alquimia - As Travessias
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alquimia - As Travessias
Titus Burckhardt ALQUIMIA Ciência do cosmos, ciência da alma 1 Fons Vitae Louisville Kentuchy A partir da tradução inglesa de William Stoddart Tradução (amadora, para uso particular) para a língua portuguesa: Bruno Costa Magalhães Ilustração da capa: o casamento do rei e da rainha, do sol e da lua, sob a influência do mercúrio espiritual. Do Philosopher´s Rosegarden´, de Arnaldus von Villanova, manuscrito na Biblioteca Vadiana, St. Gallen 2 FONS VITAE ALCHEMY Filho do escultor suíço Carl Burckhardt, Titus Burckhardt nasceu em 1908. Sua juventude foi dedicada a estudos da arte, história da arte, línguas orientais e a viagens pelo norte da África e Oriente Próximo. Em 1942 ele tornou-se diretor da Urs Graf-Verlag, uma editora especializada em edições fac-símile de manuscritos antigos. Lá permaneceu até 1968. Além de escrever livros em alemão, ele traduziu diversos e importantes trabalhos do árabe. De seus trabalhos foram publicados em língua inglesa, An Introduction to Sufi Doctrine, Sacred Art in East and West, Moorish Culture in Spain, The Art of Islam, Sienna, Fez City of Islam, Chartres e uma coleção de seus ensaios Mirror of the Intellect. Os últimos três, assim como Alquimia, foram traduzidos do alemão por William Stoddart. 3 ALCHEMY A editora Fons Vitae orgulha-se de anunciar a publicação de uma nova edição de Alchemy, dedicada a Madame Edith Burckhardt. A realização espiritual tem sido frequentemente descrita na terminologia da tradição alquímica, pela qual a natureza sombria que dirige o homem é reconduzida ao ouro, seu estado original. Isso tem sido frequentemente tratado como 'alquimia espiritual'. Nesse volume maravilhosamente esclarecedor somos conduzidos a algumas dessas metáforas que se têm mostrado úteis para estabelecer determinadas atitudes na alma, entre elas: confiança e resignação, responsabilidade e esperança. Por exemplo: há uma clara pertinência simbólica na seguinte analogia: qualquer substância, ou entidade, submetida à dissolução (isso pode dar-se inclusive em um relacionamento) pode finalmente ser recristalizada em uma nova forma. Em outras palavras, um novo ser é resolidificado em uma forma mais alta e mais nobre. 4 ÍNDICE Introdução 6 1 A origem da alquimia ocidental 9 2 Natureza e linguagem da alquimia 19 3 A sabedoria hermética 28 4 Espírito e matéria 50 5 Planetas e metais 68 6 A rotação dos elementos 82 7 Da materia prima 87 8 Natureza universal 104 9 “A natureza pode dominar a natureza” 111 10 Enxofre, mercúrio e sal 127 11 Do “casamento químico” 138 12 A alquimia da oração 145 13 O Athanor 148 14 A história de Nicolas Flamel e de sua esposa 159 Perrenelle 15 Os estágios do trabalho 169 16 A Tábua de Esmeralda 180 17 Conclusão 186 Lista cronológica de autores herméticos e místicos 189 citados Bibliografia de trabalhos clássicos 5 190 INTRODUÇÃO Desde o Século do Iluminismo até os dias de hoje, a alquimia tem sido comumente considerada como a precursora da química moderna. Por isso, quase todos os estudiosos que se dedicam a suas obras não têm tido motivo para ver nela algo além do que um estágio inicial de futuras descobertas na área da química. Esse modo unilateral de tratar a alquimia tem pelo menos o mérito de causar a distinção a ser feita entre seu conjunto de documentos a respeito de experiências artesanais tradicionais – na preparação de metais, corantes e vidros – e os procedimentos aparentemente irracionais que desempenham um papel na alquimia como tal. Como esse conjunto de documentos a respeito das experiências artesanais é, como se sabe, longe de ser insignificante, a obediência teimosa dos alquimistas a fórmulas químicas sem significado do seu magistério não pode deixar de parecer mais peculiares. As pessoas rapidamente concluem que o insaciável desejo de produzir ouro persistentemente motivou os homens a acreditar em um grande número de receitas fantásticas, o que, a bem da verdade, não são nada mais que uma aplicação popular e supersticiosa da filosofia da natureza dos antigos; como se os alquimistas tivessem tentado, em parte através de procedimentos físicos, e em parte através de evocações mágicas, tomar posse direta da materia prima aristotélica – o fundamento de todas as coisas. Nunca pareceu chamar a atenção de ninguém como no mínimo improvável que uma 'arte' assim dessa espécie poderia, apesar de suas loucuras e decepções, ter implantado a si mesma por séculos a fio nas mais diversas culturas no ocidente e no oriente. Pelo contrário, as pessoas estão mais inclinadas a adotar o ponto de vista de que, há até um século, toda a humanidade estava sonhando um sonho estúpido, cujo despertar veio apenas com a nossa época. Como se a faculdade espiritual-intelectual do homem – seu poder de distinguir o real do irreal – estivesse igualmente sujeita a alguma espécie de evolução biológica. Esse modo de olhar para a alquimia é contradito por um determinado princípio de unidade organizado 6 pela própria alquimia: descrições do 'grande trabalho' agitam-se a partir de várias culturas e vários séculos evidenciam, embora, é bem verdade, haja uma multiplicidade de símbolos, determinadas características invariáveis, que não são explicadas empiricamente. Essencialmente, a alquimia indiana é idêntica à ocidental; e a alquimia chinesa, embora arranjada em uma atmosfera espiritual completamente diferente, pode lançar luzes em ambas. Se a alquimia não fosse nada além de uma impostura, a sua forma de expressão revelaria arbitrariedades e loucuras a todo momento; mas, na verdade, ela parece possuir todos os sinais de uma 'tradição' genuína, ou seja, uma orgânica e consistente – embora não necessariamente sistemática – doutrina e um claro corpo de regras estabelecidas e persistentemente exposta por seus adeptos. Assim, a alquimia não é nem um produto híbrido ou fruto do acaso da história humana. Pelo contrário, representa uma profunda possibilidade para o espírito e para a alma. Essa também é a posição da autodenominada 'psicologia profunda', que pretende encontrar no simbolismo alquímico uma confirmação de suas próprias teses a respeito do 'inconsciente coletivo'1. De acordo com essa visão, o alquimista, na sua busca sonhadora, traz à luz do dia determinados conteúdos da sua própria alma que eram desconhecidos, e assim, sem pretender conscientemente fazê-lo, traz um tipo de reconciliação entre a sua consciência individual, superficial e cotidiana, e o poder do 'inconsciente coletivo', ainda não formado (mas em busca de formação) . Supôs-se que essa reconciliação daria lugar a uma experiência de satisfação íntima, que subjetivamente tem sede no magistério alquímico. Essa visão, assim como as precedentes, é baseada na premissa de que a primeira intenção dos alquimistas é fazer ouro. Considerava-se que o alquimista se havia envolvido em alguma forma de loucura, ou auto-engano, e em razão disso havia sido levado a pensar e a agir como alguém que está sonhando. Essa explicação possui alguma plausibilidade, desde que, de alguma forma, ela se aproxima da verdade – apenas para se afastar dela 1Veja Herbert Silberer, Probleme der Mystik un thre Symbolik, Viena, 1914: C. G. Jung, Psychologie und Alchemie, Zurich, 1944 y 1952, y Mysterium Conjunctionis, Zurich, 1955 e 1957. 7 imediatamente. É verdade que a realidade espiritual na qual o alquimista trabalha é uma espécie de iniciação, é algo de que o iniciante está mais ou menos inconsciente, é algo que está escondido no fundo da alma. Apesar disso, esse 'segredo profundo' não deve ser confundido com o caos do assimchamado 'inconsciente coletivo' – tanto quando esse conceito algo elástico tenha algum significado preciso. A 'fonte de juventude' dos alquimistas não surge em nenhum sábio a partir de um substrato psíquico obscuro; ela flui através da mesma fonte do espírito. Ela é escondida dos alquimistas no começo do seu 'trabalho', não porque está abaixo mas sim porque está acima do nível do processo de consciência mental. A hipótese dos psicólogos se evapora na medida em que se compreende que os alquimistas genuínos nunca estiveram enredados em nenhum sonho de satisfação de desejos de fazer ouro, nem perseguiam seu objetivo como sonâmbulos, ou por meio de 'projeções' passivas do conteúdo inconsciente de suas almas! Pelo contrário, eles seguiam um método deliberado, cuja expressão metalúrgica – a arte de transmutação de metais comuns em prata ou ouro – reconhecidamente enganou diversos pesquisadores nãoiniciados, embora em si mesmo seja ele lógico e, ademais, realmente profundo. 8 CAPÍTULO 1 A ORIGEM DA ALQUIMIA OCIDENTAL A alquimia existe desde, pelo menos, metade do primeiro milênio antes de Cristo, e provavelmente desde os tempos pré-históricos. À pergunta sobre como pôde a alquimia existir por milênios em civilizações tão amplamente separadas, como a do Oriente Próximo e a do Extremo Oriente, a resposta da maioria dos historiadores possivelmente seria a de que o homem tem repetidamente falhado na tentativa de ficar rico rapidamente buscando fazer ouro e prata através de metais comuns, até que os químicos empíricos do séc. XVIII finalmente provaram que os metais não podem ser transformados um em outro. Na realidade, entretanto, a verdade é muito diferente e, pelo menos em parte, diametralmente oposta. Ouro e prata já eram metais sagrados antes mesmo de serem transformados em medida de todas as transações comerciais. Eles são o reflexo terrestre do Sol e da Lua, e assim também de todas as realidades do espírito e da alma que estão relacionadas os pares celestiais. Até mesmo na Idade Média o valor relativo desses dois metais nobres era determinado pela relação entre os tempos de rotação desses dois corpos celestes. Também as moedas antigas usualmente apresentavam figuras ou sinais relacionados ao Sol ou à sua rotação anual. Para o homem dos tempos pré-racionalistas, a relação entre os metais nobres e os dois luminares era óbvia, e todo um mundo de noções mecanicistas e os preconceitos acabaram necessariamente obscurecendo a realidade auto-evidente dessa relação e fazendo com que ela acabasse parecendo um acidente estético. Não se deve confundir um símbolo com uma mera alegoria, nem tentar ver nele a expressão de um instinto coletivo algo nebuloso e irracional. O verdadeiro simbolismo depende do fato de que as coisas, se se podem modificar em razão de tempo, espaço, natureza material, e de várias outras características limitativas, podem, por outro lado, possuir e exibir a mesma qualidade essencial. Elas, assim, aparecem como diversos reflexos, manifestações ou produções 9 da mesma realidade – que, em si mesma, é independente de tempo e de espaço. Assim, não é muito correto dizer que o ouro representa o Sol, ou que a prata representa a Lua; diferentemente, trata-se de que os dois metais nobres e os dois luminares são símbolos das mesmas realidades cósmicas e divinas2. A magia do ouro, assim, vem da sua natureza sagrada, ou perfeição qualitativa, e apenas secundariamente do seu valor econômico. Em vista da natureza sagrada do ouro e da prata, a obtenção desses dois metais só poderia ser uma atividade sacerdotal, assim como a cunhagem de moedas de ouro e prata era prerrogativa apenas de determinados lugares sagrados. Em sintonia com isso está o fato de que os procedimentos metalúrgicos relativos ao ouro e à prata, que foram preservados em algumas assim-chamadas sociedades primitivas dos tempos pré-históricos, revelam abundantes sinais da sua origem sacerdotal3. Nas culturas 'arcaicas', ainda não familiarizadas com a dicotomia do 'espiritual' e do 'prático', nas quais tudo era visto em relação com a unidade íntima do homem e do cosmos, a preparação dos minérios era sempre realizada como um procedimento sagrado. Como regra, era prerrogativa da casta sacerdotal, chamada a esta atividade por comando divino. Onde não era assim, como no caso de determinadas tribos africanas, que não possuíam suas próprias tradições metalúrgicas, o fundidor ou ferreiro, como um intruso não autorizado na sagrada ordem da natureza, caía na suspeição de envolvimento com a magia negra4. O que aos olhos do homem moderno parece superstição – e o que, em parte, apenas sobreviveu como tal – é na verdade um pressentimento de uma profunda relação entre a ordem natural e a alma humana. O homem 'primitivo' estava bem consciente de que a produção de minérios no 'ventre' da terra e a sua violenta purificação pelo fogo era algo sinistro, e cheio de possibilidades perigosas, mesmo que eles não tivessem 2Na obra etnológica de E. E. Evans-Pritchard, Nuer Religion, capítulo «The Problems of Symbols», Oxford at the Clarendon Press, 1956, há uma excelente explicação do que se pode entender por símbolo. 3Veja Mircea Eliade, Forgerons et Alchimistes, coleção «Horno sapiens», París, 1956. 4ibid. 10 todas as provas de que a história da Era dos Metais tão abundantemente nos proveu. Para a humanidade 'arcaica' – que não separava artificialmente matéria de espírito – a chegada da metalurgia não foi simplesmente uma 'invenção', mas também uma 'relevação', porque apenas um comando divino poderia autorizar à humanidade o acesso a tal atividade. No início, entretanto, essa revelação foi uma faca de dois gumes 5; ela requeria uma prudência especial por parte de quem ela havia sido recebida. Assim como o trabalho exterior do metalúrgico com os minérios e o fogo apresentava algo de violento em relação a ele, assim também a influência que pesava sobre o espírito e a alma – que eram inescapáveis neste chamado – era de uma perigosa e dúbia natureza. Em particular a extração de metais nobres a partir de minérios impuros, por meio de solventes e de agentes purificadores como o mercúrio e antimônio, e em conjunção com o fogo, era inevitavelmente realizada contra as resistências de sombrias e caóticas forças da natureza, assim como a conquista da 'prata interior' ou do 'ouro interior' – na sua pureza imutável e luminosidade – demanda a conquista de todos os impulsos obscuros e irracionais da alma. * O diálogo seguinte, extraído da autobiografia de um senegalês, mostra como em determinadas tribos africanas o trabalho com o ouro foi continuamente tratado como arte sagrada até os presentes dias6. “... Assim que meu pai sinalizou, os dois aprendizes começaram a trabalhar o fole da pele de carneiro que estava situado em ambos os lados da fornalha e conectado a ela por meio de cachimbos de barro... As chamas no forno espoucavam e pareciam ganhar vida – um gênio animado e mau. “Meu pai, então, pegou a panela de fundição com sua longa pinça, e colocou-a nas chamas. “De repente todas as outras ocupações na forja cessaram, porque enquanto o ouro estava sendo fundido, e 5“Nós revelamos o ferro. Nele há força maligna e utilidade para os homens” (Corão, LVII, 25). 6Camara Laye, L'Enfant noir, París, 1953. 11 enquanto ele esfriava, era proibido trabalhar nas suas proximidades quer com o cobre, quer com o alumínio, para evitar que uma partícula desses metais comuns entrasse na panela de fundição. Apenas o aço poderia continuar a ser trabalhado. Mas mesmo aqueles engajados em alguma tarefa com o aço geralmente deveria terminá-la rapidamente ou deixála de lado, para juntar-se aos aprendizes em volta do forno... “Quando meu pai sentiu que seus movimentos estavam começando a ser impedidos pelos aprendizes que se amontoavam em volta, fazia sinal para que eles se afastassem. Nem ele, nem ninguém, poderia pronunciar nenhuma palavra. A quietude era rompida apenas pelo chiado dos foles e pelo assovio do ouro. Mas embora meu pai não dissesse nenhuma palavra, eu sabia que ele falava para si; eu podia vê-lo por seus lábios, que se moviam silenciosamente assim que ele mexia no ouro e no carvão com uma vara – que, assim que pegava fogo, era substituída. “O que ele dizia para si? Eu não sei dizer com certeza, já que ele nunca me disse. O que poderia ser senão uma invocação? Ele não invocava os espíritos do fogo e do ouro, do fogo e do vento – o vento que soprava através dos foles, do fogo que vem do vento e do ouro que estava aliado ao fogo? Certamente ele pedia ajuda e suplicava a sua cooperação e comunhão; certamente que ele invocava esses espíritos que estavam entre os mais importantes, e cujo apoio era muitíssimo necessário para a fundição. “O processo que acontecia diante de meus olhos não era apenas e por fora a fundição do ouro. Havia algo além disso: um processo mágico que os espíritos poderiam favorecer ou atrapalhar. Daí porque a quietude reinou em volta de meu pai... “Não é notável que naquele momento uma pequena cobra negra sempre permanecia escondida por baixo da pele do carneiro? Porque ela nem sempre esteve lá. Ela não vem visitar meus pais todos os dias, e ela nunca deixa de vir quando o ouro está sendo trabalhado. Isso não me surpreende. Desde então, em uma noite, meu pai me falou sobre o espírito da nossa tribo, e eu achei muito natural que aquela cobra estivesse ali, porque a cobra conhece o futuro... 12 “O artesão que trabalha o ouro deve antes de tudo purificar-se, deve lavar-se da cabeça aos pés, e, durante o trabalho deve abster-se de relações sexuais...” * Que existe um ouro interior, ou melhor, que o ouro tem uma realidade interior, assim como uma realidade exterior, é apenas lógico para o modo contemplativo de olhar as coisas, que espontaneamente reconhece a mesma 'essência' no ouro e no Sol. É aqui, e em nenhum outro lugar, que as raízes da alquimia repousam. As origens da alquimia remontam à arte sacerdotal dos antigos egípcios; a tradição alquímica que se espalhou pela Europa e pelo Oriente Próximo, e que talvez até mesmo influenciou a alquimia indiana, reconheceu como seu fundador Hermes Trismegistos, o 'Hermes, o três vezes grande', que é identificado com o antigo deus egípcio Thoth, o deus que reina sobre toda a arte sacerdotal e científica, um pouco como Ganesha no Hinduísmo. A expressão alchemia deriva do árabe al-kimiya, que parece derivar do antigo egípcio kême – a referência à 'terra negra', que era uma designação do Egito, e que poderia ter sido também o símbolo da matéria-prima dos alquimistas. Outra possibilidade é que a expressão deriva do grego chyma ('fusão' ou 'fundição'). Em todo caso, os desenhos alquímicos remanescentes mais antigos estão em papiros egípcios. Que nenhum documento primitivo tenha chegado até nós não é surpresa, desde que é uma característica essencial de uma arte sagrada a sua transmissão oral; que seu registro escrito possa ser encomendado é usualmente o primeiro sinal de decadência ou do receio de que a tradição oral será perdida. Assim, é completamente natural que o assim-chamado Corpus Hermeticum, que compreende todos os textos atribuídos a Hermes-Thoth, tenham chegado até nós em grego, e revestido mais ou menos em uma linguagem platônica. Que esses textos são, todavia, originados de uma tradição genuína, e que não são fabricações pseudo-arcaicas dos gregos, é provado por sua fecundidade espiritual. As evidência sugerem que a assimchamada 'Tábua de Esmeralda' é também parte do Corpus Hermeticum. A Tábua da Esmeralda declara-se uma revelação de 13 Hermes Trismegistos, e é considerada pelos alquimistas que escreveram em árabe e em latim como nada menos que a 'tábua da lei' da sua arte. Não há nenhum texto primitivo da Tábua da Esmeralda. Ela chegou até nós apenas em tradições árabes e latinas – pelo menos tanto quanto se pesquisou até agora – mas seu conteúdo evidencia sua autenticidade. Em abono à origem egípcia da alquimia do Oriente Próximo e do Ocidente está o fato de que toda uma série de procedimentos artesanais, relacionados com a alquimia e provendo-a de várias expressões simbólicas, apareceu como um conjunto coerente a partir dos últimos tempos egípicios, finalmente aparecendo nos livros prescritivos medievais. Este corpo de procedimentos contém alguns elementos claramente derivados do Egito. Entre esses procedimentos, além do trabalho do metal e da preparação de tinturas, está a produção de pedras preciosas artificiais e vidros coloridos, uma arte que floresceu no Egito. De mais a mais, toda a arte egípcia dos metais e minerais, no seu esforço para extrair o a essência, secreta e preciosa, de uma 'substância' terrestre, mostra uma óbvia relação espiritual com a alquimia. A Alexandria egípcia, em seus últimos tempos, foi sem dúvida o cadinho no qual a alquimia, juntamente com outras artes e ciências cosmológicas, recebeu a forma na qual ela nos é hoje conhecida, sem por isso ser alterada em nenhum aspecto essencial. Pode muito bem ter sido nessa época que a alquimia também adquiriu alguns temas da mitologia grega e asiática. Isso não deve ser considerado um acontecimento artificial. O crescimento de uma tradição genuína parece-se com um cristal, que atrai partículas homólogas a si próprio, incorporando-as de acordo com as suas próprias leis de harmonia. Dessa época em diante, podem-se observar duas correntes na alquimia. Uma é predominante e naturalmente artesanal; o simbolismo de um 'trabalho interior' aparece aqui como um complemento a uma atividade profissional e é apenas ocasional e incidentalmente mencionado; a outra faz uso de um processo metalúrgico exclusivamente como analogia. Então se pode até mesmo perguntar se esses procedimentos foram utilizados 'exteriormente'. Isso fez com que alguns cunhassem a 14 distinção entre a alquimia artesanal – a qual se acredita seja mais antiga – e a assim-chamada alquimia mística, que se supõe de desenvolvimento superior. Na realidade, entretanto, trata-se de dois aspectos de uma e mesma tradição, na qual o aspecto simbólico é sem dúvida o mais arcaico. Será sem dúvida questionado como foi possível à alquimia, juntamente com o seu fundamento mitológico, ser incorporada nas religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islã. A explicação para isso é que as perspectivas cosmológicas próprias da alquimia, relativas tanto à esfera externa dos metais (e minerais em geral) quanto ao terreno interior da alma, estavam organicamente ligadas com a metalurgia antiga, e assim esse fundo cosmológico foi recebido, juntamente com as técnicas artesanais, simplesmente como uma ciência da natureza (physis) no sentido mais amplo do termo, assim como o cristianismo e o islã se apropriaram das tradições pitagóricas na música e na arquitetura, e assimilaram a correspondente perspectiva espiritual. Do ponto de vista cristão, a alquimia era como que um espelho natural para as verdades relevadas: a pedra filosofal, que transformava metais em ouro, é um símbolo de Cristo, e a sua produção a partir do 'fogo que não se queima' do enxofre, e a 'água inabalável' do mercúrio simbolizam o nascimento de Cristo-Emmanuel. Através dessa assimilação pela fé cristão, a alquimia foi espiritualmente fecundada, enquanto o cristianismo encontrou nela um caminho que, através da contemplação da natureza, conduzia a uma verdadeira 'gnosis'. Ainda com maior facilidade a arte hermética entrou no mundo espiritual islâmico. Este sempre esteve pronto, em princípio, para reconhecer qualquer arte préislâmica que aparecesse sob o aspecto de 'conhecimento' (hikmah) como patrimônio dos primeiros profetas. Assim, no mundo islâmico, Hermes Trismegistos é algumas vezes identificado com Enoch (Idrîs). Foi a doutrina da 'unidade da existência' (wahdat-al-wujûd) – a interpretação esotérica da confissão de fé islâmica – que deu ao hermetismo um novo eixo espiritual ou, em outras palavras, restabeleceu seu horizonte espiritual original 15 em toda a sua plenitude e libertou-a da sufocação do recente 'naturalismo' helenístico. Enquanto isso, o simbolismo da alquimia, como resultado da sua incorporação gradual no tardio e clássico pensamento semítico, desenvolveu-se numa variada multiplicidade. Apesar disso, alguns traços fundamentais, próprios da alquimia como 'arte', permaneceram como seu sinal específico através dos séculos: acima de tudo, mencione-se o plano preciso do 'trabalho alquímico', as fases individuais com as quais é caracterizado por meio de alguns processos 'simbólicos' que nem sempre podem ser levados a cabo na prática. Em um primeiro momento, a alquimia entrou na civilização cristã ocidental através de Bizâncio, e depois, e em maior medida, através da Espanha árabe. Foi no mundo islâmico que a alquimia alcançou a plenitude de seu florescimento. Jâbir ibn Hayyân, um discípulo do sexto Shiite Imam Jafar as-Sâdiq, fundou no séc. XVIII d. C. uma verdadeira escola, a partir da qual centenas de textos alquímicos fluíam. Sem dúvida que foi em razão de o nome de Jâbir ter-se transformado em uma marca de qualidade de grande erudição alquímica, que o autor da Summa Perfectionis, um italiano ou catalão do séc. XIII d. C., também assumiu o nome, Gebe, na sua forma latinizada. Quando, com o Renascimento, ocorreu a grande irrupção da filosofia grega, uma nova onda de alquimia bizantina alcançou o Ocidente. Nos séc. XVI e XVII vários trabalhos alquímicos foram impressos, e até então existiam apenas manuscritos que haviam circulado mais ou menos secretamente. Como resultado disso, o estudo do hermetismo alcançou um novo patamar; foi em breve, contudo, que entrou em decadência. O séc. XVII d. C. é algumas vezes considerado como marca do florescimento completo do hermetismo europeu. Na realidade, entretanto, a sua decadência já havia começado no séc. XV d. C. e prosseguia sem demora com o desenvolvimento humanístico e já fundamentalmente racionalista do pensamento ocidental, pelo qual qualquer perspectiva universal, espiritual e intuitiva, foi privado de seu fundamento básico. É verdade que por determinado tempo, 16 imediatamente anterior à era moderna, elementos de uma gnosis genuína, que haviam sido, com dificuldade, tirados do terreno da teologia tanto pelo desenvolvimento sentimental unilateral dos últimos místicos cristãos e pela tendência agnóstica inerente à Reforma, encontraram refúgio na alquimia especulativa. Isso sem dúvida explica fenômenos como os ecos de hermetismo detectados em trabalhos de Shakespeare, Jakob Boehme e Georg Gichtel. A medicina que derivou da alquimia durou mais que a própria alquimia. Paracelsus chamou a isso de 'spagyric medicine'. O termo vem das palavras gregas correspondentes a 'divisão' e 'união' – correspondendo aos termos alquímicos solve et coagula. Em geral, a alquimia europeia que se seguiu à Renascença teve um caráter fragmentário; como uma arte espiritual, carecia de fundo metafísico. Isso é especialmente verdade a respeito de seus últimos vestígios no séc. XVIII d. C. – mesmo apesar do fato de que entre todos os 'queimadores de carvão', homens de real gênio tais como Newton e Goethe se ocuparam dela, embora sem sucesso. Nesse ponto parece oportuno dizer categoricamente que não pode haver alquimia 'independente' e hostil à Igreja, porque o primeiro pré-requisito de toda arte espiritual genuína é reconhecer tudo o que a condição humana, na sua supremacia e na sua precariedade, necessita em vista de sua salvação. Que haja também uma alquimia pré-cristã de nenhum modo prova o contrário; a alquimia sempre foi, em qualquer época, uma parte orgânica de uma tradição completa, integral, que em certo sentido congregava todos os aspectos da existência humana. Na medida, entretanto, em que o Cristianismo revelou verdades que estavam escondidas da antiguidade pré-cristã, isso deve ser levado em conta pelos alquimistas cautelosos. É, assim, um grande erro acreditar que a alquimia ou o hermetismo, por si sós, poderiam possivelmente ser uma religião auto-suficiente, ou mesmo um paganismo secreto. Qualquer atitude dessa espécie deve necessariamente ser vista como racionalismo e humanismo que paralisa desde o princípio qualquer esforço em direção ao magistério interior. É verdade que 'o Espírito sopra onde quer', 17 e ninguém pode, de fora, impor delimitações dogmáticas em suas manifestações; mas o Espírito não 'sopra' onde ele próprio – o Espírito Santo – é renegado em qualquer de suas revelações. Na realidade, a alquimia, que não é ela mesma uma religião, requer a confirmação de uma revelação – com os seus meios de graça –, que é endereçada a todos os homens. Essa confirmação consiste no reconhecimento da via e do trabalho alquímicos pelos próprios alquimistas como um meio específico de acesso ao significado completo da mensagem eterna e salvífica da relevação. Não devemos nos alongar na história da alquimia, que, em todo caso, não é conhecida em detalhes, sem dúvida em grande parte em razão de que a transmissão de uma arte esotérica geralmente ocorre oralmente. Um último ponto deve, apesar disso, ser mencionado; o fato de que escritores alquímicos assumam nomes fantásticos, fora de qualquer relação com a cronologia, alegadamente como seus autores ou fontes, em nenhum sentido milita contra o valor dos textos em questão; porque, independentemente do fato de que o ponto de vista histórico e o conhecimento alquímico não tenham nada a ver um com o outro, esses nomes (como no caso do Geber latino) são indicações de uma dada 'corrente' da tradição, em vez de pretender ser certificados de autoria. A questão sobre se dado texto hermético é genuíno ou não, vale dizer, se ele procede de um conhecimento e experiência verdadeiros da arte hermética, ou se foi simplesmente coletado arbitrariamente, não pode ser determinada nem pela filologia, nem pela comparação com a química empírica; o único critério é a unidade espiritual da tradição mesma. 18 CAPÍTULO 2 NATUREZA E LINGUAGEM DA ALQUIMIA No meu livro a respeito dos princípios e métodos da arte sagrada7, mais de uma vez tive a ocasião de mencionar a alquimia, a título de comparação, quando se considera a criação artística como aparece dentro da tradição sagrada, não do ponto de vista de seu aspecto estético externo, mas como um processo interno cuja meta é o amadurecimento, 'transmutação', ou renascimento da alma do próprio artista. A alquimia também foi chamada arte – precisamente a 'arte real' (ars regia) – por seus mestres e, com sua imagem da transmutação dos metais comuns em ouro e prata, se presta como um magnífico símbolo evocativo do processo interno a que ela se refere. Efetivamente a alquimia pode considerada a arte da transmutação da alma. Ao dizer isso não estou buscando negar que os alquimistas também conheciam e praticavam os procedimentos metalúrgicos, tais como a purificação e a liga de metais; seu trabalho real, entretanto, dos quais estes procedimentos são meramente o suporte exterior, ou símbolos operacionais, foi a transmutação da alma. O testemunho dos alquimistas nesse ponto é unânime. Por exemplo, no The Book of Seven Chapters, que foi atribuído a Hermes Trismegistos, o pai da alquimia ocidental e do Oriente Próximo, lemos: “Veja, eu abri diante de você o que estava escondido: O trabalho [alquímico] está em suas mãos e juntamente com você; na medida em que se encontra dentro de você e é duradouro. Você sempre terá isso presente, onde quer que você esteja, na terra ou no mar...”8. E no famoso diálogo entre o rei árabe Khalid e o sábio Morienus (ou Marianus) se disse como o rei questionou o sábio sobre onde se poderia encontrar algo com que se pudesse realizar o trabalho hermético. A isso Morienus se silenciou, e foi apenas após muita hesitação que ele respondeu: “Ó rei, eu lhe digo a verdade, que Deus, em sua misericórdia, criou essa coisa extraordinária dentro de você; onde quer que você esteja, está 7Vom Wesen heiliger Kunst in den Weltreligionen, Origo-Verlag, Zurich, 1955, y Príncipes et méthodes de l’art sacré, Lyon, 1968. 8 Bibliothèque des Philosophes Chimiques, ed. por G. Salmon, París, 1741. 19 sempre com você e nunca pode ser separado de você...”9. A partir de tudo isso, veremos que a diferença entre a alquimia e qualquer outra arte sagrada é que o conhecimento alquímico não é alcançado visivelmente, na plano externo artesanal, como na arquitetura e na pintura, mas apenas no coração; porque a transmutação de chumbo em ouro, que constitui o trabalho alquímico, de longe ultrapassa as possibilidades do conhecimento artesanal. O caráter miraculoso desse processo – efetuando um 'salto' que, de acordo com os alquimistas, a natureza por si própria, apenas pode realizar em um tempo imprevisivelmente longo – destaca a diferença entre as possibilidades corporais e aquelas da alma. Enquanto uma substância mineral – cuja solução, cristalização, fundição e aquecimento podem refletir até certo ponto as mudanças da alma – deve permanecer confinada em limites definidos, a alma, por sua parte, pode superar os limites 'físicos' correspondentes, graças ao encontro com o espírito, que não é confinado por nenhuma forma. O 'chumbo' representa o caótico, 'pesada' e doentia condição do metal ou do homem interior, enquanto o ouro – 'luz congelada' e 'sol terreno' – representa a perfeição da existência metálica e humana. Na perspectiva dos alquimistas, o ouro é a efetiva meta da natureza metálica; todos os outros metais são passos preparatórios, ou experimentais, para esse fim. O ouro, em si mesmo, possui o equilíbrio harmonioso de todas as propriedades metálicas e assim também possui durabilidade. O 'cobre não encontra sossego até que se transforme em ouro', disse Mestre Eckhart, referindo-se, na realidade, à alma, que anseia por seu próprio ser eterno. Assim, em contraste com a acusação usual contra eles, os alquimistas não procuram, por meio de fórmulas secretamente conservadas, nas quais apenas eles acreditam, fazer ouro de metais ordinários. Quem quer que realmente tenha desejado tentar isto pertence aos chamados 'charcoal burners' que, sem nenhuma conexão com a tradição alquímica viva, e puramente com base no estudo de textos que eles apenas podem compreender no sentido literal, buscaram alcançar o 'grande trabalho'. 9Ibíd. II. O relato do diálogo entre o rei árabe Chalid e o monge Morieno, o mariano, foi provavelmente o primeiro texto alquímico treduzido do árabe para o latim. 20 Como um caminho que pode conduzir o homem ao conhecimento do seu próprio ser eterno, a alquimia pode ser comparada com o misticismo. Isso também é indicado pelo fato de que as expressões alquímicas foram adotadas pela mística cristã, e ainda mais pela islâmica. Os símbolos alquímicos da perfeição referem-se ao conhecimento espiritual da condição humana, ao retorno ao centro ao qual as três religiões monoteístas chamam de reconquistas do paraíso terrestre. Nicolas Flamel (1330-1417), que foi um alquimista que recorreu à linguagem da fé cristã, escreveu sobre a conclusão do trabalho, que ele 'transforma o homem em bom, afastando dele a raiz de todos os pecados, especificamente a cobiça. Então ele torna-se generoso, benigno, piedoso, crente e temente a Deus, independentemente de quão mal ele havia sido anteriormente; porque, a partir de então, ele estará sempre cheio da graça e misericórdia com que ele foi recebido por Deus, e com o mais profundo de seus maravilhosos trabalhos10. A essência e o objetivo do misticismo é a união com Deus. A alquimia não fala disso. O que tem relação com o caminho místico, entretanto, é a meta alquímica de reconquistar a nobreza original da condição humana e o seu simbolismo; porque a união com Deus é possível apenas em virtude daquilo que, a despeito do abismo incomensurável entre a criatura e Deus, une o antigo ao mais recente – e isso é o 'teomorfismo' de Adão, que foi 'deslocado' ou se tornou inefetivo pela Queda. A pureza do homem simbólico deve ser reconquistada antes que a forma humana possa ser reassumida no seu arquétipo infinito e divino. Compreendida em seu aspecto espiritual, a transmutação do chumbo em ouro não é nada além da reconquista da original nobreza da natureza humana. Assim como a inigualável qualidade do ouro não pode ser produzida pela soma exterior das propriedades dos metais tais como massa, dureza, cor etc., assim a perfeição 'adâmica' não é uma mera assimilação de virtudes. É tão inimitável quanto o ouro. E o homem que tenha 'realizado' esta perfeição não pode ser comparado com os outros. Tudo nele é original, no sentido de que o seu ser está completamente acordado e unido com a sua origem. Na medida em que a realização desse estado 10 Bibl, des Phil. Chim. 21 necessariamente pertence à via mística, a alquimia pode, de fato, ser considerada como um ramo do misticismo. Ademais, o 'estilo' da alquimia é tão diferente do misticismo, que é diretamente baseado em uma fé religiosa, que alguns foram tentados a chamá-lo de 'misticismo sem Deus'. Essa expressão, entretanto, é perfeitamente disparatada, para não dizer completamente falsa, porque a alquimia pressupõe a crença em Deus, e praticamente todos os mestres dão grande importância à prática da oração. Essa expressão é verdadeira apenas na medida em que a alquimia, em si mesma, não possui nenhuma armadura teológica. Assim, a perspectiva teológica tão característica do misticismo não delimita o horizonte intelectual da alquimia. O misticismo judeu, cristão e muçulmano é centrado na contemplação de uma verdade revelada, um aspecto de Deus, ou uma 'ideia' no sentido mais profundo da palavra; ele é a realização espiritual dessa ideia. A alquimia, por sua vez, não é primeiramente nem teológica (ou metafisica) nem ética; ela olha ao conjunto dos poderes da alma de um ponto de vista puramente cosmológico e trata a alma como uma 'substância' que deve ser purificada, dissolvida e cristalizada novamente. A alquimia age como uma ciência ou arte da natureza, em razão disso todos os estados da consciência íntima são vias da uma única 'natureza' que engloba tanta as formas externas, visíveis e corporais quanto as formas internas e invisíveis da alma. Por tudo isso, a alquimia não está isenta de um aspecto contemplativo. De forma alguma isso consiste em mero pragmatismo vazio de intuição espiritual. A sua natureza espiritual e, de certo modo, contemplativa reside diretamente na sua forma concreta, na analogia entre o reino mineral e o reino da alma; essa similaridade pode apenas ser percebida por uma visão que seja capaz de olhar as coisas materiais qualitativamente – intimamente, num certo sentido –, e que compreenda as coisas da alma 'materialmente' – o que quer dizer objetiva e concretamente. Em outras palavras, a cosmologia alquímica é essencialmente uma doutrina do ser, uma ontologia. O símbolo metalúrgico não é meramente um improviso, uma descrição aproximada do processo interior; como todo símbolo genuíno, é uma espécie de revelação. 22 Com esse modo 'impessoal' de olhar para o mundo da alma, a alquimia coloca-se em uma relação muito mais próxima com o 'caminho do conhecimento' (gnosis) do que com o 'caminho do amor'. Porque é prerrogativa da gnosis – no sentido genuíno, e não no herético, da expressão – reconquistar a alma individual 'objetivamente', em lugar de experimentá-la apenas subjetivamente. Daí porque trata-se de um misticismo fundado no 'caminho do conhecimento', que por acaso usou modos de expressão alquímicos, se de fato não assimilou de fato as formas da alquimia com os graus e os modos de seu próprio 'caminho'. A expressão 'misticismo' vem de 'segredo' ou 'afastamento' (do grego myein); a essência do misticismo impede uma interpretação meramente racional, e isso soa bem no caso da alquimia. * Outra razão por que a doutrina alquímica se esconde em enigmas é que ela não é feita para todos. A 'arte régia' pressupõe uma compreensão além da ordinária, e também um certo tipo de alma, sem os quais a prática envolve perigos relevantes para a alma. 'Não se reconhece', escreve Artephius, um famoso alquimista da Idade Média11, 'que a nossa arte é cabalística12? Com isso eu quero dizer que ela é transmitida oralmente e é repleta de segredos. Mas você, pobre e iludido discípulo, você é tão ingênio a ponto de acreditar que podemos ensinar clara e abertamente os maiores e mais importantes de todos os segredos, ao ponto de você poder interpretar nossas palavras literalmente? Eu lhe asseguro, de boa-fé (porque eu não sou tão ciumento como outros filósofos), que quem interprete literalmente o que os outros filósofos (isto é, os outros alquimistas) escreveram, perder-se-ão a si próprios nos recessos de um labirinto do qual eles nunca escaparão, e quererão o fio de 11Artefius pode ser o nome latinizado de um autor árabe desconhecido (Veja E. von Lippmann, Entstehung und Ausbreitung der Alchemie, Berlín, 1919). Provavelmente viveu antes do ano 1.250. 12“Cabalístico” significa, aqui, de acordo com a etimologia da palavra, “transmitido oralmente”. 