Diário de Flores ou Lamento de um Blue
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Diário de Flores ou Lamento de um Blue
Diário de Flores ou Lamento de um Blue Organizado por Tânia Lima Diário de flores Ou lamento de um blue Diário de flores Ou lamento de um blue Tânia Lima Lucgraf Natal 2010 Capa Thomaz Monteiro Fotografia da capa: Leila Aquino Revisão Da autora Diagramação: Rosângela Trajano Este livro foi composto em 2010. Copyright by Tânia Lima Lucgraf - Editora Gráfica Ltda. Todos os direitos reservados a autora. Lei do Direito Autoral 9.610/98 Divisão de Serviços Técnicos Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede Lima, Tânia. Diário de flores ou lamento de um blue / Tânia Lima. – Natal, RN: Lucgraf, 2010. 165 p. ISBN 978-85-60621-13-2 1. Literatura brasileira. 2. Ficção brasileira. 3. Lima, Tânia. RN/UF/BCZM CDU 869.1 Nascemos num tempo verde. (Carlos Emílio Corrêa Lima) SUMÁRIO 1 AQUI COMEÇO .......................................................................... 06 2 AS ÁRVORES ME COMEÇAM.................................. ............... 12 2.1 Retrato do poeta quando coisa ................................. ............... 20 3 O VERÃO - MUNDO PEQUENO........... .................................32 3.1 As ruínas urbanas............................................................................49 4 O OUTONO - A NATUREZA COMO LUGAR DE SER INÚTIL...................................................................................................54 4.1 A natureza das coisas..........................................................................60 4.2 Discussão sobre a utilidade das coisas....... ..................................69 4.3 A natureza e as coisas .....................................................................77 4.4 A natureza sob o olhar da ordinariedade.................................... 82 5 O INVERNO - A LINGUAGEM DO INUTENSÍLIO EM ARRANJOS PARA ASSOBIO....................................................................................101 5.1 A natureza da linguagem inútil ...................................................105 5.2 Manoel de Barros e a escrita de João Cabal de Melo Neto........ 111 5.3 Manoel de Barros e Guimarães Rosa...........................................124 5.4 Os deslimites das palavras ........................................................... 128 5.5 As dificuldades da poética manoelina.............................................139 5.6 O arranjo das letras .....................................................................139 6 PALAVRAS INACABADAS .......................................................148 6.1 Árvores me terminam......................................................................148 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................156 1 . AQUI COMEÇO 6 É nosso objetivo ler a poesia de Manoel de Barros enquanto poética da ordinariedade que, voltada para os objetos mais ínfimos da natureza, elege o traste, o inútil, o ordinário, como elementos providos de valor poético. Devido à escassez de material teórico sobre o ordinário e sua importância para à Literatura, pesquisamos o tema em diversos autores até que pudéssemos revelar o ordinário como substrato poético em Manoel de Barros. Em alguns momentos, estendemos nossa leitura à própria filosofia. Contudo, não adentramos na questão marxista sobre a análise de valor, o que poderia até nos levar a uma posição mais profunda. Preferimos nos render aos encantos da poesia manoelina e sermos conduzidos aos diversos aspectos dessa poética. Nesse sentido, fomos levados pelas mãos da arte, livres, na captura de imagens que sugerissem o imprestável. Pois como diz Manoel de Barros(1991:58): “Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas - é de poesia que estão falando”. Assim, saímos para ver a natureza em suas quatro estações: primavera, verão, outono, inverno. E fomos sendo conduzidos pelos autores: Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Francis Ponge e Leyla Perrone-Moisés, que, entre diferenças, semelhanças, rastros de influências, subsidiaram uma melhor compreensão da poética da ordinariedade de Manoel de Barros. Não se pense que há, aqui, uma pretensão de esgotar tal estudo, solucionar todas as dúvidas e controvérsias. No entanto, aproveitamos os cotejos, as opiniões e alguns conceitos sobre o tema em estudo. Em verdade, conhecemos a poesia de Manoel de Barros, em 1987, através de um recorte do jornal de Brasília, Diário Brasiliense. A partir de então, começamos a nos interessar em conhecer um pouco mais a poética consagrada pela harmonia do ser humano com a natureza, pela eleição das coisas ínfimas e ordinárias. Por essa época, Manoel de Barros ainda não era tão conhecido no Brasil e, mesmo no Nordeste, o pouco que nos chegava de seus poéticos fragmentos, vinha através de limitadas cópias xerografadas. Não sabíamos, 7 àquela época, que Manoel de Barros já comungava com sapos, com aves, com árvore, enaltecendo a igualdade e as semelhanças entre os mesmos. Esse nosso encontro com a poética de Manoel de Barros também foi sendo demarcado, posteriormente, através de pequenos achados em revistas como: Bravo, Cult, Remates de Males e de alguns jornais como Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, O Povo, Diário do Nordeste e O Estado de São Paulo. Além de leituras da dissertação de mestrado de Patrícia Pavas, O senhor cujo olhar se dirige para baixo ( 1997), relemos a obra completa desse autor ao longo desses breves anos. Diante disso, saímos em direção à “biografia do orvalho”. Nesse momento de nossa pesquisa, conhecemos a vida de Manoel de Barros em sua natural simplicidade. Curiosamente, Manoel de Barros é um sujeito tão desacontecido que, quando nos aparece, vem de costas: “Tem saudade de puxar por um barbante sujo umas latas tristes” ( Barros, 1998: 47). E quando aparece de frente: “Não serve mais pra pessoa, é uma ruína concupiscente” ( Barros, 1996: 79). Do lugar onde estávamos fomos embora, carregando a lembrança tímida dali. Guardamos nossas palavras, seguimos nossas idéias, nossa viagem. Chegamos à segunda parte de nosso trabalho, quando o verão desamanhecia na cidade grande - nas páginas do livro Face imóvel (1942), reeditado em o livro Poesia quase toda em uma edição de 1990. Revelamos, aqui, a face urbana de um Manoel de Barros da primeira fase, em dois momentos: “na cidade coisificada” e em “as ruínas urbanas”. O Manoel de Barros, dessa primeira fase, aproxima-se, de certa forma, da escrita do mestre Manuel Bandeira, segundo Orlando Antunes Batista em seu livro Lodo e ludo ( 1989). Entre imagens e fragmentos, também mostramos, nesta segunda parte, que o poeta revela um culto à simplicidade como aspecto imanifesto da realidade suburbana. A preferência de Manoel de Barros pelos objetos elementares não ocorre em detrimento de outro propósito, além de corrigir o exagero da racionalidade na vida humana . 8 “No cais, entre navios altos e velas brancas” ( Barros, 1956:9), partimos em direção ao outono, a terceira parte de nossa pesquisa, que designamos “ na oficina de transfazer as coisas da natureza em inútil poesia”. Nessa parte, situamos a “natureza das coisas” no livro Arranjos para assobio (1982). Em seguida, com a chegada do inverno, veio a chuva e lavou as palavras, molhou os desvios, renovou a linguagem. Nessa última parte, mostramos “a linguagem do inutensílio”, “a natureza da linguagem inútil”, “os deslimites das palavras” e os “arranjos das letras”. Comparamos a linguagem de Manoel de Barros com a de João Cabral de Melo Neto para afrontarmos suas diferenças, como também apontamos possíveis similitudes da escrita manoelina com a do escritor Guimarães Rosa. Constatamos que Manoel de Barros, em sua poética do “Inutensílio”, passa a ser, ele mesmo, parte integrante dos bichos, das árvores, das pequenas coisas e, principalmente, da poesia: “Se a gente encostava em ser ave ganhava o poder de alçar “ ( Barros, 1998:77). Como diz Fausto Wolff nas orelhas do livro Retrato do artista quando coisa ( 1998): “suas metáforas cumprem a função das metáforas”. Finalmente: “Como é difícil provar que em abril as manhãs recebem com mais ternura os passarinhos” ( Barros,1991:45), ao vermos “o musgo e os limos a tomar conta do batente”( Barros,1998:73), cotejamos a escrita humilde de Manoel de Barros à escritura complexa de Francis Ponge, em O partido das coisas, que, em um estudo mais aprofundado, acabaria por revelar uma vasta rede intertextual entre os dois escritores. E fica-se, de resto, com as sobras, com as migalhas, mas ficase sobretudo com esse sabor de querer ficar um pouco mais entre palavras, pois na ilusão das palavras o impossível ganha a suposição do visível. E na suposição do visível, é melhor “viajar por palavras do que de trem”... 9 MANOEL DE BARROS O Poeta das Coisas Mínimas 10 A PRIMAVERA PRIMEIRA ESTAÇÃO: A biografia do orvalho Nascemos num tempo verde. Carlos Emílio Corrêa Lima 11 2 - As árvores me começam "O brejo era bruto de tudo. Notícias duravam meses. Mosquito de servo era nuvem. Entrava pela boca do vivente. Se bagualeava com lua. Gado comia na larga." ( Barros,1985:69). A céu aberto, concerto de pássaros em solo de frase. A natureza amanhece no beco da Marinha, à beira do rio Cuiabá. No calendário, 19 de dezembro de 1916 - na cidade escondida de Corumbá - Mato Grosso do Sul, no Pantanal, brota Manoel de Barros, o poeta da natureza, poeta do chão, poeta do barro, poeta com cheiro de terra, terra que já nasce molhada: Quando nasci o silêncio foi aumentado Meu pai sempre entendeu Que eu era torto Mas sempre me aprumou. ( Barros, 1991:16) Filho de um capataz de fazenda que se torna fazendeiro e de uma violinista amadora, Manoel de Barros tem uma infância repleta de natureza por todos os lados: “Teias o alcançam. Lagarta recortam seu dólmã verdoso. Formigas fazem-lhes estradas. 12 (Barros,1985:42) No desfolhar dos anos, Manoel de Barros passa a ter um contato maior com o chão de sua infância: “Vai desremelar esse olho, menino! Vai cortar esse cabelão, menino! Eram os gritos de Nhanhá”(Barros,1990:35). Seus primeiros brinquedos eram o de todo “menino montado no cavalo do vento”: subir em árvores, andar descalços pelo mato, tomar leite no curral, pegar passarinho, brincar com osso de arara, pedaços de pote, banhar no rio, fingir que “pedra era lagarto”, que “lata era navio”, que “sabugo de milho era boi,” ser aprendiz de pescaria, tomar banho de chuva, enfim ser criado pelos ventos; coisas que ficam guardadas no lastro da infância, o gosto pela insignificância, o cenário da sensibilidade, memória do coração: Remexo com um pedacinho de arame nas minhas memórias fósseis tem por lá um menino a brincar no terreiro entre conchas, osso de arara, sabugos, asas de caçarola etc. E tem um carrinho quebrado de borco no meio do terreiro. O menino cangava dois sapos e os botava a arrastar o carrinho. Faz de conta que ele carregava areia no seu caminhão. O menino também puxava nos becos de sua aldeia, por um barbante sujo, umas latas tristes. Era sempre um barbante sujo eram sempre umas latas tristes. ( Barros, 1999: 14) A sua paixão pelas coisas da natureza vem dessa época em que esmiuçava as coisas do chão, histórias de vaqueiros andarilhos perdidos mundo a dentro, conversas de assombração em galpão, ficção de lugares fascinantes que a simples vida se encarrega de 13 guardar ou de lembrar: vida feita em carros de boi, abrindo o caminho da boiada para uma outra porteira, a da imaginação: 8. Nasci para administrar o à toa o em vão o inútil. ............................................ ( Barros,1996:51) Sem muita habilidade, Manoel de Barros é alfabetizado por sua tia, Rosa Pompeu Campos, que incentiva, logo cedo, o pequeno aprendiz a lidar com a língua do brejo. E, assim, aos seis anos, Manoel de Barros aprendeu a ler - tinha facilidades para errar a língua. Fazia arranjos com os garranchos, soletrava baixinho , assobiava. Daí botei meu primeiro verso: Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem. Mostrei a obra para minha mãe. A mãe falou: - Agora você vai ter que assumir as suas responsabilidades. Eu assumi, entrei no mundo da imagem. ( Barros, 2000:47) Amanhecido demais para ficar ali, Manoel de Barros parte para o internato Pestalozi, em Campo Grande. Por lá, ficou, entre 1927 e 1928, sofrendo daquela dor que, quando acontece, levamos para o resto da vida. 14 Que vontade de voltar para a fazenda! Por que deixam um menino que é do mato Amar o mar com tanta violência? ( Barros, 1990: 94) Quando termina o primário, a condição da família Barros já havia melhorado um pouco. Sem luxo ou desperdício, por imposição do pai, vai estudar no Rio de Janeiro. Na capital, cursa ginásio no colégio La-Fayette, mas o aluno Manoel de Barros, aqui e ali, era pego rascunhando dispersão na carteira. Não tinha disciplina para a realidade. XXV ( Lembrança) Perto do rio tenho sete anos. ( Penso que o rio me aprimorava.) Acho vestígios de uma voz de pássaros nas águas. Viajo de trem para o Internato. Vou conversando passarinhos pela janela do trem. ...................................................................... ( Barros, 1991:27) No colégio, o menino bisonho vivia no mundo das nuvens, lembrando-se do amanhecer no céu do seu coração: o Pantanal. No entanto, as notas de Manoel de Barros não estavam nada bem. Entre 3,0 e 4,0 no A mãe ainda quis mandar-lhe, em letra de forma, um bilhete atrevido: - Não volte! Há muito bicho-de-pé no terreiro da fazenda. Mas como há mais beleza nas fraquezas do coração de mãe, do que sonha nossa vã Literatura, o pai é quem apografa a Nequinho, apelido caseiro de Manoel de Barros, algumas palavras, quase úmidas: boletim escolar, no final do ano, é reprovado no terceiro ano ginasial. Sem muito tino para a aprovação da vida, rascunha a lápis, em caderno de folha pautada, um bilhete à mãe: 15 Aprendeu alguma coisa com os anos Só não aprendeu a odiar Mas estava lhe parecendo Que era uma coisa necessária nunca odiar. ( Barros, 1990:67) A mãe ainda quis mandar-lhe, em letra de forma, um bilhete atrevido: - Não volte! Há muito bicho-de-pé no terreiro da fazenda. Mas como há mais beleza nas fraquezas do coração de mãe, do que sonha nossa vã Literatura, o pai é quem apografa a Nequinho, apelido caseiro de Manoel de Barros, algumas palavras, quase úmidas: ..................................................... - Venha, meu filho, Vamos a ver os bois no campo e as canas amadurecendo ao sol, Ver a força obscura da terra que os frutos alimenta, Vamos ouví-la e vê-la: A terra está úmida e os potros ariscos a riscar de seus empinos e de suas soltas crinas, Vamos, Venha ver as cacimbas dormindo repletas! Venha ver que beleza! - No bojo quieto das águas robafos engolem lodo! ( Barros, 1990: 106) Depois desse ano, a vida de Manoel de Barros, entre reviravoltas, dá uma queda para cima: resolve mudar para o colégio São José na Tijuca, dos irmãos Maristas. Era um sujeito desverbado, que nem uma oração desverbada. ( Barros, 2000:33) 16 Na rotina da cidade grande, as longas cartas que Manoel de Barros troca com sua mãe, Alice Pompeu Leite de Barros, sustentam durante quase cinqüenta anos suas lembranças. 7. Êta mundão moça bonita cavalo bão este quarto de pensão a dona da pensão e a filha da dona da pensão sem contar a paisagem da janela que é de se entrar de soneto e o problema sexual que, me disseram, sem roupa alinhada não se resolve. ( Barros, 1990:39) Do internato, de frente para a vida, um longo corredor de mandamentos. A disciplina então? Carta acróstica: “Vovó aqui é tristão ou fujo do colégio Viro poeta Ou mando os padres...” Nota: se resolver pela segunda, mande dinheiro para comprar um dicionário de rimas e um tratado de versificação de Olavo Bilac e Guima, o do lenço. ( Barros, 1990:39) Com o passar do vento, Manoel de Barros encontra o padre Ezequiel, que, por sua vez, ensina ao poeta aprendiz um pouco de grego, latim, português de Portugal, francês, exercícios de “transver” o mundo: 17 Na Igreja os padres reuniam os alunos e tentavam falar a sério. Mas eu sempre achei muita graça quando as pessoas estão falando sério. Acho que isso é um defeito alimentar. ( Barros, 1991:28) Padre Ezequiel, um sacerdote meio jogado de lado à vida, um padre subalterno, um poeta frustrado que preferia ler e escrever a proferir as palavras de Deus. 5. No recreio havia um menino que não brincava com outros meninos O padre teve um brilho de descobrimento nos olhos - POETA! O padre foi até ele: - Pequeno, por que não brinca com os seus colegas? - É que estou com uma baita dor de barriga desse feijão bichado. ( Barros, 1990: 38) Nos desfolhar das palavras, Manoel de Barros torna-se amigo de padre Ezequiel que, um dia, presenteia-o com Os sermões do padre Antônio Vieira. Pode-se dizer que, inicialmente, a Literatura portuguesa desperta, em Manoel de Barros, a vocação de armar as palavras, e de sê-lhes fiel. O poeta de palavras desajeitadas descobre em padre Ezequiel seu primeiro professor de “agramática”. Padre Ezequiel ensina-o a entortar algumas construções sintáticas; a gostar das exceções que alimentam a verdadeira alma de um idioma; a se sentir acolhido pela língua como quem se sente protegido pelo ventre materno; a degustar cada palavra, saboreando a sonoridade que estas, misteriosamente, possuem; a ler diariamente o dicionário 18 como quem lê um romance, ou um livro de Olavo Bilac, e se alimenta de estrelas, bebendo a seiva, o vinho do Graal, até alimentar o pão nosso de cada dia: a poesia que nos dá hoje. Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito. Eu pensava que fosse um sujeito escaleno. -Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse. Ele fez um limpamento em meus receios. O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas ... E se riu Você não é de bugre? - ele continuou. Que sim, eu respondi. Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os araticuns maduros. Há que apenas saber errar bem o seu idioma. Esse Padre Ezequiel foi meu primeiro professor de agramática. ( Barros, 1993: 87) 19 2.1 - Retrato de um poeta quando Coisa Chove torrencialmente na cidade do Rio de Janeiro, enquanto Manoel de Barros olha pela vidraça do internato pingos de chuvas que mais parecem vidros a deslizar do céu. Fica horas, quieto, ouvindo o barulho da música caindo - sinfonias de Beethoven. Lentamente, sai andando pelos corredores e, quando chega à porta que dava para uma rua de múltiplos becos, sai correndo, pulando, feito aquela criança que um dia tinha nascido para abraçar a chuva. O menino que sempre o visitara nas tardes de domingo, agora já é um homem – homem de palavras avessas. Por essa página da vida, Manoel de Barros já havia lido os clássicos Bernadim Ribeiro, Sá de Miranda, Camões, Frei Luís de Sousa, Manoel Bernades, Molière, Voltaire, Montaigne, Pascal, Montesquieu, Rousseau, Goethe, Hölderlin, Musset, Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e Olavo Bilac. As obras de Schopenhauer, ainda hoje, são constantes companheiras em sua filosofia de vida. ......................................... Passei anos me procurando por lugares nenhuns. Até que me achei - e fui salvo. Às vezes caminhava como se fosse um bulbo. ( Barros,1991:17) 20 O poeta pantaneiro tinha pouca paciência para conversas citadinas espertas, apenas uma manhãzinha lhe servia alta noite. Nas grandes metrópoles, as pessoas não se visitam sem razão. Manoel de Barros se distraía fotografando o silêncio, as palavras. Retrato de um artista quando coisa: borboletas Já trocaram árvore por mim. Insetos me desempenham. Já posso amar as moscas como a mim mesmo Os silêncios me praticam. De tarde um dom de latas velhas se atraca em meu olho Mas eu tenho predomínio por lírios. Plantas desejam a minha boca para crescer por de cima. Sou livre para o desfrute das aves. Dou meiguice aos urubus. Sapos desejam ser-me. Quero cristianizar as águas. Já enxergo o cheiro do sol. ( Barros, 1998: 11) Às vezes que a manhã florescia à sombra de um bondinho, o poeta deixava o canto das aves ir amanhecê-lo. Em 1934, faz vestibular para Direito. Entra para a Esquerda ( apenas para contestar). 9. Entrar na Academia já entrei mas ninguém me explica por que essa torneira aberta nesse silêncio de noite parece poesia jorrando ... Sou bugre mesmo me explica mesmo 21 me ensina modos de gente me ensina a acompanhar um enterro de cabeça baixa me explica por que que um olhar de piedade cravado na condição humana não brilha mais do que anúncio luminoso? Qual, sou bugre mesmo só sei pensar na hora ruim na hora do azar que espanta até a ave da saudade Sou bugre mesmo me explica mesmo: Se eu não sei parar o sangue, quê que adianta não ser embecil ou borboleta? Me explica por que penso naqueles moleques como nos peixes que deixava escapar do anzol com o queixo arrebentado? Qual, antes melhor fechar essa torneira, bugre velho... ( Barros, 1990:40 ) De 1935 a 1945, Manoel de Barros deixa o cabelo e o bigode crescer, faz política universitária, picha nas paredes do mundo aquelas frases surradas: “Viva o Partido Comunista”, “Viva Prestes”! Totalmente absorvido pelas teorias marxistas, contesta o s .............................................................. Não é sectarismo, titio. Também se é comido pelas traças, como os vestidos. A fome não é invenção de comunista, titio. ................................................................ ( Barros, 1990: 54) Manoel de Barros chega a relatar no livro de Maria da Glória Sá-Rosa que, certa ocasião, três amigos haviam saído para executar uns trabalhos do Partido Comunista, enquanto outros 22 três ficaram dormindo. Às três da manhã, a dona da pensão, que também pertencia ao Partido, acordou os pensionistas, pedindo que se escondessem, pois a polícia acabara de chegar. Como surpresa, os militares acabam encontrando um revólver debaixo da cama de um dos jovens pensionistas. A dona da pensão, procurando aliviar, colocou-se à frente, em defesa dos jovens: - Veja, esse menino é inclusive aluno do Padre, faz até ode. O menino era Manoel de Barros e o livro tinha um título comprido, grande e bonito: NOSSA SENHORA DA MINHA ESCURIDÃO. Manoel de Barros, tempos depois, esclarece que a única coisa que prestava naquele livro que fora levado pelos policiais era o título. É certo que o regime comunista não lhes trouxera a felicidade sonhada – prometida. Aliás, o homem não pode ser igualado, não existe medida única, em que possam caber tantas cabeças distintas. Manoel de Barros afina a ponta do lápis, faz nascimento com a palavra: ........................ a esse tempo lê Marx tem mil anos tudo que vem da terra para ele sabe a lesma é descoberto dentro de um beco abraçado no esterco que vão dinamitar antes de preso fora atacado por uma depressão muito peculiar que o fizera invadir-se pela indigência: ............................................................................... ( Barros, 1990:157) Impresso em uma gráfica, quase artesã, em 1937, sai quentinho do forno vinte exemplares contados do livro Poemas concebidos sem pecado. E como não se vende poesia a amigos, Manoel de Barros presenteia a cada um dos companheiros, com dedicatória em letrinhas de formiga, seu primeiro livro de poesia. 23 10. .............................. Ao longo das calçadas algumas famílias ainda conversam velhas passam fumo nos dentes mexericando ... Nhanhá está aborrecida com o neto que foi estudar no Rio e voltou de ateu - Se é pra disaprender, não precisa mais estudar Pasta um cavalo solto no fim escuro da rua O rio calmo lá em baixo pisca luzes de lanchas acordadas Nhanhá choraminga: - Tá perdido, diz que negro é igual com branco! ( Barros, 1990:41) Em 1939, depois de formado, não quer saber de advogar, pois tem uma aversão de falar em público; Manoel de Barros já sabia que seu ofício era o de trabalhar em silêncio as palavras. Na primeira audiência, em que é julgada uma causa trabalhista, fica tão nervoso, que chega a vomitar na mesa do juiz. Entra em crise. E, para piorar a situação em que se encontra, quando o líder político Luís Carlos Prestes é posto em liberdade, depois de dez anos de prisão, Manoel de Barros esperava que Prestes tomasse alguma atitude contra o que os jornais comunistas chamavam de o “Governo Assassino de Getúlio Vargas”. Apesar de ser emocionante ouvir Luís Carlos Prestes , no largo do Machado, no Rio de Janeiro, nunca mais se esqueceu de ter visto o discurso de Prestes, apoiando Getúlio - o mesmo que havia entregue sua esposa, Olga Benário, aos nazistas. O poeta não agüenta aquela cena, senta na calçada e começa a chorar. Sai andando, desconsolado; dá adeus definitivamente ao Partido e vai arejar as idéias no Pantanal. Contudo, a idéia de ficar por lá ainda não havia se maturado em sua cabeça desligada das utilidades da vida. Nesse enquanto, seu 24 pai ainda se dispõe encontrar alguma atividade em um cartório, mas Manoel de Barros sem paciência às leis não aceita. Sem rumo, vai vaguear um tempo fora do país. Resolve viajar. Durante essa fase, percorre mundos: conhece os bugres bolivianos. De lá, segue direto para Nova Iorque. Por esse tempo, dedica-se ao estudo de pintura. Descobre Rômulo Quiroga, Picasso, Braque, Miró, Van Gogh, Chagall; percebe que os delírios são reais em Rodin: 4 Me achei como aqueles des-heróis de Callais que Rodim esculpiu: nus de seus orgulhos e de suas esperanças. Só de camisolões e de cordas no pescoço. Pesados de silêncio e da tarefa de morrer. (Morrer é uma coisa indestrutível.) (Barros, 1998:65) Vê-se que a poesia manoelina já se volta ao mundo das imagens. Por essa época, Manoel de Barros conhece os trabalhos cinematográficos de C. Chaplin, Frederico Feline, Akira Kurosawa, Luís Bünel, Jim Jarmusch. Em cada paragem, faz de um tudo: dorme na beira dos mundos literários; redescobre T.S. Eliot, Ezra Pound, Stephen Spender, Walt Whitman, William Carlos William, Virgínia Woolf, Lesama Lima, Allen Ginsberg e Emily Dickinson. XIV De 1940 a 1946 vivi em lugares decadentes onde o mato e a fome tomavam conta das casas, dos seus loucos, de suas crianças e de seus bêbados. Ali me anonimei de árvore Me arrastei por beiradas de muros cariados desde Puerto Suares Chiquitos, Oruros e Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Depois em Barranco, Tango Maria ( onde conheci 25 o poeta César Vallejo), e Mocomonco - no Peru. Achava que a partir de ser inseto o homem poderia entender melhor a metafísica. Eu precisava ficar pregado nas coisas vegetalmente e achar que não procurava. Naqueles relentos de pedra e lagarto, gostava de conversar com idiotas de estrada e maluquinhos de mosca. Caminhei sobre grotas de laje de urubus. Vi outonos mantidos por cigarras. Vi lama fascinando borboletas. E aquelas permanências nos relentos faziam-me alcançar os deslimites do Ser. Meu verbo adquiriu espessura de gosma. Fui adotado em lodo. Já se viam vestígios de mim no lagartos. Todas as minhas palavras já estavam consagradas de Pedras. Dobravam-se lírios para os meus tropos. Penso que essa viagem me socorreu a pássaros. .............................................................................. (Barros, 1993:101) Quando retorna ao Brasil, Manoel de Barros publica pela editora “Século XX” o livro Face imóvel ( 1942), com capa elaborada pelo pintor Enrico Biancho. Em 1947, o poeta pantaneiro conhece Stella. O amor, uma intuição à primeira vista , aconteceu logo; o casamento, em três meses. Stella, uma mineira polida nos gestos, muito simples com as lidas da vida. A família da moça, sem muita empatia, faz vista grossa ao jovem poeta, uma figura excêntrica, quase selvagem, com um certo 26 ar de hippie, óculos fundo de garrafa, cabelos longos e, que, uma vez ou outra, chegava, ousadamente, usando um capotão preto; além disso, o Pantanal era tido como um lugar exótico, bastante selvagem, onde se tinha notícia de cobras, jacarés, onças pintadas, bichos perigosos. Aos olhos da família de Stella, a última impressão não fica: vai embora. E, para evitar qualquer tipo de constrangimento futuro, pediram a um tio de Stella que procurasse o moço pretendente e observasse suas intenções. Depois da longa conversa, o tio de Stella ficara um pouco assustado com a declaração em poesia prosa, daquele desajeitado versejador: ...................................................... Oh, Senhor, Vós bem sabeis como amarga a vida de um homem o carinho das prostitutas! Vós sabeis como tudo amarga naquelas vestes amassadas. por tantas mãos truculentas ou tímidas ou cabeludas Vós bem sabeis tudo isso, e portanto permiti que eu continue sonhando com a minha casinha azul. Permiti que eu sonhe com a minha amada também porque: - de que me vale ter casa sem ter mulher amada dentro? Permiti que eu sonhe com uma que ame andar sobre os montes [descalças e quando me vier beijar o faça como se vê nos cinemas... O ideal seria uma que amasse fazer comparações de nuvens com vestidos e peixes com avião; que gostasse de passarinho pequeno, gostasse de escorregar no [corrimão da escada; e na sombra das tardes viesse pousar como a brisa nas varandas abertas. O ideal seria uma menina boba, que gostasse de ver folha cair [de tarde... que só pensasse coisas leves que nem existem na terra e ficasse assustada quando ao cair da noite 27 um homem lhe dissesse palavras misteriosas... O ideal seria uma criança sem dono, que aparecesse como nuvem, que não tivesse destino nem nome - senão que um sorriso triste, e que nesse sorriso estivessem encerrados toda timidez e todo espanto das crianças que não têm rumo ................................................................................ (Barros, 1956:44-45) Depois de um “dedo de prosa” com o poeta, o tio desabafa baixinho: - deixem o rapaz de mão, tem futuro e boa literatura. A família da moça sem muito tino, para tratar questão dessa natureza, acabou entregando a filha às poesias do jovem escritor. Uma vez Manoel de Barros reconhece, em entrevista concedida a Alberto Pucheu ( 1994: 193-195): Stella foi sempre o amor e o amparo. Eu andava desgualepado, quando a conheci. Um amigo íntimo nosso falou pra ela, o Manoel não presta pra nada, só pra fazer poesia. Só você pode evitar que ele vá pra sarjeta. O amor dela evitou. Nesse sentido, Manoel de Barros, um vagabundo para coisas burocráticas, sem muito dom à arte de ganhar dinheiro; para sobreviver, na exigente cidade fluminense, abre, em habilidades precárias, sociedade com mais duas pessoas. Mesmo assim, uma vez ou outra, seu pai o ajudava. Apesar de as dificuldades serem muitas, lia e escrevia todo dia. XVlll. Uma palavra está nascendo 28 Na boca de uma criança: Mais atrasada do que um murmúrio. Não tem história nem letras Está entre o coaxo e o arrulo. ( Barros,1991:21) No outono de 1949, nascia o primeiro filho de Manoel de Barros, Pedro; mais tarde, na primavera, veio Martha; João, o último dos filhos, nasceu no verão. Por essa época, com as conseqüências da guerra, o desemprego crescia. ................................................. Senhor, nem é tanto deste emprego que eu preciso tanto O que eu preciso e quanto! nesta mísera tarde É daquela mulher com as coxas entreabertas na minha frente. E isso não tem mandamento e nem ofende a disciplina militar. ( Barros, 1990: 71) Depois que um dos sócios do poeta morre tragicamente assassinado, na cidade “maravilhosa”, Manoel de Barros fica desconsolado, entra em crise. Nesse intervalo, o pai enfarta. Morre, deixando como herança uma fazenda de gado. ......................................................................... Abro os olhos. Não vejo mais meu pai. Não ouço mais a voz de meu pai. Estou só. Estou simples: (Barros, 1956: 55) 29 No ano de 1960, a conselho de Stella , Manoel de Barros retorna, definitivamente, para o mundo do pântano: Volto de sarjeta para casa. ( Barros, 1982:58) Entre coisas ordinárias, inúteis, retiradas da natureza, a vida se reconstrói no artefato literário da palavra. Palavra que fora do contexto habitual desvia-se do lugar comum, vira descaminho nas imagens da poesia de Manoel de Barros. Por esse descaminho, o poeta do Pantanal labuta sua poética da ordinariedade com quinze livros publicados: Compêndio para uso do pássaro (1960), Gramática expositiva do chão (1966), Matéria de poesia (1970), Arranjos para assobio (1982), Livro de Pré-coisas (1985), O Guardador de água (1989), Poesia quase toda (1990), Concerto a céu aberto para solo de ave (1991), Livro das ignorãças (1993), Livro sobre nada (1996), Exercício de ser Criança (1998), Para encontrar o azul eu uso pássaros (1999), Retrato do artista quando coisa (1999), Ensaios fotográficos (2000). 30 O VERÃO SEGUNDA ESTAÇÃO: mundo pequeno Há uma cidade em ti que não sabemos. Carlos Drummond de Andrade 31 3 - Na cidade coisificada E nenhuma cidade disputará a glória de haver me dado luz. Manoel de Barros Sabemos que a vida de um poeta não justifica o tipo de arte que produz; podemos, contudo, dizer que em Manoel de Barros a temática das coisas simples da natureza se confirma a partir da sua descrença nas coisas grandes da vida urbana. Podemos, desde já, afirmar que, no conjunto, a poesia manoelina estabelece uma conexão temática natureza/cidade, aparentemente, tendenciosa para a natureza. Mas, para falar exclusivamente sobre objetos inúteis retirados da natureza, a partir de uma linguagem que transita sobre as coisas mais simples e fugidias do mundo natural, foi preciso que o poeta atravessasse, inicialmente, o fascínio exercido pela cidade, que recobre uma pequena carga expressiva do livro Face imóvel ( 1942). Para entender o ponto de partida desta análise, chamamos a atenção para a temática urbana, embora tenha um papel secundário na poesia de Manoel de Barros, a ponto de essa se apresentar, estatisticamente, com um percentual aproximado de 5% nos livros iniciais: Face imóvel ( 1942), Poesia ( 1956) e Matéria de poesia ( 1970). 32 Na dissertação, O Senhor cujo olhar se dirige para baixo, Patrícia Pavas ( 1997:49) destaca: “A cidade aparece em escala bem menor e quase sempre em estado de decadência”. O que, a nosso ver, não deixa de ter sua relevância, para entendermos sua descrença urbana. Em entrevista concedida a José Castelo, em 3 ago.1996, no jornal O Estado de São Paulo, o poeta mostra suas errâncias na urbe : Alguns anos de minha vida ambulei por lugares decadentes. Havia um certo fascínio por cidades, mortos, casas abandonadas, vestígios de civilização. Um fascínio por ruínas habitadas, por sapos e borboletas. Eu gostava de ver alguma germinação da inércia sobre ervinhas doentes, paredes, coisas desprezadas. As fontes de minha poesia, estou certo, vem de errâncias desurbanas. Quando o poeta sai do Pantanal, para enfrentar os grandes centros urbanos, à procura de vasculhar a metáfora da cultura e do conhecimento, mal sabia que a vida citadina mancava das pernas, revelando os fenômenos urbanos. Em o livro Face imóvel reeditado em Poesia quase toda (1990), por entre arranha-céus e ruas da cidade, o poeta dribla a paisagem, transforma a experiência individual em generalidade. Noções de Rua A rua inventa poetas que já nascem tristes. As ruas descobrem esses cachorros gentis puxando suas donas para debaixo dos postes. De um modo geral os cachorros são bonitinhos e as donas não correspondem O que é uma pena. Há ruas qu Sabe-se que o poeta Manoel de Barros, apesar de ter 33 vivido durante muitos anos na cidade do Rio de Janeiro e de ter experimentado a vida de outros países, tem seus limites no chão do Pantanal. Não que Manoel de Barros seja alheio à vida das grandes metrópoles, até porque a cidade na obra manoelina tem um papel importante. Na realidade, o poeta descobre a cidade como metáfora de um pequeno mapa do tempo, cujos acontecimentos banais e corriqueiros assumem dimensão estética. O poeta do pântano recombina os signos para atingir novos significados, faz da imagem um desenho de poesia e da linguagem, um campo de pesquisa. Sabe-se que, em 1937, Manoel de Barros envereda, inicialmente, pelo submundo do pântano com seu livro Poemas concebidos sem pecado. Por esse aspecto, quando Manoel de Barros se reporta ao pântano, enfoca-o não pelo prisma memorialista, mas da percepção: “o rio calmo lá em baixo pisca luzes de lanchas acordadas. (Barros, 1990:41). Em Manoel de Barros, há uma presentificação, sim, das percepções no verso: “Ele esfregava no rosto as suas barriguinhas frias/ Geléia de sapos!” ( Barros, 1990:45). No livro Poemas concebidos sem pecado ( 1937), o que se observa é que o poeta já determina toda sua perspectiva com o tipo de linguagem que irá usar e abusar posteriormente. Inicialmente, o poeta brinca de infância, prepara-se através de suas memórias, toca os ínfimos da natureza do pântano. Nota-se que os poemas iniciais seguem timidamente pelo uso da linguagem coloquial em um ritmo de poesia prosa . Manoel de Barros faz rodeios com as metáforas, arruma a linguagem com o sotaque do pântano, para celebrar o menino de sua infância. Começa, ali, a serena construção de imagens apoiadas em sinestesias, imagem como “voz de arauto”. E, como diz o poeta mais à frente das palavras que de seu tempo, ao Jornal O Estado de São Paulo, em 15 maio 1995: Quase sempre o primeiro livro é embrião dos outros. Eu estava ainda escondido na infância e a palavra me achou lá. A palavra até hoje me encontra na infância. Do primeiro livro para cá devo ter evoluído no descaramento com que uso as palavras. Cada vez fico mais descarado. (.. .) Então, o que 34 mudou em mim do primeiro para os livros foi que fiquei mais íntimo das frases. Ao engatinhar os primeiros passos de sua escrita, suas memórias, Manoel de Barros diz muito do que veio a nos dizer ou desdizer, em versos que se desvendam, atrás de uma linguagem rica em dimensão coloquial. ...................................................... Havia no casarão umas velhas consolando Nhanhá que chorava feito uma desmanchada - Ele há de voltar ajuizado - Home-de-bem, se Deus quiser. Às quatro o auto baldeou o menino pro cais Moleques do barranco assobiavam com todas as cordas da lira - Té a volta pessol, vou pra macumba. ( Barros, 1990:38) Se, no primeiro livro, o poeta aventura-se na “errância” de suas memórias, observamos que o sentimento de insatisfação do poeta quanto às questões urbanas será visivelmente transparente nos livros Face imóvel ( 1942) e Poesias( 1956), nesses livros, a cidade, em Manoel de Barros tem a presença do que é negado. Berta Waldman (1990: 13), no prefácio do livro Gramática expositiva do chão ( poesia quase toda ), comenta: Entende-se que a cidade tem um papel importante na poesia de Manoel de Barros. Se na raiz da vocação poética há sempre este sentimento de insatisfação contra a vida, que faz com que o escritor a suprima para vertê-la em outra, feita de palavras, a cidade nesta poesia, tem a presença do que é negado. Nesse sentido é sobre a anulação que se reveste a matéria poética em natureza. 35 Nota-se que o sentimento de insatisfação contra a vida, que se arma na linguagem que constrói, une a poesia de Manoel de Barros à poesia de Carlos Drummond de Andrade, ao falar de si e de como entende a vida e o mundo que o cerca; assim, como o fato de fazer de sua poesia um instrumento que coincide com a presença do que é negado pela sociedade. Com isto, o gosto pelos “inutensílios”, pelas coisas simples se desenha na poesia manoelina e assume a dimensão estética que se manifesta na consciência do eu poético ao contato curioso da palavra. Por esse aspecto, o vocabulário usado por Manoel de Barros funde-se também à temática urbana, guarda sua extensão coloquial, ultrapassa seus limites e abre uma nova linguagem no sentido de compreender a vida, o homem, a cidade, a natureza. Nesse sentido, a geografia das palavras em Manoel de Barros exprime a integração com o mundo. Não obstante, o mundo concebido é o das palavras. Observa-se também que em Manoel de Barros o território das palavras funciona como uma espécie de decifração das leis da natureza; enquanto, a poesia em Carlos Drummond é concebida como saída para o “sentimento do mundo. No meio dessa confluência, ambos os poetas contemplam as palavras, nomeiam os seres, atingindo-lhes um significado muito mais profundo. Pois como diz Drummond: “A rua é enorme. ( ... )/ Mas também a rua não cabe todos os homens/ A rua é menor que o mundo./ o mundo é grande” ( 1988:56) . E como diz Manoel de Barros: UNS HOMENS ESTÃO SILENCIOSOS Eu os vejo na rua quase que diariamente São uns homens devagar, são uns homens quase que Misteriosos. Eles estão esperando. Às vezes procuram um lugar bem escondido para esperar. Estão esperando um grande acontecimento. E estão silenciosos diante do mundo, silenciosos 36 Ah, mas como eles entendem a verdade De seus infinitos segundos. ( Barros, 1990: 64-65) Quando se observa a história da literatura, vê-se que Charles Baudelaire foi o primeiro poeta da modernidade a aceitar a miséria e a condição de solidão do cenário urbano: A cidade a fervilhar, cheia de sonhos, onde O espectro, em pleno dia, agarra-se ao passante! Flui o mistério a cada esquina, cada fronde Cada estreito canal do colosso possante. (Baudelaire,1996 :311) Em sua poesia, Baudelaire celebra suas alegorias de forma simbólica e denuncia, da mesma forma que celebra, a cidade, onde a velocidade modifica a relação do homem perante as coisas da vida, onde a pressa dos grandes centros urbanos corrompe a possibilidade de aprofundamento nos relacionamentos humanos, que a cada dia se tornam efêmeros em encontros voltados para a oportunidade da vida. Segundo Guy Debord ( 1997: 116): A história universal nasceu nas cidades e atingiu a maioridade no momento da vitória decisiva da cidade sobre o campo. Mas considera como um dos maiores méritos revolucionários da burguesia o fato de ela ter sujeitado o campo à cidade, cujo ‘ar emancipa’. Mas se a história da cidade é a história da liberdade, ela também foi o da tirania, da administração estatal. Até agora, a cidade só pode ser o terreno de batalha em que nossa liberdade se realizou. A cidade é o espaço da história porque é ao mesmo tempo concentração do poder social. Portanto atual tendência de liquidificação da cidade é outra forma de expressar o atraso de uma subordinação da economia à consciência histórica, de uma unificação em que a sociedade recupera os poderes que se destacaram dela. 37 Sabemos que, no advento do modernismo de 22, a cidade é cantada com suas diversas faces. Em verdade, a literatura modernista já nasce declamando a cidade e os efeitos do progresso. Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Carlos Drummond de Andrade fazem versos urbanidade. Sabemos, é certo, que Manuel Bandeira, inteiramente à volta as imagens da vida urbana, acentua seu ritmo dissoluto à ressonância do verso livre: O BICHO Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. ( Bandeira, 1997: 81) Vê-se que Manuel Bandeira muda o ritmo do poema, para alcançar a voz da urbanidade. Em verdade, o lirismo de Bandeira já nasce de uma espontânea realidade, cujo espetáculo mundano se dá através de seus enfoques mais simples. Seus versos livres derivam de espaços, onde se avizinham objetos, colocados na mesma perspectiva. Mas isto é possível a partir do processo de síntese que reduz o poema a uma estrutura que ganha uma feição, um ritmo, um som, um sentido próprio. Por esse aspecto, 38 o poder de síntese de Manuel Bandeira influenciará a lírica de Manoel de Barros da primeira fase. Em Lodo e ludo, Orlando Antunes Batista (1989:19) enfatiza que a obra de Manoel de Barros segue uma ordenação que o torna extremamente singular dentre os grandes poetas do século XX: A afinidade maior, todavia, é visível com relação a Manuel Bandeira, dado o rigor com que persegue a montagem de sua produção artística. À guisa de exemplo, revelamos que entre “Poemas concebidos sem pecado e Livro de pré-coisas há uma espécie de reatamento entre as pontas da existência lírica. Toda a produção parece escoar-se no último livro, surgindo qual um remanso, uma baía pantaneira, onde se espelha o ante-verso da natureza, livre de preconceitos políticos. O lirismo da primeira fase de Manoel de Barros está impregnado do ordenamento de Manuel Bandeira que, ligado ao plano modernista no processo apurado de síntese das palavras, recria o verso, muitas vezes, extraído em notícias de jornal. Manuel Bandeira, em seu universo lírico, coleta seu material poético a partir das cenas simples da vida urbana: “ Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? - O que vejo é o beco” (Bandeira,1974:134). O que se observa no lirismo da primeira fase de Manoel de Barros é um dilema entre o urbano e o rural. Orlando Antunes Batista ( op. cit.: 82) destaca: “Lendo a obra Poesias publicada em 1956, percebemos que o dilema entre o rural e o urbano se evidencia claramente. As contradições entre o Pantanal e o Rio de Janeiro se assenhoram do seu espírito”. Manoel de Barros dialoga com as diversas faces de uma cidade, onde o indivíduo cria sua ordem pessoal a partir da socialização, dos espaços de interação e interesses comuns, a partir da própria solidão. Sob esse ângulo, é na cidade que se perde a capacidade de olhar verdadeiramente para as pessoas, pois as coisas se tornaram mais importantes. É na cidade que os homens céticos de valores humanos perambulam coisificados, sem horizontes, pois até mesmo o olhar 39 resultou inútil, perdido, meio à fugacidade das coisas; olhar, muitas vezes, distante, identificado com a frieza realista da vida. Como diz João Cabral de Melo Neto (1994:813): “Eu caminhava as ruas de uma grande cidade/ Os acontecimentos nunca me encontravam./ Em vão dobrava as esquinas lia os jornais/ Todos os lugares do crime estavam tomados”. Essa perda da dimensão do olhar, eqüivale à perda da própria condição de sujeito que Manoel de Barros, com sua poesia codificada de coisas inúteis, sugere até os dias atuais. Vejamos o poema “Rua dos arcos”: A rua era assobradada Decadente de ambos os lados Toda espécie de gente ali Circulava e bebia uniforme. Uniforme era a feiúra das casas O ar triste que elas tinham; Mas também o ar de traição Atrás das cortinas vermelhas. As portas intimidam mulheres Portuguesas de músculos brancos E até o coração das crianças se partia Sob o peso da coroa caída da irmã. A viola sustava a cabeça de um cego Angulosa cabeça onde os fados morriam. E entre flores amarelas Graves gatos o escutavam. Foi aí que de tarde eu a vi Eu a vi passar de verde 40 Varando o ar sério de um guarda Sem veneno em seus dedos - A mulata da lapa verde! ( Barros, 1990: 60-61 As imagens são criadas a partir da visão do autor que inverte a ordem das coisas, para encontrar um sentido transfigurador à poesia: “A viola sustava a cabeça onde os fados morriam”. As imagens estão no movimento das ruas. O real e o irreal se interpenetram, tornam-se indefiníveis à inteligência, mas bastante perceptíveis aos sentidos: “Entre flores amarelas/ graves gatos o escutam”. A construção da imagem, no poema , atravessa o cenário da cidade mapeada e nos sugere a solidão urbana sob o ar triste da traição das moradas, em caminhos enviesados: “As portas intimidam mulheres”. No olhar enviesado de Manoel de Barros sobre a cidade, há uma realidade de que não consegue fugir: “A rua era assobradada/ Decadente de ambos os lados”. Há, no verso, a palavra “assobradada” que nos sugere a imagem de uma rua repleta de prédios, de gente dispersa, sem perspectiva alguma para o presente e sem projeto definido para o futuro. O poeta recupera os fragmentos das imagens urbanas à mercê das pressões comerciais, e que, diríamos hoje, mantém um diálogo não somente com a cidade, mas com a sociedade, com a cultura: “Uniforme era a feiúra das casas - o ar triste que elas tinham; / Mas também o ar de traição / Atrás de cortinas vermelhas”. Manoel de Barros apresenta, em síntese, uma cidade sob ruínas, que diariamente se recria para uma vida propensa para o lado transitório, onde: “Até o coração das crianças se partia sob o peso da coroa caída da irmã”. Manoel de Barros faz experimentação no nível da linguagem, desenha suas palavras carregadas de sonoridade: “Graves gatos a escutavam”. Os versos assimétricos seguem o ritmo de sua própria cadência, aproveitam-se de elementos repetitivos (Foi aí que de tarde 41 eu a vi/ eu a vi passar de verde), sem trair sua função unificadora. Experimentador da palavra, mas sem procurar convencer ninguém de seus conteúdos equivocados, Manoel de Barros reúne, à sua pesquisa estética, questionamentos da realidade que o circunda: “Decadente da ambos os lados “. Vejamos, logo abaixo, que no poema, NA ENSEADA DE BOTAFOGO do livro Poesias ( 1956), a concepção de cidade não se modifica, pelo contrário, apresenta-se como metáfora de abandono e de solitude. Como estou só! afago casas tortas falo com o mar na rua suja ... nu e liberto levo o vento no ombro de losangos amarelos. Ser menino aos 30 anos, que desgraça, nesta borda de mar de Botafogo! Que vontade de chorar pelos mendigos! Que vontade de voltar para a fazenda! Por quê deixam um menino que é do mato Amar o mar com tanta violência? ( Barros, 1956: 38) O que se observa, em Manoel de Barros, é que as imagens estão organizadas no poema por um fio seqüenciador que perfaz a linha do poema tradicional à maneira de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Por essa linha, as imagens vão sendo desmembradas sob um só foco: o do eu poético, que por sua vez sugere um sentimento de insatisfação ao ambiente da urbe, em três respectivos versos: “Ser menino aos trinta anos, que desgraça/ nesta borda do Mar de Botafogo”, “Que vontade de voltar à fazenda!”, “que vontade de chorar pelos mendigos!”. Em verdade, o poeta demonstra-se insatisfeito com a violenta complexidade urbana e 42 nos sugere, em sua indagação existencial, seu amparo diante das coisas mais simples: “ Por quê deixar um menino que é do mato/ amar o mar com tanta violência?” Esse diálogo com a natureza, no poema, não está apenas como imagem, mas também como símbolo e valor. Símbolo porque o mar, à sombra da contemplação mítica da natureza, representa o próprio nome do mistério. E valor, pela dimensão da grandeza, em meio à insatisfação do poeta frente ao abandono da vida natural. Nesse diálogo marítimo, o poeta mantém correspondência com as coisas sutilmente delicadas, abandonadas pela ambição humana, destruídas por esta doença que assola a natureza das cidades: o excesso de racionalidade. O poeta rearticula seu discurso para mostrar “na rua suja” o abandono da coisas urbanas: “Nu e liberto levo o vento/ ... que vontade de voltar para a fazenda!