a ação afirmativa na suprema corte dos eua e sua
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a ação afirmativa na suprema corte dos eua e sua
JOÃO FERES OPINIÃO: A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE DOS EUA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE DOS EUA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL João Feres Júnior Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) [email protected] Resumo: O presente artigo examina criticamente a recepção por parte da grande mídia brasileira da notícia de que a Suprema Corte dos EUA permitiu que os estados, se assim decidirem, revoguem suas políticas de ação afirmativa de recorte étnico racial. Mostro que a notícia foi enquadrada pela Folha de S. Paulo como se a corte tivesse declarado a inconstitucionalidade da política, enquanto o jornal O Globo retratou corretamente a decisão da corte no texto da reportagem, ainda que a notícia em si contivesse títulos que indicavam interpretação adversa, ou seja, que a constitucionalidade das ações afirmativa de fato tivesse sido atingidas pela decisão da corte. Em seguida, interpreto a decisão da corte norte-americana à luz de sua jurisprudência sobre ação afirmativa para mostrar que os enquadramentos dos dois jornais, a Folha mais do que o Globo, são francamente distorcidos e enviesados. Palavras-chave: grande mídia; ação afirmativa; Suprema Corte; Estados Unidos. Abstract: The present article critically examines the reception by part of the great Brazilian media of the news that the Supreme Court of the USA has allowed the states to, if so desired, revoke their affirmative action policies of an ethnic and racial nature. I present how the news were framed by Folha de Sao Paulo as if the Court had declared the unconstitutionality of such policies; whereas the newspaper O Globo correctly presented the decision of the Court in the text of the article, although the article itself contained titles that indicated an adverse interpretation, that is, that the constitutionality of affirmative actions had truly been affected by such decision. Following, I interpret the decision of the North-American court in light of its jurisprudence concerning affirmative action in order to show that the framing of both newspapers, Folha more than O Globo, are openly distorted and biased. Keywords: great media, affirmative action, Supreme Court, United States. No dia 22 de abril, em pleno feriado, recebi telefonemas de alguns jornalistas que me pediram para “repercutir” a notícia de que a Suprema Corte dos EUA teria permitido, em votação cujo resultado foi 6 a 2, aos estados Em Debate, Belo Horizonte, v.6, n.2, p.61-72, Mai. 2014. 61 JOÃO FERES OPINIÃO: A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE DOS EUA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL daquele país abolir, se assim decidirem, políticas de ação afirmativa baseadas em critérios étnicos e raciais. Respondi diligentemente às perguntas, mas como nunca se pode garantir que opiniões sejam reproduzidas de maneira fidedigna ou de modo suficientemente extenso para fazerem sentido, desenvolvo abaixo o que penso sobre o assunto. É preciso ressaltar que o interesse maior dos jornalistas era saber quais as consequências desse ocorrido para as políticas de ação afirmativa no Brasil. Um até me perguntou se a partir de agora começaria um novo movimento de rechaço às cotas raciais em nosso país. A demanda por previsão já é, em si, incômoda. Sou do tipo de cientista social que prefere falar mais sobre o que é e o que já foi do que sobre o que pode ser. Isto é ainda mais verdadeiro quando o serviço é gratuito, como no caso em que nos prestamos a informar a imprensa, imprensa essa, por seu turno, quase toda privada e oligopolizada. Isto é, ganhamos quase nada de prestígio se acertamos a previsão e passamos por incompetentes se erramos, para os poucos que prestam atenção a estas matérias. Ainda assim, escolhi responder. Descontando a vaidade, há sempre o perigo de o espaço ser ocupado por uma opinião ainda pior do que a minha. Claro que, ao responder, levei em consideração alguns fatos importantes. Nossos estudos no Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa GEMAA1 revelam que a grande mídia brasileira apresentou viés contrário às políticas de ação afirmativa durante os dez anos que se seguiram à implantação das primeiras iniciativas, na UERJ e na UNEB2, distorcendo fatos, dando ênfase a enquadramentos negativos, dando mais destaque às opiniões contrárias do que às favoráveis, etc. Há também o imperativo do jornalismo diário de produzir notícias mesmo quando o que há para ser 1 Grupo 2 de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa - GEMAA http://gemaa.iesp.uerj.br/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Em Debate, Belo Horizonte, v.6, n.2, p.61-72, Mai. 2014. 