 105). As obrigações decorrentes de atos ilícitos, bem como as trabalhistas e tributárias, têm forte apelo social, porque traduzem uma preocupação com interesses públicos e indisponíveis. O equívoco, no entanto, de posições extremistas é analisar o problema sob um único enfoque, deixando de lado as reflexões acerca da relevância social das pessoas jurídicas. Elas são socialmente úteis, porque promovem a agregação de bens e esforços, empregam enorme contingente populacional e, sobretudo, porque contribuem para o desenvolvimento de atividades que propiciam o avanço tecnológico, cultural e social da humanidade (CEOLIN 2002, p. 105). 237 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Deve-se ter em vista também que as obrigações não-negociáveis representam, tanto quanto as negociáveis, fator de risco aos empreendedores que não pode ser simplesmente olvidado pelos juristas. Para muitas atividades econômicas, a limitação de responsabilidade só se revela um Direito jurídico e socialmente útil, na medida em que tutela o patrimônio pessoal dos sócios contra a eventual ocorrência de dificuldades e transtornos econômicos e de infortúnios, dos quais nem o mais cauteloso dos homens está a salvo (CEOLIN 2002, p. 105) . Destaca-se, ademais, que o Direito à limitação da responsabilidade é uno, não comportando restrições que levem em conta o tipo obrigacional. A autonomia da pessoa jurídica e a limitação da responsabilidade dos sócios são estranhas a dita diferenciação, pois são igualmente oponíveis aos credores trabalhistas, tributários e às vítimas de atos ilícitos. Uma vez que as leis societárias, ao estipularem a responsabilidade limitada dos sócios, não fizeram qualquer ressalva quanto ao caráter das obrigações, não compete aos doutrinadores ou aos magistrados criarem restrições a esse Direito (CEOLIN 2002, pp. 105-106). No plano da análise econômica do tema, POSNER (1977, p. 3) chegou a afirmar que se afigura implícito na definição de homem moderno sua tendência de maximização racional do próprio interesse, a ponto de, caso o ambiente em que se encontra mude de modo tal que possa aumentar sua satisfação, isto opera mudanças no comportamento pessoal deste homem. Com base em tais premissas, o direito construído pela decisão judicial, por exemplo, deve maximizar o valor dos títulos jurídicos tomando como medida seus equivalentes monetários, razão pela qual a melhor interpretação judicial é aquela que maximiza o rendimento e o lucro, tendo na eficiência de mercado o critério normativo para avaliar o direito legítimo e o processo decisional jurídico efetivo. Ou seja, o direito deve ser eficiente. Significa dizer, em outras palavras, que devem os juristas colocar atenção em questões atinentes à regularidade das relações materiais envolvendo os sujeitos de mercado, para garantir-lhes segurança, certeza, previsibilidade e cumprimento de expectativas, do que se preocupar com problemas de justiça. 238 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Capítulo II - Princípio da preservação da sociedade empresária Para BASTOS (2000, p. 115) na busca da concretização da livre iniciativa como um dos fins de nossa estrutura política, é dizer, um dos fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito, desde que valorizado o trabalho humano, a Constituição Federal, também, elege como princípios da ordem econômica, dentre outros, a função social da propriedade, a livre concorrência, a busca do pleno emprego (CASTRO, 2007, p. 43). Postular a livre iniciativa quer dizer precisamente que a Constituição Federal consagra uma economia de mercado, de natureza capitalista, pois a iniciativa privada é um princípio básico da ordem capitalista (SILVA, 2004, p. 742). Significa também dizer que a consagração da liberdade de iniciativa, como primeira das bases da ordem econômica e social, traduz que é através da atividade socialmente útil a que se dedicam livremente os indivíduos, segundo suas inclinações, que se procurará a realização da justiça social e, portanto, do bem estar social (FERREIRA FILHO, 1995, p. 3). A busca do pleno emprego está relacionada estritamente com o princípio da preservação da sociedade empresária, que, por sua vez, interessa ao Direito e à Economia, pela proteção que oferece à continuidade dos negócios sociais (FACHIN, 2001, p. 199). Afinal, o exercício da atividade empresária é a fonte de tributos e empregos. Ou seja, sem preservação da atividade empresária inexiste emprego, razão pela qual não há como se valorizar o trabalho, motivo por que a pretensão do legislador constituinte fica reservada ao seu imaginário (CASTRO, 2007, p. 43). O princípio da busca do pleno emprego corresponde ao da preservação da sociedade empresária (de que é corolário o da recuperação da sociedade empresária), segundo o qual, diante das opções legais que conduzam a dúvida entre aplicar regra que implique a paralisação da atividade empresária e outra que possa também prestar-se à solução da mesma questão ou situação jurídica sem tal consequência, deve ser aplicada essa última, ainda que implique sacrifício de outros Direitos também dignos de tutela jurídica (GONÇALVES NETO, 1998, p. 99). A preservação da sociedade empresária como princípio constitucional, porém, não deriva exclusivamente do princípio da busca do pleno emprego (CF/88, art. 170, VIII), mas também, do fato de que a Constituição Federal, dentre os princípios gerais da atividade econômica, estabelece a função social da propriedade (CF/88, art. 170, III), o que não tolera a extinção de sociedades empresárias produtivas, sob pena de não atender aos interesses 239 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial coletivos, mas, tão-somente, aos individuais e patrimoniais dos seus titulares (CASTRO, 2007, p. 43). A preservação da sociedade empresária como princípio constitucional, também, pode ser visualizada a partir da desmaterialização da riqueza, consequência da função social da propriedade. Dessa forma, se a sociedade empresária consubstancia a noção contemporânea da propriedade, ela, por força de princípio constitucional, deve atender a uma função social, isto é, gerar benefícios não só aos seus titulares, mas também a terceiros, isto é, a trabalhadores, fornecedores, consumidores e ao próprio Estado em razão do interesse de recolher tributos do exercício daquela atividade econômica organizada (CASTRO, 2007, p. 45). Assim procedendo, a Constituição Federal levou em conta a propriedade, considerada sob o aspecto econômico, mas com evidentes reflexos sociais, que abrangem, primordialmente, a sociedade empresária, como atividade organizadora que é da propriedade em fase dinâmica, nesta reconhecida como meio de produção (SOUSA, 2006, p. 176). Depreende-se, dessa maneira, que o legislador constituinte defende a preservação da sociedade empresária; em caso contrário, não existirá função social concreta e, muito menos, haverá o desenvolvimento de atividade produtiva, com reflexos sociais, como a geração de empregos. Aliás, impossível esquecer-se de que a Constituição Federal eleva a função social da propriedade e a busca do pleno emprego à condição de princípios da atividade econômica (art. 170, III e VIII), e não será destruindo centros de produção que essas normas serão observadas (TEPEDINO, 2002, p. 167). A ordem econômica, portanto, também se funda no princípio da preservação da sociedade empresária, que, por sua vez, contribui para a concretização dos demais Direitos Fundamentais, vez que eventuais Direitos Fundamentais não enumerados abrangem Direitos de qualquer natureza: tanto direitos, liberdades, garantias como direitos econômicos, sociais e culturais (QUEIROZ, 2002, p. 89). Não se quer com essa assertiva, no entanto, erigir o princípio da preservação da sociedade empresária a Direito Fundamental, mesmo porque é impossível fazê-lo dada a natureza dos Direitos Fundamentais, os quais, na essência, são os Direitos do homem livre e isolado, sem prejuízo de que a distinção entre Direitos Fundamentais ou não radica na própria Constituição Federal. Os Direitos do art. 5º são enunciados, como Direitos e Garantias Fundamentais (CF/88, art. 5º, caput e itens I a LXXVII). Outros há que a fundamentalidade não os reveste. Dentre os Direitos constitucionalmente assegurados, só os Direitos Fundamentais estão sintaticamente ao abrigo das cláusulas pétreas (CF/88, art. 60, § 4º, IV) conforme (BORGES, 2004, pp. 217-218). O que se pretende é demonstrar que a defesa da preservação da sociedade empresária, como 240 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial princípio constitucional não escrito e integrante da ordem econômica nacional, auxilia a concretização dos Direitos Fundamentais, notadamente o da dignidade da pessoa humana. Quer dizer, sua preservação está em conformidade com os postulados do atual sistema constitucional, cuja preocupação primeira é atender e preservar os interesses sociais do homem, em sua plenitude (SOUSA, 2006, p. 205). Analisando a questão da sociedade empresária em dificuldade econômico-financeira transitória, a doutrina sustenta que para sua recuperação e preservação, naquele momento exclusivamente, há que se privilegiar a preservação da sociedade empresária em detrimento de outros princípios, como por exemplo, os Direitos Trabalhistas (CASTRO, 2007, p. 47). No caso de recuperação judicial, a assembleia geral de credor e o juiz da causa deverão entregarse à ponderação de fins - salvar a sociedade empresária, manter os empregos e garantir os créditos -, pelo princípio da razoabilidade ou proporcionalidade, quando, então, talvez, venham a concluir que o caso concreto exige o sacrifício, verbi gratia: a) do interesse da sociedade empresária e de seus sócios e acionistas em benefício de empregados e credores ou b) dos Direitos de empregados e credores em prol da sociedade empresária (LOBO, 2005, p. 110). A preservação da sociedade empresária como princípio constitucional, ainda que não escrito, é necessário para se evitar que a eficácia da recuperação judicial venha a ser abalada, vez que não se reconhece ao sócio de sociedade empresária em recuperação judicial o Direito de recorrer ao recesso, uma vez que nessas condições o instituto do direito de recesso é contrário ao sistema e, portanto, inaceitável. Melhor explicando, não há como reconhecer ao sócio de sociedade empresária em recuperação judicial o direito de recorrer ao recesso, pois a admissão desta possibilidade afetaria a eficácia da recuperação almejada não somente pelos credores, mas pelos empregados, pelos demais sócios e pela comunidade em geral na qual determinada sociedade empresária atua. De um lado estaria um indivíduo ou um grupo de pessoas objetivando um benefício particular, de outro, uma comunidade diferenciada a ser negativamente afetada pelo insucesso definitivo da sociedade empresária (VERÇOSA, 2006, pp. 106-107). Nesse caso, o Direito Individual de propriedade (patrimonial) do titular cede (ainda que temporariamente) diante da necessidade do exercício e exploração da propriedade (CASTRO, 2007, p. 47). Portanto, a defesa da preservação da sociedade empresária não autoriza sua aplicação generalizada, isto é, padronizada, com sacrifício habitual dos credores. Há que se efetuar uma análise específica do caso concreto e, por conseguinte, dos interesses envolvidos, de modo a decidir se naquela situação prepondera a manutenção da unidade 241 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial produtiva em detrimento dos seus credores (crédito) ou a liquidação imediata, evitando que seu estado de insolvência permaneça indefinido, abalando não só a comunidade envolvida, mas também a credibilidade do mercado, essencial para o seu funcionamento. Compete, pois, ao juiz a análise do caso concreto, com base nos princípios norteadores da ordem econômica, decidir se determinada sociedade empresária merece guarida judicial no sentido de ser preservada; ou, caso contrário, liquidada imediatamente, de modo que as demais sociedades empresárias que integram o mercado não sofram nenhum abalo, continuando o exercício de suas atividades. Não resta outra opção ao juiz, uma vez que seria ingênuo legislar sobre critérios eminentemente econômicos (CASTRO, 2007, p. 49). Importante, também, a função desenvolvida pela jurisprudência, com o intuito de harmonizar textos de lei que em tese resultam contraditórios, como também de desenvolver e concretizar a norma jurídica. Entre o ideal da certeza e da estabilidade das normas para que a segurança no tráfico jurídico não fique comprometida, e o ideal de que o Direito se aproxime da Justiça, a jurisprudência realiza sua altíssima função de harmonizar o que aparentemente resulta contraditório: harmonizar aquela certeza e estabilidade da norma com o fluente e variável que nos apresente a vida do Direito. A jurisprudência, como fonte subsidiária do Direito, evitando sua cristalização, constitui a prova de como já não procede inclinar-se ante o dogma da onipotência legislativa e, assim, permanecer indiferente ou impassível frente a uma norma que se separa da ideia da maior humanização (SPOTA, 2005, p. 5). O princípio da preservação da sociedade empresária, portanto, é um princípio constitucional, porém o modo de sua aplicação, isto é, a preservação propriamente dita ou liquidação imediata, deve ser analisada caso a caso pelo juiz. A sua transparência e viabilidade serão elementos absolutamente decisivos para que o instituto tenha êxito (CASTRO, 2007, pp. 51-51) e (LUCCA, 1999, p. 48). Desse modo, evidente que a concretização dos Direitos Fundamentais sociais exige não só uma nova política orçamentária com fiscalização efetiva do Judiciário, mas também, uma dogmática constitucional emancipatória, que interprete não só o texto constitucional, mas igualmente o Código Civil e legislação extravagante de modo solidário, aberto e evolutivo, como, por exemplo, na defesa responsável do princípio constitucional da preservação da sociedade empresária (CASTRO, 2007, p. 52). O Código Civil de 2002 demonstra a importância em propiciar meios para a preservação e continuidade da atividade exercida pela sociedade empresária, uma vez que é fonte de tributos, empregos e divisas, propiciando, pois, benefícios à sociedade em geral. 242 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Exemplo disso deriva da norma positivada no art. 974 5 do mesmo diploma que trata da pessoa do incapaz. Com efeito, o Código Civil de 2002 permite que o incapaz, devidamente assistido por meio de representante, possa continuar o exercício da atividade empresária (até então administrada sozinha por ele enquanto capaz), ainda que mediante autorização judicial, admitindo dessa forma que o incapaz continue a atividade empresária, ainda que sujeito a restrições. Em outras palavras, antes do advento do Código Civil de 2002 caso o sócio administrador de uma sociedade empresária viesse a se tornar incapaz (como, por exemplo, em decorrência de acidente de trânsito ou mesmo sério abalo emocional), inexoravelmente, a sociedade empresária era dissolvida, com o encerramento de suas atividades, causando, pois, consequências nefastas a toda a coletividade envolvida. Afinal, os funcionários ficavam desempregados. O Estado deixava de recolher tributos derivados daquela atividade econômica organizada. Os fornecedores ficavam impossibilitados de fornecer matéria-prima e assim sucessivamente ocorria com os demais envolvidos na cadeia empresária. Depreende-se, pois, que do texto do art. 974 do Código Civil de 2002 extrai-se o princípio da preservação da sociedade empresária, uma vez que o legislador optou pela separação da sorte da sociedade empresária e da do empresário, sem, contudo, olvidar de continuar tutelando o patrimônio particular do incapaz, uma vez que esse patrimônio específico não se sujeita aos riscos inerentes do exercício da atividade empresária, 6 ou seja, não serve como garantia ao pagamento de eventuais débitos (CASTRO, 2007, pp. 112-113). A preservação da sociedade empresária, na verdade, impregna todo o Título II do Livro II do Direito de Empresa, denominado Da Sociedade. Para sustentar essa alegação, basta se socorrer à regra positivada no art. 1.033, inciso IV: dissolve-se a sociedade quando ocorrer: (...) a falta da pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias, sepultando em definitivo a possibilidade de extinção de sociedade empresária composta por apenas dois sócios, na hipótese de afastamento de um deles (CASTRO, 2007, p. 113). Outro exemplo que enfatiza o princípio da preservação da sociedade empresária como fio condutor do Código Civil de 2002, reside na regra positivada no art. 1.085, que permite a exclusão do sócio que está pondo em risco a continuidade da sociedade empresária, 5 CC/2002, art. 974. Poderá o incapaz, por meio de representante ou devidamente assistido, continuar a empresa antes exercida por ele enquanto capaz, por seus pais ou pelo autor de herança. 