Caem os véus, mostram-se os tornozelos.
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Caem os véus, mostram-se os tornozelos.
CAEM OS VÉUS, MOSTRAM-SE OS TORNOZELOS: A REPRESENTAÇÃO FEMININA NO PROEJA Cristiana Cassinelli1 Edson Carpes Camargo2 Resumo O presente artigo tem a pretensão de investigar a representação feminina no PROEJA-IFRS/ Bento Gonçalves. No texto que discorre a seguir temos a possibilidade de explorar o contexto histórico da mulher, as transformações por ela vivenciadas, bem como o universo que a circunda atualmente, principalmente no que se refere a sua volta a escola na modalidade de ensino em questão. A partir de tais perspectivas, levantam-se, nessa pesquisa, questões relacionadas à família, ao trabalho e a vida cotidiana dessas alunas. Reconhecemos, nesse processo a relevância da utilização das fundamentações teóricas que muito contribuíram para o estabelecimento das relações entre o gênero e sua história. Para tanto, realizou-se ainda, uma pesquisa de natureza qualitativa, que contempla a observação dessas mulheres em sala de aula e um questionário que revela, de modo particular, as experiências, os enfrentamentos, as mudanças e os sonhos gerados pelo retorno aos bancos escolares. Palavras-chave: PROEJA- Contexto feminino- História- Transformação. 1 Aluna do curso de Especialização em Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos. Licenciada em Letras 2 Mestre em Educação. Docente do IFRS – Campus Bento Gonçalves. 1 Introdução Em meados do século XIX, o mundo estremece com a Primeira Guerra Mundial, ocasionada pelo momento de grande insatisfação e com a ruptura do sistema econômico desenvolvido até então. Porém, esse não é o único turbilhão de emoções que vem aflorar no período em questão. Outra revolução parece inquietar a sociedade da época: a revolução da mulher; que vem surgir timidamente em vários aspectos. Escrava das convenções, a mulher tinha um horizonte reduzido. Sua atuação se resumia a demonstrações de fé, caridade e maternidade. Sem direito ao voto ou a participação política, visto que isso eram “coisas de homem”, sobrava a ela, como esposa zelosa, o papel de boa mãe e educadora exímia, afinal, por ser mulher, era assim que tinha de ser, como sintetiza Michelle Perrot (2007) A questão é embaraçosa [...] É um discurso naturalista, que insiste na existência de duas 'espécies' com qualidades e aptidões particulares. Aos homens, o cérebro, a inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão. Às mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos. (p. 177) Nessa perspectiva, o gênero feminino, foi constantemente subjugado e ignorado em sua condição, porém, corajosas mulheres não se conformaram com a servidão involuntária, questionando o modo de vida que lhes fora imposto. Tal confronto fez desabrochar histórias singulares, marcadas por desmitificações de mitos referentes à inferioridade feminina e superioridade masculina. Mesmo tendo suas atitudes condenadas pela Igreja, o sexo considerado frágil deixa para traz uma existência de subordinação, e vem agora se transformar em seres fortes, persuasivos e, por que não, enigmáticos. Mesmo apresentada nesse contexto um tanto degradante em 2 tempos passados, a mulher do presente vem romper com paradigmas préestabelecidos, destacando-se em setores anteriormente debilitados, tanto pessoal quanto profissionalmente. As mesmas assumiram um papel decisivo no que diz respeito ao desenvolvimento das sociedades. Entretanto, o momento apontado não vem apenas para configurar aspectos relativamente positivos para a mulher, pois tais transformações geraram certo conflito existencial devido às inovações sugeridas. O século XXI, a sociedade pós-moderna assinala, principalmente ao gênero feminino, um período de inquietude. Existe uma transferência ou um acúmulo de papéis delegados a mulher. Além de mãe e esposa, agora ela também tem um emprego a zelar, ou uma forma de remuneração a aperfeiçoar. E é a partir dessa condição que esse artigo pretende embasar-se: à volta a vida escolar atrelada à formação técnica, bem como as transformações, pessoais e profissionais, que tal atividade pode causar. 1 Contexto histórico “Uma mulher já é bastante instruída quando lê corretamente as suas orações e sabe escrever receita de goiabada. Mais do que isso, seria um perigo ao lar.” (Charles Expilly, cronista francês, século XVIII) Mulher distinta era aquela que possuía uma vida regrada. Por pertencer a uma sociedade fortemente marcada pelo patriarcalismo, coadjuvante, escondia-se sob a sombra do marido, personagem principal. A este, entre os séculos XII e XVIII, ficava reservada a tarefa de sustentar economicamente a família e administrar os bens comuns e particulares de ambos. Enquanto que, nessas condições, as mulheres casadas restringiam-se aos cuidados com os filhos, as funções domésticas e as obrigações conjugais. 