Pesquisa na internet: considerações metodológicas (PDF
Transcrição
Pesquisa na internet: considerações metodológicas (PDF
XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE E PRÉ-ALAS BRASIL 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI Grupo de Trabalho: GT 14 – Mídia, cultura e sociedade Pesquisa na internet: considerações metodológicas Micheline Dayse Gomes Batista (UFPE) [email protected] Pesquisa na internet: considerações metodológicas Micheline Dayse Gomes Batista1 Enquanto nova mídia, a internet vem atraindo cada vez mais o interesse de pesquisadores. Seja para buscar conhecer quem são e o que fazem os usuários da rede mundial de computadores, seja utilizando a Web como plataforma para acessar informantes em pesquisas de temas tradicionais. Mas, ao contrário do que muita gente pensa, fazer pesquisa na internet não é fácil. De fato, esse tipo de pesquisa não demanda muito tempo nem grandes investimentos, seja adotada uma perspectiva quantitativa ou qualitativa. No entanto, a experiência tem mostrado que não basta conhecer e transpor técnicas e métodos da pesquisa tradicional para o ambiente online. É preciso, antes de tudo, adaptá-las considerando as peculiaridades desse universo, sua cultura, enxergar seus potenciais e limitações a fim de encontrar novos caminhos. Neste trabalho, pretendemos abordar, ainda que de forma sintética, a utilização da internet para coleta de dados e os desafios metodológicos da pesquisa qualitativa online, utilizando um exemplo empírico. A título de introdução, falaremos um pouco sobre o que é a internet e como ela vem revolucionando a sociedade contemporânea sob os mais diversos aspectos2. Como nos explica Lemos (2004), a internet nasce na Advanced Research and Projects Agency (ARPA) no fim dos anos 1960. Essa rede, a ARPANet, tinha como objetivo conectar as bases militares do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Com a invenção do microcomputador, na década de 1970, a internet foi além dos muros das organizações militares, miniaturizando uma parafernália de equipamentos que chegavam a ocupar salas inteiras. Em meados dos anos 1990 veio o boom da internet, com sua roupagem gráfica e comercial – a World Wide Web, ou www – disseminando uma nova relação entre a informática e a sociedade. Até então, a internet estava restrita ao uso acadêmico e militar – era uma espécie de correio contendo apenas mensagens de texto, a exemplo dos BBS (Bulletin Board System) e do Minitel francês (Cf. CASTELLS, 1999). Castells (1999:414) compara o atual momento tecnológico em que vivemos à revolução provocada pela invenção do alfabeto na Grécia antiga. “Uma 1 Jornalista e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 2 O trecho a seguir desta introdução deriva de parte do capítulo 2 do meu estudo de mestrado (BATISTA, 2010). transformação tecnológica de dimensões históricas similares está ocorrendo 2.700 anos depois, ou seja, a integração de vários modos de comunicação em uma rede interativa”. Para o autor, esse novo sistema eletrônico de comunicação e interatividade potencial “está mudando e mudará para sempre nossa cultura”. A internet integra num mesmo sistema modalidades importantes da comunicação humana – escrita, oral e audiovisual – através de hipertextos que, segundo Lévy (1993), podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos, sequências sonoras, documentos. A noção de hipertexto trazida por Lévy é fundamental para entendermos a velocidade dos tempos atuais e as significações que começam a fazer parte desse jogo. “A estrutura do hipertexto não dá conta somente da comunicação. Os processos sociotécnicos, sobretudo, também têm uma forma hipertextual, assim como vários outros fenômenos” (LEVY, 1993:25). O autor apresenta o hipertexto, tecnicamente descrito como “um conjunto de nós ligados por conexões”, como uma possível metáfora para todas as esferas da realidade. “Uma coisa é certa: vivemos hoje em uma destas épocas limítrofes na qual toda a antiga ordem das representações e dos saberes oscila para dar lugar a imaginários, modos de conhecimento e estilos de regulação social ainda pouco estabilizados. Vivemos um destes raros momentos em que, a partir de uma nova configuração técnica, quer dizer, de uma nova relação com o cosmos, um novo estilo de humanidade é inventado.” (LÉVY, 1993:17) A Web, sem dúvida, criou um espaço inédito de informação sem