6 CC/2002, art. 974, § 2º. Não ficam sujeitos ao resultado da empresa os bens que o incapaz já possuía ao tempo da sucessão ou da interdição, desde que estranhos ao acervo daquela, devendo tais fatos constar do alvará que conceder a autorização. 243 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial ainda que observado previamente o exercício do Direito de defesa em assembleia. 7 O próprio art. 1.029 8 do mesmo diploma estabelece a faculdade de que qualquer sócio pode retirar-se da sociedade, sem prejuízo de sua continuidade. Reflete, também, a função social dos contratos, corolário da função social da propriedade, sendo que para compreender o desenvolvimento desse novo paradigma, basta ver a construção do princípio da preservação da sociedade empresária (FORGIONI, 2003, p. 34). A preservação da sociedade empresária como princípio estruturante do Código Civil de 2002, 9 também, ficou revelada na influência que exerceu no relator do Projeto de lei n° 71/03, externada no Parecer 534, de 2004, que resultou na posterior lei n° 11.101/05, denominada Lei de Recuperação de Empresas e Falência, que, ao tratar da noção de empresário, registrou sua preocupação em evitar interpretações equivocadas e aproveitar do Código Civil de 2002. Reforça esse entendimento, a redação dos arts. 1º e 47 da lei n° 11.101/05 que dispõe: Art. 1º. Esta lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor. [...] Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. O legislador ao erigir o princípio da preservação da sociedade empresária como fundamento estruturante do Livro II do Código Civil de 2002, gerou repercussões, dentre as quais, destaque-se a sua manifesta incompatibilidade com o abuso na utilização do instituto da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, que, por seu turno, era para se constituir em situação excepcional, embora a realidade do cotidiano forense demonstre exatamente o 7 CC/2002, art. 1.085. Ressalvado o disposto no art. 1.030, quando a maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital social, entender que um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de inegável gravidade, poderá excluí-los da sociedade, mediante alteração do contrato social, desde que prevista neste a exclusão por justa causa. Parágrafo único. A exclusão somente poderá ser determinada em reunião ou assembleia especialmente convocada para esse fim, ciente o acusado em tempo hábil para permitir seu comparecimento e o exercício do direito de defesa. 8 CC/2002, ar. 1.029. Além dos casos previstos na lei ou contrato, qualquer sócio pode retirar-se da sociedade; se de prazo indeterminado, mediante notificação aos demais com antecedência mínima de sessenta dias; se de prazo determinado, provando judicialmente justa causa. 9 Entendemos, portanto, que, se a legislação extravagante que trata exclusivamente da recuperação (preservação) de sociedades empresárias utilizou como instrumental teórico o Código Civil de 2002, inexoravelmente, o princípio da preservação da sociedade empresária foi alçado à linha mestra do próprio Código Civil. 244 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial inverso, isto é, desvirtuamento, quando não, aplicação exagerada do instituto da disregard doctrine. Em outras palavras, o desenvolvimento da teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica está solidificando uma tendência de generalizá-la, inadvertidamente. Em razão disso, a prática forense mormente no âmbito das relações de consumo e do trabalho (até mesmo em ações falimentares) demonstra uma nítida despreocupação com os parâmetros estabelecidos na doutrina. Nesse mesmo sentido, (VERÇOSA, 2006, p. 105) também defende que o abuso do instituto da disregard doctrine desestimula a atividade empresária, causando insegurança aos agentes econômicos e eventualmente os afastando da opção pelo exercício daquela, com prejuízo para a economia como um todo. Da desconsideração generalizada da personalidade da pessoa jurídica, tal como se tem verificado em diversas áreas do Direito, deve-se passar à sua reconsideração, com o fortalecimento da atividade empresária. Nesse sentido é o Enunciado 51 aprovado pela Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13.9.2002, sob a coordenação de Ruy Rosado de Aguiar, na ocasião, Ministro do Superior Tribunal de Justiça: Enunciado 51. Art. 50. a teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine– fica positivada no Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema. Portanto, para ALVIM (1997, pp. 211 et seq.) ao aplicar-se a teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, deve-se verificar atentamente, se estão presentes os pressupostos reconhecidos pela doutrina como ensejadores de sua aplicação, para, somente depois, em caso de resposta afirmativa, proceder-se à sua efetiva aplicação, garantindo-se a ampla defesa e o devido processo legal (CF, art. 5º, LIV e LV). Depreende-se, portanto, que o princípio da preservação da sociedade empresária tem se constituído a principal preocupação do Direito de Empresa contemporâneo, diante do inegável abalo social produzido por uma quebra. No caso, ausente prejuízo a qualquer dos interessados, não há razão para declarar a nulidade de arrematação que não seguiu os estritos comandos do Código de Processo Civil. Valorização, no caso, da preservação da atividade empresária em detrimento do formalismo procedimental. 10 A melhor interpretação da lei é a 10 RIO GRANDE DO SUL – Ag. Inst. n° 70004703112 - 2ª Câmara Especial Cível - Relator Des. Ícaro Carvalho de Bem Osório – v. u. – j. em 30.10.2002. 245 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar a injustiças. 11 A atividade judicial, portanto, não se exaure em desvendar o significado da lei ou mesmo a intenção do legislador, com cunho meramente declaratório. Na verdade, possui caráter constitutivo, ou seja, o juiz ao decidir, cria uma norma jurídica renovando o sistema jurídico. Desta forma, na medida em que se busca demonstrar que o princípio da preservação da sociedade empresária se constitui no pilar do Direito de Empresa no Código Civil de 2002, há que se esclarecer que esse pensamento implica visualizar o Código como um sistema aberto que integra a unidade do sistema jurídico, cuja leitura deve ser feita a partir da Constituição Federal, cuja concretização dos valores e princípios constitucionais não se exaure com a promulgação da Constituição Federal e, muito menos, com o advento da vigência do Código Civil de 2002 (CASTRO, 2007, pp. 131-133). Dentro dessa ótica, deve-se, pois, proceder à releitura do Livro II do Código Civil, que trata do Direito de Empresa à luz da Constituição Federal, cuja perspectiva indica para arco evolutivo que migra da relação jurídica fundada acentuadamente na garantia do crédito para trânsito jurídico que dá relevo destacado à proteção da pessoa (FACHIN, 2001, p. 175). A teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica possui um estreito liame com o princípio da preservação da sociedade empresária. A teoria da disregard doctrine of legal entity não postula a invalidade, irregularidade ou dissolução da sociedade empresária. Ao contrário, por desconsideração da autonomia patrimonial se entende tomar por episodicamente ineficaz o ato constitutivo da pessoa jurídica, ou seja, a sociedade empresária será ignorada apenas no julgamento da conduta fraudulenta ou abusiva da pessoa que a utilizou indevidamente, permanecendo existente, válida e eficaz em relação a todos os demais aspectos no plano de sua existência jurídica. Em outros termos, os demais negócios jurídicos celebrados pela pessoa jurídica, que não se encontrarem diretamente relacionados com a fraude ou abuso a coibir, são preservados em sua validade e eficácia. Isto significa que a teoria da disregard doctrine possibilita a coibição da fraude ou do abuso sem o comprometimento dos interesses que visam o desenvolvimento da atividade empresária, que nenhuma relação guardam com a conduta fraudulenta ou abusiva justificadora da aplicação da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica; e possibilita a preservação da sociedade empresária porque não se põe em questão a validade ou regularidade do ato constitutivo ou dos negócios e demais atos jurídicos praticados pela sociedade empresária. Naquele episódio, 11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma – Resp. 299/RJ – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo – v. u. – j. em 28.8.1989. RSTJ 4/1.555. 246 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial e somente nele, em que a autonomia patrimonial foi instrumento de fraude ou abuso, a sociedade empresária não será considerada, mas ignorada. Para as demais relações jurídicas ela continua sendo pessoa jurídica sujeita de direitos e obrigações no âmbito do ordenamento jurídico. Capítulo III - Visão da jurisprudência. O Recurso Especial n° 279.273/SP12 enfrenta a questão relacionada ao desabamento de um Shopping Center em Osasco-SP a Min. Nancy Andrighi confirmou o entendimento de que o parágrafo 5º do art. 28 da lei n° 8.078 de 11 de setembro de 1990 estaria relacionado à teoria menor da disregard doctrine com fundamento nas razões a seguir descritas: A relatora inicia seu raciocínio para caracterizar a incidência do CDC e a equiparação dos transeuntes em shopping center à noção de consumidor. Reconhece a doutrina que o art. 2º do CDC 13 é insuficiente para abranger como consumidor somente aquele que adquire o produto como destinatário final, porque a interpretação teleológica do parágrafo único do art. 2º, combinado com o art. 17 do CDC, 14 conduz à compreensão de que também são considerados consumidores, ainda que não participem diretamente da relação de consumo, os denominados pela doutrina e jurisprudência norte-americana de bystander. Abrange o conceito de bystander aquelas pessoas físicas ou jurídicas que foram atingidos em sua integridade física ou segurança, em virtude do defeito do produto, não obstante não serem partícipes diretos da relação de consumo. O shopping center oferece à sociedade um serviço determinado, distinto dos serviços e bens ofertados pelas lojas, consistente na oferta de segurança, lazer e conforto àqueles que pretendem ou adquirir bens e serviços dos lojistas instalados no local, ou simplesmente transitar pelas galerias como forma de distração e lazer, sendo equiparados pela abrangência do estabelecido no art. 17 que os equipara a consumidores. Para a Min. Nancy Andrighi pode-se afirmar que todo e qualquer frequentador de shopping, tenha ou não interesse em adquirir bens ou serviços é consumidor nos termos do 12 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.Recurso Especial n° 279.273/SP (2000/0097184-7), 3ª Turma, Min. Rel. Ari Pargendler; Rel. p/ acórdão Nancy Andrighi, D.J. de 29.3.04, j. não conhecer de ambos os recursos especiais – v.v. 13 Relembre-se o art. 2º CDC. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se ao consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. 14 Art. 17 CDC. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento. 247 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial art. 2º do CDC, porque adquire como destinatário final, o serviço de segurança, lazer e conforto ofertado pelo shopping center. Por sua vez, o fato de o administrador do shopping não cobrar dos frequentadores preço pelo ingresso em suas dependências não conduz à conclusão de que o serviço ofertado pelo shopping center seja de natureza gratuita, porquanto o intuito oneroso, ainda que indireto, é evidente, dada a relação existente entre o conforto e a segurança do shopping, de um lado, e a promoção de vendas de bens e serviços dos lojistas instalados ao longo das galerias, de outro. E, ainda que não se considerasse o frequentador como destinatário final do serviço prestado pelo shopping center, deve-se observar o art. 17 do CDC, o qual equipara à noção de consumidor todas as vítimas do fato do serviço. Feitas essas considerações, logo a seguir a Ministra Nancy Andrighi passa a enfrentar o tema da responsabilidade dos administradores e sócios pelas obrigações imputáveis à pessoa jurídica, em especial no que respeita aos contornos atuais do instituto da desconsideração e a disciplina adotada pelo CDC a respeito. Em seu voto que prevaleceu sobre o entendimento do Min. Relator que ficou vencido nessa parte ficou evidenciado que a teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica quanto aos pressupostos de suas incidências, subdivide-se em duas categorias: teoria maior e teoria menor da disregard doctrine. Para ela, a teoria maior não pode ser aplicada com mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade, ou a demonstração de confusão patrimonial. A prova de desvio de finalidade faz incidir a teoria (maior) subjetiva da desconsideração. O desvio de finalidade é caracterizado pelo ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica. A demonstração da confusão patrimonial, por sua vez, faz incidir a teoria (maior) objetiva da desconsideração. A confusão patrimonial caracteriza-se pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial do patrimônio da pessoa jurídica e do de seus sócios, ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas. A teoria maior da desconsideração, seja a subjetiva, seja a objetiva, constitui a regra geral no sistema jurídico brasileiro, positivada no art. 50 do Código Civil de 2002. A teoria menor da disregard doctrine, por sua vez, parte de premissas distintas da teoria maior: para a incidência da doutrina com base na teoria menor, basta a prova de 248 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. Para esta teoria, o risco empresário normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica. No ordenamento jurídico brasileiro, a teoria menor da desconsideração foi adotada excepcionalmente, por exemplo, no Direito ambiental (lei n° 9.605/98, art. 4°) e no Direito do consumidor (CDC, art. 28, § 5°). O referido dispositivo do CDC, quanto à sua aplicação, sugere uma circunstância objetiva. Da exegese do § 5° deflui, expressamente, a possibilidade de desconsideração da personalidade da pessoa jurídica pela mera prova da insolvência da pessoa jurídica, fato este suficiente a causar obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. É certo que a doutrina pátria se divide entre aqueles que aplaudem a inovação e aqueles outros que entendem que as razões do veto do § 1° do art. 28 do CDC deveriam ser destinadas ao § 5°, esse sim, sob a ótica de parte representativa de vozes autorizadas, sem razão de ser porque a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica está associada ao ilícito, ao desvirtuamento e abuso da forma social. Existem argumentos também no sentido de que a topografia do § 5° do art. 28 significaria a dependência do seu preceito ao reconhecimento de abuso, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, e à novel disposição de má administração causadora de falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica. Fato é que o § 5° do art. 28 do CDC não guarda relação de dependência com o caput do seu artigo, o que, por si só, não gera incompatibilidade legal, constitucional ou com os postulados da ordem jurídica. Não são válidos os argumentos de que as razões de veto deveriam ser dirigidas ao § 5° e de que não se conceberia sua existência autônoma dissociada do preceito veiculado no caput do art. 28 da lei n° 8.078/90. A tese de que a teoria menor da disregard doctrine aplica-se às relações de consumo, está calcada, como dito, na exegese autônoma do § 5° do art. 28, do CDC, isto é, afasta-se, aqui, a exegese que subordina a incidência do § 5° à demonstração dos requisitos previstos no caput do art. 28 do CDC. E isto porque o caput do art. 28 do CDC acolhe a teoria maior subjetiva da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, enquanto que o § 5° do 249 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial referido dispositivo acolhe a teoria menor da disregard doctrine, em especial se considerado for a expressão também poderá ser desconsiderada, o que representa, de forma inegável, a adoção de pressupostos autônomos à incidência da disregard doctrine. Considerações finais É certo que a parte final de uma investigação científica não deve se limitar a repetir todas as conclusões consignadas no desenvolvimento dos capítulos. Na verdade, busca ressaltar as principais conclusões com o escopo de destacar a premissa geral e, por conseguinte, demonstrar que o resultado final alcançou sua meta desejada. Ainda que a proposta defendida continue em sua evolução doutrinária, mesmo porque a conclusão da investigação não implica obrigatoriamente o seu destino final. Dentro desse contexto, extraem-se as seguintes conclusões: 1. A construção teórica da personalidade jurídica às pessoas jurídicas foi motivada devido à necessidade verificada na realidade subjacente e, assim, a autonomia patrimonial foi um dos aspectos considerados de maior relevo. A limitação da responsabilidade patrimonial dos sócios e administradores se consolidou como fator de segurança e tranquilidade, servindo como estímulo à atividade empresária. 