Caro Huertas, grande dramaturgo e poeta :
Transcrição
Caro Huertas, grande dramaturgo e poeta :
“Andar sem Pensamento” ¡Quién pudiera agarrate por la cola magiafantasmanieblapoesía! ¡Acostarse contigo una vez sola y después enterrar esta manía!. ¡Quién pudiera agarrarte por la cola! Juan Gelman. Jorge Huertas Atílio, John. Os dois estão perto dos 50. Carminha. 33 anos, porém parece mais jovem Um grande cemitério. Linda tarde de verão. Largas fileiras de tumbas no nível do piso, da ala F17. Flores naturais ou de plástico, cruzes de mármore, de madeira, lápides brancas e seus pequenos canteiros. O sol roça os muros altos e soa o silvo do vento nas árvores. John e Atílio, ambos de terno, conversam sentados em um banco de pedra em frente às tumbas. Atílio é elegante e bem cuidado. John magrelo, louro e de olheiras, está desalinhado : gravata sem nó, barba por fazer. Parece que não dormiu. Ambos soltam uma grande gargalhada que quebra o silêncio do cemitério. John : Que mulher, meu irmão! Que mulher! De infartar! Atílio : Morena ? John : Não, ruiva. Atílio : Ah, uma ruivinha! E o corpo? John : As pernas, os peitos ? Atílio : Sim, os peitos... John : As pernas... Atílio : Isso... (Revira os olhos) John : Grossas, torneadas... (dá um murro no banco) E assim! Atílio : Mas que inglês fila da puta! John : Irlandês! Atílio : Dá no mesmo. Se eu tivesse seu sobrenome pegava mulher a torto e a direito : cemitério S. João Batista, umas lagriminhas aqui, outras acolá, champagne aquela e carinha caviar. Mas de com dor... a e depois porra do flores, meu sobrenome...Souza Duran, tenha dó! John : Souza Duran soa a amante latino. Atílio : Mas sem um puto no bolso. John : Eu tampouco tenho grana. Atílio : Mas com este sobrenome engana. As pernas, as pernas... ! A gente tava nas pernas... John : As coxas nascem de umas cadeiras redondas, puríssimo mediterrâneo! Atílio : (com sono) A coxas me escapam como dois peixes dormidos1 Jonh : ...e pernas que terminam em tornozelos de porcelanas e...salto alto! Atílio : As mulheres de tornozelos finos são juncos. Não caminham, balançam, fluem, flutuam. E a cintura? John : Cinturinha de modelito, não. Estou falando de um mulherão. Atílio : Perfeito. Não curto as cinturas de anoréxicas. A gente abraça e elas escapam, escorregam dos braços. Continua, vá, continua... 1 A casada infiel, do poeta espanhol Federico García Lorca. John : Não! Você tem que ir. Atílio : Os peitos! Você não me falou ainda dos peitos! Tipo pesseguinhos ou mamões...? John : Peitinhos que tremeluzem com a respiração... Atílio : ... Oh! Daqueles, cheios, fofos, que parecem travesseiros? John : Basta. Você tem quer ir. Atílio : Marcou alguma coisa com ela? John : Sim Atílio : Já era hora. E onde vão se encontrar? John : Aqui Atílio : Como são os olhos dela? Eu tive uma mulher que tinha os olhos de mar. John : Azuis Atílio : Não. Eram azuis durante à tarde, cinzas nos dias de chuva, turquesa na primavera. Era o mar, o mar... John : Chega, acabou. Vá embora! (Pausa) Atílio : Impossível. John : Não me sacaneie. Atílio : Eu também estou esperando uma mulher. John : Você tá dizendo isso só pra me sacanear. Atílio : Juro que não. John : Quem é ela? Atílio : Ah... John : A mesma da outra vez? Atílio : Não sei... John : Não banque o misterioso. Atílio : Tá bom. É ela sim... John : E a hora da verdade? Quando vai ser ? Atílio : Eu não sou como você. Eu gosto de ir lentamente, passo a passo. Como o vinho... John : Já eu, agarro pelo gargalo e engulo de uma vez só. Não paro nem pra respirar. Atílio : Eu gosto de saborear a mulher aos goles, dar voltas na boca, sentir o aroma, o bouquet. John : E a tal mina costuma vir aqui? Atílio : A uma dessas tumbas. Não sei bem qual é. John : Traz flores? Atílio : As duas vezes que vi, não. Ela vem e fica sussurrando. John : Fala com o finado. Atílio : Claro !... John : Talvez reze... Atílio : Não, não, ela não reza. John : Será viúva, como a minha? Atílio : Não sei, é muito novinha. John : O que tem isso a ver? Na vida há todo tipo de desgraça. Pode ter enviuvado jovem. E se não for viúva, também vale. Atílio : Sim ? John : As mulheres estão liberadas. Sabe como metem chifres hoje? Atílio : Eu não quero qualquer uma. Tem que ser viúva. Se não for, eu conquisto lá fora. Você sabe muito bem que venho ao cemitério só pra lhe acompanhar. John : Tá me reprovando, é? Atílio : Não. Mas quem teve a idéia de vir ao cemitério foi você... John : E você agora se incomoda, é? Atílio : Você é um mestre, Johny. Só faço lhe admirar. E a gente tem caçado mulheres em cada lugar, meu Deus do céu! John : Se lembra quando você seduziu aquela freira? Atílio : Uma noviça... e olha que não era nada rebelde... John : Você bancava o pecador arrependido... Atílio : Arrependido eu fiquei depois. Foi a primeira vez que Carminha me expulsou de casa. John : Você também, cara! Parece um suicida. Escreve cartinhas de amor e deixa jogadas à toa, no meio da casa. Atílio (recorda) Querida Liliana : Afora teu ventre, tudo é escuro, Abaixo, teu ventre é claro e profundo...2 John : E ainda por cima, lhe escrevia sacanagens... Atílio : Como sacanagens? John : “Teu ventre”, não está fazendo referencia a... a...? Atílio : É um poema de Miguel Hernández. 