revista de historia - Pensando a História
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revista de historia - Pensando a História
- •REVISTA DE HISTORIA — IFCH UNICAMP INVERNO - i991 .1 DOSSIÊ :z 1 1C%1 História Narrativa;_H.Whte D. Lacapra, C. Ginsburg, L. - Tema em Questão: Movimentos Sociais Esta posição, apesar de reunir tradições diferentes, contrariamente anterior, provém de uma mesma posição genérica, qual seja. a dos conceptualistas. Apesar desta coincidência, no que diz respeito ao debate sobre a narrativa histórica, estas posições divergem. No marxismo inglês, a narrativa não se afasta de sua tarefa científica: enquanto na tradição dos annale, da qual se aproxima Veyne, a narrativa é a condição do que escapa a ciência - movimento das posições. É importante fazer notar o movimento expresso por este debate, o qual procuramos sintetizar assinalando a imbricação. entre ‘posições genéricas’ e ‘posições específicas’. Existe, na verdade, um relacionamento não só sincrônico, mas também diacrônico e que diz respeito à evolução própria ao debate. Com efeito, o tema da narrativa só mais recentemente surge como o momento crucial em um debate mais amplo, e mais antigo, sobre a cientificidade da história. Anteriormente, o paradigma provinha das demais ciências físicas e as discussões se pautavam, em geral, pela inventar ação das diferenças entre seus diversos ramos. Já quando a narrativa irrompe como foco privilegiado. Isto se dá positivamente, isto é, o que passa a estar em pauta é o próprio paradigma de cientificidade e não meramente seus desvios. Assim, a história, que possui uma face narrativa latente, passa a dar lugar à presentificação de uma discussão que caminha das demais ciências para o seu interior, sem deixar, no entanto, de transcrever, com este deslocamento para dentro, a teriátic geral da crise do paradigma de cientificidade. O RFSSURGIMENTO DA NARRATIVA REFLEXÕES SOBRE UMA NOVA VELHA HISTÓRIA Os historiadores sempre contaram estórias, desde Tucídides e Tácito a Gibbon e Miraulay, a composição de uma narrativa em prosa viva e elegante sempre foi considerada como sua maior ambição. A história era vista como um ramo da retórica. Nos últimos cinquenta anos, porém. essa função de contar estórias adquiriu uma reputação negativa entre os que se consideram a si mesmos na vanguarda da profissão. os praticantes da chamada “nova história” do período posterior à Segunda Guerra Mundial. Na França, o contar estórias foi desqualificado como "histoire énementielle”. Agora. Porém, vejo sinais de uma tendência subterrânea que vem atraindo muitos ‘novos historiadores importantes de volta para alguma forma de narrativa. Antes de iniciar um exame das indicações de tal mudança e de avançar algumas especulações sobre suas possíveis causas, seria melhor esclarecer uma série de coisas. A primeira é a acepção em que aqui se entende a “narrativa”. A narrativa aqui designa a organização de materiais numa ordem de sequência cronológica e a concentração do conteúdo numa única estória coerente, embora possuindo sub-tramas. A história narrativa se distingue da história estrutural por dois aspectos essenciais: sua disposição é mais descritiva do que analítica. Utiliza-se nesta tradução o pouco consagrado estona, para manter a distinção com a história, conforme o uso de ator/ e historia no original. Não se deve confundir esses novos historiadores recentes com os novos historiadores americanos de uma geração anterior, como Charles Beard e James Harvey Robinson. ‘Sobre a história da narrativa, ver L. Gosséia, Augustin Thierry and Liberal Historio. raphy’ Hi.toq, a’id Theory. Beihefl XV. 1979. 14. White: MctaAi,or: TI,e Hi,toncoj I,nagirration in lhe Nineteenth Cenury. Baltimore,1973. Agradeço ao professor Randolph Starn por chamar minha atenção para este último Lawrence Stone I ) Ninguém está sendo instado a jogar fora sua calculadora e contar uma estória e seu enfoque central diz respeito ao homem, e não às circunstâncias. Portanto, ela trata do particuIar e do específico. de preferência ao coletivo e ao estatístico. A narrativa é uma modalidade de escrita histórica modalidade esta. porém. que também afeta e é afetada pelo conteúdo e pelo método. O tipo de narrativa em que estou pensando não é o do simples cronista ou analista de coisas passadas. E a narrativa orientada por algum “princípio fecundo”. e que possui um tema e um argumento. O tema de Tucídides eram as guerras do Peloponeso e seus efeitos catastróficos sobre a sociedade e a política gregas: o de Gibbon e o declínio e queda o Império Romano: o de Macaubal. o surgimento de uma disposição participativa liberal nas correntes da política revolucionária. Os biógrafos contam a estória de uma vida, desde o nascimento até a morte. Nenhum historiador narrativo, no sentido em que aqui os define, deixa a análise totalmente de lado. mas ela não constitui o arcabouço de sustentação em torno do qual constroem sua obra. E, por fim, eles estão profundamente preocupados com os aspectos retóricos de sua apresentação. Quer suas tentativas dêem certo ou não, eles certamente pretendem alcançar concisão, espírito e elegância estilística. Não se contentam em lançar palavras numa página e ali deixá-las, pensando que, na medida em que a história é uma ciência, dispensa o auxilio de qualquer arte. Não se deve considerar que as correntes aqui identificadas se aplicam a grande massa dos historiadores. O que se tenta é apenas assinalar uma mudança perceptível de conteúdo, método e estilo entre uma parcela muito reduzida, mas desproporcionalmente destacada, da profissão histórica como um todo. A história sempre teve muitas sedes e assim deve continuar para prosperar no futuro. O triunfo de um gênero ou escola sempre acaba levando a um sectarismo estreito, ao narcisismo e autobajulação, ao desprezo ou tirania em relação aos de fora. e outras características desagradáveis e contraproducentes. Todos nós conhecemos exemplos disso. Em alguns países e instituições, foi pernicioso que, nos últimos trinta anos, os novos historiadores” tenham conseguido se impor de tal maneira, e será igualmente pernicioso se a nova corrente, se é que é uma corrente, alcançar, aqui e ali, um mesmo tipo de dominação. E também fundamental estabelecer de uma vez por todas que este ensaio tenta mapear transformações observadas no estilo histórico, sem fazer juízos de valor sobre as modalidades boas e, as não tão boas, de escrita histórica. Em qualquer estudo historiográfico. é difícil evitar juízos de valor, mas este ensaio não pretende erguer qualquer bandeira nem conflagrar uma revolução. II) Antes de observar as correntes recentes, primeiramente é preciso explicar o abandono, por parte de muitos historiadores, há cerca de cinquenta anos atrás, de uma tradição que, durante dois séculos, encarou a narrativa como modalidade ideal. Em primeiro lugar. apesar de acaloradas afirmativas em contrário. reconheceu-se amplamente, com certa razão, que as respostas de tipo cronológico a perguntas sobre o quê e como, mesmo que orientadas por um argumento central, de fato não avançam muito para responder a perguntas sobre o porquê. Além disso. naquela época. os historiadores se encontravam sob a forte influência tanto da ideologia marxista, quanto da metodologia das ciências sociais. Por decorrência estavam interessados em sociedades. e não em indivíduos, e confiavam que se poderia chegar a uma “a história científica” que, com o tempo criava leis generalizadas para explicar a transformação histórica. Neste ponto, devemos parar mais uma vez e definir o que se entende por “a história científica”: A primeira a história científica” foi formulada por Ranke no século XIX.” e se baseava no estudo de novas fontes. Acreditava-se que a detalhada crítica textual de registros até então intocados, enterrados em arquivos oficiais, estabeleceria definitivamente os fatos da história política Nos últimos trinta anos, apareceram três tipos muito diferentes de “história científica”, correntes na profissão, todos baseados não em novos dados, mas em novos modelos ou novos métodos: o modelo econômico marxista, o modelo ecológico-demográfico francês e a metodologia “cliométrica” americana. Segundo o velho modelo marxista, a história avança num processo dialético de tese e antítese, através de um conflito de classes, elas mesmas criadas por uma transformação no controle sobre os meios de produção. Nos anos 1930, essa idéia resultou num determinismo econômicosocial bastante simplista, que afetou muitos jovens estudiosos da poca. E uma noção de “história científica” que foi firmemente defendida por marxistas até o final dos anos 1950. Deve-se notar, porém. que a atual geração de “neo-marxistas’ parece ter abandonado a maioria dos princípios básicos dos historiadores marxistas tradicionais da década de 1930 Agora estão tão interessados pelo estado, a política, a religião e a ideologia quanto seus colegas não-marxistas, e nesse meio-tempo parecem ter renunciado à pretensão de estarem buscando uma “Wl’ro’a1 CIP.’1i’Ficç’. O segundo sentido da história científica” é o empregado pela escola Annales de historiadores franceses, desde 1945, entre os quais Emmannuei Le Roy Ladurie pode figurar como porta-voz, embora um tanto extremado. Segundo ele, a variável fundamental na história são as mudanças no equilíbrio ecológico entre a oferta alimentar e a população, equilíbrio este a ser necessariamente determinado por estudos quantitativos da produtividade agrícola, das transformações demográficas e preços dos alimentos na longa duração. Esse tipo de a história científica surgiu a partir de uma combinação entre um prolongado interesse francês pela geografia e demografia históricas e, de outro lado, a metodologia quantitativa. Le Roy Ladurie nos