/ que vontade de chorar pelos mendigo!” Como diz Ítalo Calvino ( 1990:18) no livro As cidades invisíveis: “O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas, a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso”. Na mira de uma cidade que diz tudo, Manoel de Barros faz escavação em suas páginas escritas, repete o discurso que o acolhe: Vejamos, então, o poema “Incidente na praia” Eram mil corpos fora de casa E um menino que atravessa a infância De automóvel, no asfalto. Eram bêbados, eram operários Que sendo governados pelas mesmas leis Cochilavam sob árvores da lua. Era um burro de homem projetado Perpendicularmente aos edifícios Que oferecia sorvete aos maiôs mais simpáticos 43 Nisto, o dia de papoila na lapela, Delicadamente, Vai até a onda e faz sua mijadinha -É um garçom! -É um poeta! -É um jaburu! Enquanto uns discutiam, Outros iam tratar da vida Isto é: iam jogar peteca. ( Barros, 1990: 71-72) No poema, não se esgota o modo de olhar a cidade, pelo contrário, o poeta dribla o lugar comum e nos faz enxergar além do que se mostra como óbvio: “Eram bêbados, eram operários/Que sendo governados pela mesmas leis/ Cochilavam sob árvores da lua”. Observa-se que a cidade é transfigurada pela visão de inutilidade, onde proletários ainda sonham sob “árvore da lua” . Para Malcolm Bradbury e James Mcfarlane (1989:276), “Maiakóvski vê com alegria o proletariado urbano como atores do milênio”. Em Manoel de Barros, os operários, com suas verdades reprimidas, são governados por leis, marginalizados como coisas; úteis apenas enquanto servem para produzir. Fora disso, não são nada. No exercício de poetizar a temática urbana, Manoel de Barros parte, então, de uma linguagem com intenção de um vôo lingüístico que, ao renovar sua visão sobre a cidade, inova sua poesia pelo lado travesso do verbo : “E um menino atravessa a infância de automóvel”. Ao criar um estilo próprio a partir do que há de mais simples, o poeta recria uma realidade que nos amplia à percepção das coisas: “Vai até a onda e faz sua mijadinha”. O poeta campeia a cidade à procura de imagens, à espera 44 de encontrar, pelo menos, a enorme ternura debaixo dos óculos: “Enquanto uns discutiam/ Outros iam tratar da vida/ Isto é: iam jogar peteca”. Nos diversos caminhos a serem trilhados na cidade, a multidão faz parte de um espaço, onde a vida é apenas uma ordem, meio à fragilidade do lugar comum, a vida chega a ser sinônimo de jogos de disputa, de poder, de competição acirrada que amplia ainda mais as cortinas da desigualdade social. Manoel de Barros, “despossuído” de sua existência concreta e histórica, vislumbra a liberdade vadia em ruas tortas. Vadio e evadido Vagabundeio só. Amo a rua torta E do mar o odor. Dos muros as mossas, Dos púcaros o frescor Amo. E as uvas esmagadas. E do mar o odor. Vou tangido e raro! Tangido vou. Suspenso de ventos Do mar, pelo odor. ( Barros,1990:77-78) O poeta, entre a realidade e a fantasia, ensina-nos lições de rua que traduzem a inexperiência do sofrimento vivido. Ao mesmo tempo em que pareça dado pessoal, é o oposto que se verifica. Na verdade, sempre de viés, o poeta sugere na eleição de elementos da natureza a aceitação de si mesmo em sua parte mais significativa para a aceitação do mundo. Manoel de Barros envereda em nova direção tanto em relação ao mundo quanto em relação a si mesmo. O poeta examina o mundo através de uma lente oblíqua. Por essa ótica, a deformação chega a ser essencial para explicar parte da inadequação do quadro social nas grandes cidades, onde as disputas, além 45 de constantes, incitam o apelo ao prazer e à vadiagem. Conforme afirma um verso do poeta e pensador Fernando Pessoa (1980: 142): “Na cidade, as grandes casas fecham a vista à chave,/ Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu”. Cidade onde as diferenças sociais se acentuam, tornamse visíveis, onde homens se vestem com economias, onde casas deixam de ser lar domiciliar para ser ponto comercial; cidade onde as possibilidades estéticas, políticas, culturais e pessoais se descortinam entre o isolamento e a alienação, pois é nas ruas da cidade, onde tudo se movimenta, tudo se mostra, é nas ruas que acontece a comercialização sem trégua dos espaços, onde se disputam as relações efêmeras de valores, as relações de utilidade. Como disse uma vez Walter Benjamim ( 1967:10): “É na rua que tudo se refugia”. É na rua que se conhece a verdadeira história da cidade, como faz sugerir Manoel de Barros ao interessa-se pelas pequenas coisas que acontecem nas ruas da cidade grande. Na contramão da vida, a cidade adormece nos bancos de praça. Como diz Manoel de Barros ( 1990: 102) com suas palavras de vogais: “A rua pega fama/ e se deita na lama” . Ruas em que os homens mantêm interação social, manifestam-se como sujeitos em busca de uma possível sociabilidade. Em Sociologia e modernidade, José Maurice Domingues ( 1999:21) destaca: A cidade é local onde tipicamente se realiza a sociabilidade moderna, isto é, o tipo de atitude manifestada pelos sujeitos uns em relação aos outros no curso das interações sociais. É certo que o campo mantém sua relevância como espaço social específico onde tipos distintos de sociabilidade se constituem assim como concretamente deparamos com estilos variados de sociabilidade urbana que apenas de um modo geral podemos resumir em tipo comum. Em verdade, as cidades são fotografias de si mesmas que Manoel de Barros nos apresenta povoada de anti-heróis que 46 perambulam sem destino em avenidas projetadas para receber o progresso. Cidades em que as ruas são exílios para mendigos, loucos andarilhos e poetas. Ruas em que pequenos edifícios são soterrados enquanto os arranha-céus engolem vielas e botecos; ruas em que as coisas são criadas para ter somente valor no comércio circunstancial das mercadorias descartáveis. ......................................... Círculo sob arranha-céus Vivo debaixo de cubos: Na direita, na esquerda De lado, ao sul Pelo norte ... Vou no meio assustado. Um pequenino ser com a sua morte dentro, Com meu ombro desabado E seus braços descidos pelo caos do corpo. Sou ligado por cordões e outros aparelhos secretos a um escritório complicado Portas mecânicas me subtraem e me devolvem súbito ao negro asfalto Entro e saio do edifício que come meu rosto e o cunha na pedra. Varo becos, brancos e buzinas. À noite, porém, ( ó cidade tentacular!) Me rendo. Resfolegante como um boi, paro. Vasta campina azul de água me olha, me contempla, Me aglutina E suja-me de iodo a roupa É o mar! Meu rosto recebe a brisa do mar. ......................... ( Barros, 1990:103-104) 47 O que se encontra no lirismo de Manoel de Barros é um alerta às coisas que se perdem mundo à fora em função da utilidade. Entre automóveis e asfalto, um reinado de surpresa, que fornece o conteúdo ilusório de seus versos líricos. Em ensaio sobre a lírica manoelina, publicado no jornal O Povo de 9 de março de 1997, Rigaud Salmito assinala: Sua lírica escapa à contemplação possível da natureza em grau descritivo e belo. E não deixa de ser belo seu produto final, contudo algo sobressai da dicotomia campo x cidade: o locus de Manoel de Barros é a palavra. O que se observa mesmo é que entre a temática urbana e a rural, o poeta Manoel de Barros faz parte do grupo dos poetas interessados com as palavras que contemplem ruínas mortas, alamedas e abandonos. Palavras que dão concretude à sua poética da ordinariedade. Em verdade, o poeta repensa a realidade pela escolha de coisas e pessoas marginalizadas, abrangendo, assim, aquela parte sem nome, sem história, sem sentido, sem utilidade, que não é bem vista na sociedade, ao exaltar as coisas ordinárias como objeto de poesia. Ou como observa Patrícia Pavas (1997:76): “Ao considerar que tudo pode ser objeto de poesia principalmente os seres desprezados, Manoel de Barros está escolhendo não só a linguagem ideal, mas o homem que deve ser um exemplo para os outros. A linguagem que cultua define o homem que a usa, e vice-versa”. Afinal, urbanos ou não, é certo, estamos presos à rua de nosso planeta, estamos ligados culturalmente ao quintal de uma “cidade de pedra, lixo e dinheiro”. 48 3.1 - As ruínas urbanas Somente depois de teres deixado a cidade, verás a que altura suas torres se elevam acima das casas. Nietzsche Se o projeto da linguagem poética de Manoel de Barros já começa a se configurar deslocado para as coisas ordinárias e sem valor no comércio circunstancial da vida, já no primeiro livro, Poemas concebidos sem pecados ( 1937), percebem-se as pegadas de sua infância. Vê-se, no livro Face imóvel (1942), um lirismo descomportado, um lirismo fragmentado que se entranha na relação do poeta com a cidade grande, pela elevação das coisas que ficaram para trás e das que estão por surgir em ruas que inventam poetas que já nascem tristes. Poetas que, por não saberem ler outros poetas, “só lêem as notícias tristes de jornal”, como nos alerta um verso de Mário Quintana. Manoel de Barros, ao ler as notícias tristes da urbe, apruma o idioma, pela desordem das palavras desmetrificadas, dá ao poema a possibilidade de ser um retrato três por quatro das condições de decadência nos grandes centros urbanos. Se olharmos um pouco além da janela das palavras, podemos perceber que vivemos no seio 49 de uma humanidade fragmentada para os sonhos, fragmentada para a vida. Sobre isso, Manoel de Barros ( 1990:309) aposta na edição de sua Poesia quase toda : Achava e acho que ainda não é hora de reconstrução. Sou mais a palavra arrombada a ponto de escombro. Sou mais a palavra a ponto de entulho ou traste. Li em Chestov que a partir de Dostoievsky os escritores começaram a lutar por destruir a realidade. Agora, a nossa realidade se desmorona. Despencam-se Deuses, valores e paredes... Estamos entre ruínas. A nós, poetas destes tempos, cabe falar dos morcegos que voam dentro dessas ruínas. Dos restos humanos fazendo discursos sozinhos nas ruas. A nós cabe falar do lixo sobrado e dos rios podres que correm por dentro de nós e das casas. Aos poetas do futuro caberá a reconstrução - se houver reconstrução. Porém a nós, a nós, sem dúvida - resta falar dos fragmentos, do homem fragmentado que, perdendo suas crenças, perdeu sua unidade interior. É dever dos poetas falar de tudo que sobrou das ruínas - e está cego. Cego e torto e nutrido de cinzas. E se alguma alteração tem sofrido minha poesia é a de tornar-se em cada livro, mais fragmentária. Mais obtida por escombros. É claro que, se repensarmos a condição da vida urbana na poesia de Manoel de Barros da primeira fase, veremos que, na “cidade grande”, a falta de sentido é o testemunho mais fiel da falta de direção; é o quadro mais sugestivo do automatismo da associação de idéias humanas, porém é também a revelação mais crua de que, pelo menos por enquanto, estamos à sorte do acaso. Em verdade, o poeta, ao tentar vencer as dificuldades da grande “cidade grande”, procura libertar-se dos obstáculos fornecidos pela prisão da palavra. Nos trocadilhos da lírica manoelina, a imagem enfeitiça o olhar, redesenha palavras. Manoel de Barros inova sua poesia com seus flashes na linguagem, demonstrando todo o complexo de imagens que envolve sua inventividade. O poeta parte da 50 palavra substantivada e se banha na multiplicidade de imagens incompatíveis entre si, que se abrem para um mundo, cujo ideal de beleza está entre ruínas. Em verdade, são versos feitos para um mundo em desordem. Vê-se também que, na articulação das palavras, a linguagem em si não se esgota, quer resistir entre a objetividade e o fulgor ordenado pelo fio melódico, que se ordena entre sons e ritmos, inaugurando novas experiências sonoras. Por esse aspecto, podemos afirmar que a imagem real é substituída pela urdidura do signo em seus diversos níveis significantes. As figuras aparecem como metáforas, remetendo-nos à destruição. O poeta, frente ao espetáculo de um mundo em chamas, compadece-se: “O dia vai morrer aberto em mim”( Barros, 1996:45). O questionamento do processo de construção da arte poética é um pequeno passo para o poeta Manoel de Barros que faz do vocábulo um campo de pesquisa e do mundo, matéria de poesia. Ao viajar pela cidade imaginada, Manoel de Barros acaba por desencontrar-se dos valores do homem urbano. O poeta atravessa de automóvel a urbanidade, deixa para trás a grande cidade, para viajar entre palavras à procura de pequenas coisas encontradas somente em contato com a natureza. O poeta retorna de vez ao meio natural como uma forma de resgatar a tempo a simplicidade da vida rural. A partir daí, o que se observa é que Manoel de Barros abandona de vez a temática urbana e se embrenha em uma linguagem voltada para as coisas ínfimas da natureza que em cada livro se apresenta de forma cada vez mais freqüente à dimensão de exemplaridade que essa tem em sua vida e em sua poesia. Muda-se o poeta para o Pantanal, muda-se sua forma de enxergar a natureza, mudam-se as palavras de lugar. “É no ínfimo que vejo a exuberância” ( Barros, 1993:55). O retorno ao ambiente natural ajudará Manoel de Barros no exercício de burilar a linguagem, como também na mestria de se deter sobre o animismo das imagens campesinas. Vê-se que o animismo das palavras vai se metamorfoseando na seqüência 51 de cada livro em fragmentos, em imagens. O poeta entra de vez no ambiente natural do pântano de onde parece não mais sair. E é a partir desse ambiente que Manoel de Barros perfaz seu lento caminho em direção ao universo das coisas que não tem valor, e que, por isso mesmo, são muito importantes. Conforme se vê, a seguir, a preferência de Manoel de Barros pelos “inutensílios” visa a corrigir o exagero da racionalidade na mente ocidental, assim como reflete, em sua predileção pelo lado marginalizado, uma crítica ao intenso racionalismo que turva, muitas vezes, a visão do homem civilizado. A preferência pelo traste levará Manoel de Barros, em seus abismos inventados, a carregar a “beleza como um prédio em ruínas”. 52 O OUTONO TERCEIRA ESTAÇÃO: Na oficina de transfazer as coisas da natureza em inútil poesia Nunca ele está mais ativo do que quando não faz nada. Nunca está menos só que quando a sós consigo mesmo. Catão 53 A natureza como lugar de ser inútil Poesia é uma virtude do inútil. Rabelais Quando Manoel de Barros retorna ao Pantanal, com sua cartilha de criar coisas inúteis, e escreve o livro Compêndio para uso dos pássaros (1960), a partir daí começa a invenção de escrever a palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem. Vinte e dois anos depois, encontramos em Arranjos para assobio (1982) o poeta quase em estado de árvore, quase rã, com uma poética voltada principalmente para harmonia do ser humano com a natureza pela sugestão das coisas desprovidas de valor perante uma sociedade movida pela ordem de consumo. E se a natureza em Manoel de Barros representa, antes de tudo, a palavra em desordem como fonte primordial, sua poesia tem por objetivo a ascensão do que é considerado extremamente simples, inútil, pois como diz: “O poema é antes de tudo um inutensílio” (Barros,1982:23). Na labuta com seus objetos desúteis, o poeta se apropria de abandono, joga com o verbo errante e procura entre palavras o imprestável: 54 Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus. Senhor, eu tenho orgulho do imprestável! (O abandono me protege.) (Barros, 1996:57) Com um olhar voltado para o chão de coisas menores, Manoel de Barros busca uma comunhão com palavras, imagens, cores, sons. Geralmente, o poeta utiliza-se de crianças, bêbados, loucos e objetos sem função utilitária. O poeta do ludo e lodo recria sua escrita para alcançar as “coisas desúteis”. Para ampliar a desnecessidade, condensa o grau do verbo até encontrar uma miopia no pretérito imperfeito, abona as substâncias dos substantivos faz, sem exemplo de ciência, “lagarto a partir de uma parede”. Seu olho tem: “rio de versos turvos por dentro”. Apalpa “bulbos com seus dourados olhos” (Barros, 1982:24). É também um indivíduo que “enxerga semente germinar e engole céu” (Barros, 1982:37). Antes, diríamos que os “objetos sem função têm muito apego pelo abandono/ Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas” (Barros,1996:57). Mas o que o poeta faz é “adoecer de nós a natureza” (Barros, 1993: 19). As coisas pequenas têm muita serventia para um poema manoelino, sua letra minúscula corta o poema pelo meio, escreve palavras desconexas ainda não domesticadas pelo significado. Em busca de encontrar a ascensão das coisas diminutas, Manoel de Barros é um poeta que não se deve levar muito a sério o que diz, parece que é tudo invenção ou dispersão. A imagem que podia ser um ruído de pássaros é antes anúncio de solidão. O verso apura o ser em devaneio para ampliar o “delírio verbal”. Está mais perto dos loucos e das crianças do que propriamente dos críticos. Conforme diz o poeta em O livro sobre nada: “Eu queria avançar para o começo./ Chegar ao criançamento das palavras. /Lá onde elas ainda urinam na perna.” (Barros, 1996: 47). À semelhança dos loucos e das crianças, redime-se às coisas do chão, principalmente quando 55 as palavras perdem o sentido, quando as palavras estão em contextos estranhos para nossos sentidos, quando os despropósitos são mais carregados de poesia que de bom senso, quando os absurdos são virtudes de poesia. Em Arranjos para assobio (1982), o poema “Sabiá com trevas”, sugere a busca de um canto humilde, sem pieguice: Caminhoso em meu pântano, dou num taquaral de pássaros Um homem que estudava formigas e tendia para pedras, me disse no ÚLTIMO DOMICÍLIO CONHECIDO: Só me preocupo com as coisas Inúteis Sua língua era um depósito de sombras retorcidas, com versos cobertos de hera e sarjetas que abriam asas sobre nós O homem estava parado mil anos nesse lugar sem orelhas. (Barros, 1982:15) Com o desmantelamento da ordem visível, a metáfora manoelina sugere-nos um traço de inocência em relação à linguagem utilitária. Como diz Antônio Houaiss no prefácio de Arranjos para assobios, “A poesia de Manoel de Barros é rigorosamente o que é. É poesia em estado de água pura, de nascentes sem fórmulas. Poesia que abre seu lugar próprio em seu próprio território que é a paisagem da linguagem verbal” ( Barros, 1982: 10-11). Antes diríamos que o poeta usa de uma linguagem complexa, inacabada, cobiçada de transubstanciação: “Sua língua era um depósito de sombras retorcidas, com versos cobertos de hera e sarjeta que abriam asas sobre nós”. Por essa extensão, amanhece, segundo Patrícia Pavas (1997:37), uma linguagem em Manoel de Barros que: “reflete uma preocupação constante com o despojamento. Esse despojamento 56 aparece sobretudo como uma simplificação”. Por esse aspecto, segundo Patrícia Pavas, cada frase fragmentada, cada palavra fora do lugar é um despojamento às normas gramaticais. No arranjo dos vocábulos, as palavras, despojadas do sentido usual, empreendem uma crítica da linguagem, quanto à sua utilidade de expressão, não somente pelo uso de imagem, mas também pelo poder que as palavras possuem ao resgatar o valor das coisas menores: “Um homem que estudava formiga e tendia para pedras me disse no último domicílio conhecido/ Só me preocupo com as coisas inúteis”. Como se sabe, quando empregamos a linguagem para atender as necessidades quotidianas, a palavra tende a automatizarse, perdendo a ambigüidade original, a forma poética. Por ser a linguagem do cotidiano automatizada, o ser humano tem necessidade de entrar em contato com o jogo da linguagem literária que o leva a um mundo mágico. Essa passagem do mundo real para o mundo mágico traz para o leitor a sensação de uma linguagem dúbia, diferente da quotidiana. O que existe de especial no texto literário em relação aos outros textos que chamaremos de utilitários é que o texto poético restaura a ambigüidade da linguagem poética, abrindo a possibilidade de várias leituras. Octávio Paz ( 1990:270), em seu livro Signo em rotação, destaca : Ao contrário das demais versões do real, como silogismo, descrições, fórmulas científicas, comentários de ordem prática que se limitam a representar ou descrever o que intentam expressar - e que neste processo vai perdendo pouco a pouco a totalidade do objeto - a imagem poética que irrompe no poema não é distinta da ambigüidade da realidade tal como empreendemos no momento da percepção imediata, contraditória, plural e não obstante dotada de um sentido profundo. A revelação poética descobre a condição humana - a solidão de ser jogado - e nos convida a realizá-las plenamente ao exprimila através da imagem que comporta a dualidade e o contraditório, a representação e a realidade. 57 Manoel de Barros, em sua labuta com a linguagem, não entrega as palavras ao sentido corriqueiro, habitual, apenas indica descaminhos, metamorfoseia a palavra em um rol absurdo de pertences sem valor. O poeta coloca desconfiança na palavra e duvida da utilidade de expressão da mesma. Por essa desconfiança vocabular, a natureza sugerida não é um lugar externo, mas um ponto de encontro, ou de desencontro, de imagens inventadas que, segundo Orlando Antunes Batista (1989: 82): “Parece conclamar o espírito manoelino que poderia significar para ver no claustro da natureza a vida, a aprendizagem, o ser”. O poeta do pântano entrega ao leitor um ilimitado jogo de palavras, de sons da natureza, que têm a ver com as plantas, os animais, suas leis de afinidade e de conveniência, suas analogias obrigatórias. O poeta prefere uma vegetação brejeira das mais comuns possíveis, das mais inóspitas, como lodo, raízes, árvores, liquens, musgos. Uma vegetação que, segundo Patrícia Pavas (1997:50), sobrevive sem maiores cuidados, pois se embrenha ao vento, ao sol e à chuva. O poeta Manoel de Barros aposta em seus versos imagens inusitadas da natureza selvagem, ao mostrar, em uma relação de animismo, seres transformados em bichos, em pedras, em coisas, ou como diz em Gramática expositiva do chão - poesia quase toda(1990:286): “Em suas ruínas/Homizia sapos” (Barros, 1990: 286). Manoel de Barros, o camaleão da palavra, dissimula como ninguém a arte de humanizar os animais, com seu talento de observar a natureza, captando com desenvoltura o mundo do pântano. Vê-se que o mundo animal, na poesia manoelina, é visto não de forma hierárquica, mas de forma distinta: “Do barranco uma rã lhe entarda os olhos” (Barros,1982:28). O poeta faz peraltices com as palavras, espera a pedra florir, gosta mais do vazio do que do cheio, vê até mesmo a cor do vento. É um poeta capaz de atravessar um rio inventado, de fotografar o som, muito capaz também de derreter o sol, colocando no final da tarde um ponto inicial. Um poeta que, para chegar às margens do poema: “Desinventar objetos. O pente por exemplo. Dar ao pente função de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha” (Barros, 1993: 11). De novidade, tem uma simpatia por pessoa pertencida de árvore, inventa poemas a ponto de 58 enxergar uma manhã atravessando os perfumes da aurora. “Se é vermelha tinge a outra de vermelho/ Se é alva tinge a outra dos lírios da manhã (Barros, 1998: 67). A natureza é metáfora da arte de transver: “Dentro da mata no entardecer o canto dos pássaros é sinfônico” (Barros, 1991:61). O livro Arranjos para assobio sugere-nos um modelo anormal de expressão, que dessencializa a norma até torná-la mais pura: “Nos monturos do poema os urubus me farreiam” (Barros, 1982:16). O poeta preza o que é menor, o que não tem préstimo: “Urubus se ajoelham para ele” (Barros, 1990:275). É uma poesia cheia de coisinhas menores que: “Cada coisa ordinária é um elemento de estima” (Barros, 1992: 180). A poesia manoelina amplia o chão das coisas, o que é menor se torna imenso no campo poético. “O chão é um ensino” (Barros,1982:40). O chão é um aprendizado, está cheio de coisas, coisas que, para nós, muitas vezes, não têm como decifrar ou mesmo traduzir, pois: “Influi na doçura de seu canto o gosto que pratica de ser/ uma pequena coisa infinita do chão” (Barros, 1982:28). A realidade poética dessa imagem não pode aspirar à verdade. O poema não diz o que é, mas o que poderia ser. Seu reino não é apenas a natureza, mas também o ser humano. Manoel de Barros vê o mundo, as palavras e as coisas de modo completamente particularizado. Em sua incessante produção, o poeta busca perseguir o fino ajuste entre as palavras e as coisas. Em Manoel de Barros, as coisas se ajustam entre a realidade e a realidade verbal. Assim, há um enquadramento possível para a realidade nesse universo de coisas que, em eterno estado de esboço, se oferece repleto de surpresa aos olhos do leitor. “Na verdade eu nem tenho ainda o sossego de uma pedra” (Barros, 1998: 41). 59 4.1 - A natureza das coisas Em Arranjos para assobio, o chão está repleto de coisas, de palavras. Mas o que seria esse mundo de coisas que transita pela poesia manoelina? Bom, para compreendermos melhor a sugestão da palavra coisa, na poesia de Manoel de Barros, “cascavinhamos” e acabamos por encontrar a palavra coisa representando muitas coisas para a poesia: “Só me preocupo com as coisas inúteis” ( Barros,1982: 15). Em um mundo de coisas: “Coisa é Pessoa que termina como sílaba” ( Barros,1982:40), ou uma ligeira metáfora: “Olho é uma coisa que participa o silêncio dos outros” (Barros, 1982: 40). Manoel de Barros entre as coisas natureza, sugere-nos aquelas que são desprezadas pelo olhar do homem: “De manhã catando pelas ruas toda espécie de coisa que não pretendem”(Barros, 1982:17), o poeta revisa, com cuidado, a paisagem esquecida pelo desgaste da rotina: “O tempo dele era só para não fazer as mesmas coisas todos os dias”( Barros, 1982:43). Às vezes, para afirmar que “todas as coisas têm serventia”(Barros,1982:46). Ou coisa sendo metamorfoseada em outra coisa: “Coisa latente, aurora crisálida em cima de um ovo” (Barros,1982:43). Até mesmo “coisa” sendo suprimida pelo diminutivo: “Coisinhas, osso de borboleta pedras” (Barros,1980:25). “Coisa” sendo revelada pelo conceito de concretude: “Um verso se revela tanto mais concreto quanto seja seu criador coisa adejante” (Barros,1982: 30). Ou já cansado de muita explicação, retruca: “Coisa que não faz nome para explicar” (Barros, 1982:27). Deixando o fio do verso falar por si, no reverso da linguagem poética, as coisas são mais coisas: “Consegui não descobrir” ( Barros, 1996: 77). O poeta Manoel de Barros não é o que nomeia as coisas, mas o que deforma, decompõe, dissolve as coisas. Talvez porque as coisas não sejam 60 coisas, mas palavras que dizem outra coisa: metáfora pura. Talvez, em sua linguagem de coisas, a linguagem manoelina, destecendo o tecido verbal, não fale das coisas, nem do pântano: fale de si mesma. Na visão de Leyla Perrone-Moisés ( 2000: 83), em Inútil poesia, o que caracteriza uma coisa talvez seja a inviabilidade de essa não poder ser outra coisa a não ser ela mesma: O que caracteriza a coisa é sua impossibilidade de dizer outra coisa senão ela mesma. O que caracteriza o homem é sua capacidade de inventar, de variar, de dizer outra coisa. Em uma ligação íntima com as coisas: “Coisa adejante, se infira, é o sujeito que se quebra até de encontro com uma palavra”( Barros, 1982: 31), o poeta não transforma a palavra em objeto, mas devolve ao signo a pluralidade de seus significados. Nesta operação, o poeta percebe a palavra coisa existindo por uma concretude de si mesma, como se quisesse ser ele próprio nas coisas que recria: ................................................... Três coisas importantes eu conheço: lugar apropriado para um homem ser folha; pássaro que se encontra em situação de água; e lagarto verde que canta de noite na árvore vermelha. Natureza é uma força que imunda como os desertos. Que me enche de flores, calores insetos, e me entorpece até a paradeza total dos reatores Então eu apodreço para a poesia Em meu lavor se inclui o Paracleto. ....................................................... ( Barros , 1982:30) À procura de uma explicação para o que seja coisa, pescamos dicionário Aurélio (1986:427) : no Coisa [ Var. de cousa lat. Causa.] S. f. 1. Aquilo que existe ou pode existir: todas as coisas do Universo. 2. Objeto 61 inanimado: os animais e as coisas. 3. Realidade, fato: Não veremos palavras, mas coisas evidentes. 4. Negócio, interesse: Saber tratar de suas coisas. 5. Empreendimento, empresa: Agora a coisa vai. 6. Acontecimento, ocorrência, caso: Foi assim que se deu a coisa. 7. Assunto, matéria: Tratase de coisa séria. 8. Causa motivo: que coisa provocou o rompimento dos dois? 9. Mistério, enigma: Aí tem a coisa, ninguém a entende.10. Perdas dos sentidos, ou mal estar ou indisposição indeterminada; troço: Deu-lhe uma coisa.11. Bras. Gír. Troço: Que coisa, a casa que ele comprou.12. Bras., PB. V. baseado. 13. Bras. pop. V. diabo - V. coisas de . Coisa do arco-da-velha. Coisa espantosa, extraordinária, inverossímil. Coisa julgada .Jur. Sentença irrecorrível, decisória da lide, e que tem força de lei nos limites das questões decididas. Coisa pública. Os negócios ou os interesses do estado; o Estado. Coisas e loisas.1. Misturas de coisa várias, assuntos vários. 2. Coisa indeterminada; ou que não se quer especificar: disseme coisas e loisas. [Tb. Se usa no sing.] Aí é que a coisa fia fino. V. aí é que são elas. Alguma coisa, um tanto; algum tanto, algo: Todos a achavam imensamente estranha, e alguma coisa feia. ( Antônio Patrício, Serão Inquieto. P. 124) E lá vai coisa. Bras. Fam. V. e lá vai fumaça. Não dizer coisa com coisa. Falar sem nexo ou propósitos; disparatar. Não sei fazer com coisa. Agir despropositadamente; disparatar. Não ser lá grande coisa. V. não ser lá para que digamos. Uma coisa. Bras. Fam. e pop. 1. V. um amor: Depois de remodelada, a casa ficou uma coisa. 