23 Ariadne para mantê-los no caminho correto, e levá-los com segurança para fora...'13 E Synesios14, que provavelmente viveu no séc. IV d. C., escreveu: '(Os verdadeiros alquimistas) apenas se expressam por símbolos, metáforas e similares, assim eles apenas podem ser compreendidos pelos santos, pelos sábios e por almas dotadas de entendimento. Por essa razão, eles observaram, em seus trabalhos, um certo caminho e uma certa regra, de tal modo que o homem sábio possa entender e, talvez após alguns tropeços, atingir tudo o que é aí descrito secretamente'15. Finalmente Geber, que resume toda a ciência alquímica medieval na sua Summa, declara: 'Não se pode expor esta arte por palavras obscuras apenas; por outro lado, não se pode explicá-la tão claramente que todos possam compreendê-la. Por isso eu a ensino de um modo que nada permanece escondido ao homem sábio, embora possa repercutir em mentes medíocres como algo obscuro; os ignorantes, por sua vez, não compreenderão nada...'16. Alguns podem se surpreender com o fato de que, apesar dessas advertências, das quais muitos outros exemplos podem ser fornecidos, muitas pessoas – especialmente nos séc. XVII e XVIII – tenham acreditado que através do estudo diligente dos textos alquímicos seriam capazes de encontrar uma fórmula de fazer ouro. É verdade que os autores alquímicos frequentemente deixam a entender que eles preservam o segredo da alquimia apenas para prevenir que alguém indigno adquira um poder perigoso. Eles assim fazem uso de uma inevitável equívoco para manter pessoas desqualificadas à distância. Ademais eles nunca falaram das finalidades aparentemente materiais de sua arte, sem mencionar ao mesmo tempo a verdade. Quem quer que se tenha motivado por paixões terrenas falhará automaticamente em compreender o essencial de qualquer explicação. Assim, no Hermetc Triumph está escrito: 'A pedra filosofial' (com a qual se pode transformar metal em ouro) concede vida longa e imunidade a doenças àquele que a possui, e através desse poder traz mais ouro e prata do que todos os mais poderosos conquistadores tiveram entre eles. Ademais, esse 13 Bibl. des Phil. Chim. 14Tem-se discutivo se são a mesma pessoa este Sinésio e o homônimo Bispo de Cirene (379-415), que fui discípulo da platônica Hipatia de Alejandría. 15 Bibl. des Phil. Chim. 16 Ibid. 24 tesouro tem a vantagem sobre todos os outros nesta vida, especificamente o de que aquele que o usufrui será perfeitamente feliz – a mera visão disso o faz feliz – e nunca será assaltado pelo medo de perdê-lo.'17 A primeira assertiva aparenta confirmar a interpretação externa da alquimia, enquanto a segunda indica, tão claro quanto desejável, que a posse que aqui se discute é interior e espiritual. O mesmo se encontra no já mencionado no The Book of Seven Chapters: 'Com a ajuda do Deus misericordioso, esta pedra (filosofal) libertará você e o protegerá das mais severas doenças; também o protegerá da tristeza e dos problemas, e especialmente contra tudo o que puder prejudicar o corpo e a alma. Levará você das trevas à luz, do deserto à casa e da indigência à riqueza.'18 O duplo sentido que se percebe em todas essas assertivas está em relação com a frequentemente mencionada intenção de ensinar o 'sábio' e de confundir o 'tolo'. Porque o modo de expressão dos alquimistas, com todo o seu taciturno 'hermetismo', não é uma invenção arbitrária, mas algo inteiramente autêntico, Geber foi capaz de dizer, em um apêndice à sua famosa Summa: 'Quando eu parecia falar mais clara e abertamente sobre nossa ciência, na realidade me expressei de modo mais obscuro, e ocultei o objeto de meu discurso com maior intensidade, e ainda a despeito de tudo isso, nunca revesti o trabalho alquímico com alegorias ou enigmas, mas tratei disso com palavras claras e inteligíveis, e descrevi com honestidade, tanto quanto eu o conhecia e aprendi por inspiração divina...' Por outro lado, outros alquimistas, propositadamente, compuseram seus textos em uma forma tal que a leitura deles proporciona a 'separação das ovelhas dos cabritos'. O último trabalho mencionado é um exemplo disso, pois Geber diz no mesmo apêndice: 'Por esse meio, declaro que nesta Summa não ensinei nossa ciência sistematicamente, mas a espalhei aqui e ali em vários capítulos; porque se eu a houvesse apresentado numa ordem lógica e coerente, o mal-intencionado, que poderia usurpar esse conhecimento, seria capaz de aprender tão facilmente como as pessoas de boa-fé...' Se alguém estuda de perto a intenção aparentemente metalúrgica da exposição de Geber, descobrirá no meio das descrições mais ou menos 17 Ibid. 18 Ibid. 25 artesanais dos procedimentos químicos consideráveis saltos de pensamento: por exemplo, o autor, que não havia mencionado previamente uma 'substância' (em conexão com o 'trabalho'), de repente dirá: 'Agora pegue essa substância, que você conhece suficientemente bem, e a coloque no recipiente...' Ou de repente, depois salientar que os metais não são transmutados em sentido exterior, ele fala de um 'remédio que cura todos os metais doentes', transformando-os em prata e ouro. Em cada uma dessas ocasiões, a compreensão é rudemente levada ao colapso, e isso de fato é o propósito de uma exposição dessa espécie. O discípulo é levado a experimentar diretamente os limites de sua própria razão (ratio). Então, finalmente, como Geber disse, ele pode olhar para dentro de si mesmo: 'Voltando-me para mim mesmo, e meditando no caminho no qual a natureza produz metais no interior da terra, percebo aquela real substância com a qual a natureza nos preparou, de modo a permitirmos aperfeiçoálas na terra...' Aqui alguém notará uma certa similaridade com o método do Zen Budismo, que procura transcender os limites da faculdade mental, através da meditação concentrada em certos paradoxos enunciados por um mestre. Este é o limite espiritual que os alquimistas devem ultrapassar. Os limites éticos, como temos visto, é a tentativa de buscar a arte alquímica apenas por conta do ouro. Os alquimistas insistem constantemente que o grande obstáculo para o seu trabalho é a cobiça. Esse vício é para sua arte o que o orgulho é para 'o caminho do amor', e o que o auto-engano é para o 'caminho do conhecimento'. Aqui a cobiça é simplesmente outro nome para o egoísmo, para o apego do próprio ego no caminho da paixão. Por outro lado, a exigência de que o discípulo de Hermes deva apenas procurar transmutar elementos com a intenção de ajudar os pobres necessitados – ou à própria natureza necessitada – relembra a promessa budista de procurar a iluminação mais alta apenas em vista da salvação das criaturas. Somente a compaixão nos liberta da astúcia do ego, que de todo modo procura apenas olhar para si próprio. * Pode ser objetado que a minha tentativa de 26 explicar o significado da alquimia é uma violação do primeiro pressuposto alquímico, especificamente a necessidade de reservar os ensinamentos ao seu próprio domínio. A isso pode ser respondido que, em todo caso, é impossível exaurir por meras palavras o significado dos símbolos que contêm a chave para o mais íntimo segredo da alquimia. O que pode ser explicado em larga medida são as doutrinas cosmológicas fundamentais da arte alquímica, a sua visão do homem e da natureza, e também o seu modo geral de proceder. E mesmo se alguém for apto a interpretar todo o trabalho hermético, sempre haverá algo deixado de lado, que nenhum trabalho escrito pode transmitir, e que é indispensável para a perfeição do trabalho. Assim como toda arte sagrada, no sentido genuíno do termo (como todo 'método' que pode conduzir a uma realização dos altos estados de consciência), a alquimia depende de uma iniciação: a permissão para empreender o trabalho deve ser obtida geralmente de um mestre, e apenas em instâncias raras, quando as correntes de homem a homem tenham sido quebradas, pode acontecer que a influência espiritual salta miraculosamente sobre o abismo. No diálogo entre o rei Khalid e Morienus, foi dito a esse respeito: 'O fundamento dessa arte é que quem quer que deseje ultrapassá-la deve receber os ensinamentos de um mestre... Também é necessário que o mestre a pratique em frente ao discípulo... Quem quer que conheça a sequência desse trabalho e já o tenha experimentado por si próprio não pode ser comparado com aquele que apenas o viu em livros...' 19. E o alquimista Denis Zachaire20 escreveu: 'Acima de tudo, gostaria que isso fosse compreendido – caso haja alguém que ainda não aprendeu – que essa filosofia divina ultrapassa em muito o poder humano; menos ainda pode ser adquirida através de livros, a menos que Deus a introduza dentro dos corações pelo poder do seu Espírito Santo, ou nos tenha ensinado da boca de um homem vivo...'21 19 Ibid. 20 Alquimista francês do século XVI. 21 Bibl. des Phil. Chim. II. 27 CAPÍTULO 3 A SABEDORIA HERMÉTICA A perspectiva do hermetismo origina-se da visão de que o universo (ou macrocosmo) e o homem (ou o microcosmo) correspondem-se como reflexos; o que quer que haja em um deve também, de alguma maneira, estar presente no outro. Essa correspondência pode ser melhor compreendida reduzindo-a ao relacionamento mútuo de sujeito e objeto, de conhecedor e conhecido. O mundo, como objeto, aparece no espelho do sujeito humano. Embora esses dois polos possam ser distinguidos teoreticamente, eles contudo nunca podem ser separados. Cada um deles apenas pode ser concebido em relação ao outro. Para o bem da clareza, é necessário examinar os vários significados que podem ser dados ao termo 'sujeito'. Se se diz que a perspectiva que o homem tem do universo é 'subjetiva' isso geralmente significa que a perspectiva em questão depende da particular posição do homem no espaço e no tempo, e do maior ou menor desenvolvimento de sua habilidade e conhecimento; a dependência 'subjetiva' é aqui aquela de um indivíduo ou de um grupo de pessoas limitado temporal ou espacialmente. Contudo, não é meramente limitado em cada caso: é especificamente limitado em si mesmo, e nesse sentido não há algo como um conhecimento puramente subjetivo do mundo colocado fora da esfera do sujeito humano. Nem a concordância de todas as possíveis observações individuais nem o uso de significados que amplia o alcance dos juízos podem ir além deste âmbito, que condiciona tanto o mundo como um objeto reconhecível, como o homem como um ser que conhece. A coerência lógica do mundo – que faz de suas múltiplas aparências um todo mais ou menos palpável – pertence tanto ao mundo como à natureza unitária do sujeito humano. Apesar disso, todo conhecimento, embora possa ser interpretado pelo indivíduo ou pela espécie, tem algo de absoluto. Do contrário, não haveria ponte do sujeito ao objeto, do 'eu' para o 'tu', não haveria unidade atrás dos inúmeros 'mundos' como vistos pelos 28 diversos e muito grandemente variáveis indivíduos. Esse elemento incondicional e imutável, que é a raiz do 'conteúdo de verdade' mais ou menos escondido em toda porção de conhecimento – e sem o qual não seria conhecimento em absoluto – é o puro Espírito ou Intelecto, que como conhecedor e conhecido estão absoluta e indivisivelmente presentes em todo ser. De todos os seres neste mundo, o homem é o mais perfeito reflexo do universal – e, no que diz respeito à sua origem, divino – Intelecto, e nesse respeito ele pode ser considerado como o espelho ou a imagem total do cosmos. Façamos uma pausa por um momento para considerar as diferentes realidades que encaram como um espelho: primeiro e principalmente, há o Intelecto Universal ou “Sujeito Transcendental”, cujo objeto não é apenas o mundo físico aparente, mas também o mundo secreto da alma – tanto quando a razão; as operações da razão podem ser objeto de conhecimento, ao passo que o intelecto universal é incapaz de qualquer objetivação que seja. É verdade que o Intelecto tem conhecimento direto e imediato de si mesmo, mas esse conhecimento está para além do mundo das distinções, então do ponto de vista da percepção distintiva (dividida que está entre objeto e sujeito), parece inexistente. Um pouco diferente é o sujeito humano, dotado que está com as faculdades do pensamento, imaginação e memória, e dependente da percepção sensorial, daí que ele, o sujeito humano, tem como objeto todo o mundo corpóreo. É do Intelecto Universal que o sujeito humano extrai sua capacidade de conhecimento. Finalmente há propriamente o homem, composto de espírito (ou intelecto), alma e corpo, que são tanto parte do cosmos que é objeto de seu conhecimento, e que também, em virtude de sua especial categoria (sua natureza eminentemente espiritual), aparece como um pequeno cosmos dentro de um cosmos maior, do qual ele é a contrapartida, como uma imagem refletida. Assim, a doutrina da correspondência recíproca do cosmos e do ser humano é também fundada na ideia do Intelecto Transcendente e único, cujo relacionamento com o que é comumente chamado de 'intelecto' (ou simplesmente razão) é como a de uma fonte de luz para a sua 29 reflexão para um meio limitado22. Essa ideia, que é uma ponte entre cosmologia (a ciência dos cosmos) e a metafísica pura 23 não é de modo algum uma prerrogativa especial do hermetismo, embora ela seja exposta de um modo particularmente claro nos escritos de Hermes Trismegisto, o 'Três vezes grande Hermes'. Em um desses escritos está dito a respeito do Intelecto ou Espírito: 'O Intelecto (nous) se origina da substância (ousia) de Deus, na medida em que se pode falar de Deus tendo uma substância24; de que natureza essa substância é apenas Deus pode saber exatamente 25. O Intelecto não é parte da substância de Deus, mas irradia deste como luz resplandecente vinda do sol. Nos seres humanos esse Intelecto é Deus...” 26. Não se deve deixar enganar pelo inevitável defeito da analogia aqui empregada. Quando alguém fala de irradiação ou resplandecência do Intelecto de sua fonte divina não se quer significar alguma espécie de emanação material. No mesmo livro está dito que a alma (psyque) está presente no corpo do mesmo modo que o Intelecto (nous) está presente na alma, e como a Palavra de Deus (Logos) está presente no Intelecto. (Vale dizer, pelo contrário, que o corpo está na alma como a alma está no espírito ou intelecto, e o espírito está na Palavra). Deus é chamado o Pai de tudo. Será visto quão próximo essa doutrina está da teologia joanina – fato que explica como o círculo cristão da Idade Média foi capaz de ver nos escritos do Corpus Hermeticum (assim como naqueles de Platão), as sementes précristãs do Logos27. Embora a doutrina da unidade 22O entendimento se parece a uma lente condensadora que projeta a luz do espírito em uma direção determinada e sobre um campo limitado. 23Entendemos por Metafísica a ciência do não-criado. A maior parte da “Metafísica” aristotélica é, simplesmente, cosmologia. Distintivo da verdadeira Metafísica é seu caráeter “apofático”. 24Traduzimos ousía por substância, de acordo com os usos da Escolástica. Na realidade, aqui se trata da essência de Deus. 25Vale dizer, a substância ou o ser de Deus não pode ser reconhecida por nada que esteja fora de si mesmo, pois está além de toda dualidade e de toda diferenciação entre sujeito e objeto. 26Corpus Hermeticum, trad. por A.-J. Festugière, París, “Les Belles Lettres”, 1945. Capítulo “D'Hermes Trismégiste: sur l'Intellect commun, à Tat”. 27 Veja os escritos herméticos, entre outros, de Santo Alberto Magno. 30 transcendente do Intelecto seja afirmada por todas as escrituras sagradas, não obstante ela permanece esotérica naquilo que não pode ser transmitida para todos sem um risco de uma simplificação enganosa. O principal perigo é que no seu esforço para compreender a imaginação pode conceber a unidade do espírito e do intelecto como uma espécie de unidade material. Isso pode conduzir à obscuridade da distinção entre Deus e a criação, assim como àquela entre a singularidade essencial de cada criatura individual. O Intelecto Universal não é numericamente um, mas um na sua indivisibilidade. Desse modo está completamente presente em cada criatura, e a partir dele cada criatura adquire sua singularidade. Porque não há nada que possua mais unidade, completude e perfeição do que aquilo pelo qual é conhecido. Um exemplo dessa falsa visão a respeito do Intelecto único presente em todos os seres é fornecida pela opinião filosófica de que quando um ser espiritual, individual, deixa o corpo no momento da morte, ele imediatamente retorna para o Intelecto Universal, daí que não há sobrevivência separada após a morte. Entretanto, aquilo que durante a vida confere uma limitação à individualidade na luz infinita do intelecto não é o corpo, mas a alma. Agora a alma sobrevive após a separação do corpo, mesmo quando, durante a vida, ela tenha sido inteiramente orientada em direção ao corpo e de fato aparentou não haver nada além do que isso28. Desde que o Intelecto, como polo cognitivo da existência universal, não é acessível ao conhecimento discursivo, o conhecimento dele não transformará a experiência do mundo – pelo menos não no campo dos fatos. O conhecimento essencial pode, entretanto, determinar a assimilação interior dessa experiência, i.e., a apreensão de sua verdade. Para a ciência moderna, 'verdades' (ou leis gerais) – sem as quais a simples experiência será nada mais do que areias movediças – são apenas descrições simplificadas de aparências, úteis mas sempre 'abstrações' provisórias. Para a ciência tradicional, por outro lado, a verdade é uma expressão ou 28 Daí os tormentos que, ao abandonar o corpo, sofrem as almas que só se preocuparam com o corporal. 31 'cristalização' (em uma forma acessível à razão) da possibilidade contida no Intelecto Universal, e desde que essa possibilidade está contida permanente e imutavelmente no Intelecto, ela pode também ser manifestada no mundo exterior. A ideia da verdade é assim muito mais absoluta na tradição do que na ciência moderna – sem, contudo, que as formas conceptuais de verdade, se tenham transformado em um fim em si mesmas, já que a captação da verdade pela razão e pela imaginação não é nada mais do que um símbolo das possibilidades contidas no Intelecto eterno. De acordo com o ponto de vista moderno, a ciência é construída exclusivamente com base na experiência. Para o ponto de vista tradicional a experiência não é nada sem o núcleo de verdade que vem do Intelecto, e em torno do qual a experiência individual pode-se cristalizar. Assim, a ciência hermética é baseada em determinada tradição simbólica que deriva da revelação espiritual. A expressão 'revelação' é usada aqui no sentido mais largo do que dado pela teologia, mas não num sentido puramente poético. Em termos hindus, o processo espiritual em questão pode ser considerado como uma revelação de 'segundo grau', como smriti em lugar de shruti. Em termos cristãos, pode-se falar de uma inspiração do Espírito Santo, endereçada não a toda a comunidade de fiéis, mas apenas a determinadas pessoas capazes de um certo modo e grau de contemplação. Foi nesse sentido, de qualquer modo, que os alquimistas cristãos consideravam a herança do hermetismo. O hermetismo é, na verdade, um ramo da revelação primordial que, persistindo através das eras, estendeu-se também ao mundo cristão e islâmico. As possibilidades imutáveis contida no Intelecto não podem ser absorvidas imediatamente pela razão. Platão chamou essas possibilidades de ideias ou arquétipos. Faríamos bem em preservar o real significado dessas expressões, e não aplicá-las a meras generalizações – que, no melhor dos casos, não são mais que reflexos das verdadeiras ideias – nem ao campo puramente psicológico, conhecido como 'inconsciente coletivo'. Essa última distorção é especialmente enganosa, porque envolve uma confusão da indivisibilidade do intelecto com a impenetrabilidade da profundidade passiva e obscura da 32 alma. Os arquétipos são encontrados não abaixo, mas acima do nível da razão. E tanto é assim que o que quer que a razão possa discernir a respeito deles não passa de um aspecto severamente restrito daquilo que eles são em si mesmos. Apenas a união da alma com o Espírito – ou o seu retorno à unidade indivisível do espírito – opera uma certa reflexão das possibilidades eternas que têm lugar na consciência formal. O conteúdo do Intelecto, que é, por assim dizer, a 'faculdade' do Espírito, assim repentinamente 'cristaliza-se', na forma de símbolos, na razão e na imaginação. No livro do Corpus Hermeticum, conhecido como 'Poimandres' está descrito como o Intelecto Universal revela-se a si mesmo a Hermes-Thoth: '... Com essas palavras, ele olhou-me longamente na face, o que me fez estremecer. Então, assim que ele levantou sua cabeça novamente, eu vi como, no meu próprio espírito (nous), a luz que consiste de inumeráveis possibilidades transformou-se um infinito Todo, enquanto o fogo, cercado e contido por um poder sagrado, atingiu sua posição imóvel: foi isso o que eu fui capaz de apreender racionalmente desta visão... Enquanto eu estava completamente fora de mim mesmo, ele disse novamente: você agora, no intelecto (nous) viu o arquétipo, a origem e o começo que nunca termina...'29 Um símbolo, nos planos da alma e do corpo, é aquilo que reproduz os arquétipos espirituais. Em conexão com esta reflexão de realidades superiores em planos inferiores, a imaginação possui certa vantagem sobre o pensamento abstrato. Em primeiro lugar, é capaz de múltiplas interpretações; ademais, não é tão esquemática como o pensamento abstrato e então, na medida em que se 'condensa' em uma imagem pura, baseia-se na correspondência inversa que existe entre o terreno corporal e espiritual, de acordo com a lei segundo a qual 'o que está embaixo é reflexo do que está acima', como está colocado na Tábua de Esmeralda. * Na medida em que o intelecto humano, 29Corpus Hermeticum, op. cit., capítulo “Poimandrès”. 33 como resultado de uma união mais ou menos completa com o Intelecto Universal, afasta-se da multiplicidade das coisas, e por assim dizer sobe em direção à unidade indivisa, assim o conhecimento da natureza que o homem obtém de tal intuição não pode ser de uma espécie puramente racional e discursiva. Para ele o mundo agora se mostra transparente: nessa aparência ele vê o reflexo de 'arquétipos' eternos. E mesmo quando essa intuição não é imediatamente presente os símbolos que saltam dele, contudo desperta a memória ou a 'recordação' desses protótipos. Esta é a visão hermética da natureza. O que é decisivo para este ponto de vista não é a natureza mensurável e inumerável das coisas, condicionada que é pelas causas e circunstâncias temporais; é precisamente suas qualidades essenciais, que podem ser imaginadas como os fios verticais (urdidura) de um tecido, tomado como representação do mundo, na qual se entrelaçam os fios horizontais (trama), fazendo assim do tecido um material unificado e compacto. Os fios verticais são o conteúdo imutável ou 'essência' das coisas, enquanto os fios horizontais representam sua natureza 'substancial', dominada pelo tempo, espaço e condições similares30. Dessa comparação pode-se ver como a visão do cosmos baseada na tradição espiritual num senso 'vertical' pode estar correta, ainda que ela possa parecer inexata num sentido 'horizontal' – vale dizer, num sentido de observação discursiva e analítica. Assim, por exemplo, não é necessário conhecer todo metal existente em vista de conhecer diretamente o arquétipo do metal em si mesmo. É suficiente levar em consideração os sete metais mencionados pela tradição – ouro, prata, cobre, estanho, ferro, chumbo e mercúrio – em vista de compreender a possível gama de variações dentro de um tipo. (Aqui nos preocupamos apenas com o aspecto qualitativo do metal). É o mesmo que considerar o conhecimento dos quatro elementos31, que na alquimia desempenha um papel tão importante. Esses elementos não são os constituintes químicos 30 Sobre o simbolismo do tecido, veja René Guénon, Le Symbolisme de la Croix, París, 1931. 31 Os hindus falam de cinco elementos, pois incluem o éter (akasha), a quintessência dos alquimistas. 34 das coisas, mas são as determinações qualitativas da matéria em si mesma. Tanto que no lugar de se falar em terra, água, ar e fogo, pode-se também falar no modo sólido, líquido, aéreo ou ígneo da existência dos materiais. A evidência analítica de que a água consiste em duas partes de hidrogênio e de uma parte de oxigênio não nos diz absolutamente nada sobre a essência do elemento água. Pelo contrário, esse fato, que apenas pode ser conhecido circunstancialmente, e por assim dizer abstratamente, na realidade obscurece a qualidade essencial 'água'. Além disso, a abordagem científica a rigor limita a realidade em questão a um plano determinado, apesar de que a intuição imediata e simbólica do elemento desperta um eco que ressoa através dos níveis de consciência, a partir do corpóreo ao espiritual. A ciência moderna 'disseca' as coisas, com a intenção de possuir a manejá-las no seu próprio nível. Esse objetivo está acima de toda a tecnologia. O racionalismo apegase à crença de que através dos materiais e das análises quantitativas, pode-se descobrir a verdadeira natureza das coisas. Característico desse ponto de vista é a opinião de Descartas de que as definições escolásticas do homem como um 'animal dotado de razão' não diz nada a respeito dele, a não ser através do estudo de seus ossos, tendões, tecidos etc32. Como se uma uma substância não fosse mais próxima da realidade, quanto mais ampla fosse! O entendimento analítico é, em última instância, nada mais que uma faca que investiga na articulação das coisas. Fazendo assim ele permite uma visão mais clara delas. Mas a essência não é acessível à mera dissecação. Goethe entendeu isso muito bem quando disse que o que a natureza não nos revelou na luz do dia não pode ser retirado à força dela pelas 'alavancas e parafusos'. * A diferença entre a cosmologia tradicional, a exemplo da cosmologia hermética, e a ciência analítica, dominada apenas pela razão, mostra-se mais claramente na sua 32Descartes, La recherche de la Vérité par les lumieres naturelles, citado em Maurice Dumas, Histoire de la Science. «Encyclopédie de la Pléiade», pág. 481. 35 perspectiva astronômica. A mais antiga concepção do mundo, na qual a Terra é vista como um disco coberto por um céu de abóboda estrelada, está cheia de significados os mais gerais e profundos – significados que são tanto menos obsoletos quanto esta imagem do mundo continua sendo verdade, não sendo outra coisas que não a experiência natural e imediata de todo ser humano. O céu, por seu movimento o medidor de tempo, a determinação do dia e da noite e das estações, a causa do subir e baixar dos luminares, o distribuidor das chuvas, manifesta o polo ativo e masculino da existência. A Terra, por outro lado, que por influência do céu se fertiliza, traz à tona plantas e nutre todas as criaturas vivas, corresponde ao polo passivo e feminino. Esse relacionamento entre o céu e a Terra, da existência ativa e passiva, é o arquétipo e modelo de várias dualidades analógicas, tal como o par conceitual 'forma essencial' (eidos, forma) e 'matéria' ou 'substância' (hyle, materia), e a dualidade, compreendida à luz de Platão, do espírito ou intelecto (nous) e alma (psyche). O movimento circular dos céus pressupõe a existência de eixos imóveis e invisíveis, correspondentes ao intelecto, que está presente imutavelmente em todas as circunstâncias do mundo. Do mesmo modo, o percurso do Sol traça uma cruz regular composta de pontos cardinais – Norte e Sul, Leste e Oeste – após o que as qualidades cósmicas que governam toda a vida distribuem-se respectivamente como frios e quentes, secos e úmidos. Podemos ver mais tarde como essa ordem é repetida dentro do microcosmo da alma humana. O percurso solar, na medida em que aparece sobre o horizonte, segue um círculo cada vez mais largo do solstício de inverno ao solstício de verão, e então um círculo cada vez mais curto, até que todo o ano se transcorra. Basicamente isso corresponde a um espiral que se vai 'liberando', e que após várias voltas transforma-se numa espiral que se vai 'enrolando' – uma imagem que foi retratada numa variedade de sinais, como a espiral dupla, 36 a espiral de dois vórtices, conhecida como o yin-yang chinês, e não menos importante no grupo de Hermes (os caduceus) nos quais duas cobras são entrelaçadas em um eixo – o eixo do mundo33. A oposição se manifesta nas duas fases do curso solar (o ascendente e o descendente), correspondendo, em um certo sentido, à oposição entre céu e Terra – com a diferença de que aqui os dois lados são móveis, e então no lugar de uma oposição de causas, trata-se de uma questão de alternância de forças. Céu e Terra estão acima e abaixo; os dois solstícios estão um no Sul e outro Norte; eles estão relacionados um com o outro como expansão e contração. Nós podemos mais uma vez nos depararmos com essa oposição, que tem vários significados, em conexão com o magistério alquímico, onde ela aparece como oposição entre o enxofre e o mercúrio. * 33A esse respeito, René Guénon, Le Symbolisme de la Croix y Julius Schwabe, Archetyp und Tierkreis, Basilea, 1951. 37 Uma forma irlandesa ou anglo-saxônica dos dois dragões na árvore do universo. A suástica no tronco da árvore (que corresponde ao eixo universal) representa o movimento dos céus. Cada dragão é composto de doze sóis e estrelas, que podem corresponder aos doze meses. De uma minuatura do séx. XVIII, extraída das 'Cartas paulinas de Northumberland', na Biblioteca da Universidade de Würzburg. A concepção do universo de Ptolomeu (na 38 qual a Terra, como um globo, representa o centro, ao redor do qual os planetas giram em uma variedade de órbitas e esferas, cercados pelo céu de estrelas fixas e, na parte externa, pelo empíreo sem estrelas) não afasta o significado da antiga concepção de universo, e nem retira a experiência imediata que o ser humano tem dela. Ademais, isso coloca em jogo um simbolismo diferente, especificamente aquele do caráter compreensivo do espaço. A graduação das esferas celestes reflete a ordem ontológica do mundo, segundo a qual cada nível de existência procede de um mais alto, de modo que um nível superior 'contém' o inferior, assim como a causa 'contém' o efeito. Assim, quanto maior for a esfera celeste na qual as estrelas se movem, mais puro, menos condicionado e mais próximo da origem divina será o nível de consciência a que isso corresponde. O empíreo sem estrelas, que envolve os céus estrelados e que aparenta compartilhar seu movimento com o firmamento das estrelas fixas (a rotação mais rápida e mais regular de todas as esferas), representa o primeiro motor (primum mobile) e assim também o Intelecto Divino que abrange tudo. Essa é a concepção de mundo de Ptolomeu adotado por Dante. Antes dele já se encontrava em textos árabes. Há também um manuscrito hermético anônimo, do séx. XII, escrito em latim e provavelmente de origem catalã34, no qual o significado espiritual das esferas celestes que se abarcam é apresentada de uma forma muito parecida com a da Divina Comédia. A ascensão através das esferas é descrita como uma subida através da hierarquia dos níveis espirituais (ou intelectuais), por meio da qual a alma, que sucessivamente assimila isso, gradualmente se desloca dos limites do conhecimento discursivo às formas de uma visão indiferenciada e imediata na qual sujeito e objeto, conhecedor e conhecido são um. Essa descrição é ilustrada por desenhos que demonstram as esferas celestes como círculos concêntricos, através dos quais o homem sobe, como se estivesse nas escadas de Jacó, à mais alta 34Publicado em M. T. d'Alverny, Les pélégrinations de l’Ame dans l'autre Monde d’après un anonyme de la fin du XIIè siècle, en «Archives d'Histoire doctrinale et littéraire du Moyen Age», 1940-1942. Segundo investigações posteriores de M.T. d’Alverny, o manuscrito que se conserva na Biblioteca Nacional de Paris foi escrito provavelmente na Bolonha, inspirado em um antecedente espanhol. 39 esfera, o Empíreo, no qual Cristo está sentado em seu trono35. Os círculos celestes são complementados em uma direção descendente – ou seja, em direção à Terra – pelos elementos. Próximo à esfera lunar está o círculo do fogo; abaixo está o círculo do ar, que confina a água, que imediatamente envolve a Terra. Vale ressaltar que esse escrito anônimo, cujas características herméticas são evidentes, reconhece a validade de todas as três religiões monoteístas, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Isso demonstra claramente como a ciência hermética, graças à sua linguagem cosmológica simbólica pura, baseada na natureza, pode ser combinada com qualquer religião genuína, sem conflitos com os respectivos dogmas. Como a revolução do oitavo céu, o firmamento de estrelas fixas é a medida básica do tempo. Então o céu externo sem estrelas (que confere ao oitavo o seu movimento ligeiramente atrasado, em razão da assim chamada processão dos equinócios) deve representar a linha divisória entre tempo e eternidade, ou entre todos os modos de duração mais ou menos condicionados36 e o eterno 'agora'. A alma, que é representada como ascendendo através das esferas, uma vez alcançado o Empíreo, deixará para trás o mundo da multiplicidade e das formas e condições mutuamente exclusivas e alcançará o Ser indiviso e todo envolvente. Dante representa essa passagem – que envolve uma completa reversão do panorama – confrontando a ordem cósmica das esferas concêntricas, que amplia sucessivamente da limitação da Terra à Infinidade Divina, com uma ordem invertida, cujo centro é Deus, e ao redor de quem o coro dos anjos gira, em cada vez maiores círculos. Eles giram mais rapidamente onde eles estão mais próximos da origem divina – em contraposição com as esferas cósmicas, cujo aparente movimento cresce em proporção com sua distância do centro terrestre. Com essa 'transformação' da ordem cósmica em ordem divina, Dante antecipa o profundo significado da concepção heliocêntrica. * 35 Veja as lâmitas l e 2; e a explicação correspondente adiante. 36 Segundo Averróis, o movimento ininterrupto do ciclo sem estrelas é a interseção entre tempo e eternidade. 40 Figuras 1 e 2. A ascensão da alma através 41 das esferas. Duas representações análogas de um manuscrito hermético anônimo do final do séc. XII (MS Latin 3236A da Biblioteca Nacional de Paris; publicado pela primeira vez por M. T. d´Alverny nos Arquivos de História doutrinal e literal da Idade Média, 1940-42). A página 90 mostra em seu topo Cristo sentado no trono, sobre as esferas. Ao lado estão as palavras: 'Creator omnium Deus –Causa prima– Voluntas divina – Voluntas divina' (O Criador de todas as coisas, Deus – a Primeira causa – a Vontade divina – a Vontade Divina). Os dois círculos mais altos contêm as palavras 'forma em potência' e 'matéria em potência'. Estes são os dois polos forma e materia prima, Ato Puro e Receptáculo Passivo, que são aqui concebidos como possibilidades contidas no Ser Puro, e ainda não manifestadas. Esta é a razão por que eles repousam do lado de fora do universo espiritual, quando ele é visto na sua realidade manifestada ou criada, que é representada pelo próximo círculo: 'Causatum primum esse creatum primum principium omnium creaturarum continens in se creaturas' (Primeiro ser criado, princípio de todas as criaturas, contendo todas as criaturas em si mesmo). Como estágios dentro do Espírito Universal, seguem-se dez faculdades intelectuais ou cognitivas ('intelligentiae'), aos quais correspondem um número similar de coros angelicais. Curiosamente a ordem na qual eles aparecem é exatamente oposta à doutrina de Dionísio a respeito da hierarquia celeste; de cima para baixo, eles são: 'Angeli', 'Archangeli', 'Troni', 'dominationes', 'virtutes', 'prmcipatus', 'potestates', 'Cherubim', 'Seraphyn' e 'ordo senorum', (coro dos anciãos). Essa inversão da ordem pode ser imputada ao erro de um copista que tivesse um esquema teocêntrico na cabeça. Abaixo dessas dez esferas do espírito supra-formal encontram-se quatro esferas da alma: 'Anima celestis', 'Anima rationabilis', 'Anima animalis' e 'Anima vegetabilis'. Até aqui a ordem concêntrica das esferas pretende-se puramente simbólica, enquanto que a sucessiva (e cada vez menor) esfera do mundo corporal devem ser entendidas simbólica e espacialmente: o mundo corporal é envolvido pelos seus círculos exteriores: 'Natura principium 42 corporis' (Natureza como princípio dos corpos). Aí estão as esferas astronômicas, a mais externa das quais corresponde à revolução de área dos céus: 'Spera decima – spera suprema qua: fit motus de occidente ad orientem et est principium motus' (Décima esfera – esfera superior: na qual ocorre o movimento do Ocidente ao Oriente, e que é o princípio de todo o movimento). Dentro dela está a esfera que determina a processão dos equinócios: 'Spera nona –spera motus octave spere qua fit motus eius de septentrione ad meridien et e converso' (Nona esfera – que move a oitava esfera, e causa a passagem do Norte a Sul e vice-versa). A seguinte, na ordem descendente, do Céu das estrelas fixas e das esferas planetárias: 'Spera octava – spera stellata; Saturnus – spera saturni; Jupiter – spera iovis; Mars – spera martis; Sol – spera solis; Venus – spera veneris; Mercurius – spera mercurii; Luna – spera lunae.' Aí repousam os quatro elementos em círculos concêntricos, ao redor do centro da Terra (o círculo mais externo corresponde tanto ao domínio dos elementos em si mesmos como ao elemento superior fogo): 'Ignis – corpus corruptibilis quod est quatuor elementa' (Fogo – corpo corruptível consistente nos quatro elementos): 'aer'; 'acqua'; 'terra'; 'centrum mundi'. Através desses círculos dos mundos espiritual, psíquico e corporal o homem ascende a Deus como que por uma escada. A figura inferior continua limitada ao domínio dos elementos, e um companheiro o arrasta para cima, segurando-o pelos cabelos. Ao lado do grupo superior está escrito: 'O mi magist[er]' (Oh, meu mestre!), ao lado do próximo: ´[e] phebei' ('jovens´), ao lado do grupo do meio: 'socii omnes' (todos os companheiros), ao lado do inferior: 'cetera turba' (a multidão remanescente). Trata-se provavelmente de uma referência a diferentes graus da sabedoria ou iniciação. A outra miniatura, na p. 89, repete a mesma ordem, dessa vez com círculos completos, mas apenas com inscrições parciais. 43 44 * A concepção universal na qual o Sol representa o centro, ao redor do qual estão os planetas, incluindo a Terra, girando, não é uma descoberta original da Renascença. Copérnico simplesmente ressuscitou – e sustentou com observações – uma ideia que já era conhecida dos antigos 37. Como um símbolo, a concepção heliocêntrica é o necessário complemento à geocêntrica. Porque a origem divina do mundo – vale dizer, o Intelecto Único ou Espírito através do qual Deus cria o mundo – pode ser facilmente considerado como o Todo Envolvente (correspondente a espaços ilimitados), assim como pode ser considerado como o único centro 'radiante' de todas a manifestação. Precisamente em razão de que a origem divina está tão acima de todas as diferenciações, cada representação dela deve ser complementada pela sua própria parte invertida, como se vistas em um espelho. A concepção heliocêntrica, entretanto, é de fato usada pelo racionalismo para provar que a concepção geocêntrica tradicional – e todas as interpretações espirituais conectadas com ela – são puros enganos. E daí surge o paradoxo de que uma filosofia que fez da razão humana a medida da realidade resultou numa concepção astronômica na qual o homem acabou aparecendo mais e mais como um grão de areia entre outros grãos de areia, um mero acidente sem qualquer espécie de procedência cósmica, enquanto a perspectiva medieval, baseada não na razão humana, mas na revelação e na inspiração, colocou o homem no centro do cosmos. Essa flagrante contradição é, apesar de tudo, fácil de se explicar. O ponto de vista racionalista esquece completamente que tudo o 37O sistema heliocêntrico era ensinado já por Aristarco de Samos (320-250 a.C.). Nicolau Copérnico, no prólogo dedicado ao Papa Paulo III, de sua obra Sobre a Órbita dos Astros (1543), refere-se a Hicetas de Siracusa e a certas indicações de Plutarco. Aristóteles, em seu livro Sobre o Céu, escreveu: “Enquanto que a maioria (dos físicos) opinam que a Terra está no centro (do Universo), os filósofos itálicos, chamados pitagóricos, dissentem deles, pois afirmam que no centro está o fogo; a Terra, pelo contrário, que é um dos astros, gira ao redor do centro...” É de supor que também certos astrônomos hindus da Antiguidade conheciam o esquema heliocêntrico do Universo. 45 que se pode expressar a respeito do universo permanece como conteúdo de consciência humana, e que o homem, precisamente porque ele pode olhar para a existência física a partir de um ponto de vista superior – como se ele não fosse limitado de fato a esta terra – claramente demonstra que ele é o centro cognitivo do mundo, precisamente porque o homem é o portador privilegiado do Intelecto, e portanto pode conhecer essencialmente tudo o que é, a perspectiva tradicional o coloca no centro do mundo visível, cuja posição de fato corresponde inteiramente com a experiência sensorial imediata. Na mesma esteira, especificamente a da cosmologia tradicional, a concepção heliocêntrica, na qual o homem é, por assim dizer, periférico ao Sol, só pode ter um significado esotérico, a saber aquele que Dante concebeu na sua descrição teocêntrica do mundo angélico: do ponto de vista de Deus, o homem não está no centro, mas no limite extremo da existência. Que a concepção heliocêntrica possa parecer mais correta a partir de um ponto de vista físicomatemático é em uma indicação de que esse ponto de vista, em si e a seu respeito, algo de não muito humano... Ele se recusa a considerar o homem como um todo, como um ser composto de espírito (intelecto), alma, e corpo, em benefício de uma consideração exclusiva do plano material quantitativo, e então se transforma em reflexo 'inferior' do ponto de vista que vê o homem sub specie aeternitatis. Nenhuma concepção de mundo pode estar sempre absolutamente correta, porque a realidade da qual nossa observação toma conhecimento é condicionada, dependente, e multiplamente indefinida. Acreditar no sistema heliocêntrico como algo absoluto criou um tremendo vazio: o homem foi privado de sua dignidade cósmica, e foi transformado em um grão de areia sem significado entre todos os outros grãos de areia ao redor do Sol, mostrou-se incapaz de realizar uma visão satisfatória e espiritual das coisas. A concepção cristã, centrada na encarnação de Cristo, não estava preparada para isso. Ser capaz de ver o homem como um desaparecente nada no espaço cósmico, e ao mesmo tempo como o seu centro cognitivo e simbólico, excede a capacidade da maioria. 