disse claramente que “a história que não é quantificável não pode pretender ser científica”. O terceiro sentido da “história científica” é basicamente americana e se baseia na pretensão, expressa em alto e bom tom pelos “cliometristas”, de que apenas sua própria metodologia quantitativa muito especial pode ter qualquer ambição de ser científica. Segundo eles, a comunidade histórica pode ser dividida em dois. Há “os tradicionalistas entre os quais incluem-se os historiadores narrativos do velho estilo, tratando principalmente da política do estado e da história constitucional, e os “novos” historiadores econômicos e demográficos das escolas Annalea e Paat anr! Presente - embora estes últimos utilizem a quantificação e os dois grupos tenham sido inimigos ferrenhos por várias décadas, principalmente na França. Totalmente à parte estão os “historiadores científicos”, os cliometristas, que se definem mais por uma metodologia do que por algum assunto ou interpretação específica sobre a natureza da transformação histórica. São historiadores que constroem modelos paradigmáticos, às vezes contra-fatuais sobre mundos que nunca existiram na vida real, e testam a validade dos modelos com as mais sofisticadas fórmulas matemáticas e algébricas, aplicadas a grandes quantidades de dados eletronicamente processados. Seu campo específico é a história econômica, que praticamente conquistaram nos Estados Unidos, e têm feito grandes incursões na história da política democrática recente, aplicando seus métodos ao comportamento nas votações, tanto por parte dos eleitores quanto dos eleitos. Essas grandes empreitas são, necessariamente, resultado de um trabalho de equipe, bastante parecido com a construção das pirâmides: equipes de auxiliares diligentes regem dados, codificam-nos, programam-nos e passamnos pela trituração do computador, todos sob a direção autocrática de um chefe de equipe. Os resultados não podem ser verificados por nenhum dos métodos tradicionais visto que as provas documentais estão fechadas em gravações computadorizadas particulares, não sendo expostas em notas de rodapé nas publicações. De qualquer maneira, os dados são muitas vezes expressos de uma forma tão matematicamente obscura que são ininteligíveis para a maioria dos historiadores profissionais. O único consolo para os leigos perplexos é que os membros dessa ordem sacerdotal discordam ferozmente em público sobre a validade das descobertas de cada um deles. Esses três tipos de “história científica’ em certa medida se sobrepõem, mas apresentam diferenças suficientes, e com certeza aos olhos de seus próprios praticantes, para justificar a elaboração dessa tríplice tipologia. Outras explicações “científicas” da transformação histórica granjearam prestígio durante algum tempo, e depois saíram de moda. O estruturalismo francas produziu algumas teorizações brilhantes, mas não criou uma única obra histórica importante - a menos que se considerem os textos de Michel Foucault como obras primariamente históricas, e não de filosofia moral com exemplos extraídos da história. O funcionalismo parkinsoniano, precedido pela Teoria Científica da Cultura de Malinowski, teve uma longa vida, apesar de não conseguir apresentar uma explicação sobre a transformação ao longo do tempo, e a despeito do fato óbvio de que o encaixe entre as necessidades materiais e biológicas de uma sociedade e as instituições e valores com que ela vive nunca foi perfeito e, na verdade, é freqüentemente muito precário. Tanto o estruturalismo como o funcionalismo deram idéias valiosas, mas nenhum deles chegou sequer perto de oferecer aos historiadores uma explicação científica abrangente da transformação histórica. Esses três grupos principais de “historiadores científicos”, que floresceram respectivamente dos anos 1930 aos anos 1950, dos anos 1950 aos meados dos anos 1970, e dos anos 1960 ao começo dos anos 1970, tinham uma extrema confiança de que os grandes problemas da explicação histórica eram solúveis, e que eles os resolveriam com o tempo. Supunham que finalmente se apresentariam soluções inflexíveis para questões até o momento tão desconcertantes, como as causas das “grandes revoluções” ou da passagem do feudalismo para o capitalismo e das sociedades tradicionais para a modernas. Esse otimismo impetuoso, tão patente dos anos 1930 aos anos 1960, escorava-se, nos dois primeiros grupos de “historiadores científicos”, na crença de que condições materiais como as transformações na relação entre a população e a oferta alimentar, as transformações dos meios de produção e conflitos de classes, eram as forças motoras da história. Muitos, mas nem todos, consideravam os ecodesenvolvimentos intelectuais, culturais, religiosos, psicológicos, jurídicos e mesmo políticos, como meros epifenômenos. Como o determinismo econômico e/ou demográfico ditava em larga medida o conteúdo do novo gênero de pesquisa histórica, a modalidade mais adequada para organizar e apresentar os dados era a analítica, mais do que a narrativa, e os próprios dados deviam ter uma natureza quantitativa ao máximo possível. Os historiadores franceses, que na década de 1950 e 1960 encontravam-se, e à frente deste ousado empreendimento desenvolveram uma disposição hierárquica padronizada: em primeiro lugar tanto em ordem de sequência como em ordem de importância, vinham os fatos econômicos e demográficos: a seguir, a estrutura social, e em último lugar, os desenvolvimentos intelectuais, religiosos, culturais e políticos. Esses três terços eram vistos como se fossem os andares de uma casa: cada um se apóia sobre as fundações do nível inferior, mas os que estão por cima exercem pouco ou nenhum efeito sobre os de baixo. Em algumas mãos, a nova metodologia e as novas questões já eram resultados quase espetaculares. Os primeiros livros de Fernand BrudeI, Pierre Goubert e Emmanuel e Roy Ladurie figuram entre os maiores textos históricos de todos os tempos e lugares. Por si sós, justificam plenamente a adoção da abordagem analítica e estrutural por toda uma geração. O resultado, porém, foi um violento revisionismo histórico. Como apenas o primeiro terço é que importava realmente, e como o tema eram as condições materiais das massas, e não a cultura da elite, tornou-se possível falar na história da Europa Continental do século XIV ao século XVIII como “l’historie immobile”. Le Roy Ladurie argumentou que nada, absolutamente nada, mudou ao longo desses cinco séculos, visto que a sociedade se manteve obstinadamente presa em sua “eco-demografia” movimentos o Iluminismo tradicional como e o inalterada. o surgimento Neste novo Renascimento, com o estado modelo a moderno da história, Reforma, simplesmente desapareceram. Foram ignoradas as transformações maciças da cultura, arte, arquitetura, literatura, religião, educação, ciência, direito, constituição, construção civil, burocracia, organização militar, sistemas tributários e assim por diante, as quais ocorreram nos escalões superiores da sociedade durante esses cinco séculos. E a curiosa cegueira foi decorrência de uma sólida crença de que tais questões pertenciam a terceira parte, uma mera superestrutura superficial. Quando alguns estudiosos desta escola começaram, recentemente, a utilizar seis métodos estatísticos comprovados em problemas como a alfabetização, o conteúdo das bibliotecas, a ascensão e queda da devoção cristã, eles definiram suas atividades como uma aplicação da quantificação e a “te troisiéme niveau”, III) A primeira causa do atual ressurgimento da narrativa é uma desilusão generalizada com o modelo determinista econômico de explicação histórica e ‘essa tríplice disposição hierárquica dele originada. A cisão entre a história social e a história intelectual teve as mais infelizes consequências. Ambas se tornaram isoladas, estreitas, voltadas para si mesmas. Nos Estados Unidos, a história intelectual, que antes havia sido o estandarte da profissão, enfrentou tempos difíceis e, por um certo período, perdeu a confiança em si: a história social prosperou como nunca, mas seu orgulho por suas realizações isoladas não passava com o prenúncio de uma subsequente perda da vitalidade, quando começou a declinar a fé em explicações puramente econômicas e sociais. Os registros históricos agora obrigaram muitos de nós a reconhecer que existe um fluxo bidirecional extraordinariamente complexo de interações entre fatos relativos, de um lado, a população, oferta alimentar, clima, oferta monetária, preços e, de outro lado os valores, idéias e costumes. Formam, com as relações sociais de posição ou classe, uma única rede de significados. Muitos historiadores agora acreditam que a cultura do grupo, e mesmo a vontade do indivíduo, são, pelo menos potencialmente, agentes causais de transformação tão importantes quanto as forças impessoais da produção material do crescimento demográfico. Não existe nenhuma razão teórica pela qual estas últimas devam sempre determinar as primeiras, e não vice-versa, na verdade. acumulam-se as indicações de exemplos em contrário. A contracepção, por exemplo, é nitidamente tanto um produto de um estado mental quanto de circunstâncias econômicas. Pode-se encontrar a prova disso na ampla difusão da prática anticoncepcional por toda a França, muito antes da industrialização, sem grandes pressões populacionais a não em pequenas propriedade rurais, e quase um século antes do que qualquer outro país ocidental. Hoje em dia, também sabemos que a família nuclear é anterior à sociedade industrial, e que os conceitos de privacidade, amor e individualismo surgiram, analogamente, entre alguns dos setores mais tradicionais como uma sociedade tradicional, a Inglaterra no final do século XVII e começo do século XVIII, e não em decorrência de processos econômicos e sociais