2. A teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica surge exatamente como o modo de coibir e reprimir os abusos e fraudes praticadas através da pessoa jurídica, permitindo, devido à sua aplicação, a relativização da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, afastando episodicamente a eficácia da independência de patrimônios sempre que haja obstáculo ao ressarcimento a terceiros prejudicados pela fraude ou abuso perpetrado pelos sócios ou administradores. 3. O legislador, ao erigir o princípio da preservação da sociedade empresária como fundamento estruturante do Livro II do Código Civil de 2002, gerou repercussões, dentre as quais, destaque-se a sua manifesta incompatibilidade com o abuso na utilização do instituto da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, que, por seu turno, era para se constituir em situação excepcional, embora a realidade do cotidiano forense demonstre exatamente o inverso, isto é, desvirtuamento, quando não, aplicação exagerada do instituto da disregard doctrine. 4. O desenvolvimento da teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica está solidificando uma tendência de generalizá-la, inadvertidamente. Em razão disso, 250 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial a prática forense no âmbito das relações de consumo e do trabalho (até mesmo em ações falimentares) demonstra não guardar qualquer relação com as premissas clássicas que sempre nortearam a teoria da desconsideração. 5. O abuso na utilização do instituto da disregard doctrine desestimula a atividade empresária, causando insegurança aos agentes econômicos e eventualmente os afastando da opção pelo exercício daquela, com prejuízo para a economia como um todo. A concessão da teoria da desconsideração através de um modelo universalizante, capaz de envolver todos os tipos de sociedades empresárias, tal como se tem verificado em diversas áreas do Direito, deve passar à sua reconsideração, para se adaptar a diferentes contingências econômicas, políticas e culturais. 6. Não é a simples existência de dano sofrido pelo credor ou terceiro que autoriza a aplicação da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. O princípio da autonomia patrimonial é importante mecanismo jurídico de motivação da iniciativa privada no âmbito da economia de mercado. Em outras palavras, a menos que se demonstre a ocorrência de fraudulento ou abusivo uso da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, ela não poderá ser desconsiderada. O segundo princípio dos quatro formulados por Rolf Serick, ao sintetizar os fundamentos da disregard doctrine, consigna que não cabe desconhecer a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, apenas porque não se realizou o objetivo de norma jurídica ou a causa objetiva de negócio jurídico. 7. Isto significa, é certo, o reforço ao entendimento da validade da separação patrimonial da pessoa jurídica, vez que se condena apenas o seu eventual uso indevido. Se se encontrar a pessoa jurídica dentro dos limites delineados pelo legislador infraconstitucional, merece a sociedade empresária, os seus sócios e administradores a tutela emanada do ordenamento jurídico, que consagra o princípio da separação patrimonial. 8. Ainda quanto à natureza do abuso ou da fraude que autorizam a aplicação da disregard doctrine, não é qualquer expediente fraudulento ou abusivo causador de dano a terceiro que possibilita ao magistrado afastar a incidência da regra da separação patrimonial. Deve o ilícito caracterizar-se pela manipulação indevida da autonomia patrimonial. Do mesmo modo, ocorrendo ocultação de pessoa atrás da personalização da pessoa jurídica, para se furtar ao cumprimento de obrigação legal ou contratual dela própria, é que se pode cogitar na invocação da disregard doctrine. 9. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica da pessoa possui um estreito liame com o princípio da preservação da sociedade empresária. A teoria da disregard doctrine of legal entity não postula a invalidade, irregularidade ou dissolução da sociedade empresária. 251 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Ao contrário, por desconsideração da autonomia patrimonial se entende tomar por episodicamente ineficaz o ato constitutivo da pessoa jurídica, ou seja, a sociedade empresária será ignorada apenas no julgamento da conduta fraudulenta ou abusiva da pessoa que a utilizou indevidamente, permanecendo existente, válida e eficaz em relação a todos os demais aspectos no plano de sua existência jurídica. Em outros termos, os demais negócios jurídicos celebrados pela pessoa jurídica, que não se encontrarem diretamente relacionados com a fraude ou abuso a coibir, são preservados em sua validade e eficácia. Isto significa, que a teoria da disregard doctrine possibilita a coibição do abuso ou da fraude sem o comprometimento dos interesses que visam o desenvolvimento da atividade empresária, que nenhuma relação guardam com a conduta fraudulenta ou abusiva justificadora da aplicação da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica; e possibilita a preservação da sociedade empresária porque não se põe em questão a validade ou regularidade do ato constitutivo ou dos negócios e demais atos jurídicos praticados pela sociedade empresária. Naquele episódio, e somente nele, em que a autonomia patrimonial foi instrumento de abuso ou fraude, a sociedade empresária não será considerada, mas ignorada. Para as demais relações jurídicas ela continua sendo pessoa jurídica sujeita de direitos e obrigações no âmbito do ordenamento jurídico. 10. Os métodos e critérios da análise econômica do Direito são de extrema importância para o exame da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica vez que a distinção entre os vários credores das sociedades empresárias na aplicação da disregard doctrine se mostra de grande relevância, tendo em vista que os credores que tiveram a possibilidade de internalizar, ex ante, o risco relativo à limitação da responsabilidade, não podem ser tratados da forma com que são aqueles que não tiveram essa oportunidade, sob pena de reduzir a sociedade empresária a uma “caixa vazia”, incapaz de retratar, na sua essência, todos os matizes que envolvem a complexa atuação dos agentes econômicos. Referências BASTOS, Celso Ribeiro. Direito econômico brasileiro. São Paulo: IBDC, 2000. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.Recurso Especial n° 279.273/SP (2000/0097184-7). Recorrentes: B Sete Participações S/A e outros; Recorrente: Marcelo Marinho Andrade Zanotto e outros, Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo, 3ª Turma, Min. Rel. Ari Pargendler; Rel. p/ acórdão Nancy Andrighi, D.J. de 29.3.04, j. não conhecer de ambos os recursos especiais – v.v. 252 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. Preservação da empresa no código civil. Curitiba: Juruá, 2007. COELHO, Fábio Ulhoa. As teorias da desconsideração. In: Desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2005. _____. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2005, vol. II. CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. DINIZ, Gustavo Saad. Responsabilidade dos administradores das sociedades empresariais por débitos negociais e não-negociais. 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In: Repertório IOB de Jurisprudência, n° 22, São Paulo, 1991. 253 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial FUNÇÃO PROFILÁTICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL CONSUMERISTA E A INDÚSTRIA DO DANO MORAL: CIDADANIA EMPRESARIAL NA SOCIEDADE DE RISCO PROPHYLACTIC FUNCTION OF CONSUMERIST CIVIL LIABILITY AND MORAL DAMAGE INDUSTRY: CORPORATE CITIZENSHIP IN RISK SOCIETY Ana Cecília Parodi1 RESUMO Função profilática da responsabilidade civil consumerista e a indústria do dano moral: cidadania empresarial na sociedade de risco. Quando o empresário decide não prevenir os eventos lesivos, ainda que não atue com dolo, esse fornecedor deixa os resultados potenciais à sorte, decidindo assumir para si os riscos legais de responder pelas consequências de suas condutas. Essa decisão empresarial, optando entre prevenir o dano ou assumir os riscos legais, em regra, já é uma consequência da anterior aplicação da função profilática da responsabilidade civil no sistema jurídico brasileiro e, via de consequência, um fator determinante para a realização – ou não – do exercício da responsabilidade social e ambiental e para o estabelecimento do desenvolvimento sustentável, elidindo, ou ao menos mitigando, os efeitos deletérios naturais do capitalismo contemporâneo e da sociedade de consumo industrializada e globalizada. A racionalidade teórica da Análise Econômica do Direito e, mais precisamente, da Teoria dos Jogos, são instrumentos virtuosos para explicar a correlação entre a influência da jurisprudência e o processo de tomada de decisão empresarial, desmistificando a mera possibilidade do estabelecimento jurídico de uma alegada “indústria do dano moral”. PALAVRAS-CHAVE: Empresa; Livre Iniciativa; Função Profilática da Responsabilidade Civil; Constituição Federal; Desenvolvimento Sustentável; Responsabilidade Social Empresarial; Poder Judiciário e Economia; Análise Econômica do Direito; Teoria dos Jogos. ABSTRACT Prophylactic function of consumerist civil liability and moral damage industry: corporate citizenship in risk society. When the entrepreneur decides not to prevent harmful events, although he not act with intent, that vendor leaves the potential outcomes to luck, deciding to take legal risks for himself to answer for the consequences of his behavior. This business decision, choosing between preventing harm or take the legal risks, as a rule, it is a consequence of the previous application of prophylactic function of civil liability in the Brazilian legal system and, as a consequence, a determining factor for the realization - or not - the exercise of social and environmental responsibility and the establishment of sustainable development, supressing, or at least mitigating the deleterious effects of natural contemporary capitalism and the consumer society industrialized and globalized. The theoretical justification of Economic Analysis of Law and, more precisely, Game Theory, are both virtuous instruments to explain the correlation between the influence of the case law and the process of corporate decision making, demystifying the mere possibility of the legal establishment of an alleged "industry of moral damages. KEYWORDS: Company; Free Enterprise; Prophylactic Role of Liability; Federal Constitution; Sustainable Development; Corporate Social Responsibility; Judiciary and Economics; Economic Analysis of Law; Game Theory. 1 Doutoranda em Direito Civil (USP). Mestre em Direito Econômico e Social (PUCPR). Especialista em Direito Civil e Empresarial (PUCPR) e em Direito Aplicado (EMAP-PR). Diretora Jurídica da gestora patrimonial Decisão Investimentos. Autora de obras jurídicas. Palestrante e Conferencista. Blog: http://atualidadesdodireito.com.br/anaceciliaparodi. 254 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: A SOCIEDADE DE RISCO E DE CONSUMO O consumidor é indiscutivelmente a parte mais vulnerável das relações econômicas de consumo e a necessidade de sua proteção é reconhecida, demandando proteção expressa e transparente da lei, sendo que desde os tempos de Hamurabi2 já se ouvia da vocação legislativa em favor da proteção das obrigações decorrentes do fornecimento e da prestação de serviço. Com a evolução dos séculos e dos modos de produção, o consumidor variou de posição legislativa, atingindo, finalmente, o reconhecimento legal de sua relevantíssima posição na cadeia produtiva, a saber, a de destinatário final (ressalvados aqueles que são “aos consumidores equiparados por lei”), após as transformações do industrialismo, valendo menção ao artigo 1, da Resolução no 39/2483 (Organização das Nações Unidas, 1985), o qual embasa o artigo 4º, do Código de Defesa do Consumidor brasileiro. É notório que todo contrato de consumo nasce eivado de potencial desequilíbrio, porque o mais forte impõe condições, tantas vezes injustas, sem possibilidade de oposição (LACERDA MARTINS, 2002, p.8). Claudia Lima Marques (2006, p. XVII) afirma que o Direito pode ser instrumento de Justiça, de equilíbrio contratual e de vinculação social, “instrumento de proteção de determinados grupos na sociedade, de combate ao abuso do poder econômico e combate a toda a atuação que seja contrária à boa-fé no tráfico social e no mercado”. Porém, para que o Ordenamento tenha essa utilidade, ou seja, para alçar à efetividade seu status funcional, é mister que as leis sejam transparentes e diretas em suas pretensões, sanções e recompensas, bem como, que a sua aplicação pelo Poder Judiciário – ou Administrativo, quando a este competir – seja eficiente, de forma a, nas palavras de Lima Marques, vincular a sociedade e combater abusos, reprimindo as condutas ilícitas, – as quais hoje, por virtude do Código Civil de 2002, englobam em gênero, ao abuso de direito. Quanto à responsabilização objetiva, esta modalidade de imputação obrigacional decorre, no direito brasileiro, da teoria do risco da atividade, conquanto haja divergência doutrinária acerca das possíveis classificações deste risco. Contudo, interessa trazer à baila duas outras espécies de risco: o primeiro, bem tratado pela doutrina, o risco do desenvolvimento; e o 2 “Art. 229 Se um pedreiro edificou uma casa para um homem mas não a fortificou e a casa caiu e matou o seu dono, esse pedreiro será morto”. [...] No mesmo sentido, estabelece o Código de Hamurabi: “Art. 233 Se um pedreiro construiu uma casa para um homem e não executou o trabalho adequadamente e o muro ruiu, esse pedreiro fortificará o muro às suas custas”. Conforme Plínio Lacerda Martins (2002, p. 2). 3 A 106ª Sessão plenária da ONU editou, em 9 de abril de 1985, a Resolução no 39/248, que retrata no art. 1 que o consumidor é parte mais fraca nas relações de consumo (MARTINS, 2002, p. 1). 