62 JOÃO FERES OPINIÃO: A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE DOS EUA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL noticiado não é tão relevante assim. Ou seja, repórteres frequentemente se esforçam para tirar leite de pedra. E, por fim, há também o despreparo frequente de jornalistas no que toca às matérias que se aventuram a fazer. A dinâmica da produção já empurra naturalmente para a superficialidade, pois os repórteres têm que cobrir um sem número de assuntos. Se juntarmos a isto a crise econômica dos jornais e da mídia tradicional em geral, o que contribui para deprimir os salários da categoria, temos uma combinação explosiva (ou seria implosiva?). O caso em questão me pareceu sofrer de uma mistura de todas estas coisas. Mas vamos aos argumentos. Minha resposta à pergunta geral foi negativa, para desânimo dos entrevistadores: não, não acho que essa decisão da Suprema Corte americana vá ter consequências importantes para o funcionamento das políticas de ação afirmativa em nosso país. As razões são muitas. A decisão da Suprema Corte dos EUA, salvo melhor juízo, pois não a examinei em detalhe ainda, parece não revogar qualquer decisão anterior e simplesmente afirmar a autonomia dos estados em regular tais políticas. A Suprema Corte norte-americana decidiu que não há impedimento constitucional para que os estados legislem acerca deste assunto, isto é, que os eleitores de Michigan ou seus representantes têm autonomia para legislar sobre estes assuntos, e, por conseguinte, também os de outros estados. Isto não significa qualquer declaração de inconstitucionalidade das políticas de ação afirmativa baseadas em critérios raciais. Em suma, nos EUA tais políticas continuam sendo consideradas constitucionais, segundo a decisão de Regents of the University of California v. Bakke, de 1978, que ficou conhecido como caso Bakke. É preciso entender o que foi a decisão do caso Bakke para compreender corretamente o que se passou agora. Allan P. Bakke, um candidato à escola de Em Debate, Belo Horizonte, v.6, n.2, p.61-72, Mai. 2014. 63 JOÃO FERES OPINIÃO: A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE DOS EUA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL medicina da Universidade da Califórnia em Davis teve sua aplicação rejeitada3 por ser considerado muito velho. Ele então entrou com uma ação contra a universidade, argumentando que o programa de reserva de cotas para negros, então em funcionamento, violava os direitos dos candidatos brancos. O caso foi aceito pela Suprema Corte norte-americana e seu julgamento criou o padrão de interpretação para as políticas de ação afirmativa em vigor até hoje nos EUA. Segundo o relator do caso, o juiz Lewis Powell, a diversidade na sala de aula deveria ser considerada um interesse precípuo do Estado e portanto o uso de critério racial estava de acordo com a Constituição e o Civil Rights Act, de 1964. Contudo, o formato de reserva fixa de vagas, as cotas, foi considerado excessivamente rígido e declarado inconstitucional. O relatório de Powell foi aprovado por uma pluralidade de juízes da corte, isso acontece quando vários juízes subscrevem partes da decisão. Em 2003, ao julgar outro caso contra um programa de ação afirmativa racial, Grutter v. Bollinger, dessa vez na Universidade de Michigan, a Corte ratificou a opinião de Powell, agora por maioria. Ainda no plano da ordem constitucional, é fato que nos EUA a autonomia legislativa dos estados frente à união é muito maior que no Brasil. Ainda que historicamente o problema do conflito federativo tenha sido fundamental nos dois países, não raro dividindo o campo político em dois polos opostos, as soluções dadas em cada país diferiram no grau de A expressão “aplicação rejeitada” usada aqui é um anglicismo que tem por função descrever um sistema de admissão diferente daquele praticado no Brasil e para o qual não temos um correspondente preciso. A admissão à educação superior dos EUA é geralmente regulada por comitês de professores. Cada programa ou curso forma um comitê, que por seu turno decide os critérios a serem avaliados e o peso de cada critério, além de um exame geral chamado SAT (Scholastic Assessment Test) para a graduação e GRE (Graduate Record Examination) para a pós-graduação, uma série de outros fatores influenciam na classificação final, tais como o currículo do aluno, tanto as notas como seus interesses intelectuais, sua carta de apresentação, cartas de recomendação, se é filho de ex-aluno da instituição, se é esportista, se tem alguma capacidade ou qualidade especial. Quando há políticas de igualdade de oportunidades, dados como cor, gênero e origem dos candidatos também são levados em consideração. Assim, cada candidato envia para as secretarias dos cursos nos quais quer entrar pacote com um conjunto de documentos probatórios (application package) requeridos pela instituição para que sua candidatura seja apreciada pelo comitê. 3 Em Debate, Belo Horizonte, v.6, n.2, p.61-72, Mai. 2014. 64 JOÃO FERES OPINIÃO: A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE DOS EUA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL centralização, sendo que no Brasil ele tem sido quase sempre maior do que nos EUA. Contrário ao que muitos possam intuir, em ambos os contextos foram os movimentos de centralização, e não seus adversários, que permitiram a expansão de direitos e a inclusão de setores alijados da representação política e dos serviços do Estado, quebrando os privilégios e poderes locais. A Guerra Civil Americana é certamente o exemplo mais extremado deste conflito entre dois projetos de nação, com os localistas em favor da escravidão. O Movimento pelos Direitos Civis, cem anos depois, é outro importante exemplo: nessa ocasião os localistas defendiam os direitos dos estados do sul à segregação racial. No Brasil, igualmente, exemplos deste tipo abundam. O livro Coronelismo, Enxada e Voto, de Victor Nunes Leal retrata bem as consequências deletérias da descentralização ocorrida durante a república velha para as classes mais baixas. Saltando também cem anos à frente, vemos como nos dias de hoje, por não estarem submetidas à legislação federal, as universidades estaduais de São Paulo resistem à implantação de programas de inclusão efetivos (ver nosso estudo As políticas de ação afirmativa nas universidades estaduais (2013)4), mantendo assim estudantes negros e alunos de escola pública com potencial fora de seus domínios. Em suma, discursos pseudorrepublicanos de defesa da autonomia local foram concretamente agenciados para a defesa de privilégios e para a negação de direitos para setores oprimidos de ambas as sociedades. O exemplo ora discutido parece emblemático e não desprovido de consequências políticas, contudo. Ao sinalizar explicitamente que a ação afirmativa racial compete à autonomia estadual, a Suprema Corte dos EUA cria um incentivo para políticos, movimentos e lideranças conservadoras daquele país tentarem proibir tais iniciativas por meio de legislação estadual. Nem isso é em si 4 http://gemaa.iesp.uerj.br/publicacoes/levantamento/levantamento1.html Em Debate, Belo Horizonte, v.6, n.2, p.61-72, Mai. 2014. 65 JOÃO FERES OPINIÃO: A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE DOS EUA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL novidade, pois estados como a Califórnia e o Texas, sob o governador George W. Bush, entre outros, já fizeram isso no passado. Já no Brasil, a Lei nº 12.711/20125, também conhecida como Lei de Cotas, é federal. Assim, ela não pode ser abolida por legislação estadual. Não adianta aos conservadores brasileiros a mobilização no plano estadual, a não ser, é claro, em estados onde o sistema estadual de educação superior é extenso e prestigioso, como é o caso de São Paulo. Os jornalistas perguntaram também se tal decisão não teria um efeito simbólico no Brasil, uma vez que as políticas de ação afirmativa daqui eram inspiradas nas dos EUA. Aqui temos uma concepção parcialmente falsa, propalada pelos adversários