3 De posse desse panorama histórico, Mary Del Priore (2001) menciona que os valores tradicionais, mantidos aproximadamente até a metade do século XIX, silenciaram o universo feminino. Caladas pela autoridade de seus maridos, as mulheres eram submetidas a aceitar passivamente sua condição de ser humano secundário, já que seu “único sonho” era casar e ter (muitos) filhos. Além disso, normalmente os casamentos eram arranjados e desprovidos de sentimentos, não cabendo a ela questionar qualquer decisão referente à sua própria vida, afinal segundo os costumes arbitrários da época, ela não possuía capacidade para isso. Dentro das concepções sociais descritas, não era permitido às senhoras ultrapassarem o espaço demarcado para a ala masculina, isso era um incômodo, quase uma ofensa para as leis do catolicismo. Para tal, a mulher, lembre-se da época, baixa a cabeça obediente e aceita. Certamente não se tratava de uma questão de escolha. Podemos entender aqui que essa construção é baseada a partir da prevalência do olhar da Igreja sobre ela, que concebia a criatura feminina na sociedade apenas sob essa ótica3. As limitações femininas começavam a partir de seu nascimento. Desde a infância eram instruídas a portarem-se de modos adequados a uma dama, visando sempre agradar. Vestiam-se como 'adultas em miniatura'4, o que fazia encurtar sua fase de criança, característica evidenciada, sob essa ótica, na obra Las Meninas (1656), do pintor espanhol Diego Velázquez, em que, a pequena Margarida, filha de Filipe IV da Espanha, aparece envolta às damas de companhia supostamente aprendendo a desenvolver boas maneiras de 3 É importante compreendermos aqui que a mulher é observada sob três óticas: sexo (maneira como ela se difere biologicamente do homem, estrutura física); gênero (“tanto é construído através do parentesco, como também na economia, na organização política, enfim em outros lugares igualmente fundantes”- SCCOT, 1990, p. 15); cristã (modo como ela é concebida pela ‘Igreja’, como filha, como esposa e como mãe). 4 Segundo a História Social da Criança e da Família, não somente as meninas, mas as crianças de um modo geral eram tratadas como adultos. Até o século XVIII os trajes da época comprovavam o quanto a infância era então pouco particularizada na vida real. “Assim que a criança deixava os cueiros, ela era vestida como os outros homens e mulheres de sua condição” (ARIÈS, 1981,p. 69). 4 mocinha. Educadas para o matrimônio e para maternidade, as esposas não precisavam de muita coisa para ter sua bagagem matrimonial completa, como salienta o professor Alexandre Eulálio Pimenta da cunha, nos conhecimentos indispensáveis a ela deveriam constar, na educação elementar, os seguintes ramos de ensino: arranjos culinários, contabilidade e economia doméstica e certa familiaridade com bordados e crochês, bem como saber alguns versinhos em francês. Ao verificarmos esse contexto, notamos que nada poderia ser mais terrível que o futuro de uma “solteirona”. Sem acesso a outro reino que não fosse o doméstico, só lhe é dada uma alternativa: atrelar sua existência à dos pais, até o dia de sua morte. As mulheres da época em questão passavam longe de qualquer forma de socialização se não fossem casadas, sendo apontadas como motivo de deboche e restrição pelos demais. Por isso a importância do casamento, como salienta Michelle Perrot (1991) [...] Mesmo num espaço inteiramente dominado, as mulheres encontram compensações que favorecem o consentimento: uma relativa proteção, uma menos inculpabilidade, o luxo ostensivo das burguesas incumbidas das aparências- o que não deixa de ter seus encantos-, e no final das contas uma maior longevidade. (p. 155) Os rituais pré-estabelecidos para a concretização do matrimônio iniciavam pelo noivado acertado entre as famílias, é claro sem 'qualquer' objeção ou questionamento por parte da escolhida. Efetivados os contatos, o noivo passava a frequentar a casa de sua prometida, porém sem nenhum tipo de contato físico ou afetivo entre ambos. Consumada a cerimônia, iniciava-se a vida a dois e para a mulher, portanto, continuava sua vida de 5 subordinação5. Em meio a esse processo, constituía obrigações à mulher, ter um cuidado exímio com seu marido, sua apresentação e posição, sendo apontada se o mesmo não estivesse de acordo com os padrões exigidos pela sociedade vigente. A mesma proposta se enquadraria aos cuidados e a educação dos filhos. Se o lar se encontrava em estado harmônico, os elogios eram remetidos ao patriarca da casa, mesmo que o mérito fosse atribuído à mulher, porém em caso contrário, a vítima das reclamações seria a esposa. Pretender seguir os passos masculinos, aprender o que eles sabiam e disputar suas funções, privando o lar de sua 'Deusa Protetora' que conforta todas as dores e desfalecimentos, era contrariar a natureza feminina e defrontar-se com a vontade do Espírito Santo. À medida que a história feminina se desenrola, é possível perceber os motivos que levaram as mulheres a aceitar, de certo modo, sua condição de submissão. O mínimo prestígio gozado por elas dizia mais respeito ao medo alimentado por crenças relacionadas a si do que o reconhecimento de seus direitos. Temos a possibilidade de observar tais questões pelo olhar de Simone de Beauvoir (1980), em o Segundo Sexo, no qual a autora afirma que [W] a desvalorização da mulher representou uma época necessária na história da humanidade, porque não era de seu valor positivo e sim de suas fraquezas que ela tirava seu prestígio, nela encarnavam-se os grandes mistérios naturais: o homem escapa de seu domínio quando se liberta da natureza. (p. 95) Em suas investigações, Beaurvoir (1980) também vem questionar o comportamento dessa figura feminina do aproximado século XIX, mencionando que a aceitação da sua condição se dava pela falta de 5 Entendemos que essa característica de subordinação venha desde a infância da menina, especialmente se nos remetermos a nossa região, em que a mocinha fica responsável pelos irmãos mais jovens enquanto os pais lidam na lavoura, principal fonte de renda das famílias apontadas. 