2 Afora teu ventre, do poeta espanhol Miguel Herrnández. John : E quem é esse cara? Atílio : Miguel Hernández é uma das maravilhas do mundo. Como as pirâmides, como a Muralha da China. John : Carminha deixou barato só te expulsando. Outra tinha te matado. Atílio : É que eu tava apaixonado. John : Você não sabe ser mulherengo, se apaixona. Faz a coisa ficar mais difícil do que um teorema. (Tira do bolso um pequeno cantil de bebida alcoólica e bebe) Atílio : Poxa, ainda é dia claro e você já tá entornando. John : Me bata um abacate, Atílio. Você não sabe desfrutar uma mulher. Temos que desfrutar uma mulher como se degusta as frutas, a água fresca, a primavera. Atílio : Não sei, se for só físico, sinto que me falta algo. Me parece muito cru. John : É assim que dá gosto, Atílio. O instinto puro, o desfrute pleno, o despojo, o animal desolado no seu instante de paraíso. (Continua bebendo) Atílio : Não beba mais. Veja como você tá vestido. Parece um maracujá de gaveta. Assim você não atrai ninguém. John : Eu gosto daquela foda de estourar a boca do balão. Atílio : Nem se barbeou... John : A vida não tem solução, Atílio. E você sempre buscando uma. Você não é um romântico, é um mero faminto. Atílio : E você é um espantalho. Tá esperando uma mulher e veja o que aparenta. John : Vá lá, vá lá, me derrube a moral. Atílio : E ainda se queixa. (Pequena pausa. John tira uma coisa do bolso.) John : Veja! Atílio : O que é isso ? (John abre um pequeno triângulo de renda vermelha. É uma calcinha diminuta e sugestiva.) John : Lingerie erótica! Atílio : Guarda essa porra. Isso me dá taquicardia. John : E a mim? Me dispara a pálpebra. Atílio : Pra que trouxe isso? John : Hoje faço ela vestir. Atílio : E o espartilho? John : Não, não! Atílio : Frutas balouçantes! Frutas que incitam a rapina...3 John : Isso mesmo. Pra mim, tetas no ar e calcinha no chão. E você? Atílio : Eu o quê? John : Trouxe algo para conquistá-la, ou para depois? Atílio : Não John : Olha pra mim. Atílio : Não trouxe, tô falando sério. 3 De Canto para os seios, do poeta uruguaio Idelfonso Pereda Valdés. John : Vamos lá, desembucha. Atílio : Pra falar a verdade, trouxe sim. John : O quê ? Atílio : Este... John : Lingerie... Atílio : Não, seu grosso. John : Quanto mistério! (Atílio tira do meio das roupas um livro usado de capa escura.) John : Um livro? Atílio : Sim John : Você não tem jeito. Atílio : Não é um livro qualquer. John : A Bíblia! Atílio : Não. John : Porra, que alivio. Porque você é capaz de tudo... Atílio : É uma antologia. John: Antologia? Atílio: Sim, de poesia. John: E para que lhe serve a poesia? Atílio : Você é uma besta quadrada. Pra que serve a poesia? Quantas vezes lhe expliquei. A poesia é... John : É o quê? Atílio : É ... tudo! E com as minas é infalível. John : Com as do seu tipo. As minhas preferem foder. Atílio : As minhas também. Porém elas não gostam de sexo cru. Eu tampouco. John : O sexo não é cru, é sexo! Prazer e ponto! Mas você não me leva a sério. Já lhe repeti mil vezes. Larga esses versinhos, porra! Eles lhe viram a cabeça. É muito mais simples. Atílio : O que tá querendo dizer? John : ...Você conquista uma mulher, leva pra cama, goza, faz ela gozar: isso é tudo. Atílio : Isso é tudo? John : Não tire o mérito. É assim tão simples, mas metade do mundo não sabe fazer. O que você quer mais das mulheres? Atílio : O que quero? John : Sim Atílio : Bem, quero...quero... um... John : Vá, vá, pode gastar todo tempo do mundo. Eu tenho todo tempo, e acho que você também. (Pausa) John : Que tá olhando? Fala, porra. Atílio : É que... John : O que você quer das mulheres? Explica-se de vez! Atílio : Uma mulher... John : Sim, de uma mulher. Atílio : Uma mulher... (aponta) Olha : lá vem caminhando por uma rua perdida, entre fileiras de cruzes. John : Cê tá fugindo do papo. Atílio : É serio, olha lá. John : (Olha) É a minha ou a sua? Atílio : Sem óculos não enxergo nada John : Se faz de galã e não passa de um míope. Atílio : É ou não