fronteiras, dando um novo impulso ao processo de globalização do planeta. Uma das consequências disso foi a superexposição de individualidades, sobretudo no que se refere às redes sociais (Orkut, Facebook, MySpace), nas quais os indivíduos compartilham informações pessoais, fotos, vídeos, trocam mensagens com amigos. Nunca se esteve tão perto e tão distante ao mesmo tempo. Nos blogs, ou diários virtuais, surge um local para a manifestação de opiniões, principalmente para anônimos. Com o Twitter, serviço de microblog criado em 2006 e que virou febre a partir de 2009, esse espaço foi radicalizado. Mensagens curtas, de até 140 caracteres, atualizam o status das pessoas onde quer que elas estejam – no ônibus, na rua, em casa, na escola, no trabalho – e são publicadas instantaneamente nas páginas de seus seguidores. Basta ter um dispositivo conectado a internet, seja um PC, notebook, tablet ou celular. Vivemos a era da hiperconectividade. Para o estudioso das mídias Roger Silverstone, “novas tecnologias, novas mídias, cada vez mais convergentes pelo mecanismo da digitalização, estão transformando o tempo e o espaço sociais e culturais. Esse novo mundo não pára: 24 horas de noticiário, 24 horas de serviços financeiros. Acesso instantâneo, em todo o globo, à World Wide Web. Comércio interativo e sociabilidade interativa em economias e comunidades virtuais. Uma vida a ser vivida on-line.” (SILVERSTONE, 2005:46). O autor observa que, apesar da “nova mídia” ter sido construída sobre as bases da velha (imprensa, telégrafo, telefone, rádio, TV), caracterizando-se apenas como uma nova maneira de produzir e transmitir significados, ainda não dá para saber que consequências ela terá na vida social, econômica ou política. Por isso é preciso tratar o tema da pesquisa na internet com cuidado. Tudo é muito novo e nos leva a um caminho que, apesar de se mostrar aparentemente fácil, pode se revelar espinhoso. Mesmo porque todo o campo da pesquisa social passa por uma profunda mudança desde a década de 1970, abrangendo tanto a dimensão epistemológica quanto metodológica e, mais diretamente, as técnicas de pesquisa (MELUCCI, 2005). Essa mudança está associada a processos típicos de sociedades complexas onde os indivíduos se tornam altamente diferenciados, reflexivos e “são abastecidos de recursos para conceberem-se e para agirem como sujeitos autônomos de ação”. A utilização da internet para coleta de dados Passadas quase duas décadas do surgimento da Web – o primeiro navegador, o Netscape, foi lançado em dezembro de 1994 –, a maioria das pesquisas online que encontramos ainda são levantamentos quantitativos, questionários enviados por e-mail ou enquetes baseadas na Web. Ou seja, a rede mundial de computadores vem sendo mais frequentemente utilizada como uma ferramenta a mais de pesquisa, para aplicação de questionários tradicionais idênticos àqueles que circulam offline. As primeiras abordagens eram voltadas à análise dos números e das experiências de usuários da internet (MITRA & COHEN apud FLICK, 2009:239), mas hoje encontramos pesquisas que versam sobre os mais diversos temas. Segundo Flick (2009:240), tem crescido o uso de técnicas qualitativas como a entrevista online, a observação participante, a etnografia virtual e os grupos focais. De acordo com o autor, alguns desses métodos podem ser transferidos e aplicados com alguma facilidade à Web, com pequenas modificações. Depois de decidir pelo tipo de abordagem da pesquisa a ser realizada pela internet, se quantitativa ou qualitativa, e que técnicas pretende utilizar (enquete, entrevista, grupo focal etc.), o pesquisador deve escolher os métodos que vão conduzir seu estudo. Bryman (2008a) nos oferece duas “distinções cruciais” entre os métodos existentes de pesquisa na internet. A primeira delas se refere ao ambiente de coleta de dados, que pode ser baseado na Web (web-based) ou baseado na comunicação (communication-based). O primeiro diz respeito aos dados que são coletados através da internet, como os questionários online que os participantes são convidados a completar. O segundo está relacionado à utilização de meios de comunicação online, como o correio eletrônico e, acrescento, as plataformas de mensagens instantâneas (chats) como o MSN Messenger e o GTalk. A segunda distinção metodológica feita pelo autor é a opção entre métodos síncronos ou assíncronos. O primeiro método