6 solidariedade entre elas, principalmente entre as damas da elite [...] As mulheres da burguesia achavam-se demasiado integradas na família para descobrir uma solidariedade concreta entre elas; não constituíam uma casta separada, suscetível de impor reivindicações. Economicamente sua existência era parasitária. Assim, enquanto as mulheres que, apesar do sexo, teriam podido participar dos acontecimentos, se viam impedidas de fazê-lo como classe, as da classe atuante eram condenadas a permanecer afastadas, como mulheres. (p. 142) O ato sexual, na vida conjugal, era para mulher apenas um ato de procriação da espécie. Sentir prazer era desaprovador diante dos olhares cristãos, visto que a mesma era representada apenas como um ser reprodutor, que seria duramente condenado pela Igreja Católica se tentasse de algum modo utilizar métodos contraceptivos. A instituição pregava ainda, que toda atração carnal, tinha origem na figura feminina, e que essa era culpada por todos os pecados que giravam em torno do mundo, como destaca Priore (2011) [W] o prazer feminino era considerado tão maldito que, no dia do Julgamento Final as mulheres ressuscitariam como homens: dessa forma, no 'santo estado' masculino, não seriam tentadas pela 'carne funesta', reclamava Santo Agostinho [W] Entre os séculos XII e XVIII, a Igreja identificava, nas mulheres, uma das formas do mal sobre a Terra. Quer na filosofia, quer na moral ou na ética do período, a mulher era considerada um ninho de pecado. Os mistérios da filosofia feminina, ligados aos ciclos dos homens, os repugnavam. O fluxo menstrual, os odores, o líquido amniótico, as expulsões do corpo e as secreções de sua parceira os repeliam. (p. 35) Apesar do acentuado rigor obedecido e já mencionados, havia mulheres que pintavam o rosto, fumavam e entretinham animadas conversas regadas a vinho e insinuações. Seus comportamentos faziam sucesso pela 7 liberdade excessiva: eram as cortesãs, que as mulheres ‘de bem’ olhavam escandalizadas por saberem que estas eram o motivo da infidelidade conjugal estabelecida. Mal sabiam essas senhoras que aquelas cocottes6, estariam abrindo um tímido caminho para a liberdade de expressão do gênero. 2 Liberdade Censurada “Todo mundo sabe o que a pílula é. Um objeto pequeno- mas que pode ter um efeito mais devastador em nossa sociedade que a bomba atômica.” (Frase proferida em 1968 pela escritora americana Pearl S. Buck, Nobel de literatura em 1938) Estima-se que a revolução feminina tenha iniciado de fato no Brasil na década de 60. Enquanto o país emergia para uma série de transformações, principalmente no âmbito político, época em que vários indícios rumavam para a ditadura militar, mulheres pertencentes a movimentos feministas, ou não, pintavam um novo cenário em sua história ao abandonarem padrões repressores e excludentes. É fundamental observarmos aqui que essa revolução do gênero partiu primeiramente da vontade e da coragem por mudanças. Porém, nada fez mais pela mulher que uma avassaladora descoberta: a pílula anticoncepcional, em 1960. É inquestionável que o controle sobre o próprio corpo lhe deu poder. A possibilidade da escolha lhe garantiu, por exemplo, a opção de retardar a maternidade em nome de uma desejada carreira profissional ou de um possível curso universitário, como argumenta a sexóloga Regina Navarro de Lins, em artigo publicado na revista Veja (2010) 6 A palavra cocotte é de origem francesa e, conforme traduzem dicionários de línguas, significa prostituta, mulher que cobra por relações sexuais. 8 [...] A pílula representou um golpe fatal de mais de 5000 anos de patriarcado. [...] Como uma mulher poderia reclamar seus direitos senão tinha nem o domínio sobre o próprio corpo? A pílula é, sim, o grande marco da mudança das mentalidades do século XX. (p. 56) A bordo dessa descoberta, outra foi permitida: o prazer durante o ato sexual. Pensar em tal questão parecia incabível em anos passados, visto que, como já discutimos, o sexo deveria ser para a criatura feminina apenas uma forma de garantir a reprodução da espécie. Com o uso do novo método contraceptivo, o sexo passou a ter um caráter livre, sem obrigações ou medos. A antropóloga Mirian Goldenberg (2010, p. 57) salienta que “A permissão para o orgasmo estava dada. Antes, o prazer só era permitido aos homens e as mulheres de má índole”. É óbvio que a ‘invenção’ do biólogo Gregory Pincus e do ginecologista Jonh Rock responsável pelo controle da natalidade sofreu recriminações. Esta era vista com maus olhos não somente pela Igreja cristã, que pregava a continuidade de famílias numerosas, mas também e principalmente pelo sistema da época. Segundo a historiadora Mary del Priore (2011) [...] isso porque, durante o Estado Novo, valorizou-se a ideia de coesão social necessária para fortalecer a Pátria. Esse apelo implicava a definição de um modelo de família que expurgaria todas as ameaças à ordem: imoralidade, sensualidade e indolência. [...] O papel da mulher não era na rua trabalhando, mas em casa cuidando dos filhos. E de todos. Nada de controlar o tamanho da família, mas cuidar delas para não produzir casamentos desfeitos com suas consequências: alcoolismo, delinquência, marginalidade. (p. 144) 3 Sem liberdade de expressão “Sempre fomos o que os homens disseram que éramos. Agora somos nós 9 que vamos dizer o que somos.” (As Meninas, Lygia Fagundes Telles- 1973) Para confirmar que, mesmo tomando posse de novas conquistas, a perseguição aos propósitos de maiores ambições ao gênero continuou, algumas vozes foram silenciadas. Em janeiro de 1967 foi editada, em caráter especial, a revista REALIDADE (atual revista Veja). A publicação revelava o perfil da mulher que acabava de nascer no seio da dita revolução sexual. Em seu conteúdo temos a possibilidade de encontrar elementos norteadores dessa geração, tão surpreendente aos olhos da época, que não durariam muito tempo nas bancas. REALIDADE chegava ás bancas, tradicionalmente, dois ou três dias antes do mês anotado na capa. Poucas horas depois da distribuição de metade dos 400 000 exemplares, em 30 de dezembro de 1966, uma sexta-feira começou a ser recolhida das bancas pelas viaturas do serviço de vigilância e ronda especial da polícia, com apoio da Delegacia de costumes de São Paulo. Os 231 600 exemplares que ainda estavam empilhados na gráfica também foram confiscados- depois seriam confiscados. (Veja- junho de 2010, p.13). Com reportagens principais levando títulos sugestivos, como ‘O que elas querem?’, ‘Confissões de uma moça livre’, ‘Eu me orgulho de ser mãe solteira’, ‘Por que a mulher é superior?’ e ‘Assista a um parto até o fim’, a revista escandalizou autoridadesque viram nela obscenidades e imoralidades, dando ênfase principal as incomodas sete páginas que descreviam minuciosamente um parto natural: “Nasceu!”, com texto de Narciso Kalili e fotos de Cláudia Andujar, que retratava um parto em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Numa das fotografias, 10 Preta, a grávida, já está na cama, segundos antes de dar à luz uma menina. As pernas estão afastadas, nota-se a cabecinha do bebê apontando. Os editores de REALIDADE, ao verem a imagem pela primeira vez foram quase unânimes: “Vai dar encrenca”. (Veja- junho de 2010, p. 14). Presume-se que o ataque aos conteúdos da revista em questão tenha apontado para uma conduta androcêntrica e pouco receptiva a mudanças não somente por condenar a postura da mulher, mas por negar o acesso a informações para toda uma sociedade que, além da revolução sexual, estava muito próxima de sofrer com outra guerra: o terrorismo que seria imposto nos anos seguintes pela ditadura militar. 3 Sexo Frágil? Mito! “Dizem que a Mas Eu mulher que que faço é o sexo mentira parte da rotina frágil absurda de uma delas Sei que a força está com elas” (Mulher Sexo Frágil- Erasmo Carlos, 1982) Ao observarmos o ritmo do século XX, época fortalecida por movimentos feministas, em que a mulher definitivamente conquista o acesso à cidadania através do trabalho remunerado, das escolhas sexuais e reprodutivas e do direito à educação em todos os níveis, destacamos o imensurável potencial do gênero para o desenvolvimento da sociedade em praticamente todos os setores. Como corrobora Ana Alice Alcântra Costa (2009) [...] as mulheres brasileiras incorporadas à produção social representavam uma 11 parte significativa da força de trabalho empregada, ocupavam de forma cada vez mais crescente o trabalho na indústria, chegando a constituir a maioria da mão-de-obra empregada na indústria têxtil. Influenciadas pelas ideias anarquistas e socialistas trazidas pelos imigrantes espanhóis e italianos, já se podiam encontrar algumas mulheres incorporadas às lutas sindicais na defesa de melhores salários e condições de higiene e saúde no trabalho, além do combate a abusos a que estavam submetidas por sua condição de gênero. (p.55) Faz-se necessário, a partir dessa concepção, elucidarmos os conceitos incorporados ao movimento feminista, especificamente quando falamos do final dos anos 1960 e início da década de 1970, em que esse não ocorreu como fato isolado. Entendemos aqui que o feminismo nesse período caracterizava-se como um movimento social e essencialmente moderno, visto que além de promover discursos sobre gênero, não levando em conta somente a divisão biológica entre os sexos, mas os seus respectivos posicionamentos políticos, transita por questões de cunho público e de justiça. Ainda é possível comentarmos a militância feminista da época através do olhar de Marlise Matos (2010), quando a autora menciona em seu texto, não somente o feminismo focado em seu formato contemporâneo, temática central do artigo, mas quando traz o movimento em sua forma mais participante e, por isso mesmo, mais perseguida, afinal é nesse momento que ele surge como grande defensor da classe feminina e operária Anos 1960/1970/ Feminismo e o Capitalismo Estatista Ditatorial Militarizado da América Latina: O feminismo estabelece parâmetros de resistência à militarização e aos abusos de arbitrariedades políticas mesmo no âmbito do “desenvolvimento” autoritário militar. O feminismo é contra o androcentrismo exacerbado. Luta para incorporar a justiça política no capitalismo estatal e contra o estado ditatorial masculino e militarizado. (p. 81) 12 Embaladas, não somente pelos gritos proferidos durante a “Queima de Sutiãs” em praça pública7, mas pela força de movimento que mobilizou toda uma geração, milhares de mulheres “atreveram-se” a participar do mundo, sentindo-se também parte dele. E é a partir dessa herança que a mulher pósmoderna começa a se estruturar. 