2. Reação súbita e incontrolável; um troço: Senti uma coisa quando vi a criança chorando, e chorei também.3. Coisa ruim, de má qualidade; uma bomba: O programa de televisão, ontem, foi uma coisa. As coisas, segundo Edmund Husserl , equivalem a perder a razão, perder a medida, o sentido: Caracterizam-se pelo seu perspectivismo, pelo seu inacabamento, pela possibilidade de sempre serem visadas por noeisis novas que se enriquecem e as modificam. ( 1996: 11) 62 Edmund Husserl de Investigações lógicas acredita que a coisa pode ser pensada ou percebida. Quando pensada, é vista de forma definida e acabada; no entanto, quando percebida, caracteriza-se pela variedade de perspectivas que essas revelam. Por exemplo: o cubo percebido pode ser objeto de infinitas percepções porque é apenas a multiplicidade de perspectivas que o apreendem. O cubo pensado, por outro lado, é objeto geometricamente definido de uma vez por todas. ( 1996: 11) Manoel de Barros percebe as coisas pelos sentidos; talvez, por isso, veja os objetos mais simples, através de possibilidades inovadoras, proporcionando novas formas de ver as coisas além do sentido imposto pelo dicionário. A nosso ver, Manoel de Barros procura dar às coisas simples um acontecimento inteiramente composto de declarações inéditas. .................................... Seu olho exagera o azul Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os besouros pensam que estão no incêndio. Quando o rio está começando um peixe, Ele me coisa Ele me rã Ele me árvore. De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos. ( Barros, 1993: 75) Em uma similitude universal com as palavras , encontramos a palavra coisa referenciada em o livro “As palavras e as coisas” de Michel Foucault ( 1987:135): 63 As palavras e as coisas estão muito rigorosamente entrecruzadas: a natureza só se dá através do crivo das denominações e ela que, sem tais nomes, permaneceria muda e invisível, cintila ao longe, por trás deles, continuamente presente para além desse quadriculado que, no entanto, a oferece ao saber e só a torna visível quando inteiramente atravessada pela linguagem. Em correspondência com a adequação universal das coisas, em Manoel de Barros, as coisas são “inutensílios” de grande utilidade no campo poético. Em Gramática expositiva do chão (Barros,1990:278) aponta: “Aqui as palavras se esgarçam de lodo”. O poeta “brincoleja” com as palavras e descreve sobre as “coisas” em o livro Pré-coisa, livro esse escrito em poesia prosa: “Um cágado é pois uma coisa sem margem” (Barros,1985: 48). Em Retrato do artista quando coisa, encontramos a palavra “coisa” sem designação alguma: “Assim é que foram feitas todas as coisas - sem nome “ (Barros, 1998:49). Parece que em Manoel de Barros: “As coisas sem nome apareciam melhor” (Barros, 1998:46). Em verdade, “coisa” pode ser: “Duas aranhas com olho de estame/ um beija flor de rodas vermelhas/ um infrator de auroras - usado pelos tordos/ três peneiras para desenvolver moscas”( Barros, 1990: 281). Nessa perspectiva, é uma poesia tão coisificada que não sabemos, é incerto, se o poeta tenta ver as coisas através das palavras, ou se são as palavras que desejam encontrar a paisagem nas coisas, pois como diz: “São minhas frases que desejam fazer esse trabalho” ( Barros,1998:59). Ao fazer vadiagem com sons e cheiros, Manoel de Barros atinge só o lado das coisas que não funciona: “Servia para não funcionar: na direção que um canivete de papel não funciona” ( Barros,1998:45). Com exercícios de infantilizar a palavra “coisa”, o poeta encomprida o que parece não ter dimensão ou compreensão: “As coisas me ampliaram para menos” (Barros,1993:67). Sem muito tino 64 para exatidão, Manoel de Barros faz novas descobertas: “ Uma coisa que o homem descobre de tanto seu encosto no chão é o êxtase do nada”( Barros, 1991: 57). E, nas suas paisagens, inaugura: “De escória na boca do poeta beira de rio/ que é uma coisa muito passarinha/ Ruas entortadas de vaga-lume”( Barros, 1982:25). Ao confabular um conceito para “coisas”, o poeta se arrisca: “As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças”( Barros, 1993:13). Mas lembra com piedade: “Coisa que não acaba no mundo é gente besta e pau seco”( Barros, 1991:60). E sem exagero: “Me disse que as coisas que não existem são mais bonitas” ( Barros, 1993:77). Porque “Andar à toa é coisa de ave”, diz o poeta das virtudes inúteis, em seu livro Ensaios fotográficos (Barros, 2000: 51). Entre luxúria e escória: “O homem está coalescente às coisas como um osso de ave” ( Barros, 1990: 283). Essas referências nos levaram a acreditar que: “Nenhuma coisa ficava sem órgão ou boca”( Barros, 1990:285). E assim como as coisas são palavras, e as palavras são coisas, todas as coisas em Manoel de Barros passam a ter desígnios: “Raiz de minha fala chama-se escombro” ( Barros, 1982: 29). Para situarmos Manoel de Barros, no livro Arranjos para assobio, é preciso vê-lo em completo estado de metamorfose, ou, sendo mais preciso, em estado animismo, enquanto expressão de linguagem. A palavra escorre, em silêncio, nos espaços do mundo da natureza pela sutileza das metáforas. A palavra que o poeta usa o inclui. Conforme diz em O livro das ignorãças (1993:61): “A palavra que eu uso me inclui nela.” Vê-se que a palavra é plasmada, em si, e, por si, revelando o que deseja atingir na pureza das coisas simples que desbrava: “A poesia me desbrava com água me alinhavo”( Barros,1982: 16). À procura de uma palavra que realize o exercício de coisa simples, a poesia manoelina se aproveita de imagens, para iniciar a sua engenharia literária. E se, para Oscar Wilde, “Toda a arte é inútil”, a voz da poesia de Manoel de Barros se fará sobre os escombros, sobre o traste, por isso que não serve para nada, porque serve para inventar mundos, serve para criar palavras. 65 Em se tratando da poesia manoelina, o inútil é necessário, porque o inútil da poesia não tem muito a ver com o inútil da realidade. O inútil da poesia é diferente, porque tem outra função que não é a de informar. A leitura de poesia não é como uma leitura de uma carta impressa em “letra de câmbio”, uma leitura prática. A leitura de poesia exige outros sentidos, exige o terceiro olho, o olho de Tirésia, adivinho de Tebas; pois como diz Manoel de Barros em seus arranjos, que são inventados assobios: “ Olho é uma coisa que participa o silêncio dos outros” ( Barros, 1982: 40). Por esses sentidos, na linha de inutilidade das palavras , o texto poético não tem fim utilitário. Contudo como diz João Cabral de Melo Neto. ( 1982:24): “Quando aquele que os sofre/ trabalha com palavras,/ são úteis o relógio/ a bala, e mais a faca” . Em verdade, a literatura é a arte inútil que se torna útil, quando serve para levar os leitores a observar outras realidades - idealidade, outros mistérios. Octávio Paz( 1990:246), em seu Signo em rotação, aviva-nos a importância do mistério na arte: O mundo da produção em série é um mundo de objetos, de utensílios. E os utensílios nunca são misteriosos ou enigmáticos, pois o mistério provém da indeterminação do ser ou do objeto que o contém. Um anel misterioso se desprende imediatamente do gênero anel; adquire vida própria, deixa de ser um objeto. O mistério é uma força ou uma virtude oculta, que não obedece e que não sabemos a que hora e como vai manifestar-se. Mas o instrumento não oculta nada, e nada nos indaga nem responde. Se observarmos as frases que atravessam o poema pelo meio, veremos que a Literatura é, acima de tudo, um verbo humano que engana e nos leva por um caminho em que nada há de verdadeiro: “Bastava estender as mãos que chegava no fim do mundo” ( Barros, 2000: 33). Em Inútil poesia, Leyla Perrone-Moisés destaca: “Uma vez decifradas as frases que atravessam o poema, verificamos que elas 66 não nos informam um nada de útil, e nem ao menos têm um sentido seguro” ( 2000: 31). Metamorfoseando o que não tem valor, na primeira páginas do livro Arranjos para assobio, confessa: “Só me preocupo com as coisas inúteis”. Manoel de Barros apropria-se das coisas inúteis assim como Marcel Duchamp, que, artista por excelência da inutilidade, também retirava das coisas “desúteis” matéria de valor à obra de arte. Sabemos que Marcel Duchamp negou a própria essência da pintura, destruiu também a noção tradicional de obra. Em um mundo de signos, o poema de Manoel de Barros é um emblema da linguagem da natureza, a tinta verde da caneta manoelina pode criar signos que, por sua vez, sugerem a utilidade das coisas e dos outros tipos de impressos. De certa forma, essa questão dos “inutensílios” tão presente na poesia manoelina põe em questão o valor de tudo que consumimos diariamente de forma passiva sem duvidar de nada. Encontramos, em livros posteriores a Arranjos para assobio, também uma tendência para o lado menosprezado das coisas. O poeta sabe o valor do que não presta: “ É um olhar para ser menor, para o insignificante que eu me criei tendo/ O ser que na sociedade é chutado como uma barata - cresce de importância para meu olho” ( Barros, 1998:27). Em Poesia quase toda, (Barros,1990: 275), o poeta descortina para o dia: “O aparelho de ser inútil estava jogado no chão, quase coberto de limos”. Ou como inscreve em Matéria de poesia (Barros, 1974:180): “Cada coisa ordinária é um elemento de estima”. Porque: “Tudo muito manchado de pobreza e miséria que se não engana é da cor entre amarelo,” inclui o poeta em Gramática expositiva do chão ( Barros,1990: 156). Em sincronia com as coisas, o poeta apanha as ruínas com as mãos e não encontra nada, em O livro sobre nada: “As coisas tinham para nós uma desutilidade poética” ( Barros,1996:11). Vimos até em Concerto a céu aberto para solo de ave” que: “Dentro do abandono minha boca tem uma luxúria” (Barros,1991:20). O poeta campeia em o livro Poesias uma despreocupação com as coisas 67 (Barros, 1956: 29): “Por toda parte o segredo das coisas vivas/ entrar em caminhos ignorados./Sair por caminhos ignorados”. Chega até mesmo: “Anunciar as virtudes do inútil” ( Barros, 2000:35). 68 4.2 - Discussão sobre a utilidade Mas afinal, o que vem a ser utilidade; por que umas coisas valem mais que outras; por que algumas são consideradas úteis e têm valor elevado, enquanto outras nem valem tanto, têm valor nulo; como podemos estabelecer o valor de uma coisa? Sabe-se que o valor das coisas está, pois, fundado em seu princípio de uso, de utilidade. Talvez, por isso, tudo que satisfaz a necessidade tem, portanto, um valor no comércio circunstancial da vida. Para Michel Foucault: Aquilo de que não se tem necessidade é igualmente desprovido de valor enquanto não for usado para adquirir alguma coisa de que necessite. Em outras palavras, para que uma coisa possa representar outra é preciso que elas existam já carregadas de valor. ( op.cit.: 205) Por essa linha do pensar de Michel Foucault de que aquilo de que não temos necessidade é desprovido de valor, de que forma podemos afirmar que uma coisa nos é útil? Ora, se pudermos nomear o que nos ajuda e (ou) estimula nossa produtividade, bem como o que serve para facilitar nosso 69 esforço, possivelmente conceituaríamos como sinônimo de uma coisa útil. Sabemos que o princípio de utilidade tem como forte referência o que o ser humano utiliza para produzir as coisas. Se levarmos em consideração o conceito de utilidade pelo valor de uso , veremos o homem como um fazedor de utensílios sendo movido pela racionalidade, em um mundo de coisas que giram com as necessidades e os valores de cada época. Manoel de Barros subverte a referência da utilidade das coisas, toma o inútil como útil. O inútil ganha função na utilidade das palavras. Conforme diz o poeta no livro Matéria de poesia: “As coisas sem importância são bens de poesia” ( Barros, 1992:181). O que é tido pela regra ganha exceção, ao dar cintilância aos seres apagados: “A noite me diminui” (Barros, 1993:51). Dá voz e valor àquilo que não tem mais utilidade : “A lata morava no quintal da minha casa entregue às ferrugens”(Barros, 2000:39). Divorcia o conceito de utilidade da noção de uso: “Ele nunca realizava nada/ fazia tudo de conta” ( Barros, 2000:53). O poeta dá às coisas pequenas um valor imenso, enfatiza-nos a decadência cultural em que estamos inseridos e, diante mão, aglutina o que não tem valor de uso, dá às coisas uma função para lá de inegociável. Em sua relação com as coisas ordinárias, Manoel de Barros busca educar um novo mercado: o das coisas desúteis. Assim, o inútil torna-se totalmente útil pela força de expressão do verbo, na medida em que o mais útil torna-se menos útil fora do mundo da linguagem. O poeta da inutilidade esvazia o conceito de utilidade de qualquer referência de uso, conseguindo assim transformar o utilitarismo em um arsenal de coisas inúteis. “Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas que os cientistas”( Barros,2000:59). Michel Foucault questiona o valor que estipulamos às coisas, bem como sobre a importância que oferecemos para as coisas. O filósofo convida-nos a observar com mais cuidado o reino das palavras: “Para tentar melhor observar através de uma lente, é preciso renunciar a conhecer pelos outros sentidos ou pelo 70 ouvir dizer” ( op. cit.: 146). Na concepção Foucaultena, é a própria coisa que aparece nos seus caracteres próprios e no interior de uma realidade que desde o princípio foi recontada pelo nome. As palavras significam as coisas, e as coisas se chamam nomes, que designamos morfologicamente de substantivos, pois nomeiam seres, objetos, coisas como: terra , sol, lodo, musgo, bichos, árvore, entre outros. Sabemos que todas as coisas estão em constante mudança, principalmente os valores da natureza humana, diariamente subvertidos. Ao analisar o conceito de utilidade no livro A condição humana, Hannah Arendt (1993: 322), mostra o conceito de “utilidade” interligado não somente ao de produção, mas à quantidade de dor e de prazer experimentado no consumo das coisas: Se é possível aplicar neste contexto o princípio de utilidade, deve referir-se basicamente não a objetos de uso, e não ao uso, mas ao processo de produção. Agora tudo o que ajuda a estimular a produtividade e aliviar a dor e o esforço torna-se útil. Em outras palavras, o critério final de avaliação não é de forma alguma utilidade e o uso, mas a felicidade, isto é, a quantidade de dor e prazer experimentado na produção ou no consumo das coisas. À procura de uma palavra que inverta o conceito de utilidade, o poeta Manoel de Barros diminui o excesso pelo aumento do que é considerado pequeno, indicando-nos que a cultura da forma como está organizada sobrepõe o racional deixando, à margem, as coisas simples e naturais. O poeta suscita no leitor uma significação nova para as coisas desúteis, e, assim, realiza novas significações com as coisas já conhecidas. A tarefa é relacionar os objetos com o material de que são feitos e listar seres vivos e não vivos. Em O livro das ignorãças ( Barros, 1993:59), o poeta pantaneiro viaja no rumo da imagem: “Uma ave me prende para inútil”, como exercício para o descomportamento semântico que 71 consiste em desarrumar a palavra poética a ponto de chegar ao “grau de brinquedo para ser séria”. No primeiro livro, Poemas concebidos sem pecados , quando o poema entardece suas memórias para trás, Manoel de Barros ( 1990:54) afirma: “Falo de um menino do mato sem importância/ mas isto não tem importância”, confirmando, portanto, que há, desde o princípio, uma certa propensão para falar dos desprotegidos, que se tornam em cada livro mais presentes. Não obstante, o poeta sugere uma íntima relação com os elementos da natureza do pântano ao articular, à natureza do seu discurso, os elementos do brejo entre si. Há, na poesia manoelina, um valor merecido às coisas insignificantes que em Arranjos para assobio se confirma: Me abandonaram sobre as pedras infinitamente nu, [e meu canto. e meu canto Meu canto reboja. Não tem margens a palavra. Sapo é nuvem neste invento. Minha voz é úmida como restos de comida. A hera veste meus princípios e meus óculos. Só sei por emanações por aderência por incrustações. O que sou de parede os caramujos sagram. A uma pedrada de mim é o limbo. Nos monturos do poema os urubus me farreiam. Estrela é que é meu penacho! Sou fuga para flauta e pedra doce. A poesia me desbrava. Com águas me alinhavo. ( Barros, 1982: 16) O poeta, em uma relação profunda com as palavras, acaba falando das mesmas: “Não têm margens as palavras.” Mas também nos reporta às imagens da vida natural: “Sapo é nuvem neste inverno”. 72 Desprende-se do conhecimento das coisas úteis a favor das coisas simples: “Só sei por emanações, por aderência, por incrustações”. O simples, em Manoel de Barros, é que diferencia as coisas da vida, pois no simples está o resgate da vida, é no simples que há o resgate das coisas mais puras: “Sou fuga para flauta e pedra doce”. E, em uma sociedade em que se conclama apenas no mundo da utilidade o que possa gerar produtividade, lucro, a linguagem poética com sua ausência de sentido imediato ainda é vista pelos racionalistas como se fosse um luxo inoperante, impraticável, ou, para os mais criteriosos de razão, uma completa falta de senso prático. No entanto: “Todas estas informações têm soberba importância científica - como andar de costas” ( Barros, 1990: 290). Observa, em Inútil poesia, Leyla Perrone-Moisés ( 2000: 33): Aos racionalistas incomoda o vago da linguagem poética, sua ausência de sentido imediato, claro e fixo. Como se isso fosse um luxo indecente, um atentado contra a humanidade, que necessita de respostas concretas e soluções rápidas. O que esses críticos não vêem é que a abertura do sentido, na poesia, é um luxo doado a todos os homens, o direito a todos os desejos e a todos os futuros, a contracorrente do sentido único da ética oficial, dos governos e das finanças. Se os racionalistas ponderam lucros, em uma época fundada sobre a injustiça social e sustentada por uma única ideologia, é por ruptura, e não por sincronia com as coisas, que a poesia chega ao mundo, desconstruindo o real. Nesse sentido, o poeta Manoel de Barros rever o que não se apresenta, experimenta novos olhares para fotografar os objetos, os lugares: “Escuta fazerem lama como um canto” ( Barros, 1982:22), e encontra na poesia um fixar de entrecorte, eixo e signo, numa relação direta com os experimentos da linguagem que, por sua vez, escapa a todo cânone: 73 O que eu queria fazer era brinquedos com as palavras. Fazer coisa desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora. ( Barros,1996:7) À procura das coisas inúteis, como verdadeiros bens de poesia, como valor imprescindível para perceber melhor o que nunca foi observado antes, o que é falta de percepção, o que é confusão dos sentidos, Manoel de Barros (1982:26) sublinha seus utensílios poéticos: Os bens do poeta: um fazedor de inutensílio, um travador de amanhecer, “uma teologia do traste”, uma folha de assobiar, um alicate cremoso, uma escória de brilhantes, “um parafuso de veludo” e um lado primaveril. Na reinvenção do mundo pela palavra, o poeta faz nascimento às coisas inomináveis, e vai pelo escuro, onde não se pode utilizar a lógica para entender, onde não se pode passar a régua para medir o tamanho da beleza, pois a régua mede limites , e as palavras, deslimites. Em Manoel de Barros, “o belo está na linguagem que fala do desnecessário”. E o desnecessário é uma coisa muito importante que o poeta apreende pelas margens da escrita. No fundo da cozinha meu avô tentou cortar o phalo com o lado grosso da faca. Não cortou. Ia pinchar aos urubus. Não pinchou. Bem antes, em 1922, na Vila do Livramento, onde nascera, meu avô apregoava urinóis enferrujados. Ele subia no Coreto do Jardim: Olha o urinol enferrujado. 74 Serve para o desuso pessoal de cada um. Já pertenceu de Dona Angida do Cocais, senhora de nobrementes. É barato e inútil. Quem se abastece? Meu avô sabia o valor das coisas imprestáveis. Seria um autodidata? Era o próprio indizível pessoal. ( Barros,1996: 27) As coisas descartáveis são importantes ferramentas à poética da ordinariedade de Manoel de Barros; são essas coisas que servem para alimentar e conduzir o núcleo primordial do que escreve. Conforme diz ao Jornal do Brasil em 17 out. 2000: Poesia é virtude do inútil. É um objeto sonhante. É igual a um caneco furado que não segura água, mas serve para guardar besouros abstêmicos, mosca frita, lírio. Assim o caneco furado vence o poder de não prestar. Existe um foco demarcando a escrita de Manoel de Barros, que é o olhar dirigido para as coisas mais rasteiras, coisas que o homem perdido em sua complexidade já não consegue ver, ouvir, sentir, falar, tocar. Não é por me gavar mas eu não tenho esplendor. Sou referente pra ferrugem mais do que referente pra fulgor. Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário. O que presta não tem confirmação, O que não presta, tem. Não serei mais um pobre diabo que sofre de nobrezas. Só as coisas rasteiras me celestam. 75 Eu tenho cacoete pra vadio. As violetas me imensam. ( Barros, 1996: 41) O lirismo manoelino é manobrado por palavras encontradas em terrenos baldios: “Estou apto para o trapo” (Barros,1990:185). Palavras que viram trastes: “Só empós virar traste que o homem é poesia” (Barros,1990: 186). Há uma corajosa e quase prazenteira afirmação da simplicidade , para que se possa ver o mundo sem o olhar de dominação, mas da imaginação: “Quando o meu olho furado de beleza for esquecido pelo mundo/ Que hei de fazer?/ Dormir, talvez chorar “ (Barros,1998:75). 76 4.3 - A natureza e as coisas Todas as coisas boas foram um dia coisas más. Nietzsche Em Arranjos para assobio; o poeta dedica-se aos pequenos seres desprotegidos: “Sete inutensílios de Aniceto” Todas as coisas têm serventia sinimbus arvoredos Você derruba os paus de noite os passarinhos não tem onde descansar (Barros, 1982: 46) É importante que se diga que a poesia manoelina não está sobre os seres da natureza, mas está com a natureza, uma vez que descentra o homem de seu papel de inteira dominação sobre todos os componentes da mesma, “nivelando-os à condição de coisa entre coisas” , condição que vale, sem exceção, para todos os seres da natureza. Berta Waldman (1990:16), sobre a poesia de Manoel de Barros, destaca: 77 Descentrado o homem de seu papel de dominação sobre os seres da natureza, nivelando à condição de coisa entre coisas, miúdo, ele é submetido a uma ordem que vale para todos os seres. Todos, sem exceção, vivem, morrem e se transformam continuamente, eqüivalendo-se em sua materialidade e em seu destino. Manoel de Barros inventa coisas cujo valor não pode ser disputado, coisas cuja importância não levam a nada: “uma boca em ruína”, “pessoa adaptada à fome e ao mar”, suas tripas embostando de orvalho”, “homem numa sarjeta, “qualquer indivíduo encostado à lata”. Sem motor aceita-se entulho para poema. ( Barros,1982:25) Patrícia Pavas ( 1997: 95), em sua dissertação O senhor cujo olhar se dirige para baixo, assinala que, com o olhar voltado para o menos favorecido, Manoel de Barros coloca a imagem como base de seu processo criativo, como reação natural à mente racional: Ajudar aos marginalizados define uma visão em que a prática de dar é muito importante para comunicar, para transmitir às futuras gerações quão sublimes, quão valiosas são a vida humana e a vida diária. (....) Doar-se a esses seres é uma reação natural da psique contra a prisão do egocentrismo e o culto à mente racional característicos de nossa sociedade. Para contrabalançar o excesso de racionalidade, o poeta expressa o mundo como um incomensurável amontoado de absurdos, que não serve à realidade, mas que serve à sua oficina de transfazer as coisas mais simples da natureza em poesia. “Silêncio rubro” Crista de silêncio rubro, o galo 78 com frisos gelados de adaga no bico madruga as veredas batidas ( Barros, 1982: 51) Na visão holística de Fritjof Capra (1982:81): “Nunca podemos falar da natureza, sem falar ao mesmo tempo de nós mesmos”. Curiosamente, Manoel de Barros reduz a natureza, através do gesto de rasura, à peremptoriedade das coisas, que se apresenta de maneira evidente, quando deixa falar o eu poético: III ................................... Intrigante: não sei de onde veio nem de que lado de mim entrou esse besouro. Devo ter maltratado com os pés na Minha infância algum pobre diabo. Pois como explicar o Olhar ajoelhado desse besouro ................................................................................. (Barros,1982:17) Podemos dizer que vivemos, hoje, as conseqüências de nossas ações e de todos nossos antepassados, perante a natureza. Vivemos uma crise de valores, uma crise de humanidade, uma crise que se insere no sujeito com uma visão unilateral, uma crise de tudo. Para Theodor Adorno: Os fins estabelecidos não estão reconciliados com a natureza, por muito mediatizados que seja , quer dizer de si mesma. Na técnica, a violência quanto à natureza não é refletida por representações, mas entra imediatamente pelos olhos. Isso só poderia ser modificado por uma reorientação das forças técnicas de produção, que não se medem mais apenas pelos fins queridos, mas também pela natureza, que não assume aqui uma forma técnica. O desencadeamento das forças produtivas poderia, após a supressão da penúria, estender-se por outra dimensão do que a do simples aumento quantitativo de produção. (1970:61) 79 Nessa perspectiva, Theodor Adorno afirma que em um mundo devastado pela técnica, a condição levada a cabo pela consciência burguesa sobre a natureza da paisagem, transformada pela indústria, diz respeito a uma relação de dominação visível da natureza, onde a mesma vira para os homens a fachada do não dominado. A relação dos homens com a natureza perpetua a opressão, o caráter repressivo, insere-se, pois, na ideologia da dominação. O que se vê, em Arranjos para assobios, é que Manoel de Barros, ao falar de objetos abandonados, não emprega o termo à toa. Existe, é certo, uma sugestão de desacordo ao que está estabelecido, o poeta posiciona-se contra a situação em que se encontra a palavra que apenas relaciona e nada cria, revelando a função que cabe à palavra no poema: libertar-se do caráter repressivo, libertar-se do lugar comum, despojar-se de tudo que esteja coberto de razão: “Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore” ( Barros, 1996:69). Se há uma preocupação cada vez maior com as coisas inúteis da natureza, é porque, ao falar da natureza, Manoel de Barros nos alerta para os danos cada vez maiores e talvez irreversíveis que causamos, em nome da civilização tecnológico-industrial, ao mundo natural. Em seus Arranjos para assobio, Manoel de Barros ( 1982: 57) alerta-nos : Achava mais importante fundar um verso do que uma Usina Atômica! Era um sujeito ordinário. Em uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em 15 maio 1995, caderno 2, página 1, Manoel de Barros estica os desvãos, os ínfimos: Nossa arte é feita de resto. São aproveitamentos de materiais e passarinhos de uma demolição. Acho que àquele tempo eu falava da realidade do mundo. Me referia às injustiças enquistadas no corpo do velho mundo. Me referia às estruturas podres da civilização. E penso que é com os restos dessa civilização que estamos fazendo arte hoje. Sabemos que o diálogo com os restos reafirma a relação do poeta com as estruturas podres da civilização, com as injustiças 80 enquistadas no corpo do “maravilhoso mundo novo”. No livro Arranjos para assobio, o poeta trabalha com os restos de uma civilização esquecida: serviços: catar um por um os espinhos da água restaurar nos homens uma telha de menos respeitar e amar o puro traste em flor (Barros, 1982: 61) Não somos mais avantajados a exercer poder sobre o que é inferior a nós, mas a exercer mais cuidados por aqueles que são frágeis, inúteis, imprestáveis, descartados. Como diz Manoel de Barros ( 1993: 69): “É a sensatez que aumenta os absurdos”. 