255 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial segundo, tratado de maneira mais generalista, está ligado a uma outra perspectiva do risco da atividade, a saber, o risco a que o exercício da atividade expõe o consumidor, de sofrer danos, visto a partir da disposição do fornecedor em evitar tais lesões ou deliberadamente optar por se conduzir descuidadamente ou cometendo atos diretamente nocivos. De toda forma, ao não prevenir os eventos lesivos, antes, se não atuando com dolo, o fornecedor deixa os resultados potenciais à sorte, decidindo assumir para si os riscos legais de responder pelo resultado de suas condutas. Essa decisão empresarial, optando entre prevenir o dano ou assumir os riscos legais, em regra, já é uma consequência da anterior aplicação da função profilática da responsabilidade civil no sistema jurídico brasileiro e, via de consequência, um fator determinante para a realização – ou não – do exercício da responsabilidade social e ambiental e para o estabelecimento do desenvolvimento sustentável, elidindo, ou ao menos mitigando, os efeitos deletérios naturais do capitalismo contemporâneo e da sociedade de consumo industrializada e globalizada. A racionalidade teórica da Análise Econômica do Direito e, mais precisamente, da Teoria dos Jogos, são instrumentos virtuosos para explicar a correlação entre a influência da jurisprudência e o processo de tomada de decisão empresarial, desmistificando a mera possibilidade do estabelecimento jurídico de uma alegada “indústria do dano moral”. Concomitante à sociedade de consumo coexiste a sociedade de risco, lugar social onde ganha relevo a figura do risco de desenvolvimento. Fabiana Maria Martins Gomes de Castro (2002, p. 126) oferta um conceito4: 4 Fabiana Maria Martins Gomes de Castro (2002, p. 124/125) demonstra a evolução histórica da sociedade de risco, desde o aparecimento da sociedade industrial e indo até a contemporaneidade. Vale a leitura: “A sociedade de risco representa um estágio avançado da sociedade industrial e historicamente pode ser distinguido em três momentos. O primeiro momento corresponde ao surgimento da idade moderna, que coincidiu com o aparecimento da sociedade industrial. Os riscos inerentes à sociedade industrial eram incipientes e controláveis, pois apesar do decurso integrado dos progressos técnicos, científicos e econômicos sob a égide da racionalidade, as suas potencialidades estavam longe do auge e seus efeitos sobre a vida das pessoas eram perfeitamente controláveis. A sociedade industrial primigénia dos séculos XVIII e XIX é denominada por Ulrich Beck como sociedade de riscos residuais. O segundo momento, compreendido entre o final do século XIX até a primeira metade do século XX, traduziu a atitude coletiva e voluntarista de conter e domesticar entre riscos mensuráveis e controláveis, tendo em vista a redução de sua ocorrência e gravidade. O risco deixou de ser visto como um golpe de azar e adquiriu a forma de acontecimento estatisticamente objetivado pelo cálculo da probabilidade e socialmente suportado pela mutualização dos prejuízos. O direito absorveu os prejuízos pelas atividades de risco, em termos de responsabilidade objetiva. O terceiro momento da história do risco é a nossa atual realidade, que assiste à crise do Estado de bem-estar social, à expansão em escala planetária da lógica do mercado e da racionalidade que a comanda. O desenvolvimento é desmedido na busca intensiva e exaustiva do esgotamento das possibilidades das formas de progresso, provocado pelo crescente desenvolvimento técnico, científico, econômico, burocrático e jurídico do mundo da vida, conduzindo ao surgimento de um novo gênero de riscos”. 256 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial O conceito de sociedade de risco prende-se com a emergência de novos e grandes riscos, gerados pelo lado obscuro do progresso, sem pensar o futuro das gerações que estão por vir. Estes novos riscos, embora resultantes de decisões humanas, surgem de um modo involuntário e independente do pensamento humano. A relevância em abordar esses novos riscos consiste no fato de que ele se forma no seio do próprio processo de modernização e apresentam-se à consciência social nos seus efeitos secundários, muitas vezes catastróficos, a longo prazo e não delimitáveis pelas coordenadas do tempo e espaço, tornando-se transgeracional e transfronteiriço. Esses riscos, ainda, não podem ser cobertos por um seguro privado, como sucedia com o risco empresarial da sociedade industrial nascente. Fabiana Castro (2002, p. 126) também comenta que a diferença entre a sociedade industrial e a sociedade de risco consiste no fato de que enquanto a primeira pressupõe o “domínio da lógica da riqueza e a admite como compatível à distribuição do risco, a segunda considera incompatível a distribuição da riqueza e de risco e aceita a rivalidade entre suas lógicas”. E explica sua intersecção com a sociedade de consumo (CASTRO, 2002, p. 123/126): Assim, a sociedade de consumo cruza-se com a sociedade de risco, uma vez que a primeira é organizada para a satisfação das necessidades da oferta e da procura de produtos e a segunda, representa um estágio avançado da sociedade industrial decorrente do processo de modernização e conscientiza-se de seus efeitos catastróficos secundários a longo prazo. Surge, então, a preocupação com os direitos básicos e com a proteção dos consumidores, bem como, a responsabilidade do fornecedor, principalmente no que tange aos chamados riscos de desenvolvimento, ou seja, aqueles que não podem ser cientificamente conhecidos no momento do lançamento do produto no mercado, vindo a ser descoberto somente após um certo período de uso, podendo causar danos morais, materiais e patrimoniais. [...] em virtude de que também na área de consumo irrompem novos riscos, pois o consumo em massa, característica da sociedade moderna, registra a presença de riscos incalculáveis e incontroláveis. Gustavo Passarelli da Silva (2002, p. 123) comenta que a evolução do risco coincide com as mudanças sociais e, via de consequência, afetou a tutela legal, na evolução das relações sociais: “notadamente a revolução industrial, o modelo até então utilizado não mais era satisfatório, razão pela qual se fez necessária a intervenção do Estado (Lei Aquilia), que avocou para si o direito de punir os infratores da Lei.” A sociedade de consumo, portanto, é uma sociedade de risco, em razão dos perigos inerente às utilidades colocadas no mercado, ou seja, o “risco de desenvolvimento”. Como bem ensina Marcelo Kokke Gomes (2001, p. 217-219), gravita na esfera da responsabilidade civil do consumidor – e de suas parcas hipóteses excludentes5 – o 5 Nessa esteira – ensina COSTA (1999, p. 314) –, a exoneração baseada no risco de desenvolvimento elide a responsabilidade civil do produtor que coloca no mercado produto novo com defeito que não é cientificamente e tecnicamente detectável, mas que existe e que se revelará mais tarde, como o caso da carne contaminada com vaca 257 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial interrrelacionamento “entre o potencial científico e os riscos desconhecidos que determinado produto ou serviço possui [...] a expressão risco de desenvolvimento é uso abreviado de ‘riscos que o desenvolvimento técnico e científico permite descobrir’”. Conceituando, ensina Zelmo Denari (2007, p. 194) que se trata daqueles riscos que correm “os fornecedores por defeitos que somente se tornam conhecidos em decorrências de avanços científicos posteriores à colocação do produto e do serviço no mercado de consumo6”. James Marins (1993, p. 128), por seu turno, pontua o risco de desenvolvimento como a: louca, a talidomida, o amianto, sangue contaminado, etc. Acerca do sistema de excludentes do CDC, comenta Denari (2007, p. 195): “A nosso aviso, a dicção normativa do inc. III do art. 12, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor, está muito distante de significar a adoção da teoria dos riscos de desenvolvimento, em nível legislativo, como propôs a Comunidade Econômica Européia. De resto, o exemplo da nocividade de certas drogas como a talidomida, e da comoção social causada em todo o mundo em decorrência de seu poder de mutilação do gênero humano, nos dá a exata medida da inconsistência dos postulados dessa teoria para a aferição da responsabilidade dos fabricantes. Quando estão em causa vidas humanas, as eximentes de responsabilidade devem ser recebidas pelo aplicador da norma com muita reserva e parcimônia”. E continua, acerca das inovações tecnológicas e do § 2º, do art. 12 (2007, p. 195-196): “Se o Código de Defesa do Consumidor acolhesse presunção desse jaez – ainda que relativa – seria responsabilizado por condenar ao obsoletismo nosso parque industrial, pois estaria tolhendo todos os avanços tecnológicos próprios de uma saudável econômica de mercado. [...] Entre as inovações que causaram maior impacto, podemos lembrar os equipamentos de segurança de última geração acoplados aos novos veículos, tais como sistema de freios ABS [...]; o sistema air bag [...]; bem como o avanço tecnológico decorrente da adoção do sistema de injeção direta, em substituição ao velho carburador.” 6 Para a compreensão do risco de desenvolvimento e a comparação do tratamento que recebe na União Européia, encontra-se excelente contribuição nas lições de Geraldo de Faria Martins da Costa – Risco de Desenvolvimento: uma exoneração contestável, onde faz virtuosa resenha da obra “Le risque de développement: une exonération contestable”, do destacadíssimo autor francês, Jean Calais-Auloy, que faz apologia da imposição da responsabilidade pelo risco de desenvolvimento, sobre os produtores, apesar da Loi du 19 mai 1998 ter transposto para o direito francês a diretiva da União Européia, de 15.07.1985, introduzindo a exoneração pelo risco de desenvolvimento. A diretiva – em que pese ser aplicada pela Corte de Justiça sob condições estritas – possui argumento de justificativa baseado na ruína econômica do produtor que é exposto a excessiva exigência, sendo-lhe quase impossível o asseguramento dessa espécie de risco, levando a desemprego e/ou desacelaração econômica pelo demorado período de testes, cessando as inovações. O autor argumenta que são alegações exageradas e divorciadas de suporte estatístico rigoroso. Justamente, a jurisprudência francesa sempre foi implacável na aplicação da responsabilidade pelo risco de desenvolvimento, sem contemplar desacelerações ou subdesenvolvimentos setorizados – do seguro à inovação científica. Contudo, a imposição à França decorreu do fato de que a maioria dos países membros à época já adotavam a exoneração. O princípio da equidade não socorre ao Fornecedor, vez que imputa o risco às vítimas. Eis a lição (COSTA, 1999, p. 314): “A eqüidade pede que se faça pesar o risco de desenvolvimento, não sobre as pessoas que sofreram um dano pelo fato do produto, mas sobre aquela que tomou a iniciativa de dele obter um lucro”. Ora, conhecer científica e tecnicamente um produto é parte da rotina dos laboratórios, em todos os setores. E continua: “Exonerar os produtores quando o estado de conhecimentos científicos e técnicos não lhes tenha permitido detectar a existência do defeito significaria dissuadi-los de ir mais longe em suas investidas prévias à colocação do produto no mercado, ou, pior, seria incitá-los a guardar em segredo o resultado de suas investigações. Significaria de certa maneira uma permissão para uma prévia organização da exoneração”. Queira ou não, eis presente o caráter indutor de comportamento, da norma. É como conclui Costa, em opinião pessoal, dizendo que a responsabilidade pelo fato do produto defeituoso é uma responsabilidade independente de culpa, e, além de obrigar os produtores a se tornarem mais vigilantes, tem a função principal de permitir a indenização das vítimas (COSTA, 1999, p. 316): “Ela conduz, de uma certa maneira, à coletivização dos riscos: o risco incorrido por cada produtor é por ele incorporado em seus preços, e se repercute sobre a massa dos compradores”. 258 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial possibilidade de que um determinado produto venha a ser introduzido no mercado sem que possua defeito cognoscível, ainda que exaustivamente testado, ante o grau de conhecimento científico disponível na época de sua introdução, ocorrendo, todavia, que, posteriormente, decorrido determinado momento de sua circulação no mercado de consumo, venha a se detectar defeito, somente identificável ante a evolução dos meios técnicos e científicos, capaz de causar danos aos consumidores. João Batista de Almeida (2006, p. 83/84) trata da figura do “risco criado”: A inevitabilidade dessas falhas no sistema de produção seriada e a impossibilidade prática de sua completa eliminação conduziram à idéia de criação dos mecanismos legais de ressarcimento de danos pelo simples fato da colocação no mercado de produtos e serviços potencialmente danosos, atribuindo ao fornecedor a responsabilidade pelos danos nessa condição causados à vítima e a terceiros, dentro do princípio de que aquele que lucra com uma atividade deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela decorrentes. Daí o surgimento da teoria do risco criado, que tem o sentido de atribuir ao fornecedor o dever de reparar danos causados aos consumidores pelo fato de desenvolver determinada atividade potencialmente danosa. Ou seja, faz com que o agente fornecedor assuma todos os riscos de sua atividade. Imbuído desse espírito, o legislador acolheu integralmente a teoria do risco criado como apta e suficiente para garantir o consumidor em relação aos danos que viesse a sofrer pelo fato da colocação no mercado de produtos e serviços. Contudo, o espírito da proteção é ainda mais extensivo e engloba a prevenção e reparação em sentido amplo, inclusive aqueles danos causados indiretamente, pela dinâmica da sociedade de consumo, notadamente nas relações empresariais. Existe amparo legal para a função preventiva que socorra à responsabilidade civil no sistema das relações consumeristas? Ou, nas palavras de Aurisvaldo Mello Sampaio7 (2004, p. 156-157): Melhor dizendo, prevê, a Lei Protetiva, instrumento para salvaguardar a saúde e a segurança do consumidor [...]? A resposta certamente será afirmativa. A ferramenta a ser utilizada é o princípio da efetiva prevenção de danos ao consumidor, ou, se preferir, aferrando-se à letra da lei, ‘direito básico à efetiva prevenção de danos’, previsto em norma de ordem pública e interesse social, o art. 6º, VI, do CDC, in expressis: ‘Art. 6.º São direitos básicos do consumidor: (omissis) VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos. Na justa sequência, o autor ainda afirma: “Nada há, aliás, a impor deva o princípio da efetiva prevenção de danos ao consumidor ser invocado somente nas hipóteses de haver certeza da periculosidade ou danosidade do produto”. O artigo 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor, preceitua que é direito básico do consumidor “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, 7 Há de se fazer um merecido elogio a Aurisvaldo Mello Sampaio, por sua paixão ao construir suas indignadas e combativas linhas, justamente no enfrentamento de poder econômico de grande e grave magnitude, a exemplo daquele detido por empresas como a Monsanto, notadamente pelo perigo coletivo que seus interesses econômicos – traduzidos em lobby político e resoluções de agências sanitárias – acarretam para a humanidade e para todo o meio ambiente, agravando a crise ecológica e a emergência socioambiental. 