4 Seu lugar no mundo no mundo pós-moderno De tudo ficaram três coisas: a certeza de que sempre estava começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo, fazer da queda, um passo de dança, do medo, uma escada, do sonho, uma ponte, da procura, um encontro. Fernando Pessoa É impossível separarmos, no século XXI, as questões relacionadas ao gênero 7 Conforme descreve a edição de número 196 (janeiro de 2004) da Revista Superinteressante, no dia 7 de setembro de 1968, enquanto Jordi Ford era eleita Miss América e, do lado de fora do teatro, uma centena de mulheres gritava lemas de protesto, a história eternizava um episódio que, na realidade, nunca aconteceu: a queima de sutiãs em praça pública. Para protestar contra a ditadura da beleza que estava sendo imposta às mulheres de seu tempo - o degradante símbolo burro-peitudo-feminino, como dizia o manifesto divulgado naquele dia mulheres de vários estados americanos saíram às ruas de Atlantic City levando símbolos de feminilidade da época: cílios postiços, revistas femininas, sapatos de salto alto, detergentes e sutiãs. Elas organizaram uma "lata de lixo" onde todos os apetrechos seriam queimados. Mas a queima não chegou a ocorrer. “A prefeitura não autorizou o uso de fogo”, dizia a feminista americana Amy Richards. 13 com a pós-modernidade8 configurada por esses sujeitos. Como falamos anteriormente, esse período vem trazer novas perspectivas ao ser humano. A mulher, nesse contexto, ganha uma liberdade maior no sentido social, saindo do papel de dona de casa para o de empregada remunerada. Porém, parece não estar preparada para participar de tal autonomia. Muitas delas precisam trabalhar para sobreviver, não para defender uma causa feminista de direitos iguais, como suscitavam em suas marchas de protesto. A liberdade, tanto de ação quanto de expressão, tão desejada pelo considerado segundo sexo, está sendo, moderadamente, conquistada. No entanto, qual é o significado real do substantivo liberdade para estas? Em 1979, quando Helleieth Safiotti (1979) intitulou seu livro A Mulher na sociedade de classe: Mito e Realidade, já presumia-se que a relação do gênero feminino com o mundo do trabalho poderia elencar situações conflituosas, visto que, nem sempre ou na maioria das vezes, a atividade remunerada não lhe garantia independência ou liberdade, e a superioridade masculina continuava instaurada O aparecimento do capitalismo se dá, pois, em condições extremamente adversas à mulher. No processo de individualização inaugurado pelo modo capitalista, a mulher contaria com uma desvantagem social de dupla dimensão: no nível superestrutural era tradicional uma subvalorização das capacidades femininas traduzidas em termos de mitos justificadores da supremacia masculina e, portanto, da ordem social que a gerara; no plano estrutural, à medida que se desenvolviam as forças produtivas, a mulher vinha sendo progressivamente marginalizada das funções produtivas, ou seja, perifericamente, situada no sistema de produção. (p. 35) Remetendo-nos ainda a situações de dependência, teremos uma 8 Período que teve início aproximadamente na década de 1960. Este destaca-se pelo desenvolvimento das análises psicológicas dos sujeito, bem como preocupa-se com a abordagem direta dos problemas sociais e existências da sociedade. Podemos dizer que se trata de um período que inaugurou tendências que praticamente chegam até os dias atuais. 14 melhor ideia dessa relação construída entre os gêneros a partir do que nos propõe a leitura de Marcela Lagarde (2005). A autora descreve de maneira precisamente particular o contexto feminino, encarando-o como um “cativeiro”. Em “Los Cautiveiros de las mujeres: Madresposas, monjas, putas, presas e locas”9, a antropóloga analisa a personalidade feminina do nosso século de modo a caracterizá-la como um ser, que apesar das inúmeras conquistas parece estar em permanente prisão "Assim, todas as mulheres são reféns de seu corpo-para-outro, de procriação ou erótico, e seu ser-para-outro, vivida como sua necessidade de relações de dependência vital e submissão ao poder e à outros. Todas as mulheres, bem ou mal, tal como definido pela norma, são politicamente inferiores aos homens e entre si. Por seu-ser de si para-outros, filosoficamente definidas como entidades incompletas, como território, pronto para ser ocupado e dominado por outros no mundo patriarcal.” (p. 41) 5 “A” Sujeito do Proeja- fic “No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. 9 O livro apresenta cinco definições diferentes do estereótipo feminino: as madresposas – possuem uma sexualidade reprodutiva e relação de dependência vital, por meio da maternidade e do matrimônio; as monjas – são mães universais e estabelecem vínculo conjugal sublimado com o poder divino; as putas – concretizam o desejo feminino negado. Especializam-se social e culturalmente na sexualidade proibida. Encarnam a poligamia feminina e são o objeto da poligamia masculina; as presas – concretizam a prisão genérica de todas as mulheres, tanto material como subjetivamente: a casa é privação de liberdade. Sua prisão é exemplar e pedagógica para as demais; e enfim as loucas – atuam na loucura genérica de todas as mulheres, cujo paradigma é a racionalidade masculina. 