é aplicado em tempo real, como no caso dos chats, onde o entrevistador pergunta e o entrevistado responde imediatamente, uma vez que se encontra online. Já o método assíncrono não é em tempo real, portanto, nesse caso, não há resposta imediata. Um exemplo é o questionário enviado por e-mail. A resposta pode levar dias, talvez até semanas, para ser enviada. Não são poucas as vantagens apontadas quando se opta pela pesquisa online, seja de cunho quantitativo ou qualitativo. Bryman (2008a) nos apresenta quatro delas: a) é mais econômica, tanto em relação ao tempo de realização quanto em termos de custos; b) pode alcançar facilmente um grande número de pessoas; c) a distância não se constitui um problema, pois os participantes precisam apenas ter acesso a um computador; e d) os dados podem ser coletados e colados rapidamente. Ou seja, já que não há necessidade de transcrição, os dados são processados mais facilmente. Por outro lado, existem as desvantagens. Entre elas, ainda segundo Bryman, a) o acesso à internet ainda não é universal, então certas pessoas ainda são inacessíveis; b) convites para responder uma pesquisa podem ser vistos apenas como lixo eletrônico; c) perde-se o toque pessoal – há uma lacuna entre entrevistadores e entrevistados, perde-se o contato visual; e d) há uma preocupação entre os participantes acerca da confidencialidade das respostas e medo de fraudes e ataques de hackers. Flick (2009) também aponta a perda dos elementos não-verbais (como a intensidade do olhar) ou paralinguísticos, difíceis de transportar e de integrar, como uma das desvantagens da pesquisa online. Por outro lado, podemos lançar mão de uma série de elementos intertextuais comumente utilizados na comunicação online, como os emoticons (risadas, choro, raiva, piscadelas etc). Coisas que a literatura atual sobre o assunto ainda não considera, ou pelo menos ainda não considera amplamente. Sem falar na possibilidade de utilização de chat com vídeo (webcam), capaz de proporcionar o contato visual entre entrevistador e entrevistado. Outra questão que se coloca quando se fala em pesquisa online diz respeito à confiabilidade dos dados demográficos (sexo, idade, localização etc.) repassados pelos informantes (FLICK, 2009). Isso pode trazer, por exemplo, problemas de amostragem, já que na pesquisa feita remotamente não é possível checar essas informações. Entretanto, como na pesquisa censitária do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), onde a raça é autodeclarada, creio que na pesquisa online é necessário considerar o que as pessoas declaram, sem se preocupar com o fato da informação ser verdadeira ou não. Obviamente, a tensão entre o real e o virtual – e as mentiras e fantasias que podem decorrer dessa relação – nunca deixa de existir. Mas Castells (2003) ilustra com bastante propriedade como alguns estudos distorcem a imagem da prática social que ocorre na internet. Para este autor, a sociabilidade online é uma extensão da vida real, mesmo que envolva a representação de papéis, simplesmente porque o que há por trás de toda tela de computador são pessoas de carne e osso. Vejamos: a proliferação de estudos sobre esse assunto distorceu a percepção pública da prática social da Internet, mostrando-a como terreno privilegiado para as fantasias pessoais. O mais das vezes, ela não é isso. É uma extensão da vida como ela é, em todas as suas dimensões e sob todas as suas modalidades. Ademais, mesmo na representação de papéis e nas salas informais de chat, vidas reais (inclusive vidas reais on-line) parecem moldar a interação on-line. (CASTELLS, 2003:99-100) Também Bryman (2008a) coloca que as distinções online/offline estão se tornando menos significativas, senão desaparecendo, já que as pessoas estão crescendo com a internet e passando cada vez mais tempo online. Arrisco-me a dizer que o “véu da virtualidade” traz, pelo menos, uma vantagem: o anonimato. Para Flick (2009:243), isso pode proteger os informantes de qualquer revelação de suas identidades tanto durante a pesquisa quanto na divulgação de seus resultados. Já as questões éticas que eventualmente se levanta sobre a pesquisa na internet, a meu ver, são as mesmas da pesquisa tradicional. Coletar dados apenas para um objetivo específico e legítimo, proteção contra o mau uso e acesso não autorizado, obtenção de consentimento, garantia de anonimato etc. Flick (2009: 252) não