é? John : Eu também não enxergo de longe. Se for a sua, eu saio. Mas se for a minha, é você que vai, tá certo? Atílio : Não há lugar para as duas? John : Não. As mulheres se controlam entre si, se inibem. Se fazem de desentendidas. Atílio : Tem razão. Quando estão na frente da amiga lhe dizem não, mas quando estão sozinhas se ligam logo ! Tá bem, a mulher que chegar primeiro manda. (Pausa. Os dois tentam descobrir qual a mulher que chega.) John : Atílio. Atílio : Sim. John : Você gosta mesmo de mulher? Atílio : De doideira. John : E entende elas? Atílio : Impossível. Se entendesse, teria a eternidade sob controle. John : Me enganando, hem? Dizendo que não é a minha. Atílio : A sua ? John : Sim, a mesma forma de caminhar. Como um pequeno junco ao vento, ruivinha. Atílio : Ruiva não é. Jonh : Vamos, saiba perder e se mande. Atílio : Não! É a minha. John : Sério? Atílio : Eu saco aqueles peitos a cem metros. John : Tem razão, é a sua. Eu sempre perco. Descobriu que não dou uma dentro? Atílio : Isso me parte a alma, Johny, mas o que posso fazer? John : Somos amigos. É como se fosse comigo. Tchau. Atílio : Te quero como um irmão. As vezes penso que se você morresse eu não saberia o que fazer da vida. John : Eu sinto a mesma coisa. (John se afasta, fingindo-se distraído. No meio das tumbas vem uma morena de uns trinta anos : una mulher de cabelo preto e grosso como de uma égua. Alta, intensa, pedigree bem latino. Atílio, com o livro nas mãos, olha de soslaio a mulher que procura um túmulo. Ela limpa a lápide e arruma as flores de plástico. Está de mini-saia. Ao se acocorar suas coxas ficam descobertas. É verão. Os olhos de Atílio penetram na profundidade daquele corpo. Ela se benze. Seus peitos tremem, cheios de emoção. É o momento. O gavião lê, com a voz pausada.) Atílio : Posso escrever os versos mais tristes esta noite pensar que não a tenho, sentir que a perdi...4 (A mulher olha para ele.) Atílio : Atrapalho? Mulher : Tudo bem. Fique a vontade... Atílio : (Folheia o livro e segue lendo) Uma fonte de cristal, um jorro d’água um esguicho que o vento arqueia, uma árvore bem plantada mas dançarina um caminhar do rio que se inclina...5 É uma forma de consolo. Hoje seria nosso aniversário. Que dura é a ausência, não é verdade? Mulher : Muito dura. Atílio : Pintada, jamais vazia pintada está minha casa com a cor das grandes paixões e das desgraças6 (Pausa) Atílio : Não creio que eu vá me recuperar algum dia. Algum parente? Mulher : Sim Atílio :Muito próximo? Mulher : Sim Atílio : Pai, mãe? De Poema 20, do poeta chileno Pablo Neruda. De Pedra de sol, do poeta mexicano Octavio Paz. 6 De Canção última, do poeta espanhol Miguel hernández. 4 5 Mulher : Não, meu marido. Atílio : Oh, meus sentimentos. Mulher : Obrigada. Atílio : Se foi há muito tempo? Mulher : Sim, mas não me acostumo. Atílio : Viu? Longe dos olhos, perto do coração. Mulher : E o senhor? Atílio : Meu peito ainda sangra. Faz seis meses que a perdi. Mulher : Sua mamãe? Atílio : Minha legítima esposa, companheira de toda uma vida. E eu morri com ela. Mulher : Não fale assim. Tem que continuar vivendo. Atílio : Mas como ? (Olha para ela demoradamente) Não sei, mas acho que lhe conheço. Desculpe, não quis interromper a sua dor com todo peso da minha. Continue. (A mulher volta a sentar no túmulo e chora, em silêncio, com enorme pudor. Parece que reza. Atílio a observa com uma súbita curiosidade.) Atílio : Incomodo se continuo a ler? Mulher : Não. Talvez seja um consolo para os dois. Atílio : Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. Aparte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (e se soubessem quem é, o que saberiam?)7… Mulher : Pessoa. Atílio : Conhece sua obra? Mulher : Sim, Pessoa e seus heterônimos. Meu marido gostava muito Atílio : Que coincidência! Podemos nos consolar juntos. (Busca outra página) Que tal esta ? Quando eu tinha seis anos Ganhei um porquinho-da-índia. Que dor de coração me dava Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão! Levava ele prá sala Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos Ele não gostava: Queria era estar debaixo do fogão. Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas… - O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.8 Mulher : E aí? Atílio : Estou perturbado, sabe? Você me parece conhecida. Mulher : Eu tenho um rosto comum. 