modernizadores de data posterior. A ética protestante foi um produto colateral de um movimento religioso espiritual, que se enraizou nas sociedades anglo-saxãs da Inglaterra e Nova Inglaterra, séculos antes que fossem necessários ritmos constantes de trabalho ou que fosse construída a primeira fábrica. Por outro lado, existe uma correlação inversa, pelo menos na França oitocentista, entre a alfabetização, a urbanização e a industrialização. Os níveis de alfabetização se revelam como guias precários para atitudes mentais “modernas” ou profissões “modernas”. Assim, os elos entre a cultura e a sociedade são de fato muito complexos e parecem variar no tempo e no espaço. É difícil não suspeitar que o declínio do engajamento ideológico entre os intelectuais ocidentais também desempenhou seu papel. Se observamos três das batalhas históricas mais renhidas e apaixonadas dos anos 1950 e 1960 - a ascensão ou declínio da nobreza na Inglaterra seiscentista, a ascensão ou queda do rendimento real do operariado, nas primeiras fases da industrialização e as causas, natureza e consequências da escravidão americana -. todas constituíam, na base, discussões ateadas por preocupações ideológicas do momento. Na época, parecia desesperadamente importante saber se a interpretação marxista estava certa ou não e por isso essas questões históricas eram relevantes e instigantes. O emudecimento da controvérsia ideológica, provocado pelo declínio intelectual do marxismo e pela adoção de economias mistas no Ocidente. Coincidiu com um declínio no ímpeto da pesquisa histórica em levantar as grandes questões sobre os porquês, é plausível sugerir que existe alguma relação entre as duas tendências. O determinismo econômico e demográfico sofreu um enfraquecimento devido ao reconhecimento das idéias, da cultura e mesmo da vontade individual como variáveis independentes. Mas não só. Foi minado também pelo reconhecimento, recuperação uma vez mais, de que o poder político e militar, o uso da força bruta, têm determinado com freqüência a estrutura da sociedade, a distribuição da riqueza, o sistema agrário e mesmo a cultura da elite. Exemplos clássicos são a conquista normanda da Inglaterra em 1066, e provavelmente as vias econômicas e sociais divergentes tomadas pela Europa Oriental, pela Europa Norte-Ocidental e pela Inglaterra nos séculos XVI e XVII. Os historiadores futuros com certeza irão criticar severamente os “novos historiadores’ dos anos 1950 e 1960 por não terem dedicado atenção suficiente ao poder, à organização e ao processo decisório políticos, aos caprichos da batalha e do cerco militar, da destruição e da conquista. As civilizações surgiram e desapareceram devido a flutuações na autoridade política e mudanças nos destinos da guerra, e é extraordinário que tais assuntos tenham sido descurados por tanto tempo por aqueles que se consideravam à frente da profissão histórica. Na prática, a grande massa dos historiadores continuou a se dedicar à história política, como sempre haviam feito, mas não é ai que, de modo geral, pensava-se residir a ponta-delança da profissão. Um reconhecimento tardio da importância do poder, das decisões políticas pessoais dos indivíduos, dos acasos das batalhas, obrigou os historiadores a voltarem à modalidade narrativa, apreciem-na ou não. Para usar os termos de Maquiavel. só se pode rir da vida ou da fortuna através de uma narrativa, ou mesmo de uma anedota, na medida em que a primeira é um atributo individual e a segunda consiste num acidente feliz ou infeliz. O terceiro desenvolvimento que infligiu um sério golpe à história estrutural e analítica é o registro misto usado até o momento em sua metodologia mais característica, a saber, a quantificação. A quantificação certamente amadureceu, e agora se firmou como uma metodologia essencial em muitas áreas da pesquisa histórica, principalmente a história demográfica, a história da estrutura e modalidade social, a história econômica e a história dos padrões e comportamentos eleitorais em sistemas políticos democráticos. Seu emprego levou a uma grande melhoria na qualidade geral do discurso histórico, ao exigir a citação de números precisos, ao invés do uso indefinido anterior das palavras. Os historiadores já não podem mais se desobrigar dizendo “mais” ou “menos” ‘“crescente em baixa” - termos que logicamente implicam comparações numéricas , sem nunca exporem explicitamente a base estatística para suas afirmações. A quantificação também fez com que o surgimento baseado exclusivamente no exemplo pareça um tanto desacreditado. Os críticos agora exigem provas estatísticas de apoio, que mostrem que os exemplos são típicos e não exceções à regra. Tais procedimentos melhoraram inqüestionavelmente a força lógica e a capacidade de persuasão do argumento histórico. E não há qualquer discordância que, sempre que for adequado, fecundo e possível a partir dos registros disponíveis, o historiador deve levá-los em conta. Existe, porém. uma diferença de gênero entre a quantificação artesanal feita por um único pesquisador, amontoando números numa calculadora de mão e montando tabelas e porcentagens simples, e o trabalho dos cliometristas. Estes se especializam na reunião de enormes quantidades de dados por meio de equipes de auxiliares, do uso do computador eletrônico para processá-los e da aplicação de procedimentos matemáticos extremamente sofisticados aos resultados obtidos. Têm-se levantado dúvidas sobre todos os estágios desse processo. Muitos questionam se os dados históricos são suficientemente confiáveis para garantir tais procedimentos e se pode confiar que as equipes de auxiliares aplicam procedimentos uniformes de codificação a grandes quantidades de documentos freqüentemente muito heterogêneos e mesmo ambíguos, se é de algum modo possível confiar que todos os erros de codificação e programação foram eliminados, e se o refinamento das fórmulas matemáticas e algébricas não acaba sendo contraproducente, na medida em que confundem a maioria dos historiadores. Finalmente, muitos se sentem perturbados pelo fato de ser praticamente impossível verificar a confiabilidade dos resultados finais, visto que têm de depender não de nota publicadas, mas de gravações computadorizadas de propriedade particular, abstraídas, por uma vez, dos dados brutos. Essas questões são reais e não desaparecerão. Todos nós sabemos de teses de doutorado, de monografias ou comunicações publicadas que empregavam as técnicas mais sofisticadas para provar o óbvio ou pretender provar o implausível. Utilizando fórmulas e linguagens que tornam a metodologia inverificável para o historiador comum. Os resultados às vezes combinam os defeitos da ilegibilidade e da trivialidade. Todos nós sabemos de teses de doutorado que definham inacabadas, pois o pesquisador não conseguiu manter sob seu controle intelectual o mero volume de coisas apresentadas pelo computador, ou que gastou tanto esforço para preparar os dados para a máquina que seu tempo, paciência e dinheiro acabaram terminando. Uma conclusão clara é seguramente que, sempre que possível, a amostragem manual é preferível e mais rápida do que passar o universo inteiro por uma máquina, além de ser igualmente confiável. Todos nós sabemos de projetos em que uma falha lógica no argumento ou a incapacidade de usar o simples bom senso viciou ou tornou duvidosas muitas das conclusões. Todos nós sabemos de outros projetos em que a falta de registro de parte de uma informação no estágio de codificação levou à perda de um resultado importante. Todos nós sabemos de outros em que as próprias fontes de informação são tão inconfiáveis que podemos ter certeza de que pouco confiáveis serão as conclusões baseadas em sua manipulação quantitativa. Os registros paroquiais são um exemplo clássico, aos quais vem se dedicando um volume de trabalho gigantesco em muitos países, e apenas parte dele é capaz de vir a produzir resultados que valham a pena. Apesar de suas realizações inqüestionáveis, não se pode negar que a quantificação não respondeu às grandes esperanças de vinte anos atrás. A maioria dos grandes problemas da história continuam tão insolúveis como sempre, se não mais. O senso comum sobre as causas das revoluções inglesa, francesa ou americana continua tão distante como sempre, apesar do enorme esforço dedicado à elucidação de suas origens sociais e econômicas. Trinta anos de pesquisa intensiva na história demográfica mais aumentaram do que diminuíram nossa perplexidade. Não sabemos por que a população deixou de crescer em inúmeras áreas da Europa entre 1640 e 1740: não sabemos por que ela voltou a crescer em 1740. e nem mesmo se a causa foi o aumento da fecundidade ou o declínio da mortalidade. A quantificação nos informou muito dobre as questões sobre o quê da demografia histórica, mas, até agora. relativamente pouco sobre os porquês. As grandes questões sobre a escravidão americana continuam tão esquivas como sempre, apesar de ter-lhes sido dedicado um caos estudos mais volumosos e sofisticados jamais elaborados, A publicação de suas descobertas, longe de solucionar muitos problemas, apenas aumentou a temperatura do debate. Ela teve o efeito benéfico de concentrar a atenção sobre problemas importantes, tais como a dieta, a higiene. a saúde e a estrutura familiar dos negros americanos sob a escravidão, mas também desviou a atenção dos efeitos psicológicos tão ou mais importantes da escravidão sobre os senhores e os escravos, simplesmente porque tais questões não podiam ser medidas por um computador. As histórias urbanas estão cheias de estatísticas, mas as tendências de mobilidade continuam obscuras. Hoje em dia, ninguém tem plena certeza se a sociedade inglesa era mais aberta ou mais móvel do que a sociedade francesa nos séculos XVII XVIII. ou