considera legítimo “espreitar” chats ou salas de bate-papo, mas como situamos, nesse caso, a etnografia na internet? Se o desenvolvimento da pesquisa online está apenas começando, algumas questões ainda seguem sem resposta. Sem dúvida, há uma “netiqueta” a seguir, mas fica evidente que o código de ética tradicional precisa ser revisto de modo a contemplar essas novas questões, possibilidade que Bryman (2008a), por exemplo, já considera. Pesquisa qualitativa na internet: desafios metodológicos As transformações mencionadas por Melucci (2005) que estariam ocorrendo no campo da pesquisa social desde a década de 1970 têm como principal motor uma maior valorização da experiência individual. Para este autor, essa experiência “não pode ser enfrentada em termos cognoscivos unicamente com os instrumentos da pesquisa quantitativa”. Isso estaria gerando não apenas o interesse, mas a necessidade de desenvolver e adotar métodos do tipo qualitativo. Da mesma forma, a crescente valorização da vida cotidiana enquanto espaço onde os indivíduos podem construir ativamente o sentido da própria ação também tem apontado para a necessidade de uma abordagem qualitativa, pois expõe as dimensões culturais da ação humana. Ainda de acordo com Melucci, essa mudança de perspectiva estaria diretamente relacionada a contribuições teóricas importantes para as ciências sociais, como a virada linguística, a hermenêutica e os estudos de gênero e culturais, entre outras. Em termos epistemológicos, esses processos têm nos levado, por exemplo, a colocar a linguagem em um lugar central e a refletir sobre o papel do observador no campo. O observador não está mais isolado – ele interage com o observado e com o campo e nessa interralação são produzidos novos sentidos, novos conhecimentos. Trata-se de uma relação contingente, onde toda observação é já uma intervenção. Segundo Bryman (2008b:366), a pesquisa qualitativa possui quatro características básicas: i) uma visão indutiva da relação entre teoria e pesquisa, onde a teoria é gerada fora do campo empírico; ii) uma posição epistemológica interpretativista, significando que o entendimento do mundo social é obtido através da interpretação do mundo por seus participantes (incluindo observador e observado); e iii) uma posição ontológica descrita como construcionista, na qual as propriedades sociais são resultado das interações entre indivíduos. Um ponto de partida interessante para pensarmos a pesquisa qualitativa, adotado, por exemplo, por Gaskell (2002:65), “é o pressuposto de que o mundo social não é um dado natural, sem problemas: ele é ativamente construído por pessoas em suas vidas cotidianas, mas não sob condições que elas mesmas estabeleceram.” A pesquisa qualitativa tem um significado diferente em cada um desses momentos. No entanto, pode-se oferecer uma definição genérica, inicial: a pesquisa qualitativa é uma atividade situada que localiza o observador no mundo. Consiste em um conjunto de práticas materiais e interpretativas que dão visibilidade ao mundo. Essas práticas transformam o mundo em uma série de representações, incluindo as notas de campo, as entrevistas, as conversas, as fotografias, as gravações e os lembretes. Nesse nível, a pesquisa qualitativa envolve uma abordagem naturalista, interpretativa, para mundo, o que significa que seus pesquisadores estudam as coisas em seus cenários naturais, tentando entender, ou interpretar, os fenômenos em termos dos significados que as pessoas a eles conferem. (DENZIN & LINCOLN, 2006:17). O momento atual da pesquisa qualitativa, que estaria em vigor desde o ano 2000, é descrito por alguns autores como sendo marcado pela dúvida e pela recusa em privilegiar qualquer método ou teoria. A ideia é a de que não precisamos ter uma visão fechada. Existem muitas formas de contar histórias e nenhuma delas pode ser considerada a forma “correta” ou “verdadeira”. Tudo depende da perspectiva que se adota e da interpretação que vai sendo construída no campo e fora dele. Se adotamos o paradigma construtivista, de inspiração pós-moderna e pós- estruturalista, rejeitamos a adoção de “qualquer padrão permanente, invariável (ou 'fundacionalista') por meio do qual a verdade pode ser conhecida universalmente” (LINCOLN & GUBA, 2006:182). Os acordos sobre o que é verdadeiro ou não surgem a partir de diálogos, o que também nos leva a buscar inspiração no paradigma