7 Tabacaria, de Fernando Pessoa (heterônimo Álvaro de Campos) Atílio : Não diga isso. Acho que já lhe vi em algum lugar. Tem um ar parecido com uma parenta minha que vive no México. (A mulher estremece e esfrega os braços nus) Atílio : Está ficando frio (Atílio tira o paletó e coloca nos ombros da mulher.) Mulher : Não se incomode. Atílio : Por favor, me devolva depois. É a tristeza o que gela uma pessoa por dentro. No cair da noite é pior. Mulher : Insuportável. Fico gelada na cama. Atílio : A cama do viúvo é um deserto de dor. Mulher : Eu coloco meias, uma touquinha... Atílio : Uma touquinha? Mulher : Sim. Por quê ? Atílio : Tem certeza de que já não nos vimos antes? Ou talvez... Mulher : Por que sorris? Atílio : Ou talvez esse encontro não seja casual... Não leva a mal se eu lhe disser uma coisa? Mulher : Continue... Atílio : Deixa pra lá, é melhor assim. Mulher : Fale agora. Atílio : Que tal a gente beber alguma coisinha na saída? Mulher : Você é um filho da puta, Atílio! (Atílio fica paralisado, com a boca aberta.) 8 Porquinho-da-índia, de Manuel Bandeira. Mulher : Um grandiosíssimo filha-da-puta, como foi toda a vida. (Atilo recua, empurrado pelo pânico e pela surpresa.) Atílio : Co...como você sabe que me chamo Atílio? Mulher : Não se faça de idiota. Atílio : A gente se conhece? Mulher : É claro que sim. Há pouco você disse que eu parecia alguém... Atílio : Era só uma impressão. Na vida se conhece tanta gente. Mulher : Agora você vem caçar em cemitério, é? Você é o cúmulo...!. Atílio : Quem é a senhora ? Mulher : Sou Carminha, sua mulher. (O pobre Atílio fica branco como um folha de papel.) Atílio : A senhora não é minha esposa. Carminha : Ah, não? Atílio : Não. Quem é a senhora? Que queres de mim? (tenta afastar-se) Carminha : Bubu... Atílio : O que disse? Carminha : Bubu. Como lhe chamavam quando você era pequeno. Carminha : Como sabe disso? Carminha : Você me disse isso quando nasceu Sebastião, nosso filho mais velho. Atílio : Sim, eu tenho um filho chamado Sebastião. Carminha : Comigo. Temos ainda outro filho homem e uma menina : Elvira. Atílio : Quem te mandou foi a minha mulher! Carminha : Não fui mandada por sua mulher. Eu sou sua mulher! Atílio : Se parece de corpo, mas minha mulher tem outra cara. Carminha : Quer se convencer? Atílio : Não me interessa. Já vou. Carminha : Quando você era pequeno tinha uma verruga na mão e queimaram. Atílio : Oh! Carminha : Teve uma noiva alemã que lhe deixou por outro. Atílio : Oh! Carminha : Você gosta de filmes de cowboys e tinha inveja de um colega do primário que se disfarçava de Tarzan. Atílio : Carminha lhe contou. Só ela sabe dessas coisas. Carminha : Eu sou Carminha, Atílio. Quando você faz amor me chama de “gulosa, safadinha, potranca”, tá lembrado? (Atílio cai de joelhos, fulminado pelo raio da evidência. Os olhos esbugalhados buscam resposta no olhar de Carminha, que tem as mãos nas cadeiras.) Atílio : O que está se passando? Fiquei maluco? Tudo o que você diz é certo, mas você não é Carminha. Carminha : Sou, sim. Sou a mesma Carminha que foi pra cama com você pela primeira vez no Hotel Irará. Aquele que demoliram pra fazer uma fábrica de macarrão. Atílio : Carminha, por que não lhe reconheço? Fiquei louco? Tenho demência senil? Carminha : Venha aqui... Atílio : Não. Carminha : Venha, não vou lhe fazer nada. Atílio : A senhora é uma bruxa. (A mulher solta uma gargalhada que gela o sangue de Atílio.) Carminha : Venha, me dê as mãos, toque meu rosto. (Com muito temor, Atílio estende as mãos até tocar o rosto da mulher) Atílio : Ah! Carminha : Sou ou não sou? Atílio : É sim! Você é Carminha. Carminha : Tá vendo? Atílio : Meus olhos não lhe reconhecem, porém as minhas mãos sim. O que têm as minhas mãos, o que têm? Carminha : Se lembram do muito que me acariciaram, Atílio. Atílio : Não pode ser, fiquei louco. Eu sei que já lhe fiz sofrer muito, mas por nossos filhos, lhe peço, não me interne. Não me ponha num manicômio. Logo, logo, vou ficar bom. Carminha : Não tem jeito. Atílio : Você está se vingando. Se me apoiar, eu enfrento a doença e me recupero. Carminha : Não vai ser possível. Atílio : Por que você não pode me ajudar? Por quê? (Pausa) Carminha : Porque você não está doente, Atílio. Atílio : Ufa, que alívio! Carminha : Você está morto! (Pausa) Atílio : Qualé, morto! (faz figa com os dedos) Nunca me senti melhor. Poxa Carminha, quando você tá com rancor é capaz de dizer qualquer coisa. Carminha : Lhe digo a mais absoluta verdade : você está morto. Não acredita? Então chame o malandro do seu amigo e pergunte. Atílio : Que amigo? Carminha : O que anda com você : Johny. Atílio : Ele não está aqui. Carminha : Não minta mais. Chama ele, agora (Pausa) Atílio : Claro! John, John! (se dá conta que está gritando, e então chama, malandramente, em voz baixa) Joohn! Carminha : Grita, baixinho assim ninguém