nem mesmo se a nobreza ou a aristocracia estava ascendendo ou decaindo na Inglaterra antes da Guerra Civil. Atualmente, a esse respeito, nossa posição não é melhor do que a de James Harringtonita no século XVII ou a de Vaudeville no século XIX. Foram justamente aqueles projetos com as dotações de verbas mais pródigas, os mais ambiciosos na coleta de grandes quantidades de dados por legiões de pesquisadores remunerados. os mais cientificamente processados pela última palavra na tecnologia eletrônica, os mais matematicamente sofisticados na apresentação que até agora se revelaram como os mais decepcionantes. Hoje. depois de vinte anos e milhões de dólares, libras e francos, o que há para mostrar, pelo gasto de tanto tempo, trabalho e dinheiro, são apenas resultados bastante modestos. Há pilhas enormes de folhas impressas esverdeadas juntando pó nos gabinetes dos estudiosos: há muitos volumes gordos e desesperadoramente maçantes, cheios de tabelas de números, equações algébricas abstrusas e porcentagens levadas até duas casas decimais. Também existem muitas novas descobertas valiosas e algumas grandes contribuições para o conjunto relativamente pequeno de obras históricas de valor permanente. Mas, de modo geral, a sofisticação dos métodos tem mostrado a tendência a superar a confiabilidade dos dados ao passo que a utilidade dos resultados parece até certo ponto estar numa proporção inversa à complexidade matemática da metodologia e à escala grandiosa da coleta de dados. Em qualquer análise em termos dos custos e benefícios, o retorno da história computadorizada em grande escala tem, até agora, justificado apenas ocasionalmente o investimento de tempo e dinheiro, e isso tem levado os historiadores a buscarem outros métodos da investigar o passado, que lancem mais luz com menos problemas. Em 1968, le Roy Ladurie profetizou que, nos anos 1980, “o historiador que não for um programador não será nada”. A profecia não Os se cumpriu, historiadores, e portanto, muito foram menos obrigados pelo a próprio voltar ao profeta. princípio da indeterminação, ao reconhecimento de que as variáveis são tão numerosas que, na melhor das hipóteses, apenas generalizações de médio alcance são possíveis na história, como sugeriu Robert Mentor há muito tempo atrás. O modelo macro- econômico é um castelo no ar. e a “a história científica” é um mito. Explicações monocausais simplesmente não funcionam. O emprego de modelos de explicação em fede-baque, construídos em torno de afinidades eletivas weberianas, parece oferecer instrumentos de melhor qualidade para revelar algo da verdade fugidia sobre a causação histórica, especialmente se abandonamos qualquer pretensão de que essa metodologia seja, em qualquer sentido, científica. A desilusão com o determinismo monocausal econômico ou demográfico com a quantificação levou os historiadores a começarem a colocar um leque de questões totalmente novas, muitas delas antes impedidas de se mostrarem devido à preocupação com uma metodologia estrutural, coletiva e estatística específica. Um número cada vez maior dos “novos historiadores” vem tentando agora descobrir o que se passava na cabeça das pessoas no passado, e como era viver naqueles tempos, questões estas que reconduzem inevitavelmente ao uso da narrativa. Um sub-grupo significativo da grande escola francesa de historiadores, liderado por Lucien Febvre, sempre considerou as transformações intelectuais, psicológicas e culturais como variáveis independentes de importância central. Mas, por muito tempo, eles constituíram uma minoria, que ficou para trás, num distante refluxo, enquanto a maré da a história científica”, de conteúdo econômico social, de organização estrutural e metodologia quantitativa, avançava impetuosamente à frente deles. Agora. porém, os tópicos pelos quais se interessavam de repente entraram na moda. No entanto, as perguntas levantadas não são inteiramente as mesmas, visto que agora derivam freqüentemente da antropologia. Na prática, se não também na teoria, a antropologia tende a ser uma das disciplinas mais a-históricas, com sua falta de interesse pela transformação ao longo do tempo. Não obstante, ela nos ensinou como é possível elucidar de maneira brilhante um sistema social e um conjunto de valores em sua totalidade, com o uso de um método intensivo de registrar em detalhes minuciosos um único acontecimento. desde que seja situado com todo o cuidado em seu contexto global, e com todo o cuidado analisado pelo seu significado cultural. O modelo arquetípico dessa “descrição densa” é a exposição clássica de ClifTord Geertz sobre uma briga de galos bilinesa. Infelizmente, nós historiadores não podemos estar efetivamente presentes, com cadernos de anotações, gravadores e câmeras, aos acontecimentos que descrevemos, mas podemos constantemente encontrar uma multidão de testemunhas que nos digam como seriam eles. Assim, a primeira causa para o ressurgimento da narrativa entre alguns dos “novos historiadores foi a substituição da sociologia da economia pela antropologia. como a ciência social de maior influência. Uma das mudanças recentes mais impressionantes no conteúdo da história foi um aumento bastante súbito do interesse gelos sentimentos, emoções. padrões de comportamento, valores e estados de espírito. A este respeito. a influência de antropólogos como Evans-Pritchard. Clifford Geertz. Marly Douglas e Vitor Turner foi realmente muito grande. Embora a psico-história seja. até o momento, uma área em larga medida catastrófica - um deserto juncado com os destroços de refinados veículos de aço cromado que quebraram logo depois de dar a partida, a própria psicologia também influiu sobre uma geração que agora está voltando suas atenções para o desejo sexual, as relações familiares e os elos emocionais. conforme afetam os indivíduos, e para as idéias. crenças e costumes. conforme afetam o grupo. Essa alteração na natureza das questões colocadas provavelmente também está relacionada com c cenário contemporâneo dos anos 1970. Fui uma década em que os ideais e interesses mais personalizados ganharam prioridade sobre os assuntos públicos. em virtude da desilusão generalizada com as perspectivas de mudança por meio da ação política. Portanto, é plausível estabelecer uma conexão entre o súbito aumento do interesse por esses temas no passado e preocupações semelhantes no presente. Esse novo interesse pelas estruturas mentais foi estimulado pelo colapso da história intelectual tradicional, tratada como uma espécie de caça livresca de idéias remontando nas eras (que geralmente termina em Aristóteles ou Platão). Os “grandes livros” eram estudados num vazio histórico, com pouco ou nenhum esforço de situar os próprios autores ou seu vocabulário lingüístico em seus verdadeiros quadros históricos. A história do pensamento político no ocidente está agora sendo reescrita, basicamente por J.G.A.Pocock. Quentin Skinner e Bernard Bailyn. com uma reconstrução laboriosa do contexto e significado preciso das palavras e idéias no passado. e mostrando como mudaram de formas e cores no decorrer do tempo. como camaleões, para se adaptarem a novas circunstâncias e novas necessidades. Simultaneamente. a tradicional história das idéias está se dirigindo para um estudo sobre as transformações nos meios de comunicação e no público receptor. Surgiu uma nova e próspera disciplina da história da imprensa. do livro e da alfabetização. e de seus efeitos sobre a difusão de idéias e a Uma outra razão adicional para que vários “novos historiadores” estejam voltando à narrativa parece consistir na vontade de tornarem suas descobertas novamente acessíveis a um público leitor inteligente, mas não especialista, muito disposto a aprender o que revelam essas questões, métodos e dados inovadores, mas sem estômago para tabelas estatísticas indigestas, argumentos analíticos áridos e cheio de jargões. Os historiadores estruturais, analíticos e quantitativos estão cada vez mais falando apenas entre eles, e com mais ninguém. Suas descobertas aparecem em revistas profissionais ou em monografias tão caras, e com edições tão reduzidas (menos de mil exemplares), que na prática são quase que inteiramente compradas apenas por bibliotecas. E no entanto o sucesso de periódicos históricos populares, como !liatorp Today e L'histoire, demonstra que existe um grande público disposto a ouvir, e os “novos historiadores” agora estão ansiosos em falar para essa audiência, em vez de deixar que ela se alimente de manuais e biografias populares. As questões que estão sendo colocadas pelos “novos historiadores são, afinal, as que nos preocupam a todos atualmente, a natureza do poder, da autoridade e da liderança carismática. a relação entre as instituições políticas e s padrões sociais e sistemas de valores subjacentes, as atitudes frente à juventude, à velhice, à doença e à morte; o sexo, o casamento e o concubinato; o nascimento, a contracepção e o aborto; o trabalho , o lazer e o consumo desenfreado; a relação entre a religião, a ciência e a magia como modelos explicativos da realidade; a força e a direção das emoções do amor, medo, luxúria e ódio; o impacto de alfabetização e da educação sobre a vida das pessoas e o modo de encarar o mundo; a importância relativa atribuídas á diferentes grupos sociais, como a família, o parentesco, a comunidade, a nação, a classe e a raça; a força e o significado do ritual, do símbolo e do costume como formas de dar coesão a uma comunidade; as abordagens morais e filosóficas do crime e do castigo; padrões de submissão e surtos de igualitarismo; os conflitos estruturais entre classes ou grupos sociais; os meios, possibilidades e limitações da mobilidade social; a natureza e o significado do protesto popular e das esperanças milenaristas; as