participativo, cuja ontologia diz que a realidade é subjetiva e objetiva ao mesmo tempo – ou seja, é intersubjetiva. Em termos metodológicos, esse novo paradigma faz uso da linguagem baseado no contexto experimental compartilhado. Todas essas preocupações devem ser levadas em conta por aqueles que planejam uma pesquisa na internet. Second Life: um estudo empírico No meu estudo de mestrado (BATISTA, 2010), optei por triangular observação participante e entrevistas em profundidade. A triangulação é uma forma de expor, simultaneamente, realidades múltiplas, utilizando diversas perspectivas teóricas, fontes de dados e metodologias (Cf. BRYMAN, 2008b:379). Seria uma maneira de checar, validar e tornar os dados mais confiáveis. No caso da observação participante, elegi como “lugar” o Second Life (SL), objeto empírico da pesquisa, plataforma da internet considerada ora um jogo ora uma rede social. Segundo Flick (2009:246), a rede mundial de computadores pode ser considerada uma ferramenta para estudar pessoas, através de entrevistas individuais e grupos focais, mas também um lugar ou um modo de ser. A etnografia virtual requer que se passe algum tempo observando o que os participantes fazem online e o que eles dizem que fazem. “Isso se assemelha ao modo como os etnógrafos tornam-se participantes e observadores em comunidades do mundo real e em culturas. A diferença é que a etnografia virtual é situada em um ambiente técnico em vez de um ambiente natural” (FLICK, 2009:246). Flick argumenta que alguns elementos da etnografia podem ser transpostos para o meio virtual sem problemas, enquanto outros precisam ser reformulados. A presença do etnógrafo no campo é exigida nos dois casos, mas no virtual a própria noção de “lugar da interação” ou “lugar do campo” é questionada, porque não há limites. Muitas vezes, “o lugar” só se torna claro no decorrer do estudo. Tenho adotado nas minhas pesquisas um modelo misto de observação. Primeiro, torno-me nativa e observo clandestinamente. “Segundo esta lógica, a dissimulação do papel do pesquisador e sua plena participação lhe possibilitariam o acesso a informações privilegiadas, incluindo aquela que ele recebe de sua própria experiência” (CAPLOW, 1970, apud JACCOUD & MAYER, 2008:264). Observo, pois, o que eu própria vivencio e acredito que isso enriquece bastante o material. Numa segunda etapa, escolho alguns observados para revelar minha identidade de pesquisadora e faço um convite à entrevista individual. O trabalho de observação – agora de forma direta – continua durante e depois das entrevistas com os indivíduos selecionados. Jaccoud & Mayer colocam que a observação direta tem lá suas vantagens, “tais como a redução das tensões ligadas às questões éticas, uma maior mobilidade física e social do pesquisador e um questionamento mais sistemático e exaustivo”. Quando iniciei meu estudo de mestrado, em 2008, transformei meu avatar, Micheline Beerbaum, em um avatar-pesquisador. Passei, então, a registrar as observações em um diário de campo, fazendo anotações a cada vez que entrava no jogo, descrevendo os locais visitados, as pessoas encontradas pelo caminho e transcrevendo alguns diálogos eventuais. Conduzi o estudo etnográfico circulando anonimamente por diversas “ilhas” do SL (pedaços de terra que simulam lugares reais ou imaginários como ruas, parques, shoppings, cidades), abordando e entabulando conversas com usuários. Também realizei dezenas de registros fotográficos. Como jogadora, pude vivenciar ativamente as possibilidades de ressignificação corporal e de experimentações identitárias existentes no jogo. Constatei que ali o jogador pode vestir muitas máscaras de forma fluida, descompromissada, pode vivenciar fantasias que não são possíveis ou que não se quer viver no mundo offline. Abaixo, um trecho pinçado do relatório que ilustra como coletei e analisei os dados da observação participante. Descrevo o personagem encontrado a partir da imagem que capturei e o diálogo que tivemos, analisando o fato à luz da teoria: Em uma das vezes que voltei à Ilha Copacabana, em maio de 2008, encontrei um tipo malhado, corpo bronzeado, passeando de sunga e descalço pelo calçadão. Ele usava asas negras que se destacavam na paisagem, o que logo me chamou a atenção. Ao mesmo tempo em que reproduzia um certo padrão de beleza, Kallikrates queria fugir do convencional.Travamos o seguinte diálogo: Micheline