259 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial coletivos e difusos”. E assim, via de regra, quando a doutrina trata dessa prevenção, associa-a as questões ligadas ao risco de desenvolvimento, a exemplo do autor supracitado. Contudo, é de se propor uma interpretação extensiva e ampliativa ao instituto legal, considerando que teleologicamente pretendeu o legislador englobar, nessa prevenção, toda espécie de risco de acometimento de danos, assim como a ordem de reparação abrange a todas as pessoas e instituições, órgãos e poderes delegados competentes para efetuar essa reparação. Retomando as lições de Sampaio (2004, p. 156-157), ao tratar do artigo 6º, VI, ele fala sobre a efetiva prevenção e reparação de danos, imposta pela Lex Fundamentallis e, ainda que se refira à questão do risco de desenvolvimento, traduz importante afirmação imperativa: “É preciso – o quanto possível – preservar o homem dos riscos que a sociedade de consumo lhe impõe, a fim de que não sacrifiquemos magnos valores humanos em prol de interesses materiais.” Se, como afirma Sampaio, o artigo 6º, VI, merece interpretação teleológica e extensiva, ampliando a proteção sobre o consumidor, em razão da sua finalidade social e caráter de natureza pública, também é possível – e necessário – invocar o artigo 6º, VI, em favor da ideologia da prevenção de danos em geral, e não apenas daqueles que potencialmente venham a ser causados pelo risco de desenvolvimento, assim compreendido na esfera da incerteza científica acerca de possível periculosidade do produto ou serviço. Na mesma esteira, Agostinho Oli Koppe Pereira (2007, p. 18), afirma que, quando o “legislador do CDC, no título do Capítulo IV, expressamente fala ‘[...] da prevenção [...]’, mostra nitidamente sua preocupação com a intenção de não esperar o acontecimento do dano, mas evitálo através de medidas que impeçam seu surgimento”. Logo, acerca da dimensão coletiva, proposta por Garcia, inclusive para a apreciação do dano pontual, nas lides individuais, mister se faz, e isto por força de lei, que à responsabilização civil dos fornecedores seja conferido tratamento judicial especializado também pela ideologia proposta na política nacional de consumo, consistente com a função preventiva e pedagógica – que se materializa, especialmente, na dimensão coletiva das relações consumeristas – e, notadamente, com a efetiva reparação dos danos. Ideologia esta que se revela verdadeira norteadora de política pública, assim como corrobora Sampaio (2004, p.157): “... o art. 4º, II [CDC], estabelece como princípio da política nacional de consumo a efetividade da proteção ao 260 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial consumidor, mediante ação governamental. Efetividade que remete ao princípio da prevenção”. E efetividade que também remete às ações do Estado-Juiz8. Os riscos, na sociedade de consumo atual, são múltiplos e não apenas decorrentes de desconhecimento acerca de inerente vício de natureza. Ilustrativamente, relata-se um caso verídico, ocorrido na segunda semana de janeiro de 2009. Na condição de consumidora, a presente pesquisadora se dirigiu à sede de um jornal da capital do estado, a fim de publicar um anúncio de comercialização. Contudo, nesta data foi surpreendida pela existência, no sistema do jornal, de duplicidade de cadastro, tendo o último sido aberto em seu nome, apenas um dia antes, a partir de cidade da região metropolitana, conforme acusava o sistema e inclusive fornecendo endereço de correspondência situado em tal cidade, local absolutamente desconhecido para a consumidora. Notoriamente se tratava de uso fraudulento de seus dados, que foram aceitos regularmente pela empresa midiática e, maior desvelo não houve, dado que o cadastro foi aberto, contudo, nenhum anúncio tinha ainda sido contratado. Ora, é uma evidente falha na prestação do serviço, ao aceitar a abertura de cadastro baseado em dados de terceiros, sem que se peça qualquer comprovação de veracidade do alegado. Contudo, como o crédito da consumidora não chegou a ser utilizado – a gerar cobranças e eventual inadimplência em seu nome –, então, se levado ao conhecimento judicial a (justa, diga-se) reclamação pela ocorrência, dificilmente haveria reconhecimento da lesão moral sofrida pela consumidora, provavelmente com base na teoria do “fato da vida”, “mero aborrecimento” e “dano moral não verificado”. A consumidora sairia do tribunal ainda mais indignada, sentindo que perdera energia e tempo precioso de vida, duplamente ressentida pelo descaso que lhe foi dedicado, tanto pela empresa, quanto pela Justiça. Ainda que, in casu, não tenha havido dano material comprovado, ou seja, não houve diminuição direta do patrimônio econômico da consumidora, esta foi prejudicada em seu tempo 8 Face das limitações espaciais, não se abordará no corpo do texto o princípio da precaução, teoria que emerge do Direito Ambiental. Contudo, para que o tema não passe desapercebido, vez que tem sido associado ao Direito do Consumidor por autores consagrados, a exemplo de Ada Pellegrini Grinover (2007, p. 549), anotem-se as lições de Sampaio (2004, p. 159), fazendo referência, também, à ausência de pacificidade na denominação do princípio, na seara ambiental: “Com absoluta precisão, Cristiane Derani considera que o princípio da precaução – assim prefere denominá-lo a autora – objetiva afastar não apenas o surgimento de danos, mas, sobretudo, o perigo da ocorrência de tais danos. Através dele, procura-se afastar o próprio risco que determinadas atividades representam para a existência humana, vale dizer, em caso de certeza do dano, deve-se agir prevenindo, em caso de dúvida – incerteza quanto ao potencial danoso da atividade –, também é de rigor a atuação preventiva, pois in dubio pro securitate. Essa foi, saliente-se, a opção ostensiva do legislador do CDC, tanto que arrola, dentre os direitos básicos do consumidor, a proteção da sua vida, saúde e segurança contra os riscos de fornecimento (art. 6º, I).”. Ora, é lícito que se estenda o escopo do princípio da precaução também à função preventivo-pedagógica, tanto da própria responsabilidade civil no trato consumerista, quanto à símile função extraída da natureza dos processos e das sentenças de cunho indenizatório. 261 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial remunerado, antes destinado a registro de boletim de ocorrência de diligências apropriadas; e, o fornecedor beneficiou-se economicamente da “flexibilidade prestacional”, dado que perceberia o preço pelo anúncio efetuado pelo cidadão fraudulento, sem se preocupar com a defesa dos direitos básicos da consumidora. Assim, é de se perguntar: em qual casa passou a residir o enriquecimento sem causa? Em boa conclusão de Ênio Santarelli Zuliani (2006, p. 55/68), somam-se as cumuladas e dinâmicas necessidades da sociedade de consumo, provocando modificações nas formas do risco e congraçando as benesses funcionalizadas da responsabilidade civil. O modelo existencial das pessoas não obedecesse a um padrão rígido; varia de acordo com as necessidades, ambições, interesses, iniciativas e demais ingredientes filosóficos e sociológicos que nunca explicam o espírito indomável do homem contemporâneo. [...] uma coisa, no entanto, é absolutamente certa, isto é, a sua incessante vontade de encarar desafios, de superar metas e conseguir vantagens patrimoniais [...] o que, invariavelmente, conduz o homem a envolver-se, direta ou indiretamente, na prática de uma seqüência de atos e atividades que, aos milhões, agitam a forma de viver em grupo. As conseqüências inevitáveis dessa intensidade de atos, [...] representam o aumento do risco de se concretizar dano injusto. O prejuízo espreita [...] aumentando o clima de insegurança que perturba a todos, indistintamente. A sociedade espera que o sistema jurídico proteja os homens das ações antijurídicas cometidas por aqueles que são considerados desagregadores e confia nisso. [...] Ora, se o homem não tem o poder de evitar que o dano se materialize [...] que providencie, então, medidas que viabilizem a reconstrução do que foi destruído ou deteriorado, por falha comportamental. A sociedade festeja a responsabilidade civil, por ela constituir a fórmula jurídica destinada a remediar o mal que está feito. Ser responsável constitui uma conseqüência do desígnio de viver, sendo certo que o instituto da responsabilidade civil exerce, no plano das relações privadas, a função do controle da conduta humana regular. (g.n.) Preocupa, portanto, já que ainda se está a falar em riscos – além de se protestar pela compreensão extensiva do artigo 6º, VI –, que a Teoria do Risco, originalmente o negocial, tem sido revertida, judicialmente, contra os consumidores. Cabem algumas considerações acerca dessa inversão do risco, em termos teóricos. 1.1 A INVERSÃO DO RISCO Romances e transações de consumo nada guardam – espera-se – de comum entre si, como espécies relacionais, exceto que são atos jurídicos compostos por ao menos dois polos subjetivos e que provocam naturalmente reflexos jurídicos, ainda que tais efeitos não sejam diretamente desejados, ou seja, ainda que as partes se relacionem com uma expectativa imediata diversa da “consciência de provocar um efeito jurídico”. 262 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Contudo, em tais espécies relacionais típicas, podem-se encontrar mais dois pontos jurídicos em comum, infelizmente de natureza negativa: ambas são relações que trabalham com os elementos risco e vulnerabilidade, ainda que estes possuem características diversas, sendo, no consumo, o risco da atividade e, nos romances, o “risco de amor”; bem ainda, justamente a inversão do risco no tratamento jurisprudencial, para lançá-lo sobre as vítimas dos danos oriundos do consumo e dos “danos de amor9”. Muito brevemente, é possível afirmar que o “risco de amor” é uma criação doutrinária de Ana Cecília Parodi (2007) para designar o típico risco inerente às relações amorosas, o qual se concretiza na chance do relacionamento não prosperar, na chance de algum dos parceiros sair magoado, etc; mas, interessa especialmente ao mundo jurídico, ilustrativamente, a chance de algum dos parceiros ser economicamente lesionado pelo outro, em razão do abuso de confiança ou os danos à saúde, resultantes do abuso do parceiro no exercício de seu legítimo direito de romper. Ainda que extremamente mal quantificado, o dano moral de natureza trabalhista, em tese, é bem recepcionado pela jurisprudência, não havendo dúvida – novamente, a priori – de que a lesão emocional provocada por uma demissão abusiva – nem tanto do ponto de vista das justas causas rescisórias, mas a partir do comportamento do empregador demitente – gera obrigação de indenizar, imputada sobre a empresa em face do ato do funcionário, em razão do risco da atividade. Mas até pouco tempo, a jurisprudência majoritária defendia, sem maior acuidade técnica, que o dano emocional provocado pelo rompimento abusivo de um relacionamento afetivo não causava dano indenizável, em razão da “teoria do risco”. E assim, a dita teoria do risco restava estampada nas ementas judiciais, sem qualquer apreciação mais profunda, no bojo decisório, a justificar o porquê de se invocar uma teoria de responsabilização objetiva do titular de um negócio potencialmente perigoso, para, no caso das relações afetivas, imputar o risco contra as vítimas, fazendo com que estas arcassem com a totalidade da chance de erro e prejuízo da relação. Desta sorte, primeiro se faz preciso definir o que venha a ser exatamente esse risco típico, ou seja, o “risco de amor”, distinguindo-o do risco negocial ou da atividade e, então, 9 O abuso ou violência nas relações amorosas produz as lesões denominadas de danos de amor, especialização necessária, consideradas as características especialíssimas da sede relacional em que operam. 263 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial questionando a jurisprudência desavisada que “culpava” as vítimas por sofrerem danos excessivos, os quais iam muito além do “risco suportável” ou dos fatos da vida. Eram movidos, tais julgadores, certamente pelo preconceito, não cabendo aprofundar, agora, tal análise. O problema é que o preconceito se repete – em gênero e também em espécie, no tocante à figura do dano moral – nas indenizações consumeristas, quando se invoca nas decisões, o perigo do surgimento de uma “indústria do dano moral”, motivada pelo suposto estímulo que decorreria de uma “quantificação generosa” no arbitramento do quantum debeatur das lesões não materiais. Destaque-se, não se trata de problema social aventado nas decisões que condenam os consumidores por litigância de má-fé, sendo antes uma questão ligada a consumidores a quem se reconhece razão na procedência do pedido, mas a quem não se pretende estimular (pelo tempero monetário) a sofrer outros danos ou a se expor ao acometimento destes. Eis uma equação curiosa: resta reconhecido que o consumidor sofreu a lesão, logo o fornecedor é responsabilizado, mas a teoria do risco, na verdade, é invertida contra o consumidor, este “vil ator econômico” que sofreu o dano com a “exclusiva finalidade” de se locupletar financeiramente da indenização. E eis revertida também a presunção da boa-fé. É de se repudiar a grave violação do espírito da política nacional de consumo, pretendida pelo legislador do Código de Defesa do Consumidor, revelando problemática de efetividade judicial. Sobre a importância da teoria do risco da atividade, ensina José Augusto Garcia (1998, p. 99): É dizer: os riscos do negócio de consumo, deixando de recair sobre os ombros do consumidor, passam a onerar o fornecedor o que inclui, evidentemente, o risco de indenizações mais substanciais. Além disso, quaisquer dúvidas, inclusive quanto ao valor da indenização, devem favorecer o consumidor. A parte mais fraca, a vítima, não pode ser duplamente prejudicada. O próprio Código Civil [1916], a propósito, já dispõe [dispunha] em seu art. 948 (infelizmente não muito explorado): “Nas indenizações por ato ilícito prevalecerá o valor mais favorável ao lesado”. A racionalidade jurídica e econômica, que fornece parâmetros científicos para que se compreendam parte das razões que levam os fornecedores a optarem por escolhas empresariais eficientes, do ponto de vista econômico, mas altamente prejudiciais, do ponto de vista social e ambiental, pode ser extraída a partir dos pressupostos da Análise Econômica do Direito em diálogo com a Teoria dos Jogos, demonstrando a importância dos principais instrumentos impositivos que, em sua parcela de atuação, cooperam para esse processo de tomada de decisão, 264 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial a saber, a lei, a norma autorregulada e as sentenças judiciais, todas relevantes fontes informativas, no “jogo legal e empresarial”10. 2 A FUNÇÃO PROFILÁTICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL Considerando o tema proposto à investigação, para que o Direito, ou mais especialmente, a Responsabilidade Civil, exerça sua função preventiva e caráter pedagógico, na sociedade de consumo, é vital que os instrumentos de informação normativa sejam claros, transparentes e expressos, acerca dos ilícitos, em descrição, punição e, quiçá, dosimetrias e recompensas (a exemplo das sentenças penais, que são um virtuoso mecanismo de informação social da efetiva punição e recompensa das condutas), e que este sistema seja efetivamente reconhecido e valorizado pelo Poder Judiciário, concretizando-se na boa aplicação dos preceitos, a ponto de enviarem satisfatória mensagem à sociedade, não apenas de reparação dos casos concretos, mas de efetiva repressão dos ilícitos em potencial, desestimulando, os cidadãos, de errarem. Em suma: não apenas a autorregulação do mercado e as leis, mas as sentenças judiciais, notadamente as do campo indenizatório, são hábeis indutoras de comportamento, cada qual com sua parcela de atuação e próprias consequências em face de suas violações. Conforme ensinamento de Ricardo Luis Lorenzetti11 (2003, p. 74-75), em livre tradução da pesquisadora: são objetivos da responsabilidade civil: a prevenção [...] o ressarcimento [...] [e] a punição. Acerca da função preventiva, resume Lorenzetti (2003, p. 74)12: 10 Convém registrar uma explicação do que vem a significar a expressão “socialização do dano”, também identificada na doutrina por “socialização do risco”, considerando que tal expressão será adotada por alguns autores citados adiante. Emprestando a lição da autora lusitana Paula Lourenço (2006, p. 15): “A socialização do dano corresponde à assunção do escopo reparatório do dano por sistemas que garantam o pagamento da indemnização ao lesado, quer se trate de sistemas estaduais, de segurança social, da criação de Fundos de Garantia ou da celebração de contratos de seguro por entidades privadas (cfr. GENEVIÉVE VINEY, Le déclin de la responsabilité individuelle, Paris, L.G.D.J., 1965., Títulos I e II, e Traité de Droit Civil – Introduction à la responsabilité (sous la direction de Jacques Ghestin), 2ª ed., Paris, L.G.D.J., E.J.A., 1995, pp 23 e ss., maxime pp. 57-80 e 94-111)”. 