46 Mais tarde, quando o Sol foi considerado ele próprio dentro de uma corrente sem fim de milhões de outros sóis (talvez também cercados de planetas), talvez com milhares e milhões de anos-luz entre eles, nenhuma concepção, em qualquer sentido real do tempo, é mais possível. A 'construção' do mundo não é mais imaginável, resultando daí que o homem perdeu a sua capacidade de se integrar num todo dotado de sentido. Isso pelo menos é o efeito frequente, nos ocidentais, da concepção moderna. O modo budista de ver as coisas, que sempre considerou o mundo como uma areia movediça, pode trazer uma diferente reação às teses científicas. Se o conhecimento científico anda de mãos dadas com uma valoração espiritual das aparências, pode-se ver no sucessivo abandono de todos os, por assim dizer, sistemas fechados, a prova de que toda visão do mundo não é nada mais do que uma imagem ou reflexo, e como tal não é de modo algum incondicional. Para este mundo, o Sol que nossos sentidos percebem é a soma total de luz e o símbolo natural daquela origem divina que ilumina todas as coisas e em volta de que todas as coisas giram. Ao mesmo tempo, entretanto, é apenas um corpo luminoso, e como tal não é único, mas um entre outros do mesmo tipo. Aqui não é o lugar para mostrar como cada nova concepção de mundo é promovida, nem tanto pelas observações científicas, como pela sua 'unilateralidade' lógica. Isso se aplica também à mais recente concepção de espaço. A cosmologia medieval imaginou a totalidade de espaço como uma grande esfera, imensurável, espiritualmente englobada pelos céus mais exteriores. Filósofos racionalistas consideraram que o espaço era infinito. Desde que considerado, contudo, como extensão limitada, pode muito bem ser indeterminado, mas certamente não é infinito, o próximo passo científico conduz a um conceito praticamente inimaginável de um espaço curvo fluindo de volta a si mesmo! A homogeneidade incondicional de espaço e tempo é abandonada pelos mais recentes matemáticos em favor de uma relação constante entre espaço e tempo. Se, contudo, o espaço é aquilo que contém tudo o que é observado simultaneamente, e o tempo é aquilo que constitui a sucessão de 47 observações, então automaticamente as estrelas fixas não estão mais separadas de nós por muitos anos-luz, mas estão situadas onde visível e simultaneamente tem o seu limite mais externo. Em face desse paradoxo, deixe-nos simplesmente dizer que em última instância toda concepção 'científica' de mundo é condenada a contradizer-se, ao passo em que o significado espiritual que manifesta a si mesmo, de um modo ou de outro, a todas as coisas visíveis, e que se revela a si mesmo de modo tanto mais convincente quanto mais primordial e mais adaptada ao homem a concepção for, não sofre mudanças de qualquer espécie. Se falamos aqui de um significado, não nos referimos a nada conceitual. Usamos a expressão 'significado', por necessidade e seguindo o exemplo dos escritos tradicionais, para designar o conteúdo imutável das coisas, que apenas o intelecto é capaz de alcançar. * Por meio das observações precedentes,a respeito da concepção astronômica do mundo, talvez acabamos mostrando que há dois meios mutualmente opostos de olhar para o mundo ou para a natureza, num sentido amplo da palavra. O primeiro, fomentado pela curiosidade científica, esforça-se em direção a uma inexaurível multiplicidade de aparências e, na medida em que se acumulam as experiências, tornam-se, em si, múltiplos e desmembrados. A outra esforça-se na direção do centro espiritual, que é ao mesmo tempo o centro do homem e das coisas, enquanto suporta a si mesmo no caráter simbólico das aparências, a fim de pressentir e contemplar as realidades imutáveis contidas no Intelecto Divino. Esse último ponto de vista leva à simplificação, não no que diz respeito ao que se percebe como gradação múltipla, mas com respeito àquilo que considere ser essencial. A mais perfeita visão com a qual o homem pode alcançar é simples, no sentido de que sua riqueza interior é desprovida de características diferenciadas. Essa visão superior, ou contemplação, tem relação com um texto hermético sírio, do qual gostaríamos de citar alguns trechos, como conclusão desse capítulo sobre o conhecimento hermético (o texto em questão fala de um espelho secreto, que está 48 estabelecido atrás das sete portas, que corresponde às sete esferas planetárias): '… O espelho é feito de modo que nenhum homem pode ver-se a si mesmo materialmente nele, porque tão logo ele dele se afasta, esquece sua própria imagem. O espelho representa o Intelecto Divino. Quando a alma nele se vê a si mesma, ela descobre a desonra que há em si mesma, e a afasta de si. Assim purificada, ela se assimila ao Espírito Santo, e o toma como modelo; ela se transforma no Espírito; ela alcança paz e sempre retorna a esse estado superior, no qual se conhece (Deus) e se é conhecido por ele. Então, tendo voltado sem sombras, ela é liberta de suas próprias correntes e daquelas que ela compartilhava com o corpo... Qual é o adágio dos filósofos? – Conheça-te a ti mesmo! Isso se refere ao espelho intelectual e cognitivo. E o que é o espelho senão o Intelecto Divino e original? Quando o homem olha-se a si mesmo e vê a si mesmo no espelho, ele se afasta de tudo que suporta o nome de deuses ou demônios, e unindo-se a si mesmo com o Espírito Santo, transforma-se em um homem perfeito. Ele vê Deus dentro de si mesmo... Esse espelho está colocado além das sete portas... que corresponde aos sete céus, além do mundo sensível, além das doze mansões (celestiais)... Além de tudo isso está este olho dos sentidos invisíveis, este olho do Intelecto, que está onipresente e além de todas as coisas, então se vê esse Espírito perfeito, em cujo poder tudo está contido...'.38 38 Berthelot, La Chimie au Moyen Age, París, 1893, II. 262-263. 49 CAPÍTULO 4 ESPÍRITO E MATÉRIA Para os homens da antiguidade, o que nós hoje chamamos matéria não tem o mesmo significado atual; o mesmo se diga do conceito e da experiência. Isso não quer dizer que os assim chamados homens primitivos apenas enxergavam através de um véu de 'imaginações mágicas e compulsivas', como certos etnologistas supuseram, ou que seu pensamento era 'alógico' ou 'pré-lógico'. As pedras eram tão duras quanto hoje, o fogo era tão quente quanto, e as leis da natureza, tão inexoráveis quanto. O homem sempre pensou logicamente, mesmo se, além dos dados sensoriais, ou mesmo através deles, ele estava acostumado também a levar em conta realidades de uma ordem diferente. A lógica pertence à essência do homem, e a sua decomposição em imaginações compulsivas, de caráter parcialmente materialista, parcialmente sentimental, não é encontrada em pessoas 'primitivas', nem nos selvagens mais espiritualmente degenerados, mas apenas na decadência de uma cultura exclusivamente urbana. Que a matéria pudesse ser concebida como algo completamente afastado do espírito, como no caso, no mundo moderno, tanto na teoria como na prática – e não obstante certas correntes filosóficas contraditórias 39 – não é de modo algum auto-evidente. Isso é resultado de um desenvolvimento mental particular, para o qual Descartes foi o primeiro a dar expressão filosófica, sem 'inventá-lo'; de fato, foi profunda e organicamente condicionado pela tendência geral de reduzir o espírito a mero pensamento e limitá-lo à razão discursiva, que significa privá-lo de toda a significação supra-mental e, portanto, também de toda presença e imanência cósmica. De acordo com Descartes, espírito e matéria são duas realidades completamente separadas, que graças à ordenação divina, andam juntas em apenas um ponto: o 39Certas teorias modernas que pretendem entender o desenvolvimento das formas inorgânicas e orgânicas como uma “evolução” do espírito não são, no fundo, senão uma continuação do materialismo, já que atribuem ao espírito, que em essência é imutável, um devir. 50 cérebro humano. Assim, o mundo material, conhecido como 'matéria', é automaticamente privado de seu conteúdo espiritual. Enquanto o espírito, por sua vez, transforma-se na contrapartida da mesma realidade puramente material, porque o que ele é em si mesmo, acima ou além disso, permanece indeterminado. Para o homem dos tempos antigos, matéria era como que um aspecto de Deus. Nas culturas que são comumente chamadas arcaicas, essa perspectiva era imediata, e relacionada com a experiência sensorial, porque o símbolo da matéria era a terra. Essa representava, na sua realidade perene, o princípio passivo de todas as coisas, enquanto o céu representava o princípio ativo e geracional. Os dois princípios são como as duas mãos de Deus, e eles estão relacionados um com o outro como macho e fêmea, pai e mãe, e não podem ser separados um do outro – porque em tudo o que a terra produz o céu está presente como poder criativo, enquanto a Terra, por sua vez, dá forma e corpo às leis celestiais. Assim, o modo arcaico de ver as coisas era 'sensível' e espiritual ao mesmo tempo, porque a verdade metafísica por trás dela permanece independentemente dessa simplória concepção de universo. Para a philosophia perenis, que até a chegada do racionalismo era comum tanto no oriente como no ocidente, os dois princípios, o ativo e o passivo, eram, para além de todas as manifestações visíveis, os primeiros e tododeterminantes pólos da existência. Nessa visão, a matéria permanece um aspecto ou função de Deus. Ela não é algo separado do espírito, mas seu complemento necessário. Em si mesma, ela não é mais do que a potencialidade de receber uma forma, e todos os objetos perceptíveis aí sustentam a marca da sua contrapartida ativa, o espírito ou palavra de Deus. É apenas para o homem moderno que a matéria se transformou em uma coisa, e deixou de ser o espelho completamente passivo do espírito. A matéria se tornou mais compacta, vale dizer, na medida em que agora arroga-se a si mesma, sozinha, a qualidade da extensão espacial, e tudo o que se relaciona com esta. Ela se tornou massa inerte, ao contrário do espírito livre. É completamente exterior e espiritualmente impenetrável. É um mero fato. Na verdade, mesmo para as pessoas da antiguidade, a matéria corporal possuía esse aspecto 51 contingente e relativamente não-espiritual, mas esse aspecto não fez a mesma afirmação, mas não tinha essa pretensão de ser a única realidade. Acima de tudo, ela nunca foi considerada como algo que pudesse ser estudada por si mesma, independentemente do espírito, a visão de que a extensão espacial era a característica distintiva da matéria teve sua primeira expressão filosófica em Descartes. Daí em diante, a matéria foi considerada como massa e extensão. O resultado disso foi que o homem buscou compreender tudo o que era espacial, e finalmente todas as qualidades sensivelmente percebidas num modo puramente quantitativo. Em certo sentido, isso é possível, especificamente na medida em que isso pode ser uma vantagem em uma ciência devotada exclusivamente para a manipulação exterior das coisas. Contudo, nem a extensão espacial, nem qualquer outra qualidade sensorialmente percebida, pode ser complemente esgotada em linhas puramente quantitativas. Como René Guenon mostrou com maestria, no livro O Reino da quantidade e o sinal dos tempos (Luzac, Londres, 1953), não há extensão espacial que não possua um aspecto qualitativo – tanto quanto um quantitativo. Pode-se ver isso mais facilmente nas formas espaciais mais simples, como é o círculo, o triângulo, um quadrado etc. Cada uma dessas figuras têm algo de único, qualitativamente falando, que não pode ser sujeito a uma comparação puramente quantitativa40. É de fato impossível reduzir o mundo da percepção sensorial a categorias quantitativas, pois ele poderia se desintegrar em um puro nada! Mesmo os mais simples 'modelos de pensamento' da ciência empírica – por exemplo, os modelos que indicam a estrutura dos átomos ou moléculas – contém elementos qualitativos, ou pelo menos dependem indiretamente desses elementos. Pode-se expressar a diferença entre o vermelho e o azul em figuras explicando as cores em termos de oscilações e expressando isso em figuras; mas um homem cego, que nunca teve uma experiência direta das cores, nunca vai conhecer a essência do 40Isso é válido inclusive para os números, porque cada número não representa só uma quantidade, senão, ao mesmo tempo, também um aspecto da unidade ou do uno, como o que tem caráter de dois, três, quatro etc. A diferença qualitativa das formas se manifesta com a maior claridade das unidades numerais, e essa é a razão pela qual os teotemas pitagóricos consideravam aos números simples como a expressão dos arquétipos. 52 vermelho e do azul em virtude dessas figuras. E o mesmo se aplica ao conteúdo qualitativo de qualquer outra percepção sensorial. Deixe-nos imaginar um homem que foi surdo e daltônico desde o nascimento, mas se acostumou com a descrição científica dos sons e cores. A descrição científica não lhe transmitirá nem a essência dos sons e das cores, nem a profunda diferença entre os dois tipos de percepção sensorial. E o que é verdade a respeito das mais simples e mais elementares qualidades aplica-se, primeiro e principalmente, a formas que são expressões de uma unidade viva. Isso, por sua própria natureza, evita não apenas qualquer medida e toda contabilidade, mas também, e acima de tudo, qualquer perspectiva que busque 'dissecá-la'. É sempre possível, obviamente, mapear, quantitativamente, as fronteiras de uma forma particular, sem compreender sua essência. No campo das artes, ninguém contestar isso, mas é frequentemente esquecido que isso também é válido em outros domínios a essência, o conteúdo, a unidade qualitativa de uma coisa, nunca pode ser abarcada por um processo de cálculo 'passo-a-passo', mas apenas por uma experiência compreensiva e imediata ou 'visão'. O conteúdo qualitativo das coisas não pertence à matéria, que é meramente um espelho dele, que então pode ser visto, mas não ao ponto de que pode ser limitado juntamente com o plano material. Uma ciência baseada em análises quantitativas, que 'pensa através de ações ou age através de conceitos' (ao invés de ver e experimentar integral e diretamente), tem necessariamente que ser cega à fertilidade infinita e à essência multifacetária das coisas. Para uma tal ciência, o que os antigos chamavam de 'forma' de uma coisa (i.e., seu conteúdo qualitativo) não tem praticamente nenhum papel. Essa é a razão pela qual ciência e arte, que nas eras préracionalísticas eram mais ou menos sinônimas, são agora completamente divorciadas uma da outra. E também porque a beleza, para a ciência moderna, não oferece o menor acesso em direção ao conhecimento. A doutrina tradicional que faz a distinção entre eidos e hyle (ou entre forma e matéria) é aquela que mais completamente faz justiça ao fato de que as coisas têm vários significados em diferentes níveis, e que elas têm qualidades tanto 53 quanto quantidades. A doutrina tradicionalista, que efetivamente discrimina, não apenas divide ou desmembra, mas leva em conta os dois 'pólos' na sua complementaridade mútua. Aristóteles deu uma expressão dialética a essa doutrina, mas ele não a 'inventou', pois ela está na natureza das coisas, e corresponde à perspectiva espiritual do homem primitivo. A forma, no sentido peripatético da palavra, é a síntese das qualidades que constituem a essência de uma coisa. Forma significa a realidade inteligível de uma coisa, e é bastante independente da existência material das coisas. Nesse sentido, não se deve, portanto, confundir 'forma', nesse sentido, com forma no sentido cotidiano, de algo que é espacialmente, ou de outra forma, limitado, mais do que qualquer um deve equiparar 'matéria', que recebe 'forma' e lhe dá existência finita, com matéria no sentido moderno do termo. A imaginação pode ser ajudada a compreender as ideias de 'forma' e 'matéria' pela analogia entre artista ou artesão, que confere certa forma, pré-concebida em seu intelecto, a uma matéria tal como argila, madeira, pedra ou metal, assim criando uma imagem do objeto. Mas isso não passa de uma comparação, porque o material do artesão não é completamente sem formas. Mesmo que ele seja relativamente 'informe', ele contudo já possui certas propriedades ou qualidades – de outro modo, a argila não poderia ser distinguida da madeira, ou a pedra do metal. A matéria completamente 'sem forma' não pode nem ser representada nem imaginada, pois ela é potencialidade pura (tendente a ganhar forma) e não tem em si mesmo qualquer caractere discernível. Ela somente pode ser conhecida em relação com 'forma'. Mesmo 'forma', entretanto, não pode ser representada separada da matéria, porque qualquer forma que já foi revelada participa de uma matéria. Isso se aplica até mesmo a uma forma imaginada, na medida em que se pode dizer que a imaginação reveste a essência espiritual da forma com um tipo de 'matéria' mental. Em razão de que a essência de uma forma, independentemente do seu 'revestimento' material, permanece o mesmo (de tal modo que se pode ainda chamar uma forma materialmente limitada de 'forma'), o conceito padece de uma certa ambiguidade. Pode-se reconhecer prontamente que em 54 certas circunstâncias à mesma palavra forma pode ser dados dois significados opostos: como 'figura' exterior de um ser ou um trabalho, 'forma', no aspecto 'material' das coisas, é oposta ao espirito ou conteúdo. Como uma causa que dá forma, contudo, que cunha sua marca na matéria, 'forma' se localiza do outro lado – aquele do espírito ou essência. Quando comparamos o modo cartesiano de ver a matéria como essa doutrina, notamos, entre outras coisas, que a extensão espacial que Descartes atribui à matéria contradiz a teoria tradicional, porque a extensão espacial, privada de qualquer forma qualitativa, é inimaginável. Mesmo o sentido, como René Guenon demonstrou41, é de natureza qualitativa. Matéria, entretanto, é em si mesma completamente sem forma. Tudo o que ela tem é quantidade, pura quantidade que não é determinada por nenhum número finito, e assim não pode ser alcançada de nenhuma maneira. Ela corresponde, como Guenón também assinalou, a materia signata quantitate, que os escolásticos consideraram a base do mundo corporal. Vale dizer, ela não corresponde à matéria-prima, privada que é de todo atributo, mas apenas à matéria secunda relativa, determinada em direção ao mundo corporal. Da matéria-prima, a substância primordial, apenas se pode dizer que ela é puramente receptiva, com respeito à causa que dá forma à existência, e isso é ao mesmo tempo a raiz da 'alteridade', porque é através dela que as coisas são limitadas e múltiplas. Na linguagem bíblica, a matéria-prima é representada pelas águas, sobre as quais, no início da criação, o Espírito de Deus se movia. Assim como a materia, quando se procura apreendê-la, frustra cada avanço da razão e retira-se ao pólo passivo da existência, então a forma essencial (forma) pode ser rastreada no pólo ativo da existência, esvaziando-o sucessivamente de qualquer camada de manifestação que é condicionada por qualquer materia, por tênue que seja. Aristóteles, que rastreou os dois conceitos (forma e matéria ou eidos e hyle) apenas até onde sua ontologia pode ser demonstrada logicamente, não alcançou o limite onde suas oposições paradoxalmente se dissolvem numa unidade superior. Entretanto, está claro que a causa formal, correspondendo ao Ato 41 No Reino da Quantidade e o Sinal dos Tempos, Ed. Gallimard, París, 1943. 55 puro, e a sustância receptiva, que é puramente passiva, complementam-se uma à outra reciprocamente; e assim, como as possibilidades fundamentais e atemporais, elas não podem ser separadas uma da outra. Essa referência de todas as aparências, aos dois pólos primários obviamente não abole o milagre da criação; trata-se apenas de indicar os seus limites perceptivos mais extremos. O pólo ativo pode também denominar-se, de um modo geral, como 'essência', e o pólo passivo como 'substância'. Em um certo sentido, essência corresponde ao espírito ou intelecto, na medida em que a formae ou predeterminações essenciais das coisas estão contidas no Intelecto divino como protótipos ou 'arquétipos'. Pode-se objetar que a ideia de 'forma' não pode ser alargada em uma direção superior sem se abolir a distinção manifestações 'formal' e 'supra-formal'. Vale dizer, a distinção entre o terreno 'individual' e o terreno 'universal', que é aquele do Espírito único. A isso se pode responder que o termo 'formal' apenas pode ser aplicado àquilo que, através de uma forma, é impresso em uma substância. Em si mesma, a forma pode ser vista não apenas como limitação ou contorno, mas também como 'feixe' de qualidades não 'substancial' ou 'materialmente' determinadas. Nesse último sentido, ela pode ser aplicada até a aspectos unitários do Ser. Até mesmo nos escritos dos teólogos medievais de todas as três religiões monoteístas, deparamo-nos com a expressão 'a forma de Deus' (forma Dei; em árabe as-sûratu ´l-ilâhiyah) para a totalidade das qualidades divinas. A 'essência' de Deus, que revela-se a si mesma através dessas qualidades, é nela própria incondicionada e acima de todas as qualidades. * 56 Figura 3. Dois candelabros da sepultura de São Bernardo, bispo de Hildesheim (993-1022). São Bernardo, tutor de Otto III, filho da princesa bizantina Theophano, fundou oficinas de metalurgia, ouriversaria, caligrafia e pintura. Nos pedestais dos dois candelabros encontrados em seu túmulo, está escrito: 'Bernwardus Praesul candelabrurn hoc puerum suum primo hujus Artis flore non auro, non argento, et tamen, ut cernis, conflare jubebat' (Bernardo, o Superior, no primeiro florescimento desta arte, 57 pediu a seu aprendiz para projetar este candelabro não em prata nem em ouro, mas de qualquer modo, como se vê, para projetálo). Os dois candelabros consistem em uma mistura de prata com cobre e ferro; a superfície apresenta sinais de dourados. O pedestal de ambos os candelabros consistem em três pares de dragões entrelaçados, sobre os quais homens nus estão cavalgando. Os rebentos de videira, em volta do eixo, brotam dos dentes de um leão. Nisto os homens sobem, e os pássaros sentam-se neles. As velas estão sustentadas por salamandras. Os pares de dragões representam os dois poderes psíquicos primários em seu estado selvagem, caótico. Eles correspondem aos caduceus. A videira que brota da boca do leão solar é um símbolo primordial da vida, assim como uma fonte de água lançada a partir da máscara leonina. Para o Cristianismo, isso é também um símbolo da palavra de Deus. A salamandra é um animal de fogo. 58 Figura 4. A flor da sabedoria. No ovo hermético está o dragão Uroboros, que como simbolo da Natureza não redimida ou da matéria informe, devora a sua própria cauda. Para fora do ovo cresce a flor vermelha de ouro, a flor branca de prata e, entre elas, a 'flor da sabedoria' azul. Embaixo está o Sol e a Lua, e entre eles está a estrela do Mercúrio 'filosofal'. – Página do 'Manuscrito Alquímico' de 1550, na Biblioteca da Universidade da Basiléia. No seu livro The Sceptical Chymist, publicado em 1661, Robert Boyle atacou a doutrina tradicional dos quatro elementos como fundamento de toda a materia corporal. Ele demostrou que a terra, água e ar não são corpos indivisíveis, mas são compostos de vários constituintes químicos. Ele acreditou que, fazendo assim, ele haveria destruído a alquimia em suas raízes. O que ele na verdade destruiu não foi a alquimia verdadeira, mas uma concepção imperfeita e mal-compreendida da doutrina tradicional dos quatro elementos, já que os verdadeiros alquimistas nunca consideraram terra, água, ar e fogo como substâncias corporais e químicas, no atual sentido da palavra. Os quatro elementos são simplesmente as qualidades primárias e mais gerais através das quais a substância amorfa e puramente quantitativa de todos os corpos revelam-se em formas diferenciadas. A essência imutável de cada elemento também não tem nada a ver com qualquer indivisibilidade corporal. E na realidade, o fato de que a água seja composto de hidrogênio e oxigênio, e o ar de hidrogênio e nitrogênio, de nenhuma forma altera a experiência imediata das quatro 'condições' fundamentais da materia corporal, de que terra, água, ar e fogo são os exemplos mais gerais. Mesmo os constituintes químicos nos quais os três primeiros itens podem ser decompostos reduzem-se a estas categorias. Uma certa dificuldades em compreender a doutrina a respeito dos quatro elementos pode surgir do fato de que enquanto esses quatro 'modos de manifestação' são, de um lado, a diferenciação qualitativa primária de materia, eles, contudo, na medida em que sua relação com os corpos verdadeiros é considerada, desempenha o papel de substâncias passivas e que podem ser 59 moldadas. Nesse último aspecto, especificamente como fundamentos materiais ou substanciais, os quatro elementos podem ser comparados – como foi feito por ar-Râzî (Rhazes), por exemplo – com estados mais ou menos densos de substâncias corporais, ou até mesmo com vários tipos de vibração, embora todas essas analogias sejam apenas aproximadamente adequadas, já que os elementos em si mesmos permanecem além (ou ao lado) de manifestação corporal, na medida em que a materia de todo o mundo corporal é ela mesma imperceptível. De tudo isso pode-se ver que uma alquimia consciente de seus fundamentos cosmológicos não poderia acreditar que seria através de procedimentos químicos que os quatro elementos foram reduzidos um ao outro, e a suas substâncias comuns subjacentes – como a arte hermética ensinou. Se esse ensinamento era de fato seguido em seu sentido real, ela apenas poderia distanciar de um nível de empirismo exterior a uma 'dimensão' ontológica completamente diversa. De acordo com os alquimista ocidentais e orientais, os elementos nunca estão presentes nos corpos em sua forma pura. Cada substância corporal contêm todos os quatro elementos, com a preponderância de um ou outro, e assim imprimindo seu caractere na aparência corporal. Assim, a água comum não é idêntica ao elemento de mesmo nome, embora seja sua manifestação mais imediata, e ao mesmo tempo é essencialmente uma, tanto com ela como com o aspecto passivo da substância primordial ou universal. O fato de que em todos os lugares, nos vários níveis da existência, há ligações 'verticais' com os arquétipos universais, significa que a concepção cosmológica da natureza – e também toda arte nela baseada – possui uma multiplicidade de significados hierarquicamente arranjada. A base comum dos quatro elementos, quando se olha às coisas em geral e de um modo sintético, não é nada além do que a materia prima do mundo. Olhando às coisas mais exatamente, entretanto, os elementos não procedem diretamente da matéria-prima, mas de sua primeira determinação, o éter, que preenche todo o espaço igualmente, e que nos escritos alquímicos é chamado tanto de materia, quando uma quintaessentia – dependendo se é visto material ou qualitativamente. 60 A mais completa exposição dos quatro elementos é encontrada na cosmologia hindu de sankhya. De acordo com ela, os elementos corporais, ou bhutas, que pertencem ao mundo material, no sentido mais amplo do termo, correspondem em número às medidas 'essenciais' ou tanmâtras, que estão contidas no sujeito cognitivo. Ambos os grupos de determinações primordiais, os tanmâtras tanto quanto os bhutas, derivam, em última instância do prakriti (materia prima). Eles são filtrados através do ahankâra, o principium individuationis ou consciência egóica, e divididos nos pólos objetivos e subjetivos do mundo manifesto. Essa exposição dos elementos corresponde exatamente à concepção hermética. Ela também mostra como as aparências visíveis podem ser transpostas para o campo interior, porque as tais tanmâtras também 'medem' fenômenos psíquicos. Se os elementos são listados na ordem de seu 'quilate' ou 'sutileza', a terra ocupa o lugar mais baixo e o ar, o mais alto. Se, contudo, eles são ordenados de acordo com as direções do seu movimento, o fogo ocupa o lugar mais alto; a terra é caracterizada pelo seu peso: ela possui uma tendência descendente. A água é também 'pesada', mas também tem a capacidade de 'extensão'. O ar tanto aumenta como se estende, ao passo que o fogo apenas aumenta. De acordo com a tradição hermética, a ordem natural dos elementos é representada tanto por uma cruz, cujo ponto central então corresponde a quinta essencia, ou por círculos concêntricos, em cujo caso a terra é o ponto mediano, e o fogo o círculo mais exterior. De novo, ela pode ser representada pelas partes individuais do 'Selo de Salomão', que consiste em dois triângulos equiláteros, que se intercedem. O triângulo que aponta para cima △ corresponde ao fogo, e o triângulo que aponta para baixo ▽ corresponde à água. O triângulo representando o fogo, com o lado horizontal do outro triângulo, representa o ar & enquanto o oposto desse símbolo representa a terra %. o Selo de Salomão completo Y representa a síntese de todos os elementos, e assim a união de todos os opostos. * 61 A concepção tradicional de materia como o fundamento passivo e receptivo de toda a multiplicidade e diferenciação torna possível aplicar o mesmo conceito fora do domínio corporal. Assim, pode-se falar de materia da alma, dado que o plano psíquico também consiste de uma 'impressão' múltipla e mutável de formas essenciais, e assim possui um pólo ativo (ou essencial) e passivo (ou substancial ou 'material'). O pólo substancial da alma, em outras palavras sua materia, é expressado na sua capacidade de assumir e manter formas, vale dizer, na sua 'receptividade' pura e ilimitável. Este é o seu lado feminino – e pode-se concebê-lo quase literalmente, já que na natureza da mulher esse aspecto da alma predomina, e mesmo se mostra fisicamente. Na mulher, alma e no corpo estão relativamente fechados um ao outro, como resultado das características 'passivas' comuns a ambos – um fato que enobrece o corpo mas vincula a alma. As 'formas' assumidas pela 'substância' ou 'matéria' da alma vêm tanto de fora como de dentro. Isso significa que, empiricamente, eles vêm de fora, através dos sentidos. Eles são formas essenciais apenas na medida em que correspondem aos arquétipos imutáveis contidos no Intelecto, que constitui o conteúdo real de todo o conhecimento. O pólo essencial da alma é assim o Intelecto (ou Espírito). Ele é sua 'forma'. Essa expressão pode muito bem soar peculiar. Ela não deve ser considerada de modo a significar que o Intelecto em si mesmo tem qualquer 'forma' particular. Se até mesmo o termo 'forma essencial' pode ser aplicado ao Intelecto, é apenas porque na sua ação sobre a materia de uma dada alma ele imprime a 'forma pessoal' da alma, e então, juntamente com esse último, forma o ser pessoal. Pelas mesmas razões – ou seja, havendo considerado o inter-relacionamento do espírito e alma, e em razão de que a singularidade qualitativa da pessoa vem do Espírito –, é possível falar de 'espírito' de um ser particular, ou de 'espíritos' no plural. Assim, é no caso de uma luz, de que um raio – ou um feixe de raios – é interceptado numa superfície refletora: a luz em si mesma não tem nenhuma direção particular, ela se espalha por todo o espaço. No seu relacionamento com a superfície reflexora, contudo, ela tem uma direção, e parece, sem 62 qualquer mudança essencial de natureza, como se fosse um raio. Então tudo o que é espírito é 'feito de conhecimento' e completamente um com a Luz da Verdade. E ainda quando o espírito está presente na alma, ele aparece como um ser individual. Como espírito e alma não podem ser circunscritos como duas coisas corporais, qualquer comparação que se possa fazer para transmitir seu relacionamento recíproco é de alguma muito simplista e muito imperfeito. Apesar disso, tais comparações transmitem muito mais do que um esforço de descrição psicológica, que necessariamente relaciona tudo unicamente ao plano psíquico, resultando que o pólo espiritual apenas é percebido indiretamente, como um aspecto particular do mundo psíquico. Isso ocorre, por exemplo, na distinção psicológica entre animus e anima, que tem a mais remota conexão real entre espírito e alma, como é mostrado pelo fato (entre outras coisas) de que animus recebe uma inclinação 'racional'. Na realidade, é apenas uma reflexão psíquica e passiva do espírito. No seu livro On the Adornment of the Spititual Marriage (Livro II, Capítulo 4), Ruysbroek escreve: 'Em todo homem há, por natureza, uma tripla unidade, que além disso, no caso dos justos, é sobrenatural. A primeira e mais alta unidade encontrada no homem é Deus, já que todas as criaturas dependem da Unidade Divina para a perfeição de seu ser, vida e existência. Se eles pudesse dissolver esse relacionamento, eles cairiam no nada e seriam aniquilados. Essa unidade é em nós essencialmente natural, quer sejamos bons ou maus. Sem nossa cooperação, não nos faz nem santos nem bem-aventurados. Enquanto essa unidade está em nós, ela está ao mesmo tempo acima de nós como fundamento e suporte de nossa vida. 'A segunda união, ou unidade, está da mesma forma presente em nós naturalmente. Trata-se da unidade das faculdades superiores, uma unidade que deriva do fato de que, considerando-se sua atividade, essas faculdades saltam naturalmente da unidade do próprio Espírito. Ela continua a mesma unidade que nós possuímos em Deus, mas aqui ela é considerada do lado ativo, e não do ponto de vista da essência. O Espírito está tão presente em uma unidade como em outra, com 63 toda a completude do seu ser. Essa segunda unidade nós possuímos em nós mesmos, bem acima do terreno dos sentidos. Dela derivam o pensamento, a razão, o desejo e todas as possibilidades da atividade espiritual. Aqui a alma comporta o nome de espírito. 'A terceira unidade que em nós está naturalmente consiste no domínio das faculdades inferiores, que tem sua sede no coração, a base fonte da vida animal. É no corpo, e especialmente na ação do coração, que a alma possui essa unidade, a partir da qual todas as atividades do corpo e os cinco sentidos procedem. Aqui leva seu verdadeiro nome, alma, pois é a 'forma' do corpo que ela anima, o corpo que ela faz viver e mantém vivo. 'Essas três unidades que estão no homem por natureza constituem uma só vida e um só reino. Em sua unidade inferior essa vida é sensorial e animal; na unidade intermediária ela é racional e espiritual; na unidade superior, ela está contida na sua própria essência. Isso pertence a todos os homens por natureza...' Ruysbroek caracteriza a alma no senso literal da palavra (anima, psyque), por sua tendência em direção às faculdades sensoriais, através do que ele faz menção aos níveis da alma individual empírica, em contraposição ao espírito. Mas o relacionamento espírito-alma pode também ser visto de uma outra forma. Quando ele fala da alma como materia do espírito, nós não queremos apenas significar o mero tecido de uma consciência egóica, mas antes a capacidade passiva e receptiva que subjaz em maior profundidade, e que precisamente é velada pela habitual relação feita entre alma e sentidos. A possível confusão da alma, considerada como ego, com o corpo a torna fragmentária e, num certo sentido cristalizada, e isso a impede de refletir o Espírito livremente e sem distorções. O que corresponde à alma caótica no plano mineral é a condição dos metais comuns, especialmente o chumbo, que na sua obscuridade e peso assemelha-se a uma massa imperfeita. De acordo o famoso místico islâmico Muhyi ´d-Dîn ibn ´Arabî, o ouro corresponde às condições saudáveis e originais da alma que, livremente e sem distorções, reflete o Espírito Divino na sua essência, enquanto o chumbo corresponde 64 à sua condição 'doente', distorcida e 'morta', que não reflete mais o Espírito. A verdadeira essência do chumbo é o ouro. Cada metal comum representa uma quebra no equilíbrio que somente o ouro possui. Em busca de libertar a alma de sua coagulação e paralisia, a sua forma essencial e a sua materia devem ser dissolvidas da sua combinação imperfeita e unilateral. É como se o espírito e a alma devessem ser separados um do outro, com o objetivo de, após esse 'divórcio', 'casarem-se' novamente. A materia amorfa é queimada, dissolvida e purificada, em vista de ser cristalizada novamente na forma de um cristal perfeito. A forma da uma alma assim 'renascida' é distinguível do Espírito que tudo abarca, na medida em que continua pertencente à existência condicionada. Mas ao mesmo tempo ela é transparente à Luz indiferenciada do Espírito, e em uma união vital com a materia primordial de todas as almas; porque o fundamento 'material' ou 'substancial' da alma, assim como seu fundamento essencial ou ativo, tem uma natureza unitária. Que todas as almas são 'feitas de uma substância' pode ser conhecido do fato de que os 'movimentos' (emoções) da alma de todas as criaturas vivas – apesar da imensa variedade de espécies e níveis de consciência – são feitos de maneira similar. Pode-se dizer que eles são como as ondas de um mesmo mar. A doutrina e o simbolismo alquímicos nunca tiveram em vista a 'extinção' completa (espiritual) do individual, como o moksha hindu, o nirvana do Budismo, o fanâ ´u ´l-fanâí Sufi, e como a unio mystica ou deificatio cristã no sentido mais alto dessas duas expressões. Isso porque a alquimia é baseada em uma visão puramente cosmológica, e por isso pode apenas ser transportada indiretamente para o campo metacósmico ou divino. Desde que, entretanto, as realizações alquímicas podem ser representadas como um caminho para o mais alto de todas as metas, ela foi contudo incorporada no misticismo cristão e islâmico. A transmutação alquímica permite o contato direto do centro da consciência humana com aquele raio divino que irresistivelmente atrai a alma para cima, e a permite saborear por antecipação o Reino dos Céus. 65 * A aplicação de conceitos mutualmente complementares de forma e materia ao âmbito da alma torna claro em qual senso determinadas informações sensíveis, como os quatro elementos, podem ser transpostos ao plano psíquico. Assim como a materia corporal, que se manifesta mais facilmente nos quatro elementos, assim a materia da alma, no seu desenvolvimento, tem diversas tendências mutualmente opostas. Ela tem uma tendência 'descendente' em direção à inéria e à densidade terrena; ao mesmo tempo, ela tem a tendência ascendente, como o elemento fogo, em direção ao Espírito. Novamente, tem uma tendência em relação à expansão – uma inércia tanto passiva como relativamente inerte, como aquela da água, ou mais ativa e móvel, como aquela do ar. Aplicada à alma, 'terra' é aquele aspecto ou tendência que causa um mergulho dentro do corpo, e que o vincula a este. 'Fogo' tem o mesmo caráter purificador e transmutador do fogo visível. 'Água' é capaz de assumir todas as formas. Na sua natureza original e incorrupta, a água é, nas palavras de São Francisco de Assis, umile e preziosa e casta. Para a alma, o 'ar', livre e móvel, envolve todas as formas de consciência. Os signos dos quatro, derivados do Selo de Salomão, são particularmente claros quando aplicados à alma. A partir deles, pode-se ver que a pluralidade dos elementos originase da oposição do fogo △ e água ▽, ou seja, do par atividadepassividade (que obviamente corresponde ao par forma-materia). É a mesma oposição que encontraremos na forma do enxofre e do mercúrio. Através da união dos opostos Y a alma se transforma em 'fogo fluído' e 'água ígnea', e ao mesmo tempo também adquire as qualidades positivas dos outros elementos, de maneira que a sua água é 'sólida' e o seu fogo 'não se queima'; pois o 'fogo' da alma é o que dá solidez à sua 'água', enquanto à 'água' da alma confere ao 'fogo' a suavidade e a ubiquidade do 'ar'. Os 'elementos interiores' podem também ser considerados como qualidades puras do espírito, e, em última instância, como aspectos imutáveis do Ser. Vistos por esse lado, a sua união e reconciliação consiste no fato de que em cada 66 qualidade individual dos elementos os outros estão também contidos, porque o Ser puro é ao mesmo tempo simples e inexaurivelmente rico. O significado superior da alquimia é o conhecimento de que tudo está contido em tudo, e o seu magisterium não é outro além da realização dessa verdade no plano da alma. Essa realização é efetivada através da criação do 'elixir', que concentra em si próprio todos os poderes da alma, e assim atua como um 'fermento' transmutador' no mundo psíquico, e de uma maneira indireta, também no mundo visível. Assim como não há nenhuma substância corporal que é completamente separada dos modos superiores de ser, é possível em certas circunstâncias transportar os poderes pertencentes a alma ou espírito a uma substância corporal, e então, em determinado sentido, eles se unem a ela. Assim, o elixir interior dos alquimistas pode ter, em alguns casos, uma contrapartida exterior. 