15 Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra (Carlos Drummond de Andrade) Ponto primordial do trabalho em questão, após evidenciarmos todos os aspectos que a envolveram historicamente, chegamos à análise da representação da figura feminina no PROEJA-fic10. Porém para que participemos da vida dessas criaturas singulares, precisamos entender os elementos que norteiam essa modalidade de ensino da qual elas fazem parte, bem como compreender quais são seus objetivos através de seu documento base. Cabe aqui ainda avaliarmos, através da pesquisa realizada, algumas questões, referidas ao gênero como a evasão da escola no período regular, as perspectivas a partir de sua volta aos bancos escolares, suas vivências e a possibilidade e vontade por mudanças. 5.1 A política do programa Com o intuito de promover uma política de inserção social emancipatória, o programa deEducação Profissional de formação inicial e continuada com o Ensino Fundamental na modalidade Educação de Jovens e Adultos, procura desenvolver plenamente o educando, lhe proporcionando uma formação profissional aliada a uma escolarização básica de qualidade, preparando-lhe, desse modo, para o mercado de trabalho, bem como para o exercício da cidadania, da ética e do conhecimento de mundo. Temos a possibilidade de compreender tais afirmações através de seu Documento Base (2007) 10 Educação Profissional/formação inicial e continuada com o Ensino Fundamental na modalidade Educação de Jovens e Adultos 16 Essa vinculação entre educação escolar e mundo do trabalho encontra-se detalhada no Decreto nº 5.154/2004, que regulamenta o capítulo III da LDB, ao considerar que a formação inicial e continuada de trabalhadores se constitui por cursos ou programas de Educação Profissional que “articular-se-ão preferencialmente com os cursos de Educação de Jovens e Adultos, objetivando a educação para o trabalho e a elevação do nível da escolaridade do trabalhador, o qual, após a conclusão com aproveitamento dos referidos cursos, fará jus a certificados de formação inicial ou continuada para o trabalho”. (p. 21) Além das pretensões observadas que dizem respeito à profissionalização do sujeito, notamos a preocupação do programa em reconhecer esse educando, neste caso inclusive remetendo-se a figura feminina, suas limitações e problemas que determinam sua realidade, buscando assim resgatá-lo e envolvê-lo em uma atmosfera nova e significativamente positiva Os estudantes do ensino fundamental na modalidade EJA são pessoas para as quais foi negado o direito à educação, durante a infância ou adolescência: homens e mulheres, brancos, negros, índios e quilombolas, trabalhadores empregados e desempregados, filhos, pais e mães, moradores dos centros urbanos e das áreas rurais. Algumas dessas pessoas nunca foram à escola ou dela tiveram que se afastar em função da entrada precoce no mundo do trabalho ou mesmo por falta de escolas. A maioria daquelas que já passou pela instituição escolar carrega uma história marcada por numerosas repetências e interrupções. Entretanto, observa-se que, quando retornam à escola,levam significativa gama de conhecimentos e saberes construídos ao longo de suas vidas. (p. 18) 17 5.2 A pesquisa Para complementar o processo de conhecimento do universo feminino, agora observando-as como educandas na modalidade em questão, foi desenvolvida uma pesquisa de ordem qualitativa com a turma de PROEJA-Fic da Escola Municipal Ulysses Leonel de Gasperi11, com técnico em corte e costura, em parceria com o Instituto Federal de Bento Gonçalves e a Cidadão Atitude. Deve-se mencionar que as investigações foram divididas em dois momentos: observação de uma aula de marketing no Instituto Federal; a distribuição de questionário com dez perguntas, realizado com 11 mulheres, seguido de conversa informal. É evidente que a turma apresentava-se predominantemente feminina, afinal como mandam os preceitos culturais, principalmente em nossa região, o curso profissionalizante a que estavam destinados a concluir, Corte e Costura, está diretamente ligado as funções atribuídas às mulheres. Contudo, os poucos homens que faziam parte dessa aula de marketing mostravam-se a vontade com a supremacia feminina, o que vem de encontro ao contexto atual. A partir do que coletamos em observações e conversas, sentimos a necessidade de categorizar a fala dessas jovens senhoras, visto que a riqueza das expressões e impressões reveladas aponta para uma construção significativa entre o gênero, a família, o trabalho e a vida delas. Não podemos deixar de mencionar ainda que estas não possuíam mais a vivacidade ou beleza de uma Vênus12, entretanto sob as feições humildes e preocupadas escondiam-se mulheres dispostas a transformações. 5.2.1 Vida familiar 11 Escola localizada no bairro Municipal, periferia de Bento Gonçalves. Deusa da beleza apresentada na pintura do renascentista Botticelli em O Nascimento de Vênus. 