11 No original: “son objetivos de la responsabilidad: La prevención […] El resarcimiento […] [e] La punición”. 12 No original: Esta denominada “Tutela inhibitoria” consiste em uma seria de acciones (medidas cautelares inhibitorias, daños punitivos etc.) destinadas a actuar antes que el daño se produzca. Modifican el elemento central de la responsabilidad, que está basada en el daño, para actuar con anterioridad, ante la mera amenaza, lo cual importa reconstruir uno de los principios básicos del sistema: “no hay responsabilidad sin daño”. O se considera que la tutela es una rama diferente, o bien se la considera incluida dentro de la responsabilidad, que no será solamente por daños, sino genérica: responsabilidad civil. […] Actualmente proponemos proveer de instrumentos inhibitorios, para la defensa de los derechos fundamentales, dentro de los que encuentra la protección del consumidor, del ambiente, de la persona. Essa tutela preventiva, es ampliamente reconocida y aplicada em la jurisprudencia en Argentina y en Brasil. La tutela inhibitoria tiene finalidad preventiva, ya que el elemento activante es la posibilidad de un ilícito futuro; es la amenaza de violación. 265 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Esta denominada ‘tutela inibitória’ consiste em uma série de ações (medidas cautelares inibitórias, danos punitivos, etc.) destinadas a atuarem antes que o dano se produza. Modificam o elemento central da responsabilidade, que está baseada no dano, para atuar com anterioridade, perante a mera ameaça, o qual importa em reconstruir um dos princípios básicos do sistema: ‘não há responsabilidade sem dano’. Ou se considera que a tutela é um ramo diferente, ou bem se considera incluída dentro da responsabilidade civil, que não será somente por danos, sendo genérica: responsabilidade civil. [...] Atualmente, propomos prover de instrumentos inibitórios, para a defesa dos direitos fundamentais, dentro dos quais se encontra a proteção do consumidor, do ambiente, da pessoa. Essa tutela preventiva é amplamente reconhecida e aplicada na jurisprudência da Argentina e no Brasil. A tutela inibitória tem finalidade preventiva, já que o elemento atiço é a possibilidade de um ilícito futuro; é a ameaça de violação. Lorenzetti (2003, p. 75) continua sua exposição, dizendo que esse dado normativo lhe confere algumas características especiais, dentre elas13, especialmente, que prescinde da verificação do dano, sendo suficiente, a mera ameaça; bem ainda, que a culpa não ganha maior relevância, dada a impossibilidade de avaliação do elemento subjetivo. Informa, ainda, que tem ganhado relevo a tutela do dano moral – campo onde o tema, segundo o autor, tem obtido maior desenvolvimento – e que se refira a bens infungíveis, por serem estes os que mais carecem, intrinsecamente, da necessidade de prevenção. E na sequência, expõe as funções ressarcitória e punitiva (LORENZETTI, 2003, p. 75), informando, sobre a primeira, que consiste em uma “série de dispositivos” voltados a efetivar o ressarcimento da lesão, mediante um feito imputável ao agente. E, acerca da função punitiva, remete às origens do instituto responsabilizatório, cuja finalidade era de sancionar a culpa de ato moralmente censurável, tendo ganhado pouco relevo ao longo dos anos, mas voltando à cena, nos últimos tempos, especialmente naqueles âmbitos em que a ideia de “pena civil” serve para, em livre tradução da pesquisadora: “censurar condutas repreensíveis, como os danos ambientais, os causados por produtos elaborados [na perspectiva do risco de desenvolvimento] e em geral, os danos em massa”14. É possível afirmar que a função social da Responsabilidade Civil reside no apaziguamento social e no estabelecimento de freios inibitórios às condutas humanas ilícitas – 13 Vital citar, ainda, as seguintes características: “b) El acto ilícito se caracteriza normalmente por una actividad continuativa, o bien por uma pluralidad de actos susceptibles de repetición, o bien por la inminencia de un acto ilícito. Este elemento es necesario porque hace a la posibilidad de prevenir; c) La acción ilícita debe ser susceptible de ser detenida en sus efectos futuros, ya sea evitando que se produzcan nuevos daños o disminuyendo el ya producido”. 14 No original: “censurar conductas represensibles, como em los daños ambientales, los causados por productos elaborados, y em general, em los daños massivos” 266 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial ideologia distante da novidade. O caráter de pedagogia da indenização tem sido amplamente reconhecido pelos Tribunais Superiores, atuando tanto na coibição dos danos atuais pela apreciação do caso concreto, quanto na prevenção de danos futuros, através do exemplo noticiado à sociedade, haja vista que o cidadão, antes de cometer o abuso, resta bem alertado das consequências jurídicas de seus atos. Ora, uma vez praticados os ilícitos, estes não apenas violam o direito da vítima, mas colocam em risco a estabilidade de toda a sociedade15; assim, a função social da Responsabilidade Civil é composta, casuisticamente, pela reparação das relações, e panoramicamente, tanto por este reequilíbrio, que é percebido por toda a sociedade, quanto pelo evitamento dos danos, na prevenção de ilícitos, o que se realiza pela boa construção legislativa e transparência das leis (e dos instrumentos autorregulatórios), bem como pela efetividade da resposta judicial ao descumprimento do preceito, atuando segundo o caráter pedagógico – e logo, também profilática – da obrigação de indenizar16. Certamente que a função profilática da Responsabilidade Civil e o caráter pedagógico das sentenças existe e é de vital importância para todo e qualquer tipo de demanda indenizatória, independentemente da natureza do vínculo que una aos demandantes. Mas, no tocante à seara consumerista, e notadamente no trato dos danos morais – porque estes não toleram tabelamento e nem sempre comportam prova cabal –, seus efeitos são mais facilmente visualizados e sua importância mais facilmente compreensível. A evidenciar a correlação entre a função social da Responsabilidade Civil, seu caráter profilático e a indução comportamental dos agentes em potencial, no afunilamento investigativo, o empresário, equiparado a fornecedor, no exercício da relação de consumo também será afetado pelo sistema de responsabilização civil, e será em razão da possível – e previsível – recompensa ou sanção, que tomará suas decisões negociais, escolhendo logicamente aquilo que lhe viabilize maior lucro, ou seja, melhor eficiência econômica, denotando, desta forma, que os instrumentos regulatórios e autorregulatórios exercem direta influência econômica sobre o desenvolvimento da sociedade. Afinal, o empresário exerce seu direito à livre iniciativa motivado pela obtenção de lucros; bem ainda, tendo pessoa física e jurídica suas ações reguladas por lei, deverá – ou idealmente deveria – coordenar tal obtenção de lucros segundo os limites de lei. 15 A qual, conforme visto em capítulos anteriores, é codependente e interligada, ainda que tal sentido tenha se desvanecido em parte, na contemporaneidade globalizada. 16 Bem como, das próprias sentenças judiciais, em gênero. 267 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Porém, na prática, a teoria econômica comprova que o empresário, via de regra, atuará não conforme ideais éticos ou morais e sim de acordo com a melhor vantagem financeira obtenível in casu; e isto mesmo que sua conduta esteja em desacordo com a legislação ou com os parâmetros do mercado, desde que a potencial repercussão financeira do ilícito proporcionalmente compense a assunção do risco legal ou mercadológico. Em palavras simples, equivale a pagar não “pelo erro”, mas “para errar”, elidindo, assim, qualquer efeito pedagógico implícito na correção estatal ou dos órgãos administrativos17. Assim, a função social da responsabilidade civil afeta à parte e ao todo, pois, como ensina Bobbio (2007, p. 104), o próprio direito possui função para com o sujeito e para com a sociedade. Paula Meira Lourenço (2006, p. 15-16), autora lusitana da relevante obra “a função punitiva da responsabilidade civil”, afirma: Indagar da função punitiva da responsabilidade civil, numa época em que se assiste à objectivação da responsabilidade civil, à socialização do dano, sendo maior a preocupação com o ressarcimento do lesado, e colocando-se num plano secundário a responsabilização do lesante, pode parecer um “anacronismo”, ou uma idéia retrógrada. No entanto, parece-nos que a socialização do dano agudiza o interesse pela investigação de outras funções da responsabilidade civil, pois a absorção da função reparatória deste instituto de Direito civil por sistemas de garantia acaba por colocar em risco a sua subsistência, caso se entenda que a responsabilidade civil depende, em exclusivo, do escopo ressarcitório. A reflexão acerca da ilicitude e da culpa do agente e, consequentemente, acerca do escopo preventivo e punitivo da responsabilidade civil, não deve ser entendida como o renascimento do sistema de vingança privada. Este precipitado pré-entendimento poderá, eventualmente, ter sido o responsável pela actual hipertrofia e ineficácia do Direito Penal e do Direito contra-ordenacional, no seio dos quais se tenta enquadrar novos ilícitos e “ilícitos mistos”, respectivamente, sem antes se esgotarem todas as potencialidades do instituto da responsabilidade civil, maxime a sua função punitiva. Ao supra exposto acresce a insuficiência da obrigação de indemnizar no seio do Direito Civil, pois sendo limitada pelo dano, a indemnização não desincentiva a violação do direito, a prática da conduta ilícita e culposa, nem pelo próprio, nem por terceiros. Assim, importa verificar se o comportamento especialmente grave do lesante, ou a racionalidade puramente económica que subjaz à sua actuação, não permitirá a adoção de medidas com uma finalidade preventivo-sancionatória, como seja o aumento do montante a atribuir ao lesado, ultrapassando-se o limite do dano causado imposto pela visão clássica da obrigação de indemnizar (partindo do princípio que conseguimos “quantificar” o dano). Talvez tenha chegado o momento de abandonar o dogma da limitação do montante pecuniário a atribuir ao lesado, ao dano sofrido, que surgiu com o desenvolvimento do Direito canónico na Idade Média, e a proibição da usura, ou seja, um contexto que foi actualmente ultrapassado pelos novos desafios que a Ciência do Direito enfrenta. 17 Aqui considerados mesmo aqueles de natureza não-estatal, tais como organizações, associações, federações, da indústria e comércio, aonde, eventualmente, o empresário pudesse ser “condenado” ética e/ou administrativamente, por seus pares e/ou consumidores. 268 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Monteiro Filho (2000, p. 153-154) reafirma a ideia da função pedagógica, contudo anota que, acerca da função punitiva, esta entraria em cena, segundo o autor, quando o caso não se tratar de responsabilidade objetiva, a qual não exclui o dano moral, contudo não aprecia a malignidade de conduta. Por outro lado, se ilícita a conduta causadora do dano, ganha lugar a punição; de maneira que quanto maior o grau de culpa, ou mais forte a intensidade do dolo, maior deverá ser a sanção correspondente. É da própria essência da reparação do dano moral essa flexibilidade. E, completando o raciocínio, em busca da eficiência da punição, perquire-se a capacidade econômica do agressor: o valor da condenação deve, igualmente, servir de desestímulo a repetições de atos do gênero; cumpre função pedagógica não somente em relação ao próprio como também a toda a coletividade, que se torna sabedora das conseqüências de eventual violação das normas, podendo adequar sua conduta aos objetivos. Resta o caráter punitivo, destarte, situado no plano da quantificação e indissoluvelmente associado à idéia de culpa. Em que pese a consideração ao doutrinador, é discutível seu posicionamento, porque, afinal, as demandas por responsabilidade objetiva também não apreciam a culpabilidade, mas não que tal elemento inexista, sendo apenas não apreciado. Mas, esse mesmo ilícito pode decorrer de um ato ao extremo malévolo e de dolo deliberadíssimo, o qual, contudo, por força da desnecessidade, deixou de ser analisado pelo julgador. Mais uma vez se percebe a importância de que os julgadores sejam diligentes e aplicados ao prolatar suas sentenças, bem apreciando o caso concreto e construindo com verdadeira tecnicidade suas apreciações acerca da conduta do réu e bem correlacionando com o quantum arbitrado, a demonstrar de que forma a primeira induziu ao segundo, se importando em atenuantes ou agravantes, a exemplo do que se opera em sentenças criminais, nas dosimetrias de pena. Inclusive, em linha semelhante, afirma Ugo Mattei 18 (1999, p. 378), após comentar que o dano punitivo é figura recorrente da common law e tratando da efetiva possibilidade de sua aplicação no direito românico, sem excluí-la, contudo, das hipóteses objetivas, em livre tradução da pesquisadora: Tais danos punitivos são, de fato, reservados à linha do princípio dos casos de dolo: quando o réu agiu intencionalmente [deliberadamente] para prejudicar a vítima: violência, fraude, etc. Em algumas hipóteses, na América, estes danos punitivos são também concedidos pela culpa grave com que o réu seu para com a segurança pessoal da vítima.19. 18 E coautores. No original: Tali danni punitivi sono, infatti, reservati in línea do principio a casi di dolo: quando cioè il convenuto ha agito intenzionalmente per recare danno alla vittima: violenza, frode, ecc. In alcune ipotesi in America questi danni punitivi sono concessi anche per la colpa grave com cui il convenuto abbia trattao la sicurezza personale della vittima. 