alterações no equilíbrio ecológico entre o homem e a natureza, as causas e efeitos da doença. São todas questões candentes na atualidade, e dizem respeito às massas, mais do que às elites. Têm maior relação com nossas próprias vidas do que os efeitos de reis, presidentes e generais mortos. Como resultado da convergência dessas correntes, um número significativo dos mais conhecidos expoentes da nova história” está atora voltando à modalidade narrativa, antes desprezada. E no entanto os historiadores - e mesmo os editores ainda parecem um pouco constrangidos com isso. Em 1979. o Psb1uIsers Weekly um órgão da categoria - elogiou os méritos de um novo livro, uma estória sobre o julgamento de Luís XVI, com essas curiosas palavras: A opção de Jordan pelo tratamento narrativo, ao invés do tratamento erudito (grifo meu) … é um modelo de clareza e síntese. O critico apreciou manifestamente o livro, mas achando que a narrativa é, por definição, não-erudita. Quando um membro ilustre da escola da ‘nova história” escreve uma narrativa, seus amigos tendem a justificá-lo, dizendo: “É claro, ele fez só pelo dinheiro”. Apesar dessas desculpas um tanto envergonhadas, as tendências na historiografia, em conteúdo, método e modalidade, são evidentes onde quer que se olhe. Depois de definhar sem leitores durante quarenta anos, o livro pioneiro de Norbert Elias sobre os costumes: The Civiliziiig Proceas foi de súbito traduzido para o inglês e o francês. Theodore Zeldin escreveu uma história brilhante da França moderna, em dois volumes, dentro de urna série de manuais, que ignora quase todos os aspectos da história tradicional e concentra-se basicamente em emoções e estudos de espírito. Philippe Ariés estudou reações ao trauma universal da morte ao longo de um imenso período de tempo. A história da feitiçaria subitamente converteu-se num setor em valorização em todos os países, o que ocorreu igualmente com a história da família, incluindo a história da infância, da juventude, da velhice, das mulheres e da sexualidade (estes dois últimos constituindo tópicos em sério perigo de padecer por um excesso de esforço intelectual). Um ótimo exemplo da trajetória que os estudos históricos vêm tendendo a descrever nesses últimos vinte anos é o caso dos interesses de pesquisa de Jean Delumeau. Ele iniciou em 1957 com um estudo de uma sociedade (Roma); prosseguiu, em 1962, com um estudo de um produto ecostônico (o alúmen’1: em 1971 sobre uma religião (o catolicismo); em 1976, sobre um comportamento coletivo (te. Pay de Cocagne): finalmente. Em 1979, sobre uma emoção (o medo). A língua francesa tem uma palavra para descrever o novo tópico - mentalité -, mas infelizmente não é muito definida, nem de fácil tradução para o inglês. Em toco caso, o contar estórias, a narração circunstanciada em grande detalhe com um ou mais “acontecimentos” baseados no depoimento de participantes e testemunhas oculares, constitui nitidamente uma maneira de recapturar algo das manifestações exteriores da mentalité do passado. A análise certamente continua a ser a parte principal do empreendimento, baseado numa interpretação antropológica da cultura que pretende ser sistemática e científica. Mas isso não pode ocultar o papel do estudo da mentalité no ressurgimento de nodalidades não-analíticas na escrita histórica, sendo uma delas o contar estórias. Evidentemente, a narrativa não é a única maneira de escrever a história da mentalité que veio a se tornar possível com a desilusão frente à análise estrutural. Torne-se, por exemplo, a brilhantíssima reconstrução de um quadro mental desaparecido. a evocação do mundo da Antigüidade tardia, por Peter Brown. Ele deixa de lado as claras categorias analíticas costumeiras: a população, a economia, a estrutura social, o sistema político, a cultura, e assim por diante. Ao invés disso, Brown constrói um retrato de um época mais à maneira de um artista pós-impressionista, lançando aqui e ali rudes manchas de cor que, se nos afastamos o suficiente, criam uma assombrosa visão da realidade, mas, examinadas de perto, dissolvem-se num borrão sem sentido. A deliberada imprecisão, a abordagem pictórica, a íntima justaposição da história, literatura, religião e arte, a preocupação pelo que se passava na cabeça das pessoas, são todas características de uma nova forma de encarar a história. O método não é narrativo, mas antes uma maneira pontilhista de escrever a história. Mas esta também recebeu um estimulo a partir do novo e interesse peb menteJité, e se tornou possível com o declínio da abordagem analítica e estrutural, que foi tão dominante nos últimos trinta anos. Houve até mesmo um ressurgimento da narração de um único acontecimento. Georges Duby ousou fazer o que, há poucos anos atrás, seria inconcebível. Ele dedicou um livro ao relato de uma única batalha Bouvines e por meio dela esclareceu as principais características da sociedade feudal francesa na primeira metade do século Xll. Cano Ginzburg nos deu um minucioso relato da cosmologia de um obscuro e humilde moleiro do norte da Itália, do início do século XVII e através dela procurou mostrar a perturbação intelectual e psicológica a nível popular, provocada pela filtragem das idéias ‘la Reforma”. Emmanuel Le Roy Ladurie pintou um quadro único e inesquecível da vida e morte, trabalho e sexo, religião e costumes, numa aldeia dos Pireneus, no início do século XV. Montalilou é significativo sob dois aspectos: em primeiro lugar porque se tornou um dos maiores best-sellers de história do século XX na trança: em segundo lugar, porque não conta uma estória direta - não há estória -, mas vagueia pela cabeça das pessoas. Não é por acaso que é esta, justamente, uma das maneiras pelas quais o romance moderno se distingue dos romances de épocas anteriores. Mais recentemente, Le Roy Ladurie contou a estónia de um único episódio cruento, em 1580, numa pequena vila no sul da França, utilizando-o para revelar as contracorrentes de ódio que vinham dilacerando o tecido social da vila. Carlo M. Cipcolla. que até então fora um dos mais férreos entre os obstinados estruturalistas econômicos e demográficos, acabou de publicar um livro mais interessado numa reconstrução evocativa das reações pessoais à terrível crise de uma epidemia, do que restabelecimento de estatísticas sobre a incidência do mal e a mortalidade. Pela primeira vez, ele conta uma estória. Eric Holsbawm descreveu a vida curta, desagradável e brutal dos rebeldes e bandidos pelo mundo, de modo a definir a natureza e os objetivos de seus “rebeldes primitivos” e “bandidos sociais”. Edward Thompson contou a estória na Inglaterra, no começo do século XVIII, entre os caçadores clandestinos e as autoridades na floresta de Windsoe, a fim de respaldar seu argumento sobre o conflito entre plebeus e nobres naquela época. O último livro de Robert Darnton conta como a grande Encyciopédie francesa veio a ser publicada, e com isso lançou inúmeras luzes novas sobre o processo de difusão do pensamento iluminista durante século XVIII. IncIusive os aspectos práticos da produção do livro e os problemas de agradar a um mercado nacional - e internacional - de idéias. Natahe Davis apresentou uma narrativa sobre quatro charivaris, isto é, práticas ritualizadas de escarmento público, em Lyon e Genebra durante o século XVII, a fim de mostrar o empenho da comunidade em impor padrões públicos de honra e decoro. O novo interesse pela mentalité foi, em si mesmo, um estímulo à volta a velhas maneiras de escrever história. O relato de Keith Thomas sobre o conflito entre a magia e a religião está montado em torno de um “princípio fecundo’, ao longo do qual se alinham inúmeros exemplos e estórias. Meu recente livro sobre as transformações na vida emocional da família inglesa é muito semelhante, se não em uma realização, pelo menos em seus propósitos e método. Todos os historiadores até aqui mencionados são estudiosos maduros. que por muito tempo estiveram associados à “nova história”, levantando novas questões. experimentando novos métodos e buscando novas fontes. Agora, estão voltando a contar estórias. Há, porém, muita diferença entre suas estórias e as estórias dos historiadores narrativos tradicionais. Em primeiro lugar, estão todos, quase sem exceção, interessados nas vidas, sentimentos e comportamentos dos pobres e obscuros, ao invés dos grandes e poderosos, segundo a análise continua a ser tão essencial em seus métodos quanto a descrição, de modo que seus livros tendem a passar, um pouco canhestramente. de uma modalidade para a outra. Em terceiro, estão abrindo novas fontes, muitas vezes registros de tribunais penais que utilizavam procedimentos do direito romano. visto que estes trazem transcrições por escrito de depoimentos completos das testemunhas interrogadas e examinadas. (O outro uso em voga dos registros criminais, para mapear o aumento e o declínio quantitativos de vários tipos de transgressão, parece-me um trabalho quase que inteiramente inútil, pois o que está sendo contado não é o número de crimes cometidos, mas o de criminosos que foram presos e processados, o que é uma questão totalmente diferente. Não há por que supor que um mantenha com o outro qualquer resquício constante ao longo do tempo.) Em quarto lugar. frequentemente. contam suas estórias de maneira diferente da de Homero, Dickens ou Balzac. Sob a influência do romance moderno e das ideias freudianas, eles exploram escrupulosamente o subconsciente. ao invés de se aferrarem aos fatos em si. E sob a influência dos antropólogos, tentam utilizar o comportamento para rever sentidos simbólicos, eles contam a estória de uma pessoa, um julgamento ou um episódio dramático, não por ele mesmo, mas para lançar luz ao funcionamento interno de uma cultura e uma sociedade do passado. Se estou certo em meu diagnóstico, o movimento em direção à narrativa por parte dos “novos historiadores” marca o fim de uma era; o fim da tentativa de criar uma explicação científica coerente sobre a transformação no passado. O determinismo econômico e demográfico faliu frente às evidências, mas não surgiu nenhum modelo determinista completo, baseado na política, na psicologia ou na cultura, para ocupar seu lugar. 