12 18 Atrelada a todas as questões que envolvem o abandono escolar ou o retorno à mesma, certamente as relacionadas à família e a vida conjugal aparecem como as mais decisivas. Nos relatos descritos em conversas informais, a maioria das pesquisadas declarou que só pensaram na possibilidade de voltar a estudar após terem seus casamentos ou laços afetivos mais duradouros terminados, ou pela necessidade de ter de cuidar de seus familiares, antes mesmo do matrimonio: “Fui casada por 14 anos e só vivia para o meu marido e para meus filhos, agora separada, tenho a oportunidade de voltar à escola e realizar alguns sonhos adormecidos”. (Ana Terra13, 33 anos) “Sou separada e tenho três filhos, de 13, 16 e 33 anos, e me sinto muito bem estudando nessa fase nova da minha vida”. (Lucíola, 48 anos) “Precisei ficar com a minha família em casa, não tinha como ir para aula” (Bibiana, 50 anos) Percebemos, nos depoimentos aqui revelados por Ana Terra e Lucíola, que essas mulheres realmente acreditam que casamento e vida escolar são fatos isolados e que jamais podem estar acontecendo no mesmomomento cronológico. Acreditamos que tal pensamento venha e permaneça nessas situações devido a toda bagagem histórica carregada pelo gênero, principalmente as apontadas no texto que discorre. Poderíamos nesse momento compará-las as madresposas analisadas por Lagarde (2005), que nasceram para servir a família, anulando-se. Entendemos, entretanto, que tais decisões podem ter partido de suas vontades próprias, da aceitação consentida e não pela imposição masculina tão referida e que as transformam em vítimas sociais. 13 Foram utilizados pseudônimos referentes a personagens da literatura clássica para identificação das entrevistadas em questão. 19 A concepção das entrevistadas define ainda o perfil de uma geração que teve, ou acreditou ter, perspectivas anuladas pela postura androgênica da época em que nasceram. Notamos esse fato inclusive pela fala deBibiana. Em nossas conversas, ela descreveu que por ser a menina mais velha da casa (a menina, pois tinha irmãos homens mais velhos do que ela), precisava cuidar das crianças e dos afazeres domésticos enquanto os pais trabalhavam nas lidas da colônia. Por tais motivos, não havia como contestar, acreditamos, nesse caso, que a decisões sobre sua vida não dependiam dela. Assim, apesar da vontade em permanecer na escola, a necessidade de afastar-se dela era maior. À volta ao ‘colégio’, por sua vez, também é algo comemorado pela família. Agora mais maduras e não mais tão dependentes, sentimental ou economicamente falando, as jovens senhoras mencionadas encontram nas palavras de sua gente o incentivo confortável e necessário para (re) nomearem-se alunas: “Eu tive muito incentivo da minha família”. (Iracema, 40 anos) “Estou muito feliz de estar aqui, mesmo tendo que deixar meus filhos em casa, eles sabem que é bom para mim”. (Lucíola, 48 anos) 5.2.2 Mundo do Trabalhado A proposta de estudar e ainda participar de um curso técnico em corte e costura, também parece ser atraente ao público em questão. A possibilidade de especializar-se em uma atividade remunerada significa não somente um provável emprego, mas também é, inegavelmente, uma forma de abandonar, total ou parcialmente, a condição de dependência financeira, “[...]então eu vim atrás do curso profissionalizante”. (Lucíola, 48 anos) Do mesmo modo como a família teve influência na vida dessas 20 mulheres enquanto alunas, o trabalho também veio ao encontro das questões relacionadas à evasão escolar no período considerado regular. Determinante este, que provavelmente tenha se dado ao fato de possuírem uma situação financeira precária. Não podemos deixar de destacar ainda que tais perspectivas fizeram encurtar infância dessas meninas: “Não podia ir para o colégio porque a gente morava e trabalhava na colônia” (Ana Terra, 33 anos) “Eu fui trabalhar com 8 anos.” (Capitu, 35 anos) “E eu, trabalhava na roça.” (Macabéa, 59 anos) Apesar da inegável mistura de mágoa e falta de opção explicitada nas falas educandas, observamos que as mesmas orgulham-se desse período das suas vidas, visto que isso parece lhes ter fortalecido como cidadãs, todavia suas expressões demonstram certa rigidez de sentimentos em virtude do início precoce no mundo do trabalho. Não poderíamos aqui deixar de mencionar Paulo Freire (2008), mesmo por esse ter sido questionado em algumas de suas obras por referir-se ao sujeito de modo masculinizado. O autor é enfático ao descrever a importância do(a) sujeito possuir autonomia, apoderar-se de conhecimento e agir a partir desse conhecimento. Assim poderá, estudando, trabalhando, envolvendo-se, transformar sua história e sua condição Homens e mulheres, ao longo da história, vimo-nos tornando animais deveras especiais: inventamos a possibilidade de nos libertar na medida em que nos tornamos capazes de nos perceber como seres inconclusos, limitados, condicionados, históricos. Percebendo sobretudo, também, que a pura percepção da inconclusão, da limitação, da possibilidade, não basta. É preciso juntar a ela a luta política pela transformação do mundo. A libertação dos 21 indivíduos só ganha profunda significação quando se alcança a transformação da sociedade. (p. 100) 5.2.3 Mundo da vida A ideia que move essa pesquisa diz respeito a esse último item relacionado. São inquestionáveis e visíveis as transformações vivenciadas por essas corajosas mulheres desde que aceitaram o desafio de encarar tardiamente, ou não, a sala de aula e todas as implicações e anseios que essa revela: “Eu gosto da sala porque estou aprendendo um monte de coisas novas e gosto também do convívio com meus colegas”. (Lucíola, 48 anos) “É bom né, uma oportunidade de melhorar”. (Julieta, 38 anos) “Na sala, quando eu não entendo posso perguntar para aprender”. (Dulcinéia, 30 anos) “Sabe que eu me sinto até mais importante e até um pouco mais vaidosa? Com o que a gente aprendeu a gente pensa e analisa: não vou