81 4.4 - A natureza sob o olhar da ordinariedade Para mim um quadro é a soma das destruições. Pablo Picasso Como se sabe, na alienação do mundo, a conquista da natureza serviu como instrumento para produzir coisas mundanas e úteis. Em virtude da excessiva ênfase no princípio de utilidade que usa a matéria-prima para produzir coisas, e vê em todo ambiente natural uma fonte inesgotável da qual podemos cortar, tirar, mutilar, limar tudo, em benefício da fabricação de coisas úteis, objetos artificiais, artigos de conforto, é que a natureza tem sofrido um espetáculo de agressão ambiental, que vem justamente dessa visão utilitária de tirar proveito de tudo. “As lições de R. Q.” ................................................. É preciso deformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo. ................................................ (Barros, 1996:75) Manoel de Barros, sob o princípio de que as coisas da natureza 82 deveriam não ter utilidade, pois a visão utilitária da mesma tem levado cada vez mais à exploração do ambiente natural, em o Livro sobre nada, expõe em sua máquina de inventar coisas: II Prefiro as máquinas que servem para não funcionar: quando cheias de areia de formigas e musgo - elas podem um dia milagrar de flores. .................................................................................... ( Barros,1996:57) Em verdade, a preocupação do homem com as outras espécies da natureza, pode-se dizer, é uma característica de tempos recentes. Hoje, não ligamos a TV sem encontrar algum tipo de informe sobre o corte de árvores, extinção de animais selvagens, abate de jacarés, armamentos nucleares, bomba atômica, entre outros. 10 ........................................ Sábio não é o homem que inventou a primeira bomba atômica. Sábio é o menino que inventou a primeira lagartixa. ( Barros, 1998:39) Sabemos também que o planeta Terra vive, hoje, seu período de intensa transformação tecnológica, em contrapartida, engendra fenômenos de desequilíbrio ambiental que, se não forem remediados a tempo, podem ameaçar o destino da própria vida humana em sua superfície. Acrescenta-nos em O ponto de mutação, Fritjof Capra (1982:38) : 83 Hoje, está ficando cada vez mais evidente que a excessiva ênfase no método científico e no pensamento racional, analítico, levou a atitudes profundamente antiecológicas. Na verdade, a compreensão dos ecossistemas é dificultada pela própria natureza da mente racional. O pensamento racional é linear, ao passo que a consciência ecológica decorre de uma intuição de sistema não lineares. Uma das coisas mais difíceis de serem entendidas pelas pessoas em nossa cultura é o fato de que se fazemos algo que é bom, continuar a fazê-lo não necessariamente é melhor. Manoel de Barros, com seu discurso não linear e antiracional, procura mostrar a ligação do homem com as coisas simples da natureza. Apesar de fazer questão de enfatizar que sua literatura é descomprometida da questão política, e sua preocupação maior é com a palavra: Todas as minhas palavras já estavam consagradas de pedras. Dobram-se lírios para os meus tropos. Penso que essa viagem me socorreu a pássaros. Não era mais a denúncia das palavras que me Importava mas a parte selvagem delas ,os seus refolhos as suas entraduras. Foi então que comecei a lecionar andorinhas. ( Barros, 1993: 102) Muitas vezes, o desacordo é uma forma que se encontra para defender certas posições em que se acredita. No livro Memória de arte em Mato Grosso do Sul, de Rosa Maria da Glória Sá (1992:52) , Manoel de Barros expressa suas irreais intenções: Minha poesia é uma reflexão permanente. A palavra me atinge de tal modo, que a língua passa a inventar coisas. Nunca empreguei uma palavra que não tenha roçado no meu 84 corpo. Minha poesia é marcada por um constante morrer e renascer(...) A partir da palavra, aprendo a inventar. Sendo o poema o monturo das palavras, Manoel de Barros percorre a natureza do pântano para retirar os objetos inúteis e reciclá-los enquanto texto poético. O poeta sugere aos leitores uma via, ante a palavra inusitada, que não é comum de se tornar aceitável na sociedade de consumo contemporânea: “ Nos monturos do poema os urubus me farreiam”( Barros,1982: 16). Uma proposta que, diante da realidade, desarma a percepção do leitor e coloca-o frente a uma maneira diferente de perceber a realidade. Em Gramática expositiva do chão - poesia quase toda, o poeta nos redimensiona : VII ....................................................... Na beira da pedra aquele cardeal, você viu? Fez um lindo ninho escondido bem para a gente não ir apanhar seus filhotes, que bom. ( Barros,1990:132) Entre fragmentos, o poeta utiliza as palavras para que essas possam aliciar a voz da natureza à criação que transparece na imagem original. Manoel de Barros traduz sua imagística verbal com extraordinária economia de meios e enganosa simplicidade formal. XIII As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: Elas desejam ser olhadas de azul Que nem uma criança que você olha de ave. ( Barros,1993:21) 85 Sabe-se que, imersas em uma cultura racionalista, as pessoas perdem seus valores, seus trinados, para viverem sob códigos. Como diz Theodor Adorno ( 1970:68): “O objetivo de toda racionalidade, da totalidade dos meios que dominam a natureza, seria o que já não é meio, por conseguinte, algo de não racional”. Manoel de Barros, pelo caminho da ordinariedade, arranca os elementos de uma realidade natural, modifica-os profundamente em si, atribuindo à poesia novos estados de coisas existentes pela absurdidade de imagens, de aromas e de cores: “As violetas me imensam” ( Barros, 1996:41). O poeta escreve para voltar ao tempo em que as coisas tinham para nós um sabor de desutilidade poética: “Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia” (Barros,1990:180). A poesia, em Manoel de Barros, não serve para nada, porque se torna um instrumento de grande serventia para reconstruir a humanidade pelo delírio terapêutico da palavra. Na visão de Theodor Adorno ( 1970:159): “Através da dominação do dominante, a arte revê profundamente a dominação da natureza”. Em nosso entender, a poesia de Manoel de Barros, ao falar das coisas inúteis da natureza, revê profundamente a dominação sobre os elementos da natureza. Por esse aspecto, a arte manoelina transvê o mundo natural. No livro Concerto a céu aberto para solo de ave, o poeta salva o mundo através da palavra : X Eis um araquã - um pássaro sem indústria. O passado obscuro dele é um rio. Sua voz tem um som vegetal. ( Barros, 1991:18) A poesia de Manoel de Barros é de grande serventia, em meio à inutilidade da arte. Tanto que em 15 maio 1995, em uma entrevista para o jornal O Estado de São Paulo, o poeta reforça: 86 As coisas desimportantes, os inutensílios, são muito importantes, porque servem para poesia. Tocar violão num beco é muito mais importante para a poesia do que uma jóia pendente. Um caneco furado que não carrega água é mais importante do que um tanque de água. Isso claro pela inutilidade do caneco furado. As coisas desprezadas pela civilização são objetos de poesia. Digo aliás que os desobjetos só prestam para poesia. Em verdade, as coisas desprezadas pela civilização são representadas de forma inédita em Arranjos para assobio: XV ........................................................ E mosca de olho afastado dá flor? Raiz de minha fala chama escombro Meu olho perde as folhas quando a lesma ........................................................ ( Barros, 1982: 29) Na categoria das coisas inúteis ligadas à natureza, a poética de Manoel de Barros no livro Arranjos para assobio está para a natureza como um corpo único indivisível: “Em seu couro a manhã é sangüínea” ( Barros,1982: 24). Cada palavra escrita inclui a natureza: Estou arrumado para pedra ( Barros,1982: 31). A natureza não se situa como lugar: “Que me enche de flores” ( Barros,1982:30), pois não tem domicílio, é expatriada, serve apenas como um mero motivo às imagens. Apesar de encontrarmos inusitadas referências que nos levam a viajar: “Como a luz que vegeta na roupa do pássaro” ( Barros, 1982:26), a natureza na poesia manoelina não é descritiva, funciona antes e, de certa forma, como invenção que irá nos conduzir a um processo de inovação das imagens no verso: “Nossa grandeza tem muito cisco” ( Barros, 1982: 30). Em entrevista concedida a José Castelo, em 03 de ago. 1996, ao jornal O Estado de São Paulo, o poeta Manoel de Barros insinua seus objetivos inventivos: 87 Não gosto de descrever lugares. Gosto de inventar. Quem descreve não é dono do assunto. Quem inventa é. O que desejo é me constar por meio de um trabalho estético. Se de tudo resultar um cheiro de coisa do chão, é bom. Percebemos que, em seu traço poético, o espaço da natureza em Manoel de Barros é revisitado em sentido mais amplo, além do cheiro de coisa do chão. A natureza, na poesia manoelina, é revisitada entre o fragmento e a totalidade, através do olhar do “sujeito inviável”. Manoel de Barros enquanto sujeito inviável rompe com a lei do pensamento racionalizado, e, de certa forma, não acata o princípio de identidade, expondo-se às contradições das palavras. E como nada mais é o que apresenta ser, a natureza é apresentada por partes, como fragmentos, para atingir o todo. Assim, cada elemento da natureza instaura no verso um fragmento solto que revela parte do mundo inventado por Manoel de Barros. Arcado ser, eu sou o apogeu do chão. Deixa passar o meu estorvo o meu trevo a minha corcova senhor! ( este assobio vai para todas as pessoas pertencidas pelos antros) ( Barros, 1982:59) As coisas simples da natureza são revisitadas não apenas como motivo literário de recriação de um lugar, mas simplesmente por ser representante de uma área humana viva que transcende sua tipicidade pela ampla dimensão lírica em que é descrita, uma dimensão lírica que não encontra fronteiras. “Disse que tinha tino para piano; mas só tocava borboletas” ( Barros, 1991:18). Como observamos, ao longo dos desvios poéticos de Manoel de Barros, a natureza, pela abundância de suas referências geográficas, é sugerida de forma inusitada, como uma região que 88 foge a qualquer delimitação; é apresentada como se fosse, acima de tudo, uma região do mundo e não de um lugar. A natureza, nos poemas manoelinos, é menos uma região do pântano que uma região costurada pelo verbo, a natureza aparece-nos como uma região inventada pelo lado avesso do verso: Estrela foi se arrastando no chão deu no sapo sapo ficou teso de flor! e pulou no silêncio. ( Barros, 1982: 60) As coisas da natureza se constróem, portanto, dentro da linguagem, espaço de referência que se reveste de estranhas formas e sons para suscitar espanto, emoções e encantamentos. Assim, a leitura do poema causa tanto mais prazer quanto maior a disposição do leitor para descobrir o efeito tátil-visual das imagens criadas pelo poeta. Entre flores e sapos, o poeta descobre a graça e a ironia do inesgotável poder de surpresa, do defeito elementar de ficcionalizar o mundo. E em uma época em que o mundo segue em busca de uma racionalidade desenfreada, no meio de uma sociedade com valores completamente fetichizados, faz bem lembrar uma crença antiga e profunda em Hesíodo (1992:64) de que as injustiças sociais acarretam não só perturbações e danos às forças produtivas da natureza, mas que também subestimam a própria ordem temporal da mesma. E em uma época em que as necessidades humanas parecem não ter fim, lutar contra as armas do progresso é querer brigar contra o mundo. Em verdade, Manoel de Barros se incumbe de anunciar o que já nasce torto ; pois, na proeza de cantar seus versos em Concerto a céu aberto para solo de ave, o poeta vem com essa “Para ser escravo da natureza o homem precisa de ser independente” (Barros,1991:62). Meio a perduráveis valores, perante às ordens sistematizadas, fabricadas, a poesia manoelina revela outro sentido às coisas da 89 natureza pela linguagem, que “chega enferma de suas dores, de seus limites, de suas derrotas” ( Barros, 1991: 19). O exercício utilizado pelo poeta diante dos objetos da natureza é a desordem, pois a desordem instaura o caos, e o caos é a forma que o poeta encontra para onde converge a ordem. Cada verso manoelino seduz pela dissonância, pelo desvio, pelo ilimitado jogo de palavras que ilumina o silêncio das coisas inúteis, anônimas. Ou como diz no Livro das ignorãças: “Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim”( Barros,1996: 70). Ao revelar o caos da linguagem pela eleição das coisas imprestáveis, o poeta em Concerto para solo de ave afirma que “servia para não funcionar na direção que um canivete de papel não funciona” ( Barros, 1991: 45). A poesia manoelina, reveladora de um mundo contraditório, se encerra nas coisas mais banais e comuns. 90 O INVERNO QUARTA ESTAÇÃO: A linguagem do “ inutensílio “ Não há regra que não se possa violar. Por amor ao belo. Ludwig Van Beethoven 91 5 - A linguagem do “inutensílio” A poesia é antes de tudo um inutensílio. Manoel de Barros Em um momento em que os poetas se ajeitam como podem na luta pela sobrevivência, em que os pássaros não cantam mais, pois o canto resultou inútil, cabe ao poeta avivar nossa curiosidade, balançar as palavras, para que essas façam os pássaros soltar seus trinados “sobre uma boca em ruínas” (Barros,1982:25). Afinal, são as palavras que nos criam, traem-nos, repudiam-nos, salvamnos, silenciam-nos. Conhecemos o mundo através das palavras, contamos o passado, o presente e o futuro também. Mudamos o sentido do universo, quando as pronunciamos com intensidade. Somos das palavras deuses, gurus, profetas, condutores, poetas. A palavra poesia talvez seja das necessidades a mais sensível e precisa, talvez a mais divina, pois simboliza diversas significações que evocamos ou produzimos com a imaginação. Ora, se passarmos a vista pelas páginas do livro Arranjos para assobio ( 1982), veremos que o poeta Manoel de Barros, em seu exercício de valorizar a condição da linguagem poética através da palavra inventada, pela parte concreta que cabe a essa, utiliza as 92 palavras como objeto, como “inutensílio”, como ponto de entulho. Graças ao poeta, as coisas ganham um novo sentido e qualquer aspecto da realidade será recriado em imagens tomadas a contextos semânticos diversos. Por analogia, Manoel de Barros aproxima as palavras em função de suas camadas sensíveis, de suas colagens bizarras de substantivos que se tocam pela junção de opostos. VI Há quem receite a palavra ao ponto de osso, de oco; ao ponto de ninguém e de nuvem. Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na sarjeta. Sou mais a palavra ao ponto de entulho. Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las pro chão corrompê-las, até que padeçam de mim e me sujem de branco. Sonho exercer com elas o ofício de criado: usá-las como quem usa brincos. ( Barros,1982:20) Entre objetos insignificantes, a poesia manoelina inventa seus “inutensílios” com participação lúdica: “usá-las como quem usa brinco”. O poeta reclama novas formas à sintaxe como em Rimbaud, que perdeu a inteligência das coisas para percebê-las pela alquimia das palavras. Com o olhar voltado para o menor, Manoel de Barros acentua a fusão que se opera no plano sonoro ou imagístico que, em combinação engenhosa, remete ao alheamento do poeta em relação à natureza racional das coisas: “ Não vale um cabelo/ Não serve nem pra remendo/ só presta pra cantar e tocar violão” (Barros,1996:25). O verso de Manoel de Barros é a própria “consagração do instante”, tem os pés fincados na realidade do pântano, e, ao mesmo tempo, na consciência crítica que lhe permite constatar que nas coisas mais simples se encerra o próprio mistério da paisagem física, moral, verbal e estética: 93 Certas palavras têm ardimentos; outras, não./ A palavra jacaré fere a voz” (Barros 1991: 19). Se nos dispusermos a penetrar nas entrelinhas do poema, as imagens inventadas são elementos tirados dos aspectos mais comuns da natureza, que surgem associadas entre si, sem que o leitor reconheça os passos que levam a tal aproximação: “ao ponto de ninguém e de nuvem.” E é a partir de uma linguagem que tudo subtrai e transforma a ordem anormal das coisas, que Manoel de Barros se torna um poeta, acima de tudo, “inventador” de coisas inúteis: “ Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas”( Barros, 1996: 57). O poema se sustenta no jogo de palavras em que a imagem ganha sentidos inimagináveis, às vezes, impossíveis, mas nunca por demais seguros. O poeta é inventor de um lirismo que ganha força pela sugestão do verbo: “Meu avesso é mais visível que um poste” ( Barros, 1996:68). Sendo conduzida pela sensibilidade poética, a linguagem manoelina trilha caminhos muitos pessoais, extravasa de uma realidade para outra, arrasta para si o que é desconhecido, o que não tem limites claros. “ Há certas frases que se iluminam pelo opaco” ( Barros, 1993:23 ). Percebe-se que Manoel de Barros retira as palavras da circulação normal e as coloca em um itinerário mais livre, distante da linguagem habitual. Pela ruptura de certas frases, o verso manoelez incorpora o ambíguo, o difuso, o descentrado; e duma maneira ciscada, desvia as palavras e as coisas de suas dimensões lineares. Em verdade, a experiência de deformar a realidade leva o poeta Manoel de Barros a conhecer os objetos, os “inutensílios”, as coisinhas sem valor, em seu estado primitivo. Vale abrir, aqui, um parêntese e lembrar que essa tendência à deformação da realidade não é inovadora, uma vez que já teve seus antecessores no Barroco e no Romantismo. No entanto, a deformação na poesia manoelina depura-se em um estilo alinhavo bastante fragmentado: 94 XI coisinhas: osso de borboletas pedras com que as lavadeiras usam o rio pessoa adapatada à fome e o mar Encostado em seus andrajos como um tordo! o hino na borra escova Sem motor ACEITA-SE ENTULHO PARA O POEMA ferrugem de sol nas crianças raízes de escória na boca do poeta beira de rio que é uma coisa muito passarinhal ! ruas entortadas de vagalumes trastes de treze abas e seus favos empedrados de madeira sujeito com ar de escolhos inseto globoso de agosto árvore brotada sobre uma boca em ruínas retrato de sambixuga pomba estabelecida no galho de uma estrela! riacho com osso de fora coberto de aves pinicando suas tripas e embostando de orvalho suas pedras indivíduo que pratica nuvens ACEITA-SE ENTULHO PARA O POEMA moço que tinha seu lado principal caindo água e o outro lado mais pequeno tocando larvas! rãs de luaçal ( Barros, 1982: 25) No poema, a natureza inventada é vista para além da visão habitual que nos foi colocada, por isso que, muitas vezes, não contribui para sustentar a realidade de onde emerge: “Retrato de sambixuga pomba estabelecida”. E esse procedimento de um poeta inventor como Manoel de Barros não é mero devaneio retórico; é, sim, é armação de objetos lúdicos com emprego de palavras, imagens cores sons. Seu lado principal caindo água e outro lado mais pequeno tocando larvas/ rã de luaçal”. Para a imaginação manoelina, não há 95 certo ou errado, até o “o mais pequeno”, que poderia ser visto como inadequação da linguagem, é utilizado referenciando algo muito menor. O poeta metaforiza termos como “ rã de luaçal”. Luaçal sugerindo a lua refletida no lamaçal, dando assim continuidade à associação de rã e charco. Esse tipo de artimanha inventiva produz imagens de máxima perfeição na poesia de Manoel de Barros. Aparentemente, as imagens parecem simples, mas em verdade são complexas, pois associam realidades distintas em um mesmo campo imagético: “ Traste de treze abas e seus favos empedrados de madeira”/ “sujeito com ar de escolho inseto”/ “globoso agosto árvore brotada”. Vejamos aí que a forma como estão organizados os três versos aparece-nos como se o poeta utilizasse o processo de colagem à construção dos mesmos. O verso manoelino é um fragmento solto, que instaura uma poética lúdica, cheia de cortes, em que toda significação estanca, aparentemente, aos olhos do leitor: “sujeito com ar de escolho inseto”. Desperta-nos para as coisas que diz como se inaugurasse uma forma pura de escrever sobre as coisas mais simples da natureza: “ferrugem de sol nas crianças raízes”. O poeta vê as letras e as entorta, até descobrir: “que é uma coisa muita passarinhal ! ruas / entortadas de vagalumes”. Na verdade, Manoel de Barros inventa uma linguagem que se utiliza de objetos, os “inutensílios”, que tomam significantes novos de significados pouco definidos, mas que constituem uma espécie de sistema, um código que o poeta denomina cordialmente de “idioleto manoelês”, uma espécie de linguajar individual, cujo substrato material da linguagem busca construir um sentido próprio, diferente, pelo sacrifício do sentido automatizado. Uma linguagem que percorre expressões novas para atingir o que essas têm de inéditas. Escrevo o idioleto manoelês archaico ( idioleto é o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e 96 com as moscas). Preciso de atrapalhar as significâncias. O despropósito é mais saudável do que o solene. ( Para limpar das palavras alguma solenidade - uso bosta.) Sou muito higiênico. E pois. O que ponho de celebral nos meus escritos é apenas uma vigilância pra não cair na tentação de me achar menos tolo que os outros. Sou bem conceituado para parvo. Disso forneço certidão. ( Barros, 1996: 43) Nas entrelinhas do “idioleto manolês”, descobre-se o jogo sonoro de palavras “transfeitas” em poesia. Vê-se que os “inutensílios” na poesia de Manoel de Barros servem como elo para emprestar seus arranjos repletos de coisas “desúteis”, como se precisasse exagerar para exprimir-se, utilizando uma linguagem significante - imagem sonora que, por sua vez, evoca sobre o leitor uma espécie de sedução, de feitiço das palavras. Como diz o poeta de Retrato do artista quando coisa: Escuto o perfume dos rios. Sei que a voz das águas tem sotaque azul. Sei botar cílios nos silêncios. Para encontrar o azul eu uso pássaros. Não desejo cair em sensatez. Não quero a boa razão das coisas. Quero o feitiço das palavras. ( Barros, 1998: 61) É interessante notar que o poeta chega a se desfigurar por entre palavras, como se procurasse incorporá-las através de uma sensibilidade plástica aguçada, para esconder-se no indizível. Há, com isso, uma valorização das coisas mais diminutas através do que é inventado no mundo da escrita: 97 XV ............................ Palavras caídas no espinheiro parecem ser ( para mim é muito importante que algumas palavras saiam tintas de espinheiro). ............................................................................ ( Barros, 1982: 29) Em Manoel de Barros, as coisas mais simples e diminutas constituem elos essenciais à criação da imagem visual que aguça nossa percepção para o lado sonoro das palavras. Assim, quanto mais estranhas as imagens se tornam, mais sensível é a linguagem. É uma poesia dissonante, estranha e íntima ao mesmo tempo: “Teologia do traste” - manuscrito do mesmo nome, contendo 29 páginas, que foi encontrado nas ruínas de um coreto, na cidade de Corumbá, por certo ancião adaptado a pedras. Contou-nos o referido ancião, pessoa saudavelmente insana de poesia, que sobre as ruínas do coreto BROTAVAM ÁRVORES / OBRAVAM POBRES / MORAVAM SAPOS/ TREPAVAM ERVAS/ CANTAVAM PÁSSA ROS. E eis, que, ali, o cansanção que era muito desenvolvido, bem como o amarra-pinto e o guspe-de-taquarizano. ( Barros 1982: 26) Vê-se, no excerto acima, que as coisas desprezadas são objetos de poesia. Também se observa que os despropósitos são muito mais acertados que os cabimentos, pois as contradições se aliviam mais com os absurdos. Manoel de Barros atrapalha as significâncias e salva as palavras da mesmice. Graças à própria mobilidade do signo, o poeta desinventa a linguagem, atinge as camadas sonoras da 98 mesma, encontra “des-sentidos” em um quadro de imagens não lineares que nem de longe se assemelham entre si. V Usado por uma fivela, o homem tinha sido escolhido, desde criança, para ser ninguém e nem nunca. De forma que quando se pensou em fazer alguma coisa por ele, viuse que o caso era irremediável e escuro. Ou uma vespa na espátula. Esse homem pois apreciava as árvores de sons amareLos, - ele se merejava sobre a carne do muros e era ignorante como as águas. Nunca sabia direito qual o período necessário para um sapato ser árvore. Muito menos era capaz de dizer qual a quantidade de chuvas que uma pessoa necessita para que o lodo apareça em suas paredes. De modo que se fechou esse homem: na pedra: como os tra: frase por frase, ferida por ferida, musgo por musgo: moda um rio que secasse: até de nenhuma ave ou peixe. Até de nunca ou durante. E de ninguém anterior. Moda nada. ( Barros, 1982: 19) Em Manoel de Barros, as palavras transfiguram o sentido das coisas: “Nunca sabia direito qual o período necessário para um sapato ser árvore. Muito menos era capaz de dizer qual a quantidade de chuvas que uma pessoa necessita para que o lodo apareça em suas paredes”. O poeta volta-se para imagens incomuns que tomam a expressão de forma estranha e dissonante: “Moda um rio que secasse: até de nenhuma ave ou peixe. Até de nunca ou durante. E de ninguém. E de ninguém anterior. Moda nada”. 99 Das entranhas da linguagem, o poeta revela sua relação com o mundo natural, sugerindo pelo estilo de alinhavo das imagens criadas o fascínio que exerce a invenção da natureza através do mundo da linguagem: “Esse homem que apreciava as árvores de sons amarelos, - ele se merejava sobre a carne dos muros/ e era ignorante como as águas”. Por essa margem da linguagem, as palavras se deslocam, arremessam para lados que não planejavam ir, perturbam, equivocam sentidos que ali estão para desmentir o real, para fazer o que bem desejam: “frase por frase, ferida por ferida, musgo por musgo: moda que um rio que secasse: até de nenhuma ave ou peixe. Até de nunca ou durante.” Em Manoel de Barros, as palavras aceitam todo tipo de distorção, de descomportamento, de inadequação. O poeta experimenta propor, a partir de restos, uma realidade inventada que tira o possível do impossível. Para realizar o contrário, as palavras nas mãos do poeta perdem seus significados, convertem-se em coisas que aderem a sentidos novos, inesperados. Afinal, no reino das palavras, terra do tudo pode: “Esse homem pois que apreciava as árvores de sons amarelos, - ele /se merejava sobre a carne dos muros.” 