das ações afirmativas no Brasil: a ideia de que essas políticas foram, no Brasil, copiadas dos EUA. Ainda que o Movimento dos Direitos Civis norte-americano tenha de fato inspirado movimentos negros em vários países da chamada diáspora africana, as políticas de ação afirmativa no Brasil são bem diferentes das norte-americanas. Só para ressaltar algumas disparidades cruciais, naquele país as cotas foram declaradas inconstitucionais justamente no julgamento do caso Bakke, de 1978, o mesmo que declarou constitucional o uso da raça como na seleção de candidatos, como explicado acima. Já no Brasil, o sistema de reserva de vagas conhecido como cotas foi o mais adotado desde o começo, como mostrou nossa pesquisa A ação afirmativa no ensino superior brasileiro (2011)6 e teve sua constitucionalidade confirmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 1867, de 2012, quando o tribunal por unanimidade rejeitou o pedido de inconstitucionalidade contra as cotas raciais impetrado pelo partido Democratas. Mais importante é notar que nos EUA a ação afirmativa tem um perfil étnico e racial diferente daquele adotado no Brasil. Lá, tal política é vista, em 5 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm 6 7 http://gemaa.iesp.uerj.br/publicacoes/levantamento/levantamento3.html Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 – ADPF 186 Em Debate, Belo Horizonte, v.6, n.2, p.61-72, Mai. 2014. 66 JOÃO FERES OPINIÃO: A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE DOS EUA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL grande medida, como uma iniciativa para a promoção da diversidade que, por seu turno, é compreendida como diversidade cultural. Isto é, há uma tendência de se sobrepor raça e cultura e de se tratar a diferença como sendo ao mesmo tempo cultural e racial. Assim, a ação afirmativa propriamente se estende a blacks, ou African Americans, indígenas, mulheres, latinos e outras "minorias". A ideia de minoria subrepresentada lá é crucial. No Brasil, por outro lado, a ação afirmativa é raramente tratada sob o prisma da diferença cultural. Os beneficiários da ação afirmativa de recorte racial são definidos pela Lei Federal nº 12.711/2012 como pretos e pardos, duas categorias censitárias de autoidentificação que, a princípio, não estão ancoradas em percepções de diferença cultural. Em suma, pelo menos neste plano mais diáfano da influência simbólica, a decisão da Suprema Corte norte-americana não deverá ter muita importância, pois as pessoas responsáveis pelo funcionamento destas políticas aqui no Brasil não me parecem estar por demais preocupadas com os acontecimentos da política doméstica norte-americana. Outra razão pela qual tal influência não deve se dar são os momentos históricos díspares vividos por cada sociedade. A partir do sucesso do Movimento por Direitos Civis, que culminou com a abolição das Jim Crow Laws e com a criação de políticas de ação afirmativa na década de 1960, os EUA experimentaram um período de avanço progressista, com expansão de direitos e inclusão social respaldadas inclusive pelas decisões da Suprema Corte, em casos de constitucionalização. Desde a eleição de Ronald Reagan, contudo, o país atravessa uma fase de acentuado conservadorismo que perdura até os dias de hoje. Tal conservadorismo se reflete na contração do já frágil estado de bem-estar social norte-americano, incluindo aí o ataque às políticas de ação afirmativa, que, como já argumentei em outra ocasião, são políticas próprias da concepção de igualdade em que se baseia o estado de bem-estar. Em Debate, Belo Horizonte, v.6, n.2, p.61-72, Mai. 2014. 67 JOÃO FERES OPINIÃO: A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE DOS EUA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL 68 O Brasil, de seu lado, vive desde a redemocratização um processo de contínuo avanço das instituições democráticas, expresso também no aprimoramento de um sistema de direitos sociais para diversos setores desprivilegiados de nossa população: deficientes, quilombolas, mulheres, pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, etc. Ou seja, o Estado de BemEstar Social aqui tem se expandido e a criação de políticas de ação afirmativa, que se espalharam pelo país muito rapidamente nos últimos dez anos, são parte dessa