mais comprar coisas que só vão estorvar em casa, eu nem sabia o que era marketing, mas agora eu sei”. (Macabéa, 59 anos) “Nossa! Para mim é muito importante a escola, é meu objetivo e me faz falta”. (Ana Terra, 33 anos) “Estudar mudou a minha vida, fiz novas amizades”. (Capitu, 35 anos) “Voltei para aprender a ler.” (Capitu, 35 anos) 22 Partindo do princípio de que todas as mudanças ocorridas desde o ingresso a modalidade em questão foram positivas para nossas especiais alunas, acreditamos que a educação de fato é transformadora, e não estamos falando aqui somente do caráter educativo. Temos essa visão diante da percepção de alguns apontamentos referidos pelas entrevistadas como a elevação da autoestima, a socialização e a própria alfabetização. Mencionar que a educação é emancipadora seria rotineiro se remetermo-nos a bibliografias sobre a questão, porém quando temos a possibilidade de vivenciar junto aos educandos, especialmente a estas a que nos dispomos a acompanhar, visualizamos essa verdade. No depoimento deMacabéa, sentimos que a singularidade presente no ato de aprender a fez enxergar o mundo sob uma nova perspectiva, agora ela pode observar-se como sujeito(a) atuante e capaz. Ao verificarmos a fala de Lucíola, também entendemos o quão valioso é para elas sentirem-se parte do mundo, participar dele, sendo crítica e, principalmente, socialmente aceitas pelos professores ou colegas que se encontram nas mesmas condições de busca pelo conhecimento e, o mais importante, pelo autoconhecimento. Sem maiores motivos do que o simples, ou imenso, fato de voltar a escola para aprender a ler e a escrever, voltamo-nos aos dizeres de Capitu. Em pleno século XXI, com todas as alterações mundanas que já abordamos neste texto, é complicado aceitarmos que uma mulher tão jovem não tenha tido acesso a alfabetização. Esse viés nos mostra o quão equivocados ou atrasados estamos com relação a educação, porém acreditamos que essa problemática também seja de ordem política e social. Contudo, Capitu veio realizar, o que segundo ela, é um sonho [...]concretização é sempre processo, e devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica, etc.[...] O 23 sonho é assim uma exigência ou uma condição que se vem fazendo permanentemente na história que fazemos e que nos faz e refaz. (Freire, 2008, p. 99) Conclusão Quando a temática ‘mulher’ é abordada em projetos ou trabalhos de pesquisa temos a sensação de que tudo se sabe a respeito da mesma, bem como se entende que a sua saga, não é novidade para ninguém. Porém, o universo feminino esconde um leque inesgotável de possibilidades e interpretações. A quem diga que elas são divinas e a quem as considere criaturas nascidas do inferno. Historicamente falando, a primeira imagem que se presente, ao relatarmos o gênero em questão, é a de sua trajetória de submissão involuntária e invisibilidade projetada ao longo dos séculos. Outro aspecto que nos remete a esse universo apresenta o modo como eram educadas e tratadas dentro da instituição família. Sem maiores perspectivas, toda menina desejava ser uma boa esposa e reproduzir sua espécie numerosamente, sendo assim vista com bons olhos pela sociedade cristã. Mesmo nessa perspectiva, o desenvolvimento e a transformação pelo qual o mundo participa na fase moderna e pós-moderna, concedem ao ser humano uma mudança de pensamento e princípios, principalmente os relacionados ao sexo feminino. As mulheres apáticas dão espaço a criaturas mais ousadas e comunicativas, reflexos do momento que vieram para “intimidar” a masculina. O contexto apresentado até então, evoca inúmeras representações: papéis, modelos de comportamentos, mitos, expectativas sociais, afetos, tabus, moralidade, entretanto, hoje pode-se dizer que a mulher conquistou um lugar privilegiado com relação à pesada bagagem que carregou ao longo dos 24 séculos. Porém se analisarmos profundamente a questão, entenderemos que ela continua sujeita a preconceitos ligados a seu gênero, inclusive por parte dela, infelizmente. Pretendemos aqui finalizar nossa escrita, visualizando a capacidade de superação dessas “sujeitas” do PROEJA, afirmando que a valorização que as mesmas atribuem à escola, deixa claro que essa tem caráter transformador e humanizador “A estrutura social é obra dos homens e que se assim for, a sua transformação será também obra dos homens. Isto significa que sua tarefa fundamental é a de serem sujeitos e não objetos da transformação. Tarefa que lhe exige, durante sua ação sobre a realidade, um aprofundamento de sua tomada de consciência da realidade, objeto de atos contraditórios daqueles que pretendem mantê-la como está e dos que pretendem transformá-la.”( Freire, 2008, p. 48) Afinal, como destacaram nossas mulheres, o curso profissionalizante é inegavelmente importante, contudo, a troca de experiências entre as mais diversas faixas etárias, as relações de afetividade construídas nos bancos da sala de aula, e a vontade de mudar, vão muito além e constroem cidadãos com criticidade respeitada e mulheres autônomas, que deixam cair seus véus e mostram seus tornozelos. Referências bibliográficas ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. 279 p. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 2 v. BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação profissional e 25 Tecnológica. 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