67 CAPÍTULO 5 PLANETAS E METAIS Os alquimistas designam os vários metais através dos mesmos símbolos que eles atribuem aos planetas, e muitas vezes até mesmo dão aos metais e planetas o mesmo nome. Ao ouro eles chamam 'sol', à prata, 'lua', ao mercúrio, 'mercúrio' (quicksilver), ao cobre, 'vênus', ao ferro, 'marte', ao estanho, 'júpiter', e ao chumbo, 'saturno'. As correspondências assim estabelecidas demonstram claramente o relacionamento entre a alquimia e a astrologia, uma relação baseada naquela lei que a Tábua da Esmeralda expressa nas seguintes palavras: 'O que está embaixo é como o que está acima'. A astrologia e a alquimia, que na sua forma ocidental derivam da tradição hermética, relacionam-se uma à outra como céu e terra. A astrologia interpreta o significado do zodíaco e dos planetas; e a alquimia, o significado dos elementos e dos metais. Os doze signos do zodíaco são uma imagem simplificada dos arquétipos imutáveis contidos no Intelecto Divino. Os elementos fogo, ar, água e terra, por outro lado, manifestam simbolicamente a primeira e fundamental diferenciação da substância primordial (materia prima, hyle). Considerando que os planetas, em virtude da posição de um em relação ao outro, manifestam de modos diferenciados e temporais as possibilidades contidas no zodíaco, e assim representam os caminhos de ação do Espírito Divino, 'descendo' do Céu à terra, os metais, por sua vez, representam os primeiros frutos da substância elemental42, 'amadurecido' pelo Espírito ou Intelecto. A alquimia ensina que os metais foram gerados no ventre escuro da terra, sob a influência dos sete planetas – sol, lua e os cinco planetas visíveis a olho nu. Esse modo de ver as coisas não deve ser considerado uma explicação física. Ele indica como as manifestações materiais derivam – essencialmente mas não fisicamente, dos dois principais pólos da 42Expressado com certa ousadia, o metal é uma forma espiritual da matéria corporal, enquanto que os planetas ou os astros representam em geral uma forma corporal do espírito. 68 existência. Nos regimes complementares de estrelas e metais, já um tipo de escala ontológica, para o qual todos os aspectos da natureza podem ser relacionados. Isso é verdade não apenas no caso da natureza 'visível', o macrocosmo, mas também para o microcosmo, o que vale dizer, a constituição psicofísica do homem. Assim como na alquimia há metais interiores, assim também na astrologia há planetas interiores. Uma certa mutabilidade no emparelhamento de metais e planetas surge do fato de que algumas escolas alquímicas consideram o mercúrio, em razão de sua 'volatilidade' e o seu efeito sobre outros metais, não como um metal ou 'corpo', mas como um agente volátil ou 'espírito'. Em tais casos, um metal diverso do mercúrio toma seu lugar na escala dos sete metais – algumas vezes uma liga. O que é essencial é que cada um dos sete metais representam um 'tipo definitivo', que inclui todo um grupo de metais mutualmente relacionados43. A dualidade dos pólos ativo e receptivo da existência expressa no complementarismo de céu e terra, ou de planetas e metais, reflete-se em cada um dos dois grupos no relacionamento entre sol e lua e entre ouro e prata. O sol, ou ouro, é, de certo modo, a encarnação do pólo ativo e gerador da existência, enquanto que a lua, ou prata, encarna o pólo receptivo, a materia prima. Ouro é sol; sol é espírito. Prata, ou lua, é alma. Os outros metais, e os outros planetas, participam em diferentes graus nos dois pólos da existência. Nenhum dos pólos manifesta-se completamente em qualquer um deles. A graduação das qualidades cósmicas – manifestada ativamente nos planetas e passivamente nos metais – é claramente expressa nos sete símbolos que representam tanto planetas quanto metais. Eles estão listados aqui na ordem das órbitas planetárias como vistas da terra: 43 Alguns alquimistas helenos colocam o elétron no lugar do mercúrio. 69 R s t q Lua Mercúrio Vênus Sol Prata Mercúrio Cobre Ouro v w Marte Júpiter Saturno Ferro Estanho Chumbo Em contraposição ao modo usual de representar o símbolo de marte – com uma seta u (uma fórmula que desvia completamente do estilo dos outros símbolos), marte é aqui representado por um círculo com uma cruz sobre ele. Podemos supor que marte era antigamente designado dessa forma e que o símbolo atualmente mais usado foi introduzido com o fim de distingui-lo de vênus, em mapas do céu sem uma indicação clara de onde estava a parte superior e onde a parte inferior. O uso do símbolo antigo para marte como uma designação da terra, apenas surgiu com a concepção heliocêntrica, e ele não é diferente do símbolo Cristão do globo encimado pela cruz. Assim, os sete símbolos planetários são formados a partir de três figuras básicas: o círculo, o semicírculo e a cruz. Como o círculo é também o símbolo do sol, e o semicírculo o da lua, essas duas figuras podem ser consideradas como representações da órbita completa e de meias órbitas do sol, respectivamente. A interpretação espiritual de modo algum foi alterada por isso, já que a meia órbita do sol, que mede uma das duas fases do ano, está contida na órbita completa, assim como a luz da lua procede inteiramente do sol. A terceira figura básica, a cruz, recorda, astronomicamente falando, a cruz das quatro direções do espaço, e alquimicamente falando, os quatro elementos. Inscritas, as três figuras básicas dão origem à 'roda Celestial': ;. Assim, nos sete símbolos nós encontramos uma expressão da hierarquia cósmica integral, que foi mencionada acima. Essa hierarquia é o resultado da polarização da existência em um pólo ativo, ou masculino q e um passivo, ou feminino R, e essa origem deve-se ao fato de que a influência do primeiro no último (que desempenha o papel da materia plástica) é imprimir condições nesse último, que 'se cruzam' 70 mutuamente +. Que sol e lua correspondam aos dois pólos da existência pode ser visto tanto na relação entre a fonte da luz e a superfície que a reflete como no fato de que a forma da lua muda-se, enquanto a do sol sempre permanece a mesma. O porvir pertence ao lado passivo, enquanto o Ato Puro da Essência permanece imóvel. A terceira figura básica dos símbolos planetários, a cruz, é o mais genérico dos símbolos que representam a diferenciação (sob a influência do pólo ativo) das possibilidades latentes na materia passiva. É a cruz dos quatro elementos. É importante lembrar que o sol, ou ouro, não é o pólo ativo como tal, mas apenas seu principal reflexo em um determinado domínio. O mesmo é verdade a respeito da lua, ou prata, que corresponde ao pólo passivo. Estritamente falando, o símbolo do pólo passivo não tem forma própria, assim como a materia prima também não tem forma. Ela pode assim apenas ser o complemento ou a fragmentação do símbolo do pólo ativo, daí porque o semicírculo, a lua crescente e a meia-órbita solar simbolizam a causa passiva. Assim, é essa unidade do ouro em si mesma toda 'luz metálica' ou toda 'cor', enquanto a prata, como um espelho, é incolor. Os planetas (exceto o sol e a luz) e os metais comuns, são variações de um único protótipo, que se encarna totalmente apenas no sol e no ouro. Neles tanto a causa solar como a causa lunar são predominantes – sem, contudo, realizarem expressão completa, porque as diversas combinações de círculo e semicírculo com a cruz significa uma determinada ruptura do equilíbrio original dos elementos. Toda ruptura desse equilíbrio (consoante, nesse símbolo, a figura solar ou lunar esteja localizada acima, abaixo ou no traço horizontal da cruz) é associada a uma qualidade diferente. Assim, no símbolo de Saturno (w) ou chumbo, o crescente está ligado à parte inferior da cruz, no ponto mais baixo, vale dizer, de ordem material – o chumbo, de fato, sendo o mais denso e 'caótico' dos metais. No símbolo de Júpiter (v), o crescente está ligado à linha horizontal. Do ponto de vista alquímico, isso corresponde à posição intermediária do estanho entre o chumbo e a prata. O símbolo com o crescente na parte mais alta da cruz não existe. Ele poderia corresponder ao símbolo da lua, porque onde a causa 71 lunar é predominante, ela dissolve as diferenciações elementares, matéria-prima sendo pura receptividade informe, como a água. De outro lado, há um símbolo (de Vênus ou cobre – t) no qual o sol aparece sobre uma cruz, porque a causa formal ativa não dissolve as diferenciações elementais, mas, em lugar disso, as reforça, antes de trazê-las ao equilíbrio perfeito, na forma de ouro. De acordo com Basilius Valentinus, o cobre contém um excesso de poder solar não-fixado, como uma árvore que tem muita resina. Seu oposto, tanto no que respeita o seu símbolo como a sua natureza, é o ferro; nele o sol pode ser encontrado abaixo da cruz, e assim escondido na escuridão da terra. Na concepção geocêntrica, Marte (U) e Vênus (t) estão próximos um do outro; eles são o par mitológico de amantes. O único símbolo, aquele de Mercúrio (Mercury or quicksilver) contém todas as três figuras básicas: a cruz, o círculo e o semicírculo. Nele a causa lunar predomina sobre a solar, que por sua parte 'fixa' a cruz dos pares de opostos elementais. Nós podemos voltar frequentemente a esse símbolo, porque ele é a chave verdadeira para o trabalho alquímico, assim como o Mercúrio, ou Hermes, é o predecessor da alquimia. Entretanto, deixe-nos dizer que esse símbolo e metal a que ele corresponde expressa materia prima, como o portador de todas as formas. O metal mercúrio é do mesmo modo o 'ventre' de todos os metais, enquanto a prata assemelha-se à condição virginal da pura materia prima. Isso também explica porque os alquimistas representam a causa feminina ou 'materia' – materia – na medida em que isso entra em seu trabalho tanto pela luz (ou prata) como pelo mercúrio (quicksilver). Esse último corresponde ao poder produtivo da materia, seu aspecto dinâmico, assim como o enxofre, o 'oposto' do mercúrio, é o poder ativo da causa solar ou masculina. Em certo sentido, a teoria chinesa a respeito do sol e da lua pode ser aplicada ao ouro e à prata: o sol, dizem os chineses, é yang cristalizado, e a lua, yin cristalizado. Do mesmo modo, o ouro é 'enxofre' cristalizado ou estático, e a prata é 'mercúrio' cristalizado. É necessário observar que todas essas relações não podem ser compreendidas em sentido físico, mas no contexto de uma cosmologia que vai para além do domínio corporal. A série de sete símbolos dos planetas e 72 metais pode ser considerada como uma representação simplificada de um dado domínio cosmológico. Em todo o domínio há o que podemos chamar centro, vale dizer, um ponto alto qualitativo, no qual o protótipo ou causa, que governa todo o domínio, revela a si mesmo de modo mais completo e imediato. Assim é o ouro entre os metais, a pedra preciosa entre outras pedras, a rosa ou o lótus entre as flores, o leão entre os quadrúpedes, a águia entre os pássaros, e o homem entre as criaturas vivas na terra. Em cada caso, a manifestação 'central' é 'esplêndida', porque, como símbolo, é tão completa e integral quanto possível. Pelo contrário, as manifestações 'periféricas' são mais ou menos 'básicas', na medida em que elas expressam apenas qualidades ou aspectos incidentais de um protótipo44. Aqui pode ser notado que enquanto o homem, na sua natureza específica, sempre representa simbolicamente o centro do domínio terrestre, isso não é necessariamente dessa forma em relação à sua individualidade. O animal sempre permanece fiel à forma essencial de sua espécie. Em um modo passivo, ele participa daquele raio do Intelecto Divino que se releva nele, através da sua existência mesma. (O assim chamado 'instinto' dos animais pertence à sua participação passiva no Intelecto.) O homem, por outro lado, é criado com o propósito de participar ativamente do Intelecto Divino, do qual ele é o reflexo 'central'. Apenas quando ele age assim é que ele é verdadeiramente o centro do mundo terreno, e até mesmo em proporção à sua identificação com o Intelecto de todas a manifestação formal ou do cosmos inteiro. A 'realização' do centro do mundo terreno é a meta real da alquimia, e também o significado mais profundo do ouro. Ouro é um 'corpo' como os outros metais, mas a massa, a densidade e a divisibilidade dos corpos nele foram transmutadas em qualidades puras e simbólicas. Ele é luz encarnada. Os próprios alquimistas muitas vezes descrevem a meta do seu trabalho como uma 'volatização do sólido' ou uma 'solidificação do volátil' ou como uma 44Deve-se observar, sem embargo, que só um campo completo da existência possui um centro indiscutível; só o homem é o centro induscutível de toda a existência terrena. Pelo contrário, há campos parciais com centros relativos que se manifestam frequentemente em formas diversas, as quais se complementam entre si. Por exemplo, no reino das aves temos, além da água, o rouxinon, a pomba, o pavão, o cisne e inclusive a coruja, que, cada um a seu modo, representam um centro. 73 'espiritualização do corpo' e uma 'encarnação do espírito'. O ouro não é nada além disso. Apenas no símbolo do ouro o ponto central do círculo é indicado, o que significa que apenas no ouro a unidade essencial do arquétipo, com seu reflexo material, encontra expressão. Do mesmo modo, é apenas no homem perfeito que a similaridade da criatura com Deus é espiritualmente efetiva. * Nas palavras da 'Tábua da Esmeralda' – de acordo com as quais o que está abaixo é como o que está acima, e o que quer que esteja em cima é como o que está abaixo – há uma referência a uma espécie de inversão, como em um espelho, nos dois lados. Na realidade, a 'graduação' dos metais (de acordo com a sua maior ou menor similaridade com o ouro) é inversa àquela dos planetas, que gozam de uma classe superior, quanto mais distantes estiverem suas órbitas do centro da terra. Uma exceção aqui é o sol, que corresponde ao ouro, e cuja esfera está no meio entre duas séries de três órbitas planetárias. Acima do Sol, de baixo para cima, estão as órbitas de Marte, Júpiter e Saturno. Abaixo dele, em ordem descendente, em direção à Terra, estão as órbitas de Vênus, de Mercúrio e a Lua. Se, em direção para cima e para fora, adicionarmos as estrelas fixas às esferas planetárias, então as séries podem ser completadas, na direção descendente e na direção do centro, pela adição da Terra. De um modo ou de outro, mesmo na concepção geocêntrica, o Sol representa um centro, independentemente do fato de que como fonte de luz para todos os planetas ele é mesmo o seu centro. A combinação das duas ordens simbólicas (nas quais, de um lado, a maior ou menor largura dos 'céus' é soberana e, por outro, a posição central do Sol) também surge na aplicação das qualidades planetárias aos seres humanos. Aqui isso adquire um significado que é particularmente instrutivo à medida em que a concepção de mundo comum tanto à alquimia como à cosmologia é considerada. 74 Saturno, cuja órbita, é a maior do ponto de vista da Terra, corresponde à inteligência, ou mais exatamente ao intelecto, enquanto a Lua, cuja órbita é a mais próxima do centro da Terra, é análoga ao 'espírito vital', que liga entre si alma e corpo. Estes são os dois pólos extremos da capacidade da alma, porque o espírito vital, que governa as atividades voluntárias do corpo, como crescimento e digestão, e que por essa razão tem um caráter mais 'existencial' que 'racional', é em certo sentido oposto ao intelecto. Entre esses dois pólos extremos, as outras faculdades da alma estão localizadas. Eles são comumente designados e relacionados aos planetas dependendo de qual lado, o do 'conhecimento' ou o da 'vontade', leva-se mais em conta. Em todo caso, o Sol corresponde a uma faculdade que está no meio do caminho entre os dois pólos e em um certo sentido os unifica. De acordo com Macrobius (que em seu comentário ao Sonho de Cipião considera a hierarquia dos planetas em conexão com a doutrina pitagórico-órfica da descida da alma do céu superior à terra) o Sol é análogo à faculdade que anima os cinco sentidos e sintetiza suas impressões. O Sol é assim o arquétipo da vida da 'alma sensitiva'. De acordo com outra e mais profunda visão das coisas, aquela de ´Abd al-Karîm al-Jîlî, por exemplo, no seu livro sobre o 'Homem Universal' (al-insân al-kâmil)45, o 45Veja a minha tradução parcial: Abd al-Karîm al-Djîlî, De l'Homme universel, 75 Sol é análogo ao coração (al-qalb), o órgão do conhecimento intuitivo, unificador, que transcende completamente todas as outras faculdades da alma. Assim como o Sol dá aos planetas a sua luz, assim a luz do coração (morada do espírito ou intelecto) ilumina todas as outras faculdades da alma. 'Inteligência' é aqui usada para traduzir ratio no sentido antigo (e não no 'racionalista') da palavra (grego: nous; árabe: al-´aql). Como faculdade do pensamento fundamental e compreensivo, a inteligência, nesse sentido – ou o intelecto humano – está relacionada ao Intelecto Divino que tudo compreende. No Intelecto Divino, contudo, os dois aspectos 'Conhecimento' e 'Ser' são ambos presentes, enquanto que no intelecto humano só há o aspecto 'conhecimento', porque em certo sentido o intelecto humano é separado daquilo que ele conhece. Quanto maior e mais compreensiva a sua visão mais separado do seu objeto. O 'espírito vital', de outro lado, é (subjetivamente e de acordo com a experiência comum) incondicionalmente imerso na existência corporal. Esses são os dois limites extremos da consciência individual, e pode-se dizer que essa consciência é dividida entre mente (nous) e corpo. O cogito ergo sum ('penso, logo existo') é imediatamente refutado pelo fato de que o pensamento não é capaz de abarcar o seu próprio ser. A expressão 'existo' é tanto a expressão de uma certeza, transcendente e sempre presente, infinitamente acima de todo pensamento, ou meramente da experiência comum da existência corporal e individual, que não faz nada mais do que acompanhar passivamente o pensamento, por mais que isso possa ser envolvido por uma verdadeira rede de imaginações. O conhecimento e o ser são refletidos separadamente na consciência individual, como mente e corpo. Para libertar-se dessa dualidade, a consciência deve retornar ao 'Sol' do coração. Como dizem os alquimistas, o 'corpo' deve de novo tornar-se 'espírito' e o 'espírito', 'corpo'. A respeito dos outro planetas, Júpiter é geralmente comparado à faculdade da decisão (em árabe: alhimmah). Ele assim representa a forma espiritual ou intelectual da vontade. À Marte pertence a coragem; Al-Jîlî a ele atribui a 'imaginação ativa' (al-wahm). Ambos os atributos estão Argel y Lyon, 1953. 76 relacionados à vontade do 'demiurgo', inclinada para a terra. De acordo com Macrobius e todos os cosmologistas helenísticos, Vênus é a estrela da paixão amorosa. Para Al-Jîmî é acima de tudo é o arquétipo da 'imaginação passiva' (al-khiyâl), e está relacionado à imaginação ativa de Marte como está a cola para o selo. Para todos os cosmologistas, Mercúrio é o arquétipo do pensamento analítico (al-fikr). À Lua Macrobius atribui a faculdade de formação e movimento do corpo. Isso é definido ainda mais exatamente por Santo Alberto Magno como motus quos movet, in sequendo naturam corporis, ut atrahendo, mutuando, augendo et generando, e esses são exatamente os modos de ação do espírito vital (spiritus vitalis, ar-rû), que al-Jîlî atribui à Lua. A hierarquia dos planetas é descendente, e a dos metais correspondentes, ascendente. Os primeiros são ativos; os segundos, passivos. Como matéria inerte, o metal não pode ser símbolo nem da faculdade 'cognitiva' nem da 'volitiva'. Assim, em razão de sua natureza estática e informe, ele é a expressão de um estado similarmente estático de consciência, vale dizer de uma consciência íntima que não é limitada por formas mentais. Isso não é outra coisa que a consciência íntima do corpo individual. Isso é a sua 'forma da alma'. Desse 'metal' os alquimistas podem extrair 'alma metálica' e o 'espírito metálico'. A consciência corporal caótica e 'opaca', sobrecarregada com paixões e hábitos, é um metal comum. Nele alma e espírito aparecem sufocados, sombrios, misturados com a terra. Por outro lado, a consciência corporal 'iluminada' (metal 'nobre') é ela mesma um modo espiritual de existência. A alma deve primeiro ser extraída de um metal comum, dizem os alquimistas. O corpo remanescente deve ser purificado e queimado até que não fica nada além de cinzas. Então a alma deve ser reunificada com ele. Quando o corpo é assim 'dissolvido' na alma, então ambos constituem uma materia pura, o Espírito age na alma e confere a ela uma forma incorruptível. Vale dizer, ele transmuta a consciência corporal individual de volta à sua própria possibilidade puramente espiritual, onde, em toda a sua completude e de acordo com a sua própria essência, ela permanece imóvel e indivisível. Basilius Valentinus compara esse estado com o 'corpo glorioso' do ressuscitado. 77 Enquanto que a astrologia, em sua qualidade de ciência teórica, parte sempre do mais alto, ou seja, dos arquétipos cujos símbolos celestes são os doze signos do zodíaco e, baseando-se nas posições dos planetas, os projeta e entrelaça em sentido descendente, a alquimia, como arte que enobrece a matéria 'metálica', parte da matéria ainda sem forma, vale dizer, do mais baixo e, portanto, não se funda na forma essencial, no arquétipo, mas sim na matéria-prima, que, como corresponde à sua natureza passiva, encontra-se 'embaixo'. (trecho extraído da tradução espanhola – não consta da tradução inglesa) Ao lado da hierarquia planetária, estabelecida em sentido inverso à ordem dos metais, há também uma ordem diversa e mais antiga dos planetas que é paralela à ordenação alquímica. Trata-se da sua gradação de acordo com 'casas', cuja distribuição no zodíaco apenas ganha significado quando seus eixos ordinários estão localizados no lugar em que, com toda a probabilidade, ela estava situada no zodíaco original de aproximadamente 2.000 anos antes de Cristo. No momento em que o eixo do solstício passa entre Leão e Câncer na parte superior, então, como resultado, as assim chamadas 'casas planetárias' ficam simetricamente arranjadas. Como Julius Schwabe mostrou46, há muitas sugestões de que essa posição dos céus foi fundamental para todo o simbolismo astrológico. Além disso, porque o significado alquímico dos símbolos planetários é idêntico ao astrológico, pode-se presumir que a mesma ocasião também assistiu ao nascimento da alquimia na forma tradicional na qual ela existiu até os tempos modernos. 46 J. Schwabe, Archetyp und Tierkreis, Basilea, 1951. 78 As 'Casas' Planetárias, c. a. 2000 A.C. Cada planeta possui duas casas adjacentes, uma esquerda e uma direita, ou uma feminina e uma masculina, com exceção da lua e do sol, que têm apenas uma casa cada, e regem, respectivamente, a metade feminina e a metade masculina do zodíaco. Na posição inferior dessa figura dos céus, nos dois lados do solstício de inverno, no lugar da escuridão e da morte, 'habita' Saturno, que corresponde ao chumbo entre os metais. Seu símbolo (W) mostra o crescente lunar na posição inferior. Simbolicamente isso representa a imersão caótica da consciência no corpo. Por outro lado, o símbolo de Júpiter, ou estanho (V), que no crescente ocupa a posição superior seguinte, também indica o primeiro passo na perda da alma a partir dos pares de opostos elementais. A 'lua' da alma toca aqui a linha horizontal da cruz, que significa a expansão cósmica. Imediatamente abaixo do eixo médio horizontal de todo o zodíaco estão as duas casas de Marte e, imediatamente, as de Vênus. Seus dois símbolos (U e T) são como imagens espelhadas um do outro. O símbolo de Marte, que corresponde ao ferro, exibe uma cristalização ou um mergulho do espírito no corpóreo. No símbolo de Vênus, ou cobre, por outro lado, o 'sol' do espírito aparece sobre a 'árvore' das tendências elementais. A cor do ouro 79 se torna visível, mas ainda não está purificada. Sobre ele estão as duas casas de Mercúrio (ou quicksilver). Seu símbolo (S) é o único que contém as figuras tanto do sol como da lua. O mercúrio (quicksilver) contém em sua 'água' lunar o germe ardente, ígneo, do sol, assim como o poder original da alma traz consigo o germe do Espírito essencial. Para os alquimistas, o mercúrio (quicksilver) é a 'mãe do ouro' e o primum agens do seu trabalho. O sol e a lua colocam-se um em oposição ao outro em suas casas no topo do zodíaco. A lua (R) é análoga à alma em seu estado de pura receptividade, e o sol é análogo ao espírito, ou mais exatamente, à alma transmutada e iluminada pelo espírito, representando a perfeita união do espírito, da alma e do corpo. O sol não apenas meramente governa em sua própria 'casa'. Ele também atravessa todo o zodíaco, subindo através do seu lado 'masculino' e descendo através do lado 'feminino'. O 'solstício' entre o descendente e o ascendente está no domínio de Saturno, e no seu 'caos' plúmbeo a vida do sol e do ouro está escondida. 'Finis corruptionis et principio gerationis' (O fim da corrupção e o começo da geração). A luta entre as duas forças primordiais do sol e da lua, do Enxofre e do Mercúrio no círculo celestial. – Do assim chamado 'Ripley Scrowle', na Biblioteca do British Museum. 80 O mito alquímico do Rei Ouro, que deve ser morto e enterrado, a fim de que possa despertar de novo para a vida, e que, ascendendo através das sete dominações (régimes) alcança a sua glória suprema, não é nada além de uma expressão desse simbolismo astrológico. Esse simbolismo, entretanto, é a reflexão cósmica de uma lei secreta: a centelha divina no homem corresponde ao sol. Ela parece morrer quando a alma entra na casa de Saturno. Na verdade, entretanto, ela surge outra vez e, ascendendo através dos sete níveis de consciência, transforma-se em um 'leão vermelho' – o elixir que tudo transmuta. 81 CAPÍTULO 6 A ROTAÇÃO DOS ELEMENTOS Como dito acima, a alquimia espiritual não se envolveu necessariamente em operações metalúrgicas concretas, ainda que tenha feito uso delas por analogia. Não se deve, contudo supor que originalmente o trabalho interno e externo andam de mãos dadas, porque dentro do quadro de uma civilização orgânica, orientada em direção à meta maior do homem, uma profissão apenas pode ter um significado quando serve à via espiritual. Uma forma simbólica de expressão, por sua parte, apenas encontra sua justificação na experiência imediata. Desse modo, é apropriado neste ponto olhar alguns dos mais simples procedimentos metalúrgicos, que sempre serviram como suportes simbólicos para a alquimia. Apartados dos procedimentos puramente metalúrgicos (tais como extração de metal a partir de minério misto ou impuro, e sua fundição e, se necessário, a sua combinação com outros metais, para tornar benéficos seus defeitos específicos), há também a produção daquelas substâncias químicas que atuam sobre os metais (tanto purificando-os ou dando-lhes propriedades específicas, como uma maior fusibilidade, uma maior dureza ou uma cor particular). Entre tais substâncias estão o antimônio e o enxofre, assim como o mercúrio que, embora metal em si mesmo, também atua como um solvente de outros metais. Como a produção e o uso desses produtos químicos também estão na competência dos metalúrgicos, veremos que o objetivo dessas atividades correspondem a todos os intentos e propósitos dos químicos modernos. Daí porque ofícios relacionados, tais como a produção de vidros coloridos e pedras preciosas artificiais, e a preparação de cunhas, foram também incorporadas na tradição basicamente metalúrgica da alquimia e da sua linguagem simbólica. Famosos alquimistas, como Jâbir ibn Hayyân, Abu Bakr ar-Râzî (morto em 925) e Geber, mencionam em seus trabalhos toda uma série de operações fundamentais 82 que, ainda que sejam obviamente químicas por natureza, também servem como símbolos do processo interior, por causa do seu caráter genérico e típico. De acordo com Jâbir, há quatro processos que governam o trabalho alquímico: primeiramente a purificação de substâncias, então sua solução, seguida por uma nova coagulação e finalmente a sua combinação. Ar-Râzî inclui diversas outras operações – a maioria delas também encontradas na Summa Perfectionis de Geber – das quais aqui apenas mencionaremos as mais importantes: volatilização ou sublimação serviram, como continuam a servir hoje, para separar uma substância evaporável de uma mistura, e então obtê-la em estado puro. Como é sabido, o enxofre é produzido dessa maneira. Descensão, por outro lado, foi usada para separar uma substância fundível (um metal) pela drenagem, a partir de minerais não-fundíveis. A destilação era a filtragem de substâncias solúveis. A queima ou calcinação transforma o metal em um óxido solúvel, que, quando dissolvido (dissolução), pode ser separado de substâncias insolúveis com ele misturadas. Ele então deve ser trazido de volta ao seu estado não-oxidável, pela coagulação e redução renovadas. Substâncias voláteis podem ser 'fixadas' e tornadas estáveis pelo fogo, e substâncias sólidas podem ser tornadas como cera, ou tornarem-se fundíveis, pela incineração. Nessas operações, ao lado de agentes puramente minerais, agentes orgânicos como azeite e urina também são utilizados. Se a alquimia prática permanece sem o conhecimento analítico que está à disposição da química moderna, a sua visão, por essa mesma razão, é mais nítida para os aspectos qualitativos da matéria e para as suas transformações. Nesse aspecto, seus métodos foram muitas vezes extremamente bons, e é possível que eles, algumas vezes, tenham tido acesso a área que a ciência moderna não leva em conta. A natureza tem diversas facetas. O símbolo mais impressionante é a transformação que uma única substância pode sofrer, tornando-se sucessivamente líquida, gasosa e então sólida novamente; ou tendo sido quebradiça, torna-se flexível como uma cera; ou, perdendo sua forma em uma solução, repentinamente adquire 83 uma nova forma, desta vez cristalina; ou, na mudança de seu estado, ela adquire uma nova cor. Essa capacidade de transformação, por parte de uma única substância, simboliza mais claramente do que qualquer outra coisa a materia prima única do cosmos, capaz de assumir todas as formas e estados possíveis, sem uma alteração essencial. Isso também joga luz na natureza da alma, que de igual modo expõe vários estados e propriedades, todos de algum modo pertencendo à sua (nãoimediatamente discernível) essência. Assim, no forno ou balão de ensaio dos alquimistas, pode-se ver em miniatura o 'jogo' da Natureza (quer seja no domínio corporal, quer seja no domínio psíquico). Ao interpretarem as mudanças corporais como expressão de uma lei geral, os alquimistas remetem, por um lado, aos quatro elementos, e por outro às quatro qualidades naturais (quente, frio, úmido e seco), que, como modos de ação da natureza, são 'ativos' na sua relação com os elementos. O esquema dessas relações também foi mencionado por Aristóteles. As quatro qualidades sensíveis são assim 'móveis' em relação à matéria, e parecem de fato terem a capacidade de transformar um elemento no seu próximo: assim, é pelo calor que a água é absorvida pelo vento; é pela frieza que ela se congela e se torna similar à terra sólida. Na realidade, 84 entretanto, não são os quatro elementos que se modificam, mas a materia corporal que, sob a influência das qualidades sensíveis, migram através dos estados 'elementais'. Nesse sentido, efetivamente apenas o calor e a frieza atuam como forças motrizes, e, como a segunda qualidade não é nada além de uma negação da primeira, cuida-se que, em última análise, é o calor mesmo a origem da 'rotação'. É o efeito do fogo, sozinho, que torna a substância, no forno dos alquimistas, sucessivamente líquida, gasosa, ígnea e, uma vez mais, sólida. Assim, ela imita em miniatura o 'trabalho' da Natureza mesma. O esquema esboçado acima também tem um significado em relação à alma; e aqui as qualidades expansão, contração, dissolução e solidificação tomam os lugares de quente, frio, úmido e seco. Podemos retornar a isso mais tarde. Já se fez menção da correspondência entre os quatro elementos e os estados da alma; a importância 'especulativa' dessa alquimia – no sentido antigo de speculatio, vale dizer, um 'espelhamento' de verdades espirituais – repousa no fato de que a observação de um único caso visível pode ser a chave aos grandes ritmos da natureza. A penetração no substrato invisível de uma substância individual, que os químicos modernos têm como sua meta, não contribui para essa utilidade, mas pelo contrário fornecem informações bastante diversas, que não facilitam uma visão total do mundo corporal e do mundo da alma. O conteúdo da visão hermética da natureza pode ser visto na seguintes palavras de Muhyi ´d-Dîn ibn ´Arabî: 'O mundo da natureza consiste de diversas formas que são refletidas em um espelho único – ou melhor, é uma forma única, refletida em diversos espelhos47'. O paradoxo expressado aqui é a chave ao significado espiritual das aparências. Não é por acaso que o esquema dos elementos e das qualidades naturais ('modos de ação') dados acima assemelha-se à roda cósmica, cujo arco é a órbita solar e cujos raios são as quatro direções cardinais. Alquimicamente falando, o eixo da roda é a quintaessentia. Através disso faz-se referência tanto ao pólo espiritual de todos os quatro elementos ou a seu fundamento 47 Veja a minha tradução de Fusûs al-Hikam, op. cit. pág. 139. 85 substancial comum, o éter, no qual todos eles estão contidos indivisivelmente contidos. Para mais uma vez atingir o seu centro, o desequilíbrio dos elementos diferenciados deve ser reparado; a água deve tornar-se ígnea; o fogo, líquido; a terra, sem peso; e o ar, sólido. Aqui, contudo, deixa-se o plano das aparências físicas e entra-se no reino da alquimia espiritual. Synesios escreveu: 'É assim claro o que os filósofos querem dizer quando descrevem a produção da sua pedra como alteração de naturezas e a rotação de elementos. Você agora percebe que por 'incorporação' o úmido se torna seco; o volátil, imóvel; o espiritual, corpóreo; o fluído, sólido; a água, em substância flamejante; e o ar, algo como a terra. Assim, todos os quatro elementos renunciam à sua própria natureza e, pela rotação, transformam-se um em outro... Assim como no início havia um Único, assim também nesse trabalho tudo vem do Único e retorna ao Único. Isso é o que quer dizer a retransformação dos elementos...'48 48 Bibl. des Phil. Chim. 86 CAPÍTULO 7 DA MATERIA PRIMA De acordo com os alquimistas, os metais comuns não podem ser transmutados em prata ou ouro sem primeiro serem reduzidos à sua materia prima. Se os metais comuns são considerados como sendo análogos ao estado “coagulado” unilateral e imperfeito da alma, então a materia prima a qual eles devem ser reduzidos não é nada além da “substância fundamental” subjacente, vale dizer, a alma no seu estado original, como ainda incondicionada por impressões e paixões, e “não-cristalizada” em sua forma definitiva. Apenas quando a alma é liberta de toda a sua rigidez, e contradições internas, ela se transforma na substância plástica na qual o Espírito ou Intelecto, vindos do alto, pode imprimir uma nova “forma” – uma forma que não limita ou vincula, mas ao contrário completa, porque vem da Essência Divina. Se a forma de um “metal” comum é uma espécie de “coagulação”, e assim um grilhão, a forma de um “metal” nobre é um símbolo verdadeiro, e como tal uma ligação imediata com o seu próprio protótipo em Deus. De acordo com os alquimistas, a alma, em seu estado original de pura receptividade, é fundamentalmente uma com a materia prima do mundo inteiro. De algum modo isso não é senão a restauração da premissa teorética de toda a alquimia, especificamente a correspondência recíproca entre macrocosmo e microcosmo. Ao mesmo tempo, isso é também uma expressão da meta do trabalho alquímico. A unidade da alma com a matéria-prima é verdadeiramente “vivida” e conhecida apenas na medida em que o trabalho tenha progredido pelo caminho que produz à sua realização. - e aqui nós tocamos no segredo real da alquimia, porque tudo o que é dito a esse respeito deve necessariamente permanecer nada mais que uma indicação e um símbolo. A materia prima, a substância fundamental da alma (psyque), é em primeiro lugar a substância da consciência individual egóica; e então de todas as formas físicas, 87 independentemente dos seres individuais; e finalmente do mundo inteiro. Todas essas interpretações são válidas; porque, se a “teia” do mundo não é fundamentalmente da mesma natureza que aquela da alma, todo indivíduo estaria preso em seu próprio sonho – o que é um absurdo. Mesmo se, em relação ao Espírito imutável, o mundo é um “sonho”, o “sonho” é não-obstante consistente por si mesmo. “Nós somos feitos da mesma matéria dos sonhos”, disse Shakespeare, em sua peça hermética A Tempestade. A oposição entre “interno” e “externo”, do mundo da alma, e do mundo físico, são tecidas neste sonho. Simbolicamente, a matéria-prima permanece “abaixo”, porque ela é completamente passiva, e ela aparece como “escura”, porque como o absolutamente nãoformado, ela ilude todo avanço da inteligência. Esta é a fonte do desentendimento que confunde a materia prima dos alquimistas com o “inconsciente coletivo” da psicologia moderna. A materia, entretanto – ao contrário daquele mal-definido domínio psíquico – não é a fonte do impulsos irracionais e mais ou menos “exclusivamente psíquicos”, mas, como foi dito, a base passiva de todas as percepções. Além disso, a palavra “coletivo”, tal como a aplicam os psicólogos, encerra uma contradição: ou bem, segundo sua etimologia, designa um conjunto de coisas – neste exemplo disposições psíquicas herdadas –, caso em que é difícil compreender como pode aqui haver qualquer unidade, já que a herança não apenas se acumula mas também se ramifica; ou então é usada imprecisamente para significar “geral”, no sentido do que é comum a todo homem – mas isso é então a natureza da alma e do corpo. Neste caso, entretanto, resta demostrar como os psicólogos que observam e acessam o assim chamado “inconsciente coletivo” – de cima, de onde ele parece fazê-lo um objeto de um estudo “objetivo” – não pensa ou age, ele próprio, como resultado desse substrato “coletivo”. Seja como for, a sua posição continua aquela do homem que, sentado em um barco, deseja esvaziar o mar. Pode-se fazer uma distinção entre, de um lado, a mais ou menos tenebrosa camada da consciência, deitada abaixo da consciência cotidiana (cuja camada, de modo algum, pode ser completamente inconsciente naquilo que, de alguma maneira é absorvido conscientemente) e, de outro lado, há a real 88 e puramente passiva, e assim em si mesma amorfa, terreno da alma, com a sombria camada acima referida (que se assemelha a um tipo de crepúsculo, com uma tendência decrescente em direção à densidade, mais do que uma noite completamente escura) é preenchida com os sedimentos de impressões psíquicas e modos comportamentais. O verdadeiro fundamento da alma, por outro lado, não é em si mesmo nem escuro nem claro; nem tampouco um vulcão com erupções irracionais. Pelo contrário, quando não está completamente velado, e então está aparentemente escuro, é o espelho fiel do seu polo complementar, o Espírito Universal49, e assim de todas as verdades que, quando a força latente da imaginação se aproxima da condição pura da materia prima, ocasionalmente expressa a si mesma na forma de símbolo. Isso pode ocorrer em sonhos, ainda que raramente, pois em geral a concepção de mundo dos sonhos é o brinquedo dos mais variados impulsos; e como a alma, em estado de sonho, está a mercê de toda sorte de possibilidades de influência, isso também pode ser uma “endiabrada” ou mesmo satânica distorção de símbolos. Outro não menos importante dos perigos da moderna “psicologia profunda” é que ela confunde desesperadamente símbolos verdadeiros com suas distorções. Isso acontece, por exemplo, quando as mandalas do Extremo Oriente são colocadas no mesmo nível das pinturas concêntricas do doente mental50. Um simbolo verdadeiro nunca é “irracional”. O “supra-racional” nunca deve ser confundido com “irracional”. * Com o intuito de demonstrar que a materia prima contém em potência todas as formas de consciência e, assim, todas as formas do mundo efêmero, o alquimistas árabe do Séc. IX, Abu´l-Qâsim al-Irâqî escreveu: “(...) A materia 49Analogicamente, voz populi, vox Dei, em que “pessoa”, no verdadeiro sentido da palavra (uma característica da coletividade que a coletividade moderna mais ou menos aboliu) corresponde exatamente ao real fundamento da alma. 50 Como na introdução feita por C. G. Jung na tradução alemã feita por Richard Willelm do livro taoísta The Secret of the Golden Blossom [ Das Geheimnis der Goldenen Blüte] (Munich, 1929). Algumas das pinturas de doentes mentais reproduzidas neste livro e comparadas com mandalas são realmente caricaturas, nas quais imaginações infantis de doutrinas secretas orientais podem ser detectadas. Outras são ninharias inofensivas e insignificantes. 