100 5.1- A natureza da linguagem inútil Ah! / Seremos apenas imagens inúteis deitadas no barro. Cecília Meireles Se verificarmos um pouco mais além a linguagem manoelina, veremos que enquanto nossos poetas urbanos utilizam uma linguagem mais próxima do europeu e do que há de mais estrangeiro em nós, os poetas localistas, por sua vez, desenvolvem, no campo, um tipo de linguagem que retrata não somente a aquarela de nossa fauna, de nossa flora, de nossas aves, de nossas árvores, mas também de nosso falar brasileiro do interior. Apesar de sabermos que o campo já está absorvido por alguns caracteres da cidade, devido aos próprios meios de informação, ainda assim as mudanças são mais lentas. Com isso, o linguajar interiorano acaba por preservar dentro de cada região suas respectivas variantes regionais, os dialetos, de forma mais intensa. A partir do brado do modernismo de 22, algo de essencial ocorre na forma de labutar a poesia brasileira pela pesquisa estética: Mário de Andrade deixa a “ terra da garoa” e percorre a região Norte e Nordeste, à procura de uma linguagem brasileira, catando expressões folclóricas, ditos populares, lendas indígenas -Macunaíma; Oswald de Andrade, no Primeiro caderno de poesia - Pau-brasil, recorre 101 às frases tiradas dos viajantes da época do descobrimento; Manuel Bandeira, entre a dúvida contida da escrita Capibaribe e Capiberibe, faz volteios através de suas memórias que atravessam o Recife; Raul Bopp aventura-se na floresta amazônica à procura de Cobra Norato; Cassiano Ricardo, em seu Martim Cererê, revisa com cuidado a paisagem do livro Vamos caçar papagaios; enquanto Carlos Drummond faz versos à fazenda de sua infância. A leitura desses poetas servirá de grande importância no processo de invenção da palavra em Manoel de Barros, que, no livro Poesias, chega a “campear” um poema a Mário de Andrade: “Ainda não sei como é/ a rua Mário de Andrade;/ mas vou - a campear - / que sou um campeador de ruas/ pequenas... É um fraco que tenho” (Barros,1990:115). O poema campeia pela rua Mário de Andrade, mistura o erudito e o popular, usa e divulga os recursos expressivos do verso livre, através do mapeamento de uma cultura folclórica rica e diversificada, cheia de imagens, sons e cores sugestivas, constituindo um registro valioso de ritmos. E é para desvendar os novos rumos de uma linguagem que, se apodera do inútil como virtude de poesia, Manoel de Barros possui uma preocupação intrínseca aos poetas de sua geração que é o valor merecido à natureza da linguagem. Inserido, apenas historicamente, dentro do contexto de 1945, Manoel de Barros recria uma poesia cujo vocabulário faz a literatura alçar vôos. Ou como diz o autor em seu livro das Ignorãças: “Poesia é voar fora de asa” ( Barros, 1993: 21). À procura de uma sustentação que fundamente a linguagem do “inutensílio” de Manoel de Barros, podemos afirmar que esse poeta faz parte, apenas, cronologicamente, da Geração de 45, que, por sua vez, é marcada pelo retorno das formas fixas do verso. No fundo, esse enquadramento acontece mais pelo momento histórico que propriamente estético, pois Manoel de Barros não se considera dentro dos ideais defendidos pela Geração de 45, no processo de reconstrução do verso: 102 Acho que não pertenço à Geração de 45 senão cronologicamente. Não sofri aquelas reações de retesar os versos frouxos ou indireitar sintaxes tortas. A mim não beliscava voltar ao soneto. Achava e acho ainda que não é hora de construção. Sou mais a palavra arrombada a ponto de escombro. Li em Chestov que a partir de Dostoievsky os escritores começam a lutar por destruir a realidade. Agora a nossa realidade se desmorona. Despencam-se deuses, valores, paredes. Portanto não tenho nada em comum com a Geração de 45. (Barros, 1990: 308) Como realmente há uma disciplina no que se refere à extensão de conquistas advindas à poesia desde a vanguarda modernista de 22, que se legitima no romance regionalista de 1930, mas cuja continuidade se percebe a valer a partir de 1945, quando autores da estirpe de Manoel de Barros, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, enquadram a palavra como motivo e voz de poesia. Sabe-se que, em Manoel de Barros, João Cabral, Clarice Lispector e Guimarães Rosa, a linguagem necessita explicar-se a si mesma, assume a função de metalinguagem. Na arquitetura do verso, João Cabral constrói O engenheiro; Manoel de Barros aproxima sua lente da escrita sertaneja de Guimarães Rosa e desbrava mundos inventados por coisas desprovidas de valor. Manoel de Barros recria, em cada página de seus livros, admiráveis efeitos repletos de surpresa, em Concerto a céu aberto para solo de ave: “ Eu vi um êxtase no cisco” ( Barros,1991:58). Somemse a isto as purezas e brincadeiras no Livro sobre nada: “Aonde eu não estou as palavras me acham” (Barros,1996: 69). No entanto, constitui, para boa parte de seus leitores, um tipo de poeta difícil, incompreensível e visionário. Contudo, não tem importância, pois sua arte não tem “pensa”, não tem habilidade para clareza: “Os loucos me interpretam” (Barros, 1996:85). O que há é uma aposta visceral, “o antesmente verbal a despalavra mesmo” ( Barros,1998:53). Em seus arranjos com as letras, prefere o lado obscuro das palavras: “Não 103 gosto da palavra acostumada”( Barros,1996:71).O estilo manoelino é torto, avesso, conforme diz no Livro sobre nada “Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma” (Barros, 1996: 69). E, para se perceber com outro olhar a poesia de Manoel de Barros, há de se monumentar “as pobres coisas do chão mijadas/ de orvalho” (Barros, 1996:61), faz-se necessário, primeiramente, entrar de cabeça no mundo da imagem , e isso já é uma grande delicadeza pois, para entrar no universo da imagem manoelina. XV. ................ ............................ - É de um ser inseguro a imagem plástica? - Nos resíduos das primeiras falas eu cisco meu verso A partir do inominado e do insignificante é que eu canto O som inaugural é tatibitate e vento Um verso se revela tanto mais concreto quanto seja eu .................................................. ( Barros , 1982:30-31) 104 5.2 - Manoel de Barros e a escrita de João Cabral de Melo Neto Para Afonso Ávila ( 1975: 67), a poesia a partir da escrita de João Cabral começa a repensar a si mesma : A partir da poesia de João Cabral de Melo Neto e dos movimentos de vanguarda surgida à altura do concretismo de 1956, ocorreu na poesia brasileira um espessamento da escrita historicamente proveniente de Mallarmé. O texto começou a falar de si mesmo e não da realidade exterior. A literatura se assumiu como assunto de si mesma, centrandose na escrita como objeto autônomo. Nesse sentido ela não fala do que ocorre lá fora, mas se propõe como um discurso sistêmico. Ora, se a partir de João Cabral de Melo Neto, o texto começa a falar de si mesmo, observa-se que tanto em Manoel de Barros quanto em João Cabral, a preocupação com a linguagem se ratifica. Em verdade, ao vislumbrarmos com cuidado o processo criativo de João Cabral e o processo inventivo de Manoel de Barros vê-se que eles se distanciam em vários pontos. Em primeiro lugar, João Cabral de Melo Neto se detém às pequenas coisas do chão do sertão. O autor de A escola das facas mostra a figura humana desamparada diante de uma natureza hostil, em condições sociais bem adversas, como elemento da palavra 105 poética; enquanto Manoel de Barros, por sua vez, quase exclui o homem e centraliza as coisas da natureza como referência de suas imagens criativas que se orientam para a natureza dos objetos mais diminutos. O que se observa de interessante entre os dois poetas expoentes da geração “pós-guerra” é que, em João Cabral de Melo Neto trabalha seus versos com o rigor “construtivista”, em que se podem observar a labuta com a palavra, ao limar a matéria discursiva, à procura de fornecer ao leitor a sugestão de que o vocábulo possui valor por si mesmo. Nesse sentido, os versos cabralinos assumem o caráter de uma composição. Vê-se que João Cabral constrói seus versos na estrutura da linha do poema, que segundo Antônio Cândido (1994: 10): A tendência, vamos dizer, construtivista do Sr. João Cabral de Melo Neto se mostra na sua incapacidade quase completa de fazer poemas em que não haja um número maior ou menor de imagens materiais. As suas emoções se organizam em torno de objetos precisos que servem como sinais significativos do poema - cada imagem material tendo de fato , em si, um valor que a torna fonte da poesia esqueleto que é do poema. O verso vive exclusivamente dela. Em João Cabral de Melo Neto, os versos são livremente associados dentro de um fio melódico e seqüencial que perfaz a construção de seu poema, cujo acentos, pausas, choques ou uniões inesperadas de um som com outro, constituem a parte concreta e permanente do metro: O Artista Inconfessável Fazer o que seja é inútil. Não fazer nada é inútil. Mas entre fazer e não fazer mais vale o inútil do fazer. Mas não fazer para esquecer que é inútil: nunca o esquecer. 106 Mas fazer o inútil sabendo que ele é inútil, e bem sabendo que é inútil e que seu sentido não será sequer pressentido, fazer: porque ele é mais difícil do que não fazer, e dificilmente se poderá dizer com mais desdém, ou então dizer mais direto ao leitor Ninguém que o feito o foi para ninguém. ( Melo Neto, 1982: 05) Vê-se, no poema cabralino, uma construção geométrica com um rigor que chega a dispor cada palavra, na exata medida do verso. Nota-se, no poema de João Cabal de Melo Neto, uma forma de escrita vicentina, com traço barroco, com a qual se poderia falar de qualquer coisa de forma paradoxal. O poeta expressa poeticamente suas contradições sobre o ofício inconfessável do artista: “Fazer o que seja é inútil. / Não fazer nada é inútil”. A poesia de Manoel de Barros, por sua vez, decompõe até mesmo a matéria inorgânica, buscando não o ser das coisas, mas o ser da linguagem nos versos que reinventa. O autor de Arranjos para assobio constrói o verso na linha do verso e não do poema. Manoel de Barros é o poeta do verso por excelência, tanto que não há uma linha esquemática para os versos nos poemas manoelinos, uma vez que os versos desse autor se apresentam a cada livro de forma cada vez mais fragmentados. Em verdade, não há um seqüenciamento na estrutura do poema de Manoel de Barros, tanto que podemos ler sua poesia de várias formas: de cima para baixo, do meio para o fim, do fim para o meio. Até porque o verso se desliga do poema e ganha independência; como se percebe no poema abaixo, os versos são montados de forma fragmentada, de forma independente: 107 XIII Depende a criatura para ter grandeza de sua infinita [ deserção A gente é cria de frases! Escrever é cheio de casca e de pérola. Ai desde gema sou borra. Alegria é apanhar caracóis nas paredes bichadas! Coisa que não faz nome para explicar Como a luz que vegeta na roupa do pássaro. ( Barros, 1982:27) Em entrevista concedida, em 08 de set. 1993, ao jornal O Estado de São Paulo, Manoel de Barros assume sua poesia de versos independentes: Meus versos são independentes um dos outros e podem ser montados no poema de diversas maneiras - é assim que eu crio deslocando as frases no papel (...). Cada poema meu é uma colagem, uma reunião de fragmentos( ...). Sou um poeta da visão, me impus um desafio - uma paisagem pobre. O que se observa desses versos independentes de Manoel de Barros é que não há um seqüenciamento no que se refere à ligação discursiva dos versos entre si. O que há mesmo é uma preocupação com a linguagem, e com a forma que a palavra está expressa ali. Manoel de Barros pesca suas imagens, que se estruturam como se estivessem desligadas entre si no arcabouço do poema. XV Natureza é fonte primordial? - Três coisas importantes eu conheço: lugar apropriado para um homem ser folha; pássaro que se encontra em situação de água; e lagarto verde que canta de noite na árvore vermelha. Natureza é uma força que inunda como os desertos. Que me enche de flores, calores, insetos, e 108 me entorpece até a paradeza total dos reatores Então eu apodreço para a poesia Em meu lavor se inclui o Paracleto. ( Barros, 1982: 30) O que se observa, nesse poema manoelino, é que, em seu novo ângulo de visão, as imagens se fragmentaram mais ainda, pondo em pauta a percepção de um mundo, também fragmentado. Agora, o veículo expressivo é cheio de cortes e fragmentos que, por sua vez, são precedidos pelas imagens, acentos e pausas, pelo refluxo rítmico de palavras. Por esse viés, o núcleo do verso não obedece à regularidade silábica, mas à pancada dos acentos e à combinação destes com sílabas fortes e fracas. Em Manoel de Barros, a poesia assume a configuração propriamente estética, a palavra se despede, pelo menos por enquanto, da musicalidade excessiva, e se propõe a um tipo de musicalidade cheia de cortes, de pausas; uma musicalidade mais rítmica que, conforme diz Manoel de Barros ( 1998:53). em Retrato do artista quando coisa: “A palavra sem pronúncia, ágrafa/ Quero o som que não deu liga”. Ou seja, uma poesia que nos apresenta a sua própria música: a palavra. O que se nota, realmente, na poesia manoelina, é que há uma musicalidade intrínseca em cada verso, uma musicalidade em que a pausa comanda o ritmo e interliga os versos entre si. Vale observar que o deseqüenciamento das imagens na poesia manoelina contribuiu e muito para a quebra do ritmo, bem como para a vadiagem das palavras no verso, que: “Não carecem de conjunções nem de abotoaduras/ se comunica por encantamento” (Barros, 1998:67). Em Manoel de Barros, nada exceto ela a imagem, pode dizer o que quer dizer. Por essa perspectiva, sentido e imagem acabam se confundindo, acabam sendo a mesma coisa. No meio desse processo, o sentido do poema é o próprio verso, realidade se confunde com ilusão; as imagens, de forma 109 alquímica, aglomeram-se, tomam forma. O poeta é daquela espécie rara de profeta, que descerra a linguagem com suas leis específicas e convida-nos a superar o estado de inércia que há dentro de nós. E Manoel de Barros nos induz, principalmente, a reconhecer, nas diferentes formas de uso da linguagem, que a natureza, com sua geografia, rasteja na terra, partilha das águas, imprime suas cores, revela seus arco-íris, conclui amanheceres. “Linha Avelã” A linha avelã de um pêssego E o lado núbil de um canto São com a aurora gotejante de uma semente líquida ( Barros, 1982: 54) 110 5.3 - Manoel de Barros e Guimarães Rosa A capacidade de harmonia com os elementos da natureza, a riqueza do texto poético, o hábito de inventar palavras, a linguagem beirando no popular, sem desdizer erudição, leva-nos a acreditar que se a escrita de Manoel de Barros se diferencia da poesia de João Cabral de Melo Neto, por outro lado, dialoga e muito com a linguagem - prosa de Guimarães Rosa. Em entrevista à Roberta Jansen, ao Jornal do Brasil, em 15 maio 1995, Manoel de Barros, sem forjar, descreve e mede : Se me comparam ao Rosa, será por que elegemos dobrar a linguagem ao nosso jeito? Rosa fez isso. É um mágico. Usou as virtualidades todas do nosso idioma. Não respeitou porteiras. Inventou por cima. Renovou tudo. Virou e destripou as palavras. Remexeu, desvendou mil caminhos para dizer. Enriqueceu a língua portuguesa. Tirou-a de sua paradeza. Pintou e bordou. Mas eu não tenho proporções para Rosa. Acho que persigo as mesmas coisas, só que despreparado. Ele estudou quase vinte idiomas do mundo. Eu só sei as ciências que analfabetam. E tenho um gosto doentio de molecar as sintaxes. Acho também que temos em comum com a infância vivida em vagos sertões sem tamanho. Essa infância deixou no homem um sentimento de ilha lingüística. Um abandono que protege e enriquece a imaginação. 111 A linguagem do autor de Sagarana talvez seja com que Manoel de Barros mais dialoga, seja pela invenção de coisas amanhecidas de abandono, seja pela possibilidade de expandir-se no jogo curioso da palavras, nas mais estranhas formas de sons, no apreço pelo banal e pelo ordinário que afrontam a descoberta da coisas vestidas por um colorido orvalhado de simplicidade e, principalmente, pela importância que cabe à palavra, quando atravessa a paisagem física e atinge a poesia que se abre, quando se lê em Retrato do artista quando coisa : 8 Levei Rosa na beira dos pássaros que fica no Meio da Ilha Lingüística. Rosa gostava muito de frases em que entrassem Pássaros. E fez uma na hora: A tarde está verde no olho das garças. E completou com Job: Sabedoria se tira das coisas que não existem. A tarde verde no olho das garças não existia mas era fonte de ser. Era poesia. Era o néctar do ser. Rosa gostava muito do corpo fônico das palavras. Veja a palavra bunda, Manoel Ela tem um bonito corpo fônico além do propriamente. Apresentei-lhe a palavra gravanha. Por instinto lingüístico achou que gravanha seria um lugar entrançado de espinhos e bem emprenhado de filhotes de gravatá por baixo. E era. ( Barros, 1998:33) 112 Para que se tenha uma melhor compreensão da linguagem do “inutensílio” utilizada pelo poeta do Pantanal, bem como o que se delimita, ao eleger as pobres coisas do chão como reveladoras, não do que é vulgar, mas do que oblitera o sentido vulgar e apresenta-se como sublime, que se observa certa confluência entre a poesia de Manoel de Barros e a prosa de Guimarães Rosa. Em entrevista concedida à revista Bravo, em 1998, o poeta da ordinariedade diz escutar “a cor dos passarinhos” e desenhar o “cheiro das árvores”, dilui em sua postura de inventor, uma “parecença” com o escritor Guimarães Rosa: Tenho muita parecença com o Rosa. Nós temos uma relação saudável com a linguagem erudita. Porém, ele mostra mais o caipirismo, e eu mostro mais o meu lado de leitor. Mas ele era muito mais culto do que eu. Tive uma convivência pequena com ele. Ele também tinha um caderninho onde anotava as coisas mais banais que via, era muito descritivo. Em Tradição e talento individual, T.S. Eliot afirma que uma obra é tanto mais original, quanto mais encontramos, nessa, as influências de outros autores no texto: As passagens mais individuais de sua obra podem ser aquelas em que os poetas mortos revelam mais vigorosamente sua imortalidade. ( 1989:38) Diante mão, afirmamos que Guimarães Rosa não exerceu influência inicial sobre Manoel de Barros, até porque o primeiro livro de Manoel de Barros, Poemas concebidos sem pecados, foi escrito em 1937, como esboço da linguagem enviesada do poeta. Enquanto Guimarães Rosa irá publicar seu primeiro exemplar de Sagarana, em 1946, demarcando seu projeto estético de recriar palavras, bem como seu exercício de costurá-las pela “desintegração da sintaxe tradicional”, conforme assinala Antônio Cândido: À recriação do vocabulário, a esse rejuvenescimento 113 das expressões correntes, cabe acrescentar a desintegração da sintaxe tradicional (inversões ousadas, pontuações que rompem a estrutura da frase, tornando o sentido da frase inequívoco. ( um exemplo: é preciso de Deus existir a gente, mais). Só então se terá idéia da subversão radical operada na linguagem pelo Sr. Guimarães Rosa. (1994:105) Encontramos em o livro Memória da arte em Mato Grosso do Sul, de Maria da Glória Sá-Rosa (1992:59-60), um relato do poeta da natureza sobre um possível encontro, um episódio inédito, com o autor de Tutaméia: Sempre tive vontade de conhecer pessoalmente Guimarães Rosa. Mas ficava acovardado. Quando soube que ele tinha uma viagem marcada para o Pantanal, tomei o navio de Fernandes Vieira, em que ele havia embarcado, rumo a Corumbá. Isso aconteceu em 1953. Quando li Sagarana, fiquei nocaute. Sua linguagem me humilha. Rosa faz tudo com a palavra, enlouquece nosso verbo, adoece-o de nós, a ponto de que esse verbo possa transfigurar a natureza. Pois tomei Fernandes Vieira só para vê-lo. Mas não tive coragem de me aproximar. Era aquele respeito, aquele suor, aquelas mãos frias. De repente, eu disse qualquer coisa de literatura que tinha lido. Ele se virou para mim: - Venha cá rapaz, vamos conversar. Não falei dos livros dele, não toquei em assunto de literatura. Só de vez em quando uma piadinha, para descobrir as intenções dele a respeito da literatura. Numa hora, ele me puxou pelo braço e me tornou seu guia pantaneiro. Ele queria saber de tudo, a letra do canto do tordo, o folclore, nome de árvore, passarinho. Queria saber guarani, aplicando nas palavras com o fundo indagar. Esse diálogo, entre os dois autores, estender-se-á da realidade para a fantasia, do papel de ofício sertanejo à arte erguida entre a face do mundo do pântano, pela desautomatização da palavra que se estende por trás do signo. O estilo de Guimarães Rosa muito comunga com a escrita alinhavo de Manoel de Barros. Tanto no 114 autor de Arranjos para assobio quanto no autor de Conversa de boi , a linguagem ainda que erudita quer chegar à ignorância, quer desaprender. O que se observa também é que na medida em que esses escritores modificam as palavras do contexto usual, ajudam a modificar as idéias preconcebidas, ao atuar sobre os leitores, levando à reflexão da realidade que o circunda. Afinal, do que serviria essa busca de restauração da palavra, senão para valorizar o que se tem de mais importante na história de um povo: a linguagem. Aqui vem a propósito uma observação de Michel Foucault ( 1987: 103) : O que nos deixam as civilizações e os povos como monumentos de seus pensamentos não são tanto os textos, mas sim os vocabulários e as sintaxes, os sons que pronunciaram seus discursos menos que o que os tornam possíveis: a discursividade de sua linguagem. Explorar a originalidade da linguagem é renovar o poder que essa tem na vida das pessoas. Em verdade, o poeta subverte a linguagem para modificar a realidade da palavra, sugerindo, assim, em cada leitor, a possibilidade de esse reencontrar, em cada imagem, uma variação de sentido. No Livro das Ignorãças, o poeta fala de sua decomposição lírica: SEGUNDO DIA Não oblitero mosca com palavras. Uma espécie de canto me ocasiona. Respeito as oralidades. Eu escrevo o rumor das palavras. Não sou sandeu de gramáticas. Só sei o nada aumentado. Eu sou culpado de mim. 115 Vou nunca mais ter nascido em agosto. No chão de minha voz tem um outono. Sobre meu rosto vem dormir a noite. ( Barros, 1993: 47) A linguagem de Manoel de Barros toma corpo, torna-se autônoma de significação, com um valor diferenciado. É uma linguagem que encerra em si palavras e expressões para subsidiar reflexões de um mundo inventado. O poeta nada deixa sem sinais, sem marcas especiais, a fim de que se possa reencontrá-lo. Os fragmentos manoelinos se emendam, se atraem, aumenta o mundo com suas metáforas. “Dava sempre a impressão que estivesse saindo de um bueiro cheio de estátuas. - conforme o viver de um homem, seu ermo cede, - ensinava.”(Barros,1985:51) . Em Manoel de Barros, os fragmentos são meras colagens, montagens que se emendam à artesania de seu trabalho poético que, por sua vez, se detém às cascas da inutilidade, para reconhecer uma outra forma de encarar as utilidade das coisas do mundo: “Diz-se também de quando um homem caminha para nada” (Barros,1982: 39). A desarticulação da linguagem manoelina deforma o conceito que temos sobre a utilidade das coisas que não servem para nada. Quando o poeta retira a palavra do seu sentido habitual, inevitavelmente, modifica nossa visão das cores, dos valores, através da aventura de substantivos adjetivados, advérbios substantivados, de verbos derivados de substantivos, em um jogo lingüístico, bizarro, absurdo; que, por sua vez, leva os objetos, as coisas da natureza, a assumir outros contornos pela inversão da ordem tradicional do sintagma no universo do texto poético. Ao se aventurar em uma nova maneira de labutar a linguagem, o poeta acaba por criar uma nova concepção representativa da palavra no verso. Eis o porquê de a face do mundo manoelino ser coberta de palavras obscuras, de figuras estranhas que se entrecruzam e, por vezes, até remetem a imagens sugestivas: 116 IV ( A um Pierrô de Picasso) Pierrô é desfigura errante, andarejo de arrebol. Vivendo do que desiste, Se expressa melhor em inseto. Pierrô tem um rosto de água que se aclara com a máscara. Sua descor aparece Como um rosto de vidro na água. Pierrô tem sua vareja íntima: é viciado em raiz de parede. Sua postura tem anos de amorfo e deserto. Pierrô tem o seu lado esquerdo atrelado aos escombros. E o outro lado aos escombros. ............................................... Solidão tem um rosto de antro. ( Barros, 1982: 18) A inversão da ordem tradicional do sintagma, no contexto oracional, é um dos traços que marca a linguagem de Manoel de Barros; constitui ferramenta essencial, para dar sentido à arte das coisas sem valor, das coisas atreladas aos escombros. No prefácio do livro Arranjos para assobio, Antônio Houaiss ( 1982: 11) descreve: O concreto se exprime pelo traste ou vermes ou coisinhas impoéticas; em que o traste ( e afins) é realmente nossocoisinha à-toa de infância à-toa de brasil à-toa de lugar à-toa 117 de homem à-toa de rã à-toa de sapo à-toa de parede à-toa ou de raiz à-toa ou de raiz de parede à- toa, à-toa. De envolta, o que é que aí freme e é, sem pieguice, só pungência e piedade? Só compaixão e perdão e resignação? Só iluminação de nossa pequena grandeza interior inútil entretanto tão salvadora dessa própria esperança pequenez. Ao valorizar a grandeza das coisas ordinárias, Manoel de Barros se embrenha à procura de outras margens para a linguagem. E se pensarmos Guimarães Rosa no conto “A terceira margem do rio” ( V. Anexos), vê-se que lá “também está o criador sem fronteiras, a expressão ímpar para a percepção aguda da tragédia humana. A crispação do gesto crítico, o inconformismo com a mesmice repetitiva.” Relembrando, aqui, as palavras do crítico Fábio Lucas, em seu ensaio O inumerável coração das margens, em 14 de fevereiro. 