história (ver nosso estudo A ação afirmativa no ensino superior brasileiro – 2011). A decisão do Supremo Tribunal Federal, de 2012, pela constitucionalidade das políticas de ação afirmativa racial por unanimidade sinaliza bem este estado de coisas. Assim, não há porque supor que um fato pertinente ao âmbito doméstico da política e sociedade norte-americanas venha a influenciar a posição das instituições e da sociedade brasileira no tocante a este assunto. Minhas suspeitas foram, infelizmente, confirmadas em parte. O artigo de O Globo, do dia 23 de abril, retrata de maneira mais correta os acontecimentos, deixando claro que não se tratava da declaração de inconstitucionalidade das políticas de ação afirmativa de recorte racial, mas somente do reconhecimento da autonomia estadual de legislar sobre o assunto. É importante notar, contudo, que os títulos da notícia não conduzem ao bom entendimento de seu conteúdo. Eles são algo distorcidos. O título principal declara: “EUA: decisão judicial põe em xeque ação afirmativa”. É irônico notar que o texto da matéria deixa bem claro que não foi isso que ocorreu. Não houve questionamento da legalidade da política por parte da Corte. O título não é somente bombástico, ele é equivocado. O texto tem somente um subtítulo de seção, que ocorre no corpo do texto e serve para separar uma seção de outra. Nele se lê: “COTAS FERIRIAM CONSTITUIÇÃO”. Esta seção, a maior do texto, tem 7 parágrafos. No primeiro, os autores explicam claramente que o entendimento Em Debate, Belo Horizonte, v.6, n.2, p.61-72, Mai. 2014. JOÃO FERES OPINIÃO: A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE DOS EUA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL anterior da Suprema Corte norte-americana, a de que raça pode ser usada como critério de seleção, foi mantido, e que, portanto, as políticas hora em vigor continuam "válidas". No segundo parágrafo, os jornalistas citam o argumento do advogado do estado de Michigan, que acusa a ação afirmativa de violar o princípio da igualdade. Nos parágrafos seguintes até o final do artigo o texto se volta para o caso brasileiro. Eu e Frei David somos entrevistados, e, basicamente, concordamos acerca da pouca relevância do ocorrido para a realidade da ação afirmativa em nosso país. Em suma, mais de três quartos da seção expressam opinião segundo a qual a ação afirmativa é constitucional, nos EUA e no Brasil, mas o título captura a opinião minoritária, do advogado de Michigan. Caso clássico de forte viés de seleção. A dissonância entre títulos e texto na reportagem de O Globo é pronunciada a ponto de podermos duvidar se os autores do texto são também autores dos títulos. Será que não haveria uma mão de editor aí? Será que um jornalista escreveu os títulos e outro a matéria? Essas são questões que não tenho como responder. O caso da Folha de S. Paulo é exatamente inverso na relação textomanchete, mas bem pior do ponto de vista da competência jornalística. A manchete da matéria é bem descritiva: “Suprema Corte declara legítima lei de Michigan que veta cotas raciais”. O texto que se segue é muito curto, um resumo de agência de notícia e não uma reportagem propriamente dita. O redator anônimo da notícia começa em tom peremptório: “A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu nesta terça-feira que a raça dos estudantes não pode mais ser um fator para a admissão nas universidades, em um revés ao legado do movimento pelos direitos civis dos anos 1960”. Em seguida, o texto afirma, corretamente, que a corte decidiu pela constitucionalidade da decisão do referendo de Michigan contra a ação afirmativa racial. Novamente, não tenho meios para descobrir a causa por trás de um erro tão grosseiro de Em Debate, Belo Horizonte, v.6, n.2, p.61-72, Mai. 2014. 