89 prima pode ser encontrada em uma montanha, que contém uma incontável quantidade de coisas incriadas. Nessa montanha está todo tipo de conhecimento que pode ser encontrado no mundo. Não há conhecimento, entendimento, sonho, pensamento, habilidade, interpretação, consideração, sabedoria, filosofia, geometria, política, poder, coragem, distinção, satisfação, paciência, disciplina, beleza, criatividade, viagem, ortodoxia, liderança, exatidão, crescimento, comando, autoridade, riqueza, dignidade, conselho ou negócio que não esteja contido nela. Mas também não há ódio, malevolência, engano, infidelidade, confusão, ilusão, tirania, opressão, corrupção, ignorância, estupidez, baixeza, despotismo, ou excesso, e não há música, jogo, flauta ou lira, ou casamento, nenhuma brincadeira, nenhum membro, nenhuma guerra, nem mesmo sangue ou homicídio que não esteja contido nela (...)”51. A montanha em que a materia prima pode ser encontrada é o corpo humano, pois a redutio à substância universal procede metodicamente da consciência corporal, que deve primeiro ser “dissolvida” a partir de dentro, antes que o homem possa alcançar a alma além do nível das formas – e não simplesmente e de modo indireto através de suas experiências sensoriais. Isso explica a interpretação que Basilius Valentinus fez da palavra-chave alquímica V.I.T.R.I.O.L.: Visita interiore terrae; rectificando invenies occultum lapidem (“Visite o interior da terra, através da purificação você encontrará a pedra escondida”). O interior da terra é também o interior do corpo, isto é, o centro íntimo e indiferenciado da consciência. A pedra escondida não é outra senão a materia prima. * A partir do ponto de vista “interior”, a “redução dos metais à sua substância primária” não tem nada a ver com uma imersão sonambúlica da consciência no “inconsciente”. A “redução” ocorre apenas depois de um combate árduo contra as tendências conflituosas da alma, nas quais todos os “nós” ou “complexos” irracionais devem em primeiro lugar ser dissolvidos. O trabalho alquímico não é um tratamento para doenças mentais. 51 Texto fornecido por Dr. S. Hussein Nasr, Teheran. 90 No caminho a partir da consciência diferenciada para a indiferenciada então intervem a escuridão, correspondente ao caos. Essa é a condição da materia que já não está em posse de sua pureza original, mas cujas possibilidades diferenciadas continuam confusas e desordenadas. Tal é a condição da “crueza material”. Se entretanto a consciência se dirige a alcançar o nível mais profundo ela percebe o espelho do fundamento da alma, que, embora não seja alcançável em sua “realidade substancial”, entretanto revela sua natureza – isso é refletir, desembaraçadamente, a luz do Intelecto. O caos da alma é como o chumbo. O espelho do fundamento da alma é como a prata. Também é possível compará-la a uma fonte pura. Trata-se da mítica fonte da juventude, de cujas profundezas emana a água da vida, semelhante ao mercúrio. Esse é o significado das seguinte nota do alquimista Bernardus Trevisanus: “Aconteceu que em uma noite eu tinha de estudar em vista de uma disputa que haveria no dia seguinte. No entanto eu encontrei uma pequena fonte, bonita e clara, e completamente cercada por uma linda pedra. A pedra estava no tronco de um velho carvalho oco, completamente cercada por um muro, para prevenir que de vacas e outros animais irracionais – incluídos os pássaros – não se banhassem na fonte. Como eu estava muito sonolento, eu me sentei na beira da fonte, e eu vi que ela estava coberta em cima, e assim completamente fechada. “Então se aproximou um velho sacerdote e eu lhe perguntei por que a fonte estava completamente fechada, por cima, por baixo e por todos os lados. Ele se virou amavelmente em minha direção, e começou a responder assim: 'Senhor, a verdade é que essa fonte possui um poder terrível, maior que qualquer outro nesta terra. Este poder é apenas para o rei deste lugar, a quem ela conhece bem e que a conhece. Por duzentos e oitenta e dois anos, o rei se banha com este poder nesta fonte. Fazendo isso o rei se rejuvenesce bastante a si próprio. Então nenhum homem pode vencê-lo (...)” “(...) Ao ouvir isso eu retornei secretamente à fonte e comecei a abrir todas as toda as fechaduras (que funcionavam perfeitamente). Então eu comecei a olhar o livro que eu havia ganhado (em uma disputa) e apreciar seu belo esplendor. Mas como eu estava bastante sonolento, ele 91 caiu na fonte, entristecendo-me sobremaneira, já que eu desejava guardá-lo, pois se tratava de um prêmio honorífico. Então eu comecei a olhar (para dentro da fonte) até que o meu sinal surgiu. Eu então comecei a esvaziar a fonte e eu fiz isso tão bem e tão cuidadosamente que apenas faltava a décima parte – que, apesar da minha enérgica atividade, permaneceu como uma massa. Como eu assim trabalhei, pessoas de repente começaram a vir (…) e pela minha transgressão eu fiquei preso por quatro dias. Quando, depois desses quatro dias, eu deixei a prisão, eu fui de novo olhar a fonte. Então eu vi nuvens negras e escuras, que se mantiveram por um longo tempo. Finalmente, entretanto, eu vi tudo o que o meu coração desejava, e eu não tive problemas a esse respeito. E você também não terá nenhum, se você não se perder em um caminho mal e traiçoeiro, negligenciando essas coisas que a Natureza requer52. * Os alquimistas dão à materia prima – que eles consideram tanto a substância primeira do mundo como a substância básica da alma – um grande número de nomes. O objetivo dessa multiplicidade não é tanto proteger o hermetismo dos desqualificados, mas sim sublinhar o fato de que esta materia está presente em todas as coisas, e do mesmo modo ela contém todas as coisas. Eles a chamam “mar”, porque ela traz dentro de si todas as formas, como o mar traz em si as ondas, ou “terra”, porque ela nutre tudo o que “nela” vive. Ela é a “semente das coisas”, a “umidade básica” (humiditas radicalis), o hyle. Ela é “virgem” em razão da sua pureza e receptividade infinitas e “meretriz”, porque ela parece abraçar-se a todas formas. Também é comparada, como já vimos, à “pedra secreta”, embora em sua primeira condição deve ser distinguida da “pedra filosofal”, que é o fruto de todo o trabalho. A materia prima pode ser considerada como “pedra”, apenas naquilo que permanece imutável. A sua designação como pedra lembra o gohar persa e o jawhar árabe, que significa literalmente “pedra preciosa”, e em um sentido metafórico é utilizada para significar “substância” 52 Do Le Livre du Trévisan de la philosophe naturelle des métaux, na Bibl. des. Phil. chim. 92 (em grego, ousia). A materia prima é também o “depósito de minério” de todos os metais. De outro ponto de vista, entretanto, é o homem que é chamado “depósito dos minerais”, a partir do qual a materia do trabalho deve ser extraída, como Morienus explicou ao Rei Khalid: Haec enim res a te extrahitur; cuius etiam minera tu existis (“Isto é extraído de você, porque você é sua mina”). Nessa condição caótica na qual nem é pura nem modelável, nem dotada de formas claras, a materia é chamada de “coisa comum”, já que, como “materia bruta” é encontrada em todo o lugar. Ademais, ao mesmo tempo, é uma “coisa bastante preciosa”, porque a partir dela o elixir com o qual se pode fazer ouro é obtido. A matéria bruta, que em comparação com a materia prima representa a materia secunda é comparada com o chumbo (no qual a natureza do ouro está escondida) ou com o gelo (que pode ser derretido), ou com um campo (que apenas produz frutos quando está arado e semeado). Henrich Kunrath disse: “(...) A terra encharcada, úmida, gordurosa e lamecenta de Adão, materia prima, da qual esse imenso mundo, nós mesmos, e nossa poderosa pedra foram criados, faz a sua aparição (…)53. Como uma árvore, a materia prima está unificada com a árvore do mundo, cujos frutos são o Sol, a Lua e os planetas. Na “árvore” da materia crescem o ouro e a prata, ou todos os metais, ou de novo as variadas fases do trabalho alquímico, com suas cores simbólicas preto, branco e vermelho, e algumas vezes o amarelo entre o branco e o vermelho. Abu´lQâsim al-Irâqî escreveu a respeito desta árvore, que tem suas raízes não na terra, mas no mar do universo. Aqui “mar” é a materia da alma, anima mundi. A árvore cresce nas “terras do Oeste”, portanto na terra do Sol poente. Daí que materia corresponde ao Ocidente, assim como forma, o protótipo essencial, corresponde ao Oriente. A “árvore” pode assumir a forma de uma criatura viva, já que é a forma interna do homem. Dela é obtida a materia prima do trabalho, pois no fruto a origem da árvore mesma permanece escondida. A materia prima, que pode produzir a 53 Henrich Kunrath, Thatrum sapientiae aeternae. 93 forma do elixir, é obtida a partir de uma única árvore, que cresce nas “terras do Ocidente”. Ela tem dois ramos, que são muito altos, para que qualquer um que coma seus frutos não o faça sem trabalho e esforço, e dois outros cujos frutos são secos e mais enrugados que os daquela. A flor do primeiro dos dois ramos é vermelha, e a flor do segundo está entre o branco e o preto. A árvore tem dois outros ramos, que são mais fracos e mais leves que os primeiro quatro. A flor do primeiro desses dois ramos é preta, e a do segundo é branca e amarela. Essa árvore cresce na superfície do oceano, assim como outras plantas crescem na superfície da terra. Quem quer que coma dessa árvore é obedecido tanto pelos homens como pelos gênios (jinn). Esta é a mesma árvore daquela que Adão – que a paz esteja com ele! – estava proibido de comer. Quando ele comeu dela, ele foi transmutado de uma forma angélica para uma forma humana. Esta árvore pode transformar-se em qualquer criatura viva (...)54”. A materia prima dos alquimistas é tanto a origem como o fruto do trabalho, porque o caos da materia é obscuro e opaco apenas na medida em que as formas estão nele contidas – e inclusive “brotadas” – não atingem seu completo desenvolvimento. Toda “potência” (potentia) é, na essência, impenetrável. Isso é assim no caso de um mineral que aparenta ser bruto e opaco na sua condição amorfa, mas que, a partir do momento em que ganha forma como um cristal, é claro e transparente. Entretanto, não se deve concluir a partir disso que todas as possibilidades fundamentalmente presentes na alma necessariamente serão manifestadas, porque, em primeiro lugar, a sua multiplicidade é inexaurível, e, em segundo, a grande variedade do conteúdo das almas é um obstáculo à realização dessas “forma” essencial, ou seja, o estado unitário e harmonioso da consciência, que é um perfeito espelho do “Ato Divino”. Assim, a verdadeira natureza da materia prima revela-se a si mesma na medida em que recebe e assume a verdadeira forma. Assim como a substância universal (materia prima) apenas pode ser apreendida por meio do conhecimento do Puro Ser, de que é sombra, assim também o verdadeiro fundamento da alma apenas pode ser conhecido em 54 Texto fornecido por Dr. S. Hussein Nasr, Teheran. 94 sua reação ao Puro Espírito. A alma apenas se revela a si mesma quando unida como noiva do Intelecto-Espírito. É isso que é mencionado quando se fala do casamento do Sol e da Lua, do rei e da rainha, do enxofre e do mercúrio. * O “descobrimento” do aspecto receptivo da alma e a “revelação” do Espírito Criativo vieram ao mesmo tempo. Eles não podem ser separados um do outro. Apesar disso, as várias fases e aspectos do trabalho interior podem fazer referência a um ou a outro polo. Todo caminho de realização espiritual visa à preparação do “produto”, ou substância, receptivo, e o “trabalho” ou influência do Ato espiritual ou divino sobre ele. Dependendo do caminho seguido, entretanto, a ênfase – tanto doutrinal como prática – irá repousar-se tanto em um como em outro dos dois processos internos, e, em vista disso, a meta espiritual irá ser também definida sobre o “Ato imóvel” ou sobre o aspecto imutável e puro da alma. O simbolismo artesanal da alquimia, que consiste no “enobrecimento” de uma substância mineral, requer que a alma seja concebida como uma “substância”, e inclusive que uma ideia de “primeira substância” (materia prima) seja colocada no centro de todas as considerações. Mesmo o efeito do Intelecto transcendente, que é “antípoda” da “matéria” da alma é, na linguagem simbólica da alquimia, expressada “substancialmente”, como uma transformação química. O fato de que essa transformação exceda possibilidades puramente artesanais indica que sua origem não é meramente substancial. Os dois aspectos ou fases da realização espiritual são claramente ilustrados em determinada forma tradicional de crucifixo, decorada com símbolo. Como exemplo disso, nós selecionamos uma cruz prateada relicária, do começo do Séc. XIII, que está conservada no monastério de Engelberg e cuja decoração prova que a alquimia esteve ligada à arte da ourivesaria. O crucifixo é decorado com gravuras em ambos os lados. À frente (reconhecível por seu relevo mais profundo) traz no centro a figura do Salvador crucificado, e nas extremidades 95 dos seus quatro membros representações dos quatro evangelistas, juntamente com seus símbolos animais. Esta foi uma composição muito difundida da arte cristã da Idade Média. Mas aqui ela aparece em uma forma relativamente “naturalística”. Nas cruzes litúrgicas antigas, a figura do Cristo, ou do Cordeiro, é cercada apenas por quatro animais celestiais, que conferem ao simbolismo uma grande austeridade, e ao mesmo tempo uma grande amplitude. De um modo semelhante, as costas do crucifixo mostram no centro a Santíssima Virgem entronizada com o menino Jesus, e nas quatro extremidades os símbolos dos quatro elementos. O foto está acima, o ar na direita (do expectador), a água à esquerda e a terra abaixo. Os dois lados da cruz podem ser considerados como representações do “essencial” e do “substancial”, do “ativo” e do “passivo”, da forma e da materia do cosmos: a frente trazendo os personagens humanos da Palavra Divina e os seus quatro “modos de revelação” (os evangelistas) claramente corresponde (em sua relação com o simbolismo do lado reverso) ao Ato Divino ou “forma essencial” do cosmos. O lado oposto, por outro lado, corresponde à materia prima, ou melhor, ao mundo que daí procede. A Virgem, no centro, simbolicamente assume o papel do éter que, de um determinado ponto de vista hermético, deve ser identificado com a materia prima. Os quatro elementos, por sua vez, manifestam as quatro determinações fundamentais da materia prima, e assim também os quatro fundamentos de todo o universo formal. O inviolável equilíbrio da materia prima, sua natureza “virginal”, torna-se claro pela posição central dada à Virgem, correspondente aos quatro símbolos do fogo, ar, água e terra. 96 Cruz-relicario del abad de Engelberg Heinrich von Wartenbach, hacia 1200. Anverso. Monasterio de Engelberg. 97 La misma cruz. Reverso. 98 É desnecessário acrescentar que a interpretação cosmológica que a interpretação cosmológica dessas imagens cristãs não é de modo algum depreciada em seu significado teológico. Pelo contrário, há coincidência entre as duas “perspectivas” espirituais em um e mesmo símbolo confere a ele uma importância ainda maior – de ambos os pontos de vista. Isso revela ainda mais claramente o seu conteúdo verdadeiramente metafísico, que dá amostras das possibilidades completamente ilimitadas da pura contemplação, que está aberta ao artista experimentado na arte hermética, e ao mesmo tempo enraizado na fé cristã. A conexão intrínseca entre as duas concepções simbólicas – encontradas respectivamente na frente e no verso da cruz – encontra expressão na pomba do Espírito Santo, retratada como que descendo em direção à Virgem, e no Menino Jesus presente no seu colo. A pomba representa a presença do Espírito não-criado, sob cuja influência a materia prima sofre seu desenvolvimento formal, tanto quanto sob Sua sombra a Virgem concebe e dá à luz. Como o Menino, nascido dela, o Espírito Divino ganha forma. Ele continua o mesmo em essência, mas se reveste da substância dada a Ele por Sua mãe. Ele adapta-Se aos diferenciados aspectos da matéria 55. A forma mesma da cruz, que expressa a lei de todo o cosmos, pode ser encontrada em cada um dos polos. Ao mesmo tempo corresponde à relevação quádrupla da Palavra Eterna e aos dois pares de opostos contidos na materia prima. Assim, todo trabalho espiritual procede tanto do Ato Essencial, quanto do Seu receptáculo substancial. A alma não pode ser transmutada sem a cooperação do Espírito, e o Espirito ilumina a alma apenas na medida da sua preparação passiva e conformidade com o seu modo. A oposição entre os dois polos é superada apenas no nível mais alto, no puro Ser. Aqui a “substância” receptiva mesma não é nada mais do que a primeira, imediata e interna determinação do Espírito Divino, que assim desce apenas em direção àquele que já é seu, 55 Assim, de acordo com a doutrina dos místicos islâmicos, a Revelação (tajallî) de Deus no coração assume a forma e a prontidão que a última lhe confere. Ver minha tradução de Fusûs al-Hikam, de Muhyi-d-Din Ibn' Arabî: La Sagesae des Prophètes, Ed. Albin-Michel, París, 1955. 99 assumindo sua forma e modos56. As interpretações dadas às quatro imagens descritas acima podem ser complementadas por diversos outros detalhes. Assim, cada uma das quatro extremidades da cruz tem no final três semicírculos. Desse modo, o grupo dos quatro evangelistas e os quatro elementos aumenta para o grupo dos doze apóstolos e os signos do Zodíaco. Na frente da cruz, anjos seguram um círculo sobre a cabeça do Cristo, enquanto atrás imagens de São Pedro e de vários santos bispos cercam a figura da Virgem. Nessas duas disposições, podem ser reconhecidas as hierarquias celestes e eclesiásticas, que, de acordo com São Dionísio Areopagita, se colocam frente a frente, dando e recebendo. Outros detalhes se referem de modo ainda mais explícito à alquimia. No tronco da cruz pode-se ver Moisés sustentando o polo com uma cobra de bronze. Trata-se tanto de um protótipo da Crucificação no Antigo Testamento, como um símbolo da fixação alquímica do mercúrio. O mesmo processo é também expresso no grupo de animais em combate imediatamente ao lado do pé do Cristo crucificado. Certamente o primeiro e mais imediato significado deste grupo é a vitória do Leão de Judá sobre os dragões infernais. Mas a mesma imagem pode também ser interpretada como a sujeição do mercúrio “volátil” pelo Leão Solar do Enxofre. 56 Dante tinha essa verdade em mente quando chamou a Bem-Aventurada Virgem de “Filha do seu Flho” (figlia del tuo figlio). (Paraíso, começo do Canto 33). 100 A cruz de Cristo crescendo como um lírio azul para fora da Santíssima Virgem, que está ajoelhada na Lua crescente. O lírio com cinco pétalas corresponde à quintessencia. E a Mãe de Deus corresponde à materia prima. Extraída de uma miniatura no alquímico Book of the Holy Trinity, na Biblioteca Estatal de Munique. Há um paralelo extremo oriental a essa iconografia cristã que, apesar de distante no espaço e no tempo, serve ainda mais fortemente para reforçar a validade universal do 101 simbolismo em questão. Nós temos em mente determinada forma de mandala que é usada no Shingon japonês, um dos ramos do Mahayana budista. A mandala consiste em uma insígnia pintada dos dois lados. Em um lado está a representação do “mundo dos indestrutíveis” ou dos “elementos diamantinos”, e do outro lado está uma representação do “elemento uterino”. No centro, dos dois lados, está uma das formas de manifestação do “grande iluminador” o Buddha Mahâvairochana, sentado sobre o lótus. Na primeira representação – aquela dos protótipos imutáveis – o buda tem um semblante contemplativo. Sua cabeça está cercada por uma auréola branca, o símbolo da atividade. Isso significa que aqui o polo “substancial” é considerado em seu aspecto dinâmico, correspondente, na doutrina tao budista, como tendo relação com a essência ativa da não-ação e da essência passiva da ação. A meditação a respeito da representação primeiramente mencionada leva ao conhecimento do modo de libertação do porvir, enquanto que a meditação a respeito do segundo tem como fruto o conhecimento das quatro ciências cosmológicas57. * A interpretação da materia prima como um espelho do Espírito Universal pode também ser encontrada no simbolismo extremo oriental do espelho. Espelhos chineses rituais ou mágicos usualmente tem do seu lado reverso uma representação de um dragão celestial. Isso corresponde ao Espírito Universal ou Logos. No Shinto, a religião pré-budista do Japão, o espelho sagrado (que reflete a imagem do Deus solar Amaterasu) é obviamente também um símbolo da alma no seu estado de pureza espiritual, no qual ela pode receber e refletir a Verdade – supra-conceitual, Verdade original. Isso nos leva de volta à assimilação hermética da materia prima com o fundo da alma. Ainda mais surpreendente, o mesmo simbolismo pode ser encontrado entre determinados grupos indígenas norte-americanos, especificamente os Corvos e os Shoshonis. Aqui o espelho é inclusive um espelho mágico, por 57 Ver E. Steinnilber-Oberlin, Les Sectes boudhiques japonaises, París, 1930. 102 meio do qual o Xamã pode encontrar coisas perdidas ou esquecidas. (Ele as vê nas profundidades do espelho). Na superfície do espelho uma linha vermelha em zig-zag é pintada, representando um relâmpago que, para os indígenas, é o símbolo Grande Espírito e da Revelação, assim como é também (para os indígenas) a água voando pelos céus, e descendo vertiginosamente como um trovão. 103 CAPÍTULO 8 A NATUREZA UNIVERSAL Um importante adágio dos alquimistas é o seguinte: “A arte é a imitação da natureza no seu modo de operação”. O modelo para o trabalho alquímico é a natureza. A natureza vem em assistência do “artista” que dominou seu modo de operação, e aperfeiçoa, na sua “atividade”, o que ele começou com trabalho e esforço. “Natureza” tem aqui um significado muito preciso. Não significa simplesmente o “porvir” involuntário das coisas, mas antes um poder unitário, um poder u causa unitários cuja essência pode ser conhecida pela apreensão de seu ritmo todo abrangente – um ritmo que regula tanto o mundo visível quando o invisível. Como a alquimia ocidental geralmente usa a linguagem da metafísica platônica, podemos a ele fazer menção com o fim de apreciar em toda a sua extensão tudo o que está incluído nas expressões natura ou physis. A descrição mais significativa da natureza pode ser encontrada nas Enéadas (III, 8), de Plotino, onde ele escreveu: “Se se pudesse perguntar à natureza por que ela faz o seu trabalho, ela poderia responder assim – se realmente ela aceitasse responder: seria mais adequado não perguntar (ou seja, não investigar com a mente), mas aprender silenciosamente, mesmo quando eu estou em silêncio. Pois este não é o meu modo de falar (em contraposição ao Espírito, que se revela a Si Mesmo em palavras). Mas isso você deve aprender, que tudo o que acontece é o objeto da minha contemplação silenciosa, uma contemplação que minha posse original, pois eu mesmo nasci de uma contemplação (especificamente a contemplação da alma universal), que contempla o Espírito Universal, tanto quanto este contempla o Infinito). Eu amo a contemplação, e aquilo que em mim contempla imediatamente engendra o objeto dessa contemplação. Assim os matemáticos registram figuras como resultado de sua contemplação. Eu, entretanto, não registro nada. Eu apenas observo. E as formas do mundo material surgem, como se elas procedessem de fora de mim...”. 104 Assim a natureza, em sua essência receptiva, está relacionada à materia prima; e, de fato, ao lado da materia prima (hyle), ela está situada abaixo das três hipóstases cognitivas do universo platônico. Acima dela está a “alma universal” (psyque), e acima desta está o Espírito Universal (nous), que sozinho contempla o Uno inefável, e ao contemplá-lo procura manifestá-lo sem cessar. Abaixo da natureza está apenas a materia prima, o fundamento passivo de toda manifestação, que por ela mesma não participa do porvir, e assim permanece eternamente “virgem”. Pode-se chamar a natureza o aspecto materno da materia prima, já que é ela quem “dá a luz”. Ela é operativa e móvel, enquanto que a materia prima, em si mesma, permanece imóvel. Muhyi ´d-Din ´Arabi´, “o grande mestre” (ash-sheikh al-akbar) do misticismo islâmico, e o grande enunciador dos princípios herméticos, concebe a natureza universal (tabi´at al-kull) como o lado feminino ou materno do ato criativo. Ela é o “'sopro' misericordioso de Deus” (nafas arrahmán), que confere existência diferenciada às possibilidades indiferenciadas latentes no “não-ser” (´adam). Esse “sopro” é misericordioso, já que as possibilidades que estão em vias de ser manifestadas estão já sedentas por manifestação; mas o mesmo poder tem um aspecto obscuro e confuso. A multiplicidade, em si mesma, é desilusão e separação de Deus58. A explicação de Ibn Arabi a respeito da natureza universal como compreensiva e maternal, mas ao mesmo tempo confusa, como poder de origem divina, é aqui de especial importância, porque ela constitui uma ponte em direção à ideia hindu de shakti, o poder produtivo feminino de Deus. Sobre essa ideia de shakti estão baseados todos aqueles métodos espirituais tântricos que estão mais proximamente relacionados à alquimia do que qualquer outra arte espiritual. Os hindus, a bem da verdade, consideram a alquimia mesma como um método tântrico. Assim como Kâlî, o shakti é por um lado a mãe universal, que amavelmente abraça todas as criaturas, e por outro lado é o poder tirânico que os conduz à destruição, morte, tempo e espaço (que causa separação). Algumas vezes ela é 58 Ver a minha tradução de Fusûs-al-Hikam, op. cit. 105 retratada como tendo uma beleza sublime, algumas vezes como tendo traços que causam terror. Sua cor é escura, como uma essência “sombria”. O shakti é também mâyâ, a arte divina, que confere aos seres suas múltiplas formas e assim também as afasta da sua única e infinita origem. Esse modo de considerar o poder criativo divino pode parecer surgido de um ponto de vista um pouco diferente daquele da teologia escolástica, ainda que ele não contradiga esse último, já que a concepção de que a existência é tanto um presente divino quanto (do ponto de vista do puro ser) uma limitação, também pode ser encontrada na ontologia clássica ensinada pelos padres da Igreja. A particularidade da concepção aqui descrita, que combina a metafísica de Ibn Arabi com a doutrina hindu do shakti, é que elas se atribui ambos os aspectos da existência (ou do “porvir”), tanto o positivo quanto o negativo, a uma única e mesma causa-raiz, especificamente a natureza universal, que é retratada como sendo tanto maternal como terrível. Em contraposição à ação pessoal de Deus, que é o objeto real da teologia em si mesma, Sua ação ou operação no mundo é aqui representada de um modo impessoal. Isso corresponde inteiramente ao ponto de vista especial da alquimia – que não é por essa razão agnóstica, embora o conceito de “natureza”, como usado e confundido pelos filósofos iluministas, indiretamente deriva da natura hermética. Que essa natura pudesse ter-se transformado, com a secularização e dessacralização da ciência, em um vago e descompromissado substituto de Deus, não está inteiramente desconectado com o concomitante estreitamento do horizonte teológico, que tornou mais difícil uma visão simultânea dos aspectos “pessoais” e “impessoais” da revelação que Deus faz de Si Mesmo. No que se refere ao trabalho exterior da alquimia, a natureza é o poder direcionador por trás de todas as transmutações – a “energia potencial”. Na alquimia interna ela aparece como o poder maternal, que liberta a alma da sua existente ignorante, árida e estéril. Assim ela é o poder do desejo e da ansiedade que há no momem, e ao mesmo tempo muito mais, já que como potência inexaurível, “natureza” desenvolve todas as capacidades escondidas na alma, contra ou juntamente 106 com os desejos ou com o ego, dependendo de se esse último assimila o poder da natureza ou se transforma em sua vítima. Ela é sempre feminina – tanto como senhora natureza como também em seu aspecto terrível como o grande dragão que vaga através de todas as coisas. A natureza, em forma de mulher e árvore, sai rejuvenescida dos balões de destilação, que são o Sol e a Lua. Os pássaros são as “sementes” de ouro e prata. As duas direções de seu voo representam, respectivamente, “solução” e “coagulação”. - Do livro 'Alchemical Manuscript', de 1550, na Biblioteca da Universidade da Basiléia. 107 De acordo com uma interpretação (associada com o nome da “natureza” ainda hoje), a natureza traz sempre algo de coação. Isso marca uma diferença essencial entre ela e a operação do livre-arbítrio humano. Ela possui este aspecto também na alquimia, pelo menos em um sentido, porque, de um certo ponto do trabalho, essa coação é transmutada em um ritmo cósmico, que não prende mas liberta. Dante chamou isso de “o amor que move o Sol e as outras estrelas”. Psicologicamente falando, aquilo que no começo do trabalho aparece como um perigosa e distorcido impulso se transforma, com o acúmulo da perícia, em uma força que conduz a consciência a esferas mais altas. Esta é uma lei presente em toda verdadeira ascesis, distinguindo-a do puritanismo, já que na verdadeira espiritualidade não se trata de destruir as forças naturais, mas antes de domesticá-las, de modo que elas se transformem em veículos do Espírito. Aquilo que por si só deve ser destruído é a tendência egoísta, que deforma a genuína essência desses poderes. Esse, de fato, não é nem bom nem mal em si mesmo, mas naturalmente inocente. Fala-se comumente de “sublimação”, assim emprestando uma expressão alquímica a um processo psicológico, que contudo é completamente incapaz de superar determinadas tensões em bases puramente profanas, e sem a ajuda de uma arte sagrada ou da Graça. Pode-se apenas falar de uma extensão cósmica dos poderes da alma, em conexão com uma arte espiritual genuína; para atingir algo cósmico (e indiretamente divino), o homem deve primeiro entrar – por meio do símbolo revelado e de sua aplicação fiel – antes que ele possa se perder a si mesmo, para meras arbitrariedades, e atingir uma liberdade verdadeira. É sob essa luz que se devem considerar certos exercícios que imitam ritmos da natureza, como por exemplo a regulação da respiração – um procedimento que provavelmente era considerado pela alquimia. Não se trata de uma técnica automática, mas algo que pode servir à meta da realização espiritual apenas na esteira de certas condições externas e internas. Na mesma categoria há diversos significados especiais – dúbios à primeira vista, e de todo modo perigosos – de despertar o poder interior, tais como a contemplação da senhora natureza na beleza de um corpo feminino – um método que é praticado tanto no tantra como no 108 cavalheirismo hermético59. Pode-se perguntar com acerto se a distinção familiar entre desenvolvimento “natural” e a operação “sobrenatural” da Graça tem algum significado do ponto de vista hermético. A resposta é negativa, no sentido de que o trabalho da Graça não se derrama fora do universo natural e, além disso, sempre tem repercussão dentro da ordem natural no sentido estrito. Apesar disso, justifica-se a distinção quando se considera qualquer nível da natureza, cuja sujeição relativa a “compulsão” pode ser sempre superada pela Graça, que irrompe repentinamente e sem constrangimento, como uma iluminação. Assim a expressão “natureza” abrange caso a caso o maior ou menor domínio de realidade. Um texto alquímico anônimo, intitulado 60 Purissima Revelatio diz que a natureza como um “livro” no qual apenas aquele que recebeu a iluminação de Deus pode ler. Também se diz que ela é “uma grossa madeira na qual muitos penetraram com o fim de tentar sacar dele os seus sagrados segredos. Mas eles foram engolidos, porque não tinham as armas sutis, as únicas que podem conquistar o terrível dragão que guarda o bracelete de ouro. E aqueles que não foram mortos tiveram que refazer seus passos, aterrorizados e cobertos de vergonha e desgraça. A natureza é também aquele mar imenso no qual os argonautas se estabeleceram. Desventura para os marinheiros que não conhecem sua arte! Eles que devem viajar até o fim da vida sem alcançar o ponto. Eles não encontrarão refúgio nas terríveis tempestades. Queimados pelo sol e congelados pelos ventos gélidos, eles sem dúvida perecerão, a menos que implorem ajuda do mais alto e poderoso Senhor... Porque não é dado a muitos alcançar a margem da Cólquida... Apenas os sábios argonautas, que observam estritamente as leis da natureza e são completamente devotados à vontade do TodoPoderoso, podem conquistar o bracelete de ouro, com a qual Medéia, a personificação da natureza, irá se render, contra a ordem do seu obscuro pai, e para a grande raiva do dragão 59Veja Maurice Aniane, Notes sur l'alchimie, 'yoga' cosmologique de la chrétienté médiévale, em 'Yoga, science de l’homme intégral', Cahiers du Sud, Paris, 1953, e J. Evola, Metafísica del Sesso, Atanòr, Roma, 1958. 60 Tradução francesa de Roberto Buchère em Le Voile d´Isis (Paris), 1921, p. 183. 109 surpreso...”. Medéia é uma imagem do lado “sombrio” da natureza. A natureza universal, como mâyâ, tem duas direções ou movimentos – um que tende a se afastar do centro espiritual em direção à multiplicidade (e que no homem está ligada às paixões), e uma que, a partir da multiplicidade, conduz de volta à direção ao centro espiritual. O primeiro está relacionado aqui ligado à Medéia, e o último à Sophia ou sabedoria. Ambos são femininos em relação com a vontade humana, sendo ambos amantes ou noivas: “... E maldito aquele que, como Jason, tendo vencido com o auxílio de Medéia, deixa-se seduzir pela sua perigosa astúcia, e submete feiticeira à natureza, no lugar de permanecer constante e fiel à sua noiva divina, a sabedoria. Por outro lado, bem-aventurado aquele que, assegurado pela sabedoria, sabe como seduzir aquela natureza feiticeira, com o fim de atingir seus segredos, que ela não mais pode negá-lo, e que retorna à casa, na posse do bracelete de ouro, e fiel ao seu virtuoso noivo...”. Como os métodos tântricos, o trabalho alquímico desperta um poder natural terrível, e destrói os despreparados e desqualificados, mas que eleva o sábio em direção à supremacia espiritual. Esse poder reside no homem, mas seu nome indica que não se trata de algo individual ou limitado, mas uma parte ou aspecto de um ritmo impessoal e sem fim. Essa é única interpretação irrefutável que foi conservada na expressão “natureza”. 110 CAPÍTULO 9 “A NATUREZA PODE DOMINAR A NATUREZA”. No mundo das formas, o “modo de operação” da natureza consiste em um ritmo contínuo de “dissoluções” e “coagulações”, ou de desintegrações e formações, daí que a dissolução de qualquer entidade formal não é senão a preparação para uma nova conjunção entre a forma e a sua materia. A natureza age como Penélope que, para se livrar de pretendentes indignos, desenrola à noite o vestido de casamento que ela teceu durante o dia. Os alquimistas também trabalham desse mesmo modo. Seguindo o adágio solve et coagula, ele dissolve as coagulações imperfeitas da alma, reduzindo-as à sua materia, e as cristaliza novamente em uma forma mais nobre. Mas ele pode realizar esse trabalho apenas em uníssono com a natureza, por meio de uma vibração natural da alma que desperta durante o curso do trabalho e conecta os domínios humano e cósmico. Assim, por sua própria vontade, a natureza vem em auxílio da arte, de acordo com o adágio alquímico: “O progresso do trabalho agrada muito à natureza” (operis processio multum naturae placet). As duas fases da natureza – dissolução e coagulação – que parecem se opor a partir de um ponto de vista superficial mas que na verdade são mutuamente complementares podem, em um certo sentido, ser relacionadas aos dois polos, essência e substância, embora eles, obviamente, não estejam presentes na natureza como pura oposição de Atividade e Passividade, mas meramente como reflexões relativas desses últimos. Na natureza é o enxofre alquímico que corresponde ao polo ativo, e o mercúrio alquímico que corresponde ao polo passivo. O enxofre é relativamente ativo; é o enxofre que confere forma. Mercúrio assemelha-se à matéria passiva, que é assim mais imediatamente relacionado com a natureza mesma e com o seu caractere feminino. Desde que o enxofre representa o polo essencial da sua refração natural, diz-se que ele é ativo no modo passivo, enquanto o mercúrio, em vista do caráter dinâmico da 111 natureza, pode ser chamado de passivo no modo ativo. A relação mútua das duas forças primordiais é assim similar àquela do homem e da mulher na união sexual. O melhor símbolo para a dupla enxofremercúrio é o padrão chinês Yin-Yang, com o polo preto no vórtice branco e o polo branco no vórtice preto, como indicação de que o passivo está presente no ativo e de que o ativo está presente no passivo, assim como no homem está contida a natureza da mulher e na mulher a natureza do homem61. Na alma o enxofre representa a essência, ou espírito, enquanto o mercúrio corresponde à alma mesma, em seu polo receptivo e passivo. De acordo com Muhyi ´d-Dîn ´Arabi, que sempre tem as mais altas interpretações em vista, o enxofre corresponde ao “Comando divino”, vale dizer, ao fiat lux por meio do qual o mundo se transformou em um cosmos a partir do caos, enquanto o mercúrio representa a Natureza universal, a contrapartida passiva do primeiro62. Assim, muito embora no domínio específico da alquimia os dois polos apareçam como forças mais ou menos condicionadas, é bastante útil recordar seus protótipos incondicionados, já que só assim se pode entender, por exemplo, em que aspecto o enxofre corresponde ao desígnio espiritual, e o mercúrio à capacidade “plástica” da alma. Em um sentido imediato, e em sua interpretação psicológica geral, o desígnio espiritual se origina de um ideal e se esforça para formar a alma de acordo com ele. Em seu sentido original, entretanto, que revela a si mesmo apenas dentro dos limites de 61 Isso não tem apenas uma base psicológica, mas também e acima de tudo ontológica. 62 Futûhât al-Mekkiyah. 112 uma arte espiritual tradicional, o desígnio espiritual é uma vibração vindo do centro do ser, um ato espiritual que rompe através do pensamento e que no plano da alma efetiva duas coisas: uma ampliação e aprofundamento do “senso do ser” e uma clarificação e estabilização dos conteúdos essenciais da consciência. De acordo com isso, a capacidade “plástica” da alma, que corresponde ao Ato do Espírito original, não é meramente a imaginação passiva que assume e desenvolve formas, mas uma capacidade que gradualmente se estende para além dos confins da consciência individual vinculada ao corpo. * O enxofre, poder masculino original, e o mercúrio, poder feminino origina, ambos empenham-se na direção da completude de seu único e eterno protótipo. Esse último é ao mesmo tempo a razão para sua oposição e da sua mútua atração – tanto quanto as naturezas masculina e feminina almejam à integridade do estado humano, e como resultado desse procura, a separar-se um do outro e a unir-se um com o outro. Por meio dessa união física, ambos tentam restabelecer a imagem de seu protótipo eterno comum. Esse é o casamento do homem e da mulher, enxofre e mercúrio, Espírito e alma. No reino mineral é o ouro que nasce da união perfeita dos dois princípio geradores. O outro é o verdadeiro produto da geração metálica. Qualquer outro metal é tanto um parto prematuro ou um aborto, um ouro imperfeito e, desse ponto de vista, o trabalho alquímico não é senão uma parteira ou ajudante, que a arte oferece à natureza, daí que essa última pode perfeitamente amadurecer o fruto cuja maturação foi prejudicada por certas circunstâncias temporais63. Isso pode ser entendido tanto no sentido mineral como no microcósmico. Muhyi ´d-Din ibn Arabi considera o ouro como símbolo do estado original e incorruptível (al-fitrah) da alma, a forma na qual a alma humana foi criada no começo. De acordo com a concepção islâmica, a alma de toda criança inconscientemente se 63 As mais recentes descobertas no campo da fissão nuclear parecem confirmar que os metais qualitativamente mais baixos são os mais instáveis. O urânio assemelha-se rigorosamente ao chumbo. 113 aproxima do estado adâmico, antes de ser conduzida para longe dele novamente pelos erros impostos nela pelos adultos64. O estado incorrupto possui um equilíbrio interno de forças. Isto é expressado pela estabilidade do ouro. De acordo com uma concepção cosmológica amplamente difundida – já citada por Aristóteles – a natureza é caracterizada por quatro propriedades, manifestadas no nível sensorial por calor, frio, umidade e secura. O calor e a secura são associados com o enxofre; frieza e umidade, com o mercúrio. As duas primeiras propriedades, assim, têm o caráter predominantemente ativo e masculino; as duas últimas, o caráter mais passivo e feminino. O que isso significa pode ser visto mais claramente quando se relaciona o calor à expansão, o frio à contração, a umidade à dissolução, e a secura à coagulação. O calor, ou o poder de expansão peculiar ao enxofre, causa o crescimento de uma determinada forma a partir do seu centro essencial, e essa força da natureza é intimamente ligada com a vida. A secura do enxofre coagula ou “fixa” a forma no plano de sua materia, então ela imita a imutabilidade do seu protótipo de um modo passivo e material. Em outro sentido, o poder de expansão do enxofre é o dinâmico – e portanto relativamente passivo – aspecto do Ato essencial, e a coagulação é o contrário ou o aspecto menos predominante da imutabilidade da Essência. O Ato puro é imóvel e a Essência verdadeira é ativa. A frieza, ou o poder de contração, do mercúrio se opõe ao poder de coagulação do enxofre, na medida em que envolve as formas a partir do exterior, como se ele fosse, e os prendesse rapidamente, como um útero cósmico 65. O caráter úmido e dissolvente do mercúrio, entretanto, assemelha-se à receptividade feminina que, como a água, pode assumir todas as formas, sem desse modo ser alterado. As quatro propriedades naturais ou “modos de operação”, que têm relação de paridade com o enxofre e o mercúrio, pode, em suas sucessivas coagulações e dissoluções, 64 Esta doutrina não deve ser confundida com a opinião de J.