19 269 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial Ora, é apenas questão de ser apontada a dolosidade da conduta, processualmente e na peça vestibular, pelo patrono da causa. Paula Lourenço tratou da “função punitiva”, mas justamente por ter em vista o impacto social, comunitário, produzido pela Responsabilidade Civil, e mais especificamente pelos danos morais, é que José Augusto Garcia, focado no princípio da dimensão coletiva das relações de consumo, questiona a genuinidade desse qualitativo, preferindo “falar, mais apropriadamente, em uma função preventivo-pedagógica para os danos morais, a qual se mostra intimamente conectada ao tema da coletivização jurídica”. Aliás, vale registrar o posicionamento do autor: (GARCIA, 1998, p. 95) De fato, em conflitos meramente intersubjetivos, a aludida função preventivopedagógica pouco tem a brilhar, mormente porque se trata, em regra, de lides individuais, não habituais, não profissionais. Tudo muda de figura, entretanto, quando estamos diante de conflitos carregados de dimensão coletiva (o que abarca, logicamente, aquelas disputas que, apesar de aparentemente individuais, são, recobertas por uma infalível sombra coletiva). E são exatamente essas as pendências inerentes à sociedade de massa, que povoam o reino das relações de consumo. Respeitando-se a opinião do douto jurista, é de se dizer que, conquanto a função profilática seja mais visível nos aspectos coletivos das relações – e por isso é associada à realização da responsabilidade social e ambiental e do desenvolvimento da inteira comunidade – mas é também percebida nas relações individuais, se considerado o potencial de reincidência da conduta danosa, ocorrendo entre as mesmas partes, notadamente nas relações consumeristas de prestação continuada de fornecimento, a exemplo do setor de telefonia e serviços essenciais, supermercados e farmácias (especialmente aqueles que abastecem aos bairros), dentre outros. Não havendo estímulo à prevenção ou mesmo um compelimento à correção comportamental, é bastante provável que o mesmo fornecedor reclamado lesione o mesmo consumidor anteriormente reclamante, e talvez pela mesma causa de pedir, em novo fato lesivo. Ora, qual é a esperança, afinal, de um usuário da telefonia celular, que já reclamou da péssima cobertura de sua operadora, de ver, em curto prazo, a melhoria na prestação do serviço? Ou de ver maior transparência na descrição de sua utilização dos créditos pré-pagos? E para aquele cidadão de classe média com pouco poder de escolha, consumidor da grande rede de hipermercados, que toda semana depende do fornecimento de tal abastecedor para seu suprimento de carnes, mas que adquire, por exemplo, um frango de péssima qualidade e ainda que reclame, constantemente, 270 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial para a gerência da loja, quais as chances de que a rede altere sua política de compras e/ou armazenamento? E que condições pessoais possui de alterar seu hábito de consumo, para passar a comprar em um estabelecimento de maior preço e melhor qualidade? A injustiça social é impactante! Ênio Zuliani (2006, p. 70), magistrado que é, demonstra, com apoio em Fernando de Noronha (2003, p. 442), alguma descrença acerca do caráter pedagógico das sentenças, citandose o seu posicionamento, contudo, registrando que a doutrina majoritária favorece à função educativa, o que a própria notoriedade empírica é capaz de comprovar. Todas essas virtudes que dotam a sentença bem executada contribuem, de maneira decisiva, para prevenir a ilicitude. Escrevi anteriormente que as sentenças são armas de conscientização social porque combatem a cultura da transgressão, reprimindo essa onda perigosa fundada na idéia de que tudo é permitido para lucrar, para alcançar celebridade, para ser visto, notado e admirado (não necessariamente, respeitado). A essa função sublime das sentenças, como se fossem vocacionadas para despertar noções de cidadania produtiva, do viver de maneira honesta, sem lesar a outrem, conceitua a doutrina como de natureza “preventiva ou dissuasora”, que “às vezes também é chamada de “educativa”, mas parece que, com ela, o que se pretende não é propriamente ensinar o homem a comportar-se melhor; é simplesmente coibir comportamentos danosos”. Contudo, o mesmo autor (ZULIANI, 2006, p. 72) se mostra mais otimista, ao colacionar a posição do ex-ministro do STF, Djaci Alves Falcão (1959, p. 313): A responsabilidade civil não se prende exclusivamente à concepção material da reparação, visto que também está vinculada a fins sociais, às exigências do bem comum. Ela se afirma como necessidade de controle de conduta, a fim de que o homem não se desligue das formas normativas do Direito. Por isso mesmo, nos entrechoques dos textos legais, o seu aplicador não deve e nem pode abandonar aquele que melhor atende à solidariedade social. Esse valor jurídico, entre nós, já se incorporou à codificação. Está expresso no art. 5º, da Lei de Introdução ao Código Civil: ‘na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum’. Em suas conclusões, Zuliani (2006, p. 69) trata dos efeitos da sentença sobre o agente lesionador, revelando, ainda que não se afilie diretamente, simpatia pela função pedagógica: Há um outro resultado prático que se concretiza ao se encerrar o conflito. O autor da reclamação indenizatória se satisfaz com a justiça aplicada, enquanto o ofensor, mesmo inconformado com a coisa julgada executada, absorve, de boa ou má-vontade a lição que o conteúdo normativo do julgado propaga na comunidade. Poderá ser dito que um agente penalizado pela ordem civil nunca será igual, após cumprir a sentença condenatória, pois o efeito do pagamento forçado que o Estado lhe impôs, como resposta pela transgressão, ativa-lhe o cérebro, como se fosse um tônico contra perda de 271 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial memória, de efeito prolongado. Errar sempre é um ultraje à inteligência 20, pelo que se acredita que a condenação integra a cartilha da escola que prepara o cidadão para uma atuação diligente, um crédito para a difícil arte de convivência entre os iguais, que são incrivelmente diferentes. Retomando a questão da aplicação da função profilática nas relações de consumo, locus jurídico que certamente lhe aumentam o relevo em razão de sua dimensão coletiva, é fundamental manter em vista que, nas palavras de Garcia (1998, p. 98), “as atenções devem recair sobre a conduta do ofensor e os danos por ele causados, ou ameaçados” – em privilégio à prevenção. Ada Pellegrini Grinover preceitua (2007, p. 549): Nos termos do art. 95, porém, a condenação será genérica: isso porque, declarada a responsabilidade civil do réu, em face dos danos apurados por amostragem e perícia, e o dever de indenizar, sua condenação versará sobre o ressarcimento dos danos causados e não dos prejuízos sofridos. Trata-se de um novo enfoque da responsabilidade civil, que foi apontado como revolucionário e que pode levar a uma considerável ampliação dos poderes do juiz, não mais limitado à reparação do dano sofrido pelo autor, mas investido de poderes para perquirir do prejuízo provocado. A pertinência do estudo das funções da Responsabilidade Civil, a exemplo das lições de Lorenzetti supracitadas, ganha maior relevo em razão do crescimento da demanda por danos de natureza irreparável21, importando, para a presente investigação, especialmente os danos morais, cuja satisfação judicial também possui função social específica. 3 O SUPORTE DA RACIONALIDADE TEÓRICA DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E DA TEORIA DOS JOGOS Como diz Fabiana Castro (2002, p. 132), “a consciência dos efeitos nefastos de uma escolha implica na comparação entre as vantagens da ação ou da abstenção e seus inconvenientes”. O referido padrão comportamental do empresário22, bem como a influência econômica das sentenças judiciais e dos instrumentos autorregulatórios23, encontram explicação teórica na Análise Econômica do Direito, mais especialmente no campo da Teoria dos Jogos, 20 Ainda que se admire a noção de perfeição do magistrado, quer parecer que melhor caberia o uso da expressão “causar dano”, em lugar do vocábulo “errar”, haja vista que, literalmente, errar é humano, inerente à condição da existência humana, não estando, infelizmente, pessoa alguma, livre dos tropeços. 21 Neste sentido, Paula Meira Lourenço: A função punitiva da responsabilidade civil. Coimbra, 2006. 22 Ora se trata do empresário, mas, em verdade, toda pessoa, física ou jurídica, tende a agir de acordo com aquilo que possa lhe trazer maior benefício, ainda que a recompensa não seja necessariamente financeira, mas intangível, seja no campo negocial ou relacional. 23 Sendo estes, efetivamente, o objeto de investigação desta dissertação, pontuadamente, não se analisando, diretamente, a qualidade da letra da lei e a atuação dos órgãos administrativos. 272 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial notadamente considerando que se tratam de fontes de informação vigorosas para o deslinde da “etapa do jogo”, as quais também serão afetadas pela necessidade de transparência, de tal sorte que todas as partes envolvidas tenham efetiva ciência das informações que influenciam a rodada. Corroborando a importância não apenas da sanção ao ilícito, mas da premiação ao comportamento socialmente desejável, registrem-se as palavras de Norberto Bobbio (2007, p. XII), acerca da função promocional do Direito: Entendo por ‘função promocional’ a ação que o direito desenvolve pelo instrumento das ‘sanções positivas’, isto é, por mecanismos genericamente compreendidos pelo nome de ‘incentivos’, os quais visam não a impedir atos socialmente indesejáveis, fim precípuo das penas, multas, indenizações, etc., assim, a ‘promover’ a realização de atos socialmente desejáveis. Essa função não é nova. Mas é nova a extensão que ela teve e continua a ter no Estado contemporâneo: uma extensão em contínua ampliação, a ponto de fazer parecer completamente inadequada, e, de qualquer modo, lacunosa, uma teoria do direito que continue a considerar o ordenamento jurídico do ponto de vista de sua função tradicional puramente protetora (dos interesses considerados essenciais por aqueles que fazem as leis) e repressiva (das ações a que eles se opõem). A percepção dessa mudança obrigou-me a voltar o olhar para um problema que fora um tanto negligenciado pela teoria tradicional, qual seja, o problema da função do direito [...] Luciano Timm24 (2006, p. 204-209) – após expor, em breves linhas, os modelos de ordem econômica constitucional liberal e social –, analisa, a partir da regulação da economia pelo Direito, em qual contexto a importante Função Social do Direito “melhor se perfectibiliza”. E para isso, o autor propõe a escolha de um método, que também será de utilidade para esta investigação. Extrai-se (TIMM, 2006, p. 204-205): Ao nosso ver, a melhor ferramenta de análise das instituições jurídicas é a escola do Direito e Economia (em qualquer uma das suas matizes, seja fundada no ‘eficientismo’ de Posner, seja no ‘institucionalismo’ de North e Williamson). Isso porque, como já foi dito aqui, aproveita-se do referencial teórico da Ciência Econômica, que tem se mostrado mais evoluída do que outras ciências sociais, ao menos do ponto de vista da comprovação teórica e empírica de seus modelos. A respeito da Análise Econômica do Direito e sua relevância para a compreensão dos processos decisórios e estratégicos empresariais, extrai-se: As teorias ou, com entendem alguns, o movimento de Direito e Economia proporciona um novo olhar sobre as relações entre estruturas, instituições, teorias e práticas 24 Desde já, compete assinalar que, com o maior respeito às brilhantes produções científicas de Luciano Benetti Timm, adotam-se as suas conclusões com parcimônia, e isto não por crítica à sua metodologia ou capacidade intelectual, mas, antes, por não se poder aprofundar diferenças fundamentais de seu pensamento em comparação com o de outros juristas privatísticos humanistas. Por isso, vale dizer que o empréstimo de linhas doutrinárias de Timm não importa em concordância integral com seu ponto de vista. 273 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial econômicas, jurídicas e de gestão empresarial, sinalizando para novas abordagens e soluções para a promoção do desenvolvimento sustentável, uma vez que trazem à tona a necessidade de compreensão de cada uma destas ciências para uma atuação mais efetiva, uma vez que leva em conta a realidade e os valores que motivam os atores econômicos, jurídicos e os gestores de empresas [...] Como preceitua Elizabeth Farina: No entanto, a compreensão das relações entre justiça e eficiência vai se tornando cada vez mais premente. O arcabouço legal e seus instrumentos de enforcement fornecem um conjunto de incentivos aos tomadores de decisão econômica, definem estratégias e têm efeitos não triviais sobre a eficiência econômica. Arranjos institucionais não são neutros em relação ao uso dos recursos econômicos, como gostariam os economistas para justificar modelos que não contemplam tais especificidades. Decisões judiciais que buscam fazer justiça desdobram-se em efeitos sobre a eficiência econômica. (BORTOLI, 2008, p. 1885) Pinheiro e Saddi (2005, p. 88-89) auxiliam na tarefa de reunir as três principais premissas, pacificamente definidas doutrinariamente, que servem de base para que se opere o silogismo e obtenção das conclusões jurídicas de acordo com os parâmetros econômicos. Prima facie, o homem age racionalmente, em prol da maximização de suas vantagens; ele empregará esforços para conseguir mais satisfação ao menor custo. Dopo, no processo da escolha racional, levará em conta o “sistema de preços”, comparando incentivos para a conduta comissiva e o potencial de sanção da violação do preceito, sopesando se esta última é superior ou inferior ao potencial de resultado esperado. Ou seja, o homem se questiona se vale a pena violar a norma, agindo conforme o melhor resultado econômico, e não moral. Por fim, as regras legais funcionam como incentivos ou inibidores sociais das condutas25. Em razão da primordial relevância científica, serão vistos, agora, alguns conceitos fundamentais para a compreensão da Análise Econômica do Direito (AED), a saber: a escolha racional, a eficiência, as falhas de mercado e os custos de transação. A escolha racional se refere ao “atuar racionalmente”, maximizar o fruto das decisões. A eficiência, por sua vez, está intimamente ligada à escolha racional e maximização, parte do pressuposto de que as demandas são maiores do que a existência de bens apreciáveis, dada a sua escassez, tornando-se imprescindível a melhor alocação dos bens para suprir a maior quantidade possível de demandas racionais. 25 A Análise Econômica do Direito não é o fio condutor científico deste artigo, sendo antes trazida à baila com a finalidade de marco teórico racional, para justificação jurídico-econômico-científica do comportamento empresarial, diante do sistema de ônus e bônus propostos pelo Estado (Lei e Juiz). Assim, até mesmo por limitação espacial, apenas os tópicos específicos essenciais estão sendo consignados, e exclusivamente com a finalidade de proporcionar melhor compreensão da temática exposta e, naturalmente, das conclusões investigativas pretendidas. Contudo, não se trata de apresentar uma “análise econômica” do tema pesquisado, pois, parafraseando as lições dadas em aula pelo Prof. PhD Alexandre Ditzel Faraco, “nada foi calculado, nada foi mensurado, portanto, nada foi analisado economicamente”. 