69 JOÃO FERES OPINIÃO: A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE DOS EUA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL interpretação. A corte nunca produziu tal decisão. O próprio texto, a despeito de ser tão curto, é contraditório. Os estudos do GEMAA sobre a cobertura jornalística da ação afirmativa revelaram viés contrário à política por parte dos dois jornais, expresso no uso de diferentes técnicas editoriais como uso desequilibrado de fontes, manipulação de manchetes e títulos (como vimos aqui), desequilíbrio na representação de opiniões, entre outras.8 Aqui temos mais dois exemplos desta prática, com a ressalva de que, nos estudos, O Globo se mostra bem mais militante do que a Folha e, em nosso exemplo, a distorção na pequena notícia do jornal paulista é bem maior. Conclusão No final das contas, o que temos nos dois países é o embate político entre dois projetos diversos para a democracia liberal. Um que coloca ênfase no elemento democrático, que é também chamado social-democrático, e outro que aposta na liberdade do usufruto individual da propriedade frente ao coletivo. O pensamento de John Rawls em Uma Teoria da Justiça (RAWLS, 1997) continua sendo de grande valia para entendermos e tomarmos posição nesse debate. Isto porque Rawls demonstra que por dentro da teoria liberal é possível se justificar a igualdade de oportunidades. Na verdade, Rawls desnaturaliza a própria ideia de mérito ao postular que as vantagens advindas da posição social de nascimento são moralmente arbitrárias, pois não derivam das escolhas das pessoas. Assim, é profundamente contraditório que uma teoria que foca o indivíduo aceite que alguém tenha seu destino traçado pelo acidente de ter nascido em uma família pobre e, assim, durante sua vida, seja incapaz de obter os meios para competir com seus parceiros de sociedade por Ver Textos para Discussão GEMAA no. 2, O Globo e as ações afirmativas: dez anos de cobertura (2001-2011) e Textos para Discussão GEMAA no. 3, A Folha de S. Paulo e as ações afirmativas: dez anos de cobertura (2001-2011) <http://gemaa.iesp.uerj.br/publicacoes/textos-para-discussao/tpd2.html> 8 Em Debate, Belo Horizonte, v.6, n.2, p.61-72, Mai. 2014. 70 JOÃO FERES OPINIÃO: A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE DOS EUA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL emprego e renda. Ou seja, só podemos falar de mérito quando as condições iniciais são similares. Caso contrário, temos somente a reprodução do privilégio. Como bem disse o advogado Oscar Vilhena em audiência do Supremo Tribunal Federal, o vestibular que por tantos anos vigorou como única porta de entrada para o ensino superior em nosso país é um sistema de se premiar, não o mérito, mas a capacidade de investimento que a família tem na educação de seus filhos. Assim, as famílias de classe alta e média-alta conseguem pagar as mensalidades das escolas mais caras, que mais bem treinam os estudantes para o vestibular, e seus filhos têm grandes vantagens competitivas nestes exames. É difícil caracterizar este estado de coisas como mérito verdadeiro. No mais, o estudo da história ensina que nada é totalmente estável no mundo. Não há garantia alguma de que Brasil e EUA continuem da mesma maneira, nós mais progressistas e eles mais conservadores. As coisas podem se reverter: a sociedade é muito complexa, a política está sujeita a uma enorme gama de fatores de difícil previsão sistemática e de longo prazo, e há sempre a deusa Fortuna operando sobre as coisas humanas, como já alertava o célebre pensador florentino renascentista. Referências BARBOSA, Flavia; NETO, Lauro. EUA: Decisão Judicial Põe Em Xeque Ação Afirmativa. O Globo, Rio de Janeiro, 23 abr. 2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/> LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada E Voto: O Município E O Regime Representativo No Brasil. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1948. RAWLS, John. Uma Teoria Da Justiça. Traduzido por Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. FOLHA DE SÃO PAULO. Suprema Corte Declara Legítima Lei De Michigan Que Veta Cotas Raciais. Folha de S. Paulo, São Paulo, 22 abr. 2014. Caderno Mundo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/04/1443915-suprema-corte-declara-legitimalei-de-michigan-que-veta-cotas-raciais.shtml Acesso em: 23 abr. 2014. Em Debate, Belo Horizonte, v.6, n.2, p.61-72, Mai. 2014. 71 JOÃO FERES OPINIÃO: A AÇÃO AFIRMATIVA NA SUPREMA CORTE DOS EUA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL BRASIL. Lei n° 12.711 de vinte e nove de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Brasília, 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm> Em Debate, Belo Horizonte, v.6, n.2, p.61-72, Mai. 2014. 72
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