escuta. Atílio : (Desesperado) Johnny! (John aparece.) John : Que passa, cara? Olá, Carminha. Atílio : Como você sabe que ela é Carminha? John : Conheço ela de toda a vida. Atílio : Ah, vocês dois armaram essa. Querem mesmo me sacanear. Venha cá : você não tá me corneando com esse cara, não é, Carminha? Johny, você sabe o que ela disse? John : O quê? Atílio : Que estou morto. John : E daí? Você está morto mesmo. (Atílio cambaleia) Atílio : Como, morto? Carminha : Mortinho da silva. Sem vida. O que você tá querendo inventar, Atílio? Mortinho da Silva, como todo mundo morre. (Pálido, empalitozado e elegante, Atílio é agora um boneco patético. Johny e Carminha querem ajudá-lo, porém ele rejeita.) Atílio : Me dê um whisky (bebe) Estou morto mesmo? John : Efetivamente. Atílio : E você diz desse jeito? John : E como quer que eu diga? Atílio : Que flor de amigo! Você sabe que estou morto e não me diz nada. John : Sabe quantas vezes eu lhe disse? Atílio : Quando? John : Centenas de vezes. Mas você não quer escutar, muda de conversa, vira de lado. E segue, segue... (Atílio tem o olhar febril do paranóico. É um animal duro e perigoso. Empurra o amigo, que não se defende.) Atílio : Você não é um amigo, você é um filho da puta. Você e essa aí se aproveitam de mim porque estou doente: não sei... pode ser um tumor na cabeça, um aneurisma, um vírus. Carminha : Atílio não faça cena, como sempre. John : Morre de uma vez. Já cansei de segurar sua vela. Atílio : E quem pede alguma coisa por você? John : Você mesmo, porra. “Que descanse em paz, que descanse em paz”. Isso lhe diz algo? Eu mereço mesmo, amiga. (a Carmencita) Esse aí não tem jeito : sempre no mundo da lua. Atílio : Deixe minha vida em paz. Cuida das suas coisas! Jonh : Você é minha coisa. Atílio : O que tá dizendo? John : Tô de saco cheio. Não lhe parece estranho a mesma roupa, a mesma conversa sempre? Atílio : O quê? John : Sim, a conversa de agora há pouco, sempre a mesma. Atílio : Como? Foi a primeira vez que lhe contei que estava esperando uma mulher. E só me ocorreu, ontem, trazer o livro. John : Que novidade ! (Imita a conversação recente) Eu : “As pernas, os peitos?” Você : “Sim, os peitos” Eu : “As pernas...” Você : “Isso”, Nesse momentos revira os olhinhos. Eu : “as pernas grossas, certinhas...” Bato no banco com a mão direita para dar sensação de dureza e digo : “Assim”. Atílio : Um momento, senhor. John : Quer outra página? Você : “Eu tive uma mulher que tinha os olhos de mar”. Eu : “Azuis”. Você : “Não. Eram azuis à tarde, cinza nos dias de chuva, turquesa na primavera. Era o mar, o mar”. Não se convence, não? “Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos Ele não gostava: Queria era estar debaixo do fogão. Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas… -O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.” Atílio : Versos qualquer um pode aprender. John : Sobretudo se lhe repetem milhares de vezes. Você é a própria condenação de Sísifo. Cada dia levamos a pedra ao topo da montanha, para deixá-la cair e voltar a subí-la no dia seguinte. Atílio : Ninguém está pedindo pra você ficar. Vamos, se manda. John : Não posso. Atílio : Por quê? John : Desperta, sai do meio das névoas. Você não se dá conta? Eu também estou morto. Atílio : O quê? Você também? John : Em que mundo você vive? Atílio : Já não sei. Carminha : No mundo dos mortos. John : Estou morto, igual a você. Carminha : Morreram juntos. John : Como havíamos jurado na infância, naqueles dias de bala e sangue. Carminha : Porém tiveram uma morte menos honrosa. John : Não falemos disso. Atílio : Claro que sim! Quero saber a verdade. Como nós morremos? ( Pausa) Atílio : Vão me dizer ou não? John : Voltando de uma noite de esbórnia. Tínhamos naquele Renault. Atílio : Um carro do caralho! John : Porém com problemas de suspensão dianteira e pouca estabilidade. Era de madrugada. Tínhamos com as duas irmãzinhas mineiras, as gatinhas que conseguiam gozar muitas vezes. Se lembra? Atílio : Como é que você fala assim, cara? Carminha está aqui! Carminha : Deixa ele falar, seu cara-de-pau. Eu conheço as duas. John : Eu estava dirigindo. Tínhamos bebido bastante : champanhe, whisky. Entramos rápido no túnel. Tinha se rompido um encanamento e jorrava muita água. Atílio : Ah, sim (sorri) Água que bate no pára-brisa. Mulheres que gritam. A água baixa e o carro se transforma em um avião. Olho para baixo e... tá lá todo o Rio de Janeiro!!! Sinto os atabaques, os pandeiros, os agogôs ; zirigidum-dum-dum; tungui-esquidungui tungui-esquidungui! Os negões e as mulatas mexendo, uma loucura. Aparecem uns ferros