Beerbaum: olá Micheline Beerbaum: td bem? Kallikrates: ... tudo em ordem ... “relativa ordem” ao menos ... rs Micheline: tava aqui observando suas asas Kallikrates: ... são lindas, não ? ^^ Kallikrates: ... adoro asas ! Micheline Beerbaum: pq vc as usa? Kallikrates: ... porque passam a idéia de algo fora do convencional ... ; ) Kallikrates: ... um anjo ou um demônio Kallikrates: ... ou algo entre os dois ... rs Figura 17 – Avatar alado na Ilha Copacabana No SL é possível fantasiar, portanto, que somos anjos. Ou demônios. Ou algo entre os dois, como propõe Kallikrates. Temos a liberdade de ser quem quisermos, podendo usar a imaginação e a criatividade para vivenciar uma nova situação sem o “peso do real”, em que temos que escolher ser uma coisa ou outra – embora em muitos casos os padrões prevaleçam. (BATISTA, 2010:114-115) Paralelamente à observação participante, realizei entrevistas em profundidade com 16 usuários do SL, no período de maio de 2009 a janeiro de 2010. Para acessar os informantes utilizei minha rede de contatos dentro do próprio jogo, construída desde 2007 (amostragem intencional), esperando que os primeiros entrevistados pudessem indicar outros usuários, ou seja, por acessibilidade (snowball). E foi o que ocorreu em alguns casos. Em outros, fui realizando as entrevistas no decorrer do próprio jogo, na medida em que ia perambulando pelas ilhas e encontrando as pessoas. Todos os entrevistados estavam cientes de que participavam de uma pesquisa e permitiram o registro fotográfico de seus avatares. Para preservar a identidade dos usuários, utilizei apenas o primeiro nome do avatar na identificação dos depoimentos. Das 16 entrevistas, 11 foram feitas online, através de chats. Os diálogos foram copiados e levados para um processador de textos (MS Word). Duas dessas abordagens foram realizadas com voz e posteriormente transcritas. Abaixo, um trecho da análise de uma entrevista realizada com voz, através do Skype. O que sempre prevalece nas respostas dadas pelos entrevistados é a sensação de poder realizar desejos, controlar sua conduta e fazer coisas que de outra maneira não seriam possíveis, como voar e teletransportar-se, e de poder mudar sua configuração corporal a todo instante, sem precisar dar satisfações sobre seus atos. Lá eu posso voar, na RL [Real Life, ou vida real em português] eu não posso. Quem não queria voar? Se teletransportar... Acho super interessante as pessoas que são gordas e querem ser magras lá... Querem ter tatuagem, cabelo verde, azul... Às vezes você quer ter e a sociedade não permite, a esposa não gosta, devido a sua profissão, o meio que você convive. Aí você tem vontade de usar uma roupa, mas não usa. Aí você vai lá e usa. Logan, 27 anos Aqui começamos a ter uma ideia de como os jogadores do SL “corporificam” simbolicamente suas experiências. É como se eles abrissem em suas vidas uma nova janela de espaço e de tempo, e ali pudessem viver de maneira hiperreal, misturando realidade e fantasia. O sentimento de corporeidade, ou seja, a simulação do corpo desejado, é a realização do próprio jogo, é o que transforma o jogo em realidade para essas pessoas. (BATISTA, 2010, p. 130) As cinco entrevistas restantes foram feitas de forma presencial, com usuários residentes na cidade do Recife, frequentadores da Ilha Recife Digital (simulação da cidade do Recife no SL). Todos eu conheci durante e a partir de um encontro promovido em maio de 2009 pelo proprietário da ilha em um shopping da capital pernambucana. As entrevistas foram realizadas posteriormente em locais públicos da cidade (shoppings e livraria), registradas em gravador digital e depois transcritas. A seguir, um trecho da análise de uma entrevista feita presencialmente. Pedimos aos entrevistados que descrevessem seus avatares comparando-os com seus corpos “reais”. A maioria (nove entre os 16) acredita ter um corpo real “diferente” do virtual, pois vê no SL a possibilidade de experimentar novas configurações. Eles procuram moldar o avatar seguindo o “padrão SL”, revelando como eles desejariam ser caso pudessem “editar” seus corpos. De um modo geral, procura-se fazer compensações – pessoas baixas criam avatares altos; pessoas gordas, avatares magros. Mas a busca pela perfeição sempre predomina. Ela está linda [risos]. Ela é mais ou menos o que eu não sou. Magrinha, tem os cabelos lisos... Pode trocar de roupa direto... (...) A