-J. Rousseau de que o homem é bom em si mesmo. A recapitulação inconsciente do estado primordial na criança não exclui as tendências negativas ou os defeitos hereditários. 65 Sobre o poder de contração do mercúrio, veja-se René Guenón, A Grande Tríade, publicado pela La Revue de la Table Ronde, Paris, 1946, capítulo entitulado “Enxofre, mercúrio e sal”. 114 entrar em uma variedade de combinações um com o outro. A geração apenas tem lugar quando as propriedades do enxofre e do mercúrio mutuamente se penetram. Quando a secura do enxofre se junta unilateralmente com a frieza do mercúrio, então a coagulação e a contração vão juntas (sem a consequente ação do calor expansivo do enxofre ou da umidade dissolvente do mercúrio), segue-se uma completa rigidez da alma e do corpo. Em termos da vida, esta é a sonolência da idade avançada e, no nível ético, a avareza. Mais genericamente e mais profundamente isto é o encerramento da consciência egóica em si mesma, uma condição mortal da alma que perdeu a sua receptividade e vitalidade originais, tanto espiritual como sensorialmente. Pelo contrário, uma conjunção unilateral de calor e umidade (i. e., expansão e dissolução) resulta em uma volatilização de poderes. Isso se assemelha à condição da paixão que consome, vício e dissipação de espírito. Caracteristicamente, os dois tipos de desequilíbrio usualmente são encontrados juntos. Um gera o outro. A congelação das potências da alma conduz à dissipação, e o fogo vivo da paixão desenfreada traz a morte íntima. A alma que é avara consigo mesma e se fecha ao Espírito é transportada ao largo no vórtice de impressões dissolventes. O equilíbrio criativo apenas é produzido quando o poder expansivo do enxofre e o poder contrativo do mercúrio mantêm o equilíbrio, e quando ao mesmo tempo o poder coagulante masculino entra em uma frutífera união com a capacidade dissolvente feminina. Esse é o verdadeiro casamento dos dois polos do ser, que são representados inter alia pelos triângulos interseccionados do selo de Salomão Y – o signo que também simboliza a síntese dos quatro elementos. As aplicações dessa lei são efetivamente ilimitadas; apenas algumas poucas consequências psicológicas e “vitais” foram mencionadas aqui. Pode-se acrescentar que a medicina tradicional está fundada nos mesmos princípios, os quatro elementos que correspondem aos quatro humores66. 66 Ao ar corresponde o vermelho constituinte do sangue; ao fogo, a bile amarela; à água, a fleuma; e à terra, a bile negra. Todos os quatro humores estão contidos no sangue. 115 Figura 5. Representação simbólica do trabalho alquímico. O dragão do caos, ou natureza não-domesticada, descansa na árvore da materia prima física, que tem suas raízes na terra da materia prima cósmica. Os sete sóis correspondem aos sete metais, planetas e fases do trabalho. Do sol, no topo da figura, emergem dois raios que representam os poderes masculino e feminino. Entre eles estão equilibradas as duas águias que representam o mercúrio masculino e feminino. Suas cores são o preto, o branco, o amarelo e o vermelho e então reúnem em si mesmos as quatro principais cores do trabalho. Em determinado sentido o dragão é o início e águia é a forma final do mercúrio. – De um manuscrito alquímico MS 428 da Biblioteca Vadian, St. Gallen. A alma, em sua completa amplitude, como 116 desdobrada no curso do trabalho alquímico, é governada pelas duas forças fundamentais, enxofre e mercúrio, que adormece, no estado “caótico” da alma adormecida, como o fogo na pedra e a água no gelo. Quando eles despertam, antes de tudo, manifestam suas oposições em uma certa tensão externa. A partir desta tensão, eles continuam a crescer um sobre o outro, e na medida em que eles se tornam livres, eles se compenetram, já que eles estão predestinados um ao outro como homem e mulher. A essas duas fases do seu desenvolvimento estão relacionadas as duas primeiras cláusulas da fórmula hermética: “A natureza se deleita na natureza; a natureza contém a natureza; a natureza pode dominar a natureza.” Essa última cláusula significa que os dois poderes, quando eles cresceram ao ponto de um abranger o outro, reúnem-se em um plano superior e então sua oposição, que previamente limitava a alma, agora se transforma em uma complementaridade frutífera por meio da qual a alma adquire domínio sobre todo o mundo das formas e correntes psíquicas. Assim, a natureza, como uma força libertadora, domina a natureza como tirania e opressão. 117 Figura 6. “Aquila volans et bufo gradicus sup. Terra est magisterium”. A águia ascendente representa a parte liberada, espiritual, da materia alquímica, e o sapo a sua escória obscura mas fértil. A lua crescente corresponde à alma purificada enquanto a serpente presa por um nó é a imagem da força latente da natureza. Do manuscrito Egerton 845 no Museu Britânico. Séculos XV-XVI. * Quando o Ato divino imutável que governa o cosmos é simbolicamente representado por um eixo vertical imóvel, o “curso” da natureza, em relação a ele, é como uma 118 espiral que gira ao redor desse eixo; então com cada volta ele concebe um novo plano ou grau de existência. Esse é o símbolo primordial da serpente ou dragão, que se faz girar em torno do eixo da árvore do mundo67. Quase todos os símbolos da natureza procedem da espiral ou do círculo. O ritmo desses sucessivos girar e desenrolar da natureza, do solve et coagula alquímico, é representado pela dupla espiral: , cuja forma está também na base das representações zoomórficas do Shakti. Também relacionada a isso é a representação das duas serpentes ou dragões em direções mutuamente contrárias em torno de um grupo de árvores. Elas correspondem às duas fases complementares da natureza ou às duas forças fundamentais 68. Esta é a herança antiga de imagens da natureza sobre as quais tanto a alquimia, e determinadas tradições do Oriente (especialmente o tantrismo) extraíram. Também se pode notar aqui que o uso de uma serpente ou de um dragão como imagem de um poder cósmico pode ser encontrado em todas as partes do mundo. É especialmente característico daquelas artes tradicionais tais como a alquimia, que estão preocupadas com o mundo sutil. Um réptil se move sem pernas, e por meio de um ritmo ininterrupto de seu corpo, então trata-se da incorporação, por assim dizer, de uma oscilação sutil. Além disso, a sua essência é tanto inflamável como fria, deliberada e elemental. A semelhança em questão é tão real que a maioria, senão todas as culturas tradicionais, consideram as serpentes de portadores ocasionais de poderes psíquicos sutis. Basta pensar nas serpentes como guardiãs dos túmulos na antiguidade ocidental e extremo oriental. Na Iaya-yoga, um método espiritual pertencente ao domínio do tantrismo, cujo nome significa união (yoga) alcançada através da dissolução (laya), o despertar do Shakti dentro do microcosmo humano é comparado com o despertar da serpente (Kundalinî), que até então permanecia 67 Ver René Guenón, O simbolismo da cruz. 68 Ver René Guenón, op. cit. 119 enrolada no centro sutil conhecido como mûâdhâra. De acordo com determinada correspondência entre as ordens sutil e corporal, esse centro é localizado na extremidade interior da coluna vertebral. A Kundalinî é despertada por determinados exercícios em concentração espiritual, por meio dos quais ele gradualmente ascende, em espiral, o eixo espiritual do homem, trazendo à cena mesmo os maiores e mais altos estados de consciência, até que finalmente restaura a plenitude da consciência do Espírito supra-formal69. Nessa representação, que não deve ser considerada literalmente, mas como uma simbólica – embora lógica e consequente – descrição do processo interior, pode-se novamente reconhecer a imagem da natureza ou Shakti girando ao redor do eixo do mundo. Que os poderes em desenvolvimento podem vir “de baixo”, está em sintonia com o fato de que a potência (potentia) – como a materia prima – em sua passividade representa a “base” do cosmos, e não o ápice. Na tradição hermética, a natureza universal, em sua condição latente, é representada da mesma forma como um réptil enrolado. Esse é o dragão Uroborus que, ondulado dentro de um círculo, morde sua própria calda. A natureza, na sua fase dinâmica, por outro lado, é retratada por meio das duas serpentes ou dragões, que na forma do bem conhecido modelo do Báculo de Hermes, ou caduceus, gira a si mesma ao redor de um eixo – aquele do mundo ou do homem – em direções opostas. Essa duplicação da serpente primordial tem também uma contrapartida em layayoga, já que Kundalinî é também dividida em duas forças sutis, Idâ e Pingalâ, que em direções opostas giram a si mesmas ao redor de Merudanda, o prolongamento microcósmico do eixo do mundo. No começo do trabalho espiritual o Shakti está presente nesta forma dividida, e apenas depois que as duas forças são ativadas alternativamente por meio de uma forma de concentração baseada na respiração, Kundalinî desperta de seu sono e começa a ascender. Tão logo ela alcança o limiar da consciência, as duas forças opostas se dissolvem completamente nela. Na alquimia as duas forças representadas como serpentes ou dragões são o enxofre ou o mercúrio. Seu protótipo macrocósmico são as duas fases – de aumento e diminuição – do 69 Veja Arthur Avalon, O Poder da Serpente, Madras, 1931. 120 curso anual do Sol, separado um do outro pelos solstícios de inverno e de verão70. A conexão entre o simbolismo tântrico e alquímico é óbvio: das duas forças Pingalâ e Idâ, que giram a si mesmas ao redor de Merudanda, a primeira é descrita como sendo quente e seca, caracterizada pela cor vermelha, e, como o enxofre alquímico, comparada com o Sol. A segunda força, Idâ, é considerada como sendo fria e úmida, e na sua palidez prateada, é associada com a lua. Os sete “shakras” ou centros de poder do corpo sutil do homem, com os dois fluxos de poder “Ida” e “Pingala”, que gira ao redor do eixo central. Representação tântrica extraída de O Poder da Serpente, de Arthur Avalon. A folha desenhada na cabeça representa o shakra superior: “o lotus de mil pétalas”. Em seu 70 Ver Julius Schabe, op. cit. 121 livro Sobre as figuras hieroglíficas, Nicolas Flameu escreveu a respeito da relação mútua do enxofre e do mercúrio: “... aí estão as duas serpentes que são fixadas ao redor do caduceus, ou Báculo de Mercúrio, e por meio do qual o mercúrio domina seu grande poder e transforma a si mesmo de acordo com seu desígnio. Quem quer que destrua um, diz Haly71, também destrói o outro, porque cada um deles somente pode ser destruído juntamente com o seu irmão (por meio da destruição deles, ambos passam para um novo estado)... Após ambos terem sido colocados no “vaso” do túmulo (vale dizer, o vaso interior, “hermeticamente fechado”), eles passam a ferir-se um ao outro, com selvageria, e em razão de seu magnífico veneno e fúria cruel, não se soltam – a menos que o frio possa detê-los – até que ambos, como resultado de seu veneno úmido e ferimentos mortais, são banhados em sangue (por tanto tempo quanto a natureza permanece “selvagem”, a oposição das duas forças é manifestada de modo destrutivo ou “venenoso”), então eles finalmente se destroem e submergem em seu próprio veneno, que, após sua destruição, irá transmutá-los em água viva e perpétua (na qual eles são reunidos em um nível superior), após eles haverem perdido, com sua queda e decomposição, suas formas primeiras e naturais, com o intuito de adquirir uma forma simples, nova, mais nobre, melhor...”72. Essa fábula complementa o mito hermético do Caduceu de Hermes. Hermes, ou Mercúrio, golpeou com este báculo, um par de serpentes que combatiam entre si. O golpe dominou as serpentes que, feridas, se enroscaram em torno da vara e lhes conferiu o poder teúrgico de “ligar” e “dissolver”. Isso significa a transmutação do caos em cosmos, do conflito em ordem, através do poder de um ato espiritual, que tanto separa quanto une. 71 Provavelmente o nome árabe ´Ali. 72 O amorfo, ou sem forma, é o oposto de ultraformal, ou supra-formal. Este último não carece de forma, ele a possui essencialmente, sem ser limitado por ela. Por essa razão, o supra-formal – quer dizer, o Espírito puro – apenas pode ser concebido por meio de uma forma perfeita. 122 O Báculo de Hermes, ou Caduceu, de um desenho de Hans Holbein, o Jovem. Na tradição judaica, como contrapartida ao Caduceu de Hermes, e ao símbolo hindu de Brahma-danda73, nós encontramos o Bastão de Moisés, que realmente se transformou em serpente. No misticismo islâmico o bastão de Moisés, que, “sob o comando de Deus”, se transformou em uma serpente e, ao ser “apreendido” por Moisés, retornou à forma de bastão, é comparado à alma passiva (nafs), que através da influência do Espírito Divino pode ser transformada em um poder prodigioso. Porque ele incorpora um poder espiritual, o Bastão de Moisés, transformado em serpente, pode vencer a serpente engendrada pelos feiticeiros egípcios, feita de poderes mágicos – e por isso mesmo psíquicos; porque o espírito prevalece sobre a alma e seu domínio74. Esta interpretação da história do bastão de Moisés, 73 Ver René Guenón, op. cit. 74 Veja minha tradução de Fusûs al-Hikam, capítulo sobre Moisés. 123 mencionada no Alcorão, lembra a distinção hindu entre vidyâmâyâ (Natureza Universal em seu aspecto “iluminador”) e avidyâ-mâyâ (Natureza Universal como poder de ilusão). Nessa distinção, entretanto, também se pode ver o senso profundo do provérbio hermético: “a natureza pode dominar a natureza”. Do ponto de vista alquímico, a transformação do Bastão de Moisés em serpente, e sua subsequente solidificação, corresponde exatamente ao solve et coagula do grande trabalho. Par de dragões, de um talismã árabe. Na arte cristão medieval há uma representação do Caduceu de Hermes que a fábula de Flamel traz vivamente à lembrança. A figura do par de serpentes, ou dragões, entrelaças e se mordendo mutuamente, também era comum na antiga arte irlandesa e anglo-saxã. Na escultura romanesca, isto ocorre com muita frequência e desempenha um papel tão marcante na decoração das construções sagradas 75, que se pode rapidamente concluir que se trata de um tipo de “assinatura” de determinada escola cristã hermética. Além disso, o mesmo tema está conectado com o símbolo do laço, cujo significado cosmológico está no fato de que quanto mais fortemente se puxa 75 De fato este tema pode ser encontrado em todas as igrejas romanescas. 124 o nó mais firmemente os seus dois componentes permanecem juntos. Isso ilustra, inter alia, a mútua neutralização das duas forças quando em estado de “caos”76. Par de dragões, do coro romanesco da Catedral da Basiléia. Forma romanesca do caduceu, na porta principal da Igreja de Saint Michael´s, em Pavia. Algumas vezes um dos dois répteis que representam o enxofre e o mercúrio é alado, enquanto o outro não tem asa. Ou no lugar dos dois répteis há um leão e um dragão em combate. A falta de asas refere-se sempre à natureza “firme” do enxofre, enquanto o animal alado, seja um dragão, um grifo ou uma águia, representa o mercúrio “volátil”77. O leão, que vence o dragão, corresponde ao enxofre, que “fixa” o mercúrio. O leão alado, ou um grifo leonino, podem representar a união das duas naturezas, e têm o mesmo significado que a imagem do andrógino masculino e feminino. 76 Isso explica o papel dos nós na magia. 77 Ver Senior Zadith, Turba Philosophorum. Bibl. des. phil. chim. 125 De um manuscrito alquímico de 1550, na Biblioteca da Universidade da Basiléia. Finalmente o dragão sozinho pode representar todas as fases do trabalho, contanto que ele seja provido de pés, barbatanas ou asas, ou está sem quaisquer membros. Dessa forma considera-se que ele pode viver tanto na água, no ar ou na terra e, como uma salamandra, até mesmo no fogo. O símbolo alquímico do dragão, assim, parece-se muito proximamente com aquele do dragão universal extremo oriental, que primeiro vive como um peixe na água, e então como uma criatura alada elevada aos céus. Isso também lembra o mito asteca de Quetzalcoatl, a serpente plumada, que sucessivamente se move debaixo da terra, sobre a terra, e no céu. Todas essas correspondências com imagens alquímicas de animais foram mencionadas com o intuito de mostrar como a sabedoria cosmológica dos mais diversos povos é refletida na alquimia, de um modo particular, e com limites específicos. 126 CAPÍTULO 10 ENXOFRE, MERCÚRIO E SAL É em virtude de sua natureza, e do papel que eles exercem no ofício dos metalurgistas, que as duas substâncias químicas normalmente chamadas de enxofre e mercúrio são tomadas como símbolo das duas forças criadoras primárias. Elas atuam nos metais, mas são em si mesmas “espíritos” voláteis. O mercúrio, em particular, pode ser sólido, líquido ou gasoso. Ele pertence aos “corpos”, aos metais e aos “espíritos”. O caráter “masculino” do enxofre pode ser visto na sua “inflamabilidade”, e também no fato de que ele pode fixar e dar cor ao mercúrio volátil. A combinação dos dois produz o Cinabre. A coloração, pelo enxofre, corresponde à atribuição de forma. O mercúrio ordinário possui um grande desejo de se ligar aos metais correspondentes. Com o mercúrio, os metalurgistas podem fazer ouro e prata líquidos. O amálgama de mercúrio tem sido usado desde os tempos antigos para dourar objetos metálicos. Após a aplicação do amálgama líquido o mercúrio pode ser eliminado pelo fogo, e o dourado permanece. O ouro pode também ser extraído de outros minerais através da limpeza destes com o mercúrio. O significado do solve et coagula alquímico também pode ser visto nesse exemplo artesanal, também como a função decisiva do fogo espiritual. De acordo com a mesma analogia, o mercúrio carrega em si mesmo a “semente do Sol”, assim como o mar primordial da materia prima, que os hindus chamam prakriti contém o ovo dourado do mundo – o hiranyagarbha do mito indiano. No plano da alma o mar primordial não é nada além do que a anima mundi. O mercúrio, que anima e dissolve o “metal” interior é, em um certo sentido, a rebentação desse mar primitivo, que como a mãe de todas as coisas permanece inalcançável. Por essa razão o mercúrio é também conhecido como “sangue materno” (menstruum), porque quando ele não flui “para fora” e perece, ele nutre a semente no útero alquímico ou “athanor”. 127 Cristo na forma da água-dupla do mercúrio emergindo da Santíssima Virgem (materia prima). De um manuscrito alquímico do século XVI. Biblioteca Vadiana, S. Gallen. Tendo em mente o fato de que o enxofre em certo sentido corresponde ao Espírito, e o mercúrio à alma, pode causar uma confusão o fato de que quase todos os alquimistas chamam o mercúrio um spiritus (“espírito”), enquanto alguns deles (por exemplo, Basilius Valentinus) comparam o enxofre à anima (“alma”). Isso contradiz o que vem sendo dito acima apenas aparentemente; porque na linguagem desses autores alma significa a alma imortal, assim sendo a “forma” essencial e imutável do homem, enquanto a expressão spiritus não significa o espírito transcendente ou o intellectus agens, mas o “espíito vital”, aquele poder sutil que une a alma individual com o corpo e com o universo corporal como um 128 todo. O espírito vital corresponde ao mercúrio porque ele está ligado apenas parcial e espontaneamente à esfera do ego, e assim representa a materia ainda em formação. A expressão árabe rûh também pode ter o mesmo significado. Ela é usada neste sentido pelos cosmologistas, independentemente do fato de que a mesma palavra também designa o espírito metafísico. A razão para esse duplo significado pode ser a de que spiritus como rûh e também (e também o ruah hebreu) lembra o movimento do ar na respiração (em árabe, “vendo” é rîh). Por um lado isso pode representar a respiração criativa do Espírito universal e, por outro lado, a mobilidade do “Espírito vital”, e sua conexão com a “atmosfera” sutil deste mundo. O “Espírito vital” se prolonga por todo o “espaço” cósmico. Ele é assimilado pelos seres como o ar o é na respiração. Trata-se da constante nutrição do “corpo” sutil de seus poderes vitais. Os hindus chamam esse poder de prâna. Determinadas tribos indígenas norte-americanas chamam de orenda78. Ela pode ser assentada por meio de uma arte espiritual. Para os Shaivas hindus trata-se do Shakti. Se se procura determinar com base em descrições alquímicas o que significa exatamente mercúrio, se ele pertence ao reino do corpo ou da alma ou se é meramente um suporte subjetivo ou mesmo cósmico, pode-se facilmente perder o fio da meada, se não se sabe que está na essência da alquimia – e também de outros métodos similares – sempre aproximar o domínio da alma dos seus pontos de referência corporais, e o Universal, de seus traços existenciais concretos. No nível corporal, o mercúrio está presente no sangue e no sêmen. Em um nível um pouco mais elevado – intermediário entre o corpo e a alma – ele está no coração e na respiração. Trata-se então do portador da “substância” da alma. Seu ritmo é a imagem da “solidificação” dessa substância no campo da força da consciência individual, e de sua eventual dissolução no Todo. A substância da alma, por sua vez, é a portadora da realidade espiritual. 78 Ver Paul Coze, L´Oiseau-Tonnere, Paris-Geneva, 1938. De acordo com Averróis, que se baseia em Galeno, o espírito vital é uma substância pura presente no espaço estelar, que é assimilada por meio de um processo similar à resporação e é transformada em vida no coração. 129 De acordo com o mestre chinês Ko Ch ´ang-Kêng , que incorporou a alquimia ao Budismo Dhyâna (Zen), a ação do mercúrio pode ser concebida de três modos: de acordo com a primeira concepção, o mercúrio é o coração, que se faz líquido pela meditação (dhyâna) e ígneo pelas faíscas do Espírito, enquanto o chumbo, que ele pode transmutar, corresponde ao corpo. De acordo com a segunda concepção, o mercúrio é a alma, e o chumbo e a respiração; e segundo a terceira, o mercúrio é o sangue e o chumbo é o sêmen. Em cada caso o mercúrio tem o papel de elemento dissolvente e vivificador. Em última análise, é a substância que “flui” em todas as formas psíquicas e mentais. Os alquimistas hindus chamam o mercúrio de “sêmen de Shiva”. Shiva é deus como autor de toda transmutação80. Talvez o leitor possa perguntar como se pode, de algum modo, provar o que, na alquimia interior, é realidade e o que é meta imaginação. O critério para isso está na realização alquímica mesma, que em última análise não traz nenhum conteúdo novo para a consciência humana, mas antes revela sua real substância, que precede toda a experiência. Em busca de uma melhor expressão pode-se chamar isso de “a aquisição da consciência do ser”. O ser não é nem “objetivo”, nem “subjetivo”, mas inclui ambos ou está acima de ambos. A consciência do ser é também necessariamente um conhecimento da unidade, já que unum et esse convertuntur. Em primeira instância o mercúrio é apenas a manifestação da materia prima. Em última análise, entretanto, é a materia prima mesma. No livro de Fra Marcantonio A luz que procede da escuridão está dito que “Eu conheço bem que o seu mercúrio secreto não é outro senão o espírito vivo, onipresente e inato que, na forma de um nevoeiro etéreo (uma influência sutil) continuamente desce do céu à terra (e aos homens da terra) com o fim de impregnar os corpos porosos da terra. Eu sei que ele é subsequentemente nascido no meio do enxofre impuro (as substâncias corporais), e então, tendo tido uma natureza volátil, ele pode adquirir uma firme (i. e. Imutável), e ao fazer isso ele assume a forma da umidade 79 79 Ver Micea Éliade, Forgerons et alchimistes, capítulo sobre a alquimia chinesa. 80 Ver Mircea Éliade, op. cit., capítulo sobre a alquimia indiana. 130 primária (humiditas radicalis)... “81. O enxofre tem aparentemente dois aspectos contraditórios: como causa formativa, ele efetua, em primeiro lugar, a coagulação da “substância” ou “corpo” que será transmutado, e assim também a sua secura e dureza. Ele então aparece como um impedimento à purificação, e apenas quando a “substância” tenha sido complemente dissolvida de sua coagulação, o enxofre revela-se como a causa criativa da forma nova e “nobre”. A dissolução é patrocinada pelo mercúrio. Assim, em primeira instância, esse último e o enxofre trabalham com propósitos contrários, arrebatando-lhe sua “substância” com o fim, subsequentemente, de oferecer “a si mesmo” a “ele” como uma substância nova, ilimitada e mais receptiva. Do ponto de vista psicológico isso é o mesmo que ocorre quando a atração da natureza feminina dissolve a natureza masculina do seu torpor e ao mesmo tempo suscita, como resultado dessa tensão entre os dois polos, seu verdadeiro poder masculino e ativo. Há um método tântrico que opera esse processo alquímico pelo incremento da atração natural entre o homem e a mulher ao mais alto grau, e então promove uma reavaliação espiritual, similar ao Fedeli d´Amore (ao qual Dante pertenceu), que também conheceu e praticou tal método82. No casamento químico de Christian Rosenkreutz, de Johann Valentin Andrae, a seguinte alegoria é relatada: um belo unicórnio, branco como a neve, adornado por um colar dourado, aproxima-se de uma fonte e se ajoelha, como se desejasse prestar honras ao leão que lá estava. Esse leão, que em primeiro lugar, em razão de sua imobilidade, parece ser de pedra ou metal, imediatamente agarra uma brilhante espada que ele mantinha sob suas patas, e a quebra em duas. Ambas as partes caem dentro da fonte. Então ele solta um longo rugido, até que uma pomba branca, com um ramo de oliveira, começa a voar em sua direção. A pomba dá-lhe o ramo de oliveira. O leão devora-o e permanece em silêncio. O unicórnio retorna feliz e saltitante ao seu lugar. O unicórnio branco, um animal lunar, é o mercúrio em seu estado puro. O leão é o enxofre que, em primeiro lugar, como forma essencial do corpo, parece tão rígido 81 Bibl. des. Phil. Chim. 82 Ver Julius Évola, Metafísica do Sexo. 131 como uma estátua. Ele é despertado pela reverência do mercúrio e começa a rugir. A sua voz é o seu poder criativo. De acordo com os fisiólogos, o leão traz seus filhos natimortos à vida por meio da voz. Ele quebra a espada da razão e os fragmentos dela caem na fonte, onde eles são dissolvidos. O leão apenas se silencia novamente depois que a pomba do Espírito Santo lhe deu comer o ramo de oliveiras da Sabedoria Divina. Figura 7. O casamento do enxofre e do mercúrio no vaso hermético. Do manuscrito Egerton 845, no Museu Britânico. Em certo sentido, o enxofre “rígido” é o entendimento teorético. Ele contém o ouro do espírito em forma fértil. Ele deve primeiro ser dissolvido em mercúrio antes de poder se transformar em um “fermento” vivo, que pode transmutar outros metais. Vale dizer, ele deve libertar-se de suas limitações conceituais, e se tornar-se completamente “ativo”. 132 133 Figura 8a. A luta dos dois poderes primordiais: o poder masculino tem o sol como cabeça, e está montado em um leão de enxofre; o feminino tem a lua como cabeça e está montado em um grifo de mercúrio. Os ornamentos nos escudos, entretanto, estão invertidos: no escudo do poder solar está desenha a lua; e naquele do poder lunar, o sol. De um manuscrito alquímico Ph. 172 da coleção gráfica da biblioteca central de Zurique. Figura 8b. Representação do trabalho alquímico: em primeiro lugar, o material bruto é submetido no tubo como uma massa, e então “servido” no vaso hermético. O dragão, que está devorando sua própria cauda, representa o poder ainda não redimido da natureza; a água é o “espírito” em fase de libertação; na sua cabeça está sentado o corvo da mortificação. Do mesmo manuscrito. O poder dissolvente e desintegrante do mercúrio tem um aspecto terrível. Ele é o “dragão venenoso”, 134 que devota tudo; é água que faz estremecer e que traz o pressentimento da morte. Artephius escreveu: “todo segredo está em nosso conhecimento a respeito de como extrair o mercúrio não-inflamável do corpo da magnésia... vale dizer, deve-se extrair uma água viva e não e incombustível e então coagulá-la com o corpo perfeito do sol, que se dilui nesta água em uma substância branca, cremosa, até que tudo se transforma em branco. Mas antes, contudo, o sol irá perder o seu esplendor, será extinto e se tornará negro, como resultado da putrefação e dissolução (resolutio) que ele sofre nessa água...83 Por outro lado, entretanto, o mercúrio é a “água da vida” (aqua vitae) e a fonte na qual o sol e a lua, o espírito e a alma, devem-se banhar para serem rejuvenescidos. Tudo isso também pode ser dito a respeito da materia prima, já que o mercúrio é a sua manifestação psíquica mais direta e todos as características aplicáveis ao primeiro também podem ser transpostas para o último. Synesius escreveu: “...coloque de lado o que é misturado e tome o que é simples, porque o último é a quintessência do primeiro. Lembre-se de que nós possuímos dois corpos verdadeiramente perfeitos (ouro e prata, espírito e alma, coração e mente), que estão ambos preenchidos com mercúrio. Tire deles o nosso mercúrio, e daí você fará o remédio chamado quintessência, porque ele possui um poder duradouro e sempre vitorioso. Ele é uma luz viva que ilumina toda alma que chegou a contemplá-lo. Ele é o nó e o laço de todos os elementos que nele estão contidos, assim como ele é também o espírito que nutre e anima todas as coisas, e através do qual a natureza age no cosmos. Ele é o poder, o começo, o meio e o fim do trabalho, e para dizer-lhe tudo em poucas palavras, meu filho, saiba que a quintessência e a coisa escondida que é a nossa pedra não é nada além do que nossa alma viscosa (porque aderente a todas as coisas), celestial e gloriosa, que através de nosso magistério nós extraímos de sua mina (o corpo, ou o ser humano), que sozinho a produz. Não está em nosso poder produzir essa água por meio de qualquer arte, como a natureza sozinha pode gerar. Essa água é também o vinagre verdadeiramente forte, que faz um espírito puro a partir do corpo de ouro. Eu lhe aconselho, meu filho, a desprezar todas as outras coisas, porque elas são todas vãs, 83 Bibli. des phil. chim. 135 exceto essa água que queima, alveja, dissolve e congela. Ela sozinha tem o poder de decompor e de germinar....”84. Como todo trabalho alquímico tem o mercúrio como seu meio e ponto de partida, o enxofre e o mercúrio são algumas vezes chamados o mercúrio masculinofeminino “duplo”. Quando a natureza do enxofre alcança seu desenvolvimento no mercúrio, ela é representada pelo símbolo S. O crescente lunar é aqui recolocado pelos chifres do carneiro “incandescente” (Aries) do Zodíaco. Trata-se da “água incandescente” e do “fogo não-inflamável”. Como já foi dito, o “ouro vivo” é obtido através da perfeita união do enxofre e do mercúrio. De outro ponto de vista, porém, cada metal tem três componentes, a saber, enxofre, mercúrio e sal. “Onde quer que haja metal”, diz Basilius Valentinus, “há enxofre, mercúrio e sal... espírito, alma e corpo”. Assim esses três poderes ou princípios juntos constituem a natureza do metal – ou do homem. O sal é, em certo sentido, o elemento estático, e assim também neutro, do ternário. Transposto ao homem, o sal não é simplesmente o corpo na sua forma externa e visível; é a sua forma psíquica, e como tal tem um duplo aspecto: por um lado, o da limitação, e por outro, o de um símbolo. O enxofre produz a combustão, o mercúrio a evaporação. O sal é a cinza que sobra e serve para firmar o espírito “volátil”. Não apenas na alquimia, mas também em diversos métodos contemplativos do Oriente e do Ocidente, a consciência corporal purificada faz as vezes de um “fixador” ou suporte para um estado mais elevado do espírito, em cuja respiração e originalidade ilude todas as limitações conceituais. Que o corpo, liberto das febres da paixão, possa servir como suporte a tal estado contemplativo, justifica-se tanto o seu caráter relativamente estático, que se destaca como um pilar sólido na corrente das aparências psíquicas que flui constantemente, e também no fato de que, em contraste com o conteúdo puramente subjetivo da consciência, ele representa a, por assim dizer, interseção objetiva entre o microcosmo humano e o macrocosmo. Em um certo sentido, o corpo é o mais claramente 84 Bibli. des phil. chim. 136 circunscrito, externo e simples de todos os reflexos do cosmo. O mais baixo corresponde ao mais alto, diz a regra enunciada na “Tábua da Esmeralda”. 137 CAPÍTULO 11 DO “CASAMENTO QUÍMICO” O casamento do enxofre eu do mercúrio, do sol e da lua, do rei e da rainha, é o símbolo central da alquimia. Somente com base na interpretação desse símbolo é que se pode fazer uma distinção entre, de um lado, alquimia e misticismo, e do outro entre alquimia e psicologia. De um modo geral, o ponto de partida do misticismo é aquele de que a alma se tornou separada de Deus e se voltou para o mundo; consequentemente, a alma deve ser reunificada com Deus. E isso se faz descobrindo nela mesma a Sua presença imediata e toda iluminada. A alquimia, por outro lado, é baseada na visão de que o homem, como resultado da perda do seu estado “adâmico” original, está dividido dentro de si mesmo. Ele recupera sua natureza integral apenas quando os dois poderes, cuja discordância tem causado sua impotência, são de novo reconciliados um com o outro. Essa dualidade interna, e agora “congênita”, na natureza humana, é, além disso, uma consequência de sua queda de Deus, assim como Adão e Eva apenas se tornaram conscientes de sua posição após a queda e foram expulsos para o curso da geração e da morte. Inversamente, a recuperação da natureza integral do homem (que a alquimia expressa pelo símbolo do andrógino masculinofeminino) é o pré-requisito – ou de outro ponto de vista, o fruto – da união com Deus. Se a distância – e o relacionamento – entre o homem e Deus é representado por uma linha vertical, então a distância entre o homem e a mulher, ou entre os dois poderes correspondentes da alma, é representado por uma linha horizontal – o que resulta em uma figura como um T invertido. No ponto em que as duas forças opostas estão balanceadas, quer dizer, no centro da linha horizontal, esta é tocada pelo eixo vertical, descendendo de Deus, ou subindo a Ele. Isso corresponde ao espírito supra-formal, que une a alma com Deus. 138 O andrógino hermético – rei e rainha ao mesmo tempo – sobre o dragão da natureza, entre a “árvore do sol” e a “árvore da lua”. O andrógino tem asas e carrega em sua mão direita uma cobra enrolada; e na sua mão esquerda uma traça com três cobras. A sua metade masculina está vestida de vermelho; a feminina, de branco. Do manuscrito de Michael Cochem (ca. 1530) na Biblioteca Vadiana, St. Gallen. 139 Embora de acordo com esta imagem as duas forças ou polos da natureza humana (o enxofre e o mercúrio do trabalho alquímico interno) estejam no mesmo nível, há contudo uma diferença de categoria, similar àquela que há nas mãos direita e esquerda, daí que se pode dizer que o polo masculino está colocado sobre o feminino. E certamente o enxofre, como polo masculino, desempenha um papel em relação ao mercúrio, o polo feminino, que é similar àquele do espírito em sua ação na alma toda. Como todo conhecimento ativo pertence ao lado masculino da alma, e todo o passivo, ao lado feminino, a consciência, dominada pelo pensamento (e portanto claramente delimitada), pode em certo sentido ser atribuída ao polo masculino, enquanto todos os poderes involuntários e capacidades conectadas com a vida como tal aparece como uma expressão do polo feminino. Isso pode parecer assemelhar-se à distinção feita na psicologia moderna entre o consciente e o inconsciente. Há, portanto, uma tentação de interpretar o “casamento químico” (expressão de Valentim Andreae) simplesmente como uma “integração” dos poderes inconscientes da alma na consciência egóica, como é afirmado pela então chamada “psicologia profunda”. Para estabelecer quão distante essa interpretação está da verdade, e em que extensão ela deve ser corrigida, é necessário recordar o relacionamento tripartite que foi representado acima por um T invertido. A verdadeira união dos dois poderes da alma apenas pode ocorrer naquele ponto onde o espírito supra-formal, o raio divino, toca seu nível comum. Isso significa, contudo, que o que o homem considera como o seu próprio “eu” pode nunca se tornar o eixo de uma integração real, já que de acordo com as tradições espirituais, o “eu” que a psicologia moderna considera como o núcleo da “personalidade” é precisamente o obstáculo que impede a consciência de ser inundada pela luz do puro Espírito ou, em outras palavras, que oculta o Espírito de nossa consciência. Assim o “casamento químico” não é uma “individuação”, de qualquer maneira não no sentido de um processo interior por 140 meio do qual o ego imprime em uma onda de instintos coletivos a sua fórmula particular – uma forma necessariamente limitada, tanto temporal como qualitativamente. Pode muito bem ser que o influxo de influências inconscientes passadas possam ampliar a consciência egóica, porque ela se encontra ao alcance de uma sublimação ordinária no sentido psicológico da palavra. Apesar disso ela tem limitações muito bem definidas, que são de fato aquelas da consciência egóica ordinária. O casamento do rei e da rainha, sol e da lua, sob a influência do mercúrio espiritual. Extraído de “Philosophers´ Rosegarden 141 ´, de Arnaldo de Vilanova, manuscrito que se conserva na Biblioteca Vadiana, St. Gallen. A consciência humana pode apenas atingir domínio sobre o tempestuoso mar do inconsciente com o despertar de um poder criativo dentro de si, que deriva de uma esfera superior àquela da consciência egóica. Essa esfera superior é também inconsciente, mas apenas provisoriamente e do ponto de vista da consciência ordinária, já que em si mesma é pura luz indivisa. Essa luz é inacessível à observação psicológica, tanto em sua essência quanto em todas as suas emanações, já que a psicologia, assim como todas as ciências empíricas, é sujeita à razão, que atua sobre si mesma, e a razão não pode penetrar além de si mesma à sua fonte de iluminação mais que um espelho pode jogar luz no sol. É por isso muito vão o desejo de descrever psicologicamente a essência real da alquimia, ou o segredo do “casamento químico”. Quanto mais nos esforçamos por eliminar os símbolos e por substituí-los por concepções científicas de uma espécie ou de outra, tanto mais rápido aquela presença espiritual desaparece – aquela que é o verdadeiro coração da questão, e que apenas pode ser transmitida por símbolos, cuja natureza é ser conceitualmente inexaurível. Em um sentido, portanto, a consciência egóica está entre dois domínios inconscientes, um abaixo, que na sua natureza latente e ainda não-formada, nunca pode se tornar completamente consciente, e o outro acima, que apenas aparece como inconsciente visto “desde de baixo”. À medida em que a luz supra-conceitual atua no domínio da alma, o poder “natural” da consciência “inferior” é tomado e assimilado. O processo alquímico tem, assim, um aspecto duplo e ambíguo, já que o desenvolvimento dos dois poderes fundamentais da alma (enxofre masculino e mercúrio feminino), trazido à tona pela concentração espiritual, é capaz de refletir o Espírito nãoconceitual, à medida em que ele inclui os domínios involuntários e nesse sentido naturais. A razão para isso é que a Natureza, em seu aspecto não-conceitual e mais ou menos inconsciente ou involuntário, é a imagem inversa do espírito criativo, de acordo com as palavras da Tábua da Esmeralda, segundo as quais o que está acima é como o que está abaixo e vice-versa. Assim, os 142 poderes fundamentais masculino e feminino estão ancorados na natureza inconsciente e instintiva do homem. Os dois poderes experimentam o seu completo desenvolvimento no plano da alma, mas realizam a sua completude apenas no espírito, já que apenas aqui a receptividade feminina alcança a sua maior amplitude, e a sua mais pura pureza, e é completamente unificada ao Ato masculino vencedor. Por outro lado, pode-se dizer que a natureza involuntária, enraizada no inconsciente, apenas alcança sua unidade viva à medida em que o Espírito supra-conceitual atua nela. O raio do Espírito atua na natureza original como uma palavra mágica, e isso não se aplica meramente na natureza interna, a natureza da alma (desligada da atmosfera psíquica externa, nem tanto pelo corpo como pela consciência conceitual egóica): efetivamente a presença direta do Espírito no homem atua sobre todo o ambiente sutil ou psíquico, e através dele penetra em maior ou menor extensão também no ambiente corporal. Isso explica, entre outras coisas, certos milagres que ocorrem nas proximidades dos santos. Retornemos ao nosso símbolo original do T invertido e o amplifiquemos para uma cruz. A parte superior do eixo vertical obviamente indica a origem da luz espiritual. A parte inferior desce até a escuridão da natureza inconsciente. Os dois traços horizontais “medem” o desenvolvimento dos dois poderes polares da alma, que a alquimia chama de enxofre e mercúrio. Pode-se dizer agora que através da reconciliação ou casamento dessas duas forças inicialmente hostis, a oposição entre “acima” e “abaixo” também desaparece, à medida em que de fato a escuridão é dissipada pela luz. Se as duas forças são representadas por duas serpentes, girando-se se a si mesmas eixo vertical acima, até que no nível da linha horizontal elas finalmente se encontram e se juntam no centro, subsequentemente sendo transmutadas em uma única serpente erguida na parte superior da cruz, então temos uma imagem de como a natureza “obscura” é transmutada na natureza “luminosa”. O casamento das forças masculina e feminina finalmente se mistura ao casamento do espírito e da alma, e assim como o espírito é o “divino no humano” – como 143 está escrito no Corpus Hermeticum, esta última união está relacionada também com o casamento místico. Assim, um estado se funde em outro. A realização da completude de alma conduz ao abandono da alma ao espírito, e assim o símbolo alquímico tem uma multiplicidade de interpretações. O sol e a lua podem representar os dois poderes na alma (enxofre e mercúrio); ao mesmo tempo eles são símbolos do Espírito e da alma. Intimamente ligado ao simbolismo do casamento está o simbolismo da morte. De acordo com algumas representações do “casamento químico”, o rei e a rainha, no casamento, são mortos e enterrados juntos, apenas para ressuscitarem rejuvenescidos. Que essa conexão entre o casamento e a morte está na natureza das coisas é indicado pelo fato de que, de acordo com a experiência antiga, um casamento no sonho significa uma morte, e uma morte em um sonho significa um casamento. Essa correspondência é explicada pelo fato de que qualquer nova união pressupõe a extinção de um estado anterior diferenciado. No casamento do homem e da mulher cada um deles abre mão de parte da sua independência, ao passo que, por outro lado, a morte (que em uma primeira vista é uma separação) é seguida pela união do corpo com a terra e da alma com sua essência original. No “casamento químico”, o mercúrio traz em si mesmo enxofre, e o enxofre, mercúrio. Ambas as forças morrem, como adversárias e amantes. Então a lua mutável e reflexiva alma une-se ao sol imutável do espírito de modo que ela, ao mesmo tempo, é extinta e iluminada. 