prateados como lanças. “Johnny, Johnny – lhe grito- é a guerra civil. Estão nos matando com facas... Eu te falei na hora! John : Não havia placas, barreiras, nem quebra-molas. O carro derrapa feito louco e batemos na parede. Capotamos, o Renault pára mais enrugado do que o fole de uma sanfona. Atílio : Sim, eu tive esse sonho uma montão de vezes. Carminha : Não é um sonho. Você morreram assim. Atílio : No meio de uma farra? John : Sim. Encontraram meu cantil quase vazio e a lingerie erótica. Com você, o livro. Foram as únicas coisas que pudemos trazer. Atílio : Você chegou a por a lingerie? John : Foi outra coisa que se pôs... outro sol... Carminha : Arre... Atílio : Que vergonha, Carminha. Como você deve ter sofrido. Me perdoa. Carminha : Não se aproxime. Eu nem podia sair na rua. Atílio : A última coisa que eu queria na vida era fazer minha família sofrer. Carminha : Se você nos queria mesmo, teria sido um verdadeiro pai de família. Atílio : É... mas pra isso tinham, primeiro, que me capar. O que disseram as crianças? Carminha : Menti para eles. Atílio : Que alívio! Carminha : Inventei uma morte digna pra você. Atílio : Lhe agradeço. Não por mim, por eles. Carminha : Mas quando cresceram souberam de tudo. Mamãe contou pra eles. Atílio : Aquela bruxa, sempre contra mim. Eu não poderei mais olhar os meninos nos olhos. Carminha : Não vai fazer falta nenhuma. Você está morto. Atílio : Repita, repita, pode repetir... machuca, machuca... (Atílio chora em silêncio. Suas lágrimas caem lentamente.) Carminha : Está chorando? Atílio : De alegria. Por escutar notícias dos meninos. E lhe digo aqui da morte, esta que nos dá alguma experiência: na vida -e nos naufrágios- as crianças e as mulheres primeiro. John : O cara morre e ainda diz frases célebres. Atílio : Venha pra cá...amigo. John : O que passa? Atílio : Não se faça de desentendido. Você andou tirando onda com minha mulher e ainda tem a cara de pau de aparecer. John : Eu? Atílio : Ela acaba de insinuar. Carminha : O que isso tem a ver com o que falávamos? Atílio : Deixei passar. Mas você disso isso há pouco ... Carminha : Não falemos do passado. Atílio : Você que falou. John : Você se imagina o centro do universo. Sempre se estar em dívida com você. Atílio : Você quis deitar com minha mulher... Foi pra cama com ela? Carminha : Não comece com seu ciúme doentio. John : E daí? Você mesmo me provocou : “ela é mais branda que a água...sozinha, triste...” E você que teria feito? Atílio : A mulher dos amigos é sagrada. John : Isso é um mito. Atílio : Você não tem regras. John : As leis foram feitas para serem transgredidas, Atílio. Me diga algo sagrado que alguém não deseje com desespero. Carminha : Não falem como se eu fosse um objeto. John : A vida é complicada, Atílio. Carminha : Você me deixava muito só. John : Se eu tivesse tido uma mulher como Carminha, teria sido minha devoção. Carminha : Cala a boca, mentiroso. John : Você tinha uma mulher estupenda. Eu, não. Atílio : Morto e corno. E sou o último a saber das duas coisas. (O casal tem uma conversa íntima, que John, dissimuladamente, tenta escutar.) Carminha : Você não pode me reprovar. Você era um grande mulherengo. O que faltava em mim? Sempre lhe apoiei. Por que saía com outras mulheres? (Pausa. Atílio fica em dúvida entre falar e calar-se.) Carminha : Diga-me , por favor. Atílio : Eu..., eu sempre... pensei que... uma mulher ia me redimir. (Carminha tem um ataque de riso incontrolável. John, também, ao escutar a resposta de Atílio cai em gargalhada). Atílio : O que foi? (Eles continuam rindo enquanto tentam falar.) John : Você é uma figura! Uma mulher... lhe redimir? Carminha : Ai, Atílio, você é uma criança (enquanto seca as lágrimas) Como me tem feito rir. (Atílio olha para eles enquanto terminam de rir.) Atílio : Bem, cara, são as idéias que uma pessoa tem. Porém eu lhe amava, Carminha. Carminha : Aquilo não era amor. Atílio : Eu lhe amava da minha maneira. John : O cara sempre com o “te amo” na boca. Atílio : O que é que tá se metendo, porra? John : Não chore mais. As pessoas se lembram de você. Conte pra ele, Carminha, que você tem a foto dele na mesa do abajur. Apesar de tudo que aprontou! A mim, meu caro, ninguém vem visitar. Não me perdoaram. Sou a maldição da família, e mesmo assim não choro como você. Atílio : Respeite a intimidade de um casal. Fora, fora! Vá pra sua cova. John : Mal agradecido. Eu te apoio sempre, e agora me tira o pouco de companhia que posso ter. Mande ele à merda, Carminha, mande. (John vai embora.) Carminha : Tá sendo duro com ele. Atílio : Ele quis lhe conquistar ou lhe