274 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial A respeito da eficiência das escolhas, trata o autor lusitano Vasco Rodrigues (2007, p. 26): Saber o que é melhor é, evidentemente, uma questão controversa: todos podemos ter opiniões pessoais sobre aqueles assuntos. A Economia tem procurado instrumentos teóricos que lhe permitam responder a estas questões formais de forma positiva, sem que os valores pessoais de quem aprecia a situação interfiram no julgamento efectuado. Os conceitos que mais se aproximam deste ambicioso propósito são os de melhoria de Pareto e óptimo de Pareto. Conquanto os pressupostos econômicos e as diversas definições academicamente alinhadas não sejam o objeto central do presente estudo, também é relevante fazer menção ao princípio do Ótimo de Pareto, com o auxílio de Richard Posner (2000, p. 21) e Rachel Sztajn (2005, p. 76). Diz o primeiro que, uma transação superior, no sentido de Pareto, é aquela que melhora a situação de ao menos uma das pessoas envolvidas na relação econômica, sem piorar a situação da outra. Rachel Sztajn registra a crítica que se faz ao critério, porque depende da alocação inicial da riqueza (a ser transferida para quem lhe dá maior valor) e porque não induz as pessoas a revelarem suas preferências qualitativas. Rachel Sztajn também alude à concepção de Kaldor e Hicks, quem, partindo de modelos de utilidade, sugerem que as normas devem ser desenhadas de maneira a gerarem o máximo de bem-estar para o maior número de pessoas. Mas, como a realidade da vida é um jogo de ganha-perde e perde-ganha – o Universo oscila entre o caos e a ordem, independente dos postulados das Ciências Sociais Aplicadas – surge de aluvião a necessidade de compensação entre os entes. Portanto, em sua concepção, a disputa pela alocação de recursos resulta em que o proveito para os vencedores lhes permita compensar os perdedores, a despeito de que realmente assim o façam. Por lógico, a ratio da eficiência – a qual possui cunho econômico e não se pretende a se preencher de racionalidade ética ou moral –, aplicada à tomada de decisão empresarial, pode levar ao cometimento de injustiças sociais e econômicas, se praticada divorciadamente da proteção dos objetivos republicanos. Na práxis jurídica, temas como a justiça distributiva ou comutativa virão à baila. Daí a importância crescente de nortes imutáveis, como o art. 170, CF c/c 3º e 5º, CF, que impõem a promoção da dignidade da pessoa humana como valor fundante – e não periférico – do exercício da livre iniciativa. As falhas de mercado são os impedientes de que todas as relações econômicas possam alcançar a melhor eficiência apenas pela transação entre os agentes. Classificáveis como 275 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial assimetria de informações, existência de poder econômico, bens públicos e externalidades 26. Sua consideração e dirimência pela norma impendem em intervenção estatal, dividindo os pensadores quanto à oportunidade de tal participação do Estado, sobre o que, posiciona-se o presente trabalho, na Escola Moderada. As falhas serão tratadas juntamente com a Teoria dos Jogos. Por fim, os custos de transação27 são fricções típicas da práxis das relações contratuais. Emprestando a classificação de Cooter e Ulen (2010, p. 120-124), são os custos para o intercâmbio e se dividem em custos de busca (prospecção do parceiro de troca, seja um consumidor ou fornecedor), custos de arranjo e acordo (despesas da negociação e formalização instrumental, inclusive advogados e cartórios, informações de mercado – sobre o público consumidor, fornecedor e, até mesmo, sobre o comportamento legislativo e jurisprudencial) e custos de execução (regular, a exemplo do financiamento bancário e correlatas taxas, ou forçosa, a exemplo das custas processuais). Outros autores fornecem diferentes classificações 28, mas a fórmula apresentada é suficiente para o embasamento teórico proposto. Conclui-se, preliminarmente, que a negociação de bens e serviços depende do sistema de preços, mas também do sistema legal, cujo ambiente causa impacto direto nos custos de transação e, consequentemente, no processo decisório dos agentes econômicos, dado que a empresa é gerida sob o prisma da engenharia dos custos de transação. Guido Calabresi, professor da Universidade de Yale, no artigo Some toughts on risk distribution and the law of torts, estabeleceu marco teórico da Análise Econômica do Direito em diálogo com a Responsabilidade Civil. Este cotejo surte efeito direto nos custos de transação, por variadas formas, notadamente no custeio judicial dos danos provocados e pela prevenção dos acidentes, constituindo-se em objeto de estudo da eficiência, a ponderação entre prevenir ou assumir o risco legal. Assim, pela teoria da Law and Economics, viabilizar o incentivo à prévia diligência, ou seja, tornar eficiente a precaução sobre o lesionamento, compete a quem dita as cifras do sistema de sanção e 26 Registre-se a lição de Mankiw (2010, p. 208): “uma externalidade é o impacto das ações de uma pessoa sobre o bem-estar de outras que não participam da ação. Se o impacto for adverso, é chamada externalidade negativa, se for benéfico, é chamado externalidade positiva”. 27 Reputados como objeto de estudo da Escola Neo-Institucionalista. 28 Os custos de transação são peça-chave do Teorema de Coase, segundo qual, se os direitos de propriedade foram devidamente assinalados e se o custo de transação for igual a zero, as partes vão sempre negociar até obter um resultado eficiente, a despeito da forma como os direitos de propriedade forem estabelecidos a princípio (PINHEIRO; SADDI, 2005, p. 91). 276 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial recompensa. Verdade é – aquém a finalidade econômica – que a política legislativa é aliada da prevenção e repudia o dano. Dependesse exclusivamente, portanto, da vontade do legislador, danificar seria economicamente desinteressante. Mas o comportamento jurisprudencial desequilibra a política legislativa, como se verá na investigação da Teoria dos Jogos aplicada à quantificação do dano moral nas relações de consumo, no próximo item. 3.1 TEORIA DOS JOGOS NO COTEJO COM AS NORMAS Ab initio, o profícuo desenvolvimento da Teoria dos Jogos era focado, em ratio e utilidade, no campo bélico, provocando sua associação ao obscurantismo, como a usos nazi, contudo os ingleses se valeram do paradigma para otimizar suas chances navais, corroborando a premissa de que a teoria, em si, não pode ser caracterizada por boa ou má, antes devendo recair, o juízo de valor, sobre os objetivos de seus operadores. Em rápidas linhas, a Teoria dos Jogos é uma expressão dialógica, que visa a estudar o comportamento estratégico das pessoas, em situações de disputa, baseando suas deduções, precipuamente, na ciência matemática, também com suporte na Sociologia, Psicologia e, até mesmo, da Zootecnia, dentre outros. No Direito29, o marco teórico é creditado a Douglas G. Baird, Robert H. Gertner e Randal C. Picker, professores de Chicago (1994, p. 7). Suas conclusões teóricas têm sido reputadas de valor para variados campos do saber, contribuindo para a compreensão e elucidação do processo racional de tomada de decisão de agentes em conflito, relevando que há outros, concomitantemente, em mesmo processo, com interesses próprios, divergentes ou não, sendo esta, parafraseadamente, a concepção de Von Neumann (1992), para “jogo”, interessando, presentemente, a investigação do chamado “jogo legal”. Em uma leitura de Platão, Arthur Jacobson (2000) diz que segundo a Teoria dos Jogos de Direito, os cidadãos colaboram apenas diante de conflito e a única ordem que a lei pode atingir é 29 Credita-se a primeira formulação formal ao matemático húngaro Jancsi Von Neumann (“Zur Theorie der Gesellschaftspiele”, 1928), quem desenvolveu o conceito de interdependência estratégica e, posteriormente, associado ao economista da U. de Princeton, Oskar Morgenstern, publicou o primeiro trabalho acadêmico sobre o tema (Teoria dos Jogos e comportamento econômico, 1944). Diversas personalidades se exponenciaram no estudo da Teoria dos Jogos, rendendo, inclusive, um Prêmio Nobel a John Nash. E ainda John Harsanyi, pela construção dos jogos de informação incompleta e análise das soluções ótimas frente à disparidade informacional dos jogadores, ou desconhecimento dos recíprocos; responsável pela introdução da Teoria na “Economia da Informação”. 277 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial um acordo sobre as regras com as quais o conflito é conduzido. Em verdade, pode-se afirmar que, contrariando ao Princípio da Legalidade, na Teoria dos Jogos, os comportamentos não são ditados, antes influenciados pela norma legal, pois, em certas circunstâncias, pode ser racional infringir a lei, afora casos em que o ambiente normativo contempla permissividade de escolha entre tipos diversos de conduta. O regulamentador normativo atua perseguindo a consecução do interesse coletivo. Adotando parâmetros da Teoria dos Jogos, resta-lhe possível coadunar pretensões comuns e individuais, ao analisar, em exercício de alteridade e diante de um conjunto de possibilidades de regulação, in casu, as melhores estratégias disponíveis ao agente. Consequentemente, deverá editar normas que, uma vez respeitadas, tanto maximizem os lucros, quanto estabeleçam a ordem social desejada, estimulando, assim, o empresário, a cooperar para o atingimento do interesse público. São elementos do “jogo legal”, os jogadores – via de regra, agentes econômicos – e as estratégias disponíveis a estes, bem como os resultados possíveis para cada jogador, em termos das vantagens e/ou desvantagens de cada combinação de estratégias, considerando todas as alternativas restantes. Materializando-se em uma ou mais rodadas, o jogo será simultâneo ou sequencial, de acordo com o momento da tomada de decisão, de cada participante30. O processo estratégico é governado por informações perfeitas ou imperfeitas, obtidas em dois tempos – antes do início e durante a rodada – bem como pela estratégia adotada pelo adversário, definindo movimentos, sempre com vistas à obtenção de recompensas ou evitamento da desvantagem31. Sucintamente, o espaço estratégico do jogo, portanto, é delimitado por uma escolha binária entre a omissão ou a conduta comissiva, ou, na hipótese geral deste estudo, acatar a norma ou violá-la, correr o risco deliberado da imprudência/negligência, ou acautelar-se. Entende a doutrina que o papel do sistema legal é impedir o pior cenário, no qual ambos os jogadores escolheriam a imprudência ou violação da norma, com consequente aparecimento da desvantagem máxima. A Economia avaliará a estratégia mais eficiente, considerando o custo 30 Ensinam PINHEIRO e SADDI (2005, p. 160) que a ordem em que os jogadores fazem seus lances é fator importante para o jogo. Se apresentam suas propostas ao mesmo tempo – caso de leilão por lance lacrado – diz-se que o jogo é simultâneo. Contudo, se a primeira empresa lança sua oferta, havendo oportunidade para o concorrente apresentar suas condições em seguida, então se diz que o jogo é sequencial. 31 O denominado Equilíbrio de Nash, que é atingindo quando, após todos os jogadores “darem os seus lances”, nenhum deles manifestar arrependimento. 278 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial da prudência em comparação com os riscos e perdas decorrentes do cenário aparentemente desfavorável. Ao Direito, incumbe, por sua vez, definir as penalidades do ilícito, com vistas a incentivar o jogador, com menor custo de esforço, a ser prudente (PINHEIRO, 2005, p. 165)32. Para a Teoria dos Jogos em cotejo com o Direito, o sistema normativo é lido de maneira integral, considerando-se a letra da lei como uma informação – aprioristicamente – completa e disponível, ilação esta deveras relativa. Em viés opinativo desta pesquisadora, ainda que se parta da premissa da completude informativa da lei, é lícito estabelecer algumas digressões conclusivas: via de regra, o legislador fornece informações, mas não é jogador; as decisões – inclusive de cunho administrativo ou arbitral – também são fonte informativa; aquele que decide, possui o mesmo status daquele que regula – apenas informante, não jogador, desejavelmente. Nesta senda, comparando-se fonte lei e fonte decisão jurisdicional, há diferença de natureza informativa entre ambas. Enquanto a primeira é reputada completa e disponível, a segunda importa em execução aplicativa da primeira, contudo permeada por uma teórica imparcial imprevisibilidade decisória. Esta alea imposta aos jogadores, concernente à recompensa de suas ações, será mitigada, no caso concreto, pela relativa previsibilidade do comportamento jurisprudencial. Considerando que a escolha racional33 do jogador visa à maximização dos ganhos, recaindo sua opção pela conduta que lhe proporcione melhor recompensa – ou afastamento da desvantagem –, revela-se insuficiente, para a consecução do interesse público ambicionado, que a letra da lei ofereça ônus ou bônus, sendo mister, do ponto de vista dogmático-regulamentador, que o aplicador jurisdicional lhe confira a devida força executória, perseguindo a função social da norma. Portanto, o Judiciário tem poder para modificar a informação da lei, desequilibrando o jogo a favor de um dos participantes, ainda que o espírito do ordenamento 32 Aliás, tal entendimento generalista bem coaduna com a tendência especializada responsabilizatória norteamericana, conhecida como last and best chance, que orienta o magistrado, face de dificuldade em apurar culpa – caso, por exemplo, de acidentes automobilísticos – a imputar a obrigação sobre o motorista que tinha a última chance e/ou a melhor oportunidade, de evitar o evento lesivo. 33 Pinheiro (2005, p. 168) informa que a inexistência da racionalidade absoluta no processo de decisão configura uma dificuldade, pois os comportamentos humanos também são guiados pela emoção e percepção. Daí a expressão irracionalidade imperfeita, indicando o resultado da ausência de informações num ambiente não de todo racional, a exemplo das quedas nas Bolsas, ocasionadas pela retirada abrupta de algum grande investidor. 279 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial pretendesse outra finalidade econômica ou social, não cabendo, nesta etapa, debater as razões político-ideológicas, motivadoras da atuação judiciária, tomando-se, apenas, a legitimidade da independência dos Poderes. Na esteira da conclusão, até mesmo os mecanismos autorregulatórios, ou seja, próprios da métrica das normas de mercado (normas ISO, ABNT, Guias de Balanço Social da Responsabilidade Social Corporativa, dentre outros) também podem ser analisados à luz da Teoria dos Jogos, considerando, notadamente, os benefícios concorrenciais e de marketing, que vêm embutidos, por exemplo, nos processos de certificação, ou na elaboração e divulgação de balanços contábeis e sociais. Com a crescente adesão das grandes corporações aos processos próprios da gestão da responsabilidade social e ambiental e produção sustentável, esta informação é computada no mercado de inúmeras formas, destacando-se: a) a conscientização atinge aos consumidores, que prestigiam a iniciativa da empresa, estimulando o processo concorrencial e levando as outras corporações a se identificarem com os mesmos padrões comportamentais; b) os fornecedores (da corporação) são chamados a participar da implementação dos processos produtivos socioambientalmente responsáveis, podendo vir a ensejar a exclusão de cadastro, em alguns casos, do fornecedor que não adequar sua empresa aos parâmetros de conformidade; desta forma, mesmo sem a eventual provocação de uma corporação-cliente, os prestadores de serviço ou de produtos já procuram entrar no mercado dentro dos padrões de conformidade, ou logo se adaptando, para prospectar clientes que exigem tal adequação; c) ainda que os processos de certificação ou de elaboração de balanços sociais ainda se relacionem em maior proporção participativa com as grandes corporações, a indução comportamental tem atingido as pequenas e médias empresas, mesmo aquelas que não dependem necessariamente da certificação, por exemplo para fins de exportação. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS As decisões judiciais assumem papel crucial no comportamento da Empresa, norteando, para o bem ou para o mal social, as tomadas de decisão do gestor, que andarão conforme os ditames regulatórios da Responsabilidade Social Empresarial (RSE), se o Poder Judiciário oferecer a justa recompensa jurisprudencial para essa conduta, ou, por via reversa, punindo com 280 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 34 - Responsabilidade da Empresa e Cidadania Empresarial severidade, a irresponsabilidade social, que é atentatória para a sustentabilidade, para o bem comum e para o estabelecimento de uma sociedade livre, justa e solidária. A alegada “indústria do dano moral” é um fenômeno mal interpretado da sociedade de risco e de consumo. A autolesão não é fato indenizável no Direito brasileiro, e ainda considerando que sentenças no importe de um salário mínimo, por um lado seria capaz de “enriquecer a vítima”, assim considerada como a grande parte da população nacional, e, por outra mão, nenhum efeito prático pedagógico surtiria sobre os “agressores empresariais”. Portanto, a “indústria do dano” nada mais é do que uma “lenda jurídica urbana”. O que existe, de fato, é uma “indústria do risco”, tratando-se, de uma estimulação ao não evitamento, um combate pernicioso à prevenção dos danos, artificializada pela influencia econômica da jurisprudência dominante, cujo papel deveria ser o de “fonte informativa” e nunca o de “jogador desleal”. REFERÊNCIAS ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor. 3. ed. rev., atual e ampl São Paulo: Saraiva, 2006. BAIRD, Douglas G.; GERTNER, Robert H.; PICKER Randal C. 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