única coisa que ela tem em comum comigo são os olhos e o fato de ser branca. Ela não é tão alta. Nem é como a maioria dos avatares femininos, com aqueles peitões, bundão... Já é menorzinho... Aquele estilo popozuda não tem a ver comigo não... [risos] Ela é mais normal, não é tão como as outras, mas é aquele normal perfeitinha. Tentei deixar ela perfeitinha, mas não aquilo avantajado. Rafaelle, 19 anos Figura 25 – Rafaelle, 19 anos: “ela é mais ou menos o que eu não sou” Como a entrevista com Rafaelle foi feita de forma presencial, pude confrontar suas respostas com a realidade que se apresentava à minha frente. Pessoalmente, a jogadora de fato é de cor branca, tem cabelos claros não tão lisos, seios pequenos e está ligeiramente “acima do peso”. No SL, ela pode criar um avatar mais magro sem que seja necessário fazer sacrifícios ou dietas, eliminar as espinhas típicas da idade e ao mesmo tempo “turbinar” um pouco mais os seios. A jogadora diz que procurou não exagerar, pois não se identifica com “a maioria dos avatares femininos, com aqueles peitões, bundão” – ela não quer ser uma “mulher-fruta”. (BATISTA, 2010, p. 136-137) Meu objetivo ao optar pelos dois tipos de entrevista – presencial e remota – era verificar se haveria diferenças substanciais entre as respostas obtidas. É sabido que as entrevistas feitas pessoalmente têm o poder de captar elementos como expressão corporal, tonalidade da voz e a ênfase dada a determinadas respostas. Considerei, pois, o elemento face a face como um plus da pesquisa, uma vez que ele não alterou significativamente os resultados. Apesar disso, é importante destacar que as entrevistas feitas presencialmente renderam mais porque pude obter respostas mais completas. Quando algo não ficava suficientemente claro, sempre era possível retornar àquela questão, enquanto que nos chats por vezes precisei abreviar a entrevista porque os informantes demonstravam inquietação para se dedicar a outras atividades, no jogo ou fora dele. Outra vantagem das entrevistas presenciais foi poder confrontar as respostas obtidas com a cena que eu vislumbrava dentro do jogo, como, por exemplo, quando pedia para que o entrevistado descrevesse seu avatar e apontasse que semelhanças ele teria ou não com seu tipo físico. Nas entrevistas remotas, tive que confiar nas descrições, fossem reais ou fantasiosas, sem o benefício da visualização direta. Essa comparação me ajudou a identificar até que ponto os jogadores estavam levando características corporais suas para seus avatares e vice-versa. Fora isso, não encontrei diferenças substanciais nas respostas dadas on ou offline. O roteiro semiestruturado utilizado nas entrevistas foi elaborado a partir de um pré-teste realizado em maio de 2009. Todos os temas do pré-teste foram mantidos no roteiro definitivo, mas algumas questões que implicavam em respostas redundantes foram eliminadas. Com essas mudanças, o número de questões caiu de 29 para 16 e o tempo de entrevista, de 1h30, foi encurtado para cerca de 1h. Já os registros fotográficos foram feitos no próprio ambiente do jogo mediante a utilização da tecla PrtScn (Print Screen) e salvas sem qualquer manipulação por meio de um editor de imagens (Photoshop), exceto alguns registros que foram feitos com o recurso de tirar fotografias que o próprio jogo oferece. Para Poupart (2008:216), os argumentos que se aplicam à defesa dos métodos qualitativos servem igualmente à entrevista. São três os que merecem destaque na opinião do autor. O primeiro, de cunho epistemológico, defende a necessidade de uma exploração em profundidade da perspectiva dos atores, essencial para uma completa apreensão e compreensão das condutas sociais. O segundo, de ordem ética e política, é calcado no fato de que a entrevista abre a possibilidade de compreender e conhecer os dilemas e questões enfrentadas pelos indivíduos. Por fim, Poupart aponta, sob o ponto de vista metodológico, que essa ferramenta é capaz de “elucidar as realidades sociais”. Ele vê a entrevista como um “instrumento privilegiado de acesso à experiência dos atores”, uma maneira de explorar melhor o mundo da vida dos informantes. De acordo com Gaskell (2002:66), o roteiro semiestruturado, que ele chama de “tópico guia”, deve funcionar como um lembrete, um sinal de que há uma agenda a ser seguida, e também um meio de monitorar o andamento do tempo da entrevista. Não deve ser