1999, ao caderno mais da Folha de S. Paulo. Como se observa, em “A terceira margem do rio”, Guimarães Rosa (1994: 409) conta a história de um pai que, de “caso pensado”, se instala num barco no meio de um rio e passa a vagar sem rumo, cumprindo apenas o destino à margem da vida, ligado apenas à singela dedicação humana do filho. Condição essa que, segundo Fábio Lucas, “tem “margem, mas a terceira; e tem história transubstantivada em estória, substantivo comum”. Assim, ao retirar o personagem do lugar comum, Guimarães Rosa cria, para esse, um novo habitat à margem do rio; dá ao mesmo o poder de ficar à margem da história, o poder de optar pelo que não faz sentido, de não servir para nada; apenas uma margem a mais para o rio, apenas um bicho silencioso no meio do rio, dentro da vida. Capaz de modificar a ordem, a lógica, a razão, as coisas, em “A terceira margem do rio”, o autor quebra a dicotomia cartesiana, ao criar um modo estranho de se viver dentro de uma canoa , que, por sua vez, acaba também por acarretar uma mudança no estilo de vida dos que estão fora dela. Com isso, o personagem que passa a viver dentro da canoa cria uma terceira margem do rio para 118 si e, conseqüentemente, para o mundo em volta . O que faz o autor ao criar “A terceira margem do rio” é posicionar-se a favor de uma pluralidade de discurso, pois retira o homem da condição de normalidade, para o exercício de inutilidade, de silêncio dentro do rio. Homem e rio são um só. E o que não serve mais para a vida, serve como elo principal às construções das histórias de Guimarães Rosa. Ao realizar a desorganização do discurso, o autor de Tutaméia penetra em novas possibilidades que não cedem lugar às certezas. Em verdade, Guimarães Rosa desenvolve, em seus textos, uma qualidade das mais caras: o poder de visualizar as coisas menores. O autor valoriza as pequenas coisas, que acabam sendo as maiores, sendo as mais importantes. Se verificarmos com cuidado, veremos que são as pequenas coisas que nos escapam e que acabam por se perderem meio a nossa visão pragmática, despoetizada para o olhar. Assim como o autor de Grande sertão veredas, Manoel de Barros utiliza-se das pequenas coisas, dos pequenos acontecimentos, para trabalhar sua linguagem inventada, que se volta para o desprendimento das coisas, ao configurar num vocabulário inumerável marcas coruscante de um estilo enviesado. Em verdade, o poeta se volta para as pequenas coisas e para a rejeição do discurso organizado. Tal como o escritor Guimarães Rosa, o poeta Manoel de Barros ( 1982: 15). em seu livro das Ignorãças assinala nova margem para a escrita: “O homem estava parado mil anos nesse lugar sem orelha”. Fábio Lucas em seu Inumerável coração das margens destacanos o parentesco verbal entre os dois autores: Escrever no estilo Guimarães Rosa tornou-se tarefa apetecível. Dois dos melhores escritores da comunidade dos países de língua portuguesa, um, o poeta brasileiro Manoel de Barros o outro , prosador moçambicano, Mia Couto, deixam à mostra o parentesco verbal. 119 Por esses laços de parentesco verbal, Manoel de Barros sofre dessa consciência que contagia inúmeros autores: de que são os injustiçados, os inúteis, os verdadeiros merecedores de reconhecimento universal. Andar à toa é coisa de ave. Meu avô andava à toa. Não prestava pra quase nunca. Mas sabia o nome dos ventos E todos os assobios para chamar passarinhos. ( Barros, 2000: 51) Como se vê, a ruptura dos modelos, para lá de estabelecidos, tão percebida na obra de Manoel de Barros, longe de constituir uma mera preocupação formal, expressa também uma forma de trazer a poesia originária , que se desloca em um princípio de signo, aos olhos do leitor. Desse modo, por não se submeter a nenhuma ordem estabelecida pelo verbo, o poeta, em desacordo com a linguagem prática, elege sua atenção, na fala de coisas simples, aos “inutensílios”: IX O poema é antes de tudo um inutensílio. Hora de iniciar algum convém se vestir roupa de trapo. Há quem se jogue debaixo de carro nos primeiros instantes. Faz bem uma janela aberta Uma veia aberta. Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema 120 Enquanto vida houver Ninguém é pai de um poema sem morrer. ( Barros 1982:23) Vê-se, aí, a construção fragmentada do verso pela frase síntese que se revela, por meio das incidências de cortes e por meio de rimas sonoras, em: “trapo” x “carro”, “aberta” x “aberta”, “houver” x “morrer”. O poema, mesmo sendo lido em ritmo quebrado, ou fragmentado, sugere uma musicalidade que está incutida na sonora melodia das palavras: “Hora de iniciar algum/ convém vestir roupa de trapo”. Observa-se também que a maneira de sugerir a realidade da linguagem é outra. “Ninguém é pai de um poema sem morrer.” Ocorre, na escrita manoelina, uma estranheza de sentido que não cabe aqui interpretar, pois “há certas frases que se iluminam pelo opaco “ ( Barros, 1993: 23). O poeta, em seus arranjos verbais, sintetiza a palavra poética como instrumento que exalta os objetos desúteis a um plano de igualdade. Seu desprendimento sensível chega a despojar-se até mesmo do valor que as palavras poéticas possam conter: “Pra mim é uma coisa que serve de nada, o poema enquanto vida houver”. Vê-se que a poesia de Manoel de Barros nasce das torpezas do idioma, das incertezas das palavras e da intensidade das coisas mais banais para a realidade. O que se observa, de ontem para hoje, em Manoel de Barros, é um caminho cada vez mais assíduo para o uso de imagens fragmentadas. No bojo de uma percepção fragmentada da realidade, o autor de Retrato do artista quando coisa constrói sua poética da pauperez. “E me ensinou mais: que as cigarras do exílio são os únicos seres que sabem de cor quando a noite está coberta de abandono” (Barros,1998:63). O autor busca atingir uma leitura de mundo que não seja a única que aí está, por sua vez, privilegiando a cada dia os mais fortes. O repensar a linguagem é importante contra essa visão 121 unilateral que favorece em ordem crescente os privilegiados. Em Retrato do artista quando coisa , Manoel de Barros assume seus propósitos poéticos: “Preciso de atingir a escuridão com clareza./ Tenho de laspear verbo por verbo até alcançar/ o meu aspro./ Palavras têm de adoecer de mim para que se/ tornem mais saudáveis” ( Barros, 1998:21). E o mínimo que faz o poeta, com receio da normalidade das palavras, é dar voz e vez aos marginalizados pelas mesmas. Entre um objeto pequeno, visto de perto, e um objeto grande, visto de longe, o poeta transporta para o papel qualquer traste, arrancado da sarjeta. GLOSSÁRIO DE TRANSNOMINAÇÕES EM QUE NÃO EXPLICAM ALGUMAS DELAS NENHUMA OU MENOS Cisco, s.m. Pessoa esbarrada em raiz de parede Qualquer indivíduo adequado a lata Quem ouve zoadas de brenha. Chamou-se de O CISCO DE DEUS a São Francisco de Assis Diz-se também de homem numa sarjeta ( Barros, 1982: 35) As palavras, à procura de sacudir o aparelho da linguagem para arrancar-lhe um som novo, tateiam em torno de uma intenção de significar que não se guia por um texto, caminham intransigentes, recebem particularidades, burilam novidades no espaço que é criado para elas: - Quem é sua poesia?! - Os nervos do entulho, como disse o poeta português José Gomes Ferreira Um menino que obrava atrás de Cuiabá também Mel de ostras 122 Palavras caídas no espinheiro parecem ser ( para mim é muito importante que algumas palavras saiam tintas de espinheiro). ( Barros, 1982:29) Se “escrever é “os nervos do entulho”, como disse o poeta Gomes Ferreira; inventar é uma mistura confusa de seres ao acaso que nada parecem ter de aproximados, entre si, nem mesmo com “Mel de ostras”. Porque, a poesia de Manoel de Barros é uma “coisa que não faz nome para explicar”, há similitudes obscuras até com “o menino que obrava atrás de Cuiabá também”. Em uma tarefa lídima de trabalhar com os “entulhos”, as palavras inventadas por Manoel de Barros ganham descomportamentos, adquirem desvios semânticos. Os desvios manoelinos sugerem novos sentidos às coisas, envesgam a língua ao ponto de enxergar no entulho um valioso tesouro: “A limpeza de um verso pode estar ligada a um termo sujo” ( Barros,1998:81). 123 5.4 - Os deslimites das palavras Só as palavras não foram castigadas com a ordem natural das coisas As palavras continuam com os seus deslimites. Manoel de Barros Como vimos anteriormente, palavras são coisas, são inutilidades, são objetos concretos, propondo novas significações. “Mas isso é apenas um descomportamento lingüístico que não ofende a natureza dos pássaros, nem das grotas/ Mudo apenas os verbos e às vezes nem mudo/ Mudo os substantivos e às vezes nem mudo” ( Barros, 2000: 66). Aos olhos da norma gramatical, as palavras manoelinas estão fora do lugar, saem da sarjeta, das ruínas, em frases soltas, sem conectivo algum, sem ligação lógica. No entanto, quando se misturam entre si, a fórmula manoelina aparece como um acontecimento significativo. Conforme diz o poeta no Glossário de Transnominações em que não se explicam algumas delas ( nenhumas) ou menos: Pedra, f. s. Pequeno sítio árido em que o lagarto de pernas areientas 124 Medra ( como à beira de um livro) Indivíduo que tem nas ruínas prosperantes de sua boca Avidez de raiz Designa o fim das águas e o restolho a que o homem tende Lugar de uma pessoa haver musgo Palavra que certos poetas emprestam para dar concretude à solidão ( Barros, 1982: 39) Através de um estilo alinhavado no papel, um subtexto se aloja e, instala-se uma “agramaticalidade” quase insana que “empoema” o sentido das palavras. Aflora, então, uma linguagem inaugural, de defloramento: “Lugar de uma pessoa haver musgo”. O poeta vai sendo levado pelas ruínas do mundo, como um “Indivíduo que tem nas ruínas prosperantes de sua boca/ Avidez de raiz”. A palavra, quando chega ao verso, já é outra coisa do que era. Com isso, o mundo e suas metamorfoses também parecem outro, até mesmo porque mudou a imagem do mundo e a idéia que o homem fazia de si mesmo. Ou como diz Octávio Paz (1990:101), “Agora, o espaço se desagrega e se expande, o tempo se torna descontínuo, e o mundo, o todo, se desfaz em pedaços”. Não obstante essa visão do escritor mexicano, Manoel de Barros (1998:79) inova: “Eu penso renovar o homem usando borboletas”. O olhar do poeta pantaneiro, perante o mundo, privilegia o ser menor: 6 Aprendo com abelhas do que com aeroplanos. É um olhar para baixo que eu nasci tendo. É um olhar para o ser menor, para o insignificante que eu me criei tendo. 125 O ser que na sociedade é chutado como uma barata - cresce de importância para o meu olho. Ainda não entendi por que herdei esse olhar para baixo. Sempre imagino que venha de ancestralidades machucadas. Fui criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão Antes que das coisas celestiais. Pessoas pertencidas de abandono me comovem; tanto quanto as soberbas coisas ínfimas. ( Barros, 1998: 27) O poeta perfaz uma poética que movimenta a matéria do mundo natural ainda em estado bruto. Muitas vezes, chega às iluminuras a partir de: “ um olhar para baixo”, um olhar para as coisas menores do mundo. Pois como diz o poeta: “É um olhar para ser menor, para o insignificante”. A linguagem de Manoel de Barros valoriza: “O ser que na sociedade é chutado como uma barata”. As marcas verbais invertem os valores e tomam as coisas em seu estado bruto. Sobre o estado bruto do material poético, Maria Luíza Ramos (1974: 73) assinala: Para o poeta, as palavras permanecem em estado bruto selvagem. Daí a eleição de palavras que mais exprimam de perto determinado significado. Daí as palavras serem antes de tudo objetos que constituem por si matéria imprescindível do poema. Em Arranjos para assobio, o poeta impõe desregramentos, para jogar com as palavras, dessacraliza as convenções de significação, muda as regras do jogo lingüistico, subverte o dicionário, rompe com o código, cria novos laços significados, e revela pelo signo o 126 que, muitas vezes, se mascara : o apreço pelo traste. Manoel de Barros faz as palavras caminharem sem elo de interpretação perante o código lingüístico, contudo quanto mais se penetra na tessitura do signo, mais se observa a deformação da realidade inventada: “Bom é corromper o silêncio das palavras” ( Barros, 1998:13). A textura que produz o material poético leva ao desconhecido, à incoerência, ao absurdo. O complexo de imagens nasce da mistura de coisas inconciliáveis entre si, que por sua vez confere ao leitor o efeito de estranhamento. 127 5.5 - A Dificuldade da poética manoelina Sujeito Usava um Dicionário do Ordinário com 11 palavras de joelhos inclusive bestego. Posava de esterco para 13 adjetivos familiares, inclusive bêbado. Ia entre azul e sarjetas. Tinha a voz de chão podre. Tocava a fome a 12 bocas. E achava mais importante fundar um verso Do que uma Usina Atômica! Era um sujeito ordinário. ( Barros, 1982:57) Para melhor observar a linguagem em Arranjo para assobio, é preciso notar que sua aparente simplicidade é um modo de proceder que engana, afinal, quem já ouviu falar nessa palavra inventada: “bestego”? A palavra não tem sinônimo, mas tem uma função sonora imprescindível para esse poema meio “sem pé nem cabeça”. 128 De longe, parece ingênuo acreditar que a loucura das palavras no poema soa de forma simples. Há muitos que dizem ser fácil fazer um negócio desses: “inclusive bêbado / Ia entre azul e sarjeta”. Mas não nos enganemos, esse estilo alinhavo de Manoel de Barros, exposto pelo estranhamento das coisas organizadas de forma caótica, não é tão simples quanto parece, pois não é de fácil acesso soar de maneira obscura e, ao mesmo, enigmática. Podemos afirmar que o poema manoelino é complexo mesmo, complicado, para se compreender. Por isso que, para incorporá-lo, é melhor entrever as dilacerações e divagações contida nas entrelinhas, que resumem, entre experimentos, as estratégias e procedimentos estilísticos de uma sintaxe desmembrada. Hugo Friedrich (1978:18), sobre o processo inventivo da linguagem poética, destaca: A língua poética adquire o caráter de um experimento, do que emergem combinações não pretendidas pelo significado, ou melhor, só então criam o significado. O vocabulário útil aparece com significações insólitas; palavras provenientes da linguagem técnica mais remota vem eletrizadas liricamente. A sintaxe desmembra-se. Entre o experimento e o inconciliável no poema, paira no leitor uma impressão de que ler Manoel de Barros é complexo; é difícil mesmo, não é de muito fácil acesso. Concordamos. Até por que essa dificuldade de leitura é uma forma de proporcionar ao leitor um tipo de leitura que não traz a vantagem da informação prática. E é justamente essa falta de compensação de compreensão do texto poético que cria resistência nos leitores de entender a obra poética de Manoel de Barros. Vivemos em uma sociedade acostumada a observar o fácil de perto, a fugir do pensar e do que possa ser visto e questionado com mais profundidade. Daí a excentricidade da escrita manoelina não ser muito tolerada. Ouvimos quase diariamente aquela velha ladainha renitente 129 de que “poesia é difícil, para se entender”. Mas será mesmo tão difícil? Em verdade, nem pensamos direito sobre as coisas que estão ao nosso redor, há sempre o outro que fala por nós, que nos representa. Com isso, não opinamos, somos condicionados a ser pensados. Pensar dá trabalho, ler um texto que não nos informa nada de útil, então? “É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez” (Barros 1996:67). Vem a propósito a observação de Roland Barthes de que, para o escritor, o texto afirma pela inutilidade sua real significância: O texto é sempre algo que procura esquivar-se às redes da economia de troca, afirmando-se pela sua inutilidade, pela sua significância irredutível e qualquer mítica criadora, mesmo que o texto saiba que a sua inutilidade acaba sempre por ser recuperada. (1973: 21) Nesse sentido, segundo Roland Barthes, o texto, pela sua própria significância, se esquiva às leis do mercado, opõe-se ao mercado das coisas utilitárias, por isso seu aspecto de inutilidade, pois “escrever estremece o sentido do mundo” . Assim, o que é inútil para a sociedade acaba sendo lampejos poéticos para Manoel de Barros: Leyla Perrone-Moisés observa: Usando as palavras com outros fins que não os práticos, sendo um “inutensílio”( Paulo Leminski), o poema põe em questão a utilidade dos outros textos e da própria linguagem. Afirmando coisas inverificáveis, irredutíveis a um referente, o poema questiona a verificabilidade e a referencialidade das mensagens que nos chegam cotidianamente. O poema vem lembrar, imperiosamente, que tudo é linguagem, e que esta engana. Que a linguagem está o tempo todo fingindose de transparente, de prática e de unívoca, e nos enreda num comércio que nada tem de essencialmente verdadeiro e necessário. ( 2000: 32) 130 As palavras, em Manoel de Barros, afirmam coisas inverificáveis, fingem o tempo todo, nada têm essencialmente de verdadeiro e necessário. “Tudo que não invento é falso” ( Barros, 1996:67). O poeta da “ordinariedade” usa uma linguagem que desconstrói o real, experimenta o exercício de uma nova linguagem poética pelo lado avesso do signo: “Meu avesso é mais visível do que um poste “ ( Barros, 1996:68). E se lhe acontece significar diretamente um pensamento ou uma coisa, trata-se apenas de um poder secundário, derivado de sua percepção desconexa. Portanto, como criador de verso, o poeta é um erro da natureza e Manoel de Barros é um erro perfeito, porque até mesmo o que não sabe fazer, desmancha em verso. “serviço: catar um por um os espinhos da água restaurar nos homens uma telha de menos respeitar e amar o puro traste em flor ( Barros,1982: 61) Regido pela “desrazão” das palavras, o delírio em Manoel de Barros se revela diante da dimensão do mundo que expressa. O poeta revela coisas que, para melhor perceber, exigem uma aprendizagem de desaprender: “Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria” (Barros,1996: 71). Sobre o modo como não vemos as coisas, Leyla PerroneMoisés observa ainda: O modo como não vemos as coisas habitualmente decorre do modo como entramos em contato com elas, e de um modo de ouvir falar delas. Um modo de entrar em contato: o utilitarismo. Usamos as coisas e, encarando-as como utilidade, não a vemos. Um modo de ouvir falar delas: muito se tem dito sobre as coisas, ou melhor , usando as coisas como pretexto. (2000: 76) 131 Vítima de uma linguagem obscura, Manoel de Barros quer descrever as coisas sob o ponto de vista das mesmas, para isso, procura encontrar uma linguagem que possibilite valorizar as coisas que normalmente não têm valor. O poeta quer sugerir as coisas fora de seu valor habitual de significação, quer sugerir também, através da linguagem, que as coisas, em contato com o mundo movido pela cultura econômica, corromperam-se, desgastaram-se. Para termos uma idéia do que acontece com os versos em Arranjos para assobio, é necessário observarmos que algumas palavras atravessam o texto completamente obscuras, pois como diz: “Prefiro as palavras obscuras que moram no fundo de uma cozinha - tipo borra, lata, cisco “ (Barros, 2000: 61). Sobre os desvios manifestados pela linguagem literária, Jean Maurice Lefebve ( 1975: 27) destaca: Os desvios manifestados pela linguagem literária podem ser de dois gêneros. Ou se trata de desestruturação, quando certas regras do código são violadas: como a inversão em casos onde não é ordinariamente admitida. Ou de estruturação, quando novas estruturas que não contradizem as regras usuais vêm acrescentar-se no discurso. O que Manoel de Barros faz é encontrar novos arranjos à linguagem da poesia contemporânea; é desestruturar a organização do discurso poético, violar as regras de forma diferenciada, alimentando-se, por sua vez, de uma deformação do real cuja mostra da realidade inventada soa de forma diferente, uma vez que exprime, de maneira dissonante, o que não tem significado preciso. Rolinhas casimiras Rolas pisam a manhã 132 Lagartixas pastam o sobrado Um leque de peixe abana o rio Meninos atrás de gralhas contraem piolhos de cerrado Um lagarto de pernas areientas Medra na beira de um livro Adeus rolinhas casimiras ! O poeta descerra um cardume de nuvens A estrada se abre como um pertence (Barros, 1992: 50) Ora, enquanto a nossa humanidade técnica une os espaços e materiais entre si, o poeta, de modo singular, dilacera os espaços e, o que é materialmente impossível relacionar é organizado, no poema, sem a ajuda de conectores preposicionais. O que se vê com isso é que Manoel de Barros opta pela desestruturação da linguagem na medida em que afasta a palavra do sentido que lhe é próprio. Reenvia-nos um significante cujo significado fecunda uma linguagem diferente, onde o signo eqüivale por si. Como vimos em Roman Jakobson( 1980:33), citando Peirce : “Todo signo acaba sendo mesmo traduzido em outro signo mais explícito”. Segundo Roman Jakobson ( op. cit. 39), a linguagem poética se articula pela combinação e seleção. Todo signo lingüístico implica dois modos de arranjo. A) combinação. Todo signo é composto de signos constituintes e/ ou aparece em combinação com outros signos. Isso significa que qualquer unidade lingüística serve, ao mesmo tempo, de contexto para unidades mais simples e, ou, encontra seu 133 próprio contexto em uma unidade lingüística mais complexa. Segue-se daí que todo agrupamento efetivo de unidades lingüísticas liga-as numa unidade superior: combinação e contextura são as duas faces de uma mesma operação. B) Seleção. Uma seleção entre termos alternativos implica a possibilidade de substituir um pelo outro, eqüivalente ao primeiro num aspecto e diferente em outro. De fato, seleção e substituição são as duas faces de uma mesma operação. Mas o que constitui o signo no seu valor de signo, combinação de frases, seleção de palavra ? Em Manoel de Barros, a linguagem poética se alinhava tanto pela combinação de frase sem conexão alguma, quanto pela seleção de palavras. A seleção de palavras acaba facilitando a combinação de frases que, no contexto poético, aparentam duplo contraste, na medida em que têm dessemelhanças e não querem dizer coisa alguma. Mas a intenção é essa mesma, de renúncia aos meios de conexão, sem intenção de utilidade. E se por descuido comunica, é só para nos mostrar que “gostava de encantações do que desinformações.” ( Barros, 1998:43). Eis um exemplo dessa encantação que nos permite constatar em cada página, em cada verso do livro Arranjos para assobio : XV ............................................. E mosca de olho afastado dá flor? Raiz de minha fala chama escombro Meu olho perde as folhas quando a lesma A gente comunga é sapo Nossa maçã é que come Eva Estrela que tem firmamento Mas se estrela fosse brejo eu brejava. ...................................................... ( Barros, 1982:29) 134 Como se percebe, na vasta sintaxe da natureza, diferentes seres se imbricam no estranho caminho da poesia: “Nossa maçã é que come Eva”. Palavras ao acaso não têm nada de semelhantes: “Mas se estrela fosse brejo eu brejava’”. No fundo da linguagem, o poeta garante a função do verso, sustenta o papel que cabe às palavras, atira-se no jogo proposto pelo verso livre, põe-se a favor de uma escrita cujo código viável é o ilogismo: “A gente comunga é sapo”. Os versos são organizados através da montagem. Tudo se entrelaça aparentemente, os objetos incoerentes, mencionados de forma concisa, sinalizam para a desestruturação da linguagem na reconstrução das imagens. Observa-se que as imagens são incoerentes entre si, de modo que delas resulta uma mistura de imagens que objetivamente são inconciliáveis entre si, mas que descobrem uma fundamentação lógica de uma nova linguagem à poesia. O poeta cria portanto uma proposta de linguagem que confirma a gestação do que ele mesmo denomina de “agramática”. O poeta explora “palavras desacontecidas”, que de tão desprendidas recebe, a ousada denominação de “agramática” ou “dicionário do ordinário”. A “agramática” manoelina é o registro de uma linguagem que se perfaz entre o coloquial e o erudito com deslizes para uma estranha construção de um estilo que beira no alinhavo. Nesse estilo de alinhavo, as palavras seguem umas às outras através do ritmo, das figuras de linguagens, da desconstrução e do próprio “desnomeamento” das coisas. Pois como diz em Concerto a céu aberto para solo de ave: “Assim que foram feitas (todas as coisas)/ sem nome.” ( 1991:49). Essa façanha de “desnomeação das coisas”, em Manoel de Barros, está para a natureza em uma relação de significação transitória, inversamente dissociada de descrições exatas. Cada verso endereça, à natureza, um discurso que lhe promete como recompensa uma novidade, uma descoberta. Manoel de Barros fala sobre o fundo de uma escrita que incorpora o conhecimento 135 das coisas inúteis da natureza, acercando-se dessas, para dizer coisas dessemelhantes que cintilam de forma inesperada, coisas que nada têm a dizer, mas a desdizer, a desfazer. EXERCÍCIOS CADOVEOS O tempo dele era só para não fazer as mesmas coisas todos os dias Quase passarinho arrumou casa no seu chapéu Estava para pegar bicho no osso da bunda Com pouco ele escorre uma resina (Ainda não desceu da copa dos coqueiros, será?) De noite come caroço de égua no cupim Ai que vontade de encostar! Se arruma por desvãos como os lagartos Se propaga no sol Macega invade seus domínios ele guspe Coisa latente: aurora crisálida em cima de um ovo Passarinho caga no seu olho nem xum Maribondo sanhara seu vulto põe língua Ai abandono de cócoras! Esse bugre Aniceto quase não pára de pé como os cadarços mas usa um instrumento de voar que prende nos cabelos como os poetas ( Barros, 1982:43) Parece-nos que só podemos reconhecer o que acontece com a linguagem manoelina , se considerarmos o erro que ela contém em si própria, se observarmos seus elementos invariáveis, e isso se observa tanto em nível de significante, de sonoridade, quanto de significado, de sentido: “Quase passarinho arrumou casa no seu chapéu”. Para compreendermos a dicotomia que perfaz o signo como arbitrário, é preciso vermos que existe uma combinação de vocábulos distintos que estabelecem entre si as mais diferentes possibilidades que, na poesia desse autor, vem sendo usada de forma bastante diversificada. 