0 estruturalismo e o funcionalismo não se mostraram muito melhores. A metodologia qualitativa se revelou um caniço bastante frágil, capaz de responder apenas a um leque restrito de problemas. Levados a escolher entre modelos estatísticos a priori do comportamento humano e uma compreensão baseada na observação, na experiência, no julgamento e na intuição, alguns dos “novos historiadores” agora tendem a recuar em direção à segunda modalidade de interpretação do passado. Embora o ressurgimento da modalidade narrativa por obra dos novos historiadores seja um fenômeno muito recente, ele é apenas um pequeno filete em comparação à vazão larga, constante e igualmente ilustrado de narrativas políticas descritivas de historiadores mais tradicionais. Um exemplo recente que teve uma considerável aclamação entre os eruditos é o livro de Simon Schama sobre a política holandesa no século XVIII. Obras como esta foram tratadas, durante décadas, com indiferença ou desdém quase indisfarçado pelos novos historiadores sociais. Essa atitude não era muito justificável, mas em anos recentes levou alguns dos historiadores tradicionais a adaptarem sua modalidade descritiva a novas questões. Alguns deles já não tão preocupados com questões do poder – e, portanto, com reis e primeiros-ministros, guerras e diplomacia mas, como os “novos historiadores”, estão voltando a atenção para a vida privada de pessoas totalmente obscuras. A causa dessa corrente, se é que é uma corrente, não é clara, mas a inspiração parece ser a vontade de contar uma estória e, com isso, revelar as peculiaridades da personalidade e a interioridade das coisas numa época e numa cultura diferentes. Alguns historiadores tradicionais já fazem isso há algum tempo. Em 1958, G. R. Elton publicou um livro composto de estórias de tumultos e agressões físicas na Inglaterra quinhentista, extraídas dos registros da Câmara Estrelada. Em 1946, Hug Trevor-Roper reconstruiu de maneira brilhante os últimos dias de Hitler. Recentemente, ele investigou a carreira extraordinária de um inglês relativamente obscuro, colecionador de manuscritos, vigarista e pornógrafo secreto, que morou na China nos primeiros anos deste século. O propósito de escrever essa divertida invencionice era, pelo visto, o puro prazer em contar estórias por elas mesmas, seguindo e capturando um espécime histórico bizarro. A técnica é quase igual à que foi utilizada, anos atrás, por A.J.A. Symons, em seu clássico The Quest for Corvo, ao passo que a motivação parece muito semelhante à que inspira Richart Cobb, ao registrar em horríveis detalhes a vida e morte miserável de criminosos, prostitutas e outros desajustados sociais no submundo da França revolucionária. Muito diferentes em conteúdo, método e objetivo são os textos da nova escola britânica de jovens empiristas antiquaristas. Eles escrevem narrativas políticas pormenorizadas, que implicitamente negam que exista qualquer sentido profundo na história, além das excentricidades fortuitas do destino e da personalidade, liderados por Conrad Russell e John Kenyon, impelidos por Geoffrey Elton, agora estão ocupados em tentar remover qualquer sentido ideológico ou idealista das duas revoluções seiscentistas inglesas. Não há dúvida que esses ou outros como eles, logo voltarão suas atenções para outra parte. Embora suas premissas nunca sejam apresentadas explicitamente, suas abordagens são puramente neo- Namieristas, numa época em que o namierismo, enquanto forma de encarar a política setecentista inglesa está morrendo. Fica-se a imaginar se a atitude deles em relação à história política não pode brotar subconscientemente de um sentimento de desilusão quanto à capacidade do sistema parlamentar contemporâneo em lutar contra o inexorável declínio econômico político da GrãBretanha. Seja como for, são cronistas muito eruditos e inteligentes dos fatos miúdos da “histoire événementieli”, e assim formam uma das várias correntes que alimentam o ressurgimento da narrativa. A razão fundamental para a passagem da notabilidade analítica para a modalidade descritiva, entre os novos historiadores”, é uma grande mudança na postura quanto ao que constitui o tema central da história. E isso, por sua vez, depende de pressupostos filosóficos anteriores sobre o papel do livre- arbítrio humano em sua interação com as forças da natureza. Os dois polos opostos de pensamento ficam mais claros com citações respectivas. Em 1973, Emmanuel Le Roy Ladurie deu a uma seção de um volume de seus ensaios o título de “História sem Gente” . Em contraposição, há meio século atrás, Lucien Febvre anunciava: “minha presa é o homem”, e há 25 anos atrás Hugh Trevor-Roper, em sua palestra inaugural, insistiu junto aos historiadores sobre “o estudo não das circunstâncias, mas do homem nas circunstâncias”. Hoje, o ideal de história de Febre está se difundindo em muitos círculos, ao mesmo tempo em que continuam a sair do prelo estudos estruturais analíticos sobre forças impessoais. Portanto, agora os historiadores estão se dividindo em quatro grupos: os velhos historiadores narrativos, basicamente biógrafos e historiadores políticos; os criometristas, que continuam a agir como dopados em estatísticas; os obstinados historiadores sociais, ainda ocupados em analisar estruturas impessoais; e os historiadores da mentalité, agora perseguindo ideais, valores, quadros mentais e padrões de comportamento pessoal íntimo - quanto mais íntimo, melhor. No entanto, a adoção da minuciosa narrativa descritiva ou da detalhada biografia individual, por parte dos historiadores da mentalité, não deixa de ter seus problemas. É a velha questão de que o argumento por exemplos selecionados é filosoficamente ,inconvincente, um recurso retórico e não uma prova científica. Recentemente, Carlo Ginzburg formulou bem a armadilha historiográfica fundamental em que nos debatemos: “A orientação quantitativa e antiantropocêntrica das ciências da natureza a partir de Galileu colocou as ciências humanas num desagradável dilema: ou assumir um estatuto científico frágil para chegar a resultados relevantes, ou assumir um estatuto científico forte para chegar a resultados de pouca relevância” . A decepção com a segunda postura está provocando um retorno à primeira. Em decorrência disso, o que agora está ocorrendo é uma ampliação do exemplo selecionado - agora, muitas vezes é um único exemplo pormenorizado - convertendo-o numa das modalidades correntes de se escrever história. Num certo sentido, é apenas um prolongamento lógico do imenso sucesso dos estudos de história local, que tomam como tema não uma sociedade inteira, mas apenas um segmento - uma província, uma cidade, e mesmo uma aldeia. A história total só parece possível se se toma um microcosmo, e os resultados têm com frequência contribuído mais para esclarecer e explicar o passado do que todos os estudos anteriores ou contemporâneos, baseados nos arquivos do governo central. Num outro sentido, porém, a nova corrente é a antítese dos estudos de história local, visto abandonar a história total de uma sociedade, por menor que seja, como algo impossível, e defender a estória de uma única célula. O segundo problema que deriva do uso do exemplo pormenorizado pata ilustrar a mentalité é como distinguir entre o normal e o excêntrico. Como agora nossa presa é o homem, a narração de uma estória muito detalhada de um único incidente ou personalidade pode ser elucidativa e, ao mesmo tempo, constituir uma boa leitura. Mas apenas se as estórias não se limitam a contar um caso impressionante, porém essencialmente avulso, de algum episódio dramático de amotinamento ou saque, ou a vida de algum plebeu, místico ou mendigo excêntrico, e sim são escolhidas pela luz que podem lançar sobre certos aspectos de uma cultura passada. Isso significa que devem ser típicas, mas, por outro lado, a ampla utilização de registros judiciais dificulta muita a solução dessa questão da tipicidade. As pessoas levadas ao tribunal são quase que por definição, atípicas, mas o mundo exposto tão desnudadamente no depoimento das testemunhas não o é necessariamente O seguro, portanto é examinar os documentos, não tanto pelas provas que oferecem sobre o comportamento excêntrico do acusado, e sim pela luz que lançam sobre a vida e as opiniões de quem veio a se envolver no incidente em questão. O terceiro problema diz respeito à interpretação, e é de solução ainda mais difícil. Desde que o historiador permaneça ciente dos riscos envolvidos. contar estórias é talvez um maneira tão boa quanto qualquer outra para obter um vislumbre íntimo do homem no passado. para tentar entrar em soa cabeça. O problema é que. se consegue entrar, o natrador vai precisar de toda a habilidade, experiência e conhecimento adquiridos na prática da história analítica da sociedade, economia e cultura. s quiser oferecer uma explicação plausível sobre algumas das coisas etranh(ssimas que é capaz de encontrar. Talvez também precise de um pouco de psicologia amadorística para ajudá-lo. mas a psicologia amadorística é um material extremamente complicado para se conseguir manejá-la com êxito- alguns diriam que impossível. Um outro perigo evidente é que o ressurgimento da narrativa pode levar a uma volta ao puro antiquarismo, ao contar estórias por elas mesmas. Outro ainda é que ela concentrará a atenção sobre o sensacional, assim