144 CAPÍTULO 12 A ALQUMIA DA ORAÇÃO Tanto quanto a alquimia contém uma ciência da natureza – essa última compreendendo tanto as manifestações grosseiras ou corporais como as sutis ou psíquicas –, suas leis e concepções podem ser livremente transpostas ao domínio das outras ciências tradicionais, por exemplo a medicina humoral (que considera o organismo humano como um todo indivisível) e também à correspondente ciência da alma e às terapias a elas relacionadas. Mais importante para nós, na presente conexão, é a transposição de perspectivas alquímicas ao misticismo, já que ele oferece um paralelo ao que foi dito acima a respeito do “casamento químico”. Aqui será feita apenas uma breve menção a essa transposição particular, por meio de indicação e amplificação, sem um esforço de procurar todas as suas ramificações. No quadro do misticismo, a alquimia é, acima de tudo, a alquimia da oração. Pela palavra oração deve ser entendido nem tanto uma petição individual, mas sim a articulação interna – e algumas vezes também externa – de uma fórmula ou nome dirigida a Deus e evocando a Deus, assim especialmente as chamadas “preces jaculatórias”. A excelência dessa espécie de oração está no fato de que a palavra ou frase repetida, como um meio de concentração não foi escolhida por um ser humano ou outro, mas sim deriva completamente da revelação ou contém um nome divino (se de fato ela não consiste exclusivamente deste nome). Assim a palavra pronunciada pela pessoa orante é, graças a sua origem divina, um símbolo da palavra eterna e, em última análise, em vista de seu conteúdo e de poder de benção é Una com esse último: “O fundamento deste mistério (ou seja, a invocação de um nome divino) é, de um lado, que “Deus e seu nome são um” (Ramakrishna), e de outro que Deus mesmo pronuncia seu nome nele mesmo, portanto na eternidade e fora de toda a criação. Portanto, Sua incomparável e incriada palavra é o protótipo da prece jaculatória e até mesmo, em um sentido menos direto, de toda prece” (Frithjof Schuon, 145 Stations of Wisdom85). Assim, fundamentalmente, o nome divino, ou a fórmula sagrada da oração jaculatóia, estão relacionados à alma passiva, assim como a palavra divina, o fiat luz, à natureza passiva ou materia prima do mundo. Isso nos traz de volta à correspondência (mencionada por Muhyi 'd-Dîn ibn 'Arabi) que existe entre de um lado o comando divino (al-amr) e a natureza (tabî'ah) e por outro lado enxofre e mercúrio, os dois poderes fundamentais que, na alma, são (respectivamente) relativamente ativo e relativamente passivo. No seu sentido imediato, e do ponto de vista do “método”, enxofre é a vontade, que se liga com o conteúdo da palavra pronunciada na oração, e age de um modo formativo sobre o mercúrio, ou a alma receptiva. Em última análise, porém, o enxofre é a luz espiritual penetrante contida nas palavras sagradas, como o fogo na pedra, e cuja aparência efetua a real transmutação da alma. Essa transmutação passa pelas mesmas fases determinadas pelo trabalho alquímico, pois a alma inicialmente se congela ao se afastar do mundo exterior, então se dissolve como resultado do calor interno, e finalmente, tendo sido uma corrente mutável e volátil de impressões, transforma-se em um cristal imóvel preenchido de luz.– Essa é de fato a expressão mais simples a qual esse processo interior pode ser reduzido. Se se fosse descrevê-lo em grandes detalhes seria necessário repetir quase tudo o que foi dito neste livro sobre o trabalho alquímico e relacionar isso com a ação íntima da oração, e dentro do quadro da correspondente contemplação espiritual86. Bastará aqui mencionar que a alquimia da oração é tratada de um modo particularmente completo dos escritos dos místicos islâmicos87. Aqui eles estão em estreita relação ao método de dhikr, uma expressão arábica que pode ser traduzida por “recordação”, “reminiscência” e “alusão”, e também como “prece jaculatória”. Recordação tem aqui um sentido da anamnesis platônica: “A razão suficiente para a 85 Publicado por John Murray, Londres, 1961. Capítulo intitulado “Modes of prayer”. 86 Ver Frithjof Schuon, obra citada, capítulo “Stations of Wisdom”. 87 Ver minha Introdução à doutrina Sufi, p. 101Ff, publicada por Ashraf Lahore, 1959. 146 evocação do nome (divino) está em que isto é uma “recordação” de Deus; e isto, em última análise, é consciência do Absoluto. O nome atualiza esta consciência e, no fim, o perpetua na alma e o fixa no coração, e então ele penetra todo o ser, e ao mesmo tempo o transmuta e o absorve...” (Frithjof Schuon, obra citada). A lei básica desse tipo de alquimia interior pode ser encontrada na fórmula cristã da Ave Maria, a “saudação angélica”. Maria corresponde tanto à materia prima quanto à alma em estado de pura receptividade, enquanto que as palavras do anjo são uma prolongação do fiat lux divino. O “fruto do ventre da Virgem” corresponde ao elixir miraculoso, à pedra filosofal, que é a meta do trabalho interno. De acordo com interpretações medievais, o anjo cumprimenta a virgem mutans Evae nomem: Ave é, de fato, o inverso de Eva. Isso indica a transmutação da alma caótica em um espelho puro da palavra divina. À objeção de que o anjo não falou latim, de que Eva em hebreu é Khawwa pode-se responder que no domínio do sagrado não há acaso, e inclusive aqueles fatos que parecem mera coincidência são, na realidade, préordenados. Isso explica por que na Idade Média os menores detalhes das Escrituras, mesmo os nomes, eram estudados e variadamente interpretados de acordo com o seu simbolismo – e com uma inspiração que rejeita qualquer mancha de artificialidade. 147 CAPÍTULO 13 O ATHANOR “Athanor”, do árabe at-tannûr (“forno”), é a palavra usada pelos alquimistas para designar o forno no qual o elixir é preparado. Nos manuscritos alquímicos ele é usualmente representado na forma de uma pequena torre encimada por uma abóboda. Ele contém um receptáculo de vidro (usualmente em forma de ovo), que permanece em uma capa de areia ou uma cova cinza situada imediatamente acima do fogo. Tudo isso tem tanto um significado literal como simbólico, pois embora seja certo de que aqueles fornos desse formato foram de fato usados para todo tipo de operações químicas e metalúrgicas, o verdadeiro athanor – até onde o “grande trabalho” se interessou – não foi outro senão o corpo humano, e assim também uma imagem simplificada do cosmos. Que o forno dos alquimistas seja uma reminiscência do corpo humano já foi notado por outros escritores modernos que escreveram sobre a alquimia88. É uma ilusão, porém, tentar estabelecer essa semelhança sobre uma base anatômica, pois do ponto de vista “metódico” da alquimia, o “corpo” não significa o corpo visível e tangível, mas uma série de poderes da alma que tem o corpo como seu suporte, e que são acessíveis via consciência corporal. Quando se diz que o amor habita o coração, assume-se uma relação entre a alma e o corpo similar àquele que, de uma maneira muito mais gradualmente sutil, está na base do símbolo alquímico do athanor. Nele o tríplice envoltório (consistindo em um forno terrestre, cova de cinzas ou recipiente de vidro) refere a outros tantos envoltórios ou “estratos” da consciência corporal ou vital. O elemento mais importante no forno é o fogo. Os alquimistas salientam que o calor que transmuta a materia contido nos recipientes deve ser tríplice, a saber, o calor aberto do fogo, o calor uniformemente distribuído da cova de cinzas ou de areia (em cuja vala o recipiente de vidro está como um ovo em um ninho), e finalmente o calor latente que é 88 Ver H. K. Iranchär, Enthüllung der Geheimnisse der wahren Alchemie, Zurich. 148 atualizado na substância mesma, um calor que depois disso se torna ativo por seu próprio direito. (Esse último é o que hoje pode ser chamado – em um nível puramente físico – o calor da reação química.) Athanor, do “Mutus Liber”. O fogo corresponde claramente ao poder gerativo que é primeiro despertado e então domado para servir à contemplação interior. A partir disso pode-se imediatamente entender por que os alquimistas sempre se acautelaram contra um fogo violento e instável. Uma chama violenta pode perfeitamente consumir as “flores de ouro”. O calor indireto da cova de cinzas, que pode ser “moderado, envolvente e penetrante” – significa a concentração da alma, que é indiretamente trazida e mantida pelo fogo “aberto”. A cinza é matéria viva queimada, que não pode mais inflamar-se – vale dizer que não é mais alcancável pelas paixões. Algumas vezes se diz que as cinzas devem ser de madeira de carvalho. O carvalho é o símbolo do homem, e especialmente do corpo humano. Finalmente o calor que se desenvolve na matéria enclausurada, e a qual, de acordo com os alquimistas, já está presente em todos os corpos e substâncias, e apenas deve ser despertada, é um símbolo da força vital mais interior. 149 Athanor, o livro de Basilius Valentinus: “A respeito da Grande Pedra dos antigos...”, Leipzig M. DC. J ii. Os mestres alquimistas também falam de três fogos: um artificial, um natural e um “anti-natural”. Isso corresponde à distinção entre a contemplação metódica, a “vibração” da alma que é posta em movimento pelo primeiro e à intervenção do Espírito espontaneamente ocorrida, que é também descrita como um “enxofre incombustível”, e que é um modo de graça. O fogo é revigorado tanto por uma corrente de ar que entra através dos buracos de oxigenação do forno como pelo uso dos foles. Isso é uma indicação de que na concentração espiritual, como praticada pelos alquimistas, a 150 regulação da respiração desempenha um papel, assim como na yoga. O fato de que o vaso hermético ou “ovo” é feito de vidro ou de cristal, e é assim transparente, indica sua conexão com a alma. Ele não é mais que consciência defletida do mundo exterior, que veio para dentro, constituindo, por assim dizer, uma esfera isolada. Durante a “ebulição”, ele deve permanecer “hermeticamente fechado”. Os poderes que são desenvolvidos nele não devem vazar, se o trabalho alcançou seu êxito. Dependendo do processo no qual se pretende usá-lo, o vaso hermético pode ter diversas formas. Pode ser estrangulado no meio, como uma abóbora. Ele pode ter uma ou mais protuberâncias bulbosas. Ele pode consistir em uma ilha de filtração, ou para o método “seco” de um cadinho aberto. Cada uma dessas formas corresponde tanto a um uso artesanal como a um determinado aspecto do trabalho espiritual. A forma mais genérica do vaso, porém, é em forma de ovo. A posição do vaso no corpo humano corresponde ao plexo solar. Athanor, do Livro da Santíssima Trindade Alambique com balão O ovo hermético é o reflexo microcósmico do “ovo universal” (hiranyagarbha) da mitologia hindu, que 151 representa o “embrião” sutil do mundo visível. Como o ovo universal, o ovo hermético contém sinteticamente todos os elementos e propriedades a partir dos quais o mundo corporal se desenvolve. Essa é a razão por que o progresso do trabalho alquímico é comparado com a criação do mundo. Recipiente hermético que contém as três forças primárias (enxofre, mercúrio e sal) e o dragão “volátil” e “sólido” (ou espiritual e corporal) da natureza. De Basilius Valentinus: “A respeito da Grande Pedra dos antigos...”. Uma réplica muito singular do forno alquímico pode ser encontrada no cachimbo sagrado dos índios norte-americanos, que da mesma forma representam o corpo humano. Como o athanor, ele não é tanto uma “imagem” do corpo, mas uma espécie de paradigma daqueles poderes e processos vitais que ligam o corpo com o mundo da alma, e também com todo o cosmos. Para os indianos, o fogo que queima no forno, ou no cachimbo sagrado, é derivado do sol. A materia, entretanto, que ele consuma e transmuta em fumaça, vem de todas as coisas e seres. Antes de encher o cachimbo, o sacerdote indiano distribui o tabaco sobre os diferentes 152 elementos de uma figura geométrica do universo, uma espécie de rosa dos ventos. Então ele coloca no cachimbo, invocando todos os variados poderes cósmicos que esses elementos representam. Então, através do oferecimento da fumaça, o mundo inteiro, e também toda a alma humana, pode ser transmutada 89. A ascensão da fumaça simboliza a ascensão da alma individual ao Infinito, e assim corresponde à sublimação alquímica. Quando os índios em oração oferecem seu cachimbo primeiro aos céus, e depois à terra, isso é análogo à “espiritualização do corpo” e à “incorporação da espírito” alquímicos. O fogo no cachimbo sagrado é revivido pelo ar. O canal do cachimbo corresponde à coluna vertebral, ou mais exatamente ao canal sutil que é a via do espírito vital. Em oposição ao vaso hermético, no qual a materia apenas se move dentro de um circuito fechado, o bojo do cachimbo sagrado é aberto. A fumaça escapa. Mas mesmo na alquimia há um processo similar a esse. De acordo com o então chamado método “seco”, a materia é exposta diretamente ao fogo, e esse método é o mais curto, mas também o mais perigoso caminho para o conhecimento profundo. O cachimbo sagrado dos índios é o protótipo e a garantia da mais alta dignidade do homem, sua capacidade de reconciliar o céu com a terra. No mesmo sentido, embora com menos obviedade, também está presente na forma do athanor. * As considerações seguintes, que podem parecer saídas de nossa subjetividade, podem ajudar a clarificar a relação mútua de espírito e corpo. Primeiramente, deixe-nos recordar que em determinadas doenças mentais é impossível determinar se a causa é mental ou física. Em tais casos, de fato, os distúrbios de equilíbrio se seguem alternadamente. A doença mental resulta em veneno acumulado no corpo, e esse por sua vez confunde ou paralisa a mente, sem que seja possível saber se a causa inicial pode ser procurada na mente ou no corpo. – 89 Ver The Sacred Pipe, de Black Elk. Editado por Joseph Epes Brown, Universidade de Oklahoma Press, 1953. 153 Determinadas doenças, sem dúvida alguma, surgem de causas mais fundamentais. Elas são, em certo sentido, condicionadas pelo tipo humano. Semelhante, até certo ponto, são os estados psíquicos produzidos pelos narcóticos. Tais estados devem ter um conteúdo espiritual, mas apenas sob condições particulares, porque o narcótico não pode fazer nada além de induzir um processo interior, ele não pode determinar sua qualidade. Quando, em determinados cultos, bebidas intoxicantes são usadas para promover estados espirituais extraordinários, não é a bebida intoxicante como tal que produz os estados em questão. A sua função apenas pode ser preparatória. O ímpeto “qualitativo” deve vir de um domínio diferente. A maturidade sexual no homem não é a verdadeira razão pela qual ele reconhecer a beleza na mulher. E até mesmo a ausência dessa maturidade – como resultado de um defeito físico – pode muito bem indicar que uma beleza que em si mesma é independente da atração sexual nunca penetrará a porta da consciência. Finalmente deve ser dito que mesmo a atividade do cérebro, sem a qual determinadas intuições espirituais são irrealizáveis, é dependente do corpo. De outro modo, é também possível que estados espirituais incomuns, para os quais a mente como tal não está adaptada, podem temporária ou permanentemente danificar o cérebro. Nesse caso – que é mais conhecido em civilizações com uma tradição espiritual – o conteúdo, por assim dizer, rompe o vaso, e isso prova, em um sentido negativo, quão importante é a base corporal, física, de uma arte espiritual. A interação natural do espírito e do corpo seduz o observador superficial em direção ao materialismo. Até mesmo aquele que vê as proporções verdadeiras das coisas irá pelo contrário chegar à intuição de que os dois níveis da realidade correspondem um ao outro como protótipo (espiritual) e reflexo (corporal). Todo o cosmos é construído simbolicamente. O olho não pode vê-lo porque ele é capaz, de um certo modo, de focalizar raios de luz; ele vê porque, em um nível corporal, ele reflete o olho espiritual; daí porque ele também tem a mesma forma que os corpos celestes. O ouvido ouve porque ele assemelha-se ao espaço cósmico, no qual a 154 palavra eterna ressoa. As leis da acústica, de acordo com as quais ele é formado, não é senão uma expressão do mesmo protótipo. Então, assim também é que as faculdades interiores trabalham apenas em virtude de sua consonância simbólica com realidades superiores. A memória não seria capaz de armazenar as impressões das coisas se ela, no mesmo plano da alma, não se assemelhasse à permanência eterna das possibilidades principais do Divino Espírito. A imaginação seria sem significado se ela, a seu modo, não participasse da capacidade plástica da materia prima, e as palavras não teriam significado se o Espirito não fosse a palavra de Deus. É assim inerente à natureza de uma arte sagrada, que naturalmente nasce em formato simbólico, utilizar o desenho do corpo em seus trabalhos, e mesmo para fazer dele sua base “metódica”. O desprezo ascético pelo corpo se aplica apenas ao corpo como sede das paixões, e não ao corpo como símbolo. 155 Figura 9 – O andrógino hermético representando a união das duas forças primordiais homem-mulher. A águia corresponde ao mercúrio homem-mulher perfeito e harmonioso. O morcego e a lebre representam aqui o sutil e o corpóreo. Do manuscrito Ph 172 na Biblioteca Central, Zurich. 156 Figuras 10 e 11 – A flor que brota das cinzas e a virgem branca do elixir lunar. Representação das duas fases do trabalho alquímico. De um manuscrito anônimo antigo MS Sloane 256 P do Museu Britânico. – O vaso hermético, aqui, tem quase a forma de um coração. Ele está sobre a terra. A flor dos sábios brota de três raízes, que corresponde aos três princípios do enxofre, do mercúrio e do sal. 157 Figura 12 – A lápide do alquimista Nicolas Flamel (ca. 13301417) da Igreja de St. Jacques-la-Boucherie; agora no Museu Cluny em Paris. No painel superior esta Cristo com o globo do mundo, entre o sol e a lua, acompanhado dos apóstolos Pedro e Paulo. No painel inferior, está desenhado o corpo de Flamel em decomposição. Da inscrição consta: “Feu Nicolas Flamel, jadis escrivain a laissie par son testament a leuvre de ceste eglise certaines rentes et maisons quil avoit acquestees et achetees a son vivant pour faire certain service divin et distribucions dargent chascun an par aumosne touchans les quinze vins lostel dieu et autres eglises et hospitaux de París Soit prie por les trespasses”. 158 CAPÍTULO 14 A HISTÓRIA DE NICOLAS FLAMEL E DE SUA ESPOSA PERRENELLE Através da ilustração do que já foi dito, e como uma preparação ao que ainda resta dizer, uma versão – com um breve comentário – da famosa história de Nicolas Flamel e de sua esposa Perrenelle será reproduzida abaixo. Esta história constitui a primeira parte do livro de Flamel, On the hieroglyphic figures which he had depicted in the Cemetery of the Holy Innocents in Paris90. Registros e documentos a respeito da vida de Flamel foram conservados. Ele nasceu em Pontoise em 1330 e trabalhou em Paris como escritor e notário público. Seu escritório estava primeiramente situado ao lado da casa mortuária do cemitério dos santos inocentes, e mais tarde perto da Igreja de Saint Jacques-la-Boucherie, onde ele mesmo foi enterrado em 1417. Sua sepultura é preservada no Museu Cluny. O relato de Flamel está preocupado principalmente com o primus agens do trabalho alquímico, sobre o qual Sinésio disse: “A respeito do primus agens, os filósofos sempre falaram apenas em parábolas em símbolos, para que sua ciência não seja acessível aos tolos; pois se isso acontecesse tudo poderia se perder. Ele deve estar disponível apenas para almas pacientes e espíritos refinados que afastaram-se da corrupção do mundo e purificaram-se a si mesmo da imundície viscosa da avareza...”. A história do próprio Nicolas Flamel assim começa: “Durante o tempo em que, depois da morte de meus pais, eu ganhava a vida através da arte da escrita – fazendo inventários, preparando balanços e calculando as despesas dos tutores e de seus pupilos – eu adquiri por dois florins um livro bastante antigo, grande e finamente dourado. Ele não era feito nem de papel nem de pergaminho, como eram os outros livros, mas ao que me parecia estava feito de casca amansada de árvores jovens. A sua encadernação era feita de cobre bem laminado e 90 Bibl. des phil. chim. 159 era gravado com estranhas letras e figuras – e eu pensei que elas eram letras gregas, ou letras de alguma língua antiga similar. De todo modo, eu não podia lê-lo, mas eu sabia que não se tratava de letras latinas ou gálicas, porque delas eu compreendo alguma coisa. Dentro, as páginas de córtex foram gravadas muito habilmente com um instrumento de ferro e uma perfuração muito bonita, e letras em latim, muito claras, que foram coloridas com muita dedicação. O livro continha três conjuntos de sete páginas, e elas eram juntas (em seções) desse modo, e na sétima página não havia escritos. A primeira sétima página, no lugar de escrito havia uma figura de uma vara, ao redor da qual duas serpentes estavam enroscadas; na segunda sétima página havia uma cruz na qual estava fixada uma serpente. E na última sétima página estava representado o deserto no meio do qual havia diversas fontes muito belas fora das quais as serpentes se espalhavam em todas as direções...”. Os três conjuntos de sete páginas, do livro, relembrava as três principais fases do trabalho – escurecimento, clareamento e avermelhamento – e os sete planetas ou metais. A vara ao redor da qual as duas serpentes estavam enroscadas é a vara de hermes, com as duas forças – enxofre e mercúrio – que governam o eixo espiritual. A cobra crucificada é o símbolo da fixação do mercúrio volátil – a primeira “incorporação” do espírito. A fixação do mercúrio corresponde à subjugação da força vital cada vez mais inquieta, que se dissipa a si mesma em desejos e imaginações. Ao mesmo tempo ela representa a transmutação do pensamento dominado pelo tempo em uma consciência imóvel e atemporal. A cruz na qual a serpente está fixada significa o corpo, não como carne e sensualidade, mas como imagem da lei cósmica, do eixo cósmico imóvel. As fontes brotando no meio de um deserto ou imensidão, a partir da qual as serpentes emergem, representam um estado de reconquista da originalidade espiritual. Todas as três gravuras são variações do símbolo da serpente, que sempre representam o mesmo poder da alma (ou poder cósmico): “Natureza” ou shakti. “Na primeira página do livro está escrito em letras douradas em caixa alta: ABRAÃO O JUDEU, 160 PRÍNCIPE, SACERDOTE, LEVITA, ASTRÓLOGO E FILÓSOFO. AO POVO JUDEU, DISPERSADO PELA CÓLERA DE DEUS ATÉ A GÁLIA, SAUDAÇÕES. D. I. O resto da página estava preenchido por maldições terríveis (nas quais a palavra MARANATHA frequentemente ocorria) contra qualquer um que lesse este livro, a menos que se tratasse de um sacerdote sacrificial ou um doutor nas leis sagradas. “o homem que me vendeu este livro não sabia seu valor – e assim também eu quando o adquiri. Eu pensei que ele devesse ter sido tomado dos pobres judeus, ou talvez tivesse sido achado em alguma de suas antigas habitações...” Flamel possivelmente está se referindo aqui a uma das expulsões dos judeus, que ocorreram várias vezes naquela época. Que o livro pudesse ser de origem judaica é significativo, já que os judeus foram a ligação natural entre os mundos cristão e muçulmano. É sabido que a renascença da alquimia da Eurpoa na baixa Idade Média despertou-se a partir da influência da cultura islâmica. “Na segunda página o autor consola seu povo e o aconselha a afastar-se de todo o vício, especialmente da idolatria, e a esperar com paciência mansa até que o Messias possa vir e conquistar todos os reis na terra, e com seu povo governar eternamente em sua majestade. Sem dúvida que isso foi escrito por um homem muito sábio. “Na terceira página e nas seguintes, ele ensinou, em linguagem simples, a transmutação dos metais para auxiliar seu povo cativo a pagar as taxas ao imperador romano e a fazer outras coisas que eu não vou mencionar. Ao lado disso ele trouxe ilustrações de vasos e deu detalhes das cores e de outras questões, com exceção, sempre, do primus agens do qual ele não falou. Em vez disso ele o pintou com grande habilidade sobre toda a superfície da quarta e da quinta páginas; e embora ele estivesse claramente delineado e retratado, ninguém poderia compreendê-lo se não estivesse familiarizado com suas tradições e não tivesse estudado com afinco os livros dos filósofos. A quarta e quinta páginas estavam assim sem escrita, sendo completamente preenchidas por belas e bem-executadas miniaturas. Na quarta página estava retratado, antes de 161 tudo, um jovem com asas sobre seus calcanhares, e com uma vara em suas mãos – um caduceu entrelaçado por duas serpentes – com o qual ele tocou o elmo na sua cabeça. Pareceu a mim que ele representava o deus pagão Mercúrio. Na direção dele correu e voou um homem velho e poderoso, em cuja cabeça havia uma ampulheta, e que carregava uma foice em suas mãos – como a morte – com o qual, repleto de raiva e fúria, ele tentava rancar os pés de Mercúrio...” Que o deus Mercúrio ou ou metal Mercúrio possam ser despojados de sua volatilidade por SaturnoCronos, ou pelo tempo, como o próprio Flamel disse, pode suscitar duas interpretações diferentes e, em certo sentido, contraditórias, dependendo se o tempo é usado ativamente ou meramente suportado; ou se a fixação do metal mercúrio é vista como uma morte lenta de seu poder efetivo, ou como uma domesticação desse último. A ampulheta na cabeça de Saturno, contudo, parece sugerir que o tempo deve ser dominado ativamente por meio de um ritmo que o converterá em um eterno agora. “No outro lado da quarta página estava desenhada uma linda flor crescendo no topo de uma alta montanha, que balançava violentamente pelo vento norte. Ela tinha um talo azul e flores brancas e vermelhas, e folhas brilhantes como um ouro maciço. Ao redor dela se aninhavam os dragões e os grifos do Norte...” As cores da flor representam as três principais fases do trabalho, e os seus dois frutos, especificamente a prata e o ouro. Aqui o azul toma o lugar do preto, em consonância com a natureza de uma flor, mas com o mesmo sentido de escuridão e noite. A flor cresce na montanha solitária do Ser essencial, que é um com a montanha universal ao redor da qual os céus circulam, através da qual os eixos polares correm, e ao redor da qual deslizam os dragões dos poderes cósmicos. “Na quinta página, havia um arbusto de rosas florido, no meio de um bonito jardim e inclinado num carvalho oco. Ao pé do arbusto de rosas jorrou uma fonte de água branca, que caiu de cascatas à distância, depois de passar através das mãos de incontáveis pessoas, que cavaram na terra 162 para encontrar a fonte mas não a encontraram, já que elas eram cegas, com a exceção de apenas uma, que pesava a água. A fonte de mercúrio jorrou da “terra” da materia prima, nas raízes da árvore florescente da alma, que é protegida pelo tronco do carvalho oco do corpo. A água da vida flui para todo lugar, ainda que ninguém a encontre senão o sábio que a pesa sobre ela. Poder-se-ia esperar que ele pudesse experimentá-la, mas a pesagem da água tem aqui o mesmo significado que a captura do mercúrio pela medida do tempo. Os alquimistas também ensinam agora a unificar os elementos individuais ou as variadas propriedades naturais um com o outro, de acordo com um relacionamento definido de seus “pesos”. Jâbir ibn Hayyân chamou isso de arte da balança. E ainda que possa parecer absurdo pesar elementos, ou mesmo propriedades, como calor, frio, umidade e secura. O que se quer dizer pela “pesagem” alquímica apenas pode ser compreendido se se primeiro transpõe a medida de peso quantitativa e exterior para a medida de tempo qualitativa e interior (i. e. Ritmo). A pesagem alquímica, que parece se referir à massa física, não é nada mais que um domínio do ritmo, por meio do qual os poderes da alma podem ser influenciados. O ritmo desempenha um importante papel em toda arte espiritual. Na árabe o ritmo de um verso é conhecido como o seu “peso” (wazn). “Do outro lado da quinta página estava um rei com uma grande faca, que por meio de soldados ao seu redor causou a morte de um grande número de jovens crianças, cujas mães choravam ao pé do homem impiedosamente armado, enquanto o sangue fluente era recolhido pelos outros soldados e colocados no largo vaso no qual o sol e a lua do céu vinham se banhar. Isso porque essa ilustração recordava a história das crianças inocentes mortas por Herodes, e porque foi por esse livro que eu aprendi a parte mais significativa da arte, que eu pintei os signos hieroglíficos dessas ciências sagradas no Cemitério dos Santos Inocentes. Foi isso o que estava nas primeiras cinco páginas...” Como o próprio Flamel escreveu nas páginas seguintes, o sangue dos inocentes sacrificados significa “o espírito mineral contido em todos os metais, e especialmente 163 no ouro, na prata e no mercúrio”. Isso não é senão o “mercúrio filosofal”, que é a primeira manifestação da materia prima. O sangue é a matéria fundamental da vida. Os santos inocentes são como movimentos imaculados ou exalações do Espírito vital que antes de se desenvolverem em vontade consciente são sacrificados pelo rei para preencher o vaso do coração com o seu sangue. Então, sol e lua, espírito e alma, podem se banhar, ser dissolvidos e então unificados nele e, tendo perdido sua velha forma, emergem dele rejuvenescidos. “Eu não posso relatar o que está escrito em um belo e claro latim em todas as outras páginas, pois Deus me puniria por isso, pois eu poderia estar fazendo algo pior do que fez aquele de quem é dito que desejou que todo homem na terra tivesse apenas uma cabeça para que ele pudesse cortá-la com apenas um golpe. “Agora que eu tenho esse maravilhoso livro comigo, eu não faço nada mais durante o dia e durante a noite que estudá-lo. Eu assim entendi muito bem todos os processos que ele descreve, mas eu não sabia qual era o material sobre o qual eu deveria trabalhar. E isso me deixou muito triste e solitário e me fez suspirar incessantemente. Minha esposa Perrenelle, a quem eu amava como a mim mesmo, e com quem eu me casei apenas recentemente, estava grandemente preocupada sobre isso e me perguntava continuamente se ela não seria capaz de me tirar destas preocupações que obviamente pesavam sobre mim. Eu não podia esconder nada dela, e disselhe tudo, mostrando a ela o lindo livro, com o qual ela se apaixonou tanto quanto eu havia feito. Seu grande prazer era olhar sobre sua bela capa, gravuras, imagens e representações, das quais, contudo, ela entendia tão pouco como eu. Não obstante, foi para mim uma grande consolação ser capaz de falar com ela sobre isso, e discutir o que poderia ser feito para encontrar a explicação dos símbolos. “Finalmente eu copiei todas as figuras da quarta e quinta páginas tão fielmente quanto possível, e eu as mostrei a vários doutores, que não as entendiam melhor que eu. Eu até mesmo expliquei a eles que essas figuras haviam sido tiradas de um livro que ensinava a produção da pedra filosofal; mas a maioria deles riu de mim e da pedra sagrada, com a 164 exceção de um certo mestre Anselmo, um licenciado em medicina, que estudou esta arte diligentemente. Ele estava muito ansioso para ver o meu livro, e fez tudo o que podia para dar uma olhada nele. Eu lhe assegurei, contudo, que não o possuía, mas lhe descrevi tudo o que nele continha. Ele me disse que a primeira figura representava o tempo, que devorava todas as coisas, e então, seguindo o número de páginas do livro, requererse-ia seis anos para aperfeiçoar a pedra. Depois desse período, ele asseverou, dever-se-ia girar a ampulheta e não mais cozinhar. Quando eu disse a ele que essa figura pretendia representar apenas o primus agens (como estava escrito no livro mesmo), ele me respondeu que cada um dos seis anos de cocção era como um secundus agens. O primus agens, ele disse, cuja figura estava ali diante de nós, era sem dúvida nenhum outro que não aquela água branca e pesada – especificamente mercúrio – que não poderia ser açambarcada, e cujos pés não poderiam ser cortados, quer dizer, cuja volatilidade não pode ser removida exceto por longa cocção no sangue puro de uma criança jovem. Nesse sangue, o mercúrio, unindo-se com ouro e prata, poderia primeiro ser transmutado em uma planta como aquela mostrada na figura. Após isso, através da putrefação, ele poderia ser transformado em serpentes, que, tendo sido completamente secadas e cozinhadas no fogo, poderiam desintegrar em pó – e isso era a pedra filosofal. “Foi culpa desse conselheiro que por um longo período de vinte e um anos eu tenha cometido milhares de erros, sem entretanto usar sangue, o que teria sido cruel e vil. Pois eu descobri, no meu livro, que o que os filósofos chamavam sangue não eram nada além do que o espírito mineral contido nos metais, principalmente no sol, na lua e no mercúrio, que eu continuamente me empenhava em combinar. As interpretações acima mencionadas, porém, eram mais ingênuas que exatas. Já que em todas as minhas atividades eu nunca percebi os sinais que de acordo com o livro deviam aparecer no tempo certo, eu tive sempre que começar de novo do começo. Finalmente, quando eu perdi toda esperança de até mesmo compreender aquelas imagens, eu fiz uma promessa a Deus e a São Tiago de Galícia, e decidi procurar a explicação com algum sacerdote judeu ou com outra pessoas nas sinagogas da Espanha...” 165 São Tiago, o Ancião, cujo santuário está em Compostela, foi o patrono dos alquimistas e também de todas as artes e ciências cosmológicas. Certamente não é coincidência que o bastão do peregrino (bourdon) de São Tiago – um bastão atravessado por duas fitas e coroado com um botão redondo, como eu pude ver nas mãos do santo na estátua romanesca em Compostela – carregava uma memorável similitude com o bastão de Hermes. “Eu estabeleci, portanto, com a concordância da minha esposa Perrenelle, trazer comigo uma cópia dessas figuras, vestido com roupa de peregrino e com o bastão do peregrino, como eu posso ser visto do lado de fora da capela, no cemitério onde eu pintei as figuras hieroglíficas, e onde também, nos muros de ambos os lados, eu pintei um cortejo no qual todas as cores da pedra são vistas em ordem, aparecendo e desaparecendo juntamente com uma inscrição em francês: Moult plaist à Dieu Procession, s´elle est faite en dévotion (“Um cortejo agrada a Deus grandemente, quando é feito com devoção”). A inscrição repetia quase literalmente o começo do livro do rei Hércules91, que lidou com as cores da pedra e carregava o título Iris: operis processio multum naturae placet, etc. Eu escolhi essas palavras deliberadamente, sabendo que o sábio compreenderia a alusão. “Vestido de peregrino, então, eu tomei meu caminho, chegando finalmente em Montjoye, de onde eu parti para São Tiago de Compostela, onde eu cumpri minha promessa. Tendo feito isso, eu parti e encontrei no caminho em León, um mercador de Bolonha, que me apresentou a um médico de origem judia, mas um fiel cristão – chamado mestre Canches –, que vivia lá e era conhecido pelos sua erudição. Quando eu lhe mostrei as imagens copiadas do livro, ele foi dominado por admiração e alegria e me perguntou se eu sabia do paradeiro do livro do qual elas foram tiradas. Eu respondi em latim (em cuja linguagem ele me havia questionado) e disse a ele que eu tinha esperança de que se alguém pudesse resolver esses enigmas para mim, eu esperava encontrar informações precisas a respeito do livro. Com isso ele imediatamente começou, com grande zelo e alegria, a explicar o começo para mim. Em breve ele ficou muito 91 Herakleios I, imperador de Bizâncio (610-641). 166 feliz em escutar onde o livro estava, e eu por ouvi-lo falar a seu respeito. Ele provavelmente já havia ouvido muito sobre o livro, mas, como me disse, pensava-se que ele estaria completamente perdido. Nós decidimos, então, partir juntos. De León viajamos para Oviedo e de lá para Sanson, de onde tomamos um navio para a França. Nossa viagem seguiu alegremente, e mesmo antes de alcançarmos o citado reino, ele me explicou fielmente a maioria das minhas imagens, mostrando, mesmo em pequenos detalhes grandes segredos (o que eu achei mais interessante). Mas quando chegamos em Orléans, aquele sábio homem ficou muito doente, tomado por crises de vômito, que não pararam desde o momento em que começaram no mar. Ele estava muito temeroso de que eu o deixasse, o que era compreensível. Embora eu não tenha deixado sua companhia, ele conversava comigo incessantemente. Finalmente ele morreu no final de sete dias de enfermidade, o que me encheu-me de tristeza. Eu o enterrei o melhor que pude na Igreja da Santa Cruz, em Orléans, onde ele está até hoje. Deus tenha sua alma, pois ele morreu um bom cristão. Se a morte não me impedir, eu darei àquela igreja uma pequena renda, para que todos os dias algumas missas possam ser ditas em benefício de sua alma. “Quer quer que queira ver como eu cheguei em casa e como Perrenelle se alegrou, que nos contemple a ambos, na cidade de Paris, na porta da capela de Saint-Jacques de la Boucherie, ao lado e próximo da minha casa. Nós estamos lá retratados em ação de graças, eu aos pés de São Tiago de Compostela, e Perrenelle aos pés de São João, a quem ela tanto invocou. Assim, pela graça de Deus, e pela intercessão da Santíssima Virgem, de São Tiago e de São João, eu aprendi o que desejava, a saber, os primeiros princípios, embora não a sua preparação inicial, que é mais difícil que qualquer coisa neste mundo. Isso entretanto eu finalmente aprendi depois de cometer diversos erros, por um período de aproximadamente cinco anos, durante os quais eu continuamente estudei e trabalhei – como se pode ver a mim no muro externo da capela (em cujos pilares eu pintei o cortejo), aos pés de São Tiago e São João, incessantemente orando a Deus, com o meu rosário na mão, lendo atentamente em um livro, meditando nas palavras dos filósofos e então realizando as várias operações que eu extraí de 167 suas palavras. “Finalmente eu encontrei o que eu tanto buscava, e eu o reconheci imediatamente pelo seu forte odor; e quando eu o tive eu completei o trabalho (magistère). Tendo aprendido a preparação dos primeiros poderes (agens), eu deveria apenas seguir meu livro palavra por palavra, e não poderia dar errado nem que eu quisesse. Na primeira vez que eu fiz a projeção, eu a apliquei ao mercúrio e transmutei aproximadamente uma libra e meia em prata pura, que era melhor do que aquela extraídas das minas – um fato que eu testei e tenho testado diversas vezes. Isso aconteceu em 17 de janeiro de 1382, uma segunda-feira, próximo do meio dia, em minha casa, na presença apenas de Perrenelle. Mais tarde, seguindo o meu livro palavra por palavra, eu completei o trabalho com a pedra vermelha, sobre uma quantidade similar de mercúrio, de novo apenas na companhia de Perrenelle, na mesma casa, no dia 25 de abril do mesmo ano, às cinco horas da tarde, quando eu efetivamente transmutei o mercúrio eu ouro, quase na mesma quantidade, que era claramente melhor que o ouro comum, já que mais leve e mais maleável. Isso eu posso dizer na verdade. Dessa forma eu completei o trabalho três vezes com a ajuda de Perrenelle, que entendeu tanto quanto eu mesmo fiz, pois ela me ajudou na sequência das instruções; e quisesse ela completá-lo inteiramente sozinha, ela poderia certamente alcançar a meta. Eu já estava mais que satisfeito depois de tê-lo completado uma vez, mas eu encontrei grande alegria em ver e em compreender o maravilhoso trabalho da natureza nos vasos...” O homem e a mulher, que na forma natural encarnam os dois pólos do trabalho alquímico (enxofre e mercúrio), podem por seu amor recíproco – quando ele é espiritualmente elevado e interiorizado – desenvolver esse poder cósmico, ou poder da alma, que opera a dissolução e a coagulação alquímica (solve et coagula). 