conquistou? Carminha : Você fazia o mesmo com a mulher dos outros. Atílio : Estando vivo, Carminha, não há outra coisa além do corpo. Os meninos têm os brinquedos, as mulheres têm filhos, porém, nós ,homens, o que temos? Carícias, beijos, sexo. O que mais? Carminha : Você não entende a solidão de Johny. As pessoas lhe repudiam como putanheiro. Atílio : Como o defende! Você deu mesmo pra ele! Carminha : Ele é uma criança, igual a você. Crianças que brincam com mulheres. Que se enchem de ilusões para se consolar : a pele suave, as formas redondas, o cheiro das fêmeas. (Pausa.) Atílio : Quer dizer que morri em plena sacanagem. Carminha : Gênio e figura até a sepultura. Atílio : E as meninas morreram? Carminha : Por sorte, não. Boas garotas. Atílio : Você está defendendo elas! Carminha : Por que não? Atílio : Mas eu estava de transa com elas. Carminha : E daí? Não me tiraram nada que eu já não tivesse perdido. Levaram vocês ao hospital. Ficaram numa enfermaria ao lado. Johny morreu logo e você resistiu alguns dias. Atílio : Eu tava consciente? Carminha : Nunca. Como não localizavam os pais delas, e não tinham ninguém aqui, começamos a levar coisas pra coitadas. E no final surgiu uma amizade. Fizeram reabilitação e, graças a Deus, caminham. Atílio : Que sorte! Carminha : Agora vêem sempre à ceia de fim-de-ano, aos aniversários. Atílio : Não sacaneie. Carminha : Sabe como a gente falava de você? Atílio : Ora, só saí com elas uns seis meses. Nada mais. Carminha : Mas foram os últimos. Sabe? A sua se casou. Atílio : E o que você dizia aos meninos? Carminha : Que ela era uma prima. Atílio : É enorme a tristeza que um homem e uma mulher podem fazer entre si.9 Carminha : Já não importa. Ninguém pode ficar abraçado com o rancor. Temos que saber perdoar. 9 De Coragem, do poeta argentino Juan Gelman. Atílio : Se você soubesse o quanto te amei... (Pausa grande. Trinados de um pássaro se despedindo do sol. Som das folhas das árvores). Atílio : Carminha... Carminha : Sim? Atílio : Está percebendo? Estamos falando como nunca. Sem reprovações. Carminha : Sim? Atílio : Igual quando vivíamos naquele apartamentinho da Barata Ribeiro. Antes que nascessem os meninos. Você me lia poemas, enquanto a gente tomava um vinhozinho. (Pausa.) Atílio : Mas no final nada dava certo. Carminha : Era insuportável. Atílio : Você agora está diferente. Carminha : É mesmo? Atílio : Não sei, está mais madura. Carminha : É? Atílio : Não se faça de sonsa. Você sabe disso. Carminha : Pode ser. Atílio : No final tudo era um problema : por qualquer coisinha uma discussão interminável. Carminha : Me sentia ferida, humilhada, insegura. Atílio : Insegura? Eu estava louco por você. Se fazia ou não fazia, se olhava ou não olhava. Estar ou não estar com você era a medida do meu tempo. Carminha : Que lábia você tem! Isso você não perdeu. (Pausa.) Atílio : Você está mais suave do que água. Carminha : É? Atílio : Tudo se harmoniza. Carminha : Sim. Atílio : Suave, compreensiva... Carminha : Você nunca deu a mínima pra mim. Atílio : O que tá acontecendo? Carminha : Não tenho importância pra você. Atílio : Ih, começamos de novo. Carminha : Egoísta! Atílio : Agora o que fiz? Carminha : Quando já lhe perdoei alguma coisa? Quando me calei sobre algo? Atílio : Nunca. Por isso me surpreende. Carminha : Pra quê te querer, me pergunto. Tantos homens que se atiraram aos meus pés e venho me enganchar logo com você. Então, me vê diferente... Atílio : Muito diferente. Carminha : Por que será? Atílio : Não sei. Carminha : Porque estou morta, Atílio. Morta igual a você. (Pausa) Atílio : Você morreu também? (Atílio explode num pranto inconsolável.) Atílio : Meu amor, você morreu... Carminha : E o que tem de estranho nisso? Todo mundo morre. Atílio : Eu não queria que você morresse. (Atílio chora com enorme aflição.) Atílio : Você sofreu? Carminha : Um pouco no final. Depois, dormi. (Atílio trata de conter o pranto) Carminha : Calma, Atílio. A vida é assim. Não é você que vai mudá-la. (Pausa larga) Atílio : Morrer tão jovem. Carminha : Não, não sou uma jovenzinha. Tenho 67 anos. Completei em dezembro. Atílio : Como pode ter 67 anos? Veja que linda você está, que corpo você tem. Carminha : Não, Atílio. Sou uma velha. Assim fiquei na sua recordação. Com o corpo que lhe enlouquecia e lhe embebedava. Você está me vendo como era na época da sua morte. Mas isso já passou muito tempo. Temos neto, você já é avô. Atílio : Avô? Carminha : Elvira tem um, Sebastião três e o menor ainda não se casou. Atílio : Então quando é qu’eu morri? Carminha : Faz mais de trinta anos. Atílio : Trinta anos! Não pode