obscurecendo a insipidez e monotonia da vida da imensa maioria das pessoais. Tanto Trevor-Roper quanto Richard Cobb oferecem uma leitura extremamente divertida. mas estão largamente expostos a críticas sob esses dois aspectos. Muitos praticantes da nova modalidade, inclusive Cobb, Hobsbawm, Thompson, Le Roy Ladurie e Trevor-Roper (e eu mesmo) sentem-se claramente fascinados por estórias de violência e sexo, que tocam nos instintos voyeuristas de tolos nós. Por outro lado, pode-se argumentar que o sexo e a violência são partes integrantes de toda experiência humana, e portanto é tão sensato e defensável explorar seu impacto sobre os indivíduos no passado, quanto querer ver tal material nos filmes e programas de televisão contemporâneos. A tendência para a narrativa levanta problemas irresolvidos sobre a maneira que formaremos nossos graduandos no futuro - supondo que haja algum para formar. Nas antigas artes da retórica? Na crítica dos textos? Em semiótica? Em antropologia simbólica? Em Psicologia? Ou nas técnicas de análise das estruturas sociais e econômicas que viemos praticando durante uma geração? Portanto, continua em aberto se essa inesperada ressurreição da modalidade narrativa, por obra de tantos praticantes de proa da nova história, se mostrará boa ou ruim para o futuro da profissão. Em 1972, Le Roy Ladurie escreveu confiante: “A historiografla atual, com sua preferência pelo quantificável, pelo estatístico e estrutural, foi obrigada a eliminar para sobreviver. Nas últimas décadas, ela praticamente condenou à morte a história narrativa dos acontecimentos e a biografia individual”. É cedo demais para rezar uma oração fúnebre sobre o cadáver decadente da história analítica, estrutural e quantitativa, que continua a vicejar, e mesmo a crescer, caso a tendência nas teses de doutorado americanas seja algum guia para isso. Não obstante, nesta terceira década, a história narrativa e a biografia individual estão dando mostras visíveis de estarem voltando dentre os mortos. Nenhuma delas parece se manter igual ao que eram antes de seu pretenso falecimento, mas é fácil identificá-las como variantes do mesmo gênero. É claro que uma única palavra como ”narrativa”, principalmente tendo uma história tão complicada por detrás, é inadequada para descrever o que, na verdade, constitui um amplo leque de transformações na natureza do discurso histórico. Existem sinais de mudança quanto à questão central na história, desde circunstâncias que cercam o homem até o homem nas circunstâncias: nos problemas estudados, desde os econômicos e demográficos aos culturais e emocionais; nas fontes básicas de influência, desde a sociologia, economia e demografla à antropologia e psicologia; no tema, do grupo ao individuo; nos modelos explicativos da transformação histórica, desde os estratificados e monocausais aos interligados e multicausais; na metodologia, desde a quantificação em série ao exemplo individual; na organização, da analítica à descritiva: na conceitualização da função do historiador, da científica à literária. Essas mudanças multifacetadas em conteúdo, objetivo, método e estilo de escrever história, que estão ocorrendo todas ao mesmo tempo, têm claras afinidades eletivas entre si: todas se encaixam perfeitamente. Nenhuma palavra é capaz, sozinha, de resumi-las todas, e assim, por enquanto, a “narrativa” terá de servir como uma senha taquigráfica para tudo o que está se passando. Tradução de Denise Bottmann Este texto foi originalmente publicado em Past and Present, no 85, Nov. 1979, pp. 3-24 O RESSURGIMENTO DA NARRATIVA: ALGUNS COMENTÁRIOS Eric J. Hobsbawn Lawrence Stone acredita que há um ressurgimento da “história narrativa, porque houve um declínio na história empenhada em responder “as grandes questões sobre o porque” na “história científica” generalizante. Isso, por sua vez, parece-lhe devido à desilusão com os modelos deterministas fundamentalmente econômicos de explicação histórica, marxistas ou outros, que tenderam a dominar nos anos pós-guerra: ao menor engajamento ideológico dos intelectuais ocidentais: à experiência contemporânea que nos fez lembrar que a decisão e a ação políticas podem moldar a história, e à incapacidade da “história quantitativa” (outra pretendente ao estatuto “científico”) em cumprir suas promessas. Neste argumento estão envolvidas duas questões que vou grosseiramente simplicar ao extremo: o que vem acontecendo na historiografia e como explicar esses desenvolvimentos? Como é comumente aceito que na história, “os fatos” são sempre selecionados, moldados e talvez distorcidos pelo historiador que os observa, há um elemento de parti pris. para não dizer de autobiografia intelectual no tratamento de Stone sobre essas questões, bem como em meus comentários sobre ele. Penso que podemos concordar que os vinte anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial presenciaram uma agudo declínio na história política e religiosa, no emprego das “idéias” como explicação histórica, e um recurso notável à história sócio-econômica e a explicação histórica em termos de “forças sociais”, como Momigliano observou já em 1954. Quer as qualifiquem os ou não de “econômico-deterministas”, essas correntes historiográficas se tornaram influentes em alguns casos dominantes nos principais centros ocidentais de historiografia, para não mencionar, por outras razões, os centros orientais. Também podemos concordar que, em anos recentes, tem ocorrido uma diversificação considerável e um acentuado redespertar do interesse por temas que eram bem mais marginais às principais preocupações aos que estavam de fora e que, naqueles anos, passariam a integrar a profissão histórica, embora esses temas nunca tenham sido negligenciados. Afinal, Braudel escreveu não só sobre o Mediterrâneo, mas também sobre Filipe II e a monografia de Le Roy Ladurie sobre Le Carnaval de Romans de 1580 é antecedida por um relato muito mais curto, mas extremamente arguto, do mesmo episódio em seu Les Paysans du Languedoc. Se historiadores marxistas dos anos 1970 escrevem livros inteiros sobre o papel de mitos radicalnacionais, como a lenda do Madoc galês, pelo menos Christopher HilI, por outro lado, escreveu um artigo fundamental sobre o mito do Jugo Normando no começo dos anos 1950. Mesmo assim, houve provavelmente uma mudança. É difícil determinar se essa mudança chega a constituir um ressurgimento da história narrativa tal como é definida por Stone (sendo basicamente um ordenamento cronológico do material em “uma única estória coerente, embora possuindo sub-tramas” e uma concentração “sobre o homem, e não as circunstâncias”). visto que Stone evita deliberadamente um exame quantitativo e se concentra em “uma parcela muito reduzida, mas desproporcionalmente destacada da profissão histórica como um todo”. No entanto, existem indicações de que a velha vanguarda histórica já não rejeita, despreza e combate a antiquada “história dos fatos” ou mesmo a história biográfica, como costumavam fazer alguns. O próprio Fernand Braudel fez um elogio irrestrito a uma iniciativa marcadamente tradicional na história narrativa popular, qual seja, a tentativa de Claude Manceron de apresentar as origens da Revolução Francesa através de uma série de biografias sobrepostas de contemporâneos, grandes ou humildes. Por outro lado a minoria de 0historiadores cujos interesses supostamente transformados são examinados por Stone, não se transformou com uma passagem para a história narrativa. Se deixamos de lado os conservadores ou neo-conservadores historiográficos deliberados, como os “empiristas antiquaristas” ingleses, há muito pouco de história narrativa simples entre as obras citadas ou referidas por Stone. Para quase todos eles o acontecimento, o indivíduo, e mesmo a reconstrução de algum estado de espírito, o modo de pensar do passado, não são fins em si mesmos, mas constituem o meio de esclarecer alguma questão mais abrangente, que vai muito além da estória particular e seus personagens. Em suma, os historiadores que continuam a acreditar na possibilidade de generalizações acerca das sociedades humanas e seu desenvolvimento, continuam também a se interessar pelas “grandes perguntas sobre os porquês”, embora por vezes possam enfocar questões diferentes das que recebiam sua atenção há vinte ou trinta anos atrás. Na verdade, não existe nenhuma prova de que tais historiadores - os que constituem a principal preocupação de Stone tenham abandonado “a tentativa de criar uma explicação....coerente da transformação no passado”. Se eles (ou nós) também consideram sua tentativa como “científica” é uma questão que certamente dependerá do que entendemos por “ciência”, mas não precisamos entrar nessa discussão sobre rótulos. Além disso, duvido muito que esses historiadores achem que estejam sendo “obrigados a voltar ao princípio da indeterminação”, assim como Marx não achava que seus textos sobre Luís Napoleão fossem incompatíveis com a concepção materialistas da história. Sem dúvida existem historiadores que desistiram de tais tentativas, e certamente há quem os critique, talvez com um ardor acentuado por um engajamento ideológico. (Quer o marxismo tenha sofrido ou não um declínio intelectual, é difícil notar um grande amudecimento na controvérsia ideológica entre os historiadores ocidentais, embora os participantes e as questões específicas possam ter mudado nesses vinte anos). A história neo-conservadora provavelmente ganhou terreno, pelo menos na Grã-Bretanha, tanto sob a forma dos “jovens empiristas antiquaristas’ que “escrevem narrativas políticas pormenorizadas, que implicitamente nega que exista qualquer sentido profundo na história, além das excentricidades fortuitas do destino e da personalidade” . quanto sob a forma de obras como o admirável