136 Para Roman Jakobson ( op. cit.:41): Duas referências servem para interpretar o signo - uma ao código e outra ao contexto, seja ele codificado ou livre; em cada um desses casos o signo está relacionado com outro conjunto de signos lingüísticos, por uma relação de alteração no primeiro caso, de justaposição no segundo. Uma dada unidade significativa pode ser substituída por outros signos mais explícitos do mesmo código, por via de que seu significado geral se revela, ao passo que seu sentido contextual é determinado por sua conexão com outros signos no interior da mesma seqüência. Se levarmos em conta Roman Jakobson, a combinação de palavras no universo poético é delimitada tanto pela relação que o signo mantém com as coisas, quanto pela relação que os signos mantêm entre si. Evidentemente, dentro desses delimites, o poeta ordena seus versos pela seleção e combinação de palavras, em um contexto totalmente diverso: “De noite come caroço de égua no cupim”. Vê-se, na fusão de elementos díspares, que as coisas fundem entre si, grupos isolados de frases: “ Ai que vontade de encostar/ Se arruma por desvãos como os lagartos/ Se propaga no Sol”. As frases estão desconexas, não têm pretensão de significar coisa alguma. É pura invenção: “O tempo dele era só para não fazer as mesmas coisas/ todos os dias”. O trabalho de Manoel de Barros com as coisas incongruentes: “De noite come caroço de égua no cupim”; assim como seu distanciamento do mundo real, leva-nos a imaginar que sua poesia ocupa uma percepção visual que necessita aniquilar os objetos que encontra pela frente, para elevá-los a um procedimento intencional do signo lingüístico: “Com pouco ele escorre uma resina”. A linguagem, em Arranjos para assobio, nutre-se de objetos simples, está ligada aos constituintes do código, cuja regra 137 principal é a de inverter a ordem habitual, de emprestar defeitos à frase, a ponto de criar uma proposta para o poema que se imbrica muito mais à prosa. Nesse sentido, o poeta desarruma a poesia, e, se permite enveredar por construções que anunciam onde Manoel de Barros se sente melhor. “Quase passarinho arrumou casa no seu chapéu.” Vê nesse excerto que o desconexo é a perfeição de que o poeta se cerca. O incompleto é o que o completa. É pelo incompleto que a desarticulação de palavras se revela, adquire a categoria de uma linguagem apropriada para exprimir no limite do impossível, pois conforme descreve em Retrato do artista quando coisa : “Só quem está em estado de palavra, pode enxergar as coisas sem feitio” (Barros,1998:35). 138 5.6 - O arranjo das letras Quero escrever a sucata das palavras. Clarice Lispector Há uma frase que a escritora Clarice Lispector gostava de repartir entre amigos: “Eu te invento, ó realidade!” Em verdade, há, na vida como na poesia, poetas que, por não saberem fazer outra coisa, escrevem para nos dizer como as coisas são. Mas também há poetas que escrevem pela simples missão de inventar, para nos dizer que as coisas não são, mas poderiam ser. Esses poetas parece que, quando escrevem, encantam tudo que tocam e dizem. Por isso, o que eles dizem, acaba por ficar mais desverdadeiro, pois inventam mais coisas do que havia antes de terem dito, porque falam de coisas que se transformam para existir, ou falam simplesmente de coisas que nem precisam existir: No sonho havia uma rampa mole o túnel e uma lagartixa de rabo cortado Pela porta da frente eu não podia sair de dentro de mim Mesmo com vida, porque não havia porta da frente. (Barros, 1982: 21) 139 Para fazer o que é desnecessário, Manoel de Barros desmancha as frases, “desvia as normas da linguagem”, dilui as metonímias, entorta as imagens, alimenta-se de fantasia, faz poesia com sotaque bugre. Entre a fantasia e a realidade, o verbo em Manoel de Barros tem apego por todo tipo de migalha: “Minha voz é úmida como restos de comida” ( Barros, 1982: 16). No exílio de coisas ordinárias, entre árvores, pedras, rãs, borboletas, sua obra simboliza a renovação do mundo através das coisas mais simples: “Anda em lugares vazios/ em que inúteis borboletas o adotam” ( Barros, 1990:287) . O poeta anda por atalhos, esmiuça a linguagem para arrevesar as imagens para “transver” o mundo, em um itinerário feito a partir de elipses. Na arte de transver o mundo, o poeta retira da natureza as coisas simples, dá forma ao mundo, através da escolha das coisas desúteis, capaz de atrapalhar as significâncias como sinal de negação, de recusa; também, como resgate de pureza e ingenuidade, como elo de possibilidades não fixáveis para a linguagem e novos elos de possibilidade de descoberta do próprio ser: “Notei que descobrir novos lados de uma palavra era o mesmo que descobrir novos lados ser” ( Barros, 1991: 27). No livro Arranjos para assobio ( 1982), o desencontro com a linguagem vai sendo incorporado pelo cheiro, pelo som, pela cor, numa linha crescente que amadurece a arte de “esticar horizontes” às coisas imprestáveis. Para desdizer o que há muito foi dito, seu olho exagera a imagem: “É um azul arriscado a pássaro”( Barros,1990: 282), desregula a natureza, inverte o acaso, cria ocaso, ajeita os sons para voar : “As garças descem no brejo que nem brisa todas as manhãs” ( Barros,1996:31). O poeta não embeleza a natureza, reaprende a ver as coisas diferentemente das estabelecidas, despojandose de ritmos isentos de sentido. O poeta Manoel de Barros vê, no mínimo, a exuberância no ínfimo: 140 12.1 Choveu de noite até encostar em mim. O rio deve estar mais gordo. Escutei um perfume de sol nas águas. ( Barros, 1996: 32) Quando as palavras caminham sob um papel inventado, vê-se que os cantos podem ser ouvidos em forma de metáforas; o poeta desenha o aroma das frases: “Nos monturos do poema os urubus me farreiam” (Barros,1982:16). Em verdade, não há um fio condutor entre as coisas e as imagens no Arranjos para assobio. Trapo, s.m. Pessoa que tendo passado muito trabalho e fome deambula com olhar de água-suja no meio das ruínas Quem as aves preferem para fazer seus ninhos Diz-se também de quando um homem caminha para nada ( Barros, 1982: 39) Ao eleger o trapo, o poeta fragmenta as imagens, desanda o poema, desafia a palavra do “sentido de dicionário”, desfaz qualquer tipo de relação com as imagens às quais alude: “Diz-se também de quando um homem caminha para nada.” A partir dessa intenção, o poeta ilumina-nos para o difícil exercício de entendê-lo: XV. ............................................................................... - Difícil de entender, me dizem, é sua poesia, o senhor concorda? - Para entender nós temos dois caminhos: o da sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da 141 inteligência que é o entendimento do espírito. Eu escrevo com o corpo Poesia não é para compreender mas para incorporar Entender é parede: procure ser uma árvore. ................................................. ( Barros, 1982, 29) Em Manoel de Barros, escrever é um exercício em que a labuta com a escrita serve para incorporar, dialogar com as idéias do seu corpo, para perder sua consciência: “Entender é parede: procure ser árvore”. E, nesse sentido de escrever para perder a consciência, nota-se que a palavra “parede” está no lugar da palavra razão, transportando, assim, aos limites da escrita, uma linguagem que não quer ser confundida com a ciência. Uma linguagem que consegue a liberdade de projetar sua criação no nada. Pois, em se tratando de Manoel de Barros, são as palavras que o ensinam a ser interiorano com a linguagem, de forma recolhida, onde até o silêncio faz sentido, ao se encostar no ritmo do verso com mais representatividade. Pelo quintal da “despalavra”, o poeta escapa à descrição contemplativa da natureza, para mostrar a linguagem de que essa é feita: de forma cinematográfica, cheia de cortes rápidos e simultâneos, de imagens partidas em superfície, com um estilo marcado principalmente pela experimento lingüístico. Manoel de Barros apenas desinventa um “dialeto coisal, larval”, encara a natureza como uma criação incompleta da palavra que constrói. Segundo Berta Waldman ( 1990:19): Iniciada a trajetória de poeta, Manoel de Barros irá fazendo escola no aprendizado de errar a língua (escrever é reaprender a errar a língua) com o propósito de urdir um universo imagético próprio, de tal forma que o sentido se arme na própria linguagem que o constrói. 142 Em sua trajetória de errar o idioma, é difícil de conceber claramente a poesia manoelina, pois como diz “Poesia não é para compreender, mas para incorporar/ Entender é parede: procure ser árvore”. Sabe-se que a compreensão é objeto da razão, e a poesia é objeto da sugestão, resultado da reinvenção: Poesia, s.f. Raiz de água larga no rosto da noite Produto de uma pessoa inclinada a antro Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de um homem Designa também a armação de objetos lúdicos com emprego de palavras imagens cores sons etc. geralmente feitos por criança pessoa esquisita loucos bêbados ( Barros, 1982: 35) Para além da letra, há muitas formas de dizer a verdade mas, em Manoel de Barros, parece que só existe uma: versificar. Ou para usar, aqui, as palavras de Camões (1993:134): “Uma verdade que nas coisas anda/ Que mora no visível e invisível”. Longe das verdades sacramentadas, Manoel de Barros leva a fantasia muito a sério, inventa mentiras verdadeiras. Vêse isso no Livro sobre nada, onde, para chegar às suas verdades inventadas, parodia José Américo de Almeida: “Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”. Na realidade, é um inventador, que cria para se tornar verdadeiro. Para Ezra Pound ( 1990:10), em ABC da literatura, inventores são: “Homens que descobriram um novo processo, ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo”. No livro Memória da arte matogrossense, de Maria da Glória de Sá- Rosa ( 1992: 45), Manoel de Barros mostra seu processo inventivo : 143 O prazer de inventar vem da consciência do quanto é chata a verdade. Só tem um lado, enquanto uma árvore dispõe de todos os lados para a ser apreendida, é como invenção que pode ser iluminada em todas as direções. Quando falo, não garanto a verdade, apenas a verossimilhança, lembrando John Ruskin, para quem as melhores verdades são as inventadas. Pela invenção, Manoel de Barros atinge o poético pelo incomum, e mostra-nos o desconhecido, que valoriza, pelo regresso, o que há de mais primitivo pela associação de coisas distintas. Sol, s.m. Quem tira a roupa da manhã e acende o mar Quem assanha as formigas e os touros Diz-se que: se a mulher espirar o seu corpo num ribeiro florescido de Sol, sazona Estar sol: o que a invenção de um verso contém ( Barros, 1982:38) Como se vê, o fio condutor que perfaz o poema se fragmenta a cada verso; o poeta inicia o primeiro verso, depois interrompe e prossegue com outra imagem num contexto distinto totalmente “sincopado” : “Quem tira a roupa da manhã e acende o mar/ Quem assanha as formigas e os touros”. Vê-se, nesses dois versos, que os mesmos são independentes entre si, sustentam-se sozinhos, como se fossem uma miragem de uma imagem, um filme expresso em palavras, uma reunião de fragmentos montados com todo cuidado do mundo. Manoel de Barros é o poeta da cosmovisão: “ Estar sol: o que a invenção de um verso contém”. Explora os mistérios irracionais, bota em prova a própria linguagem que impõe a nosso ver sua própria lógica. São versos que bebem no ilogismo . Essa artimanha, é certo, não deve ser confundida com a estética surrealista, em que o subconsciente impõe-se à razão. Em verdade, o delírio de frases 144 soltas, em interconexão com o todo, ou seja, com o verso por inteiro, é defendido por Manoel de Barros como ideal estético, o que não se confunde com a concepção metafórica surrealista de elaborar o verso. Segundo Anna Regina Accioly, no jornal do Brasil de 14 dezembro 1995, o escritor João Antônio, ao se referir sobre a poesia de Manoel de Barros, chegou certa vez a declarar: “Sua poesia tem a força de um estampido em surdina. Carrega a alegria do choro.” O que se observa em Manoel de Barros é um compromisso com o jogo imagético imbricado às estruturas sonoras do verso: “Seu canto é o próprio sol tocado na flauta”. A poesia manoelina conserva uma liberdade expressiva sem perder o rigor no processo de laboração da linguagem. Esse enfoque surpreende o leitor da lírica atual, uma vez que esse autor dá, à sua obra, uma característica bem pessoal, que ultrapassa a ordem estrutural do poema, ao deixar de lado a linearidade dos versos tradicionais. Com isso, amplia o universo teórico do verso livre, na medida em que vai costurando sua lírica com um tipo de linguagem inventiva: “Talvez um desvio de poeta na voz”. Pois consegue livrar-se da linguagem descritiva, de aparência simplista, e traz, à tona, uma linguagem de “barulhos impossíveis”, repleta de trastes: “Para as crianças da estrada eu sou o homem do saco./ Carrego latas furadas, pregos, papéis usados” ( Barros, 1996: 85). Em o livro A poética do espaço, há uma concepção que traduz, em síntese, o que os poetas conseguem fazer com as palavras: Os poetas nos fazem freqüentemente entrar no mundo dos barulhos impossíveis, de uma impossibilidade tal que bem podemos tachar de fantasia sem interesse. Sorrimos e passamos. E, entretanto, muitas vezes, o poeta não tomou seu poema como um jogo, pois existe uma certa ternura nessas imagens. (Bachelard, 1974:469) 145 O que observamos também é que, em Manoel de Barros, a poesia de verso livre é recriada pelo contraste de jogos de efeito fascinantes, estabelecendo diversas leituras, dando lugar a mecanismos de compreensão que beiram no simples, mas que, em verdade, alcançam imagens bastante inusitadas. Até por que a poética desse autor representa o mundo em alto grau de fragmentação, uma visão de mundo tomada indiretamente pela reflexão. Um juízo que emite valores sobre o mundo. Mundo em que as formas se reinventam, a cada instante, e tomam como significantes novos significados. Mundo em que as imagens são dessas espécies raras que segregam os frutos da poesia. Imagens com pertinência para árvores, com simbologia à harmonia. Imagens que vão se alargando, palavras a fora, raízes a dentro. Há de se notar também que os recursos dessa visão imagética sejam, na poesia, as figuras: sintáticas ( silepse, elipse, inversão, anacoluto), semânticas ( sinédoque, metonímia, metáfora) e, principalmente, sonoras( onomatopéias, aliteração, eco assonâncias), redefinem a linguagem cotidiana em função da linguagem poética. São versos que bebem no ilogismo . Essa artimanha, é certo, não deve ser confundida com a estética surrealista, em que o subconsciente impõe-se à razão. Em verdade, o delírio de frases soltas, em interconexão com o todo, ou seja, com o verso por inteiro, é defendido por Manoel de Barros como ideal estético, o que não se confunde com a concepção metafórica surrealista de elaborar o verso. No desalinho do ilogismo, é no silêncio das coisas esquecidas e sem importância nenhuma que a poesia manoelina tem pertinência para andar de costas, ao contrário, às avessas, com o propósito de exceder o limite do dizível. Por isso, se quisermos realmente incorporar essa poesia, temos que nos dispersar da realidade, para alçarmos vôo nessa poética de elementos inomináveis, de coisas colocadas ao contrário: “O vento se harpava em minhas lapelas desatadas”. Vê-se, no verso, que a palavra vento é quem realiza a ação poética, desorientando, assim, o nosso olhar sobre as coisas 146 do velho mundo. Em verdade, o poeta se impõe, como tarefa, limpar da linguagem a normalidade da expressão, pelo viés inventivo de fundar uma poesia que confronte o mundo das coisas da natureza com o mundo da própria linguagem. Ao tomarmos, portanto, o “roteiro do luar com o mapa da mina”, veremos que além da linguagem limpa de normalidade que toma tudo e seu contrário por uma coisa, a poesia manoelina está longe de ser entendida , porque, para isso, é preciso abrirmos as porteiras dos sentidos, transformando sobretudo os olhos para uma nova visão das coisas da vida e dos homens. Em suma, colhe-se, na poesia manoelina, a pureza e a intensidade das coisas diminutas, colhe-se a poesia como virtude do inútil e o poeta como fazedor de inutensílio, colhe-se na água da memória a experiência do ínfimo e da des-nomeação, colhe-se o verbo gerador, a palavra inaugural, a partir do inominado e do insignificante: “O som inaugural é tatibitate e vento.” 147 6 . PALAVRAS INACABADAS 6.1 - As árvores me terminam Não preciso do fim para chegar. Manoel de Barros A poesia termina em cor, a cor floresce nas ramagens da palavra que mudam de folhagem com o tempo. A poesia de Manoel de Barros é uma árvore de cor inventada, brota frutos que não têm valor. Talvez por isso que escrever sobre a poesia manoelina é um “exercício de ser criança”, pois diz “falar a partir de ninguém,” no entanto, quando escreve “faz comunhão com os bichos”, pensa renovar o homem usando borboletas. Nesse exercício, que compõe a vida a escrita, “ a palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria. ( Barros, 1996:71). O poeta vira o mundo de cabeça para baixo, por certo, com uma visão diferente dos homens e das coisas. Manoel de Barros reduz as coisas à cor da irrealidade, funde o dessemelhante ao inverossímil, dá uma nova imagem à natureza do ordinário. Utiliza o que pode e o que não pode, para sugerir 148 que o que resta de grandeza são as coisas pequenas. Estamos diante de um poeta que cria o que não faz sentido só para mostrar que a irrealidade faz parte de seu verdadeiro mundo. Manoel de Barros gosta tanto do que é menor, que é nas coisas mínimas que encontra o encanto de ver a vida além de seu itinerário. A poesia manoelina não limita, muito menos esgota, à sua maneira, o mundo. Pelo contrário, atiça nossa visão para a surpresa, expande nossa imaginação para a novidade. É um poeta que dá às costas à mesmice, dribla o comum e faz-nos perceber além do óbvio: “Vimos até que os cantos podem ser ouvidos em forma de asa”( Barros, 1991: 46). E por se entende que o mais longe leva-nos à serena relação do homem com os espaços humanos, é que se percebe o quanto o poeta está atento às questões de seu tempo. No entanto, não se deixa vencer pelos grandes acontecimentos, volta o olhar para os pequenos objetos, para o ordinário. Nesse ponto, o musgo é uma palavra úmida, lê-la pelo que é, à primeira vista, nada mais é que uma simples coisa, um tecido aveludado, capaz de vestir uma rocha inteira: Se no meio da náusea a lesma gosma no que sofro de musgo e cuja lasma Se no vinco da folha a lesma escuma Nas calçadas do poema a vaca empluma. ( Barros, 1985: 56) Ao conjugar o verbo pela exceção da rima ( gosma x lasma/ escuma x empluma), Manoel de Barros procura descer o olhar para as coisas do chão. O que podemos constatar também é que a paisagem passa a ser ela própria integrante de uma linguagem que se refaz constantemente como parte das coisas tiradas do chão, que, por sua vez, se elevam a cada livro de forma mais fragmentada. Averiguamos também que há um salto grande entre o livro Face imóvel ( 1942) e o livro Arranjos para assobio ( 1982), no que se 149 refere à construção do poema. Em Face imóvel, o material poético retirado da seiva urbana se estrutura dentro do fio que perfaz a construção do poema. Pode-se dizer que, nessa primeira fase, Manoel de Barros é o poeta do poema e não do verso, pois as imagens mesmo fragmentadas passam por um tipo de seqüenciamento que prende os versos entre si à estrutura organizada do poema. ENSEADA DE BOTAFOGO O corpo quase que morava ali, equilibrado nas curvas da enseada Ao lado dos carros vermelhos que transportavam os donos da vida para seus escritórios Ao lado dos emigrantes subjugados ao infinito E crianças reclinadas sobre as ondas azuis. Tantas vezes o corpo sobre as curvas, tantas Que ficou como certas casinhas tortas que jamais podem ser evocadas fora da paisagem. ( Barros, 1990: 69) Vê-se que os versos livres dão ao poema uma liberdade (entre parêntese) equivalendo, em sua materialidade e em seu destino, à experiência do homem urbano nivelado à condição de coisa, constituindo, assim, um desenho do espaço urbano, quando dele apresenta um itinerário: “O corpo quase que morava ali, equilibrado nas curvas da enseada”. No plano das figuras, com seus versos compassados, aproxima realidades distintas pelo jogo inventivo de imagens, que voam para ousadas combinações. No plano alto e complexo de integração das palavras, dissemina, a nosso ver, no nível da linguagem, mundos verbais que jamais podem ser evocados fora da paisagem. Por outro lado, o ordenamento dos versos no livro Face imóvel ainda não sofreu o processo de fragmentação que se nota com tanta veemência nos livros posteriores a esse. Nota-se que os 150 versos estão alinhados em uma seqüência temporal-espacial ainda bastante indefinida, e isso se observa não somente em Face Imóvel (1942) mas também nos livros Poemas concebidos sem pecado ( 1937), Poesia ( 1956), Compêndio para uso dos pássaros(1960) e Gramática expositiva do chão (1966). O que se observa no livro Arranjos para assobio ( 1982) é que cada poema é uma colagem, uma reunião de fragmentos, assim como cada verso extravasa os limites definidos pelo fio do poema, e aparece-nos com tantos fragmentos que se revela, ao contrário, como um jogo intricando entre a contextura imagética e a textura sonora. Percebe-se que a intenção do autor é chocar o leitor, é leválo a fazer uma leitura do poema pelos fragmentos: XV ................................................... - E o poema é seus fragmentos? - É muito complicado dar ossos à água .Passei anos enganchado num pedaço de serrote na beira do rio Coxim. Veio uma formiguinha de tamanho médio, me Carregou. Eu ia aos troncos como mala de louco. ................................................... ( Barros, 1982: 30) O poeta se embrenha no que há de mais elementar em toda sua obra: o traço ilógico, compreendendo sobretudo textos curtos, bem fragmentados, como se quisesse atingir sua máxima incoerência de sentido: “É muito complicado dar ossos à água”. Em suas “tacadas” com a linguagem, Manoel de Barros consegue monumentalizar as coisas mais banais, das quais seu poema faz intensamente parte. Ao proceder dessa maneira com as coisas mais simples e quotidianas, faz de seu próprio mundinho, um mundão de imagens que acolhe os seres e encolhe a linguagem para isso: “Passei anos enganchado num pedaço de serrote na beira do rio”. Percebemos a inquietadora estranheza de tais formulações, mas não é possível 151 reconhecer o encontro situável das imagens na seqüência tempoespacial. Manoel de Barros usa de artifícios que bem nos remetem à poética do autor de O partido das coisas, Francis Ponge, poeta francês que assistiu a importantes movimentos poéticos na França do século XX. Francis Ponge, também, revela em sua poética a importância dos pequenos objetos da natureza como valor e significado. Na poesia de Francis Ponge, o musgo, por exemplo, readquire uma estranheza primitiva que extravasa os limites do dizível ao exceder, na linguagem, uma tensão mimética entre a coisa e o poema. Em suas mais belas imagens, Francis Ponge nos leva a interrogar a representação das coisas na linguagem, bem como a representação da linguagem nas coisas mais banais e corriqueiras. Trilhando caminhos bem pessoais, tanto Francis Ponge quanto Manoel de Barros falam do menor, para que se descubra, em plenitude, a recôndita beleza que existe por trás das instâncias dos objetos mais simples. No livro O partido das coisas ( ed. Bras. 2000:61), Francis Ponge revela o partido de sua poesia: O Engradado A meio caminho de engraçado e degradado a língua portuguesa possui engradado, simples caixote de ripas espaçadas fadado ao transporte dessas frutas que, com a mínima sufocação adquirem fatalmente uma moléstia. Armado de maneira que no termo de seu uso possa ser quebrado sem esforço, não serve duas vezes. Desse modo, dura menos ainda que os gêneros fundentes ou nebulosos que encerra. Assim, em todas as esquinas das ruas que levam aos mercados reluz com o brilho sem vaidade do pinho branco. Novinho 152 em folha ainda e um tanto aturdido por se encontrar numa pose desajeitada Na via pública jogado fora sem retorno, esse objeto é, em suma, dos mais simpáticos - sobre a sorte do qual todavia, convém não repisar muito. O que nos ensina Francis Ponge é que a palavra deve falar desses pequenos objetos, para que um valor merecido advenha aos mesmos. Talvez por isso que Francis Ponge exponha, em suas descrições, não o mistério das coisas inatingíveis, mas a linguagem das coisas nas coisas. O poeta francês se esmera em uma procura assídua pela disciplina em trabalhar a síntese em seus versos tendenciosos para sua matéria-prima, que são, ao mesmo tempo, as coisas e o texto. Ou como diz Francis Ponge (2000:97): “As coisas simples da natureza não se abordam sem mesuras necessárias, sem que sejam preenchidas formas e formalidades, nem as coisas mais espessas, sem sofrer algum desgaste”. Como se invencionasse alcançar a descrição das coisas pela simplicidade e pela objetividade das imagens, Francis Ponge se aproxima de uma linguagem-síntese que , distante ainda de “sofrer algum desgaste”, chega a apanhar, de forma despojada, as imagens mais simples da natureza . O que se observa, pois, é que , tanto em Francis Ponge quanto em Manoel de Barros, a poesia identifica-se com as coisas despidas de idéias prontas. Ambos buscam descrever as coisas pelo efeito de uma linguagem entranhada de coisas ordinárias. Em Retrato do artista quando coisa, Manoel de Barros ( 1998: 41) chega a fazer uma referência ao poema “O engradado” de Francis Ponge: 11 ................................................................. 153 Não consegui ainda a solidão de um caixote tipo aquele engradado de madeira que o poeta Francis Ponge faz dele um objeto de poesia. Não sou sequer uma tapera, senhor. Não sou um traste que se preze. Eu não sou digno de receber no meu corpo os orvalhos da manhã. ( Barros,1998: 41) Nota-se que quando Manoel de Barros faz referência ao poeta Francis Ponge: “Faz dele um objeto de poesia”, para estudar o funcionamento da linguagem, que, por sua vez, leva o mesmo a entender o próprio funcionamento da humanidade a partir daquilo que a cerca. Observamos que tanto em Manoel de Barros quanto em Francis Ponge, a linguagem se distribui, entre fragmentos, repletas de espaços e silêncios, para mostrar a forma de que é feita seus abismos verbais. Esses dois autores se predispõem a uma desobediência à norma gramatical, originando-se aí todas aquelas tentativas vãs de ajuste e à realidade verbal, a serviço das quais se põem as alquimias do verbo humano em total desalinho com o que se faz em volta. A suprema sabedoria de Manoel de Barros é que esse segrega por si , em sua medida, através das coisas simples, o recôndito universo das coisas do pântano, onde cada palavra toca sentidos impossíveis e possíveis, bem próximos do inesgotável poder de surpresa que nos apresenta, despindo-se das dimensões lineares do verso. Cumpre finalmente ressaltar, ou reforçar, que Manoel de Barros, ao estabelecer uma relação com o universo poético, irmanado à inutilidade, aponta com isso para a constante mutação das coisas, nas escolhas de materiais simples, que imprimem um surto inaugural , em sua poesia, a partir do inominado e do insignificante. “Sua língua era um depósito de sombras retorcidas com versos cobertos de hera e sarjeta que abriam asas sobre nós” (Barros,1982:15). Entre sombras retorcidas e sarjeta, chegamos ao final desta 154 travessia, buscando acima de tudo desler o mundo real, buscando reler as palavras manoelinas que se abastecem do abandono das coisas ordinárias. E como de tudo fica um pouco: (...) “haveria de ficar para nós um sentimento de coisa esquecida na terra - como um lápis numa península”( Barros,1996:17). Resta-nos essa pequena península que, por alguns instantes, vale a pena incorporar: “Entender é parede. Procure ser árvore” . 155 BIBLIOGRAFIA ABRANTES, Paulo César Coelho. 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