visto, pois, como uma “camisa de força”, algo inflexível. Além disso, esse roteiro, enquanto esquema preliminar, vai nos ajudar na análise das transcrições. Entendendo, desde sempre, que toda transcrição é já uma interpretação. O material que surge a partir das entrevistas pode ser considerado uma co-construção, envolvendo tanto o entrevistado quanto o entrevistador (Cf. POUPART, 2008). Indo mais além e adotando uma postura mais reflexiva, podemos dizer que tanto o pesquisador quanto o pesquisado são eles mesmos transformados nesse processo. Considerações finais Estamos na infância da pesquisa da internet. A literatura existente sobre o assunto ainda é insuficiente para aclarar os caminhos que devem ser seguidos e não dá conta de toda a complexidade desse ambiente, um terreno fértil para o estudo dos indivíduos e das relações sociais no mundo contemporâneo. Entretanto, como dissemos ao longo deste trabalho, o momento atual da pesquisa social pede uma abertura. O pesquisador que pretende empreender um estudo na rede mundial de computadores deve ter em mente que seu método será construído no campo e fora dele, a partir de sua própria experiência e da interrelação que surgirá com os pesquisados. Não existe uma cartilha, e mesmo que existisse ela não deveria ser considerada, pelo menos não em sua totalidade. Nos últimos anos, a internet tem se revelado um campo muito rico para a pesquisa qualitativa, em especial para os estudos etnográficos. Perambular por sites da web, observando discursos e ações, tal como faziam os etnógrafos clássicos em sociedades remotas, parece ser um caminho bastante promissor. No caso das entrevistas e grupos focais, ainda que se perca o elemento do contato visual e as expressões faciais, ganha-se na espontaneidade das respostas. É fato que as fronteiras on e offline estão se dissolvendo. A utilização da internet cresce em todo o mundo e com ela crescem os desafios metodológicos. Resta aos sociólogos acreditar no seu potencial e construir seus próprios caminhos. REFERÊNCIAS BATISTA, Micheline Dayse Gomes (2010). Second Life: corpo e identidade no mundo virtual. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade Federal de Pernambuco, Recife. BRYMAN, Alan (2008a). “E-research: using the internet as object and method of data collection”. In: BRYMAN, Alan. Social research methods. New York: Oxford University Press, p. 627-659. _________, Alan (2008b). “The nature of qualitative research”. In: BRYMAN, Alan. Social research methods. New York: Oxford Univeristy Press, p. 365-399. CASTELLS, Manuel (1999). A era da informação: economia, sociedade e cultura, Vol. 1, A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra. ________________ (2003). A galáxia da internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. DENZIN, Norman K.; LINCOLN, Yvonna S. (2006). “A disciplina e a prática da pesquisa qualitativa”. In: DENZIN, Norman K.; LINCOLN, Yvonna S. (Orgs.). O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. Porto Alegre: Artmed, p. 15-41. FLICK, Uwe (2009). “Pesquisa qualitativa online: a utilização da internet”. In: FLICK, Uwe. Uma introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed, p. 239-253. GASKELL, George (2002). “Entrevistas individuais e grupais”. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. (Orgs.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, p. 64-89. JACCOUD, Mylène; MAYER, Robert (2008). “A observação direta e a pesquisa qualitativa”. In: POUPART, J. et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Rio de Janeiro: Vozes, p. 254-294. LEMOS, André (2004). Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina. LÉVY, Pierre (1993). As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34. LINCOLN, Yvonna S.; GUBA, Egon G. (2006). “Controvérsias paradigmáticas, contradições e confluências emergentes”. In: DENZIN, Norman K.; LINCOLN, Yvonna S. (Orgs.). O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. Porto Alegre: Artmed, p. 169-192. MELUCCI, Alberto (2005). Por uma sociologia reflexiva: pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis, RJ: Vozes. POUPART, Jean (2008). “A entrevista do tipo qualitativo: considerações epistemológicas, teóricas e metodológicas”. In: POUPART, Jean et alli. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes, p. 215253. SILVERSTONE, Roger (2005). Por que estudar a mídia? São Paulo: Edições Loyola.