mergulho de Theodore Zeldin (e Richard Cobhr) naquelas camadas do passado para as quais “quase todos os aspectos da história tradicionalista” são despropositedos,’ inclusive a resposta a questões1° Provavelmente também ganhou terren( o que e poderia chamar de história esquerdista anti-intelectual. Mas não é com isso que Stone está interessado, a não ser muito tangencialmente. Como, então, podemos explicar os deslocamentos nos temas e interesses históricos, na medida em que tenham ocorrido ou estejam ocorrendo? Uma das possibilidades é que um elemento neles reflete a considerável ampliação do campo da história nos últimos vinte anos, exemplificada pelo surgimento da “história social”, esse repositório amorfo para tudo, desde alterações no físico humano até os símbolos e rituais, e principalmente para a vida de todas as pessoas, de mendigos a imperadores. Como observou BraudeI, essa histoíre obscure de tout le monde” é “a história para a qual, de diferentes maneiras, tende toda historiografia no presente”. Aqui não é o lugar para especular sobre as razões dessa grande ampliação do campo, que certamente não se choca com a tentativa’ de criar uma explicação coerente do passado. Mas ela realmente aumenta a dificuldade técnica de se escrever história. Como apresentar essas complexidades? Não admira que os historiadores experimentem diferentes formas de tal apresentação, incluindo notadamente os que tomam de empréstimo as antigas técnicas da literatura (que faz suas próprias tentativas ao expor Lo Comédie Humainc) e também dos meios áudio-visuais modernos, dos quais todos, à exceção dos mais velhos entre nós, estão imbuídos. O que Stone chama de técnicas pontilhistas são, pelo menos em parte, tentativas de resolver esses problemas técnicos de apresentação. Tais experiências são particularmente necessárias para aquela parte da história que não pode ser subsumida à “análise” (ou à rejeição da análise), e bastante negligenciada por Stone, qual seja, a síntese. O problema de reunir as várias manifestações do pensamento e ação humana num período específico não é novo nem desconhecido. Nenhuma história da Inglaterra sob Jaime que omita Bacon, ou trate-o exclusivamente como advogado, político ou figura da história da ciência cii da literatura, há de ser satisfatória. Ademais, isso é reconhecido mesmo pelos hstoriadores mais convencionais, mesmo quando suas soluções (um capítulo ou dois sobre ciência, literatura, educação ou alguma outra coisa, em apêndice a :orpo principal do texto polítiro-institucional) são insatisfatórias. Mas, quanto maior o leque de atividades humanas aceito como legítima preocupação do historiador, com tanta maior clareza entende-se a necessidade de estabelecer conexões sistemáticas entre elas, e tanto maior a dificuldade de alcançar uma síntese. Naturalmente, isso é muito mais do que um problema técnico de apresentação, mas também consiste nisso, mesmo os que continuam a se guiar em suas análises por algo semelhante ao modelo “hierárquico em três terços” da base e das superestruturas, rejeitado por Stone, podem considerá-lo um guia impróprio para a apresentação, embora provavelmente seja menos impróprio do que uma pura narrativa cronológica. Deixando de lado os problemas da apresentação e da síntese, também pode se sugerir duas razões mais substanciais para uma mudança. A primeira é o próprio sucesso dos “novos historiadores nas décadas pós-guerra. Ele foi alcançado por uma deliberada simplificação metodológica, a concentração sobre o que era tido como a base e os determinantes sócio-econômicos da história, às expensas da história narrativa tradicional - por vezes, como na luta francesa contra a “história fatual”, em confronto direto com ela. Embora existissem alguns reducionistas economistas extremados, e outros que descartavam as pessoas e os acontecimentos como pequenas ondulações negligenciávis na longue durée da structure e da conjoncture. tal extremismo não era compartilhado por todos nem nos Annales. nem entre os marxistas que principalmente na Grã-Bretanha nunca perderam o interesse pelos acontecimentos ou pela cultura, e nunca consideraram a “superestrutura” em dependência total e constante em relação à “base”. Mas o próprio êxito de obras como as de Braudel, Goubert e Le Roy Ladurie. destacadas por Stone. não só deram aos “novos” historiadores a liberdade para se concentrar em aspectos da história até então deliberadamente abandonados, como também promovem seu lugar na agenda dos “novos” historiadores. Como o eminente Annalité Le Goff assinalou há vários anos atrás, ‘a história política iria gradualmente retornar com vigor tomando de empréstimo os métodos, o espírito e a abordagem teórica das mesmas ciências sociais que a haviam impelido para o pano de fundo’. Pode-se considerar a nova história dos homens e mentalidades, ideias e acontecimentos, mais como uma complementação do que como uma suplantação da análise das tendências e estruturas sócio-econômicas. Mas, uma vez voltando a tais itens de suas agendas, os historiadores podem preferir orientar sua explicação coerente da transformação no passado de uma maneira, por assim dizer, ecológica, ao invés de geológica. Podem preferir começar pelo estudo de uma “situação” que encarna e exemplifica a estrutura estratificada de uma sociedade, mas concentrando o pensamento nas complexidades e interconexões da história efetiva, e não tanto no estudo da estrutura em si, principalmente se, para tanto, podem se apoiar em parte sobre obras anteriores. É o que, como reconhece Stone, encontra-se na origem da admiração de alguns historiadores por trabalhos como a “leitura atenta” de Clifford Geertz sobre uma rinha balinesa de galos. Isso não supõe necessariamente uma escolha entre a monocausalidade e a multicausalidade, e certamente não significa nenhum conflito entre um modelo onde alguns determinantes históricos são tidos como mais poderosos do que outros, e o reconhecimento de interconexões, tanto verticais quanto horizontais. Uma situação ”pode ser um ponto de partida conveniente, como no estudo de Ginzburg sobre a ideologia popular, através do caso de um único aldeão ateu do século XVI ou de um único grupo de camponeses do Friuli, acusados de feitiçaria”. Esses tópicos também poderiam ser abordados de outras maneiras. Pode ser um ponto de partida necessário em outros casos, como no belo estudo de Agulhon sobre o modo como aldeões franceses, num determinado tempo espaço, converteram-se do tradicionalismo católico ao republicanismo militante. De qualquer forma, é provável que os historiadores, para certas finalidades, escolham-na como ponto de partida. Assim, não há nenhuma contradição necessária entre Les Paysans du Languedoc e Montaillou de Le Roy Ladurie, como tampouco entre as obras gerais de Duby sobre a sociedade feudal e sua monografia sobre a batalha de Bouvines, ou entre The Making of the English Working Class ‘e Whigs and Hunters de E.P. Thompson”. Não há nada de novo em escolher olhar o mundo por um microscópio, ao invés de um telescópio. Na medida em que concordamos que estamos estudando o mesmo cosmo, a opção entre o microcosmo e o macrocosmo é uma questão de escolha da técnica adequada. É significativo que um maior número de historiadores atualmente considere o microscópio muito útil, mas isso não significa necessariamente que rejeitem os telescópios como coisa ultrapassada. Mesmo os historiadores de mentalité, esse termo vago, que abrange tudo e que Stone, talvez sabiamente, não tenta elucidar, não abandonam total ou majoritariamente a visão abrangente. Esta é, pelo menos, uma lição que aprenderam com os antropólogos. Essas observações explicam o “amplo leque de transformações na natureza do discurso histórico”, conforme diz Stone? Talvez não. No entanto, elas mostram que é possível explicar boa parte de seu levantamento como a continuação dos empreendimentos históricos do passado por outros meios, e não como provas de sua falência. Não se pretende negar que alguns historiadores consideram-nos falidos ou indesejáveis, e consequentemente querem modificar seus discursos, por várias razões, algumas intelectualmente duvidosas, outras dignas de serem levadas a sério. É visível que alguns historiadores passaram das “circunstâncias” para os “homens” (inclusive as mulheres), ou descobriram que um simples modelo base/superestrutura e a história econômica não são suficientes, ou ainda - visto que os resultados de tais abordagens foram muito consideráveis - já não o são mais. Alguns podem ter se convencido de que existe uma incompatibilidade entre suas funções “científicas” e “literárias”. Mas não é necessário analisar os atuais estilos na história exclusivamente como uma rejeição do passado, e na medida em que não podem ser analisadas inteiramente nestes termos, não será o caso. Todos estamos ansiosos em descobrir para onde estão indo os historiadores. O ensaio de Stone deve ser saudado como uma tentativa nesse sentido. No entanto, ele não é satisfatório. Apesar de suas negativas, o ensaio realmente mescla o mapeamento de “transformações observadas no estilo histórico” com “juízos de valor sobre as modalidades boas e as não tão boas de escrita histórica”, principalmente sobre as não tão boas. Penso que é uma pena, não porque eu discorde dele sobre “o princípio da indeterminação” e a generalização histórica, mas sim porque se o argumento é equivocado, o diagnóstico das “transformações no discurso histórico” feito segundo os termos desse argumento também há de ser impróprio. A tentação é imitar o “Stone” irlandês lendário que, quando o viajante lhe perguntou sobre o caminho para Ballynahinch, parou, ponderou e respondeu: “Se eu fosse você, de jeito nenhum começaria por aqui”
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