ser! Johnny, Johnny! (Aparece John visivelmente chateado pelo chamado.) John : O que é? Atílio : Faz trinta anos que estamos mortos. John : Sim, já sei. Atílio : Trinta anos! John : Sim. Trinta anos repetindo a mesma cena. Somos um êxito nacional do teatro : trinta anos em cartaz. E você ainda me condena porque uma vez, faz trinta anos, confuso, tirei uma onda com sua mulher. Que amigo aguentaria trinta anos, esperando que você morresse de vez ? (Sai irritado) (Pausa grande.) Atílio : Vivi equivocado e morri equivocado. (Atílio cambaleia, tonto quer se recostar na terra.) John (De longe) Sim, volte ao seio da terra, volte ao seio da mãe. Atílio : Onde está minha tumba? Carminha : Aqui. (Atílio deita e suspira profundamente) Atílio : Estou tão cansado. A vida é demais pra mim..., e a morte, nem lhe conto. Carminha : Não vá, não vá. Atílio : Sabe que todas as tardes vem uma andorinha nas árvores? Você lembra do poema? Carminha : Mais ou menos. Atílio : Diga-me...por favor. Carminha : De todos os passarinhos Eu fico com a andorinha Porque na cinza da asa ela carrega uma brasa; É... não me lembro. Faz tanto tempo. Andorinha : de galho em galho (fica em dúvida) Atílio : E de barranco em barranco Carminha : Sois na árvore do canto A morna copa embrulhada E a cantora mais linda Carminha e Atílio : E a mais recatada e mais gaúcha. (A voz transparente de Carminha faz voar os versos no cemitério. Ao longe, o canto do pássaro acompanha) De todos os passarinhos Dos que voam e cantam Sem desmerecer a nadinha Eu fico com a andorinha...10 10 De Eu fico com a andorinha, do poeta argentino Julio Migno. (Pausa) Carminha : Atílio, Atílio! (Atílio descansa em paz.) Carminha : Atílio, desperta! Me custou muito vir lhe buscar. Foi Johnny que me convenceu. (Carminha chora em frente a tumba de Atílio.) Carminha : Não me deixe só por toda a eternidade. Eu lhe perdoei. Cuidei das crianças. Vim sempre lhe ver, comprando flores com minha aposentadoria tão pequena. Rezei por você, seu mulherengo depravado. Pedi por nossos netos. Tive outros homens mas você sempre esteve em meu coração. Não me abandone outra vez, Atílio, levante! (Silencio. Cantam os pássaros.) Carminha : Veja só como você, é, Atílio, você sempre morre! (Carminha se ajoelha e beija os lábios mortos de Atílio. E com o beijo vai levantando o corpo dele como se o suspendesse com o céu-daboca.) Carminha : Venha a mim, meu anjinho. (Segue levantando-o, fazendo-o levitar, aos beijos.) Atílio : Onde você está? Carminha : No setor G, fila 6, Gaveta 175. Atílio : Pequenininho? Carminha : Sou uma mulher simples. Não posso com um mausoléu. Mas a gente pode dormir bem encolhidinhos. Atílio : Será que não estamos cometendo um erro? Tenho medo. Veja, se a gente não se der bem vai ser um inferno! Carminha : Alguma coisa nós já aprendemos na vida. Atílio : Os budistas dizem que só com uma vida não se aprende. (Vão embora. Parecem dois velhinhos um ajudando ao outro a cruzar a rua. John vê o casal se afastar.) John : Atílio, Atílio, Atílio! Responda, cara. Não seja rancoroso. É assim que retribui a um amigo que lhe acompanhou durante trinta anos? (Atílio vira, rosto irado. John retrocede e levanta os braços pondo-se em guarda ainda que só possa com sua alma.) Atílio : Jonnhy, por que eu não morri de vez? John : Sou eu lá que sei !... Cada pessoa é um mundo Atílio : Me fale de frente. (Pausa.) John : Eu lhe disse muitas vezes. Enterra essa mania de versinhos. Confundem a cabeça, Atílio. A poesia enlouquece, se convence que a morte não pode existir. Parece mentira que toda essa intensidade se vá terminar (lhe toca o rosto). Ulysses, irmão! Não há Ítaca onde chegar. Nada redime a fadiga. O mundo é um mar de luz e crueldade. E nossos barcos encalhados..., ilhas solitárias. (Pausa. Atílio se afasta sem se despedir.) John : Atílio , me deixa o seu sepulcro? No que estou, inunda tudo quando chove. Me dá o seu? Obrigado, mano! (Como se fosse um sem-teto, Johny se acomoda lentamente sobre a tumba. Levanta o colarinho do paletó, dá um gole no cantil e se deita a descansar, para sempre, sua enorme tristeza de irlandês portenho.) John : Olha lá Atílio, olha lá : apareceu a lua sobre a cidade (canta) Era mais branda que a água que a água branda, era mais fresca que o rio laranja em flor (Assovia) Primeiro há que saber sofrer, depois amar, depois partir e por fim andar, sem pensamento...11 Silêncio de Campo Santo, vento suave nas árvores. Ao longe, Carminha e Atílio se afastam, mãos dadas, debaixo de um céu de verão, como naquele velho tango. FIM 11 Letra do tango Laranjo em flor, de Virgilio y Homero Expósito.