168 CAPÍTULO 15 OS ESTÁGIOS DO TRABALHO Há vários modos de se subdividir os múltiplos estágios do trabalho alquímico. Cada um deles carrega uma simplificação esquemática do processo total. Apesar disso, cada um deles é correto no sentido de que cada um é uma expressão da lógica interna do “trabalho”. A mais antiga subdivisão é aquela que designa os estágios individuais ou fases por diferentes cores. Isso possivelmente remete a um processo metalúrgico particular, tal como a purificação ou coloração dos metais. De acordo com esse esquema o enegrecimento (melanosis, nigredo) da materia ou “pedra” é seguido por um branqueamento (leukosis, albedo), e esse, por sua vez, é seguido por um “avermelhamento” (iosis, rubedo). O preto é a ausência de cor e de luz. Branco é pureza; ele é luz indivisa – a luz não se quebra em cores. Vermelho é a essência da cor, seu ponto culminante e o seu ponto de maior intensidade. Essa ordenação das coisas se torna ainda mais evidente se entre o branco e o vermelho é inserida toda uma série de cores intermediárias tais como o verde limão, o amarelo ocre e o vermelho claro ou, novamente, se se fala de uma “cauda de pavão” de cores gradualmente desdobradas. Neste caso a cor púrpura é sempre a que fecha as séries. É de se notar que as três principais cores – preto, branco e vermelho (que também podem ser encontradas na heráldica hermeticamente influenciada) – designa na cosmologia hindu as três tendências fundamentais (gunas) da materia primordial (Prakriti). Aqui o preto é simbolicamente o movimento “descendente” (tamas), que foge da origem luminosa; branco é a aspiração “ascendente” em direção à luz (sattva); e o vermelho é a tendência em direção à expansão no plano da manifestação mesma (rajas). Com essas interpretações em mente, pode-se ficar surpreso de descobrir que na alquimia não é o branco, mas o vermelho, que representa o resultado final do trabalho. De acordo com a doutrina hindu, o cosmos é 169 construído de tal maneira que primeiramente tamas, a força descendente, joga para baixo a âncora até a escuridão, e então rajas, expandindo-se na distância, desenvolve a multiplicidade; e finalmente sattva, como uma chama luminosa com direção ascendente, conduz tudo de volta à origem. A simples comparação das três cores alquímicas com a cosmologia hindu já é uma clara indicação do ponto de vista da alquimia e dos precisos limites desse simbolismo. Depois da “espiritualização do corpo” – que em certo sentido corresponde ao branqueamento e substitui a inicial negritude ou corrupção –, vem, como um acabamento, a “corporificação do espírito”, com sua cor vermelho-púrpuro. O mesmo ritmo pode também ser transposto a outros modos de realização espiritual. O ponto significante aqui é que a ênfase está na manifestação do Espírito e não na transcendência – ou na extinção – da existência limitada. Por meio da putrefação, fermentação e trituração – todas elas acontecendo na escuridão – a materia é despojada de sua forma inicial. Por meio do clareamento, a um branco prateado, ele é purificado, e pelo “envermelhamento” ele é colorido novamente – e aqui a cor significa forma. O poder purificador é o mercúrio, o poder “colorante”, o enxofre. A tríplice divisão, de acordo com as cores, não conflita com a dupla divisão entre trabalho “inferior” e “superior”. Isso reflete a já descrita dualidade de materia e forma, alma e espírito, lua e sol. Tanto a divisão tríplice como a dúplice ocorre na sétupla divisão baseada nos reinos (régimes) dos planetas e propriedades dos metais. Há duas concepções principais da gradação sétupla. Em duas delas, os trabalhos “inferior” e “superior” são combinados – algo de fato praticável – então prata e ouro, lua e sol, como pares, representam o ponto final de toda a série, enquanto que os outros planetas ou metais tomam os seus lugares na série de acordo com a sua nobreza, vale dizer, sua maior ou menor relação com o ouro ou com o sol. Essa ordem corresponde à hierarquia das casas planetárias, como descritas no capítulo 5. esse modelo é a ascensão do sol a partir da sua posição mais inferior, na casa de Saturno, no solstício de primavera, ao seu domínio na casa de Leão, que por sua vez representa o solstício 170 de verão. Na outra concepção, o trabalho “inferior”, tendo a lua como ponto final, precede o trabalho “superior” ao ponto de coroação, que é o sol. Essa última concepção, mencionada por Philaletes, Bernardus Trevisanus, Basilius Valentinus e por outros alquimistas – e que em razão de sua forma particularmente lúcida será agora examinada em maiores detalhes – aparece da forma como segue. s w v R t q Mercúrio Saturno Júpiter Lua Vênus Marte Sol Mercúrio Chumbo Estanho Prata Cobre Ferro Ouro s O símbolo de mercúrio, que vem antes de todos os outros, não representa um estágio no trabalho, mas antes a chave do todo; então o trabalho em si mesmo tem apenas seis fases. Dessas as primeiras três são expressadas por símbolos puramente lunares, e as últimas três por símbolos puramente solares. Apenas o símbolo de mercúrio é andrógino, formado tanto do sol como da lua. Já foi dito que para os alquimistas, o mercúrio é o primus agens, o real significado do trabalho, a água dissolvente e o alimento para o embrião espiritual. Ele é, por assim dizer, a manifestação mais direta da materia prima, vista como matéria física sutil ou sopro vital, que une o organismo corpo-alma individual com o mar cósmico da vida. Nele a semente do ouro espiritual está escondida, assim como o ouro no mercúrio comum. Transposto para o modo “operativo” do misticismo, o que aparece neste ponto é a influência espiritual, a graça, ou outra forma de operação do Espírito Santo, que em certo sentido penetra de fora o mundo aparentemente fechado da consciência egóica, e a afasta de sua “coagulação” metálica. Na alquimia, o mercúrio pode ser considerado como uma “benção cósmica”, como Fra Marcantonio disse, “constantemente cai do céu como uma névoa fina, para preencher os poros da terra”92; aqui, os “poros” são o que salva os corpos sólidos da fossilização e da sufocação; é através deles que a terra “respira”, assim como o homem vive por manter-se aberto às influências celestiais presentes na 92 Ver capítulo 10, “Enxofre, mercúrio e sal”. 171 natureza. A interpretação do signo de mercúrio como a chave de todo o trabalho é confirmada pelo papel do deus Mecúrio, ou Hermes, nos mistérios órficos. Os mensageiros dos deuses acompanham a alma após sua morte – corporal ou mística – através de todos os reinos das sombras até seu lugar final de descanso. W O primeiro estágio do “trabalho inferior”, que se dá sob o signo de Saturno, corresponde ao “enegrecimento”, “putrefação” e “mortificação”. Ele é representado por uma caveira ou, algumas vezes, por uma sepultura. Basilius Valentinus disse a respeito dessa fase do trabalho: “Toda carne nascida na terra será destruída e restituída de volta à terra, pois ela foi terra. Assim o sal terreno produzirá um novo nascimento através do sopro da vida celestial. Onde quer que a terra esteja ausente no começo, não pode haver renascimento em nosso trabalho, já que a terra é o bálsamo da natureza e o sal daqueles que procuram o conhecimento de todas as coisas”93. No começo de toda a realização espiritual está a morte, na forma de “morrer para o mundo”. A consciência deve se retirar dos sentidos e se voltar para dentro. Como a “luz interior” ainda não ressuscitou, esse afastamento do mundo exterior é experimentado como uma nox profunda. A este estado o misticismo cristão aplica a parábola do grão de trigo, que deve permanecer sozinho na terra e morrer, se é para dar frutos. Em diversos ritos iniciáticos, essa morte da alma é expressada por um enterro simbólico, e certas ordens cristãs observam um costume singular na investidura dos monges. Nos mistérios pré-cristãos, a morte do místico era frequentemente trazida no relacionamento com a morte sacrificial de um deus. Como o deus, que foi morto e desmembrado, o místico devolvia seus membros e faculdades à natureza. Os poderes dos mundos inferiores dividiam entre si os elementos da alma empírica, que não pertenciam à essência imortal e, em determinados casos, esse desmembramento era executado na efígie. O místico deve experimentar, por si mesmo, a morte sacrificial de Deus, para compreender em toda a extensão que Deus, que era aparentemente desmembrado no mundo (a fim de conferir sua vida em sua multiplicidade), na verdade não pereceu nele, mas permaneceu imortal, eterno e indivisível. Assim o homem pode apenas conhecer 93 Da grande pedra dos antigos sábios, Estrasburgo, 1645. 172 sua essência imutável quando ele renunciou a tudo o que nele é perecível. Isso inclui não apenas a carne, mas também a “alma imersa na experiência sensorial”. No começo do trabalho, o material mais precioso que o alquimista produz é a cinza, que permanece após a calcinação (calcinatio) do metal ordinário. Através dessa cinza, que foi despojada de toda “unidade” passiva, ele será capaz de capturar o “espírito” volátil. O primeiro estágio do trabalho corresponde ao significado mitológico de Saturno, já que Saturno-Chronos, que devorou seus próprios filhos, é a divindade que, através do tempo e da morte, causa “o retorno do que surge” sua origem amorfa. V O segundo estágio do “trabalho menor”, é dominado por Júpiter, cujo símbolo exibe o crescente lunar junto ao eixo horizontal da cruz, enquanto que no caso de Saturno o mesmo crescente está colocado na ponta de baixo do eixo: w. Sob a influência de Júpiter, portanto, a alma levantou-se a si mesma da terra a qual ela retornou e da noite do caos inicial, a fim de desenvolver seu poder. Na linguagem da doutrina hindu, a respeito das tendências fundamentais da materia (os gunas), deve ser dito que o poder da alma (Mercúrio) foi libertado do tamas e unificado à rajas. Rajas, contudo, tem o significado de expansão e desenvolvimento, que no presente caso significa que o poder sutil foi dissolvido de sua coagulação na consciência corporal, e tendo sido terra, por assim dizer, agora se transformou em água e ar. Isso corresponde à sublimação. Morenius disse: “Quem quer que saiba como purificar e alvejar a alma e permitir-lhe subir acima, haverá conservado bem o ser corpo e o libertado de toda a escuridão, negrume e odor maléfico... ele será então capaz de trazer de volta a alma ao corpo, e na hora de sua unificação grandes maravilhas ocorrerão...”. R Com o terceiro estágio, dominado pela Luz, a cor branca é completada. O crescente lunar levantou-se a si mesmo acima da cruz dos elementos ou tendências cósmicas e dissolveu suas oposições. Todas as potencialidades da alma, contidas no caos inicial, foram agora completamente desenvolvidas e foram unidas uma com a outra em um estado de pureza indivisa. Este é o limite mais externo da “solução”, e é seguido por uma nova “coagulação”. Do ponto de vista cristão, esse estado da alma corresponde simbolicamente à Santíssima Virgem, em sua prontidão para receber a Palavra Divina, e nesse sentido é significativo que a Virgem seja frequentemente retratada 173 entronizada sobre o Crescente. No livro The Forgotten Word94, Bernardus Trevisanus escreveu sobre essa realização do “trabalho menor”: “Eu lhe digo, tendo Deus como minha testemunha, que esse Mercúrio, quando ele foi sublimado, foi revestido em tão puro branco que ele parecia neve no topo de uma montanha muito alta. Ele tinha um brilho fino e cristalino, do qual, quando o vaso foi aberto, emanou um perfume tão doce que nada parecido poderia ser encontrado na terra. Eu, contudo, que falou a você, sei bem que esse maravilhoso brilho apareceu ante meus olhos, que eu toquei a natureza fina e cristalina com as minhas próprias mãos e com o meu próprio olfato eu senti a maravilhosa doçura. Eu chorei com alegria e espanto frente a tão grande maravilha. Bendito seja o Eterno, Altíssimo e Glorioso Deus, pois ele escondeu tantos presentes maravilhosos nos segredos da natureza, e permitiu a alguns homens que o vissem. Eu sei que quando você sabe as causas dessa disposição, você pode perguntar: que tipo de natureza pode ser essa que, vindo de algo corruptível, apesar disso, contém em si mesma algo de completamente celestial? Ninguém pode narrar todas as maravilhas. Talvez, contudo, virá um tempo no qual eu poderei falar a você algumas coisas especiais sobre essa natureza, que o senhor ainda não me permitiu comunicar por escrito. Seja como for, quando você tiver sublimado esse mercúrio, pegue ele fresco e jovem, juntamente com o seu sangue, e então ele não se tornará velho, e o dê a seus pais, o Sol e a Lua, então a partir dessas três coisas – Sol, Lua e Mercúrio – nosso amálgama pode ser produzido...”. Deve ficar claro, a partir dos símbolos planetários, que os três estágios do “trabalho menor” correspondem ao movimento ascendente, pois primeiramente a Lua estava debaixo da cruz, então junto ao seu eixo horizontal, e finalmente ela reinava sozinha: em contraposição, os três estágios seguintes do “grande trabalho” descreve o movimento descendente:t U q, e aqui o sol aparece primeiramente sobre a cruz, e então cruz abaixo quando finalmente ele fica sozinho, trazendo tudo de volta ao centro. Os primeiros três estágios correspondem à “espiritualização do corpo”; os últimos três à “corporificação do espírito” ou à “fixação do volátil”. Enquanto o “trabalho menor” tem como sua meta a reconquista da pureza e receptividade original da alma, a meta do “trabalho menor” é a iluminação da alma pela revelação do Espírito dentro dela. Essa sequência de seis estágios 94 La Parole délaissée em Le Voile d´Isis, Paris, 1931, p. 461. 174 pode ser transposta a todos os tipos de realização espiritual, mas apesar disso continua sendo não mais que um esquema, pois nenhum dos dois movimentos (o ascendente da alma e o descendente do Espírito), podem ser inteiramente separados um do outro. O desenvolvimento de uma flor é o trabalho do Sol, mesmo que o Sol apenas comece a ter seu verdadeiro e completo efeito quando a flor está madura o suficiente para se abrir aos raios do Sol. T O quarto estágio – o primeiro do “grande trabalho” – é dominado por Vênus. Em seu signo, o Sol de ouro, e o Espírito, o enxofre incombustível, aparece sobre o mastro da cruz. O Sol engole a Lua, e o seu poder formador imprime mais uma vez a cruz dos elementos. “No começo”, diz a Turba Philosophorum95, a mulher em cima do homem, e no fim o homem está em cima da mulher”. Primeiramente o poder “volátil” do Mercúrio feminino prevalece sobre os corpos sólidos, cuja forma é manifestada de modo passivo pelo enxofre. Mais tarde, entretanto, o poder fixador do enxofre prevalece sobre o Mercúrio volátil e engendra uma cristalização nova, e agora ativa, da forma alma-corpo. Essa “nova criação”, contudo, ainda não é perfeita, já que o Sol espiritual, como aparece aqui, continua ligado à cruz dos elementos, e esta é a razão pela qual os alquimistas dizem a respeito do cobre, o metal de Vênus, que nele o poder corante do Enxofre (a essência do ouro) realmente torna-se visível, mas ele permanece instável e grosseiro em razão da oposição contida nos quatro elementos. U O quinto estágio – o segundo do “grande trabalho” – é dominado por Marte. No signo de Marte (as razões para escrever desta forma já foram explicadas) o Sol ocupa uma posição similar à da Lua no signo de Saturno. Os significados dos dois símbolos – Saturno e Marte – são, todavia, opostos um ao outro, embora ambos efetivamente representem um tipo de morte e extinção; mas sob o “balançar” de Marte, não há dúvida sobre a condição caótica; pelo contrário, há aqui uma descida ativa do Espírito ao nível mais baixo da consciência humana, de modo que o corpo, em si mesmo, está completamente penetrado pelo “enxofre incombustível”. Assim como o ferro, o metal de Marte, o poder fixativo do enxofre, embora inteiramente presente, não pode ainda manifestar completamente o seu brilho, já que nesse estágio do trabalho, o Espírito aparece submergido no corpo e como que extinto nele. Essa é 95 Bibl. des phil. chim. 175 a coagulação “externa”, e o limiar da realização final – a transformação do corpo em Espírito feito forma. O mais alto significado contido no símbolo de Marte – aquele que se prolonga para fora da alquimia mesma – é a “encarnação da Palavra Divina”. Em um certo sentido, isso implica uma certa humilhação do Divino, já que como “Luz” ele aparece nas trevas do mundo. A realização alquímica, todavia, pode apenas ser um reflexo distante dessa encarnação. Artephius escreveu: “... As duas naturezas modificam-se reciprocamente, o corpo “incorporando” o Espírito, e o Espírito transmutando o corpo em um Espírito colorido (i. e. qualitativo) e branco (i. e. puro)... fervê-lo (i. e. o corpo) em nossa água branca, ou seja, no Mercúrio, até que ela seja dissolvida na escuridão. Ao fervê-la por um longo tempo, ela irá perder sua escuridão e finalmente o corpo dissolvido surgirá juntamente com a alma branca, um misturado com o outro. Eles irão se mesclar de tal forma que nunca mais novamente serão separados um do outro. Então de fato o Espírito irá se unir com o corpo em perfeita harmonia, e então juntos eles se tornarão algo imutável. Essa é a dissolução do corpo e a fixação do Espírito, ambos os processos constituindo um e o mesmo trabalho”96. Q A realização do “grande trabalho” é expressada pelo símbolo do Sol. Ele é distinto do disco solar como parte constituinte dos outros símbolos planetários por ter seu ponto central representado. Assim o que estava apenas incipiente e potencialmente presente nos primeiros estágios é aqui manifesto. Na forma completa, que em si mesma permanece finita, o conteúdo infinito é visível – está presente visível e invisivelmente. O mesmo símbolo também relembra a amêndoa na fruta, e o embrião no útero. Isso está de acordo com o simbolismo genético da alquimia. Essa fase do trabalho é também a realização da cor vermelha, da qual Nicolas Flamel, em sua elucidação das “figuras hieroglíficas”, escreveu: “No campo das violetas escuras, um homem violeta-vermelho segura o pé de um leão vermelho-escarlate, que tem asas e aparentemente está carregando o homem. O campo de violetas escuras significa que a pedra, através de uma cuidadosa fervura, recebeu lindas vestes laranjadas e vermelhas, e que a sua completa digestão (indicada pela cor laranja) a despojou de suas antigas vestes 96 Bibl. des. phil. chim. 176 cor laranja. A cor vermelho-escarlate do leão voador, que se assemelha ao puro e caro escarlate das sementes de romã, indica que essa cor está agora genuína e harmoniosamente completada. É como um leão que devora toda a natureza puramente metálica e a transforma em sua própria substância, especificamente em ouro verdadeiro e puro, mais fino que aqueles das melhores minas. “Em razão disso, a cor em questão tem o poder de afastar o homem desse vale de lágrimas, vale dizer, do mal, da miséria e da doença, ao levantá-lo com suas próprias asas da água suja do Egito (os pensamentos ordinários dos mortais), e então ele irá desprezar a vida mundana com suas riquezas, e pensar dia e noite em Deus e em seus santos, desejando o Empíreo, e sedento das doces fontes da eterna esperança. “Deus seja louvado eternamente por nos dar a graça de ver essa maravilhosa e completamente perfeita cor púrpura, essa maravilhosa cor dos crisântemos dos campos e rochas, essa cor de Tiro97, brilhante e ardente, incapaz de qualquer adulteração ou mudança, sobre a qual nem mesmo o Céu ou o Zodíaco tem poder ou força, e cujo radiante e ofuscante esplendor parece, em certo sentido, comunicar ao homem alguma coisa supraceleste, espantando-o, amedrontando-o, ou aterrorizando-o quando ele o olha”98. Representação do Mercúrio bissexual (“Rebis” = res bis), da “Aurelia Occulta Philosophorum” de Basilius Valentinus, e no 97 O púrpura é produzido em Tiro. 98 Bibl. des. phil. chim. 177 “Theatrum Chemicum”, Argentorati, 1613, vol. IV. – O andrógino hermético se coloca sobre o dragão da Natureza, que está sobre a esfera alada da materia prima. O compasso e o esquadro nas mãos do andrógino correspondem ao Céu e à Terra, aos poderes masculino e feminino. No lado masculino está Vênus, Marte e o Sol, e do lado feminino estão Saturno, Júpiter e a Lua. No topo está o Mercúrio perfeito. Em um texto de Basilius Valentinus há uma representação do andrógino masculino-feminino, que simboliza a realização do trabalho alquímico, com os símbolos dos sete planetas, em tal ordem que os três signos solares correspondem ao lado masculino do andrógino, e os três signos lunares, ao lado feminino, enquanto o símbolo andrógino de Mercúrio representa a “pedra angular” entre as duas séries. Isso dá origem ao seguinte esquema, no qual os estágios dos trabalhos “menor” e “maior” serão de novo reconhecidos. s R v w q t Em um certo sentido (e independentemente do significado astrológico dos mesmos símbolos), os símbolos à direita podem ser chamados ativos, e aqueles à esquerda, passivos, já que o “trabalho menor” efetua a prontidão ou preparação da alma, e o “trabalho maior” a revelação espiritual. Contudo, para ser capaz de reconhecer que os símbolos individuais correspondem um ao outro em pares, é necessário recordar que a ordem de cada série (como descrita até agora) está na direção oposta daquela da outra, pois uma delas está subordinada à subida da Lua, e a outra, à descida do Sol (esses dois movimentos ocorrem no curso do trabalho). Quando, pelo contrário, ambos os movimentos são vistos em paralelo, os símbolos serão ordenados como segue: 178 s R v w q t A partir disso pode-se ver claramente que para todo aspecto ativo há um correspondente aspecto passivo. Saturno representa o “rebaixamento”, Marte uma “descendência ativa”. O primeiro símbolo expressa a extinção da alma egóica, o segundo a vitória do Espírito. No próximo nível, Júpiter corresponde ao desenvolvimento da receptividade da alma, enquanto Vênus corresponde ao despertar do Sol interior. A Lua e o Sol, em si mesmos, encarnam os dois polos em seu estado puro, e o Mercúrio comporta ambas as essências em si mesmo99. 99 Para ver como esses seis estágios constantemente ocorrem como estágios fundamentais em qualquer espécie de realização espiritual, pode-se consultar Stations of Wisdow, de Fritjof Schuon, em especial o capítulo final, que traz o mesmo título. (John Murray, Londres, 1961). 179 CAPÍTULO 16 A TÁBUA DE ESMERALDA O significado e estrutura do trabalho alquímico estão resumidos na “Tábua de Esmeralda” (Tabula Smaragdina). Ela se apresenta a si mesma como uma revelação de Hermes Trismegistos, e como tal foi aceita pelos alquimistas medievais. A mais antiga menção a esse respeito pode ser encontrada em um texto do século VIII, por Jâbir ibn Hayyân, e uma tradução latina já era conhecida de Santo Alberto Magno. Seu estilo, contudo, indica que é claramente de origem préislâmica. E como está em completo acordo com o espírito da tradição hermética – como os alquimistas concordam à unanimidade – não há razão convincente para duvidar de sua conexão com as origens do hermetismo. Isso deixa aberta a questão sobre se o nome Hermes representava um nome ou uma função profético-sacerdotal decorrente de Hermes-Thoth. Uma tradução da “Tábua de Esmeralda”, de sua versão latina, é dada abaixo. Para o esclarecimento de certos pontos, foi feita menção também à versão arábica100. “1. A verdade, certamente e sem dúvida, o que está abaixo é como o que está acima, e o que está acima é como o que está abaixo, para realizar os milagres de algo. 2. Assim como todas as coisas procedem do Uno, através da meditação desse Uno, então também elas são nascidas dessa coisas única por adaptação. 3. Seu pai é o Sol e sua mãe é a Lua. O vento o levou em seu ventre e sua protetora é a terra. 4. É o pai de todas as maravilhas do mundo inteiro. 5. Sua força é perfeita se é convertida em terra. 6. Separar a terra do fogo e o sutil do grosseiro, suavemente e com grande prudência. 7. Ele emerge da terra ao céu e desce novamente do céu à terra, e assim adquire o poder das realidades 100Ver J. F. Ruska, Tabula Smaragdina, Heidelberg, 1926. 180 acima e das realidades abaixo. Desse modo você adquirirá a glória do mundo inteiro, e toda a escuridão se apartará de você. 8. Essa é a força das forças, pois ela conquista tudo o que é sutil e penetra em todo o sólido. 9. Assim o pequeno mundo é criado de acordo com o protótipo do grande mundo. 10. A partir disso, e desse modo, maravilhosas aplicações são feitas. 11. Por essa razão eu me chamo Hermes Trismegistos, pois eu possuo as três partes da sabedoria do mundo inteiro. 12. Terminado está o que eu disse a respeito da obra do Sol”. * “1. A verdade, certamente e sem dúvida, o que está abaixo é como o que está acima, e o que está acima é como o que está abaixo, para realizar os milagres de algo.” Na versão latina, o começo é como se segue: Verum, sine mendacio, certum et verissimum, mas a interpretação de Jâbir da expressão “Na verdade, certamente e sem dúvida” (haqqân, yaqînân, lâ shakka fih) é clara, pois as palavras “em verdade” se referem à fonte objetiva da revelação, enquanto as palavras “certamente e sem dúvida” referem-se a seu reflexo subjetivo no homem. A próxima sentença (a parte principal da primeira cláusula) tem uma formulação ligeiramente diferente na versão árabe, e aparentemente dá um diferente significado: “O mais alto vem do mais baixo e o mais baixo, do mais alto”. Isso se refere à dependência recíproca do ativo e do passivo, no sentido de que a forma essencial não pode ser manifestada sem a materia passiva, assim como, por outro lado, o passivo potencialmente pode apenas alcançar desenvolvimento sob a influência do polo ativo. Ademais, no “grande trabalho”, a eficácia do poder espiritual depende da preparação do “receptáculo” humano e vice-versa. Tudo isso, porém, é apenas mais um exemplo da “correspondência recíproca” de “acima” e “abaixo”, como o texto latino expressa. - “Para realizar os 181 milagres de algo”, quer dizer, do trabalho interior. “Acima” e “abaixo” estão assim relacionados a essa coisa, e se complementam em suas relações. “2. Assim como todas as coisas procedem do Uno, através da meditação desse Uno, então também elas são nascidas dessa coisas única por adaptação.” Isso significa que o trabalho hermético vem de uma única substância, seguindo o padrão (e como o inverso, a imagem “substancial”) da emanação do mundo a partir do Único Ser Divino, por meio do Espírito Uno. Em vez de meditatione unius (“pela meditação do Uno”) alguns manuscritos registram mediatione unius (“pela mediação do Uno”). Isso não altera essencialmente o sentido, já que o que é significado aqui é que a luz indivisa e invisível do Uno incondicionado é refratada na multiplicidade pelo prisma do Espírito. Platino ensinou que o Espírito (nous) constantemente contempla a Unidade Suprema, sem nunca ser capaz de compreendê-lo ou penetrá-lo complemente, e que por essa contínua contemplação ele manifesta o todo “multilateral”, assim como uma lente transmite a luz que ela recebe como um feixe de raios. A expressão árabe tadbîr, que em algumas versões aparece neste ponto, tem o duplo significado de “consideração” e “exposição” ou “dedução”. Em vez de adaptatione (“por adaptação”) Basilius Valentinus diz conjuntione (“por combinação”). “3. Seu pai é o Sol e sua mãe é a Lua. O vento o levou em seu ventre e sua protetora é a terra.” O Sol como pai da “pedra” é o espírito (nous), enquanto a Lua é a alma (psyque). “O vento o levou em seu ventre”: O vento, que carrega a semente espiritual em seu corpo, é o sopro vital, e mais genericamente a “matéria sutil” do mundo intermediário que se estende entre o céu e a terra – ou seja, entre o mundo supraformal (ou puramente espiritual) e o mundo corporal. O sopro vital é também o mercúrio, que contém a semente do ouro em estado líquido - “A sua protetora é a terra”, ou seja, o corpo como realidade interna. 182 “4. É o pai de todas as maravilhas do mundo inteiro.” “Maravilhas” é a tradução aproximada de thelesma, do qual “talismã” é derivado. Um talismã (do árabe tilism) é, estritamente falando, um símbolo no qual alguma coisa do poder do seu protótipo entrou. O símbolo foi idealizado em uma situação cósmica particular (constelação) e com uma concentração espiritual correspondente. Uma ação teúrgica dessa sorte é baseada na correspondência qualitativa entre a forma visível e o modelo invisível, e também na possibilidade de tornar essa correspondência efetiva por meio de uma espécie de “condensação” no plano sutil de um estado espiritual. Isso explica a similaridade entre o talismã como o portador de uma influência invisível e o elixir alquímico como o fermento da transformação metálica. “5. Sua força é perfeita se é convertida em terra.” Vale dizer, quando o espírito está “incorporado”, o volátil se torna fixo. “6. Separar a terra do fogo e o sutil do grosseiro, suavemente e com grande prudência.” A separação da terra, do fogo e do grosseiro, significa a “extração” da alma a partir do corpo. “7. Ele emerge da terra ao céu e desce novamente do céu à terra, e assim adquire o poder das realidades acima e das realidades abaixo.” – A “dissolução” da consciência de toda “coagulação” formal é seguida por uma “cristalização” do Espírito, e então ativo e passivo são perfeitamente unidos. Assim a luz do Espírito se torna constante. – “Desse modo você adquirirá a glória do mundo inteiro”, especificamente pela sua união com o Espírito, que é a fonte de toda a luz. – “E toda a escuridão se apartará de você.”: Isso significa que a ignorância, o engano, a incerteza, a dúvida e a tolice serão removidas da consciência. “8. Essa é a força das forças, pois ela conquista tudo o que é sutil e penetra em todo o sólido.” – O 183 sutil ou o volátil (do árabe latîf) apenas pode ser conquistado pela sua união com o sólido ou corporal, assim como só se pode reter um estado de espírito associando-o a uma imagem concreta. A fixação alquímica é, apesar de tudo, mais interior, e é relacionada àquilo que foi dito acima sobre o papel da consciência corporal como suporte de estados espirituais. Através de sua união com o Espírito, a consciência corporal mesma se torna um poder puro e penetrante que pode até mesmo ter um efeito exterior. Sobre isso Jabîr escreveu: “Quando o corpo, em seu estado de solidez e dureza, tiver sido tão alterado a ponto de se tornar puro e luminoso, ele se torna como se fosse uma coisa espiritual, que penetra os corpos, embora ele mantenha a sua própria natureza, que o faz resistente ao fogo. Nesse momento, ele se mistura com o Espírito, pois ele se tornou puro e livre, e seu efeito sobre o Espirito é torná-lo constante. A fixação do Espírito neste corpo segue o primeiro processo, e ambos são transformados, cada um assumindo a natureza do outro. O corpo se torna um Espírito, e assume dele sua pureza, brilho, extensibilidade, colocação e todas as outras propriedades do Espírito. O Espírito, por sua vez, torna-se um corpo e adquire deste último a resistência ao fogo, a imobilidade e a dureza. De ambos os elementos nasce uma substância iluminada, que não possui nem a solidez dos corpos nem a pureza dos espíritos, mas precisamente assume uma posição intermediária entre os dois extremos...”101 “9. Assim o pequeno mundo é criado de acordo com o protótipo do grande mundo.” – Na versão latina, essa cláusula está assim escrita: “Assim o mundo é criado”. O texto árabe, seguido aqui, é obviamente mais completo. O “pequeno mundo”, perfeita imagem do “grande mundo”, é o homem, quando ele realizou sua natureza original, que foi “feita à imagem de Deus”. “10. A partir disso, e desse modo, maravilhosas aplicações são feitas.” – No texto arábico está assim: “Esse caminho é atravessado pelos sábios”. 101Ver Paul Krauss, Jabîr ibn Hayyân, Cairo, 1942-43. 184 “11. Por essa razão eu me chamo Hermes Trismegistos, pois eu possuo as três partes da sabedoria do mundo inteiro.” – Trismegistos quer dizer “três vezes grande” ou “três vezes poderoso”. As “três partes da sabedoria” correspondem às “três grandes divisões do universo”, especificamente os domínios espiritual, psíquico e corporal, cujos símbolos são o céu, o ar e a terra. “12. Terminado está o que eu disse a respeito da obra do Sol” – De operatione solis: “do trabalho do sol”; mas isso também pode significar: “a respeito do trabalho do ouro” ou “a respeito da produção do ouro”. Todo o conteúdo da Tábua da Esmeralda é como que uma explicação do Selo de Salomão, cujos dois triângulos, respectivamente, representam a essência e a substância, forma e matéria, espírito e alma, enxofre e mercúrio, o volátil e o estável, o poder espiritual e existência corporal: 185 CAPÍTULO 17 CONCLUSÃO Eu espero que a exposição feita possa servir para resgatar o horizonte espiritual próprio da alquimia – “a arte real” – das suas simplificações enganadoras, inevitavelmente presentes em uma abordagem puramente histórica. Assim como os objetos no espaço parecem menores quanto mais distantes eles estão, assim o que quer que esteja distante no tempo aparece para nós reduzido e simplificado na forma – e quanto maior é o hiato entre uma era e a outra, tanto mais isso acontece. Entre nossa era e a era à qual a alquimia pertence, o hiato é incomensuravelmente largo. Assim, não é surpresa que o pesquisador moderno, sem qualquer conhecimento das artes espirituais, que em certas culturas são praticadas até hoje, veja a alquimia como se olhasse a partir do outro lado do telescópio. Ele não tem, em regra, não apenas o suporte doutrinal que poderia permitir-lhe compreender a linguagem simbólica dos alquimistas, mas – o que é mais relevante – ele não tem a possibilidade de nenhuma comparação prática, que poderia tornar claro para ele o que, nesse domínio, é possível e provável. A natureza – ou seja, a natureza corporal e psíquica do homem e das coisas – pode ser abordada por diversos ângulos e, sendo assim, cada uma das “dimensões” corresponde a um dado ponto de vista, tanto lógica como praticamente inexaurível. Assim, por exemplo, a química empírica moderna pode ser estendida indefinidamente sem que suas descobertas nunca tenham partido daquela dimensão ontológica particular que é determinada por suas premissas. Por outro lado, uma ciência tradicional, como a alquimia, pode considerar e lidar com as mesmas informações naturais (com não menos lógica) de um ponto de vista completamente diferente – mas do mesmo modo inexaurível. Um exemplo disso é a medicina tradicional dos chineses, indianos e tibetanos, métodos os quais são bastante estranhos às concepções modernas de natureza, mas que não são, por essa razão, menos eficazes. 186 A ciência moderna tem um olhar implacável para os erros “infantis” que existem “à margem” da cosmologia tradicional – mas que não tem consequências sérias. O que não se verá, porém (mas o que o olhar de uma arte espiritual tal qual a alquimia vê como algo de um significado irresistível) são suas próprias infrações – bastante imprevisíveis em suas consequências – contra o equilíbrio do homem e da natureza, para não falar da reivindicação completamente injustificável à totalidade e do inalcançável e quase absoluto repúdio do suprassensível e do incorpóreo, que caracterizam a ciência moderna. O relacionamento do homem com o meio ambiente natural varia não apenas teoreticamente, mas também praticamente, e não apenas subjetivamente, mas também do ponto de vista do meio ambiente mesmo. O mundo físico não é independente do psíquico, muito embora a perspectiva particular do ego permita que a esfera psíquica do ser individual apareça como algo inteiramente separado e isolado em si mesmo. Em épocas e culturas onde a consciência egóica é menos “coagulada” e a relação com meio ambiente natural não é dominada por preconceitos de uma perspectiva puramente racionalista, pode acontecer mais facilmente que os poderes da alma exerçam uma influência direta e sem intervenções mecânicas no mundo externo. Isso é especialmente verdade a respeito de tradições de forma “arcaica” para as quais fenômenos como iluminação, chuva, vento e crescimento são essencialmente símbolos. Aqui pode acontecer que ações particulares sagradas provoquem um eco cósmico externo. Isso pode ser observado ainda hoje entre certos povos xamânicos, tais como os índios norte-americanos. Nós devemos situar a alquimia em tais cenários, que são seu “lar” original e adequado, para fazer justiça a certos ensinamentos sobre o efeito do elixir, dos quais nem todos devem ser tomados meramente no sentido não-literal mais alto. A transmutação dos metais comuns em ouro não é certamente a verdadeira meta da alquimia, e nem poderá ser alcançada quando é procurada apenas para o seu próprio bem. Apesar disso há evidências em favor das realizações visíveis do magistério, que não podem simplesmente ser postas de lado com 187 um tapa. O simbolismo dos metais é tão organicamente relacionado com o trabalho interior da alquimia, que em poucos casos em que ele foi realizado internamente, também ocorreu no plano externo – não como resultado de qualquer operação química, mas como uma operação externa concomitante e espontânea de um estado espiritual extraordinário. A ocorrência da transformação espiritual é também um milagre, e certamente um milagre não é menor que a súbita produção de ouro a partir de um metal comum. O arqueiro japonês, iniciado nos mistérios do zen, pode atingir o alvo de olhos fechados, em razão de sua concentração interna e união íntima com a essência atemporal no momento do disparo102. Do mesmo modo, a transformação física dos metais foi um símbolo que manifestou exteriormente a santidade interna tanto do ouro como do homem – do homem, quer dizer, que completou o trabalho interno. 102Ver Eugen Herrigel (Bungaku Hakushi), Zen in the Art of Archery, Routledge and Kegan Paul, Londres, 1953. 188 LISTA CRONOLÓGICA DOS AUTORES HERMÉTICOS E MÍSTICOS CITADOS Hermes Trismegistos: data indeterminada, pré-cristão Plotino: 203-69 Synesius: (ou Synesios): século IV Herakleios I (Heraclius), Imperador Bizentino: 640-1 Khalid: final do século VII Morienus: final do século VII Jâbir Ibn Hayyân: século VIII ar-Razi, Abu-Bekr: 826-925 Senior Zadith (Turba Philosophorum): provavelmente século IX Artephius: data desconhecida, medieval Su Tung-P´o: cerca de 1110 Muhyi ´d-Dîn Ibn “Arabî: 1165-240 St. Alberto Magno (Albertus Magnus): 1193-280 Dante Alighieri: 1265-321 'Abd al-Karîm al-Jîlî: nascido em 1366 Po Yu-shuan: século XIII Abul-Qâsim al-Irâqî: século XIII Geber: provavelmente século XIII Ruysbroek, Jan van: 1294-381 Nicolas Flamel: 1330-417 Bernardus Trevisanus: 1406-90 Basilius Valentinus: final do século XV Denis Zachaire: começo do século XVI William Shakespeare: 1564-616 Jakob Boheme: 1575-624 Johann Valentin Andreae: 1586-654 Fra Marcantonio: data desconhecida Johann Georg Gichtel: 1638-710 Philatetes, Irenaeus: final do século XVII 189 BIBLIOGRAFIA DOS TRABALHOS CLÁSSICOS 1. Fontes primárias M. Berthelot, La chimie au moyen âge, I-III. Paris, 1893. M. Berthelot, Collection des alchimistes grecs, I-III. Paris, 18878. Bibliothèque des philosophes chimiques. Paris, 1741. E. Darmstaedter, Die Alchemie des Geber, 1922. A.-J. Festugière, Corpus Hermeticum, French translation. Paris, 1945. Paul Krauss, Jâbir ibn Hayyân, I-II. Cairo, 1942-3. Manget, Bibliotheca chemica curiosa, I-II. Geneva, 1702. J. F. Ruska, Arabische Alchemisten, I-II. 1924. J. F. Ruska, Tabula Smaragdina. Heidelberg, 1926. J. F. Ruska, Turba Philosophorum. 1931. Theatrum Chemicum, I-VI. Strasbourg, 1659. Claude d´Ygé, Nouvelle Assemblé des philosophes chymiques. Paris, 1957. 2. Trabalhos gerais Maurice Aniane, Notes sur l´alchimie, em Yoga, science de l ´homme intégral. Cahiers du Sud. Paris, 1956. Mircea Éliade, Forgerons et alchimistes. Paris, 1956. Julius Evola, La tradizione ermetica, Bari, 1931 e 1948. E. J. Holmyard, Alchemy. Pelican Books. Londres, 1956. Edmund von Lippmann, Entstehung und Ausbreitung der Alchemie. I. 1919, II, 1931. 190